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Contabilidade

Valter Hugo Me

Sara Damsio
a poesia deu-me tudo o que aprendi sobre os textos. Nenhum outro
gnero nos exige mais do que a poesia, e ter passado a maior parte da
vida a querer ser poeta fez de mim at um cidado melhor, estou seguro
disso.

Valter Hugo Me in Contabilidade


Breve biografia do autor

Valter hugo me nasceu em Saurimo, Angola, no ano de 1971.


Licenciado em Direito, ps-graduado em Literatura Portuguesa Moderna
e Contempornea. Vive em Vila do Conde.

Publicou cinco romances:O filho de mil homens (2011), a mquina


de fazer espanhis (2010) o apocalipse dos trabalhadores (2008),
o remorso de baltazar serapio, vencedor do Prmio Jos Saramago
(2006) e o nosso reino (2004).

A sua obra potica est revista e reunida no volume contabilidade


(Objectiva/Alfaguara, 2010).

autor dos livros para os mais novos: O rosto (Agosto 2010), As mais
belas coisas do mundo (Agosto 2010), A verdadeira histria dos
pssaros (2009) e A histria do homem calado (2009).

Escreve a crnica Autobiografia imaginria no Jornal de Letras.

Valter hugo me vocalista do grupo musical Governo e


esporadicamente dedica-se s artes plsticas.

Letrista dos msicos/projectos Mundo Co, Paulo Praa, Indignu, Salto,


Frei Fado DelRei, Blandino e Eliana Castro.

Recebeu, em 2009, o trofu Figura do Futuro, atribudo pelo Correio da


Manh. Recebeu, em 2010, a Pena de Camilo Castelo Branco. Em 2010
recebeu a Medalha de Mrito Singular de Vila do Conde.
Razo da escolha

H algum tempo atrs, tropecei num vdeo do youtube onde Valter


Hugo Me lia um texto. Na altura, sentado num palco, era homenageado
em terras de Santa Cruz pelo seu trabalho de escritor. A emoo das
suas palavras e a forma como nos envolve na leitura, cativa qualquer
um e, a mim, deixaram-me a curiosidade de o conhecer como escritor.

A histria contada simples mas a mensagem, os sentimentos so


to profundos que nos convencem que no haver erro em ler seja o
que for que saia dele. A voz, a palavra, a sua presena voltei a encontr-
las neste livro/colectnea potica que escolhi para este trabalho.

O escritor dividiu os poemas e organizou-os em captulos aos quais


chamou livros. No total so onze livros.

A poesia de Valter Hugo Me encerra nela umavertente narrativa.


Muitos ods seus poemas apresentam caractersticas prprias de quem
conta um conto: a existncia de personagens, as descries, a utilizao
do tempo imperfeito do era uma vez. Apresentam, os poemas, talvez
por isso, uma estrutura externa tambm um pouco convexa. A rima
inexistente, a mtrica desvalorizada e as estrofes no obedecem a
ningum. Tudo isto concorre para uma escrita fluda e inebriante.

Escolhi dois poemas, que afastando-se um pouco desta vertente


narrativa, abordam temas catedrticos das lides poticas mas com uma
abordagem com a qual me identifico e aprecio. Espero que aprecie,
tambm.
uns mortinhos pequenos

tenho uns caixezinhos no corao que me

nasceram quando partiste. se regados com

cuidado, brotam mortos como flores negras pelo

interior das veias, que me assombram o sangue, corando

a minha pele numa vergonha e sentindo medo

so uns mortinhos pequenos que muita gente

nem sabe que existem. acreditar em fantasmas

s possvel para quem tem muito amor e recusa a

pequenez da vida sem continuao

tenho uns caixezinhos no corao que se abrem a toda a hora. quando


me deito, ouo-os

embatendo de encontro ao peito, talvez com vontade

de ir embora, talvez s por ser o amor to estreito


modo de amar

prometo ser-te fiel se mo fores

tambm. no certo que mo venhas a

ser. por isso, j te perdoo

prefiro partir assim para o resto da

vida. assim, com os olhos abertos

frustrao e talvez vulnerabilidade

no prevejo nada em concreto, acredita,

no tenho olhos para outras moas,

s o digo assim por ser verdade

que tarde ou cedo havemos de encontrar

nos outros motivos de inusitado

interesse. e depois, pergunto,

vale mais que acordemos um amor

sobreposto ao futuro, um amor agora

que tenha conhecimento do futuro

e no esperar mais nada seno a

verdade. a decadente verdade que


chegar j depois dos primeiros beijos

Breve anlise

Uns mortinhos pequenos

um poema consttudo por trs estrofes sendo a primeira uma


quintilha e as duas outras esrofes quadras. A rima livre e a mtrica
irregular.

Opoema tem como tema a saudade, as memrias deixadas como


2caixezinho aps a partida de algum. A suspeita de que esta seria
uma partida, uma ausncia provocada pela morte, subtilmente sugerida
pela escolha da palavra caixezinhos, comprovada na segunda
estrofe quando o suijeito potico se refere morte atravs do
eufemismo de quem recusa apequenez da vida sem continuao.
Aqueles caixezinhos que nasceram no corao sero resultado da
partida de algum e, como recordaes que se guardam,quando
revividas provocam no sujeito potico o desconforto, o medo. Estas
recordes sero fantasmas prprios dde quem no aceita a
inevitabilidade inelutvel da morte. Abrem a toda a hora, surgem a
qualquer momento.

A dor que fica quando algum qu amamos parte deste mundo


suavizada pela uso do diminutivo caixezinhos para logo ser
intensificada quando estes caixezinhos teimam em abrir a toda a
hora.
modo de amar

um poema constitudo por seis estrofes de trs versos


cada. Uma estrutura invulgarmente regular, tendo em conta o resto da
obra.

A leitura das primeiras palavras deixa adivinhar que iremos ler uns
votos de compromisso prprios de um ritual de unio. No entanto, torna-
se evidente que estes sero uns votos diferentes do que estamos
habituados. Longe do idealismo romntico que turva o olhar dos
amantes, estes so uns votos bastante pragmticos. Encaram o
compromisso com a certeza da desiluso e do sofrimento, sem
expectativas e sem desejar muito. A traio to certa quanto o perdo
que avanado, priori : no certo que mo venhas a ser. por isso, j
te perdoo.. Arrisco a tentativa de colagem postura do heternimo de
Ricardo Reis uma vez que, tal como aquele, Valter Ghugo Me tenta
evitar a surpresa do desencantamento, substituindo-a pela conscincia
aguda de que nada dura, substituindo-a por uns olhos abertos e um
amor agora que tenha conhecimento do futuro..

Nestes votos de amor s h espao para a verdade, ainda que seja


a decadente verdade quechegar j depois dos primeiros beijos..

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