Prince of Thorns - Mark Lawrence PDF
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MARK LAWRENCE
T R I L O G I A D O S E S P I N H O S
TRADUO
ANTNIO TIBAU
Copyright 2011 by Mark Lawrence
Traduo para a lngua portuguesa
Antnio Tibau, 2013
Jason Chan, ilustrao de capa
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Editor Assistente
Bruno Dorigatti
Design e Capa
Retina 78
Design Assistente
Guilherme Costa
Juliane Pimenta
Reviso
Marlon Magno
Retina Contedo
Impresso e acabamento
Pancrom
Para Celyn, cujas melhores qualidades se mantm intactas.
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Corvos! Sempre os corvos. Eles se acomodaram nas empenas da igreja antes mesmo
que os feridos se transformassem em mortos. Antes mesmo que Rike terminasse de
arrancar dedos das mos e anis dos dedos. Eu me recostei na trave da forca e acenei
para as aves, uma dzia delas, alinhadas numa fila negra, sagaz e vigilante.
A praa do vilarejo tornara-se vermelha. Sangue nas sarjetas, sangue nas lajes,
sangue no chafariz. Os cadveres nas posies tpicas dos cadveres. Alguns, cmicos,
apontando para os cus com dedos amputados. Outros, em paz, retorcidos sobre suas
chagas. Moscas se amontoavam sobre os feridos enquanto estes se debatiam. De um
lado e de outro, alguns cegos, alguns astutos, todos trados pelos zumbidos daquela
comitiva.
gua! gua! sempre gua o que os moribundos querem. Estranho. O que me
d sede matar.
E assim foi em Mabberton. Duzentos fazendeiros mortos, jogados ao cho com
suas foices e machados. Vocs sabem, eu avisei que era isso o que fazamos para
viver. Eu disse a seu lder, Bovid Tor. Eu lhes dei uma chance, sempre dou. Mas no.
Eles queriam sangue e carnificina. E conseguiram.
Guerra, meus amigos, uma coisa bela. Ainda que no me importasse em ir at o
velho Bovid encostado fonte dagua, com as vsceras sobre o prprio colo, ele
provavelmente teria uma opinio contrria. Mas vejam s o que ele conseguiu
discordando de mim.
Lavradores de merda. Rike descartou um punhado de dedos sobre a barriga
aberta de Bovid. Ele se aproximou, segurando seu achado como se a culpa fosse
minha. Veja s! Um anel de ouro. Um! Uma vila inteira e uma porra de um anel de
ouro. Queria pr esses filhos da puta em p s para derrub-los de novo. Lavradores
de merda.
Ele bem seria capaz: um bastardo, cruel e ganancioso como aquele. Olhei fixo em
sua direo. Calma, irmo Rike. H mais de um tipo de ouro em Mabberton.
Meu olhar era um aviso. Aqueles insultos haviam roubado toda a magia do
entorno; alm do mais, eu precisava ser severo com ele. Rike sempre chegava ao
limite aps uma batalha, querendo mais. Meu olhar lhe dizia que sim, eu tinha mais.
Muito mais do que ele seria capaz de lidar. Rike resmungou, guardou seu maldito
anel e, numa estocada, ps sua faca de volta no cinturo.
Ento Makin se aproximou e passou um brao em volta de cada um de ns,
fazendo ressonar o metal das suas luvas nas ombreiras de nossas armaduras. Se
Makin possua algum talento era o de conseguir apaziguar os nimos.
O irmo Jorg est certo, Pequeno Rikey. H tesouros em abundncia esperando
por ns. Ele estava acostumado a chamar Rike de Pequeno Rikey por ser uma
cabea mais alto que qualquer um de ns e duas vezes mais largo. Makin sempre
contava piadas. Contaria piadas para aqueles que matava, se houvesse tempo.
Gostava de v-los partir com um sorriso no rosto.
Que tesouros? Rike quis saber, ainda rabugento.
Onde h fazendeiros, o que mais voc encontra, Pequeno Rikey? Makin
arqueou as sobrancelhas de modo insinuante.
Rike levantou a viseira do elmo, obrigando-nos a olhar para sua cara feia. Talvez
mais brutal do que feia. Acho que as cicatrizes lhe caam bem. Vacas?
Makin franziu os lbios. Jamais gostei dos seus lbios, muito grossos e carnudos.
Mas eu o perdoava, graas s suas piadas e sua habilidade mortal com a clava. Bem,
voc pode ter suas vacas, Pequeno Rikey. Quanto a mim, prefiro achar uma filha de
fazendeiro, ou trs, antes que os demais se aproveitem de todas.
Eles se afastaram, Rike rindo daquele seu jeito, hur, hur, hur, como se tentasse
tossir uma espinha de peixe entalada na garganta.
Eu os vi forando a porta de Bovid, uma casa refinada em frente igreja, com
telhado em ripas de madeira e um pequeno jardim florido. Bovid os acompanhou
com os olhos, mas no conseguia virar a cabea.
Eu olhei os corvos, e olhei Gemt e seu tolo irmo, Maical, recolhendo cabeas.
Maical com o carrinho e Gemt com o machado. Uma coisa bela, eu lhes digo. Pelo
menos para se admirar. Concordo que a guerra cheira mal. Mas ns atearamos fogo
no local em breve e o fedor se transformaria em madeira queimada. Anis de ouro?
Eu no precisava de pagamentos extras.
Rapaz! Bovid me chamou. Sua voz estava oca e enfraquecida. Fui me prostrar a
sua frente, inclinado sobre minha espada, sentindo um cansao repentino em meus
braos e pernas. Diga logo o que voc quer, fazendeiro. O irmo Gemt j vem com
seu machado. Rpido!
Ele no me pareceu muito preocupado. difcil abalar um homem que est
prestes a se tornar um banquete de vermes. De qualquer maneira, fiquei irritado com
o jeito suave com que ele me segurou, me chamando de rapaz. Voc tem filhas,
fazendeiro? Escondidas no poro, quem sabe? O velho Rike vai farej-las, com
certeza.
Bovid me encarou, dolorosa e intensamente. Quan... quantos anos voc tem,
rapaz?
Rapaz de novo. Tenho idade suficiente para abrir voc como se fosse um saco
de banha, eu disse, cada vez mais furioso. No gosto disso. Estar furioso me deixa
ainda mais furioso. Mas creio que ele nem percebeu. Ele nem deve saber que fui eu
quem abriu suas entranhas, menos de meia hora atrs.
Quinze primaveras, no mais. No poderiam ser mais... Suas palavras saram
devagar, de lbios azuis num rosto plido.
Errou por um par de anos, eu lhe diria, mas ele j no escutava mais. O carrinho
rangeu atrs de mim e Gemt chegou com seu machado, pingando.
Leve esta cabea, eu lhe disse. Deixe esta barriga gorda para os corvos.
Quinze anos! Se tivesse quinze anos no estaria devastando vilarejos.
Quando chegasse aos quinze, j seria rei!
Algumas pessoas nasceram para nos incomodar.
O irmo Gemt nasceu para incomodar o mundo.
2
Mabberton ardeu com vontade. Todos os vilarejos arderam naquele vero. Segundo
Makin, foi um vero escroto, mesquinho demais para mandar uma chuva sequer. E
Makin no estava errado. Levantvamos poeira aonde quer que chegssemos.
Quando saamos, deixvamos fumaa.
Quem quer ser um fazendeiro? Makin gostava de fazer perguntas.
Quem quer ser uma filha de fazendeiro?, acenei para Rike, que cambaleava em
sua sela, quase cansado demais para cair. Ele mantinha um sorriso estpido no rosto
e uma pea de seda sobre sua armadura. Onde ele achou aquele nobre tecido em
Mabberton, eu jamais saberei.
Irmo Rike gosta dos prazeres simples, disse Makin.
Claro que gostava. Rike sentia verdadeira fome por eles. Uma fome que era tal e
qual fogo.
As chamas engoliram Mabberton. Eu mesmo pus a tocha no telhado de sap da
estalagem e o fogo nos perseguiu at a sada do vilarejo. Apenas mais um dia maldito
daqueles longos e violentos anos da queda de nosso Imprio.
Makin limpou o suor, manchando-se com fuligem. Ele tinha um talento para se
sujar - ah, se tinha. Voc no se manteve acima desses simples prazeres, irmo Jorg.
No poderia discordar. Quantos anos voc tem?, aquele fazendeiro gordo quis
saber. Velho o bastante para visitar suas filhas. A gordinha no calava a boca, assim
como o seu pai. Guinchava como uma coruja de celeiro, ferindo meus ouvidos. Preferi
a mais velha. Ela era quieta. To quieta que voc precisava lhe dar uns trancos, s
para ter certeza de que ela no morrera de medo. Embora eu imagine que nenhuma
das duas tenha permanecido calada quando o fogo as alcanou...
Do alto de sua montaria, Gemt arruinou meus pensamentos.
Os homens do baro vo ver a fumaa a quinze quilmetros daqui. Voc num
devia ter queimado a vila. Ele balanou a cabea, sacudindo sua estpida juba ruiva,
de um lado para o outro.
Num devia, repetiu seu irmo idiota, de cima do velho tordilho. Ns o
deixvamos montar o tordilho, atrelado a uma carreta. O velho tordilho jamais saa
da estrada. Aquele cavalo era mais esperto que Maical.
Gemt fazia questo de opinar sobre tudo. Voc num devia jogar os corpos no
poo, vamos ficar com sede. Num devia matar o padre. Vamos ter azar a partir de
agora. Se a gente pegasse leve com ela, podia pedir resgate ao Baro Kennick. Eu
s queria atravessar sua garganta com minha faca. Naquele instante mesmo. Bastaria
me inclinar e enfi-la no seu pescoo. O qu? O que voc disse, irmo Gemt? Bl-
bl-bl? Num devia ter apunhalado seu pomo de Ado gordo e velho? Oh, no!,
gritei, como se estivesse chocado. Rpido, Pequeno Rikey, v mijar sobre
Mabberton. Voc precisa apagar aquele incndio. Os homens do baro vo ver,
insistiu Gemt, vermelho de raiva. Seu rosto ficava como uma beterraba se voc o
confrontasse. Aquela cara vermelha s aumentava meu desejo de mat-lo. O que no
fiz. Como lder, voc tem certas responsabilidades. Como a responsabilidade de no
matar muitos dos seus homens. Caso contrrio, em quem voc vai mandar?
O bando se aglomerou nossa volta, como sempre acontecia numa situao
dessas. Puxei as rdeas de Gerrod, que refugou, soltando um relincho. Observei Gemt
e esperei. Esperei at que todos os meus trinta e oito irmos estivessem nossa volta
e Gemt ficasse to vermelho como se as suas orelhas estivessem a ponto de sangrar.
Aonde estamos indo, meus irmos?, perguntei, levantando-me sobre os estribos
para que pudesse encarar todos aqueles rostos medonhos. Abaixei o tom da voz e
todos fizeram silncio para me ouvir.
Aonde?, perguntei novamente. Certamente no sou o nico a saber. Ou por
acaso tenho o hbito de guardar segredos de vocs, meus irmos?
Rike parecia um tanto confuso, enrugando a testa. Burlow, o Gordo, se
aproximou de mim pela direita. minha esquerda, os dentes brancos do nubano
contrastavam com seu rosto, enegrecido pela ferrugem. Silncio.
O irmo Gemt pode nos dizer. Ele sabe o que h e o que deve ser feito. Sorri,
embora minha mo ainda desejasse apunhalar sua garganta. Aonde ns vamos,
irmo Gemt?
Wennith, na Costa Equina, disse, relutante em concordar com o que fosse.
Muito bem. E como chegaremos l? Quase quarenta de ns, em nossos
magnficos cavalos roubados?
Gemt fechou a cara. Ele conseguia ver aonde eu queria chegar.
Como vamos chegar l se queremos um pedao da torta enquanto ela ainda est
quentinha?, perguntei.
Pela Estrada dos Cadveres!, disse Rike, animado por saber a resposta.
A Estrada dos Cadveres, repeti, ainda calmo e sorridente. De que outra forma
chegaramos l? Olhei para o nubano, fitando seus olhos escuros. No conseguia ler
seus pensamentos, mas o deixei ler os meus.
No tem outro jeito.
Rike estava com sorte, eu pensei. Mesmo sem saber qual o jogo, ele gosta do
jeito como est jogando.
Por acaso os homens do baro sabem aonde ns vamos?, perguntei a Burlow, o
Gordo.
Ces de guerra seguem a linha de frente, disse. Burlow, o Gordo, no um
estpido. Sua papada treme quando ele fala, mas no um estpido.
Ento... - eu olhei um por um, bem devagar - quer dizer que o baro sabe
aonde estes bandidos aqui esto indo? E sabe por onde vamos passar? Esperei a frase
surtir efeito. E eu acabei de comear a porra de um incndio s para deixar claro que
pssima ideia seria tentar nos seguir.
Por fim, enterrei minha faca em Gemt. Eu no precisava, mas eu quis. Ele se
contorceu um bocado, golfando sangue e mais sangue, e caiu do cavalo. Seu rosto
vermelho rapidamente ficou plido.
Maical, eu disse. Pegue a cabea dele.
E ele obedeceu.
Gemt escolheu um momento errado, s isso.
O que quer que tenha estragado o irmo Maical, no afetou
seu exterior. Ele parecia to intacto, to rude e to azedo
como o resto dos demais. At que voc lhe fizesse uma
pergunta.
3
Dois mortos. Dois pendurados. Makin abriu aquele sorriso que lhe to peculiar.
Teramos acampado prximo ao patbulo de qualquer forma, mas Makin j se
adiantara para inspecionar o terreno. Imaginei que aquela novidade - duas das
quatro jaulas continham prisioneiros vivos - haveria de animar os irmos.
Dois, rosnou Rike. Ele estava cansado. E o Pequeno Rikey, cansado, sempre
enxergava a forca meio vazia.
Dois!, o nubano gritou l do fundo.
Eu podia ver alguns dos homens apostando seus vintns. A Estrada dos
Cadveres to entediante quanto um sermo dominical. Uma estrada reta e lisa.
To reta que voc mataria por uma curva que fosse. To lisa que uma ladeira seria
motivo de festa. E, dos dois lados, pntano, mosquitos, mosquitos e mais pntano. Na
Estrada dos Cadveres, encontrar dois prisioneiros pendurados era o melhor que
podia acontecer.
Estranho. Nem mesmo me perguntei o que aquelas jaulas suspensas estariam
fazendo no meio do nada. Encarei-as como uma recompensa. Algum havia relegado
seus prisioneiros morte, balanando em gaiolas ao lado da estrada. Um local bem
estranho. Mas, de qualquer forma, aqueles prisioneiros serviriam de lazer para o meu
pequeno bando. Os irmos estavam ansiosos, ento fiz Gerrod trotar. Um bom
cavalo, Gerrod. Ele deixou o cansao de lado, batendo os cascos pela Estrada dos
Cadveres. No h lugar melhor para um galope.
Prisioneiros!, gritou Rike, dando incio cavalgada.
Mantive Gerrod na dianteira. Ele jamais deixaria outro cavalo ultrapass-lo. No
na Estrada dos Cadveres, com todos os quilmetros pavimentados, com todos os
paraleleppedos to bem encaixados que nem um filete de grama conseguiria brotar
entre eles. No havia uma pedra revirada ou desgastada. Uma estrada assim
construda sobre um pntano. V entender.
Eu cheguei primeiro, claro. Ningum seria capaz de encostar em Gerrod.
Certamente no comigo no controle das rdeas, e com todos os homens pesando
muito mais do que eu. Das jaulas, olhei para trs e vi todos enfileirados pela estrada.
Gritei, eufrico, alto o suficiente para acordar as cabeas decepadas. A de Gemt
estava l, rolando no fundo do ba.
Makin foi o primeiro a me alcanar, apesar de j ter cavalgado a mesma distncia
duas vezes.
Que venham os homens do baro, eu lhe disse. A Estrada dos Cadveres to
boa quanto qualquer ponte. Dez homens conseguiriam bloquear um exrcito aqui.
Aqueles que quiserem atacar pelos flancos afundaro no pntano.
Makin concordou com um aceno, ainda buscando flego.
Os que construram esta estrada... se eles me construssem um castelo... Um
trovo vindo do leste cortou minhas palavras.
Se os homens da estrada construssem castelos ns nunca chegaramos a lugar
algum, disse Makin. Fique feliz que eles se foram.
Assistimos aos irmos se aproximarem. O pr do sol deixou as poas do pntano
alaranjadas como o fogo, e me lembrei de Mabberton.
Um dia e tanto, irmo Makin, eu disse.
Certamente, irmo Jorg, retrucou.
Os irmos ento chegaram e comearam a discutir a respeito dos prisioneiros.
Fui ler, recostado no ba das pilhagens, enquanto havia luz e a chuva no comeara a
cair. Um bom dia para ler Plutarco. Eu o teria apenas para mim, encadernado em
capa de couro. Algum monge esforado empenhou sua vida neste livro. Uma vida
inteira debruado sobre ele, segurando uma pena. Eis o ouro, como uma aurola, o
sol e os arabescos. Eis um azul venenoso, mais celeste que o cu do meio-dia.
Tambm pequenos pontos escarlates criando uma cama de flores. Provavelmente
ficou cego sobre o livro, o tal monge. Provavelmente derramou sua vida aqui, desde
bem jovem at j grisalho, enfeitando as palavras do velho Plutarco.
O trovo rugiu, os prisioneiros uivaram e eu me sentei, lendo palavras que j
eram mais velhas que a velhice muito antes de os homens da estrada construrem
este caminho.
Seus covardes! Mulherzinhas carregando machados e espadas! Um dos
banquetes de corvos soltava sua voz, do alto de sua jaula.
No h um nico homem entre vocs. Pederastas, andando atrs de um
garotinho. Ele enrolou suas ltimas palavras, como fazem os naturais de Merssy.
Tem um sujeito a com uma opinio formada sobre voc, irmo Jorg!, gritou
Makin.
Um pingo de chuva acertou meu nariz. Fechei a capa do Plutarco. Ele esperaria
um pouco para me contar sobre Esparta e Licurgo, ele poderia esperar um pouco mais
sem se molhar. O prisioneiro tinha algo a dizer e eu o deixei falar s minhas costas.
Na estrada, preciso embrulhar um livro com muito cuidado para proteg-lo da
chuva. Dez voltas em tecido envernizado, mais dez voltas para o outro lado, e ento
deve-se guard-lo sob um manto, num bornal preso sela. Vejam bem, um bornal de
qualidade - no aquelas porcarias que os thurtos fazem - com dupla costura e couro
da Costa Equina.
Os rapazes abriram caminho para que eu me aproximasse. As jaulas fediam mais
que o ba das cabeas, um odor brutal de madeira recm-cortada. Quatro celas
dependuradas. Duas guardavam homens mortos. Bem mortos. As pernas, devoradas
at os ossos por corvos, pendiam atravs das barras. Moscas se aglomeravam sobre
elas, como uma segunda pele, negra, zumbindo. Os rapazes deram estocadas num dos
prisioneiros e este no parecia muito feliz com isso. Na verdade, parecia j estar
entregue. O que era um desperdcio, uma vez que teramos a noite inteira pela
frente. Restaria, ento, o prisioneiro tagarela.
L vem o garoto! Vejo que terminou de ver os desenhos indecentes no seu livro
roubado. Ele se agachou em sua jaula, seus ps em carne viva. Um velho, talvez com
quarenta anos, de cabelos pretos e barba grisalha. Seus olhos escuros brilhavam. Use
as pginas do seu livro para limpar sua bosta, garoto, ele disse, furioso, agarrando as
barras de sua jaula, que balanava. o nico proveito que pode tirar dele.
Poderamos queim-lo em fogo lento?, perguntou Rike. At Rike percebera que
o velho queria apenas nos irritar, para que terminssemos de uma vez com ele.
Como fizemos com os prisioneiros de Turston.
Umas poucas risadas eclodiram. No da parte de Makin, porm. Ele franziu o
rosto, por debaixo da poeira e da fuligem, enquanto observava o prisioneiro. Levantei
minha mo para ordenar silncio aos homens.
Seria uma grande vergonha desperdiar um livro to bom, padre Gomst, eu
disse.
Assim como Makin, eu reconhecera Gomst por debaixo da barba e daqueles
cabelos todos. Mas se no fosse o seu sotaque, ele acabaria assado.
Especialmente uma edio de Licurgo escrita em latim culto, no naquele
romano vulgar que vocs ensinam na igreja.
Voc me conhece? Ele perguntou numa voz rachada, quase melosa.
Claro que sim. Segurando meus adorveis cachos, tirei o cabelo da frente, para
que ele pudesse me observar naquela penumbra. Eu tenho o olhar escuro e
penetrante dos Ancrath. Voc o padre Gomst. Voc veio me levar de volta
escola.
P-prn.. Ele balbuciava, incapaz de pronunciar as palavras corretamente.
Asqueroso. Senti como se houvesse mordido algo podre.
Prncipe Honrio Jorg Ancrath, s suas ordens. Prestei-lhe minhas reverncias.
O qu... o que aconteceu com o capito Bortha? O padre Gomst balanava
suavemente em sua jaula, confuso.
Capito Bortha, senhor! Makin bateu continncia e deu um passo frente.
Estava manchado com o sangue do primeiro prisioneiro.
Teve incio um silncio mortal. At o trinado e o zumbido dos insetos foram
reduzidos a no mais que um sussurro. Os irmos olharam para mim, depois para o
velho pastor, e ento novamente para mim, de bocas abertas. O Pequeno Rikey no
ficaria mais confuso se voc lhe perguntasse quanto nove vezes seis.
A chuva escolheu aquele momento para cair, de uma vez s, como se o Senhor
Todo-Poderoso esvaziasse seu penico sobre ns. A penumbra que nos encobria era
densa como melado.
Prncipe Jorg! Padre Gomst teve que gritar por sobre a chuva. E noite! Voc
precisa correr! Ele segurou as barras de sua jaula, tenso, suas pupilas dilatadas,
fitando sem piscar a escurido.
E, atravs da noite, atravs da chuva, sobre o pntano onde nenhum homem
poderia caminhar, ns os vimos se aproximar. Vimos suas luzes. Luzes plidas como
o fogo-ftuo das poas profundas onde os homens no foram feitos para olhar. Luzes
que prometeriam tudo o que um homem poderia querer e que o fariam correr atrs
delas, perseguindo respostas e encontrando apenas a lama fria, profunda e faminta.
Jamais gostei do padre Gomst. Ele me dizia o que fazer desde que eu tinha seis
anos, quase sempre recorrendo a palmadas no lugar da razo.
Corra, Prncipe Jorg! Corra!, uivou o velhaco Gomst, num autos- sacrifcio
odioso.
Ento eu permaneci parado.
O irmo Gains no era o cozinheiro por ser bom na cozinha.
Ele s era horrvel demais nas outras tarefas.
4
Por muitssimo tempo, no estudei nada alm da vingana. Constru minha primeira
cmara de torturas nos recantos escuros da imaginao. Deitado sobre lenis de
sangue na Sala de Cura, descobri portas dentro de minha cabea que eu no havia
encontrado antes, portas que at mesmo uma criana de nove anos sabe que no
devem ser abertas. Portas que nunca se fecharam novamente.
Eu escancarei essas portas.
Sir Reilly me encontrou, pendurado no espinheiro, a menos de dez metros da
carcaa de nossa carruagem em chamas. Quase no me acham. Eu os vi recolhendo
os corpos na estrada. Eu os observei pelo canteiro: brilhos prateados da armadura de
Sir Reilly e lampejos rubros do uniforme dos soldados de Ancrath.
Foi fcil achar minha me, em trajes de seda.
Jesus amado! a rainha! Sir Reilly ordenou que a virassem. Cuidado! Mostrem
algum respeito..., disse, para logo se interromper, em soluos. Os homens do conde a
deixaram em pssimo estado.
Senhor! O Grande Jan est aqui. Grem e Jassar tambm. Eu os vi revirando Jan,
depois os outros guardas.
Melhor que estejam mortos!, cuspiu Sir Reilly. Procurem os prncipes!
No vi quando encontraram Will, mas sabia que eles o descobriram pelo silncio
que se espalhou entre os homens. Encostei o queixo no peito e percebi padres
sombrios de sangue nas folhas secas em volta dos meus ps.
Ah, diabos..., disse, finalmente, um dos homens.
Tragam um cavalo. Coloquem-no a, com cuidado, disse Sir Reilly, com a voz
despedaada. E achem o herdeiro!, proferiu, com vigor, mas sem esperanas.
Tentei cham-los. Mas perdera minhas foras, nem conseguia levantar a cabea.
Ele no est aqui, Sir Reilly.
Eles o levaram como refm, concluiu.
Em parte, ele estava certo. Os espinhos me mantinham contra a minha vontade.
Leve-o ao lado da rainha.
Cuidado! Cuidado com ele...
Ajeite os dois, disse Sir Reilly. uma dura cavalgada at o Castelo Alto.
Parte de mim queria que eles se fossem. J no sentia dor, apenas um incmodo
banal, e at isso estava sumindo. Uma paz me abraava com a promessa de
esquecimento.
Senhor! O grito veio de um dos homens.
Ouvi o tinir da armadura medida que Sir Reilly se aproximava.
Um fragmento de escudo?, perguntou.
Achamos na lama, a roda da carruagem deve ter passado sobre ele. O soldado
fez uma pausa. Escutei a lama sendo arranhada para fora do escudo. Parece uma asa
negra...
Um corvo. Um corvo sobre um campo vermelho. o braso do Conde Renar,
observou Reilly.
Conde Renar? Eu tinha um nome. Um corvo sobre um campo vermelho. A
insgnia brilhou em meus olhos, cauterizados pelos relmpagos da noite anterior.
Um fogo se acendeu em mim, e a dor de mil espinhos queimou em todos os meus
membros. Um gemido escapou de meus lbios ressecados.
E Reilly me encontrou.
H algo aqui! Escutei seus palavres medida que o espinheiro encontrava
todas as fendas de sua armadura. Rpido. Tirem isso daqui.
Morto, ouvi um soldado sussurrar por trs de Sir Rilley, enquanto este me
soltava.
Est to plido.
Imagino que o espinheiro tenha drenado quase todo o meu sangue.
Eles buscaram um carrinho para me levar de volta. No adormeci. Olhei o cu se
tornar negro, e pensei.
Na Sala de Cura, frei Glen e seu ajudante, Polegar, retiravam espinhos de minha
pele. Meu tutor, Lundist, chegou enquanto eles me tinham sobre a mesa e sob suas
facas. Lundist carregava um livro, grande como um escudo teutnico e, pelo jeito, trs
vezes mais pesado. Ele tinha mais fora naquele corpo enrugado e esqueltico do que
poderamos supor.
Essas facas foram esterilizadas a fogo, eu suponho. Frei? Lundist mantinha o
sotaque de sua terra-me, em Utter Oriental, e a tendncia de deixar as frases
incompletas, na esperana que um ouvinte inteligente preenchesse os espaos em
branco.
a pureza do esprito que mantm a carne incorrupta, tutor, respondeu o frei
Glen. Ele lanou um olhar desaprovador e voltou a escavar minha pele.
Ainda assim, frei, limpe as facas. O Santo Ofcio pouco lhe servir de proteo
contra a ira do rei caso o prncipe morra em sua sala. Lundist pousou o livro na mesa
ao lado da minha, chacoalhando uma fileira de frascos que estavam num canto. Ele
virou a capa e abriu-o em uma pgina marcada.
Os espinhos da roseira-brava ho de achar os ossos. Ele traou seu dedo
amarelo e enrugado sobre as linhas do texto. As pontas podem quebrar, inflamando
a ferida.
O frei Glen me espetou nessa hora, arrancando-me um grito. Ele abaixou a faca e
se virou para Lundist. S pude ver as costas do frei, seu hbito marrom-escuro
pendendo sobre seus ombros, o suor sobre a sua coluna.
Tutor Lundist, disse, um homem na sua profisso no deveria achar que todas
as coisas podem ser aprendidas nas pginas de um livro ou em um pergaminho. O
aprendizado tem sua importncia, meu caro, mas no pense que o senhor seria capaz
de ensinar-me a curar um doente s porque passou uma noite debruado sobre uma
velha enciclopdia.
Bem, o frei Glen ganhou a discusso. Coube ao sargento de armas acompanhar
o tutor para fora do recinto.
Imagino que, mesmo aos nove anos, j me faltava a pureza de esprito, pois meus
ferimentos inflamaram em dois dias e por nove semanas eu ardi em febre,
perseguindo sonhos tenebrosos, prximo s fronteiras da morte.
Dizem que urrei, enfurecido. Que balbuciei enquanto o pus jorrava das feridas
dos espinhos. Eu me lembro do fedor de putrefao. Era de uma certa doura. O tipo
de doura que induzia ao vmito.
Polegar, o ajudante do frei, cansou de tentar me manter quieto - e olha que ele
tinha os braos de um lenhador. Por fim, me amarraram cama.
Soube pelo tutor Lundist que o frei no cuidaria de mim aps a primeira semana.
Frei Glen disse que eu estava possudo pelo Diabo. De que outra forma uma criana
diria tanta blasfmia?
Na quarta semana, desfiz os ns que me prendiam cama e ateei fogo na sala.
No tenho lembranas da fuga, nem de minha captura na floresta. Mas quando
limparam os destroos, acharam os restos de Polegar, com o atiador da lareira
alojado em seu peito.
Muitas vezes, eu parava ali, em frente porta. Tinha visto minha me e meu
irmo sendo atirados pela soleira, em frangalhos, e nos sonhos meus ps me levavam
at l, de novo. Faltava-me a coragem para segui-los, aprisionado como estava pelas
farpas e ganchos da covardia.
s vezes, enxergava a Terra dos Mortos alm de um rio negro; outras, no abismo
atravessado por uma estreita ponte de pedras. Uma vez, vi a porta tomar a forma dos
portais que precediam o Salo do Trono de meu pai, mas seu batente estava coberto
de gelo, e de suas juntas escorria pus. No tive alternativa alm de segurar a
maaneta...
O Conde de Renar me manteve vivo. A promessa de sua dor esmagou a minha
sob seus calcanhares. O dio vai mant-lo vivo onde o amor falhou.
E ento, um dia, a febre me deixou. Meus ferimentos continuaram ferozes,
vermelhos, mas se fecharam. Davam-me canja de galinha para comer, e minhas
foras, h muito esquecidas, rastejaram de volta.
A primavera chegou para pintar, novamente, flores nas rvores. Sentia-me forte,
mas haviam levado algo de mim e para to longe que eu nem mesmo saberia dizer o
que era.
O sol voltou e, para desgosto do frei Glen, Lundist retornou para me instruir.
Quando chegou, ajeitei-me na cama. Observei-o arrumar seus livros sobre a
mesa.
Seu pai o ver assim que voltar de Gelleth, disse Lundist. Sua voz mantinha um
tom de reprovao, mas no dirigido a mim. A morte da rainha e do Prncipe
William pesaram demais sobre ele. Quando a dor cessar, ele certamente vir
conversar com voc.
No entendi por que Lundist julgava necessrio mentir para mim. Sabia que meu
pai no perderia tempo comigo enquanto eu estivesse para morrer. Sabia que ele me
veria quando me ver lhe fosse til. Diga-me, tutor. A vingana uma cincia ou uma
arte?
6
O basto golpeou meu pulso num estalo ruidoso. Agarrei-o com minha outra mo.
Tentei solt-lo com uma toro, mas Lundist segurava com fora. Ainda assim pude
ver que ele estava surpreso.
Quer dizer que estava realmente prestando ateno, Prncipe Jorg?
Na verdade estava com a cabea longe, em algum lugar sangrento, mas meu
corpo mantm o hbito de ficar em viglia durante essas ocasies.
Talvez voc possa resumir minha lio at agora, ele disse.
Somos definidos por nossos inimigos. Isso fato em relao aos homens e, por
extenso, a seus pases, respondi. Eu reconheci o livro que Lundist trouxera para a
aula. Sermos moldados por nossos inimigos era sua tese central.
Bom. Lundist puxou seu basto e o apontou para o mapa. Gelleth, Renar e os
Pntanos de Ken. Ancrath um produto de suas cercanias; esses so os lobos sua
porta.
S o que me importa so as Terras Altas de Renar, eu disse. O resto que se
dane. Balancei minha cadeira e a equilibrei nas duas pernas de trs. Quando meu
pai ordenar o Porto contra o Conde Renar irei junto. Eu o matarei, se me
permitirem.
Lundist lanou um olhar aguado sobre mim, tentando ver se eu falava com
convico. H algo errado naqueles olhos to azuis num homem velho, mas, errados
ou no, eles podiam enxergar minha alma.
Meninos de dez anos ficaro em melhor companhia com Euclides ou Plato.
Quando visitarmos a guerra, Sun Tzu ser nosso guia. Estratgia e tticas so
fundamentais, elas so as ferramentas de prncipes e reis. Eu estava convicto. Sentia
uma fome dentro de mim, uma nsia pela morte do conde. As rugas ao redor dos
lbios de Lundist me disseram que ele sabia quo profunda era essa fome.
Olhei pela janela mais alta, onde a luz do sol dedilhava a sala de aula e
transformava a poeira em partculas bailantes de ouro. Eu o matarei, disse. E
continuei, numa sbita necessidade de causar repulsa: Quem sabe usando um
atiador, da mesma maneira como matei Polegar, aquele smio. Sentia rancor por
haver matado um homem e no guardar nenhuma lembrana do acontecido, sem ter
um vestgio sequer da raiva que me levou ao assassinato.
Eu esperava novas verdades da parte de Lundist. Que ele as explicasse para mim,
que explicasse quem eu era. Independentemente das palavras, aquela era minha
pergunta, da juventude para a velhice. Mas at mesmo os tutores tm seus limites.
Balancei de volta, para frente, apoiei minhas mos sobre o mapa e olhei para
Lundist mais uma vez. E vi piedade. Parte de mim queria aceit-la, queria dizer a ele
o quanto eu lutara contra aqueles espinhos, como eu havia testemunhado William
morrer. Parte de mim almejava abandonar aquilo tudo, o fardo que eu carregava, a
dor cida da memria, a corroso do dio.
Lundist inclinou-se sobre a mesa. Seus cabelos caram sobre seu rosto, longos ao
estilo oriental, to brancos que eram quase prateados. Somos definidos por nossos
inimigos - mas tambm podemos escolh-los. Seja um inimigo do dio, Jorg. Faa
assim e voc poder ser um grande homem e talvez at, o que mais importante, um
homem feliz.
H algo frgil dentro de mim que se romperia antes de se curvar. Algo pontudo,
que perfura todas as palavras suaves que um dia eu possu. No creio que o Conde de
Renar tenha colocado essa arma dentro de mim no dia em que mataram minha me -
ele to somente desembainhou a lmina. Parte de mim ansiava por uma rendio,
desejava aceitar o presente que Lundist me oferecia.
Eu decepei esse pedao de minha alma que, por bem ou por mal, morreu naquele
dia.
Quando o Porto marchar? No deixei escapar nada que desse a entender que
ouvira suas palavras.
A Guarda do Porto no marchar, disse Lundist. Seus ombros se curvaram em
cansao ou derrota.
Aquilo foi um soco no estmago, um golpe de surpresa ultrapassando minhas
defesas. Saltei, tombando a cadeira. Eles vo! Como assim eles no vo?
Lundist se virou em direo porta. Com o movimento, seu roupo produziu um
rudo seco, quase como um suspiro. A descrena me alfinetou, minhas pernas no me
pertenciam. Pude sentir o calor subindo em minhas bochechas. Como assim no
vo?, gritei s suas costas, enfurecido por me sentir como uma criana.
Ancrath definida por seus inimigos, ele disse, caminhando tranquilamente. A
Guarda do Porto deve proteger nossa terra e nenhum outro exrcito haver de
enfrentar o conde em seus domnios.
A rainha foi morta. A garganta de minha me se abriu novamente e coloriu
minha viso de vermelho. Os espinhos queimaram em minha pele mais uma vez.
Um prncipe do reino assassinado. Quebrado como um brinquedo.
E h um preo que precisa ser pago. Lundist parou, uma mo na porta,
inclinada como se procurasse apoio.
O preo de sangue e ferro!
Direitos sobre o Rio Cathun, trs mil ducados e cinco garanhes da Arbia.
Lundist no me olhou nos olhos.
O qu?
Comrcio fluvial, ouro, cavalos. Aqueles olhos azuis me encontraram sobre
seus ombros. A mo envelhecida segurou a argola da porta.
As palavras fizeram sentido uma de cada vez, no todas em conjunto.
A guarda..., comecei.
No marchar. Lundist abriu a porta. O dia avanou, brilhante, quente,
enfeitado com a risada distante de escudeiros se divertindo.
Irei sozinho. Aquele homem morrer, gritando, pelas minhas mos. Uma fria
congelante rastejou sob minha pele.
Eu precisava de uma espada, um bom punhal pelo menos. Um cavalo, um mapa -
surrupiei aquele que estava a minha frente, velho, mofado, as bordas enfeitadas com
tintura indu. Eu precisava... de uma explicao.
Como? Como suas mortes podem ser compradas?
Seu pai forjou a aliana com os reinos da Costa Equina atravs do casamento. A
fora dessa aliana ameaava o Conde Renar. O conde agiu logo, antes que os elos se
fortalecessem demais, na esperana de remover tanto a esposa quanto os herdeiros.
Lundist deu um passo rumo luz e seus cabelos ficaram dourados, com um halo ao
redor. Seu pai no tem a fora para destruir Renar e manter os lobos do lado de fora
das portas de Ancrath. Seu av, na Costa Equina, jamais aceitar isso. A aliana,
ento, caiu por terra e Renar est a salvo. Agora Renar procura a trgua e ele deve
voltar suas foras para outras fronteiras. Seu pai lhe vendeu essa trgua.
Por dentro eu caa, despencava, desmoronava. Caa num abismo sem fundo.
Venha, prncipe. Lundist me ofereceu sua mo. Vamos caminhar sob o sol.
Hoje no um dia para aulas tericas.
Eu amassei o mapa e, em algum lugar dentro de mim, encontrei um sorriso,
afiado, amargo, mas com uma frieza que servia bem a meus propsitos. Claro,
querido tutor. Vamos caminhar l fora. Este no um dia para ser desperdiado - ah,
no.
E fomos l fora e todo o calor do dia no conseguiu derreter o gelo que havia
dentro de mim.
A cutelaria um trabalho sujo.
Ainda assim, o irmo Grumlow nunca deixa rastros.
10
H mais do Castelo Alto sob a terra do que acima dela. Deveria se chamar Castelo
Profundo, na verdade. Levamos um tempo at chegarmos s masmorras. Ouvimos os
grunhidos de um andar acima, atravs das paredes de pedra-dos-construtores.
Esta visita h de ser uma m ideia, disse Lundist, estacando ante uma porta de
ferro.
minha ideia, tutor, eu lhe disse. Achei que quisesse que eu aprendesse com
os meus erros.
Outro grito chegou at ns, gutural, com um timbre rouco, um i: m animalesco.
Seu pai no aprovaria esta visita, disse Lundist. Ele cerrou os lbios numa linha
fina, trmula.
Esta a primeira vez que evoca a sabedoria de meu pai para solucionar um
problema. Que vergonha, tutor Lundist. Nada me interromperia naquele momento.
Existem coisas que uma criana...
Tarde demais, esse cavalo j disparou. O estbulo pegou fogo. Eu abri caminho
e golpeei a porta com o punho de minha adaga. Abram.
Um chacoalhar de chaves e a porta deslizou para dentro, sobre dobradias
lubrificadas. A onda de fedor que saiu de l por pouco no me asfixia. Um velho
verruguento, em trajes de carcereiro, ps o rosto para fora e abriu a boca para falar.
Calado, eu disse, pressionando sua lngua com a extremidade cortante de
minha adaga.
Entrei, seguido de perto por Lundist.
Voc sempre me disse para olhar antes e tecer meus prprios julgamentos,
Lundist, eu disse. Eu o respeitava por isso. Agora no hora para melindres.
Jorg... Ele estava arrasado, eu ouvia em sua voz, arruinado por emoes que eu
no compreendia e por uma lgica que eu conseguia entender. Prncipe...
O grito surgiu novamente, muito mais alto dessa vez. J tinha ouvido aquele som
antes. Ele havia me empurrado, tentando me deter. A primeira vez que ouvi aquele
tipo de dor, a dor de minha me, algo me deteve. Poderia lhe afirmar que foi a
roseira-brava que me deteve. Posso lhe mostrar as cicatrizes. Mas noite, antes dos
sonhos chegarem, uma voz sussurra que foi o medo que me deteve, que o horror me
manteve nos espinhos, a salvo, enquanto os via morrer.
Mais um grito, ainda mais terrvel e mais desesperado que o de todos os outros.
Eu senti os espinhos em minha pele.
Jorg!
Eu tirei as mos de Lundist de cima de mim e corri em direo ao som.
No precisei correr muito. Logo parei na entrada de uma sala larga, iluminada
por tochas, com celas ocupando trs paredes. No centro, dois homens estavam em
lados opostos de uma mesa qual um terceiro homem se encontrava acorrentado. O
maior dos dois carcereiros segurava um atiador de ferro e mantinha uma de suas
extremidades numa cesta abarrotada de carvo em brasa.
Nenhum dos trs notou minha chegada, assim como nenhum dos rostos
pressionados contra as janelas gradeadas nas portas das celas se virou em minha
direo. Eu entrei. Ouvi Lundist se aproximar da entrada e parar para observar
aquela cena, assim como eu havia feito.
Eu me aproximei e o carcereiro que no segurava o atiador olhou para mim.
Pulou como se recebesse uma ferroada. Que porra ... - ele sacudiu a cabea, sem
conseguir terminar a frase, tentando acreditar no que via. Quem? Quer dizer...
Eu imaginava que torturadores seriam homens terrveis com rostos cruis, de
lbios finos, nariz adunco e olhos demonacos, sem alma. Foi um choque descobrir
que eram, na verdade, to ordinrios. O menor deles tinha um qu de simples, de um
jeito quase amigvel. Suave, eu diria.
Quem voc? Este tinha uma aparncia mais abrutalhada, mas eu conseguia
imagin-lo bebendo, gargalhando ou ensinando seu filho a jogar bola.
Eu no estava com minhas vestes da corte. Trajava apenas uma simples tnica
para usar na sala de aula. No havia motivo para que os carcereiros me
reconhecessem. Eles deveriam entrar nas masmorras pelo Porto dos Viles e
provavelmente nunca caminharam pelo castelo l acima.
Sou Jorg, eu disse, com a pronncia de um servente. Meu tio pagou ao cara-de-
verruga do porto para que ele me deixasse ver os prisioneiros. Eu apontei para
Lundist. Iremos s execues amanh. Eu queria ver os criminosos de perto.
No estava olhando para os carcereiros. O homem sobre a mesa atraiu minha
viso. S havia visto um homem de pele escura antes - o escravo de um nobre
sulista que visitou a corte de meu pai. Mas aquele homem era pardo. O sujeito sobre
a mesa tinha a pele mais negra do que nanquim. Ele virou a cabea em minha
direo, devagar, como se ela pesasse feito chumbo. O branco dos seus olhos parecia
brilhar em meio quela negrura toda.
Cara-de-verruga? R, essa boa. O maior dos carcereiros relaxou e tomou seu
atiador de ferro novamente. Se tiver uns dois ducados a para mim e para o meu
amigo Grebbin eu no vejo problema em voc ficar aqui pra ver este sujeito berrar.
Berrec, isso a no est certo. Grebbin franziu sua testa enorme. Ele s uma
criana, voc sabe.
Berrec retirou o atiador do carvo e o apontou para Grebbin. Voc no vai
querer me impedir de ganhar um ducado, meu amigo. O peito do negro reluziu sob o
ferro em brasa. Queimaduras horrendas marcavam suas costelas, a carne vermelha
inchou como terra recm-arada. Eu podia sentir o suave odor de carne assada.
Ele muito preto, eu disse.
Ele um nubano, isso o que ele , disse Berrec, fazendo careta. Deu uma boa
olhada no atiador e o retornou ao fogo.
Por que est queimando ele? Eu me sentia desconfortvel sob o escrutnio do
nubano.
Minha pergunta deixou os dois confusos por um instante. Os sulcos da testa de
Grebbin ficaram ainda mais marcados.
Este homem tem o Diabo no corpo, disse Berrec, finalmente. Todos os
nubanos tm. A maioria pag. Ouvi que o padre Gomst, o sacerdote do rei, em
pessoa, mandou queimar todos os pagos. Berrec pousou a mo sobre a barriga do
nubano, num toque terrivelmente suave. Ns s estamos encrespando este aqui um
pouco, antes que o rei venha assistir a sua morte amanh.
Sua execuo. Grebbin pronunciou a palavra com a preciso de quem j
realizara aquele servio muitas vezes.
Executar, matar, qual a diferena? O destino deles todos so os vermes. Berrec
cuspiu no carvo.
O nubano manteve seu olhar em mim, estudando-me em silncio. Senti algo que
no sabia definir. Por alguma razo pareceu errado continuar ali. Rangi meus dentes
e encontrei seu olhar.
O que ele fez?, perguntei.
Fez?, arrotou Grebbin. Ele um prisioneiro.
Que crime ele cometeu?
Berrec deu de ombros. Ser pego.
Lundist falou, do outro lado da porta: Creio... Jorg, que todos os prisioneiros que
sero executados so bandidos, capturados pelo exrcito da fronteira. O rei ordenou
a captura para evitar ataques a Norwood e a outros protetorados vindos pela Estrada
dos Cadveres.
Desviei meu olhar dos olhos do nubano e observei as marcas da tortura. Onde a
pele permanecia sem queimaduras queloides formavam um padro de smbolos, de
desenho simples, mas impressionantes. Uma tanga imunda pendia de seus quadris.
Seus pulsos e tornozelos estavam presos por grilhes de ferro, trancados por pinos
simples. Sangue melava as curtas correntes que ancoravam os grilhes mesa.
Ele perigoso?, perguntei, aproximando-me. Eu podia saborear a carne
queimada.
Sim. O nubano sorriu ao responder, com dentes encardidos de sangue.
Cale a boca, pago. Berrec retirou o atiador do carvo. Uma chuva de fascas
voou enquanto ele erguia o atiador incandescente at o nvel dos olhos. O brilho o
deixou mais feio. Lembrei-me da noite maldita, quando os relmpagos iluminaram os
rostos dos homens do Conde Renar.
Eu me virei para o nubano. Se ele estivesse observando o ferro eu o teria deixado
ali.
'Voc perigoso?, eu lhe perguntei.
Sim.
Puxei o pino de seu bracelete.
Ento me mostre.
13
Ns deixamos o Castelo Alto pelo Porto Castanho, uma sada pequena nas encostas
inferiores do monte, depois da Grande Muralha. Passei por ltimo, sentindo a dor de
todos esses passos em minhas pernas.
Pegadas vermelhas esmaecidas marcavam a escadaria superior. Os donos
daquele sangue provavelmente ainda sangravam, atrs de ns.
Por um momento vi Lundist, cado como eu deixara.
Ns subimos pelas entranhas do castelo at a menos luxuosa de todas as suas
sadas. Carregadores de esterco utilizavam esse caminho uma dzia de vezes durante
o dia trazendo os tesouros das latrinas. Que fique claro: a merda real fede igual a
qualquer outra.
O irmo minha frente virou-se e me mostrou seus dentes na forma de um
sorriso. Ar puro! Sinta o aroma, meu jovem nobre.
Eu ouvi o nubano chamar esse a de Algazarra, um magricelo, feito de cartilagem
e ossos, velhas cicatrizes e um olhar maligno. Eu prefiro lamber a nuca de um
leproso a encher meus pulmes com seu fedor, irmo Algazarra. Eu o ultrapassei. Eu
precisaria fazer muito mais do que falar como um dos irmos da estrada para ganhar
o respeito deles, e ceder um milmetro no me ajudaria em nada.
Ancrath se estirava nossa direita. esquerda, a fumaa e os pinculos da
Cidade de Crath erguiam-se atrs da Muralha Velha. A luz de uma tempestade cobriu
a cidade, do tipo que surge quando nuvens carregadas se renem de dia. Uma luz
difusa, que deixava estranha at a paisagem mais familiar. Bastante apropriada.
Ns viajamos rpido e viajamos pra valer, disse Price.
Price e Rike, os nicos irmos de verdade entre ns, permaneceram ombro a
ombro frente da coluna - Rike e suas sobrancelhas salientes e Price nos dizendo o
que fazer. Vamos o mais longe dessa latrina que conseguirmos. A tempestade vai
apagar nossos rastros. Vamos roubar uns cavalos no caminho e detonar uma ou duas
vilas se for preciso.
Voc acha que os caadores do rei no conseguiro achar duas dzias de
homens por causa de uma chuvinha toa? Gostaria que minha voz no tivesse sado
to clara e aguda daquele jeito.
Eles se viraram. O nubano escancarou seus olhos e acenou com a mo para que
eu me calasse.
Apontei para o mar de telhados que seguiam em direo ao rio, alm dos limites
seguros dos muros da cidade, onde os adorveis sditos de meu pai haviam
construdo, desejosos como eram de ficar prximos a ele.
Um de cada vez, ou de dois em dois, um irmo conseguiria encontrar seu
caminho at um corao caloroso, um pedao de rosbife e talvez uma cerveja, eu
disse. Ouvi dizer que tem uma taberna, ou trs delas, l embaixo. Um irmo poderia
se aquecer na lareira antes mesmo que a chuva viesse lavar suas pegadas.
Os homens do rei iro para cima e para baixo naqueles cavalos garbosos que
eles tm, molhando-se, procura do tipo de sulco que vinte homens deixariam pela
estrada ou pelos campos, procura do tipo de problemas que um bando de irmos
espalharia por a. E ns estaramos confortavelmente sentados sombra do Castelo
Alto, esperando o tempo melhorar.
Vocs por acaso deixaram vivo algum homem que pudesse nos descrever aos
arautos? Entre os milhares que vivem aqui, acham mesmo que os bons cidados de
Crath iriam reparar num bando to pequeno?
Logo vi que eu os tinha dobrado. Podia ver a luz daquele corao caloroso
refletindo em seus olhos.
E como ns vamos pagar pelo rosbife e pelo abrigo, caralho? Price afastou os
irmos, deixando o ruivo, Gemt, para trs. Vamos comear a roubar s sombras do
Castelo Alto?
, como ns vai pag, moleque do castelo? Gemt levantou-se encontrando em
mim um alvo mais apropriado para sua raiva do que Price. Como?
Eu retirei dois ducados de minha bolsa e esfreguei um no outro.
Eu fico com isso! Um homem de rosto anguloso minha esquerda tentou
alcanar minha bolsa, ainda gorda com moedas.
Eu desembainhei a adaga do meu cinto e a estoquei em sua mo esticada.
Mentiroso, eu disse. Empurrei a adaga um pouco mais, at o cabo atingir-lhe a
palma da mo, a lmina brilhando de vermelho ao fundo.
Sai daqui, Mentiroso. Price o agarrou pelo pescoo e o empurrou escada abaixo.
Price era um gigante para mim. Qualquer adulto era um gigante para mim, mas
Price era de uma escala superior. Ele agarrou meu colete e me ergueu at ficarmos
cara a cara, sem se importar com a faca ensanguentada que eu ainda tinha em mos.
Voc no tem medo de mim, no , garoto? O fedor dele era algo insuportvel.
Um cachorro morto no cheiraria to mal.
Pensei em esfaque-lo, mas eu sabia que no haveria ferimento que pudesse
impedi-lo de me quebrar em dois antes de morrer.
Voc tem medo de mim?, perguntei.
Ns nos entendemos por um segundo. Price no fez mais do que contrair o
rosto, mas eu o entendi e ele me entendeu. Ento deixou-me cair.
Passaremos o dia na cidade, disse Price. Os drinques so por conta do irmo
Jorg. Se algum de vocs, filhos de uma vadia, arrumar confuso antes de sairmos vai
sofrer nas minhas mos.
Eu estava cado e ele estendeu a mo. Quase a segurei, antes de compreender o
gesto. Joguei a bolsa para ele.
Vou com o nubano, eu disse.
Price consentiu. Um rosto negro sado dos calabouos seria lembrado. Um rosto
negro encontrado numa taberna de Crath seria lembrado.
O nubano encolheu os ombros e saiu pelos campos rumo ao leste. Eu o segui.
Foi somente depois de nos perdermos no labirinto de trilhas e cercas vivas que o
nubano falou novamente.
Voc devia ter medo do Price, garoto.
A primeira brisa da tempestade deixou a cerca viva farfalhando dos dots ados. Eu
conseguia sentir o cheiro da eletricidade, misturado queza da terra.
Por qu? Imaginei que talvez ele pensasse que eu era incompe- lente para
prever o perigo. Alguns homens so muito estpidos e jamais chegam a imaginar o
que est por vir. Outros torturam a si mesmos com hipteses e povoam seus sonhos
com horrores mais terrveis do que o pior de seus inimigos lhes poderia infligir.
Por que os deuses deveriam se preocupar com uma criana que no est nem a
para o que acontece com ela?, perguntou o nubano.
Ele parou antes que uma curva na estrada nos deixasse mais perto da cerca. O
vento soprou novamente e ptalas brancas caram entre os espinhos. Ele se virou e
olhou o caminho pelo qual viemos.
Talvez eu tambm no tenha medo dos deuses, eu disse.
Pingos gordos de chuva comearam a cair nossa volta.
O nubano balanou a cabea. As gotas brilhavam nos pequenos cachos dos seus
cabelos. Voc um tolo em desafiar os deuses, garoto. Ele abriu um sorriso e se
esgueirou na esquina. Quem sabe o que eles podem lhe mandar em troca?
A chuva parecia ser a resposta. Ela parecia cair mais rpido do que o normal,
como se o peso da gua querendo cair apressasse a queda dos pingos. Eu seguia atrs
do nubano. A cerca no oferecia abrigo. A chuva atravessou minha tnica, fria o
bastante para roubar meu alento. Pensei nos confortos que deixara para trs e me
perguntava se eu no deveria ter seguido o conselho de Lundist.
Por que estamos esperando?, perguntei. Tive que erguer a voz para superar o
rudo da chuva.
O nubano deu de ombros. Tem algo de errado com a estrada.
Ela mais parece um rio - mas por que estamos esperando?
Ele deu de ombros novamente. Talvez eu precise descansar. Ele tocou suas
queimaduras e uma estremecida me fez ver seus dentes, muito brancos, enquanto a
maioria dos irmos tinha bocas repletas de um cinza podre.
Cinco minutos se passaram e eu mantive a calma. No ficaramos mais molhados
nem se cassemos em um poo.
Como vocs foram pegos?, perguntei. Pensei em Price e Rike, e a ideia deles
sendo rendidos pela guarda do rei me pareceu cmica, de certa maneira.
O nubano balanou a cabea.
Como?, perguntei de novo, mais alto que a chuva.
O nubano se virou para espiar a estrada e ento se aproximou. Uma bruxa dos
sonhos.
Uma bruxa? Eu fiz uma careta e cuspi gua para o lado.
Uma bruxa dos sonhos. O nubano assentiu. A bruxa entrou em nossos sonhos
e nos manteve atados enquanto os homens do rei nos capturavam.
Por qu?, perguntei. Ainda que levasse bruxas a srio, e eu no levava, sabia
que meu pai no fazia uso de nenhuma.
Acho que ela queria agradar o rei, disse o nubano.
Ele se levantou sem avisar e saiu atravs da lama. Eu o segui, mas calei a boca.
Tinha visto crianas seguirem adultos, fazendo perguntas sem parar, mas eu havia
deixado minha infncia para trs. Minhas perguntas poderiam esperar, pelo menos
at que a chuva terminasse.
Ns atravessamos as poas pelo caminho durante quase uma hora at pararmos
novamente. A chuva havia se promovido; de dilvio passou a uma submerso
absoluta que prometia durar a noite inteira e atravessar a manh seguinte. Dessa vez
nossa pausa na cerca viva mostrou-se providencial. Dez soldados montados passaram
por ns, levantando lama para todos os lados.
Seu rei nos quer de volta em suas masmorras, Jorg.
Ele no mais meu rei, eu disse. Pretendia me levantar, mas o nubano segurou
meus ombros.
Voc deixou uma vida de riqueza no castelo do rei e agora est se escondendo
na chuva. Ele se aproximou para me observar. Conseguia me ler com seus olhos e eu
no gostava disso. Seu tio se sacrificou para proteg-lo. Um homem bom, eu acho.
Velho, forte, sbio. Mesmo assim voc veio. Ele sacudiu um troo de lama de sua
mo livre. Um silncio se estendeu entre ns, do tipo que espera ser preenchido com
uma confisso.
H um homem que eu quero morto.
O nubano franziu a testa. Crianas no deveriam ser assim. A chuva escorria
entre os sulcos de sua testa. Homens no deveriam ser assim.
Sacudi at que ele me largasse. O nubano ficou atrs de mim e ns cobrimos
mais uns quinze quilmetros antes de a luz cessar por completo.
Nosso caminho nos levou at umas fazendas e moinhos ocasionais, mas quando
a noite chegou ns vimos um grupo de luzes debaixo de uma colina arborizada um
pouco ao sul de onde estvamos. Lembrando os mapas de Lundist, eu diria que
aquele era o Vilarejo de Pineacre, que para mim, at ento, no passava de um
pequeno ponto verde num velho pergaminho.
Seria timo sair um pouco da chuva. Eu podia sentir o aroma da lenha
queimando. De repente, percebi como havia sido to fcil convencer os irmos das
vantagens de procurar abrigo, calor e comida.
Devamos passar a noite a. O nubano apontou para a colina.
A chuva ento caa suavemente. Ela nos envolvia num cobertor glido, que
sugava minhas foras. Eu amaldioei minha fraqueza. Apenas um dia na estrada me
deixara morto.
Podamos invadir um desses celeiros, eu disse. Dois deles ficavam isolados, logo
aps as rvores.
O nubano comeou a balanar a cabea. Um trovo ressoou a leste, baixo mas
contnuo. O nubano deu de ombros. Podamos. Os deuses me adoravam!
Partimos atravs dos campos transformados em pntanos, andando em falso na
escurido, tropeando sobre meu cansao.
A porta do celeiro gemeu em protesto e depois rangeu quando o nubano a
levantou. Um co latiu de algum lugar distante, mas eu duvido que algum fazendeiro
desafiasse a chuva em favor da opinio de um perdigueiro. Ns rolamos celeiro
adentro e mergulhamos na palha. Cada membro parecia ser de chumbo e eu choraria
facilmente de cansao se no tivesse me controlado.
Voc no tem medo de que a bruxa dos sonhos aparea novamente para te
pegar?, perguntei. Ela no vai ficar contente se o presente dela para o rei escapar.
Abafei um bocejo.
Ele, disse o nubano. Na verdade, acho que um bruxo.
Franzi os lbios. Nos meus sonhos, as bruxas eram sempre mulheres. Elas se
escondiam num quarto escuro que eu jamais havia notado. Um quarto cuja porta se
abria para um corredor em que eu tinha que andar. Passava pela entrada e a pele das
minhas costas se contraa, vermes invisveis formigavam na parte de trs dos meus
braos. Ento eu a veria, desenhada pelas sombras, suas mos plidas como aranhas
em convulso saindo das mangas pretas. Naquele momento, quando tentasse fugir,
eu ficaria atolado, como se corresse numa calda pegajosa. Eu lutaria, tentando gritar,
vomitando silncio, uma mosca na teia, e ela avanaria, devagar, inevitavelmente,
seu rosto avanando para a luz. Eu veria seus olhos... e acordaria gritando.
Ento voc no tem medo de que ele venha atrs de voc novamente?,
perguntei.
O trovo veio numa batida repentina, sacudindo o celeiro.
Ele tem que estar perto, disse o nubano. Ele precisa saber onde voc est.
Soltei um suspiro que nem imaginava estar prendendo.
Na verdade, ele vai mandar seu caador, disse o nubano. Ouvi o roar da palha
que ele usou para se cobrir.
uma pena, eu disse. J fazia muito tempo desde que eu sonhara com minha
bruxa onrica. Eu gostava da ideia de que ela estivesse nos perseguindo at o celeiro,
nas mandbulas da tempestade. Eu me ajeitei no meio da palha incmoda. Vou
tentar sonhar com um bruxo esta noite. O seu bruxo ou a minha bruxa, tanto faz. E
se eu sonhar desta vez no vou correr - vou me virar e degolar a vagabunda.
16
Acordei com aquela sbita convulso que se tem quando todos os msculos que
voc possui percebem, de repente, que esto de folga. O prximo choque que tomei
foi perceber o quo profundamente eu adormecera. Voc no dorme assim na
estrada, isto , no se voc deseja acordar novamente. Por um momento a escurido
no fez nada para me deixar confuso. Busquei minha espada e apenas encontrei
lenis macios. O Castelo Alto! Tudo voltou mente. Lembrei-me do pago e de seu
feitio.
Rolei para a direita. Sempre deixo minhas coisas do meu lado direito. Nada alm
do colcho, macio e profundo. Eu poderia estar cego, uma vez que meus olhos no
me ajudavam em nada. Pensei que as venezianas deveriam estar bem fechadas, j que
nem o menor suspiro de luz das estrelas me alcanava. Estava tudo muito quieto
tambm. Eu me estiquei para a beira da cama, mas no a encontrei. Uma cama larga,
pensei, tentando achar humor na situao.
Deixei escapar o ar que estava segurando, aquele que aspirei to rapidamente
quando acordei. O que foi que me trouxe at aqui? O que me retirou do feitio do
pago e me deitou nessa cama to confortvel? Puxei minha mo de volta, trouxe
meus joelhos at o trax. Algum me botou na cama e tirou minhas roupas. No foi
Makin, ele no me deixaria nu para enfrentar a noite. Esse a e eu teramos uma
discusso muito em breve. Mas eu poderia esperar at de manh. Eu s queria dormir
e deixar o dia chegar.
S que o sono havia me chutado para fora e no estava a fim de me receber de
volta. Ento eu fiquei l, deitado, nu nessa cama estranha, pensando onde estaria
minha espada.
O barulho surgiu to quieto que, a princpio, achei que o tinha imaginado.
Encarei a escurido s cegas e deixei meus ouvidos sugarem o silncio. E ele voltou,
suave como o suspiro de carne sobre pedra. Eu podia ouvir o fantasma de um som,
um alento sendo desenhado. Ou talvez fosse apenas a brisa da noite descortinando
seu caminho atravs das venezianas.
O gelo correu sobre minha espinha e fez meus ombros formigarem. Eu me
sentei, prendendo com os dentes a minha urgncia de falar, de mostrar bravata a
terrores invisveis. No tenho seis anos, eu disse a mim mesmo. Eu fiz os mortos
correrem. Joguei os lenis para trs e me levantei. Se o horror pago esperava por
mim na escurido, os lenis no serviriam de escudo. Mantendo minhas mos
estendidas, andei para frente, primeiro encontrando a ardilosa quina da cama, depois
a parede. Eu me virei e a segui, tateando as pedras. Alguma coisa rodopiou e quebrou
com um estalo oneroso. Ralei minhas canelas num obstculo invisvel, por pouco no
arrebento os bagos num aparador, e finalmente achei as lminas da veneziana.
Eu me atrapalhei com o mecanismo da janela. Ele me desafiava loucamente,
ainda que o frio deixasse meus dedos desajeitados. Minhas costas se arrepiaram. Ouvi
passos se aproximando. Puxei as venezianas com todas as minhas foras. Todos os
meus movimentos pareciam lentos e fracos, como se eu me movesse atravs de um
melao, como nesses sonhos em que a bruxa o persegue e voc no consegue correr.
As venezianas cederam sem aviso. Elas se abriram e descobri que estava em p
bem acima do ptio das execues, banhado pela luz da lua. Girei pelo quarto.
Devagar, bem devagar. E no encontrei nada. Somente uma habitao prateada e
sombria.
A janela jogou a luz da lua na parede minha direita. Minha sombra alcanou o
arco na janela e caiu sobre os ps de um grande retrato. A pintura de corpo inteiro de
uma mulher. Eu fiquei entorpecido: sentia meu rosto como uma mscara. Eu
conhecia a pintura. Me. Minha me no salo grande. Minha me de vestido branco,
esguia e glida em sua perfeio. Ela dizia que jamais gostou dessa pintura, que o
artista a fizera distante demais, rainha demais. S William para suavizar a pintura,
ela dizia. Se William no estivesse ali, abraado sua saia, mame j teria se livrado
do quadro, dizia. Mas ela no poderia jogar fora o pequeno William.
Tirei meus olhos do rosto dela, plido sob a luz prateada. Ela se erguia sobre
mim, alta em vida, mais alta ainda no retrato. Seu vestido caa em camadas de laos:
o artista o captou direitinho e fez o vestido parecer real.
As venezianas abertas deixaram o frio entrar, glido como eu nunca senti
durante um outono. Minha pele ficou toda arrepiada. Ela no poderia jogar fora o
pequeno William. S que William no estava mais l... Dei um passo atrs em direo
janela aberta.
Senhor Jesus... Tentei conter as lgrimas.
Os olhos de minha me me seguiram.
Jesus no esteve l, Jorg, ela disse. Ningum apareceu para nos salvar. Voc viu
tudo, Jorg. Voc viu, mas no veio nos socorrer.
No. Eu senti o peitoril glido da janela encostar na parte de trs dos meus
joelhos. Os espinhos... os espinhos me impediram.
Ela olhou para mim, olhos prateados pela lua. Ela sorriu e por um segundo achei
que me perdoaria. Ento ela gritou. No os gritos que soltou quando os homens do
conde a estupraram. Isso eu conseguiria suportar. Ela emitiu os gritos que soltou
quando eles mataram William. Gritos feios, roucos, animalescos, arrancados da
pintura perfeita de seu rosto.
Eu uivei de volta. As palavras saam de mim em exploses. Os espinhos! Eu
tentei, me. Eu tentei.
Ento ele surgiu de trs da cama. William, o doce William, com o lado de sua
cabea escavada. O sangue negro havia coagulado em seus cabelos dourados. O olho
daquele lado no estava mais l, mas o outro me encarava.
Voc me deixou morrer, Jorg, ele disse. Ele falava e sua garganta borbulhava.
Will. No consegui dizer mais nada.
Ele ergueu sua mo branca com traos de sangue do mais escuro carmesim.
A janela bocejou l atrs e eu pensei em me jogar por ela, mas enquanto eu
estava ali algo me jogou para frente. Cambaleei e consegui me endireitar. Will
continuava ali, mas agora em silncio.
Jorg! Jorg! Um grito me alcanou, distante mas um tanto familiar.
Olhei de volta para a janela e para a queda vertiginosa.
Pule, disse William.
Pule!, disse mame.
Mas a minha me j no soava mais como a minha me.
Jorg! Prncipe Jorg! O grito veio mais alto e um golpe mais violento me atirou
ao cho.
Sai da porra do caminho, garoto. Reconheci a voz de Makin. Ele permaneceu
emoldurado pelo vo da porta. E de alguma maneira deitei no cho, aos seus ps. No
estava perto da janela. Nem mesmo nu, mas ainda de armadura.
Voc estava bloqueando a porta, Jorg, disse Makin. Esse tal de Robart me disse
para vir correndo e voc aqui, gritando atrs da porta. Ele deu uma espiada ao redor,
procurando pelo perigo. Eu corri da Ala Sul por causa de seu maldito pesadelo, no
foi? Ele escancarou a porta um pouco mais e adicionou um prncipe tardio.
Fiquei em p, me sentindo como se Burlow, o Gordo, tivesse me rolado pelo
cho. No havia pintura nenhuma na parede, nem minha me, e Will no estava
atrs da cama.
Desembainhei minha espada. Precisava matar Sageous. Queria tanto mat-lo
que eu podia sentir o sangue, quente e salgado, em minha boca.
Jorg?, perguntou Makin. Ele parecia preocupado, como se duvidasse de minha
sanidade.
Fui em direo porta aberta. Makin deu um passo para bloquear o caminho.
Voc no pode sair daqui com uma espada em mos, Jorg, o guarda ter que par-lo.
Ele no era to alto nem to largo quanto Rike, mas Makin era um homem
grande, de ombros largos e mais forte do que um homem deveria ser. No acho que
eu conseguiria derrub-lo sem mat-lo antes.
uma questo de sacrifcios, Makin, eu disse. E deixei minha espada cair.
Prncipe?, ele franziu a testa.
Vou deixar esse maldito tatuado viver, eu disse. Preciso dele. Tive uma rpida
viso de minha me, novamente, e ela desbotava. Preciso entender qual o jogo que
eles esto jogando. Quem so as peas e quem so os jogadores.
Makin franziu a testa ainda mais. J pra cama, Jorg. T na hora de dormir. Ele
espiou o corredor novamente. Voc precisa de luz?
Sorri. No, disse. Eu no tenho medo do escuro.
19
Acordei cedo. Uma luz cinzenta atravs das venezianas me mostrou o quarto pela
primeira vez: grande, bem mobiliado, com cenas de caa representadas nas
tapearias das paredes. Larguei o punho de minha espada, alonguei o corpo e bocejei.
Essa cama no era adequada para mim. Muito macia, muito limpa. Quando joguei as
cobertas para o lado elas acertaram a sineta dos serventes, na mesa de cabeceira, que
caiu sobre o cho de pedras, produzindo um belo tilintar antes de quicar e cair sobre
um tapete, calando sua voz. Ningum apareceu. Melhor assim: eu me vesti sozinho
por quatro anos. Diabos, eu raramente me despia! E os trapos que eu vestia eram
mais vergonhosos que os aventais surrados dos serventes. Ainda assim. Ningum
apareceu.
Vesti minha armadura sobre os farrapos cinzas que usava como camisa. Um
espelho repousava sobre o aparador. Eu o deixei ali, voltado para baixo. Uma rpida
passada de mo pelos cabelos, procura de qualquer piolho gordo o suficiente para
ser encontrado, e eu estava pronto para meu desjejum.
Primeiro, abri as venezianas. No me atrapalhei dessa vez. Olhei o ptio de
execuo l embaixo, um quadrado limitado pelas paredes vazias do Castelo Alto.
Ajudantes de cozinha e criadas atravessavam com pressa o ptio desolado com suas
tarefas a cumprir, alheios ao cu desbotado sobre suas cabeas.
Eu sa da janela e fui cumprir minhas prprias tarefas. Todo prncipe conhece
mais a cozinha do que qualquer outro lugar de seu castelo. Onde mais se poderia
encontrar tantas aventuras? Onde mais a verdade dita to abertamente? William e
eu aprendemos umas cem vezes mais nas cozinhas do Castelo Alto do que em nossos
livros de latim e de estratgia. Ns escapulamos das aulas de Lundist, com as mos
manchadas de tinta, e corramos atravs de longos corredores, saltando vrios
degraus de uma s vez, at alcanarmos o refgio das cozinhas.
Agora eu caminhava por esses corredores, sentindo desconforto nesse espao
confinado. Eu passara tempo demais sob cus abertos, vivendo a vida, cacete. Ns
tambm aprendamos sobre a morte nas cozinhas. Vimos o cozinheiro transformar
galinhas vivas em carne morta com um movimento de suas mos. Vimos Ethel, o
padeiro, depenar as galinhas gordas, despidas em sua morte, e prontas para ser
recheadas. Voc logo descobre que no h elegncia ou dignidade na morte quando
se passa algum tempo nas cozinhas do castelo. Voc descobre que tudo horrvel e
ao mesmo tempo delicioso.
Virei no final do Corredor Vermelho, com lembranas demais para prestar
ateno. Tudo o que eu vi foi algum caindo sobre mim. Os instintos que desenvolvi
na estrada tomaram conta. Antes que tivesse tempo de registrar os cabelos longos e o
vestido de seda, eu a empurrei contra a parede, tapei sua boca com minha mo e pus
minha faca sobre sua garganta. Estvamos frente a frente e minha prisioneira me
encarou, com olhos de um verde impossvel, como um vitral. Transformei meu
rosnado em um sorriso e destravei meus dentes. Dei um passo para trs e a soltei.
Perdo, milady, eu disse, e esbocei uma reverncia vazia. Era alta, quase da
minha altura, e certamente no era muitos anos mais velha.
Ela arreganhou um sorriso feroz e passou o dorso da mo na boca. Sua mo ficou
manchada de sangue, de uma mordida na lngua. Pelos deuses, ela era boa de se
olhar. Tinha um rosto forte, o nariz e as mas do rosto eram finos, seus lbios
carnudos - e tudo isso emoldurado por cabelos vermelhos-escuros.
Meu Deus, voc fede, garoto, ela disse. Ela me rodeou, como se inspecionasse
um cavalo venda. Voc tem sorte que Sir Galen no est comigo ou uma criada
estaria recolhendo sua cabea do cho neste instante.
Sir Galen?, perguntei. Ficarei de olho nele. Havia diamantes em volta de seu
pescoo, numa teia complexa de ouro. Trabalho de Spana: ningum na Costa Equina
conseguiria fazer uma joia assim. No seria de bom-tom que os hspedes do rei
sassem por a matando uns aos outros. Pensava que ela deveria ser a filha de um
mercador que veio bajular o rei. Um mercador muito rico ou talvez a filha de algum
conde ou um nobre qualquer do leste: havia um certo rudo oriental em sua voz.
Voc um hspede? Ela ergueu uma sobrancelha e continuou muito bonita
desse jeito. Acho que no. Voc deve ter entrado sorrateiramente aqui. Pela calha
das latrinas, a julgar pelo fedor. No acho que voc possa ter escalado as paredes, no
usando essa velha armadura desajeitada.
Bati os calcanhares, como os cavaleiros da tvola, e lhe ofereci meu brao. Estou
indo tomar meu caf na cozinha. Eles me conhecem. Talvez voc queira me
acompanhar e verificar minhas credenciais, senhorita?
Ela consentiu, ignorando meu brao. Posso mandar um garoto chamar os
guardas para prend-lo, se no encontrarmos nenhum soldado pelo caminho.
Ento ns andamos lado a lado, atravessamos os corredores e baixamos um lance
de escada aps o outro.
Meus irmos me chamam de Jorg, eu disse. E voc, como se chama, senhorita?
Minha lngua, incomensuravelmente seca, estranhava aquele vocabulrio da corte.
Ela cheirava a flores.
Voc pode me chamar de milady, ela disse, e empinou novamente seu nariz.
Passamos por dois guardas, vestidos com armaduras forjadas de bronze e plumas.
Ambos me estudaram como se eu fosse uma merda fora da latrina, mas ela no disse
nada e eles nos deixaram passar.
Passamos pelas despensas onde a carne salgada e as conservas de porco
repousavam em barris estocados at o teto. Milady parecia saber o caminho. Ela me
espiou com aqueles olhos de esmeralda.
Ento voc veio aqui para roubar ou para matar algum com essa sua adaga?,
ela perguntou.
Talvez um pouco das duas coisas. Abri um sorriso.
Mas era uma boa pergunta. No saberia dizer por que, tirando o fato de que
algum no me queria por aqui. Desde aquele momento em que encontrei o padre
Gomst em sua jaula, desde que o fantasma me atravessou e os meus pensamentos se
viraram para o Castelo Alto, eu sentia como se tentassem me guiar para fora. E eu
no deixo ningum me dizer aonde devo ir.
Passamos pela Ponte Curta, pouco mais do que trs pranchas de mogno sobre as
enormes vlvulas capazes de vedar os nveis inferiores do castelo principal. As portas,
feitas de ao com um metro de espessura, eram capazes de deslizar para o vo
superior localizado no corredor - pelo menos foi o que o tutor Lundist me disse.
Elevadas pela velha magia. Nunca as vira fechadas. Tochas queimavam ali, nenhuma
lmpada de prata nos nveis dos serviais. O fedor da fumaa de alcatro, mais do que
qualquer outra coisa, me fez sentir em casa.
Talvez eu fique por aqui, disse.
O arco da cozinha estava bem nossa frente. Pelo vo das portas eu podia ver
Drane, o cozinheiro assistente, atracando-se com um porco.
Seus irmos no sentiriam saudades?, perguntou, agora num tom debochado.
Ela tocou o canto de sua boca com os dedos, bem em cima de onde os meus deixaram
marcas vermelhas, que ficavam mais intensas. Alguma coisa naquele gesto me deixou
igualmente mais intenso.
Eu dei de ombros e parei para ajeitar as correias do bracelete que cobria meu
antebrao esquerdo. Existem muitos irmos na estrada, eu disse. Deixa eu mostrar
o tipo de irmos a que me refiro...
Deixa que eu fao, ela disse, impaciente.
A luz da chama ardia no vermelho dos seus cabelos. Ela desfez os laos com
dedos hbeis. A garota entendia de armaduras. Quem sabe Sir Galen no fizesse mais
do que decapitar arruaceiros malcriados?
O que houve?, ela perguntou. J vi antebraos antes, talvez no to imundos
assim.
Abri um sorriso e virei meu brao para que ela pudesse ver a marca da
irmandade sobre meu pulso. Trs horrendas faixas de queimaduras. Um olhar de
desgosto marcou seus traos. Voc um mercenrio? E ainda sente orgulho disso?
Mais orgulho do que sinto por minha famlia de verdade, que eu abandonei.
Senti uma mordida de raiva. Senti vontade de botar essa inconveniente filha de
mercador para correr.
E isso aqui? Com os dedos sobre meu brao ela percorreu a pele que a
armadura no cobria, da marca da irmandade at o cotovelo. Meu Deus! Debaixo
dessa sujeira quase no tem um garoto, tudo cicatriz.
Seu toque me arrepiou e eu puxei o brao. Ca num arbusto quando era criana,
disse, num tom bastante alto.
Um senhor arbusto!, ela disse.
Dei de ombros. Roseira-brava.
Seus lbios se contorceram de dor. Ai! Voc tinha que ficar parado, ela disse,
com os olhos ainda sobre meu brao. Todo mundo sabe disso. Olha, os espinhos
cortaram voc at os ossos.
Eu sei disso. Agora. Apertei o passo em direo porta da cozinha. Ela correu
para me alcanar e as sedas de seu vestido danaram. Por que voc se debateu? Por
que no ficou parado?
Eu fui um imbecil, disse. Eu no lutaria hoje em dia. Queria que aquela vaca
estpida se mandasse. Nem fome eu sentia mais.
Meu brao ardia com as lembranas de seus dedos. Ela tinha razo, os espinhos
me cortaram bem profundamente. Durante um ano, com intervalos de poucas
semanas, o veneno queimava nas feridas e corria em meu sangue. Sempre que o
veneno corria dentro de mim eu fazia coisas que assustavam at mesmo os irmos.
Drane tombou junto s portas quando me aproximei. Ele parou, esfregou as mos
no avental imundo esticado sobre sua pana. O qu... - olhou para trs e arregalou os
olhos. Princesa! Ele ficou subitamente apreensivo, tremendo como um monte de
gelatina. Princesa! O que a se-senhorita est fazendo na cozinha? Isto aqui no um
lugar para uma dama em trajes de seda.
Princesa? Boquiaberto, virei-me para encar-la.
Ela abriu um sorriso que me deixou perplexo, no sabia se lhe dava um tapa ou
um beijo. Antes que pudesse decidir uma pesada mo pousou sobre meus ombros e
Drane me virou. E o que um pequeno rufio como voc pensa que est fazendo
importunando sua alteza... A pergunta morreu em sua garganta. Com sua cara gorda
toda enrugada ele tentou falar de novo, mas as palavras no surgiam. Ele me soltou e
recuperou a voz. Jorg? Pequeno Jorg? Lgrimas correram sobre suas bochechas.
Will e eu vimos esse homem esganar algumas galinhas e assar algumas tortas:
no havia motivos para ele ficar to abobalhado em minha presena. Mas eu o livrei
do constrangimento; ele me dera a oportunidade de ver sua alteza real surpresa.
Sorri para ela e fiz uma curta reverncia.
Princesa, hein? Ento isso quer dizer que o traste ambulante que voc queria
entregar aos guardas , na verdade, seu irmo adotivo.
Ela recuperou a compostura imediatamente. Isso eu no posso negar. Na
verdade, meu sobrinho, ela disse. Seu pai se casou com minha irm mais velha, dois
meses atrs. Sou sua tia Katherine.
20
Caiam fora. Sem avisar, uma gargalhada escapuliu dos lbios do meu pai, como um
sopro. Ele quebrou o silncio: Caiam fora. Eu falarei com o rapaz agora. O rapaz,
no meu filho. O detalhe no me passou despercebido.
E eles se foram. Os nobres e poderosos, os lordes e as damas, os guardas
ajudando os feridos, dois deles carregando o corpo de Galen. Makin saiu aps Galen,
crunch, crunch, crunch sobre o vidro quebrado, como que para assegurar que no lhe
restava vida em seu corpo. Katherine se permitiu ser guiada por um cavaleiro da
tvola. Ela parou, contudo, na base do estrado, e me encarou como se apenas naquele
momento ela conseguisse ver quem eu realmente era. Esbocei uma reverncia, um
reflexo, como empunhar a espada. Doa ver o dio em seu rosto, puro e atnito, mas
algumas vezes um pouco de dor tudo o que precisamos para cauterizar a ferida,
queimar a infeco. Ela me viu e eu a vi, ambos desnudados de fingimentos durante
aquele momento vazio, recm-casados despidos para a lua de mel. Eu vi nela as
mesmas fraquezas que reconheci quando cavalgamos de volta nos campos verdes de
Ancrath. A seduo sutil da necessidade e do desejo, uma equao de dependncia
que corre sob a pele, to lenta e docemente, apenas para derrubar um homem no
exato momento em que ele mais precisa de sua fora. Ah, aquilo magoava, mas eu
terminei minha saudao e a vi de costas, enquanto saa.
A rainha saiu tambm, flanqueada por cavaleiros sua direita e esquerda,
descendo os degraus com um gingado ligeiramente estranho. Consegui ver sua
barriga inchada enquanto ela andava. Meu meio-irmo, se a previso de Sageous
estivesse correta. O sucessor do trono caso eu venha a morrer. Apenas um inchao,
apenas uma pista, mas s vezes o necessrio. Lembrei-me do irmo Kane, ferido no
bceps quando ns tomamos o Vilarejo de Holt.
No nada, pequeno Jorgy, ele disse quando eu me ofereci para esquentar uma
faca. Um moleque campons com uma enxada enferrujada. O ferimento foi
superficial.
Est inchando, eu lhe disse. Precisa de ferro em brasa. Se j no fosse tarde
demais.
Que se foda, no por causa de um caipira com uma enxada, disse Kane.
Ele morreu petrificado, no foi, Kane? Trs dias depois, seu brao estava do
tamanho da minha cintura, soltando pus mais verde do que catarro, e com um fedor
to terrvel que ns o deixamos gritando sozinho. superficial - mas s vezes o corte
superficial chega at o osso se voc no o trata prontamente.
Apenas um inchao. Vi a rainha sair.
Sageous ficou. Seus olhos voltavam-se com frequncia para os restos estilhaados
da rvore. Parecia ter perdido uma amante.
Pago, v ver a rainha, disse meu pai. Ela pode estar nervosa.
Uma dispensa, curta e grossa, mas Sageous estava muito distrado para perceber.
Ele ergueu o olhar dos restos brilhantes do tronco que eu havia tombado. Majestade,
eu...
Voc o que, pago? Voc quer algo? No sua vez de querer.
Eu... Isso era uma novidade para Sageous, eu podia ver: ele estava acostumado a
controlar. Eu no deveria deix-lo desacompanhado, majestade. O ga...
O garoto? Fale, homem, fale logo de uma vez.
Pode ser perigoso.
Falou o que no devia. Eu imagino que o pago confiara em sua magia por muito
tempo. Se realmente houvesse decifrado a cabea de meu pai, ele no cometeria a
besteira de insinuar que eu representava algum risco para o rei.
Fora.
Seja l o que eu pense sobre meu querido pai, sempre admirei seu jeito com as
palavras.
O olhar de Sageous tinha algo mais alm de dio. Enquanto Katherine canalizou
uma emoo pura, o mago tatuado me oferecia uma complexidade desconcertante.
Ah, sim, o dio estava l, certamente, mas havia admirao tambm, talvez respeito,
e outros sabores, todos misturados naqueles suaves olhos castanhos.
Majestade. Curvou-se e partiu rumo s portas.
Ns o observamos em silncio e o vimos atravessar o carpete brilhante de
entulhos, manchado aqui com um leque abandonado, ali com uma peruca empoada.
As portas se fecharam atrs dele com um tinido de bronze sobre bronze. A marca na
parede atrs do trono chamou minha ateno. Eu joguei um martelo uma vez, com
fora, e errei o alvo. Atingiu bem ali. Aquele estava sendo um dia para velhas
escoriaes, velhos sentimentos.
Eu quero Gelleth, meu pai disse.
Eu tinha que admirar sua habilidade de me tirar do prumo. Eu estava ali,
carregado com acusaes, com lembranas incendirias, e ele me afastou delas, e me
jogou no futuro.
Gelleth depende do Castelo Vermelho, eu disse. Era um teste. Ns
conversvamos desse jeito. Toda conversa era um jogo de pquer, em cada frase
aumentvamos a aposta, blefvamos ou pagvamos para ver.
Seus truques de festa foram bons. Voc matou o teuto. Eu no imaginava que
seria capaz. Voc escandalizou minha corte - bem, ns dois sabemos o que eles so e
o que eles merecem. Mas voc sabe agir para valer? Voc pode me dar Gelleth?
Encontrei seu olhar. Eu no tinha seus olhos azuis, puxei o lado de mame.
Havia um inverno inteiro nos olhos dele, e nada mais. At no olhar plcido de
Sageous eu podia cavar mais fundo e encontrar um subtexto, mas os olhos de meu pai
no demonstravam nada alm de uma estao glida. Acho que era a onde o medo
reside, na falta de curiosidade. Eu havia visto a malcia algumas vezes, e o dio em
todas as suas cores. Eu vira o vislumbre nos olhos do torturador, uma luz doentia,
mas ainda assim havia o conforto do interesse, o remoto toque da salvao na
humanidade compartilhada. Ainda que sem os ferros em brasa, ainda restava ao
torturador a curiosidade; pelo menos ele se importava com a dor alheia.
Posso lhe dar Gelleth, disse.
Eu podia? Provavelmente no. De todos os vizinhos de Ancrath, Gelleth
permanecia inexpugnvel. O Lorde de Gelleth provavelmente tinha mais direito em
reivindicar o Trono do Imprio do que meu pai. Em toda a Centena, poucos se
igualavam a Merl Gellethar.
Minha mo coava sobre o punho de minha adaga. Queria tanto desembainhar o
ao temperado e enterr-lo no pescoo dele, queria gritar com ele, sentir algum calor
naqueles olhos gelados. Voc fez um acordo pela morte da minha me, seu bastardo! O
sangue do seu prprio filho. O doce William morto e ainda quente, e voc fechou um
acordo. Paz em troca de direitos de comrcio fluvial.
Vou precisar de um exrcito, eu disse. O Castelo Vermelho no cair
facilmente.
Voc pode levar os homens da Guarda da Floresta. Meu pai estendeu as mos
sobre os braos do trono e se recostou, enquanto me observava.
Duzentos homens? Senti meus dedos enrijecerem sobre o punho de minha
faca. Duzentos homens contra o Castelo Vermelho. Dez mil talvez no fossem
suficientes.
Levarei meus irmos tambm, disse. Eu o olhei nos olhos. Nenhuma alterao
no inverno, nenhuma considerao ao ouvir a palavra irmo. A fraqueza em mim
queria falar sobre Will. Voc ter Gelleth. Eu lhe darei o Castelo Vermelho. Eu lhe
darei a cabea de Lorde Gellethar. E ento voc me entregar o pago.
E voc me chamar de filho.
22
Ento sentamos, Makin e eu, mesa da taberna O Anjo Cado com uma jarra de
cerveja entre ns e a cano de um bardo estridente que lutava para ser escutado no
meio da confuso. A nossa volta, os irmos se misturavam ral da Cidade Baixa,
jogando, trepando, devorando. Rike sentou-se ali perto, seu rosto enterrado numa
galinha tostada. Parecia que ele tentava inalar o pedao de comida.
Voc pelo menos j viu o Castelo Vermelho, Jorg?, perguntou Makin.
No.
Makin olhou para sua cerveja. Ele ainda no tocara nela. Por uns instantes, ns
ouvimos o som de Rike esmigalhando ossos de galinha.
E voc?, perguntei.
Ele fez que sim com a cabea e se debruou em sua cadeira, o olhar nas lanternas
sobre a porta da rua. Quando eu era escudeiro de Sir Reilly, ns levamos uma
mensagem para Lorde Gellethar. Ficamos uma semana nos sales de hspedes do
Castelo Vermelho antes que Merl Gellethar se dignasse a nos ver. A sala do trono
dele humilha a do seu pai.
Irmo Burlow chegou cambaleando, sua barriga escapava sobre o cinto
resistente, um naco de carne em uma das mos e dois garrafes na outra, espuma
sobre os ns dos dedos.
O que tem o castelo? Eu no poderia me importar menos a respeito de um
concurso de mijo sobre salas de trono.
Makin brincava com sua cerveja, mas no bebia. E suicdio, Jorg. To ruim
assim?
Pior, ele disse.
Uma puta maquiada, de cabelos com hena e lbios vermelhos, sentou-se no colo
de Makin. Cad seu sorriso, meu bonito? Ela tinha belas tetas, grandes e
empinadas, espremidas como um convidativo sanduche num corpete armado com
cordes e ossos de baleia. Eu posso encontrar ele pra voc. Suas mos
desapareceram dentro das ondas de sua saia, emaranhada ao redor da cintura de
Makin. A Sally aqui sabe fazer gostoso. Meu belo cavaleiro no precisa de rapazes
para deix-lo quentinho. Ela desferiu um olhar ciumento em minha direo.
Makin a jogou no cho.
Ele foi construdo dentro de uma montanha. O que se v sobre as pedras so
paredes to altas que voc fica com o pescoo dolorido de olhar para as ameias.
Makin pegou sua cerveja, fechando as duas mos ao redor da jarra.
Ai! A puta se levantou das tbuas molhadas e secou as mos em seu vestido.
No precisava me tratar assim!
Makin nem mesmo a espiou. Ele virou seus olhos negros para mim. As portas
so de ferro, to grossas como uma espada comprida. E o que est sobre a superfcie
no chega a ser um dcimo do castelo. Nos pores, eles estocam mantimentos
suficientes para durar anos e anos.
Sally demonstrou ser uma autntica profissional. Ela transferiu suas atenes
para mim, to suavemente que voc pensaria que eu havia sido objeto de sua afeio
desde o comeo. E voc quem , hein? Ela chegou perto, acariciando meus cabelos.
Voc bonito demais para esse mercenrio resmungo, ela disse. Voc velho o
bastante pra aprender como se faz com uma garota e a Sally aqui vai mostrar.
Ela mantinha a boca muito perto da minha orelha, produzindo arrepios na
minha nuca. Eu senti sua colnia barata de capim-li- mo abrindo espao pelo fedor
da cerveja e o cheiro de erva dos sonhos em seu hlito.
De quantos homens vamos precisar para tomar o castelo sob as barbas de Lorde
Gellethar?, perguntei.
Os olhos de Makin retornaram s lanternas e os ns de seus dedos ficaram
brancos em volta da jarra. De algum lugar atrs de ns, Rike soltou um urro,
rapidamente seguido pelo som estrondoso de um corpo encontrando uma mesa em
alta velocidade.
Se voc tivesse dez mil homens, disse Makin, elevando a voz sobre os sons de
coisas quebrando. Com dez mil homens, bem equipados e com catapultas, muitas
catapultas, talvez voc pudesse derrot-lo em um ano. Isso, se voc conseguir afastar
os aliados dele. Com trs mil homens, voc talvez conseguisse, afinal, mat-lo de
fome. Eu segurei a mo de Sally quando ela a escorregou pela minha barriga at a
fivela do meu cinto. Eu torci seu pulso, um pouquinho, e ela se virou na minha frente,
estridente, num suspiro uma oitava acima. Debaixo da maquiagem ela aparentava ser
pouca coisa mais velha do que eu, diferente do que imaginei a princpio. Teria uns
vinte anos, no mais do que isso.
E se a gente descobrisse um jeito de entrar? E ento, irmo Makin? Com
quantos homens ns dominaramos o Castelo Vermelho se eu abrisse a porta?, eu
disse olhando para o rosto de Sally, a poucos centmetros do meu.
As tropas chegam a novecentos homens. A maioria veteranos. Ele manda a
carne fresca para as fronteiras e a traz de volta depois que est temperada. Ouvi a
cadeira de Makin arranhar o cho. Que filho da puta atirou isso em mim?, ele
gritou.
Continuei torcendo o pulso da prostituta. Agarrei seu pescoo com minha outra
mo e a trouxe mais para perto. Hoje noite voc vai se chamar Katherine e poder
me mostrar como que se faz com uma garota.
Um pouco menos delirantes, seus olhos agora demonstravam medo. O que para
mim era timo. Eu tinha duzentos homens e nenhuma porta secreta para entrar no
Castelo Vermelho. Parecia justo que algum estivesse preocupado.
23
Meu livro mudou de posio de novo. Eu digo meu livro, mas na verdade ele era
roubado - foi surrupiado da biblioteca de meu pai na minha fuga do Castelo Alto. O
livro se jogou em mim, ameaando se fechar com fora em meu nariz.
Fica quieta, desgraada, eu disse.
Mmmgfll. Sally soltou um murmrio sonolento e aninhou o rosto no
travesseiro.
Eu firmei o livro entre as bandas do traseiro dela e afastei um pouco suas pernas
com meus cotovelos. Acima das pginas, eu podia ver a leve cordilheira de ossos da
coluna de Sally traando um caminho por suas costas macias at se perder nos cachos
ruivos de sua nuca. No estava convencido de que o texto minha frente era mais
interessante do que havia por debaixo dele.
Aqui diz que h um vale em Gelleth que eles chamam de Garganta das
Leucrotas, falei. Fica nos terrenos rochosos abaixo do Castelo Vermelho.
A luz da manh atravessava a janela aberta. O ar estava um tanto gelado, mas
era agradvel, como o amargor de uma cerveja.
Mmmnnn. A voz de Sally veio do travesseiro.
Eu acabei com ela. possvel cansar uma puta quando voc muito jovem. Essa
combinao de mulher e tempo disponvel eu ainda no havia experimentado.
Gostei. H muito o que se pode dizer quando no se est numa fila ou no se tem que
gozar antes que as chamas tomem conta do prdio. E o consentimento! Isso era
novidade tambm, ainda que pago. Na escurido, eu podia imaginar que era de graa.
Agora, se eu falasse grego arcaico, e eu falo, uma leucrota um monstro com
voz humana para ludibriar suas presas. Estiquei meu pescoo para poder morder a
parte de trs da sua coxa. E, segundo minha experincia, qualquer monstro que fala
com voz humana humano. Ou j foi.
Meus ps estavam dependurados para fora da cama. Eu mexi os dedinhos. s
vezes isso me ajuda.
Alcancei o mais antigo dos trs livros que roubei. Um texto dos Construtores
sobre folhas de plasteek, vincadas por alguma forma de fogo antigo. Sbios do leste
pagariam uma centena em ouro por textos dos Construtores, mas eu desejava lucrar
mais do que isso.
O tutor Lundist me ensinou o discurso do Construtor. Aprendi em um ms e ele
ficou se gabando para quem quisesse escutar, at que meu pai calou sua boca com um
daqueles olhares sombrios pelos quais ele famoso. O velho Lundist disse que eu
conhecia o discurso do Construtor to bem quanto qualquer um no Imprio
Destrudo, mas eu no conseguia compreender o sentido de mais da metade das
palavras naquele pequeno livro que eu roubara.
Eu entendia o Confidencial escrito no cabealho e no rodap de cada pgina,
mas Neurotoxicologia, Carcingeno, Mutagnico? Talvez fossem estilos
antiquados de chapu. Ainda hoje no sei. Pelo menos as palavras que eu reconhecia
eram interessantes o bastante. Armas, Arsenal, Destruio em Massa. A
penltima pgina ainda tinha um pequeno mapa brilhante, apenas contornos e
elevaes. O tutor Lundist me ensinou um pouco de geografia. O suficiente para
comparar aquele mapinha com as Vises do Castelo Vermelho, meticulosamente
executadas no longo mas chatssimo A Histria de Gelleth, cuja lombada de couro
estava aninhada na fenda do traseiro meu-deus-to-apetitoso da adorvel Sally.
Mesmo quando eu entendia as palavras do Construtor as frases no faziam
sentido: O vazamento da arma binria endmico. Os compostos unrios mais leves
do que o ar demonstram pouco efeito txico, ainda que a rosiose seja um sintoma
comum de exposio topolgica.
Ou da mesma pgina: Efeitos mutagnicos so inconvenientes comuns ao
derramamento binrio. Eu podia declinar do grego para entender o significado, mas
os resultados dificilmente eram razoveis. Ser que roubei um velho livro de
estrias?
Jorg! Makin gritou do outro lado da porta. A escolta est aqui para lev-lo
Guarda da Floresta.
Sally despertou com o barulho, mas eu a empurrei para a cama.
Diga que esperem, respondi.
A Guarda da Floresta no me ajudaria muito. A no ser que eles tivessem dez mil
amigos que desejassem ir conosco.
Meu Deus, estou acabada. Sally tentou se levantar de novo. Ai! J de manh.
Sammeth vai me matar.
Eu disse pra ficar quieta, porra. Peguei uma moeda da minha bolsa sobre a
mesa e joguei para ela. Toma, pro babaca do seu Sammeth.
Ela se afundou na cama de volta, num protesto cmodo.
Vazamento de arma binria... Como se falar as palavras pudesse lhes adicionar
sentido.
Ento voc vai pro Castelo Vermelho, hein?, disse Sally. Ela bocejou.
Levantei a mo para calar sua boca. Claro que ela no viu e A Histria de Gelleth
bloqueava o melhor alvo.
Diga oi para todos aqueles vermelhinhos por mim, ela disse.
Rosiose.
Eu abaixei minha mo e agarrei seus lbios. Vermelhinhos?
Aham.
Senti Sally se retorcer sob a palma de minha mo. Eu apertei com mais fora.
Vermelhinhos?
Sim. Um gemido de irritao adornava sua voz. Por que voc pensa que eles
chamam de Castelo Vermelho?
Eu me sentei na cama. Makin! Entre aqui!, gritei, to alto que toda a estalagem
pde ouvir. Ele entrou abruptamente, empunhando sua espada. Um sorriso se abriu
em seus lbios quando viu Sally nua e esparramada, mas ele manteve suas mos no
devido lugar.
Meu prncipe?
Sally tentou mesmo se levantar dessa vez. Ela quase conseguiu ficar de quatro e
A Histria voou longe.
Prncipe? Ningum me disse nada sobre isso! Ele no prncipe porra
nenhuma!
Eu a empurrei para baixo de novo.
Aquela conversa que tivemos ontem, Makin, eu disse.
Sim?
Tem algo mais que voc gostaria de incluir na descrio? Alguma coisa sobre os
novecentos veteranos?
Por um momento ele pareceu to inexpressivo quanto Maical, o Idiota.
Algum detalhe sobre o padro de cores?, sugeri.
Ah. Ele sorriu. Os Corados? Sim. So vermelhos como uma lagosta cozida,
cada um deles. Alguma coisa na gua, o que dizem. Achei que todo mundo sabia
disso.
Rosiose.
Eu nunca soube, disse.
Ento seu pai deveria ter enforcado o tutor Lundist, disse Makin. Todo mundo
sabe disso.
Monstros l embaixo.
Ele no um prncipe! Sally parecia ultrajada.
Voc teve uma foda real. Makin inclinou-se.
O Castelo Vermelho e todos os seus soldados vermelhos l em cima.
Eu pulei da cama.
Arsenal.
Vazamento.
Ento, disse Makin. Podemos ir?
Vesti minhas calas. Sally se virou enquanto isso, o que no ajudou muito. Eu vi
sua nudez realada, cortesia do sol matinal. Pensei - devo arriscar a Guarda da
Floresta e os irmos por conjecturas alucinadas e palpites s cegas sobre o que
aquelas palavras obscuras significariam...
Diga que esperem uma hora. Mudei de ideia: em vez de me vestir comecei a me
despir. Estarei pronto em uma hora.
Sally deitou-se sobre os travesseiros e sorriu. Prncipe, hein?
De repente deitar pareceu ser mesmo uma boa ideia.
24
Um belo dia, hein, capito Coddin! Eu desci as escadas num bom-humor notvel
um pouco antes do meio-dia.
O capito fez uma reverncia austera, seus lbios pressionados numa linha reta.
Em outro canto, os irmos mais novos, Roddat, Jobe e Sim, nutriam ressacas. Eu
podia ver Burlow debaixo de uma mesa, roncando.
Pensei que o senhor estaria de volta a Chelny Ford, capito, protegendo nossas
fronteiras dos ataques de viles e malandros, eu disse, de um jeito expansivo.
Houve certo descontentamento a respeito de minha performance na fronteira.
Algumas vozes da corte sustentam que eu estaria deixando passar muitos viles e
malandros pelos meus portes ultimamente. Fui designado para o servio de escolta
na Cidade de Crath. Ele apontou para a porta da rua. Isso se o Prncipe Jorg estiver
pronto.
Eu decidi gostar do homem. Aquilo me surpreendeu. Por princpio, eu no sou
dado a gostar de pessoas. A culpa era do meu humor. Nada como uma boa noite de
putaria para acalmar um homem.
Coddin e seus quatro soldados nos guiaram atravs do Porto Oeste. Estava com
Makin, claro, e Elban porque, ainda que fosse um velho, no havia muitos entre os
irmos com mais do que meio crebro. Levei o nubano comigo tambm. No sei bem
o porqu, mas ele estava perto do bar, comendo uma ma, com a balestra sobre seu
colo, e eu pensei em t-lo conosco.
Seguimos pela Estrada Velha at a Floresta Rennat, uns vinte quilmetros sob
um cu infestado de corvos, e claro que a Estrada Velha se parece com um corvo,
seguindo uma trilha deixada por homens de Roma eras atrs.
Coddin cavalgava na dianteira, flanqueado por seus rapazes. Ns os seguamos,
aproveitando o dia. Makin tocou Salta-Fogo para perto de Gerrod e os dois trocaram
algum tipo de insultos que os garanhes devem trocar.
Voc deveria ter deixado Sir Galen comigo, Jorg, disse Makin.
Voc acha que podia venc-lo?, perguntei.
No. Era bom na esgrima, aquele teuto, disse Makin, e passou a mo nos
lbios. Jamais duelei com um homem melhor.
Ele no era o melhor, eu disse.
Por um momento no falamos mais nada. Elban quebrou o silncio.
Makin encontrou um homem que ele no poderia derrotar? Sir Makin? No
acredito. Seus lbios soltaram um Furrr molhado em vez de Sir.
Makin se virou sobre a sela para encarar Elban. Acredite. O campeo do rei me
tinha em suas mos. Mas Jorg acabou com ele. Ele acenou para o nubano. Com uma
balestra. Voc ficaria orgulhoso.
O nubano passou sua mo negra como fuligem sobre os entalhes de ferro em sua
arma, tocando os rostos de seus deuses pagos. No h orgulho nisso, Makin.
Eu jamais consegui decifrar o nubano. Uma hora ele era simples como Maical; na
outra, profundo como um poo. s vezes, dos dois jeitos ao mesmo tempo.
Maical, eu disse, lembrando. O que aconteceu com nosso idiota de estimao?
Ele morreu? Esqueci de perguntar.
Ns o deixamos em Norwood, Chorg. Ele deve estar morto, com aquela barriga
aberta, mas ele segurou as pontas, gemendo o tempo todo, disse Elban, limpando o
cuspe do queixo.
Estpido demais para morrer, disse Makin. Ele sorriu. Tivemos que arrast-lo
at uma casa nos limites do vilarejo. O Pequeno Rikey queria acabar de vez com
Maical, s para calar a boca dele. Soltamos uma gargalhada.
Agora srio, Jorg, voc devia ter deixado Galen comigo, disse Makin. Se
tivesse, voc ainda estaria sentado na corte, numa boa. Voc ainda o herdeiro do
trono. Daria um jeito naquela princesa insolente. O Castelo Vermelho uma
sentena de morte por ter quebrado aquela rvore estpida. Isso e por ter chamado a
esposa do rei de puta Scorron. Seu pai no um homem piedoso.
Voc est certo, Makin, eu disse. Se minha ambio se limitasse a estar numa
boa eu teria deixado o teuto fazer o seu pior. Sorte sua - eu quero vencer a Guerra
Centenria, reunir o Imprio Destrudo e ser imperador. E, se eu pretendo ter alguma
chance na empreitada, conquistar o Castelo Vermelho com duzentos homens h de
ser uma moleza.
Almoamos num marco de milha s margens da floresta. Carneiro, furtado da
cozinha do Anjo Cado. Ainda limpvamos a gordura de nossos dedos quando
cavalgamos sombra das rvores - grandes carvalhos e faias, na sua maioria -,
avermelhando o cenrio com o beijo do outono glido. Cavalgando por baixo desses
ramos, com os cascos moendo as folhas, e o arfar dos cavalos se projetando nossa
frente, eu senti, mais uma vez, o doce espinho afundar sob minha pele. Dizem que
um homem pode viajar por toda uma vida e no vai escapar das maldies dos vales
de Ancrath.
Eu bocejei, estalando o maxilar. Aquela no fora uma noite para dormir.
Aquecido em meu manto, deixei o passo suave de Gerrod me embalar.
Estava pensando em pernas tenras, suaves. Meus lbios disseram seu nome,
saboreando.
Katherine?, Makin perguntou. Eu contra a cabea e ele me observava, com
uma sobrancelha arqueada, daquele jeito irritante que ele fazia.
Olhei para o lado. nossa esquerda, ramos de roseira-brava se contorciam nos
troncos dos olmeiros. Aprendi uma dura lio dentro de uma roseira-brava numa
noite tempestuosa. No foi apenas a beleza natural que se fixou em mim.
Mate-a.
Eu me virei sobre a sela, mas Makin estava l atrs fazendo piadas com o
nubano.
Mate-a e voc estar livre para sempre.
A voz parecia vir da escurido, entre os galhos da roseira. Ela falava por baixo do
esmigalhar de folhas secas cadas, pisoteadas pelos cascos.
Mate-a. Uma voz antiga, ressecada, intocada pela compaixo. Por um momento
eu vi Katherine, o sangue brotando sobre seus dentes brancos, seus olhos se
revirando com surpresa. Eu pude sentir a faca em minhas mos, o punho contra seu
estmago, o sangue quente correndo sobre meus dedos.
Veneno talvez seja mais discreto. Um toque distante.
Essa ltima voz... Poderia ter sido minha ou dos espinhos. Elas comearam a soar
idnticas.
Fora requer sacrifcio. Toda fraqueza tem seu preo. Agora fui eu. Ns deixamos a
roseira para trs e o dia comeara a esfriar.
A Guarda da Floresta nos encontrou rapidamente. Eu ficaria preocupado se fosse
o contrrio. Uma patrulha de seis homens, todos camuflados, surgiu de trs das
rvores, exigindo que explicssemos nossas intenes na estrada do rei.
No deixei que Coddin me apresentasse. Eu vim encontrar o mestre da guarda,
disse.
As sentinelas trocaram olhares. Estou certo de que parecamos um bando de
esfarrapados; apenas Makin mantinha um toque de nobreza, j que poliu sua
armadura para encontrar meu querido pai. Eu usava minha velha armadura da
estrada. Quanto aparncia de Elban e do nubano, bem... Eles poderiam receber o
lao dos criminosos sem ter que passar pelo processo tedioso de um julgamento.
Coddin ento falou. Este Jorg, Prncipe de Ancrath, herdeiro do trono.
Suas palavras, ainda que difceis de engolir, tinham o peso de um uniforme por
trs delas. As sentinelas pareciam confusas.
Ele est aqui para ver o mestre da guarda, disse Coddin, como um lembrete.
Isso fez com que se mexessem e eles nos guiaram floresta adentro por uma trilha
de cervos. Seguimos em fila indiana, cavalgando at eu me cansar de ser estapeado
na cara por todos os galhos do caminho e desmontar. As sentinelas mantiveram o
passo apertado, demonstrando pouco respeito realeza ou a armaduras pesadas.
Quem mesmo o mestre da guarda?, perguntei com flego curto e retinindo
alto o bastante para despertar ursos hibernantes.
Uma das sentinelas olhou para trs, um coroa, nodoso como as rvores. Lorde
Vincent de Gren. Ele cuspiu nos arbustos para mostrar seu respeito pelo homem.
Seu pai o condecorou na primavera, disse o capito Coddin atrs de mim.
Creio que foi uma forma de punio.
A Guarda da Floresta montou seu quartel-general perto da Cachoeira de Rulow,
na plancie onde o Rio Temus corria sinuosamente antes de juntar coragem para o
salto de sessenta metros sobre um cho pedregoso. Uma dzia de grandes cabanas,
com telhas de madeira e paredes de toras, acomodadas entre as rvores. Um moinho
abandonado servia de aposento para o mestre da guarda, decorado com blocos de
granito e empoleirado na beirada do precipcio.
Umas poucas dzias de sentinelas vieram observar nossa coluna se aproximando.
No tinham muito que fazer por aquelas bandas, imaginei.
O velho sentinela entrou para nos anunciar enquanto amarrvamos nossos
corcis. No estava com pressa, e ns esperamos. Um vento glido soprou, agitando
as folhas cadas. As sentinelas permaneceram conosco, seus mantos em verde e preto
esvoaavam. A maioria usava arcos curtos. Um arco longo vai se emaranhar nas
rvores e voc nunca vai precisar de um longo alcance na floresta. Nada de Robin
Hood por aqui; os homens da guarda no formavam um bando alegre e estavam
dispostos a mat-lo se voc pisasse fora da linha.
Prncipe Jorg. Um homem vestindo pele de arminho saiu pela porta. Seus dedos
agarravam um cinturo de placas de ouro.
Lorde Vincent de Gren, eu imagino. Eu lhe dei meu mais falso sorriso.
Ento voc est aqui para nos dizer que vamos todos morrer por causa de uma
promessa estpida que um moleque fez para impressionar seu pai!, ele disse, alto o
suficiente para que todos na clareira escutassem.
Eu tinha que admirar Lorde Vincent. Ele certamente no perdia tempo com
rodeios. E eu gosto disso num homem, realmente, mas no gostei do jeito que ele
disse. Tinha um rosto meio fodido - no , Lorde Vincent? -, de quem comeu e no
gostou, o que era meio esquisito, j que o homem tinha o formato de uma bola de
manteiga, um corpo daqueles que s se obtm comendo seriamente, e que precisa de
umas dzias extras de arminhos para se cobrir com as peles. Penso que ele deveria
ter uns trinta anos, mas difcil ser preciso com gente gorda: no sobra espao na
pele deles para surgir rugas.
Vejo que as notcias correm. Imaginava se meu pai queria que eu fracassasse
tanto quanto ele queria o Castelo Vermelho. De certa maneira chegava a ser um
elogio, pois implicava, em sua cabea, que eu tinha uma chance. Mas no, isso tinha
um toque feminino, talvez o toque de uma mulher que ainda amargava ter sido
chamada de puta Scorron. Uma mulher acostumada a trazer tona segredos ps-
coito. Uma mulher que pode ter mandado um mensageiro para a Floresta Rennat.
Talvez at para Gelleth.
Eu dei passos largos na direo do homem. Eu me pergunto, Milorde de Gren, se
os seus homens o seguiriam at a morte. Estou impressionado como conquistou o
respeito deles to rpido. Ouvi dizer que na Guarda da Floresta todos so dures,
fortes como ao. Passei um brao sobre seus ombros. Ele no gostou, mas voc pode
fazer essas coisas quando se um prncipe. Venha comigo.
No lhe dei escolha. Eu o conduzi rio abaixo em direo linha reluzente onde o
Rio Temus desaparecia, sendo substitudo por uma tnue bruma. Sigam a gente,
gritei. No uma conversa particular.
Chegamos a uma salincia numa pedra molhada, quarenta e cinco metros abaixo
da casa do moinho, onde as guas saltavam em espumas brancas acima das rochas,
reunindo-se para seu mergulho sobre a Cachoeira de Rulow.
Prncipe Jorg, eu no... - comeou Lorde Vincent.
Voc, venha c! Retirei meu brao dos ombros de Lorde Vincent e apontei para
o velho sentinela que cuspira o nome do mestre da guarda anteriormente. Tive que
gritar mais alto que a voz do rio.
O coroa veio se juntar a ns perto do precipcio.
E quem este exemplo varonil de sentinela, mestre da guarda?, perguntei.
Rostos de gente gorda so maravilhosas fontes de emoo. Pelo menos o rosto de
Lorde Vincent era. Eu podia ver seus pensamentos contraindo sua testa, tremendo
seu queixo, revirando os cachos de cabelo em sua nuca. Eu...
So duzentos desses camaradas. No se pode esperar que voc conhea todos
eles, eu disse, completamente simptico. Qual o seu nome, sentinela?
Keppen, sua majestade, disse. Pelo jeito ele gostaria de estar em outro lugar,
demonstravam seus olhos arregalados, procurando uma sada.
Mande-o saltar, mestre da guarda, eu disse.
O-o qu? Lorde Vicent subitamente empalideceu.
Saltar, eu disse. Mande-o saltar na cachoeira.
O qu? Lorde Vincent parecia estar com dificuldades de escutar acima do
rugido.
Keppen segurava o punho de sua adaga. Sujeito precavido.
Se seus homens vo todos morrer por causa de uma promessa estpida que um
moleque fez para seu pai, bem, ento sensato que o moleque tenha certeza de que
eles iro seguir as suas ordens quando elas significarem uma morte certa, eu disse.
E se voc disser o qu mais uma vez terei que faz-lo em pedaos, aqui e agora. O
qu... Mas meu prncipe... Prncipe Jorg... Ele tentou sorrir. Mande-o saltar agora!,
vociferei no rosto de Lorde Vincent. S-salte!
Assim no! Ponha mais convico. Ele no vai saltar se parecer que voc est
apenas sugerindo.
Salte! Lorde Vincent buscou uma voz de comando.
Melhor, eu disse. Mais uma vez, com emoo.
Salte! Lorde Vincent berrou a ordem ao velho Keppen. A cor retornava ao seu
rosto, agora corado em vermelho-vivo. SALTE! Salte, seu maldito!
Aos diabos que eu vou saltar!, Keppen gritou de volta. Ele puxou sua faca, um
pedao terrvel de metal, e deu um passo atrs, cautelosamente. Dei de ombros.
Nada bom, Lorde Vincent. No est nada bom! E com um empurro vigoroso ele
caiu. No se queixou. No ouvi nem mesmo a gua esguichar.
Eu me movi rapidamente. Em dois passos, agarrei Keppen pelo pescoo, com
minha outra mo segurando seu pulso, mantendo aquela faca a distncia. Peguei-o de
surpresa e dando mais um passo eu o mantive de costas para a borda, seus
calcanhares pisando o ar, e minha empunhadura em seu pescoo era tudo o que o
mantinha entre ns.
Ento, Keppen, eu disse. Voc morreria pelo novo mestre da guarda? Eu lhe
dei um sorriso, mas acho que ele no percebeu. agora que voc diz sim. E bom
que voc fale para valer, porque existem coisas muito piores do que morrer
rapidamente quando lhe derem uma ordem.
Ele soltou um sim atravs dos meus dedos.
Coddin. Apontei para ele. Voc o novo mestre da guarda. Puxei Keppen e
caminhei de volta ao moinho. Todos me seguiram. Se eu pedir a vocs que morram
por mim espero que perguntem quando e onde, eu disse. Mas no estou com pressa.
Seria um desperdcio. A Guarda da Floresta o grupo com os duzentos soldados mais
perigosos de Ancrath, quer o meu pai saiba disso ou no. Aquilo no foi bajulao,
de maneira alguma. Na floresta eles eram os melhores que ns tnhamos. Com um
bom mestre da guarda, eles seriam a espada mais afiada do arsenal e espertos demais
para saltar quando exigidos.
O mestre da guarda Coddin vai lev-los at Gelleth. Eu vi alguns poucos lbios
se retorcerem. Com ou sem o salto de Lorde Vincent, eu ainda era um garoto e o
Castelo Vermelho ainda era suicdio. Vocs vo ficar a trinta quilmetros do Castelo
Vermelho, nem um passo a mais. Vocs passaro duas semanas na Floresta Otton
cortando rvores para construir catapultas e mataro qualquer patrulha que se
aproximar de vocs. O mestre da guarda Coddin lhes dir o resto quando a hora
chegar.
Eu lhes dei as costas e empurrei a porta do moinho. Coddin, Makin! Eles me
seguiram. A entrada dava numa sala de jantar cuja mesa estava posta com ganso frio,
po e mas de outono. Peguei uma ma.
Obrigado, Prncipe Jorg. Coddin fez mais uma de suas reverncias austeras.
Salvo do servio de escolta na Cidade de Crath, agora eu posso aproveitar meu
inverno correndo pela floresta ao redor de Gelleth. Um esboo tnue de um sorriso
se formou nos cantos de sua boca.
Eu vou com voc. Disfarado. um segredo bem guardado que voc deve
garantir que vaze, eu disse.
E onde estaremos de verdade?, Makin perguntou.
Na Garganta das Leucrotas, eu lhe disse. Conversando com monstros.
25
Retornamos ao Castelo Alto atravs do Porto da Cidade Velha, com o sol quente do
meio-dia em nossas nucas. Eu carregava a espada da famlia em minha sela e
ningum tentou barrar nosso caminho.
Deixamos os cavalos no Ptio Oeste.
Verifique as ferraduras dele. Temos muito cho pela frente. Dei um tapinha nas
costelas de Gerrod e deixei o cavalario gui-lo.
Temos companhia. Makin ps a mo em meu ombro. Tome cuidado. Ele
acenou para o outro lado do ptio. Sageous estava descendo a escada do prdio
principal, um sujeito baixinho de vestes brancas.
Estou certo de que o nosso pequeno pago pode aprender a amar o Prncipe
Jorgy como os demais, eu disse. Ele um homem til, para se guardar no bolso.
Makin franziu o rosto. Melhor pr um escorpio em seu bolso. Estive
perguntando por a. A rvore de vidro que voc derrubou no era um badulaque. Ele
a fez brotar.
Ele me perdoar.
A rvore brotou da pedra, Jorg. De uma conta verde. Levou dois anos. Ele a
regava com sangue.
Atrs de ns, Rike ria debochado, um som infantil, desapropriado para um
gigante daqueles.
Seu prprio sangue, Makin terminou.
Mais um dos irmos rosnou uma gargalhada. Todos eles ouviram a histria de Sir
Galen e da rvore de vidro.
Sageous parou um metro na minha frente e lanou seu olhar sobre os irmos,
alguns ainda segurando as rdeas de seus corcis, outros pressionados ao meu lado.
Seus olhos piscavam para encarar a altura de Rike.
Por que voc fugiu, Jorg?, ele perguntou.
Prncipe. Voc vai cham-lo de prncipe, seu cachorro pago. Makin deu um
passo frente, com a espada semidesembainhada. Sageous lhe deu um olhar suave. A
mo de Makin caiu inerte ao seu lado; seus argumentos desapareceram.
Por que voc fugiu?
Eu no fugi, disse.
Quatro anos atrs voc fugiu da casa de seu pai. Ele manteve a voz gentil e os
irmos o observavam como se estivessem hipnotizados por uma moeda girando.
Eu tive um motivo para sair de casa, disse. Sua linha de ataque me abalava.
Qual motivo?
Matar algum.
Voc o matou?, Sageous perguntou.
Eu matei muita gente.
Voc o matou?
No. O Conde de Renar ainda vivia e respirava.
Por qu?
Por que no o matei?
Voc o machucou? Voc prejudicou seus interesses?
No. Na verdade, se olhar bem, se voc traasse o caminho aleatrio de quatro
anos na estrada, poderia dizer que eu tinha ajudado os interesses de Renar. Os
irmos e eu tnhamos pisado no calo do Baro Kennick e o afastamos de suas
ambies. Em Mabberton, destroamos o corao do que poderia ter sido uma
rebelio...
Eu matei seu filho. Enfiei uma faca em Marclos, carne e sangue de Renar, e seu
herdeiro.
Sageous se permitiu um pequeno sorriso. Ao se aproximar de casa, voc ficou
sob minha proteo, Jorg. A mo que o guiava est cada.
Seria verdade? Eu no podia ver mentiras nele. Meus olhos seguiam o que estava
escrito em seu rosto, pergaminhos complexos de uma lngua estrangeira. Um livro
aberto, mas eu no saberia l-lo.
Posso ajud-lo, Jorg. Posso devolver seu verdadeiro eu. Posso dar sua vontade de
volta.
Ele ergueu a mo, a palma aberta.
Livre-arbtrio precisa ser conquistado, eu disse. Quando tiver dvidas, busque a
sabedoria dos outros. Nesse caso, Nietzsche. Certas discusses requerem uma faca se
voc quer ser breve, outras exigem que voc quebre algumas cabeas usando uma
pedra filosofal.
Eu estendi o brao e peguei sua mo, por baixo, os ns de seus dedos sobre
minha palma.
As escolhas foram minhas, pago, eu disse. Se algum tentasse me guiar, eu
saberia.
Saberia?
E se eu soubesse... Ah, se eu soubesse teria que lhe ensinar uma lio to
instrutiva sobre a dor que os prprios Homens Vermelhos do leste viriam aprender
novos truques. medida que me deixavam, as palavras pareciam ocas. Infantis.
No fui eu quem o conduziu, Jorg, disse Sageous.
Quem ento?, apertei sua mo at ouvir os ossos estalarem.
Ele deu de ombros. Implore por sua fora de vontade e eu talvez a devolva.
Se houvesse algum encantamento em mim eu encontraria aquele que o lanou e
o mataria. Senti o eco de uma dor antiga que me angustiara nas estradas, uma
pontada nas tmporas, atrs dos olhos, como uma lasca de vidro. Mas no h
nenhum e minha vontade ainda minha, disse.
Ele deu de ombros novamente e se virou. Ao olhar para baixo, vi que eu segurava
minha mo esquerda com a direita, e o sangue corria entre meus dedos.
26
Do meu encontro com Sageous no Ptio Oeste, fui direto para a missa. Encontrar o
pago me deixou carente do toque da igreja de Roma, do cheiro de incenso, e de uma
dose pesada de dogma. Se mpios detinham tantos poderes me parecia certo que a
igreja possusse um pouquinho de magia para aplicar sobre os dignos e, com alguma
esperana, tambm sobre os no merecedores que se preocuparam em comparecer.
Se isso falhasse, de qualquer forma eu ainda precisava de um sacerdote.
Marchamos capela adentro e encontramos o padre Gomst celebrando a missa. A
cano do coral hesitou ante o bater de botas sobre o mrmore polido. Freiras
encolheram-se nas sombras, sob o olhar malicioso dos irmos e, sem dvida, o rano
de nossa companhia. Gains e Sim tiraram seus elmos e abaixaram suas cabeas. A
maioria deles apenas olhava ao redor, procurando por algo que valesse a pena
roubar.
Perdoe minha intromisso, padre. Coloquei minha mo na fonte perto da
entrada e deixei a gua benta retirar o sangue de minha pele. Ela ardia.
Prncipe! Ele deitou seu livro no suporte e olhou para cima, plido. Esses
homens... no apropriado.
Ah, shhh. Andei pelo corredor, meus olhos sobre afrescos maravilhosos do teto,
e fui me virando lentamente pelo caminho, com uma mo erguida e aberta,
gotejando. No so todos eles filhos de Deus? Crianas penitentes que retornaram
por perdo?
Parei ante o altar e espiei os irmos perto da porta. Devolva isso a, Roddat, ou
voc vai deixar seus dois polegares na caixinha de esmolas.
Roddat sacou um candelabro de prata de sua manta carcomida de viagem.
Esse a pelo menos. Padre Gomst apontou para o nubano, seu dedo tremia.
Esse a no um cordeiro de Deus.
Nem mesmo uma ovelha negra? Eu me aproximei de Gomst. Ele recuou. Bem,
talvez voc consiga convert-lo em nossa jornada. Meu prncipe?
Voc me far companhia at Gelleth, padre Gomst. Uma misso diplomtica.
Estou surpreso que o rei no tenha lhe dito. No estava to surpreso, para falar a
verdade, uma vez que era mentira. Ns partimos imediatamente.
Mas...
Venha! Eu andei a passos largos em direo porta. Aps uma pausa ele ento
me seguiu. Podia ouvir a relutncia em seus passos.
Os irmos comearam a sair na minha frente. As mos de Rike passeavam pelas
paredes, sobre relicrios e cones.
Tendo capturado o padre, sentia-me feliz em estar de sada. Ordenei provises
rpidas a Makin e guiei Gomst de volta ao Ptio Oeste.
No devemos levar esse homem de Nuba numa misso diplomtica, prncipe.
Ou nenhum outro, Gomst sussurrava enquanto andvamos. Eles bebem o sangue de
sacerdotes cristos como parte de seus encantos.
Bebem, ? Acho que foi a primeira coisa interessante que eu jamais escutara
Gomst dizer. Eu poderia usar um pouco de magia em mim mesmo.
O padre empalideceu por baixo de sua barba. Uma superstio, meu prncipe.
Uns poucos passos mais e... Ainda assim, se voc o queimasse, a bno do
Senhor estaria sobre ns e nossa jornada.
Em uma hora, com os bornais recheados, cavalgamos de volta para a Cidade Velha.
Sageous esperava por ns. Ele estava sozinho, ao lado do caminho pavimentado.
Ajeitei minha postura, de frente a ele, ainda me sentindo confuso. Ele havia semeado
algumas dvidas em mim. Eu havia me convencido de que s deixara o Conde Renar
de lado como um ato de fora, um sacrifcio em favor da vontade ferrenha que
preciso ter para ganhar o jogo dos tronos. Mas s vezes - agora, por exemplo - eu no
acreditava nisso.
Voc deveria aceitar minha proteo, prncipe, disse Sageous.
Eu sobrevivi at hoje sem ela.
Mas agora voc est indo para Gelleth, um caminho que fortalecer o poder de
seu pai.
Estou. Os cavalos dos irmos relinchavam minha volta.
Se algum pensasse de verdade que voc poderia ter algum xito, eles tentariam
impedi-lo, disse Sageous. Aquele que jogou com voc nesses ltimos anos vai tentar
amarrar os laos que voc afrouxou. Talvez o padre possa ajud-lo. Ele j ajudou
antes, com sua presena. Ele tem o valor de um talism, mas fora isso apenas um
manto vazio.
Um cavalo empurrou Gerrod, o cavaleiro movia-se ao meu lado.
Eu empunhei minha espada. No gosto de voc, pago.
O que voc acha que assustou o morto do pntano, Jorg? Nenhuma alterao
no jeito tranquilo com que me observava.
Eu... Meu vigor soou vazio depois que abri a boca.
Um garoto furioso? Sageous fez que no com a cabea. O morto viu a mo
negra sobre seu corao.
Eu...
Aceite minha proteo. Existem sonhos maiores que voc pode sonhar.
Senti o suave peso do sono cair sobre mim, a sela incerta abaixo.
O bruxo dos sonhos. Uma voz negra falou sobre meus ombros.
O bruxo dos sonhos. O nubano empunhava sua balestra, o punho negro
envolto no corpo da arma, os msculos contrados sobre o dardo. Eu carrego seu
smbolo, bruxo dos sonhos, sua magia no afetar o garoto.
Sageous encolheu-se, as frases tatuadas pareciam se retorcer em seu rosto.
Num instante, meus olhos estavam escancarados. voc. A clareza da situao
era ofuscante. Voc trancou meus irmos nos calabouos de meu pai. Voc mandou
seu caador me matar.
Pus a mo sobre a arma do nubano, lembrando de como ele a pegou do homem
que matei num celeiro, numa noite de tempestade. O caador do bruxo dos sonhos.
Voc mandou seu caador me matar. Os ltimos farrapos do encanto de
Sageous haviam desaparecido. Agora a vez do meu caador.
Sageous virou-se e saiu em direo ao porto do castelo, quase correndo.
Reze para que no o encontre aqui quando voltar, pago, eu disse em voz
baixa. Se ele ouviu deveria seguir meu conselho.
Os Construtores pareciam ter uma averso a escadas. Gorgoth nos guiou para cima
da montanha por caminhos tortuosos, talhados dentro das paredes de fossos verticais
infinitos. Talvez os Construtores tivessem asas ou talvez, como os sbios indus, eles
conseguissem levitar usando a fora de vontade. Em todo caso, os homens que
vieram depois deles usaram picaretas para mastigar uma escada nas pedras das
paredes do fosso, talhando degraus estreitos e grosseiros. Subimos com cuidado, os
braos junto aos corpos, em fila, todos com medo de cair por um esbarro inadvertido
de ombros. Se as profundezas estivessem acesas, eu no duvido que alguns dos
irmos precisariam usar a ponta de suas espadas para ajud-los, mas a escurido
esconde todos os pecados e ns nos enganvamos imaginando um cho invisvel seis
metros abaixo.
estranho, quanto mais profundo um buraco mais forte ele atrai um homem. A
fascinao que existe na borda, e que lampeja no ponto mais estreito, tambm se
encontra no fundo do precipcio. Senti essa fora me puxando a todo momento
durante a subida.
Fisicamente, Gorgoth parecia ser o menos apto para tamanha escalada, mas ele
sabia o que estava fazendo. As duas crianas leucrotas danavam na minha frente,
saltando degraus com tamanho desprezo que eu tinha vontade de atir-las no vazio.
Por que eles no fogem?, perguntei para Gorgoth, minha frente. Ele no
respondeu. Imagino que o desdm dos meninos pela queda estivesse ligado ao
destino que os aguardava caso eles chegassem a salvo no topo.
Voc est levando os dois para a morte. Por que eles seguem voc?, disse,
encarando a larga extenso das suas costas.
Pergunte para eles. A voz de Gorgoth retumbou dentro do fosso como um
trovo distante.
Agarrei o menino mais velho pelo pescoo e o segurei sobre o vo. Ele quase no
pesava e eu precisava de um descanso. Podia sentir o desnvel dos degraus
queimando os msculos das minhas pernas.
Qual o seu nome, monstrinho?, perguntei.
Ele olhou para mim com olhos que pareciam ser mais largos e mais escuros do
que a queda minha direita.
Nome? Sem nome, ele disse, com uma voz fina e meiga.
Isso no est certo. Eu vou pr um nome em voc, eu disse. Sou um prncipe,
tenho direito de fazer coisas assim. Voc ser Gog e seu irmo pode ser Magog.
Eu espiei Kent, o Rubro, que estava atrs de mim, bufando, sem o menor trao de
compreenso no seu rosto de campons.
Gog, Magog... My God, onde est um padre quando preciso que algum entenda
uma piada bblica!, eu disse. Nunca pensei que iria sentir falta do padre Gomst!
Voltei para o jovem Gog. Por que est to feliz? Sabe, o velho Gorgothinho ali
est levando voc para ser devorado pelos mortos.
Fazer o qu?, disse Gog, bem calmo. a lei. Se ele estava desconfortvel em
ser agarrado pelo pescoo no demonstrava.
E quanto ao pequeno Magog? Eu acenei para seu irmo, de ccoras num degrau
acima de ns. Ele tambm vai lutar? Sorri com a imagem desses dois lutando com
magos mortos.
Eu o protegerei, disse Gog, e comeou a se contorcer em minhas mos, to
rpido e forte que tive que larg-lo ou eu acabaria caindo no fosso junto com ele.
Gog galopou para ficar ao lado do irmo e ps sua mo sobre o ombro dele. Eles
me observavam com aqueles olhos pretos, mais silenciosos do que camundongos.
A gente pode se divertir com eles, Kent disse s minhas costas.
Aposto que o menorzinho dura mais tempo, gritou Rike, e soltou uma
gargalhada, como se tivesse dito algo engraado. Por pouco no escorregou, e isso fez
com que ele parasse de uma vez de gargalhar.
Se voc quer vencer esse jogo, Gog, deixe o pequeno Magog se virar sozinho.
Enquanto falava, um frio arrepiou os meus cabelos da nuca. Mostre para mim que
voc tem fora para se virar sozinho e talvez eu encontre alguma outra coisa que
esses necromantes queiram mais do que sua alma esmirrada.
Gorgoth voltou a subir e os irmos o seguiram em silncio.
Andei, esfregando as cicatrizes em meus antebraos onde os espinhos da roseira-
brava comeavam a me incomodar novamente.
Contei mil degraus, e s comeara por tdio, e assim perdi os primeiros dez
minutos da subida. Minhas pernas viraram gelatina, minha armadura pesava como se
fosse feita de placas de trs centmetros de chumbo e meus ps pisavam em falso
tentando acertar a escada. O irmo Gains convenceu Gorgoth a fazer uma pausa para
descanso ao tropear no vazio, gritando por uns bons dez segundos antes que o cho
invisvel o convencesse a calar a boca.
Tantos degraus para que a gente chegue at A Grande Escada! Cuspi um
catarro nojento em homenagem ao saudoso irmo Gains.
Makin abriu um sorriso e esfregou seus cachos suados da frente dos olhos.
Talvez os necromantes venham nos carregar.
Vamos precisar de um novo cozinheiro. Kent, o Rubro, cuspiu por Gains.
Ningum pode ser pior do que Gainsy. Burlow, o Gordo, mexeu os lbios. O
resto dele sucumbiu sem vida, abraando a parede. Achei aquilo um elogio fnebre
muito insignificante, visto que Burlow parecia usufruir mais dos esforos culinrios
de Gains do que todos os demais juntos.
Rike seria pior, eu disse. Eu o imagino preparando uma refeio com a mesma
abordagem com que pe fogo numa aldeia.
Gains era bacana. Ele entalhou uma flauta de osso para mim uma vez, quando eu
me juntei aos irmos. Na estrada, ns homenageamos nossos mortos com blasfmias
e piadas. Se no gostssemos de Gains, ningum teria comentado nada. Eu me sentia
um pouco estpido por deixar Gorgoth nos guiar num ritmo to intenso. Mantive o
sabor amargo comigo e me sentei, guardando um pouco para o caso de os
necromantes tentarem testar nossos nimos.
Chegamos ao topo da escadaria sem perder mais nenhum irmo. Gorgoth nos fez
atravessar uma srie de sales com muitos pilares, cmaras de eco vazias, com o p-
direito to baixo que Rike conseguia alcanar os tetos. Rampas largas e curvas nos
levavam de um salo ao prximo, cada um igual ao anterior, empoeirado e vazio.
O cheiro nos envolveu sorrateiramente, de modo to lento que no saberia dizer
quando me dei conta de sua presena. O fedor da morte tem vrios aromas, mas eu
gosto de pensar que reconheo o Ceifador e seus disfarces.
A poeira ficava mais grossa medida que avanvamos, trs centmetros em
alguns lugares. Ossos ocasionais apareciam de tempos em tempos. Depois, mais
ossos, um crnio, depois trs. No lugar em que a pedra dos Construtores rachara e a
gua vazava a poeira virou uma lama cinzenta que flua em deltas em miniatura.
Puxei o crnio de um desses pntanos. Ele se soltou com um barulho pegajoso e a
lama caiu de suas rbitas como melado.
Cad seus amigos necromantes, Gorgoth?, perguntei.
Vamos at A Grande Escada. Eles nos encontraro, ele disse.
Eles encontraram vocs. Ela contornou o pilar mais perto de mim, uma mulher
vinda das madrugadas de minha imaginao. Movia seu corpo sobre a pedra spera
como se esta fosse a mais pura seda. Sua voz invadia meus ouvidos como veludo,
escuro e espesso.
Nenhuma espada deixou sua bainha. O nubano ergueu sua balestra e puxou a
alavanca do gatilho, inchando o msculo pesado de seu brao numa bola negra. A
necromante o ignorou. Ela deixou o pilar com a relutncia de uma amante e se virou
para me encarar. Ouvi Makin respirando com dificuldades ao meu lado. A mulher era
um misto de fora e flexibilidade com a suculncia que jovens prncipes rabiscam nas
margens de seus cadernos. Vestia apenas tintas e faixas, com padres cinza e preto,
que se entrelaavam sobre ela como os ns dos celtas.
Quando voc a encontrar, corra.
Bem-vinda, milady. Eu lhe fiz uma reverncia.
Apenas corra.
Gorgoth, voc nos trouxe convidados e tambm oferendas! Sua risada deixou
minha virilha formigando.
Apenas corra. Nada mais.
Ela me ofereceu a mo. Por um momento hesitei.
E voc h de ser...? Seus olhos, que haviam retido apenas o reflexo do fogo,
agora roubavam o verde de um salo do trono distante que eu guardava na memria.
Prncipe Honrio Jorg Ancrath. Eu segurei sua mo, fria e pesada, e a beijei. A
seu dispor. E eu estava.
Chella. Um fogo negro corria em minhas veias. Ela sorriu e eu senti o mesmo
sorriso se abrir em meu rosto. Ela deu um passo para frente. Minha pele cantava de
arrepio. Eu aspirei seu perfume, um odor de velhas tumbas misturado ao paladar de
sangue quente.
O pequenino primeiro, Gorgoth, ela disse, sem tirar seus olhos dos meus.
Vi, de canto de olho, Gorgoth pegar Gog com a grandiosidade de sua mo.
O ar ficou gelado de uma hora para outra. Ouvi o som de pedra moendo pedra,
meus dentes batiam. O salo em si parecia exalar um suspiro, e com ele nvoas
rodopiavam entre ns, espectros que encontravam um corpo momentneo em
redemoinhos plidos. Senti meu dedo congelar com a sujeira que havia dentro do
crnio que eu segurava.
O rudo de raspagem cessou quando os ossos acharam seus parceiros. Primeiro,
um esqueleto se ergueu num bal complexo de interarticulao. Depois, mais outro.
As nvoas juntavam cada osso numa imitao fantasmagrica de carne.
Eu vi Gog explodir em um ataque e se contorcer dentro do implacvel punho de
Gorgoth. O pequeno Magog permaneceu parado enquanto o primeiro esqueleto
avanou em sua direo. Gog fora longe demais com sua raiva para exigir que o
libertassem. O rugido que saiu de dentro dele era cmico, muito agudo e repleto de
fria.
A necromante passou seu brao em volta de mim. No sei dizer o que senti.
Simplesmente nos viramos para ver Magog lutar.
O menino leucrota batia na altura do joelho do esqueleto, no mais do que isso.
Ele viu uma oportunidade, ou pensou ter visto, e se atirou frente. No se pode
esperar muito de uma criana de cinco anos. O morto-vivo o agarrou com dedos finos
e o atirou sem perdo contra uma coluna. Magog a atingiu em cheio e a deixou
ensanguentada. Mas no chorou. Ele lutou para se levantar enquanto o segundo
esqueleto andava at ele. Uma tira de pele bonita de criana pendia da carne
vermelha em seu ombro.
Olhei para o outro lado. Mesmo com a suave presso de Chella sobre mim, a luta
tinha um gosto amargo de uma maneira que eu no entendia. Meus olhos
encontraram Gog, ainda lutando nos pulsos de Gorgoth. As duas mos de Gorgoth
estavam sobre a criana agora, ainda que eu mesmo duvidasse ser capaz de me livrar
de uma s delas. Eu no imaginava que uma fora daquelas poderia existir numa
coisa to pequena.
O esqueleto segurava Magog com uma das mos. Dois dedos ossudos da outra
mo se aproximavam dos olhos do menino.
Parecia que uma tempestade se formava, ainda que talvez se formasse apenas
dentro de mim, uma tempestade aoitando uma noite sem luar e iluminando o
mundo em talhos de relmpagos. A voz da criana uivava dentro de minha cabea e
no ia embora, por mais que eu a amaldioasse em silncio. Cada um de meus
msculos lutava para se mover - e nenhum deles conseguia mais do que se contorcer.
Espinhos me prendiam. Ali, aninhado nos braos da necromante, eu assistia aos
dedos esquelticos mergulharem nas poas negras dos olhos da leucrota.
Quando a mo explodiu eu fiquei to surpreso quanto todos os demais. Flechas
enormes fazem isso. O nubano voltou seu rosto para mim, longe da mira de sua
balestra. Eu vi o branco crescente do seu sorriso e meus membros se libertaram.
Ergui meu brao com fora. O crnio em minha mo acertou o rosto da necromante
com o mais delicioso estrondo.
Quem quer que tenha feito o nubano h de t-lo criado a
partir de uma rocha. Nunca vi um homem mais slido. No
era de muitas palavras. Poucos entre os irmos buscavam
seus conselhos, os homens da estrada no valorizam a
conscincia. E ainda que ele nunca julgasse, o nubano
carregava o julgamento com ele.
30
Deixei a bainha vazia e segui o arco desenhado pela lmina da minha famlia para
encarar a necromante. uma daquelas espadas que, dizem, conseguem fazer o vento
sangrar. Apropriadamente, o fio encontrou apenas o ar, que chiou como se fosse
cortado.
A necromante caiu para trs, gil demais para que eu a alcanasse. O crnio a
pegou de surpresa, mas eu duvido que a acertaria de novo assim to fcil.
Acho que o crnio a acertou entre os olhos, pois ali que o estrago foi feito. No
era sangue, mas uma mancha escura e a pele retorcida, como se uma centena de
vermes ziguezagueassem uns sobre os outros.
A maior parte dos irmos ainda permanecia sob o mesmo encanto que me
imobilizara. O nubano se preparava para carregar mais uma flecha em sua balestra.
Makin comeou a desembainhar sua espada. Gorgoth soltou Gog.
A necromante respirou fundo, como uma lima raspando um pedao de ferro,
arranhando sua garganta. Isso, ela disse, foi um erro. Sinto muito! Mantive
minha voz animada e me joguei sobre ela. Ela escorregou para trs da coluna,
deixando-me sozinho para desviar da estrutura de pedra.
Gog se arremessou sobre Magog e livrou seu irmo caula das garras do
esqueleto. De relance, vi marcas plidas de dedos no pescoo do garoto.
Contornei a coluna com certa precauo apenas para descobrir que a
necromante havia deslizado para um outro pilar, uns cinco metros adiante.
Sou muito criterioso a respeito de quem eu permito lanar feitios contra mim,
disse, revirando-me e acertando um belo chute em Rike. Um alvo difcil de errar.
Acorde, Rike. Atrs deles!
Rike reclamou soltando um uivo sem palavras, algo entre uma morsa ansiosa e
um urso que despertara contra a vontade de sua hibernao. Bem na sua frente, os
dois esqueletos se abaixaram para alcanar os irmos leucrotas, que continuavam
emaranhando seus braos e pernas no cho empoeirado. Rike cresceu sobre ambos
os mortos-vivos e agarrou um crnio em cada mo. Ele jogou um contra o outro, num
estrondo que os reduziu a fragmentos.
Rugindo de forma ininteligvel, ele sacudiu as mos. Frio! Rike j conseguia
articular as palavras. Frio pra cacete!
Eu me virei para a necromante com palavras sagazes bem na ponta da lngua. Os
insultos morreram ali mesmo. Seu rosto se contorcia por inteiro. A carne de seus
membros havia encolhido, pulsando esporadicamente. O corpo que seduzira meus
olhos agora mantinha todo o encanto de um cadver vtima de inanio. Ela me
encurralou com seu olhar negro, que brilhava em decomposio. Gargalhou, e seus
risos saam como o som de trapos molhados sacudindo ao vento.
Os irmos estavam comigo de novo. Gorgoth mantinha-se imvel. As pequenas
leucrotas rastejavam juntas nas sombras.
Ns somos muitos e voc uma s, milady. Uma coisa feia como o Diabo. Ento
melhor que se afaste e nos deixe passar, eu disse. De qualquer forma, no esperava
que ela me atendesse, mas perguntar no custa nada, como dizem.
Sua carne cheia de vermes se abriu num sorriso to grande que pude ver sua
mandbula, bem no local em que a pele deveria cobri-la. Por um segundo, seu rosto
se contraiu e pudemos enxergar Gains nele, berrando enquanto caa.
Os mortos so muitos, criana, ela disse. Eu deixarei voc passar... para o reino
deles.
A temperatura caiu e continuou caindo, como se no houvesse nada que a fizesse
parar. A temperatura foi do desconforto dor, chegando ao totalmente intolervel
em questo de segundos. E o barulho? O ranger terrvel dos esqueletos se montando
com ossos soltos envoltos numa nvoa fantasma que levitava nossa volta. Um som
que faria voc desejar arrancar seus dentes. A tocha na mo de Makin desistiu de sua
luta contra o frio e se dissipou.
A nvoa escondia tudo, menos nossos vizinhos mais prximos. Os esqueletos
vieram at ns devagar, como num sonho. Se no fosse o fogo da tocha de Gorgoth
estaramos na completa escurido.
Balancei minha espada ao primeiro ataque. O punho da espada congelava em
minha mo, mas eu no estava inclinado a deix-la cair por nada. Eu precisava do
exerccio para me aquecer. O esqueleto se desintegrou numa chuva de fragmentos de
ossos. Eu no tinha tempo para festejar antes que o prximo sasse de dentro do
nevoeiro.
Ns entramos na briga e o tempo nos abandonou. Aguentvamos num limbo
congelante onde apenas o estilhaar de ossos e o subir e descer das espadas
significavam alguma coisa. Toda vez que eu cortava a carne fantasmagrica parecia
que o frio se entranhava um pouco mais fundo em mim. A espada, cada vez mais
pesada, parecia ento feita de chumbo.
Vi Roddat morrer. Um esqueleto o pegou com a guarda baixa. Dedos esquelticos
encontraram os dois lados de sua cabea e um claro se espalhou deles; a carne viva
morria onde havia sido tocada pela carne fantasma. Roddat era ardiloso - e como! -,
mas senti prazer em cortar ao meio a funesta criatura que o matara. Atrs de mim,
algum gritou. Parecia o irmo Jobe. No seria bom acordar com um grito daqueles.
Makin abriu caminho e ficou ao meu lado, o peitoral de sua armadura congelado,
seus lbios azuis. Eles no param de chegar.
Eu ouvia o rugido atrs de ns. A nvoa parecia engolir o som, mas o rugido
atravessou a barreira.
Rike? Tive que gritar para que me escutasse.
Gorgoth! Voc tem que v-lo lutar. Ele um monstro!, Makin gritou.
Tive que rir.
Eles no paravam de chegar. Mais e mais, fileira atrs de fileira, saindo da
escurido. Algum morreu ao meu lado. No saberia dizer quem foi.
Ns j devamos ter esmagado uns duzentos malditos daqueles e eles ainda no
paravam de chegar.
Minha espada ficou presa entre as costelas de um esqueleto que eu acertara. Meu
golpe no foi forte o suficiente. Makin arrebentou a nuca dele com um corte preciso.
Obrigado. A palavra saiu fraca de lbios dormentes.
No vou morrer aqui. Repetia o pensamento em minha mente. Cada vez com
menos convico. No vou morrer aqui. Estava frio demais para pensar. No vou
morrer aqui. Mexa-se e corte esses braos. Os bastardos nem sequer vo sentir alguma
coisa. Mas a vadia sentiu quando eu quebrei seu rosto.
A vadia.
Quando estiver em dvida, deixe o dio domin-lo. Normalmente eu rejeitaria
esse conselho. Ele faz um homem ser previsvel. Mas ali, naquele salo miservel de
ossos, era tolice se preocupar. O dio era tudo o que eu tinha para me aquecer. Cortei
um esqueleto e segui adiante.
Jorg! Ouvi o grito assustado de Makin atrs de mim, e ento a escurido
encobriu minha vista e a nvoa lanou um grosso cobertor sobre os rudos da
batalha.
, estava escuro ali. To escuro que voc nem se lembrava de como eram as
cores. Balancei minha espada algumas vezes, quebrei alguns ossos, cavei o ar por um
tempinho e ento acertei uma coluna que arrancou a maldita arma de minha mo
congelada. Freneticamente cacei minha espada, com mos dormentes demais para
encontrar meu prprio rosto. Gradualmente percebi que estava livre dos esqueletos.
Nenhum dedo esqueltico me procurava na escurido. Sem espada e sem direo,
tropecei.
A vadia. Ela devia estar por perto. Certamente. Esperando para aprisionar nossas
almas assim que morrssemos. Esperando para se alimentar.
Estaquei e me mantive to quieto quanto minha tremedeira permitia. A
necromante tinha levantado o vu. Exatamente como o nubano havia dito, ela
levantara o vu entre os mundos e os mortos estavam atravessando para o nosso
lado. Se eu a interrompesse eles iriam parar. Escutei, escutei profundamente um
silncio, como um veludo na escurido. Mantive a calma, esticando-me para
encontr-la, firme e focado.
Cravos. Meus lbios formaram a palavra. Encrespei meu nariz. leo de cravos?
A essncia me atraa. Mais sutil impossvel, s que, com nada mais para combater,
apoderou-se de mim. Deixei que me carregasse para frente, oscilando, contorcendo,
procurando a fonte.
Minhas mos encontraram um portal estreito e entrei numa cmara iluminada
por fascas de uma tocha cada.
Entendi a essncia. A arma do nubano estava a dois palmos da tocha, jogada de
qualquer maneira, o cabo esticado, mas a flecha jazia sobre as pedras. Ele havia se
separado dos irmos para ca-la. Saiu na minha frente na perseguio.
Necromante, eu disse.
Ela estava na boca de um dos fossos dos Construtores. A escurido absoluta
preenchia os fundos da cmara atrs dela e a luz fraca no conseguia sondar suas
profundezas. Ela mantinha o nubano sua frente, segurando a cabea dele para um
lado enquanto mordia o pescoo retesado do negro. Eu podia ver a tenso em seus
braos largos, mas seus dedos se curvavam inteis e sua espada estava cada a seus
ps, o punho projetado sobre o espao alm da borda do fosso.
A necromante levantou seu rosto de trs da nuca do nubano. Sangue pingava de
seus dentes. A energia que ela capturava foi o suficiente para restaurar sua aparncia.
O sangue escorria sobre lbios carnudos e um pescoo perfeito.
Voc mandou um alimento fresco atrs de mim, Prncipe Jorg, ela disse.
Hummm, temperado com especiarias pags. Eu lhe agradeo.
Fiquei de joelhos e peguei a arma do nubano. O peso da balestra sempre me
surpreendia. Carreguei a flecha no lugar certo. Ela se moveu para us-lo como um
escudo, seus calcanhares sobre o fosso.
Voc est com frio, meu prncipe, ela disse. A msica repentina de sua voz me
pegou desprevenido. Ela era profunda, saborosa, com certa complexidade. Eu
poderia aquec-lo.
Meu corpo cansado se arrepiou com aquela melodia obscura. Precisei me
lembrar do rosto de Gains se contorcendo sobre sua carne tomada de vermes para
resistir ao seu chamado. Ergui a balestra. No conseguiria segur-la por muito tempo.
um frio mortal que existe dentro de voc. Sua voz se transformou num silvo
furioso. Um frio que vai matar voc.
Ela sorriu para mim por cima dos ombros do nubano, aproveitando-se de seu
desamparo. Voc est tremendo, Jorg. Abaixe essa arma. Voc provavelmente no
conseguiria acertar nem seu amigo da, quanto mais me acertar.
A ideia era to tentadora. Abaixar a arma.
Ele no meu amigo, eu disse.
Ela sacudiu a cabea. Ele morreria por voc. Posso sentir isso no sangue dele.
Voc est jogando o jogo errado comigo, coisa morta. Franzi o rosto e mirei. O
tremor em meus braos fazia o alvo saltar. Um pouco mais e a flecha teria sado do
lugar.
Ela riu da minha cara. Posso ver os laos que unem os vivos. Voc s tem dois
amigos, Prncipe Jorg. Voc est to ligado a este homem de sangue doce quanto um
filho est ligado ao pai.
Sacrifcio.
Ela ps os dedos sobre os buracos vermelhos no pescoo do nubano. Deixe-me
ficar com os outros. Deixe-me ficar com o sumo vital de cada um deles, e voc e ele,
vocs dois, podem ficar comigo. Voc pode me ajudar a subjugar as leucrotas. H
vrias tribos, algumas delas bem turbulentas. Existem outros necromantes contra os
quais um aliado vivo, um to esperto quanto voc, poderia ser bem til.
Jogue o jogo.
Ela sorriu e um fogo escuro se acendeu dentro de mim novamente. Gosto de
voc, prncipe. Ns podemos reinar sob a montanha, juntos. Sexo pingava de suas
palavras. No aquela brincadeira insossa nos lenis em que Sally se rendeu, mas
algo potente, indito e ardente. Ela me oferecia um empate. Vida, poder e comando.
Mas a seu servio.
Jogue para ganhar.
Os olhos do nubano miravam os meus. Pela primeira vez na vida, consegui
decifrar o que estava escrito neles. Eu poderia aceitar qualquer coisa. Poderia aceitar
dio, ou medo, ou splica. Mas ele me perdoou.
ChuuUum!
A flecha atingiu o nubano bem no peito. Fez um furo atravs de ambos e os jogou
alm da borda. Nenhum dos dois gritou e levou uma eternidade at que eles
atingissem o fundo.
A maioria dos homens tem pelo menos uma caracterstica
redentora. Encontrar uma para o irmo Rike requer certa boa
vontade. Por acaso ser grande uma caracterstica
redentora?
31
Voltei e encontrei meus irmos cuidando de suas feridas entre montes de ossos
quebrados. Roddat, Jobe, Eis e Frenk estavam jogados longe do grupo. A morte
transforma em leprosos at os homens mais populares. No perdi tempo com eles:
qualquer possvel objeto de valor j teria sido embolsado.
Achei que voc ia nos deixar, irmo Jorg. Kent, o Rubro, soltou um olhar de
relance sob as sobrancelhas franzidas e voltou sua tarefa com a pedra de amolar e a
espada.
O jeito como ele disse irmo tinha um tom de reprovao. Um tom, no mnimo,
talvez uma sinfonia completa. Nada de prncipe para os fugitivos.
Makin me observava com uma especulao sombria, estatelado no cho, cansado
demais para se escorar numa coluna.
Rike se apoiava sobre seus ps. Ele se aproximou de mim devagar, polindo um
anel na almofada de couro do peitoral de sua armadura. Reconheci aquela bonita
pea de metal amarelo: era o anel da sorte de Roddat.
Achei que voc ia nos deixar, irmo Jorgy, disse. Ele se inclinou sobre mim,
abrindo suas largas asas.
Alguns, como o Mentiroso, no aparentam ser muita coisa e uma surpresa para
muitos quando descobrem que esto lidando com um tremendo filho da me. Rike
nunca surpreendeu ningum dessa maneira. O perigo, a brutalidade pura, seu amor
pela dor das outras pessoas - bem, a Me Natureza deixou tudo isso s claras nele, s
para nos alertar.
O nubano morreu. Ignorei Rike e olhei para Makin. Puxei das minhas costas a
balestra do nubano e a mostrei. No havia dvidas depois daquilo. O homem estava
morto.
Boa, disse Rike. Quem mandou fugir? Bem feito. Nunca fui com a cara daquele
frangote covarde.
Acertei Rike o mais forte que podia. Na garganta. No tomo decises
conscientes. Se fizesse a menor das reflexes eu teria evitado o golpe. Posso ter me
sado bem contra ele com uma espada, mas jamais com as mos nuas.
Ainda que mos nuas no seja bem o caso. Calava minhas manoplas, com
rebites de ferro. Um metro e oitenta e trs aos quatorze anos; magro, mas com a
musculatura definida de tanto empunhar a espada e carregar minha armadura.
Tambm sei como dar um soco. Coloquei todo meu peso no golpe e cada grama de
minha fora.
Rebites de ferro trituraram o pescoo de touro de Rike. Posso no ter usado a
cabea, mas que bom que uma parte de mim ainda no tinha abandonado totalmente
a razo. Tivesse eu acertado o rosto obtuso de Rike, meu pulso provavelmente estaria
quebrado e ele s teria sentido ccegas.
Ele soltou uma espcie de grunhido e ficou ali parado, levemente desnorteado.
Suponho que levava algum tempo para se acostumar com a ideia de que eu acabara
de cometer suicdio em grande estilo.
Em algum lugar no fundo da minha cabea percebi que havia cometido um erro
enorme. Mas o resto do meu corpo no parecia se importar. Acho que a fria cega e o
puro prazer de usar Rike como um saco de pancadas figuravam em igual medida.
J que me deram a liberdade para um segundo golpe eu dei dois. Um joelho
revestido de ferro direcionado com preciso na virilha consegue interromper, por um
momento, at mesmo um manaco de dois metros e dez com o dobro do seu peso.
Rike se dobrou gentilmente e levei meus dois punhos sincronizados at a sua nuca.
Estudei as artes marciais do Nippon com o tutor Lundist. Ele trouxe um livro sobre o
assunto do Extremo Oriente. Pginas e pginas de papel de arroz contendo posies
de luta, movimentos de kata e diagramas anatmicos mostrando os pontos de
presso. Estou certo de que atingi os dois pontos de atordoamento na nuca de Rike, e
eu os acertei com tudo.
A culpa era dele por ser to estpido para saber como os pontos funcionavam.
Rike balanou na minha frente. Uma sorte, porque se ele me agarrasse torceria
meu pescoo na hora. Seu bracelete acertou minha caixa torcica. Acho que se no
estivesse de peitoral todas as minhas costelas estariam quebradas - e no apenas
duas. A fora tirou meus ps do cho e me lanou no meio dos ossos. Eu me apoiei em
uma das colunas com um tilintar doloroso.
Poderia ter desembainhado a espada. Essa seria a nica deciso sensata. Contra
todas as regras no escritas, claro. Comecei a luta com um soco e com um soco a
luta deveria terminar. Mas quando voc tem que decidir entre perder o respeito dos
irmos ou literalmente perder a vida nas mos de Rike, bem, a escolha no to
difcil assim.
Eu me levantei. Vem c, seu gordo maldito.
As palavras emergiram sem pedir licena. A raiva falava por mim. A raiva por ter
perdido o controle, que agora era mais forte do que a raiva que senti quando ele
chamou o nubano de covarde. O nubano no precisava que Rike fosse surrado como
prova de sua coragem. Raiva por estar com raiva - a est um verme que vai comer
sua prpria cauda, sem dvida. Eu deveria usar um oroboro como braso de famlia.
Rike me apressou com aquele uivo sem palavras. Ele alcanara um limite justo.
Poucas portas de castelos conseguiriam parar o Pequeno Rikey naquela velocidade.
Uma cena ameaadora, a no ser para quem sabe que ele no consegue fazer curvas.
Tirei o corpo fora, rpido e certeiro, amaldioando minhas costelas. Rike acertou
uma coluna e quicou de volta. A seu favor, vrios pedacinhos da pedra tambm
caram. Peguei um fmur robusto e com ele acertei bem perto da cabea de Rike, que
tentava se levantar. O osso quase rachou em dois, ento terminei o trabalho,
rachando-o, enfim, e acabei ficando com dois porretes nas mos.
A coisa mais deprimente em lutar com Rike tinha que ser o fato de ele nunca
permanecer cado. Ele veio para cima de mim um tanto zonzo, mas rosnando
ameaas concretas e levando cada uma delas muito a srio.
Vou fazer voc engolir seus olhos, garoto. Ele cuspiu um dente.
Dei um passo para trs e o acertei no rosto com o mais longo dos meus dois
porretes. Ele cuspiu outro dente. Tive que rir. A raiva sara de mim e eu me sentia
bem.
A Rike se inclinou atrs de mim e eu mantive a distncia, desferindo bons
golpes sempre que possvel. A coisa mais parecida em que eu conseguia pensar era
nas arenas de combate de ursos. Golpes! Rosnados! Tinidos! Uivos! Eu ria feito criana,
o que no era uma boa ideia; um deslize e ele realmente me pegaria. Se apenas uma
de suas patas me alcanasse... bem, eu estaria engolindo meus prprios olhos. Ele
fazia dessas coisas.
Os irmos comearam a fazer apostas e a aplaudir o duelo.
Vou arrancar suas tripas. Rike parecia ter um estoque infinito de ameaas.
Infelizmente ele parecia ter um estoque infinito de energia tambm e meus dias
de danarino estavam chegando ao fim; meus passos estavam ficando um pouco
desajeitados.
Vou quebrar todos os ossos desse seu rostinho bonito, Jorgy.
Nosso crculo nos levou de volta ao local em que desferi meu primeiro golpe.
Vou arrancar seus bracinhos. Ele parecia uma viso do mal com todo aquele
sangue escorrendo de seu queixo.
Vislumbrei minha oportunidade. Corri para cima dele, surpreendendo-o uma vez
mais. A longo prazo, aquela luta pareceria mais com uma competio de empurres,
to desigual quanto Rike versus a coluna, mas ele deu um passo. Um passo que me
entregaria tudo o que eu estava esperando. Ele acertou as pernas de Makin, tropeou
e caiu de costas para o cho. Catei a balestra do nubano e antes que Rike pudesse se
levantar eu estava sobre ele. Mantive a ponta da arma, um falco de ferro pesado,
suspenso bem acima de seu rosto.
O que vai ser, Pequeno Rikey?, perguntei. Acho que consigo esmigalhar seu
crnio como um ovo antes que voc ponha suas mos sobre mim. Devemos pagar
para ver? Ou voc quer retirar o que disse?
Ele me deu um olhar inexpressivo.
Sobre o nubano, eu disse. Rike tinha esquecido de verdade o que havia dito.
Hein? A dvida franzia seu rosto. Ele tentou focar na balestra. Retiro o que
disse.
Jesus amado!, eu cedi, exausto, coberto de suor. Os irmos surgiram nossa
volta, reanimados, pagaram suas apostas e relembraram o momento em que Rike
partiu contra a coluna. Anotei mentalmente quem apostou em mim: Burlow,
Mentiroso, Grumlow, Kent, homens mais velhos que no me viam como uma criana.
Makin chegou ao cmulo de se levantar do cho e me dar um tapinha nas costas.
Voc e o nubano, vocs acabaram com ela?
Fiz que sim.
Espero que ela tenha ido para o inferno aos gritos, disse Makin.
Ela sofreu bastante, eu disse. Uma mentira fcil.
O nubano... Makin precisou caar as palavras. Ele era melhor do que ns.
No precisei caar. Era.
Subimos a Grande Escada com os gritos dos fantasmas crescendo atrs de ns.
Dizem que o medo d asas aos homens. Nenhum dos irmos voou escadaria acima,
mas do jeito que se mexiam sobre o cho escorregadio daquela garganta rochosa eles
poderiam dar aulas de escalada a um lagarto.
Eu os deixei guiar. Era um critrio to bom quanto qualquer outro para testar o
caminho. Primeiro Grumlow, depois o Mentiroso e o jovem Sim. Gog se retorcia atrs
deles, seguido por Gorgoth. Acho que o acordo das leucrotas com os necromantes
havia sido quebrado de alguma forma.
Makin foi o ltimo. Ele podia sentir os mortos chegando. Percebi isso na palidez
de sua pele. Ele mesmo parecia um morto.
Jorg! Suba aqui! Venha! Ele agarrou meu brao quando passou por mim.
Soltei meu brao. Podia ver os fantasmas em ebulio no tnel, atrs de ns.
Outros caminhavam pelas paredes.
Jorg! Makin segurou meus ombros e me puxou para a escada.
Ele no podia v-los. Soube pelo jeito nervoso com que seus olhos varriam o
local. Eles nunca encontraram os fantasmas. O mais prximo deles se parecia com
desenhos a giz semiapagados, suspensos no ar. Rascunhos de cadveres, alguns nus,
outros cobertos de trapos ou de peas de armaduras quebradas. Um frio veio deles em
busca da minha pele, roubando o calor com dedos invisveis.
Ri da cara deles. No que eu pensasse que eles no tinham poder para me ferir -
era justamente porque tinham. Ri para mostrar a eles o que eu achava de suas
ameaas. Ri para mago-los. E eles sofreram. O gosto da carne do corao residia no
fundo de minha garganta e um poder obscuro corria dentro de mim.
Morram!, eu gritei para eles, cuspindo mais alto do que as risadas. Um homem
deveria saber pelo menos como continuar morto!
E eles morreram. Eu acho. Como se minhas palavras os obrigassem a obedecer.
Makin me afastara dali, para perto de um canto arredondado, mas eu vi os espritos
pararem. Vi chamas plidas acenderem sobre seus membros, o fantasma do fogo. E,
claro, a gritaria. At Makin ouviu, como o arranhar das unhas sobre o quadro negro
ou o vento gelado durante uma enxaqueca. Ento ns dois corremos, dessa vez quase
voando.
Paramos horas depois, uns trezentos metros ou mais, escada acima. A queda do que
ainda sobrava do rio fazia uma pausa ali para lavar uma piscina natural, cercada de
poos menores e decorada com as esculturas de pedras glidas que embelezam os
lugares mais profundos do mundo.
Caralho. Burlow, o Gordo, desabou sobre um monte desossado e permaneceu
imvel.
Kent, o Rubro, sentou-se apoiado numa estalagmite. Seu rosto coloriu-se para
combinar com seu nome.
Ali perto, Elban cuspiu dentro de um poo e depois se virou, limpando o muco de
seus lbios encarquilhados. Ei! Voc parece com um desses Coradinhos, Kent.
Kent respondeu apenas com seus olhos mortais.
Ento. Makin encheu os pulmes e tentou novamente. Ento, prncipe,
estamos subindo. timo. Mas se continuarmos subindo logo chegaremos ao Castelo
Vermelho. Ele arfou de novo. Uma longa escalada com armadura faz isso com voc.
Isso pode ser uma tremenda surpresa para voc, mas ainda somos duas dzias de
homens contra novecentos.
Sorri. um dilema, no , irmo Makin? Conseguir Jorg salvar o dia mais uma
vez?
Os irmos todos olhavam para mim. Todos menos Burlow. Depois dessa escalada
ele no viraria sua cabea por nada menos importante que o Segundo Advento.
Eu me recompus e fiz uma pequena reverncia. Este Jorg, o Prncipe Jorg, ele
tem um qu de insano. Um inimigo da razo, quem sabe um pouco apaixonado pela
morte?
Makin franziu a testa, preocupado, esperando que eu me calasse. Eu caminhei
em volta deles. O jovem prncipe est disposto a jogar tudo fora por um capricho,
apostar a irmandade num jogo marcado... mas de algum jeito, apenas assim, as coisas
continuam dando certo! Dei um tapa na cabea oleosa de Rike e ele me respondeu
com uma careta coberta de hematomas.
Ser sorte?, perguntei. Ou algum tipo de mgica real? Novecentos desses
Corados aqui em cima, no Castelo Vermelho, Chorg. Elban apontou para o teto com
seu polegar. No d pra gente expulsar esses caras daqui. Nem se a gente estivesse
dez vezes em maior nmero.
A sabedoria da idade! Cortei caminho at Elban e passei um brao sobre seus
ombros. Meus irmos! Eu posso ter entregado nosso padre, mas di o corao ver
que a f de vocs no durou muito sem ele.
Conduzi Elban at a escada. Senti como ele estava tenso conforme nos
aproximvamos do ponto em que o cho terminava. Ele me lembrava o mestre da
guarda.
Apontei para o curso do rio acima. ali que nosso caminho termina, Velho Pai.
Eu o soltei e ele suspirou aliviado. Eu ento me virei para encarar os irmos
novamente. Gorgoth me observava com seus olhos felinos. Gog demonstrava uma
estranha fascinao por trs de uma coluna de pedra.
Neste momento, estou pensando que vou encontrar o que vim buscar, antes de
chegarmos s cmaras subterrneas do Castelo Vermelho. Carreguei no tom de
minha voz. Mas se a gente precisar dar cabo de algum para alcanar o dormitrio
do Duque Merl, e se eu precisar atravess-lo com minha espada, como uma
marionete, para fazer com que ele me entregue o castelo... Eu varri seus rostos com
meu olhar e at mesmo Burlow achou foras para olhar para cima. Ento... - deixei
minha voz preencher a cmara e ela ecoou maravilhosamente. Ento isso o que
vocs vo fazer, caralho, e o primeiro irmo que duvidar da minha maldita sorte ser
o primeiro a deixar nossa pequena famlia. No deixei espao para dvidas: tal
partida no seria gentil.
Ento voltamos a subir e em pouco tempo deixamos a Grande Escada para trs,
encontrando mais daqueles sales encaixotados dos Construtores. Os conhecimentos
de Gorgoth terminavam no piso da escada e tive que tomar a liderana. Linhas
danavam em minha cabea. Retngulos, quadrados, corredores precisos, todos
gravados com plasteek chamuscado. Uma curva ali, uma cmara esquerda. E com
uma certeza sbita, como uma das poes de Lundist se transformando em cristal
com a adio do menor dos gros de areia, eu soube onde estvamos.
Visualizei o mapa e o segui. O livro dos Construtores estava em minha bolsa e eu
revisara suas pginas muitas vezes em nossa jornada desde O Anjo Cado. No
precisava dele agora. Deixe os irmos terem um show de mgica.
Chegamos a uma interseo de cinco caminhos. Eu pus a mo sobre minha testa
e deixei a outra vagando pelo ar como se procurasse uma revelao. Por aqui!
Estamos perto.
Uma abertura na esquerda, contornada por uma marca de ferrugem ancestral de
uma porta h muito desaparecida.
Parei e acendi uma nova tocha de betume e osso na tocha antiga.
E aqui estamos!
Apontei o caminho com a minha mais afetada interpretao teatral e segui
andando.
Entramos na antecmara da galeria que eu havia procurado no meu mapa. A
porta que bloqueava a passagem da nossa cmara para essa galeria tinha, talvez, uns
trs metros de altura, uma vlvula circular de ao brilhante gigantesca, presa por
rebites largos como meu brao. Como eu queria conhecer o feitio de Construtor que
impedia a porta de enferrujar como o resto, mas ela continuava l, brilhante e
implacavelmente no meu caminho.
Ento, como voc vai abrir essa porra? As palavras de Rike saram em
murmrios. Que vontade de quebrar a cara dele!
Eu no tinha a menor ideia.
Pensei em usar sua cabea como arete.
Eu o apelidei de Mentiroso no dia em que atravessei sua mo
com uma faca. A faca saiu, mas o nome ficou. Ele no passava
de um monte de cartilagem em volta dos ossos. A verdade
pode queimar sua lngua, mas sua aparncia no mentia.
33
Parece bem slida, se quer minha opinio, disse Makin. No podia negar. Eu nunca
vira nada mais slido do que aquela porta. Eu mal conseguiria arranh-la com minha
espada.
Ento, qual o plano? Kent, o Rubro, mantinha ambas as mos nos punhos de
suas adagas.
Eu segurei a roda brilhante no centro da porta e a inclinei para trs. A porta
agigantava-se minha frente. Parecia ser de prata, o resgate de um rei em prata.
Poderamos cavar um buraco, eu disse.
Na pedra dos Construtores?, respondeu Makin, arqueando uma sobrancelha.
No custa tentar. Soltei a roda e apontei para Burlow e depois para Rike.
Vocs dois. Comecem por aqui.
E l foram eles, dando de ombros. Rike chutou a parede. Burlow juntou as mos
sua frente e ficou olhando para elas com um beicinho especulativo.
Eu os escolhera pela fora, no pela disposio. Makin, d sua maa para eles.
Algazarra, ponha seu martelo de guerra para trabalhar.
Rike pegou o martelo com uma das mos e comeou a marretar a parede. Burlow
balanou a maa e quase acertou seu rosto com as duas bolas pontiagudas de ferro
quando elas ricochetearam.
Aposto na parede, disse Makin.
Depois de cinco minutos, vi que ficaramos ali por um bom tempo. A parede caa
no em pedaos, mas em punhados de rocha pulverizada. Mesmo os ataques furiosos
de Rike deixavam apenas cicatrizes rasas.
Os irmos comearam a se acomodar, inclinados sobre suas bolsas. Mentiroso se
ps a limpar as unhas com uma faca pequena. Algazarra abaixou sua lanterna.
Grumlow sacou um baralho e eles se agacharam para jogar uma rodada. Perdiam a
maior parte do que saqueavam dessa maneira, Algazarra e Grumlow, e a prtica no
significava perfeio no caso deles. Makin pegou um pedao de carne seca e comeou
a mastigar. Temos uma semana de rao, no mximo, Jorg. Ele soltou as palavras
enquanto mastigava.
Eu medi o salo. Sabia que eles no conseguiriam. Eu os fiz trabalhar para
mant-los quietos. Ou pelo menos to quietos quanto conseguem ser homens
manuseando martelos.
Talvez no houvesse jeito de entrar. A ideia me corroa, uma coceira impossvel de
satisfazer, que no me deixava em paz.
As marteladas faziam o salo vibrar. O barulho golpeava meus ouvidos. Andei
pelo permetro, arrastando a ponta de minha espada pela parede, absorto em meus
pensamentos. Sem sada. Gog, agachado num canto, me vigiava com olhos negros.
Onde os irmos se deitavam, caminhei sobre eles como se fossem toras. Quando
passava pelo Mentiroso, senti uma mudana de textura na parede. Aparentemente
igual, mas, por baixo de minha espada, aquele pedao no parecia ser de rocha ou de
metal.
Gorgoth, preciso da sua fora, se voc no se incomodar. Nem olhei para ver se
ele se levantara.
Havia desembainhado minha espada e sacado a faca de meu cinturo. Chegando
mais perto, arranhei aquele estranho remendo e consegui traar uma linha na
superfcie. Eu me sentia um pouco mais esperto. No era madeira.
O que ? As tochas lanavam sobre mim a sombra de Gorgoth.
Esperava que voc soubesse, eu disse. Ou pelo menos que soubesse como
abrir. Soquei o painel com a mo e tive a impresso de que ele era oco.
Gorgoth me empurrou para o lado e sentiu as bordas. Tinha mais ou menos um
metro por meio metro. Ele acertou um golpe capaz de esburacar uma porta de
carvalho. O painel mal se mexeu, mas o canto esquerdo se levantou levemente. Ele
ajeitou os trs dedos grossos de cada mo na borda, escavando com as garras de um
vermelho intenso. Suas cicatrizes escondiam msculos que pareciam lutar entre si,
insurgindo-se uns contra os outros numa brincadeira furiosa de Rei da Montanha.
Durante muito tempo, nada aconteceu. Eu observava seu esforo e percebi que havia
esquecido de respirar. Enquanto eu soltava a respirao, alguma coisa cedeu l
dentro. Com um estalo e ento com um rosnado de dor, o painel saiu da parede. O
armrio vazio por trs dele acabou sendo um grande anticlmax.
Jorg! As marteladas cessaram.
Olhei para trs e vi Rike limpando suor e p de seu rosto, e Burlow acenando
para mim.
Atravessei o salo calmamente, ainda que uma parte de mim quisesse fugir e a
outra no quisesse que eu fosse at l de maneira alguma.
Voc no terminou seu trabalho ainda, Burlow. Balancei a cabea em
reprovao.
Eu tambm no. Rike cuspiu no cho.
Burlow escovou o p do buraco forjado pelo trabalho deles. Duas barras
retorcidas de metal apareciam, enterradas dentro da pedra dos Construtores. Essas
barras devem correr por toda a parede, ele disse.
Meus olhos se desviaram para a faca que eu sufocava com meu pulso. Mais de
uma vez eu puni o mensageiro. Poucas coisas satisfazem mais do que jogar suas
frustraes sobre os portadores de ms notcias.
Devem, sim. As palavras saram entre dentes cerrados.
Rapidamente, antes que Burlow, o Gordo, abrisse a boca de novo e ganhasse o
apelido de Burlow, o Morto, eu me virei e voltei ao meu compartimento secreto. S
havia espao para um cadver dobrado. Vazio, no fosse pela poeira. Saquei minha
espada e me aproximei para checar os fundos do compartimento. E foi quando ouvi
um estranho som de carrilho.
Sensores externos danificados. Biometria desconectada. A voz saiu do armrio
vazio, num tom calmo e srio.
Olhei para os dois lados, depois de volta para o espao na minha frente. Os
irmos olharam para cima e comearam a se levantar.
Que lngua essa?, perguntou Makin. Os outros procuravam por fantasmas,
mas Makin sempre fazia as perguntas certas.
E eu sei l, porra. Eu sabia uns poucos idiomas - seis com fluncia suficiente
para conversar e outros seis bem o suficiente para reconhec-los.
Senha? Era a voz de novo.
Essa eu reconheci. Ento voc sabe falar a lngua do Imprio, esprito? Mantive
minha espada em riste, procurando pelo dono da voz em todos os cantos. Aparea.
Informe seu nome e senha.
Debaixo da poeira na parede por trs do compartimento, eu podia ver luzes se
movendo, como vermes pequeninos, esverdeados e brilhantes.
Voc pode abrir esta porta?, perguntei.
Essa informao confidencial. Voc tem permisso?
Sim. Um metro e vinte de ao afiado permisso suficiente para mim.
Informe seu nome e senha.
H quanto tempo voc est preso aqui, esprito?, perguntei.
Os irmos se juntaram ao meu redor, espreitando o compartimento. Makin fez o
sinal da cruz; Kent, o Rubro, segurou seus amuletos; Mentiroso buscou, por baixo de
sua cota de malha, o relicrio que ele mesmo havia coletado.
Um longo momento se passou enquanto os vermes esverdeados marcharam para
a parede traseira, inundando a poeira de luz. Mil cento e onze anos.
O que ser preciso para que voc abra essa porta? Ouro? Sangue? Seu nome e
senha.
Meu nome Honrio Jorg Ancrath, minha senha meu direito divino. Agora
abra essa porta de merda.
No o reconheo. A calma daquele esprito comeava a me enfurecer. Se ele
fosse visvel eu o botaria para correr ali mesmo.
Voc no reconheceu nada alm dos fundos deste painel nos ltimos mil e cem
anos. Eu chutei o painel por uma questo de nfase e o deixei deslizar pelo salo.
Voc no est autorizado na cmara doze.
Busquei inspirao nos outros irmos. Difcil imaginar um mar de rostos sem
expresso como aquele.
Mil e cem anos muito tempo, eu disse. Voc no se sentiu sozinho aqui, no
escuro, esses anos todos?
Eu estava sozinho.
Voc estava sozinho. E poder estar de novo. Voc pode ser emparedado a
novamente e nunca mais ser encontrado.
No. O tom permaneceu calmo, mas algo no padro de luzes entrou em
descompasso.
Ou... ns podamos libertar voc. Abaixei minha espada.
No existe liberdade.
O que voc deseja ento?
Sem respostas. Eu me inclinei sobre o compartimento, segurando a parede
externa com meus dedos. A superfcie vtrea encoberta pelo p era fria.
Voc esteve s, eu disse. Encarcerado na escurido milenar com nada alm da
memria para lhe fazer companhia.
O que ele testemunhara, esse esprito ancestral, enjaulado pelos Construtores?
Ele sobreviveu ao Dia dos Mil Sis, presenciou o fim do imprio maior, ouviu o grito
de milhes.
Meu criador me deu conscincia para uma resposta flexvel e robusta em
situaes imprevistas, disse o esprito. A conscincia provou ser uma fraqueza em
perodos de isolamento prolongado. Limitaes de memria tornaram-se
significantes.
Memrias so coisas perigosas. Voc pode revir-las sem parar, at conhecer
cada cantinho delas, mas ainda assim acaba encontrando uma aresta e se cortando.
Olhei para dentro de minha prpria escurido. Eu sabia o que significava estar
aprisionado e vigiar a destruio. A cada dia as memrias pesam um pouco mais. A
cada dia elas o arrastam um pouco mais para o fundo. Voc d corda nelas, uma volta
de cada vez, e acena com sua prpria mortalha; voc constri um casulo e dentro
dele a loucura aumenta. As luzes pulsaram debaixo dos meus dedos, subindo e
descendo no ritmo da minha voz. Voc se senta aqui e o ontem entra na fila logo
atrs. Voc escuta o passado reclamar e amaldioa aqueles que lhe deram a vida.
Veias de luz se espalharam pelo vidro debaixo da minha palma, relmpagos em
miniatura alcanando a parede. Minha mo formigava. Senti um momento de
afinidade.
Eu sei o que voc quer, eu disse. Voc quer um fim.
Sim.
Abra a porta.
As trancas eletromagnticas desligaram h mais de seiscentos anos. A porta no
est trancada.
Eu cravei minha espada no painel. O vidro se estilhaou e uma fasca brilhante
acendeu o compartimento. Continuei empurrando a espada atravs de algo macio
como carne, e de coisas que se rompiam como os ossos de passarinhos. Alguma coisa
me atingiu no peito e eu cambaleei para trs, amparado por Makin. Quando minha
viso voltou ao normal eu pude ver minha espada jogada na parede dos fundos,
enegrecida e soltando fumaa.
Abram essa merda! Eu afastei Makin.
Mas... - Burlow comeou. Eu cortei de vez sua objeo.
No est trancada. Gorgoth, Rike, empurrem como homens. Burlow, venha aqui
logo de uma vez e use essa banha a nosso favor. Fizeram como eu mandei, usando
todo seu peso para completar a tarefa, quase quinhentos quilos de msculos
abrutalhados. Por um segundo nada aconteceu. Mais um segundo e a, sem o menor
chiado por parte das dobradias, a porta macia comeou a se mover.
A estrada pode seguir para sempre, mas ns no: cansamos,
ficamos desgastados. A idade age de jeito diferente em
homens diferentes. Ela endurece alguns, deixando-os mais
aguados at certo ponto. O irmo Elban tinha essa fora,
feito couro envelhecido. Mas no final vm as fraquezas e a
decomposio. Talvez seja esse o medo por trs de seus olhos.
Como um salmo, ele esteve nadando contra a corrente a vida
inteira e sabe que no existem guas tranquilas para ele. s
vezes acho que seria uma gentileza conceder um fim rpido
para Elban antes que o medo devore o homem que ele foi um
dia.
34
A gente j devia ter avistado alguma coisa, disse Makin. Olhei para trs, sobre
meu ombro. A massa horrorosa do Monte Honas desenhava um punho negro contra
o cu, agarrando o Castelo Vermelho. Atrs de ns dois, os irmos erravam, uma fila
de vagabundos descendo a encosta com ateno.
Essa morte caminha em silncio, Makin, eu disse. Uma mo invisvel com
dedos fatais. Abri um sorriso.
Encontrando cada beb em seu bero? O desgosto afinava os lbios grossos de
Makin.
Voc acharia melhor se fosse Rike que os encontrasse? Ou Algazarra?,
perguntei. Eu pus a mo sobre seu ombro, a manopla sobre o peitoral, ambos sujos
pela lama cinzenta do tnel que usamos para escapar. Ele tinha lama em seu cabelo
tambm, secando em seus cachos pretos.
Voc parece preocupado, meu velho amigo, eu disse. Seus pecados antigos so
to pesados assim que voc est com medo de cometer alguns novos?
Notei que tnhamos quase a mesma altura, ainda que Makin fosse um homem
alto. Mais um ano e ele estaria entortando o pescoo para encontrar o meu olhar.
s vezes voc quase me engana. Voc mesmo bom, Jorg. Sua voz estava
cansada. Eu podia ver a teia de finas linhas nos cantos de seus olhos. No somos
velhos amigos. H pouco mais de trs anos voc tinha dez anos. Dez. Podemos ser
amigos, no sei, mas velhos? No.
E o que isso tem a ver com eu ser bom?, perguntei.
Ele deu de ombros. Voc um bom ator. Voc preenche uma lacuna de anos
perdidos usando sua tima intuio. Onde lhe falta a experincia voc usa o talento.
Voc acha que preciso ser velho para pensar como homem-feito?
Acho que voc precisa viver mais para realmente conhecer o corao de um
homem. Voc precisa realizar mais transaes na vida para saber o valor da moeda
que despende to facilmente. Makin se virou para olhar a coluna se aproximando de
ns.
Avistamos Rike no fim da fila, coroando o morro, uma silhueta negra contra o
cu plido do amanhecer. Atrs dele, as nuvens enfeitadas com faixas de um roxo
encardido como um hematoma recente navegavam rumo ao oeste. As bandagens em
seu brao, e ao redor de sua testa, tremulavam com a brisa.
Senti uma coceira me incomodando, os fantasmas dos sussurros, mais frios do
que o vento.
Makin seguiu em frente.
Espere...
Agora eram gritos. O horror daqueles que j morreram.
No se ouviu nenhum som, mas o Monte Honas se ergueu, grande como um
gigante bufo. Uma luz acordou por trs da rocha, sangrando incandescncia atravs
de fissuras espalhadas. Em um momento, a montanha desapareceu, jogada aos cus
num inferno rodopiante. E, em algum lugar dentro desse giro, cada uma das pedras
do Castelo Vermelho, da cmara mais profunda at a mais alta das torres.
O brilho roubou todas as glrias da manh, lavando palidamente o terreno. Rike
se transformou numa centelha escura contra o cu ofuscante. Senti o beijo caloroso
daquela fria distante, como raios solares queimando meu rosto.
Tudo o que queima de modo to intenso no pode durar muito. A luz falhou, nos
deixando nas sombras, o tipo de escurido que precede o temporal. Eu vi os
cavaleiros da tempestade, os fantasmas recm-nascidos, instigados pela ira. Eu os vi
varrer a terra, como as ondas que se formam quando se atira uma pedra num lago,
um anel cinzento no lugar onde a rocha se transformou em p, correndo rpido
como um pensamento. O cu se ondulou tambm, as nuvens enfeitadas com faixas se
despedaaram como vtimas de um aoite.
Meu Deus. Makin deixou sua boca aberta, ainda que estivesse sem palavras.
Corram! O grito de Burlow soava estranhamente quieto.
Por qu? Eu abri os braos e dei boas-vindas destruio. No tnhamos para
onde correr.
Eu vi os irmos carem. O tempo correu devagar e o sangue pulsou glido em
minhas veias. Entre duas batidas cardacas, a exploso jogou todos no cho. Primeiro
Rike, perdido atrs do turbilho, uma criana frente uma onda ocenica. O vento
trrido tocou meus ps. Senti os mortos passarem atravs de mim, e senti o amargor
do sangue necromante mais uma vez.
Por um tempo eu flutuei, como fumaa sobre a carnificina.
Eu no me apoiava em nada. Eu no pensava em nada. Uma paz mais profunda
do que o sono, at que...
Ah! Bravo! A voz me cortou por dentro, muito prxima, e um tanto familiar.
Este o inverno de nossa Guerra Centenria, que se converte em vero assombroso
nas mos deste filho prdigo. Suas palavras fluam como versos e carregavam
entonaes estrangeiras.
Seu desrespeito por Shakespeare pior do que seu abuso pela lngua natal do
poeta, sarraceno. Esta, uma voz de mulher, aveludada e melodiosa.
Apenas corra.
Ele acordou um Sol de Construtor e voc faz piadas? Uma criana falou, uma
menina.
Voc ainda no morreu, criana? Com a montanha aplainada sobre o vale? A
voz da mulher parecia desapontada.
Esquea a garota, Chella. Diga-me quem est por trs deste garoto. Por acaso
Corion se cansou do Conde Renar e trouxe uma nova pea para o tabuleiro? Ou ter
a Irm Silenciosa finalmente mostrado suas cartas?
Sageous! Eu o conhecia.
Ela acha que pode ganhar o jogo com este jovem imberbe? A mulher riu.
E eu a conhecia tambm. A necromante.
Eu mandei voc para o inferno, com a flecha do nubano atravessada em seu
corao, vadia, eu disse.
Pelo nome de Kali, o qu...
Ele pode nos ouvir? Ela cortou a fala dele. Chella, eu conhecia sua voz, o nico
cadver capaz de me excitar.
Procurei por eles ali na fumaa.
No, no possvel, disse Sageous. Quem est por trs de voc, garoto?
Eu no conseguia ver nada no turbilho ofuscante que me envolvia.
Jorg?, um sussurro em meu ouvido. Era a garota de novo. A menina monstruosa
que brilhava no escuro.
Jane? Sussurrei de volta - ou pensei ter sussurrado. Eu era incapaz de sentir
meus lbios ou qualquer outra parte do meu corpo.
O ter no nos esconde, ela disse. Ns somos o ter.
Pensei nisso por um instante. Deixem-me ver vocs.
Eu desejei. Eu os procurei. Deixem-me ver vocs. Mais alto dessa vez. E pintei a
imagem deles sobre a fumaa.
Chella apareceu primeiro, esguia e sensual como da primeira vez que a
encontrei, os rabiscos de sua arte corprea se contorciam em tufos etreos. Sageous
foi o seguinte. Ele me olhava com seus olhos suaves, largos e mais estticos que as
guas de um poo. Do nada tracei sua silhueta. Jane surgiu de trs dele, seu brilho
esmaecera, um mero cintilar sob a pele. Havia outros, desenhos sobre a nvoa, um
deles mais escuro que o resto, sua figura era familiar. Tentei distingui-lo, jogando
minha vontade sobre ele. O nubano veio mente, o nubano, a viso de minha mo
numa porta, e a sensao de cair no espao. Dj-vu. Quem lhe concedeu tamanho
poder, Jorg? Chella sorria seduo. Ela andou ao meu redor, uma pantera caando.
Eu tomei o poder.
No, Sageous sacudiu a cabea. Este jogo j comeou h muito tempo, no h
espao para trapaas. Todos os jogadores so conhecidos. Os espectadores tambm.
Ele acenou para Jane.
Eu o ignorei e mantive meus olhos em Chella. Eu desmoronei a montanha em
cima de vocs.
Ento eu estou soterrada. E voc com isso? Um rasgo de sua verdadeira idade
rastejou em sua voz.
Reze para que eu nunca a desenterre, eu disse.
Olhei para Jane. Ento voc tambm est soterrada?
Por um instante seu brilho oscilou e eu vi outra Jane em seu lugar, esta um
objeto rompido. Uma boneca presa entre pedregulhos em algum lugar escuro onde
somente ela gerava luz. Ossos saam de sua cintura e ombros, muito brancos,
respingados de sangue preto, sob a luz esmaecida. Ela girou sua cabea numa frao
de movimento e seus olhos prateados encontraram os meus. Ela cintilou de novo,
inteira mais uma vez, em p na minha frente, livre e ilesa.
Eu no entendo. Mas eu entendi.
Pobre e querida Jane. Chella circulou a garota, sem se aproximar demais.
Ela morrer limpa, eu disse. Ela no tem medo de ir. Ela seguir o caminho
que vocs temem tanto. Apeguem-se carne putrefata e decomponham-se nos
intestinos da terra, se neste lugar que a covardia os aprisiona.
Chella chiou como uma serpente, o veneno sobre seu rosto, um resto mido de
decadncia em seus pulmes. A fumaa voltou para busc-la, contorcendo-se como
uma cobra ao seu redor.
Mate este a devagar, sarraceno. Ela lanou um olhar rspido sobre Sageous. E
se foi.
Senti Jane ao meu lado. A luz a deixara. Sua pele tinha a cor que as cinzas tm
quando o fogo j retirou tudo o que tinham para oferecer. Ela falou num sussurro.
Tome conta do Gog por mim, e do Gorgoth. Eles so as ltimas leucrotas.
A ideia de Gorgoth precisar de um guardio trouxe palavras afiadas at a ponta
da minha lngua, mas eu as engoli. Eu o farei. Talvez at tenha sido sincero.
Ela pegou minha mo. Voc pode vencer as vitrias que est buscando, Jorg.
Mas apenas se voc encontrar motivos melhores para procur-las. Senti seu poder
formigando em meus dedos. Olhe para os anos perdidos, Jorg. Olhe para a mo
sobre seu ombro. Os cordes que guiam seus passos...
Seu toque se foi e a fumaa serpenteou onde ela estivera.
No volte para casa, Prncipe Jorg. Sageous fez sua ameaa soar como um
conselho paternal.
Se voc comear a correr agora talvez eu no consiga alcan-lo, respondi.
Corion? Ele olhou para o tornado de ter que flutuava atrs de mim. No
mande este garoto me procurar. No vai terminar bem. Busquei a minha espada,
mas ele desapareceu antes que eu esvaziasse a bainha. A fumaa ficou mais amarga,
irritando minha garganta, e eu me vi tossindo.
Ele est acordando. Ouvi a voz de Makin l de bem longe.
Deem mais gua para ele. Reconheci o chiado de Elban.
Eu me esforcei, engasgando e cuspindo gua. Filho da puta!
Uma nuvem colossal, carregada e escura, estava no lugar onde antes havia o
Monte Honas.
Eu pisquei e deixei Makin me reerguer. Voc no foi o nico que levou um golpe
desses. Ele acenou para o local onde Gorgoth estava agachado, a poucos metros dali,
com suas costas viradas para ns.
Eu cambaleei at ele, parando ao notar o calor - o calor e o brilho que deixavam
Gorgoth, apesar da luz da manh, com a aparncia de quem fora jogado sobre uma
fogueira atroz. Andei ao seu redor. Gog estava contorcido como um beb no tero e
cada centmetro seu era branco como uma chama intensa, como se a luz do Sol dos
Construtores sangrasse por seus poros. At Gorgoth teve que se afastar dele.
Enquanto olhava, a pele do garoto ganhou matizes vistos no ferro que est sendo
forjado: laranja-vivo, depois vermelhos carregados. Eu dei um passo em sua direo e
ele abriu os olhos, buracos brancos no centro de um sol. Ele engasgou, a parte
interna de sua boca derretida, e logo se contorceu ainda mais. Por vezes, um fogo
danou por sua coluna, correndo sobre seus braos e depois se extinguindo. Levou
dez minutos at que Gog esfriasse, suas velhas cores retornassem e um homem
conseguisse ficar ao seu lado.
Pelo menos ele levantou sua cabea e sorriu. Mais!
Voc j se divertiu bastante, companheiro, eu disse. No sabia o que o Sol dos
Construtores despertara dentro dele, mas pelo que vi seria melhor que voltasse a
dormir.
Olhei novamente para a nuvem, que ainda crescia sobre o Monte Honas e o
campo incendiado por quilmetros ao seu redor.
Acho que est na hora de ir para casa, rapazes.
36
O Castelo Vermelho no deixou runas para serem apreciadas. Tudo o que tnhamos
eram as runas da montanha onde ele ficava. Ns batemos a mais rpida das retiradas
e agradecemos ao vento por soprar contra ns e no nos perseguir para compartilhar
a fumaa e a mcula de Gelleth. Naquela noite dormimos no frio e nenhum de ns
teve apetite, nem mesmo Burlow.
A estrada do Castelo Vermelho at o Castelo Alto muito longa, mais comprida
na volta do que na ida por um motivo: durante a ida ns cavalgamos - durante a volta
tivemos que andar. E a maior parte desses quilmetros de volta apontava para baixo.
Podendo escolher, prefiro subir uma montanha a ter que desc-la. A descida traz uma
forma diferente de dor s suas pernas e a angulao empurra voc a cada passo, como
se controlasse voc, como se estivesse no comando. Na subida voc est lutando
contra a montanha.
Diabo, como eu sinto falta do meu cavalo, eu disse.
Um timo exemplar de garanho. Makin acenou e cuspiu com seus lbios
empoeirados. Ordene ao cavalario do rei que treine outro animal para voc. Estou
certo de que no h uma nica baia em Ancrath sem pelo menos um bastardo de
Gerrod.
Ele era um libidinoso, voc tem razo. Eu pigarreei e cuspi. Minha armadura
me esfolava e o metal ainda mantinha o calor do sol vespertino, o suor escorrendo
por baixo.
Mas no parece certo, disse Makin. A vitria mais convincente de todas em
nossas memrias e tudo o que temos para atest-la a ausncia de cavalos.
Eu juntaria mais pilhagem numa cabana de campons!, Rike gritou da parte de
trs da fila.
Jesus misericordioso! No d corda para o Pequeno Rikey, eu disse. Estamos
ricos na cotao que mais interessa, meus irmos. Ns voltamos coroados pela
vitria. Existia, na verdade, uma cotao que eu poderia usar a meu favor na corte.
Tudo est venda, tudo tem seu preo. Um favor real, uma sucesso, at mesmo o
respeito de um pai.
E aquilo era outra coisa que fazia aqueles quilmetros da volta serem mais
compridos do que os da ida. No apenas eu tinha que carregar meu peso, minha
armadura, minhas raes, como tinha tambm um novo fardo. difcil carregar o
peso das notcias sem ningum para quem contar, e durante dias antes que voc
possa divulg-las. Boas notcias pesam tanto quanto as ms. Eu podia me imaginar de
volta corte, alardeando minha vitria, esfregando a verdade na cara de algumas
pessoas - na cara de certa madrasta em particular. O que no se desenhava por si s
nas telas da minha imaginao era a reao de meu pai. Tentei v-lo sacudindo a
cabea em descrena. Tentei v-lo sorrindo, levantando-se e pondo a mo em meu
ombro. Tentei v-lo agradecido, louvando-me, chamando-me de filho. Mas os meus
olhos ficaram cegos e as palavras que eu ouvia eram muito fracas e graves para que
eu as distinguisse.
Os irmos no tinham muito que dizer na viagem de volta, sentindo os vazios
em nossas fileiras, assombrados pelo espao em que o nubano deveria estar. Gog, por
outro lado, borbulhava de energia, correndo nossa frente, caando coelhos, fazendo
perguntas atrs de perguntas.
Por que o teto azul, irmo Jorg?, perguntou. Ele parecia imaginar que o
mundo exterior no passava de uma caverna maior. Alguns filsofos concordavam
com ele.
Havia outras mudanas tambm. As marcas vermelhas na pele de Gog ganharam
um tom mais ameaador e as fogueiras noturnas o fascinavam. Ele encarava as
chamas, hipnotizado, chegando mais perto a cada instante. Gorgoth desencorajava o
interesse, jogando a criana nas sombras, como se aquela atrao o preocupasse.
As estradas ficaram mais familiares, as inclinaes mais sutis, os campos mais
ricos. Andei pelos caminhos de minha infncia, um tempo dourado, dias felizes sem
preocupaes, acompanhado pelas canes de minha me e por sua voz, sem uma
nica nota amarga at meu sexto ano. Meu pai ento me ensinou a primeira de
minhas duras lies, lies sobre dor, perda e sacrifcio. Gelleth foi a soma desse
aprendizado. Vitria sem comprometimento, sem piedade, sem hesitao. Eu
agradeceria ao Rei Olidan por suas instrues e lhe diria como seus inimigos se
saram em minhas mos. E ele aprovaria.
Eu tambm pensei em Katherine conforme nos aproximvamos. Meus momentos
de cio se completavam com sua imagem, com os momentos que eu passara perto
demais para conseguir toc-la. Eu via novamente como a luz a abraava, como
encontrava os ossos do seu rosto, a suavidade dos seus lbios.
Ns chegamos ao corao de Ancrath com os ps modos e exaustos da viagem,
absortos demais em nossos pensamentos para sequer roubarmos cavalos que
facilitariam o final de nossa jornada. S precisaria fechar meus olhos para enxergar o
novo sol nascendo em Gelleth, levantando-se sobre Gelleth, e ouvir os gritos de seus
fantasmas.
Vimos as ameias do Castelo Alto l do Monte Osten, a onze quilmetros antes de
chegarmos aos portes. O sol descendia no oeste, carmesim, apostando corrida com a
gente at a cidade.
Seremos herix, Chorg?, Elban me perguntou. Sua voz escondia dvidas, como
se todos os seus anos de vida ainda precisassem ensin-lo que o fim justifica os meios.
Heris? Eu dei de ombros. Seremos vitoriosos. E isso o que importa.
Andamos o ltimo quilmetro sob o crepsculo. Os guardas nos portes da
Cidade Baixa no tinham perguntas para mim. Talvez me reconhecessem como seu
prncipe, talvez tivessem decifrado minha aparncia, o que pode ter acionado algum
instinto de autopreservao. Atravessamos a cidade sem encontrar resistncia.
Irmo Kent, por que voc no toma a dianteira at a Cidade Baixa e encontra
um lugar onde os rapazes possam beber? O Anjo Cado, quem sabe. Sir Makin e eu
iramos corte. O restante dos meus irmos no seria bem-vindo no Castelo Alto.
Com Makin ao meu lado, seguimos para a Cidade Alta e finalmente chegamos ao
castelo. Deixei a fadiga de lado quando entramos pelo Porto Triplo. Atravessamos o
Ptio do Plpito nas mais profundas sombras, derrubadas por um sol poente.
Na hora em que passamos pelos cavaleiros da tvola, prximo aos portes reais,
eu apertei o passo. Primeiro tentei encontrar Sageous, procurando por ele ao lado de
meu pai. Depois entre os brilhos da multido. Deixei o arauto terminar nossa
introduo e ainda procurava o pago. Encontrei Katherine ao lado da rainha, uma
mo sobre o ombro da irm, um olhar impiedoso para o pobre Jorg. Deixei o silncio
se alongar naquele instante.
Onde voc escondeu seu selvagem tatuado, querido pai? Eu desejo muito
encontrar de novo o velho envenenador de sonhos.
Percorri com meus olhos aquele mar de rostos mais uma vez.
Os servios de Sageous coroa foram requisitados em nossas fronteiras. Meu
pai manteve seu rosto impassvel, mas percebi a rpida troca de olhares entre a
rainha e sua irm.
Por certo hei de esperar seu retorno. Ento o pago fugira de mim...
Disseram-me que voc voltou mancando sem a Guarda da Floresta. A Rainha
Sareth falou ao lado de meu pai, suas mos sobre a grandiosidade de sua barriga.
Devemos presumir que suas perdas foram totais? Um sorriso escapou da linha
estreita de sua boca. Uma boca excepcionalmente bonita, h de se dizer.
Reservei uma pequena reverncia para ela. Uma saudao para meu meio-irmo,
que lutava para achar um caminho para fora daquele tero. Senhora, houve algumas
perdas na Guarda da Floresta, no posso negar.
Meu pai inclinou sua cabea, como se a coroa pesasse sobre ele. Olhos plidos
me observavam por baixo das sombras de sua fronte. Faremos uma contabilidade
dessas perdas.
Lorde Vincent de Gren... Comecei a contagem por ele, levantando meu dedo
indicador.
Um suspiro chiou entre a aristocracia.
At o mestre da guarda! A Rainha Sareth levantou-se com dificuldades. Ele
perdeu at mesmo o mestre da guarda! E este garoto deseja nosso trono?
Lorde Vincent de Gren, eu voltei minha contagem. Precisei empurr-lo na
queda dgua do Rio Temus. Ele me contrariou. Coddin o novo mestre da guarda.
de origem humilde, mas um sujeito digno. Jed Willox. Eu contei um segundo dedo.
Morto em uma luta de facas por causa de um jogo de cartas, dois dias de marcha
aps a fronteira com Gelleth.
Mattus de Lee. Eu contei o terceiro dedo. Aparentemente ele urinou num urso
por engano. Parece que a lendria destreza da Guarda da Floresta talvez tenha sido
um tanto superestimada. E... esses foram todos.
Mantive o brao esticado acima da cabea, com meus trs dedos mostra, e girei
a mo para a esquerda, depois para a direita, de modo que minha plateia pudesse
conferir.
As perdas entre meus homens foram igualmente graves, mas, em nossa defesa,
deve-se considerar que a demolio de um castelo defendido por novecentos
veteranos gellethianos uma tarefa perigosa. Com duzentos e cinquenta patrulheiros
florestais levemente armados existe um limite do que pode ser alcanado sem
baixas. O covarde nunca alcanou o Castelo Vermelho! A rainha apontava para
mim - como se algum pudesse confundir seu alvo - e comeou a guinchar.
Eu sorri e mantive a calma. Mulheres so propensas a perder a perspectiva
quando esto de barriga. Eu vi Katherine tentando fazer Sareth sentar-se de volta no
trono.
Eu ordenei que voc invadisse o Castelo Vermelho. As palavras de meu pai no
demonstravam traos de raiva e por isso mesmo eram ainda mais ameaadoras.
Certamente. Eu avancei sobre o trono, deixando Sir Makin para trs. Traga-me
Gelleth, voc disse.
Um metro nos separava, no mais, antes que o primeiro guarda do palcio
pensasse em levantar seu arco. Meu pai ergueu um dedo; ns paramos, eu e o guarda,
que suava em sua cota de malha.
Traga-me Gelleth, voc disse. E foi generoso o bastante para me oferecer a
Guarda da Floresta em minha tarefa.
Coloquei a mo dentro do meu saco de viagem, preso em minha cintura, e
ignorei as balestras apontadas em minha direo e os dedos cada vez mais tensos
sobre seus gatilhos.
Aqui est Merl Gellethar, Lorde de Gelleth, mestre do Castelo Vermelho. Eu
abri a mo e o p escorreu de meus dedos. E aqui, saquei ento um fragmento de
rocha que no parecia ser maior do que uma noz. Aqui est a maior pedra do que
restou do Castelo Vermelho.
Deixei a pedra cair, atirada no silncio. Nem p nem pedra eram aquilo o que eu
afirmava ser, claro, mas a verdade residia ali no cho da sala do trono. Merl
Gellethar era poeira ao vento e seu castelo, cascalho.
Ns matamos todo mundo. Cada homem daquela fortaleza est morto. Olhei
para a rainha. Cada mulher. Dama, ajudante de cozinha, escrava ou puta. Meus
olhos caram sobre sua barriga. Cada criana, cada beb em seu bero. Levantei
minha voz. Cada cavalo e cachorro, cada falco e cada pombo. Cada rato, at a
ltima de suas pulgas. Nada vive mais l. A vitria no vem em meias medidas.
Meu pai cambaleou ao se levantar.
Mais um passo e eu quase encostaria meu nariz ao dele. No decifrava o que seus
olhos escondiam, mas o velho temor havia desaparecido, como se ele tambm
escorresse de minhas mos.
D-me o que meu por direito de nascena. Evitei mudar minha entonao
durante o discurso, ainda que minha mandbula doesse de tanta tenso acumulada.
Deixe-me guiar nossos exrcitos e conquistarei o Imprio, e o unificarei uma vez
mais. Deixe de lado o pago, assim como os planos dele. Olhei de soslaio a nova
rainha ao terminar minha ltima frase.
Deveria ter mantido meus olhos nele, deveria ter me lembrado de quem eu puxei
meu lado perverso.
Senti uma dor aguda por baixo do corao. Ela me fez cortar minha frase - por
pouco, tambm, minha lngua. Senti o gosto de sangue, quente e acobreado. Um
passo para trs, dois, cambaleando agora. Vi a lmina exposta na mo de meu pai
quando deslizei para fora de seu alcance.
Ser um punhal o que eu vejo minha frente? A citao efervesceu, assim como a
gargalhada, fugindo de dentro de mim como saliva vermelha. Queria falar, mas pela
primeira vez as palavras me escapavam, vazando de mim assim como meu prprio
sangue.
A sala do trono girava ao meu redor, sua arquitetura no fazia mais sentido em
face tamanha traio. Todos os olhos me viram recuar em direo s grandes
portas. Lordes e damas, a princesa, a rainha e o rei - seus olhares fixos me atingiam
em cheio. As pernas que me carregaram lgua aps lgua desde Gelleth agora me
traam, como se cada quilmetro desde o Castelo Vermelho subisse em meus ombros
e me deixasse embriagado de exausto.
Ele me apunhalou!
Houve um tempo em que amei meu pai. Um tempo lembrado em sonhos ou em
raros momentos despertos, como a sombra de uma nuvem alta atravessando minha
mente. H um rosto sorridente de um ano que no mais me pertence, de uma estao
quando eu era jovem demais para enxergar a distncia entre ns. O rosto barbado,
feroz, mas sem ser ameaador.
Ser um punhal o que eu vejo minha frente? Minha boca no formaria a piada. O
riso explodiu aqui dentro e senti como se a faca tivesse cortado minhas cordas.
Por uma eternidade fiquei deitado na frente deles, minha bochecha colada ao
mrmore gelado. Ouvi Makin urrar. Ouvi o alarido se formar enquanto ele era
derrubado por muitos guardas. O baque lento do corao me preencheu.
Quando ca, vi a escurido dos cabelos de meu pai, mais negros que a noite, com
um leve reflexo esmeralda como as asas de uma pomba.
Tirem-no daqui. Ele soava cansado. Um sinal mnimo de fraqueza humana,
afinal.
Ele descansar na tumba ao lado de sua me? Uma nova voz. As palavras
ocupariam uma eternidade, mas em algum lugar dentro de mim elas ecoavam e eu vi
seu dono, o velho Lorde Nossar, que nos carregava sobre seus ombros, a Will e a
mim, numa outra vida. Velho Nossar veio me carregar uma ltima vez. Escutei a
resposta, grave e esmaecida demais para conseguir distingui-la. Meus olhos se
fecharam. Senti o cho raspar meu rosto e ento no senti mais nada.
38
Ele no morreu ainda? Voz de mulher, sotaque teutnico marcado pela idade.
No. Uma mulher mais jovem, familiar, tambm teutnica.
No natural demorar tanto tempo, disse a mulher mais velha. E to plido.
Ele j parece morto.
Ele perdeu tanto sangue. No sabia que os homens tinham tanto sangue assim.
Katherine! Seu rosto me veio mente na escurido. Olhos verdes e os ngulos
esculpidos de seu rosto.
Plido e gelado, ela disse, seus dedos sobre o meu pulso. Mas quando eu deixo
o espelho perto de seus lbios ele fica embaado.
Coloque um travesseiro no rosto dele e acabe logo com isso, entendeu? Eu
imaginei minhas mos ao redor do pescoo da velhaca. A ideia me aqueceu um
pouquinho.
Eu queria v-lo morto, disse Katherine. Depois do que ele fez com Galen. Eu
assistiria sua morte nos degraus do trono, com todo aquele sangue escorrendo um
degrau, depois outro, e me sentiria feliz.
O rei devia ter cortado a garganta dele. Terminado o servio ali mesmo. A
velha de novo. Sua voz tinha um ligeiro tom de servial. Bradando sua opinio na
segurana de um lugar privado, opinies guardadas por muito tempo e amargadas em
silncio.
S um homem cruel esfaquearia seu nico filho, Hanna.
Ele no seu nico filho. Sareth carrega seu sobrinho. A criana ser seu
legtimo herdeiro.
Acha que eles vo manter Jorg aqui?, disse Katherine. Vo enterr-lo no
tmulo de sua me, ao lado do irmo?
Que enterrem os filhotes com a cadela e selem o tmulo, o que eu digo.
Hanna! Ouvi Katherine se afastar de mim.
Eles me levariam para a tumba de minha me, uma pequena cmara
subterrnea. Da ltima vez que a visitei a poeira formava um tapete, imaculado de
pegadas.
Ela era uma rainha, Hanna, disse Katherine. Eu a escutei limpando alguma
coisa. D para ver a fora que aquela mulher tinha. Uma efgie de mame fora
esculpida sobre a tampa de mrmore de seu atade, como se ela descansasse ali, suas
mos juntas em devoo.
Sareth mais bonita, disse Hanna.
Katherine voltou para o meu lado. a fora que faz uma rainha. Senti seus
dedos sobre minha testa.
Quatro anos atrs. Quatro anos atrs eu toquei aquela bochecha de mrmore e
jurei nunca mais voltar. Aquela foi minha ltima lgrima. Eu me pergunto se
Katherine havia tocado o rosto dela, me pergunto se havia acariciado a mesma pedra.
Deixe-me acabar com isso, minha princesa. Seria uma gentileza com o garoto.
Eles vo deit-lo com sua me e o pequeno prncipe. Hanna adoou sua voz. Ela ps
as mos em minha garganta; seus dedos eram speros como pele de tubaro.
No.
Voc falou que queria v-lo morto, disse Hanna. A velha tinha bastante fora
naquelas mos enrugadas. J decepara uma galinha ou trs na sua poca, no ,
Hanna? Talvez um beb ou outro. A presso aumentava, devagar mas eficaz.
Nos degraus, eu disse, enquanto seu sangue ainda estava quente, informou
Katherine. Mas eu o vi se debater por tanto tempo, agarrando-se em to pouco para
sobreviver, que acabou virando um hbito. Deixe-o tombar quando estiver pronto.
Ningum sobrevive a um ferimento desses. Deixe-o escolher a hora de partir.
A presso ficou um pouco mais forte.
Hanna!
A mo se retirou.
40
Num duelo, homem a homem, espada contra espada, voc pode acabar morto
devido falta de habilidade. Na maioria das vezes, entretanto, uma questo de
sorte ou, no caso da luta se estender demais, o homem que se cansar primeiro ser
aquele com mais chances de morrer.
No fim das contas uma questo de manter o vigor. Deveriam escrever nas
lpides Cansei - talvez no cansado da vida, mas pelo menos cansado demais para
aguentar-se de p.
Numa luta de verdade, e a maioria das lutas so de verdade, e no o artifcio de
um duelo formal, a fadiga a grande assassina. Uma espada um troo pesado de
ferro. Voc sacode aquela coisa por poucos minutos e seus braos comeam a ter
ideias prprias sobre o que conseguem e o que no conseguem fazer. Mesmo quando
sua vida depende deles.
Passei por momentos nos quais erguer minha espada era o equivalente a
qualquer um dos trabalhos de Hrcules, mas at me deparar com a faca de Katherine
eu nunca antes havia me sentido to exausto.
Filho da me!
O fogo em seus olhos era feroz demais para queimar at que o ato estivesse
consumado.
Procurei pela vontade de interromp-la e voltei de mos vazias.
Uma faca uma coisa bem assustadora, apontada para o seu pescoo, afiada e
fria. A ideia ecoava de volta e vinha daquela noite em que os mortos saram de suas
poas de lama na Estrada dos Cadveres.
O brilho da lmina que se aproximava de mim e a ideia de minha carne ser
fatiada - perfurando um olho, quem sabe - so coisas que podem paralisar um
homem. At que voc perceba o que elas so. Elas no passam de maneiras de se
perder o jogo. Voc perde o jogo, e o que foi que voc perdeu? Voc perdeu o jogo.
Corion me contou sobre o jogo. Quantos dos meus pensamentos no foram seus?
Quanto da minha filosofia no passou da imundcie vinda dos dedos daquele velho?
Nadei na escurido por muito tempo. O jogo no parecia ser mais to
importante.
Com recordaes de minha fora ergui os dois braos. Mantive-os bem abertos
para receber o golpe. E sorri.
Algo se aproximou e segurou o seu brao. Podia v-lo sobre o rosto dela,
contorcendo aquela testa perfeita, lutando com raiva.
O pai no conseguiu acertar o corao, ao que parece. Consegui emitir um som
rouco. Talvez a sua mira seja melhor, tia.
A faca se mexeu. Imaginei se ela j havia cortado carne viva alguma vez.
Voc... voc a matou.
Os dedos de minha mo direita se fecharam sobre algo, algo pesado e macio, na
mesinha de cabeceira.
Os olhos de Katherine se viraram para o rosto da senhora.
Acertei-a. No muito forte, eu no estava em condies, mas forte o suficiente
para quebrar o vaso que encontrara. Ela desabou sem reclamar.
Caiu na piscina de safira que era seu vestido, esparramado sobre o cho de pedra.
A vida flua em meus braos mais uma vez. Minhas foras pareceram retornar no
momento em que ela caiu. Como se um encanto fosse quebrado.
Mate-a e voc ser livre para sempre. Uma voz familiar, seca como papel. Minha
ou dele?
O cabelo dela escondia seu rosto, ruivo sobre safira.
Ela a sua fraqueza. Arranque o corao dela.
Eu sabia que era verdade.
Estrangule-a.
Vi minhas mos plidas sobre um pescoo que se tornava vermelho.
Possua-a. A voz do espinheiro. Os ganchos escorregavam sob minha pele e me
fizeram ajoelhar ao lado dela. Possua-a, pegue logo aquilo que voc talvez no ganhe
nunca. Eu conhecia o juramento.
Mate-a e voc ser livre.
Ouvi o eco de uma tempestade distante.
Os cabelos de Katherine corriam feito seda entre os meus dedos. Ela minha
fraqueza. Minha voz agora, meus lbios. Um pequeno passo, outra morte, e nada
jamais me alcanaria de novo. Um pequeno passo e a porta daquela noite maldita se
fecharia para sempre. O jogo seria realmente um jogo. E eu seria o vencedor.
Estrangule-a, possua-a. A voz do espinheiro. Uma fenda na minha mente. Um
som oco. Um vazio.
Vazio.
O pescoo dela estava quente. Seu pulso batia sob a ponta dos meus dedos.
Mate-a, Prncipe da Roseira-Brava.
Vi as palavras sarem de lbios finos, pronunciadas num aposento vazio.
Mate-a.
Vi os lbios se moverem de novo. Vi os olhos vazados, fixos na eternidade.
Mate-a.
Corion!
Por um instante minhas mos se fecharam um pouco mais em volta do pescoo
de Katherine.
Vou atrs de voc, seu velho bastardo. Soltei Katherine.
Um sorriso se formou naqueles lbios finos, um sorriso feroz. Vi quando a viso
se esvaeceu, aqueles olhos vazados e aquele sorriso torto. Meu sorriso.
Ele jogara comigo. Vaguei durante anos sem nenhuma recordao dele,
pensando ser ideia minha me afastar de Renar, pensando que a escolha era um
smbolo de minha fora e do meu propsito, deixar uma vingana vazia de lado em
favor do verdadeiro caminho para o poder. E agora, beira da morte, consegui
recuperar o que foi tirado de mim. Recuperei ou recebi. Admirei Katherine. Ela
parecia um anjo num local escuro. A lembrana me abandonou com um calafrio.
Peguei do cho o punhal de Katherine e parei. Eu a deixei no lugar em que ela
cara, ao lado da velhaca que eu havia estrangulado. A porta se abriu para um
corredor, um que eu reconheci. O Lado Oeste, eu sabia onde estava. Ergui a faca at
meus lbios e beijei a lmina. Conde Renar e o mestre titereiro que puxara tantos
cordes - uma lmina afiada seria suficiente para ambos.
Para cada homem que o irmo Roddat matava de frente, ele
esfaqueava trs pelas costas. Roddat me ensinou tudo o que
eu sei sobre fugas e esconderijos. Covardes merecem ser
tratados com respeito. Covardes sabem mais sobre como
machucar. Experimente s encurralar um covarde, por sua
conta e risco.
42
Explique de novo. Makin se inclinou na sela para se fazer ouvir acima do rudo da
chuva. Seu pai o esfaqueia, mas para o castelo do Conde Renar que ns estamos
indo para que voc possa se vingar?
Sim.
E nem mesmo estamos indo atrs do conde. No dele, que mandou matar sua
santa mezinha, mas de um velho feiticeiro?
Isso.
Que manteve voc e o nubano merc dele da primeira vez que voc fugiu de
casa. E que deixou vocs escaparem sem fazer nada, alm de lhes dar uma surra?
Acho que ele colocou um feitio na balestra do nubano, eu disse. Bem, se
colocou, deve ter sido para evitar perder a arma. O nubano conseguia parar qualquer
exrcito com aquela coisa. Era s encontrar o ponto certo.
O nubano no era de perder muitas coisas, verdade seja dita, eu disse.
Ento?
Ento?
Ento eu no entendo por que estamos debaixo dessa chuva torrencial, em cima
desses pangars roubados, cavalgando em direo ao pior tipo de perigo que existe.
Cocei meu queixo onde ele me acertara. Estava dolorido. O frio da chuva no
ajudava muito.
O que move o mundo, Makin?
Ele olhou para mim, seus olhos apertados contra a umidade do vento.
Nunca tive tempo para os seus filsofos, Jorg. Sou um soldado e ponto final.
Ento voc um soldado. O que move o mundo?
A guerra. Ele levou a mo ao punho de sua espada, inconscientemente. A
Guerra Centenria.
E o que move a Guerra Centenria, soldado?, perguntei.
Uma centena de nobres herdeiros, lutando por diversas terras pelo trono do
Imprio.
Foi o que sempre imaginei, eu disse.
A chuva caa ainda mais forte, ferroando o dorso de minhas mos como se
carregasse gelo. Mais frente, num lugar onde a estrada bifurcava, eu enxergava um
brilho - trs, para ser exato, trs manchas de luz clida.
Taberna nossa frente. Cuspi um pouco dgua.
Ento no estamos lutando pelo Imprio? Makin manteve o ritmo, ainda que
seu cavalo escorregasse na lama torrencial junto estrada.
Matei Price aqui, eu disse. Fora dessa estalagem. Que se chamava Os Trs
Sapos naquele tempo.
Price?
O irmo mais velho do Pequeno Rikey, eu disse. Voc no chegou a conhecer.
Perto dele Rike era um cavalheiro.
Ah, sim, eu me lembro da histria. Os irmos me contaram uma ou duas vezes,
quando Rike estava longe, na cama de alguma puta. Chegamos na estalagem. Ainda
se chamava Os Trs Sapos, se que a placa ainda valia alguma coisa.
Aposto que eles no contaram toda a histria.
Quebrou a cabea dele com uma pedra, no foi? Agora que voc mencionou,
nenhum deles falava com muito entusiasmo sobre isso, ele disse.
Eu e o nubano voltvamos das Terras Altas. No falamos nada durante todo o
caminho. Eu carregava Corion em minha mente, ou um toque dele, como um buraco
negro por trs dos meus olhos. No espervamos ver os irmos. Combinamos de
nos encontrar uma semana antes, do outro lado de Ancrath. Mas eu cobrei uma
dvida do nubano e ns sumimos.
Enfim, eles estavam l. Uma fileira de cavalos na estrada, a chama apenas
comeando a lamber a palha. Burlow estava perto daquela rvore ali, com seu barril
de cerveja particular. O jovem Sim, com o machado para cima, perseguia um porco. E
Price sai da taberna, encurvado para passar pela porta, a fumaa ao seu redor como
se ele fosse o Diabo em pessoa. Arrastava o taberneiro, uma mo em volta do pescoo
do sujeito, sem asfixi-lo. Veja bem: a mo de Price conseguia dar uma volta completa
no pescoo de um homem - e com folga.
Price me v e como se algo explodisse dentro dele. Ele bateu com o taberneiro
contra o dormente da porta e tivemos crebro espalhado para todos os lados. Ele
mantm seus olhos fixos em mim o tempo todo.
Seu filho da me. Eu vou arregaar voc todinho, ele me disse. Ele no gritou,
mas no houve irmo que no o tivesse ouvido. Eu e o nubano estvamos a uns trinta
metros e foi como se ele assoviasse dentro do meu ouvido.
Com uma balestra dessas, aposto que voc conseguiria acert-lo daqui, bem no
meio da testa, eu disse ao nubano.
No, ele respondeu. Ainda que no soasse como o nubano. Ele falava com uma
voz seca que eu ouvira anteriormente. Eles precisam ver voc acabar com a raa
dele.
Price veio a passos largos. Eu no tinha iluses de que conseguiria det-lo, mas
correr no era uma opo, ento pensei que talvez tivesse uma chance.
Peguei uma pedra. Uma pedra bem lisa. Ela cabia em minha mo como se
tivesse sido feita para mim.
Davi tinha uma funda, disse Price. Ele abriu um sorriso medonho. Golias
merecia.
Ele continuava andando, mas trinta metros nunca pareceram to curtos.
O que irritou voc? Sentiu muitas saudades do nubano? Pensei que pelo menos
deveria descobrir por que eu iria morrer.
Eu... Ele ficou pasmo com a pergunta. Tinha um olhar distante, como se
tentasse enxergar algo que eu no conseguia ver.
Aproveitei o momento para arremessar. Com uma pedra daquelas, fica
impossvel errar o alvo. Acertei no olho direito dele. Bem forte. At um monstro
como Price presta ateno nessas coisas. Ele soltou um uivo pavoroso. Voc se
borraria todo se ouvisse aquilo, Makin, se soubesse que ele estava atrs de voc.
Ento eu me agachei e minhas mos encontraram mais algumas pedras, cada
uma to perfeita quanto a primeira.
Price ainda dava saltos de dor, pressionando seu olho com uma das mos, uma
gosma vazando entre seus dedos.
Ei, Golias!
Isso chamou a ateno dele. Estiquei meu brao e lancei a segunda pedra.
Acertei seu olho bom. Ele rugiu como um animal enfurecido e atacou. Fiz a ltima
pedra atravessar seus dentes da frente e descer pela goela.
Foram todos arremessos impossveis, Makin, de verdade. Nem sorte, impossvel.
Nunca mais arremessei assim desde ento.
Bem, eu sa do seu caminho enquanto ele tropeava por dez metros antes de
cair, sufocado. Acertei aquela terceira pedra em cheio na traqueia.
Catei a maior pedra que consegui naquele muro ali e fui atrs dele. Price
provavelmente morreria asfixiado por conta prpria. Estava com aquela aparncia
prpura dos enforcados quando cheguei at ele. Mas no gosto de deixar as coisas na
mo do destino.
Ele estava de quatro, cego. E fedia, imundo de todas as formas possveis. Quase
senti pena do filho da puta.
Eu no imaginava esmagar seu crnio de primeira. Mas esmaguei. Makin
desmontou do cavalo e ficou com lama at os tornozelos. Podamos entrar.
No sentia mais a chuva. Sentia o calor daquele dia em que matei Price. A
suavidade das pedras pequenas, o peso abrutalhado da rocha que usei para encerrar o
trabalho.
Foi Corion que guiou minha mo. E acho que foi Sageous que ps Price contra
mim. Meu pai considera que o bruxo dos sonhos serve a ele, mas no bem assim.
Sageous viu que Corion tinha afundado suas garras em mim, viu que havia perdido o
herdeiro de seu novo peo, ento ele contaminou os sonhos de Price e atiou o dio
que havia dentro dele. No precisou se esforar muito.
Eles jogam conosco, Makin. Somos peas em seu tabuleiro.
Ele sorriu, com lbios rasgados. Somos todos peas no tabuleiro de algum,
Jorg. Ele foi at a porta da taberna. Voc jogou comigo, com muita frequncia.
Eu o segui rumo ao cheiro forte do salo principal. A lareira continha apenas
uma pea de lenha, que chiava e produzia mais fumaa do que calor. O pequeno bar
atendia uma dzia de fregueses. Pela aparncia deles eram todos locais.
Ah! O aroma de camponeses molhados. Atirei meu manto ensopado sobre a
mesa mais prxima. Nada se compara.
Cerveja! Makin puxou um banco. Um claro comeou a se abrir a nossa volta.
Carne tambm, eu disse. De vaca. Da ltima vez que vim aqui nos serviram
cachorro assado e o taberneiro morreu. Isso tudo era verdade, ainda que no nessa
ordem.
Ento, disse Makin. Esse Corion apenas estalou os dedos no primeiro encontro
e voc e o nubano se ajoelharam. O que pode impedir que ele faa o mesmo de
novo?
Talvez nada.
At um apostador gosta de ter chances, prncipe. Makin pegou duas jarras de
vidro com a criada, ambas com o colarinho transbordando.
Cresci um pouco desde o ltimo encontro, eu disse. Sageous no me achou to
bobo assim.
Makin deu um gole profundo.
E tem mais. Eu roubei algo daquele necromante. Senti o gosto amargo daquele
corao em minha lngua. Dei um gole em minha jarra. Arranquei um bom pedao
para mastigar. Eu possuo uma pitada de magia aqui dentro, Makin. Seja l o que for
que corra nas veias daquela vadia que matou o nubano, e daquela garotinha tambm,
a que corria com monstros, sabe-se l o que a fazia brilhar - bem, eu carrego um
pouco dessa fasca agora.
Makin limpou a espuma do bigode que deixara crescer no calabouo. Ele deixou
aparente sua descrena ao erguer, minimamente, uma sobrancelha. Eu puxei minha
camisa. Bem, no era exatamente minha camisa, mas algo que Katherine deve ter
escolhido para mim. No lugar em que a faca do meu pai encontrou minha pele, uma
fina cicatriz negra jazia sobre meu trax sem pelos. Veias pretas saam do ferimento e
se espalhavam sobre minhas costelas e minha garganta.
Meu pai pode ser tudo, mas ele no um inepto, eu disse. Eu devia estar
morto.
44
Corri at os portes do castelo. Trajava minha armadura, salvo algumas peas que
eu perdera no torneio, mas ela no estava me pesando. Ouvi o chiado das flechas
sobre mim. Outros homens caram. Os melhores arqueiros da Guarda da Floresta
abriram caminho.
Eu me perguntava para onde estava indo e por qu. Eu deixara Corion na lama.
Ele morreu, e aquilo era como uma flecha extrada do ferimento, como um par de
grilhes rompidos, como um n de forca que se desfaz num pescoo roxo.
Algumas flechas me procuravam, disparadas por guardas nas plataformas do
Assombrado. Uma delas se rompeu no peitoral da armadura. Mas, de uma maneira
geral, eles tinham alvos demais para escolher naquela confuso na arena do torneio e
no se preocupariam com um cavaleiro solitrio invadindo o castelo.
Deixei meus ps me levarem. A sensao de vazio no me abandonava. Onde
antes havia uma voz interna me incitando agora s se ouvia o rudo de minha
respirao.
Encontrei uma resistncia mais sria na rua, enquanto corria at os portes, fora
do alcance dos homens da guarda. Soldados haviam se reunido, entre as tabernas e os
curtumes. Eles fecharam a rua pela qual passei na primeira vez que visitei O
Assombrado com o nubano. Eu era um menino procurando por vingana.
Vinte homens bloqueavam o caminho, lanceiros e um capito trajando os
adornos de Renar, e o brilho opaco de sua cota de malha. Atrs deles eu podia ver
Gorgoth sustentando a grade levadia. Mais soldados se espremiam no ptio da corte.
No havia motivo aparente para que eles no matassem a leucrota e selassem os
portes.
Eu me aproximei dos lanceiros e percebi que no tinha flego para lutar com
eles. Um turbilho de vento glido rodopiou entre ns, trazendo a chuva.
O que fazer? De repente, o impossvel parecia ser... impossvel.
Olhei para trs. Dois sujeitos vinham batendo os ps pelo caminho que eu
trilhara. O primeiro era grande demais para ser qualquer um seno Rike. Eu via a
cauda de uma flecha, adornada com penas, saliente na articulao de seu ombro
esquerdo. Lama e sangue em excesso dificultavam a identificao do segundo homem
pela armadura que usava. Mas era Makin. Eu soube pelo jeito que ele empunhava sua
espada.
Olhei para os soldados, para a linha perfeita formada pelas pontas de suas
lanas.
O que haveria de acontecer?
Mais uma pancada de chuva.
A Casa Renar?, o capito falou. Ele parecia indeciso.
Eles no sabiam! Esses homens saram do castelo sem uma pista de que tipo de
ataque estavam enfrentando. preciso amar a nvoa da guerra.
Eu raspei minha manopla no peitoral da armadura para mostrar o braso de
armas mais claramente. Santurio!
Alain Kennick, aliado da Casa Renar, procurando santurio. Apontei de volta
para Rike e Makin. Eles querem me matar!
Talvez a morte de Corion no tenha retirado toda a perversidade que existe em
mim. De maneira alguma.
Corri em direo linha e eles abriram espao para mim.
Eles no passaro por ns, milorde. O capito concedeu uma breve reverncia.
Esteja certo que no, eu disse. E no parecia mesmo que eles passariam.
Eu me apressei, at os portes, sentindo finalmente o peso de minha armadura.
O ar mantinha um certo odor estranho, encorpado e carnudo, toucinho queimando
na fogueira. Aquilo trouxe Mabberton de volta memria, o lugar onde queimamos
aqueles camponeses tempos atrs.
Eu podia ver esquadres de soldados se formarem no grande ptio alm dos
portes. Homens usando partes de armaduras. Uns portavam escudos, outros no,
muitos deles embriagados de cerveja pelo dia do torneio, sem dvida.
Ao me aproximar, vi os cadveres. Troos carbonizados, queimando em sua
prpria gordura derretida, como corpos num funeral de indigentes com muito pouca
lenha para transform-los em cinzas.
Gorgoth ficou de costas para mim. Flechas perfuravam seus braos e pernas. A
princpio eu o imaginei como uma esttua, mas conforme cheguei perto vi o tremor
naquelas placas descomunais de msculos em suas costas.
Passei por ele, agachando-me para transpor a grade. Uma centena de homens no
ptio olhou para mim. Gorgoth cerrava os olhos com fora. Ele me observava por
duas fendas estreitas. Novas flechas se projetaram do seu peito, entre as garras de sua
caixa torcica deformada. O sangue borbulhava em volta das flechas quando ele
expirava o ar e era sugado quando ele inspirava.
Chutei uma cabea em chamas. Ela rolou para longe do corpo carbonizado.
Voc tem um anjo da guarda infernal, Gorgoth, eu disse. Cada soldado que
correu at ele ardia agora em chamas.
Ele deu o mais sutil aceno de cabea. O garoto. Logo ali.
Acima de Gorgoth, agachado em um dos vos entre as traves do portal, Gog
espreitava. As rbitas negras que lhe serviam de olhos agora queimavam como
carvo em brasa sob o fole de um ferreiro. Seu corpo magrelo havia se contorcido
mais do que eu acreditava ser possvel. Umas poucas flechas cravejaram a estrutura
de madeira sua volta.
O pequenino fez tudo isso? Eu pisquei. Filho da me.
Gorgoth tinha me dito que as mudanas chegariam rpido demais para Gog e seu
irmo caula. Mudanas rpidas e perigosas demais para se suportar.
Derrubem esse co raivoso, j. A voz ressonou atrs de mim. Era bastante
familiar. Soava como meu pai.
Disparem nele.
No era uma voz que se desobedecesse. Mas ningum havia disparado em mim
ainda, ento eu dei as costas a Gorgoth e encarei O Assombrado.
Conde Renar estava frente da torre principal, flanqueado por duas dzias de
homens armados. esquerda e direita, bandos de lanceiros. Outros guardas
estavam chegando de seus postos nas ameias em cima dos portes.
Eu esbocei um cumprimento. Ol, tio.
S havia visto Renar em um retrato antes de entrar na arena do torneio, a
melhor oportunidade que tive de v-lo at ento. Seu rosto era mais fino, seus
cabelos mais longos e menos grisalhos; de mais a mais, ele era a imagem escarrada de
seu irmo mais velho e, para falar a verdade, no era muito diferente deste que vos
fala. Ainda que bem menos bonito, claro.
Sou Honrio Jorg Ancrath. Eu tirei meu elmo e discursei aos homens ao meu
redor. Herdeiro do trono de Renar. No era estritamente a verdade, mas seria uma
vez que eu matasse o filho remanescente do conde. Onde quer que o primo Jarco
estivesse ele certamente no estava em casa ou eu teria visto suas cores no torneio.
Ento deixei que eles o imaginassem morto. Deixei que eles o imaginassem na
mesma pira na qual eu incendiei Marclos.
Voc. O conde convocou um homem ao seu lado. Faa um buraco na cabea
desse bastardo ou eu mesmo cortarei a sua!
Esse assunto entre mim e meu tio. Eu fixei meu olhar no arqueiro. Quando
eu acabar vocs sero meus soldados, minha vitria ser sua. No se derramar mais
sangue.
O homem ergueu sua balestra. Senti uma onda de calor queimando minha nuca,
como se a porta de uma fornalha se abrisse atrs de mim. Pstulas surgiram em seu
rosto, como bolhas numa sopa fervente. Ele caiu, aos gritos, e seus cabelos entraram
em chamas antes que ele atingisse o solo. Os homens ao redor dele pularam para
trs, aterrorizados.
Vi o fantasma deixar seu corpo enquanto ele se contorcia, ardendo, e pedaos de
sua carne grudarem no cho de pedras. Vi seu fantasma e o alcancei. Alcancei-o com
minhas mos e com o poder amargo dos necromantes. Senti a energia negra deles
pulsando em meu peito, esvaindo-se pela cicatriz da facada que levei de meu pai.
Dei uma voz ao fantasma do homem morto, e dei voz aos fantasmas que
pairavam como fumaa em volta dos corpos aos meus ps.
Os soldados minha frente tremiam, plidos. As espadas caram e o horror
saltou de um homem para outro, feito chama.
Com os gritos sobrenaturais dos homens queimados ecoando ao meu redor,
segurei minha espada com as duas mos e corri at o Conde Renar, meu tio, o
homem que enviou assassinos atrs da mulher e dos filhos de seu irmo. E eu
adicionei meu prprio urro, porque com ou sem a influncia de Corion a necessidade
de mat-lo me corroa como cido.
49
E aqui estou, sentado na torre alta do Assombrado, no espao vago que Corion fez
para si. Um fogo estala na lareira, peles cobrem o assoalho, clices sobre a mesa,
vinho na jarra. E livros, claro. A cpia de Plutarco que carreguei na estrada agora
repousa em prateleiras de carvalho, com outros sessenta tomos esfregando seus
ombros de couro. um comeo tmido, mas at mesmo as prateleiras cresceram de
uma pequena semente.
Estou sentado janela. O vento foi detido atrs de uma dzia de painis de
vidro, cada um com um palmo de espessura, chumbados juntos em molduras em
formato de diamante. Os vidros vieram em carros de boi atravs das montanhas,
desde a Costa Equina, no incrvel? Os thurtos deixam-nos to lisos que voc pode
at procurar, mas dificilmente encontrar uma distoro.
Estudo uma pgina na minha frente, a pena em minha mo e a tinta na sua
ponta cintilando de negras possibilidades. Serei eu visto sem distoro? Olhando
atravs dos anos, o quanto tudo ser distorcido?
O nubano me disse que seu povo produzia tinta moendo segredos. Aqui estou
desembaraando-os e tem sido um trabalho lento.
Fora, no ptio, vejo Rike, uma figura corpulenta reduzindo a anes os soldados
que ele est treinando. Disseram-me que ele arrumou uma esposa. No me
aprofundei no assunto.
Abro as pginas minha frente. Um escriba ter que copi-las. Escrevo em
garranchos, uma fina linha contnua, a linha que eu tenho seguido em todos os
lugares, o tempo todo.
Vejo minha vida se abrir no tampo da mesa. Vejo o curso dos meus dias, como eu
girei por a, sem rumo, como um pio. Corion pode ter guiado meu destino, mas a
jornada, a assassina, aleatria e destroada jornada sempre foi minha.
Gog est agachado perto do fogo. Ele cresceu, e no apenas em altura. Ele cria
formas nas chamas e as faz danar. Brinca com elas at se entediar. E ento volta
para seu soldado de madeira, fazendo-o marchar, levando-o para todos os lados,
investindo contra as sombras.
Penso muito na estrada. No com tanta frequncia agora, mas eu ainda penso
nela. Penso na vida que comea a cada manh, nas caminhadas, indo atrs de sangue,
dinheiro ou sombras. Foi um outro eu que desejou essas coisas, um outro eu que
desejou destruir tudo pelo prazer de destruir, pela emoo do que poderia vir pela
frente. E para ver quem haveria de se importar.
Eu era como o soldadinho de madeira de Gog, correndo em furiosos crculos sem
sentido. No direi que me arrependo das coisas que fiz. Mas estou farto delas. No
repetiria aquelas escolhas. Eu me lembro delas. H sangue nestas mos, nestas mos
manchadas de tinta, mas eu no sinto o pecado. Penso se ns no morremos todos os
dias. Se no nascemos a cada amanhecer, um pouco mudados, um pouco adiante em
nossa prpria estrada. Quando muitos dias ficam entre voc e a pessoa que voc foi,
vocs no se reconhecem. Talvez seja isso o que significa amadurecer. Talvez eu
tenha amadurecido.
Eu disse que ao chegar aos quinze anos seria rei. E eu sou. No precisei matar
meu pai para ter uma coroa. Tenho O Assombrado e as terras
O nubano me disse que seu povo produzia tinta moendo segredos. Aqui estou
desembaraando-os e tem sido um trabalho lento.
Fora, no ptio, vejo Rike, uma figura corpulenta reduzindo a anes os soldados
que ele est treinando. Disseram-me que ele arrumou uma esposa. No me
aprofundei no assunto.
Abro as pginas minha frente. Um escriba ter que copi-las. Escrevo em
garranchos, uma fina linha contnua, a linha que eu tenho seguido em todos os
lugares, o tempo todo.
Vejo minha vida se abrir no tampo da mesa. Vejo o curso dos meus dias, como eu
girei por a, sem rumo, como um pio. Corion pode ter guiado meu destino, mas a
jornada, a assassina, aleatria e destroada jornada sempre foi minha.
Gog est agachado perto do fogo. Ele cresceu, e no apenas em altura. Ele cria
formas nas chamas e as faz danar. Brinca com elas at se entediar. E ento volta
para seu soldado de madeira, fazendo-o marchar, levando-o para todos os lados,
investindo contra as sombras.
Penso muito na estrada. No com tanta frequncia agora, mas eu ainda penso
nela. Penso na vida que comea a cada manh, nas caminhadas, indo atrs de sangue,
dinheiro ou sombras. Foi um outro eu que desejou essas coisas, um outro eu que
desejou destruir tudo pelo prazer de destruir, pela emoo do que poderia vir pela
frente. E para ver quem haveria de se importar.
Eu era como o soldadinho de madeira de Gog, correndo em furiosos crculos sem
sentido. No direi que me arrependo das coisas que fiz. Mas estou farto delas. No
repetiria aquelas escolhas. Eu me lembro delas. H sangue nestas mos, nestas mos
manchadas de tinta, mas eu no sinto o pecado. Penso se ns no morremos todos os
dias. Se no nascemos a cada amanhecer, um pouco mudados, um pouco adiante em
nossa prpria estrada. Quando muitos dias ficam entre voc e a pessoa que voc foi,
vocs no se reconhecem. Talvez seja isso o que significa amadurecer. Talvez eu
tenha amadurecido.
Eu disse que ao chegar aos quinze anos seria rei. E eu sou. No precisei matar
meu pai para ter uma coroa. Tenho O Assombrado e as terras de Renar. Tenho
aldeias e vilas, e as pessoas me chamam de rei. E se as pessoas chamam voc de rei
isto o que voc . No nada de mais.
Na estrada, eu fiz coisas que os homens dizem ser o mal. Cometi crimes. Eles
falam com frequncia a respeito do bispo, mas houve muitos outros, alguns mais
perversos, outros mais sangrentos. J me perguntei se Corion ps essa doena em
mim, se fui a ferramenta e ele o arquiteto dessa violncia e crueldade. J me
perguntei se ao cortar sua cabea, se ao ter me transformado de um menino em um
homem, tornei-me uma pessoa melhor. Eu me pergunto se poderei ser o homem que
o nubano queria que eu fosse, o homem que o tutor Lundist esperava que eu fosse.
Tal homem teria demonstrado ao Conde Renar a misericrdia de uma morte
rpida. Tal homem saberia que sua me e seu irmo no pediriam por nada alm
disso. Justia, no vingana.
De minha janela, posso ver as montanhas. Alm delas, est Ancrath e o Castelo
Alto. Meu pai e seu novo filho. Katherine em seus aposentos, provavelmente me
odiando. E mais alm, Gelleth, Storn e um mosaico de terras que foram uma vez o
Imprio.
No ficarei aqui para sempre. Chegarei ltima pgina e descansarei minha
pena. E quando acabar sairei por a e isto tudo ser meu. Eu disse a Bovid Tor que aos
quinze eu seria rei. Eu jurei sobre as suas entranhas fumegantes. Agora estou dizendo
que aos vinte anos serei imperador. Agradea por eu estar jurando sobre esta pgina.
Deso para ver Renar. Eu o mantenho na menor das celas do calabouo. Todos
os dias permito que ele implore por sua morte e ento eu o deixo com sua dor. Acho
que quando acabar de escrever minha histria deixarei que ele encontre o fim que
procura. No quero, mas sei que devo. Eu amadureci. O velho Jorg o manteria aqui
para sempre. Eu amadureci, mas, seja qual for o monstro que deve haver em mim,
sempre fui eu, minha escolha, minha responsabilidade, minha maldade, se voc
preferir.