Inteligencia Criativa
Inteligencia Criativa
Inteligencia Criativa
Gabriel Periss1
Resumo: A presena do pensamento do filsofo espanhol Alfonso Lpez Quints na vida acadmica
brasileira uma oportunidade de aprofundar algumas questes educacionais, como a implementao dos
PCN (Parmetros Curriculares Nacionais) e a complexa relao entre esttica, tica e criatividade,
incluindo-se a sempre urgente reflexo sobre caminhos alternativos para a formao docente.
Palavras Chave: Alfonso Lpez Quints. Filosofia. Pensamento. Criatividade. Educao. Formao
docente.
Abstract: The presence of the philosophy of the Spanish Alfonso Lpez Quints in the Brazilian
academic life is an opportunity to delve into some educational issues, such as the implementation of the
PCN and the complex relationship between aesthetics, ethics and creativity, including the always urgent
reflections on alternative routes to teacher training.
Keywords: Alfonso Lpez Quints. Philosophy. Thought. Creativity. Education. Teacher training.
Introduo
Em 1951, estando ainda muito ntidas as lembranas dos horrores da 2 Guerra
Mundial, o pensador francs Gabriel Marcel publicou o livro Les hommes contre
lhumain, em que alertava para o perigo da desumanizao, analisando suas causas e
desdobramentos. Para ele, a causa principal da desumanizao (um ato violento do ser
humano contra si mesmo) a falta de uma reflexo filosfica adequada, de um
pensamento rigoroso e esclarecedor. Sem essa reflexo, corremos o risco de mergulhar
numa redoutable confusion (MARCEL, 1951, pg. 99), numa pavorosa confuso.
Existencialmente confusos, sem critrios e sem parmetros, perdemos de vista
as noes mais preciosas sobre ns mesmos. Perdemos a noo do respeito e do
autorrespeito. Seremos vtimas passivas de todo tipo de desprezo, manipulao,
destrato e agresso ou, no sentido oposto, seremos capazes de desprezar, manipular,
destratar e agredir os outros como se fosse algo natural.
Desde a dcada de 1960, um leitor atento de Gabriel Marcel, o pensador
espanhol Alfonso Lpez Quints (ALQ), comeou a despontar no cenrio da filosofia
espanhola como algum preocupado com a arte de pensar em conexo com a arte de
viver, aprender e ensinar. Este breve artigo faz algumas consideraes sobre a obra de
Lpez Quints, tendo em vista o contexto educacional brasileiro.
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Internacional de Sociedades de Filosofa) e foi eleito em 1984 membro da Real
Academia de Ciencias Morales y Polticas de Madrid.
Em 1987, fundou a Escuela de Pensamiento y Creatividad, em cuja
programao encontramos cursos de ttulos sugestivos: El arte de pensar con rigor y
vivir de forma creativa, Cmo formarse en tica a travs de la literatura y el cine,
Grandes cuestiones de tica e Literatura, creatividad y formacin tica, este
ltimo divulgado pela internet desde 1998, num convnio entre a Universidade
Complutense e o Ministrio da Educao espanhol.
Desde que defendi minha tese de doutorado, em 2003, mesmo ano em que foi
publicada pela Editora Manole Filosofia, tica e literatura: uma proposta
pedaggica , e, a bem da verdade, desde quando comecei esta pesquisa na
Faculdade de Educao da USP, em 2001, sob a orientao do Prof. Jean Lauand,
tenho estudado com renovado interesse o pensamento de ALQ.
Naquele comeo de sculo XXI, j estavam difundidas no Brasil as propostas
dos Parmetros Curriculares Nacionais, que se inspiraram na reforma educacional
espanhola iniciada pelo Ministrio de Educao daquele pas no final da dcada de
1980. A LOGSE (Ley de Ordenacin General del Sistema Educativo) entrou em vigor
na Espanha em 1990. Os nossos PCN, fundamentados nessas propostas, com
adaptaes realidade brasileira, traziam para nossos professores um estmulo
reflexo e atualizao profissional. O ento ministro da Educao, Paulo Renato
Souza, dirigiu-se aos docentes nos seguintes termos:
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que farei surgir algo novo e valioso: um poema, um conto, um romance, uma pea
teatral. Vejamos este breve poema de Jos Paulo Paes (PAES, 2008, pg. 306):
Ao p da letra
lho por lho
de te por de te
Pedagogia do encontro
O ser humano, no pensamento de Lpez Quints, um ser de encontro, que
se desenvolve e se aperfeioa ao entrelaar suas possibilidades com as de outros seres
ao seu redor.
O primeirssimo encontro humano o do beb com a me. Neste
protoencontro, a me acolhe, protege e alimenta seu filho, e este, recebendo
ativamente o amor materno, oferece sua me um mundo incipiente mas repleto de
grandes possibilidades. Cria-se logo de incio uma relao de carinho incondicional,
que se fortalecer mediante outras futuras formas de contato, cuidado e vinculao:
troca de olhares, o tom de voz da me em dilogo com o choro da criana, a hora do
banho, a hora de dormir, a troca da fralda, as brincadeiras etc.
O beb acolhido pela me e pelo pai. A famlia que o recebe (no por
acaso que a palavra parentes indica que os outros, alm da me, tambm de certo
modo pariram o novo membro), a famlia toda oferece ao recm-nascido sinais
eloquentes de aceitao e alegria. O beb, que sofreu a sensao da ruptura e da
expulso ao sair do tero, dentro do qual j interagia de certo modo (alguns dos seus
pontaps no seio materno eram reaes a movimentos ou posturas fsicas da me que
lhe causavam desconforto), esta pequena criatura tambm espera, instintivamente,
ambientes que lhe deem segurana, conforto e desvelo.
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Na sociedade, sero celebrados ritos sociais e religiosos com a finalidade de
recepcionar (e legitimar) em clima festivo a criana que acaba de chegar quela
comunidade. Mais tarde, de modo inevitvel, sobreviro inmeras rupturas
(biolgicas, afetivas, culturais, sociais...), que so desencontros mais ou menos
dolorosos e os tambm chamados encontros de coliso. Tais rupturas, no entanto,
tm sua relevncia, algo representam, porque j anteriormente a regra eram os
encontros e a unio. Os encontros de coliso (o encontro com as doenas, por
exemplo) so, ao seu modo, positivos, na medida em que fazem o organismo
identificar e extrair de si possibilidades de cura e imunidade diante do invasor.
O encontro o modo de unio que estabelecemos com diferentes realidades.
Numa Pedagogia do Encontro, a relao entre realidades pessoais possui em si mesma
um valor imenso, e, de modo concreto, a relao em sala de aula.
Imaginemos uma situao tpica dentro da sala de aula. A professora pergunta
classe se algum deseja esclarecimentos sobre o tema em estudo. Um dos alunos
apresenta uma dvida sria, e a professora percebe que essa dvida compartilhada
por outros estudantes. Ela recebe essa dvida como um convite a oferecer novos
argumentos e exemplos para que todos os alunos analisem melhor e compreendam
com mais clareza aquela questo. Possivelmente outros alunos da mesma classe
podero contribuir com algum comentrio. Percebe-se que todos esto colocando em
jogo suas melhores possibilidades intelectuais e expressivas.
Esta colaborao entre professora e alunos e dos alunos entre si caracteriza a
criao de um campo de jogo comum, um mbito de encontro. Nele, alm da
professora, os alunos se sentem envolvidos, participantes, exigidos, integrados,
compromissados, responsveis pelo bom andamento da aula, pelo bom resultado de
todos e de cada um dos seus colegas. A aula deixa de ser uma ao unilateral dos
professores que os alunos suportam, ou da qual se desviam com todo o tipo de distra-
es ou, no pior dos casos, com manifestaes de indisciplina e rebeldia violenta. O
fracasso de um curso ou de um projeto pedaggico reside na ausncia de encontro.
Mas para que este campo de jogo se realize, existem certas exigncias. A
primeira delas a generosidade de parte a parte. Os docentes no devem encarar os
alunos como simples meios para a finalidade maior de serem eles, professores,
remunerados pelas aulas a ministrar (remunerao, de resto, mais do que justa). E os
alunos, por outro lado, no devem encarar seus professores como um mal necessrio
ou como um mal... desnecessrio. Reduzir os alunos a meros clientes capazes de
comprar o conhecimento reduz uma instituio de ensino a uma duvidosa prestadora
de servios, na qual seus funcionrios mais qualificados (os professores que ainda se
vejam como verdadeiros educadores) so reduzidos a obstculos indesejveis de um
ato comercial.
A generosidade valor crucial para a Pedagogia do Encontro, na medida em
que permite o desenvolvimento de um projeto educativo humanizador. A generosidade
e outros tantos valores (a sinceridade, a veracidade, a honestidade, a gratido, a
cordialidade, o respeito, a amizade, a responsabilidade, a justia etc.) oferecem novas
possibilidades de encontro. Ao assumirmos estas possibilidades em nossa atuao,
convertemos os valores em virtudes, em capacidades, em foras vivas que, por sua
vez, nos tornam aptos a criar renovadas formas de solidariedade.
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Em 1993, Esttica, pela Editora Vozes, obteve boa receptividade, mas no foi
reimpresso. A funo pedaggica da experincia esttica o tema central deste livro.
Tambm pela Editora Vozes, em 1995, publicou-se O amor humano: seu
sentido e alcance. Na Apresentao, Lpez Quints defende um pensar preciso e
esclarecedor sobre o tema:
Outro livro de ALQ sobre o mesmo tema, A formao para o amor: trs
dilogos entre jovens, foi publicado em 1998, pela Editora Paulus. De novo, na Apre-
sentao, o autor manifesta sua inteno, filosfica e pedaggica, de mostrar, de for-
ma bastante clara, aos jovens, o extraordinrio papel que o amor pessoal pode exercer
no desenvolvimento da personalidade humana (LPEZ QUINTS, 1998, pg. 5).
Mais recentemente, em 2004, com o selo da Editora Paulinas, publicou-se
Inteligncia criativa: descoberta pessoal de valores, em que ALQ expe em cerca de
400 pginas as bases filosficas de uma prtica reflexiva que pretende deixar que as
pessoas aprendam. Sobre este livro, escrevi breve resenha para o Portal Observatrio
da Imprensa (cf. www.observatoriodaimprensa.com.br/ news/view/a_criatividade_re
criada). Lpez Quints no um instrucionista. Como filsofo e educador, acredita
que, mais do que ensinar, a melhor forma de desencadear processos pessoais de
crescimento descortinar horizontes.
Em vrias ocasies, ALQ publicou nas revistas de nossa editora artigos (cf.
http://www.hottopos.com/4.htm#quintas) que abordam temas que lhe so caros: o
pensamento de Romano Guardini, a manipulao da linguagem e do ser humano, a
experincia esttica e seu papel formativo etc. E no devemos esquecer a presena do
prprio Lpez Quints no Brasil, atuando como conferencista. Numa dessas
oportunidades, esteve com docentes e alunos da graduo e ps-graduao
da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo (em 26 de novembro de
1999), palestrando sobre A formao adequada configurao de um novo
humanismo (cf. http://www.hottopos.com.br/prov/quint1p.htm).
Desde 2000, publiquei vrios artigos sobre aspectos do pensamento de ALQ: o
encontro, o mbito, a manipulao lingustica, a relao entre formao humanstica e
literatura. Um deles intitula-se O amor como vertigem e xtase: anlise de um poema
de Gonalves Dias luz do pensamento de Alfonso Lpez Quints (http://www.
hottopos.com.br/videtur12/gabrielpr.htm). Nos anos seguintes, publiquei dois livros
sob a inspirao de seus conceitos: A leitura das entrelinhas, sobre o mtodo de leitura
ldico-ambital, em 2006, e, em 2012, Pedagogia do encontro.
Alm das minhas pesquisas para o doutorado acerca da relao entre filosofia,
esttica e educao na obra de Lpez Quints, sob a inestimvel orientao do Prof.
Jean Lauand (ele tambm um leitor atento e difusor do pensamento de ALQ, cf.
http://www.hottopos.com/rih7/jean.htm), que culminaram com a publicao do j
mencionado Filosofia, tica e literatura, traduzi em 2005 Descobrir a grandeza da
vida: introduo pedagogia do encontro, em que Lpez Quints faz um resumo
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perfeito dos principais temas recorrentes em seus livros e conferncias. Este resumo,
alis, serve como excelente introduo sua obra.
Em 2005, Prof. Jean Lauand orientou uma segunda tese de doutorado na
Faculdade de Educao da USP sobre a obra de ALQ. Trata-se da tese da Prof Slvia
Regina Brando: O mtodo formativo de Alfonso Lpez Quints: fundamentos
filosficos e experincia educativa. de se destacar neste trabalho o esforo da Prof
Slvia no sentido de unir princpios filosficos sua pessoal experincia didtica no
ensino superior.
Vale a pena ainda destacar uma outra tese de doutorado (em Letras),
defendida na Universidade Federal de Pernambuco. Sob a orientao de Luzil
Gonalves Licari, o Prof. Janilto Andrade, em 2001, apresentou nesta pesquisa
interessantes reflexes sobre esttica e poesia. O objetivo de Janilto neste trabalho foi
sobretudo pedaggico: aprender e ensinar a ler. Para tanto, lana mo do pensamento
do hermeneuta espanhol Alfonso Lpez Quints (ANDRADE, 2001, pg. 15), cuja
esttica das inobjetividades vale dizer, uma esttica ambital, em que o conceito de
mbito revela a convivncia criativa entre o ser humano e seu entorno , permite a
ele, Janilto, fundamentar uma prtica de ensino.
Referncias
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LPEZ QUINTS, Alfonso. A filosofia da educao e a reforma curricular
(Entrevista realizada em Madrid, em 24/5/1999, pelo professor Jean Lauand). Em:
International Studies on Law and Education. So Paulo: Madruv, n. 1, 1999.
LPEZ QUINTS, Alfonso. A formao para o amor: trs dilogos entre jovens.
Traduo: Adilson Camilo Lima. So Paulo: Paulus, 1998.
LPEZ QUINTS, Alfonso. Descobrir a grandeza da vida: introduo pedagogia
do encontro. Traduo: Gabriel Periss. So Paulo: ESDC, 2005.
LPEZ QUINTS, Alfonso. Esttica. Traduo: Jaime Clasen. Petrpolis: Vozes,
1993.
LPEZ QUINTS. Inteligncia criativa: descoberta pessoal de valores. Traduo:
Jos Afonso Berfaldin da Silva. So Paulo: Paulinas, 2004.
LPEZ QUINTS. O amor humano: seu sentido e alcance. Traduo: Ricardo
Anbal Rosenbusch. Petrpolis: Vozes, 1995.
MARCEL, Gabriel. Les hommes contre lhumain. Paris: ditions du Vieux
Colombier, 1951.
PAES, Jos Paulo. Poesia completa. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.
PERISS, Gabriel. A leitura das entrelinhas. So Paulo: ESDC, 2006.
PERISS, Gabriel. Filosofia, tica e literatura: uma proposta pedaggica. Baureri
(SP): Manole, 2003.
PERISS, Gabriel. Pedagogia do encontro. So Paulo: Factash, 2012.
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