Eric Voegelin Evangelho e Cultura PDF
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EVANGELHO E CULTURA
Traduo Mendo Castro Henriques e Lus Salvador, M. Eduarda Barata, Mrio Jorge
e Nuno Bettencourt
1[1] The Gospel and Culture o ttulo da conferncia editada em 1971 em Jesus and
Marys Hope, Pittsburgh Theological Seminary press, pp. 59-1 01.
Uma ordem de trabalhos impressionante, devo dizer. E, contudo, aceitei-a
porque de que serviria a filosofia se nada tivesse para dizer acerca das grandes questes
que os homens do nosso tempo lhe podem, justificadamente, colocar? Mas se
considerarmos a amplido do desafio, compreendereis que no posso prometer mais do
que uma tentativa humilde para justificar a confiana da Comisso e para salvar a honra
da filosofia.
"Este livro ... comea por nos interrogar sobre qual o significado do facto de
que ns existimos. Isto no significa que ns comeamos por tomar uma atitude no-
Crist. Significa simplesmente que ns, tambm, como Cristos somos homens com
mentes questionantes. Devemos estar sempre prontos e capazes de explicar como a
nossa f d uma resposta questo da nossa existncia."3[3]
II
Esta clebre intuio tornou-se socialmente efectiva atravs do monumento que Plato
ergueu na sua obra. J no tempo de Cristo, quatro sculos mais tarde, tornara-se a
autocompreenso do homem na cultura da ecmena helenstico-romana; e, de novo, a
verdade universal da existncia teve de ser ligada a uma morte representativa: o
dramtico episdio de Jo 12 o equivalente cristo Apologia do filsofo. O
evangelista narra a entrada triunfante de Jesus em Jerusalm. A histria de Lzaro
espalhou-se, e a multido acotovela-se para ver e saudar o homem que pode erguer os
mortos vida. As autoridades judaicas querem tomar medidas contra quem lhes est a
roubar o povo, mas de momento tm de ser cautelosas: "Vedes que nada podeis fazer;
Vede: o mundo (kosmos) corre atrs dele!" O mundo das autoridades judaicas, contudo,
no o mundo ecumnico que Jesus quer atrair para si. Apenas quando um grupo de
Gregos se aproxima de Filipe e de Andr, e estes apstolos com nomes Gregos contam
a Jesus acerca do desejo dos Gregos de o ver, que ele pode responder: "Chegou a hora
para o Filho do Homem ser glorificado" (12, 23). "Vm a os Gregos" - a humanidade
est pronta para ser representada pelo sacrifcio divino. O Jesus Joanino pode, por
consequncia, continuar:
"Muito solenemente vos digo: a menos que uma semente de trigo cair na terra e
morrer, permanece apenas uma semente de trigo; mas se morrer, trar muito fruto.
Quem ama a sua vida (psychen) perd-la-; mas quem odeia a sua vida neste mundo
(kosmos), mant-la- para a vida eterna. Se algum me servir, deve-me seguir, e onde
eu estiver, o meu servo tambm estar. Se algum me servir, o meu Pai honra-lo-."4[4]
"Agora a minha alma est inquieta. Que deverei eu dizer Pai, salva-me desta hora?
No, porque para este propsito, eu cheguei a esta hora. Pai, que o teu nome seja
glorificado."5[5]
4[4] "Em verdade, em verdade, vos digo: Se o gro de trigo que cai na terra no morrer,
permanecer s; mas se morrer, produzir muito fruto. Quem ama sua vida a perde e
quem odeia a sua vida neste mundo guard-la- para a vida eterna. Se algum quer
servir-me, siga-me; e onde estou eu, a tambm estar o meu servo. Se algum me
serve, meu Pai o honrar."
5[5] "Minha alma est agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foi
precisamente ara esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome."
para aqueles que tinham ouvidos para ouvir, o trovo veio como uma voz: "Glorifiquei-
o e hei-de glorific-lo de novo". Assegurado pela voz que clama, Jesus pde concluir:
"Agora o juzo (krsis) chegou a este mundo (kosmos), e agora o governante deste
mundo ser repelido. E eu, quando for elevado da terra, atrairei todos os homens a
mim.,6[6]
6[6] " agora o julgamento deste mundo, agora o prncipe deste mundo ser lanado
fora; e, quando eu fr elevado da terra, atrairei todos a mim."
6[7] "Eu, a luz, vim ao mundo para que aquele que cr em mim no permanea nas
trevas. Se algum ouvir minhas palavras e no as guardar, eu no o julgo, pois no vim
para julgar o mundo, mas para salvar o mundo. Quem me rejeita e no acolhe minhas
palavras tem seu juiz: a palavra que proferi que o julgar no ltimo dia."
6[8] "Eis que vou demolir o que constru, e o que plantei vou arrancar, e isto para toda
a terra! E tu procuras para ti grandes coisas! No procures! Porque eis que vou trazer a
desgraa sobre toda a carne, orculo de Iahweh. Mas a ti eu concederei a vida em
recompensa, em todos os lugares para onde fores."
"Eu, a Luz, vim ao mundo (kosmos) para que quem acreditar em mim no permanea
nas trevas. Se algum ouvir as minhas palavras e no as seguir, Eu no o julgo, porque
eu no vim para julgar o mundo (kosmos), mas para salvar o mundo (kosmos). Quem me
rejeitar, e no aceitar as minhas palavras, tem o que julga: A palavra que proferi ser a
palavra que o julgar no ltimo dia."7[7]
"Ouvi! Aquilo que eu constru, deitarei abaixo; e aquilo que eu plantei , destruirei. E
vs que buscais, ainda, grandes coisas para vs prprios, No as busqueis! Porque ouvi!
Posso amaldioar toda a carne -diz Yahweh - Mas entrego-vos a vossa vida, como
prmio de guerra, em qualquer lugar para onde fores."8[8] (45, 4-5)
A vida oferecida como um despojo de guerra. Quem quer salvar a sua vida
perd-la-. A narrativa salvfica no uma receita para a abolio do anthelkein na
existncia mas a confirmao da vida atravs da morte nesta guerra. A morte de
Scrates, que tal como a morte de Jesus, podia ter sido evitada fisicamente,
representativa porque autentifica a verdade da realidade.
Estas reflexes clarificaram o problema da verdade pelo que apenas falta uma
afirmao explcita das intuies nelas implicados.
Nem se trata de uma questo que em vo procura uma resposta, nem h uma
verdade da narrativa salvfica, impondo-se a partir de nenhures no facto da existncia.
O movimento na realidade interina , na verdade, um todo inteligvel de questo e de
resposta, em que a experincia do movimento gera smbolos lingusticas para se
exprimir. No que se refere s experincias, o movimento no tem outros "contedos"
seno o seu questionamento, as paixes da atraco e da contra-atraco, os ndices
direccionais das atraces, e a conscincia de si prprio a que chamamos a sua
luminosidade. No que se refere aos smbolos, estes apenas tm de exprimir as
experincias enumeradas, a situao da realidade experimentada no contexto mais
amplo da realidade em que ocorre o movimento diferenciado, e o movimento auto-
consciente, como um acontecimento da existncia humana na sociedade e na histria
onde, at aqui, no ocorreu. As dificuldades de compreenso que estas intuies,
frequentemente, suscitam no clima contemporneo da desculturao so causadas pelos
hbitos de hipostasiao e dogmatizao. Quero, pois, sublinhar que os smbolos
desenvolvidos no movimento no se referem a objectos na realidade externa, mas a
fases do movimento medida que se articula no seu processo auto-iluminante. No
existe outra realidade interina seno a metaxy experimentada na tenso existencial do
homem para o fundo divino de ser; no h outra questo de vida e de morte seno a
questo suscitada pelo puxo e pelo contra-puxo- no h outra narrativa salvfica seno
a narrativa da divina atraco a ser seguida pelo homem; e no h articulao cognitiva
da existncia seno a conscincia notica em que o movimento se torna luminoso para si
prprio.
III
O Deus que brinca com o homem como um fantoche no o Deus que se torna homem
para salvar a vida, sofrendo a morte. O que gerou a narrativa salvfica da incarnao,
morte e ressurreio divinas em resposta questo da vida e da morte,
consideravelmente mais complexo do que a filosofia clssica; mais rico devido ao
fervor missionrio do seu universalismo espiritual; mais pobre pela sua negligncia do
controle notico; mais amplo pelo seu apelo humanidade inarticulada no homem
comum, mais restrito devido tendncia contra a sabedoria articulada dos sbios; mais
imponente atravs do seu tom imperial de autoridade divina; mais desequilibrado
devido sua ferocidade apocalptica que conduz ao conflito com as condies da
existncia humana em sociedade; mais compacto devido sua generosa absoro de
extractos anteriores de imaginao mtica, especialmente devido recepo da
historiognese Israelita e exuberncia dos milagres operados; mais diferenciado
atravs da experincia intensamente articulada da aco amoroso-divina na iluminao
da existncia pela verdade. A compreenso destas diferenas complexas entre o
movimento evanglico e o movimento da filosofia clssica, contudo, no fica mais
esclarecido por se usarem dicotomias tpicas tais como filosofia e religio, metafsica e
teologia, razo e revelao, razo natural e sobrenatural, nacionalismo e irracionalismo,
etc. Procederei do seguinte modo: primeiro, estabelecerei o cerne notico partilhado
pelos dois movimentos e depois explorarei alguns problemas que resultam da
diferenciao da aco divina no movimento evanglico, bem como da recepo dos
estratos mais compactos de experincia e simbolizaro.
10[10] "Pai justo o mundo no te conheceu, mas eu te conheci e estes reconheceram que
tu me enviaste. Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei a conhec-lo, a fim de
que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles."
Com uma extraordinria economia de meios, Joo simboliza a atraco do cordo de ouro, a
sua ocorrncia como um acontecimento histrico no homem representativo, a iluminao da
existncia atravs do movimento da questo da vida e da morte iniciada pela atraco resposta
salvfica, a criao de um campo social atravs da transmisso da intuio aos seguidores e,
enfim, os deveres que incumbem a Joo de promulgar o acontecimento humanidade em geral,
atravs da escrita do evangelho como um documento literrio: "Ora Jesus fez muitos outros
sinais na presena dos discpulos que no esto registados neste livro. Os registados, contudo,
foram escritos para que tu possas crer que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e que ao acredit-lo
possas viver em seu nome',13[13] (20:30-31). Podemos imaginar como um jovem estudante de
filosofia que quisesse trabalhar por si prprio, a partir dos vrios impasses doutrinais em que os
filsofos das escolas do seu tempo se tinham enredado, poderia ficar fascinado pelo brilho
destas afirmaes sucintas que lhe devem ter surgido como o aperfeioamento do movimento
socrtico-piatnico na interinidade da existncia.
12[12] "Ora, a vida eterna esta: que eles te conheam a ti, o nico Deus verdadeiro, e
aquele que enviaste, Jesus Cristo."
13[13] "Jesus fez, diante de seus discpulos, muitos outros sinais ainda, que no se
acham escritos neste livro. Estes, porm, foram escritos para crerdes que Jesus o
Cristo, o filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida e seu nome."
14[14] "Porquanto Deus, que disse: Do meio das trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo
quem reluziu em nossos coraes, para fazer brilhar o conhecimento da glria de Deus,
que resplandece na face de Cristo."
Testamento, foi retirado do Novo Testamento, escrito pelo esprito (pneuma) no corao; "e ns,
com os nossos rostos descobertos, reflectindo o brilho do Senhor, todos crescemos mais e mais
brilhantes medida que nos voltamos para as imagens que reflectimos"15[15] (2 Cor. 3:18).
15[15] "E ns todos que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glria
do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente,
pela aco do Senhor, que Esprito."
16[16] "No tocante s carnes sacrificados aos dolos, inegvel que todos temos a
cincia exacta. Mas a cincia exacta incha; a caridade que edifica. Se algum julga
saber alguma coisa, ainda no sabe como deveria saber. Mas, se algum ama a Deus,
conhecido por Deus."
18[18] "Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (... )"
s est presente em Cristo que, em virtude desta plenitude, " imagem (eikon) do Deus
invisvel, o primognito de toda a criao"19[19] (1:15). Todos os outros homens no
tm mais do que a parcela comum desta plenitude (pepleromenoi) ao aceitarem a
verdade da sua presena completa no Cristo que, pela sua existncia icnica, "a cabea
de todo o poder (arche) e autoridade (exousa),20[20] (2-10). Algo em Jesus deve ter
impressionado os seus contemporneos como uma existncia to intensa na metaxy que
a sua presena corprea, o somatikos da passagem, parecia j estar completamente
permeada pela presena divina.
21[21] "Porque o que se pode conhecer de Deus manifesto entre eles, pois Deus lho
revelou. Sua realidade invisvel - seu eterno poder e sua divindade - tornou - se
inteligvel, desde a criao do mundo, atravs das criaturas, de sorte que no tm
desculpa."
impaciente. Quer ver imediatamente diferenciada a realidade divina da experincia
primria do cosmos como a divindade transcendente ao mundo que encarnou em Cristo;
considera indesculpvel que a humanidade tivesse que atravessar uma fase na histria
em que o Deus imortal fosse representado por imagens de "homens mortais, aves,
quadrpedes e rpteis"; e s pode explicar este horror mediante a supresso deliberada
de uma verdade bem conhecida. Ademais, devido ao seu menosprezo judaico para com
dolos pagos, considera o fenmeno histrico do mito cosmolgico como responsvel
por casos de vida dissoluta que observa sua volta e entende que a continuao da
adeso a esses mitos, com a consequente dissoluo moral, o castigo de Deus para os
que anteriormente praticavam a idolatria (Rom. 1:26-32). Esta confuso zelosa de
problemas tinha de ser desemaranhada; de facto, o autor de Colossenses extraiu da
passagem Paulina a distino entre os divinos "invisveis" e os "visveis" das
experincias participativas; distinguiu entre o Deus invisvel, experimentado como real
para alm da metaxy da existncia, e o theotes, a realidade divina que penetra a metaxy
no movimento da existncia.
A distino, certo, fora j feita em Teeteto 176b, onde Plato descreve como
propsito da fuga humana aos males do mundo, a aquisio da homoosis theo kata
dynaton, um tornar-se semelhante a Deus tanto quanto possvel. Contudo, embora a
homoioss theo de Plato seja o equivalente exacto penetrao do theotes no autor de
Colossenses, o homem espiritual de Plato, o damonios aner, no o Cristo dos
Colossenses, o ekon tou theou. Plato reserva a existncia icnica para o prprio
cosmos: o cosmos a imagem (eikon) do Eterno; o Deus visvel (theos asthetos) na
imagem do Inteligvel (eikon tou noetou); existe um nico cu nascido (monogenes)
cujo pai divino to recndito que seria impossvel manifest-lo a todos os homens
(Tmeu 28-29,92 c). Na contraposio entre o monogenes theos do Timeu de Plato a
Joo 1: 1 8, torna-se visvel o muro que o movimento da filosofia clssica no consegue
quebrar, para alcanar as intuies peculiares do evangelho.
22[22] "No penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. No vim revog-los, mas dar-
lhes pleno cumprimento, (... )"
23[23] Ancient Near Eatem Texts related to the Bible (ANET), ed. Pritchard, 1950, p.
368.
a respectiva realidade divina. Este Amon desconhecido, contudo, embora em vias de se
diferenciar do Amon especfico de Tebas, no um deus a mais no panteo
cosmolgico, mas o theotes do movimento que, no processo posterior de revelao,
pode ser diferenciado at revelao culminante em Cristo. Ademais, uma vez que o
deus desconhecido no o novo deus mas a realidade divina experimentada como j
presente nos deuses conhecidos, o processo revelatrio necessariamente se tornar uma
fonte de conflitos culturais, medida que progride a diferenciao da sua verdade.
"Guerra e batalha," so as palavras de abertura do Grgias, provocados pelo
aparecimento de Scrates; e Jesus diz: "Eu vim para incendiar a terra... Pensais que eu
vim para trazer a paz terra? No, digo-vos, mas antes a espada"24[24] (Lucas
12:49,51). Os homens empenhados no movimento tendem a elevar a realidade divina
experimentado ao nvel de um deus imagem dos deuses conhecidos e a opr este deus
verdadeiro aos deuses especficos, demovidos do estatuto de falsos deuses; por outro
lado, os crentes cosmolgicos, certos da verdadeira divindade dos respectivos deuses,
acusaro de atesmo os portadores do movimento ou, pelo menos, de subveno da
ordem sacral da sociedade atravs da introduo de novos deuses. este conflito que
fundamentalmente ope Celso, no seu ataque ao Cristianismo, e Orgenes no seu Contra
Celsum.
24[24] "Eu vim trazer fogo terra, e como desejaria que j estivesse aceso! Pensais que
vim para estabelecer a paz sobre a terra? No, eu vos digo, mas a diviso."
"Que criou os cus e que os alargou, Que estendeu a terra e o que dela vem, Que d o
esprito ao povo (am),e esprito queles que se movem."26[26] (42:5)
"Como aliana para o povo (am), uma luz para as naes, para abrir os olhos que esto
cegos, para trazer os prisioneiros da caverna, da priso em que esto sentados na
escurido.27[27] (42:6-7)
26[26] "Assim diz Deus, Iahweh que criou os cus e os estendeu, e fez a imensido da
terra e tudo quanto dela brota, que deu o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos
que se movem sobre ela."
O tesoureiro da rainha da Etipia viajara at Jerusalm para prestar culto. No episdio
de Actos 8:26-40 encontramo-lo no caminho de regresso, na estrada de Gaza, sentado
na sua carruagem, reflectindo no passo do Deutero-isaas: " Tal como um cordeiro ele
foi levado ao sacrifcio...28[28] Um anjo do Senhor enviou o apstolo Filipe para o
encontrar: "Compreendes o que ests a ler?',29[29] ,COMO posso" replicou o etope,
"sem algum que me guie?... Acerca de quem, por favor diz-me, fala o profeta: acerca
dele ou de outra pessoa?',30[30] Ento, Filipe comea por falar da histria dos apstolos
e a partir desta passagem explica-lhe a Boa Nova (evangelisato) de Jesus. A revelao
do Deus Desconhecido, atravs de Cristo, em continuidade consciente com o processo
milenar de revelao que esbocei, de tal modo o centro do movimento do evangelho
que pode ser chamado o prprio evangelho. O Deus de Joo 1:1 ss. que no princpio
est a ss com o seu Logos, o Deus do Deutero-isaas (40:13), que no princpio est a
ss com o seu ruach; o Verbo que brilha omo uma luz nas trevas (Joo 1:5, 9:5) o
Servo Sofredor que dado como uma luz s naes, para extrair da priso aqueles que
se sentam na escurido (isaas 42-.6-7); e em 1 Joo 1, a luz que estava com o Pai,
manifestando-se a si atravs do Cristo seu Filho, constitui a comunidade daqueles que
querem andar na luz. O prprio Deus Desconhecido, ento, tematizado em Actos
17:16-34, no discurso do Arepago atribudo por Lucas a Paulo. Ao louvar os
Atenienses por terem dedicado um altar ao Agnostos Theos, o Paulo dos discursos
assegura-lhes que o deus que eles cultuam, sem saber quem , o prprio deus que ele
lhes veio proclamar (Katangello). Em termos do Deutero-lsaas, descreve-o como o
27[27] "(... ) eu te pus como aliana do povo, como luz das naes, a fim de abrir os
olhos dos cegos, a fim de soltar do crcere os presos, e da priso os que habitam nas
trevas."
IV
No seu livro Agnostos Theos (1913- rpr. 1956, pp. 73ss.) Eduard Norden
colocou o problema no seu contexto histrico e refere-se, nessa ocasio, sua primeira
apresentao por Ireneu no Adversus Haereses (ca. 180). Ireneu faz assentar o conflito
doutrinal entre gnosticismo e Cristandade ortodoxa na interpretao de uma passagem
de Mat. 11, 25-27:
,Na doutrina de ortodoxia, o Deus revelado por Jesus o mesmo deus que o deus
criador revelado pelos profetas de Israel; na doutrina gnstica, o Deus Desconhecido de
Jesus e o demiurgo israelita so dois deuses diferentes. Contra os Gnsticos, lreneu
prope-se provar, com a sua obra, que o deus que eles distinguem como o Bythos, o
Profundo, na verdade " a grandeza invisvel desconhecida de todos" e, ao mesmo
tempo, o criador do mundo descrito pelos profetas (1.19.12). Eles tornam o logon
absurdo quando interpretam as palavras "ningum conhece o Pai seno o Filho" como
referente a um Deus absolutamente Desconhecido (ncogntus deus), porque "como
poderia ser desconhecido se eles prprios sabem algo acerca dele?" Estaria o logon,
realmente, a dar o conselho absurdo: "No procureis a Deus; ele desconhecido e no o
encontrareis"? Cristo no veio para deixar a humanidade saber que o Pai e o Filho so
incognoscveis, seno a sua vinda terra sido suprflua (IV.6).
31[31] "Por esse tempo, ps-se Jesus a dizer: Eu te louvo, Pai, Senhor do cu e da
terra, porque ocultaste estas coisas aos sbios e doutores e as revelaste aos pequeninos.
Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ningum
conhece o Filho seno o Pai, e ningum conhece o Pai seno o Filho e aquele a quem o
Filho o quiser revelar."
34[34] "Em seguida proibiu severamente os discpulos de falarem a algum que ele era
o Cristo."
julgamento perante Pilatos, a ameaa apocalptica seria insensata; quando os
representantes do Sindrio repetem as suas acusaes, Jesus permanece completamente
silencioso, "de tal modo que o governador muito se espantou" (27,11-14)35[35] . Na
cena de troa perante o crucificado, a resistncia viciosa parece vencer: "Se tu s o Filho
de Deus, desce dessa cruz" (27,40)36[36] . Mas, por fim, quando Jesus se afunda no
silncio da morte enquanto o cosmos se rompe em prodgios, a resposta emerge dos
guardas romanos: "Este realmente era o Filho de Deus!" (27,54).37[37]
"Vinde a mim todos os que trabalhais e que estais carregados e eu dar- vos-ei repouso.
Tomai o meu jugo sobre vs e aprendei comigo porque eu sou suave e humilde de
39[39] "Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso.
Tomai sobre vs o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de corao e encontrareis
descanso para as vossas almas, pois o meu jugo suave e o meu fardo leve.
No Captulo 11, Joo Baptista envia os seus discpulos a inquirir de Jesus se ele o malak, o
mensageiro de Deus, profetizado em Mal. 3,1, que preceder a vinda de Yahweh ao seu templo.
Evitando uma resposta directa, Jesus pede aos discpulos que relatem ao seu mestre os milagres
e as curas de Jesus, sabendo muito bem que tais factos no so o que se espera do malak de
Malaquias; deixa-os livres para extrair as suas prprias concluses e despede-os com o aviso a
Joo e aos seus seguidores que bem-aventurado apenas quem no se ofende com Jesus (11,2-
6). Depois, vira-se para as "multides" e explicalhes quem Joo-. Joo um profeta, mas ao
mesmo tempo mais do que um profeta- de facto, Joo, mais do que Jesus, o verdadeiro
malak de Malaquias. Na citao de Malaquias, contudo, o Jesus de Mateus muda o texto sobre
o mensageiro que " Eu [o Senhor] envio ... para preparar o caminho para Mim,41[41] para o
mensageiro que o Senhor enviou para preparar o caminho para "vs". Com esta mudana
pronominal de "eu" para "vs", o Baptista convertido de precursor do Yahweh de Israel em
precursor do Deus Desconhecido que est presente no seu Filho Jesus (11,7-10). Com Joo
termina o profetismo da lei e dos profetas enquanto tipo da existncia na realidade interina
(11,13); o que est em processo de advento e j presente em Jesus e nas pessoas simples que o
seguem, o Reino do Pai Desconhecido do Sermo da Montanha e do Pai-Nosso. O captulo,
portanto, encerra consistentemente com a auto-declarao do logon 11,25-30.
41[41] "Eis que vou enviar o meu mensageiro para que prepare um caminho diante de
mim."
visto atravs da combinatria dos smbolos: Messias, Cristo e Filho de Deus. At essa
passagem, o smbolo Cristo fra apenas usado por Mateus no seu papel de narrador,
mas no por nenhum dos personagens do drama. Agora o rei-salvador proftico e
apocalptico de Israel identificado ao Filho de Deus no prprio processo de Revelao.
Como o malak de Malaquias tinha de modificar a sua compleio para se tornar o
precursor de Jesus, assim agora o Messias tem de adquirir as caractersticas do Filho de
Deus que anteriormente no tinha; ou, pelo menos, essa era a inteno do Jesus de
Mateus quando ele aceitou o reconhecimento de Pedro. Historicamente, contudo, os
dois smbolos interinfluenciaram-se: a absoro do Messias trouxe para a histria do
Cristianismo, tal como para a da civilizao ocidental cristianizada, o estrato
apocaiptico de fantasia violenta que pode degenerar em aco violenta no mundo.
Mesmo no prprio Novo Testamento, em Apo. 19,11-16, vemos a vinda do Messias:
42[42] "Vi ento o cu aberto: eis que apareceu um cavalo branco, cujo montador se
chama "Fiei" e "Verdadeiro"; ele julga e combate com justia. Seus olhos so chama de
fogo; sobre sua cabea h muitos diademas, e traz escrito um nome que ningum
conhece, excepto ele; veste um manto embebido de sangue, e o nome com que
chamado Verbo de Deus. Os exrcitos do cu acompanham-no em cavalos brancos,
vestidos com linho de brancura resplandecente. Da sua boca sai uma espada afiada para
com ela ferir as naes. Ele quem as apascentar com um cetro de ferro. Ele quem
Este Verbo de Deus, a escorrer sangue, est muito longe do Jesus de Mateus que
chama a si os pobres em esprito, os mansos, os puros no corao, os pacficos, aqueles
que tm fome e sede de justia e que so perseguidos em nome da justia. Em Mat. 16,
Jesus sente que no pretende transformar o Filho de Deus no marechal de campo do
Criador de todas as coisas; antes quer transformar o Messias no Filho de Deus. Fossem
quais fossem os simbolismos atribudos ao Ungido em Israel, eles so agora relegados
para o passado atravs da presena do Deus Desconhecido no Filho. A conscincia da
filiao tem agora de se desdobrar. Donde que, "a partir desse tempo, Jesus comeou a
mostrar aos seus discpulos que deveria ir a Jerusalm e sofrer muito s mos dos
ancios, dos escribas e fariseus e ser morto e ao terceiro dia ressuscitar".43[43] O
pathos da morte representativa a ser sofrida penetrou na conscincia de Jesus. Quando
Pedro o quis dissuadir desse caminho, Jesus censurou-o, zangado: "Afasta-te, Satans!
Tu s um estorvo (skndalon) para mim; porque o que tu pensas no prprio de Deus
mas dos homens" (16,21-23).44[44] No por acaso que Jesus censura Pedro com o
mesmo hypage satana que usar na rejeio do tentador em 4, 10; a frmula pretende,
de facto, caracterizar o modo de pensar do "homem" como o modo de ser diablico.
Mas este "homem" que pode ser simbolizado como o diabo o homem que contraiu a
sua existncia de um eu imanente ao mundo e que se recusa a viver na abertura da
metaxy. O Jesus de Mateus deixa que a censura a Pedro, ministrada na linguagem mais
antiga de Deus e Satans, seja seguida pela traduo do seu significado na simbolizaro
notica da existncia, j aqui discutida, atravs do duplo significado da vida e da morte-.
pisa o lagar do vinho do furor da ira de Deus, o Todo-poderoso. Um nome est escrito
sobre seu manto e sobre sua coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores."
42[43] "A partir dessa poca, Jesus comeou a mostrar aos seus discpulos que era
necessrio que fosse a Jerusalm e sofresse muito por parte dos ancios, dos chefes dos
sacerdotes e dos escribas, e que fosse morto e ressurgisse ao terceiro dia."
A afirmao conclui com a questo pungente: o que tem um "homem", ou seja, a sua
vida como um eu contrado imanente, a oferecer em troca da sua "vida" (psych) no
segundo sentido?46[46] O significado da censura, bem como a relao entre ambos os
estratos simblicos, ademais iluminado pelo uso do verbo aparnesta (renegar,
repudiar, desaprovar) na negao do eu de 16,24. O mesmo verbo usado para
identificar a negao humana de Jesus na afirmao: "A quem me renegar a mim
perante os homens, tambm o renegarei perante o meu Pai que est nos cus"
(10,33)47[47] . Ademais, especificamente utilizado a propsito da negao de Pedro
em 26,33-34.69-75, criando assim o grande contraponto entre as trs negaes de Jesus
por Pedro e as trs rejeies do diabo por Jesus. Na interinidade da existncia, o
homem enfrenta a escolha entre negar o seu eu e o diabo ou, ento, Jesus e o Deus
Desconhecido.
45[45] "Ento disse Jesus aos seus discpulos: Se algum quer vir aps mim, negue-se a
si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai
perd-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontr-la."
47[47] "Aquele, porm, que me renegar diante dos homens, tambm o renegarei diante
de meu Pai que est nos Cus."
1. Os diversos problemas que nos foram transmitidos ao longo de dois mil
anos, tm o seu centro num Movimento em que a conscincia humana de existncia
emerge da experincia primria do cosmos. A conscincia torna-se luminosa para si
mesma como o local do processo revelatrio, do buscar e do ser atrado. A experincia
de um cosmos cheio de deuses, tem de ceder experincia da presena divina eminente
no movimento da alma na metaxy. Por conseguinte, toda a simbolizaro da verdade
sobre a realidade, sobre Deus, homem, sociedade e mundo tem de, a partir de agora, ser
filtrada e compatibilizada com a verdade eminente da conscincia existencial. Ademais,
uma vez que o lugar da verdade historicamente preenchido pelas simbolizaes mais
compactas da experincia primria, a conscincia existencial a conscincia histrica
no sentido em que, por ocasio da sua diferenciao, a verdade da realidade
descoberta como um acontecimento no processo de uma realidade cuja verdade avana
para as fases superiores de realizao. Para a histria ser compatvel com a verdade da
existncia, tem de ser simbolizada como um processo revelatrio: o passado
cosmolgico de experincia e simbolizaro deve ser relacionado de modo inteligvel
com a conscincia diferenciada a que deu origem; e a viso do futuro deve ter alguma
relao inteligvel com a intuio acerca do duplo significado da vida e da morte. As
respostas a este problema tm um amplo leque de variaes. Pode avaliar-se a sua
amplitude ao confrontarmos a concepo agustiniana da histria e a sua espera paciente
de eventos escatolgicos com a especulao hegeliana que realiza o evento escatolgico
atravs da construo do sistema,- ou se confrontarmos a posio de um telogo
existencialista contemporneo que rejeita o Antigo Testamento como irrelevante para a
teologia crist, com a posio de Clemente de Alexandria que insiste em adicionar a
filosofia grega como o segundo Antigo Testamento para cristos. No que se refere a
vises do futuro, podemos confrontar o milnio introduzido por um anjo do Senhor em
Apocalipse 20, com os milnios introduzidos por Cromwell e o exrcito puritano, ou
por Lenine e o partido comunista.
48[48] "Em verdade vos digo que alguns dos que aqui esto no provaro a morte at
que vejam o Filho do Homem vindo em seu reino."
na histria, nem um movimento milenar que culmina na epifania do Filho de Deus, mas
apenas a irrupo de um deus extracsmico num cosmos onde at ento permanecera
escondido da humanidade. Ademais, uma vez que a revelao deste deus extracsmico
a nica verdade que existencialmente importa, o cosmos, os seus deuses e a sua
histria tornam-se uma realidade afectada pelo ndice de inverdade existencial. Em
particular, o Yahweh de Israel imaginado como um demnio mau que criou o cosmos
em ordem a satisfazer o seu desejo de poder e a manter o homem, cujo destino
extracsmico, como prisioneiro no mundo da sua criao. Este deus dos gnsticos,
decerto que no o Deus do evangelho que sofre a morte no homem para elevar o
homem vida; mas um deus que pode emergir do movimento, atravs de um acto da
imaginao, quando a conscincia da existncia se isola da realidade do cosmos em que
se diferenciou. Afirmo intencionalmente que o deus gnstico pode emergir do
movimento em geral, porquanto no est necessariamente acorrentado ao movimento do
evangelho como um dos seus descarrilamentos possveis. Os historiadores da religio
que encontram as "origens" do gnosticismo na Hlade ou na Prsia, na Babilnia ou no
Egipto, em religies de mistrios helensticos ou movimentos sectrios judaicos, e que
diagnosticam os elementos gnsticos no prprio Novo Testamento, no esto
completamente errados, porque a possibilidade estrutural do descarrilamento est
presente, desde que se iniciou o movimento existencial para diferenciar o Deus
Desconhecido dos deuses intracsmicos. Contudo, devemos esclarecer que a presena
da possibilidade estrutural no , em si prpria, gnosticismo; seria prefervel aplicar o
termo apenas aos casos em que o isolamento imaginativo da conscincia existencial se
torna o centro motivador para a construo de simbolismos grandiosos, como sucedeu
nos grandes sistemas gnsticos do sculo 11 d.c. Estes sistemas, embora produtos da
imaginao mtica, no so mitos do tipo intracsmico nem so mitos dos filsofos
como os de Plato ou de Plotino, nem pertencem ao gnero dos evangelhos do Novo
Testamento. Constituem um simbolismo sui generis que exprime um estado de
alienao da realidade, mais precisamente caracterizvel como um isolamento
extracsmico da conscincia existencial.