Linguagem e Estilo de Machado-Eca-Simoes - Internet-Final
Linguagem e Estilo de Machado-Eca-Simoes - Internet-Final
Linguagem e Estilo de Machado-Eca-Simoes - Internet-Final
Academia Brasileira
de Letras
Linguagem e Estilo de
Machado de Assis,
Ea de Queirs e
Simes Lopes Neto
Academia Brasileira de Letras
Aurlio Buarque
de Holanda Ferreira
Coleo Antnio de Morais Silva
ESTUDOS DE LNGUA PORTUGUESA
Linguagem e Estilo
de Machado de Assis,
Ea de Queirs e
Simes Lopes Neto
PUBLICAES DA ABL
Produo editorial
Monique Mendes
Projeto grfico
Victor Burton
Editorao eletrnica
Estdio Castellani
Catalogao na fonte:
Biblioteca da Academia Brasileira de Letras
REVISO
DIGITAO
Joo Barcellos
Sumrio
Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XI
MACHADO DE ASSIS
Linguagem e Estilo de Machado de Assis . . . . . . . . . . . . . . . . 3
EA DE QUEIRS
Linguagem e Estilo de Ea de Queirs. . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Glossrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
Aurlio Buarque
de Holanda Ferreira
Prefcio
I Linguagem
Com aquele seu jeito de dizer muito em poucas palavras, o Sr. Tris-
to da Cunha escreveu uma grande verdade a respeito de Machado de
Assis: Ele era sutil e opulento. Sentem-se na sua prosa os tesouros do
passado, do presente e do futuro.1
Realmente: no preciso um contacto ntimo com o escritor para
notar-se como ele soube fixar muito do que a boa tradio lingstica
lhe forneceu, atravs de aturada leitura dos clssicos, aliado ao esprito
da lngua do seu tempo, e com ligeiros toques de alguma coisa que pa-
recia transcender do momento, projetar-se um pouco alm. Tudo isso
a servio de um dos melhores estilos que j houve em portugus.
Se, por um lado, em seus livros se nos deparam expresses cadas
em desuso, arcasmos da gema, que nem sempre lhe foi dado renovar,
reflete-se neles, por outro, a linguagem da poca, e neles se adivinha
algo de novo para a poca.
19 Apud Sousa da Silveira, Lies de Portugus, 3.a ed., Rio, 1937, p. 31. Muitos
dos trechos citados de Machado de Assis acham-se neste preciosssimo livro; mas
confesso que os colhi do original.
20 Jlio Nogueira, op. cit., p. 302.
21 Joo Ribeiro, op. cit., p. 10 e segs.
18 Aurl io Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
25 V. Sotero dos Reis, Postilas de Gramtica Geral, 2.a ed., Maranho, 1868, pp.
110-11.
26 Leoni, Gnio da Lngua Portuguesa, Lisboa, 1858, vol. I, p. 248.
Li ngu agem e esti lo de Mac ha do de A s s i s 23
27 Mrio Barreto, Novssimos Estudos da Lngua Portuguesa, 2. milh., Rio, 1913, p. 333.
28 Carlos Gis, op. cit.
Li ngu agem e esti lo de Mac h a do de A s s i s 25
(Id., 299); a cabea do Rubio meia inclinada (Id., 67); casou meia de-
funta (V. H., 97); Eu no, que j sou meia moa (D. C., 112). Ape-
sar do que diz Silva Tlio29, querendo estabelecer distino entre casa
meia feita e meio feita, Machado, como os clssicos em geral, no cuidou
dessa distino. Fez a concordncia por atrao, pura anomalia sint-
tica, como reconhece Sousa da Silveira.30 E contra Silva Tlio esto,
alm do autor das Lies de Portugus, Herclito Graa31, Mrio Barre-
to32, Epifnio Dias33 e muitos mais.
Exemplos de silepse encontramos vrios em sua obra quase sem-
pre silepse de pessoa: Quando andvamos os trs (Q. B., 3); Dizem
que os cariocas somos pouco dados aos jardins pblicos (Crt., 140) ...
Nunca emprega dentro em, parece serem; sempre parecem ser, dentro de.
Nas oraes interrogativas usa, indiferentemente, que ou o que, este,
porm, com menor freqncia. Figueiredo levou a vida a combater o
o que interrogativo, que Herclito Graa34 e Said Ali35 defendem valen-
temente.
Todo, no sentido de cada, ou qualquer, usa-o ora acompanhado de
artigo, ora no. Tudo tambm aparece com o pronome o ou sem ele.
So constantes, em seus escritos, os casos de cruzamento ou con-
taminao sinttica, fenmeno a que alguns gramticos chamam de
quiasma. Lembra-me de o ver erguer-se est na p. 140 de Brs Cubas.
(O cruzamento de dois tipos sintticos lembro-me de ver e lembra-me ver
produziu um terceiro, que participa dos dois outros.) Assim: Costu-
mavam de nascer (Poes., 209) de costumavam nascer e tinham o costume de
se d, por exemplo, com o posto que: muito raramente o ainda que; mais
raro o embora e o apesar de. V-se por a, mais uma vez, a sua preferncia
pelas formas ao gosto clssico.
O mesmo em relao frase ao p de: contam-se pelos dedos po-
der-se- dizer com algum exagero os casos de junto, perto de. Atentei
bem nesse fato.
No captulo relativo ao estilo ser isso estudado mais detidamente.
Personagem aparece ora no masculino, ora no feminino. Masculino:
Q. B., 204; B. C., 225; V. H., 101; P. A., 19; C. F., 143; A Semana, 26.
Feminino: A Mo e a Luva, 118; N. R., 67.
ordinariamente correto no empregar a crase. No a usa nas ex-
presses a distncia (sem complemento) e a casa (quando se trata da casa
do indivduo que sujeito da orao). So muitssimos os exemplos.
A erro de reviso atribuo a crase que aparece algumas vezes na ltima
locuo, como em Helena, 49: H. sem D., 136; Q. B., 10; R. de C. V., 51.
Muito pessoal a sua pontuao. Abusa do ponto-e-vrgula, que no
raro substitui os dois-pontos, como neste trecho: Tenho uma pena;
ser obrigado a viver separado de minha me(R. de C. V., 65). Comu-
mente usa, tambm, a vrgula por dois pontos; os exemplos contam-se
s centenas.
Nada obstante a sua preocupao de escrever correto preocupa-
o que veio a fazer dele um dos clssicos da lngua portuguesa era
natural cometesse numerosos deslizes, que pouco avultam, entretanto,
na extensa obra do escritor.
At nos seus livros mais recentes se encontram pronomes mal colo-
cados. Em Q. B., 231: Nota que tratava-se justamente de um crdito...
num dilogo, mas de um homem culto. E Machado, como j fiz ver,
era sempre correto nos dilogos. H na mesma obra, p. 277: Sucedeu
que as caras encontraram-se no ar; em D. Casmurro, 218-219: At que tio
Cosme ergueu-se; em Esa e Jac, 23: Tanto que a pessoa pediu-lhes que
falasse cada um por sua vez; em H. sem D., 165: Sonhei que o Diabo
28 Aurl i o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
II Estilo
A ningum melhor do que a Machado de Assis se ajustar a conhe-
cida sentena de Buffon a respeito do estilo. Sentena que Remy de
Gourmont modifica na forma sem alterar na essncia, pois depois de
afirmar Le signe de lhomme dans luvre intellectuelle, cest la
pense. La pense est lhomme mme que conclui: Le style est la
pense mesme.38 Por uma fcil deduo silogstica chega-se evidn-
cia de que h perfeita identidade entre este ltimo conceito e o citads-
simo o estilo o homem, de Buffon.
No sei de escritor em quem o estilo seja mais vivo reflexo da per-
sonalidade do que nesse estranho, nesse raro criador do D. Casmurro,
sobre o qual se tem dito, nos ltimos tempos, tanta verdade e tants-
simas heresias. Procurando auscult-lo atravs de sua obra, sentire-
mos, a cada passo, o tmido, o indeciso, o hesitante, o descrente, o
sem arrebatamentos que ele foi, o seu receio de afirmar, a sua dvida,
a sua inquietao, o seu desencanto dos homens e das coisas. Os li-
vros constituem-lhe o retrato em tamanho natural, o retrato perfeito
mais do que a simples fotografia , o retrato que, como escritor,
ele, inconscientemente talvez, levou a vida a compor e retocar, at
oferec-lo ntido e impecvel no Memorial de Aires, e que, no entanto,
como homem, obstinadamente se recusou a fornecer curiosidade
mesmo dos mais ntimos. So dele estas palavras, pgina 190 do
Memorial: Como esses, referiu Aguiar outros hbitos caseiros da
consorte, que ouvi com agrado. No seriam grandemente interessan-
tes, mas eu tenho a alma feita em maneira que dou apreo ao mnimo, uma vez que
seja sincero. No diria isto a ningum cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me recebes
com pacincia, e alguma vez com satisfao, a ti, amigo velho, a ti digo e direi, ainda
que me custe, e no me custa nada. O Conselheiro Aires admirvel intr-
prete de Machado de Assis...
Alm do retrato psicolgico, a sua obra nos apresenta, por assim di-
zer, retratos autobiogrficos, de vrias fases, uns superpondo-se aos ou-
tros, at o definitivo, o da ltima etapa, que, com ser o mais fiel, e aquele
cuja similitude com o original mais facilmente comprovvel, no im-
pede tal como se d com relao aos palimpsestos que custa de es-
foro se distingam, esbatidos embora, os retratos anteriores.
Admira, por tudo isso, que s muito recentemente se tenha come-
ado a conhecer de maneira segura o homem, e principalmente a
vida, quando Machado de Assis uma e outro fixou nas pginas de
seus livros. que foi necessria a ao do tempo para fazer-se a his-
tria dessa existncia e completar a anlise dessa alma. Agora, que
Machado principia a distanciar-se de ns, que tal histria se vai fa-
zendo, com preciso sempre crescente, e vai-se aperfeioando tal
anlise. viso das geraes de hoje revelam-se fatos, verdades, que
escaparam, por motivos diversos, aos contemporneos do mestre.
Falou-se longamente de Machado de Assis como de um enigma; tra-
taram-no, at h pouco, como um tmido desencantado, de psicolo-
gia impenetrvel nos seus pormenores, e de origem obscura, indeci-
frvel, no confessada de viva voz, nem pela palavra escrita. Nin-
gum queria ver na obra do esquisito o seu grande confessionrio;
acreditava-se que muito pouco do autor estava nela. Quase tudo se-
ria imaginao; aquele homem fechado e difcil no iria andar-se ex-
pondo assim... E, deixando de parte a vida, considerada quase um ca-
ptulo em branco, e evitando largas sondagens no campo incerto da
alma, os estudiosos de Machado voltavam-se para o seu humour, e al-
gumas vezes para o seu purismo.
D. Lcia Miguel Pereira foi o primeiro olhar agudo que, graas a
minucioso estudo da obra machadiana, conseguiu, de maneira to n-
tida quanto possvel, vislumbrar, sob retratos mais recentes, os mais
antigos, at chegar ao primeiro, e, tomando esse ponto de partida, re-
constituir, pacientemente, e com rara intuio, a misteriosa existncia
Li ngu agem e esti lo de Mach a do de A s s i s 33
feita pelos velhos retricos que todavia tanto deveria ler em esti-
lo simples, temperado e sublime, ao sabor dos assuntos. Nada disso.
Escrevendo cartas, romances, ou discursos, era sempre aquele escri-
tor simples e correto, desnudo, gracioso, maravilhosamente lmpi-
do41, de uma sobriedade quase frugal quase, porque no exclua
os tons mais quentes, as cores mais vivas, certas ousadias, algumas
vezes. Estilo vegetariano, poder-se-ia dizer; mas de um vegetarianis-
mo com leite e ovos.
Se no vibrava diante dos acontecimentos, se a vida no lhe oferecia
aspectos dignos do seu entusiasmo, da sua paixo, era natural que o es-
tilo se comportasse sempre com essa imperturbvel serenidade. (As
excees sero rarssimas, e delas daremos exemplos no correr deste
estudo.) No podia haver excesso de claridade numa casa cujas portas
no se abriam ao largo sol. Nela se sentiria por vezes o cheiro de mofo
prprio das habitaes fechadas se a luz do esprito machadiano no
se lhe irradiasse por todas as dependncias. Luz intensa, mas muito ve-
lada, que no di na vista, como em obedincia ao desejo polido do es-
critor de no incomodar a ningum... Luz de um esprito em que h
uma letargia indefinvel, a sonolncia do homem trancado em si mes-
mo, incapaz de reagir contra o espetculo da sua vontade paralisada,
gozando at com lucidez a prpria agonia42.
Curioso o contraste, o vivo contraste, entre os estilos de Macha-
do e Flaubert, ambos epilpticos: enquanto o primeiro to discipli-
nado, medido, exato, tendo sabido reagir contra os excessos do ro-
mantismo, ele que nasceu dentro do romantismo do segundo afir-
ma o Dr. Jean Fretet: La mme mesure manque son style; agres-
sivement errupe (sic) ou laborieusement potique, sa phrase ne
traduit jamais quun seul got: celui de lexcs. (...) La manire d-
43 Dr. Jean Fretet, Flaubert: lpilepsie et le style, in Europe, n.o 196, 15 de abril
de 1939, p. 466.
44 Tristo da Cunha, O Ouro das Horas, in Revista do Brasil, n.o cit., p.
127.
45 Gabriel Brunet, apud Tristo da Cunha, art. cit., p. 126.
36 Aurl io Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
vagas e surdas (D. C., 52); olhos teimosos (V. H., 7); grandes olhos
sonsos e agudos (Id., 15); olhos cuidosos (Id., 62); olhos derramados
(Id., 87); olhos meigos e submissos (Id., 108); lindos olhos redondos e
namorados (Id., 194); Ele enterrou-me pela conscincia dentro um
par de olhos pontudos (Id., 222); os meus olhos longos, constantes (D.
C., 97); Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, no se descre-
vem; no eram oblquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lcidos. (Id.,
151); olhos dorminhocos (Id., 17); olhos perscrutadores e sagazes (Hele-
na, 7); Uns olhos to lcidos... (B. C., 105); Os olhos, que eram tra-
vessos, fizeram-se murchos (Id., 124); olhos pedintes (Outras Relquias,
21); olhos amotinados que maravilha! (Q. B., 157); E ficou a rir e
a olhar, com longos olhos vidos e felizes (P. R., 106); olhos senhoris
(Poesias, 31); olhos tmidos (E. e J., 315); os dois seguiam com os
olhos espraiados e a cabea alta (Id., 180).
Outras vezes faz um desconcertante casamento de adjetivos, como
se v na p. 11 de Outras Relquias: Eram robustas e descaradas.
A mesma originalidade se lhe nota quanto ao emprego de certos
verbos. Abra-se o D. C., p. 34: Uma cigarra que ensaiava o estio.
Nas Histrias sem Data, 186: Vivia miseravelmente, costeando a fome.
p. 118 do B. C.: Era agora pouco buscada a loja. Em O. R., 12: desam-
parou tudo, casa e marido. Em D. C., 184: E porque a palavra me es-
tivesse a pigarrear na garganta...
Notemos agora o efeito que d ao seu estilo o hbito de transitivar
certos verbos intransitivos: A verdade no saiu, ficou em casa, no co-
rao de Capitu, cochilando o seu arrependimento. (D. C., 144); ... olhando
toa, lendo gazetas ou cochilando a viglia de uma noite sem cama (E. e J.,
189); o co trepava-lhe s pernas para dormir a fome (Q. B., 356); A
filha estava ainda qual a deixamos no captulo XLIII, com a diferena
que os quarenta anos vieram. Quarentona, solteirona. Gemeu-os consi-
go, logo de manh... (Id., 150); A Sandice ainda gemeu algumas splicas,
grunhiu algumas zangas (B. C., 28); ... um pajem que nos deixava gazear a
Li ngu agem e esti lo de Mac ha do de A s s i s 41
obter dinheiro (linha 26). Trs vezes em 11 linhas! Diante disto nem
interessam outros exemplos, como no mesmo livro, 16; em D. C., 67,
79, 96, 160; B. C., 348; Q. B., 345; V. H., 112; H. sem D., 41; M. de A.,
31; P. A., 1, 64... Metido em si mesmo: s em Q. B. vem s pp. 72, 150,
347, e outras. Advertir, na acepo de notar; ao p de, posto que, dar por si, pe-
gar em si so outros tantos lugares-comuns de Machado de Assis...
Por falar em lugar-comum: j foi dito que Machado desprezava
esse cmodo recurso. Em B. C., 51, l-se: Gastei trinta dias para ir do
Rossio Grande ao corao de Marcela, no j cavalgando o corcel do ce-
go desejo, mas o asno da pacincia, a um tempo manhoso e teimoso.
Que, em verdade, h dois meios de granjear a vontade das mulheres: o
violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de
Leda e a chuva de ouro de Dnae, trs inventos do padre Zeus, que,
por estarem fora da moda, a ficam trocados no cavalo e no asno. J
compreendia o ridculo das citaes de coisas da mitologia, de que
tanto se fez praa aqui at h to pouco tempo...
O leitor h de ter notado a metfora contida no trecho acima. As
metforas e as imagens so numerosas na obra de Machado. Numero-
sssimas sem hiprbole. Abramos o D. C.: Os amigos que me res-
tam so de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos
campos-santos (p. 4); Levantou-se com o passo vagaroso do costu-
me, no aquele vagar arrastado dos preguiosos, mas um vagar calcula-
do, deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqn-
cia, a conseqncia antes da concluso (pp. 11-12); teimava em es-
conder os saldos da juventude (p. 20); Conhecia as regras do escre-
ver, sem suspeitar as do amor; tinha orgias de latim e era virgem de
mulheres (p. 42); depois a conversa entrou a cochilar e dormir (p.
55); Pdua roa a tocha amargamente (p. 89); Olhos de ressaca?
V, de ressaca. o que me d idia daquela feio nova. Traziam no
sei que fluido misterioso e enrgico, uma fora que arrastava para den-
tro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para no ser
Li ngu agem e esti lo de Mac h a do de A s s i s 43
49 Lcia Miguel Pereira, Machado de Assis, 2.a ed., So Paulo, 1939, p. 228.
Li ngu agem e esti lo de Mac h a do de A s s i s 51
te, por assim convir natureza do seu estudo o Sr. Peregrino Jnior,
a cuja obra pertence o seguinte trecho: Machado de Assis parecia
descrever movimentos concntricos, interminavelmente, em volta de
certos assuntos, certas imagens, certas palavras...50
Fruto de sua gliscroidia, como observam os dois autores, essa ten-
dncia se reflete, no estilo, em inmeras repeties, intencionais ou vi-
ciosas. O Sr. Peregrino Jnior51 apresenta dezenas de casos, quase to-
dos de viciosas, mais abundantes que as primeiras. Vamos a estas.
Abramos o Q. B., p. 359: No senhor; ele pegou em nada, levantou
nada e cingiu nada. No D. C., p. 50, lemos: Meu senhor, respon-
deu-me um longo verme gordo, ns no sabemos absolutamente nada
dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou
detestamos o que roemos; ns roemos. E logo pgina seguinte: Talvez
este discreto silncio sobre os textos rodos fosse ainda um modo de roer
o rodo. No mesmo livro, p. 72: Eu, posto no avaliasse todo o valor
deste outro elogio, gostava do elogio; era um elogio. Ainda no mesmo, p.
153: Mas a vocao eras tu, a investidura eras tu. Em Q. B., 57-8:
decotava a mulher sempre que podia, e at onde no podia, para mostrar
aos outros as suas venturas particulares. Id., 59: Rico era ainda mui-
to mais do que ela pedia; no pedia riquezas, pedia um esposo. Id., 273:
... e escanhoou vontade, lentamente, amigamente, aborrecidamente. Em
Poes., 301, a repetio existe no s na forma como no sentido, pois o
pleonasmo, usado no trecho, supe a repetio de idia: Mas o siln-
cio amplo e calado/Calado fica; a quietao quieta. p. 16 de P. A.:
Homem de cincia, e s de cincia, nada o consternava fora da cincia.
Em E. e J., 233: A igreja era a mesma; aqui esto os altares, aqui est a
solido, aqui est o silncio. Em V. H., 35: Para onde quer que viras-
se os olhos, via a moeda girando, girando, girando. p. 6 de H. sem D.:
... e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... Em B. C., pp. 19-20:
Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa pla-
ncie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetao de
neve, e vrios animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos
um sol de neve.
Estudando o ritmo de repetio em Machado de Assis, adverte o Sr.
Peregrino que era tal ritmo em geral binrio nos livros da primeira
fase, sendo ternrio nas obras posteriores. D vrios exemplos do lti-
mo, silenciando discretamente quanto ao primeiro, para, ao fim, aven-
tar a hiptese de que esse ritmo ternrio simbolizaria talvez as trs fa-
ses tpicas da crise epilptica: a aura, o ctus, a convulso.52 No que-
ro dar palpite em assunto to elevado; mas desejaria lembrar o seguin-
te: se, como afirma o prprio Sr. Peregrino,53 alguns autores dividem a
crise epilptica em quatro etapas, no ficar prejudicada a interpre-
tao do ilustre escritor? Depois, ele mesmo quem fala do ritmo bi-
nrio, de que, como disse, no deu exemplos, j, talvez, no seu sfrego
interesse de chegar explicao cientfica, que, felizmente, reconhece
que no basta. No basta, s?
No me parece acertado que o ritmo binrio seja peculiar, apenas,
s obras da primeira fase. A cada pgina se encontram, nas outras,
exemplos de tal ritmo. A cada pgina, e, no raro, muitas vezes na mes-
ma pgina. Abro as Memrias Pstumas de Brs Cubas, e logo p. 1 se me
deparam os seguintes: pelo princpio ou pelo fim; o meu nascimento ou a
minha morte; mais galante e mais novo; no a ps no intrito, mas ao cabo.
p. 2: rijos e prsperos; crua e m; bom e fiel, no, no me arrepen-
do...; no houve cartas, nem anncios; E foi assim que cheguei...; foi as-
sim que me encaminhei...; sem as nsias nem as dvidas; pausado e trpe-
go... Passemos p. 3: No digo que se carpisse, no digo que se deixasse ro-
lar pelo cho, convulsa.; com os olhos estpidos, a boca entreaberta; Morto!
Morto!; quero morrer tranqilamente, metodicamente. p. 4: Morri de
uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia...; grandiosa
e til. (Esta pgina s tem 6 linhas.) p. 5: deu um grande salto, es-
tendeu os braos e as pernas; decifra-me ou devoro-te; um medicamento su-
blime, um emplasto anti-hipocondraco; de tamanhos e to profundos efeitos.
p. 6: uma virada para o pblico, a outra para mim; De um lado, filantropia e
lucro; de outro lado, sede de nomeada, o militar e o cnego. Vamos ao Dom
Casmurro: ... que eu conheo de vista e de chapu; falou da lua e dos minis-
tros; A viagem era curta, e os versos pode ser que no fossem inteira-
mente maus; trs ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrom-
pesse a leitura e metesse os versos no bolso; Vi-lhe fazer um gesto..., mas no
passou do gesto (p. 1); reclusos e calados; homem calado e metido consigo
(p. 2). No Quincas Borba l-se: Que era h um ano? Professor. Que agora?
Capitalista; ... e tudo... tudo entra na mesma sensao de propriedade
(p. 1): o esprito e o corao; arrepiou caminho, buscou outro assunto; Que
lhe importa a canoa nem o canoeiro...?; um filho ou uma filha...; Prata,
ouro, eram os metais que amava do corao; um Mefistfeles e um Fausto
(p. 2); primor de argentaria, execuo fina e acabada.; teso e srio; ... so os
ombros... Que ombros!; to lisos! to brancos!; Os braos tambm; oh! os
braos! (p. 3).
Quarenta e seis exemplos em 11 pginas! O difcil encontrar p-
gina em que s haja um caso de ritmo binrio, nesses como nos outros
livros da segunda fase de Machado de Assis. O ternrio ser menos
freqente... Repito que no quero meter-me em assuntos to elevados;
mas, uma pergunta: ao Sr. Peregrino Jnior, que to bem estuda a am-
bivalncia no velho escritor, no lhe parece que, bem pesadas as coisas,
esteja, em parte, nessa ambivalncia a origem do ritmo binrio que,
na realidade, mais freqente do que o outro?
Da hesitao no estilo de Machado de Assis, resultado da ambiva-
lncia, darei aqui alguns exemplos: No havia lua; mas a nossa amiga
54 Aurl io Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
LINGUAGEM
1 Galicismos
... o Purista, ... com a cabeleira srdida a que ainda esto pe-
gados bocados de palha, as meias engelhadas nos pernis escani-
frados, o capelo cor de vinho com o cabeo erguido, a face chu-
pada pelas ansiedades da prosdia, os culos de aro de lato na
ponta do nariz, bem bicudo para picar os galicismos, os braos
atravancados de in-flios clssicos e de dicionrios, e nas ventas,
ainda, a grossa pitada de simonte que ele respeitosamente co-
lheu na caixa de Curvo Semedo! (Cartas Inditas de Fradique Men-
des, p. 42.)
Folheia (o Purista) um grande e largo livro de Histria, e ig-
norando mesmo se a Histria a de Portugal ou a da China, pe
o dedo, ao fim de longa investigao, sobre uma pgina, e d este
resumo final, numa voz cavernosa: Massacre em vez de matan-
a livro funesto! (Ibid., p. 44).
10 Com todo o seu purismo, Filinto Elsio deles no se livrou. Garrett incorreu
em muitos, entre os quais esquissa, deboche, ter lugar, breve (= enfim, em suma), e, at, che-
fe-dobra. Em livro que pouco adiante ser citado, o Sr. A. Tenrio de Albuquerque
reuniu e comentou uns 60 de Camilo e l no figura, por exemplo, tige (em vez de
haste), que se encontra na p. 45 do Amor de Salvao (2.a ed., Porto, 1874): As mes
destes dous meninos, entrevistos e amados com o inocente atrativo do beijo areo na
flor a desatar-se e a enrubescer na tige, tinham sido condiscpulos na educao dum
convento. (O grifo meu.)
11 Figuras de Destaque, 5.o milhar, Lisboa, 1923, p. 143.
12 A bem da Lngua Portuguesa, Lisboa, 1943, p. 203.
Li ngu agem e Esti lo de E a de Q u e i r s 71
atravs de. E tambm no mesmo livro, s pp. 9, 23, 43, 75, 124, 192,
201, 212, 215... Nos Maias, folheando ao acaso o vol. II, vejo atravs de
s pp. 215, 491, 496 e nem um simples atravs. Mostrando o empre-
go exagerado e, ao seu ver, muitas vezes imprprio, que faz Ea daque-
la expresso, Vasco Botelho de Amaral27 cita passagens tiradas das pp.
3, 5, 9 (duas vezes), 11, 15, 18, 20, 23, 38, 70, 100 (duas vezes), 101,
107 e 146 das Cartas Inditas de Fradique Mendes. Ela ainda aparece nas
pp. 150, 253, 288 e naturalmente em outras, pois no percorri de-
moradamente para este fim o volume inteiro. Desses dezenove casos,
note-se nem um de atravs sem o de. to comum no autor a forma
correta, que at se poderia atribuir a erro de reviso, ou perdovel des-
cuido, a presena da outra forma.
ANCESTRAL (por avoengo ou avito). O termo j usadssimo,
est em todos os dicionrios modernos e nos Vocabulrios da Acade-
mia Portuguesa e da Brasileira; estes e alguns daqueles no o do como
galicismo. Segundo Augusto Moreno, ele veio ao francs pela forma
inglesa homnima. A respeito de ancestral, leia-se o que diz Jos Oitici-
ca: Os puristas condenam a palavra. Gonalves Viana julga-a barba-
rismo e de adoo absurda. todavia indispensvel para designar aci-
dentes evolutivos que vo alm da espcie: uma forma ancestral, os an-
tropides ancestrais, os ancestrais do cavalo tinham cascos tripartidos.
Por extenso de sentido passou a designar antepassados e antiqssimo.28
ABANDONADO DO COMRCIO (em vez de abandonado pelo comrcio).
O emprego da preposio de em casos destes corretssimo; embora
menos comum, no portugus atual, que o da preposio por. Alguns
exemplos, antigos e modernos, que poderiam ser indefinidamente
multiplicados: mas vencida. Do doce ardor, que no obedece a rogo
(Antnio Ferreira, Poemas Lusitanos, Coleo de Clssicos S da Costa,
Lisboa, p. 8); terra fresca e frtil, talhada de muitos rios (Frei Lus de
Sousa, Vida de D. Fr. Bartolomeu dos Mrtires, ed. Rolandiana, Lisboa,
1857, tomo I, p. 192); perseguida de velhas conselheiras (Camilo,
Amor de Salvao, 2.a ed., Porto, 1874, p. 68); tocado do vento (Macha-
do de Assis, Dom Casmurro, p. 117); castigados do cu por seus pecados
(Id., Poesias, 274); no pudera fazer grandes progressos, pelo no aju-
dar a memria, rude e pesada, e como toldada de espessa nuvem (Joo
Francisco Lisboa, Obras, So Lus do Maranho, 1865, vol. IV, p. 10).
PARTAGER (em lugar de compartir). Quase todos os galicismos
da lista do Sr. Antnio Cabral no sei se o disse antes j os aponta-
ra Rui Barbosa na Rplica. Com o partager parece ter-se dado um caso
curioso: Rui, mencionando os francesismos de Ea, escreve, a certa al-
tura: ora o partager, mal disfarado em partilhar, com a significao, que
o nosso idioma lhe recusa, de participar, compartir e cita algumas pgi-
nas: I, 207; II, 92 e 427. O Sr. Cabral viu partager, no atentou bem no
resto, e, na sua ansiada pressa de fillogo improvisado, juntou o voc-
bulo ao seu rol. Enganou-se; e Rui tambm se enganou condenando o
partilhar: guiou-se por Figueiredo guia muito inseguro como inex-
plicavelmente tantas vezes o faz. Em todos os dicionrios, a partir do
de Aulete, encontro a palavra com a acepo que condenam Rui e Fi-
gueiredo; s no dicionrio deste autor que leio, depois de: Tomar
parte em a observao: Esta ltima acepo rejeitada pelos mes-
tres, que a substituem por participar de. Rejeitada pelos mestres? Veja o
leitor no Dicionrio de Verbos e Regimes exemplos de Garrett, Camilo, e
Machado de Assis, alm dos de Garrett e Latino Coelho nos Fatos da
Linguagem (pp. 388-392) livro para o qual ainda uma vez o remeto,
evitando repetir as excelentes razes de Herclito Graa em favor de
partilhar.
FAZEMOS ARMAS (em vez de jogamos as armas). Embora no in-
clua esta frase no seu grupo dos galicismos, naturalmente nele que o
Sr. Cabral pretende met-la, chamando-a horrvel. O faire des armes
84 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
perturbou o crtico. Tem a palavra Morais: Fazer armas, ter duelo, jus-
ta, ou batalha. Palm. [Palmeirim de Inglaterra] P. 2, c. 134 e 129, que fizes-
sem sobre isso armas: daqui se entende a Ordem. [Ordenao Filipina], L. 2.
T. 26. 2. Item, dar lugar a se fazerem armas de jogo (so justas, torneios,
correr canas por jogo, e divertimento...).
Isto no artigo fazer. Agora no verbete arma: Fazer armas: militar.
Cron. J. I. 1. c. 96. para lhe dar licena de irem fazer armas por Reinos estra-
nhos. it. Justar. E depois de remeter o leitor para fazer, quase repete o
que a est e cita de Azurara, Tomada de Ceuta, c. 96: irem a Frana fazer
armas, alm de mencionar vrias outras fontes. Figueiredo, posto que
to aceso no seu antifrancesismo, registra, como desusado: Fazer
armas, ter duelos, sem dar a expresso por afrancesada. Assim tambm
Laudelino Freire menos a observao quanto ao desuso. Armas tem,
nessa frase, o sentido de faanhas militares, combates de origem
latina, em que aparece no to conhecido primeiro verso dos Lusadas.
2 Solecismos
Examinemos alguns dos apontados por Agostinho de Campos36:
ADORMECE NA IMENSA PAZ DE DEUS DE DEUS QUE ELE NUN-
CA SE CANSOU EM COMENTAR, NEM SEQUER EM NEGAR (Contos, p.
193). Pensa o juiz que Ea devia ter empregado de, ou a, e no em.
Pois nos dicionrios de Constncio, Laudelino Freire e Francisco Fer-
nandes se encontra a regncia condenada nos dois ltimos com abo-
naes de Joo Francisco Lisboa e Vieira, respectivamente.
PREPARAVA-SE A REPELIR O CARLINHOS (Os Maias, I, III). O cer-
to preparar para, diz no s Agostinho de Campos como o Sr. Cabral.
Pois o regime usado por Ea de Queirs conta exemplos de Filinto
Elsio e de Garrett (ver o Dicionrio de Laudelino Freire).
Passo agora a comentar alguns dos golpes despedidos por Ea
contra a gramtica, que o Sr. Cabral enfileira no seu livro.
ESTILO
Enfim, exclamei, uma prosa como no pode haver!
No, gritou Fradique, uma prosa como ainda no h!
(A Correspondncia de Fradique Mendes, p. 125).
gal, Ea, depois de explicar que no pde faz-lo mais curto Cada vez pos-
suo menos aquela arte de conciso que caracteriza o verdadeiro escritor. Para di-
zer bons-dias preciso volumes. Escreve: No receie as provas. Eu j no
emendo to atormentadamente. Nas cartas de Fradique, as provas vo sempre
limpas. Mas lcito pr em dvida esta declarao em face do que ele diz,
cerca de um ms depois, a respeito do mesmo trabalho42: Tenho andado a
rever o Conto operao que sempre para mim longa e laboriosa. quase
uma recomposio. Espero poder remeter amanh, se Deus quiser, a primeira
parte.
Num de seus livros43, Albino Forjaz de Sampaio faz um cotejo
entre as diferentes maneiras como a figura do Cnego Dias vem
descrita, em cada uma das trs primeiras edies do Crime do Padre
Amaro livro de que, como se sabe, Ea de Queirs s considerou
definitiva a 3.a edio. Transcrevo aqui as diferentes verses de ou-
tra passagem:
1.a ed. (na Revista Ocidental, 1.o ano, tomos I e II, 1875):
VOCABULRIO
As palavras so, como se diz em pintura, valores: para produzir, pois,
um certo efeito de fora ou de graa, o caso no est em ter muitos valo-
res, mas em saber agrupar bem os trs ou quatro que so necessrios.
44 Cito aqui alguns deles uns consignados pela primeira vez no dicionrio de
Figueiredo ou no de Laudelino Freire; outros de uso corrente, mas no no sentido em
que Ea os empregou; outros, afinal, ainda no dicionarizados: apilhar (empilhar)
(ltimas Pginas, p. 374); bigodoso (A Correspondncia de Fradique Mendes, p. 146); blagueador
(ltimas Pginas, p. 375), cuspilhar (O Mandarim, p. 32); conselheirfero (Fradique Mendes, p.
149); chuviscoso (Os Maias, I, 205); emprateleirar (O Primo Baslio, p. 152); fendilhado (Fradi-
que Mendes, p. 223); fragmental (Ibid., p. 132); iconografista (Ibid., p. 250); lexiconista (Cartas
Inditas de Fradique Mendes, p. 51); pacientar (Ibid., p. 109, e Cartas de Ea de Queirs, p. 84);
pensadouro (Fradique Mendes, p. 143); reumatizante (Ibid., p. 222).
45 Escrevendo acerca de Ea nos seus primeiros tempos, diz Jaime Batalha Reis
que ele sentia muitas vezes a necessidade de metrificar, quase o mesmo gnero de
necessidade de som e ritmo que o fazia com freqncia cantarolar, em voz baixa, pe-
quenas frases musicais, sempre erradas, sempre fora de tom, mas sempre impregnadas
das mais patticas inflexes (Introduo das Prosas Brbaras, p. L).
46 Na revista Brotria nmero de novembro de 1939 , Joo Mendes, apud Ma-
nuel de Paiva Bolo, Notas breves sobre alguns processos estilsticos de Ea de Quei-
rs, em Novidades, Lisboa, ano III, 31.3.1940, escreve: No seria a primeira vez que
se diria ser feminina a sensibilidade imaginativa de Ea de Queirs, falando no car-
ter extraordinariamente atraente e sedutor, feminino, digamos, do seu estilo.
Li ngu agem e Esti lo de Ea de Q u e i r s 97
ouro, louro, azul, eram termos vitais para Ea. No seria preciso, se qui-
sesse evitar o abuso deles, mais que a ao do dicionrio para arran-
jar-lhes sinnimos. Parece pouco provvel que ao seu labor de reviso
escapasse a notvel repetio daqueles vocbulos. No. que Ea lhes
tinha particular estima, um quase apego; eles deveriam corresponder
excelentemente a determinadas exigncias do seu fino sentir. Prefern-
cias de gosto, tendncias voluptuosas, mal disfarado pendor para o
sinistro, acusam-se, ntidos, em seu vocabulrio.
ADJETIVAO
Um dos segredos mais impressionantes do estilo queirosiano re-
side, como se sabe, no uso do adjetivo. Esse fato decorre, necessaria-
mente, do vivo senso do pitoresco, j assinalado, desse escritor.
sua intensa percepo sensorial no escapavam aspectos dos homens
ou das coisas: assim, teria a sua adjetivao de ser abundante; e para
que no fosse vulgar, sem relevo, Ea, com a sua paixo e natural ins-
tinto da originalidade, foi levado quele manejo to pessoal, to ca-
racterstico, do qualificativo. Considerado o conjunto de sua obra,
pode-se dizer que, quando os empregou em grupo, raramente estes
eram de mais de trs; talvez se possa dizer de mais de dois. Em es-
critos da primeira fase, sim, isto comum. Basta ver, nas Prosas Brba-
ras, de entre numerosos exemplos, os seguintes: carinhosa, e doce, e
meiga, e casta, e consoladora (p. 5); serenos, fecundos, consoladores
e purificados (p. 64); negros, sagrados, luminosos, bestiais, divi-
nos (p. 65). Em Uma Campanha Alegre: Oficial, constitucional, bur-
gus, doutrinrio e grave (I, 5). E no Egito: Rugoso, altivo, selva-
gem, ardente, aquilino (p. 205). Mas a partir do Crime do Padre Ama-
ro o fato torna-se relativamente raro. Numa das Crnicas de Londres (p.
88), datada de 1877, vejo: Aventureira, turbulenta, vida e viciosa.
Li ngu agem e Esti lo de Ea de Q u e i r s 99
SUBSTANTIVOS E VERBOS
Tambm no uso de substantivos e verbos elementos igualmente
importantes, fundamentais at da orao, Ea de Queirs apresenta
muitas vezes o toque vivo de sua personalidade, e sempre uma preci-
so, uma segurana de mestre. Veja-se com que propriedade e fora
ele usa no s essas duas categorias gramaticais (muito principal-
mente o verbo), como tambm o adjetivo, na seguinte passagem do
Egito, livro ainda de mocidade, desprezado pelo autor: Ali o vapor
dgua aumenta; o calor forte, uma transpirao abundante cobre o
corpo: parece que aquele meio quente, amolecedor, dissolvente, li-
quidificante, derrete a iniciativa e a individualidade, e que a nossa
vontade, o nosso eu, o nosso ser, se desfazem no vapor espesso e aro-
mtico. No se tem a conscincia de ser livre, perde-se o sentimento
dos contornos ntidos; parece que o corpo se dissipa, se dilui, se ate-
nua, se torna semelhante quele vago torpor, dando-nos uma trans-
parncia azulada (p. 261).
Essa mestria atinge o ponto culminante em trechos como o da Ilus-
tre Casa de Ramires (pp. 163-164) citado pouco alm.
102 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
CONSTRUO
A construo de Ea de Queirs , como j foi visto, uma das suas
marcas mais vivas de renovador, um aspecto dos mais caractersticos
do seu estilo: razo por que dela se trata aqui, e no da parte referente
linguagem.
comum dizer-se que ele abusou da ordem direta. Mas, sem dvida,
conseguiu com isto novos efeitos. Veja-se como a vida quotidiana de
uma quinta, a sucesso invarivel dos fatos e afazeres de cada dia, esto
admiravelmente pintados neste perodo: De madrugada os galos can-
tam, a quinta acorda, os ces de fila so acorrentados, a moa vai mungir
as vacas, o pegureiro atira o seu cajado ao ombro, a fila dos jornaleiros
mete-se terra e o trabalho principia, esse trabalho que em Portugal
parece a mais segura das alegrias e a festa sempre incansvel, porque
todo feito a cantar (A Correspondncia de Fradique Mendes, p. 224).
Qualquer desvio dessa ordem gramatical equivaleria a uma quebra
da ordem em que se realizam os acontecimentos entre os quais decorre
essa existncia igual, inacidentada, despida de imprevistos. A constru-
o direta exprime com a mais ntida justeza a sucesso normal e sem
pressa dos fatos. Sendo a mais natural, a mais simples, traduz melhor,
por isso mesmo, a serena simplicidade desses costumes. Tudo cami-
nha natural para um fim, no labor da quinta como no perodo que a
descreve: no h, neste, pressa nem inverses, como naquele no h
nem dureza nem arranque.
Observe-se ainda: Um grito estrugiu, desesperado (A Relquia, p.
184); um silncio caiu, to atento, que se ouviam as buzinas tocando ao
longe na Torre Mariana (Ibid., p. 200); E um embaraado silncio, pesou
como se entre eles surgisse a imagem entristecida da antiga quinta
(A Ilustre Casa de Ramires, p. 237).
Quem dir que pesou um embaraado silncio, caiu um siln-
cio, estrugiu um grito teriam a mesma intensidade? Com o verbo
posposto, o fato por ele indicado ganha consideravelmente em relevo,
Li ngu agem e Esti lo de E a de Q u e i r s 103
54 Este trecho serve tambm para mostrar que Ea tinha a cincia perfeita do pe-
rodo curto.
55 para notar-se, ainda aqui, a fora da construo direta. O mesmo adiante:
negros dormitavam.
104 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
VCIOS E VIRTUDES
ESTILSTICAS
A despeito da sua fina percepo auditiva, Ea incorreu em nume-
rosos parequemas e cacofonias: pela lama (Os Maias, I, p. 68),
mundo duro (O Mandarim, p. 105), mascarado durso (A Relquia,
p. 3), pouco curvada (Contos, p. 70), titi tinha (A Relquia, p. 62),
branca cabea (Ecos de Paris, p. 153), toca a cabra (Notas Contempor-
neas, p. 369), idntica quela (Fradique Mendes, p. 198); em hiatos: a
incessantemente (O Mandarim, p. 105); em aliteraes viciosas: Ti-
nham passado para o polido padre Gusmo (O Crime do Padre Amaro, p. 2);
56 Note-se como Ea no receava o emprego de termos como este, que ainda hoje
muita gente considera indignos da linguagem literria.
Li ngu agem e Esti lo de E a de Q u e i r s 105
NOTAS SOLTAS
ORIGINALIDADE. Curiosa manifestao de originalidade de
Ea de Queirs est no seu jeito humorstico de dar nova forma a
certos provrbios, certas frases muito repetidas. Vejam-se estes
dois exemplos:
O conceito A histria se repete, ele o transforma nisto: A His-
tria uma velhota que se repete sem cessar (Cartas de Inglaterra, p. 5).
De O homem pe e Deus dispe, faz: O homem prope e a oca-
sio dispe (Correspondncia, p. 41).
DRAMATICIDADE. Tem-se falado acerca do poder dramtico do
autor dos Maias. Um exemplo tpico se v na Relquia (p. 50), quando
Teodorico diz haver contado titi a situao de um seu imaginrio
colega, muito pobre, em perigo de vida: E outra vez, ... estirei a carca-
a dum condiscpulo sobre a podrido duma enxerga.
Li ngu agem e Esti lo de E a de Q u e i r s 107
bal, eram ento, em todo o Reino das Astrias, os fidalgos mais fa-
mintos e os mais remendados (Contos, p. 119).
O primeiro acento oracional cai na palavra Medranhos e j nos fica
na memria o nome dos Paos onde viviam os fidalgos arruinados.
Depois: a srie Rui, Guanes e Rostabal (note-se, aqui, como feliz a es-
colha dos nomes e a sucesso deles o monossilbico, com o ditongo
to expressivo; o dissilbico, paroxtono, com a vogal tnica nasal e o s
final, elemento reforador; e o trissilbico, com os aa sobretudo o l-
timo, bem claro, bem aberto, e de efeito intensificado pelo l seguinte).
Terceiro acento: ento (e fixa-se o tempo). No quarto acento fixa-se o
lugar. No subacento est a palavra famintos, tanto mais expressiva
quanto forma com fidalgos uma aliterao, e cujo efeito se completa
com o da outra, no fim do perodo: remendados. Observe-se tambm,
alis, a arte da repetio do os: Os fidalgos mais famintos e os mais re-
mendados. Essa repetio traz melhor ao esprito a idia de fidalgos, j
enunciada. Exatamente porque no muito normal, serve para salien-
tar mais vivamente o resultado que o escritor procurou atingir.
TAMBM NO TESOIRO. Poder-se- incluir no seu processo de esti-
lista a maneira como, em alguns casos, Ea evita falar de determinada
figura ou coisa, referindo-se apenas a seres ou atributos com ela rela-
cionados, at dado momento, em que acontece um fato culminante re-
lativo a ela. Veja-se, por exemplo, no mesmo conto (pp. 124-125):
Emboscados, Rui e Rostabal esperam que de Retortilho volte
Guanes, cuja morte j tm premeditada. No aparece a palavra Gua-
nes, ento. Rostabal pensa nos empades e no vinho que o outro
trazia. Enfim! Alerta!. Ouvem a cantiga dolente e rouca, atirada aos
ramos ( a cantiga de Guanes). Rui murmurou: Na ilharga! O
chouto da gua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhe-
jou por sobre a ponta das silvas (a pluma do sombrero de Guanes).
Rostabal sai do esconderijo, fere o irmo. Ento que volta o nome de
Guanes.
114 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
tanto melhor: Ento, Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga na-
valha. O perodo subseqente Sem um rumor na relva espessa,
deslizou at Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingan-
do. ainda muito cortado de vrgulas embora menos que o ante-
rior: o ritmo da ao acelerou-se um pouco. Mas chega o momento
decisivo; h um ligeiro retardamento de ritmo: cautela. Desfere o gol-
pe: E, serenamente... Enquanto a navalha faz o trajeto, Ea faz uma
comparao, j num andamento mais clere: Como se pregasse uma
estaca num canteiro; por fim, o ponto mximo da ao, numa orao
bem larga, de andamento mais apressado ainda: Enterrou a folha toda
no largo dorso dobrado. Aqui est o perodo inteiro, sem interrup-
es: E, serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, en-
terrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o corao.
CASO ESTRANHO DE REGNCIA. Curiosa anomalia de regncia
produz, em certo trecho de Ea de Queirs (O Mandarim, p. 154), um
dos mais admirveis espcimes de linguagem psicolgica. Nota-se a
um fato semelhante queles apontados por Vossler59, que conduzem
ao relaxamento da construo oracional e ao abandono da gramtica.
Conseqncia do estilo impressionista, no qual diz Vossler o es-
critor se envolve no seu objeto, e como cronista de uma casa de doen-
tes, se torna ele tambm uma alma doente (p. 155). Eis o perodo em
que figura tal regncia:
Ento invadiu-me a alma uma melancolia, que o silncio daquelas
alturas, envolvendo Pequim, tornava dum vago mais desolado: era
como uma saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali
isolado, absorvido naquele mundo duro e brbaro: lembrei-me, com os
olhos umedecidos, da minha aldeia do Minho, do seu adro assombrea-
do de carvalheiras, a venda com um ramo de louro porta, o alpendre
do ferrador, e os ribeiros to frescos quando verdejam os linhos....
INTRODUO
Caracterstica fundamental da lngua de Simes Lopes Neto, j sa-
lientada por Augusto Meyer,1 a feliz combinao da maneira liter-
ria com a linguagem oral a fala espontnea e viva dos seus heris. O
comum entre escritores regionalistas portarem-se ante o homem do
povo como o espectador fino e sutil que se delicia com as tolices do
linguajar errado, caprichando ele o mximo na sua linguagem como
para guardar distncia. Ele observa o pitoresco, l da platia; mas lon-
ge de querer para si mesmo alguma coisa daquele pitoresco; nada de
confundir-se com o ator.
Uma observao de Mrio de Andrade a respeito de Castro Alves
fornece-nos um smile perfeito para o caso: em sua poesia social, Castro
Alves, segundo Mrio,2 no procurou elevar o negro, o escravo, at onde
se achava ele, o branco; o que fez foi descer at o irmo inferior.
1 Ver o seu Prefcio a J. Simes Lopes Neto Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Edi-
o crtica. 1.a ed., 1.a impresso, Porto Alegre, Editora Globo S.A.
2 Aspectos da Literatura Brasileira, p. 148.
122 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
17 Nessa nsia de fixar um marco bem ntido entre o falar dos civilizados e o do
caipira, Valdomiro Silveira cai por vezes em erros que brigam com os seus conheci-
mentos da lngua: escreve ante, dante, com apstrofo a indicar a omisso do s, como
quem no admite a persistncia, na fala popular, da velha forma etimolgica ante, ain-
da subsistente em certas palavras compostas, como antediluviano, e no provrbio portu-
gus Em janeiro mete obreiro, ms meante, que no ante; grafa reposta, como es-
quecido de que reposta excelente forma antiga (do lat. reposita), que est em todos os
dicionrios, definindo-a o de Figueiredo como o mesmo ou melhor que resposta. O
autor de Mixuangos penso que enxergava sempre nas formas populares alteraes da
pronncia atual culta, e nunca sobrevivncias de formas do velho portugus, muitas
com o melhor apoio etimolgico. E note-se que os exemplos apontados foram colhi-
dos em Lerias histrias contadas por eles mesmos, isto , pelos prprios caipiras.
Ainda: se o escritor paulista se empenhava de tal maneira em assinalar as supresses,
reais ou supostas, de fonemas, por que no adotava, ento, um sinal indicativo de
acrscimos, trocas ou transposies? estranho ver-se, ao lado de arage, arve, um assu-
cedeu, um adimira, um munarca, um troceu.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 129
18 Curioso: Simes Lopes admirava largamente Coelho Neto, que era por ento
o pax literrio do Brasil. Dedicou-lhe O Negrinho do Pastoreio e nas LENDAS DO SUL
transcreve-lhe duas cartas a propsito desse conto e da Mboitat. Entretanto soube
manter-se, na sua fico, impermevel a essa influncia. J Alcides Maia, este, no es-
capou a certa inchao de estilo bem netiana o que me parece acaso a maior fraqueza
da sua obra.
130 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
LINGUAGEM
Vocabulrio
O primeiro aspecto, aquele que a um simples lance de vista ressalta,
no vocabulrio de Simes Lopes Neto, certamente a contribuio es-
panhola, de um modo geral, e, mais particularmente, platina. Umas des-
sas palavras e expresses ainda conservam intacta a vestimenta origin-
ria, estranha ao nosso idioma e a ele dificilmente adaptvel, ferindo-nos
a vista com um jeito impertinente de intrusas. o caso do arreglar, do
eh-pucha, de a la fresca, a la cria, plata, bueno, miles e mais umas poucas. Ou-
tras pajonal, cajetilha... tm certo ar de gente do nosso meio, e, embora
os glossrios nos informem de que so pronunciadas castelhana, j fi-
guram em dicionrios nossos, criando-se a natural tendncia para uma
adaptao delas s nossas exigncias fonticas. Outras ainda, guardando
embora uma fisionomia de gauchismos ainda meio xucros o caso de
empear so na realidade da lngua portuguesa: regionalismos de Portu-
gal, vindos pela correspondente forma espanhola, e cujo uso no Rio
Grande do Sul resultado da influncia platina. Com uma delas egua-
rio d-se este fato: Simes Lopes, desnecessariamente, grafa-a, uma
vez, moda espanhola (eguarizo), quando a palavra est nos dicionrios,
tendo vindo diretamente do latim, e no atravs do castelhano.
A maioria delas, entretanto, pelas suas fceis possibilidades grficas
e fonticas de livre curso em portugus, graas profunda semelhana
da lngua atravs da qual as recebemos, e quase sempre ao fundo
latino comum, passeiam livremente pelos textos, tranqilas de seu,
sem que a gente se lembre de lhes pedir carteira de identidade: envite,
haragano, maleva, oigal, entrevero, peleia, pulperia, sofrenao, sonar, alce... Ainda
quando os dicionrios no tenham acolhido algumas, a similitude
com os naturais da terra to grande que no ser pelo aspecto em si,
mas pela raridade da sua presena, que algum de outras regies do
Brasil poder desconfiar.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 131
28 Frei Pantaleo de Aveiro, por exemplo: Haver na Cidade como dous mil Ju-
deus, pela maior parte Portugueses (Itinerrio da Terra Santa, p. 531).
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 139
carretame (Anjo).
caturritar (O Negro Bonifcio).
cernoso (Apresentao de Blau Nunes).
coletaria (Contrabandista). No espanholismo; em espanhol diz-se
colectura.
cuidadeira (Me do Ouro).
espumento (Boi).
fala-verdade (Jogo do Osso).
frentear (Manantial).
guasqueio (Manantial).
imperadorice (Chasque do Imperador).
nuvear (Ibid.).
retrovir (Apresentao de Blau).
roubada (Melancia).
solferim (Contrabandista). A forma dicionarizada solferino.
E diversos outros, que vo consignados no Glossrio.
s vezes trata-se de palavras ou locues conhecidas, mas ainda
no averbadas em nenhum dicionrio. Assim:
num v
num vu
num redepente.31
Formas populares sem apoio, ou quase sem apoio, na lngua antiga,
usa-as muito raro: ansim, ermo, int, hospe, bobage. s vezes emprega certas
formas sincopadas: acocrar, ofrecer, supriores. So traos vivos e rpidos
com que o autor sugere a realidade da pronncia de sua gente. Apenas
sugere; parece estar com o simbolista: Pas la couleur...
Gnero
Caso muito comum dar-se o gnero masculino a palavras femini-
nas quando com elas se designa o indivduo que exerce determinadas
funes. uma das modalidades da sindoque: o corneta, por aquele
que toca corneta, um exemplo.
Com a palavra ordenana verifica-se o mesmo fenmeno pelo me-
nos no Brasil. Diz-se geralmente, entre ns, o ordenana, para signi-
ficar o soldado que est sob as ordens de um superior. Simes Lopes
Neto em mais de um de seus contos emprega o ordenana (Duelo e
Anjo). No encontro nos dicionrios a palavra neste gnero embora
ele seja de uso geral.
Mais interessante o caso de o confiana. este o gnero em que
se acha o vocbulo, no Melancia. Nada mais normal: trata-se do homem
que o empregado de confiana. Os lxicos, porm, no registram a
palavra, neste sentido, em gnero nenhum. Em No Galpo, de Darci
Azambuja, l-se a confiana (p. 20) e o confiana (p. 157).
J sentinela, dicionarizado apenas como feminino, mas hoje muito
usado no outro gnero, no feminino que o emprega o escritor, nos
Cabelos da China.32
Encontro a palavra pampa no feminino:
Estes campos eram meio sem dono, era uma pampa aberta (Ma-
nantial).
Influncia do espanhol: em portugus se diz, geralmente, o pam-
pa, e assim est no s, por exemplo, em Alencar, como nos prprios
escritores gachos Alcides Maia, Darci Azambuja, Clemenciano
Barnasque, etc. No Glossrio deste ensaio acham-se alguns exemplos
do vocbulo no gnero feminino.
32 Ver Mrio Barreto (ltimos Estudos, p. 213), que abona o gnero masculino do
vocbulo com um exemplo de Camilo.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 143
Crase
Nas pginas de CONTOS GAUCHESCOS e LENDAS DO
SUL observa-se, quanto ao uso da crase, grande oscilao. Em cir-
cunstncias idnticas, ou muito semelhantes, ora se v o acento sobre o
a, ora no figura o acento. Mas, levando-se em conta o predomnio da
forma correta e, por outro lado, o fato de no ser boa a reviso daque-
les dois livros, sobretudo a do primeiro, torna-se difcil afirmar cate-
goricamente a existncia de erro por parte do autor nessa matria. E a
afirmao ser tanto mais perigosa quanto mais serenamente conside-
rarmos o conhecimento da lngua que Simes Lopes Neto revela em
coisas bem mais complexas. Alm de tudo, afora os casos onde se veri-
fica a oscilao, outros se nos deparam em que o escritor sempre acer-
ta. Vejamos:
Duas vezes se l meia rdea (Trezentas Onas e Contrabandistas); po-
rm cinco vezes a meia rdea, corretamente (Negro, No Manantial, duas
vezes na Melancia, Correr Eguada). E com exceo de meia cara (Sala-
manca), expresses semelhantes esto sempre certas, sem a crase, como a
meia costela (Correr Eguada), a meia espalda (Melancia, Negrinho).
Se encontramos quatorze casos de as vezes (Trezentas Onas, Mate,
Boi duas vezes , Correr Eguada duas vezes , Cabelos, Anjo, Contraban-
distas trs vezes , Jogo, Penar, Me do Ouro), a locuo aparece com o
seu a acentuado nada menos de onze vezes (Negro, Deve um Queijo!..., Ca-
belos duas vezes , Melancia, Anjo, Salamanca cinco vezes). Observe-se
que nas LENDAS DO SUL, livro, como j disse, mais bem revisto
que o outro, a expresso vem cinco vezes correta (Salamanca) e s uma
sem o acento no a (Me do Ouro).
toda est no Manantial; mas a toda pressa em Melancia.
No Deve um Queijo!... l-se s cansadas e s talhaditas, com o a
craseado. No Chasque e em Trezentas Onas: a esquerda; porm na Sala-
manca: direita.
144 Aur li o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
Concordncia
A sintaxe do autor dos CONTOS GAUCHESCOS ora obedece
tradio portuguesa fruto, em parte, das suas leituras, dos seus co-
2. Do Contrabandista:
ainda que chovesse reinos acolherados ou que ventasse como por alma
de padre, nunca errou vau.
Curiosa concordncia. Normalmente, ou se empregaria o verbo
no plural, com o sentido de cair em abundncia, sendo reinos
ento o sujeito, ou, deixando-o no singular, se lhe daria outro sujei-
to (o cu, por exemplo). Mas no se poder admitir a elipse deste?
Se o verbo, usado intransitivamente, tem um agente elptico, inde-
terminado, nada impede que continue indeterminado esse agente
quando o verbo se torna transitivo. O verbo no plural observe-se
toma a acepo figurada, enquanto no singular pinta a chuva
mesma. Chovessem reinos faria antes pensar em reinos a cair
em grande quantidade, do alto, maneira de chuva; chovesse rei-
nos precisa de modo perfeito a idia da prpria chuva. Nem outra a
idia do autor: veja-se, no mesmo perodo, o ventasse. Seria im-
possvel, ali, a coexistncia do sentido direto de um dos verbos com
o sentido figurado do outro.
uma tora, dessas que no se tira duas vezes entre os mesmos ferros...
(Duelo).
nem o cu nem as barras do dia se enxergava (Negrinho).
Como se sabe, precisamente essa concordncia verdadeira que a gra-
mtica tem por falsa, muito embora dela no faltem exemplos de bons
autores entre eles os clssicos e haja entre os modernos escritores bra-
sileiros uma viva tendncia para segui-la. Alm do exemplo de Cames,
referido h pouco,38 e de mais trs de Joo de Barros, tambm apontados
por Said Ali, vejam-se outros em Sousa da Silveira,39 e ainda mais: Que
estes desprezos que vemos/Do bom saber, da boa arte,/No se usa em toda a
parte,/Que na terra aonde nacemos (Rodrigues Lobo, clogas, p. 19);
seria preciso colh-lo desapercebido, .... para se apreciar devidamente os te-
souros encobertos daquela vasta erudio e os prodgios de uma memria em
verdade rara (Rebelo da Silva, Contos e Lendas, p. 16); Come-se ou jo-
ga-se os sisudos? (Camilo, Memrias do Crcere, II, 139); Correu logo por to-
das as bocas .... o estar-se fazendo roupinhas e saiotes (Id., Amor de Salvao, p.
53); onde bem longe se escuta/As vozes que vo cantando! (Gonalves
Dias, Obras Poticas, I, 136); Entrev-se os vestidos luzentes (Id., ibid., I, 234);
teu irmo e eu fizemos melhor negcio e que sabemos como se h de levar
os homens (Joo Ribeiro, Crepsculo dos Deuses, p. 143);40 Empregados a
Regncia
Assim como na concordncia, tambm na regncia do grande con-
tista prevalece a obedincia aos modelos tradicionais da lngua. Por
vezes at se lhe observa um pendor para construes cujas razes mer-
gulham no uso clssico, de que to freqentemente se aproxima a fala
popular. Acontece, como em outros casos j vimos, que em situaes
idnticas adota ele o padro sinttico lusitano ou o brasileiro. Alis,
aquele a que chamamos brasileiro no raro seja portugus de lei, ar-
caizado em Portugal e sobrevivente aqui.
6. O
da dois anos
que se l no Duelo no coisa estranha ao uso popular e est na tra-
dio da lngua. Da um pouco escreveu Bernardim Ribeiro
(Obras, II, 118). E Azurara: mandou fazer aa sua honra ua mui devota
casa de oraom, ua lgua de Lixboa (Guin, p. 31).
Alis, tratando da preposio a, escreve Leoni46 que ela pode elegan-
temente suprimir-se quando denota distncia. A distncia, naturalmente,
pode ser como nos passos apontados no tempo ou no espao; s vezes
as duas relaes se confundem, o que se v neste exemplo de Manuel Go-
dinho, citado, juntamente com dois mais de outros autores, por Leoni:
Trs dias de jornada de Ispa fica um alto monte chamado Albecoura.
9. Em
no vale a pena de falar nestes chicos pleitos de namoriscos (Manantial)
temos um caso de cruzamento sinttico: no vale a pena falar nestes
chicos pleitos e estes chicos pleitos no valem a pena de se falar neles produziram a
frase de Simes Lopes Neto. Coisas semelhantes so freqentssimas e
aparecem no raro na lngua dos nossos dias. Quem desconhece o Se
no temera de chamar senhora/A vil Paraguau, que est no episdio
48 Cf. Mrio Barreto, Novssimos Estudos, pp. 203-210, 244-246, e outros lugares,
e tambm Fatos da Lngua Portuguesa, pp. 105-106. No primeiro dos lugares apontados
encontra-se, entre vrios exemplos, o seguinte, de Garrett: Senhor Lus de Mello, eu
tenho por princpio de me no intrometer...
49 Novssimos Estudos, pp. 231-232.
50 O Pensamento e a Expresso em Machado de Assis, pp. 31-32.
162 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
peita, que alguns tinham da Infanta Dona Joana no ser sua filha (Id.,
ibid., p. 83). Mais exemplos deste ltimo autor s pp. 88, 100, 210. E
de Bernardim Ribeiro: Que tempo do gado ir a gua (Obras, II, 193).
De Cristvo Falco: antes da vida perder (Ibid., II, 280); ora julga se
rezo/das minhas lgrimas serem/menos daquestas que so (Ibid., II,
284). De Rodrigues Lobo: No estava a cousa nos eptetos serem pr-
prios ou necessrios (Corte na Aldeia, p. 55). Outros exemplos em: Ca-
milo, Memrias do Crcere, II, 125; Joo de Deus, Campo de Flores, I, 204;
Machado de Assis, Poesias, p. 210.
14. Depois que vim ao conhecimento que aquela figurona tinha vindo
de emissria (Duelo).
Ainda hoje h quem brade contra a falta da preposio de, que, em
casos assim, deveria, logicamente, preceder o que integrante. Mas que
adianta o brado dos caturras? Estamos ante um fato de linguagem,
muito bem tratado por Herclito Graa52 e Mrio Barreto.53 s deze-
nas de exemplos que do estes autores podero juntar-se muitos e mui-
tos outros; estes penso que bastam: O filsofo Filpides, quando se
determinou a servir a el-rei Lismaco, foi com condio que lhe no des-
cobriria segredo algum (Diogo do Couto, O Soldado Prtico, p. 10);
Todavia andando o tempo se veo a persuadir que lhe estaria bem fazer
com ele amizade e pazes (Frei Lus de Sousa, Anais de D. Joo III, I,
96); Admirava-se que muitas destas fossem as mesmas (Machado de
Assis, Dom Casmurro, p. 392); Deste poeta tiro a lio que se tivermos
de esperar pela morte de todos os rumores e estrondos, nada mais
igual complicao do que a simplicidade (Joo Ribeiro, Cartas De-
20. J neste
o Menino Jesus acordou-se (Me Mulita).
vemos o brasileirssimo acordar-se, de uso porventura mais genera-
lizado que o daquele dar. O acordar-se que se ouve de Norte a Sul, e tan-
to se l no gacho Simes Lopes Neto como no paraibano Jos Lins
Colocao
Observemos agora alguns aspectos da colocao em Simes Lopes
Neto.
to, Novos Estudos da Lngua Portuguesa, p. 364). Ver tambm: Amor de Sal-
vao, pp. 97, 146.
De Latino Coelho: de modo que nas igrejas, na semana santa,
ama-se o prximo como num baile (Tipos Nacionais, p. 251).
De Joo de Deus: A boca to vermelha que em te rindo/Lem-
bra-me uma rom aberta ao meio/Quando j de madura est caindo!
(Campo de Flores, I, 262).
De Ea de Queirs: porque a doena deixara-lhe um vago medo dos
pesadelos da febre (O Primo Baslio, pp. 288-289); A sua voz tinha
tanta angstia que Juliana calou-se (Ibid., p. 316); atirava-lhe ditos to
cruis .... que o dndi, embrulhado na tempestade, sumia-se como um
diabo de mgica (Notas Contemporneas, p. 36); e o curioso que voc
tornou-se brigadeiro .... com as intenes mais belas e mais generosas
(Ibid., p. 65); Apresentava-se to grave, to triste, que no Chiado afir-
mava-se ser um personagem da histria romana empalhado! (Uma
Campanha Alegre, I, 55). Ver ainda: O Primo Baslio, p. 431; Notas Contem-
porneas, p. 218; Crnicas de Londres, pp. 53, 71.
De Fialho de Almeida: quando uma noite Ferraz de Macedo en-
tra-me em casa (Figuras de Destaque, p. 179); onde dir-se-ia j noctiluzir,
como um pirilampo na sombra, o ziguezague da mania ou da loucura
(Lisboa Galante, p. 33); que dir-se-iam peneiradas dalto (O Pas das Uvas,
p. 32); tudo isto que dir-se-ia casual (Aves Migradoras, p. 180). Outros
exemplos de que dir-se-ia: em O Pas das Uvas, p. 81, e Lisboa Galante,
p. 17.
De M. Teixeira Gomes: que eu chamo-me Celestino... (Gente Sin-
gular, p. 124).
De Raul Brando: at que uma noite a mulher viu-o entrar (Os Po-
bres, p. 47). O pior foi que ele botou-me ao desprezo (Ibid., p. 58).
De Fernando Pessoa: Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se ver-
sos... (Poesias Completas, II, 276).
De Jos Rgio: Quase que vou-me a diz-la (Fado, p. 49).
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 175
De Jos Rodrigues Miguis: Que a verdade deve-se dizer: para a boa cha-
laa inglesa, ainda no h como os irlandeses! (Onde a Noite Se Acaba, p. 25).
De Joo Gaspar Simes: Deus era para mim uma realidade to
completa e absorvente que, ao pensar nele, sentia-me suspenso no espao
e no tempo (A Unha Quebrada, p. 253).
De Miguel Torga: Olha que eu atiro-te o cesto ao focinho! (Novos
Contos da Montanha, p. 56); No que ele custou-me a parir e a criar!...
(Ibid., p. 93); estou de tal maneira que as pernas pesam-me arrobas
(Dirio, I, 82); Aqui sonha-se! (Ibid., I, 95). Ver tambm: Ibid., I, 35,
183; II, 176.
De Manuel da Fonseca: Tem graa que hoje meu marido disse-me
que h muito o no v (Aldeia Nova, p. 110).
De Antnio Pedro: Deix-las, deix-las/Que eu fico-me assim...
(apud Ceclia Meireles, Poetas Novos de Portugal, p. 244).
De Jorge de Sena: que eu conheo-me e adivinho os outros (apud
Ceclia Meireles, ibid., p. 296).
A est perto de uma centena de exemplos de autores portugue-
ses de todas as pocas, desde a fase arcaica ao sculo XX. A maioria
dos grandes clssicos da lngua, antigos e modernos, a figura al-
guns deles com a sua dezena, ou pelo menos a sua meia dzia, de
construes em que aparece a variao pronominal erroneamen-
te colocada, brasileira. Ao lado deles, notveis prosadores e
poetas, vrios dos quais na realidade mais importantes, mais vivos
do que alguns daqueles mestres consagrados de Ea de Queirs
e Joo de Deus, to bem conhecidos, at esse extraordinrio Fer-
nando Pessoa, esse admirvel Jos Rgio, e Miguel Torga, excelen-
te poeta e talvez o maior prosador vivo de Portugal, e um Antnio
Pedro e um Jorge de Sena, vozes das mais significativas da moderna
poesia portuguesa.
Podem-se ver ainda, nos livros, j citados, de Sousa da Silveira e
Said Ali, muitos outros exemplos dessa colocao irregular. Exem-
176 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
Observaes diversas
Deve-se notar, como atestado do seu conhecimento da lngua, en-
tre outras coisas, o fato de no incorrer em certos erros de sintaxe mui-
to comuns.
Deixa, corretamente, o verbo fazer no singular nesta passagem da
Salamanca:
Faz duzentos anos que aqui estou.
de notar-se a propriedade do uso da preposio a no seguinte tre-
cho, da Apresentao de Blau Nunes:
dos foges a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos po-
voados que atravessou.
E tambm a maneira correta como rege o preferir:
Prefiro a minha pobreza dantes riqueza desta ona (Salamanca).
Sabe fugir a ambigidades resultantes de m colocao, como se v
neste passo:
Agora, qual dos dois, pra disfarar dos caramurus o chasque, mandou, em
vez dum homem aquela vivaracha, qual dos dois foi, no pude sondar.
Tom brasileiro
Mais de uma vez j se ter notado, aqui, o tom brasileiro da lingua-
gem de Simes Lopes Neto. Brasileiro substancialmente; porque no
h no autor dos CONTOS GAUCHESCOS apenas aquela nacio-
nalidade de vocabulrio e nada mais, de que fala Machado de Assis.74
Um brasileirismo, o seu, que no s de vocabulrio e de sintaxe, mas
74 Crtica, p. 23.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 185
75 Ibid., p. 126.
186 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
No Negro:
Um cajetilha da cidade .... botou-lhe uns versos mui lindos pro
caso que tinha um que dizia que ela era uma ..... chinoca airosa.
V-se nestas passagens o verbo ter pelo haver, coisa comunssima na
fala brasileira de todas as classes, e que muitos escritores mais corajosos
j transpuseram para a literatura um Mrio de Andrade, um Antnio
de Alcntara Machado, uma Raquel de Queirs, entre vrios outros.76
Registrando o fato,77 Antenor Nascentes declara que isso nada tem
de espantoso. A significao etimolgica de haver (do latim habere) ter; nas
linguagens compostas haver foi substitudo por ter; quem sem afetao dir
HEI JANTADO muitas vezes em sua casa, em vez de TENHO JANTADO
muitas vezes em sua casa? Transcreve um exemplo da Arte de Furtar, citado por
Eduardo Pereira: A um mestre de Lisboa ouvi dizer que bastava numa
Cmara trs vereadores e tinha sete. A parece-me perfeitamente possvel
subentender-se a Cmara; mas, no seu Itinerrio, Frei Pantaleo de Aveiro,
entre muitos exemplos assim duvidosos, apresenta estes, onde incontes-
tvel o sentido de haver atribudo ao ter: Dentro na Cidade tem um alma-
zm, ao qual eles chamam Arsenal, cercado de alto muro, todo torneado
com muitas torres (p. 4); Tambm h neste Arsenal alguas salas gran-
des, & muito compridas, cheas de toda a sorte de armas, assim para gente
de cavalo, como para de p: & tudo to perfeitamente, & a ponto, como se
estivessem de hora em hora esperando pelos inimigos; porque para cada
hom? tem junto o que lhe convm para se armar, quer seja de cavalo, quer
de p; & em cada casa aonde h oficiais, que trabalham, tem no meio ua
tina, que pode levar at doze almudes, chea de vinho bem aguado para os
que tm necessidade de beber (pp. 5-6).
Neste ltimo perodo veja-se o emprego alternado do h e do tem,
cada um duas vezes.
A frase tinha l muita gente por havia l muita gente representa hoje
brasileirismo. diz Vasco Botelho de Amaral.78 Note-se bem: hoje.
Mas Simes Lopes, a sua preferncia pelo haver:
Debaixo da barranca havia um fundo (Trezentas Onas).
A Tudinha era a chinoca mais candongueira que havia por aqueles
pagos (Negro).
E ainda neste mesmo conto, e no Manantial (umas trs vezes), no
Mate, no Deve um Queijo!..., em Boi Velho (duas vezes), em Correr Eguada
(umas trs), e, enfim, em quase todos os CONTOS GAUCHES-
COS, e em vrias das LENDAS DO SUL.
Usando, pois, o ter por haver, o escritor cedeu influncia da ln-
gua de Blau Nunes, deixou-se levar pela corrente da expresso do
seu contador de histrias. Este um dos casos em que, no compro-
misso entre a linguagem de um e a do outro, os interesses do velho
Blau prevaleceram. Flagrantes como, sobretudo, aquele em que o
campeiro se refere ao cajetilha so vivos e expressivos de mais para
que o contista lhes procurasse imolar a graa espontnea dura exi-
gncia da gramtica portuguesa: uns versos .... que tinha um que
dizia que ela era...79
Essas e outras modalidades da fala brasileira na sintaxe de Simes
Lopes Neto coexistem, diga-se ainda uma vez, com o respeito s nor-
mas gramaticais. E muito para notar que essa aliana no produz ar-
repios: efeito da feliz dosagem que o escritor sabe fazer das duas ten-
dncias, nem mutilando-se numa correo hirta e fria, nem se destem-
perando num desadorado populismo que relegaria os seus contos ao
Estilo
Linguagem e estilo, sabe-se, so coisas que no raro se interpene-
tram: assim, muitas observaes sobre o estilo de Simes Lopes Neto
deixam de ser feitas aqui por j haverem, indiretamente, sido feitas, de
passagem, no captulo anterior; por outro lado, mais de uma das notas
deste captulo se relacionar estreitamente com assunto de linguagem.
Cumpre no temer as palavras que se aviltaram em lugar-comum,
de to mal e exaustivamente aplicadas; no tem-las quando indispen-
sveis, restitudas sua dignidade essencial. A palavra que logo se im-
pe, ao considerar-se o estilo de Simes Lopes: telrico. Seu estilo te-
lrico, vem das entranhas da terra, carregado de todo o hmus que fe-
cunda as rvores l no mundo calado e laborioso das razes. Faz-nos
sentir de verdade a campanha gacha.81 E esse hmus, abundante,
80 Nos Cabelos da China v-se um a por h: J andamos aqui a uns quantos dias. Se-
guramente erro de reviso; pois sempre, em casos assim, o autor emprega o verbo, e
no a partcula: H que tempos eu no chorava!... (Trezentas Onas); h dois dias (Ca-
belos); h poucos anos coitado! pousei no arranchamento dele (Contrabandista).
81 Em mim deixem passar a confisso este sentimento to vivo que, filho de regio
quase oposta geograficamente ao Rio Grande do Sul, eu tinha, contudo, antes de conhec-lo
o que s se deu h pouco tempo eu tinha por vezes (sem literatura) a impresso de j haver
percorrido os campos gachos, conversando longamente com os guascas. Parece-me, pois, ina-
ceitvel esta afirmao do Sr. Manuelito de Ornelas: Para se iniciar na beleza imanente da fic-
o de Simes Lopes Neto, necessrio conhecer-se a fundo a vida ntima dos galpes, das fa-
zendas, dos postos e dos ranchos, todo esse enredo quotidiano das fainas rumorosas dos cam-
pos (Smbolos Brbaros, p. 38). Ora, o mrito de Simes Lopes Neto como de todos os gran-
des criadores de ambientes e vidas est precisamente em dispensar, da parte dos leitores, o co-
nhecimento de visu das realidades que ele pinta; em suscitar-lhes, pela fora e prestgio da arte,
uma viso pessoal de tais realidades. Pobre, impotente escritor aquele que exigisse, para uma ini-
ciao na beleza do seu mundo, um prvio conhecimento do original deste, do original que ele
retratou, ou, melhor, que interpretou, que recriou artisticamente!
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 189
muito rico... mas de ona em ona, como tala de jeriv, que s cai
uma de cada vez... como pinho da serra, que s se descasca de um a
um!... (Salamanca).
frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido ao nascer do
sol (Ibid.).
Agora, comparaes com animais:
em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada como uma
jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda (Trezentas
Onas).
Viram h pouco a Tudinha comparada ao jeriv. Observem nova
comparao, de beleza ainda mais estranha:
Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-vir, as-
sustado: pretos, grandes, com luz dentro, tmidos e ao mesmo tempo
haraganos... pareciam olhos que estavam sempre ouvindo... ouvindo
mais, que vendo... (Negro).
No mesmo conto:
a mais santinha [das mulheres] tem mais malcia que sorro ve-
lho!...
Em outros:
batendo os dentes, como porco queixada... (Manantial).
renitente como mosca de ramada (Mate).
a mo do Juca Picum fechou-lhe o brao, como uma garra de ta-
mandu (Cabelos).
o corao, s vezes, trepa, dentro da gente, o mesmo que jaguatiri-
ca por uma rvore acima!... (Anjo).
castelhano se desguaritava por essas coxilhas, o mesmo que ban-
dada de nhandu, corrida a tiro de bolas!... (Ibid.).
andava por esse mundo, de gaudrio e teatino... como cachorro
chimarro (Penar).
arrepiado como um lombo de jaguar no cio (Salamanca).
Enredada como os caminhos dum cupim era a furna (Ibid.).
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 193
Dentro desse mato, .... h uma lombada redonda, como uma casca
de carumb (A Casa de Mboror).
Outra vez no Negro:
ela ficou como cobra que perdeu o veneno.
No Angera:
e foi como cobra que deixa a casca...
De novo na Salamanca:
que se estendia planchado como um corpo de cascavel em fria...
Novamente nos Cabelos:
Comia como um chimarro, dormia como um lagarto; valente
como qu...
Neste ltimo trecho, como se v, Simes Lopes Neto refere-se a
boi chimarro. Justamente porque o boi e, sobretudo, o cavalo so os
animais que se acham mais intimamente ligados vida do campeiro
gacho, as comparaes com eles so as mais numerosas:
O negro Bonifcio (do conto do mesmo nome) trazia
na cintura um tirador de couro de lontra debruado de tafet azul,
e mais cheio de cortados do que manchas tem um boi salino.
Numa briga por causa da Tudinha, ficou
todo esfuracado: a cara, os braos, a camisa, o tirador, as pernas,
tinham mais lanhos que a picanha de um reino empacador.
Quando a velha Fermina lhe varejou uma chocolateira de gua fer-
vendo,
O negro urrou como um touro na capa.
Com um bolao na cabea,
o negro caiu, como boi desnucado, de boca aberta, a lngua pontu-
da, mexendo em tremura uma perna, onde a roseta da chilena tinia,
mido...
O Chico, no seu libidinoso entusiasmo pela Maria Altina,
era, mal comparando, como um pastor no faro de uma guincha...
(Manantial).
194 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
O Mariano,
como um parelheiro largado de tronco, saltou pra diante e de ve-
reda atirou-se no manantial... (Ibid.).
Olhe, nunca me esqueo dizia Blau Nunes dum caso que vi
e que me ficou c na lembrana, e ficar t eu morrer... como unheiro
em lombo de matungo de mulher (Boi).
o corao vinha corcoveando como touro de banhado laado a
meia espalda (Negrinho). A comparao repete-se em Melancia.
Passados dois dias chegava o Costinha, como bagual com couro
na cola (Ibid.).
duas presas recurvas, grandes como as aspas de um tourito de so-
breano (Salamanca).
No raro que num mesmo perodo, at na mesma comparao,
estejam representados o mundo animal e o vegetal:
toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de colo-
rado, num padro esquisito, de feitios estramblicos... como flores de
cardo solferim esmagadas a casco de bagual!... (Contrabandista).
Face cor de pssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como
dente de cachorro novo; e os lbios da morocha deviam ser macios
como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju...
(Negro).83
Acontece, tambm, que, numa srie de comparaes, lhes sirvam de
objeto animais, seres humanos, coisas um elemento da natureza, e
ainda, indiretamente, um vegetal. Por exemplo:
Esse, dormia como quero-quero, farejava como cervo e rastreava
como ndio...; esse, quando carregava, era como um ventarro, abrindo
claros num matagal (Anjo).
Ou que a comparao tenha o animal como ponto de partida:
83 Ainda uma descrio da Tudinha. A rudeza ingnua dessa comparao dos
seus dentes com os de cachorro novo de incontestvel graa potica. At faz lembrar
o Cntico dos Cnticos, a poesia oriental.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 195
Pitoresco
Fora de qualquer relao, estreita ou longnqua, com o meio
ambiente, as comparaes no raro transbordam do mais vivo
pitoresco:
quatro sesmarias de campo, pegadas umas nas outras, e com umas
divisas largas... como goela de gringo!... (Melancia).
196 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
uma carta grande, fechada com mais obreias do que tragos de vi-
nho tem um copo de missa, de padre gordo!... (Ibid.).
Sem faltar, ainda, a nota potica:
olhava pra gente, como o sol olha pra gua: atravessando! (Duelo).
Esse pitoresco, porm, no est s nas comparaes. A todo instan-
te ele se acusa, no uso de certos modismos populares, expressivos e sa-
borosos.
Para traduzir bem a superioridade, o ar importante do preto Boni-
fcio, exclama Blau Nunes:
Era um governo, o negro!
No Manantial:
ainda hoje os marmeleiros carregam que uma temeridade!
Na mesma histria h um sujeito que
tinha o estmago frio
e outro, apaixonado, que
estava entregue, de rdea no cho.
Joo Cardoso o Joo Cardoso, velho de guerra pede ao an-
dante que espere pelo mate, que vem j: s
enquanto a galinha lambe a orelha!... (Mate).
Sia Fermina (Negro) no era velha propriamente:
Velha, um dizer, porque sia Fermina ainda fazia um fachado...
Ante a insolncia do castelhano gadelhudo (Deve um Queijo!...), o
vendeiro
farejou catinga agourenta, no ar.
E h mais ainda:
com um olho no padre, outro na missa (Duelo).
O sorro entrou no galinheiro... (Melancia).
A estrangeirada foi quem ensinou a gente de c a mergulhar e ficar
de cabea enxuta... (Contrabandista).
E mal que apertou os pelegos, montou, e foi que o rei manda
marchar, no manda chover (Melancia).
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 197
Concordncia
Silepse
Algumas vezes Simes Lopes Neto emprega a silepse, como neste
exemplo:
E que torunas! Cada bicho pesado, criado na pura grama vermelha,
ligeiros como gatos, e malevas, de acompanharem o lao, quase cabrestean-
do!... (Juca Guerra).
E nesta outra passagem, com que principia o Artigos de F do Gacho:
Muita gente anda no mundo sem saber pra qu: vivem, porque vem
os outros viverem.
a silepse de nmero, a mesma que se v nos versos de Cames:
Que gente ser esta, em si deziam,/Que costumes, que lei, que Rei te-
riam? A mesma que se v neste passo de Herculano: Misericrdia!
bradou toda aquela multido, ao passar por el-rei: e caram de bruos so-
bre as ljeas do pavimento (Lendas, I, 302.)
Infinitivo
Leia-se O Lobisomem:
Diziam que eram homens que havendo tido relaes impuras com
as suas comadres, emagreciam; todas as sextas-feiras, alta noite, saam
de suas casas transformados em cachorro ou em porco, e mordiam as
pessoas que a tais desoras encontravam; estas, por sua vez, ficavam sujei-
tas a transformarem-se em lobisomens...
Na Salamanca:
Num ms de quaresma os mouros escarneceram muito do jejum
dos batizados, e logo perderam uma batalha muito pelejada; e venci-
dos foram obrigados a ajoelharem-se ao p da Cruz Bendita... e a baterem nos
peitos, pedindo perdo...
No faltar quem aponte nos dois casos tremendo solecismo: im-
pessoal que devia ser ali o infinitivo, diro.
198 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
87 No se esquea que, uma vez atingido esse efeito, o poeta, logo na estrofe se-
guinte, emprega a concordncia comum, estando, contudo, o primeiro verbo bem
mais longe do segundo que no primeiro caso.
200 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
Regncia
A sua regncia, no raro, inteiramente pessoal mas geralmente
apoiada na analogia e dentro do gnio da lngua. Muitos verbos apare-
cem nas pginas dos CONTOS e das LENDAS com regimes que no
figuram mas podem ou devem figurar nos dicionrios.
Vejamos alguns deles:
E tais cuidados deu-lhe que a planta pegou, botando razes firmes
e espigando ramos e folhas (Manantial).
No se encontra nos lxicos espigar, nesta acepo, a no ser como
intransitivo.
Ora, pra qu?... Pra escaramuar os farrapos!... (Cabelos).
Neste sentido, no est dicionarizado como transitivo o escaramuar:
apenas como intransitivo e relativo.
Tanto no Correr Eguada como no Penar de Velhos vemos pronomina-
do o entreparar, que os dicionaristas s do como intransitivo.
No Manantial:
Mas, onde quero chegar (2 vezes).
de passagem para um destacamento onde ia levar ofcios.
Na Salamanca:
E me levars onde eu te encaminhar.
88 Bem mais expressivo este exemplo, do mesmo livro, e citado por Sousa da
Silveira: Pelas frestas e portas dessa multido de casas que, apinhadas roda do caste-
lo e como enfeixadas e comprimidas pela apertada cinta das muralhas primitivas de
Lisboa, pareciam mal caberem nelas, viam-se fulgurar, aqui e acol, as luzes interiores.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 201
Com que chegasse onde me tu levantas (Ibid., II, 104); pera acudir onde o
chamasse a necessidade. (Frei Lus de Sousa, Anais de D. Joo III, I, 239);
Vai, filha da ambio, onde te levam/O vento, e os mares (O Uraguai,
pp. 64-65); Vai onde a levam (Garrett, Obras Completas, I, 268); o seu pa-
laciozinho s abas da serra da Tranqueira, onde eu, em criana, tantas ve-
zes subi (Camilo, Estrelas Propcias, p. 91); Onde vais tu? (Machado de
Assis, Poesias, p. 160); Para ir onde ela mora/So caminhos e cami-
nhos/E um dia inteiro a viajar! (Alberto de Oliveira, Poesias, II, 252);
Ah! se eu tornasse onde estava/Com o luar que ento fazia! (Id., ibid., IV,
69); Espiando-a no pendor dos boqueires profundos,/Onde vinham
ruir com fragor as cascatas (Bilac, Poesias, p. 267); Sem indagar onde me
leva o amor (Vicente de Carvalho, Poemas e Canes, p. 262); Onde ides a
correr, melancolias? (Camilo Pessanha, Clpsidra, p. 74); Chegamos onde
devamos chegar (Miguel Torga, Dirio, I, 195).
Podem ainda ser vistas novas abonaes nas obras citadas de alguns
desses autores: Bernardim Ribeiro, II, 87, 159, 177, 191; Antnio
Ferreira, I, 140; Camilo, p. 149; Vicente de Carvalho, pp. 86, 280;
Torga, p. 9. E mais em: S de Miranda, Obras Completas, I, 287; Diogo
Bernardes, Obras Completas, II, 177...
Por outro lado, no so menos abundantes os casos de aonde por
onde. Consulte-se, por exemplo, Frei Pantaleo de Aveiro, Itinerrio, pp.
1, 4, 9, 12, 16, 18 e passim; Rodrigues Lobo, clogas, pp. 6 (4 vezes), 19,
32, 50, 66, 228 (3 vezes), 231 (4 vezes), 236 (2 vezes), e Corte na Aldeia,
p. 233; Frei Lus de Sousa, Anais, p. 234; Antnio de Sousa de Mace-
do, Arte de Furtar, p. 276; D. Francisco Manuel de Melo, Aplogos, p.
318; Toms Antnio Gonzaga, Obras Completas, pp. 12, 13 (2 vezes),
157; Baslio da Gama, O Uraguai, pp. 58, 92; Rebelo da Silva, Contos e
Lendas, pp. 10, 11, 20, 27, 28 e passim, Latino Coelho, Elogio Histrico de
Jos Bonifcio, p. 187; Machado de Assis, Poesias, p. 205; Gomes Leal,
Claridades do Sul, p. 57; Antero de Quental, Os Sonetos Completos, p. 90;
Antnio Nobre, S, p. 44; Jos Rgio, Poemas de Deus e do Diabo, p. 30.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 203
bem o caso dos versos desses dois poetas h uma singular inquieta-
o, nsia, angstia, no esprito de quem debalde pergunta pelo ser
querido e ausente. Se vem depois do onde, no precedido de pausa, um
ou mais vocbulos, que encerram a interrogao, a fraqueza do onde ar-
rima-se neste ou nestes vocbulos, deslocando-se a pausa do perodo,
o chamado acento oracional, para aquela nica palavra seguinte ao
onde, ou para a ltima delas, quando houver mais de uma. Tambm se
antes do onde vem, no antecedida de pausa, alguma palavra, a esta ele
se acosta, e refora-se por meio dela. Se, porm, depois do onde que ini-
cia perodo ou subseqente a uma pausa, existe outra pausa sobretu-
do se esta constitui o fim da interrogao o onde mostra-se fraco para
exprimir aquele estado angustioso de que h pouco se falou. Nesse
cuidado com o ser ausente, nessa procura ansiosa, a alma viaja a dis-
tncias, a regies longnquas, aonde ou para onde ele foi. A idia do partir,
da viagem do ser amado, permanece viva no esprito, e coexiste com a
do lugar onde ele se encontra, predominando sobre esta. Onde est? Aonde
foi? O pensamento espraia-se, viaja na direo desse impreciso alm; e
o onde fraco para receber a repentina carga do acento oracional, para
condensar a forte onda sbita, inesperada, daquela indagao aflita.
Ento o onde firma-se no a, nele se apia, apresentando-se, assim, com
intensidade bem maior. O a como que sugere um pouco do errar do
pensamento, da angstia da procura, angstia que cresce de ponto no
on tristonho da slaba tnica, seguinte, e parece atenuar-se em mgoa
resignada no de tono final.
Assim, Cludio pergunta a Nise: onde ests?; o onde recosta-se ao
vocbulo vizinho, no qual repousa o acento oracional; o poeta, a, pen-
sa mais no lugar onde ela se encontra. Mas logo depois, ao esprito, en-
tregue a essa preocupao, como que se lhe representa a viagem de
Nise para longe: aonde foi Nise? e a interrogao que se segue aon-
de? aonde? sugere bem, atravs desse a, a ida de Nise, e o prprio
andar do pensamento do namorado procura dela. Nessa dilatao do
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 205
Colocao
Como em geral nos modernos escritores, sobretudo talvez os brasi-
leiros, em Simes Lopes predomina nitidamente a ordem direta. Isto
no quer dizer, porm, que no use freqentemente a inversa quando
qualquer das duas ficaria bem ou, at, a direta seria prefervel.
No Penar de Velhos encontra-se:
nas lgrimas que dos olhos lhes caam.
Poder-se-iam apontar outros exemplos assim, sem maior significa-
o. Mas em alguns casos o escritor tira da construo inversa os mais
belos efeitos, como nestas passagens, colhidas na Salamanca do Jarau:
E no tranquito andava, olhando.
Talvez deitado estivesse entre as carquejas.
Fui sentenciado...; condenado fui.
outro mais rudo nenhum.
Citados assim, sem maior explicao, esses trechos no podem dar
idia do valor da ordem inversa; mas no conjunto assumem singular im-
206 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
Elipse
Nas pginas de Simes Lopes Neto aparecem constantes as elipses,
ou puramente literrias, ou colhidas na lngua viva do povo.
V-se na Salamanca:
esbravejando se soltasse o padecente.
Nenhuma novidade na ausncia do que.
J no to comum, porm, a falta de preposio de neste passo:
havia se ver o jeito a dar.
Esse uso do haver auxiliar sem o regime do de enraza-se na lngua
antiga, e pouco freqente na moderna sobretudo na falada. Ser do
prprio Simes Lopes influncia de leituras ou apanhado na con-
versa do guasca, na fala do
benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouo de oi-
tenta e tantos anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino?
Aqui o prprio Simes Lopes Neto quem fala, nos CONTOS
GAUCHESCOS, apresentando o seu heri. A elegncia da elipse nos
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 207
89 Os Lusadas, c. V, f. 86.
90 Ver Epifnio Dias, Sintaxe Histrica Portuguesa, p. 54.
91 Id., ibid.
92 Stiras, p. 6. Ver outro exemplo desse autor em Epifnio Dias, Sintaxe Histri-
ca Portuguesa, p. 54.
93 Obras, IV, 587.
94 Despedidas, p. 16.
208 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
Pleonasmo
Numa associao de idias por contraste, da elipse chega-se ao pleo-
nasmo. O pleonasmo vicioso praticamente no existe em Simes Lo-
pes Neto. J o pleonasmo-figura anda abundante pelas suas pginas;
alguns de sabor claramente popular, outros resultantes de influncia
literria. um dos traos reveladores do fundo ao mesmo tempo cls-
sico e popular da sua prosa: a tendncia ao pleonasmo muito da ln-
gua antiga e persiste viva na linguagem do povo, no adagirio, em ex-
presses jurdicas estereotipadas.106
A certa altura do Boi Velho se l:
tal e qual como uma pessoa penarosa.
E em outros contos, tambm; por exemplo, na Salamanca.
Coisa semelhante a isso o igual como, usado por Gil Vicente: seus
olhos resplandeciam/como estrelas igual (Obras Completas, f. CCLV, v.).
Agora o reforo da negativa:
E devia ter mesmo muita fora o condo, porque nem os navios se
afundaram, nem os frades de bordo desconfiaram, nem os prprios
santos que vinham, no sentiram... (Salamanca).
Considere-se a arte desse reforo. O autor no se serve dele nos
dois primeiros casos; s no ltimo. E por qu? V-se bem: porque en-
tre o sujeito santos e o verbo sentiram medeia uma orao
a subordinada que vinham. A presena dela no somente separa
muito o sujeito do predicado, como, sobretudo, determina uma pausa
antes deste, quebrando um pouco o andamento da orao principal e
amortecendo, assim, a fora negativa do nem distante. A interferncia
do vinham, em sentena afirmativa, o qual, sem o emprego do
no, ficaria encostado ao sentiram, tende a apagar um tanto o ca-
rter negativo deste verbo. Experimente-se a supresso da negativa, e
veja-se o resultado.
Dois exemplos, em Gil Vicente, desse redobro da negao: E a
mesa de meu senhor/iraa sem ave de pena? Quem? e vs sois com-
prador?/pois nem grande nem pequena/nam matou o caador. (Obras
Completas, f. XXXVI, v.); Porque no nosso lugar/nam dam por vir-
tudes pam./Nem casar nam vejo eu/por virtudes a ningum. (Ibid., f.
XXXVII, v.). E um de Joo de Barros: nem todos que insinam ler e
escrever nam sam para o ofcio que tem (Dilogo da Viciosa Vergonha, f.
57, v.).107
Leio na Salamanca:
E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito.
Lembre-se bem o que j ficou dito sobre a Salamanca. E tenham-se
em vista estes exemplos: Torn-la-ei a afogar/despois que ela sair
fora/da igreja (Gil Vicente, Obras Completas, f. XLI, v.); Quando
el-rei entrou dentro daquela espantosa casa, apenas atravs da grande ja-
nela que a alumia entrava uma luz frouxa (Herculano, Lendas, I, 255).
E mais: sobe(m) para cima, na Imagem, de Frei Heitor Pinto (I, 13, e
IV, 100).
Que
as mulheres desataram num pranto de choro
l-se no Penar.
Simes Lopes Neto deve ter ouvido isto, como tantas outras coi-
sas, na boca do povo. A expresso tambm aparece na fala de um ho-
mem rstico, personagem de um dos contos dos Ermos e Gerais, de Ber-
nardo lis: Largue desse pranto de choro, minha nega! (p. 19); e nos
Contos Populares Brasileiros, de Lindolfo Gomes (p. 32). Na Vida de
Telo e Notcia da Fundao do Mosteiro de S. Cruz de Coimbra, in
Portugali Mon. Historica, Scriptores, pp. 77-78,108 est: Oo quanto seria
longo de contar o planto e choro dos religiosos e irmos e dos cnigos
por dom Telo. Na Crnica de Dom Joo II, escreve Garcia de Resende:
Levantou-se tamanho choro, e pranto em todos, que era piedosa e mui
triste cousa pera ver (p. 200). Que nos deixaste c em choro, e pranto!
encontra-se nas Obras Completas de Diogo Bernardes (II, 11). Joo de
Barros, nos Panegricos (p. 19): Em cada parte eram ouvidos choros,
prantos e lamentaes. Damio de Gis, p. 30 da Crnica do Prncipe D.
Joo: E sobretudo cos prantos, lgrimas e choros das mulheres. E Antnio
Ferreira: No se ria em ti nunca, nem soua/Seno prantos, e lgrimas
(Poemas Lusitanos, II, 300).
Lembre-se, alis, que nestes casos talvez nem sempre se trate de pleo-
nasmo; na parte de Sinnimos do seu Dicionrio, escreve Lacerda: Chorar
derramar lgrimas: Tambm nascem chorando os reis. Vieira. Pran-
tear soltar vozes queixosas, acaso acompanhadas de choro. Prantear
significa palavras, chorar significa lgrimas. Vieira. Pranteou o morto
com tantas mgoas. Couto. E notem-se estes sentidos latinos de planctus:
o bater no peito em sinal de grande aflio, d, etc.; o pranto com
gritos, e golpes no peito (Magnum Lexicon).
Essa distino entre prantear, soltar vozes queixosas, e chorar, der-
ramar lgrimas, parece bem clara no seguinte passo de Diogo Bernar-
des: Os dous tristes pastores sospirando/A lngua ao prto dando, olhos ao
choro,/Querem pagar o foro em mgoa, em dor/ vida que na flor vi-
ram cortada (Obras Completas, II, 9).109
Quem no se lembrar daquele Vi claramente visto o lume vivo/Que a
martima gente tem por santo, dos Lusadas,110 ao ler no fim do Anjo:
e ouvi, patentemente, ouvi bem ouvido, o velho macota, o Anjo da Vitria,
morto como estava, gritar ainda e forte Viva o Imperador! Carrega!?
Na Salamanca:
E raivado entre dois amargos desesperos no atinava sair deles: se
das riquezas, que eu queria s para mim, se do seu amor, que eu no queria
que fosse seno meu, inteiro e todo!
109 Sabe-se que so formas clssicas ambos de dois (Cames, Os Lusadas, c. IV, f.
74); ambos os dois (Herculano, O Monge de Cister, I, 102); mas porm (Cames, Os Lusadas,
c. VI, f. 99, v.); e muitas outras. Mas os mdicos todavia so mais cruis para mim, &
para o mundo todo: isto dos Aplogos Dialogais, de D. Francisco Manuel (p. 318).
Nas Cartas Devolvidas (p. 13), escreve Joo Ribeiro: Quaresma pstuma, dirs, mas en-
tretanto quaresma devida e paga. Bernardim Ribeiro nos depara um e porm contu-
do (Obras, p. 127). Agora esthora acha-se em Gil Vicente (Obras Completas, XC).
L-se em Frei Tom de Jesus: Por isso arremeteram a ele em se comeando a vestir, e
o tornaram a despir nu, como de antes (Trabalhos de Jesus, II, 156). Em sua Histria de So
Domingos (I, 300), fala-nos Frei Lus de Sousa de milagre perptuo, e perene.
110 C. V, f. 82, v.
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 215
Aliterao
para notar o efeito da aliterao no trecho seguinte, da Salamanca:
O padre superior tremeu como em ter e tartamudo e trpego marchou
para o povoado.
Como o tremor do padre se prolonga atravs desses ts e erres as-
sim reiterados! Temos a a harmonia imitativa.
A cadncia do perodo seguinte, sincopada e igual, sugere admira-
velmente o coxear da personagem, uma velha:
E foi andando, estradinha afora, lomba acima, apurando o passo,
um pouco renga (Manantial).
Repetio
A repetio um dos muitos problemas do homem de letras cons-
ciente do seu ofcio. Se a despreocupao de evit-la acarreta ao estilo
monotonia e frouxido, por outro lado o empenho em fugir dela a
todo custo pode induzir a defeito pior: quebra da naturalidade e flui-
dez, e, conseqentemente, a uma hirta desumanidade da expresso.
Porque se a lngua escrita no nem deve ou pode ser, a reproduo da
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 217
E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gacho
pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando, sem topar coo boi barroso.
Aqui a repetio serve admiravelmente para suscitar aquela atmos-
fera misteriosa da lenda.
Note-se que a repetio existe no s nas palavras sublinhadas, mas
no tom dos trs perodos que precedem o ltimo: Gacho valente ....
ainda era valente, agora; mas....; Domador destorcido e parador ....
ainda era domador, agora; mas....; De mo feliz para plantar .... ain-
da era plantador, agora, mas.....
Outro aspecto da repetio, nesse mesmo passo, encontra-se na-
quele eco de to belo efeito campeando, campeando... Campeando
e cantando.
Reticncias
No h como fugir a esta verdade: o autor dos CONTOS
GAUCHESCOS abusa das reticncias. Contam-se pelos dedos as p-
ginas de seus livros em que elas no aparecem e quase sempre mais
de uma vez numa mesma pgina sozinhas ou em companhia de ou-
tro sinal de pontuao, sobretudo ponto-e-vrgula ou ponto exclama-
tivo. Do ponto-e-vrgula ora elas vm frente, ora o que menos co-
mum atrs. No sou dos que tm o tolo preconceito contra as reti-
cncias ou a exclamao. Mas h que limitar o seu uso aos casos estri-
tamente necessrios. Por que tantas suspenses de pensamento ou tan-
tas admiraes? Ento o emprego conjugado dos dois sinais, esse rara-
mente me parece indispensvel. Creio que tais sinais, sendo, como so,
psicolgicos, no se impondo como necessidade da respirao, podem
muitas vezes ser dispensados, com vantagem para o estilo. O efeito
que o autor pretende atingir com eles deve antes resultar do conjunto
da composio, da sua arte literria, do que se impor custa daquele
artifcio. O abuso deles desvaloriza-os. Se o escritor os distribui com
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 221
Variedade
Algumas vezes Simes Lopes Neto concilia a variedade com a na-
tural monotonia da repetio:
Por onde ele andou, andei eu; passou, passei; carregava, eu carregava; fazia
cara-volta, eu tambm (Anjo).
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 223
Sabor clssico
J se ter falado, neste ensaio, de certo sabor clssico do estilo de
Simes Lopes Neto. Uma das caractersticas desse fato o emprego
do que em vez do ou:
uma que outra perdiz (Trezentas Onas).
um que outro estancieiro (Correr Eguada).
Outra o uso do sobre que se v nestas passagens, do Contrabandista e
da Salamanca:
Lingu agem e Esti lo de Si m es Lo p e s N e to 225
Eco
Mas a arte, embora pouco transparente, de Simes Lopes Neto, em
conciliar a simplicidade com a elegncia de estilo, no o fez fugir de
todo a certos descuidos que teria facilmente evitado. No raro incor-
reu, por exemplo, no eco. Certo, nenhum escritor se livra destas cila-
Versos
Se a rima costuma, sorrateira, insinuar-se na prosa, tambm no
muito raro que o excessivo apuro no ritmo leve sucesso de versos da
mesma medida. Sabe-se quantas vezes isso tem acontecido, e j se tem
citado largamente, em portugus, a propsito, exemplos de Ea de
Queirs. Joo Ribeiro112 aponta diversos de Frei Lus de Sousa. De
Preciosismo
To perfeita por vezes a construo, to finamente trabalhada,
que deixa transparecer um tudo-nada de preciosismo, como na seguin-
te passagem, tambm colhida na Salamanca:
114 Exibies a que tantas vezes cedeu Alcides Maia, apesar do tom sereno e sim-
ples de algumas de suas pginas.
230 Aur li o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
Realismo na simplicidade
Agora esta nota realista, sem dvida mais simples, mas muito pode-
rosa tambm na sua simplicidade:
L estava a senhora, com a cabea arrebentada a olho de macha-
do... O fogo apagado, a banha coalhada, os beijus frios... e mui a seu
gosto, de papo para o ar, dormindo na saia da morta, uma gata brasina
e a sua ninhada (Ibid.).
Lirismo
Por vezes, como para conjurar os possveis arrepelamentos da tra-
gdia, o escritor sabe diluir as tintas, alcanando soluo em que h
um toque de lirismo, mas lirismo real, que no se perde em palavras:
Nas paradas da reza s se ouvia os soluos da me do Chico e um
leve guasqueio do vento nas talas dos jerivs (Ibid.).
H em Simes Lopes Neto, sem dvida, um poeta. Poeta, sim, mui-
tas vezes um poeta romntico; sensibilidade fina e tensa, capaz de es-
234 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
Animismo
Veja-se com que beleza e fora ele transmite s coisas abstratas os
atributos dos seres vivos:
O mesmo silncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os
olhos. (Contrabandista).
115 Quem ignora os efeitos que Ea de Queirs soube tirar do eco! Veja-se, a respei-
to, o meu estudo Linguagem e Estilo de Ea de Queirs, republicado neste volume.
236 Aur li o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
E na Salamanca:
Depois um grande silncio balanou no ar, como esperando...
Certo que no criao do autor esse animismo estilstico; mas Si-
mes Lopes Neto tira do processo efeitos verdadeiramente incomuns.
Frases assim so de algum que tem sangue e nervos de verdadeiro es-
critor; nascem de um frmito de sensibilidade inteligente.
Tom bblico
Outro aspecto desse estilo? Leiam:
Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pssaros
e a casca das frutas.
Passou a noite de Deus e veio a manh e o sol encoberto.
E trs dias houve cerrao forte, e trs noites o estancieiro teve o
mesmo sonho (Negrinho).
H nisto uma beleza e uma grandeza bblica. O estilo, todo em ora-
es coordenadas, e quase todas sindticas, e com o paralelismo do l-
timo perodo, acusa uma religiosa gravidade de ritmo; e h um grave
toque de poesia csmica nesse rpido desfilar da Criao: as coisas que
a serenada molha pastos, cascas de frutas, asas de pssaros e a ma-
nh, e o Sol, e a noite, a noite de Deus.
ABREU, Casimiro de
Obras de Casimiro de Abreu ed. organizada, prefaciada e anotada por
Sousa da Silveira Cia. Editora Nacional, So Paulo, 1940.
ALARCON, Pedro A. de
Historietas Nacionales Empresa Editora Zig-Zag, Santiago do Chile,
1944.
240 Aurli o Bu arqu e de Ho landa F e r r e i r a
ALEXANDRE HERCULANO
Eurico, o Presbtero 27.a ed. Livraria Aillaud e Bertrand, Paris Lis-
boa, s. d.
Lendas e Narrativas 13.a ed., 2 vols. Livrarias Aillaud e Bertrand, Pa-
ris Lisboa, 1918.
O Bobo 18.a ed. Livraria Bertrand, Lisboa, s. d.
O Monge de Cister 11.a ed., 2 vols. Livraria Aillaud e Bertrand, Paris
Lisboa, s. d.
ALMEIDA, Fialho de
Aves Migradoras 5. milhar Livraria Clssica Editora, Lisboa, 1922.
Figuras de Destaque 5. milhar Livraria Clssica Editora, Lisboa,
1923.
Lisboa Galante 3.a ed. Livraria Chardron, Porto, 1920.
O Pas das Uvas 6.a ed. Livraria Clssica Editora, Lisboa, 1922.
ALMEIDA GARRETT
Obras Completas de Almeida Garrett ed. prefaciada, revista, coordenada e
dirigida por Tefilo Braga; 2 vols. Livraria H. Antunes, Rio
Lisboa, s. d.
AMARAL, Amadeu
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B i bl i o g r a f i a 255
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A
ABERTA, s. f. Clareira.
ABICHORNADO, adj. 1. Desanimado, abatido. // 2. Vexado, en-
vergonhado. // 3. Acovardado, aniquilado. [Cf. abochornado = quen-
te, abafadio, e, no Minho, adoentado.]
A BOCHE, loc. adv. Em grande quantidade; muito. [De origem espa-
nhola.]
ABOMBADO, adj. 1. Impossibilitado de continuar viagem por cansa-
o devido ao calor (diz-se do cavalo). // 2. Esfalfado; exausto; arque-
jante (animal ou, por extenso, pessoa). [Usado em So Paulo tam-
bm. Platinismo.]
ABRIR OS PANOS, loc. verb. Ir-se embora; fugir; abrir nos paus,
abrir-se.
ACHADIO, adj. Achadio. [Achadio no est em nenhum dicionrio.
Talvez seja criao do autor, perfeitamente normal; o sufixo -io con-
corre com -io em muitas palavras: corredio e corredio, escorregadio e escorre-
gadio, fugidio e fugidio, resvaladio e resvaladio, etc.]
Glossrio 259
APURAR, v. t. e p. Apressar.
AQUERENCIADO, adj. 1. Diz-se do animal acostumado a um lugar
certo, ou a andar junto com outros animais. // 2. Aplica-se, figurada-
mente, s pessoas. [Espanholismo. Tambm usado em Minas ver J.
Guimares Rosa, Sagarana, p. 140 e, provavelmente, em So Paulo.
Ver Querncia.]
ARISCAR-SE, v. p. Tornar-se arisco, esquivo; espantar-se. [Cndido
de Figueiredo, que o primeiro a registrar este verbo, define-o como
transitivo: recusar, e como pronominal: ser arisco, citando, em
cada caso, um exemplo de Filinto Elsio. No segundo caso, o exemplo
de mim, Clo, te ariscas no se harmoniza bem com a definio;
em vez de ser arisco, fora melhor esquivar-se, fugir (ao prpria
de pessoa ou animal arisco). Taunay Lxico de Lacunas consigna o
verbo como transitivo, com o sentido de tornar arisco, espantar, que
coincide com a acepo dada palavra por Simes Lopes Neto.]
ARMADA, s. f. Roda que se faz com o lao quando se pretende ati-
r-lo para prender a rs. [Americanismo.]
ARPISTA, adj. Desconfiado; prevenido; assustadio; arisco. [Tam-
bm se usa alpista.]
ARPISTAR-SE, v. p. Mostrar-se arpista; assustar-se. [O mesmo que
alpistar-se.]
ARRANCA-RABO, s. m. 1. Discusso, bate-boca. // 2. Barulho, bri-
ga, conflito.
ARRANCHAMENTO, s. m. Casa de moradia no campo, com seus
acessrios currais, galpes, etc. ou sem eles.
ARREADOR, s. m. Relho comprido com que o campeiro toca os ani-
mais. [Americanismo; usado na Argentina, na Colmbia e no Peru.]
ARREGANHADO, adj. Aplica-se ao cavalo que, em tempo de calor
intenso, depois de marcha imoderada, havendo bebido pouco, aco-
metido de uma espcie de espasmo que se caracteriza pela contrao
dos maxilares e das narinas e o faz perder muito em resistncia. [No
Glossrio 265
B
BAGUAL, s. m. e adj. 1. Potro recm-domado. // 2. Cavalo novo e
arisco. Adj. 1. Arisco; espantadio. // 2. Grosseiro, rstico. // 3.
Muito grande. [Usado tambm no Paran, na forma bagu, menos
no ltimo sentido: ver Silva Murici, Algumas Vozes Regionais do Para-
n; e na mesma forma, em relao a animal, em So Paulo: ver Val-
domiro Silveira, Os Caboclos, p. 95. Do emprego do termo com refe-
rncia a boi, em Santa Catarina, cite-se esta abonao: O Antnio
Rego, que viera dos Ratones com uma tropa de bois xucros: o Jus-
tino j tinha apartado um para a vara; era um bagual, o raio, procura-
va a gente que nem um cachorro e, na Cachoeira, segundo diziam,
partira dous laos s de um tiro!... Virglio Vrzea, Mares e
Campos, p. 68. Fem.: baguala.]
BAGUALADA, s. f. 1. Manada de baguais. // 2. Os baguais em geral.
[Tambm de uso em Minas: ver Afonso Arinos, Pelo Serto, p. 13.]
BAIO, s. m. Cigarro feito de fumo crioulo e palha de milho.
BALANANTE, adj. Que balana. [No dicionarizado. Cf. Cornlio
Pires, Conversando ao p do Fogo, p. 42.]
Glossrio 267
vidas num couro espesso retovo ou, ainda, por pequenos cacos de
panela de ferro que, no mesmo envoltrio, tomam forma arredonda-
da. Estas esferas ligam-se entre si por meio de cordas de couro, deno-
minadas soga das boleadeiras. Duas das bolas so de igual tamanho, e a ter-
ceira, menor, chamada manicla ou manica, a que o boleador empunha
para manejar o conjunto. [O mesmo que bolas, pedras e trs-marias.]
BOLEADO, s. m. Superfcie boleada, torneada, arredondada. [No
registrado como substantivo nesta acepo.]
BOLEADOR (), s. m. Aquele que atira as bolas ou boleadeiras.
BOLEAR, v. t. Atirar as bolas ou boleadeiras a (o animal), para apa-
nh-lo. BOLEAR A PERNA, loc. verb. Apear-se do cavalo.
BOLICHE, s. m. Pequenina casa de negcio; bodega, taberninha.
BOLICHEIRO, s. m. Proprietrio de boliche.
BOLIVIANO, s. m. Moeda boliviana de prata, que tinha curso no Rio
Grande do Sul e valia, aproximadamente, 800 ris.
BOMBACHA, s. f. Calas muito largas, apertadas acima dos tornozelos
por meio de botes; muito usadas pelos campeiros. [A palavra, que se
emprega mais no plural, antiga na lngua, e designava cales largos,
que se atavam por baixo dos joelhos Figueiredo. No Rio Grande do
Sul as bombachas so de uso relativamente moderno escreve Lus
Carlos de Morais pois, na descrio da indumentria gacha, feita
[na obra Notcia Descritiva da Provncia do Rio Grande de So Pedro do Sul] por
Nicolau Dreis, que por aqui esteve em 1817..., no se encontra esta ves-
timenta. Usa-se tambm o termo em Gois: ver Carvalho Ramos, Tro-
pas e Boiadas, p. 178. Em Joo do Rio, carioca, l-se: Fuzileiros navais
brios, malandros de cala bombacha, marinheiros, formavam grupos peri-
gosos, fora da calada. Dentro da Noite, p. 265.]
BOMBEAR, v. t. e int. Espionar; espreitar, observar, vigiar.
BOMBEIRO, s. m. Espio ou observador do campo inimigo; esculca.
BOQUINHA, s. f. Beijo, bicota. [Usado talvez em todo o Brasil.]
BOTEIRO, s. m. Aquele que governa um bote.
Glossrio 271
C
CABELAMA, s. f. O conjunto dos cabelos ou plos de um animal; pe-
lame. [No registrado nesta acepo.]
CABORTEIRO, adj. 1. Diz-se do cavalo manhoso, infiel, arisco, ve-
lhaco. // 2. Fig. Aplica-se pessoa velhaca, tratante, que no merece
confiana. [H em So Paulo caborteiro ver O Dialeto Caipira, p. 99 e
cavorteiro ver Cornlio Pires, Conversas ao p do Fogo, p. 14.]
CABOS-NEGROS, adj. Aplica-se ao cavalo baio ou gateado que tem
os quatro ps, a clina e a cauda pretos.
CABRESTEAR, v. int. 1. Andar conduzido pelo cabresto. // 2. Obe-
decer facilmente trao do lao.
CABRESTILHOS, s. m. pl. Correias estreitas de couro, ou correntes
de metal, que prendem a espora ao p. [Tambm se usa no singular.]
CACHIMBO, s. m. Clice (de flor).
CAFIFE, s. m. 1. Pequeno cofre, ou bandeja, em que se recolhe o bara-
to nos jogos de cartas ou no de vspora. // 2. P. ext. O barato.
CAIAMBOLA, s. m. Escravo que andava fugido, e que muitas vezes se
acoitava em quilombos. [O mesmo que canhembora, canhambora, canham-
bola, calhambora, quilombola.]
CAJETILHA, s. m. Sujeito presumido; janota, almofadinha. [Nome
dado pela gente do campo aos rapazes da cidade. O j aspirado. Do
platinismo cajetilla.]
CALAVERA (), s. m. Indivduo velhaco, caloteiro, caborteiro.
[Espanholismo.]
CALIFRNIA, s. f. Corrida de cavalos, em que tomam parte mais de
dois, muito usada outrora no Rio Grande. CALIFRNIA DE CHICO
PEDRO, loc. s. f. Nome por que conhecida a luta que, de fins de 1849
a 1850, travou o Coronel Francisco Pedro de Abreu (mais tarde gene-
ral e Baro do Jacu) contra as foras da Repblica Oriental (Uru-
guai), pelo fato de haver o governo desse pas confiscado, ou onerado
com pesadssimos impostos, as propriedades dos brasileiros ali resi-
Glossrio 273
por entre as pernas, era presa cintura, nas extremidades, por uma cin-
ta de couro ou pelo tirador. [Do quchua chiri, frio, e ppacha, roupa
ou veste Malaret, Diccionario de Americanismos. Que o chirip est hoje
em desuso, ou quase, prova-o a seguinte quadra popular apud Calla-
ge, Vocabulrio Gacho:
A gaita matou a viola,
O fsforo matou o isqueiro,
A bombacha o chirip,
A moda o uso campeiro.]
CHIRU, s. m. ndio, caboclo.
CHURRASCO, s. m. Carne sangrenta assada no espeto. (Callage).
Lus Carlos de Morais, porm, escreve: D-se este nome ao assado
feito sobre as brasas, isto , jogando-se o pedao de carne fresca dire-
tamente sobre as brasas, sem auxlio de espeto, ao passo que o assado
propriamente dito, isso que por a se diz erroneamente churrasco,
feito recorrendo-se ao auxlio do espeto, no qual a carne espetada e
assim levada ao fogo, sem nunca toc-lo diretamente. Churrasco pode
ser feito com a carne com o couro ou sem ele. A definio de Roma-
guera Correia pedao de carne sangrenta e mal assada sobre as bra-
sas ou labaredas confirma a de L. C. de Morais. Assim tambm a de
Tito Saubidet: Asado hecho sobre las brasas o cenizas calientes.
CHURRASQUEAR, v. int. 1. Comer churrasco. // 2. Tomar refei-
o ligeira. // 3. Comer. T. Comer.
CHUSPA, s. f. Bolsinha feita com a pele do papo da avestruz, ou de
outro couro, ou de pano, para guardar dinheiro, fumo e papel de cigar-
ro, ou outras coisas. [Americanismo. Do quchua chchuspa. No dicio-
narizado.]
CHUVISQUEIRO, s. m. Chuva mida; chuvisco. [Tambm se empre-
ga em So Paulo ver Valdomiro Silveira, Nas Serras e nas Furnas, p. 49
e em Gois ver Carvalho Ramos, Tropas e Boiadas, p. 170.]
CINCHA, s. f. Uma das peas do arreamento: a que aperta o lombilho.
280 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
D
DANAROLA, s. f. Bailarico, dana. [No dicionarizado.]
DE AGALHAS, loc. adj. Forte; vistoso; admirvel. [No dicionarizada
esta acepo. Alguns lxicos registram agalhudo = esforado, forte, au-
daz.]
DE ATRAVESSADO, loc. adv. De travs, de esguelha, de lado. [No
dicionarizado.]
DEBOCHEIRA, s. f. Grande troa ou deboche; zombaria, deboche.
DE BOLAP, loc. adv. Ora nadando, ora andando (por estar cheio o
rio, no permitindo que se tome p durante toda a travessia). [O mes-
mo que a bolap. Do esp. a volapi.]
DE CARACAR, loc. adv. De pouco ou nenhum valor; de cacarac.
[No dicionarizado.]
DE CHAROLA, loc. adv. E a Tudinha l foi, de charola. Poder-se- en-
tender carregada, como o santo que vai de charola ou em charola (no an-
dor); ou se tomar mais figuradamente a expresso, entendendo-se que
a Tudinha seguiu acompanhada de perto pelos seus admiradores, que a
cortejavam tanto, mostrando-se to fervorosos, que parecia estarem le-
vando uma santa no andor. Comentando esta passagem das Memrias de
um Sargento de Milcias: Caminhavam eles [os meninos] em charola atrs
da procisso, Joo Ribeiro diz que se lhe afigura pouco clara, a, a
palavra charola, que significa andor, o que impossvel depreender do
contexto do pargrafo; e adiante escreve: Alguns dos meninos, a que
Glossrio 285
E
ECHAR CUENTAS DE GRAN CAPITN, loc. verb. Indica a exor-
bitncia das parcelas de uma conta feita arbitrariamente e sem a devida
justificao, em aluso s que Gonzalo Fernndez de Crdoba, alcu-
nhado el Gran Capitn, apresentou, depois de haver conquistado o
reino de Npoles, ao rei Fernando o Catlico, a pedido deste. Eis aqui
algumas de tais parcelas: duzentos mil e setecentos e trinta e seis du-
cados e nove reais em frades, monjas e pobres para que rogassem a
Deus pela vitria das armas espanholas; em ps, picaretas e alvies,
cem milhes; cem mil ducados em plvora e balas; dez mil duca-
288 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
F
FACHUDO, adj. Garboso; elegante; distinto.
FALARAZ, s. m. Falatrio. [No dicionarizado.]
294 Aurli o Bu arqu e de Ho landa F e r r e i r a
essa obra; veja-se, p. ex., 60: Se [a] alguu dizem que cavalgue em al-
guu cavalo fazedor, e el, receando perigoo ou vergonha, o nom ousa
fazer, claramente mostra que nom tem naquele feito a voontade segu-
ra. Fazer aparece no mesmo livro na acepo tambm consignada no
glossrio de embravecer; veja-se: E as spendas da sela, se ouver de
cavalgar em besta que faa, sejam taais que se nom abalem per de so as
pernas. p. 32. Creio que se h de subentender, a, um objeto direto
do verbo fazer: manha, velhacaria. Cf. o significado de fazer em altana-
ria: perseguir a caa. Assim, cavalo fazedor ser o que faz manhas e
mos fazedoras aquelas que fazem o bem.
FAZER BOCA, loc. verb. 1. Comer alguma coisa para que o vinho
saiba melhor. // 2. Fig. Fazer alguma coisa como ponto de partida
para uma ao mais importante. [No est nos dicionrios o senti-
do figurado.]
FAZER-SE DE SANCHO RENGO, loc. verb. Fazer-se de tolo, de de-
sentendido. [No dicionarizado. Do platinismo hacerse el chancho rengo.]
FAZER UM FACHADO, loc. verb. Fazer tima figura, pela boa apa-
rncia, pela beleza ou elegncia. [No dicionarizado. Cf. fachudo e o sen-
tido de presena, semblante, aparncia, que tem a palavra fachada.]
FERVIDO, s. m. Cozido (nome de um prato). [Tambm se diz puchero.]
FESTO, s. m. Festa, festejo, baile.
FIADOR (), s. m. Parte do bual que, passando pela regio jugular
do cavalo, lhe cinge o pescoo. GANHAR DE FIADOR: ganhar na car-
reira (o cavalo) s pela distncia que vai da cabea at a garganta.
FIEL, s. m. Ala de couro no cabo do rebenque ou do relho, na qual se
introduz a mo para empunh-los.
FILA TESTA, loc. s. Fila da testa, isto , da frente, da vanguarda.
FLACO, adj. e s. m. Fraco. [Espanholismo.]
FLECHOSO (), adj. Semelhante a uma flecha ou seta. [No diciona-
rizado.]
FLETE, s. m. Cavalo bom, rdego, de bela aparncia. [Americanismo.]
296 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
G
GADARIA, s. f. 1. Grande quantidade de gado. // 2. As reses de uma
estncia.
GAGINO, s. m. Galo cuja plumagem se assemelha da galinha. [Si-
mes Lopes Neto usa a palavra em relao a um homem, com sentido
depreciativo, portanto sentido no dicionarizado.]
GALO-LARGO, s. m. Militar de alta graduao. [No dicionarizado.]
GALOADO, adj. Agaloado. [No dicionarizado.]
GALOPEADO, adj. Semelhante ao galope; que pela velocidade se
aproxima do galope. [No dicionarizado neste sentido.]
Glossrio 297
GUASCA, s. f. Tira de couro cru que tem muitas serventias nos miste-
res do campo. S. m. 1. Homem do campo ou do interior; gacho. // 2.
Rio-grandense-do-sul; gacho. [Usado tambm, no primeiro sentido,
em Santa Catarina Virglio Vrzea, Mares e Campos, p. 122 no Para-
n Silva Murici, Algumas Vozes Regionais do Paran e em So Paulo
Cornlio Pires, Conversas ao p do Fogo, p. 167. Do quchua huasca. Quan-
to aos sentidos desse americanismo, ver guasca em Granada, Vocabulario
Rioplatense; e huasca em Arona, Diccionario de Peruanismos.]
GUASCAO, s. m. Golpe de guasca. Correada. [Do americanismo
guascazo.]
GUASQUEAR, v. t. 1. Aoitar com uma guasca. // 2. Aoitar, fusti-
gar. [Tambm usado em So Paulo: Ver Valdomiro Silveira, Nas Serras
e nas Furnas, p. 89.]
GUASQUEIO, s. m. Ato de guasquear. [No dicionarizado.]
GUASQUEIRO, s. m. Aquele que trabalha em guascas.
GUINCHA, s. f. 1. gua, poldra. // 2. Fig. Mulher despudorada.
GURNIR, v. t. Suportar, agentar, curtir.
H
HARAGANEAR, v. int. 1. Andar solto (o animal), durante muito
tempo, sem prestar servio, tornando-se arisco, fugitivo. // 2. Fig.
Andar sem ocupao; vadiar.
HARAGANO, adj. 1. Aplica-se ao cavalo que, por viver muito tempo
solto, sem prestar servios, se torna arisco, espantadio. // 2. Esperto;
matreiro; vivaracho.
HOM! interj. Hum! [No dicionarizado.]
I
ILHAPA, s. f. Parte mais grossa do lao, cuja extremidade presa ar-
gola. [Usado em So Paulo tambm: ver Amadeu Amaral, O Dialeto
Glossrio 301
J
JACUBA, s. f. Refresco que se prepara com gua, cachaa ou leite, fari-
nha de mandioca, e acar ou mel. [Os dicionrios no incluem o leite
entre os ingredientes.]
JAGUAN, adj. e s. m. Diz-se de, ou animal vacum que tem o fio do
lombo e o ventre brancos, e os lados de cor preta ou vermelha.
[Tambm usado em Gois ver Carvalho Ramos, Tropas e Boiadas,
p. 68, e em So Paulo; Amadeu Amaral Dialeto Caipira define:
diz-se do boi malhado de certa maneira, e compara a sua defini-
o com a de Romaguera Correia, que semelhante do presente
Glossrio. Em Sagarana, do mineiro Guimares Rosa, v-se jaguans.
Argent. yaguan.]
JAGUATIRICA, s. f. Carnvoro feldeo (Felis pardalis). [ tambm
chamado maracaj, gato-do-mato-grande, etc.]
JANTAROLA, s. f. Jantaro; banquete. [No dicionarizado.]
302 Aur li o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
L
LAAO, s. m. Golpe dado com um aoite qualquer (lao, corda, re-
lho, vara, etc.); relhao, guascao.
LAO, s. m. 1. Corda feita de tiras de couro cru, bastante comprida,
chegando a ter quinze braas; de grande utilidade nos misteres do
campo, e compreende quatro partes distintas: a argola, a ilhapa, o corpo do
lao e a presilha. // 2. Ponto terminal da cancha de corrida.
LADEADO, adj. Pendido para um lado; inclinado. [No dicionariza-
do neste sentido.]
LADO DE LAAR, loc. s. m. O lado direito do animal cavalar ou va-
cum, por onde eles so laados. [O lado esquerdo o lado de montar.]
PELO LADO DE LAAR, loc. adv. Abruptamente; rudemente; sem ro-
deios. [No est dicionarizada esta expresso, mas apenas a antnima
pelo lado de montar = jeitosamente; delicadamente; com muito tato.]
LAGOO, s. m. Lagoa grande e funda, que se forma no curso dos ar-
roios e sangas.
LAMO, s. m. Forma pop. de alemo. [Tambm se diz alamo.]
Glossrio 303
M
MACANUDO, adj. Bom, superior, excelente; macota.
MACEGA, s. f. Arbusto rasteiro que geralmente cobre os campos de
qualidade inferior.
MACEGAL, s. m. Terreno coberto de muita macega.
MACETA, adj. Designativo do cavalar ou muar que tem nos mem-
bros locomotores protuberncias ou inchaes que lhe dificultam a
marcha.
MACHINHOS, s. m. pl. Parte delgada da pata do cavalo, que fica abai-
xo da junta da quartela. [Tambm usado no singular.]
MACOTA, adj. Grande. Poderoso. Superior em qualquer sentido;
macanudo. S. m. Indivduo poderoso, influente. [Usado em grande
parte do Brasil.]
MADURZIO, adj. Bastante maduro ou idoso.
MALEVA, adj. 1. Mau, malfazejo, desalmado. // 2. Diz-se do cavalo
infiel, que pelo menor motivo corcoveia. [Americanismo. Superl.: ma-
levao.]
MALEVAO, adj. Superl. de maleva.
MALOCA, s. f. Bando de malfeitores, de gente de m vida.
306 Aur li o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
N
NA ESTICA, loc. adv. Vestido com elegncia; bem-vestido.
NAMBI, adj. Aplica-se ao cavalo que tem uma ou as duas orelhas ca-
das, atrofiadas ou murchas. [No sentido de sem orelhas figura a
palavra no vocabulrio de Cenas e Paisagens da Minha Terra, de Cornlio
Pires.]
NO SER TRIGO LIMPO, loc. verb. 1. No ser boa pessoa. // 2.
No ser de brincadeira, ser valente.
NO VALER UM SABUGO, loc. verb. No ter nenhum valor. [No
dicionarizado.]
NEGAR O ESTRIBO, loc. verb. 1. Negar-se o cavalo a ser montado,
afastando-se no momento em que o cavaleiro ergue o p para alcanar
o estribo. // 2. Fig. Mostrar-se esquivo, desdenhoso.
NEGCIO, s. m. Casa de negcio.
NHANDU, s. m. Ema (Rhea americana), que habita os campos.
312 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
O
OFICIALADA, s. f. Conjunto de oficiais; os oficiais.
OIGAL!, interj. Exprime admirao, alegria, espanto. [Tambm se
diz oigat!]
OMBRUDO, adj. Que tem ombros largos; espadado. [No diciona-
rizado.]
ONDE CANTA O GALO, loc. adv. Muito em cima, bem no alto. [E
bem montado, vinha, num bagual lobuno rabicano, .... de cola atada,
em trs tranas, bem alto, onde canta o galo!... (O Negro Bonifcio). O ga-
cho costuma, por bazfia ou pacholice, atar a cauda do cavalo de
montaria muito no alto, com um n gracioso, deixando pendente uma
ponta de cada lado. A isto se chama atar a cola ou quebrar o cacho a can-
ta-galo, ou, como est em Simes Lopes Neto, onde canta o galo. Quebrar o
cacho a canta galo v-se em Vargas Neto: Quebro o cacho, l em cima, a can-
314 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
P
PAGOS, s. m. pl. Lugar onde se nasceu; o rinco, a querncia, o povoa-
do, o municpio donde se natural e onde se reside. [Algumas vezes
aparece no singular.]
PAJONAL, s. m. 1. Terreno coberto de palha-brava, santa-f e outras
gramneas. // 2. Restolhada, restolhal. [Espanholismo. O j aspira-
do, como no castelhano.]
PALA, s. m. Poncho leve, de brim, merin, l, ou at de seda, de feitio
quadriltero e com as extremidades franjadas. [O pala escreve
Lus Carlos de Morais no abrigo contra a chuva, mas contra o
calor e o frio. Poder parecer isso uma contradio, mas no. Viajando
o seu portador a cavalo, durante o rigor da cancula, abriga-se dos raios
solares pelo pala, porque, em torno ao corpo do cavaleiro, conserva-se
uma camada de ar relativamente mais fresca do que a exposta ao sol.
Glossrio 315
olhos, que rompe as cartas quando perde. Para uns o jogo deve ser de
relancina, isto , corrido, de uma s vez, produzindo comoes ligei-
ras, desencontradas, conforme os vaivns da sorte; para outros demo-
rado, escolhido, fazendo passes, e deixando oscilar o esprito entre o
prazer de arrastar a parada e o descalabro de a perder; estes gostam de
orelhar a carta decisiva, a predileta, puxando-a com a mo direita para
cima e com a esquerda apertando-a para no deix-la surgir; assim
que o naipe sai como que arrancado fora, l do fundo, isto , de um
fundo imaginrio, ideal, onde se debatem a boa e a m fortuna. Laf,
Recordaes Gachas, pp. 19-20. Os dicionrios definem laconicamente.]
PRISCAR, v. int. 1. Dar saltos sbitos ou priscos para no ser pegado.
// 2. Fugir, disparar.
PRO VIA DE, loc. prep. Por causa de. [Pro via de alter. de por via de lo-
cuo corrente em todo o Brasil, entre as classes incultas. Alguns dicio-
nrios registram por via de, com o sentido de por intermdio de. Mas a
acepo de causa, motivo, em que a figura o termo via, est em alguns
lxicos, e vejo-a em Castilho, no seguinte passo: O livro que apresento,
havia de ser difcil de classificar, se o classific-lo pudesse por alguma via
valer a pena. O Presbitrio da Montanha, I, 11. Por via de com a significa-
o de por causa de tem abonao literria: por via de um gavio casa-
co-de-couro cruzar-lhe a frente, j ele estacava, em concentrado prazo
de irresoluo Guimares Rosa, Sagarana, p. 333.]
PUAVA, adj. Bravio, indcil, arisco (cavalo).
PULPEIRO, s. m. Dono de pulperia, isto , de taberna ou pequena
casa de negcio no campo; taberneiro. [Do americ. pulpero.]
Q
QUADRA, s. f. Medida linear equivalente a 132 metros.
QUADRAR, v. t. Perfilar (o corpo). P. Perfilar-se; ficar em posio de
sentido.
Glossrio 325
R
RABICANO, adj. Aplica-se ao cavalo que tem na cauda fios de cabe-
los brancos.
RABIOSCAS, s. f. pl. Letras malfeitas; garatujas, rabiscos. [ tambm
provincialismo portugus.]
RABO-DE-TATU, s. m. Relho grosseiro, de couro tranado, com ar-
gola de metal na extremidade, pela qual se segura. [Usa-se, tambm,
em So Paulo ver Monteiro Lobato, Urups, p. 220 e em Gois
ver Carvalho Ramos, Tropas e Boiadas, p. 178.]
RAMADA, s. f. Espcie de caramancho coberto de ramos verdes ou
de capim, frente dos ranchos, dos galpes, dos boliches, para res-
guardo de pessoas e animais contra os raios do Sol.
RANCHERIA, s. f. Poro de ranchos; rancharia.
RANCHOTE, s. m. Dimin. de rancho.
RASGADO, s. m. Toque de viola em que se arrastam as unhas pelas
cordas do instrumento, sem o pontear.
REATAR, v. t. Atar com muitas voltas; atar bem; arreatar. [No dicio-
narizado neste sentido.]
REBENCAO, s. m. Pancada com rebenque; rebencada. REBENCA-
O DE LNGUA, loc. s. m. Descompostura, xingao.
REBENQUEADOR, s. m. 1. Aquele que rebenqueia, que fustiga com
o rebenque. // 2. Fig. Aquilo que rebenqueia, que pelo seu grande en-
canto acende viva paixo.
REBOLEAR, v. t. Fazer que um objeto que se tem mo descreva cr-
culos no ar. REBOLEAR O LAO, loc. verb. Fazer movimento circular
com a armada do lao para atir-lo.
REBOLEIRA, s. f. Touceira de arbustos ou de ervas. [Tambm usado
em So Paulo: ver Valdomiro Silveira, Nas Serras e nas Furnas, p. 173.]
RECAU, s. m. Arreio de montaria.
RECOLHIDA, s. f. Ato de recolher o gado, isto , de arrebanh-lo, de
traz-lo para o curral ou a mangueira.
Glossrio 327
S
SALAMANCA s. f. Est definido pelo autor. [Espanholismo, no di-
cionarizado.]
SALAMANQUEIRO, s. m. Prestidigitador. [No dicionarizado.]
SALINO, adj. Diz-se do boi ou do cavalo cujo plo salpicado de pe-
queninas manchas brancas, vermelhas ou pretas.
SALSEIRO, s. m. Barulho, briga, conflito, rolo.
SAMPAR, v. t., rel. e t.-rel. Atirar, arremessar.
SANCHO RENGO, s. m. Ver Fazer-se de sancho rengo.
SANGA, s. f. Pequeno arroio, que seca facilmente.
SANGO, s. m. Aument. de sanga.
SANTA-F, s. m. Planta gramnea (Panicum prionitis), muito emprega-
da em quinchas ou cobertura de ranchos.
SANTAFEZAL, s. m. Terreno onde cresce em abundncia a gramnea
chamada santa-f.
SANTA-LUZIA, s. f. Palmatria. [A palmatria tinha, comumente,
na sua parte circular, cinco orifcios dispostos em cruz. So os olhos
da santa-luzia, a que se refere Simes Lopes Neto. Leia-se Machado
de Assis: O pior que ele podia ter, para ns, era a palmatria. E essa l
estava, pendurada do portal da janela, direita, com os seus cinco olhos
do diabo. Vrias Histrias, p. 239. O termo corrente ao menos em
boa parte do Brasil; Antenor Nascentes registra-o no vocabulrio de
seu O Linguajar Carioca em 1922, e o paulista Cornlio Pires no das Con-
versas ao p do Fogo.]
SANTO-ANTONINHO-ONDE-TE-POREI, s. m. Pessoa que
muito querida, muito amimada. [O mesmo que santantoninho. No
dicionarizado.]
SAPECA, s. f. Sova, surra, sumanta.
SARANDI, s. m. Arbusto muito comum no Rio Grande do Sul, e de
que h diversas variedades: o sarandi propriamente dito (Pyllanthus sello-
wianus) e o sarandi-de-espinho ou sarandi-de-gargarejo (Sebastiania hippophaifo-
332 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fer r e i r a
T
TABA, s. f. 1. Jogo do osso. // 2. Osso com que se faz esse jogo.
[Tambm se diz tava.]
TACURU, s. m. Montculo de terra fofa, feito pelas trmites de prefe-
rncia em lugares midos ou alagadios; atinge por vezes mais de um
metro de altura e tem forma cnica.
TACURUZAL, s. m. Extenso coberta de tacurus.
TAFONA, s. f. Atafona.
TAFULONA, adj. e s. f. Diz-se de, ou moa taful, garrida. [Tambm
se usa, no mesmo sentido, tafuleira.]
TAMBEIRO, s. m. Boi ou touro filho de vaca da qual se tirava leite, e
que, tendo-se habituado ao contacto com as pessoas, se tornou manso.
[Ver Ter marca na paleta, mas no ser tambeiro.]
TANTEAR, v. t. Tatear, tocar, tentear. [Var. de tentear, consignada
apenas, como forma popular, nos Subsdios, de Corteso, que manda
confrontar o esp. tantear.]
Glossrio 335
U
UAI, s. m. Onomatopia designativa da voz do graxaim. [No diciona-
rizado.]
UMBU, s. m. rvore fitolaccea (Pirennia dioica). [Cresce rapidamente,
atingindo enormes dimenses. De folhagem espessa, que o sol quase
no atravessa, serve de excelente abrigo contra ele. No se deve con-
fundir com o umbu ou imbu do Norte.]
URUPUCA, s. f. Armadilha para apanhar passarinhos. [No Norte se
diz arapuca.]
V
VAQUEANAGEM, s. f. Ato de vaqueanar, isto , de proceder como
vaqueano.
VAQUEANO, s. m. Aquele que, conhecendo bem os caminhos e ata-
lhos de um lugar ou regio, serve de guia a quem precisa percorr-los.
342 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a
X
XERETA (), s. m. e f. Bisbilhoteiro; leva-e-traz.
XERETEAR, v. t. Contar intrigando, como um xereta. [No diciona-
rizado nesta acepo.]
344 Aurli o Bu arqu e de Ho landa Fe r r e i r a