Os Bandeira de Mello e Os Poderes Locais Na Paraíba Colonial... T&F PDF
Os Bandeira de Mello e Os Poderes Locais Na Paraíba Colonial... T&F PDF
Os Bandeira de Mello e Os Poderes Locais Na Paraíba Colonial... T&F PDF
Correspondncia:
Instituto de Cincias Humanas UNIFESSPA
Folha 31, Quadra 7, Lote Especial, s/n Marab PA Brasil. CEP: 68.507-590.
E-mail: [email protected]
Resumo Abstract
Em 1769 a tentativa de assassinato do go- In 1769 the attempted murder of the Gover-
vernador e capito-mor da Paraba escan- nor and Captain-General of Paraiba flung
carou as fraturas e acertos sociais de uma open fractures and social arrangements of a
sociedade forjada por estruturas hierarqui- society forged by hierarchical structures, but
zadas, mas sofisticadamente fludas e per- sophisticatedly fluid and permeable. The
meveis. O crime foi encomendado por se- crime was commissioned by disgruntled sec-
tores insatisfeitos das elites locais da Capi- tors of the local elites of the captaincy and al-
tania e nos permitem, sculos depois, uti- low us centuries later use it as a theme in un-
liz-lo como mote na compreenso das in- derstanding the social interactions between
teraes sociais entre nobrezas da terra da land nobility of Portuguese America and the
Amrica portuguesa e os oficiais rgios in- royal official in charge of the government of
cumbidos do governo dos povos e territ- the people and territories. A relationship not
rios ultramarinos. Um relacionamento always friendly, negotiations were frequent
nem sempre amistoso, as negociaes and fundamental to the Portuguese gover-
eram frequentes e fundamentais governa- nance in the tropics. In the captaincy of
bilidade portuguesa nos trpicos. Na capi- Paraiba, relations between colonial elites and
tania da Paraba, as relaes entre elites co- the Crown servers were still defined by the
loniais e os servidores da Coroa foram Pernambuco annexation context, between
ainda definidas pelo contexto de anexao 1756 and 1799, revealing strategies exercised
a Pernambuco, entre 1756 e 1799, reve- in the pursuit of political and economic capi-
lando estratgias exercitadas na busca de tal in a stressed environment court.
capital poltico e econmico numa conjun-
tura jurisdicional tensionada.
* O presente artigo resultado de pesquisa financiada pelo CNPq por meio de bolsa de doutorado.
Agradeo as valiosas contribuies do professor Me. Renan Marques Birro (UNIFAP), que me auxi-
liou na construo de algumas das trajetrias expostas neste artigo. Os pareceristas annimos da
Revista tambm foram decisivos no aprimoramento do estudo e a eles sou particularmente grato.
Naturalmente, as eventuais falhas e omisses so de minha inteira culpa.
Introduo
1
A juno entre a experincia militar e a carreira administrativa era uma tnica no recrutamento dos
quadros governativos do Imprio portugus nos Setecentos. Para mais detalhes, cf. MONTEIRO,
Nuno Gonalo. O governo da monarquia e do imprio: o provimento de ofcios principais durante o
perodo pombalino: algumas notas breves. In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Jnia Fer-
reira; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O governo dos povos. So Paulo: Alameda, 2009.
2
Neste aspecto, no seria demais lembrar a magistral expresso de Manzoni, resgatada por Carlo
Ginzburg e Carlo Poni numa reflexo sobre as relaes entre narrao historiogrfica e narrao fic-
cional: Faz parte da misria do homem o no poder conhecer mais do que fragmentos daquilo que
j passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte da sua nobreza e da sua fora o poder conjec-
turar para alm daquilo que pode saber. A histria, quando recorre ao verossmil, no faz mais do que
favorecer ou estimular essa tendncia ( Apud GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. A micro-histria e
outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1989, p. 197-8.
3
A esse respeito, cf. HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Reviso
de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo Lus Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda;
GOUVA, Maria de Ftima (Orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa.
2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010 [2001].
Por isso mesmo, alm dos caminhos que conectavam os governadores ao ul-
tramar, exploraremos neste artigo a composio social, os negcios e as formas de
lei de elites coloniais, entendendo que estas se articulavam indissociavelmente ao
reino, sendo no somente parceiras indispensveis na manuteno do Imprio, mas
tambm partcipes dos meandros do governo das possesses ultramarinas, comparti-
lhando, em larga medida, os cdigos sociais aristocrticos oriundos da cultura pol-
tica dos tempos modernos.7 Elites eminentemente conquistadoras, estas arrogavam
4
sabido que o governo dos povos no era uma misso exclusiva dos governadores reinis. Outros
servidores metropolitanos partilhavam dessa incumbncia e tinham peso substantivo no equilbrio da
governabilidade, que deveria sempre considerar a parceria com os poderes locais. Deste modo, ressal-
temos que vasta a historiografia que tratou das relaes entre os diversos oficiais de Sua Majestade
e os poderes locais na Amrica portuguesa. Para o caso dos magistrados, cf., por exemplo, o clssico
estudo de SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da
Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. So Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1973].
5
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro, 1500-1808. Revista Bra-
sileira de Histria, v. 18, n. 36, So Paulo, 1998, p. 8.
6
Apud SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: poltica e administrao na Amrica portuguesa
do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 27.
7
Segundo Maria Fernanda Bicalho, No resta dvida de que a formao do Imprio se deu por meio
da transladao de uma srie de mecanismos polticos, jurdicos e administrativos da metrpole para
as mais recnditas regies do globo, tanto no Oriente como no Ocidente. No entanto, a diversidade
sociocultural que os portugueses encontraram em sua faina colonizadora, principalmente no que diz
respeito aos emprios orientais, criou matizes e adaptaes no aparato institucional e legal transferido
do reino, colorindo de tons especficos as mesmas instituies quando adaptadas realidade das dife-
rentes colnias (BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o imprio: o Rio de Janeiro no sculo
XVIII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, p. 367).
8
Sobre a insero das chamadas nobrezas da terra na economia das mercs da Coroa portuguesa,
cf. BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, Mercs e Poder local: a nobreza da terra na Amrica
portuguesa e cultura poltica do Antigo Regime. Almanack braziliense, n. 2, nov. 2005; e MELLO,
Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginrio da restaurao pernambucana. 3. ed. So Paulo: Ala-
meda, 2008.
9
O que d nota uma riqussima historiografia recente. Cf., por exemplo, SAMPAIO, Antnio Carlos
de Juc. Na encruzilhada do Imprio: hierarquias sociais e conjunturas econmicas no Rio de Janeiro
(c. 1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; FRAGOSO, Joo; ALMEIDA, Carla Maria
Carvalho de; SAMPAIO, Antnio Carlos Juc de (Orgs.). Conquistadores e negociantes: histrias de
elites no Antigo Regime nos trpicos. Amrica lusa, sculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2007; MATTOS, Hebe Maria. A escravido moderna nos quadros do Imprio portugus:
o Antigo Regime em perspectiva atlntica. In: FRAGOSO, Joo et al. O Antigo Regime nos trpicos.
Op. cit.; FARIA, Sheila de Castro. A Colnia em movimento: fortuna e famlia no cotidiano colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
10
Sobre o conceito de rede social, sua elaborao interdisciplinar no campo das humanidades e seus
usos especficos na histria, sobretudo a partir da chamada micro-histria italiana que recebeu in-
fluncias das perspectivas interacionistas da Antropologia, cf., dentre muitos outros autores e estudos
fundamentais, BARTH, Fredrik. Process and form in Social life: Select Essays of Fredrik Barth. Lon-
don/Boston/Herley: Routledge & Kegan Paul, 1981; BARNES, J. A. Networks and Political Process.
se pretende total no sentido estrito do termo, mas procurar apontar alguns caminhos
que extrapolem a pontualidade de um crime de sangue e dos jogos polticos associa-
dos que sacudiram a Paraba Setecentista, desvendando alguns desses cenrios do
Antigo Regime nos trpicos em um contexto de franca mudana nos paradigmas
governativos do Imprio, sem que isso viesse a representar uma transformao radi-
cal da cultura poltica da poca.11
A rigor, preciso considerar que na poca moderna a diferena social no se
confundia com a distncia social, como comumente observamos na contemporanei-
dade capitalista. Ao contrrio, os vnculos verticais comportavam um alto grau de
dependncia sem que isso representasse uma separao entre os grupos, pois, como
apontou Jos Mara Imizcoz Beuza para o Imprio Hispnico, hay que pensar la
diferencia no como separacin, sino, en el seno de cada vnculo, como estructura
interna de autoridad y de integracin, de dominacin y de dependencia.12 Isto, per
se, indica a necessidade de certos cuidados terico-metodolgicos com conceitos
como grupo social e famlia quando o assunto so as elites do Antigo Regime e suas
redes clientelares.13
Pelos idos de 1769, em data que no podemos precisar, foi preso o cabra Cons-
tantino, escravizado da casa dos Bandeira de Mello, uma proeminente famlia da
In: CLYDE MITCHELL, J. (Ed.). Social Networks in Urban Situations. Analyses of Personal Rela-
tionships in Central African Towns. Manchester: Manchester University Press, 1969, p. 51-76;
REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala. Experincia de Microanlise. Rio de Janeiro, Editora FGV,
1998.
11
sabido que na segunda metade do sculo 18, os princpios formadores de uma concepo corpo-
rativa do poder e da sociedade do Antigo Regime estavam em eroso, porm, isso no impediu a
adequao de seus estratagemas com os novos valores emergentes no chamado sculo das Luzes, o
que demonstrou nitidamente os limites da Ilustrao em Portugal bem como a capacidade de sobre-
vivncia de uma cultura poltica pautada [...] na dinmica das sociedades de corte, na pessoa do rei
enquanto cabea capaz de articular o corpo social como um todo, na mistura entre o pblico e o
privado, bem como uma indissociao entre o poltico, o econmico e o social (GOUVA, Maria
de Ftima; SANTOS, Marlia Nogueira. Cultura poltica na dinmica das redes imperiais portugue-
sas, sculos XVII e XVIII. In: ABREU, Martha et al. Cultura poltica e leituras do passado: historio-
grafia e ensino de histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira/FAPERJ, 2007, p. 93). Sobre o
paradigma corporativo do Antigo Regime, cf. o clssico estudo de HESPANHA, Antnio Manuel.
As vsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico. Portugal: sculo XVII. Coimbra: Livraria
Alamedina, 1994. J sobre as ressignificaes dessa cultura poltica dos tempos modernos nos trpi-
cos, bem como sua sobrevivncia e adequaes, entre a segunda metade do sculo 18 e o princpio de
Oitocentos no chamado reformismo ilustrado, cf. o estudo de MARTINS, Maria Fernanda. Os
tempos da mudana: elites, poder e redes familiares. In: FRAGOSO, Joo et al. Conquistadores e
negociantes. Op. cit.
12
IMZCOZ BEUNZA, Jos Mara. Comunidad, red social y elites. Un anlisis de la vertebracon
social en el Antiguo Rgimen. In: Elites, poder y red social. Las elites del Pas Vasco y Navarra en la
Edad Moderna. Bilbao: Universidade del Pas Vasco, 1996, p. 27.
13
MOUTOKIAS, Zacaras. Familia Patriarcal o rede sociales: balance de una imagen de la estratifi-
cacin social. Anuario del Instituto de Estudios Histricos-Sociales, n. 15, 2000.
capitania. Possivelmente aps ter sido pressionado, Constantino, que havia sido
preso por culpa de uma morte, acabou confessando a tentativa de outra.14 Na cadeia
da cidade da Paraba de Nossa Senhora das Neves dissera que lhe fora ordenado pela
moa dona Quitria Bandeira de Mello, filha do patriarca do seu cl, Bento Bandeira
de Mello, executar o assassinato do governador da Capitania da Paraba, coronel
Jernimo Jos de Mello e Castro, e de seu secretrio, o Sr. Jos Pinto Coelho. Diante
de tam publicas confisses tirou o ouvidor da Comarca Joze Januario de Carvalho
devassa,15 na qual ficou comprovada a participao da dita dona Quitria na tenta-
tiva de homicdio, acusada pelo ouvidor de ser a mandante do delito. A devassa
apontou ainda o envolvimento de eminentes figuras da sociedade local, especial-
mente do vigrio da Paraba, padre Antnio Soares Barbosa.16 O clrigo, conforme
denncia formada pelo ouvidor da comarca, era amante da dita Quitria Bandeira
de Mello e ambos haviam confabulado contra a vida do governador Jernimo de
Mello e Castro.
To logo soube da notcia da priso do escravo Constantino, Quitria fugira
para a vizinha capitania de Pernambuco, procurando, segundo a verso do governa-
dor Mello e Castro, amparo nos braos do vigrio, que j se encontrava no Recife,
onde cumpria um desterro determinado pelo prprio Bispo em virtude de sua parti-
cipao noutras perturbaes na Capitania da Paraba. Corriam pelas capitanias do
Norte os rumores de que dona Quitria havia jurado vingar-se do governador por t-
la separado do vigrio, isto quando solicitou ao rei a deportao deste para lugar
distante da Paraba, de modo que no mais conspirasse contra o seu governo. 17 Pro-
metera ainda a atrevida moa Quitria restituir brevemente a residncia tirada de seu
amsio.18 O Bispo mandara-o para as Alagoas, porm, com seus contatos e influn-
cias, o padre Antnio Soares Barbosa conseguira permanecer no Recife, centro regi-
onal das capitanias do Norte, de onde teria planejado, junto com d. Quitria Ban-
deira e outros sequazes, o assassinato do capito-mor Jernimo de Mello e Castro.
Segundo assinalou o governador da Paraba, No he novidade esta pertur-
bao que move o referido vigrio [...]19, e o seu maior dio era o fato de ter perdido
os espaos polticos que conquistara em governos anteriores na capitania, pois No
tempo do Governador Antnio Borges da Fonceca (sic), mestre de campo e poten-
tado local que governou a Paraba entre 1745 e 1754, soube o referido vigrio se-
nhorear-se inteiramente da vontade do governador, e do seu Gabinete que governava
14
AHU Paraba, doc. 1873 (1770, fevereiro, 10).
15
AHU Paraba, doc. 1878 (1770, fevereiro, 10).
A devassa do ouvidor da comarca da Paraba, Jos Janurio de Carvalho, encontra-se em AHU
16
20
AHU Paraba, doc. 1842 (1768, julho, 25).
21
Ibidem.
22
Ibidem. Vale destacar que o ofcio de governador de capitania era intimamente associado chefia
das armas. De acordo com Caio Prado Jr., o governador uma figura hbrida, isto , sua compe-
tncia e jurisdio variavam sempre com o tempo, de um governador para outro, de uma para outra
capitania; variavam sobretudo em funo da personalidade, carter e tendncias dos indivduos reves-
tidos do cargo. Em tese, na capitania o chefe supremo o governador (vice-rei, capito-general,
capito-mor, governador simplesmente). O carter desse governo , segundo Prado Jr., essencial-
mente militar (PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasili-
ense, 1977, p. 301). No caso de Melo e Castro, governador de uma capitania subalterna, sua autori-
dade militar era expressa no posto de coronel e capito-mor da Paraba, atribuda no prprio Decreto
do rei d. Jos I, de 5 de julho de 1763 (AHU Paraba, doc. 1701). No entanto, na prtica, sua auto-
ridade militar no recebeu uma aceitao unnime, especialmente em virtude dos conflitos de jurisdi-
o com um poder maior que o seu, o do capito-general de Pernambuco, como veremos.
23
AHU Paraba, doc. 1795 (1766, julho, 9).
24
AHU Paraba, doc. 24, doc. 1840 (1768, julho, 23). Para mais detalhes deste caso, cf. MARIANO,
Serioja R. Cordeiro. O Imprio Portugus e seus Domnios: poder local e poder central na Capitania
da paraba (1764-1797). Territrios e FronteirasCuiab, v. 1, n. 1, p. 167-189, 2008.
25
Sobre o chamado perodo das capitanias anexas, que vigorou na Paraba entre 1755 e 1799, cf.
CHAVES JNIOR, Jos Inaldo. As duras cadeias de hum governo subordinado: histria, elites e
governabilidade na Capitania da Paraba (c.1755-c.1799). Dissertao (Mestrado em Histria), Uni-
versidade Federal Fluminense. Niteri, 2013; e OLIVEIRA, Elza Rgis de. A Paraba na crise do
sculo XVIII. 2. ed. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 2007.
26
AHU Paraba, doc. 1866 (1769, agosto, 24).
27
O problema das jurisdies militares que, na concepo de Jernimo de Mello e Castro, eram cos-
tumeiramente usurpadas pelos governadores de Pernambuco, recebeu um tratamento prolongado da
parte do governador da Paraba. A falta de jurisdio era apontada por Mello e Castro como a raiz
dos males que sofria na capitania, haja vista os soldados e demais subordinados no tenham obedi-
ncia antes me perco o respeito como a cada passo o esto fazendo por cuja razo tantos tem avan-
ado a ultrajarme (sic) e rompero prezentemente no arojo de mandarme tirar a vida [...] (AHU
Paraba, doc. 1879, 1770, fevereiro, 10).
28
CHAVES JR., Jos Inaldo. Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites e territorialidades nas
capitanias do Norte do Estado do Brasil, c.1791-1797. In: COSTA, Ariadne K.; CHAVES JR., Jos
Inaldo (Orgs.). Fazer e refazer o Imprio: agncia e agentes na Amrica portuguesa (scs. XVII-XIX).
Vitria: DLL/UFES, 2011.
29
AHU Paraba, doc. 1878 (1770, fevereiro, 10).
30
Em 1771, quase trs anos aps a tentativa de assassinato sofrida, Jernimo de Mello e Castro notara
amargamente a impunidade dos insultos que sofrera do irmo de d. Quitria, De sorte que com suas
mximas fes (sic) crer ao actual General de Pernambuco [Manuel da Cunha Meneses) que o temerrio
ultraje com que me injuriou o sargento Joze Bandeira de Mello, probado com as mais authorizadas
testemunhas que h presenceado pelo Ouvidor no merecia punio, antes sim favor, como fes meu
General sem me dar a mnima satisfao nem a que requerio o clamor do Povo (AHU Paraba,
doc. 1905, 1771, maro, 14).
31
Hiplito Bandeira de Mello falecera em fevereiro de 1764, portanto, antes mesmo de seu pai. Bento
Bandeira de Mello, o neto, era filho do primognito falecido da casa. Cf. AHU Paraba, doc. 2034
(1779, janeiro, 12).
32
AHU Paraba, doc. 1866 (1769, agosto, 24).
lhe absolvesse de to prolongada e injuriosa priso, por ser a supplicante uma mu-
lher Donzela [...], cizda, recolhida, e de reconhecida nobreza, como he publico
uma autodefesa deveras incongruente com a trajetria interessantssima dessa dona
luso-brasileira.33
J o vigrio Antnio Soares Barbosa amargaria uma longa dcada longe de
seu ministrio na Paraba, exilado em Pernambuco sob ordens de Francisco Xavier
de Mendona Furtado Hoje faz 10 annos que me acho retirado da minha freguesia
da Parahiba, cujo tempo s reputo por morte civil.34 Apenas em dezembro de 1777,
Barbosa recebeu autorizao para retornar a sua freguesia, isto aps uma consulta ao
bispo. Em ofcio destinado ao secretrio Martinho de Mello e Castro, dom Toms
da Encarnao Costa e Lima, bispo de Recife e Olinda, deu seu parecer favorvel ao
retorno do proco, argumentando que as molstias que Barbosa sofrera no exlio ha-
viam feito dele uma pessoa mais pacfica.35 O padre Antnio Bandeira de Mello, ir-
mo de dona Quitria e do sargento Jose Bandeira, um dos principais opositores do
capito-mor da Paraba, foi despachado para a priso eclesistica de Limoeiro, em
Lisboa, onde tambm viveu cerca de dez anos. A ltima notcia que temos do cabra
Constantino, escravizado dos Bandeira, de que, ao ser transferido para a cadeia do
Recife, teria recebido suborno de quatro moedas de ouro do prprio padre confessor,
um suposto amigo do vigrio, e modificado seu depoimento em favor dos rus. 36 A
essa altura, a devassa do ouvidor j corria, mas a modificao do depoimento de
Constantino associada s articulaes dos Bandeira de Mello, que foram buscar
apoio at entre os magistrados da Relao da Bahia, abafou o estardalhao do crime.
A despeito das referidas prises, os rus no foram sentenciados pela tentativa de
assassinato. As punies eram apenas em razo da constatao de suas participaes
em intrigas e perturbaes da paz pblica. Nada mais!
Se os autos da devassa do ouvidor Janurio de Carvalho estavam corretos,
deve ser tambm verdico que os Bandeira de Mello conseguiram, por meio de sua
poderosa rede social, amenizar as perdas diante da acusao de crime de sangue con-
tra o governador. No obstante, o que de fato motivara os dios to aflorados entre
33
AHU Paraba, doc. 2028 (ant. 1778, maio, 22).
34
AHU Pernambuco, doc. 9593 (1777, maio, 1, Olinda).
35
AHU Pernambuco, doc. 9906 (1778, dezembro, 5, Olinda). O ofcio foi uma resposta ao aviso do
secretrio Martinho de Mello e Castro, no qual ordenava o bispo que examinasse os papis de defesa
do padre, emitindo, em seguida, parecer sobre sua conduta (cf. AHU Pernambuco, doc. 9636, 1777,
julho, 11, Queluz).
36
AHU Paraba, doc. 1894 (1770, setembro, 18). Em 1770, lamentava Jernimo de Mello e Castro
ao secretrio de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Mello e Castro, de quem era primo:
conseguiro que o mencionado Escravo se desdicese (sic), e destas retrataoens formaro imensos
documentoz, que dirigiro a presena de Sua Magestade, que julgo sem efficacia por se conhecer
delles a falsidade e suborno com que foro adquiridos (AHU Paraba, doc. 1896, 26 de outubro de
1770). Sobre o parentesco do capito-mor da Paraba com o poderoso secretrio de d. Maria I, cf. o
captulo 3 de CHAVES JR., Jos Inaldo. As duras cadeias de hum governo subordinado. Op. cit. e
CHAVES JR., Jos Inaldo. Biografia e micro-histria: dilogos possveis para uma histria da gover-
nana no Imprio Portugus (Capitania da Parayba, c.1764-1797). Revista Canteira. Niteri, 15. ed.,
jul./dez. 2011.
37
FRAGOSO, Joo. A nobreza vive em bandos: a economia poltica das melhores famlias da terra
do Rio Janeiro, sculo XVII. Algumas notas de pesquisa. Tempo. Niteri, v. 8, n. 15, 2003, p. 4.
38
Ibidem, p. 5.
39
Idem.
40
MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ao: fiscalismo, economia e sociedade na Ca-
pitania da Paraba, 1647-1755. Tese (Doutorado em Histria Econmica), Universidade de So
Paulo. So Paulo, 2005.
41
BARATA, Carlos Almeida; BUENO, Antnio Henrique Cunha. Dicionrio de famlias brasileiras.
v. 1, p. 347.
42
Sobre a noo de direito de conquista nas relaes entre os poderes locais e a Coroa portuguesa,
cf. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o imprio. Op. cit., p. 384; e MELLO, Evaldo Cabral de.
Rubro veio. Op. cit., p. 93, 107.
43
MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ao. Op. cit.
contra outro postulante aos cargos. Curiosamente, os ditos ofcios haviam sido doa-
dos trs anos antes, em 1653, pelo prprio monarca, d. Joo IV, ao capito Lopo
Curado Garro, um dos trs comandantes das tropas na Paraba e prestigiado restau-
rador na capitania. Segundo Menezes, Curado Garro pretendia a mais portentosa
escrivania da Fazenda de Pernambuco, mas acabou conseguindo apenas os ofcios
da Fazenda paraibana, que recebeu como dote para a sua filha.
Provavelmente por no se sentir plenamente satisfeito com a graa rgia,
Garro descuidou na posse efetiva dos ofcios, o que abriu um flanco para postulantes
mais interessados, como era o caso de Bento Bandeira de Mello, e tambm para rivais
antigos, tal como o mestre de campo Francisco Barreto de Meneses, que, em 1654,
gozava da prerrogativa de fazer doaes de cargos na justia (exceto o de ouvidor) e
na fazenda.44 Como sabido, Lopo Curado Garro era cunhado de Andr Vidal de
Negreiros, outro importante restaurador e desafeto de Francisco Barreto. Assim, a
dupla doao dos ofcios da Fazenda da Paraba, Lopo Curado Garro em 1653, e
Bento Bandeira de Mello em 1656, alm de iniciar uma querela prolongada pela
validao da propriedade dos cargos, representou uma das muitas disputas entre os
prprios restauradores; neste caso, entre o mestre de campo Francisco Barreto e o
governador Andr Vidal de Negreiros.
Por dispor de melhores redes informativas na Corte, onde a posse dos ofcios
poderia ser validada, e estar mais bem equipado com recursos pecunirios para su-
bornos de conselheiros e provimento de procuradores, alm de contar com uma boa
dose de persistncia, foi, pois, Bento Bandeira de Mello quem venceu a batalha judi-
cial, estendida por cerca de quarenta anos. No Conselho Ultramarino, Bento Ban-
deira possua um importantssimo apoio, algum que o manteria informado sobre os
trmites do processo e seria decisivo na conquista definitiva dos ofcios. Tratava-se
de seu irmo colao, Feliciano Dourado, braslico nascido na Paraba e que teve as-
censo carreira diplomtica, chegando a ocupar o cargo de conselheiro do Ultra-
marino. Analisando o processo que garantiu a propriedade dos ofcios a Bento Ban-
deira de Mello, que no viveu o suficiente para ver essa confirmao, deixando, nada
obstante, os ofcios para seu filho mais velho, Menezes afirma no ter dvida de
que, por dentro do Conselho Ultramarino, seu irmo colao, Feliciano Dourado,
juntamente com o corpo de conselheiros, o tenham ajudado.45
Finalmente, confirmados os ofcios como propriedade dos Bandeira de Mello,
eles consolidariam uma trajetria de controle sobre a Provedoria da Fazenda da Pa-
raba, encerrada somente com a extino deste rgo em 1798. Com razo, Vergetti
44
Como conta-nos Menezes, [...] quando consolidada a restaurao em todo territrio das capitanias
do Norte, D. Joo IV ampliou os privilgios nas doaes e concedeu aos mestres de campo, entre eles
Francisco Barreto de Menezes, em janeiro de 1654, a faculdade do provimento dos ofcios da Justia
e Fazenda, com a vitaliciedade aos oficiais e soldados que serviram na guerra. Com esta medida, o
monarca dividia com os mestres de campo restauradores, o poder do exerccio generoso de conceder
e doar, em seu nome, as presas da guerra (MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ao.
Op. cit.).
45
Idem.
46
Mozart Vergetti de Menezes autor de importante tese de doutorado sobre a Provedoria da Fazenda
da Paraba entre o sculo 17 e a primeira metade do Setecentos. Para maiores detalhes sobre o funci-
onamento deste rgo e sua articulao aos poderes e interesses locais, cf. o supracitado estudo.
47
Machina o dito vigrio perseguioens a quem o no admite no seu gabinete seguindo nisto identi-
camente a practica jezuitica de quem foi sempre apaixonado ainda depois das Reais proibioens
(AHU Paraba, doc. 1842 (1768, julho, 25).
48
Sou grato a professora Dra. Carla Mary S. Oliveira (PPGH/UFPB) por sua cirrgica e generosa
contribuio na construo desse argumento. Sobre a dissimulao na teoria poltica das monarquias
catlicas e suas relaes com a prxis da governana nas colnias atlnticas, cf. FIGUEIREDO, Lu-
ciano Raposo Almeida. Maquiavelianas brasileiras: dissimulao, ideias polticas e revoltas coloniais
(Portugal, sculos XVII e XVIII). Revista Tempo. Niteri, v. 20, 2014, p. 1.-24.
49
Segundo Jean-Paul Ziga, estratgia pode ser entendida como um conjunto de prticas e com-
portamentos que permitem alcanar ou chegar a uma posio de privilgio como resultado de um
esforo realizado tanto de forma individual quanto atravs de um grupo familiar. Cf. ZIGA, Jean-
Paul. Clan, parentela, famlia, individuo. In: CORTE, G.; BARRIERA, D. (comp.). Espacios de fa-
milia. Tejidos de lealtades o campos de confrontacin? Mxico: Red Utopa, 2003, p. 35-57.
50
AHU Paraba, doc. 2034 (1779, janeiro, 12).
51
AHU Paraba, doc. 2034 (1779, janeiro, 12).
52
As ordenaes Filipinas. Livro I, ttulo XCVI. Edio de Cndido Mendes de Almeida. Rio de
Janeiro, 1870. Disponvel em www.ci.uc.pt/ihi/prog/filipinas. Acesso em: 17 mar. 2015.
53
OLIVAL, Fernanda. Mercado de hbitos e servios em Portugal (sculos XVII-XVIII). Anlise So-
cial, v. XXXVIII, (168), 2003, p. 746.
54
OLIVAL, Fernanda. Mercado de hbitos e servios em Portugal. Op. cit., p. 751.
55
HESPANHA, Antonio M. Constituio do Imprio portugus. Op. cit., p. 183.
56
Ibidem, p. 185.
57
AHU Paraba, doc. 1866 (1769, agosto, 24).
58
O capito-mor Mello e Castro registrou sua verso do ocorrido: Neste tempo succede falescer
Bento Bandeira de Mello proprietrio do officio de Escrivo da Fazenda e mandou [o padre Antnio
Bandeira] a secretaria de Pernambuco o Edital da copea n 6 em que declara pertencer o officio a hum
neto do proprietario sobrinho do mesmo padre, cujo Edital fis (sic) executar e respondi ao Governo
de Pernambuco que o mesmo Edital contravinha directamente o esprito e genuino sentido da Ley de
1761 por onde recahia a propriedade do officio no patrimnio Regio (AHU Paraba, doc. 1876,
1770, fevereiro, 10).
59
AHU Paraba, doc. 1878 (1770, fevereiro, 10).
60
AHU Paraba, doc. 1876 (1770, fevereiro, 10).
61
AHU Paraba, doc. 1878 (1770, fevereiro, 10).
62
AHU Paraba, doc. 1905 (1771, maro, 14).
63
Alavar de 07/08/1779, Livro 80, Chancelaria de d. Maria I, fl. 242, Torre do Tombo; Carta de
08/08/1781, Livro 84, Chancelaria de d. Maria I, fl. 105, Torre do Tombo.
zart Vergetti de Menezes, o primeiro Bento Bandeira certamente recebeu ajuda cru-
cial de seu irmo colao, Feliciano Dourado, membro do Conselho Ultramarino,
quando litigou com o capito Lopo Curado Garro pela propriedade dos ofcios no
sculo 17.
Na centria seguinte no acontecera de forma diferente. Dessa feita, o amigo
dos Bandeira no Conselho Ultramarino era o ex-governador de Pernambuco Conde
de Vila Flor, Antnio de Sousa Manuel de Meneses, que, aps sair do Brasil, fora
elevado ao posto de conselheiro na Corte em 1769. O prprio Jernimo de Mello e
Castro, governador da Paraba, reconhecia que o padre Antnio Bandeira de Mello
era favorecido do dito Conde, de quem certamente recebeu graas para a confirma-
o dos ofcios de seu sobrinho.64 Decerto, reconhecemos, na esteira dos estudos de
Maria Fernanda Bicalho para o sculo 18:
[...] que o circuito dos papis submetidos aos pareceres tanto dos
ministros do Conselho Ultramarino, quanto dos influentes corte-
sos, nega o funcionamento institucional de uma arquitectura de
poder neutra, no se constituindo no resultado de um governo tc-
nico.65
64
AHU Paraba, doc. 2055 (1779, setembro, 8).
65
BICALHO, Maria Fernanda. Inflexes na poltica imperial no reinado de D. Joo V. Anais de
Histria de Alm-mar, v. VIII, 2007, p. 37-6.
66
Ibidem.
67
AHU Paraba, doc. 2034 (1779, janeiro, 12).
68
AHU Paraba, doc. 2055 (1779, setembro, 8).
69
Para mais detalhes sobre os ramos da famlia Bandeira de Mello noutras capitanias do Nordeste
oriental, bem como sobre sua linhagem fidalga, cf. BARATA, Carlos Almeida; BUENO, Antnio
Henrique Cunha. Dicionrio de famlias brasileiras, v. 1, p. 347-351.
70
Para uma pertinente discusso acerca da regulao poltica e moral da economia do Antigo Regime,
notavelmente quanto a experincia atlntica e colonial, cf. FRAGOSO, Joo; GOUVA, Maria de
Ftima S.; BICALHO, Maria Fernanda. Uma leitura do Brasil colonial. Bases da materialidade e da
governabilidade no Imprio. Penlope Fazer e desfazer a Histria, Oeiras, n. 23, 2000, p. 67-88.
71
AHU Paraba, doc. 2076 (1780, setembro, 26).
72
Idem.
73
Idem.
74
A esse respeito, cf. BOXER, Charles. O imprio martimo portugus. 1415-1825. So Paulo: Com-
panhia das Letras, 2002; PEDREIRA, Jorge Miguel. Os homens de negcio da Praa de Lisboa: de
Pombal ao Vintismo (1755-1822). Diferenciao, reproduo e identificao de um grupo social. Tese
(Doutoramento em Sociologia e Economia Histricas) Universidade de Lisboa. Lisboa, 1995 e
CHAVES JR., Jos Inaldo; COSTA, Ariadne K. Negcios que enobrecem: histria e historiografia
da mercancia no Imprio Portugus (sc. 17 e 18). In: COSTA, Ariadne K.; CHAVES JR., Jos
Inaldo. Fazer e refazer o Imprio. Op. cit.
75
AHU Paraba, doc. 2076 (1780, setembro, 26).
guisa de concluso
Potentados locais e ascenso social no Antigo Regime nos trpicos
76
AHU Paraba, doc. 2063 (post. 1780, abril, 20). Eram os filhos Joze Gonalves de Medeiros,
homnimo de seu pai, Bras de Mello Moniz e Francisco Herculano Medeiros Moniz de Mello.
77
Analisando os vnculos interfamiliares, sociais e polticos da elite mercantil de Lima, Peru, Cristina
de Viv acrescenta: [...] no sculo XVIII, uma estratgia familiar era encaminhar um filho carreira
eclesistica e outro carreira militar, enquanto algum da famlia cumpria o papel de assumir um
posto na assembleia ou no cabildo. Que benefcios poderiam ser obtidos dessa maneira? Ter acesso a
pelo padre Antnio Bandeira de Mello enquanto estrategista do seu bando, especial-
mente aps a morte de seu pai e de seu irmo mais velho, emblemtico dessa ca-
racterstica to peculiar. O capito-mor Jernimo de Mello e Castro, que acabou tor-
nando-se um dos principais narradores dessa histria simplesmente por manter uma
relao aproximada com os poderes locais da Amrica portuguesa, exprimiu com
exatido a natureza da casa no Antigo Regime nos trpicos, uma noo que extra-
polava substantivamente as paredes e murros do espao fsico:
diferentes instituies governamentais, o que permitiria escalar posies na sociedade (VIV, Cris-
tina Mazzeo de. Os vnculos interfamiliares, sociais e polticos da elite mercantil de Lima no final do
perodo colonial e incio da Repblica: estudos de caso, metodologia e fontes. In: OLIVEIRA, Mnica
Ribeiro de; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho (Orgs.). Exerccios de micro-histria. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009, p. 266). Essa diversificao de negcios, ocupaes e intercmbios era notoria-
mente observada na rede encetada pelos Bandeira de Melo na Amrica portuguesa.
78
AHU Paraba, doc. 1878 (1770, fevereiro, 10). Grifos nossos.
79
Cf. FRAGOSO, Joo. A nobreza vive em bandos, Op. cit. Para uma pertinente problematizao
da categoria nobreza da terra, cf. STUMPF, Roberta G. O ouro nobilitante: a nobreza na capitania
de Minas Gerais. Anais de histria de alm-mar, vol. X: Centro de Histria de alm-mar. Lis-
boa/Ponta Delgada, 2009.
Por isso, o matrimnio assumia uma funo estratgica candente para a so-
brevivncia da casa, indicando tanto a possibilidade de aumento do patrimnio
quanto a ampliao da rede de solidariedades, agregando a partir de laos familiares
indivduos de outros bandos. Um exemplo ntido foi o casamento de Hiplito Ban-
deira de Mello em 1747, filho primognito do patriarca Bento Bandeira, com a filha
do mestre de campo e governador da Paraba Antnio Borges da Fonseca, assina-
lando um perodo de aproximadamente uma dcada de paz e fortalecimento do ca-
pital poltico dos Bandeira de Mello na Paraba.80 No Antigo Regime nos trpicos,
essas unies tambm poderiam ser decisivas em momentos de confronto com grupos
rivais, quando os aliados, suas parentelas e agregados eram sempre bem-vindos.81 H
que se dizer que a amizade no era representada somente por simples sentimentos,
algo que se realizava meramente no plano individual, antes disso, supunha valores
como confiana, reciprocidade e intercmbio de servios, atingindo toda a casa.
Grosso modo, so facilmente notadas as muitas similaridades entre as estru-
turas sociais, polticas e culturais das possesses coloniais portuguesas e as do reino.
Entretanto, por aqui as tonalidades do viver em colnia no copiaram puramente os
modelos europeus, ao contrrio, recriaram elementos da cultura poltica dos tempos
modernos em um cenrio tropical onde normas antigussimas nem sempre se encai-
xavam na fluidez de sociedades ainda em formao, tingidas pela escravido e cati-
veiro indgena e pela relao estreita das nobrezas da terra e oficiais da Coroa com
as prticas mercantis, como visto no caso dos Bandeira. No obstante, a posse de
terras e de escravos associada ao pendor aristocrtico, ao exerccio de cargos presti-
giados do governo local e a busca incansvel pelo acrescentamento da qualidade por
meio das benesses rgias, heranas da cultura poltica de Antigo Regime, definiram,
em larga medida, a composio de nossas primeiras elites senhoriais.
Por volta de 1790, Bento Bandeira de Mello, o neto, pedia autorizao rai-
nha d. Maria I para portar pistolas, justificando seu pedido dizendo ser senhor de
engenho e criador de gado e por isso, em suas viagens s suas propriedades, necessi-
tava proteger-se de possveis salteadores e inimigos.82 A proviso de 14 out. 1792 ga-
rantiu-lhe o direito de fazer uso de armas de fogo, como se sabe, uma prerrogativa
eminentemente aristocrtica, embora no exclusiva poca.83 Em 1797, o mesmo
80
Quanto ao aumento do patrimnio, sabido que, durante o governo de Antonio Borges da Fonseca
(1745-54), sogro de Hiplito Bandeira de Mello, este conseguira a concesso de ao menos duas datas
de sesmarias na Paraba. Uma delas localizada na ribeira do rio Pianc e concedida pelo governador
em 1747, ano do casamento com Antonia da Conceio Velloso; e a outra localizada no serto do
Cariri, na nascena do Ribeiro Salgado, e concedida em 1748. Ambas as sesmarias destinavam-se
criao de gado. Cf. TAVARES, Joo de Lyra. Apontamentos para a histria territorial da Parahyba.
Parahyba: Imprensa Official, 1910 (vol. I), p. 203-204.
81
FRAGOSO, Joo Lus. Potentados locais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra
supracapitanias, no Setecentos. In: MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S.
da (Orgs.). Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005.
82
Cf. AHU Paraba, doc. 2285 (ant. 1793, maio, 31).
83
BARATA, Carlos Almeida; BUENO, Antnio Henrique Cunha. Dicionrios de famlias brasilei-
ras, v. 1, p. 348.
Bento Bandeira, escrivo da Fazenda, que j havia sido condecorado com o hbito
da Ordem de Cristo,84 solicitou monarca que os servios prestados por seu av ho-
mnimo fossem incorporados sua prpria folha, tendo em vista que haviam sido
doados pelo mesmo av.85 Isso ocorria porque, ao contrrio dos ofcios, ttulos e h-
bitos concedidos pela Coroa, os servios poderiam ser dispostos de acordo com o
arbtrio do vassalo.86 No mesmo ano de 1797, teve merc da Carta de Braso de Ar-
mas, uma autntica confirmao de fidalguia.87
Os pedidos de Bento Bandeira demonstram que o escrivo ainda no havia
dado por encerrado o processo de ascenso social e ganho de capital poltico, e nem
podia, pois, a despeito da diversificao de negcios que sua casa possua da
propriedade de ofcios na Fazenda Real, passando pelos contatos no Conselho
Ultramarino e no clero, e o envolvimento com o comrcio e a produo agrcola ,
sem falar no prestgio de ser o chefe de uma das mais nobres famlias das capitanias
do Norte, o Antigo Regime nos trpicos possua variaes intempestivas nas quais a
elevao de um bando poderia representar a runa de outro. O que fizemos aqui foi
nada mais do que apresentar algumas cenas de uma sociedade que somente pode ser
compreendida quando considerada sua grande complexidade, de modo que
conceitos excessivamente rgidos jamais dariam conta de suas estruturas sociais,
marcadas por um relativo enrijecimento de normas, porm fluda, permevel e at
irreverente em suas prticas. Por isso, acreditamos que o dilogo com a antropologia
interacionista e com as networks analisis possibilita caminhos pertinentes para, por
meio da trajetria de indivduos inslitos e de eventos desapercebidos, identificarmos
as cores e os tons que no se apagam diante de conceitos sisudos como classe e grupo
social, ou dos jarges da historiografia tradicional, como os binmios metrpole
versus colnia e funcionrios versus colonos. Os jogos polticos e as redes
interpessoais que envolviam elites locais, escravizados, oficiais rgios e negociantes
em diversas interfaces, apresentam com clareza a riqueza analtica do Antigo Regime
nos trpicos.
84
BARATA, Carlos Almeida; BUENO, Antnio Henrique Cunha. Dicionrios de famlias brasilei-
ras, v. 1, p. 348.
85
Cf. AHU Paraba, doc. 2390 (1797, julho, 6).
86
OLIVAL, Fernanda. Mercado de hbitos e servios em Portugal, Op. cit., p. 750.
87
BARATA, Carlos Almeida; BUENO, Antnio Henrique Cunha. Dicionrios de famlias brasilei-
ras, v. 1, p. 348.