Quinze de Novembro - E-Book

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Quinze de Novembro

Fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1940-1955)
Apoio:
Fapergs
Programa de Ps-Graduao da Universidade de Passo Fundo (UPF)

Produo:
LAMOI Laboratrio de Memria Oral e Imagem PPGH/UPF
NEMEC Ncleo de Estudos de Memria e Cultura PPGH/UPF
Marlise Regina Meyrer
(Organizadora)

Quinze de Novembro
Fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1940-1955)

E-book

OI OS
EDITORA

2016
Dos autores 2016
[email protected]

Editorao: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Montagem ilustrao da capa: Fabiana Beltrami da Silva
Imagem da capa: Recortes do jornal O Nacional
Reproduo de tela de Ruth Schneider. Cedida gentilmente pelo
Museu de Artes Visuais Ruth Schneider Passo Fundo/RS
Reviso: Rui Bender
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Conselho Editorial (Editora Oikos):


Antonio Sidekum (Ed.N.H.)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (Unisinos)
Elcio Cecchetti (SED/SC e GPEAD/FURB)
Eunice S. Nodari (UFSC)
Haroldo Reimer (UEG)
Ivoni R. Reimer (PUC Gois)
Joo Biehl (Princeton University)
Lus H. Dreher (UFJF)
Luiz Incio Gaiger (Unisinos)
Marluza M. Harres (Unisinos)
Martin N. Dreher (IHSL)
Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Ral Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)
Rosileny A. dos Santos Schwantes (Uninove)
Vitor Izecksohn (UFRJ)
Editora Oikos Ltda.
Rua Paran, 240 B. Scharlau
93121-970 So Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848 / 3568.7965
[email protected]
www.oikoseditora.com.br

Q7 Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-


1955) [recurso eletrnico]. / Organizadora: Marlise Regina Meyrer.
So Leopoldo: Oikos, 2016.
140p.; il.; 16 x 23cm.; E-book
ISBN 978-85-7843-651-3
1. Histria Passo Fundo. 2. Histria cultural Passo Fundo. 3. Rua
Quinze de Novembro Passo Fundo. 4. Memria oral. I. Meyrer, Marlise
Regina.
CDU 981.652
Catalogao na publicao: Bibliotecria Eliete Mari Doncato Brasil CRB 10/1184
Agradecimentos

Agradecemos queles que, de bom grado,


contaram as suas memrias e ajudaram a escrever
as histrias da rua Quinze de Novembro

Anielo DArenzo
Antonio Augusto Meirelles Duarte
Carmen Ribeiro
Enes Troglio
Ftima Lemes
Jaime Freitag
Maria Teresa Hahisi
Maria Teresa de Dreher
Paulo Giongo
Paulo Monteiro
Vilson Novelo
Wilson Nascimento Pinheiro
Sumrio

Introduo ........................................................................................... 9
Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1940-1955) .................................................................... 14
Marlise Regina Meyrer
Dinmicas econmicas de Passo Fundo na primeira metade
do sculo XX. Alguns apontamentos ................................................... 37
Joo Carlos Tedesco
Ruth Schneider e as janelas do Cassino: o dilema de olhar e ser olhado .. 52
Aline do Carmo
Jacqueline Ahlert
A zona do meretrcio na imprensa: jornal O Nacional (1949-1955) ........ 70
Bruna Telassim Baggio
Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma ... 92
Fabiana Beltrami da Silva
Resenha: Prazer Marginal e Poltica Alternativa:
a zona do meretrcio em Passo Fundo (1939-1945) ............................ 113
Luciane Maldaner

Glossrio:
Histria e fotografia .......................................................................... 118
Carolina Martins Etcheverry
Histria e imagem ............................................................................ 120
Jacqueline Ahlert
Histria Oral .................................................................................... 125
Marlise Regina Meyrer
Identidade ........................................................................................ 129
Rosane Marcia Neumann
Memria .......................................................................................... 134
Joo Carlos Tedesco
Zona do meretrcio ........................................................................... 138
Daniel Luciano Gevehr
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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Introduo

Este livro compe a srie intitulada Cadernos do LAMOI: histria, me-


mria e imagens de Passo Fundo, produto do projeto-pesquisa Laboratrio de
Memria Oral e Imagem (LAMOI-UPF), vinculado ao curso de Gradua-
o em Histria e ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Univer-
sidade de Passo Fundo, financiado pela FAPERGS.
Foi somente nas ltimas dcadas que a historiografia sofreu mudan-
as mais significativas no que diz respeito valorizao das diferentes lin-
guagens, que, por sua vez, se expressam em diversos suportes/fontes da
pesquisa histrica. Esse movimento tem possibilitado o desenvolvimento
de abordagens terico-metodolgicas inovadoras, que ampliam o entendi-
mento sobre as dinmicas scio-histricas, rompendo definitivamente com
uma viso homognea e absoluta dos fenmenos histricos.
Nessa trajetria, a emergncia e a consolidao da Histria Cultural,
ou Nova Histria Cultural, que atualmente concentra a maioria das produ-
es historiogrficas, contriburam para a ampliao das possiblidades me-
todolgicas medida que expandiu o campo da Histria num dilogo pro-
fcuo com outras reas do conhecimento, como a Antropologia, a Sociolo-
gia, a Filosofia, a Lingustica, o campo das Artes, entre outros. Novos con-
ceitos, como o de representao e imaginrio social, bem como a ateno
aos aspectos simblicos das relaes sociais abriram caminho para a explo-
rao de diversificadas linguagens nos processos de construo do conheci-
mento histrico, o que tem permitido acessar diferentes discursos e repre-
sentaes sociais, que, por sua vez, revelam sujeitos com distintas prticas e
vises de mundo.
Essas consideraes fundamentam a proposta do LAMOI, que tem
como finalidade o desenvolvimento de pesquisas a partir da organizao
das memrias oral, visual, audiovisual e escrita da regio norte do Rio Gran-
de do Sul, regio de abrangncia da UPF, tendo como problemtica funda-
mental a questo da memria, horizonte esse que se liga ao conceito de iden-

9
Introduo

tidade, pois as memrias produzidas historicamente pelos diferentes gru-


pos (sociais, tnicos e de gnero) construram representaes de identidade
que podem ser acessadas a partir de fontes diversas e passam a ser entendi-
das como registros das experincias humanas ao longo do tempo e que, na
ao de rememorar, unem passado e presente num processo de manuten-
o e reforo dos laos identitrios dos grupos.
A criao do LAMOI fruto da experincia de pesquisa em mbito
local e regional desenvolvida pelos pesquisadores do programa de ps-gra-
duao em Histria, tanto professores como mestrandos. A riqueza da di-
versidade cultural das diferentes comunidades da regio revelou a necessi-
dade de um levantamento histrico mais amplo, especialmente a partir das
histrias de vida de seus atores. Ao mesmo tempo, foi identificada a exis-
tncia fragmentada de registros escritos, orais e imagticos dessas mem-
rias, seja por meio de histrias de instituies oficiais, de lazer, religiosas,
de ensino, das famlias, fotografias e outros objetos.
Entre as fontes privilegiadas pelas pesquisas ligadas ao LAMOI es-
to as fotografias e os depoimentos orais, ambos considerados fontes de
memria. A fotografia entendida enquanto narrativa coletiva do grupo
num processo de (re)construo da memria. Parte-se do entendimento de
que olhar uma fotografia um rito de manuteno da memria, sendo um
poderoso instrumento de afirmao, reelaborao e difuso de valores, cren-
as, tradio e modos de vida do grupo. J a fonte oral tem como uma de
suas virtudes dar voz aos sujeitos at ento negligenciados pela historiogra-
fia. As histrias de vida acabam por criar uma identidade entre as pessoas
na medida em que as mesmas partilham diferentes estratgias e saberes
diante de uma mesma realidade, conformando o que Maurice Halbwachs
define como memria coletiva.
O trabalho de registro, organizao e divulgao dessas memrias,
que de uma forma singela encontram-se, em parte, neste livro, tem como
objetivo a mudana social, promovendo novas formas de encarar o patri-
mnio material e imaterial, constitudo por esses registros. Deve servir tam-
bm de incentivo valorizao da memria social por meio de iniciativas
de recuperao da memria num processo de dilogo e interao com dife-
rentes grupos, os quais elegem os aspectos do passado que queiram reme-
morar, conforme seus interesses e processos identitrios, fortalecendo os

10
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

laos entre os indivduos das comunidades e entre as comunidades, cum-


prindo, assim, a funo social da Universidade.
Esta edio dos Cadernos do LAMOI rene textos de pesquisadores
de diferentes reas do conhecimento que se debruaram sobre o estudo de
um espao especfico da cidade de Passo Fundo/RS: a rua Quinze de No-
vembro. O local abrigava estabelecimentos e prticas entendidas como
marginais na sociedade passo-fundense da poca. Na cidade de Passo Fun-
do, observa-se a permanncia desse espao no imaginrio da cidade como
um submundo, um local proibido do qual se fala muito. Nesse sentido, a
rua Quinze e seu entorno podem ser entendidos como lugar de memria,
reconhecido pela comunidade enquanto parte da memria da cidade, inde-
pendente da conotao positiva ou negativa que carrega. Como a memria
feita de lembranas e esquecimentos, uma memria que alguns querem
esquecer e outros rememorar.
Adequando-se proposta do LAMOI, os textos aqui apresentados
so frutos de estudos que exploram a leitura de diferentes linguagens e/ou
formas de fazer e pensar a Histria. Fotografia, imprensa, caricatura, pin-
tura, oralidade e textos literrios so consideradas possibilidades de leitura
e interpretao do mundo social em uma perspectiva histrica.
Buscamos explorar a diversidade de linguagens no somente na ca-
racterizao das fontes, mas tambm na produo dos resultados da pes-
quisa. Assim, este livro o produto textual da pesquisa sobre a rua Quinze
de Novembro. Alm desse, produzimos um pequeno documentrio sobre o
tema e um programa de rdio com trechos das entrevistas feitas para o
estudo.
Metodologicamente gravamos, em vdeo, dez entrevistas com pessoas
que tiveram alguma relao histrica com a rua Quinze de Novembro, com
perguntas abertas. As entrevistas foram transcritas e arquivadas, constituin-
do-se em acervo de fontes para esta e outras pesquisas futuras. As imagens
foram editadas e transformadas em um documentrio. Desse material fo-
ram selecionados pequenos trechos de udio e editados em MP3, resultan-
do no programa de rdio: A escuta da memria, Passo Fundo e suas histrias,
veiculado pela rdio UPF. Dessa forma, a pesquisa sobre histria da Quin-
ze de Novembro pde ser divulgada na linguagem de udio, vdeo e escrita.

11
Introduo

Entendemos que escrever Histria tratar da complexidade humana


no tempo e no espao. Como j afirmava Marc Bloch no incio do sculo
passado, uma grande iluso imaginar que a cada problema histrico cor-
responde um tipo nico de documentos, especfico para tal emprego. O
historiador, no deveria, portanto, esperar a luz a no ser dos raios conver-
gentes de testemunhos muito diversos em sua natureza (BLOCH, 2001, p.
80). Ele entendia que os fatos humanos eram extremamente complexos,
sendo que [...] poucas cincias [...] so obrigadas a usar, simultaneamente,
tantas ferramentas distintas [...] (p. 80). Precursor de seu tempo, as trans-
formaes na produo historiogrfica anunciadas por Bloch so testemu-
nhos do longo percurso trilhado pelos historiadores no processo de mudan-
a do fazer historiogrfico. Nesse sentido, os textos aqui apresentados pre-
tendem, de forma modesta, integrar esse processo de renovao.
O primeiro texto, de Marlise Regina Meyrer, estuda o espao da
Quinze de Novembro a partir da memria oral de antigos moradores e/ou
frequentadores da rua. A autora fundamenta seu estudo na categoria esta-
belecidos e outsiders de Norbert Elias, entendendo o local como um espao
de fronteira.
O segundo texto, de autoria de Joo Carlos Tedesco, objetiva traar
um panorama do desenvolvimento econmico de Passo Fundo em meados
do sculo XX, recorte temporal e espacial do objeto de estudo deste livro,
contextualizando a temtica estudada.
Jacqueline Ahlert e Aline do Carmo escrevem o terceiro artigo, que
apresenta a pesquisa sobre a artista plstica Ruth Schneider e sua obra Da
Janela n 13, da srie O Cassino da Maroca. As autoras buscam uma aproxi-
mao com os personagens e cenrios representados no quadro, dialogan-
do com as histrias do Cassino da Maroca nas dcadas de 1940 e 1950.
Fabiana Beltrami apresenta o prximo trabalho, que trata da mem-
ria fotogrfica da cidade de Passo Fundo nos anos 1940 e 1950. A autora
discute o esquecimento da rua nas imagens construdas pela cidade como
componente da memria daquele espao.
A representao da rua Quinze de Novembro no jornal O Nacional,
de Passo Fundo, o tema do artigo de Bruna Baggio, que discute tambm a
campanha empreendida por esse veculo para a retirada da zona do mere-
trcio do centro da cidade.

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Por fim, Luciane Maldaner resenha a dissertao de mestrado de


Mrcia Nascimento, nico trabalho acadmico produzido sobre a rua Quin-
ze de Novembro e o Cassino da Maroca.
Escritos por autores qualificados de diferentes instituies, publica-
mos, no final, um pequeno glossrio com os conceitos fundamentais para
melhor compreenso dos trabalhos aqui apresentados.
Esperamos que esta obra seja de grande valia para pensar e discutir
sobre os processos histricos do municpio de Passo Fundo, bem como de
sua relao com o contexto nacional. Ao mesmo tempo, espera-se desper-
tar o interesse pela histria e identidade locais no s para que essas hist-
rias sejam conhecidas, mas para que obtenham o reconhecimento da co-
munidade.
Marlise Regina Meyrer

13
Quinze de Novembro fronteiras da
(in)tolerncia: Passo Fundo (1940-1955)

Marlise Regina Meyrer1

Introduo
Fundamentado na metodologia da Histria Oral2, o artigo apresenta
a pesquisa realizada sobre o espao ocupado pela rua Quinze de Novembro
e seu entorno na cidade de Passo Fundo/RS nas dcadas de 1940 e 1950.
Utilizamos a categoria de anlise de Elias (2000) sobre as relaes entre
estabelecidos e outsiders, entendendo o espao estudado como outsider na me-
dida em que ele estava margem da sociedade reconhecida como legal
cujas aes dos sujeitos desenvolviam-se dentro das regras jurdica e social-
mente estabelecidas, sobre as quais foram construdos estigmas que atua-
vam como demarcadores sociais. Nesse sentido, era um espao de fronteira
entre o mundo legal e o ilegal, mas tambm um lugar onde as fronteiras
sociais eram frequentemente transpostas num determinado equilbrio ins-
tvel entre tolerncia e intolerncia.

1
Professora do Programa de Ps Graduao em Histria da Universidade de Passo Fundo/RS.
2
Estamos cientes dos questionamentos que envolvem a histria oral, especialmente no que diz
respeito sua carga de subjetividade. Os relatos, assim, so analisados luz de referncias
bibliogrficas sobre o contexto em questo, pois concordamos com Janoti (2010) quando ela
aponta para a necessidade de recorrer a fontes mltiplas, lembrando que o testemunho do
depoente no apenas um relato do que viu e ouviu, mas uma construo de um determinado
discurso sobre o fato. Alm disso, a autora chama a ateno para a necessidade metodolgica
de levar em considerao os objetivos do entrevistador, nesse caso o historiador, que domina
todo um aparato terico que orienta a entrevista e ir influenciar a construo do discurso. A
utilizao dessa metodologia aqui liga-se diretamente questo da memria. Interessa-nos a
elaborao da memria coletiva do grupo, que fundamenta sua identidade. Nesse sentido, o
conjunto de depoimentos e seus significados entendido na medida em que se refere mesma
realidade, ou seja, uma realidade comungada por todo o grupo social, adquirindo dessa forma
um significado coletivo.

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A rua Quinze de Novembro


A rua Quinze de Novembro em Passo Fundo-RS concentrou, ao lon-
go dos anos 1940 e 1950, uma srie de estabelecimentos voltados para ativi-
dades e prticas consideradas marginais pela sociedade tradicional da cida-
de. Dancings, cassinos, bares e penses que alugavam quartos para a prtica
da prostituio compunham o cenrio do local, que tambm era um espao
de sociabilidade, onde parte da elite masculina fechava negcios e fazia
poltica. Um desses estabelecimentos sobressaiu-se, ganhando fama nacio-
nal: o Cassino da Maroca ou Cassino Palcio.
O Cassino recebia a elite local, visitantes de fora da cidade e mesmo
do estado. Era considerado inacessvel para a maioria da populao. Mu-
lheres bem vestidas, vindas dos pases vizinhos, como Uruguai e Argenti-
na, orquestras e mesas regadas a champanhe fazem parte do imaginrio da
cidade sobre o Cassino. Imaginrio esse retratado na obra da artista plsti-
ca Ruth Schneider3 a partir das memrias de seu padrasto, motorista de
txi no local poca.
Os anos ureos da movimentao da rua Quinze foram os da dcada
de 1940 at meados de 1950. Em 1955, com a proximidade das comemora-
es do centenrio da cidade, alguns membros da sociedade de Passo Fun-
do, com apoio das autoridades locais, promoveram atravs do jornal O Na-
cional uma intensa campanha para a retirada da zona do meretrcio daquele
local, que ficava praticamente no centro da cidade.4
A rua ficava prxima estao de trem. Segundo depoimentos orais,
a cidade recebia muitos viajantes, entre os quais os caxeiros-viajantes, que
desembarcavam na estao e iam direto para a Quinze, onde j eram co-
nhecidos. Por concentrar a zona do meretrcio da cidade, o local alimentou

3
Ruth Schneider foi uma artista plstica, natural da cidade de Passo Fundo, cujos trabalhos
ganharam expresso nacional. Entre suas obras destaca-se a coleo que retrata cenas das
memrias de sua infncia, entre as quais a srie sobre o Cassino da Maroca, que lhe eram
contadas por seu padrasto. Atualmente, parte de suas obras pode ser conhecida no museu que
leva o seu nome na cidade de Passo Fundo: o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider em Passo
Fundo/RS.
4
Segundo depoimentos de antigos moradores, a rua inicialmente no ficava no centro, mas
muito prxima do centro. Com a intensificao do desenvolvimento urbano na dcada de 1950,
ela passou a ser considerada parte da regio central da cidade.

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MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

sentimentos, manifestaes e aes da populao. Lugar maldito para al-


guns, de prazer para outros, a rua compe o imaginrio da cidade e pode
ser considerada um lugar de memria do municpio.
Na acepo de Nora (1993, p. 25), a memria pendura-se em lugares
como a histria em acontecimentos. Nesse jogo de relaes, trata-se de espa-
os socialmente construdos, constituindo-se por mecanismos daquilo que
Halbwachs (2004) chamou de processo de perpetuao da memria, visto
que os lugares de memria atuam na construo da memria coletiva, sendo
que os lugares que percorremos nos lembram de fatos do passado, contri-
buindo para a construo da memria medida que evocam o passado.
J Pollack (1989) analisa os lugares de memria enquanto espaos de pre-
servao de memria, que passam a ser reconhecidos por suas comunida-
des.
Entretanto a instituio desse espao como um lugar de memria no
est livre de disputas. Disputas entre o que se quer lembrar e o que se quer
esquecer, disputas sobretudo pelo reconhecimento da legitimidade do que
memorvel no municpio. A memria legtima, entretanto, associa-se,
muitas vezes, aos abusos do uso da memria, resultantes da manipula-
o da memria e do esquecimento pelos detentores do poder (RICOEUR,
2007, p. 93). O autor refere-se memria instrumentalizada para falar
desses abusos e relaciona-os com a problemtica da identidade.
O cerne do problema a mobilizao da memria a servio da busca, da
demanda, da reivindicao de identidade. Entre as derivaes que dele re-
sultam, conhecemos alguns sintomas inquietantes: excesso de memria, em
tal regio do mundo, portanto, abuso de memria insuficincia de mem-
ria, em outra, portanto, abuso de esquecimento. [...] na problemtica da
identidade que se deve agora buscar a causa de fragilidade da memria as-
sim manipulada (p. 94).

Uma das causas da fragilidade da identidade apontada por Ricoeur


(2007) a ameaa representada pelo outro, quando esse se torna um peri-
go. So mesmo as humilhaes, os ataques reais ou imaginrios auto-
estima, sob os golpes da alteridade mal tolerada, que fazem a relao que
o mesmo mantm com o outro mudar da acolhida rejeio, excluso
(p. 95).
As discusses sobre o tombamento do prdio onde se situava o Cassi-
no da Maroca, smbolo da boemia e da diverso das noites de Passo Fun-

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

do (ROHRIG, 2016), evidenciam essa disputa pela memria, envolvendo


a construo da identidade dos passo-fundenses.
Uma ao do Ministrio Pblico sobre o tombamento do prdio do
antigo Cassino da Maroca na rua Quinze de Novembro permanece aberta
desde 2007. Depois de ter sido julgada improcedente pelo Judicirio em
Passo Fundo e pelo Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, o promotor
recorreu das decises junto ao Superior Tribunal de Justia (STJ). O pr-
dio, alm do Cassino, sediou posteriormente o Departamento de Ordem
Poltica e Social (DOPS), uma delegacia e um sindicato. O prdio, um so-
brado, foi construdo no final dos anos 1930 e inaugurado em 1941, proje-
tado pelo construtor civil Joo de Csaro a pedido de Isaltina Rodrigues,
conhecida como Maroca. Segundo matria publicada no jornal Zero Hora,
de 20/09/2013, de uma lista de prdios a serem patrimonializados, organi-
zada pela Universidade de Passo Fundo, somente a edificao do antigo
Cassino no se tornou patrimnio.
Adquirido por dois empresrios em 2010, o prdio foi reformado e,
embora os proprietrios se tenham comprometido com a manuteno da
fachada original, constata-se sua descaracterizao. Em depoimento para o
jornal O Nacional (10/11/2010), um dos compradores, Igor Loss da Silva,
explicou os motivos da Justia no ter aprovado o tombamento at aquele
momento: [] a Justia considerou que no foi determinado o valor his-
trico do imvel por ter sido uma casa de prostituio []. A reportagem
diz ainda que o sobrado no considerado legalmente um imvel histrico
para a cidade.

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MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

Figura 01: Prdio do antigo Cassino da Maroca antes da reforma realizada


em 2010

Disponvel em: <http://ahr.upf.br/index.php?option=com_content&task=view&id=75&


Itemid=44>. Acesso em: 20 out. 2016.

Figura 02: Prdio do antigo Cassino da Maroca aps reforma em 2010

Disponvel em: <https://nexjor.atavist.com/nos-embalos-do-cassino-da-maroca>. Aces-


so em: 20 out. 2016.

18
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A negao da memria ou a promoo do esquecimento desse espa-


o, mais especificamente do prdio em questo, caracteriza que Ricoeur
(2007) chama de abusos da memria, que so tambm abusos do esque-
cimento, exercidos por meio da narrativa oficial. Assim, entendemos que
os representantes do Ministrio Pblico de Passo Fundo, autoridades, em-
presrios e representantes de um grupo especfico buscam desqualificar o
carter histrico do local. Nesse mesmo sentido, em livro que se prope a
apresentar as mulheres memorveis de Passo Fundo, uma delas assim
apresentada:
[...] Trabalhou na Delegacia de Educao de Passo Fundo, sob a direo da
professora Olga Caetano Dias, na poca em que o prdio ficava onde antiga-
mente funcionara o Cassino da Maroca. Dona Ida irritou-se por muito tem-
po com esse endereo, porque era comum as pessoas informarem onde fica-
va a Delegacia de Ensino dizendo fica l no Cassino da Maroca. Escreveu
uma carta ao governador Ildo Meneghetti reclamando da situao, e ele
providenciou a transferncia do local (SILVA; COSTAMILAN, 2001, p. 112).

A citao acima refora o entendimento desse espao como lugar de


memria, reconhecido pela populao, a tal ponto de constituir-se em refe-
rncia para a localizao espacial na cidade. Ele faz parte do recordar em
conjunto da populao, ou seja, constitui a memria coletiva local. Dessa
forma, o sobrado da rua Quinze de Novembro, embora tenha servido a
outras finalidades aps o trmino das atividades de lazer e entretenimento
para o qual foi construdo, permanence indissociado da memria do Cassi-
no da Maroca. Por isso a delegacia precisou mudar de localidade, porque
no foi possvel apagar a memria do lugar.
Mais uma vez, Ricoeur (2007) que nos orienta quando afirma: []
as coisas lembradas so intrinsecamente associadas a lugares. E no
por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lu-
gar (p. 57). O autor lembra-nos, ainda, do potencial de monumento e do-
cumento dos lugares, que possui maior permanncia do que a lembrana
somente pela voz.
As disputas entre o memorvel e o imemorvel em relao rua Quin-
ze de Novembro leva-nos a consider-la um espao de fronteiras, fronteiras
da (in)tolerncia. As narrativas sobre a rua expressam essa fronteira, que se
pode considerar ideolgica na medida em que a funo seletiva da narra-
tiva que oferece manipulao a oportunidade e os meios de uma estrat-

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MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

gia engenhosa que consiste, de sada, numa estratgia do esquecimento tan-


to quanto da rememorao (RICOEUR, 2007, p. 98).
A rua Quinze de Novembro na cidade de Passo Fundo pode ser estu-
dada a partir do conceito de uma relao entre estabelecidos outsiders, con-
forme Elias (2000), na medida em que era considerada como o espao do
outro, dos excludos da sociedade formal. Seria o que Elias (2000) definiu
como um grupo considerado inferior diante de outro que detm o monop-
lio do poder e o estigmatiza. Para o autor, entre os estigmas impostos aos
outsiders est a viso do grupo estabelecido de que eles so indignos de
confiana, indisciplinados e desordeiros (p. 27).
Esse conceito, segundo o autor, pode ser utilizado para o entendi-
mento de muitos contextos sociais para identificar como se constroem as
diferenas entre os grupos, sejam elas sociais, tnicas, de gnero, entre ou-
tras. No caso da Quinze de Novembro, buscamos identificar, atravs dos
depoimentos orais e da memria jornalstica, os elementos que separam
esse espao e seus ocupantes da sociedade formal de Passo Fundo. Enten-
der de que forma os atributos negativos sobre a rua e os positivos sobre a
sociedade formal/legal vo sendo construdos e reconhecidos como natu-
rais. Para Elias (2007), isso s possvel devido ao desequilbrio de poder
existente entre os grupos: um grupo s pode estigmatizar o outro com
eficcia quando est bem instalado em posies de poder das quais o grupo
estigmatizado excludo (p. 23).
Um grupo outsider visto comumente pelos estabelecidos como no
cumpridor das regras e por no respeitar os tabus da sociedade formal, co-
locando em risco a estabilidade dessa sociedade. Por outro lado, os inseri-
dos no grupo dominante precisam constantemente estar atentos ao cumpri-
mento de tais regras para permanecer como membros do grupo. Nesse sen-
tido, o contato com os outsiders pressupe um rgido controle sobre as fron-
teiras entre os grupos. Dito de outra forma, at que ponto e em que situa-
es possvel ultrapass-las sem comprometer o vnculo com o grupo do-
minante?
As narrativas dos entrevistados sobre a rua evidenciam essa situao
de fronteira entre o lcito e o ilcito, o tolerado e o intolerado, a ordem e a
desordem. A primeira situao-limite observada refere-se identificao
da rua ora como espao marginal, ora como local de ostentao e luxo,

20
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

representado principalmente pelo Cassino da Maroca. A memria dos fre-


quentadores, homens, retm, de um lado, as lembranas de uma boemia
glamorosa e luxuosa com belas mulheres bem-vestidas, msicos estrangei-
ros, noitadas regadas a champanhes e muito dinheiro. De outro, as recorda-
es da violncia e da marginalidade daquele espao.
Em dissertao de mestrado, defendida na Universidade de Passo
Fundo em 2003, Mrcia Nascimento defende a ideia de que a rua Quinze
de Novembro era um espao alternativo, onde as regras sociais impostas na
sociedade organizada, legal, podiam ser infringidas. Desde a prtica do jogo,
proibido no Brasil a partir de 1946, s prticas sexuais e comportamentais.
Acreditamos que, ao atravessarem a fronteira espacial, ou seja, ao entrarem
na rua Quinze, os indivduos rompiam tambm outras fronteiras, culturais,
sociais e de gnero.
A partir das narrativas podemos dizer que, at incio dos anos 1950,
havia um certo equilbrio e interao necessrios entre esses dois mundos.
Os homens de bem da sociedade passo-fundense frequentavam os bordis/
cassinos da Quinze, onde socializavam tanto com seus pares frequentado-
res quanto com os outros daquele espao, onde as fronteiras no eram to
rgidas. Depois voltavam para o mundo legal e, muitas vezes, empreendiam
batalhas morais contra a zona do meretrcio frequentada e mantida por
eles, como foi o caso das campanhas deflagradas pelo principal jornal da
cidade para a retirada dos bordis do centro da cidade.
Ao tratar do imaginrio da cidade, Sandra Pesavento (2000) assinala
que, embora os grupos sociais produzam um ideal de cidade, permeado
pelos ideais de progresso e civilidade, a zona do meretrcio tem um papel
fundamental na constituio do espao urbano, pois funciona como vl-
vula de escape s normas de convvio estabelecidas na cidade legal. Tam-
bm Benatti (1996), ao tratar da zona do meretrcio de Londrina/PR, afir-
ma que as margens e o centro combinam simultaneamente estratgias de
excluso e de integrao, de recusa e de aceitao, num complexo e perma-
nente jogo de foras que definia ao mesmo tempo os estatutos sociais dos
sujeitos cntricos e dos sujeitos marginais (p. 4).
Essas consideraes encontram respaldo na ideia da zona do mere-
trcio como mal necessrio, justificativa frequente nas narrativas. Ao mes-
mo tempo vlvula de escape e marcador social entre o lcito e o ilcito, o

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MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

certo e o errado, estabelecidos e outsiders, como podemos oservar na narrati-


va do sr. Walter5:
Tinha um vereador muito polmico em Passo Fundo que defendia a Maroca
l em plena Cmara de Vereadores, e ele dizia com palavras boca cheia
que as mulheres da zona preservavam suas filhas e preservavam eles de ter
guampa, ento havia assim que a prostituio era um mal necessrio, e elas
tinham escolhido aquele caminho e deviam ser respeitadas, e ele era contra
aquele tratamento que davam, como fichar a mulher como meretriz, ele acha-
va muito pejorativo. E da tinha um outro na poca que gozava, so ajudantes
do lar, ento no final viravam um motivo de gargalhada esses comentrios.6

Encontramos no jornal O Nacional referncias a esse discurso por oca-


sio da campanha deflagrada pelo prprio jornal para a retirada da zona
daquele local:
Sou da opinio de que a prostituio um mal necessrio, como dizia Santo
Agostinho. uma das profisses mais velhas do mundo. Regulament-la
difcil [...] penso que a medida deve ser feita, levando-a para a zona mais
afastada; no se deve, entretanto, prejudicar os interesses dos proprietrios.
Dr. Eduardo Martinelli (O Nacional, 07/02/1955, p. 4).

Esses depoimentos encontram justificativa no pensamento de parte das


autoridades brasileiras do incio do sculo, que, entendendo a sua necessida-
de para aliviar a tenses libidinosas das cidades (RAGO, 1991, p. 112), insis-
tiam na regulamentao da prostituio, sobretudo atravs de medidas sani-
trias e vigilncia sobre as zonas de meretrcio. Assim, a prostituio deve-
ria ser tolerada, porm controlada e subjudada ao imprio da violncia poli-
cial (RAGO, 1991, p. 112). A prostituio preenchia ainda um papel civili-
zador (p. 168) na sociedade, pois era atravs dela que os jovens iniciavam
sua vida sexual numa espcie de ritual para a vida adulta masculina.
O Cassino da Maroca foi o mais famoso dos estabelecimentos da Quin-
ze de Novembro, mas existiam outros igualmente requisitados, como o Cas-
sino Royal. Eles surgiram num perodo de desenvolvimento econmico da
cidade de Passo Fundo na dcada de 1940 com o desenvolvimento da in-
dstria madeireira e depois com o contrabando de pneus7, realizado no

5
Todos os nomes dos entrevistados foram substitudos por nomes fictcios.
6
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 10 de dezembro de 2015.
7
Segundo diversos depoimentos orais e textos veiculados nos jornais locais, entre 1939 e 1945,
perodo da Segunda Guerra Mundial, a cidade foi uma rota importante do contrabando de
pneus brasileiros para a Argentina. Muitos cidados da cidade teriam enriquecido por conta

22
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

perodo da Segunda Guerra Mundial. Nas narrativas dos entrevistados, a


lembrana da zona do meretrcio associa-se ao desenvolvimento da cidade:
[...] a vida, e havia muito dinheiro naquela poca, do contrabando de
pneu, e da madeira que era exportada para a Argentina, o pessoal levava da-
qui a Porto Alegre de caminho, entende? Era isso mais ou menos o que tinha
na poca, e o mulherio, como dizem os caras, era de monto, e funcionavam
as casas de mulheres, e tinha o Cassino da Maroca na esquina, e a casa verde
aquela que esto mexendo, e aquilo era engraado, porque a pista no era
maior que isso aqui (referindo-se sala em que estvamos), agora o que
acontecia com o pessoal, o mulherio tomava muito champanhe naquele tem-
po, a bebida que elas tomavam era champanhe8. (Sr. Aldo)

Os testemunhos so unnimes em apontar para o luxo de tais estabe-


lecimentos que recebiam a elite local, das cidades vizinhas e at de outros
estados.
No Cassino! Sargento da Brigada no podia entrar; eles impediam; soldado
raso no entrava na zona nem pagando, S mais elevado, e comea a fun-
cionar na base do dinheiro; ento o mulherio se vestia bem, eu sei porque eu
tinha loja e vendia para elas, e a costureira delas era a dona Jurema Dinarte,
tinha no meio dessa quadra, no prdio onde tem aquela loja de confeco,
do lado da cantina Napoles, era ela que costurava para elas. Ento voc
conhecia, eu sabia quando tinha china nova na cidade; elas vinham comprar
aqui! (Sr. Aldo)9
O Cassino Palcio mandava buscar mulheres do Rio, So Paulo, Monte-
videu, Buenos Aires. Onde tivessem mulheres bonitas e que, de vida fcil ou
vida difcil e tal, que se vestiam bem, tinham personalidade, podiam chegar
e conversar com ela, dan com ela, no era semianalfabeta ou analfabeta
total, ela ento comeou a buscar. Vinha um avio, um avio de peque-
no porte de trs a cinco lugares mais ou menos, com piloto e copiloto. (Sr.
Govane)10
L no Cassino que era um palacete, construo melhor, contanto que foi a
nica construo da zona do meretrcio que sobrou as outras acabaram de-
molidas; l iam os ricos da cidade e ricos da regio. (Sr. Pedro)11

O luxo, entretanto, no tornava aquele espao integrado sociedade


tradicional passo-fundense. Essa memria da boemia elegante da cidade

desse comrcio ilegal. Ver: <https://nexjor.atavist.com/nos-embalos-do-cassino-da-maroca>.


NASCIMENTO, Mrcia (2003), p. 126-127.
8
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
9
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 15/12/2015.
10
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 15/11/2015.
11
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 20/01/2016.

23
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

no desfaz a representao de um lugar margem, espao do outro, da


anomia. Para muitos, esse era um local proibido, lugar de mistrio, sobre o
qual contavam-se muitas histrias, despertando a curiosidade e a especula-
o da populao. Era um diz que diz que que permanece at os dias atuais
na memria da populao. Maria assim sintetizou o imaginrio sobre a
rua: A Quinze de Novembro, pra mim, foi uma rua proibida12.
A fronteira a que se refere Maria, na poca uma adolescente, aquela
que separava as mulheres honestas das mulheres da vida ou as do lar e as
da rua. As primeiras foram preparadas para o pleno exerccio das tarefas do
lar, os cuidados com filhos e marido e, sobretudo, para ser responsveis
pela manuteno da moralidade da famlia. Seu espao por excelncia eram
a casa, a igreja e, em alguns casos, os sales da alta sociedade, quando
tambm eram responsveis pelo status da famlia. Sua sexualidade estava
restrita ao casamento com o objetivo de procriar. J as segundas tm sua
referncia na sexualidade mercantilizada, na sua capacidade sedutora, que
se constitui em ameaa famlia e aos bons costumes (RAGO, 1991, p.
41). Ainda Maluf e Mott (2006) afirmam que, nas primeiras dcadas do
sculo XX, a beleza era importante para a mulher casada das classes mais
altas, mas a sexualidade no, sendo que a sociedade criava estratgias para
assegurar os limites entre as mulheres honradas e a libertinagem de mu-
lheres de conduta duvidosa que desfilavam pelos teatros e cafs da cida-
de (p. 392). A fala de Maria evidencia essa situao:
[...] ela era sim uma rua mais afastada porque o centro, geralmente como
toda cidade pequena, a avenida n? Ento uma quadra que se avance n, j
se achava assim que estava invadindo um territrio promscuo, n? Era da
poca, n? []
No recomendavam e o pai principalmente ia ficar muito brabo, a me j
era mais condescendente, n. Ah mas por que que foi? Aonde que se viu
aquela coisa toda l no presta, mas o pai t loco, l s tem gente que
no presta... essas coisas, n... isso a [...]13

A necessidade de diferenciao entre as mulheres decorre, segundo


Rago (1991), da maior liberdade da mulher na sociedade moderna e seu
acesso a espaos pblicos. Foi necessrio, cada vez mais, criar demarcado-

12
Sra. Maria. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 23/11/2015.
13
Idem.

24
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

res para que honestas e perdidas no se confundisse (p. 26). A autora


afirma que era preciso que as mulheres se conscientizassem de que sua
natureza primeira era a maternidade. [...] A prostituta passou, ento, a sim-
bolizar a alteridade, a mais radial e perigosa (RAGO, 1991, p. 26) por isso
a necessidade de demarcar o espao. No outra a razo das queixas na
coluna intitulada O que o povo reclama do jornal O Nacional de Passo
Fundo: Moradores das vilas Schell e Luiza protestam contra o alastra-
mento do meretrcio para seus bairros, saindo da zona demarcada da rua
Quinze de Novembro (12/01/1949, p. 2).
A rua Quinze de Novembro com seus cassinos, dancings, bares e pen-
ses era tambm descrita pela sociedade formal como um lugar de violn-
cia e desordem, adjetivos comumente atribudos s zonas de prostituio.
A imprensa, enquanto mediadora das relaes sociais, reforava esse ima-
ginrio. No caso de Passo Fundo, o jornal O Nacional cumpria efetivamente
esse papel. Nesse sentido, Nascimento (2003) cita a seguinte reportagem
desse jornal:
[...] a rua 15 de Novembro a rua da alegria, o ponto de convergncia
obrigatria da malandragem que ali se confunde at alta madrugada. a
rua 15 de Novembro, sem dvida alguma, a de mais triste e clebre histria
de quantas existem em Passo Fundo. A est localizado o meretrcio; e todo
o mundo sabe que onde existem meretrizes existe desordem (p. 31).

O jornal O Nacional foi protagonista de uma acirrada campanha para


a retirada da zona do meretrcio da Quinze de Novembro na regio central
da cidade. Pode-se dizer que a campanha teve duas fases, sendo a primeira
em 1949 e a segunda em 1955, por ocasio da proximidade das comemora-
es do centenrio da cidade. Durante as campanhas, as frequentes notcias
sobre a violncia daquele espao ajudaram a construir a representao da
Quinze como um lugar de violncia. O jornal tambm passou a publicar
inmeras denncias sobre a rua na j citada coluna O que o povo recla-
ma. Ttulos como Tragdias na Zona do Meretrcio (13/01/55, p. 1); Nova
cena de sangue na zona (11/02/55, p. 1); Desferiu oito facadas no craneo da mu-
lher (29/03/52, p. 4); Tentativa de estupro na zona do meretrcio (23/01/51, p.
4), entre outros, so exemplos dessas divulgaes. A Quinze de Novembro
ganhava assim destaque com frequncia nas pginas policiais do referido
jornal, conforme podemos observar nas matrias abaixo:

25
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

Dia a dia vai crescendo o nmero de vadios nessa cidade, principalmente


nos bairros e na zona do meretrcio [...] (O Nacional, 11/08/1953, p. 3).
Dois arrombamentos na cidade. s 22 horas do mesmo dia, compareceu
delegacia o sr. Delfino Bueno dos Santos, residente rua 15 de Novembro,
comunicando que o indivduo Miguel Lopes arrombara a porta de sua resi-
dncia e tentou estuprar a menor e.s de 6 anos de idade, a qual foi logo
socorrida pelo denunciante (O Nacional, 17/08/53, p. 4).

Essa imagem da violncia tambm aparece nos relatos dos entrevis-


tados, embora essas narrativas apresentem, s vezes, aspectos contraditrios,
especialmente nas falas de antigos moradores da rua, que carregam tam-
bm a memria de seus pais, parentes e vizinhos mais antigos. Essas narra-
tivas expressam tanto a memria da experincia vivida naquele espao com
uma significativa carga emocional como aquela construda sobre o mesmo
local pelos de fora. Assim, a rua Quinze aparece ora como espao de
relativa tranquilidade, ora como de violncia. Se aplicarmos o conceito da
relao entre estabelecidos e outsiders de Elias (2000), podemos questionar o
quanto esse estigma da rua, enquanto local de violncia, foi construdo
pelos grupos dominantes da sociedade formal e assumido pelo grupo outsi-
der da Quinze na construo de sua prpria autoimagem. No queremos
afirmar com isso que no houvesse violncia no local, mas se pode questio-
nar o quanto a violncia existente no estaria relacionada, em parte, acei-
tao dessa autoimagem negativa.
Dois antigos moradores de rua nos anos 1950, quando j estava
em andamento a campanha para a retirada da zona da Quinze, ao serem
perguntados sobre a existncia de violncia no local, deram os seguintes
relatos:
[Era] Tranquilo. No tinha nada. Alguma encrenca dava por causa de amante
de mulher com amante e amante de outro. Seno, briga, assim por nada, no
tinha briga. A troco de nada, no tinha briga. Que nem hoje, que qualquer
coisa to se matando. Por qualquer coisinha to se matando. Que nem esse
guri que eu vi se verdade eu no sei que matou outro guri por causa de
uma janela que estava aberta. No sei se verdade isso... agora essa semana.
Naquele tempo no tinha. Por nada no brigavam. s vezes se pegavam no
cacete, se enchiam de tapa e depois saam abraados: vamos tomar um
trago. (Sr. Vitor)14

14
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.

26
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Eram tempos muito difceis; inclusive ele tinha que trabalhar armado [pai];
ele tinha dois revlveres por incrvel que parea: um ele usava na cintura e o
outro do lado do caixa, nem era caixa, era tipo umas gavetas, onde guardava
o dinheiro. Ento, na poca, quase todo mundo andava armado. Noventa
por cento da populao tinha um revlver em casa. O pai tinha dois: []
que ele dizia que era o melhor. Eu me criei vendo aquelas armas, que feliz-
mente ele nunca precisou usar. Se lidava com todo o tipo de pessoas aqui,
vinham pessoas de toda a parte do Brasil por causa do Cassino. Vinham os
bons e vinham os maus tambm n? Como tinha os bons aqui na cidade,
ento tinha que trabalhar prevenido. (Freitas)15
[] como eu disse antes, minha me dizia: as pessoas podiam caminhar na
rua, outros dizem que no, que no dava para descer aqui para baixo que era
s fuzarca e confuso; ento o que eu vou te dizer? Eu no sei, no frequen-
tei essa poca, no vivi, estou contando o que minha me contava, que havia
um respeito; como ela falou isso, eu acredito. (Freitas)16

Se a zona do meretrcio marca a fronteira entre o mundo organizado


e desorganizado, no interior desse espao o controle da desordem era atri-
budo polcia do mundo externo. Os policiais, que eram, muitas vezes,
clientes das casas, acabavam sendo os principais promotores da violncia,
porque detentores de um poder de fora desigual em relao aos demais.
Na Quinze de Novembro atuava uma patrulha policial, responsvel pelo
policiamento do local. Tanto os relatos orais como as notcias no jornal O
Nacional informam sobre atos violentos cometidos pela Patrulha, desde es-
pancamentos de elementos suspeitos at a responsabilidade por algumas
mortes na zona. O caso mais destacado foi o espancamento at a morte de
um jovem de 24 anos conhecido como Herodes em 13 de maro de 1949,
que ser estudado em outro artigo do presente livro. Os relatos orais tam-
bm se referem atuao da Patrulha:
Bem, a violncia sempre existiu, principalmente nesse meio aqui, a prpria
zona. Como falei anteriormente, as pessoas noventa por cento da popula-
o andavam armadas. A patrulha era muito rigorosa, e o delegado era o
Serafim de Melo, um homem muito enrgico, impunha respeito. Ocorriam
vrios crimes e ficava por isso mesmo, no se investigava, morriam as pessoas,
se enterrava e ficava assim mesmo. O Serafim de Melo deixou histria aqui
em Passo Fundo; um homem tambm muito rigoroso, andava armado com
um revlver, uma espada. Um homem alto e forte, e as pessoas temiam mui-
to, n? Tinham medo dele: olha, vem o Serafim a! E j era o suficiente para

15
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 12/12/2015.
16
Idem.

27
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

o pessoal se mandar do local, n. E a patrulha era apoiada pelo delegado,


ento fazia o que queria. (Freitas)17

Conforme j descrito acima, a Quinze de Novembro abrigava casas


luxuosas, frequentadas pela elite masculina da cidade e outras de nvel infe-
rior, que atendiam uma diversidade social mais ampla. Entretanto todos os
estabelecimentos integravam o espectro marginal da cidade, o espao no
formal, no qual indivduos masculinos cruzavam frequentemente a fronteira
entre o lcito e o ilcito, constituindo-se num lugar que Nascimento (2003)
chamou de alternativo, onde eram permitidos excessos, negados no mundo
legal. A presena de representantes dos grupos dominantes da cidade nesse
espao demandava ainda mais a presena da polcia, cuja funo, muitas
vezes, era proteger e encobrir certas situaes e personagens. o que nos
relata o Sr. Giovane ao ser perguntado se havia brigas nos estabelecimentos:
[] Dava, mas a polcia acobertava tudo. E l embaixo, no restaurante,
tinha dois policiais fardados, pagos pelo cassino [] E depois que saiu o
cassino dali, fecharam vrias lojas de comrcio, lojas de coisas, adereos,
pequenas coisas que tu compras pra chegar em casa: mulher, fui com-
prar pra ti. Mas o cassino inegavelmente foi um diferencial em Passo Fun-
do, e essa do trem verdade isso. O trem internacional no chegava a
chegar na barca, os caras j desciam ali e iam embora pra l. Eles queriam
danar, queriam passar uma noite agradvel e trouxe negcio pra Passo
Fundo. (Giovane)18

Os relatos apenas ratificam o que ocorria em relao prostituio


no Brasil como um todo. Desde o sculo XIX, vrias medidas vinham sen-
do propostas para regulamentar a prostituio, e coube polcia um impor-
tante papel: reprimir e prevenir atos que afrontassem a moral e os bons
constumes. Entretanto, no cumprimento desse papel que lhe foi atribudo,
muitas vezes foram cometidos excessos, promovendo atos de violncia e
gerando reaes contra os policiais.
A rua tinha suas fronteiras internas, que podem ser descritas pela
distribuio geogrfica dos estabelecimentos na rua. Conforme Nascimen-
to (2003), existiam na Quinze de Novembro e seu entorno aproximada-
mente 41 casas de prostituio, desde as mais sofisticadas s mais simples.

17
Idem.
18
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/11/2015.

28
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A partir de depoimentos orais, registros da polcia e imprensa, Nascimento


(2003) elaborou um mapa da rua e adjacncias, a partir do qual podemos
extrair algumas referncias. No centro da Quinze de Novembro (prximo
rua Independncia), encontravam-se a Casa da Olvia descrita como
uma das maiores casas de prostituio da poca , a da Maria Varga, a
da Maria Preta e o Cassino Palcio. Na quadra seguinte, havia trs
casas, chamadas de Penso da Elpdia, usadas pelos frequentadores do
Cassino Royal (NASCIMENTO, 2003, p. 38). Ao lado dessas vinham as
casas da Velha Maria e a penso da Chicha. Mais adiante, funciona-
riam uma casa de travestis e, em seguida, a casa de prostituio P de
Porco e o prostbulo Toca da Ona. No final da mesma quadra estavam
a casa da Maria Italiana e a do Joani, essas de muito baixo nvel. As
diferenas hierrquicas entre esses estabelecimentos so descritas pela maio-
ria dos entrevistados com o que segue:
Ah! O p-de-porco era uma briga, a ficava mais pesado o ambiente, porque
bom mais ou menos era o Cassino, at a Independncia. Ali tinha umas
casas mais ou menos, passando da Independncia, tinha a Elpidia, a Maria
Vargas. Essas casas que tinham ali, depois subia at o Cassino, o que tinha
de bom. Mulher que se vestia bem, que se pintava bem, etc. e tal. E depois,
da esquina da General Osrio para baixo, tinha o Royal, que era meia-boca,
entende? (Aldo)19

A relao dos nomes desses estabelecimentos revela a presena ma-


joritria de mulheres como proprietrias e/ou como administradoras do
negcio. Entretanto pode-se dizer que a Quinze de Novembro era um espa-
o pblico voltado para uma clientela masculina. Na rua, eram os prazeres
masculinos que se buscava atender. Porm era tambm um espao de mani-
festao do poder feminino. As donas de casas20 mantinham a ordem e
estabeleciam as regras dos estabelecimentos e mesmo da rua. Nesses espa-
os, os homens submetiam-se s suas regras, mesmo que o fim ltimo fosse
a obteno de seu prprio prazer. A zona funcionava como um microcosmo
da sociedade masculina , porm l organizada por elas. Os relatos enfa-
tizam o empenho dessas mulheres em manter a ordem e seu poder.

19
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
20
Expresso utilizada pelos entrevistados para definir as cafetinas. Donas dos bordis que tinham
o controle sobre as prostitutas.

29
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

Por isso que diziam que passava uma menina, como eu j vi: passavam duas,
trs meninas e elas [donas das casas] saam na rua e diziam: , isso aqui
no lugar pra moas. Vocs vo l por cima, pela outra rua, porque aqui
no lugar pra vocs, no lugar pra moas. Ento, eles usavam do respei-
to. E eu vivi aqui, a no meio deles. Pra l, pra c, Dona Olvia, eu ia com-
prar coisas pra ela. A Dona Eupidia, eu ia comprar coisas pra ela. Era as-
sim. Entrava nas casas de todas, sem problema nenhum. (Vitor)21
A me sempre dizia que havia um respeito, se transitava aqui como se esti-
vesse transitando em qualquer outro lugar. Respeito que eu digo por parte
das mulheres. No ficavam ali na sacada largando piada, mexendo com as
pessoas que passavam. Se mantinham no interior de suas casas. Que a gente
s vezes v em filme ou em outros lugares, que as mulheres ficam nas janelas
chamando homem. Mas diz que aqui no. Ocorria tudo interno. As pessoas
frequentavam o Cassino, tudo bem, as outras que tinham casas que aluga-
vam quartos, mas no havia isso das mulheres estarem nas janelas chaman-
do as pessoas para frequentar o local. (Freitas)22

As cafetinas parecem, dessa forma, boas administradoras de seus


negcios, para o qual eram necessrias habilidades diplomticas no relacio-
namento com os fregueses, sutileza, absoluta discrio, informaes sobre
os homens e suas preferncias, jogo de cintura no seu relacionamento com
as pensionistas (RAGO, 1991, p. 174), sobre as quais mantinham uma
relao de controle e explorao. Diferente das outras mulheres, elas parti-
cipavam do mundo pblico dos negcios, onde se relacionavam com ho-
mens influentes, dos quais conheciam segredos ntimos (RAGO,1991, p.
176). O maior exemplo do poder exercido por essas mulheres em Passo
Fundo a fama atribuda a Maroca, identificada como Isaldina Rodrigues.
Ento ela trazia essas mulheres e ela condicionava o gerente dela, ou a ge-
rente, ou o gerente, ali do cassino, que as mulheres tinham que beber pra
fazer o par tambm beb. Mas ela impunha, veja a ideia, que elas no
podiam ficar bbadas. [] quando chegava determinado ponto, elas chega-
vam: olha, seu filho no t passando bem, senhora, to te chamando l em
casa, para ela se retirar pra no dar vexame []. Ento essa casa comeou
a se tornar famosa dessas mulheres que ela trazia da Frana, do estado de
So Paulo. Ento essas mulheres ficavam nas mesas ou chegavam na mesa,
onde tinha um ou dois rapazes sentados, pediam licena, sentavam e de cara
j perguntavam um usquezinho e ela assim e tal. Ento no tinha usque
coisa nenhuma. Tinha gua mineral ou guaran, mas o preo era cinquenta
pila, cinquenta reais a dose. Ento quer dizer, o lucro dela na realidade era

21
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
22
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 12/12/2015.

30
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

das moas bonitas, vistosas, boa aparncia e boa conversa. Elas seleciona-
vam nesse sentido, tinham um grau de cultura do mdio pra cima, ento
quer dizer, ela no era simplesmente uma prostituta. Ento l dentro era
respeitada, o cara ficava aguado e pagava a ida n? E depois chegavam l,
pagava a casa, tambm o quarto. Ento virou um negcio realmente e reali-
zou-se, ento comeou a aparecer concorrncia, n? (Giovane)23
Ento a Maroca ganhou muito daquela populao e ganhou tanto, que ela
tinha um nmero muito grande de afilhados e afilhadas, que, de acordo com
as Glostoras me comunicaram, que ela fazia questo de presentear. Dizem
que, quando chegavam as datas propcias de presentes, ela sempre tinha um
acervo de coisas de coelhinho da pscoa ou coisas natalinas para dar. [...] E
a Maroca tambm era muito religiosa; ela sempre colaborava com a festa de
So Miguel e levava as meninas junto, mesmo a contragosto de algumas
madames. (Walter)24

Nesse sentido, podemos dizer que na Quinze de Novembro as fron-


teiras entre os papis sociais tradicionalmente atribudos aos gneros femi-
nino e masculino tambm eram frequentemente ultrapassados, evidencian-
do a tolerncia da sociedade nesses espaos, pois geogrfica e socialmente
demarcados por outros critrios, ou seja, a excluso j dada a priori: em
relao s mulheres desonestas que o habitam ou sua localizao geo-
graficamente demarcada na cidade. Esses pressupostos encontram respal-
do nas teorias positivistas de Lombroso25 no incio do sculo, que conside-
ram a prostituio o lado feminino da criminalidade (RAGO, 1991, p. 146).
Estando sua sexualidade destituda do sentimento materno, considerado
natural, elas automaticamente encontravam-se no espectro da anormalida-
de. A essas mulheres era permitido o exerccio de papis negados s mulhe-
res da sociedade tradicional, pois elas no eram consideradas normais,
mas portadoras de uma loucura moral (RAGO, 1991, p. 160). Esse estig-
ma, imputado pelos grupos dominantes da sociedade patriarcal, mantinham
demarcada a fronteira entre os universos masculino e feminino nas zonas
de prostituio.

23
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/11/2015.
24
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 10/12/2015.
25
Criminologista positivista italiano do sculo XIX, cujas ideias tiveram muita influncia na
Europa e no Brasil. Associava caractersticas fsicas aos perfis mentais dos criminosos. Seus
estudos tambm foram usados para definir as prostitutas na medida em que essas eram
consideradas criminosas.

31
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

As fronteiras de gnero no se limitavam ao binarismo feminino/


masculino. Nesse espao, as fronteiras da heteronormatividade tambm
eram frequentemente atravessadas. Aqui encontramos os maiores esforos
no sentido de apagamento da memria. Se a zona era um mal necessrio para
para salvar a honra das filhas e cultivar a masculinidade, porm mantendo
sempre a distncia adequada da boa sociedade, o homossexual seria uma
ameaa ao cultivo dessa mesma masculinidade. A manuteno da fronteira
entre o masculino e o feminino aparece na figura do homossexual como
uma ameaa.
A maioria dos relatos sobre a Quinze nega, em geral, a existncia de
casas especficas e/ou de homossexuais que se prostitussem naquela zona.
Entretanto um personagem lembrado em todos os relatos: o Flores. Mas
ele , nas narrativas, uma figura isolada e estereotipada. Sua sexualidade
no aparece nas memrias, mas, sim, suas qualidades masculinas, apesar
de ..... Assim o Flores foi, por muito tempo, o gerente e o apresentador
dos shows do Cassino Palcio. Segundo relatos, ele forjava um sotaque espa-
nhol para apresentar com efeito cenogrfico os espetculos da noite. Era
tambm uma espcie de segurana do Cassino. Ex-sargento, descrito como
alto e forte, que mantinha os desordeiros e bbados afastados, usando, se
necessrio, a fora. Essas informaes podem ser extradas dos relatos dos
entrevistados, conforme abaixo:
Olha, na poca o homossexual era uma raridade. E o Flores no era o nico,
tinha mais um, como era o nome dele... mas era de categoria [sinal para
baixo]. O Flores, ele era um, o que melhor se vestia dentre todos os homens,
ganhava at do prefeito, de se trajar, naqueles trajes brancos de linho, sapato
branco, aquelas gravatas bem vistosas [] ele vinha aqui no centro e almo-
ava e todo o mundo conversava: o Flores e tal, e ele fazia questo de
cumprimentar um vereador, cumprimentar um mdico, e isso e aquilo, ele se
dava muito valor, mesmo sendo homossexual, no caso n, ele se dava muito
valor e ele no andava escondido porque era um escndalo na poca, Deus o
livre! No, ele andava aberto e tornou-se to famoso como a prpria rua
Quinze []. Ele dava tambm uma de policial, assim, porque ele era
opa, o pessoal tinha um medo dele, ele era boxeador n? E quando ele via
l que tinha algum rapaz, alguma coisa, se excedendo na bebida e querendo
pegar meio forado e a mulher no aceitando tudo, ele chegava: Vem c,
sai, sossega e deixa essa mulher e p e p. Quando eles viam que era o
Flores, todo mundo se entregava. (Marcos)26

26
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 03/03/2016.

32
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

As histrias sobre o Flores, em geral, no comprometem o mundo


masculino. Alguns narradores, inclusive, relatam que o Flores auxiliava na
conquista das mulheres, servindo, muitas vezes, de isca. Essa sua funo,
declarada nos depoimentos, serve de justificativa para a livre e frequente
circulao que parece ter tido esse personagem mesmo entre a elite mascu-
lina passo-fundense, conforme visto no depoimento citado acima.
[] Eu quando ia a Porto Alegre, eu saa com ele. Ele chamava a ateno do
mulherio, era um cara, na poca, grisalho, cabelo crespo bem arrumado,
sempre na pinta. Ah, eu saa, eu no saa sem levar ele de isca, entende?
(Aldo)27
[] Eu vou falar uma coisa que eu no posso precisar, o que eu ouvi de
algum: que o Flores conseguia arrumar mulheres. Chegava l o Flores: es-
tou de olho naquela loirinha, e ele ia l conversar. No vou l conseguir. S
que depois ele conseguia que a pessoa tinha que ficar com ele, porque ele
tambm era travesti, dizem. Eu arrumo, mas... depois tu fica comigo, o
que dizem, o que me contaram. Agora uma pessoa querida, a me dizia
que muito educado, muito gentil, todo mundo queria bem ele. (Freitas)28

Mesmo durante a acirrada campanha promovida pelo O Nacional para


a retirada da zona do meretrcio da Quinze de Novembro, o Flores era citado
como um elemento pacificador e colaborador das iniciativas do poder pbli-
co local, conforme podemos observar na seguinte notcia do referido jornal:
Podemos dizer que o delegado de polcia j iniciou as dmarches nesse sen-
tido, havendo o Flores, dirigente de um dancing da zona, se comprometido a ser o
primeiro a afastar-se e envidar esforos no sentido de levar consigo os demais
interessados naquela zona (O Nacional, 16.02.1955, p. 4).

Embora, conforme dito acima, a maioria dos entrevistados diz des-


conhecer a existncia de uma casa frequentada por homossexuais e traves-
tis, o cruzamento dos depoimentos com as fontes jornalsticas indica a exis-
tncia na rua Quinze de Novembro de ao menos uma casa destinada ou
frequentada por travestis e homossexuais. o que nos informa Nascimento
(2003), que entrevistou um antigo comerciante da rua que afirma que alu-
gava uma casa para os rapazes alegres (p. 30) que se vestiam de mu-
lher. Segundo o entrevistado, a casa era ocupada por rapazes que se ves-
tiam para sair e fazer festa ou para receber amigos (p. 30).

27
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
28
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 12/12/2015.

33
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

A ameaa representada pela presena desses elementos, no entender


do grupo dos estabelecidos, pode ser atestada pelo fato da sua existncia ter
se tornado uma das justificativas para os defensores da retirada da zona do
meretrcio do centro da cidade, como podemos observar nos discursos do
jornal O Nacional:
Os dancings Popular e Guarany, situados na chamada zona do meretrcio,
vinham se sobressaindo ultimamente pelas cenas indecorosas [...] poude
comprovar a policia, imperava nos mesmos a prtica do homossexualismo,
em compartimentos superiores e especiais, constituindo fonte perene de es-
cndalos. Tratava-se de elementos vindos de Porto Alegre, diretamente a
esta cidade, que se entregavam desbragadamente prtica perversa, man-
chando negramente o bom nome da cidade. Comprovando a existncia des-
ses escndalos, o delegado de policia, sr. Joaquim Germano Melgar, deter-
minou o fechamento dos dancings Popular e Guarany [] ( O Nacional, 03/
02/1955, p. 4).
[...] no satisfeitos com a frequncia das meretrizes, mandarem vir elemen-
tos da escria porto-alegrense dados ao homossexualismo, para melhor sa-
tisfazerem aos apetites dos enfermos sexuais e tarados de toda a espcie,
transformando ditas casas em antros nauseabundos e infames. Damos, por
isso, todo o nosso apoio medida do sr. Joaquim Germano Melgar [...] (O
Nacional, 04/02/1955, p. 4).

Consideraes finais
Entendemos que a rua Quinze de Novembro em Passo Fundo se mos-
trou um espao no qual diferentes fronteiras eram frequentemente ultra-
passadas e/ou confrontadas. Fronteiras sociais, de gnero, geogrficas e
culturais. Onde as fronteiras so testadas, tambm onde elas se reforam
no prprio jogo de adaptao e transformao que as mantm. Os estigmas
so reafirmados nesse embate constante entre os estabelecidos e os outsiders,
que, em ltima anlise, conforma a permanncia dos estigmas em relao
aos grupos de menor poder e prestgio social, e, nesse caso, o estigma se
mantm na atualidade em reao ao prprio espao geogrfico da rua Quinze
na cidade. Essa pesquisa , em parte, para entender essa questo.
No sou passo-fundense. Estou na cidade h poucos anos, e quando
cheguei, meu primeiro endereo foi a rua Quinze de Novembro, que, para
mim, era completamente destituda de qualquer significado alm do uso,
ou seja, local da minha residncia. Situao que comeou a mudar medi-

34
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

da que fui ouvindo os comentrios sempre quando informava meu endere-


o. Fui me interessando cada vez mais pelas histrias contadas sobre a rua,
depois pelas imagens pintadas pela artista plstica Ruth Schneider sobre o
Cassino da Maroca. Fragmentos de memria que revelavam imagens sobre a
rua e sobre o Cassino. Essas imagens passaram, aos poucos, a compor meu
prprio repertrio imagtico, e a rua tornou-se, para mim, plena de sentidos.
Adquiriu um significado histrico tempo, lugar e vivncia que colocava o
meu aqui-agora (uso) em conexo com o tempo histrico da rua.
As minhas impresses sobre esse espao, cinquenta anos aps as au-
toridades terem decretado a sada dos estabelececimentos daquele local,
revelam a permanncia de um imaginrio especfico sobre a rua. A vign-
cia ainda de um estigma que se mantm sobre aquele espao da cidade,
visto ainda por muitos como outsider. O Sr. Vitor sempre morou naquela
rua desde os anos 1950, sendo que ainda permanece no local ao lado do
antigo Cassino da Maroca. Sobre a rua nos dias atuais ele diz:
A nossa rua sempre foi assim. Do jeito que vocs viram, sempre foi assim.
uma rua quase esquecida pelo prefeito. O policiamento de vez em quando
passa. Sempre foi uma rua no sei se por causa da zona ou se tem alguma
assombrao pesada. Uma rua pesada. No que tenha assalto, roubo, mas a
gente sente que uma rua pesada. (Vitor)29

Referncias
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das relaes de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2000.
HALBWACHS, Maurice. A Memria Coletiva. So Paulo: Ed. Centauro, 2004.
KANNENBERG, Vanessa; COSTA, Fernanda da. Tombamento de imveis parti-
culares acende polmica sobre o patromnio histrico do Estado. In: Clic RBS,
20/09/2013. Acesso em: 20 out. 2016.
MALUF, Marina e MOTT, Lcia. Recnditos do mundo feminino. In: NOVAES,
Fernando A.; SEVEVCENKO, Nicolau (Orgs.). Histria da Vida Privada do Bra-
sil. V. 3. So Paulo: Cia. das Letras, 2006.

29
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.

35
MEYRER, M. R. Quinze de Novembro fronteiras da (in)tolerncia:
Passo Fundo (1945-1955)

NASCIMENTO, Mrcia. Prazer Marginal e Poltica Alternativa: A Zona de Me-


retrcio em Passo Fundo (1939-1945). 2003. 156 f. Dissertao (Mestrado em His-
tria) Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2003.
NETO, Francisco Linhares Fonteles. Vigilncia, impunidade e transgresso: Face
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PESAVENTO, Sandra J. O imaginrio da cidade. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
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passado para reviver a poca de ouro das noites de Passo Fundo. Passo Fundo:
Nexjor FAC-UPF, 2016. Disponvel em: <https://nexjor.atavist.com/nos-emba-
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SILVA, G. C.; COSTAMILAN, S. G. Passo Fundo nome prprio feminino. Passo
Fundo: Tittos Artes Grficas Ltda., 2001.

36
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Dinmicas econmicas de Passo Fundo


na primeira metade do sculo XX.
Alguns apontamentos

Joo Carlos Tedesco1

Sinergias econmicas e mudanas sociais


na primeira metade do sculo XX
O municpio de Passo Fundo, em seu amplo territrio2, desde o pero-
do de emancipao at os dias atuais passou por vrios ciclos econmicos.
O extrativismo de pedras preciosas, a erva-mate e a madeira em primeiro
plano; a agricultura de cereais (trigo, milho e soja) como consequncia de
um amplo processo de colonizao e de apropriao privada da terra; a
agroindustrializao, como estgio ampliado de mltiplos processos indus-
triais em sinergia com os setores comerciais; a esfera dos servios ligados
sade e educao contribuiu imensamente para a dinmica econmica
do municpio. A pecuria com seus campos de criar e o tropeirismo (mulas
e gado) tambm registraram a importncia de Passo Fundo principalmente
no sculo XIX. A figura do estancieiro, grande proprietrio de terras, era
referenciada na poca, e ele estava em sintonia mercantil com tropeiros,
ervateiros, colonizadores, pees de fazenda, pequenos e grandes propriet-
rios agrcolas
Madeireiras, moinhos, casas de comrcio, pequenas indstrias meta-
lrgicas, olarias, matadouros, ferrarias e mltiplas agroindstrias artesanais
marcaram poca no municpio do incio at meados do sculo XX. Aps esse
perodo, novos horizontes modernizadores em termos tcnicos e infraestru-

1
Professor do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Passo Fundo.
2
Desse amplo territrio original de Passo Fundo constituem-se atualmente mais de 100
municpios.

37
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

turais produziram uma performance diferenciada, principalmente com as agro-


indstrias, frigorficos, metalrgicas, redes e lojas de comrcio de tecidos e con-
feces em geral, bem como de servios mais profissionalizados nas reas de
sade, educao e da esfera jurdica. Agroindstrias de banha, vinho, cereais e
carnes aprofundaram, a partir da dcada de 1950, as relaes entre os agricul-
tores e os ramos do capital comercial e/ou industrial e tambm ampliaram
redes de comrcio e de interligao regional, tendo Passo Fundo como epi-
centro. So esses horizontes que, a partir de 1950, transformaram Passo Fun-
do num territrio de atrao econmica regional, de modernizao social e
de referncia em termos de sinergia produtiva e mercantil.
Os comerciantes, tanto do meio rural como do cenrio urbano, sem-
pre marcaram presena na histria econmica de Passo Fundo. Nos anos
1930, por exemplo, o nmero de comerciantes cresceu de forma espantosa
em Passo Fundo; havia, em mdia, um comerciante para cada 150 pessoas.3
Os que se destacaram nesse perodo foram descendentes de imigrantes ale-
mes provindos de espao de colonizao desse grupo tnico4, juntamente
com os luso-brasileiros. A partir das primeiras dcadas do sculo XX, italia-
nos, srios, libaneses e palestinos ampliaram esse contingente a ponto de
que Passo Fundo, em 1930, tornou-se o municpio de maior nmero de
comerciantes do centro-norte do estado5; havia, na parte central da cidade,
na Av. Brasil, quatro ou cinco quadras que eram denominadas de quadras
dos turcos, pois havia muito comrcio popular desses grupos que refe-
renciamos. Os judeus, provindos, em grande parte, a partir de 1930, da Col-
nia de Quatro Irmos, antigo territrio de Passo Fundo, tambm ampliaram
o horizonte de comrcio e comerciantes no meio urbano do municpio.

A estrutura ferroviria: o epicentro da dinmica econmica


A estrada de ferro foi, a partir de 1898, um elemento de infraestrutu-
ra fundamental para a dinmica econmica, demogrfica e de moderniza-
o social do municpio. Sem dvida, ela foi um divisor de guas; permitiu

3
ROCHE, J. A colonizao alem e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969. p. 427.
4
XAVIER e OLIVEIRA, A. Annaes do municpio de Passo Fundo. Aspecto histrico. Passo Fundo:
UPF Editora, 1990. 2 v.
5
ROCHE, 1967.

38
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

viabilizar a ligao com os mercados de outras regies e estados. O trem no


Brasil significava um tremendo avano rumo adequao ao mundo que se
modernizava em termos tcnicos, em produo e desenvolvimento econ-
mico. A indstria da madeira, a moageira, os matadouros e frigorficos, a
rede de comerciantes, a pecuria, dentre uma srie de outras atividades no
municpio, tiveram na estrutura ferroviria a ponte necessria para a din-
mica produtiva e mercantil.
Alm do setor industrial e comercial (de vrios produtos e atividades,
em particular o madeireiro), vrios hotis foram sendo construdos em Pas-
so Fundo, alguns com expresso, como o Hotel Internacional, o Hotel
Avenida, o Glria Hotel e o Hotel Nacional, porm havia outros, inclusive
em sinergia com a gare, pois estavam situados muito prximos, como o
caso do Petracco Hotel.

Figura 01: Petracco Hotel

O Petracco Hotel estava situado muito prximo da gare, otimizando a sua logstica. A
partir dos anos 1950, passou a chamar-se Planeta Hotel. Fonte: Czamanski. Ilustrao
cedida pelo Sr. Beraci Porto.

No mbito econmico, nos primeiros anos, o trem transportava erva-


mate, madeira, banha, trigo, milho, carnes, animais e outros produtos da

39
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

economia agrcola. Os grandes empreendedores do setor madeireiro entra-


ram no ramo aps a consolidao do tronco ferrovirio por toda a regio.
Por isso que, no entorno da gare, estruturou-se um amplo horizonte sinr-
gico de servios (em particular, hotelaria), de comrcio (de vrias modali-
dades) e de pequenas indstrias. Alm desses elementos, a gare propiciou a
ocupao de espaos urbanos no seu entorno. Ela cortou, abriu, percorreu
e valorizou campos e matas com abundncia de madeira de lei, necess-
ria para a prpria rede, para os colonos, para colonizadoras e comercian-
tes. Ao seu redor, esses ltimos estruturaram suas vidas e seus estabeleci-
mentos, valorizaram as terras, sendo as matas, aos poucos, substitudas pela
agricultura de trigo e milho, com a consequente dinmica da indstria
moageira, da banha, da carne e do couro.
Nessa primeira metade do sculo XX, o trem exerceu a centralidade
do transporte de mercadorias e de pessoas. Como j falamos, a indstria da
madeira, situada em Passo Fundo e regio, tinha no transporte ferrovirio
a sua grande alternativa. Grandes centros comerciais de madeira localiza-
vam-se prximo das estaes de trem, bem como no interior das estaes
de trem havia uma infraestrutura adaptada ao carregamento de madeira;
muitos vages eram adaptados para esse fim.

Figura 02: Madeireira das famlias Franciosi e Fossati

Fonte: Foto cedida pela famlia Franciosi

40
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

No retorno econmico (VBP Valor Bsico da Produo) de setores


produtivos no municpio de Passo Fundo em meados do sculo XX figura a
indstria da madeira como central. Sem dvida, o trem propiciou grande
parte disso.

Composio percentual do VBP da indstria de Passo Fundo 1942 e 1953

Gneros industriais 1942 1953 1970


Metalrgica 7,50 3,11 0,96
Mecnica - 2,14 9,54
Madeira 46,58 18,48 4,07
Alimentos 36,25 55,80 48,35
Bebidas - 13,98 14,72
Qumica 1,13 7,79
Couro e peles 0,71 1,10 4,98
Demais gneros 7,83 5,39 9,59
Total 100,00 100,00 100,00
Fonte: Produo industrial 1942, 1953 (s/d). Porto Alegre, FEE, apud Alonso (1989, p. 294)

Alguns moinhos ganharam destaque, pois se ligavam ao trem atravs


de ramais e, inclusive, sendo instalados prximo da gare, como o caso do
Moinho So Luiz.

41
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

Figura 03: Moinhos So Luiz, de Busato Irmos e Cia.

O moinho possua ramal prprio para carga e descarga de vages. Foto original de Aline
Zen da Silva
Fonte: https://www.facebook.com/FotosAntigasDePassoFundo/photos/p.907204232631444/

O trem foi um fato marcante na vida econmica, social e cultural de


Passo Fundo at a metade do sculo XX. Ele mudou a paisagem urbana e
dinamizou as culturas rurais; exerceu uma grande funo na lgica mer-
cantil na medida em que auxiliava na mobilidade de mercadorias, interme-
diou seu circuito necessrio em correspondncia com os mercados consu-
midores; deixou traos na paisagem fsica e geogrfica urbana, no ambien-
te construdo e nas sinergias comerciais e de servios. Sujeitos econmicos
de grande expresso regional, como foi o caso de comerciantes, granjeiros,
moageiros, hoteleiros e madeireiros, estiveram em sinergia com a estrutura
frrea e marcaram a histria econmica de Passo Fundo num ciclo produ-
tivo que colocou o municpio num cenrio de destaque, em particular no
ramo da madeira e na cultura do trigo.

42
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A produo agrcola e as agroindstrias


O primeiro ciclo agrcola nas primeiras dcadas do sculo XX consti-
tui-se aps a efetivao da ocupao da terra por pequenos agricultores
migrados de colnias de outras regies do estado. Nesse sentido, no pode-
mos deixar de enfatizar que a agricultura de excedentes foi uma fonte eco-
nmica de fundamental importncia para Passo Fundo desde as primeiras
dcadas do sculo XX. Essa realidade foi, primeiramente, auxiliada pela
estrutura ferroviria, pela migrao de agricultores policultores, pela ocu-
pao produtiva das terras de matas e parte das terras de campo, pela exis-
tncia, ainda que incipiente no incio do sculo, de um mercado consumi-
dor regional e de possibilidades de escoamento da produo.

Produo total e rea cultivada dos cinco principais produtos agrcolas


em Passo Fundo 1950 e 1960

Produto 1950 1960


ton. rea (ha) ton. rea (ha)
Milho 382.057 290.713 566.015 413.495
Trigo 127.267 176.291 171.783 283.836
Uva 30.662 4.962 64.361 8.844
Feijo 25.913 39.890 33.413 61.399
Soja 52 22.033 32.841
Fonte: IBGE, Censos Agrcolas de 1950 e 1960
Dados inexistentes na fonte

O trigo e o milho (deste ltimo advm a sinergia com a criao de


sunos e a industrializao da banha, bem como a criao de gado leitei-
ro) passaram a ser elementos centrais. No incio da dcada de 1930, o
governo federal instalou em Passo Fundo um centro de pesquisa cujo ob-
jetivo era selecionar as sementes e obter assistncia tcnica para viabilizar
melhoramentos, principalmente da cultura do trigo. No relatrio da Esta-
o Experimental de Passo Fundo do ano de 1940 consta que a referida
tinha uma ampla zona de abrangncia (em torno de 14 municpios), sen-

43
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

do a maior das zonas fisiogrficas do estado em matria de produo de


trigo. Nessa rea ampla de abrangncia, o cultivo do trigo atingiu 258.617
hectares em 1957 e 201.500 toneladas de gros em 1955, ou seja, produzi-
ram-se na regio 25% do trigo do estado. A produo desse cereal envol-
veu pequenos produtores, colonos descendentes de imigrantes, pecuaris-
tas e granjeiros.6
Parte das lavouras de pecuria extensiva foi canalizada para a pro-
duo de trigo. Nas dcadas de 1940 e 1950, cresceu a indstria moageira
de trigo em Passo Fundo, e o municpio figurava como o segundo maior
produtor de trigo do estado, estando apenas atrs de Cruz Alta. O muni-
cpio de Passo Fundo registrava, na dcada de 1930, a presena instalada
de 48 moinhos no meio rural e 17 no meio urbano. Segundo Verzeletti7,
em 1938, entre sedes e distritos, havia em Passo Fundo 64 moinhos de
trigo; esse nmero eleva-se ainda mais na dcada de 1950. Na regio de
Passo Fundo, havia em 1954 98 moinhos, sendo sua maior parte nos es-
paos de maior presena de migrantes de etnias europeias. Esse processo
demonstra a forte presena dessa indstria artesanal na regio como ex-
presso da cultura do trigo e da grande demanda pelos produtos industria-
lizados do mesmo.8 Passo Fundo foi sede, durante algumas dcadas, de
um complexo comercial e moageiro da famlia Busato (moinho, atacado
de secos e molhados, varejo, representaes e postos avanados de gran-
des grupos econmicos), Ughini, Dalla Mea, Lngaro, Milan, Biasus, Me-
negaz, Iaione, Nadal, dentre outros.

6
SCHILLING, P. O trigo. Ensaios FEE, Porto Alegre, 3 (1), p. 109-136, 1982, cit., p. 109.
7
VERZELETTI, S. C. A contribuio e a importncia das correntes migratrias no desenvolvimento de
Passo Fundo. Passo Fundo: Imperial, 1999.
8
Os moinhos de maior expresso existentes em 1950 no meio urbano de Passo Fundo eram J.
Maraschin, Busato Irmos & Cia., Moinho Dell Mea, Vva. Olvio Giavarina & Cia. Ltda.,
Moinhos Rio-Grandense, Nerglio Milan, Moinho de Joaquim Escobar.

44
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Figura 04: Moinho Passo-fundense, safra de 1954-1955

Fonte: autoria no identificada. Acervo do Centro de Memria Bunge

A dcada de 1950 marcou um grande processo de transformao


na agricultura brasileira; a referida esteve em adequao com a dinmica
impressa pela esfera governamental de industrializao. A agricultura ex-
pressou esse novo paradigma econmico no pas. Nas dcadas posterio-
res, houve grande investimento em aquisio de mquinas, insumos e
implementos agrcolas, bem como uma redefinio produtiva. Houve um
grande crescimento tanto de rea como de produo da cultura do trigo
entre os anos de 1950 e 1960. A indstria de mquinas e implementos
agrcolas comea a se instalar em Passo Fundo a partir da dcada de 1960
em razo justamente desse dinamismo agrcola de tendncia moderni-
zante em termos tcnicos.

45
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

Produo total e rea cultivada de trigo na regio de Passo Fundo em


1950 e 1960

Produto 1950 1960


Ton. rea (ha) ton. rea (ha)
Trigo 127.267 176.291 171.783 283.836
Fonte: IBGE, Censos Agrcolas de 1950 e 1960

O trigo passou a ser plantado em grandes extenses, principalmente


em terras de campo, ou seja, que at ento eram destinadas pecuria. Os
pequenos produtores, que h tempo vinham produzindo o referido cereal,
passaram a ganhar um parceiro desse perodo em diante, o granjeiro, em
geral profissional liberal, morador e trabalhador urbano. Esse se caracteri-
zou na regio centro-norte do estado, em particular na microrregio do
Planalto Mdio, como um produtor modernizado, que incorporou, com
intensidade, as polticas pblicas para o setor agrcola, em particular as que
estavam envolvidas com o trigo e, em meados dos anos 1960, com a cultura
da soja. Os granjeiros romperam com o conservadorismo da pecuria tra-
dicional, reorganizaram o processo produtivo pelo vis capitalista (pro-
duo de excedentes, tecnificao e insumizao da agricultura) e inter-
romperam as formas pretritas de apropriao da terra.
Em termos regionais, Passo Fundo, pelo fato de ser um grande cen-
rio de produo de trigo e do contingente de granjeiros, no ficava de fora
dos encontros e dos congressos que discutiam as questes em torno do
mesmo. A cidade foi palco, por ocasio de seu centenrio (1957), da 7
Festa Nacional do Trigo e do 7 Congresso Nacional da Triticultura.
Estamos muito de acordo que no ano em que aqui se realizou a VII
Festa Nacional do Trigo 1957 , seguindo o exemplo de outras cidades,
houvesse por bem o ilustre odil passo-fundense mandar plantar trigo nos
canteiros da Avenida Brasil, como que demonstrando aos forasteiros que
aqui o cereal-rei medra at mesmo nas ruas da cidade.9
O novo modelo de produo agrcola implantado nos anos 1950, co-
nhecido como modernizao agrcola, atingiu em parte seus objetivos

9
Jornal O Nacional. Passo Fundo, 14 ago. 1958, p. 2.

46
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

em Passo Fundo, ou seja, constituiu um parque agroindustrial, moderni-


zou tecnicamente o setor agrcola, reestruturou a ocupao do espao ur-
bano, vinculou a agricultura aos processos da intersetorizao, entre outras
questes de cunho sociocultural. A estruturao cooperativista foi o ele-
mento articulador e que promoveu a interligao de todo esse processo.
Por meio das cooperativas, o estado atribua e delegava a elas a res-
ponsabilidade pela montagem da infraestrutura de armazenamento e esco-
amento da produo; ambos ficariam concentrados nela. Isso reduziria re-
lativamente os gastos de circulao da produo, do investimento fixo com
armazns, mquinas para recebimentos, secagem e limpeza do gro, vecu-
los para transportes, etc. Desse modo, o estado facilitaria as formas de aqui-
sio dos gros, pois era muito mais racional transacionar com as coopera-
tivas do que com a mirade de agricultores isolados.
A Coopasso surgiu em 1955 nesse cenrio de expanso da moderni-
zao produtiva das culturas do trigo e do milho. Em meados da dcada de
1970, ela foi considerada a segunda maior cooperativa do Brasil no setor
agrcola; em Passo Fundo, por mais de duas dcadas, foi a maior empresa.

Figura 05: Complexo administrativo da Coopasso na Av. Presidente Vargas


em Passo Fundo

Fonte: foto cedida por Czamanski

47
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

Desse modo, a dcada de 1950 revelou ser um perodo de grande


expanso econmica de Passo Fundo. Cooperativa, frigorficos, comrcio
de mquinas agrcolas, moinhos do o tom do processo produtivo e indus-
trial; na parte central da cidade, lojistas ampliam seus negcios. Ambos
estiveram ligados a empreendedores que, em geral, pertenciam a uma esca-
la mdia urbana e que, nas suas relaes com o processo de produo agr-
cola, com o sistema financeiro nascente em termos de fomento industria-
lizao, bem como aos incentivos creditcios, souberam inserir-se num pro-
cesso produtivo que deu grande expresso a Passo Fundo.

Evoluo dos estabelecimentos, segundo o setor de atividades no muni-


cpio de Passo Fundo 1908 a 1934

1908 1934
Estabelecimentos n % n %
Industriais 76 22,89 514 44,39
Comerciais 140 42,17 449 38,77
Prestao de servios e autnomos 116 34,94 195 16,84
Total 332 100% 1.158 100%
Fonte: Adaptada de Xavier e Oliveira

Gneros da indstria de Passo Fundo em 1960

Gnero N de estabelecimentos Pessoal ocupado


Extrao mineral 53 175
no metlico*
Couros e peles 2 115
Alimentares 26 509
Madeira 40 344
Mecnica 2 -
Fonte: IBGE. Censo econmico Indstria, Rio Grande do Sul, 1960
*Essa varivel caracteriza, em grande parte, as olarias.

48
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A indstria frigorfica no municpio instalou-se em meados da dca-


da de 1950 e teve um papel fundamental na reconfigurao urbana com
novos espaos habitacionais, novas vias e interligaes, bem como intensa
vinculao com o meio rural. Alm da ligao com a produo de milho e
a cultura do suno como decorrente, havia muitas olarias no meio rural de
Passo Fundo no perodo. Muitos comerciantes e produtores de sunos do
norte do estado e mesmo do oeste de Santa Catarina vendiam porcos nos
frigorficos da cidade e retornavam com os caminhes carregados de telhas
e tijolos produzidos no meio rural de Passo Fundo.
Nesse sentido, ampliaram-se os vnculos entre agricultora e indstria
urbana. No municpio de Passo Fundo, por exemplo, em 1940 foram abati-
dos 29.512 sunos e, em 1950, 25.508. Nessa ltima dcada, o municpio
esteve em quinto lugar no estado no abate de sunos. Em 1950, produziram-
se 728 toneladas de banha, estando tambm em quinto lugar no estado.10

Figura 06: Vista rea do Frigorfico Planaltina em 1966

Fonte: Adriano Ferro

10
IBGE. Censos Econmicos de 1950 RS. Rio de Janeiro, 1956, p. 80.

49
TEDESCO, J. C. Dinmicas econmicas de Passo Fundo
na primeira metade do sculo XX. Alguns apontamentos

As regies norte e nordeste do Rio Grande do Sul tiveram, nas pri-


meiras dcadas do sculo XX, uma grande expresso da indstria frigorfi-
ca, em particular de produo de banha e salame. Ela esteve em correlao
com as imigraes italiana e alem, com os comerciantes e com o setor de
transporte (fluvial, ferrovirio e rodovirio). Os imigrantes introduziram a
diversificao agrcola e artesanal principalmente em torno da tcnica para
a preparao de carnes embutidas e curadas e da preparao da banha.
A urbanizao em Passo Fundo esteve, nas dcadas de 1940 a 1960,
muito ligada aos processos produtivos rurais. A populao rural constitua
um mercado certo para as redes de comrcio de todos os tipos situados no
meio urbano do municpio.
As dcadas de 1950 e 1960 foram um perodo em que houve vrias
emancipaes de distritos que pertenciam a Passo Fundo; por isso houve
uma significativa reduo da populao total presente no censo de 1960;
no obstante esse processo, a populao rural teve no perodo ps-1950
uma queda vertiginosa.

Populao total, urbana e rural de Passo Fundo entre 1900-1960

Anos Total Urbana Rural


1900 21.374 - -
1920 65.000 6.000 59.000
1940 80.138 20.584 59.554
1950 101.887 31.229 70.658
1960 93.179 50.559 42.620
Fontes: Fundao de Economia e Estatstica. De provncia de So Pedro a estado do Rio Grande
do Sul Censos do Rio Grande do Sul 18031950. Porto Alegre, 1981; IBGE. Censos Demo-
grficos, 1950 e 1960

O fenmeno da urbanizao em Passo Fundo tornou-se intenso e foi


expresso desse processo todo das dcadas de 1950 e 1960. A urbanizao
acelerada provocou alteraes no espao geogrfico, contribuindo para a
ocupao de novos espaos nas reas no centrais da cidade, levou insta-
lao de estabelecimentos comerciais e industriais e de assentamentos ha-

50
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

bitacionais em vilas e bairros. A urbanizao, em grande parte expressa


pelo adensamento populacional, deve ser entendida na sua ligao com o
meio rural. Grande parte do adensamento populacional de Passo Fundo
fruto de um processo de migrao do meio rural regional, consequncia do
processo de modernizao agrcola, da concentrao e valorizao das ter-
ras, da atrao do meio urbano e seu mercado de trabalho. Diante disso,
podemos dizer que a zona urbana de Passo Fundo poderia ser considerada
um atrativo para os agricultores desanimados com as precrias condies
do meio rural, pois, at meados da dcada de 1960, havia falta de energia
eltrica, de escolas e uma grande dificuldade de acesso cidade, alm dos
problemas acarretados pelo processo de modernizao agrcola.
Enfim, na primeira metade do sculo XX, desenham-se o perfil e a
configurao histrico-econmica de Passo Fundo. Mltiplas circunstn-
cias e contingncias se fizeram presentes, diversos sujeitos sociais e econ-
micos empreenderam aes; fatos histricos e condies infraestruturais
permitiram o desenho de alguns dos processos que marcaram essa poca.
Sem dvida, a ferrovia, a produo agrcola, os vrios ramos industriais
ligados agricultura, os comerciantes rurais e urbanos de vrias matizes e
atividades, os agentes e administradores pblicos que tiveram viso do bem
comum e das dinmicas da histria e da sociedade brasileira, as interliga-
es regionais, nacionais e internacionais que o trem propiciou, as redes de
comrcio urbano e a migrao de pessoas, dentre outros aspectos, torna-
ram Passo Fundo uma grande referncia no perodo. Porm nem tudo se
deu harmonicamente e sem excluso de grupos sociais. A histria nesse
perodo registra inmeras questes ligadas propriedade da terra, envol-
vendo indgenas, pequenos camponeses, trabalhadores urbanos, que, de uma
forma ou de outra, sentiram-se expropriados, subalternizados e excludos
das dinmicas que a sociedade da poca apresentava. O tecido urbano de
Passo Fundo tambm teve sua espacialidade redimensionada em razo das
condies econmicas dos grupos sociais, da excluso e migrao de gran-
des contingentes de pequenos produtores, posseiros e pees de estncias do
meio rural. Nesse perodo em questo, Passo Fundo revelou a intensifica-
o das contradies sociais produzidas pelas dinmicas econmicas, pro-
dutivas, tnico-culturais da sociedade capitalista mais geral.

51
Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

Aline do Carmo1
Jacqueline Ahlert2

Introduo
Ruth Trelha Schneider, pintora, gravadora, desenhista, autodidata,
nasceu em Passo Fundo em 08 de maio de 1943, onde cursou o Ensino
Fundamental, posteriormente mudando-se para Porto Alegre/RS, cidade
em que permaneceu at seu falecimento no dia 23 de dezembro de 2003.
Em meados de 1970, comeou a frequentar o Atelier Livre da Prefei-
tura de Porto Alegre, estudando pintura, inicialmente com o professor Pau-
lo Porcela, pintor passo-fundense que era instrutor de pintura no atelier.
Esse local tambm oferecia palestras sobre arte e literatura com artistas
convidados do cenrio nacional e mantinha ainda uma pequena galeria de
arte. Logo aps, conheceu o professor Fernando Baril, porto-alegrense, pin-
tor e desenhista, que teve grande influncia em suas criaes estticas poste-
riores. Paralelamente aos estudos realizados na dcada de 1970, iniciou ativi-
dades docentes, integrando em 1982 o Grupo Pigmento, formado por artis-
tas interessados em dar continuidade aos estudos iniciados no curso de Baril.
Ruth Schneider explorou as temticas vinculadas representao do
ser humano. Na srie O Cassino da Maroca, notam-se vrias figuras huma-
nas, figuraes que formam uma galeria penetrante induzindo ao desvelo
da alma alheia. A artista representa os desvos da alma, por onde seus
personagens se deixam levar. Tal constatao refora a ideia de que a arte,

1
Mestre em Histria pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora da Faculdade de
Artes e Comunicao da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: [email protected].
2
Doutora em Histria pela Pontifcia Universidade do Rio Grande do Sul. Professora do Programa
de Ps-graduao em Histria da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: [email protected].

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

alm de um modo de conhecimento e de expresso, tambm um modo de


construo simblica histrica e social.
Traos fortes e pesados, combinados s cores contrastantes da palhe-
ta da pintora, contam a histria de um cassino e suas abrangncias sociais,
sem o intuito de que as obras fossem consideradas belas no sentido
clssico do termo , mas que tambm funcionassem como uma crtica
sociedade da poca. Conforme Pareyson, esse fazer caracterstico da arte
no se reduz a uma operao genrica, uma vez que est intimamente asso-
ciado criao, ou seja, a um fazer que inventa igualmente o modo de
fazer, de maneira que a atividade artstica consiste propriamente no for-
mar, isto , exatamente num executar, produzir e realizar que , ao mesmo
tempo, inventar, figurar, descobrir (1989, p. 32). Nesse sentido, as escolhas
estticas para a representao dos personagens que Ruth recriou esto car-
regadas de sentido e expressividade. Quase caricaturais, os homens e mu-
lheres imaginados pela artista constroem-se de traos expressionistas, mais
atentos s emoes e subjetividades do que realidade objetiva de sujeitos
inseridos em tais ambincias.
Suas representaes compunham-se com a tcnica da pintura a leo,
constituda por camadas de tinta preparadas a partir de pigmentos colori-
dos, fixados por intermdio de um meio oleoso (leo secativo como leo de
linhaa, de nozes, de papoula, etc.), que, com o passar do tempo, forma um
retculo tridimensional, mantendo coesos a camada de pintura e os pig-
mentos presentes, dando a eles uma textura em relevo. Majoritariamente, o
suporte eleito era madeira em diversos formatos, espessuras e acabamentos.
Para Ruth Schneider, a expresso do quadro precisava ser autntica
em sua relao autor-espectador. A obra de arte deveria, assim, conver-
sar com aquele que a olha. L-se em seus relatos pessoais que o belo
teria que ser sentido e vivido pelo artista. Como modo essencial de compre-
ender a prpria vida, reinterpretado e revivido pelo espectador da obra
(Arquivos do MAVRS).
A gnese da srie O Cassino da Maroca, criada durante a dcada de
1980, pode representar um momento no qual a memria do artista ree-
laborada, servindo como recurso para uma narrativa imaginada. Ruth
Schneider relata como surgiu o conceito para suas ideias, que, de incio,
constituram-se apenas de memrias. Sua av Ida, lavadeira do Cassino, e

53
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

seu Anto, taxista, que prestava servios de transporte para clientes do lo-
cal e para a proprietria Maroca, contavam-lhe o cotidiano de personagens
repletos de vozes e leituras que Ruth exps nas telas.
As figuras representadas por Ruth so provenientes do imaginrio
criado a partir das histrias que ouvia sobre o Cassino Palcio, depois co-
nhecido como Cassino da Maroca. O local, frequentado pela elite, expandiu-
se no contexto do contrabando de pneus, negociaes de importao-ex-
portao em que o Brasil fornecia pneus em troca de farinha de trigo trazi-
da da Argentina. Nesse vaivm de negcios, Maroca teve condies de
contratar danarinas renomadas para apresentar-se em seu palco, brasilei-
ras e argentinas, mulheres que do lado de dentro das janelas despertavam a
curiosidade, imersa na relao dicotomia de rejeio e admirao dos mo-
radores de Passo Fundo.

A arte na interface entre a memria e o imaginrio


A discusso do significado das imagens traz algumas questes funda-
mentais: Significado para quem? Quando arte? Como se constri o signi-
ficado? No que tange interpretao de obra plsticas, alm dos questiona-
mentos supracitados, o contexto social e histrico de suma importncia.
Os sentidos passveis de serem apreendidos na obra Da Janela n 13 (Fi-
gura 1) esto condicionados s interlocues entre a memria e as caracte-
rsticas artstico-expressivas de Ruth Schneider, somados dinmica socio-
cultural, poltica e econmica de Passo Fundo entre 1940 e 1950.
A sociedade que presenciou o auge do Palcio Cassino manteve com
o cabar uma relao ambgua, permeada de (pr)conceitos, formada por
indivduos influentes e personagens submissos. Um local de lascvia e inte-
grao social muito apreciado na cidade.
O conjunto de relatos autobiogrficos sintetiza grande parte da vida
da artista no apenas no que toca a assuntos pessoais; detalha tambm o
apuro com que trabalha a tcnica e a linguagem utilizadas nas obras.
importante notar que, desse modo, tem-se no o que ela era, mas como se
projetava e, sobretudo, o que pretendia que o leitor pensasse sobre ela. Um
trao de sua personalidade desprendida posto ao lado da avaliao que

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

faz de sua arte, encontrando ainda espao para ironizar com humor e ex-
pressionismo as suas memrias.
Segundo Manguel, qualquer que seja o caso, as imagens, assim como
as palavras, so a matria de que somos feitos (2001, p. 21). Ainda confor-
me o autor,
construmos nossa narrativa por meio de ecos de outras narrativas, por meio
da iluso do autorreflexo, por meio do conhecimento tcnico e histrico,
por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminao, dos
escrpulos, da ingenuidade, da compaixo, do engenho. Nenhuma narrativa
suscitada por uma imagem definitiva ou exclusiva, e as medidas para aferir
a sua justeza variam segundo as mesmas circunstncias que do origem
prpria narrativa (2001, p. 28).

A temtica de Ruth Schneider, tendo o humano como centro de suas


atenes, concentra-se num levantamento baseado na memria afetiva, leva
os episdios condio prxima da mitologia regional do sul do Brasil.
Contudo as emoes populares e seus fantasmas, sublinhados por imagens
rsticas, sintticas e de certa forma ingnuas, jamais remetem para o folcl-
rico ou para o simplrio.
Em suas pinturas, as histrias, ainda que fantasiosas, so coerentes
com a ambincia que lhes deu origem e induzem a relacionar fatos passa-
dos a uma contextualidade atual, expondo represses e preconceitos, co-
nes importantes para o processo de significao proposto neste estudo.
Compreende-se que obras de arte so expresses simblicas no senti-
do em que encarnam significao. Danto acrescenta que o processo de sig-
nificar em artes plsticas
consiste em identificar estas significaes e explicar o modo de sua encarna-
o. Assim concebida, no outra coisa que o discurso de fundamentos,
fato que toma parte definidora do mundo da arte, segundo a teoria institucio-
nal: ver uma coisa como arte estar pronto a interpret-la quanto sua
significao e quanto sua maneira de significar (1996, p. 63).

No livro O que vemos, o que nos olha, a experincia visual vai sendo
construda a partir de duas constataes, segundo seu autor Didi-Huber-
man (1998). A primeira ideia que as imagens so ambivalentes, isso causa
inquietao no observador. A segunda constatao que o ato de ver sem-
pre abrir um vazio invencvel. O que fazer diante desse vazio que inquie-
ta? Didi-Huberman detecta duas atitudes: a do homem da crena (que quer

55
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

ver sempre alguma coisa alm do que se v) e a do homem da tautologia


(que pretende no ver nada alm da imagem, nada alm do que visto).
Para o autor, somente uma experincia visual aurtica conseguiria ultra-
passar o dilema da crena e da tautologia (1998, p. 169).
O autor sugere uma antropologia da forma na qual as virtualida-
des da forma com presena impem suspeitas segurana tautolgica.
Com isso a obra Da Janela n 13 (Figura 1) parece dar-se ao olhar no
apenas como um objeto especfico, cuja forma com janelas abertas deveria,
portanto, ser autorreferencial. Ao ficar em frente ao quadro, parece surgir
ao olho quem bisbilhota as dependncias internas do Cassino uma suges-
to de que alguma outra coisa poderia de fato nele estar guardada; essa
suspeita de que algo falta ser visto se impe doravante no exerccio de
nosso olhar, agora atento dimenso literalmente privada, portanto obscu-
ra, esvaziada, do objeto (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 119).
sobretudo ao explorar esse aspecto da forma dos objetos que Didi-
Huberman d visibilidade a uma dialtica do olhar, enunciada pelo ttulo
de seu estudo:
O ato de ver no o ato de uma mquina de perceber o real enquanto com-
posto de evidncias tautolgicas. O ato de dar a ver no o ato de dar evi-
dncias visveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do dom
visual para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver sempre inquie-
tar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver sempre uma operao de sujeito,
portanto uma operao fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que
olha e aquilo que olhado (1998, p. 77).

As ambiguidades do olhar marcam as pinturas da srie sobre o cas-


sino. So olhares que esto no mbito da artista como autora, da temtica
como inspirao e do espectador como memria e imaginrio no inevit-
vel anacronismo da leitura de uma obra de arte. Ruth coloca o seu olhar
sobre as representaes engendradas pela memria e pela subjetividade
do olhar de outros, pelas narrativas daquilo que selecionaram guardar.
No que tange ao tema das janelas, h o olhar de dentro e o de fora atravs
de vidraas em que a prpria moldura metafrica s vises enquadradas
e limitadas por universos distintos. Por fim, o espectador, intangvel e
longnquo, confronta seus olhares com as lembranas e imaginrios cons-
trudos por histrias ouvidas e/ou vividas interpeladas pela representa-
o pictrica de Ruth.

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

As narrativas nas pinturas demonstram um sentido histrico, no como


um movimento contnuo, mas reconhecendo a recorrncia dos ciclos e das
aes. Num jogo de cores e formas enrgicas narra a presena, a posio e, de
certo modo, os movimentos dos personagens que compunham e frequenta-
vam a zona do meretrcio naquela Passo Fundo de meados de 1940-50. Em-
pregava, para isso, uma espcie de receita esttica, composta dos seguintes
elementos, como lembra Armindo Trevisan (citado por SCHNEIDER, 1993):
1. um acmulo de figuras, que formam grupos de dois ou trs personagens
ou se dispem numa sorte de multido solitria, vistosamente risvel, ou
em poses bufas; 2. um dinamismo gestual, sobretudo presente nas figuras
femininas, sensuais e provocantes, contrabalanado pelo imobilismo mas-
culino; 3. o uso de distores, que sublinham os sentimentos das pessoas,
conferindo-lhes ar caricatural; 4. enfim, um caligrafismo, ldico e malicio-
so, que sobrepaira a tudo, transformando os quadros em cartas-cifradas re-
pletas de apartes debochados (SCHNEIDER, 1993).

As obras de Ruth Schneider ilustram histrias imaginadas, enredos e


personalidades reconhecidas pela autora: Obrigada a essas pessoas que
passaram em minha vida e essas personagens do meu Universo Pictrico,
que no conheci, mas aprendi a am-las e conviver com elas e, como dizia
o poeta, Ame o pecador e no o pecado (idem).
No possvel distinguir com clareza os limites entre lembranas e
percepo, e por isso observa-se que a segunda uma espcie de viso
interior e subjetiva. Afinal, a todo momento, impregnada de recorda-
es (BERGSON, 2006, p. 31). Na srie O Cassino da Maroca, notam-se es-
sas memrias sendo expressas de forma intuitiva.
Estas imagens de uma poca romntica de pessoas contadas por meu pa-
drasto, em tempos de criana, ficaram registradas no meu inconsciente e s
nos anos 80 que vieram tona, saindo para fora todo aquele mundo de
fantasia criado por mim, com as caractersticas fantasiosas de criana; para
isso acontecer, foram anos de trabalho, de busca, em anos de Atelier livre
com o professor Baril, aprendendo tcnicas que me deram a segurana de
botar para fora aquilo que nem eu sabia que tinha um tesouro guardado no
fundo do poo (SCHNEIDER in Arquivos do MAVRS).

A memria parece configurar-se como a base para a concretizao


das percepes, funcionando como uma costura das percepes para for-
mar um conjunto de elementos que culminaro na ao. Ao reconhecer
essas imagens do passado, a percepo impele-as ao movimento, ao no

57
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

momento presente, para fazer uso de sua experincia. Deve-se salientar que
o corpo no um depsito de memrias. Sua relao com elas d-se pelo
fato de ser ele quem escolhe quais lembranas devem emergir na cons-
cincia justamente por poder conferir-lhes utilidade e sentido na ao real
em que se apresenta.
Como exposto anteriormente, existem vrios filtros de memria na
construo de personagens na srie sobre O Cassino da Maroca. O primeiro
filtro poderia ser o fato das narrativas serem recebidas/ouvidas na infncia
da pintora e reinterpretadas na vida adulta. Outro filtro relevante que as
memrias so de outras pessoas, que se transformaram em memrias dela.
Mais um filtro seria a transformao dessa memria em representao ar-
tstica e quais os significados dessas composies. Compreende-se que
vrios filtros de memria foram utilizados pela artista, como ela mesma
conta em suas anotaes:
Estes personagens que fizeram minha carreira ter sentido, como a Maroca,
mulher respeitada e temida por todos aqueles que por l passaram, no seu
Palcio Cassino. Maria Bigode, pelo seu amor, corredor de baratinha. O
cabareteiro Flres Senhoras e Senhores, o Show vai comear, em seu
tipo atltico, fazia as mulheres gemerem, mas ele gostava era dos homens.
Garoto de Ouro pelos versos improvisados de poesia nata. As mulheres
deixavam marcas de batom pelos muros da cidade com recadinhos e o nome
delas. Zica Navalha sua valentia, sua garra na defesa das amigas contra os
conquistadores importunos. Maria Preta de beleza extica, no era con-
tratada da Maroca, mas roubava sua clientela... Jussara da sociedade pas-
so-fundense, o baile s comeava quando ela chegava e atravessava o salo,
a a Orquestra tocava. Maria Barulho pela impertinncia de seguir o ra-
dialista Jarbas, os contrabandistas que fizeram de Passo Fundo seu quartel.
Rosa Bandida, etc... (SCHNEIDER in Arquivos do MAVRS).

A artista registra que esse universo de personagens representados sem-


pre esteve presente em seu inconsciente.
Eu os vejo na esquina da XV de Novembro, fervilhavam de uma casa para
outra, do tango para o xaxado, do champanhe terminando na Chica-p-de-
porco, na pinga, do cheiro de Rose Argentino, para o cheiro do Amor
Gacho. Neste universo imaginrio, me vejo a pensar e criar... Agradecendo
sempre estas pessoas maravilhosas que no conheci e as pessoas que me
motivaram a ser o que sou hoje, principalmente ao Seu Anto, que foi meu
pai, e minha me Nina e v Ida (SCHNEIDER in Arquivos do MAVRS).

Levando em considerao os aspectos citados, pode-se utilizar esse


fluir de pensamentos para avaliar uma composio artstica. O erro comum

58
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

de quem julga, mencionado por Bardi (1990), considerar simplesmente o


objeto, o assunto, acrescentando a esse juzo as consideraes genricas
sobre a correo do desenho, do claro-escuro, da cor, da harmonia, at che-
gar ao interesse pela composio. O autor aconselha ver a arte procurando
descobrir, em cada obra, os motivos que determinaram: o pensamento, a
imaginao, o sentimento, as circunstncias de poca, de lugar, de ambien-
te em que nasceu, etc. Assim, as obras de arte exprimem, em formas mut-
veis, toda a tormenta interior e todas as influncias exteriores da vida indi-
vidual, coletiva e ambiental do artista.
Entre as potencialidades do fazer esttico est a possibilidade de in-
terpretar a infinita complexidade da vida humana e de represent-la. A obra,
o signo, necessariamente compsita. Da mesma forma que a percepo
visual constituda por elementos e implica a comparao e a diferencia-
o, a obra de arte tambm constituda por elementos que no reenviam
todos para a mesma experincia.

As janelas do Cassino por Ruth Schneider


Compreende-se que obras de arte so expresses simblicas no senti-
do onde elas encarnam significao. Danto (1996) acrescenta que o proces-
so de significar formas em artes plsticas
consiste em identificar estas significaes e explicar o modo de sua encarna-
o. Assim concebida, no outra coisa que o discurso de fundamentos,
fato que toma parte definidora do mundo da arte, segundo a teoria institucio-
nal: ver uma coisa como arte estar pronto a interpret-la quanto sua
significao e quanto sua maneira de significar (DANTO, 1996, p. 63).

O autor alude que, ao interpretar uma obra de arte, sempre se volta


exigncia de uma explicao histrica. A teoria dos mundos da arte que
Danto (1996) define como uma afiliao informal de indivduos que dis-
pem de suficientes conhecimentos tericos e histricos para serem capa-
zes de praticar a busca de sentido, de significado e que, segundo o autor,
no so outra coisa seno uma explicao histrica das obras de arte.
Da Janela n 13 (Figura 1) representa esse panorama social da curiosi-
dade humana, do desejo em saber o que acontece no interior do cabar, um
voyeurismo, uma face, um espelho da sociedade. No centro da cidade, o

59
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

prdio do cassino provocava curiosidade nas pessoas que passavam por suas
redondezas, que por um motivo ou outro no podiam frequentar o requinta-
do local e ficavam apenas imaginando o que acontecia l dentro.

Figura 1: Linguagem/tcnica: pintura tcnica mista. Ttulo: DA JANE-


LA N 13. Dimenses: 77 X 40cm Ano: 1995

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Nos arredores do cassino, havia casas de famlias que se mesclavam a


outras tantas casas conhecidas como rendez-vous. Enquanto nas suas depen-
dncias indivduos divertiam-se ao bel-prazer, longe dos olhares crticos
da sociedade, no lado de fora permanecia o interesse sobre o panorama
interno desse local. Ruth Schneider pintou na obra Da Janela n 13 (Fi-
gura 1) justamente essa curiosidade aflorada, o interesse de quem est de
fora, de quem no presenciou o que ocorria dentro do estabelecimento.
A narrativa desse quadro simboliza um sentimento habitual na socie-
dade: o voyeurismo. E tambm apresenta o lado externo do prdio do caba-
r, suas janelas, suas aberturas para o mundo e o que isso representa para
a sociedade da poca: perodo de 1940 a 1950. Por essas brechas os perso-
nagens que estavam no lado de dentro igualmente podiam espiar os passan-
tes, e vice-versa. Isso expe o entorno desse local, os arredores e suas hist-
rias na cidade. Percebe-se que as formas escolhidas pela artista para repre-
sentar o jogo simblico das janelas entre o sujeito que olha de fora para
dentro e o que olha de dentro para fora indicam certa cobia, o desejo de
penetrar naquele cenrio.
Ruth, como mencionado anteriormente, intensificou a marca do pin-
cel como recurso expressivo, gesto criador valorizado principalmente pelos
expressionistas, que evitavam o acabamento polido das superfcies das suas
pinturas. Em seus ltimos anos, chegou a empregar a tinta diretamente do
tubo sobre a superfcie da tela, o que ocasionava o empastado de cor.
Essa obra ilustra um personagem especfico que pode transitar entre
esses dois mundos, figura masculina situada no canto direito superior da
pintura. A mo desse homem, que formado por traos mais angulosos
notados no contorno do nariz da figura, est localizada entre o dentro e o
fora, entre o meretrcio e a sociedade, o bendito e o maldito, expondo de
certa forma como esses clientes do cassino podiam circular livremente en-
tre o pecaminoso e a sociedade legal.
A figura masculina em destaque nas pinturas, gravuras e instala-
es de Ruth representada com os tons azuis e violetas (ver Figura 2). A
pintora usa a fora dessas cores para preencher essas formas humanas,
uma vez que simbolizam os sentimentos ambivalentes presentes na ima-
gem. O tema masculino recorrente na obra de Ruth, dado que pode ser

61
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

aproximado das suas relaes pessoais, de fundo afetivo e ambguo. A


proximidade com a figura do padrasto (pessoa importante em sua inicia-
o ao desenho, ao recorte, colagem) e a ausncia do pai biolgico, que
nunca mencionado pela pintora nos manuscritos e arquivos acessados.

Figura 2: Linguagem/tcnica: pintura com tcnica mista Ttulo: CR-


NICA DE UM CASSINO N 6 Dimenses: 95 X 126cm Ano: 1991

Acervo MAVRS Passo Fundo/RS.


Observa-se no quadro (Figura 1) a representao do feminino e do masculino personifica-
dos por sua me, Nina, e seu padrasto, Anto. Destacam-se a ambincia do cassino e a
dinamicidade das mulheres em contraposio estaticidade masculina.

Ainda no que tange ao uso das cores, o violeta sntese do vermelho


e do azul, do masculino e do feminino permeia ambos os ambientes, su-
gerindo possivelmente a coexistncia de sentimentos legados s relaes
afetivas. Se para Heller o violeta a cor de todos os pecados bonitos

62
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

(2012, p. 200), esses teriam presena dentro e fora das janelas da casa de
jogos.
De acordo com os testemunhos daqueles que o frequentavam, nas
dependncias do cassino imperavam a alegria, o prazer e a disciplina im-
postos por sua proprietria; os homens que ansiavam por um envolvimento
mais ntimo com as prostitutas, desejando transar com elas, levavam-nas
para as penses que se localizavam no seu entorno. Segundo Leopoldo
Gomes Bilhar (citado por SCHNEIDER, 1993), morador de Passo Fundo
na dcada de 1950,
ficar espionando na rua a movimentao das mulheres da vida, contratadas
ou no pelo Cassino da Maroca na Rua XV, era um grande prazer, uma
satisfao sem limites. Elas eram lindas, elegantes, andavam de carro de
praa, usavam joias raras. Estimulavam a nossa imaginao, satisfaziam
nossos desejos (SCHNEIDER, 1993).

Estimulavam a nossa imaginao... Esta frase pode ser observada


na obra Da Janela n 13 (Figura 1) o espiar pela janela, a curiosidade, o
anseio de espreitar o pecado, o deslize, o vcio, desejos intrnsecos na vida
social de uma comunidade. As formas geomtricas da obra, a moldura
das janelas, representam a sensao de pertencimento a um dos lados: o
dentro e o fora. Esse recinto de malcia, talvez pelo requinte visto nas
vestimentas de seus frequentadores e trabalhadores, capaz de trazer esse
aspecto de pecado bonito para quem est do lado de fora. Os cami-
nhantes curiosos talvez oscilassem entre opinies que iam do moral ao
imoral no interior desse local, j que o mesmo emanava luxo e ostenta-
o, desejo e lascvia.
As duas figuras humanas situadas na parte superior do quadro repre-
sentam parte da influncia do bordel frente sociedade; corrobora essa
interpretao a questo da luz inferior projetada que ilumina e d impo-
nncia para o lado superior do diagrama, imprimindo uma sensao de
que o lado de dentro era majestoso. Considerando o ar de mistrio e poder
que paira sobre a histria do Cassino da Maroca, Ruth traou linhas verticais
e de cores vivas em cima de todos os seus tons escuros.
Nas artes visuais, a linha tem, por sua prpria natureza, segundo
Dondis (1991), uma enorme energia. Nunca esttica, imvel; o elemen-
to visual inquieto e inquiridor do esboo. Onde quer que seja utilizada, o

63
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

instrumento fundamental da pr-visualizao, o meio de apresentar, em


forma palpvel, aquilo que ainda no existe a no ser na imaginao. Per-
cebe-se isso nas pinceladas em amarelo no nariz e azul claro no queixo e
plpebras, e ainda as linhas curvas em vermelho na boca.
A cor vermelha nessa obra pode ser percebida como o colorido da
vida do meretrcio. Em muitas lnguas, a palavra para colorido a mes-
ma para a cor vermelha. O azul e o vermelho, boca, queixo e plpebras dos
personagens, formam uma espcie de acorde cromtico no rosto dessas fi-
guras. Segundo Heller (2012), o vermelho, azul e ouro so o acorde do
charme, do poder, da atrao, da coragem, da conquista, todas elas quali-
dades ideais resultantes da supremacia fsica e mental. Da vida colorida
dentro do cassino. O azul usado dessa forma, segundo a autora, tem um
efeito distante. Segundo as indicaes da Teoria das Cores, o vermelho,
presente nos lbios, uma cor considerada quente em contraste com os
tons terrosos da carnao. Conforme a proposio, uma cor parecer tanto
mais prxima quanto mais quente ela for e tanto mais distante quanto mais
fria ela for, recurso utilizado pela artista nas combinaes do vermelho e do
azul. A cor transmite muitas sensaes, como cita Lilian Barros; a cor
representa uma ferramenta poderosa para transmisso de ideias, atmosfe-
ras e emoes e pode captar a ateno do pblico de forma forte e direta,
sutil ou progressiva (2006, p. 15).
Cada obra de arte autntica parece operar como uma verdadeira ori-
gem, uma vez que produz um salto para uma realidade que existe como
fruto da confluncia de diversas realidades e acontecimentos. Seja na His-
tria, na Sociologia ou na Psicologia, uma recorrncia crescente em rela-
o imagem tem surgido de estudos atentos s problemticas do ver e ser
visto. Comparativamente, a postura dos indivduos que no podiam fre-
quentar o Cassino da Maroca a dos que ficam na espreita das portas das
zonas do meretrcio da cidade para saber quem frequenta tal estilo de
recinto, independente da poca e do lugar.
A obscuridade exposta no quadro Da Janela n 13 (Figura 1) apre-
senta aspectos inexatos do mundo real, indivduos que olham e so olha-
dos, no escuro da noite admiram as janelas altas, barulhentas e luminosas
do Palcio Cassino e fantasiam sobre esse local bem como sobre seus per-

64
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

sonagens. O quadro no apenas olhado como tambm olha


essa a questo bsica que est presente na metfora das janelas de Ruth
Schneider. Por elas o cassino olhado, mas tambm olha e, de alguma
forma, zomba da sociedade e de suas regras morais. Esse quadro igual-
mente uma janela, que deixa ver, mas tambm ativo, um olha-
dor do mundo.
Essas pessoas no mesmo perodo em Passo Fundo desfrutavam de
outros ambientes de entretenimento, como os cafs da cidade. O mais fa-
moso foi o Elite, que por mais de meio sculo era tambm local de encon-
tros que determinaram e influram nos caminhos polticos, esportivos, eco-
nmicos e sociais. Meireles Duarte, morador de Passo Fundo nessa poca,
comenta:
Aos domingos, a fina flor da sociedade disputava suas poucas mesas para o
almoo, tambm de grande tradio. As grandes personalidades da cidade,
desde o prefeito, juiz de Direito, delegado de Polcia, lderes polticos e em-
presariais, tinham um local prprio e dirio para o encontro nas rodas de
caf (2007, p. 216).

Nesse contexto, percebe-se como a mulher devia comportar-se,


no frequentar os mesmos locais dos encontros masculinos, submetendo-
se a uma sociedade machista, patriarcal. Meireles Duarte relata aspectos
sociais da poca:
No Caf Elite, comemoravam-se aniversrios, datas de entidades sociais e
esportivas e havia, at, uma dependncia que era reservada para as senhoras
nas dcadas de 40, 50 e 60, pois no eram dadas a frequentar esses locais
(2007, p. 217).

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CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

Figura 3: Linguagem/tcnica: Instalao composta por uma srie de pin-


turas com tcnica mista Titulo da srie: CASSINO DA MAROCA Ttu-
lo da obra: CASSINO Dimenses: 171 X 200cm Ano: 1994

Na obra, observa-se a ambivalncia dos comportamentos sociais projetada sobre as ativi-


dades do cassino. Entre o cristianismo, representado pela cruz, e o nmero 666, citado
na Bblia como o nmero da besta, a artista pinta a agitao do lado externo do cassino, a
fachada do prdio, simbolizando, no formato da obra, um painel suspenso por fasquias
laterais que elevam a forma que representa o local perante o leitor. H uma metfora da
posio desse na sociedade, a relao dinmica entre o signo e o objeto aqui compreendi-
da como uma sensao de superioridade.

66
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A elite circulava pela cidade, as damas da sociedade frequentavam os


cafs para socializar, e, possivelmente, seus cnjuges frequentavam o re-
quintado cabar quando a noite chegava. Entravam e participavam dos pra-
zeres do cassino ou apenas passavam pela frente para olhar quem poderia
estar l. Pelos dados histricos, biogrficos e artsticos, a impresso de
que os homens poderosos da sociedade frequentavam e divertiam-se per-
dendo dinheiro na roleta de jogos e perdendo a cabea com as belas me-
ninas da Maroca.
Esse jogo do olhar e ser olhado, de olhar e dizer que no olha parece
um movimento na obscuridade, o voyeurismo presente na alma humana.
O ato de um indivduo obter prazer sexual por meio da observao de pes-
soas que podem estar envolvidas em atos sexuais, nuas, em roupa de baixo
ou qualquer vesturio que seja apelativo para o indivduo em questo, o/a
voyeur.
A luxria desse local refletia de vrias formas na sociedade passo-
fundense das dcadas de 1940 e 1950, trazia tona o desejo instintivo das
pessoas. O indivduo que olha no interage com o personagem olhado
(por vezes no ciente de estar sendo observado); em vez disso, observa-o
tipicamente a uma relativa distncia; as janelas na obra representam esse
aspecto social, histrico e cultural, o distanciamento.
A expresso multido solitria, trazida pelo escritor Armindo Trevi-
san, interessa pois, a dana ao som do bolero poderia ser animada, sensual,
ertica no salo do cassino, mas o olhar dos personagens mostra outra ex-
presso, em certa medida melancolia. Observa-se na janela superior do
quadro o olhar cado das figuras. Outro aspecto social e cultural que a obra
de Ruth sugere: as mulheres que executam esse servio poderiam desejar
um amor aos moldes romnticos.
Ruth conseguiu fragmentar no uso das cores fortes, dos grafismos
nervosos e em seus personagens com traos grotescos uma sequncia de
percepes histricas, sociais e culturais sobre o reconhecido cabar, tor-
nando toda essa expresso uma forma notavelmente complexa e, ao mes-
mo tempo, ilimitada da relao signo/objeto/interpretante frente a suas
obras.

67
CARMO, A. do; AHLERT, J. Ruth Schneider e as janelas do Cassino:
o dilema de olhar e ser olhado

Consideraes finais
O que se buscou neste texto foi uma anlise de um fragmento da srie
O Cassino da Maroca, elucidando, assim, como se interligava com a biografia
da artista e o conjunto de motivos artsticos usados para essas expresses.
As interpretaes foram feitas atravs de cdigos que norteiam a es-
colha e o significado do tema, a percepo da cor juntamente com o con-
tedo social e histrico da composio, do suporte e materiais utilizados.
Entendendo que o conceito para a compreenso de uma obra de arte pode
ter seus usos como uma forma de descrever as diferenas, algumas vezes
intensas, entre intenes e efeitos, entre como a mensagem divulgada (por
missionrios, pintores, governos e outros) e como recebida por um pes-
quisador com suas referncias pessoais e tericas.
Imagens so um meio atravs do qual historiadores podem recuperar
experincias passadas, contanto que eles estejam atentos complexidade
da iconografia. Para utilizar a evidncia de imagens de forma segura e efi-
caz, necessrio, como no caso de outros tipos de fontes, estar consciente
de suas fragilidades. As leituras so realizadas, invariavelmente, no presen-
te em direo ao passado. Ler uma imagem pressupe partir de valores,
problemas, ansiedades e padres de contemporaneidade do autor. Esses
fatores criam muitas possibilidades de leitura e interpretao das imagens,
sobretudo porque so testemunhas mudas, e tarefa difcil traduzir em pa-
lavras o seu testemunho.
No caso das produes de Schneider, esses aspectos tomam dimen-
ses bastante ambguas, considerando que, ao olhar do pesquisador-espec-
tador, soma-se a narrativa pessoal da artista, suas impresses e subjetivida-
des no que abrange a escolha temtico-conceitual e tcnico-lingustica de
suas obras. Quando registra: trabalhando sozinha que criei meu estilo
prprio de cores fortes, e em certos momentos usando as mos, os dedos
diretos na pintura a leo (Arquivos do MAVRS), expe mais do que esco-
lhas estticas, mas a relao visceral com a arte.
No cabe aos objetivos deste artigo esgotar as possibilidades de inter-
pretao da obra e biografia de Ruth Schneider, tampouco dar pintura
Da Janela n 13 o estatuto de testemunho histrico das relaes sociocul-
turais que permeavam a ambincia do Cassino da Maroca e da zona do mere-

68
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

trcio de Passo Fundo, mas apresentar olhares conjeturados pelas interfaces


entre memria, representao esttica e subjetividades possveis na relao
espectador-autor.

Referncias
ARQUIVO PESSOAL Ruth Schneider [Museu de Artes Visuais Ruth Schneider
(MAVRS) Passo Fundo (PF), Rio Grande do Sul].
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plsticas. 2. ed. So Paulo: Melhoramentos, 1990.
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haus e a teoria de Goethe. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2006.
BERGSON, Henri. Matria e memria: ensaio sobre a relao do corpo com o
esprito. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2006.
DANTO, Arthur Coleman. Aprs la fin de lrt. Paris: Seuil, 1996.
DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. Trad. de Paulo Ne-
ves. So Paulo: Editora 34, 1998.
______. La pintura encarnada. Trad. de Manuel Arranz Valncia: Correspondn-
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DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. So Paulo: Martins Fontes,
1991.
DUARTE, Meireles. Os Cafs de Passo Fundo. In: LECH, O. (Org.). 150 momen-
tos mais importantes da histria de Passo Fundo. Passo Fundo: Mritos, 2007.
HELLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoo e a razo.
Barcelona: Garamond, 2012.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PAREYSON, L. Esttica: teoria da formatividade. Traduo de E. F. Alves. Petr-
polis: Vozes, 1989.

69
A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

Bruna Telassim Baggio1

O uso da imprensa para a escrita da Histria relativamente novo.


Por muito tempo ficou exclusa em uma hierarquia qualitativa das fontes
histricas, em que seu carter subjetivo era entendido como um fator limi-
tador do seu uso pela historiografia. Devido s mudanas nos mtodos e
teorias historiogrficas, com a corrente da Nova Histria evidenciaram-se
as potencialidades da imprensa, que representa hoje, entre os historiadores,
uma fonte primria reconhecida. Alm disso, a historiografia recente pas-
sou a dar voz aos sujeitos margem da sociedade, como as mulheres, as
meretrizes e outros (LUCA, 2010). Neste captulo, analisaremos a veicula-
o das ideias e representaes sobre a zona do meretrcio da cidade de
Passo Fundo-RS no perodo de 1949 at 1955 nas pginas do jornal passo-
fundense O Nacional, bem como a campanha de retirada desse espao do
centro da cidade na dcada de 1950.
Ao privilegiarmos a imprensa, mais especificamente O Nacional, como
fonte para nosso estudo, entendemos que ela se constitui num registro im-
presso dos acontecimentos da poca, sem descuidar, no entanto, que foi
elevado a esta categoria acontecimento por uma escolha dentro de uma
multiplicidade de acontecimentos que permeiam a vida social. Por isso
fundamental levarmos em considerao essa subjetividade, procurando iden-
tificar quais as foras que agem sobre uma ou outra representao e como
elas poderiam influenciar a realidade ou mesmo quais as relaes que man-
tm com a realidade.

1
Acadmica do curso de Histria pela Universidade de Passo Fundo (UPF).

70
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Atravs desse veculo de informaes, O Nacional, possvel conhe-


cer os acontecimentos locais da poca ligados zona do meretrcio, bem
como aspectos significativos do imaginrio da sociedade e da histria desse
espao que se configuram como espaos sociais e polticos alternativos em
relao aos espaos oficiais e pblicos tradicionais na poca em foco (NAS-
CIMENTO, 2003, p. 1), que marcou a histria da cidade de Passo Fundo.
Nesse sentido, recorremos a Thompson (2005) para o entendimento
do poder simblico exercido pela mdia sobre a sociedade. Para o autor, os
meios de comunicao so um tipo distinto de atividade social que envol-
ve transmisso e recepo de formas simblicas e implica utilizao de re-
cursos de vrios tipos, todos eles decorrentes de alguma forma tcnica (p.
24). Para o autor, as aes simblicas podem provocar reaes, liderar
respostas de determinado teor, sugerir caminhos e decises, induzir a crer e
a descrer, apoiar os negcios de estado ou sublevar as massas em revolta
coletiva (p. 24).
A zona do meretrcio localizada na rua Quinze de Novembro na ci-
dade de Passo Fundo-RS teve seu auge nos anos de 1939 a 1945 e ficou
reconhecida pelo Cassino da Maroca estabelecimento frequentado por
uma elite. Entretanto, havia mais de quarenta estabelecimentos na locali-
dade entre casas de prostituio, bem como restaurantes, bares, casas de
jogos, aougues, entre outros (NASCIMENTO, 2003). Marginalizada pela
sociedade legal, a zona do meretrcio representava ao mesmo tempo um
lugar alternativo dentro de um contexto sociopoltico repressivo e de suma
importncia para a economia da cidade.

O Nacional
O perodo analisado inicia no ano de 1949, quando o jornal inaugu-
rava a campanha em favor da retirada das casas de prostbulo da rua Quin-
ze de Novembro at o momento da efetiva retirada da zona do meretrcio
do centro da cidade no ano de 1955. O jornal O Nacional iniciou suas ativi-
dades em 1925 e atualmente o jornal mais antigo da cidade de Passo
Fundo que ainda permanece em circulao. No perodo abordado, o jornal
pertencia ao jornalista e ex-deputado estadual Mcio de Castro e circulava
periodicamente de segunda-feira a sbado. Foi algumas vezes interrompi-

71
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

do, porm nunca ficou fora de circulao por mais de um ms. No ano de 1949,
o jornal custava CR$ 0,50; j no incio de 1955, o valor era de CR$ 1,00.
As notcias eram apresentadas com textos formais, escritas de manei-
ra bastante rebuscada, no separadas claramente umas das outras (diversas
vezes, um artigo publicado na primeira pgina do jornal conclua-se na
ltima pgina). A fotografia era um recurso pouco utilizado pelo jornal. A
Figura 1 representa a nica foto de um estabelecimento situado na rua Quin-
ze de Novembro publicada pelo jornal entre os anos analisados.

Figura 1: Anncio do Cassino Palcio (popularmente conhecido como


Cassino da Maroca), frequentado pela alta sociedade, situado na rua Quinze
de Novembro.

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 28/02/1949, p. 3

72
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Uma Verruga no Nariz


No ano de 1949, uma coluna denominada Uma Verruga no Nariz
da Cidade inaugurou a campanha do jornal a favor da retirada da zona do
meretrcio do centro da cidade. Desde o incio do ano, o jornal havia noti-
ciado reclamaes e ocorrncias de violncia na zona do meretrcio, porm
essa foi a primeira vez que o jornal discursou explicitamente sobre a ques-
to do espao ocupado na cidade pela zona do meretrcio:
O meretrcio constitui um verdadeiro problema para a cidade. E um cons-
tante desassossego para seus habitantes pelo simples fato de achar-se locali-
zado a dois passos do centro [...] Somos de parecer, por isso, que o meretr-
cio devia ser instalado em recanto afastado, fora da cidade, libertando a
Metrpole da Serra dessa chaga purulenta que lhe afeia as faces e a torna
clebre, nesse respeito, em todo o Rio Grande do Sul, sendo o motivo obri-
gatrio das conversas dos viajantes de todas as latitudes. [...]2

No mesmo ano, a zona do meretrcio havia ocupado com frequncia


as pginas de O Nacional. Em relao aos demais anos estudados, 1949 foi o
ano em que ela apareceu mais vezes na capa do peridico. Essa regularida-
de justificou-se pelo homicdio ocorrido no ms de maro quando, confor-
me divulgao do jornal, a Patrulha da Madrugada, encarregada de man-
ter a ordem noturna na cidade, espancou Herodes Nunes do Rosrio na
zona do meretrcio. Herodes faleceu devido a uma hemorragia cerebral.
Na semana anterior ao caso, o jornal j havia noticiado um espancamento
por parte da Patrulha de um homem chamado Waldir Kern, juntamente
com seu companheiro, dentro do Cassino Palcio.3 O jornal promoveu uma
srie de reportagens e charges denunciando os abusos de autoridade no
local e publicando depoimentos dos moradores da rua Quinze de Novem-
bro sobre o homicdio de Herodes:
Eu estava dormindo quando acordei com gritos do rapaz. Levantei-me e fui
janela. Assisti ento ao doloroso quadro de ver um cidado espancado
pelos prprios mantenedores da ordem. Assisti quando a vtima dissera aos
soldados que no podia levantar-se por ter recebido uma pancada na cabe-
a, produzida por eles, soldados. Esses, ento, arrastaram o infeliz pelas
pedras que jazem nessas ruas, lomba acima. De momento em momento,
jogavam a vtima a solo e davam-lhe pontaps e pisoteavam sobre ele. Vi

2
Uma Verruga no Nariz da Cidade. O Nacional. Passo Fundo, 1949, p. 9, 10 out. de 1949.
3
Os Acontecimentos do Cassino Palcio. O Nacional, Passo fundo, 1949, p. 4, 17 fev. de 1949.

73
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

tambm, nessa ocasio, outra prtica deplorvel: um senhor que se aproxi-


mava do local, atrado, talvez, pelo ato de selvageria, parou em frente ao
meu armazm. Um soldado, que no era do grupo, veio logo em sua direo
e empurrou-o dizendo-lhe que se afastasse, deu-lhe um pontap para que
sasse do local.4

Em outras reportagens, o jornal publica depoimentos denunciando o


comportamento da Patrulha com os moradores de rua aps o caso de ho-
micdio:
[...] Ouvi o locutor dizer que Herodes tinha sido todo cortado pelo doutor
no necrotrio, ento exclamei: Pobrezinho do rapaz! Foi cortado! Logo
um policial quis me pegar, s porque disse aquilo, mas eu fugi. Ele quis me
segurar pela mo, ferindo-me ento com as unhas. Mas o policial voltou
horas depois e prendeu-me quando eu danava, levando-me cadeia onde
permaneci toda a noite e grande parte da manh.5

O caso da Patrulha da Madrugada e de Herodes ganhou espao tam-


bm no jornal Dirio da Manh, peridico influente na poca e que, diferen-
temente de O Nacional, posicionou-se em defesa da Patrulha. Ainda no ms
de maro, o Dirio da Manh denunciava que, aps o caso de Herodes, [...]
a polcia passo-fundense tem se visto em situaes bastante delicadas, para
cumprir sua misso, principalmente na zona do meretrcio, onde os desor-
deiros e os bbados continuam dando alteraes6. O homicdio na zona
do meretrcio continuou ocupando as pginas do jornal O Nacional at dois
anos aps o ocorrido. Em 1950, O Nacional acompanhou e divulgou os de-
talhes do julgamento do caso e, em 1951, o jornal fez uma pequena refern-
cia ao aniversrio de morte de Herodes Nunes.
No decorrer da pesquisa sobre a rua Quinze de Novembro7, foram
realizadas entrevistas a fim de (re)conhecer a memria sobre a rua presente
na cidade sobre a zona do meretrcio. Frequentemente, a Patrulha da Ma-
drugada foi citada pelos entrevistados, lembrada pelo seu carter repressor:

4
VANDALICO PATRULHAMENTO! O Nacional, Passo Fundo, 1949, p. 4, 15 mar. de 1949.
5
BOCA FECHADA SINO CADEIA! O Nacional, Passo Fundo, 1949, p. 4, 14 mar. de 1949.
6
A polcia est carregando no clo! O Dirio da Manh. Passo Fundo, 1949, p. 4, mar. de 1949.
7
A pesquisa sobre a zona do meretrcio na imprensa faz parte de um projeto maior intitulado
Quinze de Novembro: fronteiras da (in)tolerncia. Realizado pelo Laboratrio de Memria
Oral e Imagem (LAMOI), o projeto fez uso de fontes diversas (imprensa, bibliografia, memria
oral e imagem) a fim de (re)conhecer a memria oral da rua na cidade de Passo Fundo. Os
resultados do projeto foram divulgados por meio de variados recursos (livro, rdio,
documentrio).

74
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Bem, a violncia sempre existiu, principalmente nesse meio aqui, a prpria


zona, como falei anteriormente. 90% da populao andava armada. A pa-
trulha era muito rigorosa, e o delegado era o Serafim de Melo: um homem
muito enrgico, impe respeito. Ocorriam vrios crimes e ficava por isso mes-
mo, no se investigava, morriam as pessoas, se enterrava e ficava assim mes-
mo. O Serafim de Melo deixou histria aqui em Passo Fundo, um homem
tambm muito rigoroso, andava armado com um revlver, uma espada, um
homem alto e forte e as pessoas temiam muito, n! Tinham medo dele. Olha,
vem o Serafim a! E j era o suficiente para o pessoal se mandar do local, n?!
E a patrulha era apoiada pelo delegado, ento fazia o que queria.8

Alm do carter repressor, a forma como eram realizadas as aborda-


gens da Patrulha tambm constitui parte da memria coletiva sobre a rua:
Olha, a patrulha era permanente, mas o que acontecia l, houve um mo-
mento que motivado por autoridades eclesisticas, com a aproximao do
congresso eucarstico e tudo, e j umas famlias de l j querendo tirar eles
de l porque estavam aumentando muito, estava expandindo muito a zona
do meretrcio. De quinze casas j tinha passado para trinta casas. Ento
comeou um delegado chamado Flagras a fazer batidas na segunda-feira
eles cercavam toda a zona do meretrcio, de preferncia cedo da manh (6
horas,7 horas) e batiam casa por casa pedindo documento, e aquele que no
tivesse a carteira de trabalho em dia, ou justificasse que trabalhava, ou ia em
cana. Mas ir em cana no era o problema; o problema era que tu ias a p. A
p tu caminhava l desde da Quinze at a delegacia, que ficava na escada
alta. A escada alta era em frente antiga prefeitura, ali era a delegacia.
Ento, o vexame, apesar de ser meio cedo da manh, mas o vexame de tu
passares nas proximidades de colgios, de encontrar conhecidos, tu vinhas
escoltado pela polcia, pela brigada militar ou por delegados da polcia civil.
Depois de uma triagem, ficava l por 2 ou 3 horas e ento era liberado e
assinava um termo de vagabundagem.9

Os patrulheiros Santos Ismar Rodrigues Moreira, Amantino Lima


e Silva e Dorival Farias foram condenados em novembro de 1950. Apesar
das denncias de abusos da Patrulha da Madrugada na rua Quinze de
Novembro, no final do ano de 1949, o jornal O Nacional iniciou a campa-
nha Uma Verruga no Nariz da Cidade com uma srie de reportagens
sobre a necessidade de deslocamento da zona do meretrcio para longe do
centro da cidade.

8
FREITAG, Jaime. Quinze de Novembro: fronteiras da (in)tolerncia. [depoimento 23 nov de
2015]. Passo Fundo: Entrevista concedida a Marlise R. Meyrer.
9
PINHEIRO, Wilson Nascimento. Wilson Nascimento Pinheiro. Quinze de Novembro: fronteiras
da (in)tolerncia. [depoimento 23 nov de 2015]. Passo Fundo: Entrevista concedida a Marlise
R. Meyrer.

75
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

Figura 2: Foto de Herodes Nunes do Rosrio publicada na capa de O


Nacional

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 17/02/1949, p. 4

O que o povo reclama


A campanha proposta em 1949 para retirar a zona do meretrcio do
centro da cidade no surtiu efeitos e reapareceu somente quatro anos aps
sua primeira publicao, na edio de 15/04/1954, em um curto artigo na
ltima pgina, denominado O problema da localizao do meretrcio. A
questo s ganharia relevncia nas pginas do jornal em 1955 com a apro-
ximao do centenrio de Passo Fundo (1957). Porm, a partir da anlise
do perodo, perceptvel que, entre os anos 1949 e 1955, o jornal no dei-
xou de fazer uma campanha implcita a respeito da localizao da zona do
meretrcio.
A coluna O que o povo reclama era publicada sem uma periodici-
dade especfica, destinada a dar espao aos passo-fundenses, leitores do
jornal, para expor seus descontentamentos com problemas da cidade. A

76
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

temtica das meretrizes e da rua Quinze de Novembro foi um dos temas


mais abordados na coluna:
De alguns anos a esta parte, a zona do meretrcio, que j ocupa uma vasta
rea nesta cidade, vai se alastrando pelos bairros, intrometendo-se entre as
casas de famlia, procurando avassalar todos os recantos, pondo em polvo-
rosa os moradores de diversas ruas que se consideram atingidos no seu de-
coro.[...] Torna-se necessria uma ao enrgica da polcia, proibindo a con-
tinuao de tal fonte de escndalo, sem o que veremos, dentre em breve,
todas as ruas tomadas pelas marafonas inescrupulosas, ferindo profunda-
mente o ambiente de moralidade e respeito da cidade.10

Mesmo as reclamaes em relao s casas de prostituio que no


eram situadas na zona do meretrcio da rua 15 de Novembro faziam refe-
rncia a tal rua:
Os moradores das Vilas Luiza e Schell, bem como daquelas imediaes,
protestam contra o alastramento do meretrcio para aquelas bandas, saindo
da zona demarcada da rua 15 de Novembro; houveram por bem fazer um
abaixo-assinado, reclamando contra a falta de decoro das mulheres que se
expem em plena via publica [...]11

Domingos (1997) destacou a heterogeneidade das relaes sociais na


cidade de Passo Fundo na dcada de 1950. Para a autora, o plano urbans-
tico da cidade contribua para a concentrao dos segmentos considerados
de nvel inferior no centro da cidade, sendo que as camadas da elite local
tinham que conviver com as demais categorias sociais: [...] o convvio com
essa heterogeneidade social e cultural parecia insuportvel para aqueles que
tinham uma viso excludente do que deveria ser uma cidade civilizada
(DOMINGOS, 1997, p. 7).
De fato, Passo Fundo vivenciava na dcada de 1950 uma crescente
urbanizao, que pode ser evidenciada nas notcias do jornal O Nacional da
poca, como: a criao da Sociedade Pr-Universidade de Passo Fundo
(SPU), a instalao dos Correios, a vinda do primeiro caminho de bom-
beiros e a obra que ligaria a ferrovia de Passo Fundo a Porto Alegre, entre
outras. Nesse contexto de transformaes, a zona do meretrcio no centro

10
O que o povo reclama: Alastram-se os <rendez vous> na cidade. O Nacional, Passo Fundo,
1951, p. 2, 20 mar. de 1951.
11
O que o povo reclama: Meretrcio nas Vilas Schell e Luiza. O Nacional, Passo Fundo, 1949, p.
2, 12 jan. de 1951.

77
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

da cidade representava um problema que evidentemente o jornal O Nacio-


nal divulgava em sua coluna O que o povo reclama. O meretrcio apare-
ceu 22 vezes das 174 vezes em que a coluna foi publicada, sendo que os
demais temas nunca se repetiram na coluna no perodo analisado, ou seja,
somente a questo da zona do meretrcio era recorrente entre as reclama-
es publicadas no perodo:

Figura 3: Periodicidade da zona do meretrcio na coluna O que o povo


reclama

Fonte: Dados da pesquisa

A zona do meretrcio como um espao de violncia


Alm da coluna O que o povo reclama, a campanha do jornal O
Nacional frente zona do meretrcio realizou-se tambm de forma implcita
a partir de artigos e ocorrncias policiais. Cenas de violncia na zona do
meretrcio noticiadas pelo jornal no eram incomuns, ocupando princi-
palmente a coluna Ocorrncias Policiais na ltima pgina pgina 4
do peridico. As notcias relatavam conflitos das meretrizes entre si e entre
seus clientes, que frequentemente as agrediam:
O indivduo armado de faca rua 15 de novembro, na zona do meretrcio,
desafiava todos os que passavam por ali, provocando-os para briga, culminan-

78
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

do com a tentativa de agresso meretriz Ana de Tal, dizendo que ia degol-


la, tendo mesmo segurado Ana pelos cabelos, do que ela se esquivou.12

No ano de 1952, em um perodo de dez dias, o jornal noticia que trs


mulheres foram vtimas de tentativa de homicdio, especificamente degola-
mento. O jornal O Nacional satirizava a situao tratando a prtica como
moda: [...] sendo os homens, em boa porcentagem, seres amigos da
moda, tanto bastou para um individuo tentasse degolar sua amante no dia
de ontem13. A violncia contra a mulher manifesta-se nesses espaos com
mais intensidade devido condio ilegal da prostituta frente sociedade,
que a deixa mais vulnervel a agresses dos clientes e tambm arbitrarie-
dade da polcia (MOREIRA; MONTEIRO, 2012).
Entre as vezes em que a zona do meretrcio ocupou a capa do jornal,
95,45% das reportagens eram relacionadas violncia, sendo que as char-
ges faziam referncia ao homicdio de Herodes, campanha contra a loca-
lizao da zona e a roubos de relgios. As abordagens do jornal podem ser
observadas no quadro abaixo.

Figura 4: A zona do meretrcio na capa do jornal O Nacional entre os anos


1949-1955
TENTATIVA CHARGES FURTOS RECLAMA- CONFLITOS PRISES CAMPA- OUTROS
DE ES NHA DE
HOMICDIO/ RETIRADA
/HOMICDIOS
1949 10 4 3 1
1950 1 1 1 2 3 2
1951
1952 2
1953 1 1 1
1954 1 \
1955 1 4 1 1 3

A coluna outros corresponde a abordagens no relacionadas violncia. Referem-se a


um incndio na rua 15 de Novembro e a inaugurao de um restaurante novo; nesse caso,
no foi usado o termo zona do meretrcio, mas sim Rua 15 de Novembro.

12
Ocorrncias Policiais. O Nacional, Passo Fundo, 1951, p. 4, 25 jan. de 1951 .
13
Quiz degolar a amante com uma lamina de gilete! Foi impedido por feliz interveno do Sr.
Albino Michelleto. O Nacional, Passo Fundo, 1952, p. 4, 24 maro de 1952 .

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BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

As charges
As charges abordaram a zona do meretrcio na capa do jornal O Na-
cional diversas vezes ao longo do perodo analisado. Da mesma forma que a
imprensa se constitui em uma fonte relativamente nova para os historiado-
res, as charges nem sempre tiveram grande importncia para a historio-
grafia, pois durante muito tempo elas eram consideradas como um elemen-
to ilustrativo, no fundamental para a explicao da histria (MACDO;
SOUZA, p. 1). Foi com a Nova Histria que as potencialidades das charges
para a historiografia foram evidenciadas, pois ela resume situaes polti-
cas que a sociedade vive como problemas e os re-cria com os recursos gr-
ficos que lhe so prprios (TEIXEIRA, 2005, p. 73 in GAWRYSZEWSKI,
2008, p. 6).
Sendo assim, a produo de uma charge est necessariamente vin-
culada ao contexto scio-histrico imediato e, portanto, apresenta elemen-
tos concretos para anlise do seu respectivo tempo histrico (MACDO;
SOUZA, p. 4). As charges abaixo demonstram algumas questes ligadas
zona do meretrcio, representadas pelo jornal O Nacional. No caso de Hero-
des, as charges foram frequentemente usadas para criticar a Patrulha da
Madrugada.

Figura 5: Charge fazendo referncia


ao caso de Herodes. O negrinho,
como o chamava o jornal O
Nacional, foi assassinado pela
Patrulha da Madrugada, que o
espancou at a morte na zona do
meretrcio

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo


Fundo. O Nacional em 08/04/1949, p. 1

80
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Figura 6: Charge fazendo referncia ao comportamento da Patrulha da


Madrugada

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 06/04/1949, p. 1

As charges da Figura 5 e Figura 6 evidenciam os personagens fre-


quentadores da zona do meretrcio. Sujeitos masculinos preocupados com
o controle exercido pela Patrulha. Enquanto a primeira charge retrata dois
malandros da noite de Passo Fundo (identificados pelas roupas e na pos-
siblidade da priso) que temem a violncia, a segunda retrata dois sujeitos,
provavelmente da sociedade formal passo-fundense, frequentadores da zona
e que lamentam o fim daquele espao de lazer frequentado por eles. Elas
evidenciam, atravs do humor, as controvrsias sobre a retirada da zona da
Quinze. Por isso a necessidade da intensificao da campanha.

81
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

Figura 7: Charge satirizando a Patrulha da Madrugada

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 09/04/1949, p. 1

A charge acima (Figura 7) possivelmente uma resposta s acusa-


es de algum tipo de exagero nas denncias sobre a violncia da rua Quin-
ze. Atravs da charge o pblico informado que era um milagre no sair
machucado de uma milonga.
Outro tema explorado pelas charges foi o afastamento da zona do
meretrcio do centro da cidade em 1955.

82
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Figura 8: Charge satirizando a resistncia das meretrizes na retirada da


zona do meretrcio

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 08/02/1955, p. 4

A charge da Figura 8 apresenta a zona toda destruda. Ironiza a posi-


o da mulher diante de um fato j consumado. A desorganizao da cena
atrs da mulher refora a imagem de decadncia e desordem do local, que o
jornal vinha se esforando em construir. Ao mesmo tempo, o tamanho da
figura feminina e sua postura diante do inspetor(?) lembra o poder que as
donas das casas de prostituio tinham sobre o local.

83
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

Figura 9: Charge satirizado a transferncia da zona do meretrcio

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 10/02/1955, p. 1

Figura 10: Charge sobre transferncia da zona do meretrcio, criticando a


existncia do local em qualquer localidade

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 12/02/1955, p. 1

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Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Figura 11: Charge criticando o fato do delegado que iniciou a campanha da


extino da zona do meretrcio ser transferido para o municpio de Marau

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 02/03/1955, p. 1

Figura 12: Charge criticando a transferncia do delegado, apoiando a trans-


ferncia da zona do meretrcio

Fonte: Arquivo Histrico Regional, Passo Fundo. O Nacional em 03/03/1955, p. 1

85
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

As charges acima apresentam a repercusso do afastamento da zona


do meretrcio entre o pblico masculino da cidade, identificando-o como o
pblico frequentador da rua. As roupas e acessrios apresentam sujeitos da
elite, preocupados com a transferncia do local. O humor das charges 9, 10,
11 e 12 resulta da inverso da situao, ou seja, a retirada do delegado ou
das famlias e a manuteno da zona no mesmo local, expressando o ima-
ginrio da poca em relao ao movimento de retirada, ou seja, muitos
homens de bem ficariam descontentes.

A retirada da zona do meretrcio da rua Quinze de Novembro


A quantos quilmetros da cidade deve ser colocado o meretrcio? Seja qual
for a distncia, estar muito perto... A charge do dia 12 de fevereiro de 1955,
estampada na primeira pgina do jornal O Nacional, denunciava novamen-
te a questo da localizao da zona, pois foi no ano de 1955, com a aproxi-
mao do centenrio da cidade, que a campanha a favor da retirada da
zona do meretrcio, apoiada por outras instituies, ganharia destaque no
jornal. Retomada em fevereiro a partir da notcia da determinao do dele-
gado Melgar para o fechamento dos dancings na rua Quinze de Novem-
bro, a campanha trouxe a questo da homossexualidade, nunca citada no
jornal no perodo de 1949-1954, como uma das justificavas para a retirada
da zona em 1955:
Poude comprovar a polcia, imperava nos mesmos a prtica do homossexu-
alismo, em compartimentos superiores e especiais, constituindo fonte pere-
ne de escndalos. Tratava-se de elementos vindos de Porto Alegre, direta-
mente a esta cidade, que se entregavam desbragadamente pratica perversa,
manchando negramente o bom nome da cidade.14

As medidas de afastamento da zona do meretrcio do centro da cida-


de no foram um fenmeno exclusivo da cidade de Passo Fundo. As zonas
de tolerncia constitudas em So Paulo no incio do sculo XX sofreram a
influncia da expanso capitalista nos espaos marginais, sendo que as me-
retrizes foram empurradas pelas picaretas do progresso e obrigadas pela
polcia de costumes a procurar refgio em partes mais distantes da cidade.

14
Represso aos escndalos e IMORALIDADE. O Nacional, Passo Fundo, 1955, p. 4, 03 fev.
de 1955.

86
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

(RAGO, 2008 P.69). Ficou evidente que a progressiva urbanizao de Pas-


so Fundo, a aproximao das comemoraes do centenrio da cidade e a
convivncia heterognea nas relaes sociais afetaram a localizao da zona
de tolerncia que no era mais tolerada.
No decorrer do ano de 1955, a campanha no jornal foi obtendo apoio
das demais instituies interessadas no afastamento da zona do meretrcio,
que publicava entrevistas de mdicos, vereadores, advogados e do vigrio,
entre outros, que confirmavam e argumentavam a sada das casas de prosti-
tuio da rua Quinze de Novembro. O jornal passou a publicar artigos solici-
tando aos passo-fundenses a venda de terrenos afastados do centro para a
fixao das meretrizes, bem como exigindo que as proprietrias vendessem
suas casas e se mudassem o quanto antes para as reas mais afastadas:
Onde sero localizadas as meretrizes? Isso, para muitos, parece difcil, mor-
mente quando se pleiteia um afastamento pronunciado, distante dos dom-
nios familiares. No tanto assim... O sr. Prefeito Municipal poder esco-
lher a rea destinada ao meretrcio, dando-a a preos mdicos, dois, trs,
quatro ou cinco quilmetros afastada da cidade. Se isso no servir, pois que
as marafonas se mudem para outras plagas... Alis, de seu comrcio correr
as praas, como qualquer vendedor ambulante...15

Conforme o jornal, Flores, uma das personalidades mais conhecidas


da zona do meretrcio, gerente do Cassino Palcio e dono de um dancing
situado na rua Quinze de Novembro, foi o primeiro que se comprometeu a
retirar-se do centro da cidade. O jornal foi noticiando a campanha de reti-
rada das meretrizes diariamente at a efetivao do prazo de um ano a
partir de fevereiro de 1955. Alvo de atuao dos interesses da imprensa,
igreja, poder pblico e parte da sociedade, as meretrizes, aps receberem o
prazo para a retirada, foram se fixando em bairros afastados, mais mar-
gem do centro, como os bairros Petrpolis e Xangri-l. Entretanto, algumas
fontes orais indicam que nem todas as casas de prostbulo se retiraram. A
respeito da retirada das meretrizes, o jornalista passo-fundense, radialista na
cidade de Passo Fundo na poca do auge da zona do meretrcio, comenta:
[...] Prefeito, igreja e tudo, no admitiu: Mas como vo continuar com isso
a no centro da cidade, com Cassino? da arregimentaram vrias ideias in-
fluentes, e foi ligeirinho pra tirar elas dali, ligeirinho. Mas engraado, quan-

15
A Localizao do Meretrcio. O Nacional, Passo Fundo, 1955, p. 4, 10 fev. de 1955.

87
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

do elas foram pra l n, aquelas casas menores, de menor expresso, ainda


ficaram algumas ali, ento os caras que vinham por aqui, digo U, mas no
tem mais a Maroca, no tem mais...?, Ah mas ali tem, aquela ali conti-
nua...16

Maria Teresa de Dreher, moradora da rua Quinze de Novembro h


63 anos, tambm comenta a questo da retirada:
J tava sendo centro aqui n e eles queriam modificar tudo aqui ento bota-
ram elas l longe, mas elas no queriam ir, deram um campo uma coisa l,
mas elas no queriam ir, ficava muito contramo [...] Com esses que tinham
mais dinheiro j foram n, da ficaram aquelas mulher mais pobre, aquelas
dona de casa mais pobres, que no queriam sair... Mas o que tinha dinheiro
j foi se mandando. 17

Alm da efetiva medida de retirada, a zona do meretrcio passou de


fato a ser controlada. No dia 15 de fevereiro de 1955, o jornal O Nacional
divulgava um artigo assinado pelo delegado de polcia Joaquim Germano
Melgar declarando algumas medidas a serem empregadas pela polcia
quanto prostituio:
a) Localizar as casas de tolerncia em ruas escusas, afastadas das igrejas,
templos, associaes, casas de educao e instruo; b) Manter nessas casas
as vidraas sempre fechadas e guarnecidas de cortinas; c) Proibir que as
prostitutas se conservem nas janelas e portas de suas casas e perambulem
pelas ruas em atitudes provocadoras; d) Obrigar as mesmas a fecharem suas
casas em determinada hora da noite; e) Organizar um rol ou um pronturio
das meretrizes domiciliadas no local com a identificao e de mais dados
referentes a cada uma; f) Instituir o exame mdico peridico das mulheres,
obrigando a tratamento as afetadas por molstias suspeitas; g) Inspecionar as
casas de tolerncia a fim de prevenir os delitos e fiscalizar a boa execuo das
determinaes policiais. Isto quanto prostituio pblica ou ostensiva [...]18

As medidas tomadas para o controle da zona do meretrcio no cons-


tituram uma realidade restrita somente ao municpio de Passo Fundo.
Margareth Rago no livro Os Prazeres da Noite: Prostituio e Cdigos da
sexualidade feminina em So Paulo (1890-1930) expe um panorama dos
pores da cidade (como chama as zonas de meretrcio) e cita algumas

16
DUARTE, Antonio Augusto Meirelles. A Zona do Meretrcio na Imprensa: depoimento. [18 de
Janeiro de 2016]. Passo Fundo: Entrevista concedida a Marlise Meyrer.
17
DREHER, Maria Teresa de. A Zona do Meretrcio na Imprensa: depoimento [15 de janeiro de
2016]. Passo Fundo: Entrevista concedida a Marlise Meyrer.
18
Compete policia a vigilncia sobre a prtica do lenocnio. O Nacional. Passo Fundo, 1955, p.
2, 15 fev. de 1955.

88
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

medidas tomadas em So Paulo no ano de 1896, uma atuao direta do


Estado na organizao da vida do submundo (RAGO, 2008, p. 112):
a) No so permitidos os hotis ou conventilhos, podendo as mulheres p-
blicas viver unicamente em domiclio particular, em nmero nunca exceden-
te a trs; b) As janelas de suas casas devero ser guarnecidas, por dentro, de
cortinas duplas e, por fora, de persianas; c) No permitido chamar ou
provocar os transeuntes por gestos ou palavras e entabular conversao com
os mesmos; d) Das 6hs da tarde s 6hs da manh nos meses de Abril e Se-
tembro, inclusive, e das 7hs da tarde s 7hs da manh dos demais, devero
ter as persianas fechadas, no lhes sendo permitido conservarem-se s por-
tas; e) Devero guardar toda decncia no trajar uma vez que se apresentem
s janelas ou saiam rua, para o que devero usar de vesturios que resguar-
dem completamente o corpo e o busto; f) Nos teatros e divertimentos pbli-
cos que frequentarem devero guardar todo o recato, no lhes sendo permi-
tido entabular conversao com homens nos corredores ou nos lugares que
possam ser observados pelo pblico (RAGO, 2008, p. 113-155).

As medidas implementadas no sculo XIX em So Paulo tambm


foram uma iniciativa do delegado da poca (Cndido Motta). Em geral, em
ambos os decretos, perceptvel que visavam limitar qualquer expresso
autnoma das meretrizes, definindo seus horrios, vestimentas, procuran-
do isolar do mundo exterior o espao das relaes ilcitas (RAGO, 2008,
p. 114).
Esse confinamento das zonas de meretrcio em um determinado es-
pao da cidade (geralmente mais afastadas) foi um fenmeno nacional que
se refletiu na cidade de Passo Fundo. Em 1955, quando as meretrizes se
retiraram da rua Quinze de Novembro por determinao das autoridades,
tiveram que se estabelecer em bairros afastados do centro da cidade.

Concluso
A zona do meretrcio, apesar de ter sido um espao margem, era
tambm frequentada pela alta sociedade, porm medida que representava
um obstculo aos interesses dessa mesma sociedade e ao progresso urbans-
tico, as meretrizes tiveram que se retirar. Esses interesses foram representa-
dos pelo O Nacional na campanha de retirada.
A fonte jornalstica no presente trabalho foi de suma importncia,
tendo em vista que os processos judiciais e documentos oficiais relaciona-
dos rua Quinze de Novembro nas primeiras dcadas do sculo XX so de

89
BAGGIO, B. T. A zona do meretrcio na imprensa:
jornal O Nacional (1949-1955)

difcil acesso, pois a zona do meretrcio ainda representa uma histria na


cidade de Passo Fundo que muitos querem esquecer, ao menos partes dela.
A partir da publicao de O Nacional, em 1949, a respeito do alcance
da zona do meretrcio, descrevendo-a como o motivo obrigatrio das con-
versas dos viajantes de todas as latitutes19, podemos observar a influncia
desse espao no imaginrio social dos passo-fundenses e da regio. O jor-
nal ajudou a construir esse imaginrio sobre a rua Quinze de Novembro
como um local proibido, marginal, violento, porm tambm o situava num
espao alternativo do municpio, que se consolidava nos moldes das cida-
des modernas:
Foi interessante n e depois sabe que ficou...incutiu na mente n!? E s vezes
a gente assim Ah, no tem mais problema!, mas tu descias a rua parece
que tava fazendo uma coisa proibida n, que no era o bom, fica n? Real-
mente, a memria grava, n?20

Referncias
DOMINGOS, Maria D. C. Uma verruga no nariz: A transferncia do meretrcio
da rua 15 de Novembro. Dissertao (Mestrado em Histria Regional) Universi-
dade de Passo Fundo, Passo Fundo, 1997.
GAWRYSZEWSKI, Alberto. Conceito de caricatura: no tem graa nenhuma.
Domnios da Imagem, Londrina, n. 2, maio de 2008. Disponvel em: <http://
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/dominiosdaimagem/issue/view/1013/
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LUCA, Tania Regina de. Fontes Impressas: Histria dos, nos e por meio dos
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MACDO, Jos Emerson Tavares; SOUZA, Maria Lindaci Gomes. A Charge no
ensino de Histria. Disponvel em: <http:// www.anpuhpb.org/anais_xiii_eeph/
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MOREIRA, Isabel Cristina Cavalcante Carvalho; MONTEIRO, Claudete Ferreira
de Souza. A Violncia no cotidiano da prostituio: invisibilidades e ambiguidades.

19
Uma Verruga no Nariz da Cidade. O Nacional. Passo Fundo, 1949, p. 9, 10 out. de 1949.
20
HAHISI, Maria Teresa. A Zona do Meretrcio na imprensa: depoimento [23 nov. de 2015]. Passo
Fundo: Entrevista concedida a Marlise Meyrer.

90
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeiro Preto, v. 20, n. 5, set./out.


2012. Disponvel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010411692012000
500018&script=sci_arttext&tlng=pt >. Acesso em: 09 maio 2015.
NASCIMENTO, Mrcia. Prazer Marginal e Poltica alternativa: A Zona de Me-
retrcio em Passo Fundo (1939-1945). 2003. 156 f. Dissertao (Mestrado em His-
tria) Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2003.
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: Prostituio e cdigos da sexualidade
feminina em So Paulo (1890-1930). 2. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2008.
THOMPSON, John B. A Mdia e a Modernidade: Uma Teoria Social da Mdia.
Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

91
Rua Quinze de Novembro, um
enquadramento fotogrfico fantasma

Fabiana Beltrami da Silva1

No processo de pesquisa sobre a rua Quinze de Novembro, verifica-


mos que os acervos iconogrficos da cidade no possuem imagens fotogr-
ficas dessa regio, apesar da rua estar prxima do centro da cidade e da
movimentao da ferrovia. As observaes deram-se pelos acervos do Mu-
seu de Artes Visuais Ruth Schneider, Museu Histrico Regional, Arquivo
Histrico Regional, do site Projeto Passo Fundo e de livros que contam a
histria de Passo Fundo e que possuem imagens fotogrficas. Mesmo em
entrevistas, constatou-se que as fontes no possuam imagens da rua. Surgi-
ram, ento, dois questionamentos: primeiro por que a rua Quinze de No-
vembro no se faz presente nas imagens da cidade, produzidas nas dcadas
de 1930, 1940 e 1950? Considerando que a rua ficava prxima do centro da
cidade e da ferrovia, que movimentou a chamada Rua do Meretrcio, e
com destaque nas notcias dos peridicos da poca, que mencionavam as
moas que viviam nos cassinos dancings casas, chamando a ateno de
todos por ser de parar o comrcio2. Alm disso, a regio era frequentada
por pessoas abonadas3, da alta sociedade4. Segundo: quais as regies tor-
naram-se objetos da lente dos registros fotogrficos daquela poca e que
hoje constituem elementos identitrios da cidade?

1
Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Passo Fundo,
fotgrafa e professora.
2
DARIENZO, Aniello. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2016.
3
TOGLIO, Erno. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da Intolerncia.
Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2016.
4
RIBEIRO, Carmem. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2016.

92
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Para tanto, nosso olhar voltou-se para a produo fotogrfica e o en-


quadramento escolhido para representar as regies da cidade. Focamos,
em breves anlises, a avenida Brasil e a praa Marechal Floriano, pois so
algumas das primeiras regies que abrangem usos e sentidos pblicos da
cidade a avenida Brasil como a primeira rua a estabelecer o comrcio na
urbe e a praa Marechal Floriano como a primeira a agregar o envolvimen-
to da cidade com a religio, cultura, arte, bailes, discusses polticas e ruas
que sempre se fizeram presentes nas imagens. Outra fonte de investigao
foi o Plano Diretor de 1953, feito por uma equipe de arquitetos de Porto
Alegre para a administrao municipal. Esse documento expressa uma lei-
tura da cidade e uma proposta de organizao do urbano no incio da dca-
da de 1950. Vale ressaltar que as escolhas realizadas nesse perodo consti-
tuem a viso construda sobre a cidade. Considerando tais conjeturas, o
estudo dividiu-se em trs partes: 1) as imagens fotogrficas da cidade; 2) a
cidade antes do Plano e 3) que rua do meretrcio?

1 As imagens fotogrficas da cidade


No momento do clique, o fotgrafo, ao mesmo tempo em que inclui
no enquadramento escolhido seus elementos de interesse pessoas, prdios,
ruas, objetos , exclu os outros componentes pertencentes ao contexto.
Para tanto necessrio, ao ler/estudar imagens de cidade, observar o que
no foi includo nela, j que alguns elementos que aparecem na foto podem
relacionar-se com os objetos enquadrados, portanto fazendo parte do con-
tedo histrico daquela imagem.
A fotografia um recorte do real. Primeiramente, um corte no fluxo do
tempo real, o congelamento de um instante separado da sucesso de aconte-
cimentos. Em segundo lugar, ele um fragmento escolhido pelo fotgrafo
pela seleo do tema, dos sujeitos, do entorno, do enquadramento, do senti-
do, da luminosidade, da forma, etc. (MONTEIRO, 2006, p. 12).

Ao selecionar, o fotgrafo cria uma imagem a partir do real, um recor-


te que considera vrios fatores tcnicos como a lente, o tipo de mquina, a
luz e, conscientemente ou no, traz referncias de sua vida seu cotidiano
na cidade, seu conhecimento poltico, social, econmico, etc. (KOSSOY, 2007).
Apesar das imagens flmica, fotogrfica e videogrfica estarem impregna-
das de resduos do real, elas no so uma extenso da realidade, mas sim

93
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

uma criao interpretativa fruto de um imaginrio social e que, ao mesmo


tempo, engendra outros, que podem at mesmo vir a se transformar em rea-
lidade (NOVAES, 2005, p. 111).

O ato de valorizar um elemento, uma paisagem, uma pessoa, um


monumento, uma edificao j uma condio constituda na escrita
fotogrfica, e h possibilidades de outros envolvimentos, como por exem-
plo registrar o desenvolvimento da cidade ou espaos importantes da mes-
ma no decorrer dos anos.
A fotografia de cidade, ao enquadrar certos espaos ou elementos
urbanos, pode fortalecer a imagem de determinados lugares, tornando-os
centros visuais nas representaes da urbe pela populao ou para visitan-
tes, bem como para aqueles que no conhecem a cidade.
Enquadrar , portanto, fazer deslizar sobre o mundo uma pirmide visual
imaginria (e s vezes cristaliz-la). Todo enquadramento estabelece uma
relao entre um olho fictcio o do pintor, da cmera, da mquina fotogr-
fica e um conjunto organizado de objetos no cenrio: O enquadramento ,
pois, nos termos de Arnheim, uma questo de centramento/descentramen-
to permanente, de criao de centros visuais, de equilbrio entre diversos
centros, sob a direo de um centro absoluto, o cume da pirmide, o Olho
(AUMONT, 1993, p. 154).

Nesse sentido, o ato de recortar visualmente o espao fotografado,


colocando nele objetos de interesse, centralizando aspectos referentes ao
contedo da imagem, descentralizando da temtica o que no aparece, ex-
cluindo o espao/objeto/pessoa, etc., faz com que haja uma incluso/ex-
cluso de prdios, de pessoas, de objetos da cidade, consequentemente evi-
denciando tempos histricos ou excluindo-os.
Complementariamente, na constituio tcnica da imagem, o pon-
to de vista de Aumont organiza-se em trs significados: 1. Um local, real
ou imaginrio, a partir do qual uma cena olhada; 2. O modo particular
como uma questo pode ser considerada; 3. Enfim, uma opinio, um senti-
mento com respeito a um fenmeno ou a um acontecimento (AUMONT,
1993, p. 156). Ou seja, o enquadramento em unio com o ponto de vista
interfere no que e como vai ser expressa aquela imagem e de que forma ela
vai ser lida e, ainda, como ela pode contextualizar e focar contedos hist-
ricos.
Ao escolher a paisagem na cidade, o fotgrafo pode produzir a foto
por vontade prpria ou por ter sido solicitado a fazer a imagem de determi-

94
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

nado assunto. Ainda assim, para alm da procedncia do pedido, ele vai
registrar o espao que foi constitudo/ocupado pelo homem. Esse espao
uma construo social/econmica/poltica, imbricada com a condio
geogrfica do espao fsico, no qual a urbe vai sendo estabelecida e, a partir
da circularidade temporal e da dinmica das relaes sociais, formada em
espaos pblicos e privados. Estabelecimentos entre ruas, quadras, comr-
cio, residncias, edificaes, monumentos fazem parte do conjunto de rela-
es entre pessoas fsicas e jurdicas (VISCARDI, 2010). Para tanto, ao
registrar a cidade, o fotgrafo vai registrar uma sequncia de pocas dos
fenmenos polticos, econmicos, sociais, estabelecidos ali.
Os atores sociais polticos, comerciantes, servidores pblicos, parti-
culares, professores, moradores, etc. adquirem uma relao muito prxi-
ma com a cidade em que vivem. Positiva ou negativa, essa relao com a
cidade torna os indivduos parte da cidade. Assim, os espaos tornam-se
importantes no cotidiano dos atores na urbe, como curso espacial de suas
prprias vivncias e consequentemente de suas prprias histrias. Essas re-
laes entre as pessoas, com os bairros, trabalhos, com o centro da cidade,
atravs da convivncia distante e/ou aproximada entre os residentes na ci-
dade ou no, podem gerar informaes sobre as experincias e leituras do
urbano, tanto individual como coletivamente, para uma possvel memria
urbana, como explica Ortegosa:
Um dos aspectos fundamentais na vida de uma cidade, portanto, o
conjunto de recordaes que dela emergem: a memria urbana a realida-
de que marca nossa prpria fugacidade na histria, ao mesmo tempo em
que anuncia a possibilidade de transcendermos nossa temporalidade indi-
vidual (http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/30
Sandra Mara Ortegosa, acessado em 27/01/2016).
Quais as regies da cidade que permaneceram representando a efgie
da urbe nas dcadas de 1930, 1940, 1950? Quais sero as imagens que fo-
ram includas no enquadramento fotogrfico e permanecem no que pode-
mos considerar o imaginrio/memria de Passo Fundo?
As imagens que sero apresentadas foram escolhidas por pertencer
s regies que aparecem com mais incidncia nas fontes pesquisadas, nos
acervos pblicos e particulares de fotografias e nas publicaes de peri-
dicos.

95
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

1.1 A antiga rua das Tropas


Os caminhos abertos antigamente pelos ndios Guarani e Kaigangs
(na sua grande maioria da famlia Je) foram utilizados pelos tropeiros ao
passar pelo terreno em que se estabeleceria Passo Fundo. Tal caminho seria
primeiramente a rua das Tropas, depois rua do Commercio e, no incio do
sculo XX, mudaria de nome para avenida Brasil, fazendo parte de uma
das mais importantes estradas do Brasil: a BR 285 (MIRANDA, 2005). Foi
entre 1888 e 1902 que os entornos da primeira capela comeam a ser habi-
tados, expandindo para o lado contrrio ao Boqueiro e urbanizando a en-
to rua do Comrcio (MIRANDA E MACHADO, 2005).
Essa se tornou a principal rua da cidade. O comrcio estabeleceu-se,
e clubes, hotis, faculdades, instituies financeiras (bancos), a Intendncia
Municipal tambm se fixaram nesse espao por um determinado perodo e
at estdios fotogrficos, entre outros estabelecimentos. Era por ela que
quem viesse do norte ou do sul do estado chegaria cidade (LECH, 2007).

Figura 01: Fotografia da avenida Brasil

A imagem foi tirada da rua Teixeira Soares sentido centro. No lado direito da imagem est o
prdio que seria a Intendncia Municipal; no centro da foto, o Prefeito Coronel Arthur Ferreira
Filho. Fonte: Passo Fundo Memria e Fotografia, p. 29. Autor: Foto Moderna. Ano: 1940

96
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Figura 02: Fotografia da avenida Brasil com a esquina da rua General Netto

No lado esquerdo aparece o Hotel Avenida. A localizao segue a direo Centro/Boquei-


ro. Fonte: Acervo Museu Histrico Regional. Autor desconhecido. Ano: 1934

1.2 A praa Marechal Floriano e suas ruas


Com a chegada do trem cidade se alterou o eixo da expanso ur-
bana da avenida Brasil para a regio da praa Marechal Floriano, revelan-
do a importncia da ferrovia para o desenvolvimento local e regional (ZA-
NOTTO, 2016, p. 80). O crescimento geogrfico e populacional foi conse-
quncia do desenvolvimento econmico graas instalao dos trilhos na
cidade pelo projeto de ligao da ferrovia Santa Maria/RS a Itarar/SP, no
qual Passo Fundo passou a integrar o trecho Santa Maria Marcelino Ra-
mos. Em 1898, construda a Estao Frrea da Gare (RIBAS, D.; FIORE-
ZE, Z. G., 2004, p. 100).
[...] a ferrovia cortou, abriu, percorreu e valorizou campos e matas com
abundncia de madeira de lei, necessria para os colonos, para as coloniza-
doras e comerciantes. Ao seu redor, todos estruturaram suas vidas e seus
estabelecimentos, valorizaram as terras e a fertilidade natural, sendo as matas,

97
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

aos poucos, substitudas pela agricultura de trigo e milho. Com a conse-


quente dinmica da indstria moageira, da banha e da carne (TEDESCO;
SANDER, 1997, p. 119).

Assim a rua General Netto tornou-se importante, pois era a rua que
ligava a estao frrea principal avenida da cidade, a avenida Brasil, tra-
zendo toda a movimentao de moradores, visitantes e homens de negcio
para essa regio. Tal era a importncia da rua, que o cemitrio, entre a atual
rua Independncia e a rua General Netto, fora retirado do local e transferi-
do para outra regio (KNACK, 2013). Mais tarde, em 1940, o local tornou-
se a rodoviria. Assim, juntamente com o desenvolvimento econmico e
cultural da cidade, em 1910 foi demarcada a quadra da praa da Repblica,
cujo nome, a partir de 1913, passa a ser praa Marechal Floriano (MIRAN-
DA; MACHADO, 2011).
Nesse contexto, tardiamente chegaria a Belle poque5 passo-funden-
se. A praa comea a ter a fisionomia de um espao de convivncia entre os
moradores e pessoas que chegavam cidade, ganhando ajardinamento,
bancos e passeios. Os cafs, cinemas, clubes e hotis comeam a estabele-
cer-se nos arredores dela nas dcadas seguintes.
[...] a cidade encontrou a modernidade: as ruas se iluminaram com a substi-
tuio dos lampies a querosene por lmpadas eltricas; a rede telefnica en-
curtou distncias; a instalao do primeiro banco agilizou o comrcio; o pri-
meiro cinema encantou os habitantes (MIRANDA; MENDES, 2011, p. 22).

A praa foi repetidamente fotografada no decorrer das dcadas. A


primeira imagem (Figura 03) que se traz aqui foi reproduzida em quatro
livros diferentes; em um deles, a fotografia tornou-se capa (MIRANDA e
MACHADO, 2013). Sendo que esse ngulo e outros parecidos foram regis-
trados em pocas diferentes.6 Na imagem abaixo, a centralizao da foto-
grafia e seu tamanho, comparado ao texto, pode revelar certo destaque na
imagem ou para o local. Ela mostra a praa Marechal Floriano da perspec-
tiva da rua General Netto, mostrando ao fundo o Banco da Provncia, na
esquina da rua Morom e rua Bento Gonalves. Na imagem seguinte (Figu-

1
A Belle poque foi um movimento/desenvolvimento cultural, artstico e social na Frana no
incio do sculo XX.
2
Esse enquadramento, praticamente do mesmo ngulo, repetido. No livro Passo Fundo
Memria e Fotografia, aparece uma imagem de 1942.

98
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

ra 04), a praa foi mostrada a partir da rua Morom, na sequncia a praa e


ao fundo a rua Bento Gonalves, destacando-se o Clube Caixeiral.

Figura 03: Fotografia da praa Marechal Floriano

Praa Marechal Floriano, tirada do canteiro central da rua General Netto. Ao fundo v-se
o Banco da Provncia, na esquina das ruas Moron e Bento Gonalves. Fonte: Passo Fun-
do: Presentes da Memria, p. 16-17. Autor: Foto Moderna. Ano: 1940

Figura 04: Carto postal da praa Marechal Floriano vista do alto

Ao fundo, a rua Bento Gonalves. V-se o prdio do Clube Caixeiral. Fonte: Acervo Mu-
seu Histrico Regional. Autor: Foto Moderna. Ano: 1942

99
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

Outra rua importante ao redor da praa foi a Morom. Essa via rece-
beu o primeiro calamento da cidade em 1925, antes mesmo da avenida
Brasil receber tal cobertura. A foto de 1940 (Figura 06) ilustra um fragmen-
to de suas edificaes, e a pavimentao tambm foi capa de livro.

Figura 05: Rua Morom

Fotografia reproduzida em livro. Fonte: Passo Fundo: Memria e Fotografia, p. 42. Autor:
Foto Moderna. Ano: 1940

1.3 Catedral Nossa Senhora Aparecida


Voltamos um pouco na histria. Para a conquista do passo aconte-
cer, ou seja, o territrio desenvolver-se at as margens do rio Passo Fundo e
ter proeminncia poltica e econmica, era necessria a presena da igreja,
condio para que Passo Fundo passasse a ter o status de povoado (VI-
LA, 1997, p. 60). Ento, em 1835, inicia-se a construo de uma capela.
Dez anos mais tarde, ela recebe uma reforma devido ao interesse poltico/
econmico; na poca, o Estado e a Igreja compartilhavam as atividades

100
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

administrativas civis era necessria a presena constante de um vigrio e


coadjutor, subordinados ao bispo, como tambm a funcionrios do Estado,
os quais eram pagos pelos mesmos e responsveis pelos registros civis: bati-
zados, matrimnios e sepultamentos. Assim, a cidade passa condio de
Freguesia. Alguns anos mais tarde, a capela desmanchada devido a seu
estado precrio e, em 1890, o espao catlico na cidade muda-se de lugar e
vai para a praa Tamandar, onde se inicia a construo da Igreja Matriz.
Com a mudana do movimento urbano centrado na praa Marechal Floria-
no, aps a construo da ferrovia em 1989, o terreno da antiga capela co-
mea, em 1937, a receber as fundaes da futura Catedral Metropolitana
Nossa Senhora Aparecida.

Figura 06: Desfile cvico

Desfile cvico ocorrido na praa Marechal Floriano rua General Netto. A catedral estava
sendo construda. Autor: Foto Moderna Armando Czamanski. Fonte: Projeto Passo Fun-
do. Ano da foto: dcada de 1940. Acesso em: 31/07/2016

101
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

Figura 07: Rua General Netto; na direita, construo da catedral

Imagem reproduzida em livro. Fonte: Passo Fundo: Memria e Fotografia, p. 60. Autor:
Desconhecido. Ano: 1948

Figura 08: Fotografia da General Netto/Praa

Fotografia da esquina da rua General Netto com a rua Independncia; ao fundo, a cate-
dral. Fonte: Plano Diretor, 1953, p. 19. Autor da foto Nestor Nadruz. Ano: 1952/53

102
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

1.4 Rua Quinze de Novembro


A Figura 09 mostra a localizao da rua Quinze de Novembro (
esquerda do mapa); ela continua a mesma uma quadra abaixo da rua Sete
de Setembro (onde na poca estavam os trilhos do trem), distante trs quadras
de distncia da praa Marechal Floriano e segue at cruzar a avenida Brasil
para o outro lado, prxima dos principais estabelecimentos daquela via.

Figura 09: Mapa da regio central da cidade. Mostra a rua Quinze de No-
vembro, a praa, a avenida Brasil, a antiga ferrovia em verde

Fonte: Google, acesso em 17/10/2016

A rua Quinze de Novembro teve, de 1853 at 1912, seu crescimento


centrado apenas em duas quadras, para ambos os lados a partir do cruza-
mento com a avenida Brasil. Entre 1913 e 1918, as quadras vo se amplian-
do. Nessa poca, a ferrovia j estava estabelecida, e as regies do rio Passo
Fundo, da praa do hospital da cidade e tambm a vila Shell, onde a Quin-
ze de Novembro estava localizada, se constituram. A partir de 1918, houve

103
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

uma grande expanso na cidade, surgindo bairros importantes, como a vila


Rodriguez e a vila Luza (MIRANDA; MACHADO, 2005). A rua Quinze
de Novembro avizinhava-se da vila Luza. Meirelles Duarte, em depoimen-
to oral, afirma que a rua Quinze de Novembro se tornou famosa no esta-
do, no final da dcada de 1930, toda a dcada de 1940 e at a metade da
dcada de 19507.
As imagens ilustrativas da rua s aconteceram nos jornais, porm
no eram da rua propriamente dita, mas sim do Cassino Palcio.

Figura 10: Anncio no jornal

O Nacional de 24/02/1949. Fonte Arquivo Histrico Regional

7
DUARTE, Meirelles. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2016.

104
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Meirelles Duarte enfatiza que a noite passo-fundense da rua Quin-


ze de Novembro era famosa alm-fronteiras do prprio estado, isso por-
que era a rua das casas de prostituio, dos dancings e do Cassino Palcio,
onde circulavam grupos musicais famosos da Argentina, Uruguai e as
moas mais belas dos pases vizinhos e at da Frana.8 A circulao de
pessoas que tinham poder financeiro era intensa, conforme explica seu
Anielo: animavam a noite, e ali havia muito dinheiro, que era o dinheiro
do contrabando de pneu9. Meirelles confirma a informao: A rua Quin-
ze foi projetada por causa da era do contrabando de pneus. A rua esten-
dia-se por trs quarteires como lugar de festa e prostituio, segundo
explica Enes, porque a Quinze, a zona mesmo, descia da Independncia,
sabe que tem a escada alta, da pra esquerda, pra direita era cidade, e mais
uns barzinhos que tinha10.
Permanece na memria dos entrevistados a intensidade dos relacio-
namentos que l se deram, bem como a exuberncia das mulheres que tra-
balhavam no cassino. As falas confluem em certa admirao, as moas es-
tavam sempre na moda, com leituras estrangeiras vindas de Paris, eram
muito bonitas e bem arrumadas. Conquistaram alguns dos moradores lo-
cais mais abonados, tanto que muitas se casaram, formando suas famlias
na alta sociedade.

2 O Plano Diretor de 1953


Com a expanso da cidade, em 1953 um Plano Diretor foi realizado
a pedido da administrao municipal por uma equipe vinda de Porto Ale-
gre, capital do estado. Nessa poca, o nmero de habitantes aproximava-se
de 26 mil. Os estudos feitos para tal documento enfatizaram a avenida Bra-
sil e a rua General Netto.

8
PINHEIRO, Wilson. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2016.
9
DARIENZO, Aniello. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2015
10
TROGLIO, Enes. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2015.

105
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

A avenida Brasil, alm de constituir uma das geratrizes, a nica via predo-
minante e caracterizada por uma maior largura, a ligao entre a avenida
Brasil e estao ferroviria (avenida Gal. Netto). A avenida Brasil, alm de
constituir uma das geratrizes do traado, assumiu, atravs dos tempos, mar-
cante importncia no acervo material e, principalmente, sentimental dos
passo-fundenses (2000, Plano Diretor Ano de 1953, p. 30).

A regio da praa Marechal Floriano, a encosta sul, da coxilha gran-


de, tambm destacada pelo documento, conforme segue a citao abaixo.
Afirmada a ocupao do lugar e aumentando a sua populao, foi se afas-
tando o perigo das incurses indgenas. O alto da colina (3) foi ocupado pela
Capela, e o casario continuou avanando na direo do passo e na dire-
o do novo rgo solicitante o centro religioso. Em determinado momen-
to, aparece outro importante elemento de atrao a linha frrea e se
localiza a estao em (4). Essa exerce um tal poder que a colina prxima
passa a ocupar a posio mais importante ali se densifica o casario e se
instala definitivamente o centro tradicional da cidade. A estao foi, assim,
o fator decisivo para a localizao do comrcio atacadista na encosta sul da
coxilha grande e para a consolidao do centro no topo da mesma (1) (cro-
quis n. 2b). O antigo centro gentico nada mais significa para a cidade
nem como fato material e nem como reminiscncia cultural (2000, Plano
Diretor Ano de 1953 p. 14 e 15).

Pela citao fica claro que a regio da praa Marechal Floriano era o
centro religioso e urbano da cidade, tendo delimitado a localizao do co-
mrcio atacadista dessa regio. Ressalta-se tambm que a ferrovia foi im-
portante para a circulao de pessoas, j que era ligada pela rua General
Netto catedral e avenida Brasil.
A figura 08 se faz presente no Plano Diretor de 1953. A legenda ori-
ginal da imagem construes modernas no centro urbano; tal moderni-
dade refere-se catedral, j que o prdio de maior destaque na fotografia.
Essa mesma legenda tambm faz referncia a construes localizadas na
rua Morom. At aqui as referncias do plano coincidem com as imagens
que mostramos anteriormente por situar-se cronologicamente at a dcada
de 1950, ilustrando o quo importantes eram os estabelecimentos que se
fixaram nessas regies.
No Plano Diretor, alm das citaes referentes a moradias precrias,
ainda remanescentes do incio do processo de urbanizao a partir da ave-
nida Brasil, so elencadas as vrias partes da cidade com casas insalubres e
indicadas as principais concentraes das mesmas. Nesse sentido, a primei-

106
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

ra a ser citada a vila Luiza11, muito prxima da rua Quinze de Novembro,


ao sul da cidade.
Em depoimento, Maria, residente na rua desde meados da dcada de
1940, indica que j estava sendo centro aqui, a eles queriam modificar
tudo, ento botaram elas [prostitutas e danarinas] l longe, mas elas no
queriam ir [...]12. A fala dela refere-se dcada de 1950 e posteriormente,
lembrando as tentativas de tirar a zona do meretrcio daquela regio da
cidade.

3 Que rua do meretrcio?


Ao olharmos as imagens da cidade de Passo Fundo nesses anos de
desenvolvimento urbano, registrado por inmeros fotgrafos e seus dispo-
sitivos, percebemos a ausncia de imagens sobre a rua Quinze de Novem-
bro. Os espaos que eram registrados tinham vnculos com a religio, com
o comrcio e a praa, espaos que tiveram seu desenvolvimento oriundo da
ferrovia, representando a modernidade e a expanso da dinmica indus-
trial na cidade.
A rua Quinze no foi registrada no papel fotossensvel; se foi, as ima-
gens esto numa gaveta profunda, escondidas dos olhares dos moradores e
tambm dos pesquisadores. A memria visual, as efgies da cidade delimi-
taram-se, em grande parte, praa nas fases de alterao e construo da
catedral e da avenida Brasil. Esses locais tornaram-se espaos de memria
pela imagem fotogrfica. Para Kossoy, fundamental que se perceba o
papel da imagem fotogrfica enquanto elemento de fixao da memria
[...] (KOSSOY, 207, p. 60). Se a fotografia pode ser um elemento de fixa-
o de memria, s temos a memria imagtica dos outros espaos da ci-
dade, que, entretanto, estavam muito prximos da Quinze de Novembro.
As imagens da praa, das demais ruas, da avenida e do templo religio-
so correlacionam a fotografia com o espao e o tempo, afirmando que o seu
significado vai alm do explcito necessrio ver as lacunas silenciosas

11
Plano Diretor Ano de 1953, 2000, p. 34.
12
RIBEIRO, Maria. Documentrio audiovisual Rua XV de Novembro Fronteiras da
Intolerncia. Entrevista concedida para Marlise Meyrer, 2016.

107
SILVA, F. B. da Rua Quinze de Novembro, um enquadramento fotogrfico fantasma

que a fotografia, enquanto fonte histrica, possui. Tal silncio observa-se


na ausncia de memria fotogrfica da rua Quinze de Novembro. Tal va-
zio, considerando a importncia que tinha para a vida noturna passo-fun-
dense, como espao de sociabilidade e lazer, de acordo com os depoentes,
trouxe-nos as indagaes iniciais.
As imagens fotogrficas e o objeto que elas apresentam em sua forma
corresponde relao da sociedade com o passado, com os significados
culturais da poca vivenciada. Portanto a memria urbana e fotogrfica
pode revelar muito mais: [...] a imagem, em cada poca, educa a viso e os
olhos. A imagem produzida pelo homem diz ao homem, em cada poca,
quem o homem (MARTINS, 2008, p. 20), os lugares onde esteve e que
dotou de sentido.
Joo Carlos Tedesco traz reflexes sobre lugar a partir das considera-
es de Halbwachs, afirmando que, do ponto de vista temporal, a mem-
ria reinvoca um fato que coloca em algum ponto do espao. Segue, comple-
mentando com Nora, os lugares de memria so espaos que se condensam
s imagens de um passado carregado de significados (TEDESCO, 2004, p.
207). Considera-se, nesse mbito, a fotografia como um lugar de memria, j
que ela carrega a representao do real ou de um passado histrico, funcio-
nando nos dias atuais como memria de lugares, de fatos e de pessoas, inten-
cional e ativamente deixando vestgios e recordaes.
Tal ausncia torna-se indicativa da construo de um discurso com-
posto por escolhas que excluem do repertrio imagtico da cidade o enqua-
dramento fotogrfico da rua Quinze de Novembro, transpondo-o num es-
pao fantasma, constituindo-se em negao de uma memria. Em que lu-
gares estariam escondidas as reminiscncias da polmica e acalorada rua
Quinze? Onde esto os registros fotogrficos? Quais so os motivos de no
figurar nos livros?
A fotografia coloca-nos num certo nvel de contato com o passado,
mas o faz de forma frgil: testemunha fenmenos e movimentos fragmen-
tados, em que a memria deve debruar-se para complementar os sentidos;
aponta na direo de uma realidade de forma lacnica. Ainda assim, a
capacidade expressiva das lacunas denunciativa de narrativas hegemni-
cas e excludentes; nelas o silncio torna-se espao para a atuao do ima-
ginrio.

108
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

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112
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Resenha:
Prazer Marginal e Poltica Alternativa:
a zona do meretrcio em Passo Fundo
(1939-1945)1

Luciane Maldaner2

Em sua dissertao de Mestrado Mrcia do Nascimento3 tem como


objeto de estudo a zona do meretrcio em Passo Fundo, lugar marginaliza-
do, legal e moralmente no aceito pela sociedade dita legal. Contudo, ape-
sar dessa marginalizao (estar margem), esse espao expressou um po-
der simblico no seio da sociedade passo-fundense no contexto repressivo
da Era Vargas, segundo a autora. O recorte temporal delimitado de 1939
a 1945, marcado como o auge da prostituio na zona do meretrcio na
cidade de Passo Fundo justamente por possibilitar uma maior liberdade
de expresso, conforme defende a autora, ao analisar diversas fontes hist-
ricas disponveis, que se completaram quando cotejadas.
No que se refere s fontes, foram elas: impressas, a exemplo dos jor-
nais que circulavam na cidade, em destaque O Nacional e o Dirio da Manh
e fontes oficiais, como os relatrios da Intendncia Municipal, os proces-
sos-crimes (localizados no Arquivo Pblico de Porto Alegre), alm dos re-
gistros policiais da Primeira Delegacia de Polcia de Passo Fundo. Mrcia
Nascimento fez uso tambm de fontes orais, totalizando 26 entrevistas com
pessoas da comunidade que viveram e frequentaram aquele espao. A au-
tora esteve atenta aos cuidados necessrios com o uso de cada fonte espec-

1
Dissertao de Mestrado defendida no ano de 2003 por Mrcia do Nascimento ao Programa
de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Passo Fundo.
2
Acadmica do VII nvel do curso de graduao em Histria pela Universidade de Passo Fundo.
3
Mestre em Histria pela Universidade de Passo Fundo.

113
MALDANER, L. Resenha: Prazer Marginal e Poltica Alternativa:
a zona do meretrcio em Passo Fundo (1939-1945)

fica, pois considera os sujeitos como carregados de discursos ideolgicos e


no meros receptculos de verdades absolutas.
Quanto regio delimitada para o estudo, ela engloba as ruas Quin-
ze de Novembro, Moron, Independncia e General Osrio na regio atual-
mente central da cidade de Passo Fundo. A autora toma como base para
justificar sua delimitao de regio as contribuies de Fernando Camar-
go, Ana Luisa Reckziegel e Vera Alice Cardoso Silva os quais defendem
de modo geral que a delimitao de regio no precisa necessariamente
seguir uma delimitao de espao consolidado jurdica e/ou politicamen-
te, mas sim surge da necessidade do pesquisador de defini-la privilegiando
o seu objeto de pesquisa.
No primeiro captulo, a autora busca fundamentar teoricamente a
temtica a prostituio no contexto do Estado Novo dialogando com
alguns autores relevantes para o entendimento das questes levantadas. Entre
esses autores pode-se citar: Margareth Rago e Pierre Bourdieu. No caso da
primeira, a autora analisa a viso da sociedade ocidental sobre a prostitui-
o, caracterizada como lixo humano, saturada de conotaes moralistas
negativas e associada a imagens de sujeira. O segundo autor decodifica a
funo da prostituio como um mal necessrio para a manuteno da or-
dem sexualizada vigente e dos papis pr-definidos de homens e mulheres
que compem ou no a sociedade legal que expressa a moral burguesa. Para
conceitualizar moral burguesa, a autora faz uso das contribuies de Micha-
el Foucault, que a define como a expresso da represso sexual (p. 15).
Consciente da necessidade que a Histria Regional tem de se articu-
lar com as esferas nacional e internacional; a autora realiza essa mediao
de maneira a estruturar o seu fio condutor: a construo e caracterizao
do seu objeto de pesquisa, isto , a zona do meretrcio como um local que
propiciava a possibilidade de uma maior expresso sociocultural, poltica e
sexual para seus frequentadores, definindo-a como um espao alternativo na
esfera local. Alternativo, pois no que tange ao cenrio nacional, as restri-
es do governo ditatorial de Getlio Vargas, que entre outras medidas
impostas proibiram a prtica da prostituio, dos encontros pblicos e dis-
cusses polticas, resultando em uma maior busca por locais que, por loca-
lizar-se margem, ficavam livres do policiamento dos rgos oficiais e
da moral burguesa.

114
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

A difuso desses valores no mundo ocidental ao longo dos ltimos


sculos encaixou-se perfeitamente nos projetos de policiamento e ordena-
mento moral da sociedade, impostos pelo governo ditatorial de Getlio
Vargas (1937-1945), que durante o perodo do Estado Novo procurou mol-
dar, vigiar e punir cada indivduo que compunha a Nao no intuito
de consolidar a unidade nacional, como podemos perceber nas palavras da
autora (p. 141):
No se limitava apenas aos rgos polticos oficiais como partidos polticos
ou os poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Na busca dessa unidade
nacional, policiavam-se as pessoas, buscando apoio junto sociedade, uns
vigiando os outros, bem como condicionamentos eram impostos por insti-
tuies como a Igreja, o ncleo familiar, a escola e a medicina. Essas insti-
tuies foram de fundamental importncia para que o governo Vargas per-
seguisse a concretizao do seu projeto, pois trabalhavam visando contro-
lar as aes das pessoas, limitando a sua expresso, fosse ela voltada para
a sexualidade, fosse para a busca de descontrao ou para a expresso
poltica.

No segundo captulo, a autora estabelece a inter-relao entre os


locais nacional e internacional, apresentando as caractersticas do governo
de Getlio Vargas quanto centralizao/burocratizao/modernizao
(p. 50). No perodo, a poltica dos governadores era responsvel por articular
os prefeitos com as linhas polticas dominantes, fortalecendo a Unio
frente aos estados e municpios (p. 55). A autora insere Passo Fundo no
contexto da urbanizao durante o Estado Novo, utilizando fontes prim-
rias, como os relatrios de Cel. Osvaldo Cordeiro Farias, interventor fede-
ral no municpio, alm da imprensa local. Tanto as manchetes como os
relatrios evidenciavam o interesse na construo de smbolos que auxi-
liavam na visualizao e aprovao do novo sistema de governo, como a
praa da bandeira, o altar da ptria, alm das festividades do sete de setem-
bro (p. 61).
Durante o governo de Vargas foi institudo todo um sistema de regras
e normas que tinha como objetivo a afirmao do governo. [...] segundo
esses padres sociais e econmicos, os cidados identificados como ma-
landros passaram a entrar no rol dos criminosos. Da mesma forma, a cate-
goria crime passou a integrar tambm o controle da sexualidade. Exemplo
disso o fato do contgio venreo passar a ser considerado crime. Esse
aspecto da imposio de uma educao sexual na cidade de Passo Fundo

115
MALDANER, L. Resenha: Prazer Marginal e Poltica Alternativa:
a zona do meretrcio em Passo Fundo (1939-1945)

demonstrado por Nascimento, que descreve a atuao do mdico Jos de


Albuquerque na instalao do Posto de Higiene (p. 77). No entanto, ao
lado da poltica de normatizao que restringia a liberdade dos habitan-
tes da cidade, a zona do meretrcio da Quinze de Novembro alcanava o
auge de seu movimento. Para a autora, a busca da sexualidade em si no
era o nico objetivo, mas a busca de uma maior expresso poltica (p.
85).
No terceiro e ltimo captulo, a discusso gira em torno do conceito
de espao: o espao formal, e no formal. Depois de discutir os conceitos
de espao/lugar como proporcionadores de uma diferenciao dos espaos
formais e no formais, a autora questiona qual seria a conotao de espa-
o para uma casa de prostituio? Formal ou no? (p. 105). Para tal, a
autora volta-se para a seguinte questo: Esses dancings, por serem frequen-
tados pela elite, tornam-se espaos formais? Para responder essa questo,
aps discutir o conceito de elite, definido como um grupo que detm um
certo poder ou, ento, como produto de uma seleo social ou intelectual
(p. 110).
A questo do contrabando abordada pela autora, articulando a his-
tria local com o global. Mrcia do Nascimento relaciona os espaos alterna-
tivos em Passo Fundo com o pano de fundo internacional da Segunda Guerra
Mundial. O fato provocou alteraes e restries poltico-econmicas no
Brasil, que, alm de participar do conflito a partir de 1942, sofreu com as
restries na importao e exportao de bens de consumo para os pases
envolvidos na guerra. Entre essas restries, o Brasil ficou oficialmente proi-
bido de exportar produtos para o pas vizinho, a Argentina. Em consequn-
cia, o contrabando de pneus teve sua era de ouro extraa-se a borracha dos
seringais na Amaznia, produziam-se os pneus nas fbricas em So Paulo
e, por fim, era realizado o contrabando para a Argentina, sendo que Passo
Fundo se localizava na rota dos contrabandistas (p. 126).
Esse dinheiro farto na mo dos mesmos movimentou a noite passo-
fundense; eles tinham como seu quartel para a realizao das negociatas os
cassinos luxuosos da zona do meretrcio, caracterizados pela autora como
um espao alternativo. O dinheiro do contrabando dos pneus possibilitou o
esplendor de alguns cassinos, como foi o caso do Cassino Palcio, que teve

116
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

sua frente Isaldina Rodrigues, vulga Maroca (p. 29), que tornou seu cassi-
no conhecido na regio, como um local de glamour, jogatinas, mulheres
bonitas e msica boa.
A autora encerra sua dissertao de Mestrado analisando minuciosa-
mente os processos-crimes que envolviam a zona do meretrcio em Passo
Fundo, encontrados na primeira delegacia de polcia de Passo Fundo e no
Arquivo Pblico de Porto Alegre. Percebemos por meio desses a violncia
presente nesse espao alternativo, desde agresses verbais at fsicas, que se
caracterizam em sua maioria (p. 133).
A autora levanta outras tantas questes importantes ao longo de trs
captulos, cada qual composto por cinco itens. No primeiro, ela discute so-
bre a questo da caracterizao da prostituta dentro da moral burguesa; no
segundo captulo, triunfa a relao entre o local, nacional e internacional;
no terceiro captulo, a autora amarra a discusso inicial (discutindo os es-
paos) e levanta outros fatores que influenciam a construo da pesquisa
so eles a figura do malandro, a questo do contrabando e os agitos e
crimes na zona. No geral, o trabalho tem o mrito de tratar de um tema
at ento inexplorado de forma acadmica, embora relevante na histria e
memria de Passo Fundo. A dissertao possui um bom embasamento
terico, o que possibilita o maior aprofundamento do tema.

Referncia
NASCIMENTO, Mrcia. Prazer Marginal e Poltica Alternativa: a zona do me-
retrcio em Passo Fundo (1939-1945). 2003. Dissertao (Mestrado em Histria)
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Passo Fundo: Universidade de Passo
Fundo, 2003.

117
Glossrio

Histria e fotografia

Carolina Martins Etcheverry1

As relaes entre a Histria e a fotografia remontam ao sculo XIX,


momento em que o campo da Histria se consolidava e a tcnica fotogr-
fica surgia. A disciplina histrica, ao longo do sculo XIX, buscava con-
solidar-se entre as demais cincias do homem. Nesse momento, os histo-
riadores procuravam uma identidade prpria para a sua disciplina, sepa-
rando-a das demais. Era preciso, pois, criar um mtodo prprio de traba-
lho, que caracterizasse a pesquisa histrica, baseado na anlise crtica dos
documentos escritos oficiais. Essa forma de trabalhar, creditando veraci-
dade aos documentos histricos, formava um conhecimento objetivo e
mecnico. A fotografia, por sua vez, nasce em 1826 a partir de experi-
mentos dos franceses Nipce e Daguerre e patenteada pelo governo fran-
cs em 1839. Segundo Franois Arago, grande defensor dessa nova inven-
o e responsvel por seu anncio na Academia de Cincias de Paris, a
fotografia podia ajudar no progresso da arte e da cincia. Ele acreditava
que arquelogos, fsicos e astrnomos poderiam valer-se dessa nova in-
veno. Entretanto os historiadores levariam mais de um sculo para pas-
sar a incorporar as fotografias (e os demais documentos iconogrficos)
como fontes e tambm como objetos de estudo no campo das pesquisas
historiogrficas. A coleo organizada em 1974 pelos historiadores Jac-
ques Le Goff e Pierre Nora, traduzida no Brasil, em 1978, como Histria:
novos objetos, novas abordagens, novos problemas, promove uma maior visibi-

1
Doutora em Histria PPGH/PUCRS. Bolsista PNPD-Capes junto ao PPGH/PUCRS.

118
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

lidade aos documentos visuais. Michel Vovelle, em seu livro Ideologias e


Mentalidades, publicado no Brasil em 1987, traz um captulo sobre os usos
da imagem na Histria, complementando a proposta de Le Goff e Nora.
A introduo da revoluo documental pela Escola dos Annales e depois
pela Nova Histria, portanto, faz com que novas fontes comecem a ser
incorporadas ao trabalho do historiador, permitindo que a fotografia pu-
desse tambm ser considerada como uma fonte possvel para a reconstru-
o de um momento passado.

119
Histria e imagem

Jacqueline Ahlert1

As fontes imagticas estiveram por muito tempo reduzidas a teste-


munhos beira da oficialidade, atuando nas produes historiogrficas como
ilustrao de informaes contidas nos textos. A transformao do estatuto
iconogrfico passou a ocorrer quando a Histria ampliou o dilogo inter-
disciplinar impulsionado pela Escola dos Annnales, pela histria cultural
e, em especial, pela nova histria cultural , desenvolvendo e consolidando-
se pela herana de diferentes legados e tradies que privilegiaram em seus
estudos a variedade de objetos, domnios e mtodos.
Tais perspectivas de estudo demandaram novas estratgias metodo-
lgicas. Assim, historiadores, antroplogos, crticos literrios, historiado-
res de arte, arquelogos, entre outros, tm explorado os ganhos de multifa-
cetar os objetos de estudo. Nessa direo, os aportes da interpretao ico-
nogrfica como indcios2 para aproximao e compreenso de fenmenos
histricos tm complexificado e acrescido as pesquisas de inmeros pesqui-
sadores.
Imagens so um meio atravs do qual historiadores podem recupe-
rar experincias passadas, contanto que eles estejam aptos a interpretar a
iconografia (BURKE, 2004, p. 58). Para utilizar a evidncia de imagens
de forma segura e eficaz, necessrio, como no caso de outros tipos de
fontes, estar consciente de suas fragilidades. A crtica da fonte de documen-
tos escritos h muito tempo tornou-se uma parte essencial da qualificao
dos historiadores. Em comparao, a crtica de evidncia visual permane-

1
Doutora em Histria PPGH/ PUCRS. Professoa do Programa de Ps-Graduao em Histria
da Universidade de Passo Fundo/RS.
2
O termo indcios no lugar de fontes foi sugerido pelo historiador holands Gustaaf Renier
e apropriado por Peter Burke. Cf. BURKE, Peter. Testemunha ocular: histria e imagem. Bauru,
SP: EDUSC, 2004. Carlo Ginzburg, em Mitos, emblemas e sinais (1989), tambm utiliza o termo.

120
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

ce pouco desenvolvida, embora o testemunho de imagens, como o dos tex-


tos, suscite problemas de contexto, funo, retrica, recordao, testemu-
nho de segunda mo etc. Alm disso, deve-se considerar que a maioria das
imagens no foi criada tendo em vista futuros historiadores, seus criado-
res tinham suas prprias preocupaes, suas prprias mensagens (idem,
p. 18, 24).
As leituras so realizadas, invariavelmente, no presente em direo
ao passado. Ler uma imagem pressupe partir de valores, problemas, ansie-
dades e padres de contemporaneidade do autor, que, muitas vezes, no
existiram ou eram muito diferentes no tempo da produo do objeto. Esses
fatores criam muitas possibilidades de leitura e interpretao das imagens,
sobretudo porque so testemunhas mudas, e tarefa complexa traduzir em
palavras o seu testemunho. Investigaes nelas fundamentadas requerem ins-
trumentos tericos e metodolgicos criteriosos, interrogaes formuladas atra-
vs de problemas histricos, cujas solues possveis acontecem por intermdio
de fontes visuais, associadas a inmeras outras fontes histricas pertinentes.
A Histria e as Cincias Sociais interessadas na anlise de produes
culturais partilham, necessariamente, com a histria da arte, alm de obje-
tos, a certeza de que preciso pensar sobre a inscrio social das obras e das
atividades plsticas. Buscam superar a tradicional separao entre uma abor-
dagem esttica da obra, realizada por especialistas, e uma abordagem mais
conjuntural, levada a efeito por outros estudiosos.
Contudo o problema da relao entre essas disciplinas ainda encon-
tra alguns pontos de divergncia. Mesmo que tenham ocorrido contatos
convenientes com resultados valiosos, as abordagens e os mtodos de an-
lise mantm-se distantes, fazendo com que, por vezes, embora falem sobre
o mesmo assunto, historiadores e historiadores da arte estabeleam um di-
logo de incompreenses; tratando de objetos comuns, ambos comumente
permanecem arraigados a princpios e procedimentos de suas prprias dis-
ciplinas. A histria da arte, por um lado, reafirmando a noo de sucesso
evolutiva de escolas e estilos, e os historiadores, por outro, buscando ler nas
imagens figurativas aquilo que j sabem ou que pretendem apenas demons-
trar, correm o risco dos famigerados argumentos circulares, como afirma
Carlo Ginzburg (1989, p. 63). Nesses olhares transversais, no incomum
encontrar a insero de imagem em um discurso historiogrfico meramen-

121
AHLERT, J. Histria e imagem

te como ilustrao complementar, sem que o autor cogite o estranhamento


entre ambos.
O tema em questo um imenso desafio para os pesquisadores que
transitam por essas reas do conhecimento. Sabe-se, como advertiu Michel
Vovelle, que no se transferem impunemente procedimentos de um campo
do saber para outro: J no h cabimento em dizer que se importam proce-
dimentos. Ao mudar, eles mudam seu entorno e transformam a si prprios
(1997, p. 12). Atrelar-se alienadamente a um mtodo, a exemplo dos de
leitura e compreenso de imagens, pode custar a dependncia de tcnicas
derivadas de uma submisso mecnica iconografia/iconologia ou, ainda,
de uma semitica aistoricizada, que impede estudar seja os enunciados da
imagem ou suas trajetrias.3
H, ainda, concepes redutivas que consideram as representaes
como reflexo da sociedade que as produziu. Reforam a ideia de que os
objetos culturais funcionam como certo espelho do tempo, refletindo estrutu-
ras sociais e o pensamento dos homens que as criaram. Longe disso, as repre-
sentaes imagticas so produtos sociais e, como tais, partes necessariamente
estruturantes do mundo social; constituem objetos que contribuem para a
percepo de sentidos, construdos na historicidade dos fenmenos.
O uso documental de imagens como vetor no s para produzir His-
tria, mas tambm para elucidar sua prpria historicidade, demanda a con-
siderao do ciclo completo de sua produo, circulao, consumo e, cum-
pre acrescentar, de ao (MENESES, 2003). Deve-se considerar os proces-

3
Na perspectiva da histria social da arte, a arte a expresso de uma viso de mundo condiciona-
da socialmente; o indivduo e a sociedade so histrica e sistematicamente inseparveis; os
artistas so, como as outras pessoas de sua poca, seres sociais, produtos e produtores da socieda-
de, de modo que a transformao dos estilos (ou das formas) considerada um evento histo-
ricamente concreto, situado em sua relao com as estruturas sociais de uma determinada
sociedade. Assim, o homem cria-se na sua histria medida que confere um carter de valor s
realizaes que satisfazem suas necessidades. As expresses artsticas, nascidas das solicita-
es da vida prtica, correspondem a realidades histricas.
No entanto, deve-se considerar as problemticas levantadas por Ernst Gombrich; para ele, as
artes visuais no so, a rigor, nem sintoma nem reflexo de um eixo cultural qualquer ou
seja, no se poderia deduzir as propriedades formais de uma imagem artstica a partir da histria
das ideias, como em Erwin Panofsky, ou da ideologia, como em Arnold Hauser, pois a ideia de
homogeneidade ou de totalidade cultural falaciosa (cf. BURKE, 2004).

122
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

sos de transao e apropriao, mobilidade e adulterao que se encontram


em sua base.
O conhecimento histrico e o artstico/iconogrfico no somente
podem beneficiar-se, como so mutuamente interdependentes. No ape-
nas o ambiente sociocultural que pode aguar a experincia de uma ima-
gem artstica, advertiu Michael Baxandall. Porm, revertendo a equao,
as prprias formas e os estilos visuais tambm podem apurar a percepo
que temos da sociedade (1991, p. 224).
Ao voltar-se para a vida social, esse campo pode tomar por objetos
as formas e os motivos das suas representaes, das classificaes e exclu-
ses que constituem as configuraes sociais e conceituais de um tempo
ou de um espao na perspectiva das representaes como esquemas inte-
lectuais, que criam as figuras graas s quais o presente pode adquirir senti-
do, o outro tornar-se inteligvel e o espao ser decifrado (CHARTIER, 1991,
p. 17). Entre as contribuies de Roger Chartier para a histria cultural
est a elaborao das noes complementares de prticas e representaes.
De acordo com esse horizonte terico, a cultura (ou as diversas forma-
es culturais) poderia ser examinada no mbito produzido pela relao
interativa entre esses dois polos. Tanto os objetos culturais seriam produ-
zidos entre prticas e representaes como os sujeitos produtores e recepto-
res de cultura circulariam entre eles. O esquema corresponde, respectiva-
mente, aos modos de fazer e aos de ver.
A ateno volta-se tambm aos sistemas que do suporte a esses
processos e sujeitos e s normas a que se conformam as sociedades quan-
do produzem cultura, inclusive mediante a consolidao de seus costu-
mes.4 Consequentemente, os potenciais de uma imagem limitam-se quan-
do ela compreendida como sintoma de uma concepo esttica e deter-
minante de cultura, pois a imagem constitutiva da prpria cultura me-
dida que, pela irradiao de novos significados e pela relao com a teia

4
As representaes coletivas e simblicas encontram na existncia de representantes, individuais
ou coletivos, concretos ou abstratos, as garantias da sua estabilidade e da sua continuidade.
Chartier ressalta a validade dessa contestao para as criaes estticas, sempre inscritas nas
heranas e nas referncias que as tornam concebveis, comunicveis e compreensveis, e para
todas as prticas vulgares, disseminadas, silenciosas, que invadem o cotidiano (CHARTIER,
2006, p. 39).

123
AHLERT, J. Histria e imagem

semntica, torna-se, a um s tempo, representativa e construtiva de ima-


ginrios.

Referncias
BAXANDALL, Michael. Padres de inteno: a explicao histrica dos qua-
dros. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: histria e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
CHARTIER, Roger. A nova histria cultural existe? In: LOPES, Antonio Hercula-
no; VELLOSO, Monica Pimenta; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Orgs.). Histria e
linguagens: texto, imagem, oralidade e representaes. Rio de Janeiro: 7Letras,
2006.
CHARTIER, Roger. O mundo como representao. Estudos Avanados: Instituto
de Estudos Avanados USP, So Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, abr. 1991.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e histria. So Paulo:
Cia. das Letras, 1989.
MENESES, Ulpiano B. de. Fontes visuais, cultura visual, histria visual. Balano
provisrio, propostas cautelares. Revista Brasileira de Histria, v. 23, n. 45 (2003),
p. 97-115.
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginrio na histria: fantasmas e certezas nas
mentalidades desde a Idade Mdia at o sculo XX. Traduo de Maria Julia
Goldwasser. So Paulo: tica, 1997.

124
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Histria Oral

Marlise Regina Meyrer1

A Histria Oral no Brasil teve seu incio marcado pelos trabalhos do


CPDOC da Fundao Getlio Vargas, que criou, em 1970, seu Programa
de Histria Oral. No site da instituio, Histria Oral definida como uma
metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com
pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, insti-
tuies, modos de vida ou outros aspectos da histria contempornea.
A Histria Oral expandiu-se aps a inveno do gravador em fita e
ganhou maior expressividade mundial a partir do anos 1970, congregando
pesquisadores de diferentes reas, como a Antropologia, Sociologia, Hist-
ria, entre outras. Nos anos 1990, foram criadas a Associao Brasileira de
Histria Oral (ABHO) e a Associao Internacional de Histria Oral
(IOHA). Essas associaes congregam pesquisadores, realizam congressos
e publicam artigos, especialmente por meio da revista Histria Oral.
Embora a Histria tenha comeado contada oralmente e utilizan-
do registros orais, esses foram desqualificados, sobretudo no sculo XIX,
quando a Histria aderiu ao mtodo cientfico com pretenso a uma objeti-
vidade baseada no mtodo do historiador, no distanciamento do objeto de
pesquisa e na autoridade do documento. Foi com a valorizao da mem-
ria pelos historiadores na dcada de 1960 que a oralidade voltou ao status
de fonte historiogrfica.
A Histria Oral liga-se, assim, diretamente questo da memria,
em especial, elaborao da memria coletiva dos grupos, que fundamen-
ta sua identidade. Nesse sentido, o conjunto de depoimentos e seu signifi-
cado so entendidos na medida em que se referem mesma realidade, ou

1
Doutora em Histria PPGH PUCRS. Professora do PPGH Universidade de Passo Fundo.

125
MEYRER, M. R. Histria Oral

seja, uma realidade comungada por todo o grupo social, adquirindo dessa
forma um significado coletivo. A articulao entre as narrativas individuais
possibilita-nos vislumbrar a perspectiva histrica do grupo, ou seja, um mes-
mo olhar do presente sobre o passado, revelando reflexes sobre si e a hist-
ria do grupo, enfatizando o carter reflexivo dos processos de memria,
que nos remete ideia de identidade. As histrias de vida assim acabam
por criar uma identidade entre as pessoas, na medida em que partilham
diferentes estratgias e saberes diante de uma mesma realidade.
Ligada, em geral, Histria do Tempo Presente ou Histria Imedia-
ta, a Histria Oral parte do presente para um melhor entendimento do pas-
sado, na medida em que as testemunhas so interpeladas a narrar suas re-
cordaes. Decorre desse processo a possibilidade de perceber o carter
seletivo da memria, valorizando, assim, a subjetividade dos relatos e no
uma verdade preestabelecida. Entende-se que [...] mais relevante do que
aferir se so relatos verossmeis sobre o passado ou o presente de uma cida-
de de mdio porte no sul do Brasil entend-las como portadoras de esque-
mas subjetivos que carregam consigo sentimentos de pertencimento em re-
lao ao viver o urbano [...] (COELHO; SOSSAI, 2014, p. 15). Essa acei-
tao dos testemunhos diretos e da subjetividade fez com que as crticas
sobre a falta de veracidade se tornassem uma fonte adicional de pesquisa
(FERREIRA, 2002).
Entretanto existem muitos questionamentos sobre a utilizao da
Histria Oral, especialmente no que diz respeito sua carga de subjetividade.
Nesse sentido, os relatos devem ser analisados luz de referncias bibliogr-
ficas sobre o contexto em questo, pois concordamos com Janoti (2010)
quando ela aponta para a necessidade de recorrer a fontes mltiplas, lem-
brando que o testemunho do depoente no apenas um relato do que viu e
ouviu, mas uma construo de um determinado discurso sobre o fato. Alm
disso, a autora chama a ateno para a necessidade metodolgica de levar
em considerao os objetivos do entrevistador, nesse caso o historiador,
que domina todo um aparato terico que orienta a entrevista e influenciar
a construo do discurso.
Lembramos ainda que a fonte oral deve ser confrontada com outras
fontes, no como complemento, mas como possibilidade de diferentes in-
formaes e vises sobre o objeto pesquisado, pois no existe uma hierar-

126
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

quia no sentido de maior confiabilidade entre as diferentes fontes hist-


ricas. Dessa forma, Smith (2010, p. 31) assinala que [...] quando um pes-
quisador e um narrador se sentam para conversar sobre o passado, duas
maneiras muito diferentes de pensar sobre o passado comeam a se comu-
nicar [e] levar a um avano cognitivo para ambos [...]. O mesmo autor
afirma que esse compartilhamento de conhecimentos/interpretaes tor-
nam a Histria mais democrtica.
Durante muito tempo, vigorou a ideia de que a Histria Oral servia
especificamente para contar a histria dos menos favorecidos. Se para Paul
Thompson a funo da Histria Oral seria devolver a histria do povo
(FERREIRA, 2002), para Michelle Perrot (1988), ela significava a revan-
che das mulheres. Embora essa justificativa para seu uso no seja mais
aceita, pois atribui a esses grupos uma terica incapacidade de produzir
sua prpria histria, essa metodologia, de fato, significou uma maior possi-
bilidade de escrever a histria dos excludos, na medida em que as fontes
escritas sobre esses grupos so mais escassas.
Como a Histria s pode ser escrita atravs de fontes, que so pistas
do passado (ALBERTI, 2004), o reconhecimento documental dos teste-
munhos orais, sem dvida, abre um leque maior de possibilidades. Porm a
riqueza desse tipo de fonte, segundo Alberti (2004), no est em preen-
cher lacunas dos documentos escritos, mas, sim, na possibilidade da nar-
rativa da Histria pelo prprio sujeito que a vivenciou, ou seja, a recupera-
o do vivido concebido por quem viveu (p. 5).

Referncias
ALBERTI, Verena. Ouvir, contar: textos em Histria Oral. Rio de Janeiro: Edito-
ra FGV, 2004.
COELHO, Ilanil; SOSSAI, Fernando Cesar. Histria oral, cidade e lazer no tempo
presente. Histria Oral, v. 17, n. 1, p. 7-37, jan./jun. 2014.
FERREIRA, Marieta de Morais. Histria, tempo presente e histria oral. Topoi,
Rio de Janeiro, dez. 2002, p. 314-332.
JANOTTI, Maria de Lurdes M. A incorporao do testemunho oral na escrita
historiogrfica: empecilhos e debates. Histria Oral, v. 13, n. 1, p. 9-22, jan./jun.
2010.

127
MEYRER, M. R. Histria Oral

PERROT, M. Os excludos da histria: operrios, mulheres e prisioneiros. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SMITH, Richard. C. Histria oral na historiografia: autoria na histria. Histria
Oral, v. 13, n. 1, p. 23-32, jan./jun. 2010.

128
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Identidade

Rosane Marcia Neumann

Identidade um conceito complexo, que na sua essncia, define quem


est dentro e quem est fora. Refere-se identidade individual, de grupo ou
ainda identidade nacional. Parte-se da pergunta quem sou eu e o que me
identifica/diferencia em relao ao outro. Fala-se hoje em identidades ml-
tiplas, as quais so acionadas conforme as demandas do sujeito, bem como
de identidades negociadas.
Para Sygmunt Bauman (2005, p. 16-17), as pessoas em busca de
identidade se veem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de al-
canar o impossvel: essa expresso genrica implica, como se sabe, que
no podem ser realizadas no tempo real, mas que sero presumivelmente
realizadas na plenitude do tempo na infinitude.... Argumenta que exis-
tem as comunidades de origem e de destino, em que as pessoas vivem jun-
tas numa ligao absoluta, no primeiro caso, e no segundo, so fundidas
apenas por ideias. A questo da identidade emerge com a exposio do
sujeito s comunidades de recepo, quando entra em contato com o outro
e passa a existir mais de uma ideia para evocar e manter unida. Dessa for-
ma, o pertencimento e a identidade no tm a solidez de uma rocha, no
so garantidos para toda a vida, so bastante negociveis e revogveis, e de
que as decises que o prprio indivduo toma, os caminhos que percorre, a
maneira como age e a determinao de se manter firme a tudo isso so
fatores cruciais tanto para o pertencimento quanto para a identidade.
Ou seja, a identidade uma construo lenta, que vai alm do simples per-
tencimento: h as identidades individuais, mas h aquelas identidades gru-
pais nas quais o indivduo inserido e acaba por adotar.
J Castells (1999, p. 22-23) sublinha a identidade como a fonte de
significado e experincia de um povo. No que diz respeito aos atores soci-
ais, entende por identidade o processo de construo de significado com

129
NEUMANN, R. M. Identidade

base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais


inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de signi-
ficado. Ressalta as identidades mltiplas, sinalizando que essa pluralida-
de fonte de tenso e contradio tanto na autorrepresentao quanto na
ao social. O autor concorda que a identidade construda, questionan-
do como, a partir de que, por quem e para que isso acontece. A constru-
o da identidade vale-se da matria-prima que recebe e tem a seu dispor,
todavia, todos esses materiais so processados pelos indivduos, grupos
sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em funo de tendn-
cias sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem
como em sua viso de tempo/espao.
Para Homi Bhabha (2001, p. 85),
a emergncia do sujeito humano como social e psiquicamente legitimado
depende da negao de uma narrativa originria de realizao ou de uma
coincidncia imaginria entre interesse ou instinto individual e a vontade
geral. Essas identidades binrias, bipartidas funcionam em uma espcie de
reflexo nascsico do Um no Outro, confrontados na linguagem do desejo
pelo processo psicanaltico de identifio. Para a identificao, a identidade
nunca um a priori, nem um produto acabado; ela apenas e sempre o
processo problemtico de acesso a uma imagem da totalidade. As condies
discursivas dessa imagem psquica da identificao sero esclarecidas se
pensarmos na arriscada perspectiva do prprio conceito da imagem, pois a
imagem como ponto de identificao marca o lugar de uma ambivaln-
cia. Sua representao sempre especialmente fendida ela torna presente
algo que est ausente e temporalmente adiada: a representao de um
tempo que est sempre em outro lugar, uma repetio.

Partindo do pressuposto das identidades mltiplas, o sujeito frag-


mentado inserido em uma identidade cultural nacional. Stuart Hall
(2000, p. 48) acentua que o sujeito no nasce com a identidade nacional,
mas ela formada e transformada no interior da representao. Nessa pers-
pectiva, a nao no apenas uma entidade poltica, mas algo que pro-
duz sentidos um sistema de representao cultural, e os sujeitos partici-
pam da ideia da nao tal qual a representam em sua cultura nacional.
Na construo do discurso da cultura nacional concorrem as instituies
culturais; os smbolos nacionais; os mitos fundadores, as representaes e
memrias; a inveno de tradies; a narrativa da nao, presente na his-
tria e na literatura nacional, na mdia e na cultura popular, que no seu

130
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

conjunto produzem sentidos sobre a nao: constroem a identidade nacio-


nal. Devemos ter em mente esses trs conceitos, ressonantes daquilo que
constitui uma cultura nacional como uma comunidade imaginada: as
memrias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuao da
herana (HALL, 2000, p. 58).
Na mesma linha, Hall (2000, p. 10-13) salienta que historicamente a
concepo da identidade tambm foi se modificando. O sujeito do Ilumi-
nismo estava baseado numa concepo da pessoa humana como um indiv-
duo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razo, de
conscincia e de ao [...] O centro essencial do eu era a identidade de uma
pessoa. J a noo de sujeito sociolgica reflete a complexidade do mun-
do moderno, em que a identidade formada na interao entre o eu e a
sociedade. Assim, a identidade preenche o espao entre o interior/mundo
pessoal e o exterior/mundo pblico. Todavia exatamente isso que est
mudando, ou seja, a identidade unificada e estvel est se tornando frag-
mentada, mltipla, produzindo o sujeito ps-moderno, concebido como
no tendo uma identidade fixa, essencial e permanente, mas uma identida-
de mvel, continuamente deslocada. Ao invs disso, medida que os siste-
mas de significao e representao cultural se multiplicam, somos con-
frontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identida-
des possveis, com cada uma das quais poderamos nos identificar ao
menos temporariamente. Na atualidade, na concepo do autor, em um
processo de globalizao, tratando-se dessas identidades, h como poss-
veis consequncias: a desintegrao das identidades nacionais, como resul-
tado do crescimento da homogeneizao cultural e do ps-moderno glo-
bal; o reforo das identidades nacionais, locais ou de grupo, como uma
forma de resistncia globalizao; o declnio das identidades nacionais e
a ascenso de novas identidades hbridas.
Nesse contexto, notam-se, por exemplo, a emergnica e o reforo das
identidades tnicas. Para Barth (in POUTIGNAT, 1998, p. 194), a identi-
dade tnica no esttica, mas dinmica. Pois, em tais processos, os tra-
os que levamos em conta no so a soma das diferenas objetivas, mas
unicamente aqueles que os prprios atores consideram como significati-
vos. Desse modo, as mesmas caractersitcas diferenciais podem mudar de

131
NEUMANN, R. M. Identidade

significao no decorrer da histria do grupo, e diversas caractersticas po-


dem suceder-se adquirindo a mesma significao.
Essa identidade, como qualquer outra identidade coletiva (e assim tambm
a identidade pessoal de cada um), construda e transformada na interao
de grupos sociais atravs de processos de excluso e incluso que estabele-
cem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou no. Ento, o
que importa procurar saber em que consistem tais processos de organiza-
o social atravs dos quais mantm-se de forma duradoura as distines
entre ns e os outros, mesmo quando mudam as diferenas que, para
ns, assim como para os outros, justificam e legitimam tais distines
(LAPIERRE in POUTIGNAT, 1998, p. 11).

Logo a etnicidade no um conjunto intemporal, imutvel de traos


culturais, transmitidos de mesma forma de gerao em gerao na histria
do grupo; ela provoca aes e reaes entre esse grupo e os outros em uma
organizao social que no cessa de evoluir. Para Sayad (1998, p. 20-21),
igualmente no momento em que se produz essa ruptura quase hertica
da ortodoxia social e poltica na qual mantida a imigrao, no momento
em que se confundem os limites entre os grupos, o grupo dos nacionais e o
grupo dos no-nacionais, pois se confunde o princpio de constituio des-
ses grupos, que os paradoxos colocados pela imigrao (e pela emigrao),
e que at ento estavam latentes, mascarados como o quer a ortodoxia
nacional, explodem em pleno dia. E, sem dvida, os discursos atuais sobre
a imigrao, que so chamados de apaixonados (i.e. irracionais) e que
tratam, na verdade, no dos outros, da alteridade (i.e., do que no sou
eu), mas de si, da identidade do eu esta uma das funes essenciais do
discurso sobre a imigrao: fala-se objetivamente de si quando se fala dos
outros , devem uma parte importante da dramaticidade (desejada ou no)
que os caracteriza ao sentimento de que a imigrao, em sua forma atual,
constitui uma provao para a ordem nacional, uma espcie de desafio
para o conservadorismo social e poltico que os dominantes desejam man-
ter e, mais amplamente, todos aqueles que tm interesse (e com frequncia
interesses simblicos mais do que interesses materiais) na manuteno do
statu quo.

Portanto o tema das identidades perfaz o cotidiano das sociedades e


est cada vez mais marcado pela identidade fragmentada e mltipla.

Referncias
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2005.

132
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Universidade Federal de


Minas Gerais, 2001.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. So Paulo: Paz e Terra, 1999.
HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2000.
SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn (Coord.). Iden-
tidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. 13. ed. Petrpolis: Vozes,
2013.
POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etnicidade: seguido de grupos tnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth. So Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1998.
SAYAD, Abdelmalek. A imigrao. So Paulo: Edusp, 1998.

133
Memria

Joo Carlos Tedesco1

Os gregos, em seu horizonte cosmolgico, mitolgico e antropocn-


trico, atribuam as funes da memria deusa Mnemosyne: lembrar do
passado, no deixar esquecer, pois o que memorvel possui a fora da
imortalidade, fazer voltar s origens, s identidades, orientar as pessoas no
tempo e no espao. Ela era a deusa das Artes e da Histria; era a me das
musas, filha da terra e do cu, irm do tempo (cronos). Por conhecer o
passado, era-lhe atribudo o dom de prever o futuro e resguardar o passado
do temor da perda, da infinitude e do esquecimento. Os poetas, os msicos,
os artistas em geral tinha como referncia e a reverenciavam.
Muitos campos do conhecimento (inter e multidisciplinares) temati-
zam a esfera da memria e revelam a sua complexidade e especificidade.
Ela est mais em correspondncia com a Histria, porque ambas se nutrem
do passado, porm a memria passou a ser um campo de investigao trans-
versal em sua interface com os campos da sade (biologia e neurologia),
arquitetura, comunicao, artes, religies, culturas, etc. Por lidar com o
passado, ela est sempre presente, pois esse universo que a tem como
referncia; seus usos e funes so mltiplos. A memria envolve os mlti-
plos processos que condicionam e dinamizam o lembrar e o esquecer.
bom ter presente que a memria no um simples depsito, um
somatrio de vividos, um ba de recordaes em que, no abrir a porta, tudo
se reencontra, pois esto ali guardados. As lembranas, ao serem revistas,
podem alterar-se ou podem alterar sem ser revistas, ou seja, o que menos
possuem fixidez, cristalizao e meramente transmisso. O relembrar no

1
Doutor em Cincias Sociais UNICAMP. Professor do Progama de Ps-Graduao em Hist-
ria da Universidade de Passo Fundo.

134
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

algo fixo; , sim, flexvel; atua sendo movido por mltiplas implicaes do
tempo, dos sujeitos e de outras contingncias.
A memria expressa a faculdade humana de acessar o passado, de
reter o ausente e presentific-lo quando convm. As formas de reteno do
passado expressam as mltiplas estratgias do presente. Por isso a memria
no isenta de intencionalidades e significados. Ela tem a faculdade de
lembrar e de esquecer; tanto um como o outro, na perspectiva histrica,
poltica, religiosa, dentre outras esferas sociais, passam pelo crivo das signi-
ficaes e vividos, os quais fazem as pontes entre o passado e o presente,
bem como selecionam, estimulam e mantm ativo o passado, presentifi-
cando-o.
Por isso devemos entender a memria como um horizonte dinmico,
de atualidade e atualizao, de transformao do presente pelo passado e
do passado pelo presente; reelaborao. Memria e tempo interpenetram-
se; a primeira continua, em ltima instncia, a guardi do que se imagina e
acredita efetivamente tenha ocorrido no tempo. Porm ambos no so pu-
ras reminiscncias, nem puro registro e nem muito menos possibilidade de
reconstituio tal e qual, pois h interferncias, condicionamentos e inte-
resses em jogo no ato da recordao, assim como nos processos deliberados
de esquecimento.
A memria imbrica-se com a Histria; ambas, mesmo que se descon-
fiem, podem nutrir-se. O presente da memria depende, em muito, da His-
tria; essa ltima que tem a tarefa de apreender (e prender) o acontecido
no presente e no passado e tambm garantir de uma forma ou de outra,
atravs da escrita, dos registros, documentos, oralidades, objetualidades,
ilustraes, homenagens, comemoraes, festejos, saberes, etc., o futuro
desse passado. Tanto a Histria como a memria, ao reconstituir e se servir
do passado, podem manipul-lo e us-lo de mltiplas formas.
Tanto na vida social como individual, necessitamos da continuidade
e da descontinuidade, de lembranas e de esquecimentos, de elaborao e
de seleo do que o tempo se encarregou de deixar atrs de si e do que
insiste que ande com ele amanh. Por isso imagens, smbolos, representa-
es do passado, horizontes construdos e transmitidos por vrios meios
fazem parte da memria, do presente e do passado com inteno de conti-
nuidade.

135
TEDESCO, J. C. Memria

A memria no se dissocia dos fenmenos culturais das sociedades;


ela auxilia na reproduo e na dinmica interpretativa desses. As recorda-
es podem tambm se estabelecer no interior de uma rede de relaes so-
ciais, de representaes que ganham carter coletivo e que constituem iden-
tidades, configuraes sociais e culturais de grupos em tempos e situaes
variadas. Nesse sentido, a recordao necessita tambm de mediao, da
mesma forma que a memria uma mediao entre tempos, fatos e carac-
tersticas dos sujeitos que a personificam. Da a importncia da oralidade,
dos smbolos, dos monumentos, dos saberes, das imagens, das fotografias.
O auxlio da mediao permite refrescar a lembrana, ressignificar, refletir
e racionalizar os vividos e os tempos.
Autores dizem que a funo da memria no meramente preservar
o passado, mas sim adapt-lo para enriquecer e manipular o presente. Por
isso a memria tem um amplo poder; controlar a memria (o que lembrar
e o que esquecer) uma forma de reinterpretar o passado; um campo de
disputas, confrontos e dissensos. O passado no permanece idntico a si
mesmo; o presente que constantemente o reformula. Com isso se pode
entender que a memria no s o passado em si, esgotado nele mesmo,
mas um horizonte temporal projetivo e adaptativo.
Enfim, em meio modernidade social e tecnolgica, a memria ten-
ta ganhar espao social e analtico. H, de certa forma, na atualidade, um
boom de memria expresso pela esfera mercantil do turismo, da estatuomania
e da biografia, do temor da perda e do esquecimento, das polticas de me-
mria e das memrias polticas para quem est no poder, da preservao de
patrimnios materiais e imateriais, da reconstituio das representaes
tnico-culturais, dentre muitas outras formas de manifestao. H uma di-
nmica social que intenciona dar garantia de futuro ao passado mediado
pelo presente, que quer dialogar com os tempos e fatos, traduzi-los e ques-
tion-los, alimentar o presente e o futuro e com isso atestar que esses no se
bastam. A memria pode auxiliar nisso tudo.

136
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

Referncias
BOSI, E. Memria e sociedade: lembrana de velhos. So Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
GAGNEBIN, J. M. Verdade e memria do Passado. Projeto Histria. So Paulo,
17, p. 213-221, 1998.
LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia, v. VIII. Torino: Einaudi, 1979. [Verbete].
RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1995.
SEIXAS, J. A. Os tempos da memria: (des)continuidade e projeo. Uma refle-
xo (in)atual para a histria? Projeto Histria. So Paulo, v. 24, p. 43-63, 2002.

137
Zona do meretrcio

Daniel Luciano Gevehr1

Os espaos associados prtica da prostituio de ambos os gneros


fazem refletir sobre as representaes construdas e difundidas ao longo do
tempo sobre essa verdadeira geografia do prazer (SILVA, 2010, p. 49). Re-
fletir sobre os meretrcios enquanto espaos sociais, dotados de um significa-
do singular no tempo e no espao das cidades, requer uma compreenso mais
aprofundada sobre o processo histrico que constitui a formao desses lu-
gares de memria da cidade e os mecanismos presentes na produo das
representaes sobre esses lugares, considerados at pouco tempo exclusiva-
mente como lugares malditos da cidade. A constituio das zonas de me-
retrcio tem sido abordada por diferentes autores como um fenmeno pr-
prio da cidade, no qual pessoas prestam servios sexuais a seus clientes em
troca de pagamento. A histria desses espaos sociais esteve, at pouco tem-
po, associada apenas s periferias urbanas, onde a prostituio era direta-
mente relacionada s prticas de desregramento social e degradao moral.
A historiadora Joana Maria Pedro afirma que a histria da prostituio e
por consequncia os lugares onde essa prostituio praticada, como a zona
do meretrcio deve ser entendida como um importante problema de pesqui-
sa da histria do tempo presente e no apenas como a mais antiga das profis-
ses mas sim repleta de polmicas e alvos de paixes (PEDRO, 2010, p. 13).
Ainda de acordo com a autora, a leitura equivocada pode resultar em simpli-
ficaes exageradas da dinmica que constitui a complexidade da produo
do meretrcio. Lugar de destaque na zona do meretrcio , sem dvida, o
bordel que se apresenta como o espao privado onde se realizavam as festas
e se realizavam as fantasias, condenadas pela sociedade atravs dos seus c-

1
Doutor em Histria Unisinos. Professor do Programa de Ps-Graduao em Desenvolvi-
mento Regional (PPGDR) das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT).

138
Quinze de Novembro Fronteiras da (in)tolerncia: Passo Fundo (1945-1955)

digos de postura e pela moral, imposta pela tradio e pela cultura moral de
cada poca. Para May Del Priore (2011, p. 84), o bordel era o espao onde
era possvel quebrar os preceitos morais que moldavam a sociedade e, ao
mesmo tempo, permitiam o deboche como espetculo e o prazer como ef-
mero e pago. As casas de prostituio, localizadas na zona do meretrcio,
representavam ainda uma espcie de teatro, onde a transgresso protegida e
controlada se tornava um espetculo. Dentro do meretrcio, havia ainda uma
hierarquia, que aponta para diferentes posies hierrquicas, que classifica-
vam as casas e as prestadoras dos servios sexuais. Nesse sentido, categorias
como a condio social e a identidade tnica serviam para definir o pblico
frequentador e at mesmo a seleo das moas contratadas para trabalhar.
Outro aspecto que deve ser mencionado na caracterizao dos meretrcios
aquele que aponta a prostituio, os bordis e o conjunto que constitui os
entornos do meretrcio, enquanto representao da sexualidade, como uma
fora animal que ameaava transbordar os limites estabelecidos pelas regras
da civilizao (RAGO, 2008, p. 133). Nesse espao, a figura da mulher era
vista no cenrio urbano como um elemento que causava desconforto, seja
por sua condio de prostituta, de trabalhadora ou pelas roupas consideradas
imprprias para sua poca. Dessa forma, a sexualidade feminina causava
medo, mas ao mesmo tempo forte atrao. O mesmo espao que no passado
fora alvo de condenao moral e de inmeras tentativas de torn-lo invisvel
na cidade, na atualidade toma uma nova dimenso. Atravs da patrimoniali-
zao dos bens culturais da cidade, a zona, como era popularmente conheci-
da, passa a ser compreendida como um lugar dotado de memria e historici-
dade, que permite percorrer parte do passado ainda pouco conhecido das
sociedades, em especial no que se refere s particularidades que constituem a
histria regional do Brasil.

Referncias e sugestes de aprofundamento sobre o tema

DEL PRIORE, Mary. Histrias ntimas: sexualidade e erotismo na histria do


Brasil. So Paulo: Planeta do Brasil, 2011.
FVERI, Marlene de; SILVA, Janine G. da; PEDRO, Joana M. (Orgs.). Prostitui-
o em reas urbanas: histrias do tempo presente. Florianpolis: EDUSC, 2010.

139
GEVEHR, D. L. Zona do meretrcio

GEVEHR, Daniel Luciano. Essas mulheres da zona s causam problemas: re-


presentaes de um meretrcio em terras de alemes no sul do Brasil (Taquara/
RS). Cadernos do Tempo Presente, n. 09, p. 01-10, 2012.
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituio e cdigos da sexualidade
feminina em So Paulo (1890-1930). 2. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2008.
PEDRO, Joana M. Vender o corpo, vender o sexo servios sexuais e trabalhado-
ras/es do sexo: uma apresentao. In: FVERI, Marlene de; SILVA, Janine G. da;
PEDRO, Joana M. (Orgs.). Prostituio em reas urbanas: histrias do tempo
presente. Florianpolis: EDUSC, 2010. p. 11-16.
SILVA, Janine G. da. Casas, esquinas e ruas do pecado: lugares de prostituio,
memrias sobre um discurso caminhante. In: FVERI, Marlene de; SILVA, Ja-
nine G. da; PEDRO, Joana M. (Orgs.). Prostituio em reas urbanas: histrias
do tempo presente. Florianpolis: EDUSC, 2010. p. 45-62.

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