Crime - Loucura Sergio Carrara PDF
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Gerd Bornheim
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Jorge Zahar (in memoriam)
Leandro Konder
Pedro Luiz Pereira de Souza
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/SISBI/SERPROT
C313 Carrara, Srgio
Crime e loucura : o aparecimento do manicmio judicirio
na passagem do sculo / Srgio Carrara. Rio de Janeiro :
EdUERJ ; So Paulo : EdUSP, 1998.
228 p. (Coleo Sade & Sociedade)
Crime e Loucura
O aparecimento do manicmio judicirio
na passagem do sculo
Rio de Janeiro
1998
Copyright 1998 by EdUERJ
Todos os direitos desta edio reservados Editora da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sob
quaisquer meios, sem a autorizao expressa da Editora.
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e-mail: [email protected]
_____________
* Alm da dissertao, parte deste trabalho apareceu na forma de um artigo (CARRARA, 1991).
8
esses ltimos acertos em Chicago teria sido sem dvida muito menos
agradvel sem o apoio, o carinho e o bom humor de Patrick Larvie.
Finalmente, tenho a felicidade de poder repetir o que escrevi h
dez anos: Agradeo a todos, e ainda Mariinha e ao Romeu, que de to
longe permaneceram enviando energias positivas; se eles aparecem no final
destes agradecimentos, porque, de qualquer modo, estiveram sempre no
comeo de tudo.
Querelle sorria. Deixava desenvolver em si mesmo aquela
emoo que conhecia to bem, que daqui a pouco, no lugar
certo, l onde as rvores so mais cerradas e a nvoa densa,
tomaria posse dele por completo, afugentaria toda
conscincia, todo esprito crtico, e ordenaria a seu corpo
os gestos perfeitos, apertados e seguros do criminoso.
J. Genet (1986:46)
Sumrio
CAPTULO I
O Objeto da Investigao e sua Construo .............................................. 23
Um aprendiz de antroplogo em apuros ............................................... 23
O que eu podia ver era um tanto contraditrio ................................ 27
Mdicos versus juzes: problemas legais .................................................. 29
Terapeutas versus guardas: questes institucionais .............................. 33
Doidinhos e pepezes ........................................................................... 38
A proposta de pesquisa ................................................................................ 43
Apreenses metodolgicas ........................................................................... 50
CAPTULO II
Loucos & Criminosos ......................................................................................... 61
A questo do crime na passagem do sculo ......................................... 62
Crime e doena: o criminoso enquanto objeto da patologia ......... 68
Crime como episdio da loucura: os monomanacos ....................... 69
Os degenerados: o crime como mais uma face da alienao
mental ................................................................................................................. 81
Os brbaros esto entre ns: os criminosos natos ............................. 99
O criminoso nato ........................................................................................... 104
Criminosos natos e degenerados: uma ciranda sinistra ..................... 116
14
CAPTULO III
Hrcules e o Comendador, o Caso de um certo Custdio .................. 127
Quem era Custdio Alves Serro ............................................................. 127
A vtima ............................................................................................................. 129
O crime .............................................................................................................. 130
Custdio versus os mdicos-legistas da polcia ..................................... 134
Um ms depois, Custdio foge do Hospcio Nacional .................... 141
A fuga de Custdio coloca o Pinel crioulo em maus lenis ........ 143
O que fazer dos loucos-criminosos? ........................................................ 148
A caminho do hospcio: algum ainda duvida da loucura de
Custdio? ........................................................................................................... 159
De volta s malhas da lei: Custdio deixa de ser louco para ser
um simples degenerado ou criminoso nato ....................................... 161
Um julgamento sui generis .......................................................................... 168
Uma histria sem fim: Teixeira Brando versus
Nina Rodrigues ............................................................................................... 173
Os degenerados e o surgimento do primeiro manicmio
judicirio brasileiro......................................................................................... 187
_____________
1 Tributo a Vnus: A Luta contra a Sfilis no Brasil da Passagem do Sculo aos Anos 40. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1996.
16 PETER F RY
mio, como bem mostra Srgio Carrara neste livro, representa um desafio
analtico e emocional no menos severo que quaisquer aldeias nos confins
do mundo ps-colonial.
O caminho que nos levou ao Manicmio Judicirio comeou com
um estudo sobre o caso de Febrnio ndio do Brasil. Este jovem mulato
foi preso em 1927, acusado de ter matado jovens rapazes nos arrabaldes
do Rio de Janeiro, aps atra-los com pequenos presentes e mirabolantes
profecias, publicadas num livro chamado As Revelaes do Prncipe do
2
Fogo , tatuar os seus corpos com hierglifos msticos e seduzi-los sexual-
mente. Os advogados de Febrnio argumentaram, com o apoio de diver-
sos laudos psiquitricos, que ele era um louco moral e, portanto, no
responsvel por seus atos. Como resultado, Febrnio foi internado no
recm-construdo Manicmio Judicirio sob uma medida de segurana
que, apesar de muitos apelos, nunca foi revogada. Em 1981 escrevi um
pequeno texto sobre o caso para abordar o crescente poder dos mdicos
brasileiros na definio da loucura e da responsabilidade criminal, bem
como a constituio de uma srie de saberes sobre a homossexualidade e
a miscigenao; dois fatores importantes na definio da loucura moral de
Febrnio.
Nesse ensaio eu tratara Febrnio como personagem de um passa-
do remoto. Mas, em conversa com o meu amigo Alexandre Eullio, que
se interessara pela histria de Febrnio atravs dos seus estudos sobre
Blaise Cendrars, autor de um ensaio instigante sobre o caso quando este
ocorreu, apreendi que Febrnio vivia ainda no Manicmio. Incrdulo,
procurei um amigo psiquiatra no Rio de Janeiro, Pedro Bocayuva Cunha,
que no s confirmou que Febrnio estava vivo, mas que era seu paciente!
Ato contnuo, o Dr. Bocayuva Cunha me levou ao Manicmio para um
encontro com Febrnio. A visita me marcou profundamente. Febrnio,
muito envelhecido, ainda lembrava o rapaz garboso das fotografias tiradas
_____________
2 O livro foi queimado pela polcia e sumiu. Procuramos por ele em vo. No ano passado, Carlos
Augusto Calil conseguiu localiz-lo na Biblioteca Nacional, e vai public-lo junto com outros
documentos sobre o caso Febrnio, ainda este ano.
APRESENTAO 17
Peter Fry.
Rio de Janeiro, maro de 1998.
captulo 1
J
me aproximarei de vocs, beterrabas cortadas e cogumelos
em lata. Sei que querem que eu fale de vocs. Todo mundo
quer. Mas estou quase chegando coisa... a um ponto de refe-
rncia, quero dizer. Se as leis do raciocnio so as mesmas leis das
coisas, ento tambm a moral relativa... e os costumes e o pecado
tambm so relativos, num universo relativo. Tem de ser. No se
pode fugir disso. Ponto de referncia...
J. Steinbeck (1966:85)
_____________
1 Trata-se do atual Manicmio Judicirio Heitor Carrilho, que, daqui em diante, ser mencionado
no texto apenas como MJ.
24 SRGIO C ARRARA
_____________
3 Salvo os mdicos psiquiatras e os advogados, a grande maioria dos profissionais que assistiam s
reunies da equipe teraputica era composta de mulheres com formao profissional nas reas de
psicologia, servio social e enfermagem. O nmero de participantes nessas reunies variava muito,
e os assuntos giravam em torno de problemas no trato com os internos, de suas reivindicaes e
das inovaes democratizantes que a equipe teraputica queria introduzir na dinmica institucional.
26 SRGIO C ARRARA
ao MJ. Penso agora que o momento no poderia ter sido mais propcio
para um trabalho de campo. A ento recente mudana do governo esta-
dual, contextualizada por um processo de abertura poltica de mbito
nacional, provocava o realinhamento dos grupos de poder no interior do
sistema penitencirio carioca, do qual o MJ faz parte. A crtica priso
e as tentativas de instaurao de uma nova poltica penitenciria marca-
vam os governos de oposio que poca ascendiam ao poder. O objetivo
mais amplo era o de preservar os direitos bsicos do preso e humanizar
as prises consideradas elemento fundamental na reproduo e incremen-
to da criminalidade no Brasil (FRY & CARRARA, 1986). Essas mudanas
mais amplas tambm se faziam sentir no MJ, que se abria a um perodo
de discusses e tentativas de reformas.
Como se v, embora realizado em momento propcio, o perodo
de observao direta foi bastante curto... Depois de algum tempo, Peter
Fry encerrou seu trabalho, e ento seu aprendiz ficou sozinho, assustado
e atordoado frente a uma realidade social que tem como caracterstica
distintiva combinar de forma crtica srios problemas de ordem material
e existencial. Tornou-se muito difcil empreender, na profundidade exigida
pela abordagem antropolgica, a pesquisa em um campo que consegue
articular, de um lado, duas das realidades mais deprimentes das sociedades
modernas o asilo de alienados e a priso e, de outro, dois dos fantas-
mas mais trgicos que nos perseguem a todos o criminoso e o louco.
Foram de ordem emocional as razes que me fizeram debruar prefe-
rencialmente sobre dados histricos e no etnogrficos. Entre mim
mesmo e meu objeto emprico imediato, tive que fazer intervir a espes-
sura tranqilizadora da palavra reificada, do registro histrico, mergu-
lhando num mar de textos, leis, processos, ofcios, moes e pareceres.
Porm, essa incurso histrica, cujos contornos desenharei adiante, cons-
tituiu-se a partir de problemas levantados nesse perodo de observao
direta. Assim, necessrio apresentar, antes de mais nada, alguns dos
aspectos caractersticos que, a meus olhos, singularizam o MJ. Depois
disso, poderei discutir a questo que me coloquei e a maneira escolhida
para abord-la.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 27
seu ato por ser um alienado, ficando provado o crime ou sua capacidade
de comet-lo sua periculosidade ele poder ser internado sem julga-
mento no MJ, mediante uma medida-de-segurana 5. Neste caso, ele
considerado penalmente irresponsvel, devendo entretanto ser segregado
para um tratamento obrigatrio. A durao mnima da medida-de-segu-
rana para tratamento estipulada por lei (CP, art. 91), sendo menor mas
proporcional durao da pena que seria prevista para o mesmo crime
caso seu autor fosse considerado responsvel, ou seja, mentalmente sadio
e desenvolvido. Ao trmino do prazo estipulado para a medida-de-segu-
rana, novo laudo mdico psiquitrico deve ser produzido para a avali-
ao do estado mental do acusado e/ou de sua periculosidade. Caso o
juiz constate, mediante o laudo, que o interno continua doente e/ou
perigoso, seu internamento deve prosseguir. Alm disso, nessa legislao,
muito importante o fato de o juiz ter o direito de recusar os laudos
psiquitricos no todo ou em parte, qualquer que seja o resultado de tais
laudos.
_____________
6 ...en fait, la justice reconnat une requte psychiatrique et une condemnation psychiatrique. Laccus
a le droit de plaider non coupable pour raison de folie. Le jury a le droit de rendre le veredict non
coupable pour raison de folie et, enfin, le juge a le droit de condamner un accus linternament en
hpital psychiatrique. Au contraire, le tmoignage des autres experts ne peut viter un accus dtre
jug, ou laider plaider non-coupable, ni justifier une mthode spciale dacquittement; et enfin, les
experts non-psychiatres ne peuvent doter la socit dun systme de pnitenciers para-lgaux dans lesqueles
les individus socialment dviants seront enferms, prptuet si besoin est...
7 Como nos Estados Unidos os cdigos penais variam de estado para estado, o panorama fica um
tanto mais complicado. Comparando o internamento em hospcio comum e o internamento em
hospcio criminal no Distrito de Colmbia, diz Szasz que, enquanto o primeiro controlado
exclusivamente pelos psiquiatras, o segundo controlado basicamente pelos tribunais (SZASZ,
1977:180-181). A se crer em sua descrio, ao menos a situao do Distrito de Colmbia no difere
essencialmente da que estamos descrevendo para o Brasil.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 33
_____________
8 Segundo revelaes da prpria equipe teraputica, o MJ era visto por muitos profissionais como
um bico ou um trampolim para alcanar posies em lugares mais agradveis. Quando fiz
minhas observaes, havia uma carncia de mdicos na equipe teraputica o nmero de mdicos
era de cinco para cerca de cento e cinqenta internos. Mesmo assim, durante o perodo de obser-
vao, dois deles foram deslocados para atividades no setor de percias. A opinio mais ou menos
consensual da equipe era a de que trabalhar diretamente com os internos era acumular frustraes
e quem podia sair dessa atividade no titubeava.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 35
o que julgo ser o centro dos problemas que opunham terapeutas e guardas,
qual seja, a avaliao diferencial que construam em torno da identidade
dos internos. Eles pareciam ser mais pacientes para uns e mais delin-
qentes para outros. Mas a ambigidade da posio dos internos no se
revelava apenas no tratamento especfico que guardas e terapeutas lhes
dispensavam. Ela minava de contradies a atuao da prpria equipe
teraputica, que se via muitas vezes presa numa camisa-de-fora que
impedia de levar adiante seus projetos humanitrios e medicalizantes.
Vejamos algumas evidncias desse fato.
Como j disse, visitei o MJ durante um perodo em que a nfase
global da poltica penitenciria dos governos de oposio era a
humanizao dos presdios e a defesa dos direitos dos presos, proposta
que se estendia tambm aos hospcios e outras instituies asilares. En-
quanto parte do sistema penitencirio, o MJ acompanhava tal movimen-
to. Uma das maiores inovaes nesse sentido foi, segundo me parece, a
criao de uma assemblia geral dos internos. Atravs das reunies
semanais, deveriam escoar as reivindicaes e propostas dos internos. No
entanto, alm da assemblia ser sempre presidida por um dos membros
da equipe teraputica, esta parecia consider-la muito mais parte do tra-
tamento psiquitrico do que uma atividade poltica. Era assim que as
reivindicaes e propostas de resoluo de problemas imediatos e coti-
dianos provenientes da assemblia passavam por discusses dos terapeutas
em reunies exclusivas, antes de atingirem seu destino ou de serem
implementadas. A reinterpretao psicologizante (e conseqente
desqualificao poltica) de reivindicaes bem concretas no era rara. De
qualquer forma, os terapeutas constituam uma espcie de filtro que se-
lecionava e avaliava cada proposta dos internos, fazendo a mediao entre
eles e a direo da instituio. Ao que parece, enquanto presos, os in-
ternos tinham o direito de se reunir e encaminhar propostas de mudan-
as, mas, enquanto alienados ou doentes, necessitavam de uma mediao
que avaliasse a lucidez de cada reivindicao. Em um mesmo movimen-
to, reconhecia-se a existncia de direitos dos internos e sua incapacidade
de exerc-los plenamente.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 37
DOIDINHOS E PEPEZES
A PROPOSTA DE PESQUISA
_____________
13 SZASZ, 1977, especialmente cap. 9.
46 SRGIO C ARRARA
quiatras certos delinqentes, e isso tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos
(ao menos o que se percebe atravs dos dados apresentados pelo prprio
Szasz). Na verdade, a maldade desse jogo, sua face singular, reside jus-
14
tamente no fato de a justia no o fazer plenamente . Atravs dos dados
que j apresentei at agora, espero ter ficado claro que o que se encontra,
tanto na legislao referente aos loucos-criminosos quanto no destino social
que lhes reservado, justamente a superposio complexa de dois mo-
delos de interveno social: o modelo jurdico-punitivo e o modelo psi-
quitrico-teraputico. Superposio e no justaposio, pois, como vi-
mos, o modelo jurdico-punitivo parece englobar o modelo psiquitrico-
teraputico, impondo limites mais ou menos precisos ao poder de inter-
veno dos psiquiatras. Desta maneira, mais justo seria pensar o manic-
mio judicirio como soluo final de um conflito histrico de com-
petncias, de projetos e de representaes sociais mais abrangentes e no,
simplesmente, como um acordo entre funes sociais complementares.
Genericamente, o que transforma o MJ em um espao social paradoxal
justamente o fato de combinar dois conjuntos de representaes e de
prticas sociais que se fundam em concepes distintas e opostas sobre a
pessoa humana sem que nenhum deles prevalea plenamente. De um lado,
h a verso que poderia ser chamada jurdico-racionalista e que v o
indivduo como sujeito de direitos e de deveres, capaz de adaptar livre-
mente seu comportamento s leis e normas sociais, capaz de escolher
transgredi-las ou respeit-las, capaz, enfim, de ser moral e penalmente
responsabilizado por suas aes. De outro lado, h a verso que poderia
ser denominada psicolgico-determinista, que v o indivduo (principal-
mente o indivduo alienado) no enquanto sujeito, mas enquanto objeto
de seus impulsos, pulses, fobias, paixes e desejos. Nessa ltima verso,
as estruturas determinantes do comportamento, estando aqum da cons-
_____________
14 Evidentemente, no quero dizer com isso que a justia deveria faz-lo, apenas sublinho o fato de
a combinao dos modelos de interveno mdico e legal acarretar conseqncias mais nefastas do
que aquelas a que j so submetidos os indivduos atingidos por uma das duas espcies de inter-
veno tomadas isoladamente.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 47
_____________
15 importante notar que, embora indiretamente, o desenvolvimento dessa questo contribui ainda
para a compreenso do surgimento da prpria medida-de-segurana; instituto que foi inicialmente
aplicado aos chamados loucos-criminosos, buscando fundar uma nova modalidade de conteno.
Incorporada maioria dos cdigos penais do Ocidente ao longo do sculo XX, a medida-de-
segurana esteve na base da estruturao legal dos regimes polticos autoritrios, pois permitia
que, em vrias situaes, os direitos individuais fossem suprimidos frente ao que se julgava ser os
interesses da sociedade ou do Estado.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 49
APREENSES METODOLGICAS
_____________
16 Para os pesquisadores interessados nas diversas funes sociais que o MJ pode ter desempenhado
desde o seu surgimento at hoje, ainda permanece nos arquivos da instituio um rico material
na forma de laudos mdicos-legais, pronturios e observaes clnicas. Um excelente trabalho
nessa direo foi conduzido pela historiadora Maria Clementina Pereira da Cunha, junto ao
hospcio paulista do Juquery (CUNHA, 1986).
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 51
_____________
17 Para a avaliao da importncia das formulaes da Antropologia Social para a constituio de
uma nova abordagem historiogrfica, ver especialmente VEYNE, 1982; e LE GOFF, 1986.
52 SRGIO C ARRARA
*
* *
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18 Com isso, tenho conscincia de ter deixado de lado a abordagem sistemtica de um dos principais
meios de discusso e de divulgao cientfica ento utilizados. Tambm ficou postergado para um
outro momento o levantamento de dados em anais de congressos cientficos realizados nas reas
de medicina-legal, criminologia, antropologia criminal e psiquiatria. Os livros e artigos que
compem o arquivo que possuo foram localizados basicamente na Biblioteca Nacional, na Biblioteca
da Academia Nacional de Medicina e na prpria Biblioteca do Manicmio Judicirio Heitor
Carrilho, cujo pssimo estado de conservao est ainda a exigir alguma medida oficial.
O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO 57
S
e h no mundo pessoas cujos gostos chocam todos os precon-
ceitos aceitos, no apenas no se deve ficar espantado com
elas, como no adianta lhes passar sermo, nem os punir...
porque no depende deles ter esse gosto bizarro, assim como no
depende de vs ser espirituoso ou estpido, perfeito ou corcunda...
Que ser de vossas leis, vossa moral, vossa religio, vosso cadafalso,
vosso paraso, vossos deuses, vosso inferno, quando ficar demonstra-
do que este ou aquele movimento dos humores, um certo tipo de
fibra, um certo grau de acidez no sangue ou nos espritos animais
so suficientes para fazer de um homem objeto de suas penas ou de
1
suas recompensas? .
Marqus de Sade (1969:168-170)
_____________
2 Le criterium du mrite ne changera point, lorsque la plupart des vertus et de vices seront reconnus
pour des effets dun changement molculaire. Refuse-t-on dadmirer la beaut, quoinquon voie en elle
un phenomne tout--fait matriel et independant de la volont humaine? Le diamant na aucun
mrite briller plus que le charbon; quelle femme, toutefois, jetterait ses diamants, sous prtexte quils
ne sont, au fond, que du charbon?.
3 Uma interessante caracterizao da imprensa popular que nascia ento no Brasil (Rio de Janeiro)
encontra-se em SVCENKO, 1985:172-173.
4 Ver, entre outros, DUBOIS, 1985; e, ainda, REIMO, 1984.
LOUCOS & CRIMINOSOS 63
_____________
5 Para o caso de So Paulo, ver principalmente FAUSTO, 1984; para o caso do Rio de Janeiro, ver
CHALHOUB, 1984.
6 verdade que pouco sabemos sobre a histria da priso no Brasil. O Cdigo Criminal de 1830
prescrevia como penas: perda ou suspenso de emprego, multas, privao do exerccio de direitos
polticos, desterro, degredo, banimento, a morte e ainda a pena-priso, com ou sem trabalhos
forados. No estudo que fazem sobre a polcia fluminense no sculo XIX, Brando e companhei-
ras enfatizam que um grande nmero de crimes era ento punido atravs da priso com trabalho.
Dizem ainda as autoras que, embora tal trabalho devesse ser realizado quase sempre no recinto
da prpria priso, tendo em vista as sentenas proferidas e os regulamentos policiais das mesmas
prises, fica manifesta a inteno de encontrar trabalhadores entre a populao livre para obras
pblicas numa sociedade onde o trabalho caracterizado como uma maldio (BRANDO et
al., 1981).
64 SRGIO C ARRARA
_____________
7 A sofisticao das tcnicas policiais (autpsias, anlises qumicas de vestgios, exames dos locais do
crime) foi notvel na passagem do sculo. No bojo desse processo, apresentando-se inicialmente
como a panacia para o problema da reincidncia criminal, constituiu-se uma das mais importan-
tes tcnicas de controle que hoje nos atinge a todos: a identificao pessoal atravs das impresses
digitais. Para essa discusso, ver CORREA, 1982 a e b; e CARRARA, 1984.
LOUCOS & CRIMINOSOS 65
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8 Para um timo panorama das idias no Brasil da passagem do sculo, ver BARROS, 1959.
LOUCOS & CRIMINOSOS 67
*
* *
10
ou Wirchow apontam para o que penso ser uma aproximao lgica,
virtualmente dada, nos termos de uma representao onde a sociedade
aparece fundada sobre a base racional de um contrato cuja finalidade a
promoo do bem comum. Percebido enquanto ataque sociedade e ruptura
do contrato social que a constitui, o crime no deixava de se transfigurar
em espcie de erro ou de irracionalidade. Se justamente atravs da
sociedade que os interesses individuais encontram condio para se expres-
sarem e se realizarem livremente; se, portanto, interesse individual e inte-
resse social se superpem harmoniosamente, atacar a sociedade no seria,
de certa forma, atacar a si prprio? E atacar a si prprio no seria o ato
irracional por excelncia?
Virtualmente dada, a aproximao entre crime e loucura/alienao
s se elaborar, entretanto, progressivamente e com muitas complicaes
e perplexidades. Como bem percebeu R. Castel (1978) em um livro a que
retornarei vrias vezes ao longo deste captulo, a questo da transgresso
s normas sociais no coisa que se resolva facilmente no interior das
sociedades liberais, quer no nvel das representaes, quer no nvel das
prticas que suscita. As dificuldades esto claramente representadas na
figura mtica da priso e nas questes que colocou desde o seu aparecimen-
to: punio ou correo? Expiao de uma culpa ou compreenso de uma
alma humana pervertida, uma natureza corrompida? As razes dessas di-
ficuldades no me parecem ser muito obscuras: a sociedade burguesa,
liberal, democrtica, progressista, representao do prprio paraso recon-
quistado (ou, ao menos, passo fundamental para tal reconquista), no
parece aceitar que algum possa agredi-la em s conscincia.
12
a compreenderam os alienistas franceses , a monomania era teoricamente
um delrio parcial, localizado ou circunscrito a apenas uma idia. Tal
idia operava como uma espcie de premissa falsa sobre a qual todo um
edifcio plenamente racional podia ser construdo pelo doente. O tipo
ideal do monomanaco parece ter sido o perseguido-perseguidor. A partir
da falsa idia de estar sendo perseguido por uma determinada pessoa, o
monomanaco apresentaria um conjunto de comportamentos que seria
plenamente justificvel caso a idia de perseguio fosse verdadeira. Porm,
a monomania aparecia ainda sob outras formas: a monomania dos escr-
pulos, religiosa, das invenes, monomania ertica, monomania
homicida ou suicida, entre inmeras outras.
Por serem parciais, tais delrios podiam ficar por muito tempo
insuspeitados pelas pessoas mais prximas do monomanaco. Este, sendo
lcido e coerente em todos os aspectos de sua vida que no tocassem
diretamente o objeto de seu delrio, teria a possibilidade de manter sua
doena oculta por muito tempo, passando socialmente por pessoa saud-
vel, ou, no mximo, um pouco excntrica. Porm, a perseguio da qual
o monomanaco se sentiria vtima poderia atingir o limite do suportvel
e motivar um ato de pseudovingana ou de pseudodefesa contra o
suposto perseguidor. Tal ato permaneceria, entretanto, incompreensvel
aos tribunais, caso os alienistas, com sua tcnica e seu saber, no conse-
guissem extrair e tornar pblico um delrio que se ocultava e que, por
isso mesmo, tornava-se ainda mais perigoso.
Mas, para alm da idia de delrio parcial, como expus acima, a
monomania progressivamente passou tambm a codificar, em vrias de
suas formas, uma perturbao mental que j no se referia mais s desor-
dens da inteligncia ou a qualquer delrio, mas sim aos movimentos ines-
perados e incontrolveis das paixes e afetos. Apesar de socilogo,
Durkheim nos fornece uma boa definio de monomania, quando, em
fins do sculo XIX, discute e nega a possibilidade de existncia de uma
_____________
12 As primeiras observaes de indivduos no delirantes que se mantinham nos asilos teriam sido
feitas por Pinel. com Esquirol porm que o conceito se definiria mais claramente.
LOUCOS & CRIMINOSOS 73
*
* *
Somente muito mais tarde (aps a medicalizao ter sido inicialmente imposta
sob a forma de um estatuto do alienado diferente do criminoso e, posterior-
mente, ter comeado a se generalizar patologizando os setores mais diversos
do comportamento, ou seja, por volta do fim do sculo XIX) que a
medicalizao do criminoso, por sua vez, mudar de sentido. Ela no ser
mais uma interveno a posteriori para ajudar a melhor aplicar a sano,
mas sim uma tentativa de fundar a legitimidade da punio a partir de uma
avaliao psicopatolgica da responsabilidade do criminoso (CASTEL,
1978:37-38).
somente poderia ser aferida atravs de uma avaliao de atos. Atos que,
at ento, eram objeto de avaliao moral e de prtica punitiva. Assim,
se a psiquiatria ainda no interceptava de forma incisiva a esfera do
direito, constitua, entretanto, os elementos que lhe permitiriam um dia
faz-lo.
Apesar de se ter transformado em vedete do pensamento psi-
quitrico na primeira metade do sculo XIX, a monomania j recebia
severas crticas em meados daquele sculo. Escrevendo no final do
sculo XIX (1897), ainda Durkheim que aponta para uma das idias
que serviram de base para a desqualificao da doutrina das monomanias.
Trata-se da idia de unidade psquica. Ao argumentar que no have-
ria uma monomania suicida porque nem mesmo a monomania existi-
ria, diz o autor:
15
atravs da obra de Bndict-Augustin Morel , em meados do sculo XIX.
De um lado, tal doutrina trazia uma ampla e nova concepo da doena
mental e, de outro, constitua o princpio de articulao de uma nova
classe de alienados que encerrava em seus limites os chamados degenera-
dos ou loucos hereditrios. Vejamos primeiramente o significado da
idia de degenerao enquanto concepo geral da alienao mental;
depois apresentarei o perfil do degenerado conforme o desenharam Morel
e outros psiquiatras que, depois dele, se ocuparam do assunto.
Antes da apropriao que dela fez Morel, a palavra degenerao j
era de uso corrente entre naturalistas e antropologistas que a emprega-
vam para designar variaes tnicas e raciais despidas de qualquer conotao
patolgica. A originalidade de Morel parece ter consistido justamente em
relacionar degenerao, significando alterao do tipo antropolgico ou
do biotipo do Homo sapiens, com a patologia, particularmente com a
patologia mental. A degenerao, transformada por Morel em concepo
antropopatolgica, passou a ser definida por ele enquanto o conjunto de
desvios doentios do tipo normal da humanidade, hereditariamente
16
transmissveis, com evoluo progressiva no sentido da decadncia (in
GENIL-PERRIN, 1913:54). Como observa Genil-Perrin, para que se com-
preenda bem o significado geral da idia de degenerao em psiquiatria,
no se pode perder de vista os dois postulados bsicos sobre os quais ela
operava.
_____________
15 Filho de franceses, Morel nasceu na ustria. Mudou-se para a Frana, onde recebeu uma educao
crist, tornando-se seminarista. Expulso do seminrio, muda-se para Paris, onde estuda medicina.
Foi amigo de Claude Bernard, Charles Lasgue, Volpr, Laurent Cerise, Philippe Buchez, e
estudou com J-P. Falret. Para alm do campo da psiquiatria, inteirou-se dos estudos em torno da
fisiologia e anatomia do sistema nervoso, em torno da ovologia e embriologia, recebendo influn-
cias de Blainville, Flourens, Serres, Rayer Parchappe, Cuvier, Buffon e ainda Gall. Depois de ter
sido mdico do asilo de Marville, foi nomeado mdico-chefe do asilo de Saint-Yon. Seus traba-
lhos fundamentais so Trait des dgnrescences physiques, intellectuelles et morales de lespce humaine
et des causes qui produisent ces varits maladives (1857), e Trait des maladies mentales (1859).
Sobre Morel, ver GENIL-PERRIN, 1913; e BERCHERIE, 1980. Foi a partir de informaes
apresentadas por esses dois autores, principalmente as contidas no detalhado trabalho de Genil-
Perrin, que estruturei esta seo.
16 dviations maladives du type normal de lhumanit, hereditairement transmissibles, et evoluant
progressivement vers la dcheance.
LOUCOS & CRIMINOSOS 83
_____________
20 Cumpre lembrar que, mestre de Morel, J-P. Falret foi um dos grandes crticos da idia de
monomania e de suas implicaes, procurando tambm um novo critrio de classificao das
afeces mentais que se baseasse na evoluo especfica de cada perturbao (BERCHERIE,
1980:90-92).
88 SRGIO C ARRARA
*
* *
_____________
21 ... la constitution mme de la psychiatrie, je veux dire son avnement a la dignit de science
veritable, resultat de son agregation la biologie gnrale, en quoi il faut chercher la signification
vritable de loeuvre de Morel.
90 SRGIO C ARRARA
grande parte dos alienados era degenerada o mesmo que dizer que ao
alienista pouco restava fazer nos termos de uma prtica teraputica indi-
vidualizada, uma vez que as molstias de origem degenerativa eram difi-
cilmente curveis; o mesmo que dizer ainda que a psiquiatria somente
adquiriria pleno sentido enquanto medicina social, pois apenas na me-
dida em que tratasse das populaes ela poderia esperar, se no curar, ao
menos prevenir, evitando o aparecimento da alienao mental e das
doenas nervosas.
Se a doutrina das monomanias, como vimos, j comprometia o
edifcio alienista, a da degenerao ameaava implodi-lo no momento
mesmo em que operava um duplo deslocamento. De um lado, o asilo
como elemento teraputico passa a ser considerado ainda mais ineficaz,
devendo as atenes dos alienistas voltarem-se para problemas que no
eram imediatamente mdicos e cuja resoluo passava pelos meandros da
poltica e da moral: misria, fome, indstria, moralidade, alcoolismo. De
outro lado, a nfase nos estigmas anatmicos enquanto elemento diagns-
tico importante exigia que o mdico alienista entrasse em campos e ma-
nuseasse tcnicas que, a princpio, eram estranhas sua especialidade. Tais
deslocamentos geraro muitas polmicas ao longo do sculo XIX e con-
22
tribuiro para o posterior abandono da idia de degenerao .
*
* *
_____________
22 A doutrina da degenerao no fez histria apenas na psiquiatria francesa; ela tambm foi incor-
porada psiquiatria alem, principalmente atravs dos trabalhos de Schle e de Kraft-Ebbing. No
nvel em que coloco minha anlise, no parece haver diferenas significativas entre franceses e
alemes. Sobre as idias de Kraft-Ebbing e especialmente sobre a degenerao, ver a excelente
comunicao de DUARTE, 1986.
LOUCOS & CRIMINOSOS 91
elemento etiolgico geral, teve uma acolhida muito calorosa entre os psi-
quiatras do sculo XIX. No foi isso, entretanto, o que aconteceu com as
categorias nosolgicas propostas por Morel, principalmente no que dizia
respeito existncia de um gnero de doentes denominados de loucos
hereditrios ou degenerados.
Sem querer discutir como um todo a classificao das doenas
mentais proposta por Morel, fundamental perceber a ambigidade gera-
da pela noo de degenerao. Enquanto princpio etiolgico geral, ela
estaria na base de quase todas as afeces mentais, tornando-se, portanto,
sinnimo de predisposio hereditria. No entanto, enquanto princpio de
constituio de uma classe nosolgica particular a dos loucos heredit-
rios ou degenerados ela se transformava em entidade mrbida singula-
rizada. Frente a tal ambivalncia, a questo que se colocava poderia ser
assim sintetizada: se qualquer afeco mental pode ter uma origem
degenerativa, tendo sido hereditariamente adquirida, haveria algumas
formas especiais e especificamente hereditrias que pudessem justificar que se
recortasse entre os alienados o grupo dos hereditrios ou degenerados? A
degenerao era uma das formas da alienao mental ou apenas qualificava
a origem hereditria que poderia estar relacionada a qualquer doena mental
ou nervosa? O que estava em jogo era a possibilidade de distino entre
o alienado, o degenerado e o predisposto hereditrio. Para que
possamos perceber melhor a importncia dessa distino, vejamos o que
caracterizava o degenerado.
Para Morel, os degenerados distinguiam-se dos simples predispos-
tos, pois, ao contrrio destes, j viveriam toda a sua vida em um estado
mental anormal. Essa anormalidade poderia se manifestar em diversas
formas sintomticas, e com diferentes graus de gravidade. Fora dos mo-
mentos de agudizao do mal, os degenerados se caracterizariam pela
presena de deformidades anatmicas e alteraes fisiolgicas os estig-
mas da degenerao e por um estado mental particular marcado pelo
desequilbrio entre as diversas funes mentais. Estariam presentes, entre
outros, os seguintes ndices: oscilao entre estados depressivos e de
exaltao emocional, excentricidade, amoralidade, grande suscetibilidade
92 SRGIO C ARRARA
Quadro 1
Sos
Predispostos SANIDADE
*
* *
Quadro 2
X
z
d
c
b
a
O Y
_____________
24 No podemos deixar de notar que as formulaes de Magnan e Legrain datam das ltimas dcadas
do sculo passado, quando j se faziam populares as idias de Cesare Lombroso, para quem, como
veremos a seguir, degenerao e atavismo tornaram-se sinnimos. Os autores buscam deste modo
estabelecer uma distncia ntida entre suas idias e as de Lombroso.
LOUCOS & CRIMINOSOS 99
_____________
25 Alm das obras explicitamente citadas, a descrio que farei nesta seo apia-se principalmente
em manuais com fins didticos ou de propaganda, nos quais juristas e mdicos brasileiros,
apoiados nas formulaes da antropologia criminal, expem as idias do novo pensamento em
matria penal. Entre tais obras, ver especialmente ARAGO, 1917 [1905]; LEAL, 1896; DRIA,
1925; e VIVEIROS DE CASTRO, 1894.
LOUCOS & CRIMINOSOS 101
_____________
26 O termo criminologia apareceu pela primeira vez em 1890 para designar a parte da antropologia
geral que se ocupava do homem delinqente, ou seja, apareceu como sinnimo de antropologia
criminal (The Oxford English Dictionary). Ao que parece, quem cunhou a expresso foi o jurista
italiano R. Garofalo, em um livro cujo ttulo justamente Criminologia (GAROFALO, 1890).
102 SRGIO C ARRARA
O CRIMINOSO NATO
_____________
29 O livro foi publicado por partes, entre os anos de 1871 e 1876. Depois da primeira publicao
recebeu, nas suas vrias edies, inmeras e importantes reformulaes, tendo sido traduzido em
diversas lnguas. Trabalho aqui com uma edio francesa, traduzida da quarta edio italiana
(LOMBROSO, 1877).
LOUCOS & CRIMINOSOS 105
_____________
31 A distino entre o anmalo e o patolgico no algo simples. Para Canguilhem, a anomalia
pode constituir o objeto de um captulo especial da histria natural, mas no da patologia
(CANGUILHEM, 1982:105). Porm, diz o autor que: Desde que a etiologia e a patogenia de
uma anomalia so conhecidas, o anmalo torna-se patolgico (idem, p. 108). Para uma discusso
mais aprofundada da questo, ver especialmente o cap. II do trabalho de Canguilhem.
108 SRGIO C ARRARA
*
* *
quisesse abandonar a sua fase metafsica para ingressar em uma fase posi-
tiva, acompanhando o sentido geral da evoluo das sociedades, teria,
segundo os positivistas, que deixar de tratar de crimes para considerar o
criminoso, classificando-o segundo as causas que o teriam levado a delin-
qir, pois somente atravs de tal classificao cientfica poder-se-ia estabe-
lecer uma interveno penal adequada e eficaz.
Os juzes deveriam se orientar por uma avaliao particularizada
da periculosidade ou da temibilidade manifestada por cada delinqen-
te, sendo tal periculosidade compreendida como uma espcie de ndice de
criminalidade virtual ou ndice pessoal de expectativa de realizao de
novos delitos. Esse ndice deveria ser aferido atravs do exame fsico e
psicolgico ao qual todos os delinqentes seriam submetidos. Advogava-
se, ento, a constituio de um corpo de tcnicos a ser acionado em
qualquer processo penal e que dominasse tcnicas de medio
antropomtrica para avaliao dos estigmas fsicos, tcnicas para a avalia-
o dos estigmas fisiolgicos e tcnicas psiquitricas para a avaliao do
estado de mentalidade de cada acusado ou condenado. Atravs de tal exame
criminolgico, os criminosos poderiam ser classificados segundo o tipo
de criminalidade apresentada (oriunda de causas naturais hereditarieda-
de/doena ou de causas sociais). Os resultados dos exames estabelece-
riam, finalmente, os ndices respectivos de periculosidade e de
regenerabilidade e orientariam a escolha da medida legal a ser aplicada.
Desta maneira, por exemplo, qualquer indivduo que apresentasse os estig-
mas somticos e psicolgicos indicativos de uma criminalidade nata (por-
tador de um grau mximo de periculosidade e de um grau mnimo de
regenerabilidade) deveria ser fisicamente eliminado ou segregado para
32
sempre, independentemente do tipo ou da gravidade do crime cometido .
_____________
32 Olhando o panorama brasileiro de finais do sculo XIX, realmente notvel o modo como se
acotovelavam teorias e idias que, na Europa, haviam surgido em momentos histricos bem
distintos. Assim, no instante mesmo em que o primeiro cdigo penal republicano (1890) incor-
porava mais amplamente os princpios liberais, banindo penas infamantes ou a pena de morte e
instituindo a priso como reao penal bsica, juristas do porte de Joo Vieira defendiam, por
razes que julgavam ser de ordem cientfica, a eliminao fsica dos criminosos considerados
instintivos ou de ndole, seguindo os ensinamentos da Escola Positiva (MORAES, 1923:54-55).
112 SRGIO C ARRARA
_____________
33 Mesmo que a instituio do jri nunca tenha sido propriamente popular no Brasil, atravs das
crticas que passam a lhe ser endereadas percebe-se claramente a concepo de povo que se forjava
junto s elites influenciadas pelo positivismo ou cientificismo do final do sculo XIX. Ignorante,
mal-educado, dirigido por suas paixes inconscientes, manipulado pela imprensa, o povo, o
populacho, no era capaz de assumir um papel relevante na vida pblica e poltica das naes
civilizadas. Esses domnios deveriam ser entregues aos sbios, aos tcnicos especializados, cuja
cincia prometia redimir a sociedade, curando os males da civilizao.
LOUCOS & CRIMINOSOS 115
_____________
40 Le fou moral na rien de comum avec lalien, il nest pas un malade, il est un cretin du sens
moral.
LOUCOS & CRIMINOSOS 123
Quadro 3
ANORMALIDADE
PSIQUIATRIA ANTROPOLOGIA
PATOLOGIA / DOENA TERATOLOGIA / ANOMALIA
MANACOS
Loucos delirantes
MONOMANACOS
Loucos lcidos loucos morais
perturbao da vontade ou afeto
congenitalidade do mal
delrio parcial impulsividade amoralidade
DEGENERADOS
Anomalias mentais doentias
ausncia de delrio
<
<
SUPERIORES INFERIORES
Excentricidade amentalidade
genialidade crimes amoralidade idiotia
CRIMINOSOS NATOS
Anomalias no-doentias
tipo primitivo regressivo atvico
amoralidade agressividade pederastia
insensibilidade disvulnerabilidade
captulo 3
O
culpado, disseram, cedera monomania do assassnio e do
roubo, sem objetivo fixo, sem clculo. Era uma ocasio de
proclamar a teoria nova da alienao temporria; teoria com
a qual se procura hoje explicar o crime de certos homens.
Dostoievski (1949 [1866]:526)
de 1896. Atravs dos jornais, seu crime foi conhecido pelos leitores da
capital federal e de todo o Brasil, abrindo vasto campo de discusso e
polmica.
Diz o Jornal do Brasil que Custdio era um rapaz de fisionomia
simptica, alto, de compleio forte, usando bigode, barba feita e cabelo
penteado para cima (JB, 15/4/1896, p. 1). Um belo moo a quem vul-
garmente se chama um bonito rapaz. Muito claro, cabelos quase pretos,
um pequeno bigode muito bem cuidado, alto, espadado e direito; alm
disso, uns bonitos olhos pretos que tomam por vezes a expresso vaga e
assustada (JC, 15/4/1896, p. 1). A se crer em todos os jornais consul-
tados, um vistoso rapaz (idem) que contava ento vinte e um anos de
idade.
Sua me teria morrido em 1890; seu pai, em 1895 exatamente
um ano antes de o filho ter se tornado notcia de jornal. O pai, Raimundo
Serro, fora chefe da Casa da Moeda e, durante a vida, conseguira acumu-
lar alguns bens e constitura uma famlia que, segundo a imprensa, era
honrada e estimada por toda a vizinhana (idem). Alm de Custdio, o
velho Serro deixara mais dois filhos vivos. O mais velho, Augusto, j
estava, poca do crime de seu irmo, h quatro anos internado no
Hospcio Nacional de Alienados, por sofrer, segundo os jornais, da
mania das perseguies. Havia ainda Irene, que tinha dezoito anos de
idade. Depois da morte do pai, Irene, Custdio e uma criada passaram a
residir sozinhos na antiga casa da famlia, localizada no sop do morro de
Santa Teresa.
poca do crime, Custdio se dizia estudante e estava legalmen-
te emancipado. Fora praa e sargento do 8. Batalho de Infantaria, mas,
segundo informaes do Jornal do Comrcio, tinha um gnio violento e
desigual, nunca querendo empregar-se e gastando perdulariamente a he-
rana materna e parte do que lhe deixou o pai (idem). Uma vida irre-
gular para o Jornal do Brasil (15/4/1896, p. 1). Este o rpido retrato de
Custdio, conforme o desenharam os jornais logo aps o crime. No
correr dessa etnografia, outras informaes ainda lhe sero agregadas, mas,
antes, gostaria de apresentar...
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 129
A VTIMA
O CRIME
*
* *
_____________
4 Segundo um artigo de autoria do psiquiatra Juliano Moreira, que alguns anos mais tarde assumiria
a direo do Hospcio Nacional de Alienados, o Gabinete de Eletroterapia fora instalado no
Hospcio Nacional em 1889, no bojo das reformas introduzidas por Teixeira Brando, persona-
gem central dessa histria e que breve merecer uma caracterizao mais circunstanciada
(MOREIRA, 1905:52).
136 SRGIO CARRARA
O preso, com o esprito cada vez mais exaltado pela monomania das per-
seguies, que guiou o seu brao assassino, recusou-se de novo a submeter-se
ao exame antropomtrico, no havendo razes que o convencessem, chegando
a dizer que mataria aquele que tentasse obrig-lo a tal exame (JC, 17/4/
1896, p. 2, grifo meu).
_____________
5 Ver JC, 28 e 29/5/1896; JB, 28/5/1896; GN, 28-29 e 31/5/1896, e 01/6/1896; OP, 28-30 e
31/5/1896.
142 SRGIO CARRARA
Alimentao parca e mal feita; nenhum conforto e nem sequer uma cama.
De manh, davam-lhe um pequeno po sem manteiga e um pouco de caf; ao
meio-dia, carne cozida, e, noite, ch mate e po com manteiga (idem).
A evidncia dos fatos veio afinal tornar bem pblicas e bem patentes a
desdia e a desordem que reinam no hospcio de alienados que a iconoclastia
irrefletida de uns e a ambio inconfessvel de outros arrancou administra-
o emrita da Santa Casa de Misericrdia, para cau-lo no declive escorre-
gadio de diretorias incapazes e sem os devidos cuidados, por onde resvalou at
a desgraada situao atual... Os mseros alienados, famintos, descalos, es-
pancados brutalmente, nem sequer tm um colcho para descansar, dormem
no cho como ces. E que diria de tudo isso o diretor da Assistncia aos
alienados? (JB, 29/5/1896, p. 1).
aos internos eram de todo falsas. Faz questo ainda de se explicar quanto
s condies da cela-forte onde estava recolhido Serro, relacionando-a
ao carter peculiar da alienao de seu ocupante. Segundo Brando, se
alienados perigosos como Serro encontrassem em suas celas algo alm
de um colcho, poderiam confeccionar armas para agredir enfermeiros e
mdicos. Esquecendo-se um pouco do teor de suas prprias crticas
administrao das irms, diz Brando nesse documento:
_____________
7 Para a discusso travada atravs da imprensa, ver: JB, 8-12, 16-17 e 18/6/1896; e OP, 5-6, 8-10,
13-17, 18 e 20 do mesmo ms e ano.
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 149
...Ao entrar nos quarteires onde existem quatorze casas fortes, [se ver]
o aspecto lgubre e a tristeza que infunde a presena das enormes grades
destes quatorze calabouos, tristes na forma, tristssimos na prtica. Eles
trazem a idia de uma cadeia antiga para toda a sorte de criminosos
(in MACHADO, 1978:453).
_____________
8 Esse documento tambm se encontra em BRANDO, 1897:85-100. Brando se refere ainda a essa
discusso em seu livro Elementos fundamentais de psiquiatria clnica e forense (1918:117-132).
150 SRGIO CARRARA
clnica. Embora no discorra muito sobre elas, para Brando tais razes
seriam mais recentes, pois se ancoravam nos novos estudos de psiquiatria
e de antropologia criminal que, segundo dizia, tm demonstrado ser o
mvel do delito de natureza biolgica (BRANDO, 1897:96).
O ponto central a ser aqui considerado deve ser o fato de os
chamados loucos-criminosos, para alm de serem uma classe moralmente
segregvel, cujo isolamento no mundo manicomial era uma necessidade
urgente, passarem a constituir com os criminosos (particularmente com
criminosos degenerados ou natos) uma classe biologicamente distinta. Parece
certo que, para Brando, degenerados delinqentes, criminosos natos e
loucos-criminosos encontrariam em um manicmio judicirio a morada
ideal. Alm disso, impossvel no perceber por detrs de suas palavras
a preocupao em delimitar fronteiras frente tendncia naturalizao
do crime que caracterizava o pensamento dos antroplogos criminais e de
certos mdicos que comungavam com as idias da Escola Positiva de Di-
reito Penal. O que seria do hospcio se a ele comeasse a afluir toda a sorte
de criminosos? Mesmo o mvel do delito sendo de natureza biolgica,
criminosos e loucos deveriam ser considerados espcies diferentes, recla-
mando formas distintas de interveno social. Brando se coloca assim
contra a confuso entre o crime e a loucura promovida pela abordagem
positivista do crime. No seria justamente tal confuso que via espelhada
no fato de as autoridades estarem enviando com maior freqncia crimi-
nosos ao Hospcio Nacional? No fora esse alis o motivo dessa sua ex-
posio ao ministro?
As idias de Brando sobre o destino a ser dado aos loucos-crimi-
nosos provocam reaes imediatas, e interessante notar que se hoje
convivemos sem grandes problemas (ao menos aparentemente) com a exis-
tncia de um manicmio judicirio, a idia de constru-lo no parecia
consensual naquele momento, mesmo nos crculos psiquitricos. Neste
sentido, tenho algumas pistas que se prendem ainda ao caso Serro. Assim,
como resposta s posies de Brando expostas acima, surge imediatamen-
te um pequeno artigo na Gazeta de Notcias. Diferentemente de Brando,
que v no alienado criminoso, primeiro, o criminoso, o autor annimo
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 155
_____________
9 Ao que me consta, a imprensa nada mais fez seno reproduzir os ofcios de Teixeira Brando
nesse sentido. O artigo assim se dirigia claramente ao dr. Brando, embora dissesse estar se
dirigindo imprensa profana.
156 SRGIO CARRARA
suspeitoso, altivo, violento revelava que sua loucura nada mais seria
que um vcio hereditrio recebido de uma mulher histrica e nevropata.
Alm de tudo o que na vida de Custdio j se prestava a reforar a
hiptese mdica, agora sua fuga se apresentava tambm como mais um
sintoma de seu mal:
Todas essas circunstncias pois [diz o delegado], e o fato ltimo de sua evaso
do hospcio, onde fora recolhido: a relutncia de voltar a esse lugar, preferin-
do ver-se encerrado na deteno, so indcios seguros de que o diagnstico do
exame de sanidade, habilmente feito pelos ilustres mdicos-legistas que o fir-
maram, verdadeiro e como conseqncia, verificada, parece, a
irresponsabilidade de Custdio Serro (idem, grifo meu).
uma vez que no se poderia afirmar que ele tivesse cometido o crime em
estado de completa privao dos sentidos e da inteligncia, como rezava
10
o cdigo . De um lado, porm, essa concepo intelectualista da loucura
j havia sido duramente contestada pelos prprios psiquiatras durante o
sculo XIX, e ns j tivemos a oportunidade de ver como a discusso em
torno da monomania havia destitudo o delrio de seu estatuto de sinal
distintivo da alienao mental. Alm disso, a formulao existente no
Cdigo Penal j era ento considerada inaceitvel nos meios especializa-
dos, tanto por mdicos quanto por juristas, que diziam estar em estado
de completa privao dos sentidos e da inteligncia apenas os mortos.
Ao que parece, o legalismo de Teixeira Brando s pode ser expli-
cado atravs da segunda questo, apenas apontada nesse rpido ofcio: sua
discordncia quanto ao estatuto mdico-legal de toda uma classe de crimi-
nosos considerados degenerados, loucos morais ou criminosos natos, com
os quais o mdico passa a identificar Custdio Serro. Teixeira Brando
parece suspeitar do movimento que vinha ampliando a irresponsabilizao
penal (nos termos do direito clssico) atravs das idias biodeterministas
da antropologia criminal, ou, como prefere dizer, das teorias modernas
do direito penal. Tendo presentes as idias expostas por Brando nos
outros ofcios, percebe-se que uma questo, a um s tempo prtica e
terica, o separava das novas doutrinas. Assim, mesmo no descartando a
possibilidade de existncia de uma determinao biolgica nos atos crimi-
nosos, nem a existncia de criminosos natos e degenerados, Brando se
ope claramente irresponsabilizao penal de tais criminosos e ao seu
conseqente envio aos asilos de alienados como o Hospcio Nacional.
Como j vimos, para tais indivduos ele propunha a construo de um
asilo criminal.
_____________
10 No tocante aos loucos que cometessem crimes, o Cdigo Penal de 1890 dispunha em dois par-
grafos de seu artigo 27: no so criminosos os que, por imbecilidade nativa ou enfraquecimento
senil forem absolutamente incapazes de imputao; e os que se acharem em estado de completa
privao dos sentidos e da inteligncia no ato de cometer o crime. O artigo 29 complementava:
os indivduos isentos de culpabilidade em resultado de afeco mental sero entregues s suas
famlias ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim exigir para a segu-
rana do pblico (Cdigo Penal Brazileiro, 1918:23-26).
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 163
_____________
12 Foram eles o dr. Lcio Joaquim de Oliveira, mdico por concurso do Hospcio Nacional e ex-
assistente da cadeira de Clnica Psiquitrica e Molstias Nervosas da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro; o dr. Simplcio de Lemos Braule Pinto, mdico por concurso das Colnias de Alie-
nados; e, finalmente, o dr. Alberto das Chagas Leite, mdico por concurso do Hospcio Nacional
e preparador da cadeira de Fisiologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (BRANDO,
1897:104; e O Brasil-Mdico, n. 48, 22/12/1896, p. 430-431).
13 O parecer final foi publicado em O Brasil-Mdico, n. 48, 22/12/1896, p. 430-431.
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 165
mais bem aconselhado, nos recebeu e nos tem atendido com a mxima
urbanidade e submete-se com docilidade aos nossos exames e investigaes
(idem, grifo meu).
Quadro 4
Paulo de
Gabinete Mdico Delegado de Louco hereditrio
Lacerda e no Hospcio
Legal da Polcia Polcia mania perseguio
Rego Barros
Regulamento do
Hospcio Nacional Degenerado
Mrcio Nery Hospcio no Hospcio
Fac. de Medicina imbecil moral
Nacional
Foi para tentar dar alguma coerncia s posies dos mdicos en-
volvidos na questo que se fez publicar j no final de 1896, em O Brasil-
14
Mdico, uma matria sobre o assunto . Deixando de lado a avaliao dos
mdicos-legistas da polcia, o autor annimo tenta principalmente rela-
cionar as opinies de Teixeira Brando, Mrcio Nery e dos mdicos da
comisso nomeada pelo juiz, cujo relatrio acabo de abordar. Como
vimos, todos eles concordavam que se tratava de um degenerado com
_____________
14 O Brasil-Mdico, n. 48, 22/12/1896, p. 430. Segundo Nina Rodrigues (que aparecer mais tarde
nessa histria), a matria seria de autoria do prprio Mrcio Nery.
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 167
_____________
15 Na verdade, Mrcio Nery no chega, na documentao que consultei, a classificar Custdio como
louco moral.
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 169
Peo perdo aos leitores por no poder revelar com preciso o que
aconteceu finalmente a Custdio Alves Serro a partir desse momento.
No encontrei qualquer documentao que me auxiliasse neste sentido.
174 SRGIO CARRARA
_____________
16 Atravs de alguns dados fornecidos por Teixeira Brando (BRANDO, 1897:23), percebe-se no
somente as altas taxas de mortalidade do Hospcio Nacional, mas tambm o fato de o nmero
de entradas na instituio ter crescido assustadoramente depois da Proclamao da Repblica.
Assim, para o perodo que vai de 9/12/1842 a 31/12/1889 teriam dado entrada na instituio
6.040 indivduos, dos quais 2.454 (40,6%) morreram. De 01/01/1890 a 9/11/1894, haviam entra-
do 3.043, havendo 1.089 mortes (30,5%).
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 175
_____________
17 Tentei em vo obter as atas da reunio dessa Sociedade, que teve vida curta e manteve entre seus
associados mdicos e juristas ilustres, como Mrcio Nery, Teixeira Brando, Esmeraldino Bandeira,
Carvalho Mouro, Bulhes Pedreira e Raja Gabaglia. Nos livros de Teixeira Brando no
encontrei tambm qualquer pista que esclarecesse suas posies propriamente tericas frente s
formulaes e idias da antropologia criminal ou da Escola Positiva de Direito Penal. certo que,
na Revista Mdico-Legal (ano II, n. 3, 01/9/1897), Nina Rodrigues cita um artigo que Teixeira
Brando teria escrito durante o desenrolar do caso Serro sobre loucura moral e que teria sido
publicado nos Arquivos de Jurisprudncia Mdica e Antropolgica (n. 1, 30/9/1897). Porm, no
encontrei tal publicao nas bibliotecas cariocas, e ela no consta do ndex da Biblioteca Regional
de Medicina (Bireme).
178 SRGIO CARRARA
Senhores, nos anais da psiquiatria forense singular o caso que venho sub-
meter ao vosso julgamento. Bem sabeis quanto tem sido longa e penosa a luta
sustentada pela psiquiatria em prol dos alienados, j com as prevenes da
magistratura e dos tribunais que no pretendiam descobrir nos juzos dela
mais do que preocupaes e exageros de especialistas, j com a inscincia da
opinio pblica vulgar que outro metro e critrio da loucura no sabe admi-
tir alm da incoerncia e das violncias da mania, j com as pretensiosas
aspiraes de simples metafsicos que chegaram a disputar-lhe a competncia
sua, do exame dos loucos, que mais no so que doentes do crebro. Todavia,
se nessa luta teve ela muitas vezes que registrar insucessos que se tornaram
memorveis pela tenacidade com que, na defesa dos irresponsveis, combateu
o erro at o fim; se conta sentenas inquas lavradas e executadas em pobres
loucos com menosprezo completo da propaganda de suas doutrinas, acatada
sem restries est hoje a sua competncia, imposto ao respeito dos tribunais
o seu juzo, ditando leis aos cdigos os seus ensinamentos. Dir-se-ia porm que
no Brasil os termos dessa luta gloriosa se invertem, e a magistratura e so
os tribunais que pleiteiam contra os psiquiatras a irresponsabilidade dos alie-
nados. No pode ser outra a impresso que deixa o caso mdico-legal Custdio
Serro (RODRIGUES, 1897:61-62).
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 181
...na insistncia com que Serro exigia o seu julgamento, na confiana que
depunha no pleiteamento de sua causa perante o tribunal, na sua preocupao
de fazer o seu processo seguir os seus trmites judicirios (idem, p. 121).
Para o mdico-legista,
_____________
20 Proc. n. 1.186, de 23/04/1904, a Justia contra Affonso Henrique da Rocha Codeo, fls. 55-56,
grifo meu.
HRCULES E O COMENDADOR, O CASO DE UM CERTO CUSTDIO 189
*
* *
Urge, pois, que os indivduos de que nos ocupamos [os degenerados ou an-
malos morais] sejam assistidos em estabelecimentos especiais, resultantes da
corrente preventivista atual, a um s tempo hospital e estabelecimento repres-
sivo, casa de sade e rgo de profilaxia do crime. Estes estabelecimentos
apropriados aos estados intermedirios entre o crime e a loucura so
modernamente representados pelos asilos de segurana e pelos manicmios
judicirios. A sua criao se prende diretamente assistncia aos an-
malos morais perigosos e tem, assim, uma alta significao na defesa
social contra a atividade nociva desses indivduos, visando estabelecer
um regime repressivo que se impe em nome da tranqilidade pblica
e da profilaxia criminal (CARRILHO, 1920:133-134, grifos meus).
Posfcio, onde abordarei alguns dos trabalhos mais importantes, que, na-
quele momento, vinham sendo desenvolvidos sobre o assunto na Europa
e nos Estados Unidos.
*
* *
Depois de ter escrito o que era ento uma dissertao, fui desco-
brindo aos poucos que, ao longo dos anos 80, vrios outros pesquisadores
estavam, em diferentes pases, refletindo simultaneamente sobre as cone-
xes histricas entre crime e loucura e sobre o prprio conceito de dege-
nerao, ponto de passagem obrigatrio para quem se aproxima do tema.
Como cada uma dessas obras foi praticamente escrita de modo indepen-
2
dente , tal sincronicidade em si mesma um curioso problema a ser in-
terpretado. Se eu acreditasse em algo como um esprito de poca, diria
que teriam sido as angstias geradas por uma dcada de aguda crise eco-
nmica e profundo sentimento de desencanto, as responsveis por esse
difuso interesse pelo conceito de degenerao ou decadncia e pelas con-
seqncias sociais de sua disseminao. Poderamos tambm considerar a
hiptese de que as inmeras pistas sobre o assunto deixadas por autores
como Michel Foucault ou Robert Castel tivessem, ao longo da ltima
dcada, chamado a ateno de muitos de ns. A sustentar tal idia, h o
fato inegvel de que, mesmo quando criticam algumas de suas posies,
todos os autores que escreveram naqueles anos sobre as relaes entre
crime e loucura ou sobre o conceito de degenerao tinham Michel Foucault
como referncia fundamental. Mas, do meu ponto de vista, seria mais
razovel pensar essa sincronicidade como um desdobramento necessrio
da prpria reflexo, to cara aos anos 70 e 80, sobre o fenmeno da
medicalizao de comportamentos socialmente desviantes. Naquele mo-
mento, a medicalizao interessava sobretudo como forma especfica de
_____________
2 Apesar de alguns dos livros que vieram a pblico mais recentemente citarem o mais antigo dentre
eles, evidente que no tiveram a a sua origem ou inspirao.
POSFCIO 203
_____________
3 No quero dizer com isso que a discusso em torno do poder tutelar e do estatuto jurdico da
tutela tenha se restringido s discusses em torno da medicalizao. Ao menos quanto ao Brasil,
alguns pesquisadores vm abordando o assunto em relao ao tratamento dispensado pelo Estado
s populaes indgenas (ver, por exemplo, LIMA, 1995) ou aos menores (ver, por exemplo,
VIANNA, 1995).
204 SRGIO CARRARA
_____________
4 Os livros de Pierre Darmon e Ruth Harris j foram traduzidos e publicados no Brasil. Neste
Posfcio utilizo a edio brasileira apenas para o caso de Harris.
5 despite the great volume of writings on factory workers, poverty, and the poor, we still know relatively
little about deviants in modern Europe or what contemporaries thought about them.
POSFCIO 205
_____________
6 Somewhere along the line, degeneration had receded from view; it had slipped out of focus in the
mainstream history of ideas, perhaps relegated to a footnote in literary criticism or brief mention in
specialist histories of biology, psychiatry and criminology. Degeneration, once such a key word,
become something of a lost word.
7 ...is not so much a study of deviance in France during this period, as it is a study of the cultural
perceptions of deviance, and the relation between those perceptions and general trends in politics and
French intellectual life. It is as a consequence a survey of the foundations and growth of a medical
model in the nineteenth and early twentieth centuries.
206 SRGIO CARRARA
detalhadas do que as que pude oferecer anos atrs sobre as diversas teorias
psiquitricas, antropolgicas ou sociolgicas acerca do comportamento
criminoso, que emergiram a partir da segunda metade do sculo passado.
Acompanhando o desenho geral que j havia sido esboado pelo socilogo
francs Robert Castel, ao qual tambm recorri sistematicamente, Nye
descreve claramente o complicado processo de medicalizao do compor-
tamento criminoso, fornecendo uma minuciosa descrio dos conflitos
entre a chamada Escola Italiana de Antropologia Criminal e a Escola
Francesa ou Sociolgica e da vitria final da ltima no contexto interna-
cional.
Para Nye, teria sido a tradio neolamarckiana dos intelectuais e
cientistas franceses a principal razo que os teria impelido, atravs da
nfase no meio social, a se opor to ferozmente ao biodeterminismo
lombrosiano, avanando solues de compromisso entre posies livre-
8
arbitristas e biodeterministas (idem:98) . Alm disso, segundo diz, a idia
de serem as influncias sociais as causas mais relevantes da criminalidade
era, no contexto francs, muito mais palatvel aos juristas, aos liberais e
s elites catlicas, ferrenhas opositoras das posies da Escola Italiana.
Como apontei em meu prprio trabalho, tambm para Nye, teria sido
atravs do conceito de degenerao que esse acordo entre posies opostas
se construiu. Segundo ele, desde o incio dos debates sobre o criminoso nato,
a teoria da degenerao possua um claro potencial para ocupar o terreno
_____________
8 A hiptese sem dvida sedutora, porm no posso deixar de observar que a sua generalizao
deixaria o Brasil e grande parte da Amrica Latina em uma posio inexplicvel. De um lado,
como vem apontando a historiadora Nancy Stepan em seu extenso trabalho sobre a eugenia nos
pases latino-americanos, neles, como na Frana, teriam prevalecido quase incontestveis at meados
do sculo XX as idias neolamarckianas em torno da hereditariedade dos caracteres adquiridos
(STEPAN, 1996). Porm, de outro lado, tanto Nye quanto Darmon iro afirmar que a Amrica
Latina foi um dos grandes baluartes das teorias lombrosianas. Para Nye, depois de ter sido
derrotada na maioria dos pases europeus: ...the positive school of Italian criminology continued to
uphold its position in Italy, and even enjoyed limited successes elsewhere, especially in South America
(NYE, 1984:102). Para Darmon, Aprs une priode dengouement, les thories de Lombroso sont
partout branles par lessor de nouvelles thories caractre anthropologique ou sociologique,
lexception des pays flamands, o lcole positiviste conserve de solides positions, et des pays latino-
amricains, vritables eldorados de la nouvelle cole (DARMON, 1989:110). Ou a Amrica Latina
no foi assim to receptiva Escola Positiva, ou (o que mais provvel) as posies neolamarckianas
e lombrosianas no eram, no contexto da passagem do sculo, to excludentes como quer Nye.
POSFCIO 207
_____________
9 from the outset of the debates on the born criminal, degeneration theory possessed a clear potential
for occupying a middle ground between the atavistic criminal of Lombroso and the abstract free man
of the voluntarist metaphysicians and jurists... Since degeneracy was an illness that advanced in stages,
it was possible to argue that it did not extinguish the autonomous will, and therefore the penal
responsibility of its victims, until the final phase of degeneration was reached.
10 in the altered geopolitical situation of the defeated and divided nation and in the bleak ruminations
that followed on the possible fall of La Grande Nation from great power status.
208 SRGIO CARRARA
_____________
13 The white race represented the triumph of the human species, its hitherto most perfect advancement.
But then inside the triumphant whiteness, there remained a certain blackness. The danger was not
simply external the Dark Continent... indeed the problem was that it could not be held to an
outside.
210 SRGIO CARRARA
_____________
14 The medical concern with hereditary degeneration in France coalesced with fears about a fundamen-
tal disorder of national history.
15 My argument is that the credibility of the conception of degeneration owed a great deal to the broad
crisis of liberal optimism in the face of revolution.
16 concepts of atavism and degeneration articulated the horror of a largely northern Italian medical and
scientific intelligentsia in the face of a fragmented and backward countryside on the one hand, and,
increasingly, by perceived volatility and delinquency of urban populations.
17 A rejeio das idias de Lombroso sobre o carter atvico do comportamento criminoso pela
maioria dos cientistas ingleses e americanos tambm sustentada por Pierre Darmon (DARMON,
1989:111-112).
POSFCIO 211
_____________
18 In Englands social and intellectual history, degeneration appears a less obvious issue than on the
continent; firstly, the notion of the degenerate as a clearly distinguishable being always tended to be
diluted in the clash with a recalcitrant classical liberal conception of the individual.
19 the prospect of the direct destruction, extinction or impotence of the state was on the whole seen to
be implausible.
212 SRGIO CARRARA
essa seria certo uma pobre soluo, pois pelo menos desde a formulao
das crticas funcionalistas s teorias difusionistas, tal retrica j havia sido
despida de qualquer pretenso explicativa a que um dia pode ter aspirado.
Alis, talvez seja mesmo o caso de nos perguntarmos se as hipteses que
procuravam explicar certos fenmenos ou processos sociais presentes nos
pases ditos perifricos atravs da imitao no eram afinal apenas o
subproduto do modo pelo qual os objetos de investigao vinham sendo
(e, em grande medida, continuam a ser) construdos no campo da reflexo
sociolgica. Primeiramente, estuda-se determinada configurao simblica
ou processo histrico conforme ocorreram na Europa ou nos Estados
Unidos, relacionando-os prioritariamente a elementos presentes naqueles
contextos. Depois, quando se descobre que afinal os mesmos fenmenos
estavam ocorrendo em partes do mundo consideradas perifricas, s resta
mesmo lanar mo da idia de imitao, importao descontextualizada,
fora do lugar, etc. Perdem-se os anis...
De fato, o que est em jogo aqui o prprio paradigma explicativo
da Histria Social, conforme desenvolvida por Robert Nye e, em uma
verso mais atenuada, tambm por Daniel Pick. Robert Nye chega a opor
explicitamente tal paradigma a certas idias foucaultianas. Obviamente, o
autor no deixa de reconhecer no trabalho de Foucault e de seus aclitos,
como se refere aos que adotaram suas idias, uma contribuio sugestiva
para a compreenso do processo de medicalizao dos comportamentos
desviantes. Porm, para ele, Foucault teria se abstido de operar com ex-
plicaes causais tradicionais sobre mudana histrica e ridicularizou os
esforos dos historiadores sociais em explicar mudanas na ideologia mdica,
20
relacionando-as a eventos sociais (NYE, 1989:xii) .
Antes de mais nada, gostaria de dizer que no essa a leitura de
Foucault que incorporei em meu prprio trabalho. E, de fato, no me
parece justo reduzir as suas contribuies metodolgicas s cincias sociais
a uma condenao pura e simples do estabelecimento de relaes entre
_____________
20 ...mocked the efforts of social historians to explain changes in medical ideology by reference to social
events.
POSFCIO 213
_____________
21 Isso no quer dizer que, no mbito da sociologia ou da antropologia social, muitas das proposi-
es de Foucault no tenham se prestado a uma apropriao francamente funcionalista. Na ltima
dcada, o neologismo disciplinarizao, sobretudo quando aplicado s classes populares ou
trabalhadoras, tornou-se, por exemplo, uma espcie de passe-partout, explicando as mais hetero-
gneas prticas e instituies.
214 SRGIO CARRARA
dagem vlida, reificando esse social com o qual, segundo Nye, os histo-
riadores vinham, at as impertinentes crticas foucaultianas, trabalhando
com certa tranqilidade.
H ainda, nesses autores, certas dificuldades na prpria construo
do objeto sob investigao. Se o objetivo realmente desenvolver expli-
caes causais tradicionais, como quer Nye, ento eles deveriam, antes de
mais nada, ter muito mais cuidado em definir a prpria extenso dos
fenmenos sob anlise. Se as teorias degeneracionistas floresceram em um
mesmo momento nas metrpoles e em suas colnias ou ex-colnias, no
possvel utilizar para explicar tal florescimento uma ordem de causas
que, como os medos metropolitanos, aplica-se apenas a uns poucos casos.
Isso seria como querer explicar a fora da gravidade no Brasil pelo fato de
o pas ficar no Hemisfrio Sul. Ora, como tal fora se faz sentir em todas
as partes do globo terrestre, esta evidentemente no pode ser a sua causa
eficiente. Tudo se passa ento como se o perigo de desmantelamento do
liberalismo jurdico pela disseminao por instncias de poder juridica-
mente relevantes de uma concepo alheia e oposta a suas crenas mais
fundamentais (este sim um processo que atingia igualmente pases centrais
e perifricos) fosse menos importante do que a falta de confiana quanto
ao futuro em determinados contextos nacionais. Como vimos, se o con-
ceito de degenerao (na sua verso mdica, moreliana, de degradao e
no em sua verso antropolgica de involuo) era to importante, foi
justamente pelo fato de operar mediaes cruciais entre livre-arbtrio e
determinismo, consolidando um espao importante para a cincia dentro
dos tribunais sem entretanto destru-los.
Obviamente, no se trata aqui de negar que, como querem Nye ou
Pick, processos de construo ou reafirmao de valores nacionais estives-
sem fortemente ligados ao destino do discurso degeneracionista, o que
certamente estiveram em grande parte dos pases ocidentais22; mas sim de
afirmar que tal destino esteve igualmente ligado a outros tantos processos
_____________
22 No meu trabalho sobre a luta contra a sfilis, doena considerada at a Segunda Grande Guerra
como uma das principais causas da degenerao, exploro justamente essas relaes entre a difuso
das teorias da degenerao e os processos de construo da nao no Brasil (CARRARA, 1996).
POSFCIO 215
*
* *
mdicas. Alis, esta parece ser mesmo a grande dificuldade para quem
pesquisa o tema: conseguir deslindar o n em torno do qual se enrolavam
diferentes profissionais e diferentes teorias. A oposio entre mdicos e
juristas e a prpria idia de um processo unitrio de medicalizao do
desvio tm geralmente impedido uma anlise mais detida da heterogeneidade
existente no interior da prpria medicina e das cincias biomdicas em
geral. Para que se possa entender melhor no s o dilema administrativo
de Harris, mas o modo singular como a discusso se desenvolveu e grande
parte das suas conseqncias sociais, parece ser necessria uma compre-
enso muito mais acurada do que a que se tem tido at o momento dos
prprios conflitos internos medicina. A tarefa no fcil por vrias
razes. Antes de mais nada, as divises disciplinares da poca eram bem
23
diferentes das atuais . Alm disso, naquele momento inmeras especia-
lidades estavam nascendo e outras estavam sendo drasticamente transforma-
das. E, finalmente, a preeminncia de um difuso monismo fisicalista per-
mitia toda sorte de comunicaes e superposies entre teorias e discipli-
nas. Isso no quer dizer entretanto que reinasse a mais completa indistino.
Tais conflitos disciplinares e as diferentes matrizes tericas em
jogo so mais explicitamente enfatizados por Pierre Darmon, ltimo autor
a ser aqui considerado. Do meu ponto de vista, Darmon quem nos
oferece a anlise mais completa e interessante sobre a evoluo do
pensamento biomdico a respeito do crime, distinguindo mais claramente
uma linha de reflexo propriamente antropolgica, que deita suas razes
nos trabalhos dos fisiognomonistas e frenologistas, de uma linha de refle-
xo mdica e psiquitrica, cujas razes esto no alienismo francs. Alm
disso, explora minuciosamente as conseqncias sociais da reflexo
biomdica sobre o crime tanto para a estruturao das modernas institui-
es penitencirias e modernizao de certas formas de reao penal (como
a pena de morte), quanto para a adoo em diferentes pases de um dis-
_____________
23 No nos esqueamos, por exemplo, de que at a Primeira Grande Guerra, o principal peridico
psiquitrico brasileiro eram os Archivos Brasileiros de Neurologia, Psiquiatria e Medicina-Legal.
POSFCIO 219
positivo eugnico que inclua desde leis sobre os exames pr-nupciais obri-
24
gatrios at leis sobre esterilizaes involuntrias de anormais.
Quanto ao conflito disciplinar que se evidenciava nos congressos
e conferncias que ento se realizavam sobre o tema, Darmon claro: Na
verdade, a antropometria e a sociologia criminal, a psiquiatria forense, o
estudo da hereditariedade e da degenerao e a medicina-legal dificilmente
poderiam coabitar no seio de uma mesma disciplina (DARMON, 1989:113).
Para ele, uma das grandes conseqncias dos conflitos da passagem do
sculo teria sido justamente a incorporao final da sociologia criminal
sociologia, da psiquiatria-forense psiquiatria e a consolidao da medici-
na-legal como cincia autnoma. Talvez devssemos acrescentar ainda que,
dessa espcie de nebulosa disciplinar de fins do sculo passado, nasce
ainda uma rea de difcil definio, destinada s intempries da eterna
interdisciplinaridade, que ser batizada com o nome de criminologia.
De todo modo, no se pode negar que, ao longo desse processo,
a medicina-legal perdeu uma esfera importante de reflexo e de atuao.
Ao menos como a sonhava Nina Rodrigues, a medicina-legal deveria in-
corporar tanto os conhecimentos da psiquiatria, quanto os da antropolo-
gia fsica em sua funo de auxiliar os tribunais na avaliao da responsa-
bilidade penal dos criminosos. Talvez uma anlise mais detida do perodo
possa mesmo indicar que essa derrota se deveu em grande parte ao fato de
ter tido a matriz antropolgica especial ressonncia no mbito da medici-
na-legal. Desde muito antes da passagem do sculo, a medicina-legal vinha
se adestrando no exame dos corpos humanos, tanto vivos de onde
desenvolveria toda uma sofisticada tcnica de identificao civil e criminal
que, das impresses digitais, chegaria aos atuais testes de DNA, quanto
mortos de onde implementaria suas tcnicas de aferio das causas e
_____________
24 Cabe aqui um reparo quanto a algumas observaes de Darmon (1989:200) e Stepan (1996:127)
relativas adoo do exame pr-nupcial no Brasil. Ambos dizem que a obrigatoriedade de tal
exame teria sido instituda no pas a partir dos anos 30. Alis, Stepan deriva disso importantes
conseqncias para sua anlise da eugenia brasileira. No Brasil, a adoo de tal exame foi de fato
prevista na Constituio de 1934. Porm, nenhuma lei veio regulament-lo e, na Constituio de
1937, desaparece qualquer meno a ele. Portanto, o pas nunca adotou a obrigatoriedade do
exame pr-nupcial como fazem crer Darmon ou Stepan.
220 SRGIO CARRARA
_____________
26 Para se ter uma idia dessa carncia, basta dizer que, a despeito de sua importncia, um trabalho
realmente compreensivo sobre a histria da penitenciria paulista do Carandiru s viu a luz neste
ano atravs da excelente tese do socilogo Fernando Afonso Salla (SALLA, 1997).
27 Para alguns esforos interessantes nessa direo, ver DELGADO (1992), e MECLER (1996).
28 Um dos nicos trabalhos que conheo sobre a histria da criminologia no Brasil veio a pblico
no ano passado (ALVAREZ, 1996).
29 Para uma recente tentativa nesse sentido, ver SERPA Jr. (1997).
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