Simbolos Divinatorios de Angola - 3

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2. O CONTEDO DO CESTO DIVINATRIO

2.0-Documentao Museogrfica
Alm do trabalho de campo onde ns observamos o cesto divinatrio em seu meio
e em sua utilizao, um certo nmero de colees etnogrficas foram observadas. A
importncia desta documentao sobretudo a dimenso no espao e no tempo que ela
pode trazer a nossas observaes de campo. Na verdade, os cesto recolhidos j h tempos
constituem documentos importantes sobre o contedo do cesto em certos momentos e em
regies determinadas.
A documentao museogrfica observada nessas colees no certamente
exaustiva, mas no que concerne a este objeto etnogrfico, pelo menos as colees mais
dignificativas so mencionadas aqui. De nosso conhecimento, a maior sem dvida a do
Museu de Dundo, que forneceu-nos a maior parte dos documentos fotogrficos. No que
concerne qualidade e antigidade das estatuetas antropomorfas preciso notar
sobretudo a coleo de cestos divinatrios do Museu de Etnografia de Castelo Novo. Na
maioria de todas essas colees h cestos incompletos, porque os captadores, atrados
sobretudo por alguns objetos, rejeitavam facilemnte ou subestimavam os que no eram
interessantes; essa lacuna bastante freqente, sobretudo no que concerne aos objetos
de natureza animal ou vegetal. s vezes misturou-se as estatuetas e outros objetos
manufaturados de dois ou vrios conjuntos no mesmo cesto, o que representa uma
dificuldade suplementar para a anlise dos objetos do cesto.
Um mnimo de informao sobre cada coleo pode nos ajudar a esclarecer os
problemas que levanta o estudo do contedo do ngombo.

2.0.1-Museu de Dundo
Registro Localidade Ano Nmero de objetos
M. 1234 Lovwa 1959
M. 44 Fortuna (Citato) 1946 68
M. 883 Mwanzanza (Cilwaji) 1957 56
M. 819 Mwacondo (Kapaia) 1957 80
M. 46 Citato 1940
M. 745 Samilambo (Kapaia) 1956 39
M. 1098 Mwamushiko 1958 73
(Kalwango)
M. 1233 Mukuloji 1968
M. 43 Citato 1946 56
M. 47 Kanzar 1936 84
M. 42 Fortuna (Citato) 1938 63
M. 23 Citato 1945 60
M. 24 Citato 1945 53
M. 1237 Mukuloji 1968 56
M. 886 Civunda (Cilwaji) 1957 61
M. 1097 Cinyama (Sombo) 1958 80
M. 1165 Kajima (Sombo) 1958 88
M. 884 Kamizenze (Cilwaji) 1957 21
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M. 22 Saconga (Sombo) 1938 70

Registro Localidade Ano Nmero de objetos


M. 1173 Kamakasa (Sombo) 1963 33
M. 830 Kamukalenge (Lovwa) 1957
M. 637 Kanzar 1940
M. 50 Kapaia ?
M. 21 Cikomba (Citato) 1938 63
M. 741 Sangongo (Kapaia) 1956 60
M. 765 Kahungula 1956
M. 834 Sakajikula (Kapaia) 1957 70
M. 25 Kanzar 1936 63
M. 885 Murieji 1957 101
M. 963 Mwinda (Kanzar) 1957 77
M. 882 Cilwaji 1957 100
M. 48 Kambulo 1938
M. 20 Kalundungo 1938 98
(Kamisombo)
M. 45 Kalundungo 1938 87
(Kamisombo)
M. 1232 Kahala 1968
Mdia: 67

A coleo de cestos divinatrios do Museu de Dundo (Angola) (foto 68), a mais


rica que observamos, contm trinta e cinco conjuntos, a maior parte em bom estado de
conservao, se bem que alguns exemplares estejam vazios, e que em outros a
heterogeneidade das peas seja muito evidente. Nos trinta e cinco conjuntos (dos quais
ns obtemos a maior parte da documentao fotogrfica deste estudo) se verifica, no que
concerne ao nmero de objetos simblicos, uma certa oscilao, com valores mdios de
67 peas. O conjunto mais reduzido (21 peas) sem dvida uma mutilao em relao
coleo inicial e os conjuntos mais ricos (M. 885, com 101 peas e M. 882, com 100
peas) apresentam bastante objetos repetidos, principalmente algumas peas de origem
animal (os cascos de animais de caa, por exemplo). Podemos, portanto aceitar o valor
mdio desta importante amostra como expresso de uma variao muito prxima do
contedo real da maioria dos cestos que observamos entre os prprios adivinhos.

2.0.2-Museu de Etnografia (Castelo Novo)

O Museu de Etnografia de Castelo Novo possui uma coleo muito rica de cesto
de adivinhao (fotos 69-76). Dos catorze que observamos, oito eram construdos
exclusivamente em palha, quatro em palha lateralmente, se apoiando sobre um fundo de
cabaa, e dois cuja parte superior era em palha e o fundo em couro. Dos contedos dos
conjuntos observados seguem as referncias:

Registro Localidade Ano Nmero de objetos


III. c. 6279 Kubango 1933 24
III. c. 6238 Hwambo 1933 80
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III. c. 7371 Rodsia do Norte 1941


III. c. 6280 Kubango 1933 25
III. c. 6281 46
III. c. 6282 Kubango 82
III. c. 6284 Kubango 60
III. c. 6285 Kubango 42
III. c. 6286
III. c. 6287 Rodsia do Norte 1941
Mdia: 52

O valor mdio em nmero de peas por ngombo - cinquenta e duas - bastante


inferior do museu de Dundo. antes de tudo uma conseqncia da distoro
introduzida pelos conjuntos III. C. 6279 e III. C. 6280 nos quais, com toda certeza, o
captador guardou apenas as peas que acreditava valiosas. Mesmo no que concerne a
alguns dos outros cestos, bastante duvidoso que se tenha conservado todos os objetos.
Esta coleo de cesto divinatrio particularmente importante pela qualidade e a
variedade das estatuetas antropomorfas, das quais algumas no so mais encontradas
entre os Cokwe nem provavelmente em outros. A idias de Delachaux de estabelecer uma
aproximao comparativa no que diz respeito s estatuetas do mesmo tipo forneceu sries
comparativas interessantes para o estudo (Delachauz, 1946), mas este trabalho foi
conduzido com alguns inconvenientes do ponto de vista seogrfico. Isolou-se as
estatuetas antropomorfas de seus conjuntos respectivos, o que significa sempre uma certa
mutilao do cesto enquanto conjunto etnogrfico continente de uma significao prpria.

2.0.3-Museu de Etnologia (Lisboa)

Registro Localidade Ano Nmero de objetos


A. B. 486 Kakolo 1963 66
A. B. 909 Sacombo 1963 113
A. G. 519 Lumeji 1965 64
A. E. 623 57
A. M. 100 47
A. M. 005 Shamelambo (Kapaia) 1968 61
A. M. 137 Kanzar 1967 81
Mdia: 70

Coleo relativamente recente (cestos recolhidos entre 1963-1968) e cujos


contedos so, regra geral, bastante completos (foto 77); uma boa coleo. Bem
conservada e bastante significativa das regies dos Cokwe pela provenincia bastante
diversificada dos ngombo, de Dundo a Lumeji. A maior parte dos cestos encontra-se
acompanhada de um mnimo de informao a respeito do contedo, da utilizao, o local
da captao e a designao local, e de uma pequena descrio dos principais objetos
simblicos. O valor mdio (70 peas por cesto) o mais prximo da mdia observada nos
cestos ainda utilizados pelos adivinhos.
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2.0.4-Museu e Laboratrio de Antropologia (Coimbra)

Registro Localidade Ano Nmero de objetos


1186 Saurino 1927 24
1187 Saurino 1927 33

Estes dois conjuntos (fotos 78-79), bastante incompletos, foram recolhidos em


plena regio cokwe (Saurino) por uma misso botnica presidida pelo botnico Carrisso
(1927), que observou, nos documentos acompanhantes da coleo:

gombo (cesto) contendo vrias peas (tupele). O feiticeiro (quimbanda) agita o


cesto, misturando as peas, e conforme as posies que elas ocupam e conforme as que
ficam por cima, responde consulta. Regio de Saurino. (Dossi Misso Botnica Dr.
Carrisso, 1927, Museu e Laboratrio Antropolgico, Universidade de Coimbra).

Nessa informao que acompanha os objetos recolhidos, o botnico Carrisse, que


confundia feiticeiro e adivinho, e nomeava este ltimo com um termo originrio dos
Ovimbundu (quimbanda), explica de modo sucinto o essencial da tcnica do ngombo: o
adivinho responde s questes formuladas pelos clientes de acordo com a posio dos
objetos que se chamam tupele (tuphele;0, que ficam por cima do cesto.

2.0.5-Museu Real da frica Central (Tervuren)

Registro Localidade Ano Nmero de objetos


35.807 Luashi (Shaba) 1934 24
35.648 Malonga (Shaba) 1934 41
37.119 Kahemba 1934 122
34.534 Sandoa 1932 119
36.400 Kabwe (Bena-Mai) 1936 13
36.398 Kabwe (Bena-Mai) 1936 6
36.399 Kabwe (Bena-Mai) 1936 6

A coleo de cestos divinatrios do Museu Real Da frica Central traduz mais


que qualquer outra o fato j assinalado que com freqncia os captadores se interessam
unicamente por algumas peas do cesto e em particular s estatuetas antropomorfas (foto
80). assim que a maior parte dos cestos apresentam somente uma parte de seu
contedo. No que concerne aos dois cestos cujos contedos ultrapassem muito alm as
mdias observadas (122,119), eles representam certamente dois ou vrios conjuntos
misturados.

2.0.6-Museu do Homem (Paris)


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um nico cesto divinatrio com trinta e dois objetos simblicos, proveniente da


regio dos ngangela, por ocasio da misso Rohan-Chabot (1912-1914) em Angola. Este
conjunto (foto 81), classifcado como necessrio ao feiticeiro, num cesto com fundo de
cabaa com materail descrito em detalhe:

Cesto, fundo em cabaa, contm 2 peles de animais no curtidas, 1 par de


tesouras europias, 4 personagens esculpidos em madeira, 2 garras de animal, 4 frutos, 1
pedao de ferro em forma de crescente, 1 parte superior de bico de ave, 1 carpo e
metacarpo de animal, 1 dente, 1 mero de pequeno animal, 1 casco de pequeno
artiodctilo, 1 chifre de animal, 2 anis de metal, 1 fragmento de raiz, 1 pedao de ferro
bruto, 2 fragmentos de palha, 1 disco de metal perfurado, 1 pedao de chifre com seis
furos, 1 metal recortado em esptula, 2 prolas de vidro soldadas juntas.
Altura 7 cm; diam. mx. 17 /M. H. 12.15.67 (1 a 32)/.

2.0.7-Colees particular

preciso mencionar ainda algumas colees particulares nas quais o cesto


divinatrio est representado, ou pelo menos algumas estatuetas que lhe pertencem.
Normalmente so sobretudo as estatuetas que chamam a ateno dos colecionadores, mas
h quem conserve tambm cestos divinatrios completos. Entre outras, citamos as
seguintes, das quais obtivemos alguma documentao:
a) - Coleo de Miguel Neves (Portugal), com vrios cestos e seus contedos e
tambm vrias estatuetas isoladas de boa qualidade (foto 82).
b) - Coleo de objetos pertencentes a L. de Sousberghe (Blgica) dos quais
alguns em marfim (fotos 83-84).
c) - Coleo de cestos do Museu de Singeverga (Portugal), onde vrios conjuntos
foram colocados no mesmo cesto (foto 85).
d) - Outras colees particulares: M. Simpson (fotos 86-89); P. T. (foto 90).
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2.1-As Estatuetas Antropomorfas

2.1.0-Introduo

O estudo do contedo do cesto divinatrio coloca um problema prvio: o da


classificao dos objetos, pelo menos por razes metodolgicas. Ao mesmo tempo,
preciso estudar tambm o prprio cesto (recipiente), que alis construido justamente
para guardar os tuphele. Antes de olhar de mais perto os tuphele e tentar uma
classificao, preciso observar o cesto, primeiro o que guarda os smbolos divinatrios
(kasanda), e em seguida um outro cesto, mais raro e inteiramente diferente, que protege o
primeiro.

a) - O cesto kasanda

O cesto divinatrio propriamente dito um recipiente que contm os objetos


simblicos utilizados pelo adivinho (foto 92). Descreve-se-lo freqentemente como uma
bandeja, mas na realidade essa designao no muito exata, porque sua altura o
distancia em geral da bandeja. As dimenses so bastante variveis tambm no que
concerne abertura; a maior parte dos cestos apresentam um dimetro muito prximo de
30cm de abertura, mas h os que diferem muito: nesses casos, os que so bem mais largos
se apresentam em geral bastante achatados; em compensao, aqueles cuja abertura
inferior a 30cm aumentam s vezes de altura na mesma proporo.
Assim, e a ttulo de ilustrao, apresentamos as medidas de abertura (dimetros)
que correspondem a quatro exemplares (ver fotos 93-96):

A-30cm (Col. M. Neves)


B-22cm (A. 1187, M. e L. de Antropologia, Coimbra)
C-28,5cm (A. 1186, M. e L. de Antropologia, Coimbra)
D-30cm (Col. M. Neves)
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A altura medida a partir da abertura do cesto, e perpendicular base, no se afasta


na maioria dos casos de 8cm; apenas alguns exemplares muito menores (de dimetros
reduzidos) se apresentam um pouco mais altos. No que concerne aos quatro exemplares
escolhidos, verifica-se as seguintes medidas:

A-8cm
B-7cm
C-8,5cm
D-7cm

O cesto kasanda integralmente construdo em palha. Entre os Cokwe muito


raro o caso em que o kasanda feito a partir de um fundo de cabaa, sobre o qual se
fabrica o cesto com fibra vegetal no lado, tendo por resultado um recipiente misto cujo
fundo em cabaa e as bordas em palha1 . Em outras etnias de Angola, e sobretudo entre
os Ngangela, bastante freqente o recurso ao fundo de cabaa para construir o cesto
divinatrio. Delachaux descreve um exemplar.
O recipiente (do cesto), de um dimetro de 18cm e de uma altura de 6,5cm,
constitudo por um fundo de cabaa em forma de pires perfurado por vrios buracos, que
serve de sustentao a uma borda em palha ligeiramente dilatado.
A tcnica utilizada nesse tipo de artesanato, muito cuidadosa, invariavelmente a
tcnica espiral com armadura (fig 1), que se classifica hoje como o ligado. O kasanda
se apresenta muito slido, o que no sempre o caso em relao a outros objetos em
palha que os Cokwe fabricam.

b)-O cesto cikulimba

Exteriormente ao cesto divinatrio kasanda que guarda os tuphele, h outro cesto


que se utiliza para guardar o primeiro bem como para transport-lo (fotos 97-98). um
grande cesto em forma de cilindro, cujas bases so mais ou menos quadranguares e que
os Cokwe chamam cikulimba ca ngombo. As duas partes de que cikulimba se compe se
adaptam uma outra como as duas partes de uma caixa, e so fabricadas em palha de
acordo com a tcnica do cruzado em marchetaria, uma variante do que se chama de
alisado (fig. 2; fotos 99-101). Um fio de couro ou de palha preso a dois pontos laterais
da parte inferior e passam por dois grampos laterais da parte superior, de modo que as
duas metades fiquem presas durante o transporte (fig. 3).

c)-O contedo do cesto: tentativa de classificao

1 Nenhum dos adivinhos-informadores utilizava um cesto do tipo hbrido, mesmo ele existindo na regio
dos Cokwe; outros dois exemplares de provenincia cokwe foram observados dentre os 35 das colees do
Museu de Dundo; preciso notar a informao do pastor Berger relativo a um exemplar recolhido na
Zmbia e descrito por Delachaux:
O recipiente formado por uma meia-cabaa dominada por uma borda vertical em palha,
formada, em baixo, por uma banda em paliada, em cima da qual se encontram quatro fileiras tranadas em
varas sobre crculos de madeira. (Delachaux, 1946, p. 56)
119

Dada a complexidade do contedo do cesto divinatrio, devido no somente


prpria natureza dos objetos, mas tambm a sua provenincia e valor simblico, parece
haver grandes vantagens para o estudo de cada dos objetos de maneira a orden-los em
grupos para facilitar seu estudo sistemtico.
A dificuldade de um tal agrupamento alis uma conseqncia imediata da
heterogeinedade dos objetos. Tomemos um exemplo ao acso desntre os cestos das
colees enumeradas:
cifuci, um fruto da rvore munzenze;
genzo, um pequeno guizo de madeira;
liji, o chifre de khai (cabra selvagem), trs exemplares;
kakone, um pequeno pedao de madeira torcido;
lusende ya khai, uma pata de cabra (casco);
mbate, o casal;
kalamba kuku, o ancestral (masculino);
kaphukhulu, a ave;
muta, o cachorro;
kapindji, o escravo;
mukupela, o tambor duplo;
lukutu, o pnis;
ikashi, os bens (objetos de cozinha) de uma mulher;
mukoci, a fila de cabaas;
katwambimbi, a carpideira;
kakweji, a lua;
mufu, a morte;
citanga, o enigma;
liji, um chifre de kaseshi (pequena cabra selvagem);
cikunza, o danarino da mscara cikunza;
yimato, os dias;
samuhangi, o mestre da floresta;
mufwaponde, o mutilado na guerra;
kasumbi, o galo (o osso de uma pata);
muhela, o leito;
cisakulo, o alfinete;
lukaka, o pangolim (carapua);
if, o casco;
trs estatuetas no identificadas (Colees do Museu e Laboratrio de
Antropologia - Coimbra - Reg.: Angola 1187)

Dentre as diferentes tentativas de classificao at o presente para agrupar os


objetos do cesto divinatrio, citamos as de Hauenstein, Bastin e Mesquitela Lima. A.
Hauenstein pretendia classificar os objetos segundo a resposta e o tipo de problemas
abordados pelo adivinho:
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Ns propomos uma classificao que, apesar de falha, nos parece corresponder


melhor ao pensamento fundamental da adivinhao:

a)- estatuetas de ancestrais ou espritos favorveis ao cesto; por exemplo: Jinga,


Tchikunza, Kalamba, Ngombo, etc.
b)- Atributos ligados ao culto dos ancestrais tais como: chyo, ombenji, chinu, etc.
c)- Estatuetas indicadoras dos casos de feitiaria; por exemplo: mbinga, uta,
wanga, nganga ya menda, etc.
d)- Peas relativas a dificuldades diversas, tais como: mandamba, chifudji, lukaka,
etc.

M. L. Bastin, enunciando a lista dos principais objetos observados no ngombo, os


agrupou assim:

a)- estatuetas antropomorfas;


b)- estatuetas de madeira zoomorfas;
c)- rplicas miniaturas de madeira e de metal de objetos diversos;
d)- matrias animais;
e)- matrias minerais, vegetais, artesanais (palha, etc.), etc.

Mesquitela Lima apresenta tambm uma classificao semelhante, pretendendo


agrupar os objetos do cesto, ao mesmo tempo, em funo de suas formas, provenincia e
matria:

a)- formas humanas ou antropomorfas de madeira;


b)- formas animais de madeira;
c)- miniaturas de objetos diversos, de madeira;
b)- objetos provenientes do reino animal;
e)- objetos provenientes do reino vegetal, mineral, artesanal, etc.

Qualquer que seja a classificao adotada, ela ser sempre, no caso, uma tentativa
em funo de um estudo e no ter nenhuma relao com o adivinho, pois este jamais
classifica desta maneira os objetos que utiliza no cesto.
Paara uma maior facilidade de tratamento, e devido a exigncias estritamente
metodolgicas, escolheremos aqui o seguinte agrupamento:

a)- estatuetas antropomorfas;


b)- objetos manufaturados (no antropomorfos);
c)- smbolos de origem animal;
d)- smbolos de origem vegetal;
e)- smbolos de origem diversa.

Apesar das vantagens prticas de uma tal classificao, preciso levar em conta
tambm certos inconvenientes. Antes de tudo, pondo em relevo as estatuetas
antropomorfas em relao a todos os outros objetos manufaturados, ns retomamos de
121

um certo modo uma prtica j denunciada que consiste em separar os outros objetos das
estatuetas, como se estas exercessem um papel mais especial no ngombo; apesar desse
inconveniente, o grupo das estatuetas suficientemente numeroso para que se justifique
um grupo isolado, mesmo se do ponto de vista do adivinho estes objetos no sejam mais
importantes que os outros. Agrupando como um conjunto os objetos manufaturados (no
antropomorfos) uma segunda dificuldade no evitada, a saber, que alm dos objetos
manufaturados e dos que com toda evidncia tm lugar no ngombo tais como se observa
na natureza (portanto manifestadamente no antropomorfos), h outros cujo tratamento
foi to sutil e imperceptvel que se pode verdadeiramente perguntar se pertencem
primeira ou segunda categoria. Assim, por exemplo, poderia-se muito bem admitir a
priori que um pedao de pau, aqui considerado como um elemento manufaturado, fosse
alhures perfeitamente aceito como um smbolo vegetal (portanto natural), no
manufaturado. Essa ambigidade das fronteiras entre o que manufaturado e o que
no-manufaturado (natural), mesmo se ela existe, no deve afetar de modo significativo
o estudo individual de cada um dos objetos do cesto divinatrio.
A verificao da existncia de alguns objetos de origem mineral ou ento de
natureza diversa, mas de provenincia europia (e portanto o contexto cultural pois
completamente particular) justifica a criao de um grupo parte, embora bastante
artificial.

d)-As estatuetas antropomorfas

H tempos as estatuetas antropomorfas do cesto tm chamado a ateno dos


etngrafos e dos pesquisadores. Nos trabalhos de campo, muitos etngrafos preocupados
sobretudo pelos objetos de arte passaram ao lado dos objetos de natureza animal e
vegetal e se contentaram em recolher algumas estatuetas. A maior parte das colees dos
museus denunciam essa conduta arbitrria; no que concerne s informaes, uma certa
prioridade foi dada tambm s estatuetas, deixando com freqncia os outros smbolos
divinatrios no esquecimento. Isto posto, preciso crer que sejam numerosos os estudos
concernentes s estatuetas; so raros e muito incompletos, mas assim mesmo mais
abundantes que os estudos sobre o contedo complexo e no manufaturado do cesto. Para
o estudo das estatuetas, apresentamos as informaes obtidas por ns mesmos e tambm
as recolhidas por outros autores em relao mesma estatueta. s vezes se verifica uma
certa confuso na identificao dos objetos, e por isso resolvemos comear por verificar
se as informaes propostas por outros autores concerniam s mesmas estatuetas que as
nossas; com o mesmo fim, o estudo de cada estatueta comea com o enunciado dos
diferentes nomes que lhe so atribudos.
Se ns enumeramos uma vintena de estatuetas antropomorfas, preciso saber que
este nmero no existe em alguns casos. O sistema divinatrio do cesto continua em
aberto. As estatuetas estudadas aqui so propostas como as que se apresentam mais
freqentemente; algumas no faltam nunca, ao passo que outras so mais raras.
Teoricamente pode-se admitir outras miniaturas antropomorfas, mas na verdade estas so
mais raras de acordo com os mecanismos de inovao que comandam a tcnica do cesto
divinatrio.
122

2.1.1-Tuphele twa ngombo, o trio familiar (fotos 102-105)

Baumann: Tupele, Tupele a yifunda, Tsihele


Tucker: Ombando
Santos: Ana, Mwana
Hauenstein: Jinga, Muhela, Kachifuko cha Jinga
Bastin: Ankishi, Akulumpi
Turner: Pemba, Muhela, Tshifuku

Apesar da variedade e uma certa confuso no que concerne aos nomes deste
kaphele plural, trata-se de um conjunto bem definido: trs estatuetas que chamaremos de
trio familiar - pai, me, filho - dentro de uma proteo de couro cobertos por um disco
tambm de couro (fig. 4); presos a esse disco encontra-se normalmente vrios caurins ou
botes brancos de origem europia.
Baumann designa esse conjunto por tupele apenas, que considera como complexo
e importante; as mesmas estatuetas, feitas de marfim (o que bastante raro), seriam os
tupele a yifwaha.
O disco que serve para cobrir as estatuetas (com cinco caurins, na ilustrao de
Baumann) designado por tsihele. Quando o autor comparou o cesto divinatrio dos
Cokwe com o dos Lwimbi, observou que estes ltimos designavam o trio familiar por
yala (homem), pwewo (mulher) e mwana (criana), mas se verificarmos as ilustraes
feitas por ele, constata-se que estas estatuetas divergem claramente do grupo
caracterstico dos Cokwe.
Se, de acordo com Baumann, estas estatuetas so os elementos fundamentais dos
smbolos do cesto, Delachaux pelo contrrio nem as mencionam. A ausncia desse grupo
em muitas colees contrasta com a importncia desse grupo de estatuetas. A explicao
deve ser procurada provavelmente no fato de que os adivinhos, considerando a
importncia destas estatuetas, as escondiam quando as autoridades coloniais confiscavam
seus cestos. O prprio Delachaux admite esta hiptese.
Hauenstein, que confunde a designao deste grupo com a do grupo que
estudaremos em seguida (jinga), afirma que este conjunto nunca falta no cesto; esta
observao importante, pois est de acordo com nossas observaes de campo, apesar
Hauenstein ter trabalhdo em uma regio bem distante da nossa.
A importncia deste grupo de estatuetas ainda sublinhada por M. L. Bastin, que
tambm o considera como sendo a pea principal; esta pea seria uma representao
simblica do grupo familiar do cesto; cijingo (miniatura de palha entrelaada), kota
(cesto-miniatura) e jinga (rplica da hamba da fecundidade), seriam os outros smbolos
relativos ao grupo familiar.
A pea principal,o tupele ywa um ngombo... se compe de trs estatuetas (um
homem, uma mulher, uma criana) postas uma ao lado da outras em uma proteo de
couro fechada por uma pequena capa redonda ornada de prolas e de quatro caurins
pashi. Curiosamente, Mesquitela Lima prope para este conjunto o nome de pemba, o
que seria uma vantagem, visto que, na verdade, tuphele (kaphele) uma designao vaga
123

demais, e que diz respeito a todos os smbolos do cesto; mas pemba, enquanto designao
para este grupo de estatuetas, no foi observado por outros pesquisadores; assim, trata-se
talvez de uma designao de carter local. Alm do que, pemba designa tambm uma
argila branca, elemento fundamental nos rituais dos Cokwe.
Segundo Turner, que designa este grupo como ankishi (as estatuetas) ou akulumpi
(os antigos/antepassados), e que o considera como the most important of the tuponya1,
eles representam um homem, uma mulher e uma criana, e so os antepassados de vrias
maneiras. Em primeiro lugar, so os tuponya mais importantes; so, de alguma forma, o
ponto de referncia central de todo o conjunto. Em segundo lugar, eles representam um
chefe administrativo e seus parentes. A estatueta masculina comparada a Mwantiyanwa,
ttulo do grande rei congols Lunda cujo reino seria, segundo a tradio, o bero dos
Ndembu e de muitas outras tribos africanas, que emigraram por alguns duzentos e
cinqenta ou trezentos anos. De um outro lado,a utilizao destas estatuetas para
identificar, dentre as diferentes sees do cl, quem o responsvel por um crime de
feitiari, explicao dada s vezes pelos adivinhos e que encontra eco em Turner, permite
supor uma interpretao diferente: essas trs estatuetas representariam de preferncia a
unidade clnica fundamental, a saber, a m,e, seu filho, e o irmo da me (tio materno).
As tenses caractersticas das sociedades matriarcais (tais como a dos Cokwe e dos
Ndembu) se enquadram em todo um contexto social e econmico que justificam
largamente esta interpretao.
E. Santos designa essas estatuetas dizendo: os dois ana (crianas) so estatuetas
de madeira. H certamente uma confuiso quando se considera as duas estatuetas como
crianas; primeiramente, o autor observou um grupo incompleto, e porque uma era
mwana, ele aplicou o mesmo nome outra. Ele se deu conta tambm que este kaphele era
o mais importante, e s vezes era feito de marfim, o que confirma as observaes de
Baumann, e que por ns foi notado em um nico caso.. A significao deste grupo seria
muito simples e positivo:

o doente no foi enfeitiado; deve pois buscar o mbuki para se curar.

Quando o adivinho agita seu cesto, presta uma ateno particular no


comportamento deste grupo, que esconde cuidadosamente no fundo cesto antes de agit-
lo. Aps uma agitao, v-se onde ele ficou escondido. Se continua oculto, porque no
se tem necessidade dele, os ancestrais no tm nada a dizer, eles podem permanecer em
repouso no mundo dos mortos2. Mas se o trio familiar vem superfcie do cesto? O
conjunto se apresenta unido, as trs estatuetas na cama, recobertas pelo disco? um
bom pressgio, uma informao bastante favorvel em relao questo colocada ao
cesto. Se, pelo contrrio, o disco tiver se desprendido e as estatuetas se dispersaram, a

1 N. do Tradutor: o mais importante da tuponya.


2 Hauenstein, 1961, p. 135. De acordo com Mesquitela Lima, quando o adivinho coloca uma questo ao
cesto, ele mergulha a pemba nas outras estatuetas. Depois, agita o cesto como um joeirador, mas de tal
maneira que a pemba venha sempre superfcie. Se ela no vem, ele refaz o movimento (1971, p. 120,
nota 1). De acordo com nossas observaes, esse recurso s trs estatuetas freqente mas nem sempre
obrigatria, a menos que o adivinho queira explicitamente observar o comportamento desse kaphele.
124

situao bem grave para o cliente. O adivinho Mwafima havia explicado a mesma coisa
a M. L. Bastin:

A pea principal tupele twa um ngombo colocada no fundo do cesto sob os


outros objetos simblicos; aps um bom agito que o adivinho lhe dar segurando-o pelas
bordas, ela anunciar uma cura se permanecer completa e fechada, uma morte se o objeto
estiver aberto com as trs estatuetas separadas.

Sem levar em considerao a posio relativa das estatuetas, mas unicamente o


lado em que elas se apresentam, e, neste caso, em funo da bipolaridade sexual do cesto,
E. Santos observa:

Se os tuphele se apresentam no risu ria ngmbo-knji (olho masculino) o


cliente viver; se se apresentam no risu ria ngmbo-tchib (olho feminino), morrer.

A existncia do muhela (cama) para dispor as estatuetas do trio familiar


considerada por Hauenstein como um sinal de ateno para com os ancestrais; o leito
representa a morada dos mortos e sua confeco refletiria o status social do adivinho:

O leito geralmente feito de um pedao de pele malevel, sendo mais


freqentemente de cabra. Mas se o ancestral do adivinho tivesse sido de estirpe real, pode
ser feito tambm de pele de leopardo ou de leo. Mas isto bastante raro.

A rodela ou disco de cobertura (tsihele, segundo Baumann; kashifuko, para


Hauenstein), apresenta quase sempre alguns caurins ou botes brancos, freqentemente
cosidos em cruz, mas os adivinhos os consideram como um ornamento sem significao
particular. Delachaux, que no se deparou com o trio familiar, observaou entretanto o
cifuku isolado, que ele considera como uma representao do sol (tangwa), e como a pea
principal do cesto, que teria um valor muito positivo, um bom pressgio, um smbolo de
vida e de felicidade. Os caurins (ou coto) seriam, na origem, em nmero de trs, de
acordo com Hauenstein, por se relacionarem s trs estatuetas. Essa relao entre o
nmero de caurins e de personagens completamente ignorado pelos adivinhos atuais. Se
essa ralao existiu, foi esquecida h muito tempo. O fato de que entre os Hanya os
adivinhos carreguem um pingente em forma de rodela com trs caurins, como sinal de sua
profisso, seria talvez um argumento a favor de Hauenstein; mas no se conhece a origem
desse costume. Outros argumentos aventados por Hauenstein so pouco convincentes,
inclusive na prpria opinio do autor.
No cesto divinatrio dos Ovimbundu estudado por L. Tucker, este elemento se
apresenta igualmente isolado do conjunto; ele explicaria certas doenas enviadas pelos
ancestrais: ongangalume, se o doente um homem; okawengo, se uma mulher. As
doenas seriam a prova da clera dos ancestrais em vista de apressar a iniciao de um
novo adivinho1.

1 Okawengo um ritual complexo destinado s mulheres possudas. Aps o ritual, as prprias mulheres
tornam-se especialistas da mesma doena.
125

Alguns autores quiseram ver nos caurins cosidos no cifuko um smbolo da


fecundidade; sabe-se com efeito que a forma do caurim evoca os rgos sexuais
femininos. Mas como os caurins podem ser substitudos pelos botes, deve-se concluir
que o elemento simblico pesquisado neste caso se limita unicamente cor branca.
assim que os adivinhos explicam a presena dos caurins, e que os Cokwe consideram a
cor branca como smbolo de vida e de felicidade. Tucker apresenta uma explicao em
relao cor do cifuko (ombando, para os Ovimbundu):

If, in shaking the basket during the process of divination, the white side of the
ombando comes uppermost, it means that the spirit does not agree to the statement just
made by the ochimbanda; if the dark side comes up, it means that the spirit agrees1.

O trio familiar, pai, me e filho, representado antigamente sob a forma de


estatuetas de osso ou marfim, e hoje quase exclusivamente de madeira,
indiscutvelmente o conjunto mais importante do cesto. um smbolo-miniatura da
famlia tal como os Cokwe a concebem2; este smbolo exprime ao mesmo tempo a
insero do cliente no tempo - o grupo dos ancestrais - que subsiste enquanto parte
importante da comunidade, e exigem do cliente uma integrao completa e permanente.

2.1.2-Jinga, hamba da fecundidade


(fotos 116-119)

Baumann: Zinga
Bastin: Jinga
Lima: Jinga

Segundo Baumann, jinga um grupo poliforme: H vrias formas de zinga. A


mais freqente uma estatueta representando o esprito da fecundidade e da caa tsikusa,
sustentada por duas estatuetas humanas que representam gmeos; s vezes apenas os
gmeos so representados, sem tsikusa, ou ento a estatueta tsikusa e o cachorro muta.
Mas Baumann identifica ainda esta estatueta como uma representao dos
ancestrais:
A pequena estatueta representa freqentemente um casal, pwo ni lunga, isto ,
homem e mulher, e designa os ancestrais dos dois sexos.
A confuso de Baumann ainda maior quando ele coloca jinga em relao seja
com o primeiro grupo j estudado (tuphele twa um ngombo) ou com a estatueta citanga:
Os Lunda utilizam este amuleto como kafula pas, correspondente aos tupele do
cesto de divinao dos Tsokwe e tambm sob a forma zinga za pila, dois gmeos unidos e
opostos.

1 N. do Tradutor: Se, ao agitar o cesto durante o processo de adivinhao. O lado branco do ombando
ficar por cima, significa que o esprito no concorda com a explicao que o ochimbanda acabou de dar; se
for o lado escuro, quer dizer que o esprito concorda.
2 Para os Cokwe, o casamento s est plenamente realizado quando do nascimento do primeiro filho.
126

A opinio de Baumann pode explicar por que Hauenstein tambm confundiu o


trio familiar j descrito com jinga. Essa identificao seria exata para os Lunda. Mas o
poliformismo de jinga no permite jamais a confuso com o primeiro grupo de estatuetas,
sobretudo porque jinga apresenta sempre uma unicidade qualquer que seja sua
representao:
Jinga denomina uma outra mahamba de fecundidade. Representada sob o
aspecto de trs personagens esculpidas sobnre uma pequena prancheta de madeira, um
homem, uma mulher e uma criana, ou a mscara Tshikunza no centro do casla jinga,
homem e mulher.1
Assim, pode-se concluir que jinga remete primeiramente ao casal homem e
mulher, provavelmente enquanto ancestrais de uma linhagem qual a estatueta cikunza
seria associada mais tarde. M. L. Bastin utiliza ainda o nome jinga para a miniatura de
cisola.
De acordo com Mesquitela Lima, jinga seria antes uma estatueta feminina
semelhante mscara pwo (mulher). Mesmo admitindo uma certa confuso entre jinga e
as estatuetas do trio familiar, ele sublinha o grande poliformismo desta pea e d
exemplos de estatuetas acopladas, designadas geralmente como estatuetas pares.
O nome desta pea remete ainda significao de um outro kaphele, salujinga,
um esprito de fecundidade sob a forma de serpente, cuja significao estaria relacionada
com kajinga (enrolar, rodear). por esta veia semntica que os adivinhos explicam a
significao de jinga, que se apresenta bastante freqentemente no cesto sob a forma de
um pea representando a mscara cikunza, sustentada por um homem e uma mulher.
Esta explicao supe necessariamente a existncia de um culto da fecundidade
da serpente procriadora, cujos traos so bem evidentes no somente para os Cokwe
como tambm para outros grupos tnicos de Angola.

2.2.3-Cikunza, o esprito do danarino mascarado


(fotos 120-142)

Baumann: Tsikusa, Tsikunsa


Hauenstein: Tchikuza
Bastin: Cikunza, Samukishi
Santos: Mukichi u tchikunza
Lima: Tshikunza, Samukishi

A mscara cikunza, no cesto, simbolizaria o chamado de todos os antigos


danarinos mascarados (fig. 6), para os quais seria preciso organizar uma dana em que
todas as mscaras da aldeia estariam representadas. neste sentido que os adivinhos
explicam o termo samukishi (pai dos danarinos), designao freqente tambm para o
kaphele. Esta forma de reparao rendida aos ancestrais danarinos seria um elemento
importante para garantir o sucesso dos caadores e a fecundidade das mulheres. Assim,
quando a rplica salta borda do cesto, significa que os amuletos que representam

1 Bastin, 1961, p. 157.


127

cikunza devem ser levados cintura pela mulher, para quem trar fecundidade, ou ser
presos ao fuzil do caador para que ele encontre a caa. Assim, a explicao descrita por
Baumann se aplica ao caso de um caador:
Quem interroga (o adivinha) poder, se for nianga (caador) mandar fazer uma
estatueta tsikusa, e ento se tornar um bom caador. A imagem ser plantada diante da
porta de sua cas.
Se L. Tucker no viu esta importncia no cesto dos Ovimbundu, Hauenstein, em
compensao, observou-a no mesmo cesto, o que no raro, mesmo dentre outras
estatuetas menos importantes. Segundo o autor, a interpretao de cikunza dependeria
essencialmente das estatuetas acompanhantes:
Por exemplo, se Tchikunza aparecer acompanhada vrias vezes seguidas de um
estatueta representando uma mulher..., significa que Muana Pwo (mscara de mulher)
adoeceu e deseja que cuidem dela. Mas, seguindo as circunstncias e as questes que
coloca o adivinho durante a cerimnia, Tchikunza, acompanhada da mesma estatueta,
pode significar muito simplesmente que o ancestral que adoeceu da linhagem uterina.
Mukichi u tchikunza (o danarino tchikunza) foi a designao que E. Santos
encontrou para esta estatueta, que ele descreve como uma estatueta masculina com
mscara em forma de torre curvada na parte de trs e cuja explicao a seguinte: O
doente deve esculpir o mukishi (danarino) em madeira e guard-lo consigo.
Delachaux insistiu sobre o carter ambguo desta estatueta, que ele considera
como um esprito favorvel para os Cokwe, e, ao contrrio, como malfico para os
Ngangela. A causa desta inverso na significao do kaphele no foi elucidado. Para os
Cokwe, cikunza sobretudo uma estatueta positiva, mesmo se suas exigncias so s
vezes difceis de se satisfazer.
De acordo com Mesquitela Lima, cikunza seria antes uma estatueta ambgua, que
remontaria aos Lunda; entretanto, a maior parte de nossos informadores insistem
sobretudo no aspecto positivo e favorvel de cikunza, que assegura a fecundidade das
mulheres e a abundncia da caa.

2.1.4-Kalamba kuku wa lunga, o ancestral masculino


(fotos 143-160)

Baumann: Kalamba
Tucker: Ochinvenji chepata
Delachaux: Tyibensi (tchiveji), njombi
Hauenstein: Kalamba
Bastin: Kalamba kuku wa lunga
Santos: Kuku
Turner: Chamutanga
Lima: Kuku

Esta pea comporta exemplares de grande qualidade e pode-se encontr-la nas


formas das mais estilizadas s mais naturalistas, com todas as formas interemedirias.
(fig. 7). Baumann denomina esta estatueta como Kalamba, o velho. Ao contrrio,
128

Delachaux, apoiando-se sobre as informaes do pastor E. Berger, escreve: Pensamento,


fora, juventude - eis o que representa o jovem homem sentado e o que ele manifesta no
cesto! De acordo com o mesmo autor, esta estatueta revelaria ainda a vida oculta de
personagens importantes. A observao dos exemplares desta estatueta em vrios cestos
provocou a curiosidade de Delachaux, que sugeriu um estudo estilstico das estatuetas e
de sua distribuio geogrfica.
Esta estatueta seria, segundo Hauenstein, a representao mais tpica do ancestral
que deve ser venerado e cujo esprito se manifesta por intermdio de uma doena. Se
admitirmos, como Hauenstein, que tyibenzi uma corrupo da palavra tchiveji, o que
nos parece bem provvel, verifica-se que a designao deste smbolo ainda mantm-se
idntico entre os Ovimbundu, o que no o caso para todos os objetos do cesto, mas, no
obstante, para uma parte importante.
Kuku ou kalamba kuku a designao mais freqente para esta estatueta que
Santos descreve como: Uma estatueta representando um homem sentado no cho, as
mos sobre o pescoo e os cotovelos apoiados no joelho. Esta posio muito
caracterstoca dos homens idosos. A doena seria causada por um ancestral (kuku), ou
ento sucederia a uma herana dos ancestrais que no foi dividida com equanimidade; o
doente dever, para sarar, fazer uma diviso honesta.
Apesar da raridade (relativa) das estatuetas antropomorfas nos cestos dos
Ovimbundu, kalamba permanece exatamente com as mesmas caractersticas. Tucker a
observou e descreve-a sob a denominao de ochivenji chepata:
a wooden figure, often in position of burial, with knees and elbows touching, and
representing another female ancestral spirit. When this spirit cause illness, it is necessary
to go into a trance to determinate the cure. There must be quantity of beer, and the beating
of drums1
No que concerne posio do defunto, a observao de Tucker vlida
unicamente para os chefes, os adivinhos e os grandes caadores, como se pode verificar
por numerosas testemunhas. Tucker sublinhou sobretudo a relao da estatueta com os
ancestrais, mas nada explica que a representao de um velho, para os Cokwe, torne-se
sinal de um esprito ancestral feminino , para os Ovimbundu.
Mesquitela Lima apresenta um srie importante de estatuetas designadas como
kuku; na realidade, toda a srie representa apenas kalamba kuku wa lunga, isto , o
ancestral masculino; de boa qualidade.
Para os informadores de Turner (um deles era um adivinho angolano), o kaphele
se chama chamutanga, e sua significao fortemente negativa. Chamutanga o
prevaricador; denuncia o comportamento da pessoa inconstante. Enigmtica, indefinida,
misteriosa. Muchona (outro informador de Turner) fez a comparao de chamutanga
com a cera das abelhas que funde ao contato com o fogo e endurece ao contato com o
frio; impossvel prever o comportamento de tal pessoa:
Such a person may give many presents to others and at other times he may give
nothing to others. He is the same man who laughts very much with people and laught

1 N. do Tradutor: uma estatueta de madeira, freqentemente em posio de enterro, com cotovelos


apoiados nos joelhos, e representando outro esprito ancestral feminino. Quando este esprito causa alguma
doena, necessrio entrar em transe para determinar a cura. Deve haver muita cerveja e a batida dos
tambores.
129

very little with people. He is often very angry and often not at all angry. You do not know
how to take him1.
Estas curiosas observaes de Turner se afastam das explicaes fornecidas pelos
adivinhos cokwe. Dir-se-ia que se trata de uma outra estatueta, mas a ilustrao, bem
como a descrio de Turner se reportam exatamente mesma figura kalamba kuku dos
Cokwe:
Ela representa um homem curvado sobre si prprio, o queixo nas mos e os
cotovelos nos joelhos.
Chamutanga seria o indeciso que sempre retarda a consulta e ao qual a famlia do
defunto pedir satisfaes aps a consulta do adivinho, que declara:
Este homem est morto por causa da indeciso de vocs. Mesmo se no h
feiticeiro dentre vocs, vocs tm uma parcela de responsabilidade.
Os Ndembu parecem ter assimilado esta estaueta a uma outra prpria dos Cokwe
- citanga - que tem aproximadamente a mesma significao, e que o adivinho utilizar
ainda para por fim sesso quando constatar que seus clientes tm dvidas acerca de sua
adivinhao. Turner explica o que se passa com os Ndembu:
...chamutanga aparece s vezes ao cume do cesto. O adivinho lhe pergunta
ento: por qu voc est a? Quer dizer que eu me enganei em minha adivinhao? Se
chamutanga volta duas ou trs vezes seguidas, o adivinho interrompe a adivinhao... e
reclama para si duas peas de tecido aos que vieram consult-lo. Tenta salvaguardar sua
reputao jogando para seus clientes a responsabilidade de seu fracasso, e esperando que,
dentre eles, um feiticeiro tente atrapalhar seu veredito. uma das sanes que se aplicam
ao adivinho quando seus interrogatrios e suas declaraes no obtm unanimidade.
Kalamba kuku wa lunga significa, para os Cokwe, o ancestral masculino que
pertence sempre comunidade mesmo se esquecido pelos vivos algumas vezes. uma
das estatuetas do culto dos ancestrais na vida dos Cokwe. Em princpio, fabricada a
partir da madeira da rvore mutete, porque esta planta favorvel ao apaziguamento dos
espritos e evocao de todos os que esto mortos.

2.1.5-Kalamba kuku wa pwo, o ancestral feminino


(fotos 161-174)

Baumann: Seisimu
Delachaux: Ndumba ya munu, likisi, mpwebo, mukulo
Hauenstein: Kalamba
Bastin: Kalamba kuku wa pw
Lima: Seischimu
Santos: Sechimu

As primeiras observaes conhecidas concernentes a esta estatueta a tomam pela


representao de um personagem temvel (fig. 8); sua apario borda do cesto seria um

1 N. do Tradutor: Uma pessoa pode dar muitos presentes a outras e, outras vezes, no dar nada aos outros.
o mesmo homem que ri muito com as pessoas e ri muito pouco com as pessoas. Ele com frequncia
muito bravo e com freqncia nem um pouco bravo. Voc no sabe como apanh-lo.
130

mau pressgio, a morte, em regra geral, mesmo dos adivinhos s vezes a considerarem
como um sinal de reflexo ou do saber tradicional.
Para Delachaux, em compensao, h uma relao entre esta estatueta
denominada mpwebo ou ndumba ya munu ou likisi (mscara) e o contato do doente com
uma mscara, pelo menos em sonhos:
O cliente, quer ele se lembre ou no, sonhou com uma mscara que lhe cortava a
garganta. Sua desgraa vem da; a morte o espreita.
Mas a mscara, ameaadora e perigosa, pode tambm tornar-se favorvel, e neste
caso se pode utiliz-la como amuleto; esta , alis, a significao mais habitual de likisi:
... uma mscara protetora talhada num pedao de cabaa que os Tsokwe utilizam
para afastar o esprito da doena e que os Luimbi e os Lutsaze penduram nas paredes.
H provavelmente uma confuso em Delachaux a propsito da mscara (que
existe somente em sonho); ele ps bem evidncia anteriormente o papel desta estatueta
sob a designao de mpwebo e ndumba ya munu. Mpwebo seria sobretudo a
representao, no cesto, do ancestarl feminino correspondente a kalamba kuku wa lunga
(o ancestral masculino), mas que teria neste caso uma significao posicional particular:
Se acontecer desta pea vir borda do cesto, ela indicar, se estiver de p, que h
possibilidade de vida. Se os ps estiveram para cima, a morte inevitvel. Se ela ficar
oculta, indica que a doena tem um sentido geral.
A mesma estatueta poderia representar ainda um fantasma (ndumba ya munu), e
neste caso ela significaria simplesmente um malefcio imputvel a um fantasma, qualquer
que seja sua posio.
No cesto divinatrio dos Ngangela, esta estatueta seria denominada mukula, nome
do esprito colrico de um defunto que perturba pela doena ou mesmo pela morte.
preciso apazigu-lo com sacrifcios e bebidas.
Uma estatueta morfologicamente bastante distante, mas prxima pela significao
e sobretudo por sua relao com a doena, descrita por Tucker sob o nome de owanga,
uma estatueta de madeira cuja apario borda do cesto significa que preciso fazer o
ritual oku ta ohasa, particularmente recomendado como forma de protesto cvontra a ao
de um feiticeiro:

When this figurine comes up to the edge of the basket during divination, it mean
that the person divined for is being made ill at the behest of a witch. After this diagnosis
the ochimbanda goes to the patients house at night, catches a white fowl and a he-goat,
and carries them around the room making mystic signs. He then goes out to na animals
burrow, kills the fowl and the goat, and puts blood and fire in the burrow. Next he
discharges a gun, puts the heads of the fowl and the goat into the burrow, and stops it up
with earth. While firing the gun he says, speaking on behalf of the patient: if I have done
any wrong, stolen, cursed another, killed anybody, I shall die. If I have done nothing
wrong I shall get well1.

1 N. do Tradutor: Quando esta estatueta vem borda do cesto durante a adivinhao, significa que a
pessoa em questo ficou doente por ao de um feiticeiro. Aps este diagnstico, o ochimbanda vai casa
do cliente noite, pega uma galinha branca e um bode, e leva-os por todo o quarto fazendo sinais msticos.
Ento, vai a uma toca de algum animal, mata a galinha e o bode, e coloca sangue e fogo na toca. Em
seguida, descarrega uma arma, pe as cabeas da galinha e do bode na toca, e apaga o fogo com areia.
131

Parece, portanto, que os Ovimbundu constituram em torno desta estatueta do


ancestral feminino um ritual particular, que os Cokwe tambm conhecem, mas no tem
relao alguma com esta estatueta.
Os dois exemplares apresentados por Mesquitela Lima e denominados como
seishimu so considerados como independente da estatueta do ancestal, dado que este
ltimo (kuku, na designao de Lima) podia ser tanto masculino quanto feminino; mas a
relao com os ancestrais permanece sempre evidente:
... o consultante no tem sorte na vida porque abandona seus ancestrais.
Sem lhe atribuir uma qualificao particular, Hauenstein considera esta estatueta
como kalamba feminina e d-lhe a seguinte significao:
... a mo no queixo ou na boca (atitude tipicamente feminina entre os africanos)
mostra o espanto de um defunto do qual se esqueceu completamente e que se viu
obrigado a chamar a ateno dos vivos atravs de uma doena ou outra dificuldade. Esta
posio tipifica a atitude feminina, assim como kalamba (kuku wa lunga) o faz para os
homens.
Para M. L. Bastin esta estatueta representa uma mulher velha agachada e com
jeito de se lamentar.
Na verdade, de todas as estatuetas por ns observadas, nenhuma poderia ser
considerada como sentada; todas se apresentam manifestadamente de p; em
compensao, kalamba kuku (ancestral masculino) se apresenta sempre sentado; o trecho
em que o autor consideera as duas estatuetas ao mesmo tempo pode explicar a confuso:
No cesto do adivinho, ngombo ya cisuka,duas estatuetas humanas, kalamba kuku
wa lunga e kalamba kuku wa pwo, representam um velho e uma velha, respectivamente,
agachados e se lamentando. Estes dois ideogramas significam que a herana dos
ancestrais no foi dividida com equanimidade, e que o doente para se curar dever fazer
uma diviso honesta.
Sakungu interpelou assim a estatueta, quando se apresentou borda de seu cesto:
Pois bem, tu s a mulher (ancestral)! Por que vens borda do ngombo? Quem a
mulher que quer enfeitiar? uma mulher que est contra ele (o doente)? Mas tu, nossa
av, vais explicar tudo.
O tratamento do doente supe, primeiramente, a renovao do vnculo de paz e de
amizade com o ancestral, quer ele seja do sexo masculino ou feminino. Mwacimbau
explica como proceder:
A pessoa (que cuida do doente) faz um montculo de terra; ao anoitecer, coloca-
se um prato (antigamente de madeira, hoje de importao europia) com fuba; em
seguida, enderea-se ao esprito do ancestral esta orao: voc est morto, mas eu, eu no
sei como isto aconteceu. Eis aqui o fuba para voc; esta noite eu vou dormir bem, se era o
seu esprito que me incomodava...
Um complemento importante desta orao consiste em esculpir uma pequena
estatueta de mutete para usar como amuleto.
O medo, a morte, a reflexo, a ameaa de uma mscara, tudo isto, pois, que
significam estas estatuetas de ancestrais femininos s vezes esquecidas e encolerizadas,

Enquanto dispara a arma, ele diz, falando em nome do cliente: se eu fiz algo errado, roubei, atormentei
outrem, matei algum, eu deverei morrer. Se no fiz nada errado, deverei ficar bom.
132

mas sempres empenhadas na comunidade dos vivos. Os espritos dos mortos tm


exigncias que ocasionam uma justia maior entre os vivos.

2.1.6-Kapindji, o escravo
(fotos 175-179)

Na maior parte dos cestos, se encontra uma estatueta antropomorfa designada pela
palavra kapindji (o escravo); o que caracteriza esta estatueta que ela representa um
personagem rodeada por uma corda ou uma corrente, s vezes por um fio de ferro em
torno do pescoo (fig. 9). Que diz o adivinho quando esta estatueta se apresenta borda
depois de agit-lo? Eis algumas respostas possveis:
Quem interroga est doente; um esprito de escravo o possui1. Se a doena
provm de um esprito de escravo, significa que o antigo escravo se tornou uma hamba,
isto , um esprito de ancestral que deve ser honrado por seus descendentes. Note-se que
esta exigncia supe ainda uma integrao dos escravos na sociedade tradicional. Apesar
de que os escravos eram fonte de riqueza para os Cokwe, se est aqui muito distante da
noo ocidental de escravatura2.
Quem interroga ser muito rico, pois ter muitos escravos3. O escravo como
fator de riqueza significa dfuas coisas na sociedade cokwe. Notemos em primeiro lugar
que, no sistema de produo da mesma linhagem, o nico elemento permanente ao nvel
da famlia. Para trabalhar no campo, um homem se apia primeiro em sua mulher (cada
um trabalha sua prpria parcela, confiada pelo marido); para sua parcela, ele tem seus
filhos. Mas estes no ficaro muito tempo em casa, pois os tios maternos os chamaro
sem tardar. Quanto s filhas, estas so pedidas em casamento desde a tenra idade. Sobram
os escravos4. O chefe primognito pode pois adicionar seus escravos, principalmente os
que prendeu na aldeia, em seu rol de mulheres. este patrimnio que ele transmitir a seu
sobrinho, o que contribui para atrair este ltimo o mais cedo possvel para a aldeia de seu
tio. A continuidade da aldeia, bem como o culto dos ancestrais que se celebra, dependem
em grande parte ao maior ou menor nmero de escravos que um chefe possui. Em
segundo lugar, o escravo um elemento de compensao muito importante para a
estabilidade da aldeia em que freqentes cises e separaes de toda natureza se juntam a
uma forte mortalidade infantil. O conjunto destes fatores ameanam sem parar a
sobrevivncia do grupo. Na histria dos Cokwe, o fator demogrfico parece ter exercido
um papel muito mais importante que o fator riqueza; nas situaes de vazio demogrfico,
os Cokwe procuravam compensar o enfraquecimento de seus efetivos por uma incurso
nos territrios das etnias vizinhas (principalmente os Pende, Luba e Luwa). Todos os
escravos capturados eram apresentados ao chefe da aldeia, que fazia a partilha entre os
chefes dos diferentes grupos (o que podia se tornar causa de disputas e de

1 Baumann, 1935, p. 169.


2 Na sociedade tradicional cokwe um escravo podia ser trocado por: cinco peas de tecido, duas caixas de
p, um fuzil, dez cabritos ou um boi.
3 Baumann, 1935, p. 169.
4 Sobretudo os escravos presos na aldeia; principalmente o escravo da aldeia (mwana wa cibunda:
criana da aldeia) que exerce um papel importante na explorao das terras.
133

descontentamentos): O chefe no repartiu com igualdade os escravos em sua aldeia e o


nganga (feiticeiro), tambm descontente, utilizou os wanga contra ele1.
O bando armado que partia procura dos escravos ficava geralmente sob ordens
do sobrinho do chefe da aldeia; este ltimo freqentemente tomava a iniciativa da
expedio, o que igualmente lhe responsabilizava pela partilha dos escravos. Em
princpio, a diviso feita pelo chefe no era contestada, mas se, em compensao, o chefe
da aldeia ficasse doente ou tivesse azar em seus negcios, facilmente eram tomados por
suspeitos de feitiaria os que no tinham sido favorecidos na partilha.
Digamos ainda que s vezes as querelas entre duas aldeias levasse a uma pequena
guerra, e os vencedores reduzissem os vencidos a escravos. Mesmo as dvidas podiam ser
reguladas pela remessa de um escravo. A situao comeava com freqncia por um
compromisso temporrio; o escravo exercia o papel de garantia, mas tornava-se definitiva
facilmente, seja porque a divda no era saldada em razo da extrema mobilidade dos
Cokwe. Com efeito, o guardio do escravo, ao mudar de aldeia, fazia-se acompanhar de
seu escravo e o antigo proprietrio perdia seu rasto para sempre; ou ainda o possuidor a
ttulo provisrio apressava-se em vend-lo, o que alis constitua um abuso condenado
pela sociedade. Assim o adivinho explicaria a estatueta kapindji:
O consultante vendeu um escravo que no lhe pertencia; deve reembolsar o preo
ao proprietrio frustrado para que tudo fique bem. Os negcios relativos ao escravo
como elemento de riqueza eram sem dvida das situaes que o adivinho podia resolver
sem ter necessidade de submet-los ao tribunal do chefe. Com efeito, o adivinho leva
sempre em conta o direito costumeiro, que conhece perfeitamente, e
desembaraadamemte consegue descobrir as transgresses de seus clientes nesse sentido,
quer sejam inconscientes ou no; para ele, elas representam sempre uma chave para
explicar a infelicidade atual. Por diversos aspectos, o ato divinatrio se situa a meio-
caminho entre o ritual e o julgamento.
preciso contentar o esprito kapindji em clera, fazendo um imagem de terra
para colocar perto das velhas mahamba erigidas no recinto do chefe2.
Esta interpretao mostra perfeitamente o status do escravo na sociedade
tradicioanl; ele est integrado no grupo pelo chefe que lhe facilita o casamento. Um
escravo podia desposar a filha de seu proprietrio; igualmente, fato corrente que um
mulher escrava torna-se uma das esposas de seu proprietrio. Nos dois casos, as crianas
nascidas destas unies no tinham o status de escravo. S as crianas nascidas da unio
de dois escravos conservavam o status. Alm disso, o proprietrio de um escravo no se
dirigia a este em termos que evocassem a sua condio. O escravo fala de seu proprietrio
sempre como meu pai (tata); se foi capturado na infncia, pode at mesmo ignorar sua
condio. Por ocasio do bito de um escravo, sua famlia devia fazer os funerais; ele
ascende classe de ancestral como os outros Cokwe:
... Ele (o esprito do escravo) fica doente at que se dignem a cuidar dele... Da
mesma maneira que para os verdadeiros ancestrais, o paciente deve fazer uma hamba, um
dolo que colocar diante de sua choupana.
Como na verso anterior, a integrao total do escravo na sociedade, com todas
as exigncias que isto implica, que o adivinho lembra a seus consultantes.

1 Santos, 1960, p. 162.


2 Bastin, 1961, p. 65, nota 1.
134

Um homem d sua filha a um escravo que lhe pertence; os anos passam e eis
que as crianas desse escravo ficam doentes. Por qu? Procura-se o adivinho. Kapindji
vem borda do cesto! que eles devem render homenagem ao escravo que foi seu pai;
preciso lhe falar (modo particular de venerao) como a um ancestral: devem tambm
erigir uma imagem; ento, estaro curados (Sakungu).
A integrao era uma regra; ainda hoje uma frao muito importante da populao
cokwe do nordeste de Angola constituda de antigos escravos ou descendentes de
escravos; apesare disto, as pessoas no do nenhuma importncia a esse passando,
embora bastante recente. Todos os chefes, adivinhos e outros, com idade acima de
sessenta anos, tiveram vrios escravos (freqentemente uma vintena). No obstante,
sobre os escravos que se focalizavam as suspeitas de feitiaria ao curso de um perodo
marcado por uma srie de desgraas:
O feiticeiro um kapindji (escravo) que matou seu mestre. Com efeito, este lhe
pedia coisas demais; ele lhe dizia: vais trabalhar em minha roa, vais buscar madeira, vais
comprar upite (produtos europeus que os escravos deviam trazer de muito longe) e ainda
muitas outras coisas. Um dia, ele se irritou e matou seu mestre (Mwafima).
A estatueta kapindji tem, nesta interpretao, uma significao de preferncia rara
que o adivinho Mwafima reconhece como provvel, se bem que no foram nunca
observados casos semelhantes ao curso de sua j longa carreira de adivinho. Pode-se se
perguntar com o efeito se o adivinho, que um dia fez essa leitura de kapindji, contava
com uma revolta real do escravo ou fazia de preferncia o jogo de um grupo que, para
elevar as tenses, tinha encontrado o bode expiatrio.
Resumamos essa diferenas em um esquema:

+ mahamba {possesso
{estatueta
{ancestral

doena Kapindji riqueza {sinal de riqueza


(o escravo) {riqueza mal dividida
- + {riqueza reunida

wanga {causa ou motivao


- {ator

Esquema 5

Vimos que, do conjunto de significaes atribudas estatueta kapindji, destacam-


se dois eixos semnticos: no eixo do real aparece a oposio doena/riqueza e no eixo do
sobrenatural, a oposio integrao/marginalizao; a integrao, ao fazendo do escravo
um membro de plenos direitos, ao menos no mundo dos ancestrais (compensao), a
marginalizao levada ao cabo extremo da marginalidade, a anti-sociedade por
135

excelncia, a feitiaria. Os dois eixos revelam, a partir do concreto de uma estatueta, o


binmio fundamental de todas as tcnicas divinatrias cokwe: bem/mal. (ver Esquema 6)

2.1.7-Mwana, a criana
(Fotos 180-181)

Hauenstein: Mwana
Tucker: kalupolopoko
Delachaux: personagem acorrentado

A estatueta mwana, enquanto kaphele isolado e distinto da criana do trio


familiar, muito rara no cesto. Dentre outras, Santos e Lima confundem-na com o mwana
deste conjunto, mas s vezes ela confundida tammbm com o escravo, porque as duas
estatuetas se apresentam acorrentadas (fig. 10).
De acordo com Baumann, mwana (kaponya ka mwana) a boneca com que
brincam as meninas. A forma primitiva dessa boneca representaria um pequeno ancestral
denominado kazimu, que se dava de presente s meninas para que elas se tornassem fortes
(isto , fecundas).
Um sacrifcio muito freqente antigamente - mutu - tambm designado por
mwana e parece ter a mesma finalidade que a estatueta do cesto: afastar do homem e da
mulher a esterilidade e a impotncia.
Foi principalmente Hauenstein quem se mostrou mais interessado por esta
estatueta, a propsito da qual assegura estar cuidadosamente informado:
Trata-se do caso de uma mulher estril que deseja ter um filho, mas este est
acorrentado, no pode nascer. Se esta estatueta aparece vrias vezes superfcie quando o
adivinho agita seu cesto, um bom pressgio. Os ancestraos vo indicar as razes da
esterilidade. Se mwana aparece em companhia de jinga, um sinal ainda melhor. A
esterilidade simbolizada pelas correntes em torno do pescoo o mal que a estatueta vai
esclarecer em funo das outras estatuetas acompanhantes. A mulher estril dever se
submeter a um tratamento com plantas medicinais e carregar consigo, como amuleto,
uma estatueta envolvida por uma rede (cisola).
Apesar da distino desta estatueta em relao a todas as outras do cesto, L.
Tucker a nota tambm entre os Ovimbundu, em termos bem prximos do escravo
(kapindji). Okalupokopoko (designao utilizada por Tucker) seria uma pea feita de
osso, de mulher, grosseiramente antropomorfa, que representaria um criana duplamente
acorrentada:
This represents the spirit of a dead infant, or foetus, whose death was believed to
have been caused by poison or witchcraft. Such spirits have great power inthe other
world, because they had no sin (ekandu) when they were on earth. Spirits of slave
children also become spirits of this type, because they had so much suffering when alive,
and when they died were given no offering1.

1 N. do Tradutor: Ele (mwana) representa o esprito de uma criana morta, ou feto, cuja morte acredita-se
que tenha sido causada por veneno ou feitiaria. Muitos espritos tm grande poder no outro mundo,
porque no tiveram pecado (ekandu) quando estavam na Terra. Espritos de crianas escravas tambm
136

Tucker passa facilmente do acorrentamento metafrico da criana (feitiaria ou


esterilidade) ao acorrentamento real do escravo, por crer ambos representados pela
mesma estatueta no cesto:
The spirit of a slave is represented in the basket by a carved figure with a chain
around the neck, or with a shackle on the leg. Spirits of babies killed to furnish fertility
charms for the fields are also represented by this figurine1.
Nesta perspectiva, a voz das inocentes vtimas de feitiaria tornam-se
particularmente poderosas no outro mundo: primeiramente, sua morte no foi
acompanhada dos rituais necessrios para concili-los com o outro mundo; a feitiaria
contra uma criana provoca estupor nos ancestrais; alm disso, ela ainda no era capaz de
se defender. assim que elas se tornam okalupokopoko, espritos que exigem
compensaes importantes. Com efeitos, estes espritos no tiveram a possibilidade de se
exprimir, nem esto realizadas, e portanto sua clera ainda mais forte e mais perigosa.
Hambly explica este aspecto negativo do esprito da criana, sublinhando sobretudo sua
necessidade de retornar vida:
A figure with beads on its neck indicates that trouble is due to the ghost of a dead
baby whose spirit wishes to come back2.
Os Cokwe admitem que este retorno do esprito da criana pode ser entendido
como um renascimento, mas tambm como uma realizao das exigncias rituais.
A explicao desta estatueta tem como ponto de partida a continuidade de dois
mundos (o dos vivos e o dos mortos) cuja solidariedade deve ser respeitada. Neste caso, o
esprito da criana deve ser apaziguado, porm , se o esprito for de uma criana escrava,
ele se tornar ainda mais colrico e o equilbrio mais difcil de estabelecer. O raciocnio
do adivinho organiza-se a partir destes dois elementos:
os traos reais de escravido (correntes em torno do pescoo da estatueta);
a condio de idade da vtima.
Os Ovimbundu desenvolveram a idia de um acorrentamento ritual, o que
considerado pelos Cokwe como uma explicao secundria, porque para a maior parte
dos adivinhos a significao desta estatueta sobretudo de ordem gentica.

2.1.8-Citanga, o humano no-diferenciado


(fotos 182-189)

Baumann: tsitanga
Delachaux: sitanga
Bastin: citanga
Santos: tchitanga
Hauenstein: cihangu

tornam-se este tipo de esprito, porque tiveram muito sofrimento quando vivas, e, quando morreram, no
lhes deram oferendas.
1 N. do Tradutor: O esprito de um escravo representado no cesto por uma figura esculpida com uma
corrente ao redor do pescoo, ou com uma argola algemando a perna. Espritos de bebs mortos para prover
encantos de fertilidade terra so tambm representados por esta estatueta.
2 Uma figura com contas em torno do pescoo indica que o problema devido ao fantasma de um beb
morto cujo esprito deseja voltar.
137

Lima: tshitanga

Citanga uma das estatuetas mais curiosas e mais enigmticas; reside, alis, nisso
sua significao prpria: enigma, dvida, coisa estranha, milagre. Ela se apresenta sob
vrias formas, sendo que todas justificam bem sua designao. De acordo com Baumann,
citanga seria uma estatueta de uma cabea e quatro pernas, e sifnifica a dvida do
feiticeiro1 no negcio em questo.
De acordo com Delachaux, sitangu um duplo personagem e significa um
milagre:
Esta estatueta representaria uma coisa extraordinria, miraculosa,
incompreensvel, sobrenatural. No cesto ela revelar portanto uma coisa que tem milagre,
seja num sentido bom ou mau.
Notvel por seu polimorfismo (fig. 11), este kaphele se apresenta como o
resultado de duas estatuetas soldadas cuja forma nova varivel: uma estatueta com
quatro pernas; dois personagens colados pela cabea, e neste caso por vezes fuso total ou
parcial das duas cabeas em uma s; dois personagens colados pelas pernas, etc. Assim,
por exemplo, a citanga descrita por E. Santos como que duas estatuetas grudadas por
suas cabeas e a significao seria a seguinte: se a mulher quer procriar, deve faezr
hamba citanga. uma hamba de fecundidade que asa mulheres devem levar cintura; a
rplica citanga acompanhada de outras, principalmente muta (cachorro) e kajia (a ave),
mas tambm cikula ou cisola, ou as duas ao mesmo tempo2. Para Mesquitela Lima esta
estatueta dupla, bifacetada; ela seria utilizada tambm como um amuleto preso no fuzil:
quando ela (a rplica do cesto) aparece acima dos outros tuphele, quer dizer que os
fracassos na caa so devidos ao esprito tshitanga. preciso fazer a estatueta e prend-la
s armas.
O fato de que a estatueta citanga seja associada com freqncia a outras que
tambm concernem fecundidade levantou, para Delachaux, a questo de saber se
citanga no seria uma variante da estatueta mbate o casal que estudaremos em
seguida. A questo foi colocada explicitamente por E. Berger a um adivinho cokwe, que
respondeu negativamente3.
Muito prximo desta estatueta est a variante pila, muito rara, que apresenta a
configurao de uma dupla colher de madeira (foto 190) e que a maioria dos adivinhos
no conhece mais, mas que se pode encontrar nos cestos antigos.
De acordo com Hauenstein, o enigma seria a m sorte permanente de uma mulher
que no consegue ter filhos: Phila seria o esprito de uma criancinha defunta que
apareceria, de preferncia, em companhia de jinga ou de chisola. Tratar-se-ia de uma
criana que queria nascer mas foi impedida por abortos repetidos ou pela esterilidade. O
problema colocado ao adivinho parece exceder sua capacidade e, neste caso, citanga
torna-se o smbolo da impossibilidade: assim como um beb incapaz de exprimir seus
pensamentos que ficam sempre confusos, igualmente esta estatueta indica uma absoluta
falta de clareza sobre a doena. Trata-se pois de um caso insolvel.

1 Baumann confunde com freqncia feiticeiro e adivinho.


2 Santos, 1960, p. 173.
3 Delachaux, 1946, p. 140.
138

Estudando o motivo decorativo antropomorfo pwo nyi lunga alimbata (homem e


mulher acasalados), M. L. Bastin verificou tambm a existncia desta estatueta descrita
como personagem cabea-p citanga, smbolo de fecundidade, em relao com citanga
(tshitanga), esprito ancestral antigo, ser hermafrodita.
Esta espcie de hermafroditismo promordial seria, neste caso particular, o retorno
ao caos primitivo e, em conseqncia, resultaria no indefinido e na dvida. Esta
indeterminao seria sentida sobretudo no que diz respeito fecundidade1.
Para o adivinho hamumona, esta estatueta do cesto representa a hamba katanga,
que impede o nascimento de uma criana. Para nosso adivinho, katanga no o ser
hermafrodita, mas, antes, kuku (ancio), o primeiro antes que todos os outros; ele que
dirige a procriao e por causa dele que o feto vira homem ou mulher. Mas, se citanga
no venerada, a indiferenciao permanece, o desenvolvimento parado e a criana no
pode aparecer.
Para honrar citanga preciso esculpir uma estatueta rudimentar de musole com
dois rostos, guard-la no recinto e trazer-lhe comida.
A dvida, a confuso, a incerteza (dupla cabea, quatro pernas, etc.) remetem o
adivinho e seus clientes interveno do esprito primitivo katanga, que do embrio
confuso (potencialmente homem ou mulher) faz surgir seres separados e distintos2.

2.1.9 - Mbate, o casal


(fotos 191-203)

A estatueta dupla mbate (por extenso: pwo nyi lunga alimbata homem e
mulher acasalados) (fog. 12), que relativamente freqente nos cestos, apresenta formas
de grande variedade. Delachaux, que estudou toda uma srie, procurou estabelecer uma
linha evolutiva desde as formas mais naturais at aos exemplares que apresentam um
maior grau de abstrao3. De acordo com Baumann, a significao desta estatueta seria
imediata: ela promete dar descendncia quele que interroga (ou por quem se interroga) o
adivinho. A designao yikoyi, utilizada tambm por Baumann, viria dos Lunda (likunyi),
mas os Cokwe preferem cham-la mbate4.
A propsito desta estatueta, o pastor E. Berger enviou a Delachaux a seguinte
informao:
... esta estatueta revela o adultrio e descobre as doenas venreas, indicando a
causa segundo a posio em relao a outras peas. Ela prova ainda a infidelidade do
homem ou da mulher, causa das infelicidades de que se queixam os clientes.
A significao destas estatuetas do cesto pode escapar completamente ao
pesquisador de campo se se arrisca uma interpretao estritamente formal sem levar em

1 Hambly explica esta estatueta como um caso de cime: two united, human figure of wood indicate that a
twin will die. N. do T.: dois unidos, figura humana de madeira, indica que
2 A bissexualidade original uma noo comum na frica. Deschamps escreveu a esse respeito: Todo ser
bissexual na origem: o homem mulher por seu prepcio, a mulher, homem por seu cltoris; da a
necessidade da circunciso e da exciso que conferem o sexo definitivo. H. Deschamps, 1965, p. 9.
3 Delachaux, 1946, p. 66, prancha IV.
4 Baumann, 1935, p. 169.
139

considerao o contexto prprio da atividade divinatria e da vida ritual na qual se insere


o trabalho do adivinho. Delachaux observa que Hambly no evitou esta armadilha; com
efeito, Hambly explica este smbolo assim:

... duas estatuetas macho e fmea (que) cochicham juntas, indicando o


plano de envenenar algum1.

Normalmente a maioria dos autores que recolheram esta estatueta tentam explic-
la em funo de problemas que resultam de desvios na vida sexual, condenados pela
sociedade, particularmente as tenses freqentes entre um homem e o amante de sua
mulher2. Um parto difcil, por exemplo, pode ser atribudo ao adultrio de um dos
cnjuges.
Mbate, como tantas outras estatuetas, exerce um papel importante de moralizador
da vida dos Cokwe. Neste caso a influncia do adivinho enorme, mas, em princpio, ele
se limita a interpretar e a aplicar as normas tradicionais no que concerne s prestaes que
o culpado deve parte lesada.
O mesmo tipo de explicao (doenas e adultrio), mas num contexto diferente,
foi notado por Mesquitela Lima, para quem a estatueta mbate ... significa que o
consultante est casado com um cnjuge sempre doente; o que pode sugerir problemas de
divrcio (geralmente os Tshokwe no sustentam uma esposa doente)3. Neste caso, o
adultrio pode existir tambm, mas ento uma estatueta flica (lukutu) o denunciar.
Pwo nyi lunga alimbata simboliza, se acordo com M. L. Bastin, que a me de
uma das esposas do donte polgamo lhe quer mal4. Esta maldade voluntria traduz, regra
geral, a ameaa do divrcio por causa da doena, a esterilidade, ou ainda a infidelidade
notria do marido. A maioria dos adivinhos no se afastam deste ponto de referncia para
desenvolver suas explicaes:

... um homem tem uma ligao com a mulher do outro; isto j dura h
muito tempo e o marido desta mulher est descontente. O chefe da aldeia convida os dois
homens para resolver o dilema; ele (o chefe) que decide quanto o culpado deve pagar.
Depois ele no quer mais ser importunado. Ele dir ao final da discusso: agora voc
(culpado) quem deve pagar... eu j falei... Quando o cvhefe da aldeia fala isso, o faltoso
empenha-se em pagar as prestaes (Hamumona).

A interveno do chefe se verifica ainda com freqncia ( uma outra aplicao da


estatueta) por ocasio do falecimento de uma mulher; seu marido deve pagar as
indenizaes estabelecidas pelo costume, que os Cokwe designam globalmente por
ciwimbi. O ciwimbi compreende normalmente trs prestaes repartidas no tempo e de
importncia varivel; neste caso, mbate se faz acompanhar de um outro smbolo: mufu.

1 Hambly, 1934, p. 274, citado por Delachaux, 1946, p. 59.


2 Informao que acompanha a estatueta do cesto A. E. 623 (Museu de Etnologia, Lisboa).
3 Lima, 1971, p. 292.
4 Bastin, 1961, p. 201, nota 2.
140

2.1.10 - Katwambimbi, a chorosa


(fotos 204-220)

Katwambimbi , de acordo com Baumann, a imagem de algum que se lamenta;


esta estatueta anunciaria uma morte muito prxima1; de acordo com o autor, haveria
provavelmente uma relao entre a estatueta do cesto divinatrio e os amuletos levados
pelas mulheres para impedir a morte de seus filhos2; nossas observaes de campo nos
afastam dessa perspectiva; na verdade, katwambimbi algum que chora, mas num
contexto bastante diferente do evocado por Baumann.
De acordo com Delachaux, a chorosa uma mulher que chora pelo marido ou
pelo noivo; haveria pois dois tipos de estatuetas s quais corresponderiam ainda duas
designaes, a saber, nyamuso e kanenga:

nyamuso, virgem. Gesto da chorosa que ergue os dois braos; as duas


mos seguram a cabea, sinal de tristeza e de angstia. A consultante chorar por seu
noivo...
kanenga, mulher que chora. Mesmo significado que a precedente,
salvo que ser por seu marido. Esta pea retratada tanto com a criana s costas quanto
sem3.

Todos os exemplares observados exprimem a angstia e a tristeza num gesto


muito caracterstico dos Cokwe: as duas mos erguidas lateralmente na cabea ou coladas
no alto da cabea, ou ainda cerradas contra a nuca (fig. 13). A particularidade notada por
Delachaux estatueta com criana s costas no foi nunca observada por ns na
pesquisa de campo, mas pode-se encontrar pelo menos um exemplar na coleo de cestos
divinatrios do Museu de Neuchtel.
Hauenstein tambm observa a propsito desta estatueta que ela representa uma
mulher que chora, e pressgio de um falecimento prximo4. Ns j verificamos que na
explicao de Delachaux a morte em questo seria a de um marido ou de um noivo, mas
pode-se alargar a significao, como alis o fazem a maioria dos adivinhos, e explicar as
lgrimas e a tristeza pela doena de um familiar cuja morte seria certa; ou ainda o
prprio cliente quem corre perigo5.
Esta interpretao est muito prxima da de M. L. Bastin, que descreve
katwambimbi como: pequeno personagem retratado, as mos postas na cabea, em gesto
de lamentao; ele pressagia, em sua apario borda do cesto, que o cliente vai
morrer6.
Em muitos casos, o adivinho pode tratar ele mesmo a doena, ou ento ele manda
seu cliente procurar o especialista curandeiro que preparar os remdios apropriados. O

1 Baumann, 1935, p. 165.


2 Baumann, 1935, p. 187.
3 Delachaux, 1946, p. 49.
4 Hauenstein, 1961, p. 156.
5 Lima, 1971, p. 156.
6 Bastin, 1961, p. 200, nota 1.
141

adivinho saber tambm apontar os casos extremos cuja evoluo fatal, e ento ele
prevenir a famlia do doente.
Para V. Turner, katwambimbi tem uma significao muito negativa, prxima alis
de chamutanga (o ancestral feminino). No h confuso possvel acerca da estatueta em
questo, dado que Turner a descreve como a efgie de um homem que leva as mos
cabea, na atitude tradicional da dor1.
Katwambimbi seria aquele que provoca as lgrimas (He-who-starts-weeping)
porque katwambimbi

... um semeador de discrdia... que transmite as histrias de um ao outro,


conta a este que aquele o detesta e tenta enfeiti-lo. Quando um dos dois termina por
matar o outro por feitiaria ou magia negra, katwambimbi que chora mais forte durante
a viglia morturia apesra de ser o principal culpado2.

Turner classifica portanto a estatueta de mensageira da morte e reconhece que


katwambimbi deve ter o mesmo castigo que o feiticeiro, porque pelo caso de feitiaria os
dois tm responsabilidade:

From the diviners point of view, not only the actual sorcerer (who did
the killing) but also the tale-spreader would receive a case, i. e., would be puclicy
denounced as responsible for the death3.

Esta perspectiva pe em jogo novos elementos no que concerne feitiaria no


quadro familiar e, em particular, para os casos que afetam o marido ou o pretendente de
uma mulher; um ensinamento particular desta estatueta que pe em evidncia as
implicaes sociais de um casamento virilocal numa sociedade matrilinear4.

2.1.11 - Mufwaponde, o mutilado


(fotos 221-232)

Mufwaponde uma estatueta perigosa; Baumann a interpreta como smbolo de


um homem cado de uma rvore e que fraturou a cabea; o mesmo perigo ameaaria o
cliente5. Tendo encontrado para esta estatueta uma designao diferente tyimpundu,
o decapitado Delachaux fornece esta explicao:

1 Turner, 1972, p. 51.


2 Turner, 1972, p. 52.
3 Turner, 1961, p. 62. N. do T.: Do ponto de vista do adivinho, no somente o verdadeiro feiticeiro
(quem provocou a morte) mas tambm o disseminador do boato deve receber um caso, isto , ser
publicamente denunciado como responsvel pela morte.
4 Sobre as mltiplas formas dessas tenses e sobretudo o modo de super-las por meio de ritualizao, ver
Turner, 1972; os aspectos dessas tenses so bem analisados por P. P. Rey, 1971.
5 Baumann, 1935, p. 169.
142

... o homem desaparecido do qual se pede notcias foi morto por


feiticeiros que pegaram sua cabea para fazer medicamentos1.

Se a informao trazida por Baumann nos parece arbitrria e fora de todo contexto
social, em compensao o ponto de vista de Delachaux supe um conjunto de crenas em
relao feitiaria tal como se conhece na sociedade tradicional. Delachaux reaproxima
tambm a iniciao do adivinho e a feitiaria; na verdade, todo adivinho poderoso e de
grande renome torna-se facilmente suspeito, porque poder e feitiaria para os Cokwe so
realidades muito prximas, mesmo se o adivinho trabalha em sentido inverso do
feiticeiro.
Explicando a estatueta mufwaponde como o guerreiro que morreu em combate,
M. L. Bastin observa que a doena do consultante vem do esprito (hamba) desse
guerreiro2.
O adivinho Riasendala desenvolve o mesmo raciocnio aproximadamente nos
mesmos termos: se algum parte para a guerra, pode acontecer que morra; mas esse
guerreiro havia deixado na aldeia sua mulher e seus filhos. Alguns anos mais tarde seus
netos adoecem e a famlia vai procurar o adivinho... Ele descobrir rpido a causa da
doena: o av (irmo da av) partiu para a guerra e morreu; ele que se tornou
mufwaponde; o mal (doena) vem dele, seu esprito provoca as dores... preciso procurar
um cupinzeiro (um fragmento do ninho) e fazer um santurio; depois preciso trazer-lhe
fuba (mandioca) e lhe falar (orao); ento o doente recuperar a sade, assim como seus
filhos.
O cupinzeiro, neste caso, utilizado para modelar uma esttua grosseira em
homenagem ao ancestral que se tornou mufwaponde.
De acordo com E. Santos, mufwaponde seria antes a representao de um nganga
(feiticeiro) que pertenceria famlia do cliente:

... havia um feiticeiro; para sua desgraa, lhe cortaram a cabea; agora seu
esprito atrapalha o cliente3. Este ltimo devia esculpir uma estatueta grosseira a partir
de um pedao de madeira bem seca (lusumba) e coloc-la sobre um cupinzeiro, no recinto
das mahamba4.

Mufwaponde se apresenta quase exclusivamente como estatueta decapitada (fig.


14). Ela poderia tambm explicar um crime e, neste caso, a desgraa seria sobretudo de
ordem ritual: os funerais no foram cumpridos, o esprito do morto torna-se violento e
perigoso. nessa perspectiva que se situa a explicao de Hauenstein, que sublinha o
aspecto particularmente perigoso de mufwaponde:

...mufwaponde seria o esprito de uma pessoa assassinada ou que se


suicidou, que se prende a um vivo. um caso excessivamente perigoso5.

1 Delachaux, 1946, p. 60.


2 Informao oral, 1975.
3 Santos, 1960, p. 159.
4 Idem.
5 Hauenstein, 1961, p. 157.
143

Aquele que fizeram desaparecer podia ainda ser um feiticeiro, que teria sido
descoberto e denunciado pelo adivinho; um pouco por toda Angola, tal indivduo, ao ser
descoberto, era eliminado1.
Concluindo, pode-se dizer que a estatueta do decapitado, no cesto, remete sempre
az seu esprito malfico ou perigoso, conseqncia de um crime (assassinato), suicdio, da
existncia de um criminoso, o feiticeiro, personagem a quem o cesto consagra ainda uma
outra estatueta cilowa.

2.1.12 - Cilowa, o feiticeiro


(fotos 233-235)

Em princpio, cilowa uma estatueta de madeira cuja cabea apresenta um


revestimento de cera negra com sementes de kenyenge (fig. 15); s vezes a estatueta
substituda por um pequeno pedao de madeira ou por um chifre de antlope; nos dois
casos, a grande cabea de cera existe sempre, mesmo se s vezes faltam as sementes.
Delachaux apresenta algumas figuras, concernentes provavelmente a este
personagem, que tem a [particularidade de ter um caurim sobre a cera negra e que
considera como:
... personagens consagrados por um caurim colado na cabea em meio a cera
negra2.
Como primeira aproximao, se poderia ver nessa espcie de consagrao o
indcio de uma valncia positiva em relao iniciao do adivinho (o caurim exprime
sua graduao e compromisso) ou fecundidade das mulheres, dada a significao dos
caurins3. Mas a presena dos caurins na estatueta cilowa completamente excepcional;
muito mais freqente que os caurins so as sementes de kenyenge, que por suas cores,
preta e vermelha, so consideradas como negativas, de mau pressgio4. Assim,
completamente normal que a significao desta estatueta seja uma das mais negativas do
cesto. De acordo com E. Santos, esta estatueta denunciaria o feiticeiro, que o adivinho
marca alis com o vermelho (mukundu); sua apario borda do cesto significa que o
nganga est presente entre os clientes5.
Mesquitela Lima v, com razo, com reservas o carter antropomorfo da estatueta;
na verdade, h exemplos em que no se acha trao de antropomorfismo, mas em
compensao em outros, isto maioria, so claramente antropomorfos. Mesmo para o
caso nos quais o pedao de madeira no foi nada esculpido, os adivinhos explicam
quando cilowa, e a identificao se resume quase exclusivamente a uma cabea de cera
negra; no conjunto de exemplares cilowa das colees do Museu de Dundo (foto 235),
observamos vrios que no foram esculpidos e at mesmo alguns que foram feitos com
um chifre de antlope. Cilowa , desse modo, uma das estatuetas fronteirias entre a

1 Ver Estermann, 1957.


2 Delachaux, 1964, p. 139.
3 Ver item 2.3.15.
4 Para maiores detalhes sobre kenyenge, ver item 2.4.14.
5 Santos, 1960, p. 72.
144

manufatura e o natural. Mesmo para as estatuetas que foram esculpidas, o cera esconde
por vezes a cabea e tambm uma parte do corpo; os Cokwe obtm essa cera negra
(ulongo) produzida por abelhas selvagens, aps a extrao do mel.
A feitiaria denunciada pela estatueta se encontraria no numa pessoa concreta
(um feiticeiro), mas num objeto a servio do nganga. Assim, cilowa designa com
freqncia antes o objeto utilizado pelo feiticeiro que o feiticeiro propriamente; esse
objeto portador de uma fora malfica (wanga) seria lanado contra o corpo da vtima
pelo fuzil do feiticeiro (uta wa mbomba)1 e penetraria provocando, em conseqncia, a
doena.
O personagem de madeira seria, de acordo com M. L. Bastin, a indicao
simblica que a doena ou a morte foi provocada pelo feiticeiro2; o elemento mgico-
religioso mais forte na estatueta seria as sementes kenyenge, segundo vrios adivinhos.
Na prtica, elas faltam com frqncia na estatueta cilowa, e para substitu-las o adivinho
coloca tintura vermelha (mukundu) na estatueta.
Uma concretizao bastante curiosa do mal-estar denunciado por cilowa (neste
caso, uma possesso) a que Hambly apresenta e cujos responsveis seriam os europeus:
There is a little figure with a black tuft on its head, whose arrival at the
top of the basket indicates that misfortune among the natives is caused by Europeans.
When talking to this figure the medicine-man tries to speak like a white man adopting a
falsette voice and mimicking the intonation of Europeans3.

No inteiramente certo que a estatueta de que Hambly explica o significado seja


exatamente a mesma; mas a probabilidade grande. Se para os Cokwe cilowa conota
antes a feitiaria e todo o contexto social que a engendra, parece que os Ovimbundu
atribuem estatueta tambm a equivalncia de um esprito estranho cujo comportamento
no alis muito diferente do dos espritos malficos.

2.1.13 - Tumbunda, a mulher do ventre dilatado


(fotos 236-238)

Tumbunda uma estatueta raramente apresentada no cesto divinatrio, sua


identificao imediata, mesmo se sua significao apresenta algumas variaes. E.
Berger, uma das fontes de Delachaux, a classifica como o esprito de uma mulher grvida.
... lizimo, mulher grvida. Revela adultrios e prediz os nascimentos futuros.
Uma explicao semelhante j havia sido proposta por Hambly para a mesma
estatueta no cesto dos Ovimbundu:

1 Ver item 2.2.9.


2 Bastin, 1961, p. 49, nota 2.
3 Hambly, 1934, p. 274. N. do T.: H uma estatueta com um tufo preto na cabea, cuja apario
no alto do cesto indica que a desgraa entre os nativos causada por europeus. Ao contar desta estatueta, o
mdico-vidente tenta falar como um homem branco adotando uma voz de falsete e mimando a intonao de
europeus.
145

The figure of a female with a large abdomen indicates that the spirit of a
deceased pregnant woman is causing sickness in the village1.

Berger adicionou a esta informao uma particularidade provavelmente de carter


local (revelao de adultrios), a menos que se tratasse de uma perspectiva que reflita
preocupaes europias e missionrias. Alis, para o autor, a estatueta mbate indicaria
doenas venreas, e se ver logo mais que ele explica a estatueta lukutu (pnis) como
indicao de doenas sifilticas!
A maior parte dos adivinhos explicam o ventre dilatado de tumbunda (fig. 16) seja
em termos de maternidade, seja em termos de doenas em relao com a maternidade; em
todo caso, tumbunda manifesta uma hamba responsvel pelas doenas das mulheres
grvidas.
Kambunda (designao adotada por Mesquitela Lima) seria um esprito que
protege contra a varola e os males do ventre e cujo tratamento aplicado pelo curandeiro
seria composto de razes de mufula-fula, do sangue de um frango sacrificado hamba e
com o qual o paciente esfregar o corpo todos os dias.
Com a mesma designao (tumbunda), E. Santos descreve tambm uma hamba
para assinalar o mal de ventre2.
A estatueta provm provavelmente de uma das etnias avizinhadas, dado que ela
classificada ebtre as mahamba yipwiya, consideradas como estranhas ou parasitas3; para
Mesquitela Lima ela pertence antes s mahamba aha, mas sabe-se que estas duas
categorias se superpem muito freqentemente4.
O elemento pertinente da estatueta (ventre dilatado) conota normalmente a
gestao, os nascimentos e, secundariamente, os adultrios; ao mesmo tempo, os
adivinhos delegam estatueta a explicao das doenas das quais uma mulher pode sofrer
durante a gravidez.

2.1.14 - Tukuka, as mahamba tukuka


(fotos 239-241)

Duas miniaturas antropomorfas de madeira de mutete s quais se acrescenta com


freqncia um pedao de casca de uma rvore atingida por um raio. Estas duas estatuetas
se apresentam com freqncia atadas uma a outra pelo pescoo, costas contra costas (fig.
17). Os doentes as levam freqentemente cintura, mas s vezes elas tambm so
encontradas no cesto. Quando, aps uma agitao, elas vm borda do cesto, os tahi lhes
do aproximadamente o mesmo valor que para a miniatura tumbunda, no que diz respeito
s doenas das mulheres grvidas. As mahamba tukuka so mais freqentes do lado de

1 Hambly, 1934, p. 247. N. do T.: A figura de uma fmea com um abdomen largo indica que o
esprito de uma mulher grvida falecida est causando doena na aldeia.
2 Santos, 1960, p. 41.
3 Bastin, 1961, p. 36, nota 8.
4 Lima, 1971, p. 84.
146

fora do cesto, sob a forma de estatueta de barro modelado sobre as quais se colocam as
cores branca e vermelha e os ornamentos de plumas sobre a cabea1.
Baumann verificou a identidade dos significados de tumbunda e tukuka e, ao
mesmo tempo, sublinhou que estas estatuetas esto relacionadas possesso e s doenas
das mulheres: as tukuka seriam gnios que habitam a floresta e que deixam por toda
parte em que passam uma trilha de impureza, espcie de doena.
Do lado de fora do ngombo, esta hamba apresenta diversas variantes. M. L. Bastin
observou ainda trs pares de tukuka, de barro modelado, veneradas por uma mulher que
as invocava como espritos protetores contra as doenas2.
Se tumbunda e tukuka cobrem aproximadamente a mesma significao, constata-
se que tukuka , porm, rara no cesto, pelo menos em relao a tumbunda, que mais
freqente; em compensao, no recinto do chefe, onde so veneradas as mahamba,
tumbunda bem mais rara que tukuka.

2.1.15 - Lukutu, o pnis


(fotos 242-246)

Baumann: likutu
Delachaux: likutu
Santos: likutu
Turner: ilomu
Lima: lunga

Independentemente do cesto divinatrio, e um pouco em todo lugar na frica


Central, encontra-se indicaes variadas relativas s representaes flicas,
provavelmente em relao s formas antigas de culto flico, cujas figuraes lticas do
Zimbbue, entre outros, so um exemplo3.
Um danarino mascarado cokwe exibe tambm, em certas circunstncias, um
enorme falo quando dana com a mscara ngazi4. As pinturas murais, ainda perceptveis
em certas aldeias, mostram freqentemente motivos flicos (fotos 247-249).
Buscando a significao desta estatueta no cesto divinatrio (fig. 18), Baumann
descobriu duas explicaes: a primeira seria um caso de adultrio: a mulher do
consultante tem relaes sexuais com um outro homem; mas se a consulta ao adivinho
feita por uma mulher, a explicao a seguinte: um homem quer ter relaes sexuais com
esta mulher; mas ele ser afastado porque ela lhe rogar uma praga.
Berger explicou ainda, para Delachaux, que esta estatueta representada s vezes
de modo completamente naturalista, ou, pelo contrrio, apresentando-se sob formas muito
difceis de reconhecer, revela as doenas venreas e alguns efeitos da sfilis, para os
homens, em particular a perda do membro5!

1 Baumann, 1935, p. 205.


2 Bastin, 1961, p. 190.
3 Ver Garlake, 1973, em particular, pp. 146-148.
4 Baumann, 1935, Anexo Fotogrfico 80-7.
5 Delachaux, 1946, p. 60.
147

De acordo com E. Santos, lukutu revera, antes, a possesso ilegal de uma mulher,
porque o homem no pagou o dote (alembamento)1.
O adivinho angolano informante de Turner atribui a esta estatueta uma
significao geral de virilidade, mas a idia de adultrio mencionada por Baumann
encontrada tambm nas observaes de Turner; na verdade, o adultrio autoriza o marido
lesado a exigir uma compensao da parte do homem culpado; a tenso entre estes dois
personagens pode degenerar em crime de homicdio. Cabe ao adivinho descobrir a
relao entre a ocorrncia de um bito e um ato de adultrio, ou detectar se, pelo
contrrio, foi o feiticeiro que se aproveitou de uma situao entre o marido e o amante
para cometer o crime de feitiaria.
As diferentes explicaes desta estatueta se apresentam s vezes bastante
divergentes, mas a maioria dos adivinhos consultados tomam a estatueta lukutu como
ponto de partida para explicar questes concernentes ao homem, em particular a sua vida
sexual. s vezes lukutu significa tambm a esterilidade masculina, doena contra a qual o
curandeiro preparar remdios indicados para esbranquiar o esperma. Com efeito,
neste caso, o doente conduzido a um local no interior da floresta onde o mbuki aplicar
diretamente no rgo viril uma infuso preparada com a raiz de mundoyo, cujo resultado
imediato ser o de fazer expulsar um lquido preto (o esperma preto), o qual, pela
continuao do tratamento, se tornar branco2
Em princpio, todas as formas de doenas de homens, e particularmente a
impotncia e a esterilidade, so atribudas a relaes interrompidas, que podem trazer
ainda outros aborrecimentos, seja ao prprio marido ou a sua mulher grvida. A
impotncia considerada pelos Cokwe como a morte social, contra a qual o homem luta
com todas as suas foras; ela considerada definitiva unicamente quando o homem
expira; neste momento se exteriorizar a morte social do indivduo:

uma linha negra traada de seu umbigo at suas partes genitais com
carvo natural indica que seu nome, e com ele alguns elementos essenciais de sua
personalidade, no sero nunca transmitidos s crianas de seu parentesco3.

2.1.16 - Sunji, a vagina


(fotos 250-251)

Santos: sunji, tchipanga


Lima: pwo, mama

A ausncia de referncias a esta pea simblica nos vrios autores que estudaram
o cesto divinatrio, tais como Baumann, Delachaux, Hauenstein, etc., bastante curiosa,
tanto mais que nos cesto que observamos, tanto nas colees quanto com os adivinhos,

1 Santos, 1960, p. 164.


2 A notar tambm a observao da cor do esperma feita pela av de uma moa por ocasio de seu
casamento. Esta ltima trar para sua av um pouco de esperma de seu marido escondido num leno. A av
o observar e de acordo com a cor decidir se o marido deve fazer um tratamento ou no.
3 Turner, 1972, p. 41.
148

no se possa dizer que seja uma raridade. Mesquitela Lima, observando esta pea numa
cerimnia divinatria, props-lhe o nome de mama (me) ou pwo (mulher) e apresenta
uma ilustrao ligeiramente diferente1.
De acordo com Santos, sunji seria um pedao de cabaa em forma de vagina em
que esto evidentes as mikaka (escarificaes pblicas) e kamonga (o cltoris); a
explicao desta estatueta seria a seguinte: a mulher (do consultante) est mesmo doente,
o marido deve preparar hamba de fecundidade2. Para o autor, h dois objetos distintos
no cesto: sunji, a representao da vagina, e cipanga, a da vulva. Esta ltima significaria a
exigncia feita ao marido de pagar o dote o mais rpido possvel3. Nenhum dos
informantes confirmaram esta duplicidade de objetos no cesto. As representaes podem
variai um pouco, mas os adivinhos consultados s conhecem sunji. A significao
apresenta um certo paralelismo com a de lukutu: sunji significa igualmente uma doena
por causa de uma mulher possuda ilegalmente porque as prestaes concernentes ao dote
no foram ainda integralmente satisfeitas.
Um outro problema curioso que coloca o grupo sunji concerne presena ou
ausncia de cltoris; a maior parte das representaes de sunji apresentam indicaes que
se poderia interpretar como uma prtica de clitoridectomia; a questo posta a cada um dos
adivinhos obteve sempre uma resposta negativa. Os Cokwe no conhecem essa prtica
nem alis nenhuma das etnias vizinhas, como os Lunda, Lwena, Shinji, Mbangala4. De
um outro lado, J. Redinha afirma a ausncia de qualquer ato operatrio quando da
iniciao das meninas em toda a regio de Lunda; o rito de passagem propriamente dito
seria acompanhado unicamente de escarificaes diversas sobre o ventre5. As
escarificaes so bem perceptveis no smbolo sunji, e se apresentam como um conjunto
ou de linhas paralelas ou de losangos obtidos por um conjunto de linhas cruzadas; outros
apresentam ainda um segundo conjunto de linhas suplementares que formam tringulos
acima das linhas paralelas (fig. 19).
As escarificaes so importantes para identificar as estatuyetas femininas.
Mesmo se se discute sempre a origem das escarificaes, nos dias de hoje elas so
consideradas como ornamentos em que os elementos estticos e erticos aparecem
juntos6.
A aprio deste kaphele pode ser explicado por toda uma srie de prticas
relativas fecundidade das mulheres e que dizem respeito principalmente a duas
mahamba: hamba mwia e hamba kapikala. A primeira j foi mencionada a propsito da
estatueta citanga com a qual est associada; no que concerne a kapikala, uma estatueta
que diz respeito aos ancestrais mais antigos da mulher, venerados sob forma de duas
esculturas rudimentares que a mulher pe debaixo da cama ou no recinto das mahamba e
s quais se d o sangue dos animais sacrificados ou da caa7. Esta forma de culto

1 Lima, 1971, p. 159, 175, fig. 106.


2 Santos, 1960, p. 170.
3 Santos, 1960, p. 172.
4 Bastin, 1961, p. 56, nota 2.
5 Redinha, 1966, p. 76.
6 Para os Ndembu as escarificaes se integram ainda no ritual de iniciao (nkanga). Elas tornam-se
cicatrizes em relevo... espcie de escritura ertica que serve para atrair um homem... (Turner, 1972, p.
278).
7 Kapikala protege particularmente contra a frigidez sexual da mulher.
149

acompanhada normalmente de outras manifestaes exteriores, sobretudo a aplicao de


cores rituais (vermelho e branco) sobre o corpo da mulher em tratmento, submetendo-na
com freqncia a uma pintura global, metade vermelha, metade branca.

2.1.17 - Mikana, o grupo em rota


(fotos 252-265)

O exemplar desta estatueta observada por Baumann foi descrita como quatro
pessoas numa estrada; na realidade os personagens so por vezes trs ou cinco ou mais
(fig. 20). A explicao conseguida por Baumann a propsito desta estatueta a seguinte:
aquele que interroga (cliente) saber que no preciso procurar o feiticeiro na aldeia,
mas que o encontrar numa viagem atravessando os campos1. Alm disso, o mesmo
Baumann recolheu outros exemplares para os quais a primeira descrio no era vlida;
um desses exemplares mostra os personagens em grupo, enquanto que um outro
representa quatro estatuetas humanas, duas viradas numa direo e duas na outra. Assim,
a explicao personagens em rota s vlido em alguns casos.
O grau de estilizao que o grupo apresenta pode sugerir por vezes interpretaes
que passam para o lado da realidade. Assim, E. Santos descreve esta pea como um
perdao de madeira, longo, de aproximadamente 7 cm, com trs incises de um lado.
Tem a aparncia de uma serra com quatro dentes. A significao proposta contm
entretanto o elemento viagem: o cliente freqentou ms companhias que queriam mat-
lo2.
De acordo com Mesquitela Lima, mikana uma estatueta... em forma de pente
talhado em madeira de musole ou de mwanga... pintado de vermelho de mukundu. Mas o
autor se deu conta do carter antropomorfo da estatueta; com efeito, ele acrescenta: com
freqncia os quatro dentes se apresentam sob formas humanas. E a significao estaria,
ainda de acordo com o mesmo autor, realacionada com encontros de pessoas visando um
objetivo bem preciso:

o consultante receber muitas visitas, dentre as quais quatro pessoas que


querem enfeiti-lo3.

Com os exemplares das colees do museu de Neuchtel, Delachaux organizou


um conjunto to diverso de estilizaes desta estatueta que obteve uma linha evolutiva
terica a partir da forma mais naturalista, em que h personagens bem diferenciados, at o
caso de estilizao mxima, onde a estatueta no passa de uma baguete de onde
emergem quatro dentes4.
Assim, de acordo com M. L. Bastin, mikana seria um pequeno pedao de
madeira talhada em forma de pente e representando uma seqncia de pessoas andando

1 Baumann, 1935, p. 69.


2 Santos, 1960, p. 166.
3 Lima, 1971, p. 294.
4 Delachaux, 1946, p. 67.
150

uma atrs das outras por uma vereda1. O adivinho Namuyanga, informante de Bastin,
explicou assim esta estatueta:

... o dano causado por estranhos; ou ento... a doena foi pega no curso
de uma viagem; ou ainda: o ausente faleceu em viagem2.

Os dois exemplares de mikana observados por Hauenstein eram suscetveis de


serem explicados unicamente como grupo em fila indiana. Em compensao, do conjunto
que ns observamos, a maioria permite outras explicaes, dado o grau elevado de
estilizao que apresentam; em certos casos, em compensao, se observa a posio de
personagens em fila indiana, enquanto que em outros, os personagens so colocados uns
ao lado dos outros e olham na mesma direo (foto 260). Hauenstein enumera tambm as
estatuetas que podem estar associadas com mikana; por isso que a associao com
kalamba determianaria a relao entre a doena, o sonho ou o pressgio e o ancestral do
lado paterno ou do lado materno; conforme a estatueta acompanhante, kalamba kuku wa
lunga ou kalamba kuku wa pwo, respectivamente. Mas esta aplicao apenas uma
dentre tantas outras possveis de acordo com o movimento dos tuphele e da inteligncia
do adivinho3.
Todos os adivinhos so unnimes na explicao deste kaphele a partir da realidade
de uma viagem, mas o modo de aplicao apresenta muitas variantes. Sakungu explicou
como segue:

Um grupo de pessoas partiu de Mukuloji para Kasangidi; um inimigo de


um dos viajantes ouviu falar da viagem; ento deceidiu enfeitiar o rival antes de sua
partida. Em conseqncia, durante a viagem, o homem ficou doente; quando ele chegou,
sua famlia foi procurar o adivinho. Este explicou ao doente: voc partiu para uma longa
viagem; durante a viagem a doena se manifestou, mas ela no vem do caminho
(percurso), mas de casa; com efeito, um inimigo (nganga) preparou wanga contra voc
antes de sua partida.

Sakungu faz seu comentrio para ns: os companheiros de viagem no eram


culpados pela doena desse homem; o mal j estava com ele quando ele deixou sua casa.
Em todas as explicaes desta estatueta encontra-se um mesmo fundo, mesmo se
s vezes certas explicaes tomam uma colorao mais ou menos local ou mesmo
pessoal. H pessoas (em fila ou uma ao lado da outra) que se deslocam numa viagem,
uma visita ou para um encontro; nesse deslocamento o adivinho encontrar a razo
profunda ou a ocasio em que aconteceu: crime de feitiaria, traio dos companheiros de
viagem, doena durante o percurso, etc.

2.1.18 - Kahemba,o esprito de kahemba


(foto 266)

1 Bastin, 1961, p. 181.


2 Idem.
3 Hauenstein, 1961, p. 140.
151

uma estatueta bastante rara no cesto, mesmo se antigamente a representao de


kahemba era relativamente freqente em loua; a rplica de madeira , antes, rara.
Mesquitela Lima observa que a miniatura levada pelas mulheres cintura
tambm mais freqente em loua1. Parece que com freqncia a estatueta em questo se
apresenta dupla, o que explica a designao plural (tuhemba) utilizada mais
freqentemente; na representao das duas estatuetas os rgos sexuais esto sublinhados
pelo exagero, detalhe que no exisate na miniatura2 (fig. 21).
A realizao da hamba kahemba dependeria da apario do fruto cifuci, que
determina tambm sua realizao em loua: duas estatuetas de loua, de homem e de
mulher, com penas de galinha na cabea3.
Dentre as mahamba makulwana, Bastin enuncia ainda as tuhemba4. Se as fabrica,
o que no pouco freqente, para obter uma descendncia. Os que sabem ainda como as
fabricar, se referem a elas como algo que caiu h muito tempo em desuso. O essencial do
rito para fazer as tuhemba o sacrifcio de uma galinha cujo sangue espalhado sobre um
ramo da planta mukula5, tendo como sentido o de fazer correr o sangue da maternidade
e sobretudo de impedir o escoamento do sangue menstrual, particularmente nocivo para o
caador e, portanto, procurado pelo nganga. Hamumona explica deste modo a origem da
casa das mulheres (casa das mulheres menstruadas) situada no canto oeste da aldeia e
alis todo o conjunto de normas que determinam no apenas que as mulheres se retirem
para a choupana de menstruao por ocasio das regras, mas tambm, e pelas mesmas
razes, que elas joguem no ribeiro e no na mata a gua que servir para lavar a roupa
branca utilizada nessas circunstncias. A gua poderia alterar os medicamentos dos
caadores ou ser utilizada pelos mgicos6.

2.1.19 - Samuhangi, o gnio da floresta


(foto 267)

Baumann: Muhangi, Samutambieka


Redinha: Samwangi, Mutambieka
Santos: Muangi
Bastin: Samuhangi
Lima: Samwangi ou Samuhangi; Ngongola ou Mutambieka

s vezes difcil identificar esta estatueta, sobretudo porque os traos de gigante


que a caracteriza no so sempre perceptveis nas miniaturas. Samuhangi um gnio da
floresta que os Cokwe veneram como favorvel caa.

1 Lima, 1971, p. 243.


2 Santos, 1960, p. 71 apresenta outros modo de fazer as tuhemba.
3 Santos, 1960, p. 170.
4 Bastin, 1961, p. 36, nota 7.
5 Ver item 2.4.17.8.
6 Turner, 1972, p. 277.
152

As estatuetas que so designadas como Samuhangi so por vezes bastante


diversas; certos traos de gigantismo, sobretudo do tronco e das pernas, so relativamente
freqentes (fig. 22).
De acordo com Baumann, muhangi um homem idoso que quando vivo foi um
grande caador1. Samutambieka seria uma outra designao do mesmo personagem. Para
J. Redinha, um gnio da floresta, seu corpo apresenta propores de gigante e ele
guarda as fontes dos ribeires2. Os traos de gigantismo de Samuhangi o identifica
tambm com o gnio Ligungule, que todas as manhs senta-se perto do rio para fumar seu
enorme cachimbo; a neblina da manh seria a fumaa que sai de seu cachimbo e se
espalha ao longo do vale3.
E. Santos descreve muangi como uma estatueta masculina cujas pernas so
grandes demais em relao ao corpo. s vezes sua representao seria perneta. A apario
desta estatueta denuncia a falta de respeito para com as mahamba da av; por isso que a
doena veio; para cur-la preciso fazer hamba muangi4. Uma certa confuso entre
muhangi e as mahamba de defesa contra ela parece bem evidente nesta observao de E.
Santos:

H duas espcies de miangi (pl. de muangi): uma de natureza humana e


outra de natureza extra-humana. A primeira um tipo de esprito de grandeza natural
(humana); a segunda um gigante. Esta ltima, quando encontra algum, pega seu cacete
e desfere um golpe fatal. S tem um brao, um olho e seus cabelos so anormalmente
longos. Na minha opinio, esta ltima o muangi de gerao; a outra o muangi da
caa5.

Os dois miangi descritos por E. Santos correspondem exatamente ao par


Sambongo e Nambongo esculpidos como esttuas gigantes para defender a aldeia contra
o esprito malfico de Samuhangi6.
Em geral, os adivinhos atribuem rplica de Samuhangi uma significao
positiva, porque ele pode favorecer tanto a caa como a procriao. O culto que se lhe
deve render como mestre da floresta deve sempre ter lugar perto do rio. Para esse efeito,
uma esttua gigante muito rude, feita a parit da rvore musangula7 plantada no solo;
uma cabaa com gua e remdios colocada ao lado. A mulher que deseja ter um filho,
bem como o caador que quer aumentar sua sorte, devero tomer a gua lustral.
Em princpio, todos os Cokwe concordam em dizer que Samuhangi s tem um
olho, mas a idia de uma unilateralidade generalizada para Samuhangi igualmente
bastante disseminada: ele teria apenas um olho, uma perna e um brao. Esses traos o
identificaria como um personagem mtico quase universal em toda frica Central.

1 Baumann, 1935, p. 211.


2 Redinha, 1948, p. 158.
3 Baumann, 1935, p. 206.
4 Santos, 1960, p. 167.
5 Santos, 1960, p. 193.
6 Ver item 2.1.20.
7 Musangula, um arbusto ao qual so atribudas propriedades genticas.
153

Os Ovimbundu conhecem um personagem denominada Embelengendje, e lhe


atribuem as mesmas caractersticas que ao Samuhangi dos Cokwe, que a literatura oral
classifica com freqncia de pastor de Deus1.
A relao com a caa ainda mais evidente quando os Cokwe explicam
Samuhangi como a primeira estrela do rion, dado que as duas outras so o co (muta) e
o animal perseguido. Esta explicao corrente na literatura oral, onde Canzangombe
(um outro nome de Samuhangi) aparece tambm em seu aspecto de monstro que exige
uma pessoa para refeio como preo para fazer reaparecer a luz2.

2.1.20 - Suku, hamba de proteo


(fotos 268-271)

As estatuetas de Suku so relativamente raras no cesto divinatrio; mesmo quando


esto presentes, elas no so sempre de fcil identificao por falta de traos
caractersticos. Suku uma hamba que protege a aldeia contra os inimigos para impedi-
los de ter acesso, e sobretudo contra as doenas provenientes do exterior.
Em certos casos pode-se observar que a representao de Suku substituda por
duas estatuetas: uma considerada como feminina e chama-se Nambongo, a outra,
masculina, Sambongo (fig.23). Em suas explicaes, os adivinhos passam facilmente de
Suku a Nambongo e Sambongo; se alguns adivinhos consideram estes ltimos como
representaes independentes de Suku, outros, em compensao, as vem como uma
dupla de Suku. por isso que, de acordo com a maior parte dos adivinhos, o papel de
Nambongo e Sambongo seria de contrabalanar a influncia nefasta do gnio da floresta
Samuhangi na aldeia3.
A presena de um pedao de cera (ulongo) no lugar dos olhos de Nambongo
(estatueta em que os olhos no foram talhados) explicada com freqncia como uma
aluso ao olho monstruoso de Samuhangi.
Uma aplicao muito particular desta hamba seria contra a doena mental:
pedao de madeira de musangula esculpida em forma de estatueta masculina ou
feminina, de acordo com o sexo do doente; fixa-se Suku no solo, ao lado da casa do
doente4. Desta prtica ritual relatada por E. Santos no encontramos nenhum vestgio.
Mas bem possvel que a referncia loucura no signifique mais que as manifestaes
exteriores relativas possesso pelo esprito Suku, o qual, antes do ritual de
apaziguamento, multiplica os comportamentos violentos e excntricos de tal maneira que
o doente considerado por instantes como louco5. Alm do culto rendido a Suku, todos
os possudos por esta hamba devem renovar o sacrifcio de iniciados por ocasio da lua
nova.

1 Barbosa, 1975, p. 182.


2 Barbosa, 1973a , p. 29.
3 Lima, 1971, p. 224.
4 Santos, 1960, p. 56.
5 O doente no necessita da injeo de uma nova alma e a hamba presente no deve mais ser tirada; seu
comportamento exige apenas um ritual coletivo por intermdio do qual o esprito ser apaziguado. O ritual
de apaziguamento torna-se pois o aspecto fundamental da possesso para os Cokwe.
154

2.1.21 - Cisola, hamba de fecundidade


(fotos 272-276; 366-a)

A estatueta que leva este nome uma miniatura no cesto divinatrio do cisola,
amuleto de fecundidade das mulheres. Comum e bastante freqente, a estatueta cisola
conhecida de todos e particularmente das mulheres, que a carregam com freqncia. O
que torna difcil sua identificao no cesto, devido reduo e simplificao de alguns
elementos caractersticos que desaparecem quando o amuleto cisola torna-se uma
miniatura do cesto. Na maioria dos casos, a identificao feita unicamente a partir do
invlucro de rede da estatueta (fig. 24); os ornamentos caractersticos da cabea de cisola
no existem mais na rplica. Baumann a descreveu, a primeira, como amuleto de
fecundidade: uma espcie de cauda feita com dois ou trs pedaos de canios torcidos
que levam no cabo uma espcie de penacho, feita de tambm de pedacinhos de canios
envoltos num fragmento de rede1.
M. L. Bastin descreveu com mais detalhes uma cisola do Museu de Dundo e
observou ainda a existncia da miniatura no cesto divinatrio como smbolo de
fecundidade2.
De acordo com Hauenstein, quando, numa sesso divinatria, a estatueta mwana
vem borda, a mulher consultante (ou para a qual foi pedida a consulta) far uma
pequena cabaa que ela envolver num
pedao de rede, imitando uma boneca; essa espcie de boneca seria a cisola; se a boneca
de cabaa falta, preciso substitu-la por uma estatueta de madeira grosseiramente
esculpida3. A descrio de Hauenstein nos distancia um pouco das estatuetas cisola
apresentadas por Baumann, Bastin, Lima e Santos, mas tem a vantagem de estar de
acordo com os traos simples e rudes da estatueta cisola do cesto. Entretanto, Hauenstein
descreve a miniatura ou, antes, uma forma diferente de cisola? Um certo polimorfismo na
representao da estatueta evidente tambm em Baumann, onde a mesma designao se
adapta a coisas bastante diferentes4.
Hauenstein nos parece pois ir um pouco mais longe no elarguescimento desse
polimorfismo que, alis, existe em graus diversos quase que em todas as estatuetas do
ngombo. Em todo caso, para cisola a significao bem precisa. Hamumona explica
assim: Cisola vem borda sempre para regrar coisas da mulher. o caso, por exemplo,
de uma mulher grvida que j abortou vrias vezes. Neste caso, o adivinho lhe propor
fazer hamba kahemba primeiro; em seguida (se o mal volta) cisola que ela far. Cisola
portanto um tratamento especialmente recomendado pelo adivinho em favor da mulher
que tem tendncia a abortar sucessivamente. Durante o tratamento, a mulher permanecer
sempre no interior do yisolo recinto feito para a mulher doente, que deve permanecer
at o momento em que seu filho, obtido aps o tratamento, der seus primeiros passos. A
mulher estril deve se submeter exatamente ao mesmo tipo de tratamento.

1 Baumann, 1935, p. 184.


2 Bastin, 1961, p. 157, nota 2 e p. 196, nota 3.
3 Hauenstein, 1961, pp. 138-139.
4 Ver Baumann, 1935, estatueta 66, o.
155

2.1.22 - Lucisa, a criana doente


(foto 277)

Hauenstein o nico autor que apresenta uma referncia a esta estatueta


rudimentar esquecida pela maior parte dos adivinhos (fig. 25). com freqncia um
fragmento de madeira, esculpida de modo muito rude. s vezes somente os olhos e a
boca esto esboados. considerada como hamba especialmente indicada contra certas
doenas das crianas que se caracterizam por erupes da pele. O adivinho decreta que a
criana levar ao pescoo um pedao de madeira; diante da casa se erigir ainda um poste
sem nenhum ornamento1. Lucisa seria a hamba que sai da pele da criana2, e que
preciso honrar para fazer desaparecer a doena.

2.2 -Os Objetos Manufaturados (No-Antropomorfos)

2.2.0 - Introduo

Aps as estatuetas antropomorfas, consideramos o grupo compreendendo todos os


outros objetos manufaturados para analis-los um a um de modo o mais detalhado
possvel. Neste grupo tambm, as informaes provenientes de diferentes fontes, bem
como mais raras, persistem ainda. Tendo testado as observaes em campo, retivemos em
princpio tudo o que os diferentes autores escreveram, adicionando eventualmente outros
elementos a partir de nossas prprias observaes ou nuances particulares concernindo tal
ou tal kaphele.
Os diferentes smbolos manufaturados no-antropomorfos que aparecem num
cesto divinatrio so normalmente mais numerosos que as estatuetas antropomorfas.
Estudamos aqui uma trintena desses objetos, alguns freqentes, outros de preferncia
raros. Este nmero ultrapassa pois a mdia de objetos manufaturados antropomorfos em
cada cesto, que de aproximadamente uma vintena.
As significaes salientadas por cada um dos tuphele no so nunca exaustivos,
mas traduzem uma freqncia estatstica das explicaes fornecidas pelos quatro
principais adivinhos consultados. Os esquemas que acompanham o estudo tem a
finalidade nica de colocar em evidncia essas mesmas significaes.

2.2.1 - Kwanza, a piroga


(fotos 278-280)

A rplica da piroga (fig. 26) no cesto uma representao do que o adivinho


denomina como a doena da piroga e que na verdade qualquer doena cuja hamba

1 Lutchisa, s. (7) qualidade de quem se suja. (Barbosa, 1973).


2 Hauenstein, 1961, p. 139.
156

responsvel hamba kwanza. Esta hamba significa, antes, as doenas que vm de longe e
em particular as que teriam vindo com os europeus:

Uma piroga minscula evocando os espritos kwanza encontrada sob o


mesmo nome no cesto ngombo ya cisuka. O objeto significa que, dentre as pessoas vindas
com o homem branco, uma ficou na regio e a causa do malefcio; preciso procur-la
para entrar num acordo1.

O adivinho Sakungu insiste sobre o fato de que kwanza explica sempre a doena
ou a desgraa que veio de longe e atravessou a gua. Este detalhe se verifica ainda nas
informaes de Tucker e Hambly, entre os Ovimbundu.
De acordo com Hambly, entre os Ovimbundu a pequena piroga anunciaria uma
desgraa que vai chegar em breve: A small wooden boat indicates that some one will be
drawned2, ao passo que para Tucker a desgraa (do mesmo gnero) j chegou e kwanza
fornece a explicao que o adivinho deve dar aos clientes:

a small wood model of dug-out canoe. The ochimbanda may have been
consulted as to the meaning of na overturned boat, where goods and their owner were
alike lost. What was it that caused the boat to capsize3.

O informante de Tucker rene a explicao de Sakungu quando admite que


kwanza pode significar tambm que a desgraa provm do outro lado do rio:

The piece may also mean that the person guilty of the dead inquired about
has perhaps come from the other side of the river, the Interior (i. e. by boat)4.

Mesquitela Lima d igualmente a mesma significao, pelo menos em termos


gerais:

Quando ela (a rplica kwanza) aparece borda da mistureba do cesto,


quer dizer que o malefcio motivado por algum que veio com o homem branco ou com
o esprito do Branco-Tshimbali5.

Uma explicao mais vaga a de Delachaux, para quem a oposio gua


constitui a explicao provvel do objeto:

Piroga, tipo de pequena nau de osso... Parece ter um sentido perigoso, o


que no seria nada surpreendente para um povo terrestre que parece temer a gua!1.
1
Bastin, 1961, p. 66.
2
Hambly, 1934, p. 275. N. do T.: Um pequeno barco de madeira indica que algum ser dragado.
3
Tucker, 1940, p. 192. N. do t.: um pequeno modelo de madeira de canoa escavada. O ochimbanda
deve ser consultado para dar o significado de um barco virado, em que os bens e seus possuidor estavam
igualmente perdidos. Que foi isso que fez com que o barco emborcasse (?!).
4
Tucker, 1940, p. 193. N. do T.: A pea pode significar tambm que a pessoa culpada pela morte em
questo tenha talvez vindo do outro lado do rio, do Interior (i. e. de barco).
5
Lima, 1971, pp. 254-255.
157

Curiosamente, a desgraa figurada pela hamba kwanza atribuda ao homem


branco que pode atrapalhar a caa e at mesmo faz-la desparecer. Neste caso, ser
preciso vener-la como todas as mahamba da caa: sacrifcios de mandioca, do sangue,
da carne, feitos sobre uma piroga (hamba) (foto 281) erigida para honrar os ancestrais
caadores. Assim se justifica o termo manjedoura dos ancestrais que Baumann aplica
miniatura kwanza:

Wato (=Kahn): Holztrog, in dem der Jgher fr seine verstorbenen


Jgerahnen Blut. Fleisch und Mehl opfert2.

O sacrifcio aos ancestrais caadores acompanhado da ereo da hamba kwanza,


que ficar no recinto das mahamba por todo o tempo necessrio at que a doena ou a
desgraa desaparea. A pequena piroga (aproximadamente 15 cm de comprimento) ser
escorada por duas estacas bifurcadas, plantadas ao solo3.

2.2.2 - Ngoma, o tambor


(fotos 282-291)

O tambor est presente no cesto divinatrio sob vrias formas que correspondem
aos principais tipos de tambor, mas a rplica mais freqente a do tambor cilndrico
vulgar (fig. 27:a). O tambor-miniatura pois um dos elementos fundamentais dos
tuphele; muito raros so os cestos em que lhe falta. Significa normalmente uma possesso
que se exterioriza por uma doena. Em princpio, o tratamento dessas doenas realizado
sob a responsabilidade exclusiva do mestre de um grupo cultual que tenha o ttulo de
mbuki (curandeiro). So casos de possesso que exigem fazer o fogo e soar os
tambores a fim de que o esprito se manifeste e seja identificado. Os passos para
identificar o esprito so os mesmos que descrevemos no ritual de iniciao do adivinho4.
Mesmo se todas essas possesses se manifestam de modo negativo (doena), no
preciso classific-la completamente como possesses malficas, mesmo se apresentam,
no incio, todas as caractersticas da loucura dos deuses5. Com efeito, quando o esprito
apaziguado pelo ritual, ele torna-se favorvel e nem se trata de exorcis-lo.
Se os autores falam freqentemente do kaphele tambor enquanto elemento
requisitado nas cerimnias de exorcismos, preciso entretanto levar em considerao
que o apaziguamento do corpo no significa necessariamente a extrao do esprito
possessor; tambm do apaziguamento do esprito que falam a maioria dos autores, em
matria desse kaphele:

1
Delachaux, 1946, p. 62.
2
Baumann, 1935, p. 191.
3
Santos, 1960, p. 163; Bastin, 1961, p. 66, nota 2.
4
Ver item 1.3.2
5
Junod, 1936, citado por L. de Heusch, 1971, p. 231.
158

Ngoma grande tambor cilndrico. Ele indica que o cliente deve


recorrer a um medicamento que o curar batida do grande tambor, evento que d lugar
com freqncia a divertimentos e bebedeiras. Esses tambores servem ainda para as
cerimnias de exorcismo de gente possuda por um esprito1.

As manifestaes exteriores que sucedem a todo ritual de iniciao ou


apaziguamento so importantes e os Cokwe explicam com freqncia que o doente (ou
antes o esprito que o possui) quer uma festa. Acender o fogo e tocar os tambores
significa para os Cokwe proceder a um ritual desse tipo. Entre os Ovimbundu, L. Tucker
recolheu aproximadamente a mesma significao:

Ooma (drum): a drum-shaped piece of wood. This means dancing, beer,


and the feast customarily held in connection with the transe ceremony2.

A rplica do tambor seria para Turner o sinal de um ritual de aflio que o


adivinho deve explicitar colocando questes a seu cliente, porque There are ways of
representing every kind of ritual... but there are not tuponya for all kinds of ritual3.
Mas na origem dessa exigncia de um ritual de aflio, h sempre um ancestral
ou, antes, um morto h muito tempo (mufu wa mwaka). Quando o tambor vem borda
do cesto, o adivinho explica: A spirit is coming here which likes a drum to play4.
De acordo com Hauenstein, o ancestral que pede o ritual de apaziguamentoseria
um antigo percussionista de tambor5. Curiosamente, o autor estabelece uma relao de
feitiaria entre o tambor e seu mestre. O que seria verdadeiro sobretudo para os
Ovimbundu:

Apesar de que entre os Tchokwe isto no foi afirmado de maneira


positiva, ns conhecemos o caso dos Ovimbundu em que os percussionistas faziam
morrer um sobrinho uterino cujo esprito fazia ento falar o tambor; esses espritos de
ancestrais de antigos percussionistas eram tambm poderosos e temidos6.

Essa relao direta entre o percussionista de tambor e a feitiaria no existe entre


os Cokwe, mas entre eles corre a histria de Sa Mbalu (Seu Coelho), que teria apanhado
uma moa que colhia masenda larvas comestveis (foto 292) prximo ao rio.
O percussionista de ngoma introduziu a moa no interior do tambor e assim, enquanto ele
tocava, a moa cantava, para estupefao dos habitantes das aldeias por onde passava. As
Mbalu no propriamente um feiticeiro, mas seu comportamento prximo do do
feiticeiro, assim como o castigo que lhe infligido7.

1
Delachaux, 1946, p. 61.
2
Tucker, 1946, p. 189. N. do T.: Ooma (tambor): pea de madeira em forma de tambor. Significa
dana, cerveja, e a festa habitualmente conectada com a cerimnia do transe.
3
Turner, 1961, p. 65. N. do T.: H maneiras de representar cada tipo de ritual... mas no h tuponya
(estatueta) para todos os tipos de ritual.
4
Idem. N. do T.: Um esprito est vindo aqui e gosta que o tambor toque.
5
Hauenstein, 1961, pp. 142-143.
6
Hauenstein, 1961, p. 143.
7
Martins, 1971, pp. 206-213.
159

Se o tambor kaphele se apresenta sobretudo sob a forma de ngoma vulgar, h


ainda outras miniaturas de tambor dentro do cesto: a miniatura de mukupela e a de
cinguvu (fig. 27:b). A significao com freqncia a mesma. Para a maioria dos
adivinhos, o tambor constitui uma s categoria no cesto, qualquer que seja sua
representao. Em compensao, h adivinhos que atribuem aos dois tambores
significaes particulares mais ou menos em relao com sua utilizao tradicional:

Mukupele tambor real, duplo. Mesma significao que o precedente


(ngoma), mas concerne a altos personagens. Prev ou revela as doenas das pessoas da
corte e indica sua provenincia1.

Na verdade, o mukupela era sobretudo o tambor que anunciaria a visita do chefe


de terra (mwanangana) ao chefe da gua (chefe da aldeia)2. Quando se ouvia o
mukupela, sabia-se que o grande mwanangana estava prximo e os escravos (ana wa
cihunga: crianas da aldeia) se evadiam rpido, pois dentre as doaes que o chefe da
aldeia presenteava ao chefe de terra havia sempre um escravo.
No que concerne rplica de cinguvu, ela foi com freqncia confundida com a
pequena piroga que j estudamos; ela tira sua significao (no cesto) do emprego
tradicional do tambor que os Cokwe utilizam principalmente no mugonge e por ocasio
das reunies na aldeia, particularmente para convocar os homens guerra. Em certos
rituais (aqui compreendida a iniciao do adivinho) pode-se recorrer ao tambor cinguvu
para fazer sair as mahamba.
Atualmente, nas grandes festas, renem-se com freqncia trs tambores ngoma:
ngoma ya cina, o maior, ngoma ta mukundu, mdio, e ngoma ya kasumbi, o menor, um
tambor mukupela (ngoma ya mukupela) e o grande tambor cinguvu. Os adivinhos que
consideram ainda hoje as miniaturas desses tambores como tuphele distintos se referem
sobretudo a sua utilizao tradicional, que se pode esquematizar como segue:

Esquema 8

Ritual de Visita de
Ngoma aflio um chefe Mukupela
Possesso Possesso
Dana Dana

Dana
Reunio da aldeia
Sada das maham-
ba

1
Delachaux, 1946, p. 16.
2
Em cada departamento, o mwanangana (chefe de terra) tinha sob sua dependncia todas as aldeias do
territrio, as quais se localizavam sempre prximas de um rio (...)...
160

Cinguvu

2.2.3 - Cinu, o pilo


(fotos 293-298)

O pilo para as mulheres e o cachimbo para os homens so coisas que existem


desde as origens. Com efeito, os primeiros homens, ao descobrir o local onde Deus os
havia criado, exclamaram:

... a impresso do p do homem, ei-la! O local onde colocaram o pilo se


distingue bem, o cachimbo igualmente. Verdadeiramente parece ser aqui que Deus nos
criou. Aqui mesmo!1

O pilo-miniatura (fig. 28) representa tanto o pilo que as mulheres utilizam para
fazer a farinha, principalmente a farinha de mandioca, quanto o pequeno pilo do
curandeiro, do qual se serve para fazer os remdios a administrar a seus clientes. A
maioria desses remdios obtida a partir de folhas ou de razes de plantas modas.
A maior parte dos adivinhos consideram o pequeno pilo enquanto smbolo da
atividade feminina por excelncia: a preparao da farinha. Assim, de acordo com
Baumann, o adivinho estaria diante do caso de uma mulher doente que poderia em brevge
retornar a sua atividade: moer a mandioca no pilo2. Muitos adivinhos cokwe explicam
este smbolo em termos vagos, mas sempre num sentido benfico, tais como boa sade
para as mulheres, boas colheitas de mandioca, etc. Essa significao positiva
reforada ainda pelo fato de que este instrumento utilitrio confeccionado com a
madeira da rvore mukirici, que favorvel caa e ao amor3.
No caso de uma possesso por um esprito de ancestral se manifestando por uma
doena, uma oferenda suplementar de mandioca ser legada s mahamba:

Representao do buraco cavado no qual as mulheres moem seu milho


para transform-lo em farinha. Ligado a um caso de possesso ou de doena, chinu indica
o desejo de um defunto de receber uma oferenda de farinha. o mais corrente para os
Tchokwe. A doente dever ainda fazer um pequeno chinu sobre o qual ela se sentar para
enderear suas preces ao ancestral e no qual ela moer a farinha consagrada4.

Mas o adivinho tambm pode dar suas explicaes a partir do cinu dos remdios
(mboka); neste caso, seu raciocnio se articula em torno dos diferentes modos de preparar
os remdios ou mesmo da qualidade das folhas que preciso achar para obt-los:

1
Hauenstein, 1976, p. 83.
2
Baumann, 1935, p. 170.
3
Ver item 2.4.17.6.
4
Hauenstein, 1961, p. 151.
161

O cliente sarar se procurar um certo medicamento chamado bakob,


que se prepara sempre com o auxlio de um pilo1.

ou ainda do modo pelo qual o doente deve tomar os medicamentos:

A apario do cinu ca kutwa yitumbo, pilo para moer os remdios, borda do


cesto ritual significa, de acordo com o adivinho Namuyanga, que o doente deve tomar
uma poo para sarar2.

2.2.4 - Kakweji, a lua


(fotos 299-301; 343-a)

A rplica da lua est no cesto para a medio do tempo. Os adivinhos cokwe


procuram explicar os eventos, mas em regra geral se limitam a interpretar as relaes
entre diferentes eventos atuais ou recentes; a profecia no seu negcio. Entretanto,
tambm podem prever a evoluo de uma situao presente. por isso que a significao
de kakweji exprime uma medida de tempo que ainda dura e pode continuar. Para a
maioria dos adivinhos, a miniatura da lua (fig. 29) indica que o cliente (doente) ter um
ms (uma estao) para se restabelecer. Com freqncia kakweji significa um perodo de
curta durao. Assim, de acordo com Baumann, o tempo simbolizado por kakweji seria
um perodo breve, pois o doente sarar rpido3.
s vezes os adivinhos consideram este kaphele como medida de tempo, mas sem
precisar qual a durao. Parece que acontece o mesmo entre os adivinhos dos
ovimbundu, de acordo com informaes de Tucker:

...osai: a crescent-shaped piece, meaning the moon and indicating


time4.

Considerado como unidade de tempo, seja no sentido restrito (ms), seja no


sentido largo (estao), kakweji ainda posto em relao com a vida ritual da qual a lua
nova marca o ponto culminante5.
De acordo com Riasendala, kakweji exige que as pessoas da aldeia se preparem
para serem limpas (purificadas) no dia de lua nova; na verdade, as diferentes desgraas

1
Delachaux, 1946, p. 61. Santos d uma indicao mais precisa: a hamba Ngombo demandaria a
preparao de um remdio de isukulu (folhas de mulemba).
2
Bastin, 1961, p. 215.
3
Baumann, 1935, p. 169.
4
Tucker, 1940, p. 195. N. do T.: ...osai: pea em forma de crescente, significando a luae indicando
tempo.
5
A intensa vida ritual ao incio de cada ciclo lunar uma prtica comum, pelo menos na frica Central;
entre os Lubam por exemplo: O dia em que seria a reapario do astro (a lua) devotado aos mortos.
Armados de bastes, estes ltimos interditam o acesso aos campos, onde ningum ousa aventurar-se. Todos
os encantos mgicos so regenerados. Em princpio, nenhum fogo aceso, salvo o do adivinho. Este (ou o
chefe) purifica todos os aldees com gua lustral... (Heusch, 1972, p. 71, de acordo com Theeuws, 1962).
162

eram devidas ao esquecimento, prolongado por vrias luas, das mahamba. O ponto de
vista de Riasendala enfoca unicamente uma prtica tradicional, pelo menos ao nvel da
famlia. Baumann assinala que o chefe de famlia asperge suas mulheres e suas crianas
com pemba por ocasio do primeiro crescente de lua1
Todos os exemplares de kakweji-miniatura observados por ns eram de cabaa ou
de madeira. Mesquitela Lima descreve kakweji como uma espcie de crescente que pode
ser feito de madeira ou metal2 e Delachaux fala s de uma miniatura de ferro:

O crescente de ferro significa que o doente envenenado morrer, de


acordo com a vontade do feiticeiro que o envenenou, ao surgir a lua nova3.

Uma significao particularmente negativa tambm foi dada pelo adivinho


Kakolo, da aldeia de Kambashakala. Kakweji indicaria que o cliente doente morreria aps
duas ou trs luas (meses); esta explicao se aproxima de uma outra, de E. Santos:

... o tahi previne seu cliente de que vai morrer no ms que um feiticeiro
irritado contra ele escolheu4.

Este aspecto negativo da lua deve ser posto num contexto mais vasto que
transborda a adivinhao. Se a maioria dos adivinhos se limita a kakweji como unidade de
tempo, outros explicam este kaphele levando em conta o conjunto do contexto cultural
cokwe, onde a lua um elemento feminino e negativo, por oposio ao sol. Assim, a lua,
por estar assimilada mulher, tambm assimilada argila vermelha (mukundu)5; ela
deve ser evitada pelos jovens da mukanda, que, em compensao saem todas as manhs
ao levantar do sol.
Acordo com uma tradio mais antiga, que remete aos pigmeus, a lua seria
exclusivamente um elemento feminino, mas positivo, venerado enquanto princpio de
fertilidade e refgio dos espritos:

The african pigmies hold their feast of the new moon a little before the
reaining season. The moon... is considered the principle of generation and mother of
fertility. The feast of the new moon is celebrated only by women; that of the sun, by men.
As the moon is both mother and refuge of ghosts the women smear themselves with
clay and vegetable saps, appearing to its greater glory like ghosts, or figurines of moon
light6.

1
Baumann, 1935, p. 103.
2
Lima, 1971, p. 159.
3
Delachaux, 1946, p. 51.
4
Santos, 1960, p. 161.
5
Bastin, 1961, p. 76.
6
Rachewiltz, 1964, p. 76. N. do T.: Os pigmeus africanos fazem sua festa da lua nova um pouco antes da
estao chuvosa. A lua... considerada o princpio da gerao e me da fertilidade. A festa da lua nova
celebrada somente por mulheres; a do sol, por homens. Porque a lua nasce me e refgio dos fantasmas,
as mulheres se lambuzam com barro e seivas vegetais, apresentando-se, para sua glria maior, como
fantasmas, ou como personificao do luar.
163

Os Cokwe no partilham desse ponto de vista, mesmo colocando as mulheres do


lado da lua e os homens do lado do sol. Se se pode encontrar vestgios de prtica em
relao a tal crena, eles se encontram ao mesmo tempo com conotaes diferentes no
que diz respeito feitiaria1.
No nvel da adivinhao, nota-se uma certa dualidade da lua, ora boa ora m,
devido no presena de duas esposas2, mas intuio adequada do adivinho numa
situao concreta.

2.2.5 - Muta, o co do caador


(fotos 302-310)

Na linguagem do adivinho, muta uma estatueta zoomrfica que representa um


esprito de caador sob a forma de seu co de caa (fig. 30). Assim, a palavra muta
significa antes caador e secundariamente co. Por exemplo, na expresso muta nyi
kawa nyi khai o caador, o co e a cabra que designa o rion, muta o caador,
e o co denominado kawa.
Desse modo, no podemos concordar com Hauenstein, que reprova Baumann de
fazer uma pequena confuso ao designar essa rplica como muta:
Baumann, ao chamar a estatueta de muta, faz uma pequena confuso. Apesar da
expresso traduzir tambm a palavra co, ela serve para designar unicamente o pequeno
dolo que os caadores fixam em seus arcos.
Pelo contrrio, Hauenstein que faz uma confuso ao considerar tambw como
um cachorro grande:
O co est com muita freqncia representado na demonologia tchokwe.
Tambm no pode faltar na cesta os ossinhos. Existe o caso clssico de thambwe, um
grande cachorro de 50-60 cm de comprimento por 40 cm de altura, que uma divindade
(hamba) de prosperidade e fecundidade3.
Mas a estatueta em questo (miniatura de co) denominada sempre muta.
Quando o adivinho explica o muta de seu cesto, passa facilmente do co a seu
possessor legendrio. Mas as pessoas no chamavam muta de co vulgar. Mesquitela
Lima notou claramente: Kawa designa o co enquanto animal e muta constitui sua
representao simblica4.
Em relao com esta estatueta, no que concerne a significado e significante, existe
uma outra rplica: tambw (leo), que os autores confundem s vezes, mas que o adivinho
no confunde jamais, porque tambw uma hamba muito mais poderosa que muta. As
duas estatuetas zoomorfas esto relacionadas principalmente com a caa e
secundariamente com a fecundidade.
Em resposta a um caador azarado em sua atividade, Sakungu explica aps
consultar seu ngombo:

1
Ver item 2.4.3.
2
Heusch, 1972, p. 70.
3
Hauenstein, 1961, p. 141.
4
Lima, 1971, pp. 236-237.
164

H uma hamba que te esconde a caa. muta; prepare muta em teu fuzil
(amuleto) e depois (quando for caar) traga-me um pedao de carne, com os cascos como
lembrana para o cesto.
Em um caso semelhante, Hamumona ordenou um tratamento especial para o
caador, seus ajudantes e seu fuzil: todo mundo deveria lavar seus corpos e os
instrumentos de caa com cisukulo um medicamento preparado com as folhas de
musole e mwanga1 esmagadas num pequeno pilo; antes de parit para a caa, todos
deviam de lavar com a infuso desse remdio de caa e oferec-lo s mahamba.
Muta pode ajudar tambm a mulher grvida que est mal do ventre. Neste caso,
ela juntar a miniatura muta em sua cintura a um outro amuleto, normalmente kwanza.
Essa dupla finalidade j havia sido notada por Baumann, que escreveu a propsito:
A estatueta muta favorvel caa; e as mulheres que sonham que um co lhe
morde a perna sero brevemente providas de descendncia2.
No que concerne rplica tambw, preciso, toda vez que se tem sorte, lhe
oferecer o sangue da caa abatida, porque ela simboliza um esprito exigente. Esprito
favorvel ao caador, ele reclama um culto que se assemelha ao de muhangi; nos dois
casos, preciso sempre sacrificar uma poro do animal abatido. No que concerne
fecundidade das mulheres, se aps a venerao de tambw a mulher no obtm
descendncia, intil fazer outras tentativas.
Em sua relao com os ancestrais, o co se tornaria tambm uma hamba; e a
aproximao com tambw (leo) poderia fazer acreditar que os dois animais (co, leo)
podem tornar-se visanguke, isto , formas de transmutao dos espritos. Esta hiptese
aventada por Baumann se verifica em parte no que concerne ao leo e ao leopardo, ambos
considerados como mwanangana (chefe), mas no vale para o co, que no protegido
por nenhuma interdio.
Normalmente a estatueta muta dupla no cesto do adivinho, porque preciso ter
o muta masculino e o muta feminino.

2.2.6 - Kaphukhulu, a ave


(fotos 311-315)

Rplica da ave (fig. 31), muito freqente no cesto, kaphukhulu (palavra exclusiva
do campo da mukanda) um smbolo sempre posto em relao com a fecundidade das
mulheres, ou antes com a falta de fecundidade causada pelo abortamento e pela
esterilidade. Mwafima explicou-nos, a seu modo, a significao de kaphukhulu aps a
consulta que iria fazer para uma mulher:
Voc j viu as aves que comem as sementes nos campos... Kaphukhulu faz o
mesmo. Os gros engolidos pelas aves so como as crianas que esta mulher teve no
ventre mas que no pde dar luz. Kaphukhulu as fez desaparecer todas as vezes...
Para a maioria dos adivinhos, kaphukhulu simboliza um estado de esterilidade
persistente, difcil de tratar, porque toda vez que a mulher fica grvida, aborta. Neste

1
Mwanga, um arbusto tambm chamado de mununu (Paropsia sp).
2
Baumann, 1935, p. 201.
165

caso, a hamba kajia que a ave-miniatura representa deve ser honrada segundo as
determinaes do tahi:
... um kaphukhulu miniatura se encontra entre os objetos do ngombo ya cisuka e
sua apario borda do cesto indica que a mulher em consulta seria estril: ela dever,
para ter filhos, matar uma pomba e carreg-la consigo presa por uma cordinha que
atravessa o corpo da ave na altura das asas, at engravidar. Rplicas de kajia tambm se
encontram em nmero de pequenos amuletos de fecundidade, com freqncia presos
cintura1.
A pomba em questo aqui o animal indicado para celebrar hamba kajia quando
o adivinho prope a realizao de um ritual para remediar a esterilidade de uma mulher.
Aps o ritual, no apenas a mulher levar uma miniatura na cintura como precisar ainda
erigir uma estatueta de kaphukhulu prximo casa e oferecer-lhe mandioca de tempos em
tempos.
A significao negativa deste kaphele pode ser facilmente revertida se kaphukhulu
estiver acompanhado de um dos seguintes tuphele (alis, relativos fecundidade das
mulheres): cisola, cikunza, muta, citanga; neste caso, a ave kaphukhulu se tornar um
smbolo positivo de fecundidade.
Baumann explica desta maneira a estatueta kazila do cesto: Die Frau bekommt
Kinder2.
s vezes, embora muito raramente, se atribui ainda a este kaphele uma
significao de um esprito ancestral caador de aves. este defunto que torna pouco
frutferas as caadas de quem veio (em seguida) consultar o adivinho. porque ele
dever... fizar uma pequena representao de ave diante de sua cabana3.

2.2.7 - Kakone, o corao dobrado


(fotos 316-319; 336-b)

Nenhuma dificuldade em identificar este kaphele (fig. 30), bem como sua
significao imediata. No que concerne planta da qual ele provm, a maioria dos
adivinhos consideram que kakone feito com auxlio de um ramo de muvuma4 ou de
musombo5, ao passo que para outros qualquer planta serve para confeccionar este
smbolo.
Quanto a sua significao, todos os adivinhos consultados so unnimes: kakone
reflete toda espcie de problema que surge numa aldeia quando aparece algum cujo
corao est dobrado, isto , torcido em excesso, seja por ser uma pessoa que
provoca tumultos (Mwafima) ou por ser algum que no fala bem com os seus,
mesmo com os idosos (Sakungu), ou muito simplesmente por ser algum difcil demais
de conviver que tem o corao torcido (Riasendala), ou cheio de raiva (Hamumona).
Todos estes pontos de vista concordam com outras informaes recolhidas h muito

1
Bastin, 1961, p. 192.
2
Baumann, 1935, p. 169.
3
Hauenstein, 1961, pp. 141-142.
4
Mitragyne stipulosa Kuntze.
5
Planta muito importante na vida ritual mas de informaes insuficientes.
166

tempo em matria do mesmo kaphele. De acordo com Baumann, por exemplo, a maldade
denunciada por kakone seria a traio de um amigo:
Kakone: zwei gekreutzen Hlzchen. Bedeutet Boss im Herzen, d. h., die
verrtersche Tat eines Freundes1.
M. L. Bastin, estudando este motivo decorativo da arte cokwe, detectou
igualmente a existncia de kakone como smbolo do cesto:
... este n curvado (kakone) evocado sob o mesmo nome por um pequeno
objeto que faz parte do contedo do cesto do adivinho ngombo ya cisuka. Kakone
simboliza uma pessoa cujo corao est dobrado e que no fala bem. A apario deste
objeto em evidncia borda do cesto significa: um homem mau nas redondezas ameaa o
doente2.
s vezes v-se nesta miniatura o ngombo (figura 32-b) da mukanda: pea de
madceira utilizada como suporte do pnis nos primeiros dias aps a operao. A maioria
dos adivinhos consideram essa explicao uma inovao abusiva fornecida por adivinhos
sem experincia.

2.2.8 - Musau, o travesseiro


(fotos 320-321)

O travesseiro-miniatura (fig. 33) feito de madeira ou de cabaa. um elemento


que raramente falta no cesto do adivinho. Com efeito, o travesseiro permite interpretar os
sonhos dos clientes, elemento muitas vezes importante no percurso do adivinho. A
apario do musau pe em questo a qualidade dos sonhos do consultante. preciso
saber se ele sonha bem (sonhos favorveis: sonhar kulya, sonhar com animais brancos,
sonhar pemba) ou se sonha mal (casas abandonadas, sonhar com buracos
sepulturas sonhar mukundu, ou sonhar com reunies de grupos de pessoas junto ao
fogo funerais etc). Sakungu explica:
Quando se sonha mal durante a noite, pela manh se comea a tremer, a ter
frio: se est doente. Ento, vai-se logo em seguida procurar o adivinho para saber se a
doena vem de Nzambi (isto , se uma doena normal) ou se, pelo contrrio, ela vem
de um esprito. O adivinho quer saber, quando v o musau no cesto, se o doente sonhou
com um buraco, um morto ou se antes (da doena) ele andou sobre a sepultura de algum
que estaria morto mal, isto , algum que foi vtima seja de lepra, de veneno ou de
epilepsia.
Mas existe ainda outras informaes para elucidar um mau sonho, pressgio de
doena:
... s vezes o mbuki tira a doena do corpo (pela tcnica das incises) e mete-a
numa rvore qualquer; se uma pessoa passa por esse local, ela atrair a doena, que se
manifestar por um sono agitado durante a noite e tremedeiras pela manh (Hamumona).
Mwafima insiste no fato de que todos os espritos visitam o homem durante a
noite: os maus, por serem maus, e os espritos favorveis tambm, quando so

1
Baumann, 1935, p. 170.
2
Bastin, 1961, p. 107.
167

esquecidos; essa incurso dos espritos durante a noite encontra-se nas explicaes de
Baumann sobre a miniatura do travesseiro:
... musawa: Nackensttze. Dem Schlafenden droht ein nchlichen berfall1
Ou nas de Delachaux:
musawa: almofada (travesseiro). Indica o sono; a doena entrou durante o
sono. Intil que se busque a causa na malevolncia das redondezas; deve-se acusar um
mau esprito ou um fantasma2.
Mas o sono revela tambm as intenes dos vivos, que preciso levar em
considerao. Riasendala explica pelo musau as ms intenes de um sobrinho com
relao a seu tio, o que coincide justamente com a informao recolhida por M. L. Bastin:
... pea simblica (rplica miniatura) do ngombo ya cisuka, significando que o
chefe, a quem a pessoa implicada queria fazer mal, tomou conscincia ao dormir da
existncia das manobras malevolentes e, portanto, a causa de sua doena; para sarar,
precisar confessar sua culpa ao chefe e lhe assegurar suas boas intees da por diante a
seu repeito3.
Os Cokwe consideram o musau (foto 322) unicamente como um objeto utilitrio,
mas admitem que antigamente (para os Lunda), era tambm um smbolo de poder. Um
verdadeiro chefe (mwanangana) possua normalmente um travesseiro humano (crnio) de
que se pode encontrar alguns vestgios na literatura oral. Em um caso completamente
excepcional, tal privilgio seria dispensado tambm mulher principal (namwari) do
chefe4. Parece que esta prtica manifesta no somente o poder real do mwanangana, mas
tambm seu poder oculto sobre as intenes de seus sditos.

2.2.9 - Uta, a arma do feiticeiro


(fotos 323-329)

Alm da miniatura uta (fuzil) (fig. 34), pode-se encontrar a rplica do arco
uta wa zwnga , mais rara no cesto mas cuja significao bastante prxima da
primeira.
Na traduo dos Cokwe, o fuzil representa com freqncia o preo de um escravo.
O adivinho se inspira com freqncia desta traduo para ordenar a seu cliente que mande
um fuzil famlia de sua mulher que veio a falecer. O pagamento famlia da esposa
defunta deve ser feito em vrias prestaes, onde a principal um fuzil ou um boi5. Com
uma pequena variante (o fuzil enquanto objeto furtado), M. L. Bastin d a mesma
explicao:
No cesto ngombo ya cisuka, uma rplica minscula de fuzil acha-se sob o nome
uta wa mbanze. A significao simblica que lhe prestada indica: ou o consultante
guardou um fuzil que no lhe pertencia, e o mal do qual se queixa no ter fim at que ele

1
Baumann, 1935, p. 169.
2
Delachaux, 1946, p. 61.
3
Bastin, 1961, p. 251.
4
Ver Barbosa, 1973a , p. 50.
5
Ver item 2.2.20.
168

restitua a arma a seu proprietrio, ou o doente no indenizou a famlia de sua esposa


quando da morte da mesma, o que dever fazer para sarar1.
A miniatura pode tambm ser uma ameaa no que concerne caa ou guerra2,
mas sobretudo a ameaa vinda de um feiticeiro, que a utilizaria enquanto uta wa kalikoza,
objeto misterioso que pode atingir a vtima como a estrela que cai (estrela cadente) 3.
Neste caso, a miniatura do fuzil (ou do arco) torna-se um instrumento de feitiaria muito
perigoso para a virilidade:
Uma mulher descontente com seu marido quer deix-lo e retornar para sua
aldeia; ento ela prepara uta wa zenga contra seu marido; durante a noite, ela busca um
osso (tbia) numa sepultura; sobre o osso, ela depositar o p e a poo; quando ela
colocar no fogo, haver uma exploso e a fumaa atingir seu antigo marido. Ele j tem
uma outra mulher, mas se d conta que se tornou impotente. Ele vai procurar o adivinho,
que lhe explica: sua mulher partiu, e estava irritada com voc; por isso, ela preparou uma
uta wa zenga antes de ir. Agora, v procurar o mbuki para fazer os medicamentos
necessrios a sua cura. O curandeiro faz tambm uma pequena uta wa zenga com uma
cisola que o homem levar cintura; no dia seguinte, ao anoitecer, ele ter de volta sua
virilidade (Mwafima).
Segundo as explicaes do adivinho, quando a mulher no acha o osso, poder
tambm fazer a feitiaria com um chifre de khai ou ngulungu4, mas, neste caso, a
feitiaria ser menos eficaz.
s vezes, a miniatura explicada exclusivamente por referncia caa:
... cahuta (fuzil-miniatura) um ancestral caador est descontente e pede o
sacrifcio de um animal qualquer5; ou ainda: ... um defunto deseja uma oferenda de
caa6.
Este aspecto sublinhado por Mesquitela Lima, que v no termo uta (plural muta)
a mesma raiz que em muta, hamba da caa7. Essa relao, que no alis evidente,
acentua as significaes em relao a caa; em todo caso, trata-se de uma interpretao
bastante rasa.

2.2.10 - Temo, a enxada


(fotos 330-332)

A enxada-miniatura do cesto (fig. 36) tira sua significao seja da enxada


utilizada pelas mulheres para cultivar o campo (foto 333), seja da enxada ritual utilizada
em certas danas exclusivamente femininas, ou ainda da enxada de feitiaria (um dos
instrumentos raros e ocultos do feiticeiro). Em muitos cestos, a miniatura no passa de
um cabo, o que poderia, primeira vista, significar o reforo da significao ritual,
remetendo o cliente hamba muhinyiwa temo (cabo de enxada). Mas a maioria dos
1
Bastin, 1961, p. 34, nota 6.
2
Baumann, 1935, p. 170.
3
Idem.
4
Ngulungu, gazela (Tragelaphus scriptus).
5
Milheiros, 1949, p. 32.
6
Hauenstein, 1961, p. 149.
7
Lima, 1971, p. 52, nota 3.
169

adivinhos contesta esta explicao; a presena da enxada reduzida a seu cabo parece antes
uma conseqncia da miniaturizao do objeto.
Baseando-se nas informaes de Mesquitela Lima, poderia-se mesmo admitir que
a enxada (ou o cabo, somente), utilizada originalmente como instrumento divinatrio,
ficou no cesto sob sua forma miniatura enquanto hamba designada temo lya masolo1. Seja
como for, a significao mais corrente deste objeto diz respeito mulher que cultiva o
campo:
... minha av trabalhou muito; ela preparou muita terra para as semeaduras. Com
o que o campo produziu, ela comprou outras coisas; mas ela morre e tudo isso dado a
mim; ento os outros ficam com inveja de toda a riqueza sada da enxada de minha av.
Ento o que preciso fazer? Eu devo dividir tudo com os outros, seno no estar certo.
Eis o papel da enxada no cesto (Sakungu).
Uma outra verso dada por Baumann; esta estatueta condenaria uma mulher
negligente nos trabalhos do campo:
Temo: Feldhacke. Einer Frau stsst bei der feldarbeit etwas zu2.
E do mesmo modo E. Santos:
... que a mulher do consultante prepare semeaduras mais abundantes3.
O testemunho de Hambly no que diz respeito aos Ovimbundu apresenta uma
significao negativa devido interveno do esprito de uma mulher laboriosa:
The handle of a hoe is the symbol of cultivation. The appearance of the miniature
handle at the top of the basket implies that the sprit of a woman who was rich in corn is
troubling the community4.
No sentido desta exigncia ritual dos ancestrais, se situa tambm a informao
recolhida por M. L. Bastin conforme a qual o mal dever ser curado pelo mbuki com
uma enxada ritual; ou ainda melhor se o doente () acusado de ter furtado mandioca, (se)
reconhecer sua falta, ser curado5.
Um terceiro aspecto, de preferncia raro, da significao deste smbolo divinatrio
est em relao com a feitiaria. Os adivinhos cokwe falam disso muito raramente; em
compensao, para os Ndembu o cabo da enxada ou do machado, o indcio freqente de
uma atividade de feitiaria, seja no plano do parentesco:

It (the axe-handle) represents a witchs familiar or zombie, called


kahwehwu, the animated corpse of her bewitched husband, which kills at her with an axe-
handle6.

Ou num sentido mais geral, muito freqente alis nessa etnia, ou muito simplesmente em
relao aos mortos:

1
Lima, 1971, p. 270.
2
Baumann, 1935, p. 169.
3
Santos, 1960, p. 68.
4
Hambly, 1974, p. 276. N. do T.: O cabo de uma enxada o smbolo do cultivo. O apaprecimento do
cabo-miniatura borda do cesto significa que o esprito de uma mulher que era rica em milho est
atrapalhando a comunidade.
5
Bastin, 1961, p. 36, nota 1.
6
Turner, 1961, p. 69. N. do T.: Ele (o cabo) representa um feiticeiro familiar ou zombie, chamado
kahwehwu, o cadver animado de seu marido enfeitiado, que foi morto por ela com um cabo.
170

... it (the axe-handle) may stand for the grave (kalunga), for when a man
has died, the first thing to do is to bring a hoe with its handle (muhinyi) and dig a grave
with it; it may also mean raising the dead, for diviners believe that after burial witches
go privately to the grave and thre raise up a hoe-handle. Then they strike; they take him
secretly to be cut up into portions of meat1.

A literatura oral ilustra em vrias pequenas anedotas a relao enxada-mulher; os


Cokwe, s vezes caadores e agricultores, valorizam sobretudo a caa e consideram a
agricultura como trabalho das mulheres. Mas, na origem, as duas atividades provieram de
povos diferentes, porque a enxada chegou com o perito do leste (ferreiro) enquanto que
a caa veio com o perito do oeste2.

2.2.11 - Mwanze, o fole


(fotos 334-336)

A miniatura mwanze do cesto do adivinho (fig. 36) passou despercebida pela


maioria dos autores que examinaram essa tcnica divinatria. uma rplica do fole tal
qual os ferreiros a utilizam ainda nos dias de hoje. (fotos 337-340). Sakungu explica a
importncia deste instrumento justificando assim sua presena no cesto:

Meu tio tem um mwanze com o qual ele faz facas, fuzis, enxadas, etc.,
que vende a todo mundo.
s vezes, pessoas que vm de longe chegam e pedem: ns queremos cinco
enxadas e cinco machados; para pagar, ns deixamos uma pessoa3. Quando meu tio
morreu, o mwanze ficou pra mim; ele (o mwanze) que produziu todos os nossos bens;
antes de morrer, meu pai havia lembrado: oh! meus filhos, tudo isso que vocs tm, todos
esses escravos foram ganhados com o mwanze; por isso, se eu morro, vocs no podem
abandon-lo.

As exortaes de um ancestral para que sua atividade seja continuada so


freqentes entre os Cokwe como em outras etnias de Angola.
O que bastante curioso, que o mwanze designa tambm as causas de algumas
doenas pulmonares, como a tuberculose ou a pneumonia:

1
Idem. N. do T.: ... ele (o cabo) pode ficar na sepultura (kalunga), quando um homem morre, a primeira
coisa a fazer trazer uma enxada com seu cabo (muhinyi) e cavar uma sepultura com ela; tambm pode
significar levantando o morto, porque os aidivinhos acreditam que aps o sepultamento os feiticeiros vo
sorrateiramente sepultura e l plantam um cabo de enxada. Ento acontece; e eles levam-no secretamente
para ser cortado em pores de carne.
2
Barbosa, 1975, p. 135.
3
Pessoa deixada como garantia. Prtica corrente entre os Cokwe, conhecida sob o nome de thombo, e que
no tem nada a ver com a escravido; igualmente, a pessoa que deve trabalhar durante um certo tempo para
uma outra, a fim de pagar uma dvida, considerada da mesma maneira como thombo; ela reintegrar
depois sua categoria social sem nada perder de sua dignidade.
171

Essa estatueta representa uma praga lanada contra a pessoa para quem se
veio consultar o adivinho. Essa praga provoca uma pneumonia ou a tuberculose. Segundo
a expresso indgena, seu corao funciona como um fole de ferreiro1.

Alm dos remdioa preparados pelo curandeiro, o doente, cujo pai era ferreiro,
deve fazer hamba mwanze e us-la no corao ou no fuzil2.
A forma flica de mwanze no parece exercer nenhum papel na significao
simblica ao nvel do cesto. No que concerne manipulao do ferro, o fole exerce um
papel eminentemente simblico3.

2.2.12 - Lukanu, o bracelete


(fotos 341; 366-d)

O bracelete real um elemento muito importante na cultura lunda. Smbolo do


poder, ele que assegura a continuidade dos reinos. Os Cokwe, mesmo sem desenvolver
um tipo de poder centralizado como os Lunda, sempre conservaram como os Lunda esse
smbolo do poder no nvel dos chefes de terra e, com freqncia, no nvel dos chefes de
aldeia. pelo intermdio do lukanu que o novo chefe estabelecido em suas funes; o
smbolo evoca o exerccio do poder e os problemas que a ele se relacionam (fig. 37, a, b).
Nada de espantoso que esta pea se encontre em todos os cestos divinatrios de adivinho.
Quando aparece borda do cesto, o pequeno bracelete significa que h um problema
(tenso) entre o consultante e seu sucessor.
Esta resposta supes uma consulta do prprio chefe e revela uma tenso, alis
uma freqente nas sociedades matrilineares (como o caso da sociedade cokwe), entre o
chefe de uma aldeia e seu sobrinho, este ltimo convocado a lhe substituir. A oposio
tio/sobrinho faz parte da prpria estrutura da sociedade, porque os servios de um homem
jovem so sempre reinvidicados s vezes por seu pai e pelo irmo de sua me. Os Cokwe
tm tentado empregar todo um conjunto de mecanismos vizando reduzir as
inconvenincias de uma crise sempre latente; ainda nos dias de hoje, a partilha dos filhos
entre o pai e o tio maternal tem uma soluo bastante freqente. O sobrinho teme sempre
a clera de seu tio, no somente quando este ltimo o inicia aos segredos do poder
(iniciao alis suspeita de feitiaria), mas sobretudo quando ele o substitui efetivamente
no exerccio real do poder, isto , um certo tempo aps sua morte. por isso que o
bracelete do cesto pode tambm denunciar os sentimento sde clera do tio substitudo:
A doena vem de um ancestral (kuku) ao qual o doente sucedeu no poder4.
A demora, prolongada por tempo demais, para intronizar o novo chefe, sto ,
honrar o lukanu que lhe transmite o poder, torna-se tambm um perigo para a aldeia; com

1
Hauenstein, 1961, p. 157.
2
Santos, 1960, p. 167.
3
Alis, a forma antropomorfa do forno (corpo de mulher) sublinha o aspecto deste ato eminentemente
simblico que a fundio do ferro. Ver Redinha 1974, pp. 142-156; tambm Estermann, 1936, pp. 109-
116.
4
Santos, 1962, p. 164.
172

efeito, se uma epidemia se declara ou se os caadores no matam mais caa aps a morte
de um mwanangana (chefe de terra), isto indica que o lukanu no foi honrado1.
Um caador azarado que se apresenta ao adivinho Sakungu recebe a seguinte
reposta:
Voc deve recuperar o lukanu; o esprito do irmo de sua av que te impede de
caar. Ele est sempre do lado de fora; voc o far voltar para a aldeia; ento, voc matar
animais e derramar o snague sobre o seu lukanu (Sakungu).
Sakungu explicou por qu esse caador azarado no conseguiu, por quase um ano,
substituir efetivamente o chefe defunto; ele no tinha encontrado uma esposa (um
celibatrio no pode se tornar chefe).
Por causa que o novo chefe no foi intronizado, o esprito do antigo (o tio) ficou
encerrado na mata em um cupinzeiro, o que no lhe agrada. O lukanu tambm est
escondido na mata numa rvore, ou ainda na aldeia na casa de uma criana que ainda no
tem acesso vida social, isto , de uma criana impbera.
O lukanu significa tambm tudo o que est em relao com o chefe, e em
particular ele prprio e aqueles que devem substitulo: It (lukanu) stands for
chieftainchips2, respondeu um adivinho angolan o a Turner. E seu informador explicou:
Lukanu represents chieftainchip (wanta). If a chief dies, his people want to know the
cause and go to a diviner. The Royal Bracelet comes up and he says: You have come to
divine for a chief, or for a chiefs brother or for his son, or for a member of his lineage
(ivumu)3.
Entre os Ovimbundu, tambm se encontra o bracelete apesar das diferenas de
contedo do cesto em relao aos Cokwe. Ele significa no importa qual problema
concernindo aldeia inteira e em particular doena do chefe; a relao metafrica entre
o bracelete em torno do punho do chefe e a paliada em torno da aldeia marcaria a origem
dessa significao: These (metal rings) represent the village stockade, and mean that the
affair inquired aboud pertains to the whole village...4.
O informador Mwacimbau explica neste termos o papel da miniatura lukanu no
cesto divinatrio: Um homem muito importante, como Mwacisenga (o mais alto
representanto da chefiagem cokwe) morreu; eu, que devo substitu-lo, no presto ateno
a seu lukanu; ento seu esprito vem em meu corpo e sofro; procuro o adivinho e este me
explica o que devo fazer quando ele v se apresentar o lukanu: preciso lukanu (cumprir
o ritual de intronizao); voc levar um torro de cupinzeiro (cifika) que colocar diante
de sua casa e sobre o qual voc espalhar pemba; em seguida, voc partir para a mata
para buscar uma cabra; quando mat-lo, derramar seu sangue sobre o lukanu/ Eu fao
tudo isso. Ento eu retorno a minh aldeia e digo: eis tudo o que fiz para fazer o lukanu;
ser que essa doena vem do esprito do meu tio? Muito bem. Se por isso, ento eu
devo sarar; se uma outra coisa, eu no posso sarar. Ento eu fao abrir o bicho abatido,
1
Bastin, 1961, p. 66.
2
N. do T.: Ele (lukanu) pertence liderana.
3
Turner, 1961, p. 66. N. do T.:Lukanu representa a liderana (wanta). Se um chefe morre, seu povo
quer saber a causa e vai a um adivinho. O Bracelete Real vem borda e ele diz: Vocs vieram para
adivinhar para um chefe, ou para um irmo do chefe ou para seu filho, ou para um membro de sua
linhagem.
4
N. do T.: Eles (anis de metal) representam a paliada da aldeia, e significam que o negcio em questo
pertence a toda a aldeia....
173

tiro o corao e o fgado, que dou a minha me para prepar-los; ela faz fogo novo
(citewa: fogo por frico) que no pode provir de um antigo foco. Ento eu como e fao
amor com minha mulher. No dia seguinte eu ponho lukanu em meu brao, pego pemba
que passo sobre meu corao, meus filhos e toda a famlia. Eu direi diante de todo mundo
reunido: vejam, sou eu Mwacimbau, sou eu que tomo o lugar de meu tio Mwacisenga (o
novo chefe toma tambm o nome de seu predecessor)! Os tambores comeam a soar e a
grande festa para todo mundo.
Se poderia resumir assim as significaes de lukanu:
Todos os problemas em relao ao exerccio do poder, a sucesso, o respeito
(culto) aos defuntos bem como s inconvenincias causadas por uma investidura tardia
demais, so abordados pelo adivinho no plano de levar em considerao
permanentemente os costumes tradicionais.

Intronizao Aldeia quente: fogo


Casamento do sucessor: amor
Morte do chefe da aldeia
Doena do chefe Lukanu
Infelicidade do sucessor o bracelete Reunio da aldeia
Fazer voltar o lukanu

Chefe da aldeia inexistente Resfriamento da aldeia


Medo de vida sexual
Esquema 9 (para o guardio do lukanu)
Celibato do sucessor

O papel do adivinho aparece s vezes em sua grandeza e ambigidade. O adivinho


pode influenciar de modo decisivo o futuro do grupo por um controle indireto do
exerccio do poder. Seria alis muito interessante de analisar a relao chefe-adivinho. A
maioria dos adivinhos com os quais mantivemos contato exerceram ou exercem ainda o
papel de chefe da aldeia.
Os dois plos do campo semntico (intronizao/no-intronizao) mostram que
lukanu, ambguo por natureza (originalmente, era supostamente fabricado de nervos
humanos entrelaados de rgos genitais), exerce um papel decisivo nas relaes entre a
mata e a aldeia; se o chefe est com seu povo, a caa estar com os caadores; se, pelo
contrrio, a aldeia est fria (ausncia do lukanu), os animais desaparecero na floresta;
com efeito, o que reaproxima a aldeia (lukanu) pode distanciar os animais (lukanu na
mata); o lukanu significa reaproximao para os homens, disperso e desordem (anti-
poder ou poder negativo) para os bichos.

Poder +

Desordem na natureza
Cultura / ordem cultural
174

Mata Aldeia

Natureza / ordem natural Desordem cultural

Poder - (anti-poder)

Esquema 10

2.2.13 - Njia, o caminho


(fotos 342; 343-b)

Rplica relativamente pouco freqente no cesto e que por vezes se confunde com
a miniatura kwanza (um pequeno pedao de madeira cruzado pode facilmente dar a idia
da piroga-miniatura) (fig 38). Em princpio, a viagem uma situao de perigo, e o
adivinho explora as peripcias possveis para explicar a desgraa advinda a seu cliente
por ocasio de uma viagem. Nos casos masi freqentes preciso curar uma doena
atrada devido viagem. Mas outros imprevistos podem acontecer tambm:
Njia means that one of the persons in ngombu went away1; ou outros acidentes
que podem acontecer:
This is something that is found on the path along which a person is travelling.
That person may have met death, or perhaps been bitten by a dog or a snake... It also
means something that happened between two places. It is a symbol (chinjikijilu) of
something happenin2.
s vezes o adivinho v na viagem a ocasio para o nganga se introduzir s voltas
da pessoa que ele quer fazer desaparecer. Neste caso, o adivinho explicar que seu cliente
foi envenenado durante sua ltima viagem.
Uma significao perticularmente original apresentada pelo menos por dois
adivinhos a que estabelece a relao entre um descontente em um grupo de parentesco
em viagem:
Njia explica que voc, por exemplo, voc partiu com meus meninos
(dependentes de um homem, em particular as crianas e os escravos) e meu irmo; voc
obteve muitas coisas, fez fortuna (upite) e agora voc chega e no divide comigo. para
explicar tudo isso que njia vir borda do cesto (Hamumona).

2.2.14 - Mukhonji, a flecha de madeira


(fotos 344-348)

1
Turner, 1961, p. 56. N. do T.: Njia significa que uma das pessoas em ngombu foi embora.
2
Idem. N. do t.: Alguma coisa encontrada no percurso ao longo do qual uma pessoa est viajando. Essa
pessoa pode ter encontrado a morte, ou talvez ter sido mordida por um co ou uma cobra... Tambm
significa alguma coisa que aconteceu entre dois lugares. um smbolo (chinjikijilu) de alguma coisa
acontecida.
175

Mukhonji uma flecha com ponta de madeira (fig. 39, a, b). Ela utilizada
principalmente pelos meninos para matar passarinho. Os Cokwe dizem que o mukhonji
fabricado unicamente quando no se pode fazer a flecha de ferro (mwivi). Talvez seja
verdade, mas de acordo com o adivinho Sakungu a flecha de madeira tem a prioridade
sobre todas as outras flechas. por uma anedota que ele explica a razo de mukhonji se
encontrar no cesto do adivinho:
Havia uma aldeia, e nessa aldeia havia um rio, rvores e tambm um njimba
(tocador de instrumentos musicais). Mas um dia as pessoas da aldeia desapareceram.
Num dia em que njimba tocava para todo mundo prximo ao rio, o cigandangari1
apareceu e comeu todas as pessoas. Uma me conta esta histria a seu filho, que decide se
vingar do monstro cigandangari. O menino preparou seu arco (uta wa zenga) e partiu
com sua me para o local da antiga aldeia, onde j crescia o mato. A me comeou a tocar
njimba2 enquanto que ele se escondia atrs do mato. O som do instrumento se espalhou
na antiga aldeia:
ba-ba-njimba-njimba--
O cingandangari escutou a msica e se ps a caminho da aldeia. Quando ele
passou diante do jovem caador, este lhe feriu violentamente o peito com um mukhonji, e
com seu cassetete o espancou at o fim. O menino pediu a sua me uma panela, na qual
colocou pequenos pedaos que ele cortou do monstro cigandangari: unhas, cabelos,
pequenos pedaos das orelha, dos dedos, dos olhos, etc. Acendeu o fogo e eis que as
pessoas desaparecidas da aldeia comearam a aparecer: primeiro seu pai e seu tio, em
seguida sua av e depois todas as pessoas da aldeia. Depois disso, todo mundo
reconheceu que mukhonji a flecha masi importante e no pode faltar no ngombo.
O modo pelo qual o jovem caador fez as pessoas desaparecidas voltar vida
supe um comportamento de feiticeiro (comedor de vidas) da parte do monstro. Alis, os
Cokwe tm a mesma preocupao (cortar em pequenos pedaos) supresso de um
feiticeiro.
Mas, num contexto semelhante, em que h tambm o rio e o jovem caador,
mukhonji pode denunciar tambm um feiticeiro qualquer:
... uma ponta de flecha mukhonji miniatura assinala a sua apario o local em que
o morto por exemplo uma criana que voltava do ribeiro teria sido atingida na
testa pela flecha mukhonji do feiticeiro3.
De acordo com E. Santos, esta miniatura seria utilizada tambm enquanto amuleto
contra males do pescoo4, ao passo que para Baumann ela explicaria, antes, a intriga ou a
traio de um amigo5; as duas verses no foram confirmadas por nenhum de nossos
informantes.

2.2.15 - Mwivi, a ponta de flecha

1
Cingandangari, o monstro ano com cabea gigante.
2
Njimba significa tanto um tocador de um instrumento musical quanto um instrumento do tipo xilofone,
como neste caso.
3
Bastin, 1961, p. 173, nota 2.
4
Santos, 1960, p. 163.
5
Baumann, 1935, p. 150.
176

(fotos 349-350)

AS numerosas formas de pontas de flechas de ferro (fig. 40) testemunham a


maestria dos Cokwe na arte da caa. Enquanto que as flechas de madeira so utilizadas
apenas para caar macacos (suna)1 e aves (khonji), as pontas de flecha de ferro so
mltiplas e apresentam uma certa linha evolutiva a partir de uma forma muito simples
(mungamba), espcie de pequena lana, que foi desenvolvida tanto no sentido de uma
complicao crescente quanto em linhas paralelas de desenvolvimento em razo de
necessidades funcionais e tambm da representao artstica da forma2.
A miniatura da ponta de flecha de ferro significa sempre um ataque de feitiaria
ou pelo menos uma m inteno com respeito vida de algum:
Algum lanou contra voc uma flecha para lhe enfeitiar (Mwafima), o que
significa com freqncia um tipo de feitiaria no plano do parentesco:
Um ferro de flecha se encontra no cesto divinatrio ngombo ya cisuka onde esse
objeto simblico anuncia o pressgio de que um membro da famlia do consultante pediu
a algum para mat-lo3.
Uma variante de ponta de flecha imitando o machado, e que se designa por njimba
wa uta (machado de arco) significaria, de acordo com E. Santos, que se exige fazer o altar
(citamba) para venerar uma hamba4.
Por muito prxima da significao de mwivi, preciso assinalar as miniaturas de
machados kasau, cimbuiya5 e do machado ekuva dos Ovimbundu6.

2.2.16 - Mphoko, a faca do poder


(fotos 351-354)

A miniatura da faca (fig. 41) que os adivinhos explicam como miniatura da tewla
(faca da circunciso) no cesto se chama mphoko ya mululika (faca do poder) e significa,
antes de tudo, o exerccio correto do poder que , alis, uma das tarefas fundamentais de
um chefe de aldeia. Este aqui deve se reunir com os ancies (makulwana) na cota para
resolver os problemas depois de longos discursos sustentados sobretudo pelo especialista
da discusso e da casustica tradicional (nganji).
Mas se a discusso pode ser longa, a questo deve igualmente ser resolvida,
porque a desgraa e a m sorte se abatem sobre a aldeia:
Dentre os objetos simblicos do ngombo ya cisuka figura uma faca miniatura
chamada poko ya mululika que, quando aparece borda do cesto do adivinho, significa

1
De acordo com nosso informador Mwacimbau, o caador que quer matar macacos no pode utilizar um
mwivi; o macaco saberia arranc-la e atir-la contra o caador; a nica flecha utilizvel neste caso suna;
porque, farpada, ela penetra e o macaco no consegue tir-la.
2
Schmidt-Wrenger, 1975, pp. 732-733.
3
Bastin, 1961, p. 210.
4
Santos, 1960, p. 159.
5
Lima, 1971, p. 45, nota 1.
6
Hambly, 1934, p. 277.
177

que responsabilidade de um litgio resolv-la para que o doente sare ou que um caador
encontre a caa1.
A rplica da faca pode denunciar tambm a incompetncia no exerccio do poder,
de acordo com as explicaes do adivinho Sakungu:
Um chefe de aldeia no sabe falar (tomar decises em pblico) nem escutar as
questes que as pessoas lhe submetem. Em conseqncia, h desentendimentos, conflitos
e at mesmo lutas. Houve quem morreu, outros que deixaram a aldeia. Todos comeam a
detestar seu chefe porque ele a causa de tudo isso; logo ele ser enfeitiado. Mais tarde
seu esprito pode subir cabea de um homem responsvel que o havia acusado. Esse
homem vai procurar o adivinho que lhe explicar porqu o esprito do antigo chefe da
aldeia o incomoda.
O adivinho deve enviar seu cliente ao curandeiro, que far um ritual de
apaziguamento. Por isso, explica Sakungu, mphoko ya malulika a faca do
apaziguamento. O mesmo tratamento indicado para algum que muda bruscamente seu
comportamento:
Um menino vai muito bem. Conversa com as pessoas da aldeia, pacfico;
quando mata um animal, ele divide com os outros, etc... Mas eis que um dia ele no
guarda mais repeito aos outros, no divide mais seu dinheiro nem a carne; ele despreza
todo mundo. Procura-se o adivinho: preciso fazer mphoko ya mululika para restituir seu
esprito direito (Mwacimbau).
Esse comportamento duplo tambm denunciado pelo adivinho entre os
Ovimbundu, para quem a faca significa que:
The person you are asking about is two-faced; he speaks good words, but he also
speaks bad ones. Keep on good terms with him, but beware of him. Some day he may
bewitch you, or put poison in your food2.

2.2.17 - Majiko, o fogareiro


(fotos 355; 356-A)

A pea miniatura que o adivinho exibe em seu cesto na realidade uma rplica
do citewa, o acende-fogo tradicional, e raramente falta no cesto divinatrio (fig. 42). Os
adivinhos explicam com freqncia este objeto em funo do ritual de iniciao do
caador; neste caso, seria preciso renovar a fora da caa com um novo sacrifcio.
alis com esse fim que o iniciado-caador guarda um fragmento da madeira que queimou
quando do sacrifcio, bem como o faz seu mestre-iniciador (pai de caa para os Cokwe,
me de caa para os Ndembu). O pedao de madeira (carvo) preserva a possibilidade
de renovar a fora do ritual; para coloc-lo em ao preciso renovar o sacrifcio com
uma nova vtima.
A reunio de vrias pessoas perto do fogo evoca tambm os encontros mais ou
menos secretos nos quais um pequeno grupo toma posio contra um membro do mesmo

1
Bastin, 1961, p. 209.
2
N. do T.: A pessoa em questo bifacetada; ela agrada, mas tambm confronta e ameaa. Fique de bem
com ela, mas esteja atento. Algum dia ela pode enfeiti-lo, ou por veneno em sua comida.
178

grupo de parentesco ou da mesma aldeia; a apario de majiko pode denunciar esse tipo
de reunies:
(majiko) um pequeno pedao de madeira portando uma ou vrias cpulas
escavadas na face superior. Sua apario borda do cesto do adivinho significa que o mal
provm de maledicncias ou de uma conspirao feitas por homens reunidos em
assemblia ao redor do fogo1.
Essa reunio perto do fogo da aldeia poderia ter uma explicao mais precisa: o
cliente (consultante) fez dvidas que no foram honradas e as pessoas comentam. Quando
retornar aldeia, preciso acender o fogo na cota (a casa dos homens), convidar os
credores e pagar tudo2.
Ainda mais fre qente a atribuio ao smbolo majiko das reunies perto do fogo
para a celebrao de funerais. alis a explicao mais freqente para a maioria dos
adivinhos. Na verdade, a aldeia onde so celebrados os funerais multiplicam as fogueiras
por causa dos diferentes grupos que se formam, seja por classe etria ou ainda pela
reunio em assemblia de vrias aldeias. Neste caso, cada aldeia ter suas prprias
fogueiras, tanto para os ancies quanto para os jovens.
Baumann observou este mesmo kaphele, que ele designa por kabia (feu) e a
respeito do qual fornece a seguinte explicao:
... haver vrias fogueiras na casa, isto , logo um homem falecer (indcio de um
costume funerrio)3.
De acordo com Turner, este smbolo do fogo classificado como funeral fires4
significa uma reunio importante no clube dos homens, ou a morte, ou mesmo o campo
dos funerais. Muchona quem explica a significao deste kaphele entre os Ndembu:
If a person goes to divine he will see in the diviners basket the funeral fires
coming (up). Majiko is a group of fires. The diviner tells: in my basket come up a group
of funeral fires, which means that some one will die unless you return to your village...
The funeral fires may also come up if a patient has already died...
Majiko can also stand for a funeral camp5.
Todos os aspectos de significao de majiko so abordados na explicao de
Tucker, mesmo se a falta de preciso dificulta um pouco a clareza do texto. Em primeiro
lugar, ele no est completamente certo que entre os Ovimbundu seja o mesmo objeto do
cesto, mesmo que tenha a mesma finalidade: acende-fogo. A exigncia de uma fogueira
nova para a aldeia (novo chefe) ou para o grupo de caadores, bem como para a
celebrao de funerais, so evocadas nas informaes recolhidas por Tucker:
Perhaps a new fire is required in the head village; or an ancestral spirit wants an
ochisunji festival. This is a ceremony commemorative of a deceased member of the

1
Bastin, 1961, p. 177.
2
Santos, 1960, p. 165.
3
Baumann, 1935, p. 169.
4
N. do T.: Fogueiras funerrias.
5
Turner, 1961, pp. 63-64. N. do T.: Se uma pessoa vai adivinhar ela ver no cesto do adivinho as
fogueiras funerrias vir ( borda). Majiko um grupo de fogueiras. O adivinho conta: no meu cesto
apareceu um grupo de fogueiras funerrias, o que significa que algum vai morrer a menos que voc retorne
a sua aldeia... As fogueiras funerrias tambm podem aparecer se um paciente j estiver morto...
Majiko pode tambm representar um campo funerrio.
179

family... When a hunt for an ochisunji is unsuccessfull, a new fire is lit. All old fires are
extinguished and each household carries coals to the new fire1.

2.2.18 - Mbila, a sepultura


(fotos 356-B-358)

Mbila, miniatura circular de cabaa, raramente de metal. Significa a sepultura,


portanto, a morte. Mbila uma rplica, no cesto, da entrada da sepultura tal como os
Cokwe a preparam (fig. 43). Esta aqui era em forma retangular, de dois metros
aproximadamente de profundidade2, mas a entrada era invariavelmente circular, com um
dimetro mdio de meio metro.
A maioria dos adivinhos explicam a apario desta rplica como sendo a
anunciao de um falecimento prximo:
... (rodela furada de cabaa) do ngombo ya cisuka, significando que o doente vai
morrer, que logo ser enterrado3.
L. Tucker v nesta representao a chave de outro mundo:
This is regarded as looking the other world, so malignant spirits cannot come to
the village. As interpreted by the diviner, the spirits may have escaped and be going about
harming people4.
A valncia negativa de mbila seria ainda reforada entre os Ovimbundu pela
associao de mbila com a estatueta okalupolopoko representando a criana escrava5.
Para apaziguar esse esprito (considerado estrangeiro) um sacrifcio especial seria
realizado do lado de fora da aldeia ou em favor dos espritos estrangeiros que se
manifestam fazendo os possudos falarem lnguas estrangeiras6.
Hambly se afasta da significao imediata deste kaphele explicando sua valncia
negativa por abusos de linguagem... a abertura de mbila remeteria neste caso boca que
falou demais:
A piece op gourd with a round orifice means that some one has been talking too
much. The orifice represents a human mouth7.

1
N. do T.: Talvez uma nova fogueira seja requerida na aldeia-me; ou um esprito-ancestral quer um
festival ochisunji. Este uma cerimnia comemorativa de um membro falecido da famlia... Quando uma
caa para um ochisunji fracassa, uma nova fogueira acesa. Todas as fogueiras so extintas e cada casa
carrega carvo para a nova fogueira.

2
Sousa, 1971, p. 84.
3
Bastin, 1961, p. 248.
4
Tucker, 1940, p. 191. N. do T.: Isto (o kaphele) visto como olhando parta o outro mundo, ento os
espritos malignos no conseguem entrar na aldeia. De acordo com a interpretao do adivinho, os espritos
devem ter escapado e vo atrs das pessoas ms.
5
Ver item 2.1.7.
6
Tucker, 1940, p. 191.
7
Hambly, 1934, p. 274. N. do T.: Um pedao de cabaa com um orifcio redondo significa que algum
falou demais. O orifcio representa uma boca humana.
180

Na narrao de sesso de Riasendala1 vimos num caso concreto a aplicao de


mbila. uma rplica sempre fcil de identificar e cuja significao bastante imediata; as
diferentes explicaes dos adivinhos a propsito de mbila so quase unnimes.

2.2.19 - Mufu, o morto


(fotos 359-363)

Mufu a rplica da vara na qual se transporta um cadver ao cemitrio (fig. 44).


Por isso a significao mais freqente para este kaphele a proposta por Baumann:
Mufu: der Tote (na der Tragstange, auf dem Weg zum Grabe)2.
Nesta miniatura preciso distinguir o pedao de madeira que representa o
transporte (muhango) e a representao do morto. A madeira escolhida em princpio a
de uma planta de que se pode tirar a casca com facilidade, que se utiliza como corda para
atar o cadver3. A representao do cadver com freqncia um fragmento de um
corao de milho envolvido num pedao de tecido. s vezes o conjunto pintado com
auxlio de mukundu.
As explicaes dadas pela maioria dos pesquisadores quade no se distanciam da
de Baumann. Assim, de acordo com M. Milheiros, mufu significa que o membro de
parentesco para o qual foi pedida a adivinhao vai ser encontrado morto4; E. Santos diz
que o mufu (defunto) da famlia que trouxe a doena5.
Para Hauenstein, mufu representa um ancestral que, segundo a estatueta da qual
acompanhada, provm da linhagem paternal ou maternal. um pressgio excessivamente
perigoso porque anuncia a morte a curto prazo, se no se levar em considerao suas
reinvidicaes6.
De acordo com Turner, mufu (a dead person7) representa seja uma pessoa
falecida recentemente, seja um cadver amarrado a sua rede para ser transportado ao
cemitrio8.; o kaphele no passaria de um pedao de madeira rodeado por uma corda de
casca representando um cadver amarrado numa padiola (mufu)9.
Alm dessa significao mais ou menos imediata, o smbolo mufu serve ao
adivinho para pedir que a famlia do morto se (viva), ou mesmo s prestaes do
sobrevivente (vivo) devidas famlia da defunta. s vezes se utiliza tambm mufu para
explicar as alteraes causadas pelo esprito de uma pessoa que se suicidou.
Um bito exige antes de tudo as lamentaes apropriadas que so asseguradas
pelas mulheres, exceo das grvidas. Os Cokwe evitam a presena das grvidas bem
como a de homens jovens perto do cadver. As lamentaes tomam a forma de um coral
que repete os temas enunciados por uma das mulheres do morto, em princpio a mulher

1
Ver item 1.3.3.2 - B) / mbila.
2
Baumann, 1935, p. 170.
3
Ver item 2.4.17.4. - 3o .
4
Milheiros, 1949, p. 32.
5
Santos, 1960, p. 168.
6
Hauenstein, 1961, p. 168.
7
N. do T.: uma pessoa morta.
8
Turner, 1961, p. 65.
9
Turner, 1972, p. 48.
181

principal (namata)1. Aps alguns elogios cantados, desenvolvem-se todos os aspectos da


vida nos quais o morto verdadeiramente insubstituvel; um modo de louvar todas suas
qualidades:

Quem pode nos trazer carne?


Quem pode nos trazer dinheiro?
Quem pode achar os tecidos?
Quem vai cuidar de ns?
Quem vai fazer honrar nosso nome?, etc...

por isso que durante algumas horas se passa em revista todos os aspectos
positivos da vida de um homem, numa cantilena que se torna um longo hino de louvores
s qualidades do falecido.
Para os funerais preciso normalmente trs dias. No primeiro dia, mata-se um
cabrito (que pertencia ao morto) e seu sangue vertido sobre o fogo que queimava na
casa do defunto; a carne partilhada poe toda a famlia reunida para os funerais. No
segundo dia, queima-se uma parte (a parte inferior) da porta da casa do defunto e divide-
se todos os seus bens: primeiro, a mulher (viva) pega seus ikwata (objetos de cozinha,
enxada, cestos, potes, etc.); em seguida, coloca-se do lado de fora tudo o que era
propriedade do morto; tudo dividido por seu irmo, que pega para si a parte mais
importante; se o defunto no tem irmo, o filho da irm mais velha que leva a herana.
Pequenas lembranas so dadas tmabm aos filhos do falecido. No terceiro dia tem lugar
o enterro.
A viva, uma vez recebidos seus objetos, no pode mais entrar na antiga casa. Ela
ficar do lado de fora durante os funerais, como alis todos os outros, e depois ocupar
uma outra casa antes de ser purificada e enviada de volta a sua aldeia. A purificao se
faz ao levantar do sol: uma mulher velha (kashinakaji) acompanha a viva at o rio; esta
ltima carrega uma cabaa que a velha quebrar perto do rio; uma metade abandonada
no rio; a outra metade ser utilizada para transportar gua para o cozimento dos alimentos
da tulyiwa (viva): a refeio preparada pela mesma mulher velha, que tambm passa a
pintura branca (pemba) no corpo da viva quando ela retorna aldeia. O ritual de
purificao prossegue agora com medicamentos (plantas) apropriados: primeiro a tulyiwa
senta-se sobre as folhas de mwandumba para impedir o esprito do morto de se pendurar
no seu corpo; coloca-se folhas de lukoci2 na testa, o que afasta a imagem do defunto.
Estas duas plantas cheiram muito forte, o que faz com que elas impeam o esprito do
morto de se aproximar.
O ritual terminado, a famlia do defunto a leva sada da aldeia, pe-lhe uma
galinha nas mos e a manda embora com as palavras: nyweto twa salanyie o morto
se retirou, s livre.
Todo esse ritual complexo comporta detalhes que concernem a prestaes de
ordens diversas que preciso satisfazer e que com freqncia so a causa de conflitos
latentes que se manifestaro mais tarde na consulta ao adivinho.

1
Namata a designao cokwe da mulher principal; mas se utiliza mais freqentemente manwari,
designao lunda.
2
Ver item 2.4.17.8
182

Mufu exprime muito freqentemente tambm os conflitos que resultam do fato de


as prestaes devidas ao falecimento da esposa no terem sidos satisfeitas
convenientemente pelo marido. Isto se passa, explica Mwafima, quando mufu aparece
borda do cesto acompanhado de mbate ou sunji. uma questo importante para a famlia
da mulher falecida. Com efeito, por ocasio do bito de uma mulher casada, seu marido
deve pagar pesadas indenizaes estabelecidas pelo costume e cujo conjunto
denominado ciwimbi. Cada ciwimbi compreende trs sries de prestaes distintas,
distribudas no tempo e segundo a importncia. A primeira srie de prestaes so as
mijila, que devem ser pagas antes do enterro; um conjunto de pequenos pagamentos
cuja lista pode variar de mulher pra mulher, mas onde os principais so sempre os
mesmos. Eis aqui alguns, cada mujila com sua justificao particular:
Para entrar na aldeia (nehenu cuma ca kunjilila um cihunda): a famlia da
defunta chega aldeia e fica do lado de fora esperando a primeira mujila, geralmente um
cobertor, dinheiro ou uma pea de tecido;
para ver o morto (nehenu utalilo wa mufu);
pelo sangue (nehenu citanyinga);
pela semelhana com seu pai (neha pholo yaku utatu);
pela semelhana com sua me (neha pholo yaku unaye);
pela cintura da me (neha mufupu wa naya);
pelos dedos (neha ca kufweta minwe);
pela cama: se esconder na cama (neha ca kusenda);
pelas tatuagens (neha ca cato);
Etc.

A segunda prestao de ciwimbi a kazundula, dita tambm kazundula-mushiko.


Ela paga no retorno do cemitrio; uma cabra ou seu equivalente em dinheiro.
Antigamente era um escravo; este devia transportar (-zundula) at a aldeia da falecida o
cesto (mushiko) com os bens dela.
A terceira parte de ciwimbi o lukhambu, pago pelo vivo um ano ou dois aps a
morte da esposa. Antigamente a prestao nica era um boi, para o qual o nome da
mulher morta era adotado; hoje, paga-se em espcie uma soma que corresponde
aproximadamente ao valor atual do animal1.
Finalmente, mufu pode significar o esprito de um homem ou de uma mulher que
se suicidaram; o esprito de um suicida sendo particularmente perigoso, a apario de
mufu pediria neste caso um conjunto de protees de ordem ritual para todas as pessoas
com as quais o suicida teve contato durante sua vida; num ritual especial, um cachorro
sacrificado, seu sangue aspergido sobre os participantes; o ritual kukupula2.
A variedade de significaes atribudas ao kaphele mufu permite ao adivinho
classificar diferentes tipos de desgraas, todas em relao com o mesmo smbolo. Assim,
o adivinho dir que o cliente tem mufu wa kukonga, quando sua doena provm de um
objeto roubado por um nganga de uma sepultura e jogfado contra ele; tal objeto (e eles
so numerosos e diversos sobre as sepulturas ver fotos 364-365) sempre temvel.
Se, em compensao, o cnjuge sobrevivente que, antes do ritual de purificao, teve
1
Ver Barbosa, 1973, (tchiwimbi).
2
Horton, 1953 (cisako ca mufu).
183

relaes sexuais, o parceiro se tornar vtima de mufu kutambula. Se algum passa perto
do local onde se desenrolou a purificao do cnjuge, bem possvel que o esprito do
morto se agarre ao passante desprevenido; neste caso, ele ser vtima de mufu wa
kulyata1.

2.2.20 - Ngoji, o porta-beb


(fotos 366-c; 367)

De acordo com um recolhedor de cestos do Museu de Etnologia de Lisboa, ngoji


ou txigoje, que significa placenta, seria aplicado tambm ao pedao de couro que as
mulheres utilizariam para carregar as crianas, lateralmente2. Atualmente, as mes
transportam suas crianas quase que exclusivamente s costas e o ngoji de couro foi
substitudo por um pedao de pano.
A utilizao de ngoji para transportar as crianas deu a essa palavra uma segunda
significao, que se pode discernir alis tambm na significao do ngoji-miniatura do
cesto (fig. 45). Ngoji significa tambm frcundidade, aptido a procriar3.
De acordo com Baumann, esse cordo para o beb significa que um parto
difcil ser bem sucedido4.
Em compensao, E. Santos explica que a mulher do cliente no pode reproduzir
por causa de um ngoji que ela havia herdado de um ancestral feminino e que ela
negligenciou5. O verdadeiro ngoji, ainda de acordo com o mesmo autor, seria fabricado
com a pele de cabra (khai), bem como sua rplica. Ns observamos tambm miniaturas
que os adivinhos diziam serem feitas de kaseshi, e mesmo de outros animais.
O ngoji significa quase sempre um apelo s mahamba, muit o numerosas, de
fecundidade, seja por rituais apropriados ou pela utilizao dos amuletos que se carregam
cintura; assim, para M. L. Bastin, este pequeno anel de couro indica sua apario
borda do cesto, que a consultante, j me de uma ou vrias crianas, tendo dificuldades
momentneas de ter mais, engravidar se usar as efgies-amuletos mahamba de
fecundidade6.
Turner, que na nossa opinio confunde a identificao deste kaphele com mbila, e
apresenta ngoji sob o nome de matangisha (twisted leather)7, em compensao apresenta
uma significao vaga demais para a carring cloth (ngoji)8:
...ngoji means in tribes... or in matrilineages... it means that a person
(represented) in ngombu belongs to such a group9.

1
Ver Barbosa, 1973 (mufu).
2
Ver ficha AE. 623 (Museu de Etnologia, Lisboa).
3
Barbosa, 1973 (ngoji).
4
Baumann, 1935, p. 160.
5
Santos, 1960, p. 159.
6
Bastin, 1961, p. 254.
7
Turner, 1961, p. 55. N. do T.: couro torcido.
8
N. do T.: roupa de carregar.
9
Turner, 1961, p. 56. N. do t.: ...ngoji significa nas tribos... ou nas matrilinhagens... significa que
uma pessoa (representada) no ngombu pertence a tal grupo.
184

Muito prximo de ngoji, com o qual se confunde s vezes, est o misephe (fotos
368-370) cordinha tranada usada em cruz, ao par, em torno do peito, pelas mulheres
estreis1 qual so presas duas pequenas cabaas contendo remdios de fecundidade.
Cada uma dessa cabaas (muzala) contm uma mistura de ps provenientes de diferentes
plantas de fecundidade e reservada s mulheres estreis ao se submeterem aos
tratamentos yisolo2, bem como a todas as que so possudas pelas mahamba tumbunda,
tuhemba e tukuka3.

2.2.21 - Kota, o cesto


(fotos 371-372; 382-d)

Kota , na linguagem dos adivinhos, um cesto miniatura (fig. 46) que representa
todos os que vm da mesma me ou se encontram no mesmo cesto por causa da
mesma me.
Kota uma palavra inicitica que exprime um cesto qualquer no campo da
circunciso. A miniatura representada como kaphele a rplica do cesto mushiko que as
mulheres utilizam para o transporte dos produtos agrculas especialmente; esse cesto, hoje
raro, carregado s costas e sustentado por uma banda de couro que se passa sobre a testa
ou o peito (ver foto 373).
Essa rplica que os adivinhos designam como kota ya cisemewa (cesto de famlia)
exprime sobretudo o papel da mulher no desenvolvimento da linhagem; mas o papel
fundamental da mulher ambguo, porque se a existncia de uma mulher lavradora (que
se tornou um ancestral) explica a prosperidade de um grupo, igualmente a feitiaria ou o
mal-estar do grupo deve se explicar por algum vindo da mesma mulher; isto , que se
acha no mesmo cesto.
Kote cesto. Significa: no mesmo cesto, isto , o responsvel pela desgraa
deve ser procurado na mesma aldeia4; ou ainda: o criminoso se encontra entre os
parentes5.
A significao genealgica deste smbolo evidente pela designao kota ya
cisemewa (origem da linhagem atribuda a esta miniatura). M. L. Bastin evidenciou bem
esse aspecto na informao recolhida:
... rplica minscula de um cesto, emblema da famlia chefiante ou genealgica;
significa que a pessoa que quer mal no est longe, ela faz parte dessa famlia6.
Mas se a mulher lavradora pode trazer prestgio para seu grupo, ela pode tambm
suscitar a inveja e a rivalidade que desencadeiam normalmente os mecanismos de
feitiaria; este aspecto negativo na significao do cesto miniatura nos parece evidente
sobretudo entre os Ovimbundu:

1
Bastin, 1961, p. 252.
2
Ver item 2.1.21.
3
Ver itens 2.1.13, 2.1.18 e 2.1.14.
4
Baumann, 1935, p. 196.
5
Idem. De acordo com Baumann kote seria a pea contrria a mikana.
6
Bastin, 1961, p. 47, nota 3.
185

A woman who makes good baskets is hated by others, and its apt to be bewitched
by envious neighbours who cannot make baskets as she. The figure may, on the other
hand, indicate that the food or medicine wich caused the illnes was put in the patients
basket of mealies or mush. Again, it may (by association) mean a woman, or that the
person has been bewitched by na older sister1.

2.2.22 - Ikashi, os utenslios da mulher


(fotos 374-377)

Ikashi um conjunto de pequenas rodelas de cabaa (quatro, em princpio)


trespassadas por uma cordinha de couro (fig. 47). Esse smbolo significa: os objetos
pertencentes a uma mulher e em especial os utenslios de cozinha: cabaa, jarro, cesto,
etc. O adivinho, quando explica a apario de ikashi borda do cesto, sabe que a mulher
do consultante vai partir. Com freqncia ela quer deixar seu marido, mas deve primeiro
esperar as discusses entre sua famlia e o marido que ela no suporta mais; neste caso,
reunir os ikashi (imbamba ou ikwata para os Cokwe, yipwepu para os Ndembu) significa
uma primeira ameaa de ruptura.
Ikashi significa portanto o casamento e em conseqncia as vicissitudes do
casamento:
Assim, ele designa por vezes uma grave querela conjugal e mesmo o divrcio,
pois uma mulher leva sua coleo consigo quando vai embora porque sente-se
ofendida2.
Mas a mulher pode retornar sua aldeia tambm porque o marido morreu; neste
caso, ela reunir igualmente suas posses:
When a woman change her place of residence... on her husbands death, when
her village builds on a new site, she takes her possessions (yipwepu) with her3.
O abandono da aldeia por causa de doenas ou de disputas entre os grupos
representado no cesto por um outro kaphele que estudaremos em seguida. Mas ikashi
pode indicar tambm a necessidade de deixar a aldeia com urgncia:
Eles (os consultantes) deviam ter abandonado a aldeia quando da morte do chefe.
Eles no o fizeram e a desgraa se abateu sobre eles; preciso partir, o mal
desaparecer4.
Organizar uma viagem significa tambm um mnimo de utenslios para preparar
as refeies; neste caso, ikashi pode esclarecer o sentido de uma viagem, bem como as
vicissitudes possveis durante o percurso:

1
Tucker, 1940, p. 196. N. do T.: Uma mulher que faz bons cestos odiada por outras, e est apta a ser
enfeitiada por vizinhas invejosas que no conseguem fazer cestos como ela. A estatueta pode, por outro
lado, indicar que a comida ou o medicamento que causou a doena foi colocado no cesto da paciente
. Novamente, pode (por associao) significar uma mulher, ou que a pessoa foi enfeitiada por uma irm
mais velha.
2
Turner, 1972, p. 53.
3
Turner, 1961, p. 58. N. do T.: Quando uma mulher muda seu local de residncia... pela morte de seu
marido, quando sua aldeia constri uma habitao nova, ela leva suas posses (yipwepu) consigo.
4
Santos, 1960, p. 160.
186

yipwepu significa ainda partir em visita, porque o viajante se mune de uma


coleo ou sortimentos de provises... s vezes representa tambm as peripcias que se
produzem no curso das viagens e que, em geral, so eventos infelizes como a morte, a
doena ou um acidente sbito1.
O fato de que ikashi seja fabricado de pedao de cabaa permite a Turner resgatar
uma significao geral que permite a reaproximao semntica entre ikashi e swaha. Com
efeito, se yipwepu designa literalmente no importa qual pedao de cabaa utilizado para
fins domsticos2, uma das significaes possveis ser a proposta para a cabaa, cuja
multiplicidade das sementes remete aos membros da matrilinhagem3. Ikashi tem pois uma
significao muito prxima de dois outros smbolos: swaha, a matrilinhagem e njia, o
caminho; esta superposio parcial dos campos semnticos dos tuphele criou zonas de
interferncia que permitem ao adivinho de alargar enormemente seu campo de anlise.

2.2.23 - Manzuwo a washi, as casas abandonadas


(fotos 378-379)

Uma miniatura de madeira representando um conjunto de casas esburacadas


(fig. 48) exprime primeiro que h razes para abandonar a casa numa aldeia e partir, e,
em seguida, a significao social de tal comportamento.
Se vrias pessoas morreram na mesma vasta famlia e se, aps a consulta ao
adivinho, aps o tratamento do mbuki e das conversas com o chefe da aldeia, o desastre
continua, as pessoas envolvidas pela desgraa deixaro a aldeia. Em princpio, este gesto
no aceito pelo chefe da aldeia nem pelos demais aldees; por isso, os que querem partir
o faro sem barulho durante a noite; desaparecero sem deixar vestgios. A partida poder
concernir at mesmo aldeia inteira se se acredita que a desgraa est relacionada ao
prprio local ou a uma fora fatal. Hauenstein, por exemplo, conta a histria de uma
aldeia em que havia uma feiticeira poderosa que todos achavam impossvel neutralizar; os
aldees se reuniram para deliberar; consultaram o adivinho. Mas este no ousou propor o
aniquilamento da velha feiticeira; ento foi preciso partir:
Quando vocs retornarem (disse o adivinho) no digam absolutamente nada,
mesmo se perceberem que uma nova pessoa faleceu. No falem. Compete a vocs
preparar todos os seus bens, pois no possvel mat-la. Escolhero vocs mesmos o dia
que convm o melhor para abandonar muito simplesmente a aldeia. Para ir embora,
partam noite, cada um por si4. E o autor observa a esse propsito que os Cokwe so
capazes de desocupar uma aldeia inteira numa s noite.
As pessoas que partem procuram uma outra aldeia, que pode aceitar ou recusar
sua integrao. A recusa habitual se os recm-chegados j so conhecidos como
suscitantes de conflitos em toda parte; tambm o chefe de uma aldeia poder recusar a
autorizao para instalao quando ele conhece os eventos que precederam sua partida, e

1
Turner, 1972, p. 53.
2
Turner, 1972, p. 62.
3
Ver item 2.4.6.
4
Hauenstein, 1976, 245.
187

quando ele prev que acolher os imigrantes pode lhe criar atrito com o chefe da aldeia que
estes deixaram.
Para E. Santos, manzuo uchi uma pea de couro que significa que quem
abandonou a aldeia a mesma pessoa que faz wanga (feitiaria) contra o cliente. Para se
livrar da influncia nefasta, ele (o cliente) deve seguir o caminho da pessoa que deixou a
aldeia at a primeira encruzilhada (makenu), onde proceder a um ritual de purificao
com as plantas mujimbajimba e mufulafula1, friccionando o corpo e fazendo fumigaes2.

2.2.24 - Kasa, a verdadeira testemunha


(fotos 380-382-c)

Kasa um entrelaado (fig. 49) em forma de pequena bola (dimetro 1 cm,


aproximadamente) feito de kajana3. Este pequeno smbolo significa a exatido das
palavras pronunciadas por uma testemunha. Kasa portanto o kaphele contrrio a
mandamba, que estudaremos a seguir:
A palavra de quem tem razo, que conta o que viu e diz exatamente sempre as
mesmas palavras, kasa (Hamumona).
Quando o adivinho analisa os diferentes testemunhos, o ngombo deve decidir qual
das diferentes testemunhas pronunciou as palavras exatas. Kasa portanto favorvel;
quem est doente, mas cujo testemunho est certo, pode pois afirmar publicamente que
no tem nada a temer; por nenhuma razo pode estar enfeitiado...4

2.2.25 - Mandamba, a mensagem


(fotos 381-382-a)

Mandamba uma trana feita de cip ou de folhas de palmeira, ou de junco; na


verdade, essa pequena trana habita o cesto, onde significa a mensagem (fig. 50).
Contrariamente maior parte das miniaturas, mandamba no existe enquanto objeto, fora
do cesto divinatrio.
Mwafima explica assim o tipo de mensagem denunciada por mandamba:
Algum est aqui conosco; ele nos escuta; depois ele parte e vai numa outra
aldeia contar o que ns dissemos; em seguida ele ir adiante e contar tambm uma
histria, mas nunca a verdica.
A designao mandamba atribuda por Santos a um kaphele diferente, que na
realidade kata 5, apesar da significao ser exata6. Em compensao, Hauenstein
descreve sob essa designao o smbolo cijingo, que ser estudado na seqncia e cuja
significao e forma so diferentes de mandamba7. M. L. Bastin faz tambm uma
1
Ver item 2.4.17.8.
2
Santos, 1960, p. 165-166.
3
Espcie de junco utilizado em artesanato.
4
Santos, 1960, p. 162.
5
Ver item 2.2.27.
6
Santos, 1960, p. 165.
7
Hauenstein, 1961, p. 143.
188

descrio de mandamba que no completamente clara ( provavelmente uma forma


diferente) dois objetos retangulares tranados mas apresenta a significao
exata, isto , a mensagem e o mentiroso:
... as mentiras dizem respeito a sua pessoa, preciso procurar o sujeito que na
sua origem para se entender com ele e faz-lo parar1.

2.2.26 - Cijingo, a desgraa que rodeia


(fotos382-b; 383-384)

Cijingo conhecido entre os Cokwe como um bracelete de metal, normalmente de


lato. Mas o cijingo no cesto divinatrio sempre de palha, em geral de palha de kajana.
um pequeno tranado trilobado, raramente espiralado (fig. 51,a,b). Mwafima explica
essa diferena em termos da habilidade do adivinho: aquele que faz um cijingo trilobado
um mestre, enquanto que o do debutante ser espiralado. Do qualquer modo, para esse
adivinho, cijingo a primeira coisa do ngombo e por isso, quando da consulta, cijingo
vem borda do cesto, o adivinho anunciar a seu cliente:
Voc vai ter Ngombo, mas ainda no o momento. Voc pode comear a
preparar o ngombo porque cijingo o comeo do cesto.
E Mwafima adiciona a esse propsito que ele prprio construiu seu ngombo de
adivinho, porque o que ele havia herdado de seu tio j estava muito usadi; comea-se a
construir o ngombo com cijingo.
A maioria das informaes relativas a cijingo explicam a significao desta
miniatura tomando como base a etimologia do verbo jinga (rodear, cercar); assim, de
acordo com Baumann, tsizingo significa que a doena no deixa o cliente2; para
Delachaux ela est de preferncia prxima:
Tyisingo: esse objeto consiste em um entrelaado de raminhos vegetais formando
trs lbulos... A significao a aproximao de uma doena. Trata-se tambm de um
amuleto usado no brao3.
Nas duas explicaes a idia de proximidade da desgraa evidente. Riasendala
diz que cijingo revela tambm a persistncia de uma doena ou de um inimigo contra
uma pessoa:
Cijingo... uma pessoa sempre doente; sabe-se que h algum que a impede de
viver... Ser preciso procurar o chefe da aldeia, para que ele fale com o feiticeiro... H
inimigos que seguem essa pessoa; ela no compreende o que se passa...
A dificuldade da situao seria explicada pela apario de cijingo:
Sendo um tranado que no deixa aparecer nem o rabo nem a cabea, ele
representa simbolicamente as dificuldades inextrincveis, praticamente impossveis de
resolver4.

1
Bastin, 1961, p. 248.
2
Baumann, 1935, p. 169.
3
Delachaux, 1946.
4
Hauenstein, 1961, p. 143, sob a designao mandamba.
189

2.2.27 - Kata, a corrente


(fotos 385-386)

O kata, conjunto de dois anis de palha (kaswamo) passados um atravs do outro,


conhecido sobretudo pelo campo da circunciso, do qual ele guarda a entrada (ver
foto 387). Os adivinhos o utilizam tambm em certas circunstncias solenes, sobretudo
quando a sesso de adivinhao se desenrola fora da aldeia1. Tambm o recinto das
mahamba do chefe e o local do luthengo (forno para fundir o ferro) so normalmente
guardados, entrada, por um kata.
por isso que no cesto, a miniatura de kata (fig. 52) considerada pelos
adivinhos sobretudo como uma espcie de chave que deve guardar ou, antes, fechar a
mukanda. Sakungu respondeu a um chefe de mukanda que tinha aborrecimentos com os
parentes dos iniciados:
Voc um nganga-mukanda principiante; o campo est mal fechado. por isso
que os tundanji (candidatos) atraram as doenas; eles so magros, e as feridas (da
operao) ficam sempre abertas... preciso pedir a um outro nganga-mukanda experiente
para preparar convenientemente kata a fim de fechar a mukanda; ele far dois, um para a
cifwa2 e outro para o campo. O fogo que voc tem dentro do campo ser extinto e
substitudo por um fogo novo.
De acordo com nosso informante, kata guarda a entrada do campo de circunciso
no somente para caar os maus espritos3, mas sobretudo para impedir o acesso de um
feiticeiro parte cortada (mushosha) de um kandanji. O feiticeiro far um amuleto
extraordinrio de caa. Para evitar esse crime de feitiaria o nganga-mukanda (mestre
circuncisor) remete ao responsvel pela criana (cikolokolo) a parte cortada e este o
esconder num cupinzeiro ou numa rvore. O menino iniciado dever evitar tal local. A
infrao desta proibio poder tambm ser denunciada pelo pequeno kata do cesto.
No prtico que se prepara para asesso divinatria, kata seria sobretudo uma
proteo contra a intruso do feiticeiro no ato divinatrio:
The head-pad... is a sign (chinjikijilu) to the diviner not to forget anything, nor
must be ignorant of anything. For a witch (muloji) may use medicine (yitumbu) to deceive
the diviner or conceal things from him. The head-pad is medicine to prevent this, because
the grass from which it is made is twisted like a witchs attempts to deceive. It is made of
kaswamanga wadyi grass. This name is from ku-swama, to hide, and ngwadeji tha
base-throated francolin. Such birds love to hide in this grass. Witches and sorcerers also
hide from view4.
Nos dias de hoje, a proteo kata para a sesso tornou-se raro; hanga a nica
proteo que se usa por hbito. Tambm a maior parte das explicaes para a miniatura

1
Ver item 1.3.3.1 - B).
2
Cifwa, mulher idosa (nacifwa), que prepara a cozinha para os iniciados; tambm o local da cozinha.
3
Bastin, 1961, p. 50, nota 1.
4
Turner, 1961, p. 38. N. do T.: O cadeado... um sinal (chinjikijilu) para o adivinho no esquecer
nada, nem ignorar nada. Porque um feiticeiro (muloji) pode usar um medicamento (yitumbu) para enganar o
adivinho ou ocultar-lhe coisas. O cadeado medicamento para prevenir isso, porque o arbusto de que
feito torcido como a ateno do feiticeiro para enganar. Ele feito do arbusto kaswamanga wadyi. Este
nome vem de ku-swama, esconder. Os pssaros tambm gostam de se esconder nesse arbusto. Bruxos e
feiticeiros tambm tiram da vista.
190

kata concernem s prticas relativas circunciso e s responsabilidades demandadas


pelos parentes dos iniciados ao chefe do campo (nganga-mukanda).

2.2.28 - Yimako, o calendrio


(fotos 388-390)

Yimako um pedao de cabaa entalhado dos dois lados, raramente de um s


lado; um instrumento para contar (fig. 53). Conta-se os dias pelos entalhes feitos, mas
tambm pode ser o dinheiro ou outras coisas. Mwacimbau, um de nossos intrpretes,
convidou-nos como testemunhas de um pagamento de 600 escudos que ele devia fazer na
aldeia de Kambashakala. O credor se apresentou com seis pequenas pontas de madeira.
Para cada nota de 100 escudos ele atirava um pedao de madeira. Mas quando o negcio
importante o yimako preparado diante do chefe pode guardar o valor de um documento.
A apario de yimako no cesto pode ser explicada como medida do tempo
(estaes) que o feiticeiro fixou para por fim vida do cliente, ou ento o prprio
adivinho que prev quantos meses o doente poder ainda viver, ou muito simplesmente
yimako significa que a pessoa doente no viver mais por muito tempo1.

2.2.29 - Salujinga, o esprito de serpente


(fotos 391-392)

Salujinga com freqncia uma hamba de fecundidade feita de terra no interior


das casas, s vezes sob a cama. Ela representa uma ou duas serpentes enroladas; encontra-
se tambm formas mais recentes de salujinga de madeira, feita por escultores. A
miniatura de salujinga no cesto divinatrio bastante rara e pode tomar duas formas: uma
espiral de madeira ou de cabaa (fig. 54), ou um pedao da extremidade de uma planta
trepadeira que imita os movimentos das serpentes. A significao a mesma:
Uma mulher no tem filhos. Seu marido vai procurar o adivinho para saber a
causa. Este lhe responde: sua mulher no tem filhos porque ela no tem salujinga sob a
cama; preciso pois preparar a argila para fazer salujinga e lhe adicionar pemba e
mukundu. Alguns meses mais tarde, ver sua mulher grvida. Ento ser preciso adicionar
ainda cisola, tuhemba e misephe (Hamumona). A significao atribuda por Turner a um
smbolo divinatrio (chanzangombi) da forma de uma serpente com cabea humana,
pode dificilmente se conciliar com salujinga. Tal objeto no conhecido no cesto dos
Cokwe; parece, antes, prximo da estatueta cilowa, seno pela forma pelo menos pela
significao2.

1
Bastin, 1961, p. 60.
2
Chanzangombi seria uma miniatura representando no cesto divinatrio um esprito a servio do feiticeiro,
o esprito ilomba, uma enorme serpente dgua, cuja face semelhante a de seu mestre (ver Turner, 1972,
p. 26, p. 48).
191

No cesto dos Ovimbundu se conhece tambm a existncia de uma serpente de


madeira, mas a significao apresentada por Hambly se distancia claramente de
salujinga1.

2.2.30 - Lukhoka, a tolice


(foto 393)

Uma faca estragada, com freqncia uma faca ou um pedao de ferro dobrado, a
representao deste kaphele. um smbolo muito negativo, sobre o qual as explicaes
dos adivinhos concordam inteiramente:
Lukhoka significa exatamente aquele que ningum pode suportar. algum que
incomoda todo mundo, no faz nunca o que promete, em toda parte onde passa ele faz um
cilumbu (encrenca) (Sakungu).
Dir-se- dessa pessoa que ela tem lukhoka. A situao seria ainda mais grave se
tal comportamento se encontrasse no chefe da aldeia2; neste caso, a aldeia correria risco
de desaparecer.
Descrito como pea irregular de ferro, wutale um smbolo do cesto divinatrio
conhecido entre os Ndembu, mas dificilmente identificado como lukhoka. Turner atriui a
este kaphele uma significao baseada sobre uma falsa etimologia:
What a person has seen (ku-tala) with his own eyes3.
Poder-se-ia admitir que o mesmo kaphele teria adquirido uma grande diversidade
semntica por causa desse alargamento etmolgico que parece ser muito freqente como
fonte de explicao para os Ndembu.

2.2.31 - Kalike, a prola branca


(foto 394)

Os gros brancos (ubwanga) ou as pequenas prolas de comrcio (misanga)


enfiladas, constituem tambm um smbolo divinatrio (fig. 55).
Baumann a denominou lukuzu: uma prola branca que o pai colocar na criana
que vai nascer4. Na verdade, os pais cokwe colocam um bracelete de couro em torno do
brao de seus filhos; parece que Baumann designa a prola branca pelo nome desse
bracelete (lukhusa). Como kaphele, a prola branca tem uma significao muito positiva:
a mulher que interroga o adivinho est grvida e ter seu filho sem problemas.
De acordo com o adivinho Hamumona, os gros brancos significam o mal-estar de
uma mulher grvida. Ela vai procurar o adivinho. Este consulta o ngombo e quando kalike
vem borda ele explica:

1
A pequena cobra de madeira significa cordas e amarras... Quando a cobra de madeira vem borda do
cesto, o significado que um esprito laou a pessoa doente que est consultando o adivinho (Hambly,
1934, p. 375).
2
Lukhoka: o soba (chefe da aldeia) no razovel com seus subordinados (Santos, 1960, p. 164).
3
Turner, 1961, p. 57. N. do T.: O que uma pessoa viu (ku-tala) com os prprios olhos.
4
Baumann, 1935, p. 170.
192

Voc est mal do ventre, mas no por causa da criana. Voc est mal porque
voc tem duas; voc tem anapasa (gmeos).
por isso que o marido comear a friccionar o ventre de sua mulher com os
remdios preparados pelo mbuki. Quando os gmeos nascem, seu pai busca ubwanga ou
compra misanga para colocar em seus braos; todo mundo vir festejar o acontecimento.

2.2.32 - Tanganane, a pessoa dupla


(foto 395)

Tanganane uma pequena forquilha ou duas pontas de madeira cruzadas que se


v muito raramente no cesto divinatrio. Sua significao manifesta ainda um aspecto
particular das contnuas sucesses das aldeias cokwe e das tenses que da resultam:
As pessoas que estavam juntas se separam e constroem duas aldeias. Mas h
algum que, de mau corao, vai em cada uma das novas aldeias e diz: vocs sabem que
os outros (da outra aldeia) falam mal de vocs e preparam suas armas para atac-los?
Assim, as duas aldeias se chocam. Aquele que provocou tudo tanganane, porque ele
rodou duas vezes a mesma palavra para enganar as pessoas (Riasendala).

2.3 Animais bons para pensar

2.0 - Introduo

Para explicar os smbolos antropomorfos, bem como os outros smbolos


manufaturados, os adivinhos tm recorrido sobretudo ao ritual. Com efeito, as estatuetas
so representaes miniaturizadas das mahamba de culto ou de objetos rituais diversos
(enxada, piroga, etc) utilizados com freqncia nas danas que acompanham o
desenrolamento dos mesmo rituais. Para os smbolos de origem animal diferente. Os
animais no tm, regra geral, uma destinao ritual especfica, apesar de a maior parte dos
ritos exigir o sactifcio de um animal para sua consumao. O dispositivo simblico de
natureza animal (fotos 396-397) do cesto divinatrio explicado quase invariavelmente
em termos de pequenas histrias ou anedotas de onde se extrai a motivao do smbolo.
A maioria dessas histrias, que se pode classificar como um tipo de literatura
etiolgia busca a explicao de uma situao natural ao homem no comportamento de
um animal. Estamos portanto diante de um espcie de mitologia animal que apela
experincia concreta do homem em seu meio1.
Essas explicaes das doenas ou outras firmas de desgraa existem
independentemente do questionrio do etnlogo. Pretender ver nessa categoria da
literatura tradicional a atitude evasiva dos autctones face a uma persistncia do etnlogo
que vai... at que seus informadores, para se livrar do importuno, lhe respondem uma
coisa qualquer2 escamotear o problema logo de incio. Os adivinhos cokwe so
1
Shorter, 1972, p. 1.
2
Dan Sperber, 1974, p. 29.
193

prolixos e espontneos quando explicam os smbolos de seus cestos. A propsito de um


smbolo animal todos conhecem vrias anedotas que gostam de contar para explicar
melhor o papel de tal kaphele no cesto divinatrio.
A valorizao de alguns animais, presentes como smbolos no cesto e portadores
da explicao de certos tipos de problemas analisados pelo adivinho a prova que a
exegese fornecida pelos adivinhos provm de uma certa forma de conhecimento, sem
dvida difcil de definir, mas muito bem sustentado pela expericia, o que nos permite
concluir com Lvi-Strauss que... essas espcies animais (escolhidas pelo adivinho) so
decretadas interessantes porque foram conhecidas primeiro1. A partir desse
conhecimento, o adivinho separa os traos pertinentes que estabelecero a relao entre
o comportamento de uma espcie animal e o problema concreto vivido pelo cliente. Essa
cincia do concreto constitui evidentemente um princpio de agenciamento do mundo.
Assim, e ainda parafraseando Lvi-Strauss, a verdadeira questo no ser nunca a de
saber se, por exemplo, o espinho do porco-espinho pode curar a picada no peito, mas se
o espinho e o mal-estar do peito podem ser colocados juntos. Sem dvida que, em
conseqncia desse procedimento de arranjo (classificao) do meio, os casos de
anomalis taxonmicas viro tona necessariamente, mas seria um qiproc grave de
confinar na simbolicidade no plano dessas anomalias.
Colocar a questo de saber em quais condies a representao conceitual de um
animal se presta a uma elaborao simblica para razes no contingentes2 significaria
portanto a opo deliberada para um nominalismo simblico que acentua a representao
conceitual, e no o comportamento real e concreto dos animais. O raciocnio a partir da
existncia de animais fantsticos cuja simbolicidade seria justamente explicada por sua
anomalia, numa primeira fase,e em seguida estendida aos animais reais, tambm no
levam em considerao um outro fato muito importante, a saber, o comportamento
fantstico dos animais reais. Os Cokwe conhecem muito poucos animais fantsticos; em
compensao, para muitos animais reais eles atribuem com freqncia um
comportamento fantstico. Pelo menos nestes casos, no a simbolicidade que
explicada pela anomalia, mas aquela provm do fato de que tal animal real bom para
pensar (portanto simblico). Os Cokwe criaram o leo dgua (tambwe wa meyia), bem
como o macaco e o crocodilo lendrios. Em compensao, por sua observao do meio
(algumas formas vegetais) eles descobriram o khai wa Nzambi a cabra de Deus (foto
398) e a lunoka wa Nzambi a serpente de Deus , dois exemplos bem
evidentes da elaborao simblica a partir do real e nos das representaes conceituais.
O trao pertinente a partir do qual um animal qualquer, no necessariamente
perfeito, ou hbrido ou monstruoso3, se torna um smbolo divinatrio com freqncia
difcil de determinar, precisamente porque alguma coisa de muito evidente para o
interrogado, mas no absolutamente para quem interroga. Por exemplo, entre os Cokwe, a
todo caador que abateu um leo (mwanangana no cesto), uma pantera (cisenga) ou um
tamandu (njimbo) so proibidas as relaes sexuais durante trs dias, porque esses
animais so como pessoas. O leo e a pantera simbolizam o chefe de terra

1
Lvi-Strauss, 1962, p. 15.
2
Dan Sperber, 1975, p. 6.
3
O artigo de Dan Sperber (1975) intitulado: Por qu os animais perfeitos, os hbridos e os monstros so
bons para pensar simbolicamente?
194

(mwanangana); por isso a proibio compreesndida de imediato. Mas e o tamandu?


Parece-nos paradoxal atribuir ao tamandu, cuja carne alis muito apreciada, a mesma
proibio que acompanha o leo e a pantera. Entretanto os Cokwe notaram no
comportamento desse animal um trao pertinente que lhes permite de colocar juntos
esses trs animais: o tamandu habitas buracos (como os mortos), ele portanto
assemelhvel aos mortos; alm do que, quando o perseguem, ele tenta se fazer passar por
um ser humano1.
A busca do trao pertinente num caso concreto pode pois nos escapar
facilmente, no somente porque o conhecimento que temos dos animais muito vago,
mas sobretudo porque o trao petinente pode se situar ora na forma ou na psicologia ora
na taxonomia ou no comportamento social. Ser necessrio ao pesquisador de campo
conhecimentos mais vastos e sobretudo uma capacidade de observao to profunda
quanto a de nosso interlocutor, para compreender o alcance exato do trao pertinente
que age em cada caso. Aqui o handicap do etnlogo evidente e no exclusivamente de
ordem cultural.
No fcil absolutamente penetrar nesse domnio, mas torna-se cada dia mais
evidente, medida que os dados do trabalho de campo so conhecidos, que mesmo
nessa direo que os mecanismos de simbolizao podem ser esclarecidos.
A proximidade zoolgica esboada aqui constitui uma prova que a tentativa no
impossvel apesar dos limites e das dificuldades. No plano desta pesquisa, nos limitamos
aos animais representados no cesto divinatrio. Mesmo para este grupo, um trabalho
suplementar fica por fazer; dado o nmero de animais representados no cesto divinatrio,
um estudo mais aprofundado neste momento ultrapassaria de longe os limites desta
pesquisa.

2.3.1 - Liji, a palavra


(fotos 400-401)

Um pequeno chifre de antlope o elemento fundamental desta tcnica


divinatria. O adivinho recorre constantemente informao que pode fornecer este
elemento. Com efeito, ao analisar os movimentos deste kaphele em relao aos pontos
(olhos) de referncia branco e vermelho do cesto, o adivinho obtm constantemente as
respostas sim/no (bem/mal) s questes formuladas ao curso de uma sesso.
Esse pequeno chifre (fig. 56, a) que pode vir de vrias espcies de antlopes, em
princpio um presente do mestre (tata wa ngombo) a seu discpulo (mwana wa ngombo)
quando da iniciao do adivinho.
Todos os exeplares observados provinham de um dos trs animais seguintes:
kaseshi, khai ou mbinda. Apesar de uma certa confuso no estado atual das taxonomias
relativas a esses trs animais, pode-se precisar a identidade dessas espcies que os
adivinhos utilizam tambm para obter outros tuphele.
O kaseshi da regio se identifica espcie Cephalophus monticola, que alguns
taxonomistas designam tambm pela qualificao de Guevei monticola, e que outros, de
lngua inglesa, denominam geralmente blue duiker. Dentre o grande nmero de
1
Ver item 2.3.4.
195

variedades ou de subespcies existentes na frica, a conhecida no territrio angolano a


subespcie Cephalophus monticola Thunberg1.
Um outro animal freqentemente representado pelo kaphele liji sem dvida o
khai, muito conhecido, que os bilogos de expresso portuguesa designam por cabra do
mato, conhecido tambm sob o termo vulgar de bambi. a espcie Sylvicapra
representada em Angola pela subespcie Sylvicapra grimia spendilula.
Um terceiro animal utilizado tambm com o mesmo fim o bambi gigante, ou
mbinda Cephalophus sylvicultor mais raro que os dois outros.
Ao pequeno chifre do cesto (liji: palavra) tm sido atribudas diferentes
significaes:
... um pequeno chifre vazio de nome liji, voz; ... o mal foi causado por
maledicncias, e preciso, para remedi-la, encontrar as razes e os autores destas,
entender-se com eles e reconciliar-se2.
Pequeno chifre de mbambi (antlope de pequeno porte). A abertura do chifre
significa que a doena ou a morte sobre as quais se interroga o adivinho provm de
relaes ou de fofocas3.
Mpembe: Ziegenhorn. Der Kranke muss Ziegenfleisch essen. Sungu:
Antilopenhorn. Der Kranke stribt durch Zauberkraft4.
Riji: um pedao de chifre de kongu... uma mulher seduzida por um homem
no quis fazer amor. Por vingana, ela a envenenou5.
Ombinga: na animal horn meaning mouth. The person being divined for is ill
because some one has cursed him. Or perhaps there is a stripe caused by words, or he has
been administered poison, which passed all through his mouth6. Mas a aplicao poli-
smica deste kaphele imediatamente assinalada por M. Tucker, que continua: This
piece can be used in many different combinations, so is very useful. When an ongombo is
first made, the ombinga plays na important role. The officiating ochimbanda drinks from
it, burns medicine in it, and waves it about over arms and legs of the patient for whom the
ombongo is being made7.
O papel determinante da resposta de liji explicitamente assinalada por M.
Milheiros, que escreve a propsito de uma consulta a respeito de uma viagem: yengo
(um chifre de cabra selvagem): se o pequeno chifre aparece do lado vermelho, um mau
pressgio para a viagem. Se aparece do lado branco, um bom pressgio.8
Da mesma forma, um dos informantes de Turner, Muchona, completamente
claro no que concerne ao papel explicativo deste kaphele. Em compensao, a resposta
1
Infomao oral do bilogo Luna de Carvalho (Dundo, 1975).
2
Bastin, 1961, p. 188.
3
Delachaux, 1946, p. 50.
4
Baumann, 1935, p. 172.
5
Santos, 1960, p. 169.
6
Tucker, 1940, p. 189. N. do T.: Ombinga: um chifre animal, significando boca. A pessoa para a qual
se adivinha est doente porque algum a maldisse. Ou talvez haja um atrito causado por palavras, ou ele
tem administrado veneno, que passou atravs de sua boca.
7
Idem. N. do T.: Esta pea pode ser usada em muitas combinaes diferentes, por isso muito til.
Quando um ombongo iniciado, o ombinga exerce um papel importante. O ochimbanda oficial bebe nele,
queima medicamentos nele, e verte-o sobre os braos e pernas do paciente para quem est sendo feito o
ombongo.
8
Milheirosl, 1949, p. 32.
196

proveniente da segunda fonte de Turner, um adivinho angolano, o situa, antes, no


contexto de uma sesso particular:
Angolan diviner: This satnds for cursing (ku-shinanga) by such cursing a
sorcerer can raise up a musalu, the body of a dead person with long hair and finger-nails
and sem it to kill someone he has a grudge against1.
E Muchona diz ainda:
It is a word either of a dead or a living person. Or it is a curse (ku-shingana)
which caused something bad to happen. They divine to find out why someonse
spoke such a word. The white clay (mpeza) stands for someone who spoke properly or
justly. If that person spoke well, the kaponya called izu would stand upright with the
white clay upper most. But if it lay on one side, that person spoke badly or evilly2.
por isso que, alm das significaes concretas atribudas a este kaphele e que,
em certos casos, no so mais que o reflexo do contexto de uma ssesso realizada no
momento de recolher a informao, o smbolo liji sobretudo um elemento que permite
ao adivinho reduzir as ambigidades que surgem freqentemente ao curso de uma sesso.
Ns j observamos que h outros tuphele que o adivinho pode utilizar com o
mesmo fim, principalmente o trio familiar e a estatueta antropomorfa citanga3. Contudo,
liji incontestavelmente a mais utilizada; alis, sua presena no cesto no tem outra
finalidade. essa a razo pela qual certos praticantes da adivinhao consideram liji
como o kaphele mais importante de todo o conjunto do cesto.
Mas o pequeno chifre de antlope pode ter um outro aspecto e uma significao
diferente no cesto; neste caso, , o chifre no faz mais referncia mensagem que sai dessa
boca que fala (liji), mas muito simplesmente um recipiente bem fechado que contm
um medicamento misterioso que guarda a forma de ngombo e garante a certeza e
segurana do adivinho (fig. 56, b): Mbinga ya somo, tal o nome deste chifre, deve
assegurar a sorte do adivinho. Enquanto amuleto favorvel, ele pode ser utilizado tambm
por qualquer um como mbinga ya somo; colocando-o em cima de sua casa, ele atrai boa
sorte sobre ela. De acordo com uma informao de Mwafima, que primeiro pediu a
permisso dos outros ancies presentes conversa para revelar essas coisas secretas, o
chifre transportado pelo tahi em seu ngombo o mbinga ya somo do adivinho
contm ingredientes diversos, dentre os quais a relquia de um feiticeiro (fragmento de
um osso, de unhas, de cabelo, etc.) obtida em princpio no momento da destruio de um
feiticeiro. Essa relquia de feiticeiro se conserva normalmente nas folhas de duas rvores:
munda e muvuma, e numa saquinho cuidadosamente dissimulado.
Curiosamente, a relquia de feiticeiro pode ser substituda pela de uma criana
gmea; neste caso ser preciso adicionar uma poro do cogumelo kulya4. O mbinga ya

1
Turner, 1961, pp. 56-57. N. do T.: Adivinho angolano: ele representa a maledicncia (ku-shingana);
pela maledicncia um feiticeiro pode despertar um musalu, o corpo de uma pessoa morta com unhas e
cabelos compridos, e manda-lhe matar algum contra quem tem rancor.
2
Idem. N. do T.: uma palavra tanto para uma pessoa morta ou viva. Ou uma praga (ku-shingana)
que causou algum acontecimento ruim. O adivinho procura saber por que algum falou tal palavra. A
argila branca (mpeza) representa algum que que falou com propriedade ou justia. Se a pessoa falou bem,
o kaponya chamado izu ficar na vertical com a argila branca mais acima. Mas se ele deita de um lado, a
pessoa falou com maldade ou praguejou.
3
Ver itens 2.1.1 e 2.1.8.
4
Ver item 2.4.2.
197

somo se tornar ainda mais eficaz se se juntar outros elementos: nange (o passarinho
guarda-boi, Bubulcus ibis), kuso (papagaio) e sehelela (a ave que ri: Prinops
policephala). O contedo inteiro deste chifre designado por expresses vagas demais,
que no revelam nada do contedo real. A designao assinalada por Hauenstein
prola vermelha um exemplo:
Mbinga pequeno chifre de ombambi cuja abertura tapada por um grande
pedao de cera e na qual introduzida uma pequena prola vermelha 1.
Considera-se que as explicaes fornecidas por Delachaus esto longe da
significao real deste objeto: o chifre de uma cabra com sua tampa, o veneno ao qual
foi-se exposto por imprudncia. A cabra, por seus pulos e corridas malucas, sinnimo
de imprudncia2; assim como a de Hambly: The horn with shells on it indicates that the
women who is consulting the diviner will not bear children3.
Na realidade, nenhum dos adivinhos cokwe consideram o mbinga ya somo como
kaphele de adivinhao; no preciso portanto procurar explicaes neste caso.

2.3.2. - Cilama, a pata do macaco


(fotos 402-a,b,c,d)

Mesmo se o termo cilama significa o membro anterior de no importa qual


animal, o adivinho emprega com freqncia cilama para designar o membro ou, antes, a
pata de um destes dois cercopitecos: cima ou pombo. Assim, quando o adivinho quiser
denunciar o kaphele com preciso, dir: cilama ca cima nyi pombo (pata de cima ou de
pombo) (fig. 57).
O primeiro desses antropides o Cercopithecus thiops, confundido s vezes no
nordeste de angola com uma outra espcie, Cercopithecus ascanius; os Cokwe chamam-
no com freqncia ngondo e os Kongo (Tukongo), kima.
Essa confuso freqente, mesmo entre os Cokwe, explica por qu os adivinhos
atribuem ao primeiro cercopiteco as caractersticas do segundo. Assim, tanto o cima
quanto o ngondo so considerados pelos Cokwe como os peritos em furto. a primeira
explicao fornecida pelos adivinhos apario da mo (esqueleto de uma pata) do
cercopiteco borda do cesto; o cliente tem uma dvida antiga a acertar (no pagar pe o
devedor no quadro dos ladres...)4.
A confuso mais ou menos habitual de cima e ngondo ainda mais evidente no
fato de que tanto os adivinhos quanto os participantes da sesso reaproximam a mo
leve do cercopiteco do comportamento do danarino mascarado ngondo por ocasio da
festa de entrada na mukanda.. O danarino se torna o centro das atenes por seu
comportamento aparentemente agressivo e sobretudo barulhento; ele bate dois pedaos de
pau um contra o outro, se lana de repente em corridas que assustam as mulheres e as
1
Hauenstein, 1961, p. 152.
2
Delachaux, 1964, p. 51.
3
Hambly, 1934, p. 274. N. do T.: O chifre com conchas indica que a mulher que est consultando o
adivinho no ter filhos.
4
Para os Cokwe, um homem teria sempre um meio de pagar uma dvida; ao limite, e se lhe falta os outros
meios, ele poderia sempre remeter uma pessoa de sua famlia como thombo ou ainda por-se a si mesmo a
servio do credor, pagando-lhe com seu trabalho at a extino da dvida.
198

ameaa para que se afastem bastante, para que tenha tempo de entrar nas casas e pegar os
diversos alimentos que ele deve fornecer aos iniciados.
O ngondo tem como semelhana com outro cercopiteco, o pombo, mais
freqentemente denominado hundu Papio (Cropithecus) cynocephalus kind
Lnnberg, 1919 uma sagacidade excepcional. Os Cokwe gostam de contar que
quando de suas incurses nos campos cultivados (pombo tambm um ladro eminente),
o hundu sabe at mesmo utilizar a casca das rvores para ligar os produtos e levar s
costas cargas enormes. Ou ainda, em circunstncias em que ele particularmente hostil
ao homem, ele ousaria at mesmo amarrar as pessoas utilizando a casca das rvores como
cordas1.
O balanado desses macacos inspirou certas danas muito apreciadas, relativas
iniciao dos jovens e executadas pelos danarinos mascarados mwana-pw e cihongo2.
Alis, o canto dos jovens no campo da iniciao evoca tambm o tema dos babunos
trepando as rvores, prtica que proibida aos jovens candidatos:

manyina ku mutondo mahundu we!


wanwa masunuka mahundu we!
(Subam nas rvores, babunos!
Desam, babunos!)

Essa aluso aos babunos que sobem e descem remete evidentemente proibio
imposta aos tundanji (jovens participantes da iniciao), em vista de impedir que eles se
tornem babunos. A literatura oral explica com efeito que os tundanji so transformados
em babunos por negligncia dos responsveis (isolokolo)3:
Os guardas do campo (isolokolo) se afastaram e os tundanji foram deixados
completamente ss por um certo tempo. Quando os guardas voltaram, no havia mais
ningum dentro do campo, mas na floresta prxima encontravam-se babunos que
cantavam:

muhundu we twacina ikelekele!


(ns babunos, ns fugimos
das palmeiras!)4

Segundo uma outra verso recolhida pelo mesmo autor, a causa da metamorfose
seria devida precisamente ao fato de que os jovens haviam violado a proibio de subir
nas rvores:
Um grupo de tundanji que procurava frutos silvestres haviam encontrado makolo
saborosos, mas para colh-los era preciso subir na rvore primeiro. Esquecendo a

1
Barros Machado, 1969, p. 164.
2
Idem.
3
Cada um dos meninos que entra no campo de iniciao ter seu responsvel (padrinho: isolokolo) que
deve lhe assistir em todas as suas necessidades: sade, ensino, alimentao, etc.
4
Verso: Luna de Carvalho. Ikelekele, palmeiras, seria uma referncia ao instrumento de castigo utilizado
pelos ikolokolo.
199

proibio, os tundanji treparam e foram imediatamente transformados em babunos que


se puseram a cantar quando os guardas chegaram:

mahundu we twapwile atu


twa lumuka ikelekele
(ns babunos, ns somos pessoas
ns fomos transformados em vara de palmeira).

De acordo com uma terceira verso (Lopes Cardoso), no teria havido


metamorfose dos tundnaji em babunos, mas unicamente uma tentativa dos mahundu para
carregar os novios. A empreitada falhou porque os tundanji gritaram e os ikolokolo se
puseram a caminho. Os babunos, frustrados em suas intenes, teriam cantado naquele
instante:
hundu we washina ikolokolo.
(Ns babunos, ns escapamos dos guardas)1.
A proibio feita aos tundanji de ter comportamentos que os confunda com
babunos tem como pano de fundo um contexto cultural de toda a frica Central que pega
o macaco como responsvel pela separao entre os homens e os animais. Na mitologia
de Kuba, por exemplo, a guerra entre o homem e os animais foi deslanchada justamente
pelo comportamento do macaco, que ladro. L. de Heusch pe em evidncia as linhas
de fora dessa ruptura:
A guerra estourou entre eles (homens e animais) no dia em que o macaco...
roubou as cabaas de um atirador de vinho-de-palma. O homem matou o macaco, pregou
o leopardo que havia tomado o partido deste. Ento, os animais deixaram a aldeia e se
puseram a povoar a floresta, as guas e o ar. S alguns ficaram perto do homem2.
A transformao de um tundanji em babuno um tema que concerne unicamente
mukanda, mas quando o adivinho d uma advertncia a seu cliente fazendo-o observar
que ele se comporta como um macaco, o cliente se d conta imediatamente que preciso
que ele pague suas dvidas com toda a urgncia, antes que seja tarde demais:
... se o consultante veio se queixar de seu mau estado de sade, a apario de
cilama ca cima indicar que para sarar, o doente deve das dinheiro famlia que arrisca,
seno, de lhe causar um distrbio mais grave3.
De acordo com uma outra informao recolhida por Hauenstein, tal ameaa se
concretizar em breve, se o culpado persistir em seus comportamentos de macaco:
China uma pata de macaco. A espcie no foi especificada. Trata-se de um
caso bastante anlogo a mandamba, se bem que seja menos grave4.
Um outro aspecto dos cercopitecos, este muito positivo, igualmente explorado
pelo adivinho: a habilidade (a certeza / segurana) com a qual o macaco segura um
galho de rvore ou qualquer outra coisa sobre a qual se apia para se deslocar.
Hamumona o nico que concede grande importncia a este aspecto curioso para
explicar a significao da mo do cercopiteco:

1
Ver Barros Machado, 1969, p. 164.
2
Heusch, 1972, p. 131; tambm p. 146 e 150.
3
Bastin, 1961, p. 195, nota 3.
4
Hauenstein, 1961, p. 146.
200

O cima muito importante para o adivinho; quando algum mata o cima, o


adivinho lhe pede a mo para coloc-la em seu ngombo e a purifica primeiro com
pemba; ela ser til para segurar o ngombo e assim o adivinho estar certo de si quando
pronunciar a palavra do cesto; de seu lado, o cliente pode comear a ter f em tudo o que
ouviu e no largar nunca a palavra do ngombo.
Esta explicao dada pelo adivinho Hamumona est muito prxima da que L.
Tucker obteve dos Ovimbundu para o mesmo smbolo:

Osima: the gaw of a monkey.


Kuatela wosima lamelele wevovo!
Ondaka yova kuka yepemo vali oyo muele
Ondaka yochili oyo:

(The monkey holds tightly to the branch to keep it from falling, so the one
who has some to divine must persevere in his work of aiding his ancestral spirit, or he
will die)1.

Assim, a apario da mo do macaco com freqncia considerada como um


bom pressgio, como uma prova de que o consultante vai gozar de boa sade ou de que a
doena que o acabrunha vai evoluir de modo favorvel porque sua vida est bem
assegurada (Hamumona), ou ainda que a viagem previstar vai correr bem.

2.3.3 - Lukuka, o pangolim


(foto 403)

Das trs espcies de pangolins conhecidas na frica, a pequena, a mdia, e a de


rabo longo (Manis smutsia gigantea, Manis phataginus tricuspis, Manis uromanis
longicaudata), precisamente esta ltima que a mais conhecida entre os Cokwe. As
escamas deste pangolim, longas e resistente, bem como sua longa cauda, acentuam a
semelhana desta espcie com os rpteis2.
Os Cokwe notam que este animal toma facilmente a forma de uma bola, e os
adivinhos explicam que essa particularidade faz do pangolim um dos elementos do cesto.
Eles dizem que o pangolim adota esse comportamento bizarro (ele se torna uma bola)
porque tem vergonha: quando v algum, ele toma essa forma para que no o percebam.
Entretanto, a maioria dos adivinhos sublinham que a escama do pangolim
(raramente a cauda) no cesto divinatrio no tem o valor de um kaphele, mas unicamente
a de um luphelo; um elemnto que o adivinho deve fornecer aos clientes para
acompanhar os remdios. A escama de pangolim seria utilizada sobretudo para a
preparao dos remdios contra o mal de ventre, e particularmente contra as doenas das
mulheres grvidas. Essa prtica deve atingir vrios objetivos. Primeiro, a doena da

1
Tucker, 1940, p. 194. N. do T.: Osima: pata de macaco. (...) O macaco segura firme no galho para
no cair; da mesma forma quem veio adivinhar deve perseverar em seu trabalho de ajudar seu esprito
ancestral, ou ir morrer.
2
Pirelli, 1964, p. 34.
201

mulher grvida cujos sinais exteriores de grvidez no so evidentes. Os Cokwe explicam


esse fenmeno por um crescimento anormal ou insuficiente do feto e, neste caso, o
adivinho (ou o curandeiro) deve prescrever um remdio compreendendo a infuso da
escama do pangolim:
Quando a mulher tem uma criana no ventre, mas a criana no se desenvolve
muito rpido e, alm do que, ela tem mal do ventre, ela deve beber um remdio preparado
com razes de plantas e a escama de lukaka que se ferveu; alguns dias mais tarde, o ventre
da mulher aumenta regularmente de volume e as dores desaparecem (Hamumona).
Igualmente, quando se acredita que h perigo de aborto, o tahi prescreve o mesmo
medicamento ao qual ser preciso adicionar os pequenos pedaos de duas aves, nange e
sehelela1, que reforam o efeito da escama do pangolim fazendo aumentar e crescer o feto
afim de que o nascimento se faa sem problemas.
Esse poder de proteger a vida humana, sobretudo no estado do desenvolvimento
embrionrio, devido, segundo os Cokwe, situao particular do pangolim, mediador
entre o mundo dos animais que ele habita, se escondendo nos buracos das rvores (ele
tem vergonha dos outros animais) e a espcie humana, da qual estaria prximo porque ele
monopari como as mulheres, de quem imita o redondo.
Com a pluma da guia, a pelo do leopardo e a pele da gua, a escama do pangolim
um elemento fundamental da simbologia real em toda a mitologia kuba. Este elemento
anlisado em detalhe por L. de Heusch se averigou importante para compreender o
mecanismo do poder e sua relao com a adivinhap; com efeito se... a realeza o lugar
onde a contradio natureza / cultura est superada...2, a adivinhao um dos pontos
fundamentais da repercusso dessa contradio permanente. Se as homologias do
pangolim permitem explicar sua presena no bestirio real, sua esfericidade fcil
que permite as explicaes propostas pelo adivinho para a escama do pangolim.

2.3.4 - Njimbo, o tamandu

O tamandu (Orycteropus afer albicauduls), presente no cesto divinatrio sob a


forma de uma pata, conhecido em toda a regio nordeste de Angola. Os Cokwe o
capturam freqentemente durante a estao das chuvas com a ajuda de vrias tcnicas de
caa das quais a mais freqente o recurso a uma espcie de estacada em torno do buraco
do njimbo, deixando livre uma nica sada perto da qual uma armadilha (foto 404) por
esmagamento preparada3.
Este representante dos Tubulidentata tem costumes noturnos, habita os buracos
mais profundos e se alimenta de cupins e formigas. Os Cokwe apreciam a carne de
njimbo e consideram a vida subterrnea desse animal como um smbolo do passado, de
tudo o que est esquecidoe perdido no tempo.
Enquanto que para Delachaux, a pata (unha) de njimbo a enxada do mdico
que dever escavar e procurar as razes necessrias para a preparao dos remdios para

1
Ver item 2.3.21.
2
Heusch, 1972, p. 121.
3
Frade, 1961, pp. 222-223.
202

seu clientes1, a maioria de nossos informadores insistem sobre a relao entre este animal
e os eventos de outrora, em particular o passado do cliente anterior mukanda.
Riasendala explica que o njimbo o representante do passado por esta anedota:
Um homem descobriu um buraco de njimbo. Ele cavou imediatamente e em
seguida ps bastonetes em todo o derredor de modo a cercar o njimbo, que s tinha uma
sada possvel. O homem ficou muito tempo espreita. Finalmente, o njimbo saiu e o
homem feriu-o com um tiro de fuzil. Olhando o caador, o njimbo falou assim:
Oh! meu irmo, como possvel que queira me matar, voc que pertence ao meu
parentesco? Ento o njimbo interpelou o caador pelo nome que ele tinha antes da
circunciso. Todos os assistentes (colaboradores do caador) protestaram contra o njimbo,
que quer que o considerem como uma pessoa, e reclamaram sua morte. Desde ento, todo
mundo sabe que njimbo conhece o nome das pessoas anterior circunciso.2
Mas esse conhecimento do passado no completamente aceito pelos Cokwe,
para quem o nome de antes da circunciso proibido; por isso, teme-se o njimbo, que se
lembra do passado. Esse privilgio de mestre do passado reconhecido tanto ao njimbo
quanto aos ancies no sempre apreciado pelos Cokwe, que censuram s vezes quem
gosta de falar do que se passou antigamente e no so competentes, e lhes dizem:
Voc fala como njimbo, voc escava o que aconteceu h muito tempo.
Alm disso, o passado, por estar deslocado, vem de debaixo da terra e tem,
portanto, uma conotao com os mortos. Sakungu explica este aspecto que justifica com
freqncia que se consulte o adivinho:
Um caador, ao ver um buraco, acreditou ter encontrado um rato; ele cavou para
apanhar o rato, mas descobriu na verdade uma sepultura! Ele teve medo do que havia
feito e retornou rpido para a aldeia. No dia seguinte, ele ficou muito doente e chamou o
adivinho. Este props um tratamento especial contra o mal de njimbo. O medicamento
compreendia, entre outras coisas, razes cortadas pelo njimbo quando ele cavou o buraco.
O doente esfregou todo o corpo com o remdio, e alm disso ofereceu ao esprito do
morto (do qual ele violou a sepultura) um pintinho, dissimulado nas plantas, que ele ps
no buraco de njimbo. Assim, o esprito do morto (mufu wa kulyata) deixar o caador em
paz, porque entrar no corpo do pintinho.

2.3.5 - Cisekele, o porco-espinho


(fotos 405-406)

Para o adivinho, a apario borda do ngombo de um pedao de espinho do


porco-espinho tem uma significao sempre negativa. Estaremos, neste caso, diante de
um mal profundo que penetra no corpo do doente, de uma desgraa que provm de um
ancestral que foi esquecido por muito tempo.
O espinho do cisekele (fig. 58) evoca antes de qualquer outra coisa um mal-estar
que no devido nem quele que o deve suportar nem a ningum das suas redondezas. O

1
Delachaux, 1946, p. 50.
2
Os Luba consideram que abater um tamandu... um ato de gravidade igual de matar um homem. Ele
com efeito uma reencarnao... (Bouillon, 1954, p. 565).
203

espinho do cisekele o sinal de que algum jogou uma praga; do mesmo modo, acredita-
se que o cisekele mande seus espinhos contra os inimigos que o perseguem:
Se uma pessoa persegue um porco-espinho para mat-lo, ter que abord-lo por
trs; se ela passa para o lado (ele) atirar um espinho nela. Isto esclarece sem dvida o
sentido simblico do fragmento de espinho contido no cesto divinatrio ngombo ya
cisuka. A apario do pequeno objeto musako wa cisekele significa que a dor de peito
causada pelo musako que o teria atingido; para sarar preciso fazer escarificaes no
local onde a dor se faz sentir e friccionar com graxa, alm de beber o medicamento
prescrito1.
Esse mal-estar profundo pode se manifestar tambm por um comicho; neste caso,
ser preciso misturar o p de um espinho com outros medicamentos que so indicados
contra a feitiaria; com efeito, um comicho anormal e prolongado deve se explicar
necessariamente por uma praga lanada pelo feiticeiro ou por algum com quem se est
em disputa.
Uma variante seria a que apresenta Delachaux, segundo a qual a feitiaria teria
como mediador o leo que deveria atacar uma vtima:
Tyumbakano pedao de espinho do porco-espinho. Do verbo kumbakano ku
ndumba: enfeitiamento! Jogaram-lhe uma praga para que ele seja comido pelo leo na
floresta2.
Se um ancestral, sobretudo um ancestral feminino, est esquecido h muito
tempo, ele poder manifestar seu descontentamento sob a forma de uma picada interior;
neste caso, o fato de usar um ornamento pertencente a esse ancestral e lhe oferecer um
sacrifcio em reparao a via normal para apaziguar o esprito:
Pode tratar-se de um caso de possesso de uma mulher cujo ancestral deseja
receber um ochisako, seja um grampo de cabelo que a doente dever colocar toda vez que
entrar em transe ou fizer as danas cerimoniais que seu esprito exige3.
O poder que se atribui ao cisekele de atirar seus espinhos contra um eventual
agressor confirmado por um conjunto de anedotas contadas pelos ancies e dentre as
quais escolhemos a seguinte, que explicaria a razo pela qual o co recusa a carne do
porco-espinho:
O co e o cisekele apostaram qual dos dois apanharia o outro. O co afirmava
que no primeiro dia de caa ele pegaria o cisekele; em compensao, este aqui estava
muito seguro de que isto no aconteceria nunca. O co exps seus argumentos: eu sou
forte, sou at mesmo capaz de abater um thengo4; ento, como que no poderia pegar-
te? Mas o cisekele insistia que jamais seria pego pelo co.
O primeiro dia de caa chegou e o co, ao percorrer a cana (savana), farejou de
pronto o cisekele; rpido, ele perseguiu suas pistas e despistou o cisekele, que se escondia
nos galhos de um arbusto. Percebendo o co que lhe ameaava, o cisekele iniciou a fuga.
Como o co o perseguia de muito perto, o cisekele atirou contra ele alguns de seus
espinhos; por isso que o co abandonou o desafio. Um outro co tomou seu lugar. O
cisekele se refugiou entretanto num buraco e mais uma vez atirou seus espinhos contra o

1
Bastin, 1961, p. 207.
2
Delachaux, 1946, p. 53.
3
Hauenstein, 1961, p. 150.
4
Tengo, a palanca (Hippotragus equinus).
204

co, que tentava persegui-lo em seu refgio. Os espinhos feriram o co nos olhos. Um
pouco mais tarde os caadores chegaram e fizeram uma armadilha com um grosso tronco
de madeira (mukunyi) 1. noite, o cisekele saiu para procurar comida, mas a armadilha
funcionou e o cisekele foi esmagado. No dia seguinte, quando os caadores destrincharam
a carne do cisekele, o co tambm recebeu um pedao, mas recusou dizendo: Eu no
quero desta carne, porque ele (o cisekele) feriu-me nos olhos. por isso que at hoje o
co nunca mais tocou na carne do cisekele (Rikenga).

2.3.6 - Yanga, o esprito do caador


(fotos 407-409)

A profisso de caador uma atividade muito valorizada na cultura cokwe;


considerada particularmente perigosa, ela protegida por um conjunto de proibies e
rituais. O caador profissional deve fazer a prova de sua competncia reunindo uma
expedio de caa, que constitui alis as preliminares de uma iniciao.
O simbolismo de yanga se inspira em grande parte no ritual de iniciao do
caador. Yanga o dente de um animal abatido que o adivinho coloca em seu cesto
coberto por um pedao de pano vermelho (fig. 59). No ato divinatrio, a presena desse
dente borda do cesto pode significar toda espcie de exigncias do esprito (ancestral)
que chama o caado ao exerccio de sua profisso:
Sob o nome yanga, um dente qualquer de animal simboliza, no cesto do adivinho
ngombo ya cisuka, o esprito tutelar hamba wa yanga. Caadas infrutferas ou doenas
podem ser atribudas a esse esprito colrico pela negligncia de seu culto2.
O prestgio do ancestral caador mantido por um ritual que se assemelha quele
que se rende ao antigo chefe de terra. O esprito do caador defunto que, ele tambm,
mora num cupinzeiro, na mata, deve ser introduzido na aldeia.
O caador, para venerar a hamba yanga, dever encontrar um torro de terra
construdo pelos cupins e coloc-lo diante de sua casa; ele derramar sobre o torro o
sangue de animais abatidos; o dente yanga do cesto pode lembrar tudo isto ao caador:
O dente de um javali protegido por uma camada de mukundu, um farrapo vermelho e
cera significam que preciso fazer hamba; (o consultante) procura um torro de cupins
(mafika) e parte caada; mata um khai (pequena cabra). Derramar o sangue do antlope
sobre mafika3.
O adivinho Hamumona, que, ele tambm, foi iniciado h muito tempo como
caador, explica assim o papel do dente entre os smbolos de seu cestp:
Um caador azarado vem me procurar; eu lhe direi: voc negligenciou o yanga
de um ancestral; voc no lhe ofereceu o sangue do animal abatido, no o colocou na
nanbwa (a bala do fuzil); isto que preciso fazer, e ento voc encontrar animais.
De acordo com o mesmo adivinho, o dente simboliza a ruptura de uma proibio
pelo donte. Neste caso, no dente no cesto (um dente de animal) figura o dente de um

1
Ver foto 404.
2
Bastin, 1961, p. 34, nota 5.
3
Santos, 1960, p. 160.
205

caador, espcie de refgio ou de estadia para o esprito desse mesmo caador, ao qual
um culto deve ser rendido:
Algum sofre em seu corpo. O adivinho lhe dir: voc tem a hamba yanga;
preciso chamar o mbuki (curandeiro) para faz-la subir. O especialista pratica uma inciso
no corpo do doente e lhe aplica uma ventosa. Um pouco mais tarde, o dente que se v
deslocar no corpo foi recuperado pela ventosa. Era o dente de um caador; ele (o doente)
o pegou perto de uma rvore ou talvez tenha sido enviado por um feiticeiro.
Os Cokwe dizem que o esprito de um caador fica preso a seus dentes aps a
morte; de acordo com os mesmo informadores, poderia ser no importa qual dente, mas
segundo uma tradio antiga, tratar-se-ia apenas dos incisivos superiores mdios. Os
dentes seriam extrados da boca do caador antes de seu enterro e honrados por um culto
especial, porque seno eles (os dentes) atacariam o corpo. O feiticeiro, que poderia
apoderar-se deles, teria a uma arma terrvel, que ele poderia utilizar contra no importa
quem e em particular contra o caador:
Um caador que conseguiu matar muitos animais no dividiu a caa com um
homem da aldeia; ento esse homem decide matar o caador. Ele vai ao cemitrio furtar
um dente de um caador defunto; com esse dente, ele faz uma arma miniatura uta wa
mbomba que ele dirige contra seu inimigo. A pessoa atacada passar mal e ir
procurar o adivinho, depois o mbuki (curandeiro). Este ltimo, se conseguir fazer o dente
subir, o depositar perto de uma rvore. Acontece que algum passando ali, o cata, ou o
dente penetra completamente em seu corpo, ou fica colado em seu p. Ou ainda, se, a sua
volta, o viajante tem relaes sexuais, corre o risco de ser imediatamente pego pelo dente,
porque no se pode fazer amor quando se toca yanga (Sakungu).
Vemos que o dente do cesto, substituindo o do caador, simboliza primeiro a
prpria fora do caador; ele pode ser benfico para o grupo (bem sucedido na caa) ou se
voltar contra aqueles a quem deveria beneficiar (doena, feitiaria); isto nos mostra que,
na sociedade cokwe, preciso integrar todos os valores reconhecidos, e em particular
aqueles que esto mais diretamente em relao com a subsistncia do grupo. O dente
honrado ajuda o caador; sua presena no santurio da aldeia desejvel, porque ele
representa o poder de matar os animais; se se esquece dele, ele muda ento, podendo ser
mortfero e atacar homens, e no mais os animais. A relao dessas foras pode se
estabelecer assim:

+ Culto dos ancestrais = relao de foras favorveis


homem > poder mortfero > animais
Yanga
(o dente) sade caa abundante

- Esquecimento dos ancestrais = relao de foras negativas


homem < poder mortfero < animais

Esquema 11 doena feitiaria falta de caa


206

2.3.7 - Thela, a guia real


(foto 410)

A guia real (Stephanoaetus coronatus L.), que se acredita ser a maior das guias
africanas, procurada sobretudo por suas plumas, utilizadas por vrias etnias como
ornamentos reais. No cesto divinatrio, no so as pumas, mas as garras que representam
a guia real; elas se apresentam isoladas, em princpio (fig. 60), mas s vezes tambm
presas aos pares.
A escolha da garra da guia com kaphele figurando no cesto divinatrio remete ao
comportamento da guia enquanto rapace. Ela conhecida pela audcia de seus ataques,
tanto na floresta, onde chega a capturar at mesmo macacos, quanto nas savanas, onde
suas presas so sobretudo os pequenos antlopes de qualquer espcie, compreendendo
tambm certos animais domsticos. Os Cokwe afirmam que mesmo uma criana poderia
ser uma presa fcil para a thela; todavia, no se conhece ningum que tenha sido
testemunha de tal acidente.
Nada de surpreendente, portanto, que a garra da guia seja portadora de uma
valncia negativa, em conotao imediata com as prticas de feitiaria: ... uma garra de
guia ou cala ca thela... indica que o mal foi causado pelo feiticeiro1.
Essa relao com a feitiaria domina alis todas as explicaes que obtivemos
para a garra como kaphele. Contudo, preciso notar tambm a existncia da hamba
ngonga, o esprito da guia, que os Cokwe do centro de Angola consideram como ... a
sombra de uma guia, podendo causar a morte de uma criana2. Tal hamba concerne
particularmente s doenas das crianas, sobretudo entre os Ngangela. Delachaux
descreve o contexto ritual para o tratamento dessas doenas:
A unha de uma guia significa uma lihamba, doena da criana pequena, que se
tratar por danas e ps esculpidos de diferentes formas representando todas as doenas
das crianas. Esses ps so plantados s 9 horas da manh e coloridos com vermelho e
preto bem fortes. Eles representam os espritos dos ribeires que provocam as doenas e
que no devero mais transpor os limites da casa onde se encontra a criana doente3.
Curiosamente, Baumann observa tambm essa ligao entre a garra de guia e as
doenas das crianas, e sua tese se apia tambm na idia de que a guia seria capaz de
levar uma criana Tsala tsa ngonga: Adlerkralle. Bedeutung: ein Kind ist krank (Adler
bringen Kindler!)4.
A existncia da hamba ngonga, considerada como recente entre os Cokwe, mas
bastante conhecida hoje em dia, mostra bem que, alm do comportamento
especificamente predador da guia, outros fatores atuaram para que este elemento (garra)
entrasse no cesto do adivinho.
Na verdade, a guia faz parte dos smbolos do pode real, o que explica que suas
plumas sejam to freqentes entre vrias etnias da frica Central; entre os Kuba
principalmente, ela considerada uma das testemunhas da criao do mundo5.

1
Bastin, 1961, p. 192.
2
Delachaux, 1961, p. 152.
3
Delachaux, 1961, p. 50.
4
Baumann, 1935, p. 72.
5
Heusc, 1972, p. 128; p. 138.
207

Compreende-se, pois, que a hamba guia seja considerada como um esprito poderoso
capaz de neutralizar foras importantes. De acordo com Hauenstein, uma hamba que
nunca se manifesta completamente sozinha; est sempre acompanhada de outras menos
importantes, e o ritual que preciso cumprir para honr-la consiste essencialmente em
pr em relevo a preeminncia do esprito da guia sobre todos os outros:
Um ancestral transmite a hamba da guia, Ele nunca se apresenta completamente
s, est sempre acompanhado de outros espritos mais fracos que ele. Para agrad-lo,
preciso humilhar simbolicamente esses outros espritos atirando pedacinhos de madeira
(dolos reduzidos a sua expresso mais simples) ao lado da do ancestral possessor do
esprito da guia, afim de que este ltimo seja reconhecido como o mais importante e o
mais poderoso. O doente dever mandar esculpir uma representao da guia, que ele
colocar como dolo prxima de sua casa1.
Na interpretao de Milheiros garra de guia xitatu: um bom pressgio2, h
certamente confuso com a garra de um outro animal, porque tal explicao
formalmente desmentida por todos os adivinhos.
Detalhe bastante curiosos tambm: no cesto divinatrio dos Ovimbundu,
encontra-se tambm a guia representada neste caso no por uma garra, mas por seu bico.
A valncia negativa est igualmente em relao com a feitiaria, mas neste caso, o ato do
feiticeiro se situa num contexto particular de intrigas. um aspecto atestado por vrios
adivinhos cokwe. Entretanto, no nordeste de Angola, a representao da guia no cesto
divinatrio feita sempre sob a forma de uma garra; no observamos nunca o bico da
guia como smbolo tal como ele existe no cesto divinatrio dos Ovimbundu e que
descreve Tucker:
O luna o echi ka muile: the beaks of na eagle and a cock. These represent a
tettler, a trouble-maker who overhears some chance remark and then tries to persuade a
third person that he has been bewitched. In such cases the ochimbanda consoles his
fearful patient by saying that the he must not attach any importance to what he has
heard3.

2.3.8 - Kambango
(foto 411-d)

Uma pata de kambango (Francolinus albogularis) simboliza todos os males que se


manifestam repentinamente e de modo inesperado. Os Cokwe dizem que o kambango
esto vontade unicamente nas matas ciliares que seguem o curso dos rios no pas
cokwe. Em compensao, quando essa ave se afasta para as zonas abertas da savana
(cana), ela se assusta facilmente ao menor barulho, mesmo os mais imperceptveis.
Quando algum passa, ou quando muito simplesmente o vento balana as plantas, os
kambango voam de repente cantando seu tpico kw... kw... kw... e, assim, assustam as
pessoas que passam.

1
Hauenstein, 1961, p. 152.
2
Milheiros, 1960, p. 197.
3
Tucker, 1940, p. 187.
208

Se algum morre de repente(expresso que se aplica a toda perda momentnea


dos sentidos), se dir que ele tem o mal de kambango, que se designa de costume como
mutungumuko1. Quando da consulta, o adivinho explicar a razo do que se passou tendo
como referncia a pata de kambango. Todas as desgraas inesperadas ou que evoluem de
maneira anormal ou imprevisvel so explicadas por relao ao kambango; mais
freqentemente, trata-se de afeces e desmaios devidos provavelmente hipertenso.
Neste caso, o adivinho envia o cliente ao curandeiro experiente (se no for ele mesmo
quem se ocupa), que lhe aplicar vrias ventosas sobre as incises que ele faz com uma
pequena faca (luswa) destinada a esse fim. O tratamento deve ser prolongado durante dois
ou trs dias, depois dos quais o doente estar aliviado. As incises sobre as quais so
aplicadas as ventosas so precedidas primeiro de frices e de lavagens com a ajuda de
variados ps provenientes de diferentes plantas, aos quais se adicionar as cinzas de um
pedao de kambango.
Mesmo se Hamumona insiste sobre o fato de que a ao benfica das frices e
lavagens devida exclusivamente presena do p de kambango, bem evidente que as
diferentes plantas utilizadas para a preparao do remdio contra o mal de kambango
no so escolhidas ao acaso, mesmo se de um ponto de vista subjetivo elas so
consideradas sem eficcia e exclusivamente como elementos acompanhantes do p de
kambango.
O comportamento imprevisvel de kambango explica tambm por qu essa ave
considerada pelo adivinho como particularmente perigosa para as mulheres grvidas.
Conta-se que uma mulher grvida, tendo comido carne de kambango aps um dia de caa
particularmente infeliz, no curso do qual apenas um nico kambango havia sido abatido,
ps no mundo uma criana prematura. Consultou-se o adivinho imediatamente, que
diagnosticou como o mal de mutumgumuko, causado pela carne de kambango. Depois
disso, nunca mais uma mulher grvida ousou comer carne de kambango.
Uma outra anedota diz tambm que um caador viu o kambango escapar e se
esconder em um buraco de tamandu (njimbo); rpido, o caador introduziu sua mo no
buraco e apanhou a ave. Acreditando apanhar uma segunda, ele introduziu sua mo de
novo, mas uma serpente o picou. por isso que os Cokwe dizem: cuidado com
kambango! Quando ele se esconde num buraco, vira serpente!

2.3.9 - Nduwa, o bico de nduwa


(fotos 412-A; 413)

Nduwa (Musophaga rossae Gould) uma ave muito requisitada no pas cokwe por
suas plumas vermelhas muito estimadas e que se vende por um bom preo. Com efeito,
utiliza-se as plumas de nduwa nas prticas ocultas. O zoologista Rosa Pinto, que fez um
trabalho de campo para recolher exemplares das aves da regio, conta como ele se deu
conta do valor dessas plumas para os autctones:
O indivduo (ave), quando foi tocado, caiu no fundo do leito de um ribeiro seco;
nosso guia o perseguiu em seguida na galeria florestal e quando voltou com o exemplar
capturado, lamentou que algumas de suas plumas vermelhas se soltaram na violncia da
1
Mutungumuko, s. (2) - prontido; adv. - repentino (Barbosa, 1973).
209

perseguio. Mais tarde, quando fomos informados da virtude das plumas, nos demos
conta da causa real de sua desapario1.
As plumas de nduwa so utilizadas tambm por ocasio da circunciso dos jovens
e no ritual do mugonge; no cesto do adivinho entretanto, no se encontra a pluma mas sim
o bico de nduwa; em certos casos particulares (adivinhao para detectar o responsvel
por um bito), o adivinho adiciona com freqncia a seus apetrechos uma pluma de
nduwa que ele pe no cabelo antes de comear a sesso divinatria. Esse gesto muito
importante porque est ligado a um contexto particular de feitiaria:
Quando um homem decide suprimir seu inimigo por intermdio de um terceiro,
ele deve enviar a este ltimo uma pluma de nduwa. A pluma significa a ordem de matar.
Quando o executor se apresentar para receber o preo de seu ato, ele exibir a pluma de
nduwa. Os Cokwe afirmam que nduwa sobretudo um smbolo do sangue derramado. No
primeiro dis da mukanda (o dia da circunciso), todos os que foram convidados pelo
responsvel do campo como mestre circuncisor (nganga-mukanda) exibem uma pluma de
nduwa em seus cabelos. Uma pequena cano repetida com freqncia pelos tundanji
(candidatos) cobre de ridculo o circuncisor que, emocionado diante das lgrimas e dos
gritos dos tundanji, escondeu sua pluma e voltou para sua aldeia: nudwa kulongwe... Ah!
Ah! (Ele escondeu a pluma de nduwa... Ah! Ah!).
M. L. Bastin j havia identificado no ngombo ya cisuka um bico de musfago,
que, sob o nome de nduwa, simboliza que um homem mordaz, usando uma pluma de
mosfago em seu cabelo, havia desejado a perda do doente; para achar um meio de cura,
precisar apelar para o chefe2.
Um aspecto particular do comportamento de nduwa explicaria, de acordo com o
adivinho Mwafima, a ligao entre a pluma de nduwa e o feiticeiro. Os Cokwe dizem que
essas aves so completamente incapazes de viver juntas. As nduwa se cruzam
freqentemente em seus percursos, mas seguem cada uma o seu caminho e nunca so
vistas mais de duas indo numa mesma direo. Essa impossibilidade de estar junto
reaproxima a nduwa do feiticeiro, porque este ltimo, mesmo se conhece outros
feiticeiros, ficar sempre isolado.
Os Cokwe observaram (e os bilogos o atestam tambm) que contrariamente s
outras aves, as nduwa no fogem quando so perseguidas; pelo contrrio, ficam imveis,
sem tentar escapar. Mwafima explica que quem estiver usando a pluma de nduwa poder
apanhar o inimigo ou o feiticeiro ou o kandanji, sem que estes ousem esboar um mnimo
gesto de fuga.
Uma anedota contada por Sakungu estabelece a relao entre a pluma de nduwa e
o mestre do mugonge, samazemba:
Um caador viu uma nduwa que deixou seu buraco numa rvore; rpido, ele
chamou os meninos que o acompanhavam; com o machado, eles ampliaram a entrada do
esconderijo da nduwa; ele se tornou o primeiro samazemba. por isso que o chefe de
mugonge (samazemba) exibe sempre sua pluma de nduwa para intimidar os miali
(candidatos)3.

1
Rosa Pinto, 1965, p. 181.
2
Bastin, 1961, p. 192.
3
Observemos que o fundamento do ritual do mugonge a submisso aos idosos na pessoa do samazemba:
juramento prestado pelos candidatos aps receberen comida numa folha atravs do buraco feito no maila
210

Todo o contexto do ritual do mugonge refora a significao de morte e de sangue


que se atribui pluma vermelha de nduwa. Os ataques sucessivos dos mortos durante a
noite (afu) so comandados por samakhoku, que usa plumas de morte na cabea,
principalmente plumas de nduwa1.

2.3.10 - Mutoku, o bico de mutoku


(fotos 405-d; 414)

O mutoku (Halcyon albiventris pentissgray Bowen) freqente sobretudo nas


matas ciliares ao longo dos rios e ribeires, e tambm nos bosques de Brachystegia
(usaki), muito numerosos na savana do nordeste de Angola e percorridos pelos caadores
cokwes.
O bico de mutoku assume no ngombo um papel essencialmente moralizador, ao
chamar a ateno daqueles que esquecem muito facilmente os benefcios e favores que
recebem. O mutoku cava seu ninho na terra. Para os Cokwe, esse gesto do mutoku (cavar
o ninho na terra) simboliza o passado; recorda as coisas de antigamente:
eu recebi presentes de meu tio e de meu pai; eu os aproveitei, mas tambm
esqueci rpido; mais tarde, fiquei muito doente; quase morri. O adivinho foi consultado e
quando ele viu mutoku borda do ngombo, disse: preciso lembrar a Sakungu as coisas
que ele recebeu; ele deve retribuir todos os que lhe so bons (Sakungu).
Os Cokwe consideram mutoku tambm como um indicador do tempo. Quando ele
canta e comea a cavar, sabe-se logo que vai chover. Mas este aspecto no encarado
pelo adivinho no ato divinatrio.

2.3.11 - Mbaci, a tartaruga


(foto 415)

Pode-se observar a tartaruga no cesto divinatrio, sobretudo sua carapaa,


enquanto anexo protetor do cesto, mesmo se a tartaruga pode fornecer tambm, mais
raramente, um kaphele. Os adivinhos exibem freqentemente uma ou vrias carapaas de
tartaruga presas na parte exterior do cesto, do lado do cliente, mas essas carapaas no
tm uma posio fixa. Enquanto anexo do cesto, a carapaa de tartaruga exerce um papel
de proteo aos tuphele e tambm ao ato divinatrio.
Mas a tartaruga tambm pode estar representada no cesto como kaphele
divinatrio. Neste caso, normalmente a cabea da tartaruga, ou mais raramente uma de
suas patas, que se torna smbolo divinatrio, cuja significao alis muito pouco
estebelecida, porque varia bastante conforme os adivinhos:

(muro) atrs do qual fica o mestre samazemba. O candidato pe a folha no buraco e samazemba segura-lhe
a mo cerrada num pedao de couro. Faz-se mal ao mwali at que sua confisso esteja completa.
1
Ver L. de Heusc, 1972, p. 238.
211

Cabea de tartaruga. Esta pea de importncia secundria e de um simbolismo


muito aparente significa, de acordo com o adivinho Namuyanga, que aquele que est com
dor de garganta deve carregar uma cabea semelhante pendurada no pescoo para sarar1.
Em compensao, para outros adivinhos, a cabea de mbaci simboliza a
impotncia sexual; essa opinio se verifica tambm fora do contexto divinatrio.
Mas a importncia da tartaruga sublinhada pelos adivinhos se situa no prrpio ato
divinatrio. A carapaa da tartaruga contm remdios que protegem o cesto e o adivinho;
com efeito, todo adivinho guarda numa pequena carapaa de tartaruga (mais raramente
em outro recipiente) o remdio do adivinho (yitumbo ya tahi), que deve proteg-lo do
mal de zombo2 e da comida envenenada. uma preparado especial que se assemelha ao
remdio da vida apresentado pelo chefe do campo de iniciao dos jovens (nganga-
mukanda) aos iniciados no dia mesmo da operao. Com efeito, uma vez terminada a
operao do ltimo kandanji e aps as primeiras providncias para estancar o
sangramento, o nganga-mukanda pe em seu dedo do p uma poro do remdio da
vida que ele pega numa carapaa de tartaruga e cada um dos nefitos vir pegar com a
boca. Esse remdio da mukanda que tambm chamado de remdio da vida muito
importante para o sucesso de todo o desenrolar da iniciao, porque ele afastar a doena
e a morte dos tundanji. Estas seriam inevitveis depois da entrada no campo de um
homem que teve relaes sexuais; neste caso os tundanji seriam afetados pelo zombo.
Neste aspecto (perigo de atrair o mal de zombo), a situao do kandanji como a do
recm-nascido; os dois so particularmente vulnerveis ao mal de zombo.
A proteo trazida pela carapaa contendo o remdio da vida utilizada
tambm em caso de guerra; os Cokwe dizem que o homem que parte ao combate tendo
uma carapaa de tartaruga contendo o remdio da vida presa a sua cabea no ser
nunca atingido pelo inimigo.
O mbaci , alm do mais, considerado como um prottipo de sabedoria e de
persistncia. Um velho provrbio cokwe evoca tambm a previdncia do mbaci, que
supre largamente a lentido de sua marcha: o mbaci, por ser o que levanta mais cedo,
ele quem come o champignon.
Num debate entre o mbaci e kwaji (com freqncia considerado animal da
escurido), o primeiro se viu enganado pelo segundo durante muito tempo; com efeito, o
mbaci fornecia peixe para Nzambi, que o kwaji transportava. Mas este ltimo nunca
entregou o pagamento ao mbaci. A tartaruga imaginou, portanto, um estratagema para
descobrir a fraude de kwaji: misturada aos peixes, ela se fez ser transportada at Nzambi.
Quando este deu a kwaji o pagamento pelos peixes, o mbaci o denunciou. Cheio de
vergonha, o kwaji desapareceu. O mbaci retornou ento terra por intermdio de kanda-
uri (a aranha gigante), que fabricou um fio para descer o mbaci.
Depois disso, louva-se a sabedoria do mbaci dizendo: kwenda kasenu mbaci
twarilu (por seu bom comportamento o mbaci subiu ao cu).
Os Cokwe consideram que o poder do mbaci sobre a chuva remonte s origens do
mundo, e que o exerccio desse poder classificou de uma certa forma os animais. Com
efeito, o mbaci e o nange se entendiam bem; juntaram-se a eles o katele e o cikungulu.
Tudo ia bem at o dia em que cinkungulu declarou-se doente. Nesse dia, as outras aves
1
Bastin, 1961, p. 117.
2
Ver item 2.4.8.
212

(nange e katele) partiram sozinhas pro trabalho deixando seus filhos com cikungulu. Mas
este aqui, pegando seu filho e os filhos dos outros instalou-se no cume de uma grande
rvore. Katele e nange ao voltar no encontraram ningum: nem cikungulu nem seus
filhos. Mas depressa eles escutaram o filho de cikungulu que cantava: hum, hum... hum,
hum. E depois era o filho de nange que chorava: mama nange... watomana mangeto
(me nange... aquele que cuida de mim branco?) e o filho de katele : mama katele...
telemoka kaji kamasango (me katele, eu vou virar ave de qualidade inferior?). Ento
todos os animais se reuniram para decidir sobre a libertao das crianas retidas cativas
por cikungulu. S o mbaci se mostrou capaz de conduzir bem tal plano. Os filhos de
nange e katele foram libertados, mbaci recebeu em recompensa presentes importantes. Os
outros tiveram muita inveja, e por consequncia bateram-lhe e tentaram esmagar sua
carapaa. O mbaci ficou muito zangado; ele se separou dos outros e comeou a fazer uma
vestimenta. Quando ele se ocupava batendo um cip para obter o mwanji (estofo), os
aoutros animais vieram pedir-lhe gua. Ele recusou; ele tinha fechado os rios. Os
animais tentaram encontrar gua por toda parte, mas inutilmente, tudo estava seco. De
novo eles voltaram ao mbaci, eles o cobriram de pagamentos (multas) e ento o mbaci
abriu a gua; mas decidiu: a gua ser primeiro para os peixes grandes, depois para os
pequenos e por ltimo para todos os outros animais. Depois disso, o mbaci tem todo o
poder sobre a chuva e os rios.
Toda a mitologia bantu concede ao mbaci um lugar importante. Em suas tradies
orais relativas s origens, os Cokwe consideram a tartaruga como o animal da chuva que
desposa a mulher do cu. Os Kuba e os Tetela sublinham a amizade entre a tartaruga
(animal da chuva) e o animal da tormenta (nyadi) 1. Os Kuba associam a tartaruga ao co
e mosca, os trs animais que desobedeceram a proibio de Woot a mosca por ter
bebido vinho de palma, o co por ter comido carne, e a tartaruga por ter fumado
cachimbo e perderam a palavra no momento em que o comportamento incestuoso de
Woot fazia desaparecer o sol2.
Animal quitoniano, que age sobre o sol e a chuva, o mbaci exerce um papel
particular de proteo, afastando as interferncia estranhas do ato divinatrio e do jogo
livre dos tuphele.

2.3.12 - Musenvu o lagarto dos rios


(fotos 411-a,b; 416)

Os Cokwe distinguem duas espcies de lagartos: um aqutico, o lagarto dos rios;


o outro terrestre. O primeiro chama-se musenvu, o segundo, citatu3.
Um fragmento da pele do musenvu, mais raramente uma pata, pode ser observado
em quase todos os cestos divinatrios; mesmo se a maioria dos adivinhos no consideram
esse fragmento de pele como um smbolo divinatrio, todos lhe concedem uma grande

1
Sicard, 1971, p. 48, nota 2.
2
Heusch, 1972, p. 115.
3
Para Mac Jannet (1949) o contrrio:
-musenvu: lagarto de lngua bfida
-chitatu: rei dos lagartos dgua.
213

importncia, no somente por causa de sua aplicao como remdio, mas tambm como
elemento que pode condicionar a ao dos tuphele.
O primeiro elemento importanto de que preciso levar em contar no contexto
mgico-religioso concernente a esse lagarto, que musenvu um ser cujo comportamento
incestuoso foi descoberto. O fato de que seu incesto, que ele pensava ser bem secreto, ter
sido descoberto, o guiou a uma atitude de vingana muito especial: para ele nsda
segredo; ttulo de protesto, o musenvu expor luz abundante tudo o que as pessoas
querem fazer segredo. O velho caador Rikenga explica assim a exegese do
comportamento do musenvu:
O musenvu habitava a gua com sua mulher; tambm conseguia sua comida ali:
peixes, rs e outros pequenos animais; de tempos em tempos ele vinha se aquecer ao sol,
sobre as rvores. Um dia, quando sua filha j estava desenvolvida, ela a desposou. Os
outros comentavam. Ele mesmo dizia: o que eu fiz da minha conta, uma deciso do meu
corao; como ento os outros sabem tudo o que se passou? Foi por isso que ele deu uma
violenta chibatada na gua e protestou: de hoje em diante nada, absolutamente nada, do
que se faz ficar em segredo, seja fazer amor com a mulher do outro, roubar uma cabra ou
tecidos ou mandioca dos campos ou mesmo desposar sua prpria filha. Tudo o que se
passa na surdina ficar conhecido de todo mundo.
A histria desse denunciador dos amores secretos apresenta uma variante de um
outro tipo, mas onde a posio ambgua do musenvu est ainda mais fortemente posta em
evidncia: uma me tinha quatro filhos, dos quais o segundo, uma menina, era cimbinda
(an). A me mandou sua filha buscar gua; mas esta aqui estava muito irritada porque
sua me havia lhe chamado cimbinda e tinha lhe reprovado de ser intil. Com efeito, ela
ainda no tinha feito o ukule (iniciao), ao contrrio de suas irms que eram mais jovens.
Quando ela enchia sua cabaa, o musenvu saiu da gua e cumprimentou-a, propondo-lhe
despos-la. A menina recusou dizendo que no era possvel, porque ele era um animal.
Mas o musenvu convenceu-na que ele era uma pessoa. Eles fizeram amor. Toda vez que a
menina ia buscar gua, encontrava o musenvu. Alguns dias mais tarde, a menstruao
veio e a menina foi apresentada para o ukule Sua av perguntou-lhe quem era seu marido,
mas a menina sempre o escondeu. Um dia a menina ficou grvida, mas nunca disse o
nome de seu marido. Finalmente, por ocasio do parto, sua av conseguiu saber que o
marido era o musenvu. O musenvu: protestou: kashinganyene (ela me denunciou!). por
isso que desde ento, os encontro das mulheres com seus amantes prximo ao rio ficam
depressa conhecidos de todo mundo.
A aplicao da pele de musenvu na confeco de remdios muito freqente em
certas formas de tratamento, como nas providncias com a mulher no momento do parto,
com o recm-nascido, e sobretudo para curar a doena conhecida entre os Cokwe sob a
designao de doena do crocodilo: um estado de fraqueza generalizada que se
manifesta principalmente no nvel dos braos. O doente far um bracelete com a pele de
musenvu e seus braos sararo rpido, recuperando sua fora habitual.
A lngua bfida de musenvu um detalhe anatmico que explica tambm certas
crenas em relao duplicidade da palavra das pessoas que tm duas lnguas.
Mwasefu conta a esse propsito a seguinte anedota: os caadores de uma certa aldeia
decidiram o dia e o local para comear a caa. O musenvu, que estava bem perto, escutou
tudo com ateno. Entretanto, no dia fixado, todos os homens com suas armas, os
214

meninos para distrair a caa, bem como os ces, partiram para um local diferente, que
escolheram no ltimo minuto. Foi assim que eles apanharam o musenvu, que acreditando
estar os caadores muito alm dali, estava tranquilamente deitado sob o sol. O musenvu
foi rapidamente distrado pelos ces e atingido por um tiro de fuzil.
Todas as pessoas olhavam o corpo de musenvu e alguns j cobiavam sua pele
para fazer tambores. Algum disparou a rir, dizendo: vejam, o musenvu tem duas lnguas.
Ento o musenvu falou: voc que tem duas lnguas (palavras), porque voc tinha
decidido ir pra l e veio pra c. Ao dizer essas palavras o musenvu escapou. Depois disso,
sabe-se que o musenvu est vivo mesmo quando parece morto. E o adivinho cura os
clientes que esto doentes por causa de pessoas da aldeia que tm duas lnguas dando-
lhes um pedao da pele de musenvu.
Os Cokwe tambm atribuem ao musenvu a formao do arco-ris (kongolo), que
eles explicam como resultado da chibatada da cauda de musenvu na gua. As diferentes
cores do arco-ris, tambm chamado cazangombe, seriam resultado do flego poderoso de
musenvu que sobe os rios. A fora de musenvu verdadeiramente extraordinrio quando
ele produz o arco-ris; por isso, toda bala que tocou o sangue de um musenvu se tornaria
infalvel nesse mesmo instante. O grande caador ser aquele que obtiver uma bala de
cazangombe.

2.3.13 - Nongwena, o camaleo

Dentre os tuphele de origem animal, encontra-se com freqncia a cabea


dessecada de um camaleo (fig. 61). De acordo com Sakungu, a cabea do camaleo no
cesto serve para responder aos clientes que esto doentes por causa de quem muda de cor,
isto , aqueles que durante o dia so pessoas e noite viram feiticeiros:
O nongwena vermelho quando est na terra vermelha, mas torna-se verde
quando est sobre as folhas verdes, e torna-se seco quando est sobre folhas secas. Na
aldeia, tambm h pessoas que durante o dia so como as outras, mas noite tornam-se
feiticeiros. Quem tem tal comportamento, porque tem o esprito do nongwena.
Os Cokwe acreditam que a feitiaria desse tipo (feitiaria tipo nongwena) no
mortal, pelo menos por um certo tempo. Ela se manifesta sobretudo pelo fato de que a
vtima fica magra e incapaz de engordar; dir-se ento que a pessoa tem o mal de
nongwena. O curandeiro preparar remdios com folhas de plantas, s quais adicionar o
p de um nongwena dessecado.
De acordo com Baumann, o elemento curativo seria, antes, o sangue do camaleo:
Longono (designao lwimbi correspondente ao nongwena dos Cokwe):
camaleo. O doente fica ora melhor ora pior.; sua pele muda de cor como a do camaleo.
preciso cortar um camaleo e passar o sangue na pele do doente1.
O mal de nongwena, bloqueando o desenvolvimento normal do corpo, torna-se
mortal a longo prazo. O camaleo considerado como um mau pressgio. Baumann diz
que ele sinnimo de sepultura, mas esta significao no notada em parte alguma. Em
compensao, o mal de nongwena que impede o desenvolvimento normal, por fechar a
garganta, relativamente freqente; um mal que ataca sobretudo os caadores:
1
Baumann, 1935, p. 173.
215

Um caador abateu um khai. Ele se preparava para conduzir a pea abatida para a
aldeia quando o nongwena se apresentou pedindo-lhe o sangue e o fgado do khai abatido.
Ele recusou dizendo: como que vou te dar a carne se voc um animal? O nongwena
insistiu, mas o caador recusou todas as vezes. Ao chegar aldeia, o caador pegou seu
cachimbo, mas no conseguia fumar; sua mulher lhe trouxe a refeio, mas ele no
conseguia comer; o caador procurou seu tio e lhe contou tudo o que havia se passa do
com nongwena. O tio props-lhe partir bem cedo pela manh para o local em que ele
havia encontrado o nongwena e depositar numa folha o sangue e o fgado do khai
abatido. Foi por isso que o nongwena o deixou viver e no fechou mais sua garganta.
Depois disso, no se ousa mais dizer que o nongwena s um animal (Sakungu).
No curso do ritual nkanga (iniciao das meninas entre os Ndembu, ukule, entre
os Cokwe) descrito por Turner, conta-se s novias a histria do camaleo: este foi
encarregado de um terrvel castigo para a novia que ousasse transgredir a prescrio de
imobilidade absoluta durante o ritual1. Os Cokwe ignoram esse detalhe em seu ritual, mas
apresentam outras razes para ligar o nongwena morte e portanto feitiaria; sobretudo
razes alimentares. Na verdade, o comportamento alimentar de nongwena suspeito: ele
come rs e sapos. Mas estes animais, por serem considerados quitonianos, devem ser
evitados. O nongwena se comporta como o feiticeiro, porque ele pega sua comida dos
seres que remontam origem do homem2. Apesar disso, e porque o camaleo tambm
um dos animais em relao com a origem dos homens, ele objeto de uma certa
venerao. Ele tambm venerado como o pai da humanidade em diferentes regies da
Frica: seja por ter esculpido os primeiros homens, seja por ter apanhado o primeiro casal
humano num balaio quando pescava3. Alm do mais, no mundo dos animais, o nongwena
ocupa um lugar importante: freqentemente em luta com seu rival, o lagarto das rvores
(cikwa ca mukala), ele conta com o favor do leo, que durante os debates no tribunal dos
animais o aprecia bastante como jogador de kisanji4.
O estatuto claramente ambguo de nongwena e sua ligao com as origens da
humanidade so os aspectos mais explorados pelo adivinho na utilizao da cabea de
nongwena como smbolo divinatrio.

2.3.14 - Lunoka, a cabea da serpente


(foto 417)

Uma cabea de serpente como smbolo divinatrio relativamente freqente no


cesto (fig. 62). Enquanto que a maioria dos adivinhos aceitam no importa qual cabea de
serpente como smbolo no cesto, para outros unicamente a cabea de toka, uma serpente
que os Cokwe consideram como muito perigosa e da qual eles dizem poder localizar
atrvs de seu canto que se assemelha ao canto do galo.
A serpente toka habita os cupinzeiros abandonados; ela torna-se com freqncia o
terror de toda uma aldeia. Para atac-la, utiliza-se um estratagema curioso: um aldeo

1
Turner, 1972, p. 242.
2
Ver Sicard, 1971, p. 217, nota 1.
3
Ver Sicard, 1971, p. 158, nota 3.
4
Martins, 1971, p. 160.
216

aproxima-se do cupinzeiro, carregando na cabea uma panela contendo resina de


muphafu fervente. Como a toka ataque saltando na cabea das pessoas, tenta-se faz-la
entrar na panela. Mas se o estratagema no funciona, toda a aldeia prefere se mudar. Seu
veneno (utende) bastante procurado pelos caadores para faezr amuletos de caa,
porque considera-se que a toka jamais erra o bote.
esta serpente que M. L. Bastin observou como smbolo divinatrio no cesto:
... uma cabea de serpente sob o nome de toka lunoka se encontra entre os
objetos do ngombo ya cisuka. Sua apario simblica borda do cesto divinatrio
significa que o doente ou o morto foi picado por uma serpente; ou, antes, que a causa do
mal ou da desgraa deve ser atribudo ao feiticeiro nganga que se serviu do fuzil mgico
uta wa mbomba a mwasanga. Os fragmentos de vbora mboma, e sem dvida de
serpentes venenosas, so misturados com muita freqncia como ingredientes nocivos
aos wanga de magia negra1.
Tomando com ponto de partida a possibilidade de uma picada de serpente, o
adivinho comea invariavelmente por estabelecer que a serpente foi enviada por um
feiticeiro que ser preciso procurar.
Acredita-se com efeito que todo feiticeiro pode criar ele mesmo sua serpente a
partir de um cip ou de uma corda tranada na ponta da qual o nganga faz um n. Depois
das unes com os remdios apropriados, a corda vira lunoka e o n ser a cabea; a
serpente mgica do feiticeiro (lunoka cipupu ca nganga). O marido que no est seguro
da fidelidade de sua mulher lhe far um cinto desse tipo; se uma infidelidade cometida,
o cinto virar serpente e atacar mortalmente o amante da mulher. Acredita-se igualmente
que todo mwanangana (chefe de terra) tem a seus servios uma serpente ou um bo
obtido pelo mesmo procedimento do feiticeiro; a nica diferena seria que neste caso o
bo mgico do chefe de terra seria utilizado no para prejudicar os outros, mas para
embelezar seu corpo2.
Como os nduwa, as serpentes so incapazes de viver em sociedade; a deciso de
viver junto, imagem dos outros animais, partilhada pelo bo, mas cada uma das
serpentes crem-se autnomas, nenhuma ligao pde ser estabelecida entre elas. Por
isso, dizem os Cokwe, toda vez que uma serpente atingida mortalmente ela agita a
cauda antes de expirar; um ato de censura contra a incapacidade de seus iguais de se
unir contra o inimigo.
A solido sempre suspeita de feitiaria. Em conseqncia, a serpente
considerada como mediadora do feiticeiro. preciso ainda levar em considerao o fato
de que para os Cokwe a serpente original pertence ao mundo de baixo; ela a me de
todas as coisas que dividiram o mundo com o raio, seu marido3. Alm do mais, se a
considera como o pai de todas as coisas ou ainda como o guerreiro por excelncia4.
Entre os Cokwe a serprente entrou h muito tempo na categoria das mahamba sob
a designao de salujinga5, freqentemente representada em madeira ou em barro cozido.

1
Bastin, 1961, p. 191. Ver tambm p. 260.
2
Sobre a concepo mgica do n e o simbolismo do cip, ver M. Eliade, 1948, pp. 24-36.
3
Heusch, 1972, p. 224.
4
Siccard, 1971, p. 33, nota 5.
5
Ver item 2.2.29.
217

Enquanto elemento cultural a serpente est sempre em relao com a fecundidade, o que
refora ainda sua significao de ser original.
Entre os ovimbundu , antes, uma vrtebra de serpente que o adivinho escolhe e
pela qual ele explica a relao serpente-feiticeiro:
Omoma: a vrtebra de uma vbora. Algum que comeu uma vbora vai trocar de
pele gradualmente mais tarde em sua vida. Da o provrbio: apa wa lila omoma ka yu ku
momelapo (voc no comeou a trocar de pele na hora em que comeu a cobra). Ento,
quando esta pea vem borda do ngombo significa que a doena do paciente causada
por alguma coisa que foi enfeitiada e est tendo dor na regio lombar, ou que ele deve
usar um cordo de contas nos quadris. Por outro lado, a pea pode indicar uma dor no
pescoo; ou ser conectada com casos de picadas de cobra, ou casos em que cobras
atacaram em vez de fugir1.

2.3.15 - Kafumba, a gravidez


(foto 418)

O caurim bem conhecido nas tradies cokwe e em todas as outras etnias


angolanas por causa de seu valor como elemento decorativo e tambm como dinheiro,
sobretudo no antigo reino do Congo e nas regies vizinhas.
preciso observar que o tipo de caurim que se encontra em Angola, que
antigamente provinha quase que exclusivamente da ilha de Luanda, o Olivancillaria
nana Lamarck. H provavelmente tambm alguns exemplares de Cypra zonata
encontrada alis um pouco por toda a frica Central. Em compensao, Cypra moneta,
que originria do Pacfico e do Oceano ndico, muito raro em Angola. esta ltima
espcie que o kaphele.
O zimbo, confundido com o caurim (fig. 63) permaneceu como moeda corrente
at a metade do sculo XVII; a partir desse momento, ele comeou a perder terreno em
favor de outros elementos de troca introduzidos pelos comerciantes e missionrios: o
tecido, a garraf de gua da vida, a galinha e o fuzil2. Com esses produtos comprava-se
escravos, borracha e marfim. Ao mesmo tempo, o caurim era sempre utilizado como
elemento decorativo bem como nas prticas mgico-religiosas dentre as quais
preciso citar sua utilizao no cesto divinatrio. O nome do caurim como kaphele
divinatrio kafumba (gravidez) e sua significao inspirada quase que exclusivamente
em diferentes problemas concernentes mulher grvida. Desse modo, uma primeira
siginificao atribuda a kafumba a de assegurar ao cliente inquieto o fato de que sua
mulher pode estar grvida, apesar de os sinais exteriores tardarem a se manifestar. Com
freqncia o consultante se impacienta e vai ver o adivinho unicamnete porque o ventre
de sua mulher no cresce de maneira evidente. Os Cokwe consideram que uma
anomalia no desenvolvimento normal do feto e portanto consultam o adivinho. O
advinho, ao mesmo tempo em que agita o cesto e coloca as questes osbre as
circunstncias da gravidez em questo, obtm os esclarecimentos necessrios para ditar a
resposta certa que vir quando o caurim (kafumba) aparecer borda do cesto:
1
Tucker, 1940, p. 194.
2
Couto, 1973, p. 45.
218

... um caurim se encontra sob o nome de ufumba, gravidez, entre os smbolos do


cesto do adivinho, ngombo ya cisuka; o seu lado abaulado que prefigura o estado da
mulher grvida1.
Mas com freqncia a aprio de kafumba serve ao adivinho como ponto de
partida para encontrar o diagnstico de toda uma srie de mal-estares concernentes a uma
das mulheres do consultante. Neste caso, o prprio adivinho pode propor a preparao de
infuses, mas em princpio ele manda seu cliente para um especialista conhecedor de
plantas medicinais.
A relao entre o caurim e a fecundidade bem evidente nas decoraes
femininas entre os Cokwe, mas ele no tem entre eles a importncia que lhe reservam
outras etnias angolanas do sul, onde o lupashi (caurim) exerce um papel muito importante
no rito de iniciao das meninas (efundula)2.
s vezes o caurim levado tambm pela mulher como pingente sobre o peito.
Entre os Cokwe, o homem portador de um caurim j teve um primeiro contato com o
esprito Ngombo (de adivinhao) e j est engajado em se tornar adivinho mais tarde3.
Neste caso, tal ornamento (mufuvu wa ngombo) pendurado numa trana feita de uma
planta herbcea (kaswamo).
Entre as mulheres, tal pingente, muito raro entre os Cokwe mas utilizado pelos
Ovimbundu, seria sempre um amuleto de fecundidade:
H uma casca de caurim numa corda que forma um amuleto pra ser usado no
pescoo por uma mulher que deseja ter filhos4.

2.3.16 - Kafakaku, o inseto imobilizado


(foto 419-a)

a carapaa de um inseto bem conhecido por seu comportamento: ele se


imobiliza completamente diante do perigo (contato) e se pe em movimento mais tarde.
O adivinho utiliza sua carapaa como smbolo divinatrio (fig. 64) para explicar certas
doenas especficas, sobretudo do tipo psicossomtica, que os Cokwe classificaram como
doenas de kafakaku. Para atacar esse tipo de doena, o curandeiro prepara remdios a
partir de folhas recolhidas perto de sepulturas. Essas folhas so primeiro modas num
pequeno pilo; adiciona-se a carapaa de um kafakaku, ressecada e reduzida a p. A pasta
obtida embebida num leo de planta. s vezes o doente reforar o efeito do remdio
colocando a pasta medicinal por sua vez dentro da carapaa de um outro kafakaku, que
ele carregar como pingente.
Mwafima explica a origem desse remdio pela histria de uma pessoa morta e
ressuscitada (kavumbu):
Uma pessoa estava muito doente h tempos; finalmente, ela morreu. Fizeram-se
os preparativos para os funerais, o cadver foi enrolado na rede e conduzido sepultura.
Enquanto se terminava os preparativos da sepultura, a pessoa que se supunha morta se

1
Bastin, 1961, p. 20.
2
Estermann, 1956, p. 98.
3
Ver item 1.3.2.3.
4
Hambly, 1934, p. 276.
219

mexeu. Para estupefao de todos, a pessoa estava viva; ela virou kavumbu poruqe
quando estava morta ela recuperou a vida
O kavumbu o caso mais grave, uma espcie de miraculado, do mal de kafakaku.
Ele exerce um papel importante no ritual de iniciao, porque favorece a cicatrizap
rpidas dos ferimentos. A presena de uma pessoa kavumbu no campo bem como a
introduo de um pedao de cupinzeiro (cifika) na alimentao dos iniciados so duas
coisas que o nganga-mukanda previdente no esquecer nunca. A doena especfica que
se diz mal de kafakaku que se manifesta no personagem kavumbu sem dvida o ponto
de partida da transformao dessa carapaa de inseto num smbolo divinatrio.

2.3.17 - Punga, a reunio


(foto 427-A)

Punga designa no cesto o abrigo construdo por um inseto com pequenos pedaos
de madeira (fig. 65). Os Cokwe designam tal objeto por sailunda, e o inseto que o
constri por kacaiylia, mas quando ele se torna kaphele, seu nome punga (reunio).
um smbolo negativo que revela ao cliente que a sua volta criou-se um consenso contra
ele e portanto que ele no mais tolerado pelos outros, seja no nvel da aldeia ou no nvel
do parentesco:
F... pertence a um grupo. Mas as pessoas no agentam mais seu
comportamento.... H algum que diz: eu no quero mais ver F...; um outro diz a mesma
coisa; depois vem um terceiro... Ento eles decidem fazer uma reunio (punga) na qual se
discutir o modo de eliminar essa pessoa indesejada (Sakungu).
Em princpio a deciso do frupo irreversvel. Assim, no que concerne ao
smbolo punga, os adivinhos s falam muito raramente de uma mudana possvel de
quem culpado:
... pea simblica (lagarta em seu abrigo) do ngombo ya cisuka, significando: a
opinio geral lhe causa o distrbio, repare o mal que fez e voc sarar1.
A razo mais freqente de uma hostilidade generalizada contra uma pessoa , de
acordo com Mwafima, o fato de que essa pessoa criou conflitos (cilumbu) por toda parte e
sobretudo por ser algum que tem um comportamento permanente de vendedor
ambulante. Mwafima sublinha sobretudo o aspecto revelado h muito tempo tambm por
Baumann, que viu nesse abrigo de lagarta de borboleta (que el desugna como sailundu)
um smbolo da habilidade pra fabricar a mentira: Sailundu abrigo de insetos. Um
homem tornou-se nocivo por causa de seu plano premeditado2.
A oposio generalizada contra um membro do grupo significa tambm a
justificao implcita de um ato de feitiaria contra esse membro, a feitiaria encontrando
neste caso sua justificao enquanto ato defensivo. No se falar abertamente de
feitiaria, mas na prtica todo mundo concorda que tal pessoa seja eliminada por
feitiaria; o nico caso, de nosso conhecimento, em que os Cokwe ousam falar de
feitiaria coletiva, mesmo se para a maioria, neste caso, a palavra feitiaria rejeitada.

1
Bastin, 1961, p. 241.
2
Baumann, 1935, p. 170.
220

Os adivinhos explicam tambm que a hostilidade generalizada contra uma pessoa


pode facilmente dar lugar a um ato de feitiaria individual. Neste caso, o cesto dever
descobrir quem tomou a iniciativa, mas, dado o consenso contra a vtima, o
esclarecimento do cesto no trar nenhuma sano particular ao responsvel:
Casulo de lagarta (inamumungolo) representa a casa em que se teria
contratado a morte ou a doena. Basta lembrar-se das visitas que foram feitas para
conhecer o indivduo em cuja casa se teria encontrado a doena ou que lhe teria
envenenado1.

2.3.18 - Cota, a casa dos homens


(fotos 420-423)

Um fragmento da concha do caramujo vulgar (fig. 66) simboliza no cesto a grande


casa circular da aldeia cota uma espcie de clube dos homens, um verdadeiro
centro, do ponto de vista poltico e social, da vida de uma aldeia cokwe.
A maioria das explicaes concernentes a esse fragmento de concha falam de
julgamentos incompletos ou contestados que se desenrolam na cota e dos quais o chefe da
aldeia o grande juiz que decide aps escutar as palavras interminveis dos ancies e os
argumentos dos especialistas nganji.
A primeira significao atribuda a cota a indenizao suplementar que o cliente
dever pagar a seu adversrio porque ele (o cliente) no tem razo e que as prestaes que
o chefe ordenou no foram pagas suficientemente.
Pode-se mesmo ir mais longe e obter um segundo julgamento. Se a parte lesada
consulta o adivinho, este pode sugerir, aps a observao do kaphele cota, que o negcio
seja combinado novamente:
Esta pea denominada cota indica que aps o julgamento, a questo permaneceu
litigiosa; o adversrio foi de m f, preciso um outro julgamento2.
Mais rara a explicao dada por Hamumona a um jovem consultante, sobrinho
de um chefe de aldeia:
Todo mundo vai na cota; os outros fazem a aprendizagem do trabalho de ferreiro
e do artesanato, como fazer cabos de enxada e de machado. Todo mundo escuta as
pelavras que vm da boca de seu tio, mas voc no quer escutar os conselhos do chefe,
no quer freqentar a cota e por isso que est doente. O mbuki vai procurar um remdio
pra voc que ele preparar ao lado da cota e quando tiver recuperado a sade, voc dever
escutar todas as palavras que se pronuncia na cota.
O cesto denuncia tambm os casos, muito raro alis mas considerados como
muito graves, de falta de hospitalidade. As regras de hospitalidade so observadas
rigorosamente por todos os chefes de aldeia. O caso mais grave para toda a aldeia seria o
de um chefe que teria querelas com seu visitante e que viria a mat-lo.
Uma doena permanente em sua aldeia exigiria a consulta ao adivinho. O ngombo
mostraria vrios tuphele, e apario de cota, o adivinho explicaria:

1
Delachaux, 1946, p. 50.
2
Bastin, 1961, p. 237.
221

Na sua aldeia h vrias pessoas doentes; voc matou um visitante, e agora seu
esprito no deixar mais sua aldeia (Riasendala).
Neste caso, o adivinho pediria ao kabuna (a menos que ele mesmo tambm seja
kabuna) para tirar o mau esprito da aldeia de modo que esta voltasse a ser habitvel.
Com freqncia a apario de cota significa que o consultante deve pedir um
julgamento para decidir o seu caso. Neste caso, o adivinho representa para o cliente uma
espcie de primeira instncia que lhe favorvel, porque lhe prope pedir que o seu caso
seja discutido por todos os ancies na cota.
Sakungu props essa soluo pelo menos em trs casos de que fomos
testemunhas:
Um homem cuja mulher viria a morrer; a famlia da mulher lhe reclamava
todas as prestaes ao mesmo tempo, justificando a exigncia por sua partida (mudana
de aldeia).
Um homem que tinha feito amor com a mulher de seu vizinho e pago uma
multa que este considerava insuficiente.
Um homem que havia desposado uma mulher que cuidava de uma criana de
um primeiro marido. Essa criana, cujo pai estava longe, morreu. Ao chegar, o pai da
criana exigia do marido de sua antiga esposa a satisfao pela morte da criana.
Estes casos, e muitos outros, so longamente discutidos na cota por todos os
homens da aldeia. Para decidir essas questes, o chefe da aldeia se apresentar com as
devidas pompas: se assentar em sua cadeira posta sobre uma pele de leo. O chefe
escutar as duas partes e no dir nada; depois, ele escutar os ancies e tambm o nganji
(s vezes vrios nganji convidados de outras aldeias) e depois ele mesmo expor o caso
tal como entendeu. Ele resolver em seguida a questo e fixar tudo o que o culpado
dever remeter parte lesada e o espao de tempo para cumprir as prestaes. A cota
funciona neste caso como uma espcie de tribunal cujo juiz o chefe da aldeia.
A construo da cota numa aldeia nova uma das primeiras atividades, que
envolve a todos. O chefe da aldeia procura um basto seco (lusumba), que ele planta no
local considerado como o mais conveniente para edificar a cota. Ento todos os jovens
comeam a preparar os troncos de rvore necessrios para a casa. Quando j reuniram
bastante troncos, decide-se o dia da construo; os troncos so plantados em crculo no
solo, de modo a deixar de oito a dez aberturas (portas): para o chefe, o irmo do chefe,
para as diferentes classes de idade, os visitantes, etc. Depois, parte-se novamente para
arranjar os troncos para o teto cnico; quando j h suficientes troncos, todos colaboram
para prend-los bem ao kangalo (basto colocado de vis para estabilizar os outros).
Comea ento a terceira faze, a mais longa (normalmente ela se prolonga durante um ou
dois meses): cortar, apanhar e dispor em feixes a palha para a cobertura da cota; os feixes
so bem presos aos troncos, e na ponta do cone coloca-se a cisonga que fecha toda a
cobertura.
A inaugurao da cota uma festa importante que tambm mobiliza toda a aldeia;
o novo fogo feito pela maneira tradicional (citewa) aceso, o chefe fornece as cabras e as
bebidas e normalmente as aldeias vizinhas tambm so convidadas.

Esquema 12
Novo julgamento
222

Indenizao Cota Freqentar a cota

Apelo corte Hospitalidade (visita)

2.3.19 - Lusende wa ngombo, o caso de khai


(fotos 424-426)

Na maioria dos cestos divinatrios, encontra-se vrios cascos de khai. Eles


acompanham os tuphele em seus movimentos, mas exercem um papel de prestgio para o
adivinho. Com efeito, toda vez que um caador, aps uma consulta ao ngombo, consegue
abater um animal, ele trar ao adivinho uma parte do animal abatido (uma pata) e o
adivinho guardar o casco no cesto como lembrana do sucesso do caador (fig. 67).
Assim, o casco no cesto do adivinho significa antes de tudo o reconhecimento do caador
a seus ancestrais:
... chipaji (casco) pode representar tambm a caada (wubinda), particularmente
o modo do caador rezar (ku-kombelela) pra seus espritos de caa1.
A presena de um grande nmero de casco seria portanto a prova de muitas
consultas seguidas de boa sorte para os consultantes caadores. No comeo, o adivinho s
tem em seu cesto um nico casco (lusende wa ngombo, o casco do ngombo), o do animal
sacrifivado por ocasio de sua iniciao, o qual, alis, no necessariamente um casco de
khai. Em compensao, a maioria dos outros cascos que vm se juntar ao primeiro
normalmente so de khai: isto no somente porque o khai um animal freqentemente
abatido mas sobretudo porque um animal digno do ngombo (Mwafima), porque
representa a virilidade e a fecundidade. Turner observa que os Ndembu do para comer
aos novios do ritual nkanga (ritual de iniciao das meninas) a carne de khai justamente
porque o khai o cefallofo do parto2.
Enquanto kaphele divinatrio, aparecendo borda do cesto, a significao do
lusende wa khai com freqncia negativa3. Com efeito, o casco de khai significa o
caador e opoder do caador, mas tambm sua ausncia, sobretudo quando entre o
caador e a caa se introduz seja o feiticeiro seja o esprito de um danarino mascarado:
Ele (chikwa chankayi, o casco de antlope) representa a caada (wubinda). Se o
kaponya cilowa entra em contato com este casco, significa que o feiticeiro, o possuidor da
cilowa familiar, afastou a caa do consultante, seu poder de matar o animal4.
Mas h outros obstculos para o caador que o casco de khai tambm relembra:
Um caador havia feito seu esconderijo (cinonga) numa rvore de um local
muito freqentado pelo khai. Como sempre o khai saa para procurar comida, o caador
se preparava para abat-lo; esperava apenas que se aproximasse. Quando o khai ficou

1
Turner, 1961, p. 64.
2
Turner, 1972, p. 286.
3
Um casco de antlope de Grimm ou lusende wa hai se encontra na mistura de objetos do instrumento
divinatrio ngombo ya cisuka... sua apario borda do cesto simboliza que o consultante no mata mais
animais na caa (Bastin, 1961, p. 195, nota 2).
4
Turner, 1961, p. 58.
223

bem prximo, o caador se deu conta que na verdade era um danarino mascarado. O
khai danava e mbalu (a lebre) e cikole (texugo) tocavam tambor. Por isso que se sabe
que o khai, quando se torna homem, no pode ser abatido (Hamumona).

2.3.20 - Ngaji, a enguia-eltrica


(foto 419-B)

Uma vrtebra da enguia eltrica, ngaji (Malacopterus electricus) simboliza no


cesto divinatrio as doenas nervosas (fig. 68). Ao mesmo tempo, o ngaji pode ser
utilizado no feitio de um amuleto contra o raio. Os cokwe, que utilizam uma armadilha
(muco) (foto 427-C) que deixam nos rios para pegar peixes durante a noite, a examinam
sempre com bastante ateno para saber se h um ngaji capturado. Neste caso, preciso
tomar precaues especiais: o pescador encher sua prpria boca com gua; antes de tirar
o ngaji ele o regar com a gua de sua boca e dir em seguida: Yara ngaji uri um muco:
voc ngaji, voc no pode me alimentar. Ento, ele pode mat-lo.
Quando, de volta casa, o pescador lhe tirar a pele, ele ter a mesma precauo,
isto , encher sua boca com gua; caso contrrio, ele levar pequenos choques eltricos
no momento em que cortar os msculos do peixe.
Os Cokwe tambm utilizam as vrtebra do ngaji para evitar a serem atingidos por
raios: eles usam as vrtebras enfiladas como pingente ou as dispem pelas casas.
Por sua fora, o ngaji considerado como o peixe superior a todos os outros e
como um smbolo do chefe da aldeia:
Ishi mnene ngagi, kalamba mnene mbumba: o peixe poderoso ngaji, ele
grande como o chefe em sua aldeia.

2.3.21 - Outros smbolos de origem animal

1. Washi uma ooteca (foto 427-B) da manta religiosa: simboliza as doenas


da garganta, em particular as que impedem de comer, faler e beber. Na preparao das
fumigaes teraputicas preciso adicionar um fragmento de washi (fig. 69).
2. Nange a gara real branca ou o guarda-boi (Bubulcus ibis) quando est
presente no ngombo (uma pata) tem um valor exclusivamente de remdio; nenhum
adivinho considera a pata de nange presente no cesto como um smbolo divinatrio. um
luphele muito estimado por ser utilizado tambm na iniciao dos jovens.
3. Sehelela a ave que ri (Prinops policephala), masehela na designao de
Baumann1, um bom pressgio para o viajante. Igualmente presente (bico) no cesto
divinatrio como luphelo, favorvel boa disposio dos jovens iniciados no campo da
mukanda.
4. Kese o caramujo comprido: a concha nacarada desse caramujo denominado
kole (kese no cesto) significa uma desgraa: acidente com uma piroga ou uma doena. No
primeiro caso, a explicao do adivinho remete a uma crena no kese, animal lendrio dos

1
Baumann, 1935, p. 241.
224

rios, que os Cokwe acreditam serem capazes de quebrar os remos das pirogas1. No caso
de doena, acredita-se que ela provm de um caso de feitiaria causada pelo rancor (kole)
de uma pessoa da mesma aldeia:
... uma nica pessoa da aldeia ameaa vrias outras por suas prticas de
feitiaria2.
5. Lupadji uma costela de animal, em geral de uma cabra (fig. 70): smbolo de
pneumonia; quando ela vem borda do cesto, o adivinho dir a seu cliente:
A doena (dos pulmes) no por causa de um feiticeiro; voc deve procurar
uma costela de co ou de gato, queimar um pedao e misturar o p com sal, pimenta e
leo de palma. Voc far quatro ou cinco incises no corpo do doente para colocar o
remdio e friccionar nas incises. Isso far o doente gritar, mas em seguida ele repousar
e acordar em bom estado (Riasendala).
6. Cifika pedao de cupinzeiro (foto 428), smbolo do esprito do ancestral
caador. Acredita-se que o esprito do caador, bem como alis o do chefe de aldeia, se
refugia na mata em um cupinzeiro esperando momento de entrar na aldeia de novo. O
primeiro, o do caador, entrar na aldeia por intemdio de uma efgie rudimentar que lhe
faro a partir de um pedao de cupinzeiro (cifika) e ao qual se far sacrifcios. O esprito
do chefe de aldeia entrar na aldeia por ocasio da intronizao do novo chefe3. Os
Cokwe explicam que assim porque o ancestral caador Ilunga repousou num pedao de
cupinzeiro depois de uma longa viagem.
7. Mbalu uma cauda (fig. 71) ou uma pata de lebre significam o sortilgio da
lebre; isto corresponde a um ato de feitiaria, seja de um homem contra seu pai4, ou seja
de algum que tomou o aspecto de lebre para roubar mais facilmente sem ser pego5.
Os Cokwe consideram a cauda da lebre como um amuleto de fecundidade para os
campos. Eles a colocam nas plantaes para obter colheitas abundantes.
8. Cikungunwa cetwe, o osso do joelho (fotos 429; 435, e) Para uma rtula de
animal (fig. 72), Sakungu deu esta explicao:
Quando se fala, coloca-se a mo no joelho. Isto significa portanto que uma
pessoa que fez uma feitiaria pertence mesma linhagem. Uma pessoa morreu. Consulta-
se o adivinho. Cikungunwa aparece borda do cesto. O adivinho dir: o seu joelho, seu
parente que matou essa pessoa. O responsvel ser pois ou o chefe da aldeia, ou antes seu
irmo, ou ento seu sobrinho.
9. Uhulu, a mediocridade Um dente de porco selvagem (fig. 73) denuncia a
incapacidade de uma pessoa de fazer um determinado assunto direito: no cesto um
smbolo da desobedincia e da incapacidade de respeitar as normas tradicioanis de
vizinhana e de considerao para com os ancies. Na situao atual os ancies censuram
com freqncia os jovens por seu comportamento que os faz parecer queles que tm o
esprito de uhulu.
10. Kasumbi (ndemba kasumbi) O galo. Um p de galo (foto 430; fig. 74)
evoca primeiramente o sacrifcio do galo quando da iniciao do adivinho. Por isso, um

1
Santos, 1960, p. 66.
2
Baumann, 1961, p. 243.
3
Ver lukanu, item 2.2.12.
4
Milheiros, 1967, p. 197.
5
Delachaux, 1946, p. 53.
225

smbolo que significa que um galo deve ser oferecido, seja porque o consultante deve
tornar-se adivinho ou porque a hamba Ngombo deve ser honrada mesmo antes do ritual
de iniciao do novo adivinho.
11. Mukono wa kwenda um osso da perna (tbia). (fig. 75). O cliente fez uma
longa viagem; est a a causa de sua doena.
12. Mathui uma orelha de animal. O cliente no tem orelhas para
compreender o que lhe dito. Ele no quer prestar ateno ao que se lhe prope
(Hamumona). A desgraa que aconteceu a uma pessoa devida exclusivamente ao fato de
que essa pessoa no escutou os conselhos dos outros:
... este objeto simblico (twitwi lya pembe: orelha de cabra) assinala que a pessoa
em questo, se est doente, ou se est morta, por sua prpria culpa, por no ter nunca
escutado os bons conselhos prodigalizados...1.
13. Cozo o pato selvagem. Uma p de pato simboliza aquele que passa por
todo lugar, e ao mesmo tempo, em todo lugar, pega coisas que no lhe pertencem. Cozo
portanto o ladro que no fica nunca no mesmo lugar. Sakungu explica:
O cozo pega um peixe no rio, em seguida ela vai no mato onde encontra masenda
(larvas); em seguida ela volta ao rio. O ladro, de todo lugar em que vai, volta sempre
com coisas que no lhe pertencem.
De acordo com M. L. Bastin, a pata de cozo seria um smbolo para desencorajar o
cliente doente de partir:
... cozo, nome de ave migratria, assinala que intil que o doente fuja da aldeia,
sua doena no o deixar e ele correria risco de morrer longe de seu pas2.
14. Cimbulu, unha de ratel (Mellivora capensis): para sarar ser preciso colocar
restos de ossos na ferida da escarificao3.
15. Mwanangana (chefe de terra) uma garra ou dente de leo ou de pantera
(foto 431; fig. 76) significa que quem morreu ou est doente chefe de terra ou chefe de
aldeia; ou ento o cliente est donte porque depois de matar um leo, ele teve relaes
sexuais, o que proibido (cijila), porque o leo representa o mwanangana (chefe de
terra). O caador que abate um animal nobre (leo, pantera) deve se submeter s mesmas
proibies sexuais que por ocasio de um bito.

2.3.22 - Phelo de origem animal

Vrios outros restos de animais podem estar presentes no cesto, mas os adivinhos
consideram cada um desses elementos sobretudo como um luphelo que preciso
eventualmente fornecer a seu cliente aps a consulta.
Pode-se considerar que cada um desses objetos est verdadeiramente a meio-
caminho entre aquele que exerce um papel simblico bem determinado no cesto e aquele
que ainda no entrou no cesto.

1
Bastin, 1962, p. 106, nota 1.
2
Bastin, 1961, p. 192.
3
Bastin, 1961, p. 235.
226

No h portanto nada de surpreendente no fato de que alguns desses elementos j


sejam considerados como tuphele por um adivinho ao passo que para um outro eles no
passam de phelo.
preciso mencionar, pelo menos como elementos que podem esclarecer, do ponto
de vista do adivinho, os mecanismos de simbolizao que permitem que um objeto se
torne smbolo divibnatrio, ou smbolo curativo primeiro e divinatrio na seqncia.
1. Cikwekwe (foto 432), o bico de ave que encerra sua companheira dentro de um
buraco de uma rvore durante a incubao1. A entrada tapada por uma espcie de cola
(patu) da qual os Cokwe tambm se servem para fazer diversos remdios. Entre outros,
Rikenga explica aquele que um homem deve preparar para fazer voltar a mulher que o
deixou:
O homem deve prepara o remdio da entrada de cikwekwe (patu), que a mulher
tomar... quando ela for na casa do outro marido, no conseguir fazer um filho porque
ela est fechada. Assim, ela se decidir a voltar para casa de seu primeiro marido.
Os jovens do campo da mukanda escutam e seguem os conselhos dos ancies e se
deixam conduzir por eles como o cikwekwe pelo vento. Imitando o movimento e o
barulho dos cikwekwe no vo, os tundanji cantam:

Cikwekwe yanga yanga (Oh! Cikwekwe bica bica,


Mama weno yanga Minha querida me, bica
yamande yanga yanga Nos campos, bica, bica
Tala ciku Olhe o lagarto
Tala musamwi lwe, yanga, yanga, Olhe, ele est invertido, bica, bica).

2. Ngandu, crocodilo um fragmento de um dente ou de um osso: aquele que


atravessa o rio em sua piroga prepara o remdio de ngandu, que ele pe no kapuli para
impedir que o crocodilo no o apanhe (Rikenga).
3. Cikungulu (Bulbo africanus, Terminck) (foto 433), uma variedade de mocho: a
cabea, uma pata, s vezes uma unha. Os Cokwe o consideram como emissrio do
feiticeiro (cikungulu wa wanga) porque ele traz consigo as foras malficas que lhe
permitem de absorver durante a noite a alma de quem habita a casa sobre a qual ele se
coloca:
... quandosobre o telhado ele faz hi... hi... hi... hi..., ele imita o barulho da pessoa
que dorme; ao mesmo tempo, ele absorve seu esprito. No dia seguinte, a pessoa estar
doente e se dir que o cipupu (Hamumona).
A uma outra ave (katoio, Clamator), bem como a uma variante mais rara de
mocho (cifuko), atribudo o mesmo papel malfico.
4. Kakoji, falco as unhas so utilizadas como remdio contra o feiticeiro. A
pessoa que usa um par como pingente no ser atacada pelo nganga (foto 434).
5. Khanga, a galinha-dAngola (foto 435-c, d) um osso, uma pata, a cabea ou
a crista da galinha-dAngola (Numida meleagris): algum que conserva coisas que no
lhe pertencem. O proprietrio pede-as freqentemente. As manchas que se v na

1
Confundido com freqncia com duas espcies muito prximas: ciangola (Ceratogymna atrata) e kwaji
(Haliaetus vocifer), o cikwekwe para os Cokwe a ave da escurido e da fome (ver tambm L. de Heusch,
1972, p. 232; p. 238).
227

plumagem da galinha-dAngola so as palavras proferidas contra aquele que conserva as


coisas de um outro. Ele deve devolv-las ao proprietrio e fazer o remdio da galinha-
dAngola para sarar de vez (Sanjinji).
6. Katuli, uma pata de camundongo (Dendromus mystacalis ansorgei Thomas);
reduzida a p, com razes das plantas mucaca e mtatashimba1, um remdio para fazer
sair (descer) os testculos.
7. Outros elementos mais raros no cesto e utilizados exclusivamente como
remdios: mboma, um osso de vbora (Python sebae), um pedao de carne dessecada de
hipoptamo (nguvu), uma unha de kafukufuko (uma variedade de morcego), o beico do
canrio kasakala (Serinus mozambicus), o casco de kafuriafuria (a cabra domstica), o
casco de vuli, o antlope dos pntanos (Limnotragus spekei), etc.

2.4 Plantas para as doenas

2.4.0 - Introduo

Dentre as coisas que figuram no cesto divinatrio dos Cokwe e cujo


encadeamento simblico ditz uma resposta aos diversos problemas que o tahi chamado
a resolver, devemos notar um certo nmero de frutos, sementes ou fragmentos de plantas.
A escolha de tais elementos vegetais de preferncia a outros coloca a complexa questo
da origem e da constituio desta prestigiosa tcnica divinatria qual no se pode
responder no estado atual das investigaes sobre esse processo divinatrio.
As plantas se acham relativamente pouco representadas no ngombo se as
compararmos com os numerosos elementos de natureza animal. Uma explicao, sem
dvida parcial desse fato, que a caa uma das principais razes de consulta ao
adivinho, se bem que ela esteja em via de desaparecer2; mas h muitas outras razes a
levar em considerao, cujas principais so aqueleas que apresenta o informador Joo
Manuel, um verdadeiro especialista da flora da regio, segundo o qual os animais so
mais numerosos que as plantas no ngombo pela simples razo de que os animais tm
mais vida e portanto falam melhor que as plantas no cesto.
Mas a presena de certas plantas, no cesto divinatrio, est tambm em relao
com as caractersticas particulares de tal ou tal planta, que teriam determinado sua
escolha como elemento capaz de levar uma carga simblica determinada. Isto explica no
somente a escolha de tais frutos ou tai sementes, mas tambm o recurso a fragmentos de
certas plantas como elementos curativos, e neste caso no se v mais claramente a
fronteira entre o recurso devido a uma motivao puramente simblica e as razes da
experincia tradicional que aconselha tal planta como remdio para um mal determinado.

1
Ver item 2.4.17.2.
2
A persistncia das expresses culturais da caa, apesar do desaparecimento progressivo dessa atividade,
um exemplo da tenacidade com a qual um povo prende-se a seus valores, mesmo quando desaparece a base
material que lhe serve de apoio. A ritualizao crescente dessa atividade analizada por Turner entre os
Ndembu (Turner, 1953) seria um fenmeno de compensao no plano ritual do vazio verificado no domnio
do real.
228

todo um saber tradicional com o qual nos confrontamos aqui, saber para o qual
as virtudes curativas de cada planta so determinados at no detalhe das dosagens
necessrias nos diferentes casos. Esse saber se mantm mais ou menos intacto graas
continuidade garantida por esses especialistas, hoje j to raros, e que seria lamentvel
ver desaparecer. Eles se queixam alis dos conhecimentos superficiais que os jovens tm
sobre esses assuntos; e deploram o fato de que os mais jovens prefiram, quando
possvel, comprar os remdios modernos contra os males, abandonando assim a medicina
tradicional. No sem uma ponta de ironia que os peritos dessa sabedoria vem os jovens
imprevidentes obrigados a pedir seus servios, solicitando uma planta indicada para um
ou outro mal; o remdio desejado no nunca recusado mas se aproveita a ocasio para
fazer os jovens (como algumas vezes tambm os europeus que reclamam seus servios da
medicina tradicional) sentirem que os velhos e a sabedoria que eles tm interessa tambm
nova gerao.
Para que esse saber tradicional possa ficar para as novas geraes, que poderiam
integr-la mesmo fora do contexto mgico-religiosos, ser preciso sem dvida um esforo
suplementar e mtodos apropriados. As poucas plantas indicadas so s uma pequena
amostra da riqueza complexa que representa o mundo vegetal pelo qual os Cokwe
resolvem seus problemas.
A significao de cada um dos elementos estudados est relacionada tal como os
informadores-adivinhos a transmitiram; isto constitui o centro deste trabalho que pretende
antes de tudo consignar por escrito os elementos de uma tradio oral em via de
desaparecer. Numa elaborao posterior e utilizando os dados correspondentes das outras
etnias da mesma zona da frica Central, seria talvez possvel detectar os fundamentos da
lgica de pensamento que explica o funcionamento de certos mecanismos de
simbolizao em detrimento de outros.
O muito vasto e complexo campo de estudo da etnobotnica na cultura cokwe
somente esboado aqui. O pequeno nmero de plantas que figuram no cesto divinatrio
supe no apenas o vasto contexto ritual j mencionado, mas ele tambm est em relao
com as caractersticas morfolgicas especficas ou as particularidades da fisiologia dessas
mesmas plantas, se bem que no primeiro nvel de observao a resposta seja sempre de
natureza exclusivamente simblica1.
Ao grupo de plantas que so tuphele, preciso adicionar o grupo que um tahi,
exercendo igualmente as funes de curandeiro, pode ter s mos como estoque de
remdios de origem vegetal para fornecer a seu cliente aps o trmino da consulta,
detectada a causa do mal. Foi sem dvida essa acumulao das funes que trouxe um
elemento perturbador compreenso dos mecanismos de simbolizao subjacentes a essa
prtica. Na impossibilidade de estudar a fundo todo esse sub-grupo (at um certo ponto
no-definido e ilimitado), ligado s atividades de curandeiro, que o adivinho exerce
tambm, ns nos limitaremos a estudar algumas plantas, as mais freqentes,
representadas no pequeno feixe de bastonetes (Ka) que, ele, parte integrante

1
V. Turner o afirma explicitamente quando diz que whatever may be the empirical benefits of certain
treatments, the herbal medicine emplyed derive their efficacy from mystical notions and their therapy is na
intrinsic part of a whole magic-religious system (Turner, 1967, p. 361); mas por um outro lado, medida
em que a enquete se aprofunda, verifica-se que na maioria dos casos a experincia do saber tradicional
(inconsciente) ocupa-se em se integrar a mecanismos de natureza simblica.
229

dos objetos simblicos, mas cuja constituio apresenta uma certa variao de um
adivinho a outro. A lista poderia certamente se prolongar, mas em grande parte das
plantas os dados no esto muito esclarecidos. E, por um outro lado, os estudos de
natureza estritamente taxonmica ainda no foram suficientemente desenvolvidos para
que seja fcil ou simplesmente possvel de separar as plantas que tm aplicao
semelhante, sobretudo quando o mesmo nome autctone se aplica a diferentes plantas ou
ainda, o que tambm freqente, quando diferentes nomes se aplicam s mesmas plantas
em regies relativamente prximas. Por essas razes, indicamos ou os nomes cientficos
atribudos a diferentes plantas pelos diversos autores que abordaram seu estudo para que,
na medida do possvel, sejam afastadas as causas de ambigidade. Ao mesmo tempo,
aproveitando estudos de botnica ou etnobotnica j realizados em outras zonas prximas
que se pode designar sob o nome de rea cultural de predominncia cokwe, indicamos os
diferentes nomes africanos atribudos mesma planta. somente assim que ser possvel
avanar no esboo de um estudo mais profundo da medicina tradicional em seu aspecto
global; e isto que importa, dado que s esta perspectiva pode dar conta do processo
como realidade total.
Situar as plantas que vamos estudar na funo em que aparecem o ato
divinatrio tem a vantagem de constituir um primeiro passo para compreender a
medicina tradicional enquanto fenmeno global. O estudo (a fazer) de outras plantas
dever levar em conta os riscos que ter para isolar uma eventual matria mdica em
oposio a todo um contexto ritual rejeitado por ser matria mgica; tal procedimento
equivaleria a fechar desde o incio a porta da compreenso possvel do processo. Apesar
de autores brilhantes terem cado nessa armadilha1, a medicina tradicional parece
finalmente comea a se consagrar novamente na frica e alm dela.
O pequeno grupo de fragmentos vegetais que existe no ngombo de natureza
complexa, apresentando uma grande heterogeneidade tanto do ponto de vista da
significao quanto da natureza. A ttulo de exemplo, nota-se dois tipos de cogumelos,
um de valor positivo e outro de valor negativo. Os frutos assumem uma significao seja
pela forma seja pelo estado em que se apresentam (inteiro, positivo; cortado, negativo) ou
ainda pela dureza ou pela cor. s vezes o trao pertinente que polariza o campo
semntico se perde nas brumas do inconsciente e, neste caso, obstinar-se em achar uma
explicao arriscar-se a respostas evasivas, alis freqentes demais nesse gnero de
pesquisa. Por um outro lado, e admitindo-se o carter provisrio ou mesmo artificial de
alguns tuphele importante antes de tudo relevar a prpria natureza dos objetos
significantes tais como se apresentam ao observador. Da, a grande importncia que foi
dada ilustrao pela fotografia ou pelo desenho; aqui tambm a razo da opo feita em
apresentar mesmo os elementos para os quais as informaes obtidas so parcimoniosas
demais. A lista que segue, apesar de no-exaustiva, aborda separadamente o estudo de
cada um dos elementos vegetais, que no so propriamente manufaturados, do cesto de
adivinhao.

1
Ver por exemplo Evans-Pritchar, 1934 Zande therapeutics in: Soudan Bulletin Notes and
Records, onde escreveu, a notar: A enorme quantidade de drogas de que os Azande fazem uso e a
diversidade dos produtos botnicos que aplicam para uma s e mesma doena demonstram de uma s vez
sua ausncia de valor teraputico para que os refletssemos no contedo real da farmacologia cientfica (p.
322, texto citado em Nguete Kikhela e alii, 1974, p. 11).
230

2.4.1 - Saki, as portas da mentira

Barbosa: saki, s. pl., ver lusaki, s. (7): boato, notcia que consta, o que se diz ouvir.
No plural (saki) tambm: indiscrio, qualidade daquele que conta tudo o que v.

No ngombo ya cisuka, saki um fragmento de um cogumelo que ns chamamos


de cogumelo-dos-troncos, que apresenta na parte superior um reticulado parecido ao de
uma colmia de abelhas. Trata-se de um smbolo sempre negativo, ao passo que o kulya
(um outro cogumelo que estudaremos em seguida) a expresso do bem-estar e da
harmonia social por excelncia. Somos obrigados a concluir que, neste caso, a figurao
simblica passa por cima da natureza do objeto e se fixa exclusivamente na forma. Com
efeito, as mltiplas bocas desse cogumelo (fig. 77; foto 436) indicam o mundo
totalmente aberto da mentira; ou como o explicaria um informante (Mwacimbau), saki o
contrrio do ovo; este aqui fechado, nenhuma porta, nem entrada nem sada, enquanto
que no saki tudo porta. por isso que saki o smbolo da mentira por excelncia. Mas
no se trata somente de uma mentira que ausncia de verdade. Saki sobretudo o
smbolo da mentira fabricada, ativa, que traz conseqncias para o grupo onde ela se
desenvolve.
Saki, explica o adivinho Mwafima, a pessoa que tem a boca doce, fala de
coisas que ela no viu, por todo lugar em que passa, induz as pessoas ao erro. Que
acontece ento? Ao cabo de algum tempo, a pessoa atingida pelo poder de saki encontra-
se perturbada, sente-se doente e deseja ver o adivinho. Este explicar ao doente tudo o
que se passou, mas o inimigo nem sempre se aquieta. Algumas vezes ele continua a
mobilizar a aldeia contra a vtima. Por isso, ele busca juntar os mais velhos a sua causa
at que eles decidam se reunir em tribunal na cota para se pronunciar sobre o assunto.
Quando isso for feito, a marginalizao da vtima terminar e ele dever sem dvida
partir para longe imediatamente ou poder, nesse meio tempo, sucumbir condenao
geral que a cerca. Isso chegava a acontecer, assegura o adivinho Sakungu, por que uma
pessoa no pode se manter em vida se no ofr bem vista pelos ancies.
Tambm quando algum morria, devido a intrigas, o adivinho chamado para
encontrar a causa do acidente, exibia o saki que aparecia borda do cesto e a aldeia
assunia a morte inesperada; o ato divinatrio parava ento apario do saki e o adivinho
conclua: Essa pessoa no morreu por si; foram os outros que mentiram e enganaram os
ancies, na cota.

2.4.2 - Kulya, o cogumelo

Bastin: kulya (inv.): comida, alimentao.


Barbosa: kulya s. (3): comida (inf. verbal de -lya).
231

Kulya ou kurya um fragmento de um cogumelo branco ou esbranquiado,


bastante consistente (fig. 78). Trata-se de um kaphele eminentemente positivo que os
adivinhos chama com freqncia de cogumelo da vida.
Qualquer que seja a situao do cliente, mesmo se ele arrasta consigo uma doena
h muito tempo, e que se tem a certeza de uma morte iminente por causa de um feiticeiro,
a apario de kulya o conforta inteiramente. Os adivinhos, muito unnimes quanto ao
valor desse smbolo, limitam-se a acentuar o carter evidente da fora favorvel desse
objeto: se o kulya vem ( borda do cesto) isto significa que o cliente vai se comportar
bem, vai viver muito tempo (Sakungu); ou simplesmente a pessoa doente para quem se
faz a consulta vai reencontrar a sade aps uma longa enfermidade: o kulya mostra a
fora da vida; a pessoa est doente mas ser salva (Mwafima).
Para esse adivinho, Mwafima, a expresso fora da vida quer dizer a capacidade
de vencer um estado de abatimento e recomear a viver. Ele insiste no fato de que
graas ao kulya que se encontra a vida.
Ns poderamos estar diante do uso, apesar de esquecido, de alguma coisa
semelhante aos cogumelos alucingenos que marcaram tanto as civilizaes. Se fosse o
caso, os Cokwe se situariam nas classificaes de povos miclogos dos etno-miclogos1;
mas esta hiptese, se ela fundada, no pode ser confirmada hoje pelos ancies, que
explicam o sentido positivo do cogumelo kulya unicamente sobre a base de sua cor
branca; muitos insistem mesmo na semelhana desse kaphele com a pemba. Assim, por
exemplo, aps a importante cerimnia kumeneka (boas-vindas) que consiste na solene
recepo feita por um chefe a seu colega, o visitante, aps o bom acolhimento, apreciar
bastante a calma repousante da noite e no dia seguinte dir obrigatoriamente ao chefe que
o recebeu: eu repousei bastante, eu sonhei pemba, eu sonhei kulya.
Parece que pode-se concluir que a valorizao simblica desse objeto devida
unicamente ao fator cor; no caso precedente, saki, foi a forma que parece ter determinado
a significao do objeto. Num e noutro caso, a natureza do objeto foi passada a um
segundo plano.

2.4.3 - Cihungu, o milho vermelho

Barbosa: tchihungu, s. (3): espiga de milho.


Barbosa: luhungu s. (7). Pl. maluhungu um kaphele do cesto do adivinho que
consiste num bocado de espiga de milho (tchihungu) e que indica que a causa da doena
o desleixo ou o desprezo (-hungula) pelo culto das mahamba.
Tucker: epumu (corncob).

Trata-se de um smbolo de adivinhao carregado de conotaes negativas ligadas


principalmente feitiaria. Ele revela um caso inesperado de feitiaria que surge sem
explicao no meio do povo. O cliente ouve que inventou coisas falsas e por isso
ningum o tolera mais na aldeia. A inquietude do cliente, que no era ainda certa, recebe
atravs dessa consulta, que acaba pelo kaphele cihungu, como que o certificado ou a
confirmao de sua marginalizao efetiva. A reao mais lgica ser de preparar suas
1
Ver a esse propsito C. Lvi-Strauss, 1970, p. 6.
232

coisas e paritr, sobretudo quando a antipatia generalizada comandada pelo chefe da


aldeia. Uma causa provvel: ele (o cliente) teria faltado com a prestao do tributo de
caa que devido ao chefe; com efeito, nos meios onde os costumes tradicionais esto
ainda em vigor (e isto mais generalizado do que pode parecer primeira vista) o
caador que teve sucesso na caada deve sempre uma pata do animal morto ao chefe da
aldeia. Subtrair-se a essa obrigao normalmente interpretado como um gesto de
feitiaria contra toda a aldeia e da o isolamento e a desaprovao geral que encobre o
transgressor. Essa presso social tem, sobre o culpado, um efeito to insuportvel que ele
se torna vtima de uma espcie de feitiaria passiva que em princpio tende a lhe tirar a
vida.
Os Cokwe, nos dias de hoje, limitam-se a essas explicaes de carter geral sobre
o corao do milho (fig. 79; foto 437-a) como indcio de marginalizao e conotao
conseqente de feitiaria, seja ela ativa ou passiva.
Os Ovimbundu so contundo muito mais concretos sobre essa particularidade e
apresentam uma explicao que se reporta mais ao prprio objeto. O corao do milho
seria o indcio das perturbaes ou anomalias no crescimento do milho no campo e isto
devido interveno de um esprito descontente1; ou ainda, segundo Tucker, o corao
do milho se acharia no ngombo para denunciar o desaparecimento do milho que foi
roubado2.
A notar ainda que o simples fato da apario de uma espiga vermelha no milho j
um motivo para se consultar o adivinho: esse fato parece ser o ponto de partida que
explica a ligao desse kaphele com as prticas de feitiaria que os Ovimbundu
desenvolvem. Com efeito, epumu se encontra ligado a prticas de feitiaria que podem ter
como objetivo provocar uma fertilidade anormal nos campos; segundo o testemunho de
L. Tucker, se obteria tal efeito fazendo passar no campo semeados as potencialidades
vitais inerentes a uma criana, que seria sacrificada para esse efeito:

A av mata a criana com veneno e a enterra; ela vai sepultura noite, pega o
corpo, carrega-o consigo, corta-o ao meio, tira as vsceras, desseca o corpo, tritura-o at
que vire p, e mistura-o com as primeira sementes plantadas, ou o queima nos campos
com algumas varetas enfeitiadas e a fumaa se estende a todas as partes do campo3.

Dessa informao, podemos concluir que se atribui s mulheres no apenas a


fertilidade dos campos, mas tambm os atos de feitiaria que provocariam uma colheita
acima do normal. Mas a ligao desse kaphele divinatrio com a feitiaria das mulheres
ainda reforada pela existncia de um ritual particular (oka-vyula) descrito por C.
Estermann4 e que se desenrola em pleno contexto de feitiaria. Trata-se provavelmente de
um rito originrio dos Cokwe ou Lwena, praticado unicamente pelas mulheres casadas,
que pela circunstncia anunciam que vo se ausentar na mata5; no se conhece todos os

1
Hambly, 1934, p. 275.
2
Tucker, 1940, p. 194.
3
Tucker, 1940, pp. 193-194.
4
Estermann, 1967.
5
Notar que a expresso ir na mata a mesma que se utiliza para anunciar a mukunda (iniciao) e
significa sempre uma ruptura provisria com a vida do grupo.
233

detalhes dessa prtica, mas sabe-se que durante essa espcie de inciao elas praticam a
exciso aps o corpo ter sido cuidadosamente lavado; as partes excisas so postas para
secar sobre carapaas de pangolim1 e quando elas esto secas e reduzidas a p so
utilizadas como ungento do corpo das iniciadas; sabe-se igualmente que nos primeiros
dias elas so obrigadas a permanecerem nuas durante a noite; mais tarde, elas usam uma
pequena saia de riscas brancas e pretas com a qual elas pretenderiam imitar a zebra.
Tambm faz parte da iniciao a descoberta particular de um novo prazer no ato sexual
que realizado sob a forma simblica. Para esse efeito, faz-se um basto ao qual se d a
forma de um rgo viril; esses bastes so confeccionados exclusivamente de otyi ou
omu-lavi (Gardenia Jovis-tonantis), planta qual os Cokwe atribuem igualmente
qualidades especiais2; para simular o ato, elas lubrificam o basto de otyi-lavi com
afrodisacos diversos. Atribui-se a esse ato simblico um prazer particularmente intenso e
novo. Comea-se depois a chamar as mulheres iniciadas de ovi-ka-vyula (as depiladas),
termo que contm simultaneamente um sentido pejorativo e provocador. imitao da
mukanda dos homens, o rito acaba com a exibio das roupas novas e alegres e a
proibio de divulgar o rito.
Estermann fala ainda da exibio de uma boneca (ou criana morta?) cuja
significao desconhecida. Esta seria o trao particularmente significativo em relao
com a feitiaria e com o tratamento aplicado ao cadver no momento dos funerais de uma
mulher iniciada; o corpo seria espancado e insultado antes de ser retirado da casa, no
pela porta, mas por um buraco aberto para isso na parede3. Todos esses elementos
indicam as normas tradicionais em relao com a feitiaria; uma mulher iniciada nesta
prtica seria pois considerada como um feiticeiro.
Esse rito secreto, observado no pas ovimbundu, mas importado do Leste, segundo
o testemunho dos informantes, tem provavelmente uma otigem cokwe ou talvez Iwena.
Com efeito, esses povos (Lovale) praticam um rito, designado por alguns autores como
segunda iniciao feminina, e que no nada mais que o homlogo feminino do mugonge
dos homens; os Cokwe chamam-no cuila (tshuila) e dizem que eles no o praticam h
muito tempo. As mulheres Iwena, que conhecem essa prtica, tinham o costume de se
depilar durante essa iniciao, segundo o que diz Cabrita4, ao passo que as mulheres
cokwe se limitavam a aumentar o nmero de tatuagens do baixo ventre (mikonda)
comeadas por ocasio da primeira iniciao (ukule).
Pde-se verificar ainda que os insultos ao cadver da mulher iniciada eram feitos,
segundo os mesmo informantes de Estermann, em idiomas estrangeiros, expresses
cokwe ou ngangela, provavelmente; por um outro lado, sabemos que o uso de
afrodisacos freqente entre os Lwena e os Cokwe. Haja visto o contexto geral no qual
se faz essa iniciao, tudo nos leva a crer que se trata de uma verdadeira inicao s artes
da feitiaria.

1
Ver item 2.3.3.
2
Essa planta, que os Cokwe designam mukirici ou mukangandjamba, , entre outras coisas, utilizada como
afrodisaco pelos homens; as crianas so lavadas com a coco das folhas porque se acredita que isso as
far mais fortes. Uma rama sobre o teto impede o relmpago de atingir a casa. (Ver tambm item 2.4.17.6).
3
Estermann, 1967, p. 110.
4
Cabrita, 1954, p. 124, citado por Estermann.
234

A apario do corao do milho borda do cesto de adivinhao poderia ser o


primeiro passo que permitisse ao adivinho denunciar tais prticas atribudas s mulheres
feiticeiras. De resto, todo excesso, como as colheitas superabundantes, sistematicamente
suspeito de feitiaria e isto tanto entre os Cokwe quanto entre os Ovimbundu. Uma
produo excessiva um ato de feitiaria como o tambm um prazer sexual acima do
normal, objetivo provvel do rito ovi-ka-vyula.
Por um outro lado, a dana executada pelas mulheres noturna e elas a fazem
nuas; isto basta para que essa associao de fatos constitua diante da sociedade um ato de
pura feitiaria e seja interpretado como tal pelo adivinho; parece que tambm nesse
sentido que se deve entender uma outra significao recolhida por L. Tucker igualmente
relativa ao corao de milho no ngombo:

... usado pelas mulheres feiticeiras na dana meia-noite na frente da casa da


pessoa que elas desejam amaldioar. Elas danam nuas e esfregam seus escrementos com
uma espiga de milho no batente da porta1.

Nesse contexto inferido por Tucker, torna-se evidente que os Ovimbundu unissem
a feitiaria noite, a nudez e sujeira. Os Cokwe tambm o fazem, mas nenhum dos
informantes deu a este smbolo a fora que os Ovimbundu lhe atribuem. O campo
semntico do cihungu se polariza fundamentalmente em trs tipos de excessos aos quais
correspondem, simetricamente, as mutilaes ou supresses, funo inversa e
compensatria do mecanismo da feitiaria. Assim, temos de um lado:

a superabundncia na colheita (poder vital especial),


a super-excitao ertica (afrodisacos),
o superembelezamento (roupas coloridas).

e de um outro lado:

o homicdio (provvel) de uma criana (supresso da vida),


a exciso (mutilao fsica),
a depilao (supresso do ornamento fsico).

Excesso de vida (colheita) / criana morta,


excesso de prazer / exciso,
corpo enfeitado com roupas coloridas / corpo depilado.

2.4.4 - Cifuci, o pas que preciso habitar

Bastin: cifuci (yi), terra, pas, lugar.


Barbosa: tchifutchi, s. (3), regio, terra, pas, mundo.
Barbosa: tchipema s. (3) e adv. Boa-ao, o bem, bem.
Barbosa: tchafwa, s. (3), pessoa tapada, parvo, idiota.
1
Tucker, 1940, p. 193.
235

muzombo, Brachystegia boehmi Taub1


munzombo (Cokwe), Entada gigas Faucett & Rendle2
munzonzombo (Cokwe), Irvingia Smithii Hook. F3

A semente de uma planta trepadeira, muzombo (espcie no-identificada) toma no


cesto o nome de cifuci (pas, regio, aldeia). Essa semente (fig. 80, fotos 437-b/438-a)
pode estar presente sob duas formas: se ela est inteira, completa, ela tem uma
significao positiva em relao com o local escolhido para instalar uma aldeia; em
compensao, se ela se apresenta mutilada (normalmente uma metade) ela significa
carncias que exigem uma mudana de lugar da aldeia.
Txifutxe (um certo fruto) signifca que a regio onde se encontra o cliente
4
boa .
Dada a segmentao constante dos grupos de uma aldeia, a consulta para saber
onde encontrar o local conveniente para instalar uma nova aldeia a ser criada constitui a
primeira deciso a tomar pelo chefe do grupo separatista: se a resposta do adivinho era
negativo, era preciso esperar. O adivinho julgava com freqncia a oportunidade do incio
em funo da disponibilidade de terras cultivveis. Ainda hoje a palavra cifuci evoca a
idia de terrenos propcios s culturas agrcolas.
... um grande fruto chato, mais ou menos em forma de corao, sob o nome de
cifuci simboliza o chefe de terra: ele indica que para sarar, deve-se dar um presente a este
ltimo. Uma metade desse mesmo fruto, levando o nome no cesto de cihanda ca cifuci,
pressageia: preciso fugir5.
O presente dado ao chefe de terra quer dizer que uma crise no interior da aldeia
foi solucionada por uma reconciliao entre o grupo dissidente e o chefe. Um mau
entendimento com um chefe de aldeia significa uma ameaa para a pessoa ou o grupo em
desacordo; tal situao condenada pelos ancestrais. Alm disso, o poder imerge
facilmente na feitiaria; o chefe sempre um feiticeiro em potencial com o qual mais
desejvel viver em paz.
Se se decide partir, se desencadea a vingana num futuro prximo. Por ser o
abandono da aldeia alis condenado pela tradio, a vingana est implicitamente
justificada.
A apario ocasional da doena que atinge um nmero cada vez maior de pessoas
pode ser interpretada como a ao de um feiticeiro no interiorda aldeia; por isso que:
... quando ela (a semente cifuci) emerge da mistura do cesto, a causa da doena
se encontra entre os membros da aldeia6; preciso todavia observar que nessa
interpretao, deve-se referir a uma semente mutilada; com efeito, os autores apresentam
s vezes uma nica significao para cifuci, sendo estando a semente em bom estado ou
mutilada. Os Cokwe no fazem nunca essa confuso.

1
Palgrave, 1956, p. 77. Qualquer que seja a designao taxonmica correta, o fruto do ngombo que o
adivinho chama de cifuci o da planta que Palgrave descreve.
2
Santos, 1960, p. 170.
3
Agronomia Angolana, 1953, 7, p. 80.
4
Milheiros, 1960, p. 110.
5
Bastin, 1961, p. 47, n. 3.
6
Lima, 1971, p. 264.
236

Identificada como grande semente de uma rvore da mata, o cifuci (chifudji)


significa de acordo com Hauenstein (que apresenta o desenho de uma semente mutilada):
... que h na aldeia dificuldades provenientes da chegada de estranhos que se
estabeleceram no mesmo local. Eles so a causa das doenas e das calamidades de todo
gnero1.
uma informao que vem dos Cokwe emigrados para o centro de Angola, entre
os Ovimbundu. Essa nova situao pode influenciar tambm a significao dos smbolos
divinatrios. No nordeste de Angola, onde os Cokwe so majoritrios, eles no se opem
chegada de grupos provenientes de outras etnias. Em 1960, quando da independncia do
Zaire, eles acolheram muitos Luba e Lulwa; esses grupos se instalaram em aldeias
independentes, mas jamais foram tratados com hostilidade.
O cifuci tem uma significao favorvel quando est representado por uma
semente em bom-estado: o cifuci cipema. O adivinho Mwafima definiu-lhe o contedo:
cifuci cipema significa um bom local para construir uma aldeia: h bom terreno para a
mandioca, o milho e os legumes; h meio de encontrar o upite (isto , fazer trocas
comerciais); h peixe no rio e abundncia de caa, um bom cifuci. Em compensao, a
semente quebrada (cifuci cafwa) simboliza a aldeia abandonada. As pessoas partem
porque, explica o mesmo adivinho, falta comida, no h riqueza (upite), muitas pessoas
morrem de doena; falta caa e peixe; um cifuci cafwa. E ele adiciona que os Cokwe
vieram do sul para o norte em busca de bons yifuci.
Se resumirmos as diferentes significaes atribudas a esta semente, veremos que
os adivinhos marcaram sobre o prprio objeto duas direes semnticas: cifuci cipema
carrega a conotao de tudo o que bom para a subsistncia da aldeia; cifuci cafwa
representa o contrrio; essa oposio se projeta sobre uma segunda: a aldeia ideal remete
interveno (favorvel) dos ancestrais; em compensao, atrs da situao da aldeia
imposscel se oculta a atividade secreta do feiticeiro.

+ ANCESTRAIS
-Um pas inabitvel -chefe de uma aldeia a honrar
-A chegada de estrangeiros suspeitos cifuci cipema -um pas para ficar
-Doena e feitiaria - +
Cifuci o pas

cifuci cafwa
Esquema 13

- FEITICEIRO

2.4.5 - Ngombo, o novo adivinho

Bastin: ngombo, espritos ancestrais, frutos.


Barbosa: ngombo, s. (10):

1
Hauenstein, 1961, p. 146.
237

1 uma hamba que se manifesta descobrindo ou adivinhando coisas


previamente escondidas ou de algum modo ocultas. Ngombo o esprito que revela o
desconhecido atravs do mdium de seu servo (Hli Chatelain, Contos Populares de
Angola, A. G. U., 1964, p. 524, nota 444).

2. Por extenso: cesto (kasanda) do adivinho com os respectivos


tuphele ou qualquer outro processo de adivinhao.

O fruto da palmeira Raphia (fig. 81-a) no ngombo ya cisuka quer dizer que
necessrio que um novo adivinho seja iniciado nessa arte. Os Cokwe no toleram que
uma atividade fundamental como a adivinhao seja interrompida por tempo demais. Em
geral, quando um tahi morre, seu sucessor no tarda a aparecer; com efeito, ou ele j foi
escolhido (seno mesmo iniciado) ou o esprito do adivinho desaparecido lembrar dentro
em pouco, por meio de uma doena, a necessidade de promover um sucessor que
retome sua atividade. A notar em particular o fato de que este kaphele se apresenta em
dupla, por ser sempre representado por dois frutos iguais, sendo um masculino e o outro
feminino; os adivinhos so unnimes para designar esses dois frutos como pai e me do
ngombo (foto 438-b). Na maioria dos casos os dois frutos so de tamanho ligeiramente
diferentes, sendo um mais fino e longo, considerado masculino, e o outro mais curto e
largo, feminino. A relao entre a planta e o esprito Ngombo no foi esclarecida, mas por
um outro lado, nota-se que esses frutos esto quase sempre presentes e sua interpretao
constante. Trata-se de um dos elementos simblicos mais uniformes no campo semntico.
As informaes recolhidas sobre o assunto bem como pelos diferentes investigadores
citados que por ns se resumem praticamente a isto: preciso conciliar o esprito de
adivinhao iniciando um novo especialista. Dois frutos semelhantes a pinhas,
representando um o elemento masculino e o outro o elemento feminino do esprito
Ngombo, encontram-se sob este nome entre os diversos objetos contidos no cesto do
ngombo ya cisuka.
O simbolismo atribudo a esses frutos ngombo significa que ningum quer mal ao
consultante; este aqui, ou o parente para o qual veio pedir ajuda ao adivinho, deve tomar
os medicamentos que o tahi lhe dar, e pelas oferendas ao esprito Ngombo pr-se em
salvaguarda1.
Procurando explicar melhor a funo deste kaphele duplo e a razo de sua
presena como forma masculina e feminina, Riasendala explica o ato divinatrio
comparando-o gerao: quando o adivinho separa, no cesto, o bem do mal, ele faz a
mesma coisa que o esprito Kanga2 no ventre da mulher para distinguir se ser um
menino ou uma menina.
preciso notar que h uma confuso aparente entre esses dois frutos, assinalada
por Bastin e observada com muita freqncia por este autor, e que menciona E. Santos
quando escreve caroo de fruto em forma de pio3 e que ns observamos precisamente
no cesto do informante Riasendala. Trta-se realmente do mesmo fruto; no primeiro caso,
o envelope externo est presente; no segundo, trata-se do interior lenhoso (fig. 81.b, 81.c)

1
Bastin, 1961, p. 40, nota 4.
2
Ver Citanga (Kanga), item 2.1.8.
3
Santos, 1960, p. 159.
238

que os adivinhos talham um pouco com a faca, um mais que o outro, para justificar o
nome de pai e me do ngombo que eles lhes do; isso que justifica a expresso de E.
Santos: fruto trabalhado em forma de pio, que o mesmo autor explica nestes termos:
um caroo de fruto do lukele (Raphia) trabalhado em forma de pio. O cliente herdou
um gombo de seu tio. Que ele o exera e faa imediatamente a hamba ngombo: enfie
dois espetos de mulemba1 no cho diante da porta da casa e degole um galo e uma galinha
e espete suas cabeas em cada uma das extremidades dos paus. Deste modo, seus
sofrimentos cessaro2. Observa-se entretanto que a apelao de hamba ngombo consiste
precisamente em reclamar o ritual de iniciao do adivinho, como evidente.
A observao de Hauenstein parece um pouco mais confusa quando ele chama
indistintamente de ngombo trs coisas distintas, a saber: o fruto de Raphia (planta que
seria o citelekele na expresso de seus informantes), um chifre de ombambi e um osso de
galinha. Segundo nosso autor um ou outro dos trs tuphele assinalados designariam a
necessidade de suscitar um novo adivinho3; ainda que Hauenstein no nos d mais
especificaes sobre esse assunto, pois fcil de concluir que os objetos mencionados
aqui como ngombo devem se relacionar mesma festa de iniciao, dado que , como se
sabe, obrigatrio sacrificar um galo para arvorar o munenge (espetos) que anuncia o
adivinho; e, se o novo tahi tem a possibilidade, ele deve oferecer um animal aldeia
inteira para festejar o acontecimento.
Todos os adivinhos cokwe consultados em matria deste kaphele declaram que ele
exprime a necessidade de fazer sair ngombo seja por faltar um tahi, seja porque um
ancestral que teve a mesma profisso no est sendo devidamente venerado pela
continuao de sua antiga atividade.

2.4.6 - Swaha (mukoci, cikumo), o parentesco ao inverso

Bastin: swaha, cabaa.


Barbosa: swaha, s. (10), cabaa (fruto ou vasilha).
Bastin: mukoci, amuleto consistindo numa vasilha de cabaa contendo remdios.
Barbosa: mukotchi, 5. (2), pequeno toco de cabaa com determinada mezinha.
usado pelo beb para que, sendo tomado nos braos por algum que tenha tido relaes
sexuais, no seja atingido pela doena zombo.
Barbosa: tchikumo, (3), pednculo de certos frutos (como cabaa, pimenta, etc.) ou
a extremidade do mesmo em certos outros (como tangerina, laranja, etc).

Um pequeno fragmento de cabaa (foto 439) a forma mais corrente sob a qual se
apresenta o kaphele swaha no cesto divinatrio; ela est quase sempre presente, seja
como fragmento informe de abbora de qualquer tipo, seja como seu pednculo (cikumo
fig. 82), ou sua extremidade (mukoci, fig. 83, foto 440). A notar igualmente que uma
pequena cabaa pode aparecer misturada com os smbolos divinatrios; neste caso, ela
ser designada do mesmo modo que swaha, guardando as designaes mukoci e cikumo,

1
Ver mais adiante a significao mgico-religiosa dessa planta, item 2.4.17.4.
2
Santos, 1960, pp. 159-160.
3
Hauenstein, 1961, pp. 143-144.
239

respectivamente para a vasilha e para o pednculo. Uma cabaa minscula cheia de


mukundu misturado com leo e algumas substncias medicamentosas tambm faz parte
dos objetos acompanhantes do ngombo; essa pequena cabaa o lembu e o adivinho no
as confunde nunca (fig. 84; foto 441).
A freqncia deste kaphele faz com que ele seja observado por quase todos os que
abordaram o estudo do cesto divinatrio. portanto um dos objetos simblicos que
melhor se presta a uma anlise mais detalhada da variao semntica desse elemento da
cadeia simblica em torno de um eixo fundamental cuja deteco o principal fim desta
pesquisa.
Do conjunto das enquetes feitas pelo autor em matria deste kaphele, ressai de
modo constante a indicao (valncia negativa) do compl de um familiar contra o
doente; a base desta conotao a convico profunda que todo atentado vida de
outrem geralmente obra de um familiar, isto , de uma pessoa da mesma seo de
linhagem, considerado como excepcional o ato de feitiaria feito a partir de um elemento
estranho linhagem.
A feitiaria aparece nesse contexto como intimamente ligada s mulheres, pois
so elas que formam as ligaes reais das geraes de um cl. preciso ainda associar
um outro fato a esse aspecto fundamental: a cabaa um objeto ligado atividade
feminina, principalmente ao transporte dgua e fabricao de bebidas1. Mas
observemos em detalhe o ponto de vista do adivinho:
O pednculo da abbora (cikumo-cimbi) como o umbigo que liga a criana a
sua me; mesmo depois que a pessoa nasce e cresce e come por sua prpria boca, ela
guarda sempre a marca que reata essa pessoa ao ventre maternal; na abbora a mesma
coisa. E quando o umbigo da abbora (cikumo-cimbi) sobrevm aos outros objetos (ao
agitar o ngombo) para mostrar o parentesco (grupo clnico ou subclnico,
indistintamente) da pessoa; por exemplo, pode se tratar de uma doena do cliente, ento o
tahi dir: no de um estranho que vem o mal; ele vem de sua prpria me; e para sarar
ser preciso estabelecer boas relaes com os seus, seno corre o risco de morrer
(Hamumona).
Mas se a doena j comeou a agir, porque j h uma tomada de posio do
grupo cara a cara com o membro negligente; por isso que se escuta o adivinho Sakungu,
para que o fragmento de cabaa e sobretudo seu umbigo digam ao consultante: Seu mal
vem dos seus (familiares) que se reuniram e falaram mal (expresso que corresponderia,
neste caso, a uma pronunciao do tipo judiciria) contra voc para que morresee; o
melhor agora pagar (suprimir o fator desordem) a seu parentesco (usoko)2 e tratar bem a
vida de todos para viver. Na verdade, o atentado contra o grupo , na maioria dos casos,
o fato de se subtrair s obrigaes de solidariedade de ordem econmica, segundo as
normas bem precisas das tradies clnicas. Insistindo nesta explicao, Sakungu refora
seu ponto de vista: Eu sou o mais velho e vocs nasceram do mesmo ventre, das mesmas
entranhas; como vocs podem no me respeitar? Se isso acontece, eu teria que jogar uma
praga contra voc.

1
Um pouco por toda a frica a cabaa associada mulher e fecundidade, seja pelo aspecto cosmolgico
(divindades criadoras residentes numa cabaa), seja pelo aspecto antropolgico (instrumento de cozinha e
elemento de troca entre o homem e a mulher). (Ver Brand, 1976, p. 21).
2
O termo cokwe usoko traduz tanto o parentesco stricto sensu quanto o grupo clnico, ou ento a aldeia.
240

Do mesmo modo a vasilha de abbora (mukoci) estabelece, por metfora, a


ligao do indivduo com seu grupo; mas alm disso, mukoci pode ainda ser transformado
num pequeno recipiente de remdios protetores para uso quase que exclusivo dos bebs;
Sakungu explica que se encontrarmos o mukoci na casa de uma mulher, podemos estar
certos de que no se trata de remdios, mas de uma praga1.
Na realidade, a cada vez que a um fragmento de abbora se atribui um sentido
ligado feitiaria, observa-se que esta aqui se entende como sendo fabricada quase que
exclusivamente pelo grupo de parentes dos lado materno. Isso porque os Cokwe
consideram que a ao da feitiaria normal no sio do grupo matrilinear e impensvel
fora dele; a razo parece ser simples: agir sobre a vida de outrem sendo a essncia da
feitiaria, tal ato s parece possvel se entre o agente e a vtima existe uma comunicao
de vida; se tal ligao no existe, a interao no possvel2.
O modo concreto pelo qual se atenta vida de um outro, precisamente na
seqncia de um compl de grupo, a resposta exposta por diversos adivinhos e j
recolhidas por diferentes autores. Assim, a armadilha poderia ser concretizada quando a
vtima fosse convidada a beber vinho de palma com um grupo de amigos: Uma vasilha
de pequena cabaa sob o nome de swaha simboliza no cesto do adivinho, ngombo ya
cisuka, que foi no dia em que bebeu vinho com outros homens que ele atraiu o mal3. Em
tal eventualidade, emite-se imediatamente a hiptese do envenenamento da bebida; o que
se confirma pela interpretao recolhida entre os Ovimbundu: A pequena cabaa
significa que uma pessoa falecida foi secretamente envenenada em revanche a seus
roubos num campo4.
Na mesma regio do centro de Angola, mas desta vez entre os Cokwe, Hauenstein
recolheu uma informao semelhante segundo a qual a pequena cabaa denunciaria
simplesmente a presena de um ladro: Omutu representao de uma espcie de
abbora comestvel muito apreciada pelos africanos. Na cesta de ossinhos, esta estatueta
indica que h um ladro ao redor.
O tema do roubo punido igualmente atestado por Th. Delachaux, que recebeu de
um adivinho ngangela esta explicao: O proprietrio jurou Kusinga para quem comesse
suas abboras a doena veio por ter comido as abboras apesar das imprecaes
proferidas pelo proprietrio5.

1
Bastin admite que o mukoci usados pelas mulheres grvidas um amuleto: chamado mukoci, ela (vasilha
de cabaa) usado pelas mulheres grvidas que tm dificuldade de ter filhos; ou ainda, sempre contendo
ingredientes, a vasilha est ligada punhos ou aos tornozelos dos bebs para cur-los de certas doenas
(Bastin, 1961, p. 75, nota 2). A identidade do recipiente no impede que nos dois usos referidos, o contedo
seja completamente diferente. Num caso (para os bebs) trata-se de remdios aceitveis e recomendveis
(ver a confeco do kapuri, item 2.4.8); noutro (para as mulheres grvidas), de produtos ligados feitiaria
e, como tais, temidos e condenados em princpio, se bem que com uma certa tolerncia em caso de
sortilgio de defesa.
2
Observa-se a propsito que os ditos pactos de sangue pelo fato de misturar as vidas de grupos
diferentes tornam-se suspeitos de feitiaria, pois permitem que o marido (estranho linhagem) possa agir
sobre a vida do grupo clnico. por isso que os Kongo aconselham a unio dos esposos pelo trabalho
(comer de dia), mas condenam a unio dos esposos pela feitiaria (comer de noite).
3
Bastin, 1961, p. 75.
4
Hambly, 1934, p. 276.
5
Delachaux, 1946, p. 51.
241

O juramento Kusinga dos Ngangela o mesmo que o Kayanda dos Cokwe; um


privilgio pertencente exclusivamente aos homens que forma iniciados no mugonge.
Quando um homem quer guardar uma coisa, por exemplo, os frutos de seu jardim, ele faz
o juramento Kayanda e depois ele junta uma litania de ameaas. O informante de
Delachaux apresenta as seguintes: Que o raio te pegue! Que a serpente te morda! Que o
leo te coma!1.
H nessa informao de Delachaux um elemento obscuro; que o autor fala de
dois frutos (abboras), um cheio e outro vazio, como sendo ambos tuphele. Na verdade,
no cesto dos Cokwe, a pequena cabaa vazia pode aparecer como kaphele; a outra cheia
de mukundu, que acompanha o cesto e que o adivinho utiliza nas unes preparatrias,
no smbolo divinatrio. Alis, a significao apresentada por Delachaux para a cabaa
vazia se situa fora do contexto de adivinhao2.
Tambm curioso observar que, segundo Delachaux, os Ngangela atribuem aos
inchaos de uma cabaa a mesma significao que os Cokwe aos fragmentos da
mesma, ligando por uma metfora a tenso que uma conversao inconveniente produz
no corpo social (seo do cl) e o tumor no corpo da cabaa (smbolo por excelncia do
grupo matrilinear). O adivinho ngangela explica: Assim como a cabaa produziu esses
inchaos, da mesma forma uma simples palavra pode produzir a doena e a morte3.
O fato de que a cabaa seja destinada a conter cerveja ou qualquer espcie de
bebida fermentada contribui a dar-lhe uma outra significao, neste caso nascida de um
contexto ritual. A evocao de um ancestral pode explicar o modo solene pelo qual se
sacrifica um animal, normalmente um boi; a preparao de tal festa mobiliza todas as
mulheres para fazer a bebida. A minscula cabaa que vem borda do ngombo pode ditar
ao tahi esse tipo de comportamento ritual: usuwa cabaa em forma de garrafa. Se o
cliente sofre e sente-se perseguido pelo infortnio, que ele negligenciou tal ou tal
ancestral. Ele s apaziguar este ltimo oferecendo-lhe um sacrifcio, geralmente um boi,
devidamente umidecido. Festa em perspectiva no curso da qual a cerveja escorrer das
cabaas4.
Essa mesma significao atestada por diversos autores, apesar de que o elemento
simblico no seja sempre a cabaa de dimenses minsculas, mas antes o pednculo ou
a ponta da cabaa ordinria. Nas informaes de E. Santos o elemento relacionado o
pednculo: tchikmo tchimbi composto de um pedao (mdia de 3 cm) do
pednculo de abbora. As mes ou avs do cliente, desaparecidas, impedem a mulher de
conceber. preciso realizar a hamba tchikumo tchimbi... uma estatueta de madeira, de
muangi, isto , masculina, e uma pequena casa na mata e pr essas mahamba. Em
seguida, vai-se caar e se asperge as mahamba com o sangue de khai (cabra selvagem).
L mesmo, perto das mahamba, prepara-se as entranhas e a cabea do animal. Todo
mundo come, salvo as mulheres casadas5.

1
Delachaux, 1946, p. 52.
2
Abbora vazia-nyonge. Os Ngangela se servem da abbora com seu talo para os clisteres. O doente
morreu por culpa do clister (Delachaux, 1946, p. 51).
3
Delachaux, 1946, p. 52.
4
Delachaux, 1946, p. 61.
5
Santos, 1960, p. 171.
242

Neste caso, a ligao entre o elemento simblico (cabaa) e a mulher imediata: o


sacrifcio busca devolver os ancestrais femininos favorveis concepo, apesar da
mulher encontrat-se excluda do sacrifcio.
A informao recolhida entre os Ovimbundu por L. Tucker bastante prxima
tambm: onganja: um pedao de cabaa, como as utilizadas para beber. A interpretao
mais comum para este objeto cerveja. O esprito que est causando o problema deseja
cerveja fermentada para dar-lhe alegria no mundo espiritual1.
O fato de ser incomodado pelo esprito se traduz concretamente por uma forma de
possesso que se manifesta eventualmente por uma doena; mas, na perspectiva dos
Ovimbundu, o esprito possessor no necessariamente o de um ancestral feminino; pode
ser at mesmo o de um homem branco, ou, simplesmente, o de um adivinho que exige um
sucessor em sua profisso: o onganja pode se referir tambm possesso de uma mulher
(okawengo) ou ao esprito de um homem branco (osandu) ou ao esprito do prprio cesto
(ongombo)2.
E, para provar a extrema maleabilidade com a qual os adivinhos podem utilizar os
tuphele, mencionamos esta referncia anedtica de L. Tucker: Um estranho
acontecimento em coneco com a cabaa pode alm disso ser levada ao ochimbanda
para explanao. Por exemplo, um dia um certo homem estava para beber numa cabaa
quando ela escorregou de suas mos e caiu no cho. Tendo perguntado ao ochimbanda a
causa deste estranho acontecimento, ficou sabendo que o contedo da cabaa tinha sido
envenenado e que Suku, o Supremo, o havia salvo3.
Sempre a mesma significao nascida de um contexto ritual e desenvolvida por
Hauenstein, que diz ter observado que um pequeno fruto (?) substitua a cabaa ordinria;
tambm neste caso, preparar a cerveja equivale a anunciar o sacrifcio pedido pelos
ancestrais:
Ombenje Esta palavra significa cabaa. Aqui um pequeno fruto da mata
que se cortou em dois para fazer uma imitao grosseira e simplificada de um dos
utenslios mais utilizados pelos africanos. No a representao de uma hamba, mas
uma destas que a apresentar no momento de pedir que se organize em sua honra uma
grande festa ao curso da qual dever haver profuso de cerveja indgena feita de milho ou
milho mido4.
Uma outra interpretao de E. Santos se d conta de um objetivo comparvel ao
do ritual, que consiste em preparar uma bebida para partilh-la; isto no particularmente
verdadeiro para o vinho de palma5, mas se estende a todo tipo de bebidas de festa:
muhonda u su ponta de uma pequena cabaa. O cliente deve fabricar gua da vida
de milho (bisake) e oferec-la a todas as pessoas da aldeia6.
Quando o adivinho aconselha a um homem fazer isso, porque seu
comportamento exige uma repartio ao nvel do cl, estejam as pessoas lesadas mortas
ou vivas. Repartir a cerveja, dizem os Cokwe, uma maneira de impedir que a vingana

1
Tucker, 1940, p. 184.
2
Tucker, 1940, p. 184.
3
Idem.
4
Hauenstein, 1961, p. 145.
5
Sobre o valor social desta bebida, ver G. De Plaen, 1969.
6
Santos, 1960, p. 168.
243

recaia sobre ele (aquele que reparte) sob forma de feitiaria; a bebida consumida em
comum reaproxima as pessoas e afasta a feitiaria.
Muchona, o clebre informante de Turner, traz sumariamente os diferentes
aspectos desse smbolo nestes termos: Isto o pescoo da cabaa em que se coloca o
vinho. Significa que uma pessoa que morreu por ter bebido cerveja contendo
medicamentos maus numa cabaa. O adivinho entrar em detalhes neste ponto sobre o
tipo de medicamento usado, sobre o tipo de resultado desejado pelo feiticeiro, e por a em
diante. A pequena cabaa tambm pode representar gua, e as manifestaes de
Chihamba, Kayongu (o equivalente ndembu ao Ngombo cokwe) ou Nkula, que apanha as
pessoas perto dos rios ou crregos. Pode representar tambm a gua que vertida de uma
cabaa sobre uma pessoa muito doente para reanim-la. Ou pode representar ainda
espritos ancestrais (akishi) para quem a cerveja derramada sobre seus santuros de
rvore (nyiyombo). Pode significar, tambm, a cabaa dgua que derramada sobre o
monte de terra amontoado sobre uma sepultura. Esta gua amolece a terra para que possa
ser moldada. Eles alisam e limpam a superfcie, porque se uma mulher vem comer o
cadver sua presena detectada pelas marcas deixadas1.
Do conjunto das interpretaes atribudas a este objeto swaha se deduz
uma complexidade evidente do prprio objeto simblico; com efeito, parece tratar-se de
pelo menos dois smbolos distintos, se bem que aparentados: de um lado o fruto
comestvel aparentado a uma cabaa como recipiente destinado bebida; no primeiro
caso o objeto simblico indica um provvel roubo; no segundo, preciso considerar toda
a gama de significaes ligadas utilizao possvel do objeto, que pode servir tanto para
guardar a cerveja quanto para punir um familiar insuficientemente atento a suas
obrigaes para com o grupo. A notar ainda que um terceiro eixo semntico est ligado
seja multiplicidade das sementes contidas no ventre da abbora, imagem do grupo
clnico (ivumu, segundo so Ndembu2, usoko, segundo os Cokwe), seja ao pednculo
cikumo cimbi (umbigo de abbora), que traduz metaforicamente a ligao de cada
membro a seu grupo clnico. Entre esses trs eixos semnticos, a variao de
interpretao grande mas assim mesmo menos aleatrea do que parece primeira vista.
preciso ainda levar em conta a enorme disperso geogrfica das informaes
recebidas, desde o norte da Zmbia (informaes recolhidas pelo pastor E. Berger e
enviadas a Delachaux) e o nordeste de Angola at o centro e sul deste mesmo pas; e por
um outro lado, a disperso que vai dos Cokwe da Lunda aos Ndembu, Ovimbundu e
Ngangela. preciso tambm considerar que, por se tratar de um elemento vivo numa
cultura em transformao, no pode de modo algum ficar esttico; observando distncia
as informaes em perspectiva diacrnica, -se obrigado a concluir que a variao
semntica descrita acima refora ainda mais a constncia e a continuidade do ncleo
semntico nesse smbolo no qual se pode colocar mais em evidncia do que em qualquer
outro. Teremos portanto em diagrama trs plos distintos (fruto / recipiente / linhagem)
com as possibilidade de aplicao no contexto scio-cultural: (ver esquema 14, p. 362 do
original, onde: rcipient = recipiente, vnin = veneno, boisson = bebida; fruit = fruto, vol
= roubo, sortilge = sortilgio; lignage = linhagem, solidarit - solidariedade, sorcellerie
= feitiaria, possession = possesso e prestations = prestaes).
1
Turner, 1961, p. 70.
2
Ver Turner, 1972, p. 52.
244

2.4.7 - Mujingwa wa mama, o cordo umbilical

Barbosa: Mujingwa, s. (2), tripa, vscera, intestino.

Bastante semelhante ao mukoci (umbigo da cabaa) parece-nos o sentido dado a


um pequeno pau torcido que o adivinho chama de mujinga wa mama (cordo umbilical,
umbigo, tripa da me). Trata-se de um fragmento de uma rvore trepadeira qualquer
que se apresenta torcido (fig. 85, foto 442).
No to freqente como kaphele, masmesmo assim possvel observ-lo em
diversos cestos divinatrios. A fig. 86 reproduz o espcime oferecido como lembrana ao
autor pelo adivinho Sakungu.
O sentido se identifica com freqncia com o sentido de mukoci (swaha): o mal
(doena) atribuda feitiaria de um familiar descontente: essa doena vem de sua
famlia; algum que lhe roga uma praga; ele (o doente) devia qualquer coisa a essa pessoa
(feiticeiro); ele vai pag-lo portanto e depois tudo ficar melhor (Riasendala).
Esta forma de feitiaria entre familiares no nunca considerada como gratuita,
isto , como um ato de pura malevolncia. Os Cokwe entendem a feitiaria no interior do
grupo familiar como uma contradio grande demais para ser aceitvel; se algum atenta
contra a vida de um membro de seu grupo, isto deve ser visto como uma forma de presso
para que esse membro modifique seu comportamento.
Mais freqente ainda, o mjingwa significa que o mal vem de um familiar do outro
mundo, descontente do esquecimento no qual caiu: seu esprito est no corpo (do
doente) porque ele no coloca mais fuba1 nas mahamba; por isso que o esprito est no
seu corpo, para faz-lo morrer. Ele (o doente) deve por fuba nas mahamba e lhe falar
assim: veja aqui fuba para que eu sare e que tudo fique bem com minha mulher e meus
filhos, para fazer boa caa e encontrar a riqueza (Hamumona).
Esta orao implica normalmente numa reunio de famlia perto da mulemba2
dedicada aos ancestrais, e constitui em si mesma a forma ideal de venerao porque,
como explica Hamumona, o que os mortos mais apreciam que os familiares se unam
para lembrar deles.
No mesmo sentido, se bem que mais veemente, aparece a leitura de Mwafima
naqual os dois motivos aos quais se se refere (feitiaria e descontentamento de um
familiar) se conjugam e podem constituir uma ameaa grave para o grupo... ... So
pessoas nascidas da mesma me (linhagem), mas os mais jovens no gostam dos mais
velhos; por isso que o mal-estar se produziu; o chefe se entristece e rene as pessoas
para lhes dizer: ento vocs vm da mesma me, vocs saram das mesmas entranhas e se
levantam contra mim que sou o mais velho? Vocs no sabem que o feiticeiro vai saber
disso e far algum morrer em breve? preciso unir-se, comer juntos a mesma comida
porque todos ns samos do mesmo ventre da mesma me.
De todo modo, o mjingwa wa mama condena ou a feitiaria familiar direta ou o
contexto favorvel interveno de um feiticeiro exterior; neste caso, imputa-se aos
1
Mandioca preparada para as refeies rituais.
2
Ver a significao mgico-religiosa desta planta (item 2.4.17.4).
245

responsveis (do contexto) a culpa pelos atos eventuais de feitiaria; a doena provocada
por um ancestral descontente acentua, numa outra perspectiva, o sentido profundamente
genealgico deste smbolo divinatrio.
A prpria forma do objeto, que recorda a solidariedade da planta trepadeira com a
planta-me, refora metaforicamente a ligao de cada membro a seu grupo de
parentesco e sublinha a necessidade de ritualizar as inevitveis tenses que surjam
ocasionalmente, de modo a preservar a unidade indispensvel. Mujingwa wa mama
conota de imediato essa solidariedade inter-grupo, e somente de modo indireto seu
contrrio, isto , as rupturas das quais a feitiaria a expresso mais corrente (Esquema
15, p. 364 do original, onde: ritualisation de lunit clanique = ritualizao da unidade
clnica, ritual dapaisement = ritual de apaziguamento; mcontentement des morts =
descontentamento dos mortos; mcontentement des vivants = descontentamento dos
vivos; sorcellerie entre familiers = feitiaria entre familiares, anxiet et inquitude
(malheur) des vivants = ansiedade e inquietao (desgraa) dos vivos).

2.4.8 - Toto, o rancor escondido

Barbosa: kaphuli, s. (3), amuleto constiudo pelo fruto luzeze, contendo


medicamentos preventivos e usado no pescoo.
Bastin: kapuri, fruto globuloso.
Horton: -puli (ka-; tu-), n. 1. a ma de Ado; 2. Um tipo de amuleto usado na
garganta.
Barbosa: Toto, s. (4), enfado, ressentimento.
munzenze (Lovale), Acacia polycantha
muzeze (Lovale), musense (Lunda), Acacia campylacantha1
munzenza (Cokwe), Dichrostachys glomerata Chiov2
munzenze (Ambundu), Marsdenia angolensis N. E. Br.3
Musense (Lunda), Acacia polycantha Wild4

Esta espcie de fruto globuloso (fig. 87) constitui o elemento motorde uma
tcnica de adivinhao diferente denominada ngombo ya cisalo. Trata-se de um fruto seco
da rubicea munzenze. Utiliza-se-o tambm na confeco dos chocalhos utilizados
principalmente pelos danarinos, amarrados nas pernas para marcar o ritmo das danas. O
adivinho se serve desse fruto para fazer o lusango, instrumento simples que o tahi agita
quando recita sua cantilena de introduo ao ato de adivinhao; esses frutos de casca
dura, quando esto secos, so perfurados em vrios locais com uma ponta de ferro
aquecida5.
Esses frutos de munzenze tem ainda uma outra aplicao; os que apresentam
dimenses mais reduzidas so utilizados como recipientes relicrios de remdios mgicos

1
Gilges, 1955, p. 24.
2
Agron. Angol., 1953, p. 71.
3
Idem.
4
Watt & Beyer-Brandwijk, 1962, p. 549.
5
Bastin, 1961, p. 53, nota 4.
246

para as crianase mais raramente para as mulheres grvidas1. Observa-se com freqncia
que muitas crianas usam no pescoo ou na cintura um desses pequenos frutos contendo
remdios os mais diversos; o kapuri (foto 443-a).
As razes pelas quais um homem se decide a preparar um kapuri (kapuli) para seu
filho so de natureza diversa, mas duas dessas razes parecem importantes:
primeiramente, o pai prepara o kapuri para seu filho para que este no chore durante a
noite; em segundo lugar, o kapuri destinado a preservar as crianas do terrvel mal que
os Cokwe chamam de zombo. Trata-se de uma fora perniciosa propagada por contato
devido fundamentalmente violao de um tabu de carter sexual.
Tanto num caso como noutro, o pai confeccionar um kapuri, que far da seguinte
maneira: o pai espera o crepsculo; ento ele sobe numa rvore de mutete (Swatzia
madagascarensis Desv.) para colher as folhas com as quais vai fazer o remdio. Mas antes
de subir na rvore, ele se desnuda completamente, deixando suas vestimentas ao p da
rvore; ele sobe na rvore com os olhos fechados, apanha as folhas com os dentes, as
mastiga e pe-lhes sal, que ele trouxe consigo. Coloca ento imediatamente as folhas
preparadas desse modo no kapuri que ele trouxe tambm, j pronto; quando o recipiente
estiver cheio, ele desce, volta pra casa e adiciona um pouco de pemba s folhas
mastigadas; finalmente, ele passa um fio no kapuri e coloca-o ao pescoo do beb. A
criana comeara a sugar o kapuri e assim, doravante, passar noites tranqilas.
A notar ainda que o mutete utilizado em vrios preparados medicamentosos,
tanto para as crinaas como para os adultos2. O comportamento do pai quando prepara o
kapuri para seu filho pe em relevo a conjuno do remdio e da noite, por se destinar
precisamente a suprimir os choros da criana durante a noite. Para tanto, o pai esperar o
pr-do-sol (escurido natural) reforado pela noite de seus prprios olhos (escurido
cultural). Nestas condies, o remdio s pode ser eficaz para curar os males noturnos da
criana. O informante Mwasefu, um dos narradores desses costumes, pode adicionar
ainda que o homem sobe nu na rvore mutete porque assim ningum o identifica,
ningum sabe quem ele , e, por um outro lado, fecha os olhos porque ele no sabe
absolutamente de onde vem o mal que incomoda a criana durante a noite. A escurido
exprime metaforicamente a no-identificao da doena, que por sua vez a no-
identificao do indivduo parece reforar.
Prepara-se tambm o kapuri para impedir que uma criana recm-nascida seja
atingida pelo que se chama de mal de zombo. Trta-se de um mal terrvel que o informante
Mwacimbau explica nestes termos: Uma mulher deu luz um beb; as outras mulheres
vieram lhe felicitar e quiseram ver o beb; se uma dela teve relaes sexuais e toma a
criana em seus braos, o beb logo ser atingido pelo mal de zombo, que se manifesta
por sintomas variados de doena rapidamente mortal. Por isso, o pai diligente toma
cuidados para proteger imediatamente o recm-nascido pondo-lhe no pescoo, no brao
ou numa perna, ou na cintura, o pequeno kapuri com os ingredientes que neutralizam o
zombo.
O mesmo mal de zombo pode atingir a mulher grvida quando o marido se
aproxima dela aps ter tido relaes sexuais com uma outra mulher. A esse propsito, o
mesmo informante lembra o caso de uma mulher grvida que caiu doente e veio a perder
1
A mesma utilizao que mukoci, ver item 2.4.6.
2
Ver no item 2.4.13 algumas aplicaes desta planta.
247

a criana por causa do marido que ousou sentar-se na cama ao retornar de uma viagem
durante a qual reencontrou uma amante.
O mal de zombo est ligado s relaes sexuais em geral, mas o que o define mais
justamente so as relaes sexuais proibidas, porque so estas que provocam o mal de
zombo mais terrvel. o caso registrado oralmente pelo bilogo Luna de Carvalho,
pesquisador de longa data, no nordeste de Angola: um homem vindo do Zaire visita um
sobrinho nas redondezas de Dundo; contente de receber seu tio (irmo de sua me) em
sua casa, corre a lhe apresentar a mulher com a qual se casou. Aps alguns minutos de
conversa, o tio descobre que a mulher que seu sobrinho escolheu para companhia na
realidade sua irm. O pobre homem, tomado pelo horror de ter transgredido a proibio
de incesto, tendo desposado a irm de sua prpria me, sente-se atingido de zombo e pe
fim a seus dias se enforcando.
O zombo no sempre to violento; ele pode ter contatos inconvenientes que se
manifestam por doenas, mas que no so forosamente fatais. Tais contatos podem
mesmo se traduzir por simples doenas de pele, como por exemplo, dores nas bochechas.
sobretudo esse mal contato que kapuri serve para neutralizar com ingredientes eficazes;
o caso de kapuri prescrito por Sakungu para uma mulher grvida que se sentia
incomodada e para quem seu marido consultou o adivinho: que ela pegue um pedao de
terra trilhada por um sapo e um pouco de terra do mungonge1; que ela bote tudo no kapuri
e o pendure ao pescoo2. Os Cokwe consideram o sapo como o animal mais resistente a
toda espcie de contato perigoso, visto que sua pele dura e rugosa; por um outro lado, o
campo do mungonge um terreno particularmente defendido precisamente por seu grande
poder de contato.
Apesar de todo esse contexto significativo baseado no contato fsico e com um
relevo particular para o contato de tipo sexual, o kaphele toto no cesto divinatrio o
smbolo por excelncia do rancor escondido, o rancor que no se manifesta mas que
funciona como uma ameaa permanente. nesse sentido que se dirigem a maior parte das
interpretaes dadas a esse assunto. Riasendala explicava a um jovem cliente, para quem
fazia a adivinhao no momento de nossa primeira visita, quando o toto aparecia borda:
H algum que lhe quer mal; voc lhe deve alguma coisa, pague sua dvida rpido, pois
essa pessoa tem o toto.
Esta foi tambm a explicao de um dio secreto para com uma mulher em favor
da qual o marido pediu a interveno de Mwafima. Est a o sentido habitual do kaphele
toto, apesar de muitos autores darem ao kapuri (recipiente com remdios) o sentido do
kaphele, que na realidade o mesmo fruto globuloso, porm vazio.
Essa confuso constante e se compreende facilmente, porque freqente que o
adivinho traga consigo o prprio kapuri de proteo, que neste caso chama-se yitumbo ya
tahi (remdio do adivinho), que tem por finalidade no tanto de preservar dos maus
contatos, mas principalmente de fazer vomitar imediatamente toda comida suspeita
oferecida no curso de seus deslocamentos3. Trta-se portanto de um recipiente de

1
Terra do mungonge significa terra retirada do local onde se desenrolou um ritual mugonge; esse local
fica proibido s mulheres.
2
Ver informao no mesmo sentido, recolhida por E. Santos, 1962, p. 162.
3
Bastin, 1961, p. 46.
248

proteo pessoal do adivinho contra a feitiaria por excelncia, que aquela realizada
atravs dos alimentos.
Segundo M. L. Bastin, o sentido do kaphele seria de mesmo teor: O fruto kapuli
significa que o doente comeu alguma coisa ruim. Para que ele sare preciso dar-lhe um
vomitivo1.
Esta pode com efeito ser uma das mltiplas formas de concretizao da feitiaria,
mas de acordo com os diferentes informantes, o smbolo toto visa mais propriamente a
causa do mal que o efeito ou o modo de evit-lo. Compreende-se da mesma forma a
interpretao dada por Baumann, que descreve o kapuri amuleto, ainda que ele se refira
s peas de adivinhao. E ainda, segundo esse mesmo autor, a finalidade desses frutos
quando esto pendurados na entrada da casa seria do mesmo tipo que a do kapuri como
pingente no pescoo das crianas, variando somente de contedo mgico segundo os
fins2. Esta ltima aplicao reportada por Baumann, no pude observar porque tornou-se
inusitada.

2.4.9 - Ipafola, a fora do inocente

Barbosa: muphafu, s. (2):


1. rvore de grande porte, de fruto (luphafu) comestvel.
2. Resina cheirosa daquela rvore que tida por um dos mais eficazes e
clebres medicamentos da farmacopia africana (unji).
Mubafu, Cannarium schweinfurthii Engl.3.
Mufabo, Cannarium edule Hook f. 4
Muphabu (Cokwe), Cannarium schweinfurthii Engl. 5.

Ipafola ou ipafula no ngombo a semente de uma grande rvore do mushitu (mata


ciliar). Trata-se de uma das maiores plantas que se desenvolvem perto de cursos dgua,
com um tronco que atinge um grande dimetro, o que permite de servir-se dele para a
fabricao do grande tambor trapezoidal (cinguvu). O fruto comestvel e a semente
(fotos 444; 447-a) apresenta uma resistncia notvel. A casca desta planta um dos
elementos que, reduzidos a p, entram com freqncia na confeco do kapuri6 para uso
das crianas, porque os Cokwe consideram que esse p misturado com outros
ingredientes possui a virtude de fortificar as crianas quando elas sugam o kapuri.
A planta secreta uma substncia semelhante resina denominada phafu, com um
odor caracterstico, e que muitos utilizam para fazer fogo ou tochas (o fogo que atravessa
o cu no mungonge um pouco dessa resina inflamada na ponta de um pau); com a resina
de muphafu, os Cokwe tambm sabem preparar uma soluo medicamentosa que eles
utilizam como vermfugo; como variante desta aplicao, alguns comem pequenos

1
Idem.
2
Baumann, 1935, p. 182.
3
Agoron. Angol., 1962, 15, p. 16.
4
Ficalho, 1947, p. 110.
5
Agron. Angol., 1953, p. 57.
6
Ver item 2.4.8.
249

fragmentos de planta e assim eliminam os vermes intestinais; outros fazem fumigaes e


afirmam que os resultados so igualmente positivos.
No campo divinatrio, o ncleo semntico parece estar ligado precisamente ao
fator resistncia da semente; tal aspecto parece reforado pela consistncia da prpria
planta e pela aplicao de seus produtos, principalmente os que apresentam aspectos
curativos.
O adivinho encontra nessa semente, quando ela pe-se em evidncia no cesto
divinatrio, a explicao da resistncia de seu consultante contra um suposto feiticeiro
que queria faz-lo desaparecer; se isso no acontece, porque ele (o consultante)
inocente e que o inimigo culpado; o ipafola mostra isso mesmo e d ao consultante a
certeza que o feiticeiro no poder fazer nada contra ele.
O aspecto particularmente duro dessa semente justifica igualmente sua utilizao
como elemento fundamental de certos tipos de exorcismo. Um deles registrado por L.
Tucker quando cita uma planta de semente particularmente dura (sem dvida alguma a
mesma ipafola); a finalidade de tal exorcismo seria de facilitar o parto de uma mulher por
meio da extrao, aps massagens intensivas, de uma semente supostamente dura,
considerada como a causa das dificuldades do parto: Olusieta: uma vagem vegetal.
Significa que o paciente para quem se adivinha uma mulher que no consegue dar luz
porque h uma olusieta rolando e rolando em seu abdomen. Esta doena curada no
lugar em que os caminhos se cruzam, e requer um tratamento por massagens longas e
intensivas que resulta na extrao de uma semente, pelo mdico, ou uma noz da parte do
corpo que foi massageada1.
Uma outra modalidade de exorcismo atribuda ao poder da fumaa de muphafu;
no somente ela elimina os vermes intestinais, explica Sakungu, como pode inclusive
afastar certos espritos ou mahamba que vm incomodar os vivos causando doenas.
Assim, esse adivinho prope a seu consultante submeter-se a uma fumigao especial por
meio da qual a doena desaparecer; prximo a uma encruzilhada e no caminho que leva
aldeia, o mbuki deve acender um fogo com fragmentos de muphafu; o doente se
aproxima e se deixa invadir pela nuvem de fumaa; ao mesmo tempo, o curandeiro
interpela a hamba que se afasta, descontente com a fumaa, e leva com ela a doena.
Traduzindo a mesma realidade em termos de fora, o velho Riasendala exprime
um otimismo cmico ao concluir sua filosofia do muphafu... O homem que no
culpado, tem mais fora que o feiticeiro apesar deste possuir remdios muito poderosos.
E tambm a semente, que pequena, pode durar muito mais tempo que a rvore, e o
tambor (cinguvu) que feito de muphafu dura mais que a rvore porque o tambor marca o
tempo mas mais forte que ele.
Assim, o otimismo fundamental que exprime o ipafola se basearia na idia de
uma justia que termina por se impor; a resistncia da semente e a resistncia do tambor
simbolizariam essa mesma fora inerente situao de quem no cometeu nenhum crime:

justia > feitiaria


semente > planta
tambor > tempo

1
Tucker, 1940, p. 188.
250

2.4.10 - Luhandu, as exigncias da partilha

Barbosa: luhandu, s. (1): espcie de vagem da rvore muhandu, a qual se abre (-


handuka) largando a semente.
Muhasu (Lucazi), mushaswa (Lovale), kataubwangu (Lunda), Schrebera
trichoclada1
muhasu (Cokwe), Scherebera affinis Lingelah 2

Comeando pela referncia qye Baumann faz a esse kaphele, vmo-nos obrigados
a reconhecer que esse autor o confundia, no que concerne ao cesto dos Lwimbi, com um
outro fruto, pois ele apresenta o desenho de luhandu e chama-o de miaa, enquanto que
na descrio do cesto divinatrio dos Cokwe, o mesmo kaphele corretamente designado
por luhandu e descrito como eine halbierte Frucht3.
Trata-se com efeito do fruto da rvore muhasu que, dessecada, se divide
espontaneamente em duas partes iguais (fig. 88); o kaphele precisamente constitudo
por uma dessa metades do fruto, raramente pelo fruto completo; em certos casos pode-se
ver as duas metades, mas separadas (foto 445).
Os Cokwe parecem ter ligado os aspectos fundamentais da significao deste
kaphele ao fato de que o fruto se fende por si s, terminando por se dividir em duas
metades rigorosamente iguais. Isto parece ser o trao pertinente que teria polarizado um
grande nmero de questes e mais precisamente a atitude do grupo diante dos gmeos e
todo um conjunto de normas em relao justa repartio dos bens no interior do grupo
ou da seo clnica. As respostas dos adivinhos insistem sobre a funo do luhandu perto
de quem tem muito e perto de quem tem pouco. A disparidade escandalosa das posses no
inerior de uma seo do cl condenada com veemncia e por isso no pode se prolongar
por tempo demais sem que tenses s vezes violentas se manifestem. O indivduo que
acumula bens e no os reparte entre os membros de seu grupo visto com a mesma
indignao que o ladro. A tradio impe a repartio segundo normas meticulosas de
prestaes, quer se trate de uma pea de caa, de bens, ou de dinheiro ganho numa
atividade como o caso dos assalariados. O homem que no reparte, confunde em suas
posses o que dele (a parte qual tem direito) e o que no dele (a parte que deve dar
aos outros), e por isso, ele se comporta exatamente como um ladro, que os Cokwe
definem como aquele que mistura as posses.
Quando uma dessas situaes (ressentida como uma profunda injustia) se
prolonga, as pessoas que se sentem lesadas comeam a tecer uma vingana por via de
feitiaria, visando atingir aquele ou aqueles que cederam tentao de acumular4. Os
Cokwe entendem que o acesso de todos aos bens adquiridos por um membro do grupo ou
da famlia vasta uma lei, ao aceitar que haja normas reguladoras das prestaes s quais
cada um dever se submeter.

1
Gilges, 1955, p. 31.
2
Santos, 1960, p. 213.
3
Ver Baumann, 1935, pp. 167-170; 171-172.
4
Ver a esse propsito o comportamento dos Ovimbundu em Edwards, 1962, p. 19.
251

No que concerne aos gmeos, justamente, de rigor que a igualdade seja levada
ao extremo mesmo em detalhes insignificantes. Este um outro plo importante no
campo semntico deste kaphele. Com efeito, a metade do luhandu no cesto divinatrio
indica com muita freqncia que preciso dar um tratamento rigorosamente igual aos
gmeos e que os perigos que poderiam resultar da infrao a esse tabu so muito graves.
No mesmo dia do nascimento dos gmeos, o pai cokwe procura duas metades desse fruto
seco que ele enfilar num cordo para pendurar na cintura da me ou como pingente no
pescoo. Esse gesto do marido uma exigncia de ateno da parte da mulher para tratar
os gmeos nas normas que lhe so propostas; por um outro lado, ela assume esse
compromisso diante de toda a aldeia, que alis se mostrar solidria com ela nesse
comportamento. Desse modo, todos os que oferecerem alguma coisa aos gmeos tero
que apresent-los em duas partes rigorosamente iguais, seja um presente em forma de
objetos, dinheiro ou outra coisa qualquer. Alm disso, tal presente no pode nunca ser
rejeitado.
Se algum, ao distribuir os bens, faz mais distines do que oremitido pelo
hbito, e consulta em seguida o adivinho por causa da ambincia hostil que o cerca, este
se aproveita normalmente da apario do kaphele luhandu para afastar seu cliente do
grupo, aconselhando-lhe tomar por si prprio a iniciativa de abandonar a aldeia; na
verdade, o cliente que procura o tahi nessas circunstncias j sabe que no h nenhuma
outra alternativa seno a de dividir com os seus os bens que ele acumulou abusivamente,
ou de se distanciar do grupo antes que seja tarde demais.
Este um dos problemas freqentemente observados entre os trabalhadores
assalariados que, recebendo um salrios mensal, tornam-se facilmente ricos s vistas do
grupo familiar e em particular aos olhos dos tios maternos. Quando isto acontece, um
processo de feitiaria est iminente. Dentre as numerosas causas da extraordinria
mobilidade que caracteriza os Cokwe, esta um, e no das menos importantes.
A. Hauenstein observou este mesmo kaphele no cesto dos Cokwe emigrados para
o centro de Angola, significando tenses ou dificuldades entre grupos familiares por
causa dos laos que os ancestrais condenam1. A questo parece ser precisamente a
mesma, ainda que apresentando uma perspectiva diferente. Como explica o velho
Sakungu, toda vez que um jovem se casa e esquece seus parentes, tudo o que ele ganha
para ele, sua mulher e seus filhos; justamente isso que os ancestrais condenam, porque o
homem no pode esqyecer seu grupo para se juntar ao de sua mulher; no o casamento
que a causa, mas um novo tipo de relaes possibilitadas pela autonomia econmica
relativa dos jovens. Contra essa evoluo que parece inevitvel, a resistncia da sociedade
matrilinear se ergue, opondo-se com todas as suas foras ruptura das tradies
normativas seculares.
A ofensa aos ancestrais deve igualmente ser neutralizada por um rito que por sua
vez refora, no nvel ritual, o valor metafrico das duas metades do luhandu: ... que o
cliente faa, numa encruzilhada, dois pequenos crculos com uma vareta de mwehe (a
mesma utilizada na mwima da mukanda) e jogue no interior de cada crculo p de
mandioca2.

1
Hauenstein, 1961, p. 153-154.
2
Santos, 1962, p. 173.
252

Do conjunto dessas explicaes parece provir que a diviso exata em dois do fruto
muhasu serve de ponto de partida ao adivinho para reinvidicar toda uma srie de prticas
tradicionais relativas distribuio dos bens; por outro lado, pode-se verificar que o figor
da gemeao inspira o comportamento do adivinho para com o cliente, que por sua vez
conduzido a ritualizar o tratamento dado aos gmeos. Se o estmulo no suficiente, ele
ser inevitavelmente expelido do grupo.

2.4.11 - Citunda wa cingaji (a doena do escravo)

Barbosa: tchitunda, s. (3), pessoa, coisa ou animal que sobressai em altura;


qualidade de sobressair, de ser muito alto, proeminncia fsica.

Trta-se da semente do fruto da palmeira Elaeis guineensis Jacq, vulgarmente


chamada de dendm, que aparece em muitos cestos divinatrios e freqentemente
confundida com mwaka, um outro fruto que estudaremos em seguida. O nome vulgar
desta semente mukeshi wa cingaji (caroo de palmeira) (fotos 447-d; 448).
Os frutos de palmeira so muito procurados para a fabricao de leo. O modo
tradicional de preparar o leo muito simples e os Cokwe o utilizam ainda hoje; eles
pem uma certa quantidade dos frutos em uma espcie de rede de corda, junco ou canio,
que termina em duas varas (uma de cada lado); duas pessoas postas frente a frente,
fazendo girar cada uma a vara do seu lado para a direita, submetem os ditos frutos a uma
fora crescente que os descaroam.
Trata-se evidentemente de um tratamento do fruto feminino.
Dos frutos masculinos, fabricava-se antigamente o sal, em certas etnias da frica
Central, reduzindo-os primeiro a cinzas, que se fervia, fazendo em seguida evaporar a
gua. Esse costume registrado por De Plaen1 parece nunca ter sido adotado pelos Cokwe,
porque estes conheciam outras plantas a partir das quais se fazia sal.
A colheita do vinho de palma a partir de um outro tipo de palmeira a Raphia
igualmente praticada na regio, sobretudo entre os Kongo (Tukongo) do nordeste
(Tukongo du Kanzar); para isso, eles sobem por meio de uma corda ao cume da rvore,
fazem um talho profundo e colocam uma cabaa para dentro da qual a seiva escorre
deslizando sobre folhas dispostas em funil.
Como kaphele (o fruto da palmeira), pode-se dizer que apesar de ser relativamente
freqente, este caroo apresenta uma certa polivalncia e mesmo uma grande indefinio.
O adivinho Riasendala esclarece o sentido deste kaphele em termos de atividade de
escravos: um escravo descendente de um grupo em que um parente era tahi. Segundo
nosso informante, essa doena uma exigncia de que o dito escravo se torne adivinho,
mas no um tahi de uma tcnica qualquer; ele deve se iniciar nessa arte exercendo a
mesma tcnica que usava seu ancestral. Riasendala explica deste modo a razo pela qual
ainda hoje muitas pessoas conhecem modos divinatrios que no provm dos Cokwe.
Trata-se de processos vindos dos povos vizinhos, como os Pende, os Luba, os Lulwa e os
Tukongo, o que corresponde exatamente os grupos nos quais os Cokwe iam se abastecer
de escravos.
1
De Plaen, 1961, p. 81.
253

Esta explicao do velho Riasendala mostra por um outro lado o alto grau de
integrao do escravo no grupo em que a fora das circunstncias o punha; com efeito,
aceitar (ou exigir) que um escravo se torne tahi significa que esse homem atingiu um
estatuto superior no grupo cokwe que o adota e o assimila a tal ponto que ele pode
exercer uma atividade com um grande poder de interveno segundo as normas
tradicionais, beneficiando ento um estatuto particular.
Diversas outras interpretaes dadas por adivinhos diferentes se situam no mesmo
contexto, como as que explicam a apario deste kaphele no ngombo como uma
exigncia para preparar o vinho de palma ou maluvu para uma festa. Com efeito, se o
adivinho termina sua interveno mandando preparar maluvu, isto pode equivaler a
anunciar a festa de iniciao de um novo adivinho.
As informaes registradas por outros autores no se enquadram sempre nessa
interpretao. A de Delachaux suficientemente ambgua para ser suscetvel de uma ou
de outra maneira: ... preciso fazer-se reerguer por um mdico, tyimbanda1; essa
interveno do adivinho-curandeiro (cimbanda) pode ser entendida tambm como o
desenrolar de uma cerimnia de iniciao2. V. Turner confirma este ponto de vista pela
informao recolhida por ele e segundo a qual ... a manifestao da sombra Kayongu e
o riso propiciador do mesmo nome so s vezes representados por uma semente de
palmeira mudidi com a qual feito o vinho de palma que bebem os iniciados ao curso das
cerimnias Kayongu3.
Ao contrrio, os sentidos atribudos a citunda por E. Santos (o doente foi
enfeitiado)4 ou por Hambly (a semente do leo de palma significa que uma cabaa
grande de leo de palma foi roubada)5 parecem se afastar claramente do contexto
anterior e devem ser explicados antes como respostas conjunturais dadas pelo adivinho ou
apreendidas como tais pelos investigadores.

2.4.12 - Mwaka, uma longa durao

Bastin: mwaka (my), ano, idade.


Barbosa: mwaka, s. (2):
1. ano, estao, tempo. O termo primariamente designa uma das duas
estaes: a das chuvas (lwiza) e a do tempo seco (luxiho). S por adaptao que se
designa ano.
2. uma rvore tambm chamada muthongo.
3. um kaphele do ngombo ou cesto do adivinho: um caroo do fruto
daquela rvore (luthongo) e indica que o assunto da consulta motivado por questo
antiga (mwaka) ou que ao consulente apenas resta um ano de vida.
muthongo, Parinari capensis Harv.

1
Delachaux, 1946, p. 53.
2
Sobre a habitual ligao adivinho-curandeiro na zona lingstica R coincidente com o territrio angolano,
ver Rodrigues de Areia, 1974 a, pp. 202-217.
3
Turner, 1972, p. 55.
4
Santos, 1960, p. 172.
5
Hambly, 1934, p. 217.
254

Parinari mobola Oliv.1


muthongo (Cokwe), Parinari capensis Harv.2
mutongo (Cokwe), Parinari capensis Harv.3
mutcha (Lovale), Parinari mobola4
mucha (Ndembu), Parinari mobola5
usia, Parinari mobola Olu6
mutcha (Ngangela), Parinari curatellifolia Planch ex Benth.7
mutongo,mucha (Lucazi, Lunda, Lovale), Parinari mobola Oliv.8

Mwaka , no grupo dos tuphele de origem vegetal, um dos mais constantes e de


snetido bem determinado. Trata-se do caroo de um fruto comestvel proveniente de uma
rvore vulgarmente chamada de muthongo (foto 446).
Os Cokwe associam este fruto aos tempos primitivos, durante os quais os frutos
silvestres determinavam com freqncia o curso de suas interminveis viagens, antes de
seu estabelecimento na montanha Musumba. Segundo a tradio, era tarefa essencial de
cada grupo procurar e achar frutos para assegurar a subsistncia; nessa atividade, um
homem devia se distinguir e passar posteridade como kandala aquele que trazia os
frutos da mata que teria sido precisamente elevado dignidade de chefe de terra9
como recompensa por seu extraordinrio sucesso na descoberta e colheita dos frutos que
seriam precisamente os thongo. Os informantes insistem sobre este detalhe de prestgio
que seria passado ao cesto divinatrio com a designao de mwaka:

mwaka / muthongo / luthongo


(smbolo) (planta) (fruto)

Da polpa desse fruto prepara-se tambm uma bebida que Gilges acha muito boa10.
A medicina tradicional se serve igualmente da planta muthongo para fins diversos.
Apesar dos diferentes nomes utilizados (usia, mucha, muthongo) segundo os
autores e as regies, a realidade que as ilustraes que acompanham os textos, bem
como as plicaes da planta indicam que trata-se de uma nica e mesma planta, como de
resto fcil de verificar pelas referncias dos diferentes autores:
Luthongo (thongo), fruto silvestre do muthongo, tendo o aspecto de uma
pequena noz e o sabor de uma ameixa branca1; e ainda: muthongo, sub-arbusto
(Parinari capensis Harv.) produtor do frutp thongo2.
1
Watt & Beyer-Brandwijk, 1962, p. 491.
2
Bastin, 1961, p. 252.
3
Agron. Angol., 1953, p. 29.
4
Gilges, 1955, p. 30.
5
Turner, 1972, p. 53.
6
Hauenstein, 1961, p. 151.
7
Santos, 1967, p. 73.
8
Palgrave, 1956, p. 375. Qualquer que seja a designao taxonmica exata, mwaka (do cesto) o fruto
descrito por Palgrave.
9
Chefe de terra (mwanangana) exprime uma noo jurdica que vem do direito consuetudinrio e
corresponde a um espao geogrfico, sob a autoridade de um chefe ou soba, por via hereditria. H dois
graus hierrquicos entre o mwanangana e o povo, a saber, mwata e mulopwe.
10
Gilges, 1955, p. 19.
255

O caroo durvel do fruto incha da rvore mucha (Parinari mobola)3.


... caroo do fruto da rvore denominada usia (Parinari mobola Olu)4
... uma espcie de noz muito dura, habitualmente o sinal de um longo perodo
de tempo. Pode significar tambm ochonge (uma conspirao pra matar)5.
Neste conjunto de indicaes, preciso notar que Bastin, que identificou o fruto
com mais preciso, a ponto de nos informar acerca de seu aspecto e sabor, deve ter sido
induzido ao erro quanto planta que o produz, pois ele a classifica entre os sub-arbustos;
na verdade, trata-se de uma rvore, a menos que exista uma certa variedade arbustiva que
no pudemos observar, o que pouco provvel. Todos os exemplares que observamos
eram de rvores de grande porte. O nome cientfico desta planta discutvel;
normalmente, trata-se de Parinari capensis Harv., apesar de que ao mesmo nome cokwe
(muthongo) correspondem as duas espcies mencionadas pelos botnicos, a saber:
Parinari capensis e Parinari mobola.
Expondo a significao deste kaphele, os adivinhos insistem todos num elemento
comum: mwaka significa uma longa durao, o que concorda igualmente com o conjunto
das observaes registradas pelos diversos autores que detectaram esse objeto, e acorda
particularmente com o que se encontra entre os Ndembu: Ele representa um caso... que
se passou h muito tempo atrs6.
Contudo, quando se busca interpretar a base emprica dessa significao, alguns
acentuam o lado da durao do fruto extraordinariamente resistente, e por isso mesmo
capaz de permanecer anos na terra antes de germinar; outros, contudo, se referem ao
longo espao de tempo que decorre entre a florao e o amadurecimento do fruto. este
pelo menos o ponto de vista de Sakungu, que explica nestes termos o valor deste kaphele:
Quando o feiticeiro roga uma praga a algum, ele logo marca o tempo que resta a essa
pessoa antes de morrer; isto algumas vezes leva muito tempo; o luthongo tambm leva
tempo pra morrer; a planta flore numa estao e s no cacimbo seguinte (estao seca,
que vai de maio a agosto) o fruto amadurece7.
Segundo Muchona, informante de Turner, seria antes de tudo o longo perodo que
precede a queda dos frutos da rvore que explicaria a significao deste kaphele uma
rvore de mucha leva de quatro a cinco meses para produzir frutos maduros, mas o caroo
desses frutos leva de dois a trs anos para deteriorar8.
Haveria ainda uma anlogia entre o longo processo de maturao e a ao
igualmente lenta da feitiaria. Hamumona tambm explica a ao da feitiaria como um
mal que age lentamente, mas sem nunca parar; neste ponto todos os adivinhos esto de
acordo; mesmo quando o feiticeiro recorre famosa arma do sortilgio (uta wa

1
Bastin, 1961, p. 247.
2
Bastin, 1961, p. 252.
3
Turner, 1961, p. 151.
4
Hauenstein, 1961, p. 151.
5
Tucker, 1940, p. 196.
6
Turner, 1961, p. 68.
7
H duas estaes do ano no nordeste de Angola: uma, longa (lwiza), a das chuvas, e uma outra curta
(lushiho), a do cacimbo (fresca) que vai de meados de maio a meados de agosto. A outra ocupa o resto do
ano, com variaes nas precipitaes entretanto.
8
Turner, 1961, p. 68.
256

mbomba)1, a pessoa atingida no morre imediatamente, mas comea simplesmente a


sentir os efeitos.
A lenta progresso do mal explicado em termos vagos, que exprimem sempre
que a vida se consome pouco a pouco, vai diminuindo, sem que se perceba; a explicao
obtida por Turner tambm no pode ser confirmada.
Com efeito, segundo o informante de Turner, se trataria de um aumento
progressivo da dose malfica introduzida pelo feiticeiro no corpo de sua vtima: Para um
feiticeiro no seja detectado, ele pe uma pequena dose de medicamento em uma parte do
corpo de sua vtima, depois um pouco mais, e um pouco mais, at que ele tenha a matado
em estgios graduais2.
Para a maioria dos especialistas cokwe, esta referncia lentido da ao da
feitiaria no aceita; para eles, o se estender progressivo de uma vida parece ligar-se
em primeiro lugar ao fenmeno da rejeio social, e verificamos com freqncia que os
jovens se queixam de estarem enfeitiados simplesmente pelo fato de que os mais
velhos no lhes dispensavam as atenes de antigamente ou estavam descontentes com
algumas maneiras de agir.
Nas mltiplas aplicaes que o tahi pode fazer deste kaphele, um caroo
significativo constante se verifica, a saber, a idia de uma longa durao; as principais
aplicaes observadas so as seguintes:
longa durao de um problema familiar (desentendimento) que se arrasta;
doena que persiste h muito tempo apesar das numerosas tentativas para
domin-la;
mal de feitiaria que h muito tempo e progressivamente come a vida da
vtima;
anncio de um desfecho fatal, morte prxima, por feitiaria ou doena,
tomando este smbolo como medida de tempo (meses, anos, estaes);
um tempo longo demais para se decidir consultar o adivinho para um problema
que o exigia (concernente ao culto dos ancestrais ou doena) 3.
Uma destas indicaes constitui uma advertncia particularmente grave para a
famlia do doente e, no caso, um desfecho fatal, a culpa pode ser-lhe imputada
oficialmente pelo adivinho, ocasionando a obrigao de prestaes particulares. nessas
circunstncias que mwaka torna-se smbolo da intriga que Turner designa por a plot to
kill (conspirao para matar). Com efeito, os interesses divergentes, e com freqncia
antagnicos que rodeiam a vida concreta de uma pessoa, constituem o pano de fundo
mais favorvel para promover a intriga complicada da feitiaria; esta torna-se vivel toda
vez que por ocasio de um problema grave o feiticeiro possa tirar partido da indeciso do
grupo familiar. Neste contexto, parace que se pode englobar a explicao particular
fornecida por Hamumona: uma pessoa faz um mal a uma outra; esta aqui guarda, no
esquece, e muito tempo depois, se vinga.

1
Ver item 2.2.9.
2
Turner, 1961, p. 68.
3
Ver igualmente E. Santos: O tahi aconselha ao consultante realizar suas mahamba ordinrias. J h muito
tempo que ele no se interessa mais e essa a causa de sua desgraa (E. Santos, 1960, p. 167). Igualmente
Hauenstein: Em relao estatueta de um ancestral, miaka uma indicao que os vivos o tm
negligenciado h um certo nmero de anos (1961, p. 151).
257

Alm do uso deste fruto como kaphele no cesto divinatrio, a planta que o produz
muthongo conhecida de todos os especialistas por seus diferentes usos na vida
cotidiana; o fruto comestvel, a seiva da planta era considerada, segundo o que conta
Palgrave, como dotada de uma virtude particularmente eficaz contra a surdez: Ao tratar
um ouvido supurado, o doutor usa umas gotas que ele prepara submergindo as razes na
gua por uma hora. Um pouco deste lquido entornado no ouvido com uma colher, ou
um funil feito a partir de folhas, todo dia por cerca de duas semanas, tempo no qual
espera-se que o mal se cure1.
Os Cokwe s recorrem atualmente a esta prtica muito raramente, mas alguns
ainda preparam inalaes de raiz de muthongo para curar cataratas, fato que Palgrave nota
igualmente entre os Lovale.
De acordo com a anlise das interpretaes deste kaphele, parece que se pode
afirmar que mesmo quando o caroo significativo ou trao pertinente se apresenta de
modo claro, isto no quer dizer que a gama de significaes deixe de ser mltipla e
sempre em via de aumentar. O uso de um objeto na vida real alarga por assim dizer as
significaes possveis deste objeto tornado smbolo; disso segue que a anlise torna-se
tanto mais rica quanto mais ele se insere nas aplicaes reais; de qualquer modo,
evidente que a anlise destes smbolos, pelo prprio dinamismo do sistema, nunca ser
exaustiva; o que contudo no quer dizer que seja arbitrria.
No caso particular do kaphele mwaka, poderamos sintetizar as variantes de
significao ao lado das mltiplas aplicaes, num duplo esquema deste tipo: (ver
Esquema 16, p. 380 do original, onde: aplication = aplicao, nourriture = comida,
boisson = bebida, pneumonie = pneumonia, yeux = olhos, oreilles = orelhas, remdes =
remdios; signification = significao, retardement = retardamento, consultation =
consulta, culte = culto, maladie = doena, longue dure = longa durao, une date = uma
data, saison = estao).

2.4.13 - Ynji (mutete), a rvores dos ancestrais

Bastin: mu-tete (mi), rvore (Swartzia madagascarensis Desv.)


Barbosa: mutete, s. (2) termo luena. Veja-se tchise.
tchise, s. (3), erva anual, arbustiva, atingindo 1m.; folhas tambm aproveitadas na
alimentao (Hibiscus Sabdariffa).
mutete (Lovale), Swartzia madagascarensis2
mutete, Swartzia madagascarensis Desv.3
mutete, Pterocarpus erinaceus Poir.4
mutete, (Cokwe), Swartzia madagascarensis Desv.5
ngandja (Ovimbundu)

1
Palgrave, 1956, p. 375.
2
Gilges, 1955, p. 31.
3
Cavaco, 1959, pp. 65-66. Palgrave, 1956, p. 122. A planta em questo corresponde desenhada na pgina
125.
4
Ficalho, 1947, p. 144.
5
Agron. Angol., 1953, 7, p. 76.
258

kapuipe (Ngangela, Cokwe)


kapwipwi (Lunda)

A planta vulgarmente chamada de mutete, que no se pode confundir com


nenhuma outra devido cor vermelho-castanha de sua mdeira e a dureza particular que a
caracteriza, aparece s vezes representada no cesto divinatrio por seu fruto que uma
vagem (foto 447-c). Se a maioria dos adivinhos atribuem a esse fruto funes puramente
curativas, ele tambm considerado por outros enquanto smbolo de adivinhao, como
no importa qual outro kaphele.
O fruto de mutete constitui pois um dos elementos-fronteira variados desta tcnica
de adivinhao; portanto, importante expor a interpretao dada por aqueles que o
consideram como um kaphele, bem como os usos aos quais ele encontra-se ligado na
medicina tradicional.
Planta fundamental em diversas prticas ligadas ao culto dos ancestrais, com
suas folhas que o adivinho purifica mensalmente o cesto e os tuphele para que retomem o
vigor com a apario da lua nova.
A planta mutete representa ao mesmo tempo seja os ancestrais seja as prprias
mahamba que representam os representam. isto que resulta desta explicao de
Hamumona: Quando ns temos um problema, vamos perto da rvore mutete: l que
residem os ancestrais; esta planta a hamba dos ancestrais; por isso que nos
aproximamos do mutete, para rezar aos ancestrais; assim, uma pessoa que est doente
dir: eu no roubei nem falei contra os meus, eu paguei o que devia... Como posso estar
doente? Ou ainada: Eu estive vrias vezes na mata e no achei nenhum animal; mas esta
mata de meu khaka1 que a descobriu; como possvel que eu no cace nada?.
Este gnero de queixas muito freqentemente endereadas aos ancestrais podem
ser feitas seja perto de uma rvore mutete, seja diante de uma esttua feita dessa mesma
rvore. possvel que essas duas formas de culto tenham subsistido independentemente
uma da outra, mas aceita-se perfeitamente que a partir de um certo momento a rvore
venerada seja transformada em esttua, to rude que seria muito pouco diferenciada de
um simples tronco de rvore. Esta hiptese aventada por Fourche e aprofundada por
Redinha parece bem fundada diante da quantidade de provas ainda observveis em certos
casos nas aldeias cokwe, onde vemos numerosas mahamba que so simples troncos nos
quais a figura humana no foi sequer desenhada (foto 449) 2.
A notar a ateno particular concedida pelo adivinho Sakungu s folhas de mutete
guardadas no interior de um chifre de cabra, que ele usava preso na borda interior do
ngombo para dar peso ao cesto, segundo suas palavras, querendo simplesmente dizer
que tais folhas valorizam o ato divinatrio, facilitando a presena do esprito Ngombo.
Mas por outro lado, o mutete pode estar presente tambm no ngombo sob a forma
de um kaphele manufaturado, este muito raro, de nome ynji. Trata-se de um minsculo
cilindro de madeira feito de uma vareta de mutete da qual se retirou o miolo, que duro e
escuro; a significao deste objeto (neste caso sempre kaphele) seria de lembrar ao cliente
a necessidade de reatar o contato com sua famlia (isto , sua seo clnica)

1
Khaka significa tanto a av quanto o irmo da av, ou seja, o tio-av; neste caso, trata-se normalmente de
um chefe de terra, que sempre um homem.
2
Ver J. Redinha, 1964 e Fourche-Morlighen, 1937.
259

geograficamente distante. Riasendala se explica nestes termos: ynji o parentesco; a


um certo momento as pessoas so numerosas; elas tm necessidade de emigrar daqui
(Lvwa); algumas vo ao Congo (Zaire), outras vo ao Kanzar, outras vo talvez pros
lados de Saurimo. Passado um certo tempo, o caador sai e, ao mesmo tempo que vai
caar, procura saber se algum de seu parentesco j est morto.
tambm neste contexto que se deve situar a explicao lacnica de Sakungu
quando diz simplesmente: Ynji o kalamba kuku (ancestral)1.
Vemos portanto que o fragmento de mutete, quando est manufaturado, torna-se
uma referncia explcita, no cesto divinatrio, a um ancestral eminente, normalmente o
fundador de uma seo do cl, que se dispersou em seguida.
Com o mesmo nome ynji, Santos descreve: um pequeno cilndro de madeira,
com 3 cm de comprimento, perfurado no sentido longitudinal por diversos cortes que
podem penetrar at o miolo ou ficar somente na superfcie2. Trata-se certamente do
mesmo kaphele. O tratamento prescrito pelo tahi seguido manifestao deste kaphele
seria uma purificao por fumigao, preparada com folhas de mutete e mukhumbi (outra
planta muito ligada ao culto dos ancestrais)3; esse tratamento ritual nos reconduz
purificao pelo rito kulikosa4, que se prepara igualmente com folhas de mutete.
Kaphele ou no, a presena da planta mutete no ngombo, mesmo quando se limita
a algumas folhas escondidas num chifre e em pequeno nmero, parece inseparvel do
culto dos ancestrais.
Na prtica, os Cokwe utilizam uma vara dura (miolo dessa planta) para obter
objetos resistentes, como por exemplo o bordo do fuzil, o pilo para mandioca e as
esttuas que devem durar bastante tempo. Como smbolo, parece explicar os diversos
aspectos da vida do cl e reforar sobretudo as ligaes de parentesco.

o rito kulikosa
Ynji (mutete) fora do ngombo
orao aos ancestrais

2.4.14 - Kenyenge, os olhos do feiticeiro

Barbosa: mukhenyenge, s. (2): um arbusto que s vezes trepa encostado a outras


rvores e que d uma semente preta e vermelha (Clerodendrum sp.).
mukenyenge (Lovale), Abrus precatorius L.5
mukenyenge (Lovale), Abrus precatorius L.6
mukeniengue (Cokwe), Clerodendrum7

1
Ver a estatueta antropomorfa kalamba kuku, item 2.1.4.
2
Santos, 1961, p. 161.
3
Ver item 2.4.17.3.
4
Kulikosa Ritual mgico-religioso utilizado pelo curandeiro, num contexto de exorcismo, no curso do
qual a libertao (de uma desgraa) obtida pelo efeito de uma fumigao com plantas escolhidas.
5
Gilges, 1955, p. 24.
6
Watt & Beyer-Brandwijk, 1962, p. 535.
7
Agron. Angol., 1953, 7, p. 63. O Clerodendrum descrito por Palgrave (p. 428) enquanto planta de grande
porte no pode ser confundido com o kenyenge dos Cokwe, planta arbustiva e trepadeira.
260

mukanhenje (Cokwe), Abrus canescens (Welw. Ex Baker)1

Entre os Cokwe, a planta mukenyenge utilizada principalmente com dois


objetivos: afrodisaco e smbolo da feitiaria. No se trata de um kaphele propriamente
dito, mas as sementes desta planta aparecem freqentemente ligadas ao cesto divinatrio,
mais particularmente estatueta entropomorfa cilowa2. Tratam-se de sementes vermelhas
e pretas, muito procuradas para diversos fins, nem sempre confessados, e mesmo para
confeccionar colares. Todavia, antes de nos arriscarmos a explicar o valor simblico da
semente, convm nos entendermos sobre o uso corrente da planta mukenyenge. Sobre este
assunto, Joo Manuel, um especialista do uso das plantas, nos afirma que o mukenyenge
procurado principalmente pelos homens quando esto falhos: O homem que no tem
mais fora (impotncia sexual) procura esta planta daqual extrai as folhas ou a raiz, que
ele ferve com gua; ele toma vrias vezes essa infuso e logo poder divertir-se com sua
mulher. Segundo um outro informante, Mwacimbau, a raiz de mukenyenge, quando
sugada verde, tem um alto poder de excitao sexual tanto sobre o homem quanto a
mulher.
Para o aspecto simblico, as sementes de mukenyenge so um elemento
importante na confeco de remdios contra a feitiaria. Os Cokwe penasm que se
algum vtima da feitiaria e pretende se curar tomando um remdio prescrito pelo
mbuki, indispensvel que este ltimo adicione poo preparada para esse efeito
algumas sementes de lutemo (luz, olhos) do remdio. Essas sementes iluminam o
caminho da ao do remdio anti-feitiaria. Explicando melhor seu ponto de vista, Joo
Manuel diz que o doente, quando pe em sua caarola algumas dessas sementes com
folhas ou razes prescritas pelo curandeiro, e que constituem o remdio propriamente dito,
faz a mesma coisa que o caador que e as sementes perto do gatilho de seu fuzil. Na
verdade, a maior parte das armas de caa de fabricao local apresentam algumas dessas
sementes picadas numa espcie de cera (ulongo), que os caadores acreditam ser o lutemo
(luz) que vai fazer-lhes acertar o animal. a mesma teoria a que se devem as explicaes
dadas para a presena dessas sementes colocadas na borda interna de muitos cestos
divinatrios. Os adivinhos dizem que elas ajudam os tuphele a ver imediatamente onde
est o nganga (feiticeiro). assim que Hamumona justificava a denominao olhos do
feiticeiro, dada a essas sementes porque elas reconhecem o feiticeiro entre os que
assistem sesso divinatria.
A funo do kenyenge no remdio semelhante e inversa que lhe atribua o
nganga, que utiliza igualmente as mesmas sementes para visar a vtima quando lana
contra ela sua uta wa mbomba (fuzil miniatura). alis esta crena que fundamenta a
conotao generalizada de kenyenge feitiaria, se bem que a prtica aceite este
elemento como mediador duplo, funcionando seja como mediador do remdio (cura) ou
seja como mediador da morte (feitiaria).
A ligao do mukenyenge com a feitiaria evoca igualmente o uso freqente desta
planta como veneno. Este aspecto foi bastante estudado por Gilges na Zmbia, onde as
famosas sementes designadas por lucky beans (feijes da sorte) so normalmente
proibidas s crianas em virtude de seu alto poder txico: Sua camada de proteo
1
Cavaco, 1959, p. 72.
2
Ver item 2.1.12.
261

normalmente as fazem indestrutveis e eles passam por todo o sistema digestivo


inalteradas. Se, entretanto, estes feijes so ingeridos esmagados, os princpios txicos
Abrin podem rapidamente levar morte1.
O uso que o nganga (feiticeiro) faz destas sementes , segundo os Cokwe, de
fabricar os olhos que vo detectar a vtima; contudo, segundo Gilges, as sementes
representariam antes as orelhas da vtima na imagem fabricada pelo feiticeiro: mdicos
bruxos que querem matar algum fazem uma efgie da pessoa e pe a semente Abrus mo
lugar de suas orelhas2.
Esta significao parece ser um quiproc de Gilges, pois no somente ela
completamente estranha a todos os velhos Cokwe, como tambm parece se situar fora de
todo o amplo contexto cultural que essas sementes cobrem.
O uso de mukenyenge importante tambm como medicamento; entre outras,
Gilges registra sua aplicao contra os males do peito e as doenas dos olhos, o que os
velhos Cokwe confirmam em parte: Uma decoco das razes feita para problemas do
peito. Folhas esmagadas so misturadas com gua fervente e a fumaa usada para
aliviar olhos inflamados3.
A essas observaes retomadas por Watt4 juntam-se outras, a saber, que no Brasil
se utiliza ainda hoje a infuso dessas sementes para curar conjuntivites granulosas, e que
em diferentes etnias da frica Central a mesma semente utilizada contra as mordidas de
serpente, bem com para curar lceras, e ainda para atacar vermes intestinais. Reduzidas a
p, elas servem de contraceptivo oral a doses reduzidas (200 mg aproximadamente),
exercendo uma ao eficaz por uma durao de treze ciclos menstruais; o resultado
atribudo ao da abrina, substncia quimicamente conhecida por N-metiltriptofano; a
ao txica devida formao de cido brico, um composto qumico de frmula
C2H24NO3 5.
Apesar de ser muito procurada por seus numerosos usos, esta planta
relativamente fcil de se encontrar em terrenos descobertos da savana, normalmente
pendurado ao tronco de uma rvore e fcil de localizar, apesar de sua condio de
arbusto, graas colorao viva de suas sementes.
Apesar de notarmos uma tendncia entre os informantes de ligar o signo negativo
dessas sementes s cores (vermelho uma cor negativa; o preto pelo menos ambguo)6,
parece legtimo reexaminar o problema e nos perguntarmos em quais medidas as
propriedades destas sementes, mantidas pela tradio, e em particular a virul6encia do
veneno que elas contm, no esto na origem da significao negativa que as
caracterizam. De qualquer modo, os Cokwe atualmente ligam as sementes de mukenyenge
em ordem primordial s prticas de fetiaria, mas mantm o hbito de utiliz-las para
outros fins.

1
Gilges, 1955, p. 6.
2
Idem.
3
Gilges, 1956, p. 6.
4
Ver Watt & Beyer-Brandwijk, 1962.
5
Watt & Beyer-Brandwijk, 1962, p. 353.
6
Ver Turner, 1972. a, p. 84.
262

2.4.15 - Ka, o feixe de remdios

Barbosa: k, s. (4): medicamento preparado base de razes cortadas em bocados e


atadas, so fervidas e a gua da fervura bebida para tratamento das doenas da barriga.

A maioria dos cestos divinatrios apresentam entre os tuphele um pequeno feixe


de pauzinhos (fig. 89) de natureza variada, compreendendo algumas vezes fragmentos de
razes, o todo em geral muito bem amarrado com um lao vegetal. Esse feixe chama-se ka
e unicamente interpretado como kaphele, apesar dos elementos que o constituem,
quando considerados separadamente, geralmente no o sejam.
Dentre os variados elementos que constituem o feixe, preciso distinguir um
elemento sempre presente e, em certos casos, o nico elemento que constitui o dito feixe.
Trata-se de um ou vrios fragmentos de um pauzinho que foi tocado pelo raio. o que os
Cokwe designam por mwandanjaji ou kalumbu kanjaji. Funcionando como kaphele, esse
pauzinho atingido pelo raio significa que a pessoa para quem feita a consulta sofre h
algum tempo de violentas dores de cabea e no sabe a qu atribuir isso: Voc sofre h
trs meses de dor de cabea. Esta no uma doena vinda por feitiaria; voc procurou
madeira na mata e trouxe com a madeira um pauzinho de mwandanjaji e colocou-o no
fogo; a fumaa desse pauzinho entrou por seu nariz; isso que lhe d dor de cabea.
Agora voc deve procurar um desses pauzinhos que o raio atingiu, coloc-lo numa cabaa
com gua, lavar-se com essa gua todas as manhs, e dentro de alguns dias voc no ter
mais nada (Mwafima).
Numa verso um pouco mais detalhada dada pelo adivinho Riasendala, aparecem
outros elementos, particularmente importantes porque concernem preparao do
remdio anti-raio. O doente deve buscar prximo do rio um galho de trs ramos da planta
cithanga1; o pauzinho servir de suporte a uma caarola contendo gua e kulya2 e pemba;
a esses elementos se adiciona ainda um fragmento de casca de no importa qual planta
atingida pelo raio; enfim, pinta-se o exterior do recipiente com raias vermelhas e brancas.
Assim preparada a gua lustral (foto 450).
Os Cokwe atribuem as dores de cabea, quando so particularmente fortes, ao fato
de que a vtima tenha respirado uma fumaa nociva proveniente do golpe do raio e que
permaneceria aderida ao pauzinho atingido pelo raio, sob forma residual, inativa quando
o fogo no a reativa. Contudo, quando uma pessoa vtima de ferimentos, porque uma
casa ou uma rvore foram atingidas por uma descarga, preciso proceder a um
tratamento mais minucioso: dois ou trs ovos so quebrados na cabea da vtima e
engolidos por ela como vomitivo para fazer sair a fumaa engolida no momento da
descarga e que se supe sufocante para o corao; as feridas externas so por sua vez
friccionadas primeiramente com uma gema de ovo e em seguida com carvo reduzido a
p, obtido igualmente de uma rvore atingida pelo raio, e misturado com leo de palma.
O importante conseguir fazer com que a vtima vomite, sem o qu a dor no a deixar;

1
Cithanga, planta do mushitu procurada para fazer suportes de cabaa, visto que se encontra sempre essa
planta com galhos em posio de triedro posicionado na ponta, o que lhe valeu o nome de cadeira de
cabaa.
2
Este cogumelo , como vimos, um smbolo divinatrio.
263

nos casos mais difceis, alm dos ovos, do-lhe leo de palma para beber e, com efeito,
parece ser infalvel.
O golpe do raio, como alis no importa qual queimadura, conhecido antes de
tudo como a penetrao de um corpo estranho no sistema fechado que o corpo humano;
da o recurso ao ovo, entidade vital, mas que no tem abertura e, em conseqncia,
capaz de fazer sair o elemento estranho.
Vomitar tem por efeito separar dois mundos que se misturam. Os Cokwe detestam
a mistura dos mundos como eles condenam a mistura dos bens (roubo); da essa
necessidade de expulsar o elemento do mundo estranho (raio) e de restituir ao corpo sua
integridade1.
Interrogado sobre o critrio seguido na escolha dos pauzinhos que formam o ka de
seu ngombo, Hamumona explica: Muito freqentemente meus clientes, quando saram
das dores de cabea aps o tratamento prescrito (lavagem com gua lustral), me trazem
como reconhecimento para o ngombo um pouco desses pauzinhos com os quais eles
prepararam a gua e assim eu sempre tenho muitos desses pauzinhos no meu ka.
Contudo, era bem evidente que no pequeno feixe que Hamumona exibia, havia outros
elementos de natureza muito diversa; aos fragmentos de mwandanjaji, nosso adivinho
juntara fragmentos de razes ou ramos de plantas diversas que ele revelou: mucaca,
munda, muvuma, musole; cijilangenyie, cilwe, mufu2.
Estas plantas so remdios para doenas variadas e o prprio tahi, ao final da
sesso divinatria, tem o hbito de oferecer ao cliente um desses fragmentos para preparar
o remdio segundo o diagnstico posto. Em certos casos o tahi tambm se d ao cuidado
de confeccionar um feixe de razes ou pauzinhos, muito semelhante ao de seu ngombo,
mas que neste caso destinado a ser um amuleto protetor que os homens que os homens
usam suspensos cintura e que as mulheres usam na cabea, pendurando-o nos cabelos;
ainda hoje encontra-se mulheres com esse amuleto, ao qual elas atribuem um valor em
relao fecundidade.

2.4.16 - Lusole, o que no morre

Bastin: lusolo, nome de um fruto.


Barbosa: lusolo, s. (7), fruto no comestvel do arbusto musolo (pl. solo), um
arbusto prprio para sebes.
Barbosa: lusole, s. (7), fruto comestvel da rvore musole (pl. sole).
musole (Lovale), Vangueriopsis lanciflora (Hiern) Robyns3
musole (Lovale, Lucazi), musoli (Lunda), Vanhueriopsis lanciflora4
musole, Bombax reflexum Sprague1.
1
O conceito negativo da mistura explica igualmente o recurso tradicional prova da casca para detectar o
feiticeiro, que por natureza criminoso por misturar as vidas do mesmo modo que o ladro mistura os bens.
(Ver a esse propsito a anlise, em Retel-Laurentin, do conceito africano de feitiaria e das implicaes
estruturais que da decorrem, principalmente a oposio comida / anti-comida; Retel-Laurentin, 1974, pp.
139-179).
2
O estudo de algumas dessas plantas abordado nas pginas que seguem.
3
Palgrave, 1956, pp. 392-395. O fruto do cesto aquele representado p. 394.
4
Gilges, 1955, p. 32.
264

Trta-se de um fruto de uma significao altamente positiva. Poucos autores o


detectaram no cesto divinatrio, onde ele se confunde facilmente com outro de forma
semelhante, se bem que muito distintos para o sentido.
Nos estudos publicados at hoje, parece que s Bastin fez uma referncia
explcita: Lusolo, nome de um fruto, pea simblica (lusolo wa mwano), significando
sua apario borda do cesto que a pessoa vai sarar2.
Nas diferentes sesses que observamos, lusolo ou lusole significava que a pessoa
para quem se pedia a interveno do adivinho sobreviveria doena, ou simplesmente
teria muita vida, o que significa viver muito tempo e em boas condies. Essa
significao ainda reforada pela utilizao do mesmo fruto como remdio para se dar
aos cincuncidados na festa da mukanda; quando as folhas de musole so reduzidas a p,
elas constituem um dos elementos do remdio da vida3 apresentado pelo nganga-
mukanda (mestre da circunciso) a seus pupilos.
O musole tambm constante como ungento protetor da criana contra o mal de
zombo4; neste caso, reduzido a p e misturado com a planta mukoso nas mesmas
propores, o musole impede as conseqncias nefastas de todo contato inconveniente.
Nesta aplicao, o elemento propriamente defensivo seria o p de mukoso, cuja funo
precisamente de no deixar nada entrar, ao passo que musole teria por funo
acompanhar o primeiro para tornar sua ao possvel. Explicando melhor seu ponto de
vista, Mwafima precisa que o musole penetra no corpo, abrindo o caminho ao mukoso,
mas este aqui que impede, na seqncia, a penetrao do mal de zombo. por isso que
se trata de um elemento que nunca falta no kapuri protetor da criana.
Concluindo uma sesso com a aprio deste fruto, Riasendala assegurava ao
cliente: Essa pessoa (para quem ele acabara de adivinhar) est em vida, ela no morrer
imediatamente, apesar de estar doente. E respondendo a minha pergunta sobre a vida da
planta musole, ele disse: uma rvore muito grande, que vive muito tempo.
Compreende-se ento a designao recolhida por Palgrave, que diz que essa
planta classificada como living-long (longa vida) ou never-die (que-nunca-morre)
por causa da convico generalizada que o tronco penetra constantemente na terra5.
Segundo esse mesmo autor, e aparentemente pelas mesmas razes, esta planta seria
largamente utilizada contra a parotidite pelas populaes do norte da Zmbia; esse
tratamento assim descrito: Quando um membro da tribo Mankoya, da Rodsia do
Norte (Zmbia) contrai caxumba, o paciente sempre isolado de imediato. Ao tratar a

1
Agron. Angol., 1953, p. 74.
2
Bastin, 1961, p. 42; p. 247. A notar a significao bsica de mwono, s. (2): vida, energia, vigor, fora
(Barbosa, 1973).
3
O dito remdio da vida aplicado pelo nganga-mukanda (chefe da circunciso) aos iniciados
compreende um conjunto complexo de elementos de natureza animal e de natureza vegetal, misturadas aps
reduo a p. Dos de natureza vegetal, citamos:
folhas do cilombo, planta que impede que um homem de mau humor entre no campo dos
circuncidados;
kulya, para fortificar os novios;
e ainda folhas de ushia, cisangu e musole.
4
Ver a esse propsito a preparao do kapuri, item 2.4.8.
5
Palgrave, 1956, p. 395.
265

enfermidade o doutor usa um ungento que ele prepara misturando alguns ps coletados
de ramos de Vangueriopsis lanciflora com algum tipo de gros comestveis, e ento
adicionando gua at formar uma pasta; isto friccionado no inchao para que diminua, e
considera muito improvvel que o tratamento necessite ser aplicado de novo no segundo
dia1.
A nota dominante e altamente positiva deste kaphele parece estar ligada ao poder
particular de penetrao desta planta; ela entra na composio de diversos remdios para
tornar o corpo permevel ao dos elementos propriamente curativos; e por outro lado,
o remdio de musole tendo penetrado profundamente nas fissuras do corpo, abre o
caminho entrada dos remdios preventivos (por exemplo, no caso de zombo, parotidite,
etc.).

2.4.17 - Outras plantas

J mencionamos que a colonizao, perseguindo os adivinhos e tolerando os


curandeiros, levou os primeiros a assumir igualmente as funes dos segundos; da
resulta uma certa confuso no ngombo, que comeou a conter amostras de plantas
medicinais destinadas s prticas de cura, mas sem serem peas divinatrias.
Eventualmente, uma ou outra entrar pouco a pouco no sistema, mas a distino clara
kaphele / no-kaphele que os adivinhos mantm para a grande maioria desses fragmentos
vegetais mostra que eles so destinados a serem aplicados como remdios.
sobre algumas destas plantas que vamos dar agora algumas referncias; as
informaes que possumos a respeito delas so reduzidas, e o estudo aprofundado desse
material nos afastaria do objetivo fundamental deste trabalho, que busca antes de tudo
inventoriar e identificar os objetos-smbolos do cesto.

2.4.17.1 - Mundoyo

Mundoyo (Crysophyllum africanum A. D. C.) uma planta que produz uma


pequena semente (foto 443-c), freqentemente utilizada para, misturada a pequenos
seixos, ser posta no interior dos chocalhos. Os adivinhos no consideram esta semente
como kaphele. Os que a colocam no ngombo (e so raros) a utilizam exclusivamente
como phelo: um remdio para chamar, eles dizem. Trata-se na realidade de um remdio
ligado prpria iniciao do adivinho; com efeito, na noite da iniciao, dentre os
medicamentos aplicados ao doente (candidato tahi), tambm consta a seiva da raiz de
mundoyo, a qual, aspergida sobre os olhos do adivinho, o torna apto a descobrir no
somente a causa dos males como da mesma forma as pessoas interessadas em consult-lo.
Sakungu explica que quando ele procede iniciao de um novo adivinho, ele asperge
com esse lquido sobre o nariz e os olhos; por isso que na noite, que segue cerimnia
de iniciao, o jovem adivinho ter sonhos favorveis a sua atividade e, na manh
seguinte, ter apenas que soprar no chifre da pequena cabra selvagem (kaseshe), onde

1
Idem.
266

esto guardados os fragmentos da raiz de mundoyo reduzidos a p, para que cheguem


logo clientes de toda parte.
A notar igualmente que o fruto de mudoyo exerce uma verdadeira atrao sobre a
dita cabra selvagem, que aprecia muito os frutos dessa planta. por isso que o caador
experiente monta perto da rvore mundoyo um poste de observao. Segundo o mesmo
informante, os frutos de mundoyo chamam o kaseshi com a mesma fora que o chocalho
(do adivinho) chama o esprito Ngombo para que o tahi entre em ao. Mas o caador
nem sempre tem sucesso em seu estratagema. Algumas vezes um ancestral
insuficientemente venerado (por exemplo, um antigo danarino mascarado) neutraliza a
caa em perspectiva, interpondo-se como um elemento instruso entre o caador e a presa
desejada. por isso que quando o caador pensa ter ao seu alcance uma presa apetitosa
como o khai (grande cabra selvagem), esta surge sem que ele espere diante dele,
transformada em pessoa1.

2.4.17.2 - Mucaca

Barbosa: mutchatcha, s. (2), um arvore de razes odorferas, usadas


medicinalmente.
Muyise, mutata (Lovale), Securidaca longipedunculata2
Utata, mutata (Lunda, Ovimbundu), buasi ou boasi (Ovimbundu), mupanyota
(Nyaneka-Nkhumbi), Securidaca longipedunculata3
Nsunda (Kongo), Securidaca longipedunculata Frasen, var. parvifolia4

Entre os Cokwe, o uso mais difundido desta planta provavelmente sua aplicao
como estimulante sexual, sobretudo para os homens; eles sugam debaixo da casca da
rvore e asseguram que isto basta para dar fora ao homem; os mais idosos conhecem
quantidades de plantas para produzir o mesmo efeito. Joo Manuel, o informante
especializado sobre o assunto, enumera as seguintes: mutata-shimba, mukenyenge,
muhala (raiz), kapupula, mundonda, mundongo. Mas a verdade que nem todos eles
sabem distiniguir com segurana estas plantas, e por isso os clientes que as procuram por
intermdio dos especialistas so muito numerosos. A mais procurada precisamente um
fragmento de mucaca que os meninos sugam com obstinao.
Como medicamento, ela entra na composio do remdio da iniciao do
caador5; neste caso, a ao que lhe atribuda de reforar o poder do caador, ou mais
exatamente de tornar esse poder ativo e eficaz.

1
Ver a esse propsito o conto do khai-pessoa, item 2.3.19.
2
Gilges, 1955, p. 31.
3
Noronha, 1946; Ficalho, 1947, p. 87.
4
Delaude e Breyne, 1971, p. 96.
5
H quatro plantas que entram na constituio do remdio iniciador do caador, segundo o informante e
mestre-caador Mwafima:
Musungwa (Combretum laxiflorum Welw), plantas de folhas e casca das quais extrada uma
tinta amarela (Barbosa) e que se identifica pelo fato de apresentar frutos com espinhos.
Ushia, planta que acompanha o cadver sepultura e sobre a qual repousa o morto antes dos
funerais; ela d uma flor que se tranforma em fruto pulposo.
267

Segundo Turner, a prpria palavra mutata (correspondente mucaca dos Cokwe)


significaria na expresso dos Ndembu: ku-tatisha wubinda, isto : esquentar wubinda, o
poder da caa1.
Contudo, o uso mais freqente, e que rendeu a essa planta o sinnimo de tragdia,
precisamente sua utilizao pelas mulheres que tentam se suicidar. A raiz de mucaca
tem propriedades fisiolgicas particulares que a tornam extremamente venenosa quando
entra em contato com tecidos dotados de alta permeabilidade, como o caso, por
exemplo, das mucosas vaginais. por isso que a mulhere acossada pelos maus tratos que
o marido lhe inflige recorre raiz desta planta, que ela introduz na vagina. Aps alguns
minutos, ela agoniza, transpirando muito, e com numerosas hemorragias. O velho
Sanjingi diz a esse respeito que os casos que podiam ser salvos eram raros e devidos
precisamente a uma pessoa experiente (mulher idosa) que, se dando conta do que se
passava, lavava abundantemente com gua quente o corpo da vtima e conseguia assim
evitar o pior; mas normalmente as pessoas no sabem de que mal se trata e, quando se
do conta, j tarde demais.
Parecia que este uso macabro da mucaca era relativamente freqente em diversas
etnias da frica Central. Gilges, que designa esta planta como muyise ou mutata (a
rvore violeta), diz que ela o meio de sucidio aceito pelas mulheres Lovale2. Por
outro lado, o recurso a esta planta tem fins idnticos, que foram observados, em algumas
regies angolanas, o que leva alguns administradores a aprofundar seus estudos. Assim
apareceu uma anlise farmacolgica desta planta feita por Noronha (1946) que revala a
presena de certos componentes qumicos muito ativos, principalmente: cido saliclico,
silicato de metila e securidacina. A ao nociva sobre as mucosas atribda precisamente
ao primeiro desses componentes qumicos3.
preciso ainda assinalar o uso dessa mesma planta como meio contraceptivo, o
que os Cokwe ignoram, mas que Gilges menciona num contexto no qual no faltam
elementos simblicos: Como meio contraceptivo, os fragmentos circulares de pele da
raiz so adicionados plvora e misturados com gua fria. Ento, bebe-se este lquido
atravs de um machado ou cabo de enxada velho e usado, que sugado durante um bom
tempo. Ao beber, a mulher deve estar numa encruzilhada e voltada para o oeste4.

2.4.17.3 - Muyombo

Muyombo, Lannea stuhlmannii Engl.5


Mwiombo(Lunda), Kirkia acuminata Oliv.1

Mulombe (Daniellia sp.), rvores muito alta, de casca e folhas medicinais, da qual se faz o
tchikuvu (tambor) com o tronco (Barbosa); tambm uma planta ligada prticas dos funerais, como a
ushia, aplicando-se ambas ao mesmo tempo.
Muhonga (Raphia Buettneri), uma rvore da qual se tira galhos para fazer arcos (Barbosa,
1973).
1
Turner, 1972, p. 211.
2
Gilges, 1955, p. 7.
3
Noronha, 1946.
4
Gilges, 1955, p. 8.
5
Gilges, 1955, p. 29.
268

Mulemba, mukumbi, Lannea welwitsochii Eng.2


Mukubi (Ngangela, Lucazi, Lwimbi), Cryptosepalum pseudotaxus Bak.3

Muyombo ou mukhumbi uma planta fundamentalmente dedicada aos ancestrais;


ela serve para rezar, ou mais exatamente a kombelela (limpar o solo em honra de
algum)4. Nessa funo, o mukhumbi normalmente substitudo pela mulemba (ver item
2.4.17.4), que os Cokwe do nordeste parecem preferir.
A ligao desta planta ao culto dos ancestrais est em relao com o rito da
fundao da aldeia; com efeito, no curso de um ritual muito complexo, o chefe corta na
mata um galho de mukhumbi que ele planta no solo, perto de sua casa; esse galho vai
prosperar e perto dele que, mais tarde, ele receber os parentes que o visitaro, e que
ele marcar com argila branca (pemba) da amizade. Ser tambm por meio dessa nova
rvore mukhumbi que se assinalar o nascimento de cada nova criana pertencente ao
grupo familiar, riscando o tronco da rvore a cada nascimento. Se no grupo surgirem
graves disputas, ser ainda perto dessa planta ou da mulemba que se buscar apaziguar os
espritos para garantir os favores dos ancestrais.
Estabeleceu-se que a relao desta planta com o culto dos ancestrais cobre uma
larga extenso geogrfica compreendendo quase toda a frica Central; entre outros,
citamos a propsito o testemunho de Miller concernente aos Bangala: rvore-muyombo:
acredita-se que seja a residncia dos espritos de uma linhagem5.
Normalmente se venera os ancestrais reunindo o grupo periodicamente perto das
plantas muyombo, que so geralmente duas, uma considerada masculina e a outra
feminina; algumas vezes o chefe da nova aldeia prepara perto das rvores familiares duas
pores de argila vermelha, que fazem realar ainda mais as plantas consagradas.
Todos os adivinhos mostram uma venerao particular pela planta muyombo;
encontramo-na especialmente ligada ao rito de iniciao do tahi, pois com essa planta
que se prepara o munenge do adivinho: uma pequena forquilha preparada para exibir a
cabea do galo sacrificado na noite da iniciao.
Alm dessa ligao com o tahi possudo pelo esprito Ngombo, preciso citar sua
utilizao para curar diversos ferimentos6.

2.4.17.4 - Mulemba (musuva)

Mulemba, Phyllantus stuhlmannii Pax, Ficus thoningii Bleim., Ficus welwitschii


Warb., Ficus sycomorus7
Mulemba, Ficus psilopoga Welw ex Warb8
Mulemba, Ficus thoningii Blume Welw ex Ficalho1
1
Palgrave, 1956, p. 414.
2
Agron. Angol., 1962, 5, p. 16.
3
Agron. Angol., 1953, 7, p. 64.
4
Barbosa, 1973.
5
Miller, 1971, p. 53.
6
Ver Mitchell, 1962, p. 46.
7
Watt & Beyer-Brandwijk, 1962, p. 780.
8
Ficalho, 1947, p. 267.
269

Ficus welwitschii Warb. Ex Ficalho2

Ainda mais freqente que o mukhumbi, a mulemba ou muvuma , no nordeste de


Angola, a planta por excelncia do culto dos ancestrais. Riasendala explicou o sentido
dessa rvore, quando mostrou a estatueta kalamba kuku3, dizendo: Esta o lemba, uma
pessoa de um outro tempo; mulemba para lembrar o kuku. Igualmente, entre os
Ambundu, de acordo com Miller, se mantm a mesma relao com os ancestrais: ...
rvore fechada associada com as linhagens mbundu e a linhagem do lder4.
Sobre esse assunto, o velho Sanjinji foi bem mais explcito quando explicou a
razo de ser de duas dessas rvores alegres ao lado de sua casa: Aqui residem meus
ancestrais homens e mulheres, porque h duas rvores, a dos homens e a das mulheres.
Mas quando uma das pessoas presentes pretendeu explicar que essas rvores honravam as
famlias da me e do pai de Sanjinji, este cortou de pronto, refusando tal explicao: as
plantas so duas, uma dos homens e outra das mulheres, mas elas veneram os ancestrais,
homens e mulheres, de sua famlia (portanto da famlia de sua me). E ele explicou ainda
que dentre os espritos desses ancestrais havia o do adivinho Sakariela, a quem Sanjinji
sucedeu no governo da aldeia, ao passo que neste instante era j seu sobrinho Mandanji
quem estava frente da aldeia.
Nas inumaes tradicionais, os Cokwe recorriam com freqncia mulemba para
cortar o pau que servia para transportar o morto muhango wa mufu percha qual
se amarrava a rede na qual se tinha enrolado o corpo do defunto. Os informantes
explicam o recurso (no-exclusivo) mulemba pela facilidade de lhe tirar a casca e
amarrar a rede com esta ltima. esta provavelmente a razo inicial de tal escolha, que
pode ter acentuado ainda mais a ligao desta planta com o culto dos ancestrais. Se
notar, por outro lado, um distino clara entre as plantas que fornecem a corda (da casca)
e as que no a fornecem, as primeiras sendo associadas morte a ponto de hoje no se
poder extrair um remdio qualquer de fecundidade de uma planta que fornea a corda; tal
remdio teria como conseqncia prender o filho no ventre materno e impedi-lo de
nascer.
A generalizao deste tabu a toda planta que fornea a corda, bem como pelo fato
de que, para o muhangu wa mufu, no importa que vara, cuja casca seja suscetvel de ser
desfeita com facilidade em corda, utilizvel, fundem essa oposio significativa entre as
plantas que fornecem a corda e as que no fornecem.
Para as sociedades como a dos Cokwe, nas quais se pratica a agricultura sobre
queimadas, isto tem sido sem dvida um grande benefcio para todo o meio-ambiente
que estas plantas tenham sido afetadas pelo culto dos ancestrais e, por essa razo,
poupadas da destruio pelo machado e pelo fogo. Em 1955, o botanista Gilges chamou a
ateno a este problema, enquanto que o mal j estava bem avanado; a mulemba
(Musuvu) era precisamente uma das raras plantas que tinham escapado, segundo o
testemunho desse autor: Agumas rvores adquiriram quase que uma santidade nas tribos,
outras foram preservadas para uso dos chefes ou foram plantadas no tmulo de seus

1
Agron. Angol., 1953, 7, p. 66.
2
Idem.
3
Ver as estatuetas antropomorfas kalamba kuku, item 2.1.4.
4
Miller, 1971, ver Glossrio mulemba.
270

lderes. Uma das poucas rvores que escaparam do machado dos aldees musuhwa, uma
espcie de figo selvagem1.
Gilges soube apreciar muito bem esse freio benfico devastao crescente em
quase toda a zona da savana e que, em numerosos locais, fez da frica no uma terra
que morre2, mas uma terra morta que as manchas arenosas devoram cada vez mais.
Compreende-se a exclamao, que na verdade um voto, pela qual Gilges termina suas
observaes sobre a mulemba: Que diferena uma ou duas destas enormes rvores
majestosas, com sua folhagem sempre verde, vo fazer pra uma aldeia! Elas provm
sombra fresca maravilhosamente, ao invs do parco calor que parece penetrar cada canto
de uma aldeia isenta de rvores3.

2.4.17.5 - Cilama

cilama (Lunda, Lovale), Bridelia cathartica, Bertol, f,4


xilama, Antidesma membranaceum Muell. Arg.5

Planta arbustiva observada por Gossweiler s margens do Luashimo, onde o autor


a encontrou e a descreveu nestes termos: arbusto diico muito ramificado; arbusto
compacto ao abrigo das rvores de grande porte, espordico nas galerias de Pluvignosa s
margens do Luachimo6. uma planta que o feiticeiro usa para preparar remdios
especiais por sua composio, utilizando-se das razes e das folhas; o curandeiro tambm
pode servir-se dela para preparar uma bebida calmante (Zmbia) e como curativo ou pelo
menos um atenuante da lepra (Moambique)7.

2.4.17.6 - Mukirici

mukirici (Cokwe), Gardenia Jovis-tonantis Hiern8


kilembe-nzau (Kongo), Gardenia Jovis-tonantis Hiern9

Se bem que as razes desta plantas sejam muito empregadas como estimulante
sexual, e que seja nesta qualidade que ela faz parte das reservas do mbuki e
eventualmente do tahi, esta planta conhecida sobretudo dos jovens caadores, que
fabricam flechas (kondji) para matar pardais, aproveitando-se de que a planta seja dura e
nodosa.

1
Gilges, 1955, p. 10.
2
Ver a esse propsito o alarme de J. P. Harroy, 1944, frica, terra que morre.
3
Gilges, 1955.
4
Gilges, 1955, p. 25.
5
Agron. Angol., 1953, 7, p. 129.
6
Gossweiler, 1953, p. 129.
7
Watt & Beyer-Brandwijk, 1962, p. 18, p. 397.
8
Agron. Angol., 1953, 7, p. 63.
9
Delaude & Breyne, 1971, p. 98.
271

Os Kongo atribuem a esta planta um sucesso infalvel em questes amorosas. Eles


preparam com as razes desta planta, que eles designam por kilemba-nzau (que
enfraquece o elefante) um produto que, reduzido a p, torna-se um remdio infalvel ao
qual a pessoa amada no consegue resistir: Parecia que um pouco desse p espalhado na
palma da mo seria um meio infalvel para se assegurar prximo daquele ou daquela com
quem se cerra a mo1.

2.4.17.7 - Muhota

muhota, Psoros permum Febrifugum Spach2


muhota (Lovale, Lunda), Psorospermum febrifugum Spach var. ferrugineum
(Hoof, f.) Kray & Milne-Rehead3
munhota (Ngangela), Cryptolepis welwischii Hiern4
muhoto (Cokwe), Psorosdermum febrifugum Spach5
muhatu (Cokwe), Crossapteryx febrifuga Benth6

Trta-se de uma planta muito disseminada na maioria dos rituais nos quais se
misturam diferentes espcies de folhas medicinais. Os Cokwe a utilizam ainda hoje
principalmente contra a sarna e contra as doenas de pele; muhotahota (designao lunda)
considerada como capaz de afastar a causa da donea e de substrair as pessoas da vista
dos animais selvagens. Por outro lado, como todo animal selvagem que ataca
considerado como enviado por um nganga (feiticeiro), atribui-se ao muhota uma fora
particular de anti-feitiaria7. Pela mesma razo, atribui-se a esta planta o poder de impedir
a aproximao do marido quando a mulher vai ter um encontro com seu amante. Bastaria
para isso colocar perto do fogo algumas folhas de muhota8.
A relao desta planta com a magia negra parece estar em funo da cor de seus
frutos, que so vermelhos.
As folhas e as razes, ao contrrio, atuam com um valor inteiramente positivo,
pois se lhes atribuem o poder de afastar a m sorte da caa ou da pesca. Basta para isso
preparar uma soluo, mergulhando na gua por algum tempo razes e folhas de muhota;
aplica-se essa soluo aos instrumentos de trabalho, e a caa ser abundante9. O valor
desta planta como febrfugo est, na origem, na hiptese de que se poderia tirar partido
dela no tratamento contra a malria, mas os testes foram negativos. Note-se ainda o uso
de seu latex como purgante.

1
Delaude & Breyer, 1971, p. 99. Ver tambm sua utilizao no ritual oka-vyula (item 2.4.3).
2
Gilges, 1955, p. 30.
3
Palgrave, 1956, p. 196.
4
Agron. Angol., 1953, 7, p. 61.
5
Idem.
6
Cavaco, 1959, p. 145.
7
Ver Turner, 1971, pp. 73-74.
8
Gilges, 1955, p. 9.
9
Palgrave, 1956, p. 109.
272

2.4.17.8 - Mukula

mukala, Pterocarpus angolensis DC.1


mukula, (Ambundu), Acacia mossambicensis Bolle?2
mukula, (Ngangela, Cokwe) Pterocarpus angolensis DC.3
mukula, (Ovimbundu), Albizia gummifera C. A. Smith4

Mukula provavelmente uma das plantas mais utilizadas tanto na medicina


tradicional quanto na vida ritual dos Cokwe ou dos outros povos da regio. Os aspectos
rituais desta planta foram estudados com muitos detalhes por Turner5. Todavia, antes de
evocar esta pesquisa e de compar-la com o que nos foi possvel observar entre os
Cokwe, importa destacar certos aspectos da morfologia ou da fisiologia desta planta, bem
como as diferentes aplicaes que faz a medicina treadicional. Trta-se de uma planta que
se distingue pela dureza do caule, onde a zona cortical, de cor clara e facilmente atacvel
pelos insetos xilfagos, contrasta com a parte arborizada, de grande dureza e de colorao
escura. Mas provavelmente a cor avermelhada da seiva que est na origem das mais
freqentes conotaes simblicas. alis por essa razo que se lhe d ordinariamente o
nome de planta do sangue (bloodwood): The sap is red and sticky to touch and this
cozes out when the tree is being cut giving it the name bloodwood 6.
As aplicaes medicinais desta planta so muito variadas. As mulheres cokwe
atribuem casca macerada um grande poder de estimulao sobre as glndulas mamrias.
Mesmo elas conhecem diversas plantas capazes de atingir o mesmo fim, as mulheres
cokwe utilizam sobretudo as cascas de mukula e o bulbo de lyanga. Enquanto que o
efeito da mukula seria de aumentar a secreo e de prolong-la na mulher que j aleitava
ento, o lyange podia fazer funcionar as glndulas mamrias que no funcionavam mais
h algum tempo, ou mesmo, segundo certos informantes, que no tivessem nunca
funcionado. De qualquer modo, obtm-se o efeito desejado lavando os seios com o suco
leitoso obtido por uma infuso previamente preparada. No caso da mukula, o lquido se
prepara adicionando fragmentos de outras plantas casca de mukula.
Segundo Palgrave, a raiz era utilizada tanto no tratamento da malria quanto para
curar uma gonorria; as flores so aplicadas principalmente nos ferimentos dos olhos, e
tambm sob a forma de ungento para as doenas de pele. Palgrave d alguns detalhes
sobre a preparao desse ungento que quase nmo se utiliza mais: Este ungento
preparado misturando partes mais ou menos iguais de flores de Pterocarpus angolensis,
esterco de aves e frutos de um arbusto (Solanum trepidans); estes ingredientes so
queimados e a fumaa misturada com gordura para formar uma pasta...7.
Ao ponto de vista ritual, mukula o ncleo do rito Nkula, ou iniciao da
menina. A exsudao avermelhada desta planta lembra ao mesmo tempo os corrimentos
1
Palgrave, 1956, p. 331.
2
Agron. Angol. 1953, 7, p. 64.
3
Idem.
4
Idem.
5
Turner, 1972, pp. 98-104.
6
N. do T.: A seiva vermelha e enrijece ao toque e jorra quando a rvore est sendo cortada, dando-lhe o
nome de planta do sangue.
7
Palgrave, 1956, p. 333.
273

do sangue menstrual e do sangue do parto; como lquido capaz de coagular rapidamente,


ele exprime metaforicamente o conceito cokwe segundo o qual o germe vem do homem e
se prende no tero da mulher quando o sangue se coagula em torno dele; se, ao contrrio,
o sangue escorre, o germe no pode ter.
Por outro lado, o sangue que no coagula torna-se preto (sangue menstrual); neste
caso, ele remete feitiaria que no passa de uma arte refinada e camuflada de fazer
escorrer o sangue.
Turner desenvolve uma anlise detalhada do ritual Nkula, ao qual esta planta est
associada; para dar uma idia do campo semntico complexo criado pela vida ritual em
torno deste ncleo, transcrevemos o esquema no qual Turner exprime os grandes eixos
significativos do ritual Nkula:

NOME mukula de ku-kula amadurecer, em particular do ponto de vista


biolgico: no Nkula, designa as primeiras regras.

SUBSTNCIA Espcie de rvore = Pterocarpus angolensis, secreta uma


goma vermelha concrecvel denominada mashi amukala = sangue de mukala.

Representa: 1) o sangue

2) no Nkula:
a) o sangue menstrual
b) o sangue do parto

3) o sangue da fundadora da dinastia Mwantiyavwa, do reino


Lunda do Norte.

OBJETO FABRICADO 1) Como medicamento ishi kenu


a) representa o desejo de fertilidade da
paciente, pela coagulao do fluxo
menstrual.
b) representa o modo Nkula de
manifestao da sombra.

2) Como smbolo dominante da fase esotrica Ku-


tumbuka
a) representa o modo Nkula de
manifestao da sombra.
b) representa a criana desejada pela
paciente1

1
Turner, 1972, p. 103. Outras plantas importantes na vida ritual mas cujas informaes so insuficientes:
musombo, lukoci, mufulafula.
274

2.5 - Ainda outras coisas do cesto

2.5.0 - Introduo

Alm das estatuetas, dos objetos-manufaturados e dos smbolos naturais de


origem animal e vegetal, o cesto do adivinho contm tambm alguns objetos de
provenincia diversa, principalmente de origem europia (foto 451). Este ltimo grupo
constitui uma categoria especial ,dada a falta de contexto cultural imediatia que determine
sua presena no cesto. Na maioria dos casos, a escolha desses objetos da parte do
adivinho pzrece obedecer a critrios de eficcia simblica. por isso que em muitos
cestos se observar objetos tais como: peas de mquina, chaves, moedas (foto 452). Ao
mesmo tempo em que se interessa pelos objetos estrangeiros, o adivinho tambm se
preocupa em ganhar o favor das mahamba dos europeus (mahamba imbari); os mais
variados objetos podem represent-las. bastante freqente, por exemplo, que um
brinquedo seja considerado pelo adivinho como miniatura de uma hamba estrangeira.
A originalidade deste pequeno grupo de tuphele do cesto divinatrio que ele
provm do conceito operatrio das mahamba que permite aos Cokwe integrar um
conjunto de valores que lhes so estrangeiros. White j havia notado a presena de certas
mahamba ditas modernas que correspondem a situaes novas da sociedade, sobretudo
de ordem econmica, e que provm da presena de europeus na regio. Essas mahamba
modernas trazem esclarecimentos importantes sobre o processo do contato das culturas.
Os Cokwe explicam muitos fenmenos que abalaram sua sociedade tradicional em
termos de feitiaria e possesso (mahamba). O pequeno grupo de tuphele europeus
abordados neste estudo s um exemplo da capacidade integradora da atividade do
adivinho.
Esses smbolos, por serem estrangeiros, escapam do contexto ritual. Ao mesmo
tempo, suas significaes no apresentam nenhuma polarizao ritual; o adivinho as
explica em termos vagos e gerais. Em princpio, a pessoa possuda por uma hamba de
europeus ter exigncias que se reportaro aos comportamentos estereotipados do homem
branco, principalmente no que concerne s refeies e vestimentas. Mas se a dimenso
exegtica desses smbolos bastante limitada, em compensao eles nos do um
argumento concreto a propsito da mediao das mahamba na integrao permanente de
novos valores e situaes.

2.5.1 - Imbari, o esprito dos europeus


(foto 453)

A doena do branco simbolizada no cesto divinatrio, por no importa qual


objeto, devido presena de europeus na regio, explica em regra geral algumas doenas
do esprito de decorrem em princpio de um choque cultural. O adivinho explica que o
esprito dos europeus veio com os produtos comprados para comerci-los, ou muito
simplesmente dir que um esprito que veio de longe.
275

Para honrar as mahamba imbari, preciso primeiramente comprar uma imagem


de santo ou fazer uma de madeira; em seguida, uma refeio ser servida ao doente ao
estilo de uma refeio completamente europia: ums mesa ser arrumada com toalha,
pratos, garfos, etc. Um de nossos informantes, A. Komboio, cujo pai foi possudo por esta
hamba, preparava de tempos em tempos para seu pai uma refeio europia para acalmar
seu esprito. Mesmo aps sua morte ele (Komboio) continua a trazer para a sepultura
diferentes produtos europeus para apaziguar seu esprito.
De acordo com White, a origem destas mahamba, de nome Vindele, remontaria s
guerras de ocupao:
Vindele (os europeus) afeta principalmente os homens e acredita-se ter se
originado de um parente que tenha morrido nas reas europias demarcadas de Angola,
especialmente algum que tenha morrido numa das guerras contra os europeus. A vtima
sonha com produtos europeus. Para o tratamento, construda uma casa para o paciente,
cadeiras e uma mesa so colocadas nela e um tapete forra o cho. O paciente veste-se em
estilo europeu; ele dana, e come, com garfo e faca, pratos da cozinha portuguesa, bem
como uma ave cozida com arroz, tomates e cebola; coloca sua cerveja numa garrafa e
bebe-a num copo1.
Todas as prticas relativas s formas de culto das mahamba imbari se reportam a
diversos aspectos do choque cultural que provm sobretudo do impacto tecnolgico.
Entre outras, assinalamos a hamba sitima (estrada de ferro) e ndeke (avio) entre os
Lovale e a prtica de feitiaria talyanga entre os Cokwe. White observa a natureza
bizarra destas duas mahamba (a estrada de ferro e o avio) aparecidas aps 1945:
Sitima (= steamer2, o nome usado para uma estrada de ferro na Rodsia do
Norte). Originrio de um parente cuja morte foi devida a um trem, afeta os dois sexos.
Num caso registrado em 1948, uma mulher foi observada arrastando as mos e os joelhos
no cho enquanto emitia rudos soprados. A suas costas estavam amarradas trs grandes
cestas mutonga que os outros participantes disseram simbolizar vages ferrovirios.
Ndeke (aeroplano) originado por infeco das reas demarcadas em que os aeroplanos
so vistos com freqncia. O paciente deita-se de bruos num terreno spero e estende as
pernas e as mos. Acredita-se que lihamba causa uma fraqueza das pernas que impede de
andar. Aps o tratamento, o paciente erige um poste do lado de fora de sua casa no qual
coloca um avio entalhado em madeira3.
Mas o choque cultural pode tambm ser explicado pela feitiaria. Por exemplo, os
Cokwe explicam a aquisio das poderosas mquinas que escavam a terra atrs de
diamantes em termos de feitiaria: pessoas seriam capturadas para serem trocadas por
essas mquinas poderosas. a talyanga: numa primeira fase, vrias pessoas
desapareceriam; elas teriam cado na armadilha daqueles que esto a servio de talyanga.
O sangue de cada uma das vtimas seria em seguida analisado para se concluir sobre o
valor vital (fora de vida) de cada uma delas. As melhores seriam escolhidas e mandadas
ao estrangeiro (Amrica) em troca das mquinas.

1
White, 1949, pp. 229-230.
2
N. do T.: vapor; relativo a trem movido a vapor (Maria-Fumaa).
3
White, 1949, p. 30.
276

Esta explicao (talyanga) partilhada tanto pelo homem da aldeia que est longe
do contato com o europeu quanto pelo operrio que trabalha nas minas de diamantes h
tempos. As mquinas poderosas seriam necessariamente o preo de vidas humanas!

2.5.2 - Cisoji, as lgrimas

Cisoji um pedao de vidro, com freqncia um fragmento de vidraa quebrada


ou mesmo uma lmina de mica. A significao negativa: cisoji significa que haver
lgrimas de lamentao por causa de um bito. A apario de cisoji significa, de acordo
com Hamumona, que o cliente no retornar a tempo sequer de ver a pessoa para quem
veio fazer a consulta.
As mesmas explicaes so registradas por M. L. Bastin1 e Delachaux. De acordo
com este ltimo autor, cisoji traria ainda uma informao mais completa no caso em que
acompanharia wanga (cilowa) e o pilo (cinu). Neste caso, o smbolo cisoji traria a
explicao no somente da morte mas tambm de sua causa: o envenenamento2.
De acordo com Turner, madilu ou masoji (lgrimas) significaria no apenas as
lamentaes por causa de um bito mas tambm (no caso de um caco de vidro preto) um
ato de feitiaria:
Isto (masoji) representa o choro e a lamentao das mulheres aps receberem a
notcia de uma morte (Adivinho Angolano). Ele (masoji) tem dois sentidos: mostra que
algum morreu, que as pessoas choravam, lgrimas escorriam de seus olhos.
usualmente de cor preta, o que significa escurido (mwidima), que significa que algum
teve um sonho noite. Seu problema vem da escurido de enquanto ele dormia. Algum
veio enfeiti-lo noite, ou ele sonhou com um parente j morto que o estava adoecendo
ou causando m sorte3.
Mesmo no caso em que o doente ainda est vivo, a apario de cisoji anuncia que
o fim inevitvel e portanto que haver lgrimas. Entre os Cokwe, o caco de vidro s
preto muito raramente, mas a significao permanece a mesma: as lgrimas.

2.5.3 - Upite, riqueza


(foto 454)

Upite , em regra geral, um exemplar da antiga moeda angolana (Escudo


angolano); s vezes, encontra-se alguns proveniente de Portugal ou do Congo (Zaire).
Upite significa primeiramente riqueza, e secundariamente o dinheiro como forma
de riqueza. O interesse particular do estudo deste smbolo no cesto divinatrio que ele
permite compreender, entre os adivinhos, o que significa concretamente para eles ser rico
no presente e no passado. Se atualmente a maioria dos adivinhos explicam esta pea
divinatria, smbolo de riqueza, quase que exclusivamente em funo do dinheiro,

1
Cisoji pequeno pedao de copo e objeto simblico do ngombo ya cisuka, pressageando a sua apario
a morte da pessoa doente (Bastin, 1961, p. 137).
2
Delachaux, 1946, pp. 53-54.
3
Turner, 1961, p. 66.
277

antigamente a mesma pea era explicada sobretudo em funo da posse de escravos,


armas, borracha e marfim.
Sob a designao de palatai (dinheiro), Baumann obteve a seguinte informao:
... aquele que pergunta (cliente) ficar rico1. De acordo com M. L. Bastin, o
dinheiro (likuta) uma moeda europia, mais especialmente portuguesa, usada como
talism2, ao passo que de acordo com E. Santos, upite seria uma bola de borracha e
simbolizaria uma importante herana a dividir3.
Dado que a partilha das riquezas uma das mais fortes exigncias tradicionais, a
no-observao das normas costumeiras neste domnio significa sempre que se est a
meio-caminho da feitiaria. Com efeito, se a cobia pelo dinheiro pode causar a morte
(por feitiaria), a partilha injusta pode igualmente criar um contexto favorvel a uma
interveno do feiticeiro. Estes aspectos esto presentes em quase todas as explicaes do
adivinho concernentes ao kaphele moeda.
De acordo com L. Tucker, a moeda do cesto divinatrio dos Ovimbundu
significaria seja um roubo (dinheiro roubado) seja um ato de feitiaria por causa do
dinheiro:
Olombongo: uma moeda; quando vem borda significa que dinheiro ou bens
foram roubados. Por outro lado, se algum morre trabalhando para pagar uma dvida
longe de casa, diz-se que ele morreu por dinheiro; se uma pessoa foi enfeitiada
enquanto, distante da aldeia, cobrava o dinheiro que lhe deviam, pode-se dizer o mesmo.
Esta pea pode indicar tambm que a pessoa para quem se adivinha um homem rico,
que est sofrendo por causa de seu dinheiro4.
A explicao recolhida por Hambly, igualmente entre os Ovimbundu, vai
aproximadamente no mesmo sentido:
Uma moeda indica que a pessoa doente ou falecida estava em busca de dinheiro;
o infortnio vem do esprito que d prosperidade e sorte, por ter sido de alguma maneira
ofendido5.
Sob a designao de mali ou ikuta, uma moeda de cinqenta centavos (meio
Escudo), Turner assinala que este smbolo significa seja um homem assassinado por
feitiaria por causa de dinheiro, seja uma consulta do adivinho por causa de uma soma de
dinheiro perdido ou roubado, ou seja um crime causado pela inveja ou a cobia por
dinheiro6.
Para o adivinho Sakungu, a pea upite antigamente significava sobretudo as coisas
que se podia trocar por produtos vindos da Europa. A riqueza (upite) era sobretudo a
borracha (dundu) e o marfim, mas tambm o sal e os escravos. Quando um homem
consultava o adivinho para saber as causas de sua desgraa, o adivinho lhe repondia com
freqncia: voc no tem upite, preciso que voc parta em viagem para encontrar
upite. Ento esse homem procurava escravos para troc-los em seguida por produtos do
comrcio. Contrariamente aos Lunda, que vendiam muitas crianas como escravos para

1
Baumann, 1935, p. 172.
2
Bastin, 1961, p. 245.
3
Santos, 1960, p. 173.
4
Tucker, 1940, p. 195.
5
Hambly, 1934, p. 275.
6
Turner, 1961, p. 68.
278

obter sal1, de acordo com nosso informate, os Cokwe somente em casos excepcionais
aceitavam vender seus prprios filhos. A maioria dos chefes Cokwe tinham escravos o
bastante para poder vender uma parte e guardar os outros para a aldeia. Upite significa
portanto riqueza, dinheiro, mas tambm escravos.

2.5.4 - Longa
(foto 455)

Um pequeno pedao de prato europeu, cihanda ca longa, em faiana ou


porcelana, encontra-se no ngombo ya cisuka. Este fragmento evocas a hamba wa cimbali,
o esprito do branco que possui o doente e significa simbolicamente que ser preciso
render culto a esse esprito2. O que caracterstico desta possesso, que o doente deve
receber um tratamento como europeu, isto , para sarar deve-se-lhe preparar uma refeio
europia, no somente no que concerne ao cardpio, mas tambm para todos os outros
aspectos3.

2.5.5 - Ngenzo, a sineta


(fotos 456-457)

Ngenzo, termo provavelmente de origem portuguesa (guizo), designa seja a sineta


de origem europia, seja o guizo, ou seja ainda uma imitao da sineta, de madeira.
Entretanto, fora do cesto o guizo designado por uma palavra onomatopica:
ciwolowolo4.
Entre os Ovimbundu, o ngenzo teria por finalidade denunciar os falsos ou a falta
de verdade da parte do cliente5. Os Cokwe utilizam o ngenzo sobretudo para ajudar a
mulher grvida. Quando esta tem dor nas pernas, diz-se que a criana (feto) est mal
localizada; acredita-se que esteja descida para as pernas. Fazendo soar a sineta, se faria
com que subisse de volta. Os Cokwe concedem ao feto uma certa mobilidade no corpo; se
o ventre da mulher grvida no est muito dilatado, eles se inquietam6; se, em
compensao, os seios se desenvolvem rpido demais, se dir que a criana subiu para os
seios; ser necessrio faz-la descer para o ventre cerrando um amuleto (theia) contra os
seios.
O smbolo ngenzo tambm utilizado como recipiente, neste caso, levado pela
me para curar seu filho doente:
Se a criana no come direito, se a me no sabe o que fazer, ela colocar
remdios no ngenzo que ela carregar com a criana (Mwafima).

1
Carvalho escreve a esse propsito: ... de toda mulher que j tinha duas crianas, o terceiro pertenceria ao
Muata e todos os outros seriam destinados aquisio do sal (Carvalho, 1890, p. 708).
2
Bastin, 1961, p. 60.
3
Ver item 2.5.1.
4
Barbosa, 1937.
5
Tucker, 1940, p. 193.
6
Ver item 2.1.13.
279

2.5.6 - Nanbwa, a bala de fuzil

O scaadores cokwe urilizam freqentemente um amuleto de caa, sob forma de


co, que eles prendem no fuzil; uma variante de muta, um pouco maior, e que se chama
nanbwa. Mas, no cesto, nanbwa significa uma outra coisa: uma bala de fuzil. Este
kaphele apresenta uma significao muito prxima de yanga; como esta, nanbwa
significa o esprito do caador que os Cokwe dizem se manifestar por um de seus dentes
enviado como mediador do esprito; a bala de fuzil exerceria o mesmo papel. Assim, os
familiares do antigo caador, se encontrarem uma bala na casa, lhe rendero homenagem,
acreditando-a enviada pelo esprito do ancestral caador. Colocaro-na num pedao de
pano e lhe traro o sangue de caa que apazigua o esprito do ancestral caador.
Delachaux observou entre os Ndembu a bala de fuzil como smbolo divinatrio
para a qual uma explicao local foi dada: Esta bala (tyikula) data da guerra dos
Kwanyama. Vindo superfcie, esta pea indica que o homem que consulta no deve ir
guerra, pois certamente ser morto1.
De acordo com esse mesmo autor, a significao deste kaphele seria diferenteentre
os Ngangela, onde a bala de fuzil indicaria a morte causada pela febre (excesso de calor)2.
um smbolo bastante raro e, ao menos entre os Cokwe, sua significao quase
um duplo do smbolo yanga3.

2.5.7 - Musenene, a imunidade


(foto 458)

Um ou vrios pequenos calhaus dos ribeires (seixos) significam no cesto a


imunidade de um feiticeiro. Liwe lya musenene (a pedra da imunidade) simbolisa
primeiramente aquele que apresenta sempre respostas evasivas e no consegue nunca
fazer cumprir suas promessas:
So quatro pedras cuidadosamente polidas, retiradas de um curso dgua.
Quando aparecem na cesta de ossinhos, elas descobrem as pragas rogadas contra pessoas
que tm o hbito de nunca cumprir suas promessas, de infringir os comandos e as regras
que lhe so impostas e de sempre contrair dvidas. Quando estas pedras aparecem na cesta
de ossinhos, a pessoa visada intimada a realizar incessantemente todos os seus
compromissos, sem o que ela morrer rapidamente. Musenene uma pea interessante na
cesta, visto que, parte dos objetos de importao europia, a nica pea proveniente
do reino mineral4.
Com o nome de nkumbilu (a pedra da cachoeira), Turner explica esta pea
simblica pela etimologia; a pedra escorregaida conotaria a astcia do feiticeiro para
esconder do adivinho a exata interpretao dos acontecimentos:

1
Delachaux, 1946, p. 54.
2
Delachaux, 1946, p. 54.
3
Ver item 2.3.6.
4
Hauenstein, 1961, p. 150.
280

O kaponya representa o mal-entendimento do assunto (museneni, originado de


ku-senena, ser escorregadio). Se nkumbilu aparece borda com uma srie de diferentes
tuponya, ele diz: h mal-entendido ou confuso aqui museneni veio de um
feiticeiro ou bruxo. O feiticeiro pode ter dado a alguns dos consultantes o medicamento
museneni para tornar difcil para o adivinho interpretar corretamente1.
De acordo com o adivinho Riasendala, musenene um remdio poderoso e bem
escondido pelo nganga, e que o impede de ser descoberto; de acordo com esse adivinho,
o feiticeiro que possuir musenene no ser descoberto nunca pelos adivinhos.
As informaes de Milheiros2 e de Santos3 vo exatamente na mesma direo.
Musenene seria um smbolo da imunidade de alguns feiticeiros que sempre escapam s
anlises do adivinho.
Para M. L. Bastin, musenene significa um poder secreto que ultrapassa a fora dos
encantos habituais:
... aparecendo borda do cesto (o seixo) significa: os encantos no podem ser
pegos eles escorregam por causa do poder do feiticeiro4.
O papel do feiticeiro seria ainda subjacente na explicao de L. Tucker, de acordo
com a qual a pedra simbolizaria uma doena progressiva que consome pouco a pouco a
vtima:
Oseko: uma pedra desgastada pela gua. Esta pea significa que o paciente est
sofrendo uma dor depois da outra; o corpo est sendo desgastado pouco a pouco, todo
dia. O ochimbanda massageia o paciente e arranca um oseko, que estava causando o
problema5.

2.6 - Concluso

O contedo do cesto divinatrio comporta peas as mais diversas, de origens


variadas, cuja escolha parece arbitrria. A maioria das estatuetas antropomorfas no so
mais que a representao miniaturizada (seu tamanho varia entre cinco e dez centmetros)
das diferentes mahamba s quais os Cokwe rendem culto. Mas h tambm as que
reproduzem os esteretipos da vida social, como a chorona (katwambimbi) por exemplo.
Dentre as estatuetas antropomorfas, algumas so obra de escultures
especializados; outras, provavelmente a grande maioria, representam um tipo de arte
bastante rude, de inspirao cultural, que os Cokwe desenvolveram em relao aos
espritos mahamba e as foras malficas wanga.
Quando os adivinhos encomendam as estatuetas a um especialista, estas
apresentam traos evidentes do estilo do mestre-escultor, que os adivinhos por vezes
sabem explicar muito bem. Este grupo de estatuetas, que temos a tendncia de classificar
como estatuetas de qualidade, minoritrio nos cestos; a maioria das estatuetas so
rudes; elas so feitas seja pelo prprio adivinho, seja por um especialista do culto; s

1
Turner, 1961, p. 70.
2
Milheiros, 1960, p. 110.
3
Santos, 1960, p. 169.
4
Bastin, 1961, p. 77.
5
Tucker, 1940, p. 196.
281

vezes, o adivinho mestre-iniciador (tata wa ngombo) quem faz a maioria das estatuetas
para o cesto de seu discpulo (mwana wa ngombo).
No que concerne ao grupo das estatuetas manufaturadas no-antropomorfas, no
h necessidade de recorrer a um especialista escultor; h sempre algum dentre os
conhecidos do adivinho capaz de fazer essas miniaturas. A maior parte desses smbolos
so inspirados tambm pela vida cultural; com efeito, alguns representam miniaturas de
diferentes objetos utilizados nas danas (a enxada, a piroga, etc.); outros tratam das
diferentes atividades da vida dos Cokwe, principalmente a caa, o exerccio do poder, a
preparao dos alimentos, etc.
Os tuphele de origem animal so sempre muito numerosos; com freqncia
encontra-se no mesmo cesto vrios exemplares do mesmo smbolo: so as lembranas
do caador; cascos ou unhas de animais abatidos guardados no cesto como prova (ou
lembrana) do sucesso na caada aps a consulta ao ngombo.
A maioria dos restos de origem animal presentes no cesto so smbolos
divinatrios; mas h tambm os que so s remdios (yitumbo); outros constituem os
phelo (elementos que acompanham os remdios). Em compensao, dentre os numerosos
objetos de origem vegetal, os yitumbo so freqentemente mais numerosos que os
smbolos divinatrios, alm do que tambm h restos de origem vegetal cujo papel de
acompanhar os remdios para estimular sua ao (luphelo).
A frica Central apresenta um conjunto bastante vasto de processos mgico-
religiosos que utilizam elementos naturais ou fabricados. A simples enumerao dos
diferentes elementos e sua comparao nos permitiria provavelmente definir as grandes
linhas de um universo mgico-religioso por detrs de algumas contingncias culturais e
geogrficas. O inventrio de todos os objetos mgico-religiosos que constituem os
apetrechos dos adivinhos, bem como a lista dos ingredientes que entram na confeco de
um fetiche seriam elementos fundamentais para pr em relevo a antiga cultura bantu
todo dia posta em evidncia pelo progresso de ordem lingstica.
A prpria natureza dos objetos utilizados nas diferentes tcnicas divinatrias nos
permite descobrir desde j um fio condutor, nem sempre facilmente reparvel, em muitas
tcnicas divinatrias da frica Central e alm dela.
No caso do cesto divinatrio dos Cokwe, em particular a anlise de seu
contedo e a dinmica de seu funcionamento, por alm das fronteiras da etnia, que nos
permitem avanar no estudo da organizao semntica do ritual, o verdadeiro ponto de
apoio de todo jogo livre dos tuphele.
este aspecto fundamental da inspirao ritual desta tcnica divinatria que
preciso analisar agora para compreender como, num sistema aberto como o dos tuphele,
o arbitrrio permanece nos limites estritos da inspirao ritual. Se a natureza da matria
divinatria aparece... como o meio-termo ou o intermedirio entre o adivinho e a
realidade porque os objetos utilizados formam um conjunto coerente desde a iniciao
do adivinho; eles sero sempre a expresso simblica da realidade vivida pelo adivinho.
Com a iniciao, o adivinho torna-se o nico detentor autorizado, no somente para
desvendar as mensagens, como tambm para suscitar outras e mesmo (o que acontece
muito raramente) para alargar o estoque dos elementos do cdigo. O poder do adivinho
portanto redobrado, mas o lugar do adivinho na sociedade importante demais para que
ele possa na prtica utilizar esse poder sem se importar com os resultados.
282

Na verdade, a coerncia dos tuphele e o prestgio do praticante do ngombo


provm do contato com os mortos incorporados sociedade, e isto vem do fato de que
o adivinho possudo por uma hamba. A anlise do raciocnio simblico do adivinho
requer pois em primeiro lugar um olhar mais prolongado sobre a significao das
mahamba, dentre as quais preciso reconhecer Ngombo, a hamba que faz os tuphele
mexerem no cesto.

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