DR 2013 Sidiana Macêdo A Cozinha Mestiça Uma Historia Da Alimentação em Belem PDF
DR 2013 Sidiana Macêdo A Cozinha Mestiça Uma Historia Da Alimentação em Belem PDF
DR 2013 Sidiana Macêdo A Cozinha Mestiça Uma Historia Da Alimentação em Belem PDF
A Cozinha Mestia
A cozinha mestia.
Uma histria da alimentao em Belm.
(Fins do sculo XIX a meados do sculo XX).
BELM/PA.
2016.
3
A cozinha mestia.
Uma histria da alimentao em Belm.
(Fins do sculo XIX e meados do sculo XX).
Belm/PA.
2016.
4
A cozinha mestia.
Uma histria da alimentao em Belm.
(Fins do sculo XIX e meados do sculo XX).
Conceito:___________________.
______________________________________________________________
Profa. Dra. Franciane Gama Lacerda (Orientadora, PPGHIST-UFPA).
______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Nazar Sarges (Membro, PPGHIST-UFPA).
______________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Junior (Membro, PPGHIST-UFPA).
______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Betnia Barbosa Albuquerque (Membro, PPGED-UEPA).
______________________________________________________________
Prof. Dr. rico Silva Alves Muniz (Membro, PPGHIST-UFPA).
Belm/PA.
2016.
5
Sempre.
6
7
RESUMO
A tese parte da percepo de que se faz necessrio refletir sobre a ideia da
chamada comida regional como mais original, por vincular-se a uma tradio culinria
dos grupos indgenas. A pesquisa revelou que, ao contrrio do que se pensa, a comida
regional que hoje se entende por tpica fruto de mestiagens ocorridas ao longo do
tempo. Alis, as formas de consumo dos grupos indgenas sofreram inmeras trocas e
misturas nos ingredientes e formas de preparo. Desse modo, a presente tese demonstra
como tais hibridismos ocorreram tambm para alm dos pratos regionais. Assim, o
trabalho investiga a cozinha paraense de fins do sculo XIX e meados do sculo XX,
demonstrando como era resultado de inmeras trocas alimentares. Visando a
constituio de nossos argumentos fizemos um contexto dos espaos de venda de
produtos e de alimentao na cidade de Belm, atravs dos estabelecimentos e diversos
sujeitos que circulavam pela capital paraense. Seguimos com uma discusso sobre como
os livros de receitas e receiturios publicados na cidade eram influncias das cozinhas e
livros europeus, identificando tal realidade a partir das receitas e ingredientes. Por fim, a
discusso sobre como a comida paraense mestiada e como os cardpios e menus
encontrados na cidade neste momento nos mostram hbitos alimentares repletos de
mestiagem em uma cidade que ainda no fazia uso de seus pratos como identificador
de sua cultura.
ABSTRACT.
The thesis of the perception that it is necessary to reflect on the idea of so-called
regional food as more original, by linking to a culinary tradition of indigenous groups.
The reaserch revealed that, contrary to popular belief, the regional food that is known
today as typical is the result of crossbreeding occurred over time. Moreover, the forms
of consumption of indigenous groups have undergone numerous changes and mixes the
ingredients and preparation methods. Thus, this thesis demonstrates how such hybrids
have also occurred in addition to the regional dishes. Thus, the thesis investigates the
paraense kitchen late nineteenth and mid-twentieth century, showing how was the result
of numerous food exchanges. Aiming at the establishment of our arguments we made a
context of selling space products and food in the city of Belm, through various
establishments and individuals who circulated the paraense capital. We follow with a
discussion of how the recipes and prescriptions of books published in the city were
influences of cuisines and European books, identifying such reality from the recipes and
ingredients. Finally, the discussion about how the paraense food is miscegenation and
how the menus found in the city at this point in the show eating habits full of
miscegenation in a city that has not made use of its dishes as handle their culture.
Agradecimentos.
Este trabalho tem um gosto especial, talvez porque no tenha sido to fcil como
acreditava que seria trilhar este caminho e dividir as responsabilidades do doutorado
com minhas condies de me, esposa e mulher. Mas, com todos os percalos a tese
ficou pronta e ficou do jeitinho que eu imaginava. Agradeo a Deus por tudo. Gostaria
de expressar meus agradecimentos Universidade Federal do Par representada por
seus servidores que todos os dias trabalham para seu funcionamento. Toda minha
trajetria nesta instituio foi regada a muito conhecimento e aprendizado. CAPES,
que me possibilitou a bolsa de doutorado por todo o perodo em que escrevia a tese, sem
esse apoio financeiro tudo teria sido mais difcil e aqui deixo meu agradecimento ao
governo Dilma que investiu nas universidades federais com programas de bolsas,
tecnologias e cincia e possibilitou que tantos fizessem seus caminhos acadmicos.
Aos amigos da ps, com quem sempre aprendemos e uns se tornam amigos de
vida. A minha amiga querida Eva Dayna Carneiro, pessoa que emana amizade e
lealdade, amiga que vem de antes do doutorado e ficar para alm. Ela que tambm
termina a tese dela e que ainda assim sempre se preocupou comigo. Ao meu amigo
Benedito Barbosa que de l do Rio de Janeiro, sempre se lembrou da tese. Aos amigos,
do curso com quem aprendi muito e com quem pude discutir a tese quando ainda era um
projeto: Brbara Palha, Mara Maia, Jesiane Calderaro, Patrcia Cavalcante, Marlia
Cunha Imbiriba, Tatiane Sales, Tunai Almeida, Amilson Pinheiro, Sueny Diana, Snia
Viana, Edivando Costa, Marcelo Lobo e Elielton Gomes. A minha amiga que a histria
me trouxe Mrcia Cristina Nunes e que vai ficando para a vida. Obrigada todos pela
caminhada. querida Viviane Frazo, por toda a pesquisa dos jornais, sem a qual no
teria conseguido escrever a tese. Igualmente Juliana Medeiros que, to disciplinada,
conseguiu material importante para a pesquisa. Vocs foram fundamentais para o
andamento da tese. Aos amigos de sempre que inclusive estiveram dando sugestes e
degustando as receitas que analiso na tese nas reunies em casa Fernando Arthur e
Ndia Brasil e aos igualmente queridos Rafael, Franciane, Ester e Joo. Com eles foi
possvel pensar a cozinha como lugar de afeto.
12
A tese que aqui apresento dedicada aos meus amores, minha filha Marjane e
meu esposo Jos Maia. Marji que de certo modo cresceu junto com a tese, agora terei
mais tempo pra voc, para ns, podemos brincar mais sem tanta aflio da mame,
obrigada por ter sido to companheira nestes anos, por ter sido mais paciente que eu
mesma comigo, to pequena e to amiga, vez por outra perguntava se eu no tinha ainda
terminado a tese, se faltava muito. Agora a mame no vai ficar feito o Visconde de
Sabugosa s lendo livro e no computador. Essa tese pra voc e por voc para que
vejas que ns mulheres podemos e devemos ser o quisermos e que correr atrs dos
nossos sonhos fundamental.
Ao meu esposo, dedico est tese que tambm dele, porque Jos Maia foi um
incansvel companheiro em absolutamente todos os momentos, sem a sua ajuda eu
tenho certeza que tudo teria sido de um sacrifcio, por isso a tese tambm dele, por
isso sou de uma gratido infinita a ele, Maia esteve comigo todos os dias ao longo
destes anos de tese, e mesmo antes da tese, sempre com nossa filha para que eu pudesse
estudar para a seleo do doutorado, todas as noites. Sempre com Marji para que eu
pudesse acompanhar as aulas, quando j estava no doutorado. Deu banho, fez sopinha,
trocou fralda, ferveu mamadeira e nos amou. Fez mais, estando todas as noites com
Marji para que eu pudesse escrever a tese, deixou o seus textos para que eu pudesse
escrever, ler e pesquisar. Maia, mesmo cansado (porque sempre estava repleto de
trabalho), foi incansvel em me apoiar e amar nossa famlia. Ele foi alm, revisou a tese
e me ajudou. Ele segurou na minha mo todos os dias e disse vamos l! Eu vim e
13
cheguei aqui tambm pelo apoio incondicional dele. Meu amor, obrigada por
absolutamente tudo, essa tese tambm sua.
SUMRIO.
Quadros e Imagens. V.
Resumo. VI.
Abstract. VII.
Agradecimentos. VIII.
Prlogo. 14.
Concluso. 284.
Prlogo.
1
OLIVEIRA, Alfredo. Belm, Belm. So PAULO: Empreo, 2015, p. 32.
2
Antes dele, o chef Adauto Rodrigues, do Hotel Hilton j fazia experincias com os produtos
regionais em suas experincias, utilizou a pupunha como guarnio, preparava o filhote com
gengibre e outras novidades. ESPIRITO SANTO. & MARTINS, Fernando Jares. Gastronomia
do Par: o sabor do Brasil. Belm: Abresi; A senda Artes Integradas, 2014, p. 73.
17
A mestiagem da cozinha pensada pra Belm, portanto, como uma comida que
fruto do encontro de trocas, da pluralidade de culturas que dialogaram ao longo do
tempo para a formao da cultura gastronmica que v-se na atualidade. Desse modo,
as identidades culturais so tanto mais fortes quanto mais abertas esto para o
exterior e inseridas em vastos percursos de permuta, cruzamentos e contaminao.5
Assim, a comida deve ser pensada e analisada segundo Montanari como intermediria
entre culturas diferentes, abrindo os sistemas culinrios a todas as formas de invenes,
cruzamentos e contaminaes.6 Ao analisar a cozinha camponesa da Europa entre os
sculos XV-XVIII, este autor nos informa que estas eram formadas por diversidade e
transformaes no curso dos sculos.7 Em outro trabalho, Preferncias alimentares e
3
MONTANARI, Massimo. Bolonha Gorda. A construo de um mito. In: A cozinha, lugar da
identidade e das trocas. In: O Mundo na cozinha: histria, identidade, trocas. So Paulo:
Estao Liberdade: Senac, 2009.
4
MONTANARI, op. cit., p. 241.
5
MONTANARI, Massimo. A cozinha, lugar da identidade e das trocas. In: O Mundo na
cozinha: histria, identidade, trocas. So Paulo: Estao Liberdade: Senac, 2009. P. 17.
6
MONTANARI, op. cit., p.11.
7
FLANDRIN, Jean-Louis. A alimentao camponesa na economia de subsistncia. In: Histria
da alimentao. (org) Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. So Paulo: Estao
Liberdade, 1998. p. 607.
18
8
FLANDRIN, Jean-Louis. Preferncias alimentares e arte culinria (sculos XVI-XVIII). In:
Histria da alimenta. (org) Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. So Paulo: Estao
Liberdade, 1998. p.640.
9
RIERA-MELIS, Antoni. O Mediterrneo, crisol de tradies alimentares. A herana islmica
na culinria medieval. In: In: O Mundo na cozinha: histria, identidade, trocas. So Paulo:
Estao Liberdade: Senac, 2009. p.52.
10
FERRERAS, Noberto O. Imigrantes, criollos e a alimentao porten. Buenos Aires, final do
sculo XIX e incio do sculo XX. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, n 33, janeiro-junho de
2004, p. 98/99.
11
FERRERAS, op. cit., p. 110.
19
12
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 20.
13
BURKE, PETER. Cultura popular na Idade Moderna. So Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 21.
14
HOBSBAWM, E. RANGER. op. cit., p. 9.
15
HOBSBAWM, E. RANGER. op. cit., p. 9.
16
CARNEIRO, Henrique. In: MONTANRI, Massimo. Comida como cultura. So Paulo:
Editora Senac So Paulo: 2008, p. 12.
20
cultura, sendo cultura parte importante das identidades construdas socialmente com
seus diversos marcadores sociais, tnicos e religiosos, bem como de gnero.
17
PENTEADO, Antnio Rocha. Belm do Par (estudo de Geografia Urbana). Belm:
Universidade Federal do Par, 1968, p. 38.
18
MONTANARI, op. cit., p. 12.
21
19
Sobre o modernismo no Par ver MOURA, Aldrin Figueiredo. Eternos Modernos. Uma
histria social da arte e da literatura na Amaznia 1908-1929. Tese de Doutorado. Campinas:
UNICAMP, 2001.
20
MONTANARI. op. cit., p. 12.
21
MONTANARI. op. cit., p. 12.
22
Para um aprofundamento de o assunto ver tambm: O modernismo na arte culinria de
Manoel Querino. In: DRIA, em Carlos Alberto. Estrelas no cu da boca: escritos sobre
culinria e gastronomia. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2006, p. 215-229; DRIA,
Carlos Alberto. A Formao da Culinria Brasileira. Srie 21. Publifolha, 2009.
22
que no podemos falar em comida original e autentica aos moldes dos grupos indgenas.
Essa questo ser discutida no captulo III.
A presente tese, por sua vez, foi construda a partir das linguagens do mundo da
alimentao atravs dos lugares de comer, dos ingredientes e produtos que compunham
essa cozinha em Belm, no perodo entre fins do sculo XIX e meados do sculo XX,
entendendo o processo de mestiagem pelas receitas, pratos e cardpios. Nesta
introduo, portanto, vale enfatizar que a regio amaznica e, portanto, o Par,
semelhante ao que ocorre em outros lugares, tem uma lngua prpria em especial para
25
ESPIRITO SANTO, op. cit., p. 76.
26
Folha do Norte, 23 de outubro de 1941, p. 05.
27
DRIA, Carlos Alberto. A cozinha Nacional antes da feijoada. In: Cozinheiro Nacional, ou
coleo das melhores receitas das cozinhas brasileiras e europeias: para preparao de sopas,
molhos, carnes. So Paulo: Ateli Editorial; Editora Senac So Paulo, 2008, p. 9.
24
28
MIRANDA, Vicente Chermont de. Glossrio Paraense. Belm: Universidade Federal do
Par, 1968, p. 10.
29
MIRANDA, op. cit., p. 19.
30
MIRANDA, op. cit., p. 44.
31
ACAYABA, Marlene Milan; ZERON, Carlos Alberto (Orgs.). Equipamentos, usos e
costumes da Casa Brasileira. So Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000, p. 93.
32
MIRANDA. op. cit., p. 59.
33
MONTANARI, Massimo. O mundo na cozinha: histria, identidade, trocas. So Paulo:
Estao Liberdade: Senac, 2009, p. 11.
25
Assim, conforme aponta Paula Silva, uma refeio pode ser interpretada como
um sistema de comunicao capaz de evidenciar o relacionamento de grupos sociais.34
As palavras do mundo da alimentao so to importantes porque demarcam fronteiras
e espaos. Neste sentido, por exemplo, em fins do sculo XIX, a Revista Amazonas
trazia em suas pginas um artigo de autoria de Jos Verssimo, tratando do significado
de algumas palavras da regio, no qual ele analisa a etimologia das palavras e ao faz-lo
nos mostra que a mestiagem dos sabores tem inicio na composio das palavras. Assim
sendo, sobre o xib ou chib, nos diz Jos Verssimo:
34
SILVA, Paula PINTO. Comida e identidade: coentro ou salsinha. Revista CULT. Ano 18,
fevereiro de 2015, N 198, p. 32.
35
VERSSIMO, Jos. Revista Amaznica. 2 ano, tomo II. N 8 e 9, janeiro e fevereiro, 1884, p.
141.
36
VERSSIMO, op. cit., p. 138.
26
muquem (...) assar peixe ou carne, a fogo lento de modo a preparar uma conserva sem
auxlio do sal. E ainda, MUQUEM, assadouro ou grelha geralmente de forma
triangular com cada ngulo descanado sobre uma pedra ou sobre forquilhas de
madeira, feita de varinhas de pau de muquem ou outro. Peixe de muquem, carne de
muquem ou muqueada.37 Palavras essas e outras que esto presentes nesta tese e que
nos esclarecem o mundo da alimentao aqui estudado.
Sobre a tese, alis, vale uma apresentao mais detalhada de seus captulos. No
primeiro, intitulado Lugares de comer: contextos da alimentao em Belm,
trabalhamos os contextos da alimentao e seus espaos em Belm. A alimentao com
seus espaos moldando as prticas alimentares, ao mesmo tempo que as diversas
prticas alimentares moldavam ou exigiam determinados lugares de comer que tambm
eram inegavelmente de socializao. Locais como as tabernas, botequins, mercearias,
restaurantes, cafs, hotis, bares e quitandas; bem como as barracas das feiras e os
tabuleiros dos vendedores ambulantes compunham os locais de venda e de sociabilidade
da cidade de Belm ao longo do perodo estudado. Neste sentido, a ttulo de degustao
do que trata o captulo, em 1898, Rua Padre Prudncio, n. 142, havia um botequim
recm estabelecido que tinha para vender rico Vinho de Malaga e Gerez, o bom cognac
Gerezano e o rhum da acreditada marca A negra e a Morenita, assim como passas
Rosemcus em caixas de madeira, e chocolate (...). O anuncio dizia ainda que era tudo
barato! Tudo hispanhol! Quem quiser bom vinho no deixe de visitar o novo botequim.
Tambm no mesmo ano, em outro ponto da cidade, mais precisamente na taverna com
aougue contiguo no canto das Ruas Oliveira Belo e Dom Romualdo de Seixas, em 29
de janeiro, pela parte da noite, os gatunos penetraram pelo aougue contiguo taverna,
fazendo um rombo na porta que comunica os dois estabelecimentos, pelo qual passaram
e levaram consigo 60 latas de manteiga, de libra, 20 ditas de meia libra e 2.800$ em
dinheiro. O jornal dizia ento: J notaram como os larpios daqui gostam de
manteiga?.38 Enfim, atravs deste captulo foi possvel entender a dinmica alimentar
da cidade e seus principais sujeitos sociais.
37
VERSSIMO, op. cit., p.92.
38
O Par, 30 de janeiro de 1898, p. 2.
27
sculo XIX, foi possvel entender como, atravs dos ingredientes e tcnicas de preparo
descritos nas receitas, ocorrera a mestiagem das prticas alimentares a partir das trocas
culturais ao longo do perodo estudado. Os livros de cozinha, muito embora sejam
reflexos de uma cultura de classes mais alta, quando analisados podem nos revelar
tambm elementos das populaes menos abastadas uma vez que, mesmo que os textos
escritos nunca sejam expresso direta de uma cultura popular, eles, todavia, a
representavam com fidelidade muito maior do que poderamos esperar.39 Tais livros,
portanto, representam elementos de uma cozinha mais popular, j que:
importante dizer que para mostrar a mestiagem dos sabores a partir das
receitas e dos livros, o ponto de partida foi mostrar as inmeras trocas e influncias que
vinham da Europa, mas acima de tudo entender que o mundo rabe foi um dos
influenciadores de hbitos alimentares, em especial, na Europa. Perceber essa
importante contribuio entender que no podemos resumir mestiagem da
alimentao as influncias da Europa. O cozinhar mais do que preparar comida, como
nos afirma Maria Izilda Matos:
39
MONTANARI, op. cit., p. 63.
40
MONTANARI, op. cit., p. 63.
41
MATOS, Maria Izilda Santos. Cultura, tradio e inveno: temperados com lgrimas de
saudades. In RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Escritas da histria:
ver, sentir, narrar. So Paulo: Hucitec, 2014, p. 262.
42
LAURIOUX, Bruno. Identidades nacionais, peculiaridades regionais e KOIN europeia na
culinria medieval. In: MONTANARI, Massimo (Org.). O mundo na cozinha: histria,
identidade, trocas. So Paulo: Estao Liberdade; Senac, 2009, p. 86.
28
documentao nos permitiu essa anlise foi feita. Da mesma forma, estamos ciente das
particularidades de cada regio, assim entendemos que, por exemplo, em Portugal existe
diversos pratos regionais e que quando falamos em influncia portuguesa estamos
fazendo a partir de determinados elementos que so identificados nos livros de receitas
nos cardpios ou at mesmo nos anncios de jornais como da cozinha portuguesa, sem
aqui especificarmos o espao portugus do qual tal ingrediente ou prato originrio,
uma vez que documentao pesquisada no trazia tais informaes.
do leite de amndoas o que provavelmente ocorria para deixar a receita mais popular e
econmica. importante dizer que se muda o consumo e os hbitos pela questo dos
preos, uma vez que a mestiagem ocorre tambm pelo carter econmico. Sobre os
doces, alis, podemos lembrar que carregavam grande influncia portuguesas e at
mesmo rabes, tais como aparecem sendo ensinados na cidade de Belm, no sculo XX,
como ser analisado ao longo do captulo II. A exemplo, temos a receita de Bolos para
ch, que estava no do Dicionrio do Doceiro Brasileiro, publicado no Brasil, em fins do
sculo XIX, de autoria do Dr. Rego:
BOLOS PARA CH- Cento e vinte gramas de p de arroz, 4
kilogramas de massa de car, 1 dito de banha, erva-doce45, acar
quanto adoce, um pouco de fermento; amassa-se noite em uma
gamela com um pouco de gua de sal e abafa-se bem para, no dia
seguinte, ir ao forno em formas de manteiga. 46
45
Erva-doce (Pimpinella anisium): tambm conhecida como anis. Usada desde os romanos nas
receitas de bolos, produz odor peculiar e sabor doce e condimentado como o do funcho. Tem
uso frequente em tradicionais bebidas orientais como: ouzo, pastis e arak. REGO, op. cit., p.
315.
46
REGO, op. cit., p. 114.
47
Folha do Norte, 06 de agosto de 1950, p. 7.
30
construda, portanto, quais os elementos que compem essa cozinha mestia, a qual,
apesar de ter em larga medida uma origem indgena, foi mestiada com a mistura de
ingredientes, tcnicas e assim surgiu com novos sabores. Alis, tais questes foram as
que me levaram a pensar este tema e a presente tese. A mestiagem aqui foi pensada
tendo como elo as trocas culturais nos hbitos alimentares, em especial a partir do
perodo colonial, pois de l que se tm as primeiras misturas. Gilberto Freyre afirma
ainda que a cozinha que se constri uma cozinha ecologicamente tropical: com
ingredientes europeus adaptados aos trpicos.48 Traos que iram formar um paladar
brasileiro histrico e tambm tropical ou ecologicamente condicionado.49 Assim,
entendo que, como afirma Belluzo, o desenvolvimento da culinria brasileira est
fundamentado nos recursos naturais, nas particularidades geogrficas, na variedade de
produtos regionais e na sua diversidade cultural.50
A cozinha tpica de Belm, que hoje ganha s pautas jornalsticas, foi sendo
construda fazendo uso de sabores e tcnicas ancestrais dos grupos indgenas, mas,
igualmente, aos poucos foi incorporando ingredientes e conhecimentos dos grupos que
por aqui passaram como portugueses, africanos, espanhis, italianos, rabes, alemes e
tantos outros. Assim, os saberes e sabores foram dando sua contribuio cozinha
paraense, fazendo do mestio um prato tpico, tal como a manioba, igualmente
analisada no captulo 3, que, em 1925, j era comida tpica da Festa de Nossa Senhora
de Nazar, sendo objeto da revista T no Papo, quando abordando os costumes da
poca:
Manioba.
Vai tudo bem miudinho,
Picadinho,
Picadinho com a mo
Depois
Vai tudo mido,
Remexido
Bem socado no pilo.
Tem carne grossa, tem tripa,
Tem toucinho, tem bob,
Tem chourio, mo de vaca,
Carne fresca, mocot (...).51
48
FREYRE, Gilberto. Alimentao e ecologia, O Cruzeiro, 2 de maro de 1963.
49
FREYRE, Gilberto. Acar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do. 5 ed.
So Paulo: Global, 2007, p. 18.
50
BELLUZZO, Rosa. Nem garfo nem faca: mesa com os cronistas e viajantes. So Paulo:
Editora Senac So Paulo, 2010, p. 177.
51
T no Papo, Belm: Typographia Guajarina, 1925.
31
56
Folha do Norte, 23 de junho de 1911, p.7.
57
Folha do Norte, 26 de setembro de 1926, p. 7.
58
Trabalhos e estudos sobre a alimentao ganharam espao a partir do sculo XIX, quando
certos historiadores redirecionam seus olhares para esse novo caminho. Talvez, esses novos
olhares tambm tenham sido reflexo da historiografia vigente nos Estados Unidos e na Europa,
em especial na Frana, sem esquecer a Inglaterra onde em 1856 j havia trabalho publicado
sobre a alimentao, feito por George Dodd, The Food of London, que estudou as
peculiaridades da alimentao inglesa, no caso londrino. CARNEIRO, Henrique. Comida e
Sociedade: uma histria da alimentao. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 143.
33
Esse novo caminho da histria da alimentao traz tona os detalhes que antes
no eram foco do historiador, mas dos antroplogos e cientistas sociais. Dois grandes
nomes internacionais da historiografia da alimentao so: Jean-Louis Flandrin, que foi
professor de Histria Moderna na Universidade Paris 8 e diretor de estudos na Escola de
Altos Estudos em Cincias Sociais. Flandrin desenvolveu pesquisas sobre a evoluo do
gosto e dos comportamentos alimentares e, portanto, teve papel pioneiro no tema e na
historiografia europeia. Entre seus trabalhos esto: Chronique de Platine. Pour une
gastronomie historique de 1992; Tables dhier, tables dailleurs com autoria de Jane
Cobbi de 1999 e Lordre ds mets de 2002. Em italiano escreveu juntamente com
Massimo Montanari Stori dellalimentazione de 1997.61 O outro grande pesquisador
justamente o italiano Massimo Montanari, atualmente um dos historiadores da
alimentao de maior importncia, professor de Histria Econmica Medieval e
Histria da Alimentao na Universidade de Bolonha. Entre seus trabalhos de maior
destaque esto: La alimentazione contadina nellalto Medievo de 1979; Storia
59
Apud MENESES; CARNEIRO, op. cit. p.21.
60
ARON, Jean-Paul. A Cozinha: um cardpio do sculo XIX. In: LE GOFF, Jacques; NORA,
Pierre (Orgs.). Histria: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves. 1998.
61
MONTANARI, op. cit., p. 253.
34
Ainda que o espao estudado por Montanari, seja diferente a cidade de Belm,
suas perspectivas nos permitem pensar a realidade tambm encontrada na cidade de
Belm daquele momento. A Amaznia num momento de intensas mudanas
econmicas e sociais, momento em que a circulao de sabores, pratos e ingredientes
nos ajudam a entender a mestiagem. Vale ressaltar que apesar de no Brasil haver
nmero significativ de produes sobre a histria da alimentao, a maioria da produo
historiogrfica sobre o tema de pesquisadores europeus sobre a alimentao em
62
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2008,
p. 16.
63
MONTANARI, op. cit., p. 17.
35
No Brasil, alis, uma das primeiras obras em que possvel encontrar um estudo
sobre a alimentao o trabalho Silva Melo, A alimentao no Brasil, de 1946; e, ainda,
o de Mrio Souto Maior, Em torno de uma possvel etnografia do po, de 1971.67 Aos
poucos o tema foi ganhando espao, principalmente a partir da dcada de 90, quando
surgem novos trabalhos que passam a discutir a temtica da alimentao. Mas, tal
caminho no foi fcil de ser percorrido pelos historiadores, sendo a escolha de
investigao dessa temtica em boa parte do tempo considerado ou compreendido como
afeito antropologia, ao folclore ou aos estudos realizados por mdicos que
visualizaram nesta investigao um campo de trabalho.
64
Ver MENESES; CARNEIRO, op. cit. 26.
65
Ver CMARA CASCUDO, Lus da. Histria da alimentao no Brasil: pesquisa e notas.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1983; FREYRE, Gilberto. Casa Grande Senzala: formao da famlia
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28 ed. Rio de Janeiro: Record,1992.
66
CASCUDO, op. cit. 1992.
67
MELLO, A. da Silva. A alimentao no Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1961 (1 edio
em 1946); SOUTO MAIOR. Mrio. Em torno a uma possvel etnografia do po. Recife: Sem
Editor, 1971.
36
68
MAUS, Maria Anglica Motta & MAUS, Raymundo Heraldo. O Folclore da alimentao:
tabus alimentares na Amaznia (Um estudo de caso numa populao de pescadores do litoral
paraense). Belm: Falangola, 1980.
69
FUCKNER, Ismael. Comidas do cu, comidas da terra: invenes e reinvenes culinrias
entre as adventistas do Stimo Dia (Marco-Belm-Par). Belm: CFCH/UFPA, 2004,
Dissertao de Mestrado em Antropologia Social.
37
Um dos jornais que mais trabalho na tese a Folha do Norte, jornal de grande
circulao, boa tiragem e, por isso, devia ter considervel procura pelas pessoas que
70
PONTE, Romero Ximenes. Assahy-yukic, iassa, oyasa, quasey, ay, Jussara, manac,
aa, acay-berry;rizoma. Tese de Doutorado. Programa de Ps- Graduao em Cincias Sociais
da Universidade Federal do Par-UFPA. 2013.
71
MOURO, Leila. Do Aa ao palmito: uma histria ecolgica das permanncias, tenses e
rupturas no esturio amaznico. Belm: Ed. Aa, 2011.
72
LUCA, Tnia Regina. In: Pinsky, Carla Bassanezi. (org). Fontes Histricas. 2 Ed. So Paulo:
Contexto, 2006. p. 118.
73
LUCA, op. cit., p. 132.
74
LUCA. Op. cit., p. 132.
38
75
LUCA. op. cit., p. 121.
76
LUCA. op. cit., p. 121.
39
Outra importante fonte impressa na elaborao desta tese foram os relatos dos
viajantes, especialmente no captulo 3, quando recorremos aos viajantes para mostrar o
processo de mestiagem. A escolha dos viajantes aqui utilizados fez-se tendo em vista
que estes nos informavam sobre os hbitos alimentares dos grupos indgenas e desta
forma, nos possibilitam o entendimento das construes de mestiagens. Especialmente,
aqueles que trazem os primeiros relatos sobre a alimentao. Por fim, foi feita a
pesquisa da documentao na Junta Comercial do Par - JUCEPA, documentao
constituda de livros de matrculas e registros de firmas, onde foi possvel visualizar
dados sobre as ditas firmas, donos e marcas do comrcio da alimentao paraense.
Faz-se importante tambm uma ressalva: a escolha do tema desta tese, visando
demonstrar como as prticas culturais associadas ao ato da alimentao sofreram
transformaes no perodo de fins do sculo XIX at meados do sculo XX, nos obriga,
no entanto, a dizer que o perodo escolhido no hermeticamente fechado, uma vez
que, se metodologicamente foi preciso balizar este perodo possibilitando a visualizao
de quais hbitos alimentares faziam parte da mesa dos belenenses, como os pratos eram
construdos, que influncias recebiam e quais eram de consumo ordinrio e outros
no; por outro lado, tambm foi preciso em alguns momentos voltar no tempo para se
entender melhor os hibridismos. Ou seja, foi preciso, por exemplo, recorrer aos livros de
receitas do sculo XV e aos relatos de viajantes no perodo colonial.
77
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2008,
pp. 7/11.
40
78
MACDO, Sidiana da Consolao Ferreira de. Stios e Engenhos em Abaet: Um estudo de
cultura material. (1840-1870). Belm: UFPA, Monografia de Graduao em Histria. 2006.
79
Ver, MENESES, Ulpiano T. B.; CARNEIRO, Henrique. A Histria da Alimentao: balizas
historiogrficas. Anais do Museu Paulista. Nova Srie, v. 5, pp. 9-92, jan./dez. 1997.
80
Ver CMARA CASCUDO, Lus da. Histria da alimentao no Brasil: pesquisa e notas.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1983; FREYRE, Gilberto. Casa Grande Senzala: formao da famlia
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
41
Costumo dizer que fao o que gosto duplamente, porque o ofcio do historiador
me possibilitou misturar minha paixo pelo mundo da alimentao, adoro cozinhar e
cozinho pra trabalhar porque uma vez, que meu objeto de estudo o mundo da
alimentao posso viver o melhor dos dois mundos. Desse modo, ainda tenho um blog,
intitulado Daquilo que se come, sobre alimentao onde apresento variedades do mundo
da alimentao desde as receitas do perodo que pesquiso at mesmo as histrias e
sujeitos do mundo da alimentao que estudo.
Diante de tudo isso esta tese foi elaborada tendo como ponto de partida minha
inquietao com o que foi idealizado de comida regional ou tpica em Belm,
acreditando que possa contribuir para com uma nova maneira de se entender a comida
regional da cidade de Belm. Embora, este seja um captulo desta longa histria que
ainda h de requerer outros. Mas, espero que esse trabalho trar contribuies
significativas ao campo da historiografia da alimentao em Belm e que as discusses
aqui colocadas daro outros frutos.
42
CAPTULO I:
Lugares de comer:
Contextos da alimentao em Belm.
Mal havia se iniciado o ano de 1898, quando o jornal O Par informou que na
noite de 9 de janeiro, na estao policial, Maria Anglica da Conceio fez queixa de
Antnio Fagueira, dono do Botequim Mimoso. Segundo a mulher, ela residia no dito
botequim e estava pagando pontualmente o aluguel. Entretanto o proprietrio deu-lhe
despejo, declarando ainda que ficaria com o seu ba, como garantia do aluguel.81
No sabemos como foi resolvida a contenda. Mas, podemos dizer algo sobre o
botequim, espao que nos interessa, por ser um dos locais no qual se podia fazer
refeies. Ao que parece o botequim Mimoso, localizado na Rua da Trindade, no era
visto com bons olhos pelos redatores do jornal e moradores daquela rea. O jornal O
Par denunciava que, mesmo aps o fechamento das portas do botequim, para alm do
horrio de funcionamento permitido, seus frequentadores reuniam-se em jogatina e
alta bebedeira, fazendo extraordinria vozeria e tirando o sossego dos habitantes
82
dos arredores. Todavia, observando o botequim Mimoso com outros olhares,
podemos pensar em tais espaos como parte de uma sociabilidade mais ampla desses
indivduos, a qual envolvia tambm msica e jogos, lembrando ento as palavras de
Algranti, quando trata do Rio de Janeiro oitocentista,83
No resta dvida, no entanto, que, a partir das notcias dos jornais do que por l
ocorria, o prprio endereo e a descrio do botequim j demonstravam o seu lugar na
cidade. Portanto, a imprensa da capital por meio do que publicava ajudava a construir
81
Notcias da mesma natureza no foram incomuns, cf. O Par, 9 de janeiro de 1898, p. 2.
82
O Par, 10 de janeiro de 1898, p. 2.
83
ALGRANTI, Leila Mezan. Tabernas e Botequins. Cotidiano e sociabilidades no Rio de
Janeiro (1808-1821). Acervo, v. 24, n. 2, julho/dezembro 2011, p. 33. J no caso do Rio de
Janeiro das ltimas dcadas do sculo XIX, de forma semelhante ao que vemos em Belm, diz
Juliana Souza: Tavernas e botequins eram frequentados por trabalhadores pobres, que antes de
irem ao trabalho ou em suas horas de lazer de descanso, gostavam de beber caf ou alguma
bebida espirituosa, diziam palavres e coisas obscenas, praticavam jogos proibidos nos fundos
das casas, faziam batucadas, falavam e gargalhavam alto, cantavam modinhas e danavam
lundus. Divertiam-se, sem guardar os modos recomendados pela chamada boa sociedade . Cf.
SOUZA, Juliana Teixeira. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciantes na Corte
Imperial (1870-1880). In: Trabalhadores na Cidade. Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em
so Paulo, sculos XIX E XX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 203. Ver tambm
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. So Paulo: Brasiliense, 1986.
43
84
GUIMARES, Valria. Os dramas da cidade nos jornais de So Paulo na passagem para o
sculo XX. Revista Brasileira de Histria, vol. 27, n. 53, janeiro/junho 2007, p. 325.
85
Sobre o assunto, ver, por exemplo, SARGES, Maria de Nazar. Belm: Riquezas produzindo
a Belle-poque (1870-1920). Belm: Editora Paka-Tatu, 2001. Ver tambm a discusso acerca
da ideologia higienizadora em CHALHOUB, Sidney. A cidade febril. So Paulo: Companhia
das Letras. 1996.
86
O crescimento demogrfico que a cidade de Belm conheceu a partir da segunda metade do
sculo XIX, gerou transformaes em vrios setores da cidade como relaes de trabalho, novos
hbitos alimentares e aumento de locais destinados a alimentao. Neste perodo houve
intensificao da entrada de imigrantes, em especial, cearenses e europeus. Cancela nos informa
que: aps a seca de 1877-78 e 1888-89, cerca de 17.000 migrantes nordestinos tinham se
deslocado para o Estado do Par. No ano de 1884, segundo Cancela, a populao da capital
chegou a 70.000 habitantes e em 1900 seria cerca de 96.560 habitantes. Em 1920 o nmero de
habitantes era de 236.402. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Casamento e famlia em uma
capital amaznica: Belm (1870-1920). Belm: Editora Aa, 2011, p. 68.
44
pelos anncios, mas sim por atravs dos relatos dessas contendas. Sendo a discusso
acerca desses espaos nos quais, fora do mbito domstico da casa, se podiam realizar
refeies ou comprar alimentos na capital paraense, entre os finais do sculo XIX e
meados do sculo XX, o objetivo principal desse captulo.
Por meio de anncios e notcias dos jornais, por sua vez, percebemos que havia
uma grande diversidade de locais que atendiam aos mais diferentes tipos de pessoas, o
que demonstra o crescimento da cidade e de negcios voltados para o consumo de
bebidas e alimentos. Espaos nos quais se vendiam produtos alimentcios como carne,
peixe, farinha, massas, azeite, entre outras coisas de comer, bem como outros lugares
que j vendiam alimentos prontos para consumo em um ponto fixo, havendo ainda
relatos de vendedores ambulantes de comida que percorriam as ruas da cidade. Assim, o
que se come e onde se come permite o entendimento da cidade de Belm, ao mesmo
tempo que tambm permite compreender como os moradores entre finais do sculo XIX
e meados do XX vo construindo hbitos alimentares e consequentemente a sua prpria
identidade. Nesse sentido, lembramos as palavras de Simmel: Por ser algo humano
absolutamente universal, esse elemento fisiolgico primitivo torna-se, exatamente por
isso, o contedo de aes compartilhadas permitindo assim o surgimento desse ente
sociolgico refeio.87 Ora, ao estudar os locais de vendas de comidas podemos
visualizar as aes dos indivduos durante uma refeio, e igualmente as relaes
sociais em torno dessa prtica em Belm.
87
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeio. Revista Estudos Histricos, n. 33, 2004, p. 1.
45
88
SIMMEL. op. cit., p. 3.
89
Os mdicos Godinho e Lindenberg estiveram pela regio nos idos de 1904, sendo
originalmente suas crnicas foram publicadas na coluna do Estado de So Paulo.
Posteriormente os autores reuniro em artigos com 74 gravuras em 1906, uma nova edio
sobre os cuidados de Srs. Laemmert & Comp. GODINHO, Victor; LINDENBERG, Adolpho.
Norte do Brasil: atravs do Amazonas, do Par e do Maranho. Braslia: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2011, p. 88.
90
Sobre um estudo da geografia urbana de Belm ver: PENTEADO. Antnio Rocha. Belm do
Par Estudo de Geografia Urbana. Belm: Universidade Federal do Par, 1968.
91
Segundo Ernesto Cruz em 1905 a cidade estava dividida em 47 ruas, 52 travessas, 15
estradas, um bulevar, seis praas, dez largos e trs avenidas. Dois anos mais tarde, o nmero de
ruas estava aumentando para 105, e o das praas para 22. CRUZ, op. cit., p. 20.
92
Sobre os espaos de distribuio, venda e consumo dos produtos alimentcios em Belm, tais
como tabernas, cafs, quitandas, hotis, casas importadoras e outros existentes na segunda
metade do sculo XIX. Ver: MACDO, Sidiana da Consolao Ferreira de. Do que se come:
46
A cidade tinha muitos botequins espalhados pelas suas ruas, sendo possvel nas
pginas da imprensa peridica sempre encontrar alguma informao sobre eles.
primeira vista, quase sempre eram lugares associados s prticas de jogos e consumo de
bebidas, sendo espaos geralmente procurados com a finalidade de se beber algo, mas
que tambm podiam ter comida.95 Esta seria uma realidade comum em outros lugares do
Brasil. Algranti, analisando o Rio de Janeiro para primeira metade do sculo XIX,
enfatiza que os botequins eram locais onde tradicionalmente ocorria venda de
96
ALGRANTI, op. cit., p. 30.
97
TELEGINSKI, Neli Maria. Bodegas e Bodegueiros de IRATI-PR (1900-1950). Texto
disponvel na pgina: www.historiadaalimentao.ufpr.br. Consulta feita em 23 de abril de
2015.
98
GODINHO. op. cit., p. 105.
99
Walle, Paul. No Brasil, do Rio So Francisco ao Amazonas. Braslia: Senado Federal;
Conselho Editorial, 2006, p. 311.
100
GODINHO, op. cit., p. 106.
48
Por outro lado, aqueles que no podiam pagar pelos produtos venda nos
botequins, premidos pela necessidade ou pelo desejo de posse, praticavam roubos ou
mais comumente furtos. Da a imprensa tambm descrever os botequins como espaos
profcuos a prticas criminosas. Em 1919, no Botequim A Sportiva, localizado na
Travessa Ruy Barbosa, Cesrio Jos foi preso pelo furto de um queijo.104 Dos
produtos que mais aparecem como sendo furtados ou roubados dos estabelecimentos na
cidade dois se sobressaam: queijo e manteiga. Tais produtos eram caros tornando-se
objetos de desejo das pessoas que no detinham poder de compra. Sendo, neste sentido,
possvel pensar os costumes como ligados a uma estrutura poltica das classes sociais
em face dos seus hbitos alimentares, tal como sugere o conceito de Habitus de
Bourdieu, uma vez que ele parte da cultura para as representaes dos indivduos e suas
prticas.105 Desse modo, poder consumir frutas importadas, vinhos, queijos e produtos
caros podem ser tomados como exemplos que refletiam mais do que dinheiro, era um
smbolo de poder social. A manteiga, por exemplo, era um destes produtos, muito
apreciado, sendo a manteiga inglesa uma das preferidas.106
101
importante localizar que a Travessa de So Matheus atual travessa de Padre Eutquio,
servia de divisa aos bairros da Cidade Velha e da Campina. CRUZ, Ernesto. Ruas de Belm:
significado histrico de suas denominaes. 2 Ed. Belm: CEJUP, 1992. p. 15. O Par, 5 de
janeiro de 1898, p. 2.
102
A rua da Industria atualmente tem a denominao de Gaspar Viana. CRUZ, op. cit., p. 37.
Folha do Norte, 21 de fevereiro de 1910, p. 3
103
O Par, 5 de janeiro de 1898, p. 2.
104
Folha do Norte, 13 de setembro de 1919, p. 3.
105
Apud BURKE, Peter. O que Histria Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 76
e 77.
106
Sobre o assunto ver: MACDO, op. cit.
49
denominados como botequins, havendo aqueles associados aos cafs, da mesma forma
que outros como o chamado Aveirense, uma miscelnea de padaria, mercearia,
botequim e confeitaria e que, em 1929, se intitulava como o maior emprio de estivas,
panificao e confeitaria do seu bairro.107 Neste caso, pode-se tambm entender que
sua freguesia seria distinta, pelo menos aos olhos do dono, uma vez que no dia mximo
da fraternidade universal, cumprimenta sua amvel, distincta e querida freguesia.108
Em 1950, por sua vez, estava venda um Botequim rua 28 de Setembro, localizado
em uma de suas esquinas, um ponto excelente. Neste botequim, notamos que alm das
possveis bebidas espirituosas, era possvel consumir uma garapa109 e at engraxar os
sapatos.110 Ou seja, os botequins permanecem com seu carter variado, nos quais, alm
de encontramos as bebidas espirituosas, eram possveis encontrar o aa e beber uma
garapa. Nem todos os botequins, portanto, eram iguais.
107
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1929, p. 3.
108
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1929, p. 2.
109
A garapa era Caldo de cana. Sumo extrado, por meio de moendas, de cana-de-acar.
Prove esta garapa corao. doce, doce. Cana veio de Iguarap-Miri. Tome um copo de garapa,
Major. Vaunc est muito suado. Garapa azedo, posta no sereno e bebida em jejum, tida
como tonificante, ferruginosa. Voc est assim amarelo de safado. Tome garapa azeda,
serenada, que voc vai ver como fica. MORAIS, Raimundo.O meu dicionrio de cousa da
Amaznia. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2013. p. 97.
110
Folha do Norte. 25 de Abril de 1950. p.8.
111
GUIMARES, Luiz Antnio Valente. Olhares estrangeiros na cidade: a rua do Comrcio
de Belm. In: BELTRO, Jane Felipe; VIEIRA JNIOR, Antnio Otaviano (Orgs.). Conhea
Belm, co-memore o Par. Belm: EDUFPA, 2008, p. 43 e 44.
112
Folha do Norte, 30 de abril de 1949, p. 8. Anncios desse tipo no eram incomuns, tambm
em 1949 a Folha do Norte anunciava a venda de uma mercearia bem aparelhada e bem
localizada, com moradia Cf. Folha do Norte, 12 de junho de 1949, p. 3.
50
113
Folha do Norte, 3 de janeiro de 1950, p. 4.
114
A rua Generalssimo Deodoro foi anteriormente denominada de avenida dois de Dezembro,
data comemorativa do aniversrio natalcio do Imperador d. Pedro II. CRUZ, op. cit., p. 22.
115
Folha do Norte, 8 de janeiro de 1950, p. 13.
116
Sobre a ideologia da higienizao dos espaos pblicos e particulares, ver, por exemplo,
CHALHOUB, Sidney. A Cidade Febril. So Paulo: Companhia das Letras. 1996.
117
Segundo SHORE, Os primeiros restaurantes surgiram na China. Marco Polo descreve a
multifacetada cultura dos restaurantes de Hangzhou, em 1280- j com dois sculos de idade-
com elementos familiares de restaurantes contemporneos: garons, cardpios, estrutura para
banquetes, alm de alguns aspectos de mercado sexual e ponto de encontro, que apareceriam, ao
menos brevemente, na cultura dos restaurantes do Ocidente. SHORE, Elliott. Jantando Fora: o
desenvolvimento do restaurante. In: FREEDMAN, Paul (Org.). A histria do sabor. So Paulo:
Editora Senac, 2009, p. 301. Segundo o Dicionrio Universal de 1708: RESTAURANTE:
Alimento ou remdio que tem a propriedade de restaurar as foras de uma pessoa doente ou
esgotada (...) Alguns restaurantes so destilados a partir de sucos de carnes leves e temperadas
combinados com vinho branco suave, guas e preparados em p estimulantes, conservas,
electurios e outros ingredientes bons e adocicados. O aspic* um tipo de restaurante, porm
mais nutritivo e de consistncia mais firme do que outros, sendo lquido. Cf. SPANG, Rebecca.
A inveno do restaurante. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.7.
51
significativa.118 Os restaurantes eram uma opo distinta das penses, tabernas e casas
de pasto. No incio o restaurante comeou, e assim permaneceu durante seu primeiro
sculo de existncia, como lugar exclusivo para ricos e servia em Londres, Paris, Nova
York e Berlim.119 Aos poucos eles vo ganhando espao em outros pases, contudo,
mesmo quando o restaurante passou a ser acessvel a uma clientela variada, a
uniformidade do que era oferecido permaneceu relativamente constante por mais de um
sculo.120
118
Segundo Jean-Robert Pitte: comea a desenhar-se uma segunda revoluo na arte de comer
bem fora de casa. Ela est associada ao desenvolvimento dos transportes rpidos e do turismo
de luxo. Cf. PITTE, Jean-Robert. Nascimento e expanso dos restaurantes. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade,
1998, p. 759.
119
SHORE, op. cit., p. 301.
120
SHORE, op. cit., p. 301.
121
Sobre mudanas urbanas e padres de civilidade para Belm, ver, entre outros: SARGES,
Maria de Nazar. Belm: Riquezas produzindo a Belle-poque (1870-1912). Belm: Paka-Tatu,
2000. Para um processo semelhante Belm ver: DIAS, Edinea Mascarenhas. A iluso de
Fausto: Manaus 1890-1920. Manaus. Ed. Valer, 1999. E ainda, DAOU, Ana Maria. A Belle
poque amaznica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
122
O Par, 14 de dezembro de 1897, p. 3.
123
O Par, 14 de dezembro de 1897, p. 3.
52
estabelecimento brigar com os fregueses, ou vice-versa, parece no ter sido uma prtica
incomum nestes espaos, embora sendo um fator que depunha contra a ordem e
civilidade do local. No Restaurante Parque, por exemplo, localizado rua Joo
Diogo,124 em certo dia de janeiro de 1910, l estava o peixeiro David Caetano para fazer
sua refeio quando ao trazer o creado o manjar pedido por David, este nota um defeito
qualquer no quitute, pelo que fez sua reclamao, indo alm, no entanto, quando no
se limitou apenas a reclamar: insultou com palavres o criado e o dono do
restaurante.125
124
A rua de Joo Diogo anteriormente era chamada da Residncia. CRUZ, op. cit., p. 15.
125
Folha do Norte, 20 de janeiro de 1910. p. 1.
126
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e famlia em uma capital amaznica: (Belm 1870-
1920). Belm: Ed. Aa, 2011, p. 78/79. Grifos meus.
127
A Voz do caixeiro, 30 de maro de 1890, p. 3.
53
mais abastado.128 Indcio disso foi que, em 1898, quando o governador do Par, Paes de
Carvalho, realizou uma viagem por todo o interior do estado, em alguns momentos, de
acordo com Lacerda, fazia parte da comitiva do governador um dos auxiliares do
Restaurante Coelho, que era responsvel pelo preparo dos jantares.129
128
No caso de Belm quando falamos em pessoas abastadas ou elite local tomamos como ponto
de referncia o trabalho de Cancela, a qual nos informa que eram pessoas onde seu patrimnio e
prestigio estavam pautados preferencialmente na propriedade de engenhos, criao de gado,
ocupao de cargos administrativos, funes militares e, por vezes firmas comerciais (...)
seringais, casas de aviao, firmas comerciais, aes e imveis urbanos. CANCELA, op. cit.,
p. 23. Sobre autores que discutem classes populares/eruditas ver: BURKER, Peter. Veneza e
Amsterd: um estudo das elites do sculo XVII. So Paulo: editora Brasiliense, 1991.
BOURDIEU, Pierre. Condio de classe posio de classe. In: AGUIAR, Neuma. Hierarquias
em classe. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
129
LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Par: faces da sobrevivncia (1889-
1916). Belm: Ed. Aa/ Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia (UFPA),
2010, p. 315.
130
Dirio de Notcias, 25 de janeiro de 1891, p. 3.
54
131
Folha do Norte, 3 de janeiro de 1950, p. 9.
132
Os anncios destes estabelecimentos publicados no jornal Folha do Norte foram
reproduzidos em: PINTO, Lcio Flvio. Memria do Cotidiano- vol. 3. Belm: Edio do autor,
2010, p. 20.
55
Segundo Paul Walle, que esteve na cidade por volta de 1910, Belm seria a
nica cidade, desde o Rio de Janeiro, na qual o viajante podia encontrar alguns bons
hotis, no no sentido em que empregamos o termo, mas no de estabelecimento onde se
pode dispor de um quarto limpo e bem arejado, com uma comida adequada, um
cardpio variado e um servio aceitvel.133 Segundo ele, dois hotis tinham boa
reputao e eram os mais importantes da capital paraense: Caf ou Hotel da Paz,
localizado no centro da cidade, considerado como de boa reputao e que melhor
estrutura tinha para receber os hospedes; e o Hotel do Comrcio, de propriedade de um
francs, instalado num bairro prximo do comrcio entre a Rua da Indstria e o
Boulevar da Repblica, o qual tinha boa comida, quartos grandes e limpos, sendo um
ambiente frequentado por agentes comerciais e negociantes. O nico problema, aos
olhos de Walle, era de que este hotel estava situado num imvel velho. Por sua vez, os
viajantes Godinho e Lindenberg que estiveram em Belm no incio do sculo XX e
ficaram hospedados no Caf da Paz, prximo ao teatro de mesmo nome, nos informam
que este hotel tinha: Quartos arejados, bonito e espaoso refeitrio, variado menu, em
que faziam boa figura o camurim e o delicioso abacaxi.134 Tanto Walle, quanto os
mdicos Godinho e Lindernberg ressaltam que os quartos arejados, espaosos e limpos
e o fato de ter boa comida e um variado menu em seus restaurantes compunham a lista
de atrativos do Caf e Hotel da Paz.
133
WALLE, op. cit., p. 309.
134
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p.88.
135
O Par, 25 de dezembro de 1897, p. 2.
56
entre as gentes de origem diversa.139 Em Belm, nossa pesquisa indicou que os hotis
de mdio e pequeno porte acolhiam as pessoas que vinham de outros lugares, sendo os
mais diversos tipos de trabalhadores; ou, ainda, o que nos interessa aqui mais de perto,
nos hotis de um modo geral se recebiam clientes que vinham apenas fazer suas
refeies. Neste sentido, por exemplo, anos mais tarde, em 1929, o anncio do hotel e
restaurante Rotisserie Suisse demonstra que esse estabelecimento, alm de acomodaes
que podiam ser utilizadas tanto por famlias quanto por viajantes, tambm tinha
restaurante com servio La carte.140 Portanto, alguns hotis continuavam a associar o
servio de hospedagem com o servio de refeies ao pblico em geral, prtica presente
at os dias de hoje.
139
SIQUEIRA, op. cit., p. 346.
140
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1929, p. 2.
141
O Par, 6 de janeiro de 1898, p. 2. E ainda, O Par, 15 de fevereiro de 1898, p. 2.
142
O Par, 22 de dezembro de 1897, p. 3.
58
na Penso Gars e outra no Grande Hotel, para onde afluram destacadas famlias.
Semelhante nos parece ser tambm o Avenida Hotel, em meados do sculo XX,
anunciado na imprensa como centro de conforto, distino e ordem, de propriedade de
M. Tuas & Filho, localizado na avenida 15 de Agosto. Era um misto de restaurante e
hospedagem com bar e sorveteria, descrito no jornal Folha do Norte como o mais
confortvel hotel da cidade.143
143
Cf. as informaes em: Folha do Norte, 2 de abril de 1949, p. 4; 2 de junho de 1949, p. 4; 3
de janeiro de 1950, p. 4; 3 de janeiro de 1950, p. 4; 8 de janeiro de 1950, p. 3.
144
Folha do Norte, 11 de fevereiro de 1931, p. 3.
145
Folha do Norte, 5 de maio de 1949, p. 2.
146
SHORE, op. cit., p. 303.
59
de mesa e interagisse com ele.147 Alm do mais, o fato de ter um horrio regular
acabava por trazer considerveis inconvenientes para os que eram dados a horrios
variveis e apetites exigentes.148 Em Belm, pelo que vemos, o servio de Table
dHte do Grande Hotel seria diferente da ideia original da Frana, uma vez que o
ambiente era um restaurante, onde alm desse servio funcionava o de La Carte ao
mesmo tempo, ou seja, a estrutura seria a mesma de um restaurante, sendo que as
pessoas no precisam dividir a mesma mesa, porm se serviam dos pratos arrumados
em uma grande mesa ou bancada. O Grande Hotel contava ainda com Cocktails,
servidos no Amazon Bar, que possua salo com ar refrigerado. J no bar do Terrao, ao
ar livre, eram servidos Refrescos-Sorvetes-Lunches. Havendo ainda a oferta de
servio para casamentos, banquetes, cocktail, parties, reunies e etc.149
147
SPANG, op. cit., p. 97.
148
SPANG, op. cit., p. 97.
149
Folha do Norte, 24 de abril de 1949, p. 2.
150
Folha Norte, 4 de abril de 1950, p. 8.
151
Folha do Norte, 25 de abril de 1950, p. 3. Os casquinhos de caranguejo juntos com os de siri
e muu compunham o cardpio de restaurantes em Belm e tambm era prato bem quisto nas
casas, onde as quituteiras faziam todo um trabalho para prepar-lo com destreza. Era
considerado um quitute fino. Cf. ORICO, Osvaldo. A cozinha Amaznica: uma autobiografia
do paladar. Belm: Universidade Federal do Par, 1972, p. 42.
152
Folha do Norte, 19 de abril de 1950, p. 3.
153
Folha do Norte, 20 de abril de 1950, p. 3.
154
Folha do Norte, 21 de abril de 1950, p. 7.
155
Folha do Norte, 22 de abril de 1950, p. 3.
156
Folha do Norte, 23 de abril de 1950, p. 3.
60
no necessariamente o Prato do Dia seria um prato fixo por dia da semana, tanto que,
se sucedendo os dias da semana, tambm fizeram parte do cardpio os seguintes pratos:
Ravioli Italiana, Bacalhau Portuguesa e Pato LOrange.157
Pelada almoava refesteladamente, por volta de uma hora da tarde, quando algo
alcoolisado, entrou o chauffeur conhecido pela alcunha de Canoneta, que pilheriou
com aquella mulher, estabelecendo-se forte bate-bocca entre os trs.162 Sendo
justamente sobre os pequenos e mdios hotis com seu pblico das classes populares
que percebemos uma maior preocupao higienista e moralizadora por parte das
autoridades e dos redatores de peridicos da capital paraense.
Por outro lado, sendo os hotis espaos de trnsito de pessoas as mais diversas,
sobre as quais se queria um maior controle e fiscalizao em nome da moralidade e da
segurana individual e pblica, considerando ainda mais a quantidade de hotis e
hospedarias que funcionavam em Belm, desde finais do sculo XIX, tais como a
Maison Dore; Condal; High-Life; Amazonas; Maison dOr; Hotel das Naes e Hotel
dos Irmos Unidos ou o Hotel Estrangeiros, que tinha um bem servido jantar,163 foi
que, em 1898, o jornal O Par considerava fundamental que nos hotis houvessem
livros abertos, numerados e rubricados pelo chefe de segurana, que fossem acessveis a
qualquer hora polcia e reportagem dos jornais, nos quais fossem registrados o nome
do hospede, a sua profisso, a nacionalidade, a sua procedncia e seu destino, para que
desta forma fosse possvel mais facilmente uma fiscalizao garantida aos interesses
dos prprios hospedes, da moralidade dos estabelecimentos de primeira ordem, da
actividade policial e da reportagem jurdica. Segundo O Par tais medidas seriam em
proveito do progresso e da civilizao paraense, na verdade uma forma de
disciplinamento do uso desses lugares, bem como tentativa de conhecimento e controle
social da circulao dos hspedes, ainda que os hotis fossem lugares frequentados por
clientes ocasionais ou constantes que faziam uso dos servios de seus restaurantes e
bares.164
162
Folha do Norte, 13 de outubro de 1919, p. 3.
163
Cf. O Par, 14 de fevereiro de 1898, p. 3; e O Par, 21 de janeiro de 1898, p. 2.
164
O Par, 3 de janeiro de 1898, p. 1.
62
O Bar Paraense, era um dos mais tradicionais e antigos da cidade, tanto que o
primeiro anncio deste, por ns encontrado, data de 1910. Em 14 de fevereiro de 1931,
cerca de 21 anos depois, l estava o Bar Paraense anunciando a realizao de seu
Carnaval.166 Ainda, no mesmo ano e ms, alm da garantia de uma boa diverso com
jazz band, o Bar Paraense anunciava ao pblico o servio de bebidas como o
schopp,167 bem como um: Menu variado, destacando-se saborosos patos no
tucupi.168 No mesmo ms, alis, o dito estabelecimento noutro anncio enfatizava que
seria servido: Gorda paca no tucupy e o saboroso Bratwurst (salsicha). 169 Notando-se,
portanto, um cardpio bastante variado incluindo pratos internacionais e outros com
elementos mais amaznicos como o tucupi.
cafs da cidade, igualmente afirmava que a hilariante revista Depois no chora era
o nico divertimento aproveitvel do carnaval daquele ano. Desse modo, conclua o
anunciante: No ir ao SOUSA BAR lesar o bom gosto, at porque, alm das
atraes artsticas, se tinha ainda Menu extraordinrio com SCHOPP GELADINHO
Doces e guaran.170
170
Folha do Norte, 7 de fevereiro de 1931, p. 4.
171
Folha do Norte, 7 de fevereiro de 1931, p. 5
172
Folha do Norte, 14 de fevereiro de 1931, p. 5
173
Folha do Norte, 8 de janeiro de 1950, p. 8.
64
A cidade de Belm teve vrias padarias e confeitarias abertas todos os dias para
vender po, bem como biscoitos, manteiga e demais produtos, sendo tambm as
confeitarias espaos para se tomar caf, conversar e socializar. Nos ltimos vinte anos
do sculo XIX, o nmero de anncios de confeitarias era maior do que nas dcadas de
1850 e 1860. No jornal Dirio do Gram Par, por exemplo, em 1885, a padaria e
confeitaria Vienense, de propriedade de Ponte e Souza & Companhia, comunicava ao
seu ilustrado pblico desta capital e do interior que a confeitaria contava com um
habilidoso confeiteiro madrileno, podendo efetuar toda sorte de encomenda. 175 O
proprietrio ainda fazia propaganda do po que era vendido que, segundo anncio, no
tinha qualquer gosto cido.176
ainda o privilgio de oferecer o aos seus clientes uma esplendida carta escolhida pelo
hbil chefe da arte culinria, chegado ultimamente da capital Federal. Ainda, segundo
o anncio publicado no Dirio de Notcias, o Caf Carneiro alm de ter um chefe de
culinria vindo de fora, apresentava outras novidades como a venda de gelo e bebidas
geladas.177 Em finais do sculo XIX, anncios de bebidas geladas e sorvetes comeam
a aparecer nos jornais de Belm, como aquele mandado publicar pelo Caf Riche, que
em 1898 afirmava ter sempre esplendido e variado sortimento de sorvetes e
refrescos.178 Buscando oferecer aos seus clientes tudo que bom e suavisante, o
Caf Riche dispunha de apreciveis sorvetes de tapereb, araa e cupuass, havendo
igualmente anunciado que tinha de todas as frutas.179 Ao que parece, os sorvetes eram
um dos pontos altos da casa, sendo garantido que eram feitos das melhores fructas do
Par, havendo ainda a venda de Cerveja e outras bebidas geladas.180 Neste sentido,
noutro anncio, O Caf Riche oferecia aos seus fregueses, em 1898, alm dum grande
sortimento de refrescos e bebidas, sorvetes de araa, maracuj, caju e mangaba. 181 Os
anncios desse Caf querem sugerir que era um espao frequentado pelas camadas
mdias e grupos mais abastados na capital paraense.182
(...) chocolate especial com creme, leite puro, fervido, gelado quente
ou ao natural; refrescos de fructas de todas as qualidades; caf feito na
ocasio, laranjada e limonada, e xaropes; sandwichs, empadinhas,
pasteis, doces de todas as qualidades. Cerveja nacional clara ou
escura, sendo a sua especialidade, SABOROSA CANJA DE
GALLINHA, Sorvetes - De creme e de fructas de todas as qualidades
taes como: ara, ananaz, maracuj, caj, graviola, cupuass, tapereb
e bacury. Cremes -De baunilbha, chocolate, leite, ovos, etc. Vinhos de
Collares e Verde, recebidos directamente de javrader. Grande
sortimento de amndoas e bombons. Especialidade em doces finos.183
177
Dirio do Gram-Par, 1891, p. 3.
178
O Par,16 de janeiro de 1898, p. 3.
179
O Par, 5 de fevereiro de 1898, p. 2.
180
O Par, 12 de fevereiro de 1898, p. 1.
181
O Par, 2 de fevereiro de 1898, p. 1.
182
Incontestavelmente o Caf Riche um dos principais centros da sociedade paraense. O
Par. 15 de dezembro de 1897, p. 2.
183
Folha do Norte, 12 de janeiro de 1910, p. 4.
66
184
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1929, p. 4.
185
Havendo outras confeitarias, inclusive, na mesma rua, mas com o nome de Gteau des Rois,
na casa francesa Raunier e, um pouco mais adiante, na sua congnere, a casa Deroche e Ca.
BRUIT, Hctor Hermn; EL-KAREH, Almir Chaiban. Cozinhar e comer, em casa e na rua:
culinria e gastronomia na Corte do Imprio do Brasil. In: Estudos Histricos, n. 33, 2004, p.
14.
186
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1929, p. 4.
187
As vivas eram pastis, geralmente vendidos ao lado de pastis de Santa Clara e de outras
qualidades de pastis. EL-KARECH. op. cit., p. 11.
188
Folha do Norte, 4 de janeiro de 1950, p. 5.
67
189
Folha do Norte, 5 de maio de 1949, p. 5.
190
Esta rua anteriormente foi intitulada de da Cruz das Almas. CRUZ, op. cit., p. 37.
191
Folha do Norte, 7 de janeiro de 1950, p. 5.
192
A rua Carlos Gomes foi anteriormente segundo Ernesto Cruz intitulada de Da Pacincia.
CRUZ, op. cit., p. 38.
193
Folha do Norte, 5 de janeiro de 1950, p. 5; Folha do Norte, 6 de janeiro de 1950, p. 5.
68
Para alm das padarias, confeitarias e cafs, os doces e biscoitos podiam ser
encontrados em estabelecimentos fabris, que no s podiam vender seus produtos
diretamente aos consumidores, no varejo, como tambm forneciam os mesmos no
atacado para estabelecimentos comerciais da capital e do interior do Par.197 Desde as
ltimas dcadas do sculo XIX houve o surgimento de algumas fbricas ligadas aos
setores de bebidas e alimentos. Em 1862, Belm contava com as seguintes fbricas: uma
de vinho caju, uma de chocolate, trs de beneficiamento de arroz e uma de caf. 198 Na
ltima dcada desse sculo, segundo Sarges, surgiram 25 fbricas, entre elas a Palmeira
(1892) que fabricava biscoitos, pes e caramelos, entre outros produtos; sendo que, no
incio da centria seguinte, foram inauguradas a fbrica de cerveja Paraense em 1905 e
uma de licor em 1906, por exemplo.199 O viajante Walle, alis, enfatizou que em grau
de importncia econmica em primeiro lugar estava a Cervejaria Paraense, com um
capital de 1.000 contos, e cujo valor hoje supera 2.000 contos (3.500.000 francos),
produzindo um dividendo anual mdio de cerca de 300 contos de ris, ou seja, 525.000
francos, informando ainda que, em segundo lugar, vinha em seguida: a Real Fbrica
194
Folha do Norte, 27 de abril de 1910, p. 2.
195
Folha do Norte., 27 de setembro de 1919, p. 1
196
Folha do Norte, 27 de setembro de 1919, p. 1.
197
Sobre a memria da Indstria Paraense Cf. MOURO, op. cit.
198
SARGES, op. cit., p. 20.
199
SARGES. op. cit., p. 21.
69
200
WALLE, op. cit., p. 313.
201
Folha do Norte, 7 de janeiro de 1920, p. 6.
202
Lcio Flavio Pinto, visando apontar a importncia da Fbrica Palmeira e de sua confeitaria,
a compara, em termos de importncia para Belm, com a Confeitaria Colombo do Rio de
Janeiro. Cf. PINTO, op. cit., p. 44 e 45.
203
Folha do Norte, 24 de fevereiro de 1950, p. 4.
204
Cf. PINTO, op. cit., p.37.
205
PINTO, op. cit., p. 37.
206
Folha do Norte, 4 de janeiro de 1929, p. 4.
70
207
Folha do Norte, 15 de abril de 1949, p. 5
208
A Avenida Gentil Bittencourt era a antiga Estrada da Constituio. CRUZ, op. cit., p. 79.
209
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1950, p. 5.
210
VILHENA, Sandra Helena Ferreira. Belm: o abastecimento de gneros alimentcios,
atravs das mercearias (1890-1900). Belm: Universidade Federal do Par. Monografia de
Graduao em Histria, 1990. p. 12.
211
VILHENA, op. cit., p. 19.
71
por no precisarem chamar freguesia, j que a que existia era suficiente.212 Na capital
paraense, portanto, existiram mercearias que atendiam um pblico mais elitizado
oferecendo grande quantidade de produtos importados como vinhos, figos, passas,
amndoas e entre outros. Inclusive, a Mercearia Amaznia, na Rua Nova de Santana,213
na ltima dcada do sculo XIX dispunha de caviar da Rssia e foiogras. 214 Da
mesma forma que, havia tambm aquelas que vendiam produtos mais baratos e dirios
como arroz, caf, a farinha, querosene, feijo entre outros.215
No final do sculo XIX, o Jaboty era uma entre vrias mercearias de Belm, na
Rua dos Martyres, que, em 1894, no jornal A Ptria Paraense anunciava cervejas de
todas as marcas, alm de um bom vinho verde e de um bom fiambre para os
domingos. Ao mesmo tempo que oferecia aos fregueses tabacos e charutos de diversas
qualidades. 216Alm desses produtos, as mercearias tambm poderiam vender variedade
de doces e refrescos, sorvetes, doces, caldo de cana, caf, leite fresco ou coalhado. 217
Geralmente, tambm, nas mercearias vendiam-se secos e molhados, enfim produtos das
mais variadas origens e preos.
212
VILHENA, op. cit., p. 35.
213
Segundo Ernesto Cruz, a rua Nova de Santana tirava a sua denominao da Igreja, que
ficava adjacente; a rua do Paixo era homenagem ao portugus deste apelido, Antnio
Rodrigues Martins. CRUZ, op. cit., p. 16.
214
Dirio de Notcias, 05 de janeiro de 1893, p. 3.
215
Estas mercearias segundo Vilhena por terem como clientes pessoas de baixa renda e para
poderem ter sada de seus produtos, vendiam em pequenas quantidades, j que o seu fregus
no tinha condies de comprar em excesso, somente adquiria o necessrio para a sua
subsistncia. Esse tipo de venda era denominado de a retalho, ou seja, uma lata de leo, era
vendida em pores, assim como o querosene, que era muito utilizado na poca, era comprado
por medidas. Os taberneiros no facilitavam a venda, devido quererem fazer caridade, mas pelo
motivo que se no vendessem dessa maneira, poderiam falir, logo sua freguesia s poderia
consumir diante dessas condies (...) Os taberneiros tambm vendiam fiado, o fregus pagava
somente quando recebesse seu dinheiro, normalmente no final do ms, ou de quinze em quinze
dias, pagava ao comerciante o que lhe devia. VILHENA, op. cit., p. 34/35.
216
A Ptria Paraense, 24 de junho de 1894, p. 2.
217
A Ptria Paraense, 18 de julho de 1894, p. 1.
72
de tomate de 1 quilo cada, e vrios ovos.218 No entanto, graas a roubos desse tipo, para
infelicidade do queixoso senhor Verdelho, possvel conhecer e compreender a
importncia das mercearias no somente como espao de venda de itens mais caros
como vinhos e cervejas importadas, mas tambm como lugar no qual se podia comprar
produtos diversos para o abastecimento da cozinha e da casa. Afinal, numa poca em
que no existiam supermercados, as mercearias cumpriam de certa forma esse papel.
Como era o caso da Mercearia Aoriana de Josino de Ponte Botelho & C., localizada
Rua de Belm, nmero 24, a qual tinha Sortimento completo de comestveis, secos e
molhados. Depsitos de louas de barro da terra, filtros, talhas, potes, bulhar, moringas
e mais artigos.219 Em 12 de janeiro de 1920, a Folha do Norte anunciava um leilo de
uma mercearia localizada na Rua Dr. Assis, canto com a Travessa de Alenquer. Bem
abastecida, a loja contava depsito para querosene, cinco copos de armao, balana
com peso e, algo muito importante, um cofre portuguez com segredo, alm de um
completo sortimento de mercadorias, destacando-se entre elas: vinhos licores,
vermouths, cognaes, cervejas, conservas, charque, arroz, milho, caf, acar, vinhos e
cigarros. Enfim, tais notcias ou anncios, nos permite perceber os hbitos alimentares
da populao que iam desde o consumo de peixe da regio como o pirarucu at ao
consumo de massa de tomate. 220
218
Folha do Norte, 27 de setembro de 1919, p. 3.
219
Apud Vilhena. Esta autora nos informa que a venda no s de gneros alimentcios e
bebidas, mas de artigos domsticos, como louas, entre outros era parte do comrcio das
mercearias. VILHENA, op. cit., p. 37.
220
Folha do Norte, 12 de janeiro de 1920, p. 5.
221
TELEGINSKI, Neli Maria. Bodegas e Bodegueiros de IRATI-PR (1900-1950). Disponvel
em: www.historiadaalimentao.ufpr.br. Consulta em 26 de abril de 2015.
222
O Par, 3 de janeiro de 1898, p. 3.
73
223
O Par, 12 de dezembro de 1897, p. 3.
224
A Voz do caixeiro, 30 de maro de 1890, p. 3.
225
A Voz do caixeiro, 3 de julho de 1894, p. 3.
226
A Voz do caixeiro, 28 de setembro de 1890, p. 3.
227
O Par, 15 de dezembro de 1897, p. 4. Em janeiro de 1898, a Casa Pekin faz anuncio de
cumprimentos e felicitaes aos seus fregueses pela passagem do Ano Novo: Casa Pekin
jubilosamente cumprimenta e felicita a sua amvel freguezia pela boa sada e aupiciosa entrada
de anno. Tal anncio sugere as estratgias comerciais que as casas importadoras vo
construindo na cidade de Belm e a relao dessas com os seus compradores. O Par, 1 de
janeiro de 1898, p. 2.
74
Eixo, o que no foi suficiente para impedir a sua priso pouco mais de um ms depois
de seu manifesto, acusado de envolvimento com o inimigo. Matuite Guemba havia sido
dono da Sorveteria Japoneza, ainda que no momento de sua priso j no era mais
proprietrio do dito estabelecimento. Mas, o momento da Segunda Guerra Mundial
trouxe consequncias para a cidade de Belm para alm das prises, sendo uma poca
de falta de alimentos, em especial aqueles que eram tidos de primeira necessidade como
batata, trigo e acar. 228
J adentrando no sculo XX, mesmo no perodo em que o estado do Par
experimentava os problemas advindos com a crise da borracha, as casas comerciais com
produtos importados se mantinham como uma parte importante do comrcio da capital
paraense. Um exemplo disso era Casa Carvalhaes, uma das mais antigas de seu ramo,
que nos meses finais do ano de 1919 anunciava para o natal admirvel exposio de
refrescos, prprios para presentes do Natal, Anno Bom e Reis alm de elegantes e
mimosas cestas com passas, figos recheiados com amndoas, passas fantasia, uvas
hispanholas, castanhas e queijos.229 Um pouco antes, em outubro, a Folha do Norte, no
contexto do perodo festivo do Crio, informava aos clientes a oferta de produtos como:
uvas, mas, peras, ameixas, figos imperiais e passas, bolachas americanas, fiambres,
acepipes vrios, salsichas franckfort, lnguas preparadas, plumpoding, azeitonas
recheadas, farinhas alimenticias e guas.230
228
Cf. ALVES, Alexandre Rodrigues. As mdias impressas em Belm durante a Segunda
Guerra Mundial e sua influncia no cotidiano da cidade. (1939-1945). Belm: Faculdade de
Histria/Instituto de Filosofia e Cincias Humanas/UFPA, 2014, p. 44 e 45.
229
Folha do Norte, 15 de outubro de 1919, p. 6.
230
Folha do Norte, 15 de outubro de 1919, p. 5.
231
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p. 88.
232
Pensamos aqui que determinados alimentos tinham um poder simblico pelo seu preo e
origem. Dentro dessa perspectiva, a partir de Bourdieu, pensamos a alimentao como
instrumento de conhecimento e de construo do mundo e das suas formas simblicas. Ver:
BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
75
contava com produtos de qualidade e de valor elevado. Havendo tambm outras firmas
que vendiam produtos importados, tais como a Casa Transmontana que, em 1910,
vendia: Peras, maas e uvas americanas; ou, ainda, no mesmo ano, a Casa Carioca,
localizada no Largo das Mercs, que anunciava a oferta de mas americanas.233
233
Folha do Norte, 13 de janeiro de 1910, p. 5.
234
Folha do Norte, 13 de setembro de 1919, p. 5.
235
Sobre o assunto ver: SEVCENKO, Nicolau. O preldio republicano, astcias da ordem e
iluses do progresso. In: Histria da Vida Privada no Brasil. Vol. 3. Repblica: da Belle
poque a Era do Rdio. (orgs) SEVCENKO, Nicolau & NOVAIS, Fernando A. So Paulo:
Companhia das Letras. 1998.
76
rpido236. Neste sentido, nos meses de janeiro e abril de 1949, a casa O Vesvio,
localizada na Avenida 15 de Agosto esquina com a Rua Manoel Barata, vendia em seu
armazm banha americana, bem como dispunha de vrios outros gneros: mas, peras,
uvas e queijos de todas as qualidades, inclusive queijo Catupiry fresco. Informando
tambm em seu anncio que o dito estabelecimento j atendia pelo telefone de nmero
4934. A Casa Sport, por sua vez, tambm em abril de 1949, anunciava atender pelo
telefone.237
Em 1949, a Casa Sport tinha para vender os seguintes produtos para abastecer as
mesas paraenses durante a Semana Santa Lagostas Frescas, Bacalhau Extra Lage,
Azeite L.V.S. (o melhor do mundo), uvas-peras, peras, mas. Na passagem de tempo
em que encontramos a Casa Sport possvel entender que ela continuava
comercializando produtos importados. Ao longo desse perodo, percebemos tambm
que algumas frutas importadas vo se tornando comuns na mesa nos dias considerados
festivos. Em pocas como natal, ano novo e a semana santa os estabelecimentos passam
a oferecer em maior quantidade essas frutas. Enfim, parte dos produtos importados era
muitas vezes consumida em festas ou momentos tidos como importantes, portanto,
alguns desses como as passas, azeitonas recheadas e frutas no tinham consumo
cotidiano, sendo restritas a pessoas que detinham poder econmico para comprar tais
produtos o somente podiam faz-lo em determinadas ocasies especiais. Por outro lado,
a importao de determinados produtos tambm se dava pelo vis do marcador social de
origem de sua principal clientela, ou seja, muitas das famlias que tinham condies e
podiam comprar os produtos estrangeiros, eram portugueses, espanhis ou
descendentes.238 Assim, determinados produtos vendidos nestes estabelecimentos
vinham para atender as exigncias dos estrangeiros que na capital fixavam residncia
sem, contudo, perder de vista suas razes.
236
Lacerda aponta que no incio do sculo XX no foi incomum problemas com vapores, que
atrasavam seus horrios estragando muitos produtos como charque e causando prejuzos aos
comrcios e aos passageiros. Cf. LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no
Par: faces da sobrevivncia (1889-1916). Belm: Ed. Aa/Programa de Ps-graduao em
Histria Social da Amaznia (UFPA)/ Centro de Memria da Amaznia (UFPA), 2010.
237
Folha do Norte, 27 de abril de 1949, p. 2; Folha do Norte, 20 de janeiro de 1950, p. 5; Folha
do Norte, 12 de abril de 1949, p. 2.
238
MACDO, op. cit., p. 46. Coelho nos informa que na dcada de 1870, cerca de 30% da
populao de Belm era constituda por portugueses. O que justificava a importao expressiva
de produtos portugueses como bacalhau, castanhas, nozes, vinho e outros. COELHO, Geraldo
Mrtires. O violino de Ingres. Leituras de histria cultural. Belm: Paka-Tatu, 2005, p. 354.
77
239
ALVES, op. cit., p. 11, 44 e 45.
240
Folha do Norte, 6 de abril de 1949, p. 5.
241
Folha do Norte, 8 de abril de 1949, p. 2; 19 de abril de 1949, p. 2; 22 de abril de 1949, p. 2;
27 de abril de 1949, p. 3; 18 de maio de 1949, p. 3; 11 de janeiro de 1950, p. 3.
78
negcios das mercearias percebemos que esses espaos diversificam a venda dos
produtos, incluindo, por exemplo, a tapioca, A mercearia Tapuia, situada na
Avenida Senador Lemos, anunciava que tinha para vender tapioca de primeira
qualidade a preos mdicos, com abatimentos para revendedores. Produto que no
encontramos em anncios anteriores do sculo XX sendo vendido nesses espaos.242
242
Folha do Norte, 17 de fevereiro de 1959, p. 7.
243
O Par, 3 de fevereiro de 1898, p. 2.
244
Folha do Norte, 11 de fevereiro de 1910, p. 3.
245
Folha do Norte, 19 de fevereiro de 1910, p. 3.
79
246
Folha do Norte, 9 de janeiro de 1929, p. 5.
247
PINTO, Lcio Flvio. Memria do Cotidiano, vol. 3. Belm: 2010, p. 10.
248
PINTO, op. cit., p. 25.
249
SILVA, Fabrcio Herberth Teixeira da. Nas tramas da Escassez: o comrcio e a poltica
de abastecimento de carnes verdes em Belm (1897-1909). So Paulo: Alameda, 2013, p. 246 e
247.
250
SILVA, op. cit., p. 247.
251
SILVA, op. cit., p. 248.
80
252
O Par, 4 de janeiro de 1898, p. 3.
253
O Par, 5 de janeiro de 1898, p. 1.
254
O Par, 5 de janeiro de 1898, p.1.
255
Folha do Norte, 24 de setembro de 1919, p. 5. Folha do Norte, 7 de outubro de 1912, p. 5.
81
encobrem, davam a tnica daquele espao.256 Por outro lado, Lindenberg e Godinho
pareciam igualmente fascinados com o Mercado Municipal, seus produtos e movimento
quando assim fizeram a sua descrio:
256
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p. 114.
257
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p. 114.
258
ORICO, Osvaldo. Cozinha Amaznica. Belm: Universidade Federal do Par, 1972, p. 51.
259
No Rio de Janeiro tnhamos de forma frequente as quitandeiras como nos informa Kidder:
As quitandeiras so as vendedoras de verduras, laranjas, goiabas, maracujs ou frutas da flor
da paixo, mangas, doces, cana-de-acar, brinquedos etc (...). Apud ACAYABA, Marlene
Milan; ZERON, Carlos Alberto (Orgs.). Usos e costumes da Casa Brasileira. So Paulo: Museu
da Casa Brasileira, 2000.
260
Segundo Beltro: pelos cantos (esquinas) era possvel ver vendedoras de frutas, que, com
seus tabuleiros ou cestos cabea, desafiavam sol e chuva para oferecer seus frutos cantando
merca a boa laranja! lanava uma; oh, rica banana da hora! dizia outra. Nos anos 60 do
sculo XX os vendedores de frutas eram homens e, como sempre traziam consigo bananas, eram
chamados de bananeiros, mercavam pelas ruas eram chamados meu freguez pelos clientes.
BELTRO, Jane Felipe. A andarilha em Belm, Cidade do Par oitocentista. In: BELTRO,
Jane Felipe; VIEIRA JNIOR, Antonio Otaviano (Orgs.). Conhea Belm, co-memore o Par.
Belm: EDUFPA, 2008, p. 68.
82
261
Apud ROCQUE, Carlos. Histria de A Provncia do Par. Belm: Mitograph Editora LTDA,
sem data, p. 22.
262
A Rua das Flores atualmente denominada de Lauro Sodr. CRUZ, op. cit., p. 37.
263
CARVALHO, Marques de. Hortncia. Belm: Cejup/Secult, 1997, p. 27. Herbert H. Smith
no livro Brazil: The Amazon and the Coast, em 1879, retrata uma amassadeira de aa e seus
fregueses e ao que parece ela tem seu ponto em um lugar bastante movimentado, uma espcie
de mercado. Dentro da tenda, ou melhor, um puxado de telha, est a amassadeira a fazer seu
servio e em volta tem-se um negro tomando a bebida, ao fundo um homem branco segurando
algo que parece uma xcara ou tigela, sinal de que a bebida era apreciada por todos os
segmentos da sociedade. A frente possvel ver vrios potes de barro que provavelmente
continham aa e ainda uma mulher negra a lavar o que parece uma vasilha, provavelmente
tambm trabalhadora do negcio. Ao olhar com mais ateno, aparece ao lado direito uma negra
quitandeira que leva na cabea venda abacaxis. Apud BASTOS, Vera Burlamaque;
CRISPINO, Lus Carlos Bassalo & TOLEDO, Peter Man (Orgs). As origens do Museu
Paraense Emlio Goeldi: aspectos histricos e Iconograficos (1860-1921). Belm: Paka-Tatu,
2006, p. 99.
264
A rua 28 de setembro era anteriormente denominada de rua dos Mrtires. CRUZ, op. cit., p.
38.
265
Virou a frege: Perturbou. Anarquizou. Viraram a frege o baile do compadre Caninana. No
ficou um copo. Diz que foram os embiricicas . MORAIS, Raimundo. O meu dicionrio de
cousas da Amaznia. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2013, p. 169.
266
O Par, 16 de setembro de 1919, p. 2.
83
267
Pintor paraense, nascido em Camet, em 1896, foi autor de vrias telas e realizou inmeras
exposies de seus quadros em promoes anuais. Foi professor de desenho da Escola Normal
do Par, tendo sua vida sempre atrelada a pintura; deu contribuio ainda como caricaturista,
ilustrando as pginas de diversos rgos da imprensa paraense. Faleceu em 1972.
268
O termo Porta Larga, me parece que estava relacionado ao mundo do comrcio, pois, ao
longo do sculo XIX, encontrei vrios anncios que traziam tal denominao. Em 1881, por
exemplo, o senhor Pedro Alexandrino Marques fazia anncio de sua oficina de barbeiro e
cabeleireiro, prxima a escola da Maonaria, chamada Porta Larga, aonde continuava a servir
com perfeio e asseio seus servios. Em outro, a Porta Larga era um estabelecimento
localizado na Rua Padre Prudncio n. 2, que fazia a venda de cigarros de mbar, de carteiras
para dinheiro e outros produtos. Cf. O Par, 12 de julho de 1881, p. 2.
84
269
MUSEU DE ARTE DE BELM (PAR). Janelas do Passado, espelhos do presente: Belm
do Par, arte, imagem e histria. Aldrin Moura de Figueiredo Curadoria. Belm: Prefeitura
Municipal de Belm-FUMBEL, 2011, p. 72.
270
Folha do Norte, 6 de abril de 1950, p. 11.
271
De acordo com Figueiredo Adrelino Cotta demarca bem a posio dos sujeitos sociais e seu
lugar na sociedade, pois, como ressalta Figueiredo: Uma mulher gorda serve tacac para jovens
magras, sentadas no banco, vestidas em traje de passeio. Cf. FIGUEIREDO, op.cit., p .72.
272
Sobre a tela de Antonieta Feio ver trabalho de FERNANDES, Caroline Silva. O Moderno em
aberto: o mundo das artes em Belm do Par e a pintura de Antonieta Santos Feio. Instituto de
Arte do Par. Belm: 2013.
85
aspecto sobressai-se na tela quando possvel notar a brancura no centro da mesa e por
fim os utenslios para o consumo da bebida, as cuias postas ao lado das panelas. Tudo
pronto para ser servido ao fregus que, por sua vez, no aparece, estando talvez do outro
lado da tela olhando e sendo olhado pela mulher da barraca do tacac, cabocla de
feies indgenas com flores de jasmim ao cabelo.
Fonte: Tela Vendedora de Tacac de Antonieta Santos Feio, 1937. Museu de Arte de Belm.
86
Ainda hoje nas ruas de Belm, possvel comprar e tomar o tacac em cuias,
sentados em cadeiras ou bancos, no meio da rua, melhor dizendo ocupando parte das
caladas, sendo servidos pelas tacacazeiras que em determinados lugares, cujos pontos
j so fixos, montam suas barracas. Da mesma forma que, tambm em alguns lugares,
outras mulheres fazem do preparo e da venda de comidas como o vatap, o caruru, a
manioba ou cozidos o seu sustento e de suas famlias, alimentando as pessoas. Nas
ruas trabalham, preparando e vendendo comidas e bebidas tambm, tais quais as antigas
quitandeiras, havendo, no entanto, outros trabalhadores que nas ruas viviam de seu
comrcio ambulante de alimentos.
Durante o ano de 1898, o teatro paraense seria laureado com uma revista de
costumes paraenses, escrita pelo consagrado autor teatral Arthunio Vieira. A pea, que,
naquele momento, estava na fase dos ensaios, compreendia trs atos, com 32 nmeros
de msica, retratando o cotidiano da cidade de Belm. Segundo Aristarcho, articulista
dO Par, a pea Belm...de Bicycleta seria um sucesso por conta da linguagem simples
que seria utilizada. Ainda de acordo com Aristarcho, a pea teria como personagens:
Jos Paruar; a Intendncia; o Ciclismo; a Porca; um Portugus; um Maranhense; um
Cearense; um Espanhol; um Italiano; a Luz Eltrica Paraense; um Padeiro; um
Hoteleiro; um Peixeiro; um Bucheiro; um Sorveteiro; um Cocheiro; um Guarda
Municipal; um Galinheiro; um Seringueiro; o Caf-Beiro; o Aa; o Tacac; a Histria;
os Sonhos; os Ladres; os Vendedores Ambulantes; Mulatos; e estabelecimentos
comerciais como a Formosa Paraense; a Paris nAmrica; e Bom March.273 Imaginar
o que cada personagem diria em cena, nas suas falas, seria ento visualizar a cidade de
Belm daquele contexto. De fato, apesar de a pea ter um carter fictcio, a mesma era a
representao das entidades pblicas e particulares, dos hbitos alimentares e,
particularmente, dos diversos sujeitos sociais que andavam todos os dias pela cidade de
Belm, ganhando certo destaque os sujeitos envolvidos de alguma forma com a
alimentao.
273
O Par, 9 de setembro de 1898, p. 2.
87
274
SARGES, op. cit., p. 139.
275
O Par, 28 de abril de 1869, p. 2.
276
O Par, 28 de abril de 1869, p. 2.
277
O Par, 9 de fevereiro de 1898, p. 2. O peixeiro Ado Jos da Silva Tavares foi multado e
preso por infraco do art. 251 do cdigo de posturas. No mesmo dia, foi preso Manuel
Agostinho Ferreira Brando, s 7 horas da manh, pelo subprefeito do primeiro distrito, por ser
encontrado exercendo o mister de atravessador no Ver-o-Peso. Cf. O Par, 10 de fevereiro de
1898, p. 2; O Par, 9 de fevereiro de 1898, p. 2; Folha do Norte, 12 de fevereiro de 1919, p. 5.
278
O Par, 28 de abril de 1869, p. 2.
279
Podemos aqui pensar o ator nas suas relaes interpessoais e agindo dentro de um
conjunto de regras e na sua pluralidade. IMZCOZ, Jos Maria. Actores, redes, processos:
refleiones para uma historia ms global. Revista da Faculdade de Letras. Histria. III Srie, vol.
5, 2004, p. 115-140.
88
280
SILVA, op. cit., p. 238.
281
MATOS, Maria Izilda Santos. Na trama urbana: do poder pblico, do privado, do privado e
do ntimo. In: Projeto de Histria, n. 1981, 1981.
282
Cancela faz uso desta denominao ao tratar destes trabalhadores onde eles eram caixeiros,
alfaiates, sapateiros, pedreiros, carapinas, artistas e pessoas que viviam de agncia, ou seja, que
realizavam servios no regulares, temporrios como os de carregador, vendedor e proprietrios
de pequenos negcios. CANCELA Cristina Donza. Uma cidade...muitas cidades: Belm na
economia da borracha. In: Conhea a Belm, co-memore o Par. (orgs) Jane Felipe Beltro,
Antnio Otaviano Vieira Junior. Belm: EDUFPA, 2008, p. 82.
283
SILVA, op. cit., p. 238 e 239. Em relao questo semelhante no Rio de Janeiro Juliana
Souza enfatiza que com opes restritas e disputadas, muitos procuravam no comercio a varejo
de alimentos uma forma de ganhar a vida. Afinal de contas, o Rio de Janeiro era um grande
centro consumidor. SOUZA, Juliana Teixeira. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos
comerciantes na Corte Imperial (1870-1880). In: Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura
no Rio de Janeiro e em So Paulo, sculos XIX e XX. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2009, p. 190
284
O Par, 19 de janeiro de 1898, p. 4.
89
A fala do Sr. Cordeiro foi apoiada pelo parlamentar Sabino da Luz que enfatizou
que os garapeiros eram trabalhadores que, para fazerem seu negcio, acordavam s 4
horas da madrugada. O Sr. Cordeiro de Castro tambm demonstrava preocupao com
os vendedores de caf, porque segundo ele estes homens traziam suas bancas para certos
lugares, como o Ver-o-Peso, apenas porque precisavam fazer os seus negcios.
Acontece que havia por parte das autoridades municipais um posicionamento contrrio
a esse comrcio ambulante de alimentos, porque se alegava que os vendedores e
consumidores deixavam muita sujeira nas ruas por onde passavam.285 Todavia,
conforme sugere Cordeiro, no seria algo muito fcil conter tal comrcio ambulante,
uma vez que tinha entre os fregueses de caf e garapa at mesmo os guardas
municipais, de quem se esperava ordenamento da cidade e aplicao de multas aos
vendedores ambulantes, mas que no raro eram vistos tomando caf nessas bancas
ambulantes.286
285
Segundo Lacerda & Sarges as autoridades acreditavam eu muitos desses vendedores eram
os responsveis pela sujeira e afeamento da cidade. LACERDA, Franciane & SARGES,
Maria de Nazar. De Herodes para Pilatos: violncia e poder na Belm da virada do sculo XIX
para o XX. Projeto Histria (PUC-SP), v. 38, p. 161-178, 2009, p. 166.
286
O Par, 19 de janeiro de 1898, p. 4.
287
O Par, 12 de dezembro de 1897, p. 3.
90
288
O Par, 15 de dezembro de 1897, p. 3.
289
O Par, 5 de janeiro de 1898, p. 2.
290
PECHMAN, Robert. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
291
O Par, 21 de janeiro de 1898, p. 4.
91
Alguns deles se lanavam como vendedores ambulantes por conta prpria, mas,
outros saam s ruas vendendo produtos alimentcios servio ou empregados de outras
pessoas, ainda que, ao longo das suas vidas, tais sujeitos prestassem servios os mais
diversos, inclusive trabalhando nas ruas. Um exemplo disso so as atividades exercidas
pelos imigrantes portugueses Jos da Silva e Joaquim da Costa que, na cidade de
Belm, j teriam sido carregadores, depois catraieiros, geleiros e por fim vendedores
de peixe na rua.293 Sendo possvel dizer que as relaes entre estes trabalhadores
versus patres e as polticas do governo no que tangia suas pessoas vo definir o papel
de cada um dentro do comrcio ambulante e do mercado de trabalho de Belm e os
conflitos em torno deles.
Na cidade de Belm um dos lugares onde havia uma maior presena de pessoas
envolvidas no trabalho de mercancia ambulante era o populoso e movimentado bairro
da Campina. Neste, era possvel encontrar carregadores, vendedores de comida e de
frutas, por exemplo, uma vez que grande parte das lojas, tabernas, casas de aviao e
outras l se encontravam, embora os vendedores ambulantes muitas vezes no fossem
vistos com bons olhos. Segundo Cancela Apinhados nas ruas estreitas dos bairros da
Cidade Velha e da Campina reclamava-se para que carregadores e vendedores no
atrapalhassem o passeio pblico dos cavalheiros.294
Em meados do sculo XX, por outro lado, Aramico Quintela Chaves pode
comprar dois vitelos na cidade de Belm, o fazendo na vacaria situada na baixa da
Avenida Serzedelo Corra,298 sendo comum em diversos bairros a presena das
vacarias, estabelecimentos que, apesar de sua denominao consagrada, tambm
compreendiam pequenas hortas e igualmente venda de flores. Embora seja verdade, a
criao de vacas para a produo diria de leite fosse a mais conhecida e importante
atividade desses estabelecimentos que, h bastante tempo, j faziam parte do cenrio de
Belm, quando no sculo XIX os leiteiros saam s ruas para vender seu produto in
295
Apud PINTO, op. cit., p. 22.
296
Cem anos antes, a questo j colocada em Belm: Em 1852, por exemplo, no dia 13 de
maro, na capital da provncia, o jornal O Monarchista Paraense publicou o pedido dos
taberneiros do 3 Distrito da capital que solicitava aos respectivos fiscais que redobrassem a
vigilncia sobre as quitandeiras, pois, eles que pagavam os direitos e impostos devidos para a
venda de produtos nacionais e importados saam no prejuzo j que aquelas alm de no
pagarem impostos sombra de meio dzia de panellas, vendem todas ou quase todas, os
mesmos gneros que os taberneiros o no podem fazer, sem a competente licena.... Cf.
MACDO, op. cit., p. 209. Souza consegue visualizar situao semelhante para a cidade do Rio
de Janeiro, de fins do sculo XIX, quando cinco comerciantes trataram, de se unir e encaminhar
uma representao municipalidade to logo forma instalados os primeiros chals nas
imediaes de seus estabelecimentos. O documento foi enviado ao presidente da Cmara
Municipal e fizeram questo de destacar entre seus mritos a sujeio aos regulamentos da
Cmara e da polcia, assim como o pagamento dos tributos exigidos ao Estado, na esperana de
que a municipalidade reconhecesse que eles cumpriam com suas obrigaes enquanto
governados. SOUZA, op. cit., p. 192.
297
Segundo Ernesto Cruz, o largo da Plvora fora assim chamado, por causa da casa onde se
guardavam a plvora e os armamentos das tropas coloniais. Atualmente Praa da Repblica.
CRUZ, op. cit., p. 16. Apud, PINTO, op. cit., p. 23.
298
A Avenida Serzedelo Corra anteriormente contou tambm com os seguintes nomes
Cemitrio e de So Vicente de Fora e Joo Pessoa. CRUZ, op. cit., p. 79.
93
natura, o que faziam acompanhado das vacas andando pelas ruas, de casa em casa,
ordenhando o animal na frente da freguesia.299
299
Sobre a relao dos animais dentro da cidade ver: VIEIRA, D.D. J. A cidade e os bichos.
Poder pblico, sociedade e animais em Belm (1892-1917). Belm: Programa de Ps-
Graduao em Histria Social da Amaznia, Dissertao de Mestrado, 2015.
300
O Par, 19 de janeiro de 1808, p. 2.
301
O Par, 24 de dezembro de 1897, p. 2.
302
O Par, 30 de dezembro de 1897, p. 2.
94
303
Arquivo Pblico do Estado do Par. Fundo: Secretria de Presidncia de Provncia. Cmara
Municipal de Belm. Abaixo-assinados. Belm do Par, 6 de junho de 1883.
304
Ibid, Ibidem; nota 43.
95
Chegaram para a loja Veado Branco, de Carreiro & Comp. um grande sortimento de
cestas de vime, prprias para conduzir po e que se vende muito barato.309 Os padeiros
ento no s trabalhavam no interior das padarias, fazendo o po, mas saam com
balaios310 cheios de pes vendendo nas ruas e nas portas das casas. No sculo XX, na
primeira metade, Segundo Fontes O padeiro saa com um balaio grande e outro
pequeno, levando quase sempre o filho como uma forma de aprendizagem da
profisso.311
309
Cf. Dirio do Gram-Par, 25 de junho de 1883, p. 3.
310
Morais nos diz que: Balaio-cesto raso de talas de palmeira, de boca mais larga que o fundo,
tecido caprichosamente colorido, onde se guardam costuras, roupas, miudezas, cousas
domsticas. MORAIS, Raimundo. O meu dicionrio de cousas da Amaznia. Braslia: Senado
Federal, 2013, p. 33.
311
FONTES, op. cit., p. 47.
312
A autora ainda enfatiza que essas situaes faziam com que os trabalhadores vissem seu
patro como explorador e que muitos trabalhadores se utilizavam do seu ofcio como moeda de
barganha e sempre tentavam tirar proveito prprio em suas relaes. Fosse levando consigo a
sua freguesia, sabotando o trabalho ou ainda utilizando restos de massa para fabricar
biscoitinhos que vendiam numa forma de aumentara renda eram os chamados biscates.
FONTES, Edilza Joana de Oliveira. O po nosso de cada dia: trabalhadores e indstria da
panificao e a legislao trabalhista. (Belm 1940-1954). p. 79.
313
Sobre trabalhadores que viviam no local de trabalho, Cancela nos informa que comumente,
encontram-se situaes em que os empregados de um estabelecimento comercial residiam no
mesmo local em que trabalhavam. Geralmente, as firmas funcionavam em prdios
assobrabados, cujos altos possuam quartos onde residiam os empregados, particularmente os
solteiros a exemplo, os casos dos padeiros Mariano e Gonalo ambos solteiros e estrangeiros,
este portugus e aquele espanhol. Os dois trabalhavam e residiam na padaria travessa So
Pedro, de propriedade de um cearense, Cosme, igualmente solteiro E ainda os caixeiros
Antonio Mello e Antonio Saldanha, que moravam nos altos do sobrado onde ficava o armazm
no qual trabalhavam e residiam juntamente com o patro dos mesmos, o portugus Joaquim.
CANCELA. op. cit., p. 129.
314
Folha do Norte, 19 de abril de 1950, p. 1.
97
(...) existe no nosso meio casas que obrigam cinco e seis empregados
a dormirem num estreito quarto, cuja atmosfera composta de
miasmas de pirarucu, carne e outros artigos em estado de putrefao;
ora, imaginem, dentro de algum tempo como no estar essa gente
que respira esta pestilenta atmosfera; ahi temos a raso das tysicas e
beri-beris de que so victimas os nossos colegas (...) Gostosamente lhe
comunico que muitas casas da Travessa Occidental do Mercado e Rua
da Repblica315 teem derespeitado a lei conservando as portas abertas,
aos domingos. Mucio Hasse. Belm, 13 de fevereiro de 90. 316
315
A rua da Repblica anteriormente a Proclamao da Repblica era denominada de rua do
Imperador. CRUZ, op. cit., p. 19.
316
A Voz do caixeiro, 23 de fevereiro de 1890, p. 4.
317
A Voz do caixeiro, 2 de maro de 1890, p.3
98
318
A Voz do caixeiro, 9 de fevereiro de 1890, p. 4
319
O Par, 21 de dezembro de 1897, p. 2. A situao dos caixeiros no Rio de Janeiro, de acordo
com Souza era semelhante, com um Cdigo de Posturas que permitia as lojas dedicadas
venda de alimentos permanecessem abertas desde o amanhecer at as 10 horas da noite, o que
deixava os caixeiros esgotados com longas jornadas de trabalho e quase sem folga por todos os
trabalhadores que atuavam nesse ramo do comrcio. Uma vez que as folgas dependiam do
humor, da boa vontade e do interesse do empregador, assim como da capacidade de persuaso
e mobilizao dos empregados. SOUZA, op. cit., p. 204.
99
CAPTULO II
320
A cebola que aparecer constante neste captulo, Da famlia das liliceas, uma carnuda
raiz vegetal usada em todo mundo para aromatizar pratos. Consumida desde a Antiguidade, no
se tem certeza de onde se originou. Aparecendo em inscries em hierglifos egpcios, em
snscrito, hebraico, grego e latim, deixa-nos supor que tenha sido cultivada em todos esses
diferentes lugares. GOMENSORO, p. 101.
321
A Semana. V. 2, n 59, 1919.
100
medicinal do que propriamente culinria. Ou seja, a culinria era pensada e vista como
parte da teraputica medicinal. Desde a Antiguidade os alimentos ganham classificaes
quanto a sua natureza do ponto de vista mdico de forma teraputica e nutricional nos
chamados tratados de medicina. Hipcrates desenvolveu a chamada fisiologia dos
humores, segundo a qual as doenas eram consequncia do desequilbrio dos quatro
humores corporais: sangue, linfa, blis amarela e blis negra, assim os alimentos eram
classificados segundo seus efeitos teraputico em seco, mido, quente e frio.323
(...) o sabor de muitas das receitas tradicionais tem por base, de todo
modo, o esforo de temperar os pratos mediante a utilizao de
ingredientes que se compensam, a fim de impedir a ameaa de
comprometimentos do equilbrio entre os humores.326
326
TREFZER, op. cit., p. 42.
327
TREFZER, op. cit., p. 42.
328
MAZZINI, Innocenzo. A alimentao e a medicina no mundo antigo. In: FLANDRIN, Jean-
Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs.). Histria da Alimentao. So Paulo: Estao
Liberdade, 1998, p. 258.
329
MAZZINI, op. cit., p. 258.
102
Neste captulo farei uma discusso sobre alguns dos livros de cozinha
importantes, desde aqueles surgidos na Europa, no sculo XV, at os livros editados no
Brasil, para se pensar o mundo da alimentao e, assim entender como as receitas que
chegam aos livros de cozinha brasileiros do sculo XIX so em grande medida
compilaes de receitas internacionais e, ainda, como tais receitas desde o sculo XV
vo sendo mestias medida que circulavam. importante tambm que se diga que as
mais antigas receitas de cozinha que conhecemos so mesopotmicas e datam do
segundo milnio a. C.334 J nos sculos IX e X, os livros de culinria muulmanos
eram de grande popularidade no mundo rabe. Segundo Miller, houve por este
momento um nascimento da culinria islmica medieval, considerando ainda que em
virtude do alto nvel de especializao em Bagd, os livros de culinria e etiqueta eram
extremamente populares.335 Tal realidade em parte, como demonstra Miller, ocorre em
virtude da posio de importante centro comercial que Bagd ocupava naquele
330
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 20.
331
FERRO, Joo Pedro. Arqueologia dos Hbitos Alimentares. Lisboa: Dom Quixote, 1996, p.
11.
332
TREFZER, op. cit., p. 14.
333
TREZFER, op. cit., p. 101.
334
FLANDRIN; MONTANARI, op. cit., p. 30.
335
MILLER, H. D. Os prazeres do consumo: o nascimento da culinria islmica medieval. In:
FREEDMAN, Paul (Org.). A histria do sabor. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2009, p.
143.
103
336
MILLER, op. cit., p. 144.
337
MILLER, op. cit., p. 145.
338
MILLER, op. cit., p. 145.
339
MILLER, op. cit., p. 148.
104
340
MILLER, op. cit., p. 149 e 150.
341
Segundo Ferro, Em Frana, (...) Em 1306, apareceu um Trait o lon enseigne faire et
appareiller et assaisonner toutes viandes selon divers usages de divers pays. Depois, em 1350,
surgiu o Grand Cuisiner de toute cuisine, obra annima, impressa em meados do sculo XVI.
FERRO, op. cit., p. 87.
342
TREFZER, op. cit., p. 21.
343
TREFZER, op. cit., p. 24.
344
TREFZER, op. cit., p. 24.
345
Aafro - condimento originrio da regio que, se prolonga da Europa at o Leste Asitico.
tempero de perfume e gosto delicados e caractersticos, que funciona como eficiente corante.
Na Antiguidade, j era conhecido por egpcios e judeus, sendo citado por Salomo no Cntico
dos cnticos. Na Roma Antiga, misturado ao vinho, era bebido como um afrodisaco.
GOMENSORO, op. cit., p. 12.
346
TREFZER, op. cit., p. 57.
105
347
TERFZER, op. cit., p. 138.
348
TERFZER, op. cit., p. 178.
349
Ibdem, nota 13.
350
Sobre Carme ver: KELLY, Ian. Carme: cozinheiro dos reis. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
351
Sobre Escoffier ver: JAMES, Kenneth. Escoffier: o rei dos chefs. So Paulo: Editora SENAC
So Paulo, 2008.
352
Haute cuisine Expresso francesa que caracteriza a comida preparada de maneira
elaborada, geralmente por um chef, e apresentada de forma elegante. Uma comida preparada de
forma perfeita. GOMENSORO, op. cit., p. 212.
353
TERFZER, op. cit., p. 210.
354
Em Portugal o primeiro manuscrito do gnero que se conhece o chamado Livro de
Cozinha da Infanta Dona Maria, cujo original se conserva na Biblioteca Nacional de Napoles,
106
influncia para as primeiras obras publicadas no Brasil, ainda no sculo XIX. Destaca-
se desse modo O Cozinheiro Imperial, livro datado de 1839, de autoria desconhecida
que apenas assinado com as inicias R. C. M,355 publicado pela editora Laemmert.
Outro livro foi o O Cozinheiro Nacional publicado pela editora B. L. Garnier, em 1882
e o Diccionrio do Doceiro Brasileiro de autoria do Dr. Antnio J. de S. Rego,
publicado em 1885, pela J. G. de Azevedo.356
erradamente designado por Trattato di cucina Spagnuolo. A sua designao corrente advm-lhe
do nome da proprietria, D. Maria de Portugal, filha do Infante D. Duarte e neta de D. Manuel I
que, em 1565 casou-se com Alexandre Farnsio, 3 duque de Parma, Piacenza e Gustalla,
levando portanto para a Itlia o pequeno tratado de cozinha, que a depois permaneceu. O
manuscrito foi escrito por 6 mos, provavelmente do final do sculo XV e incio do sculo XVI,
apresenta 59 receitas culinrias em cadernos de manjares de carne; manjares de ovos; manjares
de leite e manjares de conserva. Conta tambm com 7 receitas de carter medicinal. FERRO,
op. cit., p. 87 e 88.
355
Segundo Algranti, a ausncia de um estilo de cozinha e de instrues pessoais (...) leva a
supor que o autor do primeiro livro brasileiro de culinria no tenha sido um cozinheiro (...) o
fato de o autor se intitular chef pode ter sido uma forma de conferir respeitabilidade obra,
reafirmando uma antiga tradio na histria da edio dos livros de cozinha, cujas obras mais
divulgadas, desde a Idade Mdia, foram escritas por cozinheiros experientes a servio das
grandes casas de nobreza europeia. ALGRANTI, Leila M. O mestre Cuca Sem Nome. In:
www.revistadehistria.com.br. Acesso em 15 janeiro de 2016.
356
importante dizer que a partir de 1839, com a publicao do Cozinheiro Imperial, foram
publicadas ainda 13 outros livros voltados para cozinha e suas receitas. Destes 10 livros eram
sobre confeitaria e 3 sobre cozinha sendo 1 voltado para economia das famlias e outro
intitulado Cozinheiro Popular de 1900.
357
RODRIGUES, Domingos. Arte de Cozinha. {1680}. Rio de Janeiro: Editora Senac, 2008.
358
SILVA, Paula Pinto. Introduo do Livro. Arte de Cozinha. {1680}. Rio de Janeiro: Editora
Senac, 2008, p. 22.
359
COUTO, Cristiana Loureiro de Mendona. Alimentao no Brasil e em Portugal no sculo
XIX e o que os livros de cozinha revelam sobre as relaes entre colnia e metrpole.
Dissertao de Mestrado. PUC- So Paulo, 2003, p. 17.
107
360
COUTO, op. cit., p. 20.
361
COUTO, op. cit., p. 23.
362
A autora denominou esse estudo de culinria de papel uma vez que Por culinria de
papel entendemos todo material impresso sobre a arte de cozinhar e/ou relativo s diferentes
cozinhas e culinrias existentes. Nosso universo inclui vrios tipos de livro sobre culinria:
livros antigos e recentes, disponveis em livrarias e bibliotecas, fichrios ou cadernos de receitas
que se encontram ainda em muitas casas, conventos, lojas, orfanatos e prises, e inclusive livros
de crtica gastronmica. Nesse sentido, as autoras, em 2004, fizeram um mapeamento dos
livros de culinria em todo territrio brasileiro, sendo encontrados 907 livros em diversos
pontos de pesquisa, destes 50% j estavam com as datas de publicao identificadas. As autoras
afirmam ainda que as publicaes deste tipo de trabalho ganham um crescimento a partir dos
anos 1990. BARBOSA, LVIA & GOMES, Laura Graziela. Culinria de Papel. Revista Estudos
Histricos, n. 33, 2004, p.1 e 5.
363
BARBOSA & GOMES, op. cit., p. 2.
108
diferentes grupos sociais e a partir de cada grupo elas eram modificadas de acordo com
os hbitos culturais de cada grupo. As receitas e seus ingredientes como detentoras de
certos significados culturais de uma determinada sociedade. Assim, o livro de receita
como um disseminador de gostos alimentares, bem como num difusor de usos e
costumes.364 Ou ainda como ressalta Gonalves:
Nos livros de receitas tambm possvel encontrar essa mestiagem nos pratos e
ingredientes. Estes livros traduzem a cozinha escrita a qual, permite codificar, em
um repertorio estabelecido e reconhecido, as prticas e as tcnicas elaboradas em
determinada sociedade.367 E, desta forma, entender e identificar as misturas. Godoy
informa que ao menos dois processos compem as cozinhas colonizadas, uma seria
quando a cozinha do colonizador adotada pela populao local em detrimento de
prticas tradicionais, ocasionando uma transformao radical em seus hbitos
alimentares. No segundo, a cozinha do colonizador passa a ser apropriada por certas
camadas sociais, que a utilizam como um meio de diferenciao social e manuteno de
uma dada hierarquia.368
364
BARBOSA & GOMES, op. cit., p.4.
365
GONALVES, Jos Reginaldo Santos. A fome e o paladar: a antropologia nativa de Lus da
Cmara Cascudo. Revista Estudos Histricos, n. 33, 2004, p. 8.
366
BARBOSA & GOMES, op. cit., p. 4.
367
E antes que se diga que os livros de receitas so controversos porque no geral, traziam
apenas os pratos elaborados para as classes mais altas, ou seja, de uma cozinha da elite, vale
dizer que entre as classes dominantes e classes dominadas, no exclui uma convergncia
cotidiana dos gostos e dos hbitos. MONTANARI, op. cit., p. 63.
368
MACIEL, op. cit., p. 4.
109
O fato do livro ser referncia ao perodo antes das influncias do Novo Mundo,
mostrando como eram os pratos e receitas, ser importante para identificarmos a
mestiagem quando da analise dos livros brasileiros. Ter uma viso do mundo da
alimentao, em parte da Europa, antes das influncias oriundas do processo das
Grandes Navegaes, ratificam a ideia aqui defendida do processo de mestiagem e
muitas vezes de manuteno e trocas de sabores. Neste sentido, segundo Carneiro, as
369
Segundo Santos, existem outros manuscritos catales que esto relacionados cozinha
como o Livro Del Coch de la Canonja de Tarragona, de instrues sobre alimentos a serem
consumidos ao longo do calendrio litrgico, de 1331 e o famoso Livre de Sent Sovi, de 1324.
SANTOS, Srgio de Paula. In: NOLA, Robert de. Livro do cozinheiro. So Paulo: Instituto
Brasileiro de Filosofia e Cincia Raimundo Llio, 2010, p. 15.
370
SANTOS, op. cit., p. 16.
371
O livro contm alm das receitas um Livro de regras para a boa prtica do corte [carne] e
da arte de cozinhar e tambm para o bom preparo de quaisquer pratos e molhos; alm do corte
ensina como amolar ou afiar, como servir bebida, regras de etiqueta de como servir a bacia de
lavar as mos, modo de dispor a comida na mesa, sobre as funes do mordomo, as funes do
mestre-sala, camareiro, roupeiro, copeiro, trinchador, cozinheiro cavalario, para enfim, falar
da arte da cozinha, dando algumas regras para que se faa grande variedade de molhos e
comidas (...) De incio, mostraremos como fazer diferentes molhos, por exemplo: molho
comum, molho de peru, pimentas de claria, farofa de duque e outros. E para que se saiba, digo
aqui: de todos os quitutes existentes no mundo, estes trs so a melhor flor: molho de peru,
mirrauste e manjar branco, merecendo cada um deles uma coroa real, pois, so a flor dos
demais. NOLA, op. cit., p. 47.
372
SANTOS, op. cit., p. 16.
110
viagens dos alimentos pela histria, seu priplo transocenico na poca das navegaes
e o seu impacto na constituio da era moderna, com migraes e mestiagens nunca
antes conhecidas.373
Foi um processo que ocorreu dos dois lados do Atlntico e, antes disso as
misturas j ocorriam dentro das fronteiras da prpria Europa. A historiadora Isabel
Drumond Braga analisa como ocorreu a chegada dos produtos brasileiros em Portugal e,
coloca Portugal como grande reprodutor dos hbitos e costumes brasileiros. Segundo
Braga: A influncia de Portugal e de Castela na introduo dos produtos dos novos
mundos no continente europeu foi uma realidade incontestada.374 E ainda:
Essa realidade de trocas foi muito atuante tambm dentro da prpria Europa,
entre as diversas regies foi comum as influncias alimentares. Vejamos um exemplo,
no livro de culinria De honesta voluptate et valetudine de Platina, de Bartolomeo
Sacchi, datado de 1474, tem-se pratos a base de massa que eram componentes da
cozinha Italiana, mas, aparecem pratos de carter internacional, a exemplo, o Manjar
Branco (bianco mangiare), representado em quatro variantes diferentes de receita, duas
moda catal. Estas ltimas refletem a influncia espanhola no Sul da Itlia (Napoles
e Siclia).376
373
CARNEIRO, op. cit., p. 75 e 76. Ainda sobre o tema ver CROSBY, Alfred. O Imperialismo
Ecolgico. So Paulo: Companhia de Bolso, 2011.
374
BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Sabores do Brasil em Portugal: descobrir e
transformar novos alimentos (sculos XVI-XX). So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2010, p.
95.
375
BRAGA, op. cit,, p. 96.
376
TREFZER, op. cit., p. 48.
111
Nas pginas seguintes, vai ser possvel encontrar muitas vezes o uso da canela,
do acar, da salsa, coentro, cebola e outros ingredientes que marcam uma histria da
cozinha. As maiorias dos produtos que aparecem no Livro do Cozinheiro vo continuar
a aparecer em outros livros, o que refora minha tese de que a comida mestia ocorreu
no Brasil, em Belm, mas, acima de tudo ocorreu na Europa, alis, foi da Europa que
vieram muitas receitas adaptadas aqui no Brasil e em Belm. A anlise, portanto, ser
pautada em grande medida na cozinha de ingredientes, ideia que percebe a cozinha
como uma misso principalmente (...) de conhecer a fundo, pensar e utilizar os
ingredientes independentemente de seus conceitos pr-estabelecidos, suas origens,
suas amarras histrico-culturais.383 Dentro desse entendimento ser analisado as
receitas e ingredientes para se entender como elas sofrem mudanas.
383
BUDEL, Luana; FERREIRA, Talitha & PELLERANO, Joana A. Cozinha de ingredientes:
uma forma de atualizar tradies gastronmicas. Revistas Contexto da Alimentao, p. 30.
,www.sp.senac.br
384
TREFZER, op. cit., 25.
385
TREFZER, op. cit., p. 25.
386
gua de rosas: Aromatizante identificado pelo odor de rosas, de uso culinrio na doaria
ibrica, brasileira e do Magreb. LODY, op. cit., p. 45.
387
TREFZER, op. cit., p. 50.
113
por cerca de dois sculos e que ainda assim trazem receitas que eram elaboradas de
maneiras semelhantes, temos a presena do Manjar Branco. Antes, contudo, vejamos o
Manjar Branco do Livro do Cozinheiro, do sculo XV:
livro de R. C. M, no final, tem uma sugesto de que se pode fazer este manjar com
peixe ou lagosta no lugar da galinha. Vejamos:
Apesar das diferenas entre uma receita e a outra, especialmente no que diz
respeito a receita do sculo XV, que fazia uso de uma galinha inteira e que pela tcnica
era um prato mais demorado devido aos vrios momentos de elaborao, de um modo
geral as receitas mantiveram os mesmos ingredientes e modo de preparo da receita do
Livro do Cozinheiro. Sendo que a receita do livro de Domingos Rodrigues, Arte de
Cozinha, j aparece mais enxuta, fazendo uso, por exemplo, de apenas o peito do
frango, ainda que mencionando outras opes que podem substituir o frango; enquanto
a receita do livro de R. C.M, O Cozinheiro Imperial, datado de 1840, nos apresenta uma
compilao do livro portugus Arte de Cozinha.
392
R.C.M., op. cit., p. 72.
393
NOLA, op. cit., p. 63.
394
ADUBO. O mesmo que tempero. Adubos pretos so o cravo-da-ndia, a pimenta-do-reino e
outros. R.C.M., op. cit., p. 195.
115
395
RODRIGUES, op. cit., p. 73.
396
R.C.M., op. cit., p. 73.
397
NOLA, op. cit., p. 63.
116
utilizados398 por vrias razes, no somente por ausncia de registros, mas tambm
pela criatividade-inovao-possibilidades de quem cozinha.399 Fatores como
influncias, falta de produtos e trocas culturais, portanto, culminavam nas mestiagens
das receitas.
398
MATOS, op. cit., p. 264.
399
MATOS, op. cit., p. 264.
400
BRAGA, op. cit., p. 30.
401
Folha do Norte, 27 de abril de 1930, p. 5
402
Folha do Norte, 10 de novembro de 1929, p. 7.
117
403
Folha do Norte, 7 de julho de 1932, p. 4.
404
Tanto no livro Arte de Cozinha, como no livro Cozinheiro Imperial, existem outros tipos de
marmelada como a marmelada crua, marmelada de geleia, marmelada de sumos e quartos de
marmelos. Em ambos as formas e ingredientes so semelhantes. Ver: RODRIGUES, op. cit.;
R.C.M., op. cit.
405
LAURIOUX, Bruno. Cozinhas Medievais (sculos XIV e XV). In: FLANDRIN;
MONTANARI, p. 454.
406
gua de rosas- Essncia tpica da culinria rabe em que recebe o nome de me wared,
usada para aromatizar doces. Feita a partir da destilao de ptalas de rosas, deve ser usada com
moderao pois tem perfume muito intenso. GOMENSORO, op. cit., p. 18.
407
NOLA, op. cit., p. 121.
408
NOLA, op. cit., p. 121.
118
esquentar, cozer nela os pasteizinhos (sem deixar sair nada do recheio) e retira-los.409 E
ainda deveria ser regado com gua rosada e mel e ao servir polvilhado com acar e
canela.410 O Broscato Catal, por sua vez, levava na sua composio levedura, flor
de farinha de gros, leite de cabra ou de amndoas, gemas de ovos, acar, gua rosada,
manteiga, mel e canela. Este prato era parecido com uma omelete, misturava-se os
ingredientes, fritava-se com manteiga e por fim, regava-se com gua de rosas, mel e
polvilhava-se com acar e canela. Por fim, os Pastis Catal, que eram feitos com
borragens, acelga, gua, sal, queijo fresco, bons e finos temperos, gemas duras, flor de
farinha de trigo, gordura fresca sem sal de porco e ferve-se numa caarola de cobre
estanhada gordura fresca de porco ou manteiga e mergulham-se nela os pastis,
deixando-os corar. Retiram-se ento e ajeitam-se em prato, regando-os com gua rosada
e mel411, sendo que na hora se servir polvilham-se com acar e canela.412 A citao
dessas receitas visa demonstrar que, se por um lado, uma das marcas dos livros de
receitas a compilao de receitas de carter internacional,413 havia tambm a presena
de receitas nacionais.
409
NOLA, op. cit., p. 121.
410
NOLA, op. cit., p. 121.
411
NOLA, op. cit., p. 123.
412
NOLA, op. cit., p.123.
413
Tais livros marcam uma cozinha aristocrtica da corte. Como afirma Laurioux a cozinha
aristocrtica era internacional, uma vez que utilizava um repertrio que circulava em toda a
Europa. Cf. LAURIOUX, op. cit., p. 464.
414
E aqui entendemos identidade como as prticas culinrias de um grupo dentro de um
contexto histrico e social definido, ajudam a refletir sobre a criao de regras de convivncia
no espao em que vivem ou imaginam viver e sobre ideias que este grupo tem a respeito de si e
dos outros. SILVA, Paula PINTO. Comida e identidade: coentro ou salsinha? Revista CULT.
Ano 18, fevereiro de 2015. N198, p. 30.
119
gestos que acompanham as prticas comensais.415 Uma vez que, como informa Silva,
categorias como doce, cido, amargo ou salgado so muitas vezes reivindicadas como
prprias a cada indivduo, como se o gosto por determinados alimentos e modos de
preparos estivesse situado dentro de uma esfera absolutamente pessoalizada e
imutvel.416 Portanto, num sentido mais amplo, quando emergem as nacionalidades a
alimentao ganha status de identidade nacional; o que se comia e como se comia passa
a ser visto tambm com um carter identitrio e repleto de simbologias. Ento, forja-se
identidades em torno de pratos e alimentos, sendo que a alimentao passa a fazer parte
de um imaginrio enraizado (...) inicialmente naquele de um territrio, poderamos
quase dizer de uma regio.417 Nesse sentido, no sculo XIX, houve um discurso de
identidade baseado, entre outras coisas na gastronomia,418 existindo pratos que marcam
a cozinha e neles foram construdas associaes entre eles e a nao. 419 Segundo Albert:
s vezes um prato torna-se uma bandeira nacional antes mesmo que seja percebido
como tal em sua regio de origem. O prato do Eu torna-se ento o prato dos
Outros.420 Essa, por exemplo, foi a realidade da cozinha belga que, aps a Exposio
Universal de Bruxelas, em 1910, criou ento a prpria ideia de uma cozinha
especificamente belga.421 Para Albert, a nacionalizao de uma cultura alimentar de
um pas uma ferramenta poltica que serve para formar uma identidade nacional, mas
acima de tudo para fortalecer a coeso de um grupo em torno dos valores que eles
entendem como ptria e que, portanto, so valores comuns.
415
ALBERT, Jean-Marc. s mesas do poder: dos banquetes gregos ao Eliseu. So Paulo:
Editora Senac So Paulo, 2011, p. 191.
416
SILVA, op. cit., p. 31.
417
ALBERT, op. cit., p. 192.
418
ALBERT, op. cit., p. 192.
419
Esse foi ocaso da pizza napolitana na Itlia e do pudim de ameixa, na Inglaterra. A pizza
feita a partir de gua, fermento, sal e farinha, tornou-se um prato nacional no momento em que
a unificao italiana se acelera, no ltimo quarto do sculo XIX. Em 1889, os novos soberanos
da Itlia, Humberto I e Margherita, para se reconciliar com os napolitanos, convidam ao castelo
real o mais conhecido dos pizzaiolos. Rafael Escusito, que lhes oferece vrios tipos de pizza. A
soberana encanta-se com a pizza guarnecida com mozarela, tomate e manjerico, nas cores da
jovem bandeira italiana (verde, branco e vermelho), qual dar seu nome. J o pudim, da
mesma forma que outro nacional, o rosbife, serviam aos propsitos nacionalistas, uma vez que
eram dedicados a exaltar a alegoria da Bretanha, bem como como os integrantes da famlia real
britnica, havendo o pudim Vitria e o pudim do prncipe. ALBERT, op. cit., p. 193.
420
ALBERT, op. cit., p. 195.
421
ALBERT, op. cit., p. 194.
120
o que foi feito nos livros O Cozinheiro Imperial e O Cozinheiro Nacional, no momento
em que o Brasil vivia o auge das influncias francesas. O livro Cozinheiro Nacional,
publicado em 1874, j no ttulo dizia que era coleo das melhores receitas das
cozinhas brasileira e europeias.422 Mais do que uma reunio de receitas europeias, se
percebe a influncia das cozinhas europeias tanto no que tange a preparao, quanto nos
ingredientes e tcnicas de culinria. Os dois livros, segundo Carlos Alberto Dria,
representam um esforo de nacionalizao do saber culinrio e so, por isso mesmo, o
marco de formao de um pensamento autctone sobre o comer entre elite agrria e os
nascentes setores urbanos do pas.423 Mas, segundo o autor, esse esforo est associado
ao que a sua elite quer comer como construo da nacionalidade, mantendo-se ao
mesmo tempo, fiel ao modo de vida europeizado.424 Desta forma, como salienta Dria,
deve-se pensar uma cozinha brasileira somente aps o movimento modernista, em
especial no sentido atual de cozinha nacional, uma vez que: Na mesma poca em que
se descobriu o barroco como estilo arquitetnico, armou-se o discurso sobre a culinria
brasileira- um estilo que fruto do amlgama dos modos de comer de ndios, negros e
brancos.425 E ainda, para o autor a cozinha brasileira nunca se apresenta integrada e,
sim, como um conjunto de cozinhas regionais espalhadas pelas regies sociopolticas
em que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica) dividiu o Brasil.426
422
COZINHEIRO NACIONAL, ou, Coleo das melhores receitas das cozinhas brasileiras e
europeias: para a preparao de sopas, molhos e carnes. So Paulo: Ateli Editorial; Editora
Senac So Paulo, 2008, p. 8.
423
DRIA, Carlos Alberto. A culinria materialista: a construo racional do alimento e do
prazer gastronmico. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2009, p. 69.
424
DRIA, op. cit., p. 69.
425
DRIA, Carlos Alberto. A Formao da Culinria Brasileira. So Paulo: Publifolha, 2009.
426
DRIA, op. cit., p. 8.
121
escreve a sua histria, j tem seus heris (...) j tem a sua literatura.427 Compreendemos
desse modo que da mesma forma que comeava a se grafar no IHGB uma histria do
Brasil, visando o fortalecimento da Nao, a culinria, registrada em livros ainda que de
pratos de tradio portuguesa era um desses meios de construo de identidade.
O livro traz 924 receitas de pratos, de maneiras de servir e tipos de cortes nas
carnes, dentre outras. Deste total, encontramos 50 receitas com nomes internacionais, ou
melhor, moda internacional, por exemplo, P de vitela Italiana, Garup de Veado
Alem, Coelho de cebolada Portuguesa entre outros. E apenas uma intitulada
moda Brasileira que na verdade est na categoria de doces. 432 No geral, as receitas
seguem as inspiraes europeias tanto na forma de preparo quanto nos ingredientes. Em
especial, as receitas portuguesas. Cristiana Couto nos informa que, dos 111 pratos do
captulo sopas, potagens, panadas e caldos da primeira edio:
427
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Brasileiras Clebres. Rio de Janeiro: Livraria de B. L.
Garnier, 1862, p. 1. Sobre o livro Brasileiras Clebres, Cf. LACERDA, Franciane Gama.
Merecedoras das pginas da histria: memrias e representaes da vida e da morte femininas
(Belm, sculos XIX e XX). Cadernos Pagu, v. 38, 2012, p. 395-423.
428
No se sabe a autoria do livro, nele consta apenas as iniciais R.C.M, atribui-se a autoria a um
chef de cozinha da Corte.
429
R. C.M., op. cit., p. 11.
430
R. C. M., op. cit., p. 11.
431
COUTO, op. cit., p. 104.
432
R. C. M., op. cit.
122
433
COUTO, op. cit., p. 109.
434
COUTO, op. cit., p. 110.
435
COUTO, op. cit., p. 111.
436
Arratl. Unidade de peso equivalente a 429 g ou 16 onas. R.C.M., op. cit., p. 196.
437
Quartilho: quarta parte de uma Canad, que corresponde a meio litro. Unidade do sistema
ingls que corresponde a 0,568 litro. REGO, op. cit., p. 320.
438
CHEIROS. Salsa, cebolinha verde, louro, cereflio e outros. R.C.M., op. cit., p. 197.
439
RODRIGUES, op. cit., p. 59.
123
440
R. C. M., op. cit., p. 16.
441
Aqui vamos entender que as seguintes medidas 1L=272,81 g e 1arrtel=459 g. SILVA,
Irineu. Histria dos pesos e medidas. So Carlos: EDUFSCAR, 2004.
442
COZINHEIRO NACIONAL, op. cit., p. 55.ro
443
Fabrcio Herbeth Teixeira da Silva tambm trabalha com o Receiturio da me de Famlia
com outra perspectiva e enfoque em seu texto intitulado: Uma recita da Belle-poque o
Receiturio da Me de famlia e os hbitos alimentares da populao em Belm 1897-1900. In:
www.institutopaulomartins, acessado em 20 de junho de 2016.
444
MALUF, Marina & MOTT, Mria Lcia. Recnditos do mundo feminino. In: SEVCENKO,
Nicolau. (Org.). Histria da vida privada no Brasil: da belle poque era do rdio. Vol. 3. So
Paulo: Companhia das Letras, 2006. Em relao a questes acerca de um iderio feminino e do
no Par ver: CANCELA, Cristina. Destino cor de rosa, tenso e escolhas: os significados do
casamento em uma capital amaznica (187-1920). Cadernos Pagu (30), 2008, p. 301-328.
124
mulher a maternidade higinica e cientfica a mulher como uma cientista do lar. 445 Foi
neste contexto que apareceu na coluna Receiturio da me de famlia, a Sopa Italiana.
A receita descrita assim:
445
Sobre o assunto ver FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mes e mdicos. Discurso
maternalista em revistas femininas (Rio de Janeiro e So Paulo, dcada de 1920). Tese de
doutorado. FIOCRUZ. Rio de Janeiro, 2006.
446
A Provncia do Par, 13 de janeiro de 1900, p. 3.
125
Outro exemplo o caso da Sopa Francesa que se fazia com pombos, perdizes,
pato, coelho, galinha, chourio, presunto, toucinho, coraes de alface, chicria ou
couve murciana, pimenta e cheiro-verde, sal, temperos e suco de limo. Tanto na Sopa
Italiana, quanto na Francesa, os ingredientes so cozinhados em gua e na hora de
servir so colocadas com fatias de po.448 Alis, a sopa era francesa com ingredientes de
tradio portuguesa, a exemplo do chourio, tradicional linguia portuguesa feita com
carne de porco cortada em pedacinhos e curtida, durante uma semana.449
Posteriormente apareceu a couve, tambm acrescida na Sopa Italiana, descrita no jornal
447
OLIVEIRA, Dbora. Dos cadernos de receitas s receitas de latinha: indstria e tradio
culinria no Brasil. So Paulo: Editora Senac So Paulo: 2013, p. 33.
448
R. C. M., op. cit., p. 16.
449
GOMENSORO, op. cit., p. 114.
126
450
FERRO, op. cit., p. 55.
451
FERRO, op. cit., p. 55.
452
ERVAS FINAS. Cereflio, tomilho, slvia, estrago e outras, usadas juntas, picadas ou em
ramalhete nico. R.C.M., op. cit., p. 197.
453
R. C.M., op. cit., p. 42.
454
A Provncia do Par, 8 de janeiro de 1897, p. 2.
127
manjerico. O preparo do molho, por sua vez, bem ligado com trigo e vinagre ou suco
de uva, visando uma consistncia mais grossa, j era uma tcnica francesa. O tempo de
cozimento era lento, cerca de 1 hora, havendo mais ingredientes e tcnica mais apurada.
Alis, a receita apresentava elementos marcantes da cozinha palaciana ou de Corte,
como uso de ervas finas, manjerico em p e azeite. Na receita da coluna Receiturio da
Me de Famlia, podemos entender que havia uma simplificao no modo de fazer, nos
ingredientes, mudanas que deixavam a receita mais popular, mais acessvel s pessoas
que liam este jornal, as mes de famlia, uma vez que havia nesta receita apenas sal e
pimenta do reino, produtos mais acessveis, e tambm o uso de limo no final. O molho
tambm no seria elaborado com vinho e trigo, ficando mais simples seu preparo sendo
o molho no qual o fgado foi fritado apenas na manteiga. Desse modo, a receita do
Fgado Italiana que aparece no jornal paraense, em 1897, uma verso mais
econmica dos produtos e, portanto, uma verso menos refinada e mais acessvel a uma
parte da populao, at porque esta coluna tinha o propsito de dar opes mais
cotidianas queles que liam e reproduziam suas receitas. A reduo, portanto, de
produtos que encareciam o prato, demonstra que as trocas e influncias tambm podiam
ocorrer visando deixar os pratos mais acessveis a um determinado grupo social.
Outra receita que tambm passou por processos de mudanas foi a da Galinha
Mourisca que continha toucinho, peito de galinha, vinho branco, vinagre, gua,
temperos, folha de louro, gemas, limo e po.455 Alis, uma das primeiras aparies
desta receita ocorreu no Um Tratado da cozinha portuguesa no sculo XV e que
apresenta ingredientes diferentes da receita do Cozinheiro Imperial. Por exemplo, na
receita do sculo XV, provavelmente uma das mais originais, levava alm da galinha,
manteiga, toucinho, cebola verde, salsa, coentro, hortel, limo, fatias de po, gemas
escalfadas e canela.456 Comparando as duas receitas, a do sculo XIX levava vinho,
vinagre, temperos e louro que a receita do sculo XV no tinha. Por outro lado, existe
uma outra receita de Galinha Mourisca que levava gordura, toucinho, coentro, salsa,
hortel, sal, cebola, vinagre, cravo, aafro, pimenta-do-reino, gengibre, gemas e po.457
455
R. C. M., op. cit., p. 42.
456
Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Sculo XV. Ministrio da Cultura; Fundao da
Biblioteca Nacional; Departamento Nacional do Livro. In: www.shdestherrense.com, acessado
em 12/02/2016, p. 2.
457
Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Sculo XV. Ministrio da Cultura; Fundao da
Biblioteca Nacional; Departamento Nacional do Livro. In: www.shdestherrense.com, acessado
em 12/02/2016, p. 4.
128
Ainda que as formas de preparo fossem as mesmas, sendo refogadas e cozidas em todas
as receitas. Alm da forma de preparo, vale lembrar, alguns pratos demonstram
claramente a mestiagem e influncia rabe, que ocorre em Portugal e de l chega ao
Brasil, como, por exemplo, no caso da Galinha Mourisca e Albardada que so, como
nos informa Couto, receitas de influncia rabe458, havendo tambm receitas doces
como alfinete, almojvenas (filhos com queijo fresco), alfloas e maapes, alm de
pratos base de gua de rosas e amndoas.459 Alis, o costume de polvilhar os pratos
prontos com uma mistura de temperos tem origem na tradio culinria rabe.460
Nesse sentido, Riera-Melis informa que muitos historiadores tendem a minimizar a
influncia rabe no Ocidente, mas que ao menos trs influncias foram significativas: o
uso do acar, do aafro e as especiarias. Todavia, outros elementos tambm sofreram
permutas no seu uso como a utilizao de gua de rosas, laranjas, limes, amndoas e
roms.461
458
COUTO, op. cit., p. 24.
459
COUTO, op. cit., p. 24.
460
TREFZER, op. cit., p. 52.
461
RIERA-MELIS, op. cit., p. 22.
462
O culi era um termo aportuguesado do coulis francs, caldo muito usado na culinria. R.
M. C., op. cit., p. 197.
463
R. C. M., op. cit., p. 67.
129
galinha com arroz, quem no conhece. Mais farta de arroz ou com mais caldo
tornando-se numa canja, era outro prato de longa tradio portuguesa. 464 A receita do
livro de R.C.M levava duas galinhas gordas, presunto, carne de vaca, cebola espetada
com cravo, salsa tudo muito bem refogado (outra tcnica de preparo portuguesa) gua
quente ou caldo, vinagre, hortel e coentro, arroz.465 O que podemos auferir que os
ingredientes combinavam muito nos diversos pratos a moda internacional, no entanto,
as tcnicas de preparo eram diferentes de um prato para outro. Alis, o arroz era de
largo consumo em Portugal, segundo o historiador portugus Ferro, Desde o sculo
XVII que o seu consumo se fazia com alguma regularidade. Comia-se com carneiro, em
caril de peixe e em arroz doce.466 Inclusive, no sculo XVIII, em relato de 1796, um
estrangeiro dizia que em Lisboa se comia muito arroz; mesmo nas casas mais
abastadas servia-se a todas as refeies e, juntamente com a rama do nabo, era o prato
bsico da alimentao dos criados.467 J no sculo XX, em Belm, no Hotel Royal,
segundo anncio publicado em 22 de junho de 1917, todas as noites havia como
especialidade da casa Canja Especial.468
Quadro I.
Receitas Internacionais no O Cozinheiro Imperial.
464
FERRO, op. cit., p. 55.
465
R. C. M., op. cit., p. 71.
466
FERRO, op. cit., p. 30.
467
FERRO, op. cit., p. 30.
468
Folha do Norte, 22 de junho de 1917, p. 07.
130
acar/ovos.
de Pssego.
azeite/anchovas470/alho/Sal/culi/pimenta do reino.
culi/limo.
469
A cebolinha um tempero originrio da Europa Ocidental usada desde a Idade Mdia,
quando era apregoada pelas ruas com o nome de appetits. Veio para o Brasil com os primeiros
portugueses, logo aps o descobrimento. Existem duas variedades: a cebolinha-verde e a
cebolinha-francesa, chamada ciboullette. GOMENSORO, op. cit., p. 101.
470
Anchovas um peixe pequeno de gua salgada, com cerca de 12 cm de comprimento e de
gosto forte. So de origem do Mediterrneo e na Costa mais ao Sul da Europa. GOMENSORO,
op. cit., p. 29.
471
SUBSTNCIA (OU ESSNCIA). Caldo coado ou peneirado, resultando do cozimento de
carnes em geral e peixes. R.C.M., op. cit., p. 201.
131
banho-maria.
assado.
tomilho473/alho/Manjerico/carne cozida.
aguardente/sal/noz-moscada/canela/manteiga.
limo/flor-de-laranjeira/Sal/canela/noz-moscada/acar/
aguardente/manteiga/vinho-branco/acar/limo.
472
A cenoura conhecida e empregada na cozinha desde a Grcia Antiga, suas folhas eram
usadas pelas damas do sculo XVI como enfeite de seus penteados. rica em caroteno, uma
substncia que se transforma em vitamina A durante a digesto. GOMENSORO, op. cit., p.
101.
473
TOMILHO. Erva aromtica. R.C.M., op. cit., p. 201.
474
Vegetal da famlia das compostas, tem folhas recortadas e macias, bem presas umas s
outras, de cor branco-creme, passando pelo verde-amarelado, at chegar ao verde-escuro. Tem
sabor levemente amargo. GOMENSORO, op. cit., p.112.
132
limo/po.
limo/ovos.
fervido.
assado.
475
A denominao cheiro portuguesa e muito antiga e, anteriormente, referia-se a todas as
ervas aromticas. Gil Vicente j empregava em 1512, na farsa O velho hortelo. Vinha ao
vosso hortelo/ Por cheiros pera a panela. GOMENSORO, p. 110.
476
Cozido de legumes com vrios tipos de caldos; caldo gordo ou gordura de caldo de carne
cozida com adubos. R.C. M., op. cit., p. 199.
477
Especiarias: pimenta-do-reino, canela, cravo-da-ndia, noz-moscada. Espcies inteiras so
os gros inteiros, sem moer e espcies finas, as modas ou raladas. R. C.M., op. cit., p. 197.
478
O cominho Originrio do Egito e do Mediterrneo oriental, hoje ele cultivado no mundo
todo (...)Diz Apicius, autor, na Antiguidade, dos primeiros registros de culinria de que se tem
notcia, que gregos e romanos j o empregavam como condimento. Os povos rabes o utilizam
muito. Em gros, inteiros ou modos, pode ser usado em carnes, aves, sopas, queijos, pes e
licores. GOMENSORO, op. cit., p. 122.
479
Alcaparra planta originria da sia, a alcaparra aclimatou-se nas regies temperadas de
todo o mundo. Conhecida e consumida em toda a Antiguidade, seu uso foi registrado por
Atenodoro, sbio e diretor da Biblioteca de Prgamo, na sia Menor, no primeiro sculo da Era
Crist, que registrou ser ela encontrada nas mesas das classes mais altas e s vezes deixadas ao
povo. Como tempero, so utilizados apenas os botes florais ainda no abertos.
GOMENSORO, p. 21.
133
cebolinha/pimenta do reino/Noz-moscada/limo/vinagre/sal.
cebola/sal/pimenta/salsicha.
manteiga/acar.
assado.
Azeite/limo.
cravos/culi.
134
480
TREFZER, op. cit., p. 14.
481
E mais segundo o autor as especiarias j aparecem na Bblia o que lhe confere uma presena
mais antiga tanto na culinria, medicina e outras. Na ilha de Lesbos, as discpulas da bela
Safo, poetisa do sculo VII antes de Cristo, j se perfumavam com canela. Os poemas sfiros
mencionam tambm aafro, que brotava na Grcia, onde suas flores roxas e seus estigmas
carmim eram bastante utilizados. Estes ltimos serviam, ao lado da canela, para aromatizar
vinho, e suas flores eram urdidas em forma de coroa para honrar os deuses. PELT, Jean-Marie.
Especiarias & Ervas aromticas: histria, botnica e culinria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p. 16.
482
CARNEIRO, op. cit., p. 79.
135
perceber estas conexes que sem dvida contriburam para a mestiagem dos pratos
paraenses:
Pimentas. Capsicum.
Americanas/Africanas
Pelo esquema483 acima podemos entender que a cozinha moderna passou ento
por um processo de mestiagem, que comeava nos ingredientes adotados nas cozinhas
e que chegaram at o sculo XIX e XX, atravs das receitas. As plantas aromticas
descritas so encontradas de maneira constante nos livros aqui analisados, como
demonstra o quadro de pratos internacionais do O Cozinheiro Imperial. Para Franco as
especiarias tinham grande utilidade e sabemos que a inmeras especiarias eram
atribudas propriedades medicinais.484 E ainda, era tambm uma forma de mostrar
status social, as especiarias por serem produtos importados e de elevado valor
econmico serviam para demarcar posio na hierarquia social, segundo o historiador
Trefzer:
Entre eles estavam arroz, acar, figos, tmaras secas, alm das
especiarias vindas do Oriente como pimenta-do-reino, gros-do-
paraso (pimenta malagueta), gengibre, gengibre-do-laos, canela,
cravo-da-ndia, noz-moscada e macis, aafro, coentro e
cardamomo.485
483
Esquema elaborado a partir de dados de CARNEIRO, op. cit., p. 79.
484
FRANCO, Ariovaldo. De caador a Gourmet; uma histria da gastronomia. So Paulo:
Senac So Paulo, 2006, p. 90.
485
E ainda, A enorme avidez que os ricos e poderosos da Europa tinham por especiarias, que
duraria ainda at o sculo XVII, tambm aparece de modo evidente no Viandier. Ela no era
fruto de uma necessidade culinria, e sim havia se nutrido primeiro do anseio de alicerar
simbolicamente a prpria posio social. TREFZER, op. cit., p. 26.
136
Algumas especiarias aparecem de forma mais usual nas receitas como o caso
da canela, produto de valor elevado, que foi ao lado da pimenta ao longo de toda a
486
Antiguidade (...) a mais cara e a mais cobiada das especiarias. Tinha grande uso na
Europa onde:
A noz-moscada, por sua vez, tem seu aparecimento nas mesas medievais,
ganhando certo destaque somente a partir do sculo XVII, quando os holandeses passam
a ter grande domnio deste tipo de especiaria.488 O cravo da ndia, em grande parte das
receitas aparece espetado em cebolas ou na carne antes de ser assada, sendo esta a forma
europeia de uso: presunto perfurado por cravo, cebola ao cravo, pratos realados pelo
sabor picante, amaro e frutado da especiaria: o cravo-da-ndia onipresente nas
cozinhas do Oriente e do Ocidente.489 O gengibre por sua vez, era bastante utilizado j
que guisados, carnes, sopas cremosas eram temperadas com p de gengibre. 490
486
PELT, op. cit., p. 91.
487
PELT, op. cit., p. 95.
488
PELT, op. cit., p. 97.
489
PELT, op. cit., p. 106.
490
PELT, op. cit., p. 110.
491
PELT, op. cit., p. 123.
492
PELT, op. cit., p. 128.
137
493
PELT, op. cit., p. 152.
494
COUTO, op. cit., p. 49.
495
BRAGA, op. cit., p. 34.
496
FERRO, op. cit., p. 31.
497
FERRO, op. cit., p. 31.
498
FERRO, op. cit., p. 32.
138
499
DRIA, op. cit., p. 34.
500
DRIA, op. cit., p. 34.
501
DRIA, op. cit., p. 35.
502
Sobre assunto ver: MOURA, Daniella de Almeida. Banquetes Paraenses: Representaes de
uma Repblica em Construo (1889-1903). Dissertao de Mestrado. Belm: Programa de
Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia, UFPA, 2008.
503
Folha do Norte, 5 de maio de 1917, p. 5.
504
Folha do Norte, 5 de maio de 1917, p. 5.
505
Folha do Norte, 10 de maio de 1917, p. 6.
506
Folha do Norte, 20 de maio de 1917, p. 6.
139
Ao lado dos ingredientes, outro aspecto que nos interessa para entendermos s
prticas culinrias, diz respeito s tcnicas utilizadas. A preferncia pelas tcnicas de
preparo que variavam entre o cozido/refogado e o cozido/assado/frito refletia tambm a
influncia europeia na cozinha que vai se constituindo no Brasil entre finais do sculo
XIX e meados do sculo XX, perodo que nos interessa nesta tese. Por exemplo o
Escalfado, muito utilizado em Portugal e que significa cozinhar os alimentos em gua
fervente, ou seja, escald-los. Esse processo usado para fazer ovos escalfados ou
pochs.507 Desse modo, vemos especialmente a influncia de uma culinria portuguesa
que era elaborada a partir de caldos e guisados. Reflexo dessa realidade justamente o
nmero significativo de alimentos que aparecem elaborados moda portuguesa. O
Cozinheiro Imperial, inclusive, traz o Miolo de Vaca, P de Vitela, Fgado de Vitela e
Rolas/Cordonizes, todas elaboradas ou cozidas ou assadas.
507
GOMENSORO, op. cit., p. 164.
508
CARNEIRO, op. cit., p. 87.
509
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1994, p. 221.
510
FREYRE, op. cit., p. 32.
511
CARNEIRO, op. cit., p. 90.
512
Influncia que tambm se fez nas palavras como afirma Cavalcanti mais de 300 palavras
rabes ficaram na lngua portuguesa, em sua grande maioria ligadas culinria: aafro,
acepipe(...) acelga, albarrada (jarra), alcachofra, alcaparra, alface, almndega, atum, berinjela,
140
Mas, importante dizer que, essa mestiagem fazia-se tambm nos ingredientes
e tcnicas de preparo de receitas, bem como nos inmeros pratos intitulados moda
moura ou moda rabe. preciso ter em mente que:
cenoura, melo, sorvete, xarope; ainda lcool, alqueire, arroba, fatia, garrafa. Alm de
aougue. CAVALCANTI, op. cit., p. 138.
513
TRUZZI, Osvaldo. Sentindo-se em casa: os rabes se adaptaram muito bem ao Brasil. E o
Brasil a eles. Revista de Histria, 2009, p. 1. In: www.revistadehistoria.com.br.
514
Folha do Norte, 19 de outubro de 1949, p. 4.
515
Nos anncios do jornal Folha do Norte de Belm do Par ao longo do perodo analisado. A
exemplo de um destes anncios segue o anncio da Casa Baptista que oferecia em 5 de janeiro
de 1919, leite puro, caf e coalhadas. Folha do Norte, 5 de janeiro de 1919, p. 4.
516
GOMENSORO, op. cit., p. 118.
517
LODY, op. cit., p. 80.
518
O cuscuz um prato nacional de mouros e rabes, milenar favorito, fundamental na
alimentao diria. Fazem-no de arroz, trigo, cevada, milhetos, sorgos (...) h vrias espcies,
sobremesa ou gulodice, com mel de abelhas ou acar; com carnes, peixes, crustceos, legumes,
tmaras, passas de uva, valendo uma refeio completa, ou ainda molhado no leite de vaca,
141
Realidade que chegou em Belm em fins do sculo XIX e incio do XX, sendo
que as receitas analisadas aqui neste captulo fazem uso de manteiga em quantidade
significativa. O que demonstra bem tais influncias. A manteiga era utilizada como
cabra, ovelha, camela, comida improvisada de viagem, um farnel abreviado e substancial (...) o
portugus trouxe o cuscuz para o Brasil desde inicio do povoamento, utilizando o milho, que
ficou basilar, e a adio de leite de coco. CASCUDO, op. cit., p. 248.
519
RODRIGUES, op. cit., p. 217 a 281.
520
LODY, Raul. A virtude da gula: pensando uma cozinha brasileira. So Paulo: Editora Senac
So Paulo, 2014, p. 52.
521
VAZ, op. cit., p. 104.
522
LODY, op. cit., p. 52.
523
ESPIRITO SANTO, op. cit., p. 69.
524
LAURIOUX, op. cit., p.456.
525
BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Sabores do Brasil em Portugal: descobrir e
transformar novos alimentos (sculos XVI-XIX). So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2010.
142
gordura nas tcnicas de refogar526, fritar e untar os mais diversos pratos doces e
salgados. Ao fazer uso dela desta forma, nota-se claramente o carter mestio de muitos
pratos. De fato, como destaca Ferro, no Brasil o uso da manteiga na culinria foi
relevante dando origem a uma indstria local bastante desenvolvida. Alm da manteiga
havia outras gorduras animais de farto consumo, como toucinho e a banha.527 Alis, em
Belm os anncios de manteiga nos jornais so cotidianos, seja por parte de
consignados em leiles, seja por parte de estabelecimentos que as vendiam, sendo de
uso constante durante todo o perodo estudado. Desse modo, nas receitas que
encontramos a manteiga compem um item bsico. Durante a segunda metade do sculo
XIX, o uso preferido era da manteiga importado ou a inglesa ou a francesa. Era tida
como artigo de luxo, inclusive era um produto que constantemente aparecia como
furtado, sugerindo a importncia desse gnero alimentcio. Na primeira metade do
sculo XX, a manteiga continua sendo importante e seus anncios fazem referncia
inclusive manteiga nacional. Em 1 de novembro de 1920, havia anncio das manteigas
Riqueza do Brasil e Cruzeiro, as quais eram tidas como afamadas marcas.528 Ou ainda
a Manteiga Leite Rico, vendida no Caf Carioca em 8 de janeiro de 1950.529 Mas,
tambm outras gorduras eram utilizadas como o azeite, e no caso do Par a manteiga de
tartaruga.530
Outro livro que data do sculo XIX o Cozinheiro Nacional,531 o qual tinha
como subttulo: coleo das melhores receitas das cozinhas brasileiras e europeias.
Esta obra reunia receitas de sopas, molhos, carnes, caas, peixes, pastis, doces de
massa e conservas, alm de contar com regras de servir mesa e de trinchar. O carter
elitista do livro pode ser percebido pelas disposies que preceituava na quantidade de
pratos que deveriam ser servidos mesa, guardando um pretenso refinamento, em at
526
Refogar- mtodo de cozimento que emprega calor mido, atravs do qual o alimento
parcialmente assado, parcialmente cozido em lquido. ferver na gordura com temperos como
cebola, alho, e cheiro-verde carnes, aves, peixe ou legumes, at ficarem tenros ou dourados, de
acordo com o que for pedido na receita. GOMENSORO, op. cit., p. 341.
527
FERRO, op. cit., p. 31.
528
Folha do Norte, 1 novembro de 1920, p. 04.
529
Folha do Norte, 8 de janeiro de 1950, p. 04.
530
Sobre essa realidade ver: MACDO, Sidiana da Consolao de Macdo. Do que se come:
uma histria do abastecimento e da alimentao em Belm, 1850-1900. So Paulo: Alameda,
2014.
531
O livro no foi assinado, datado de fins do sculo XIX atribudo hoje a Paulo Salles,
todavia no uma certeza.
143
trs servios. Isso demonstra o que Carlos Alberto Dria afirma em relao a este livro,
ao enfatizar que o Cozinheiro Nacional expressa certa pedagogia para reeducar as
elites na passagem dos hbitos hierrquicos de uma sociedade de cortes para o
igualitarismo do dinheiro numa sociedade burguesa.532 Ao analisarmos o livro, de
imediato nota-se o quo mestio era a diviso do livro Cozinheiro Nacional, uma vez
que o leitor se depara com receitas de carnes elaboradas de forma mais refinada com
vinho, da mesma forma que encontra o bacalhau, ao mesmo tempo em que h receitas
de pratos como queijo com tanajuras, tartaruga, paca, pre, r e outros animais
nacionais; alguns inclusive de consumo indgena de antes da colonizao. Preparados de
maneiras diferente da dos indgenas esses pratos com carne de caa ratificam o carter
mestio desses pratos.
Nesse sentido, buscava-se erigir uma culinria centrada nos sabores da terra,
ainda que com padres de ingredientes e tcnicas derivadas das cozinhas clssicas
europeias. Alis, o autor de Cozinheiro Nacional, em seu prlogo, enfatizava que:
nosso dever outro; nosso fim tem mais alcance, e uma vez que demos o ttulo
nacional nossa obra, julgamos ter contrado um compromisso solene, qual o de
532
DORIA, Carlos Alberto. A cozinha Nacional antes da feijoada. In: Cozinheiro Nacional, ou
coleo das melhores receitas das cozinhas brasileiras e europeias: para preparao de sopas,
molhos, carnes. So Paulo: Ateli Editorial; Editora Senac So Paulo, 2008, p. 14 e 15.
533
DRIA, op. cit., p. 18.
534
DRIA, op. cit., p. 18.
535
DRIA, op. cit., p. 18.
536
DRIA, op. cit., p. 22.
144
apresentarmos uma cozinha em tudo brasileira.537 Inclusive, o autor colocava uma lista
dos produtos brasileiros que podiam substituir os europeus, a exemplo, a alcachofra
podia ser substituda por palmito, talos de inhame, talos de taioba; amndoas, nozes e
avels eram indicadas a serem substitudas por amendoim, sapucaias, castanha-do-par
e mendubirana; pimenta-da-ndia por pimentas, cumaris, ou kaviks; Berinjela por jil
entre outros alimentos.538 Nesse sentido, se o uso de amndoas integra as receitas
conventuais que tanto marcaram a doaria brasileira,539 bem como ingrediente
tradicional da doaria ibrica e do Magreb,540 fazer uso dos amendoins mestiar as
receitas, uma vez que o amendoim importante ingrediente da nossa doaria que, com
a castanha-de-caju, compem muitas receitas: amendoins em farinha com acar,
resultando em um tipo de paoca.541
537
Cozinheiro Nacional, op. cit., p. 33.
538
Cozinheiro Nacional, op. cit., p. 35.
539
LODY, op. cit., p. 48.
540
LODY, op. cit., p. 48.
541
LODY, op. cit., p. 48.
542
Cozinheiro Nacional, op. cit., p. 55.
543
ROSENBERGER, Bernard. A cozinha rabe e sua contribuio cozinha europeia. In:
FLANDRIN; MONTANARI (Orgs.), p. 340.
145
Quadro II:
Captulos e Pratos do livro Cozinheiro Nacional.
Captulos Pratos Quantidades de
receitas
Sopas medicinais. 7.
Captulo V- O porco. 93
A capivara. 7.
O coelho. 18.
A cutia. 6.
A irara/ona/tamandu. 3.
A lebre. 6
A lontra e a ariranha. 3.
146
O macaco. 7.
A paca. 12.
O queixada/caititu/ 32.
Porco-do-mato.
Pra/caxinguel/esquilo/gamb. 9.
Quati. 4.
Cobra/lagarto/r. 12.
Tatu. 6.
Veado. 26.
Periquitos.
Perdizes/cordonizes/cotovia/ 21.
cordoniz-do-campo.
Saracura/inhuma/pato-silvestre
martim pescador/frango-dgua/
Galinha-dangola/macuco/
inambu/ja ou zabel/jacutinga e
capoeira.
10.
Anu.
1.
147
Lambari/cadosetes. 3.
Timbur/corvina. 6.
Trutas/piabanhas/pirapetingas 5.
Matrinxos.
Bandejete/corcoroca/parati. 11.
Enguias-do-mar/congro/moria 19.
Lulas e polvo.
Pescada. 6.
Caramujos de vinhas. 3.
Mexilhes/berbiges. 4.
As ostras. 5.
A tanajura. 1.
A tartaruga/cgado. 2.
Os ovos/leite/queijo. 63.
As frutas. 30.
148
Os gros. 47.
Molhos legumes. 2.
As compotas. 7.
As sobremesas. 36.
Fonte: Cozinheiro Nacional ou Coleo das melhores receitas das cozinhas brasileiras e europeias: para
preparao de sopas, molhos, carnes. So Paulo: Ateli Editorial; Editora Senac So Paulo, 2008.
Destas receitas as de sopa contam com 131, seguidos de carnes de vaca com
117, Peru com 112, Carneiro com 109, Vitela com 104, aves domsticas com 99, porco
com 93 e por fim, as receitas com ovos, queijo e leite com 63 receitas. O livro traz
receitas de carter mais nacional, o que no ocorre, por exemplo, no Cozinheiro
Imperial, o que se explica pela consolidao de uma identidade nacional. Chama
ateno no Cozinheiro Nacional que as receitas trazem tambm o consumo de paca,
tatu, tartaruga, quati e outros animais que compunham a fauna do Brasil, que parecem
ter consumo significativo. Em Belm do Par nas casas e at mesmo em restaurantes era
149
No livro Cozinheiro Nacional havia 12 receitas que eram elaboradas com paca,
nas seguintes modalidades: paca assada, paca no espeto, paca cozida no soro, paca
estufada com arroz e tomates. No existe no livro, todavia, referncia paca no tucupi,
pois, este um prato regional. Ou seja, quando fala de pratos com uso da paca indica-
nos que o consumo da mesma tambm havia em outras regies brasileiras, que tinha na
paca consumida entre os grupos indgenas sua origem, j aparecendo em pratos
nacionais mais refinados. Tambm a cutia aparece com 6 pratos diferentes: refogada
com chuchus, assada, ensopada com cars, estufada com carapicus, frita com mandioca
e guisada com grelos de abbora; e ainda o caititu ou porco-do-mato aparecia feito na
feijoada, moqueados e em molho picante e ainda guisado. O tatu tambm compunha a
lista de receitas do Cozinheiro Imperial, sendo 6 receitas: tatu refogado, tatu ensopado
com guandus ou mangals, tatu frito, tatu guisado com mogango, tatu guisado com
polpa de batatas e tatu refogado moda com farinha de trigo.546
A pesquisa nos permite dizer que, em todo o Brasil, era comum esse consumo de
carnes de caa, do contrrio no faria sentido tais receitas em livros de culinria do
sculo XIX, e nem no cardpio dos restaurantes. Assim, no sem razo, em 16 de junho
de 1893, o jornal O Paraense anunciava que o Caf Chic, localizado no Largo da
Plvora, em Belm, oferecia todos os dias no almoo, jantar e ceia, mas especialmente
aos domingos, appetitosas caas, ao lado de toda sorte de gallinaceos, carne de
vacca, vitella, porco e carneiro, alm de camaro, lagostas, caranguejo e ostra. Ao
mesmo tempo, como acompanhamento, o fregus poderia consumir vinhos (...)
especiais verdadeiros e finssimos, refrescos, sorvete e at gelo a toda hora.547
Tais variedade de pratos que poderiam ser apreciados no Caf Chic, na capital
do Par, foram igualmente encontrados no Cozinheiro Imperial, como a presena da
544
O Democrata, 31 de maio de 1890, p. 1.
545
O Democrata, 31 de maio de 1890, p. 1.
546
COZINHEIRO NACIONAL. op. cit.p. 230.
547
O Paraense, Domingo 16 de julho de 1893, p. 1.
150
carne de vaca, vitela, carneiro, porco, ostras e peixes. Tambm possvel visualizar
pratos com ingredientes regionais como caranguejo e camaro. Igualmente, este local
deveria atender um pblico de maior poder aquisitivo uma vez que alm da variedade de
pratos elaborados com carnes de maior valor, ainda enfatizava que tudo era muito bem
preparado com asseio, alm do mais a preocupao em servir sorvetes e gelo a toda
hora ratificam essa ideia.
548
ALGRANTI, Leila Mezan. Alimentao, sade e sociabilidade: a arte de conservar e
confeitar os frutos (sculos XV-XVIII). Histria: Questes & Debates, n 42, 2005, p. 36.
549
ALGRANTI, op. cit., p.36.
550
Em Portugal, segundo Isabel Braga, Durante o sculo XVI, j era visvel, ainda que
tenuemente, a relao entre certos pratos e determinadas pocas festivas. BRAGA, op. cit., p.
39.
551
FREYRE, Gilberto. Acar. So Paulo: Global, 2007, p. 71.
552
Como, por exemplo: giaa real, manjar real, chocolate, arroz doce, melcias, bolos mimosos,
bolinhos de amndoa, bolos de Compiena, bolos de rodilhas, bolo em camadas, bolos de acar,
argolinhas de amndoa, forminhas de amndoa, abbora em taas, biscoitinhos de farinha de
arroz, biscoitos italiana, biscoito ingls batido, biscoito de la reina, biscoitos de massa,
biscoitos comuns, biscoitos de colher, biscoito de vrios doces, biscoitos em forma de S, fatias
151
doces, alguns foram encontrados nos livros aqui analisados: broas, toucinho do cu,
morcelas, fartes de espcies, queijadinha de amndoa, fatias da China, 553 beilhoses ou
filhoses de abbora, verdadeira de beilhoses, filhoses finos, Coscores, suspiro, raiva,
palitos, esquecidos e cavacas.554 Tais doces inclusive mantm os mesmos nomes pelos
quais eram conhecidos em Portugal. Nesse sentido, segundo Braga os doces parecem
ter sido uma verdadeira obsesso em Portugal, pelo menos desde o sculo XVI.555
vida na localidade de Arronches, onde mantinha em sua casa uma espcie de recolhimento onde
se confeccionavam doces. FERRO, op. cit., p. 78.
558
FERRO, op. cit., p. 70-82.
559
Dirio de Notcias, 22 de julho de 1888, p. 3.
560
A Provncia do Par, 14 de fevereiro de 1900, p. 4.
561
COZINHEIRO NACIONAL, op. cit., p. 402.
562
TIGELA: vaso sem gargalo, arredondado, geralmente de loua. REGO, op. cit., p. 321.
563
RIS: Nominao de moeda j usada no Brasil. REGO, op. cit., p. 320.
564
RODRIGUES, op. cit., p. 144.
153
565
REGO, op. cit., p. 240.
566
A obra de Lucas Rigaud, intitulada Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, foi
publicado em 1780 de autoria de um cozinheiro francs que ocupava o cargo de chefe de
cozinha de D. Maria I e de D. Pedro III e que inclusive acompanhou o primeiro Conde da Cunha
D. Antnio lvares da Cunha ao Brasil entre 1763 a 1767. Rigaud escreve o livro com intuito
de que seu livro pudesse sobrepujar-se ao livro de Domingos Rodrigues, da o nome Nova Arte
154
de Cozinha, o que serve para entre outras mostrar que a obra de Domingos Rodrigues j estava
ultrapassada. FERRO, op. cit., p. 103.
567
ALGRANTI, Leila Mezan. A hieraquia social e a doaria luso-brasileira (sculos XVII a
XIX). Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica, n 22, 2002, p. 27-37. E ainda
ver: ALGRANTI, Leila Mezan. Os livros de receitas e a transmisso da arte luso-brasileira de
fazer doces (sculos XVII-XIX). In: VIEIR, Alberto (Org.). O acar e o quotidiano: atas do
III Seminrio Internacional sobre o Acar. Funchal: Centro de Estudos de Histria do
Atlntico, 2004, p. 127-143.
568
R.C.M., op. cit., p. 162.
569
Sobre assunto ver: ALMEIDA, Ceclia Pires Ferreira da Costa e. A dona de casa ou a
verdadeira doceira nacional. So Paulo: Editora Livraria Magalhes, s/d (provavelmente
publicado antes de 1920); Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, 1957. ANA MARIA. Receitas
culinrias: experimentadas por inmeras donas de casa, que colaboraram na confeco deste
livro. So Paulo: Cia. Brasil Editora, 1950. CORRA, Dona Anna. A doceira domstica. Rio de
Janeiro: Livraria de J. G. de Azevedo, 1875 1 Ed; 1877, 2 Ed.; 1895, 3 edio. CUNHA, Lina
Peduti. Segredos da boa cozinha: receitas, conselhos e sugestes das donas de casa. So Paulo:
Brasiliense, 1959. DONA BENTA: COMER BEM. 1 Ed. So Paulo: Companhia da Editora
Nacional, 1940. DONA ZILOTA. Nosso caderno de receitas. 2 Ed. So Paulo: Livraria
Lealdade, 1948.
570
MATOS, op. cit., p. 264.
155
571
VAZ, Eulalia. A sciencia no Lar Moderno: nova colleo de receitas de doces, iguarias,
petiscos e tudo o que diz respeito arte culinria. 4 edio. So Paulo, 1912.
572
ORICO, Osvaldo. Cozinha Amaznica: uma autobiografia do paladar. Belm: Universidade
Federal do Par, 1972, p. 61.
573
Sobre as memrias do menino Orico ver: FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Memrias da
infncia na Amaznia. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). Histrias das crianas no Brasil. So
Paulo: Contexto, 2013, p. 340.
574
ORICO, op. cit., p. 62.
156
No encontrei nos livros aqui analisados receitas deste doce, nem mesmo nos
livros portugueses. Entretanto encontramos no livro de Eullia Vaz uma receita de Me-
Benta:
575
Alguidar- Recipiente de barro ou metal, baixo, com diversos usos domsticos. De origem
rabe, tambm conhecido por abab. GOMENSORO, op. cit., p. 23. E ainda, no livro do
Dicionrio do Doceiro Brasileiro traz a seguinte descrio: ALGUIDAR: do rabe al-guidar.
Utenslio de barro cuja boca maior que a altura; usado em processos culinrios. REGO, op.
cit., p. 310.
576
A Provncia do Par, 29 de janeiro de 1897, p. 2.
577
VAZ, op. cit., p. 41.
157
elementos que nos levam a pensar que poderia tambm ser til para quem quisesse
ganhar e vender tais doces, ou utiliz-los em dias festivos. Ao mesmo tempo, tal receita
mostra em parte o difcil e pesado trabalho das doceiras em finais do sculo XIX, no
Par, na medida em que elas eram responsveis por todo trabalho da feitura dos doces,
inclusive na fabricao caseira dos ingredientes, com o uso do pilo para fazer o fub de
arroz, ou ainda o trabalho de misturar com colher de pau e uso de pesados alguidares.
Com um quilo de acar faam uma calda. Assim que est espelhar,
ajuntem-lhe algumas gotas de gua-de-flor e tirem-na do fogo. Pelem
um quilo de amndoas, soquem-nas um pouco, para que fique apenas
em pedacinhos, e misturem-nas na calda. Mexam tudo durante algum
tempo, e a seguir levem o tacho579 ao fogo brando, mexendo sempre
numa s direo. De vez em quando tirem o tacho do fogo, mexendo
sempre, para que a massa fique bem alva. Ela estar cozida assim que
se desgarrar da vasilha. Despejem a massa num tabuleiro molhado, ou
untado com manteiga, alisando-a bem com uma colher de pau, de
modo que no fique muito grossa. Cortem-na em tabletes, na forma
desejada.580
578
Folha do Norte, 23 de dezembro de 1919, p. 5.
579
Tacho: utenslio tradicionalmente feito de cobre e comum para a feitura de doces. REGO,
op. cit., p. 320.
580
Um Tratado da cozinha portuguesa do sculo XV, op. cit. p. 4.
158
No livro de Carlos Bento da Maia foi possvel encontrar a seguinte receita para o
Pudim de Po-de-L (grande):
581
Folha do Norte, 5 de outubro de 1950, p. 4.
582
MAIA, op. cit., p. 606.
583
GOMENSORO, op. cit., p. 297.
159
584
Folha do Norte, 5 de outubro de 1950, p. 7.
585
MAIA, op. cit., p. 599.
160
Assim, Jacob nos informar que no caso da cozinha brasileira, gostos culturais
dos portugueses, como a paixo pelo acar, foram combinados s preferncias
indgenas por frutas como caju, abacaxi, graviolas, criando doces de sabores
peculiares.587 Como podemos ver nos rebuados de cupuau, doce originalmente
portugus a base de acar, que no Par foi acrescentado um ingrediente local: o
cupuau. Tambm havia o consumo das compotas e frutas na forma de doces, tanto os
regionais, quanto aqueles formados por doces de frutas importadas. Nesse sentido,
Matos nos mostra que em So Paulo houve por parte dos imigrantes portugueses a
seguinte realidade: conservam-se as tradies da doaria portuguesa, todavia agregam-
se outros doces conhecidos no pas de acolhimento, alm os pastis e doces de ovos,
acrescenta-se o curau de milho, certos pudins, o uso do coco, influncias brasileiras.588
Receita bem semelhante a esta compota de pssego pode ser encontrada no Par,
no Receiturio da Me de Famlia, em 22 de fevereiro de 1900. A passagem de tempo
de sessenta e um anos entre a publicao do Cozinheiro Imperial e a receita do jornal A
586
COUTO, op. cit., p. 99.
587
JACOB, op. cit., p. 13.
588
MATOS, op. cit., p. 267.
589
R.C.M., op. cit., p. 177.
161
590
A Provncia do Par, 22 de fevereiro de 1900, p. 3.
591
BATES, op. cit., p. 216.
592
BURKE, Peter. O que Histria Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 78.
162
chegam das farinhas do reino de trigo-, fub de milho, fub de mandioca ou carim593,
fub de car594, alm das guas perfumadas de rosa e de laranjeira,.595 Portanto, o uso
de elementos tradicionais da doaria portuguesa como cravo, canela, acar e ovos;
misturados com diversos tipos de farinha do trigo, fub de milho, carim e mandioca,
ingredientes nacionais; e, ainda, uso de guas perfumadas como reflexo tambm da
cultura alimentar rabe. Assim sendo, temos os biscoitos baianos, biscoitos de Curitiba,
biscoitos fluminenses, biscoitos mineiros e tantos outros que traziam no nome seu
carter de origem, compilados no Dicionrio do Doceiro Brasileiro. Isso no quer dizer
que eram feitos com tcnicas e ingredientes essencialmente brasileiros. Mas, sobretudo,
ingredientes que muitas vezes eram substituies de produtos ou frutas no encontrados
no Brasil.
Assim, a tapioca aqui substitua o trigo, fazendo com que a quantidade de trigo a
ser utilizada diminusse. A quantidade elevada de gemas ressalta o carter europeu da
receita, a doaria portuguesa que tinha como base uma quantidade grande de gemas. Por
sua vez, a tapioca o ingrediente que nacionaliza a receita europeia. Da mesma forma
que, segundo Couto, a broa de milho estava entre os acepipes que incluem ingredientes
593
Carim- farinha seca muito fina (...) vocbulo tupi. MIRANDA, op. cit., p. 20.
594
(Colocasia antiquorum): tubrculo, batata grande, uma variedade do inhame. O car
macio, doce, geralmente servido cozido, sendo usado em massa para pes, bolos e outros
doces. REGO, op. cit., p. 312.
595
REGO, Antnio Jos de Souza. Dicionrio do doceiro brasileiro. So Paulo: Editora Senac
So Paulo, 2010, p. 11.
596
A base desta receita a tapioca, que uma fcula alimentcia proveniente da mandioca
extremamente utilizada na regio Norte e Nordeste, alis, no Nordeste recebe o nome de goma.
Ela tem propriedades que pode substituir a farinha do reino, que usualmente conhecida como
farinha de trigo.
597
REGO, op. cit., p. 74.
163
Uma das receitas clssicas que foram nacionalizadas o Manjar branco, que
de acordo com Rego um dos pratos mais antigos e tradicionais de Portugal, conforme
se pode constatar nos Cadernos de receitas da infanta D. Maria (1680), em que se
acrescenta at carne de ave.600 Esse prato depois chamado no Brasil de Manjar
Caboclo. A receita que leva 1kg de p de arroz, 16 garrafas de leite, acar, gua de
flor de laranjeira601 e sal mantm as tcnicas de preparo portuguesas, contudo, prima
para que o fogo deve ser muito brando para no queimar e ficar bem caboclo. 602
Assim, como nos informa Lody:
Com o passar dos anos as receitas de doces foram cada vez mais ganhando
ingredientes brasileiros associados s tcnicas culinrias brasileiras. Um exemplo disso
o bolo intitulado Bolo do Brasil que leva como ingredientes o aipim e coco ralado,604
ingredientes que definem bem esse nome. O aipim conhecido no Norte com nome de
mandioca605 ou macaxeira, um produto brasileiro, cultivado inicialmente pelos grupos
598
COUTO, op. cit., p. 98.
599
MONTANARI, op. cit., p. 15.
600
REGO, op. cit., p.196.
601
gua de Flor de Laranjeira: Aromatizante identificado pelo odor da flor de laranjeira, de uso
culinrio na doaria tradicional Ibrica, brasileira e do Magreb. LODY, op. cit., p.45.
602
REGO, op. cit., p. 196.
603
REGO, op. cit., p. 196.
604
REGO, op. cit., p. 85.
605
Segundo Hue, a mandioca (Manhiot esculenta) uma espcie de personagem pica da
alimentao brasileira. O ingrediente bsico, onipresente, resistente, potente e verstil, de onde
se extrai a matria-prima para uma srie de comidas e bebidas. Nativa do sudoeste da
Amaznia, a mandioca foi domesticada por ndios tupi h cerca de 5.000 anos, na vasta rea do
164
Ora, festejar essas datas com quitutes era uma tradio portuguesa. Rego no seu
Dicionrio do Doceiro Brasileiro traz duas receitas para bolos de So Joo, as quais, j
eram receitas mestiadas. A primeira usava como ingredientes: 460 gramas de
manteiga, 460 ditas de acar refinado, 12 gemas de ovos, meio coco-da-baa ralado,
uma pitada de cravo-da-ndia em p, meia noz-moscada ralada, 4 clices de vinho
branco e 450 gramas de mandioca puba608 e 12 claras. A outra receita levava: 1.500
gramas de mandioca puba, 1.500 gramas de acar refinado, 750 ditas de manteiga, 2 ou
Alto rio Madeira, de onde se espalhou pelo Brasil adentro, atingindo o Paraguai, a Bolvia, o
Peru e a Guiana. Ainda hoje gomas, polvilhos, beijus, tapiocas, tacacs, bebidas fermentadas,
farinhas e medicamentos produzidos na regio amaznica so um testemunho de sua
brasileirssima origem. HUE, op. cit., p. 59. Segundo Miranda, Entende-se por mandioca a
grossa raiz comestvel da maniva, Manihot utilissima. A expresso mandioca brava no usada
no Par, porque as espcies ou variedades de razes lenhosas, finas, quase carentes de amido,
imprprias alimentao, damos o nome de maniva do campo ou de maniva de veado. A
mandioca a que alhures chamam mansa ou doce s conhecemos por macaxeira, Manihot aipy.
Da mandioca existem duas qualidades: a mandioca branca e a mandioca amarela. Em Caiena
esta a mais apreciada, mas no Par a branca tida como fornecendo farinha mais saborosa.
Etim. Tupi mandic. MIRANDA, op. cit., p. 50.
606
Segundo Monteiro, existem castas de mandioca as quais so diferenciadas na cor e formato
das folhas. A cincia destaca pelo menos as seguintes: mandiocua ou mandioca amarga, a
verdadeira (Manihot utilssima); manioca-au (Humirianthera rupestris, Ducke), mandioca doce
ou macaxeira (Manihot Palmaia Muell. Arg. = Manihot aypi Pohl)., manicaua ou manioba
(Manihot glazovii Muel Arg.) Maniva do campo (Manihot sp...), maniva dos ndios
(Manihot...); maniva de veado (Manihot...). Alm desta classificao cientifica, o caboclo
distingui as seguintes castas ou pelo menos as conhece por denominaes varias, por exemplo:
baro ou barozinho (mandioca amarela), carum, imiri, mandioca branca, sendo que a imiri
ainda mais branca do que a carum; mandipalha, puri grande e landi (urandi) pequena; boniata,
caz ou cachite; huacamote (...). MONTEIRO, op. cit., p. 40.
607
REGO, op. cit., p. 96.
608
Tambm chamada de carim. Essa farinha o resultado da mandioca amolecida na gua,
seguindo vrios processos. So muitas guas at conseguir a consistncia desejada, para ento
secar e se obter uma farinha muito branca. REGO. op. cit., p. 158.
165
3 dzias de ovos, cravo e erva-doce.609 Nas receitas nota-se que a utilizao de elevado
nmero de gemas, acar refinado, as especiarias e o vinho so influncia portuguesa.
Por sua vez, a utilizao da mandioca puba e do coco-da-baa nacionaliza o bolo.
O livro de Rego trazia uma receita de Papos de Anjos, doce que era elaborado da
seguinte forma:
609
REGO. op. cit., p. 97.
610
REGO, op. cit., p. 116.
611
REGO, op. cit., p. 238.
166
cotidiano, tendo seu uso restrito a tais momentos. No cardpio do Bar do Rio Branco,
de 8 de agosto de 1926, encontra-se:
Sobremesa entre outras combinaes de fructas, po, Kek, puding de
laranja, creme de caf, etc. Cartolla de 30. Executa-se qualquer outro
prato ao paladar do mais exigente freguez, preparado por profissionais
na arte culinria, dos melhores restaurantes do sul do paiz.612
612
Folha do Norte, 8 de agosto de 1926, p. 07.
613
Talhada: fatia ou naco de grandes dimenses. REGO, op. cit., p. 320.
614
A Provncia do Par, 23 de janeiro de 1900, p. 4.
615
Tcnica em que consiste submeter o alimento ao do fogo ou calor. O alimento cozido
para que possa ser ingerido com segurana (o calor destri as bactrias), para que a digesto se
processe mais facilmente, para que fique mais agradvel ao paladar ou para que, a partir de uma
167
620
O autor era oficial do exrcito (Artilharia) e industrial, seu nome verdadeiro era Carlos
Bandeira de Melo, nasceu em 1848, faleceu em 1924. Com o pseudnimo de Carlos Bento da
Maia, publicou este trabalho e outros de utilidade domstica. O livro contm nmero
significativo de receitas que foram testadas e aprovadas pelo autor, traz inclusive receitas
tradicionais que passavam pelas geraes das famlias. Como era de costume em tais livros, o
livro de Bento da Maia traz algumas generalidades da cozinha como medidas, instrumentos
culinrios e outros. Tece alguns comentrios sobre os alimentos e por fim as receitas que esto
dispostas da seguinte forma: Iguarias, doces, Caf, Ch, Chocolate e coca, conservas e ementas.
MAIA, Carlos Bento da. Tratado Completo de Cozinha e de Copa. Publicaes Dom Quixote,
Lisboa. 1984.
621
MAIA, op. cit., p. 581.
169
622
REGO, op. cit., p. 10.
623
LAURIOUX, op. cit., p. 181.
624
ALBERT, op. cit., p. 201.
625
ALBERT, op. cit., p. 206.
170
Captulo III:
Sobre hbitos e tradies:
um percurso da cozinha mestia em Belm.
626
CASCUDO, Lus da Cmara. Histria da Alimentao no Brasil. 3 Ed. So Paulo: Global,
2004, p. 73.
627
CASCUDO, op. cit., p. 74.
628
Segundo Cmara Cascudo, nos primeiros anos de colonizao, as descries feitas da
mandioca eram com a denominao de inhame. Gabriel Soares de Sousa ao descrever a
mandioca dizia que: uma raiz de feio dos inhames. Pero de Magalhes Gandavo
informava em 1573 que Esta se faz da raiz duma planta que se chama mandioca, a qual como
inhame. Esse inhame no era aquele consumido na frica, mas, sim, a mandioca, pois como
certifica o autor No havia o inhame atingido ao Brasil quando os portugueses desembarcaram
em Porto Seguro. Veio deliberadamente trazido do Cabo Verde, da Ilha de So Tom,
entreposto de muita utilidade no sculo XVI para a terra brasileira, coqueiro, bananeira, arroz,
cana-de-acar...A raiz que alimentava o brasileiro a mandioca (Manihot utilssima Pohl),
ambas com variedades incontveis, as batatas (Solanum e Ipomoea), cars (Dioscorea).
Portanto, O inhame visto por Pero Vaz de Caminha e pelo Piloto Annimo era,
indiscutivelmente, a raiz da mandioca. CASCUDO, op. cit., p. 77, 78, 79 e 80.
629
Segundo Senra Mandioca, palavra indgena cujo significado , na sua origem casa de
Mani (Manioca). Esse nome decorre da lenda que explica sua origem mtica. (...) Conta-se que
a filha de um grande tuxaua ( chefe da tribo), um dia, apareceu grvida. Seu enfurecido pai
insistia em saber quem a tinha desonrado, mas ela insistia na sua inocncia, apesar das ameaas
de castigo, pois engravidara sem contato humano. Aps serenados os nimos, foi permitido que
o bebe nascesse. Era uma linda menina, como nenhuma outra jamais fora vista. Doce, meiga,
quieta. Uma verdadeira filha de Tup! E foi chamada de Mani. Logo, todos se apaixonaram pela
171
criana, cuidando dela e admirando-a. Passados dois ou trs anos, serenamente, tal qual viera, a
menina Mani fechou os olhos, morreu como se apenas dormisse. Em contraponto, toda a tribo
se desesperou. Seria um castigo de Tup? Ou seria inveja dos espritos das matas? Apesar da
tristeza, tribo restou enterra Mani na sua oca (casa), como era costume. Algum tempo depois,
perceberam que, no cho daquela oca abandonada, brotou um arbusto esguio sobre o lugar da
sepultura de Mani. O paj da tribo, em reposta ao mistrio, recebeu uma mensagem em sonho:
Tup ordenou arrancar o arbusto e ensinou como consumir suas razes, revelando o presente de
Mani para seu povo e confirmando sua presena eterna entre eles. Cf. SERNA, Asdrubal
Vieira. In: LODY, Raul (Org.). Farinha de Mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da
Bahia. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2013, p. 36.
630
CASCUDO, op. cit., p. 91.
631
CASCUDO, op. cit., p. 91.
632
BELUZZO, Rosa. Nem garfo nem faca: mesa com os cronistas e viajantes. Rosa Belluzzo.
So Paulo: Editora Senac-So Paulo, 2010, p. 85 e 86. Tambm sobre assunto ver CRUZ,
Roberto Borges de. Farinha de pau e de guerra: os usos da farinha de mandioca no extremo
Norte (1722-1759). Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia. UFPA. 2011.
633
BELLUZZO, op. cit., p. 87.
634
BELLUZZO, op. cit., p. 87.
172
mais ao norte, com lngua que usavam para ralar guaran. Mais
camaro, caranguejo, lagosta, mexilho, ostra, pitu, sernambi. 635
635
CAVALCANTI, Maria Letcia Monteiro. Gilberto Freyre e as aventuras do paladar. Recife:
Fundao Gilberto Freyre, 2013, p. 168.
636
MONTANARI, op. cit., p.57.
637
MONTANARI, op. cit., p. 96.
638
MONTANARI, op. cit., p. 96.
639
CNDIDO, Suely da Silva. Alimentao: construo/expresso da identidade de um povo.
In: I Seminrio sobre alimentos e manifestaes culturais tradicionais. Universidade Federal de
Sergipe, So Cristovo, SE, 2012, p. 2.
640
CNDIDO, op. cit., p. 2.
173
Nesse sentido, Japur indica ainda que entre os ndios da regio amaznica era
usual o preparo de peixe pelo moqum e da moqueca envolvida em folha de bananeira.
Informando ainda que eles alimentavam-se de mel, bebiam mate e gostavam de comer
is ou tanajuras assadas.642 Os grupos indgenas tinham tcnicas de preparo bsicas e
limitadas, no sentido de que faziam uso de duas tcnicas especificas: o cozimento em
panelas de barro (essa era em menor utilidade)643 e o moqum. Da mesma forma,
conservavam seus alimentos ao sol ou ento na tcnica de defumao. Sobre essa
realidade Hans Staden observa, no sculo XVI, que os indgenas:
Quando cozem alguma coisa, peixe ou carne temperam-na com
pimenta-verde, e depois fazem uma sopa a que chamam de mingau,
que bebem em cascas de porungas. E para guardar a carne ou peixe
penduram-nos de varas, a uns quatro palmos acima do fogo, onde
secam na fumaa. Para comer esses alimentos, aferventam-nos outra
vez. A carne preparada ao fumeiro chama-se moqum. 644
Tal prtica conservou-se at o sculo XIX e XX. Nos cardpios dos restaurantes
ou nas notcias sobre alimentao, ou ainda naquelas em que a comida aparece
secundariamente, possvel encontrar essa forma de preparo que tem sua origem nos
grupos indgenas desde antes da presena portuguesa na Amrica. Na cidade de Belm,
no jornal Dirio de Notcias, de 1887, por exemplo, uma notcia nos chama ateno: o
Sr. Joo B. G. Ledo e toda sua famlia haviam sido envenenados, segundo o peridico
com tainha moqueada.645 A referida notcia nos indica que, em fins do sculo XIX,
ainda era comum a tcnica da tainha moqueada e de outras carnes e peixes tambm.
Todavia, com o passar do tempo e as trocas culturais, como ver-se- mais adiante,
percebemos que se criam uma mestiagem nos pratos e nas tcnicas de preparo desses.
Desse modo, se o tempero principal dos grupos indgenas eram as pimentas, eles
no faziam uso de condimentos e nem o sal. Cavalcanti afirma que os ndios usavam
pimentas (quiy) secas ao sol, depois piladas e reduzidas a p. Postas diretamente na
boca junto com carnes, farinhas, peixes e pires; e com variados cheiros, cores e
641
JAPUR, Jamille. Esbo Bibliogrfico da Cozinha Nacional. In: Revista Brasileira de
Folclore. Ano IX, N25, setembro/dezembro de 1969, p. 247.
642
JAPUR, op. cit., p. 247.
643
Segundo Cmara Cascudo, os indgenas no tinham o hbito de comer comida com molho,
uma vez que o indgena se servia do molho ao mesmo tempo que comia, e no misturado.
Essa realidade demonstra porque havia preferncia pelo assado. CASCUDO, op. cit., p. 514.
644
STADEN, Hans. Suas viagens e cativeiro entre os ndios do Brasil. 4 Ed. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1945, p. 41 e 42.
645
Dirio de Notcia, 14 de agosto de 1887, p. 1.
174
sabores.646 J Cmara Cascudo indica que os ndios faziam uso de algum cozido,
muito assado, pimenta, raro sal. Nenhum leo comestvel. De acordo com o autor a
alimentao indgena se caracterizava pela ausncia de comidas fritas, guisados,
esparregados, sopas, papas de cereais.647
Segundo Belluzzo, os grupos indgenas desconheciam qualquer tipo de gordura
ou fritura, consumiam seus alimentos crus, cozidos ou moqueados.648Alis, nessa
tcnica as carnes e peixes eram envoltos em folhas de bananeira e assadas no moqum,
muitas eram cozidas muito lentamente at tostar. Era uma tcnica usual e cotidiana, uma
vez que garantia a conservao e melhor armazenamento. Jean de Lry, quando de sua
viagem ao Brasil em 1556, descreveu a prtica do moqueamento explicando como se
formava uma uma grelha de madeira para se assar caas e pescados. De acordo com o
viajante enterrava-se profundamente no cho quatro forquilhas de pau, enquadradas
distncia de trs ps e altura de dois ps e meio; sobre elas assentam varas com uma
polegada ou dois dedos de distncia, uma da outra.649
Alm de peixes e outras carnes moqueadas, Belluzzo afirma que os indgenas
na regio Norte, preparavam o piracu, farinha a base de peixe acari, consumida no
perodo das entressafras.650 E tambm Colhiam frutas silvestres e extraam o mel para
consumo in natura, utilizando tambm como adoantes as bebidas fermentadas, como o
alu ou o cauim.651 Sobre essa realidade Silva destaca que:
(...) as naes indgenas, que, embora muito distintas entre si, tinham
maneiras semelhantes de alimentar-se, baseadas nas alternativas que a
terra farta oferecia, marcadas, principalmente, pelo consumo de carnes
de caa, peixes, rpteis e mariscos, razes e tubrculos cozidos, alm
de uma infinidade de frutos silvestres. 652
653
ACAYABA, Marlene Milan (Org.). Equipamentos, usos e costumes da Casa Brasileira. So
Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000, p. 14.
654
A alimentao como parte da vida dos indivduos, desperta no historiador olhares sobre o
que significa o alimentar-se nos diferentes tempos e sociedades. Indo alm quando cria relaes
entre grupos que passam a se ver como pertencentes a uma mesma matriz cultural, ou melhor, a
uma dada identidade, que em alguns casos pode ser tnica. Nesse aspecto o trabalho de
Reinhardt sobre a padaria Amrica, em Curitiba e suas broas de centeio traduziam um: (...)
elemento cultural que foi repassado aos descendentes. Hoje, a broa constitui-se, em muitos
casos, na ltima ligao com uma identidade tnica. Ela um meio de trazer sentimentos,
memria, identidade, histria. SILVA, Victor Augustus G. & REINHARDT, Juliana C. A broa
nossa de cada dia: memria e identidade das geraes curitibanas. In: www.abant.org.br., p. 1.
Tambm sobre esse tema ver Eric Hobsbawm & Terence Ranger (orgs.). A inveno das
tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
655
SILVA & REINHARDT, op. cit., p. 3.
656
SILVA &REINHARDT, op. cit., p. 6.
176
culturais culinrios so capazes de substituir qualquer outra imagem com enorme fora,
identificando o local de origem e/ou algum grupo social.657
Diferente da maneira que Jacques Flores enaltece o aa, nos idos de 1947, como
um produto da terra, regional e eivado de identidade. O prprio autor inclusive se coloca
como um bom paraense bebedor de aa, ao construir seus textos em primeira pessoa do
plural. Neste sentido, quando o assunto era o aa ele coloca-se com fazendo parte do
povo paraense que no deve renegar suas origens e assim adorava o produto: Eu,
tambm, sem ser coisa alguma neste mundo, digo, repito e juro que gosto, dou a vida
pela preciosa bebida de minha terra.660 Essa ideia de pensar o aa como comida tpica,
ganha espao a partir dos modernistas, na primeira metade do sculo XX. Desta forma,
como salienta Dria, deve-se pensar uma cozinha brasileira somente aps o movimento
modernista, em especial o sentido atual de cozinha nacional, uma vez que: Na mesma
poca em que se descobriu o barroco como estilo arquitetnico, armou-se o discurso
sobre a culinria brasileira- um estilo que fruto do amlgama dos modos de comer de
ndios, negros e brancos. E ainda, para o autor a cozinha brasileira nunca se
657
SILVA & REINHARDT, op. cit., p. 7.
658
E ainda, para o autor Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas,
normalmente reguladas por regras, tacitamente abertamente aceitas, tais prticas de natureza
ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da
repetio, o que implica, automaticamente uma continuidade em relao ao passado. Alis,
sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado.
HOBSBAWM, E. RANGER. op. cit., p. 9.
659
Folha do Norte, 27 de janeiro de 1897, p. 2.
660
FLORES, op. cit., p. 71.
177
importante enfatizar outro aspecto dessa comida, no Par, com forte origem
indgena, porm, mestiada, a partir da relao estabelecida entre o espao e a
alimentao. Assim, trata-se de pensar como o territrio com suas riquezas e
dificuldades para o acesso aos alimentos se vincula construo de um cardpio
alimentar. Seria o que Montanari chama de cozinha de territrio, ou seja, os pratos
locais, ligados a produtos locais.664 Assim, sob esse ponto de vista, a comida , por
definio, mais diretamente ligada aos recursos do lugar.665 Os pratos regionais, aqui
analisados, em grande medida so na sua origem frutos dos recursos que o territrio
disponibilizava aos grupos indgenas, como a mandioca e seus derivados, as pimentas, a
tartaruga, a paca, a maniva, os peixes, os patos e tantos outros.
O memorialista Osvaldo Orico nos informa que, no ano de 1935, quando era
Secretrio-Geral do Estado, na companhia do Desembargador Jorge Hurley, ambos
visitaram acampamentos indgenas no Par, no caso as aldeias do Guam. Conta, ento,
661
DRIA, Carlos Alberto. A Formao da Culinria Brasileira. So Paulo: Publifolha, 2009,
p. 8. Sobre o tema ver tambm: BARBOSA, Lvia. Feijo com Arroz e Arroz com Feijo. O
Brasil no Prato dos Brasileiros. Horizontes Antropolgicos. Ano 13, n 28, julho/dezembro de
2007.
662
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2008.
p. 17.
663
MONTANARI, op. cit., p. 11.
664
MONTANARI, op. cit., p. 135.
665
MONTANARI, op. cit., p. 136.
178
que ficou impressionado e de certo modo decepcionado, pois a alimentao que ali nos
serviram era muito diferente daquela a que nos haviam acostumado as quituteiras e
cunhs que haviam enfeitiado nossa infncia e mocidade com seus pratos apimentados
e gostosos.666 Apesar de Orico no informar que tipo de pratos eles comeram, as
comidas regionais que lhe davam tanto gosto, as quais ele entendia como de origem
indgena, na verdade, eram pratos mestiados. Assim ele conclui que Cotejando os
pitus da cozinha amaznica e os moquns e temperos da indgena, no podemos
afirmar que os nossos condimentos sejam exatamente a herana ameraba no que ela tem
de primitivo e trivial e ainda: Na panela indgena abundava a pimenta, mas faltava
geralmente o sal, cuja falta tornava para ns inspida sua caa e sua pesca.667
Nessa perspectiva, Massimo Montanari enfatiza que assim como os produtos,
os pratos tambm se mostram, talvez desde sempre, vinculados ao territrio, aos
recursos, s tradies.668 Por outro lado, se a cozinha lugar de manuteno das
origens ela tambm lugar de trocas. Assim, como a lngua falada, o sistema alimentar
contm e transporta a cultura de quem a pratica, depositrio das tradies e da
identidade de um grupo. E ainda, Constitui, portanto, um extraordinrio veculo de
auto-representao e de troca cultural.669 Dessa forma, a cozinha brasileira, e no caso, a
cozinha paraense uma cozinha mestiada. Mestiada no que tange sua composio e
tcnicas de elaborao, tendo novos ingredientes e novas tcnicas de preparo. Tal
processo de miscigenao culinria, segundo Silva, inevitvel, sendo calcado na
preparao de pratos simples e de sabor local, [e que] pode ser atribudo a esse convvio
mais profundo, que permitiu dia-a-dia, as trocas constantes entre as diferentes culturas
envolvidas.670
Aqui cabe dizer que essa mestiagem vai alm do mito das trs raas que foi
tambm reeditado para a culinria.671 Dria enfatiza que a ideia dessa miscigenao
(ndios, negros e brancos) culinria, que se materializa num cardpio sinttico e
partilhado pelos brasileiros, muito simplista para uma realidade to complexa.672
666
ORICO, op. cit., p. 87.
667
ORICO, op. cit., p. 88.
668
MONTANARI. op. cit., p. 137.
669
MONTANARI, op. cit., p. 183.
670
SILVA, op. cit., p. 57.
671
Por determinado tempo entendeu-se que a mistura do portugus, ndio e negro foram os
nortes da miscigenao do Brasil e assim que a alimentao tambm era fruto destes trs grupos.
O que se coloca hoje que a mestiagem da alimentao ocorreu de forma singular em cada
regio e muito prpria da sua histria. Cf. DRIA, op. cit.
672
DRIA, op. cit., p. 11.
179
Como ressalta Lody, houve um longo caminho de produtos que circulavam no Brasil,
formadores de novos hbitos alimentares.673 O que permite ver como vai se formando
uma cozinha plural, j abrasileirada.674 Lembrando que o principal fator responsvel
fora as grandes navegaes,675 uma vez que essa globalizao de trocas culturais, no
caso aqui as trocas alimentares, foram responsveis por moldar as prticas alimentares e
os pratos de cada regio alcanada. Desta forma, como nos informa HUE: (...) pelas
rotas martimas portuguesas que ligavam o Oriente, a Amrica, a Europa e as ilhas
Atlnticas, foram transportadas no somente pessoas, mas tambm plantas e animais.676
Nesse sentido, Cowan considera que a plvora, a bssola e a prensa tipogrfica
na Europa, nos sculos XIV e XV foram fundamentais para que houvesse uma
transformao na cultura alimentar da Europa no incio da era Moderna. Para o autor
esse conjunto de invenes estabeleceu as bases para a descoberta, e at para a
conquista, de muitos novos mundos na Amrica, frica e na sia (...). 677 Ento
ocorreram trocas alimentares significativas para a Europa, da mesma forma que houve
673
Alguns produtos tinham tanta importncia que foram responsveis pela manuteno de
diversos grupos. Esse era o caso da mandioca, que segundo Monteiro era uma planta conhecida
e utilizada tanto pelos americanos na Amrica como pelos africanos na frica antes do
entrevero de Colombo, na forma mais comum e necessria de farinha, que constitua a
subsistncia primria nos dois continentes. MONTEIRO, Mrio Ypiranga. Alimentos
preparados base de mandioca. Revista Brasileira de Folclore. Ano III. N. 5, janeiro/abril
1963, p. 37.
674
LODY, Raul. A virtude da gula: pensando a cozinha brasileira. So Paulo: Editora Senac
So Paulo, 2014, p. 34.
675
E mais como nos salienta Montanari: Em todas as latitudes, os equilbrios econmicos e as
estruturas produtivas do novo continente foram transtornadas para uso dos dominadores
europeus, que utilizavam os territrios conquistados como espaos produtores de comida,
exportando para alm-mar todos os produtos fundamentais da dieta europeia, plantas e animais:
antigas plantas mediterrneas (a clssica trade trigo-videira-oliveira), bem como os principais
animais de pastagem (bois, cavalos, porcos), passaram naqueles anos para alm do grande
oceano.O mesmo aconteceu com o caf e a cana-de-acar, produtos de origem centro-ocidental
que os rabes e os turcos haviam apresentado ao Ocidente e que os ocidentais no demoraram a
introduzir nas colnias americanas, satisfazendo os novos desejos do velho continente, iniciando
um importante captulo na histria da colonizao e do escravismo. MONTANARI, op. cit., p.
51.
676
Os coqueiros to nordestinos vieram da sia, mangueiras e jaqueiras da ndia, a banana to
abrasileirada veio do sudoeste asitico e o inhame do continente africano. De Portugal vieram
laranjeiras, limoeiros, marmelos, figos, meles, couves, alfaces, salsinha, coentro, vacas, porcos,
cabras, carneiros e galinhas. Daqui foram a mandioca, amendoim, o car, batata-doce e a
pimenta, farinha, tapioca, as aves. HUE, Sheila Moura. Delcias do descobrimento: a
gastronomia brasileira no sculo XVI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 13 e 14.
677
COWAN, Brian. Novos Mundos, novos sabores tendncias culinrias ps-Renascimento. In:
FREEDMAN, Paul (Org.). A histria do sabor. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2009, p.
197.
180
678
FREYRE, Gilberto. op. cit., p. 121.
679
OSSIPOW, Laurence. Comer italiana na Sua romanda: sade, convivialidade e
mestiagem. In: FISCHLER, Claude & MASSON, Estelle. Comer: a alimentao de franceses,
outros europeus e americanos. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2010, p. 260.
680
OSSIPOW, op. cit., p. 260.
681
MONTANARI, op. cit., p. 11.
682
MONTANARI.op. cit., p. 12.
683
MACIEL, Maria Eunice. Uma cozinha brasileira. Revista Estudos Histricos. Alimentao.
N. 33. Ano: 2014/1, Rio de Janeiro, p. 6.
181
que se volta para a alimentao no Par desde fins do sculo XIX at meados do sculo
XX, compreendemos que a alimentao com suas formas e prticas formada atravs
de um processo que envolve muito mais que uma necessidade biolgica, mas, antes de
tudo resultado de um processo histrico, social e cultural de constituio dessa
sociedade paraense nesses contextos to distintos.
Assim, nossa perspectiva de entendimento vai ao encontro de Maciel, quando a
autora informa que a alimentao implica representaes e imaginrios, envolve
escolhas, classificaes, smbolos que organizam as diversas vises de mundo no tempo
e no espao.684 Desse modo, a cozinha do Par, e de Belm, tem sua origem nas formas
e ingredientes indgenas, mas, que ao longo do tempo foi se transformando numa
comida mestia, na medida em que as prticas alimentares dos moradores da cidade,
foram se mesclando a ingredientes portugueses, africanos, espanhis. Ora, isso no de
se estranhar, numa cidade, como Belm que mantinha um porto cosmopolita,685
caracterizando a capital do Par como aquilo que Braudel chamou de cidades-mundo,
uma vez que essa cidade no contexto aqui estudado parecia ter uma vocao
internacional.686 Assim, a cidade de Belm, nas palavras de Furtado organizou seu
espao por meio da dinmica do esturio. 687
Especialmente na virada do sculo XIX para o XX, a cidade de Belm tinha no
comrcio uma das suas principais atividades A cidade de Belm, com seu porto
cosmopolita, mantinha relaes comerciais com as mais diversas naes. Eram comuns
navios ingleses, americanos, portugueses, franceses, holandeses, dinamarqueses, russos,
prussianos, hamburgueses e suecos. Deste comrcio as relaes eram mais fortes com os
ingleses, americanos, portugueses e franceses. adequado observar que a presena
significativa de navios estrangeiros j existia desde a primeira metade do sculo XIX.688
Como nos informa Penteado, em 1858 o valor das exportaes foi de $355.905,4 libras
com emprego de 104 barcos com uma arqueao total de 29.493 toneladas. Deste
comrcio:
684
MACIEL, op. cit., p. 1.
685
Sobre a Capital do Par atravs do seu porto ver o trabalho de FURTADO, Luciana Martins.
Porto Submerso: desafios para o patrimnio porturio de Belm-PA no sculo XXI.
www.historiaehistoria.com.br.
686
Segundo Braudel toda economia-mundo implica um centro que seria a cidade-mundo, este
espao estaria em benefcio de um capitalismo j dominante independente de sua forma.
BRAUDEL, Fernand. Civilizao material e capitalismo. Lisboa. Cosmos, 1970, p. 16.
687
FURTADO, op. cit.
688
Sobre o assunto ver: MACDO, Sidiana da Consolao Ferreira de. Do que se come: uma
histria do abastecimento e da alimentao em Belm. So Paulo: Editora Alameda, 2014.
182
689
PENTEADO, op. cit., p. 127.
690
PAR, Governo da Provncia do. Relatrio do Exmo. Snr. Vice-Almirante Joaquim
Raymundo de Lamare, em 6 de agosto de 1868. Belm: Typographia do Dirio do Gram-Par,
1868. PAR, Governo da Provncia do. Fala do Coronel Manoel de Frias e Vasconcellos. Em 1
de outubro de 1859. Belm: Typ. Comercial de A. J. R. Guimaraes, 1859.
691
O Par, 19 de janeiro de 1898, p. 2.
692
PENTEADO, op. cit., p. 133.
183
Uma cidade aberta ao comrcio e com forte diversificao social que apesar de
manter pratos de origem indgena, como farinha, carnes no tucupi, manioba, etc.,
sofreram forte diversificao de tcnicas de preparo694 bem como a introduo de novos
ingredientes. Nesse sentido, importante no naturalizar a ideia de que os que os pratos
regionais so os mais originais por terem sua base nos alimentos de origem indgena.
Assim, consideramos a necessidade de se problematizar essa ideia. Ora, a farinha de
mandioca que era produto de grupos indgenas, apesar de estar idealizada como algo da
floresta e muito prximo da natureza na verdade requer no seu preparo tcnicas
complexas e muito trabalho. E com o passar do tempo estes alimentos mudam no que
tange sua forma de fazer (modo) e como fazer (ingredientes). O tacac 695, por exemplo,
difere nos ingredientes dos grupos indgenas, pois, ao invs do camaro era feito com
peixe ou formiga sava696 e muita pimenta. Com o tempo houve a introduo do alho e
chicria no tucupi e o uso do camaro tornando-se o tacac conhecido como tpico da
Amaznia.
Parte considervel dos textos publicados sobre o tema da histria da alimentao
que so trabalhados nessa tese ressaltam que a cozinha amaznica a mais original de
todo o territrio brasileiro. Isso porque associam os pratos regionais com ingredientes
indgenas ou da floresta. Um desses trabalhos o de Carlos Alberto Dria, que em seu
livro A formao da Culinria Brasileira enfatiza sobre a: a culinria AMAZNICA:
caracterizada pelo uso amplo da mandioca e seus derivados (farinhas variadas e tucupi),
693
PENTEADO, op. cit., p. 133.
694
Segundo Cmara Cascudo as tcnicas de preparo dos grupos indgenas eram o alimento
assado, tostado, e em menor escala cozido ou passado pela fervura (...) Aqueciam antes de servir
as bebidas, mesmo que tivessem sofrido fervura preliminar. CASCUDO, op. cit., p. 84.
695
Segundo Miranda em seu Glossrio Paraense, o tacac, s. m. a tapioca diluda em gua e
fervida do modo pelo qual se prepara a goma. Adicionado de uma pequena quantidade de tucupi
apimentado um dos alimentos favoritos do paraense. Etim. vocbulo indgena. MIRANDA.
op. cit., p. 84.
696
As savas ou is eram consumidas em larga medida por grupos indgenas e que, segundo
Lopes, foi assimilada pelos colonizadores portugueses instalados na regio sudeste,
principalmente em So Paulo, onde a tradio subsiste no Vale do Paraba do Sul. E mais,
segundo Srgio Buarque de Holanda at o sculo XIX o quitute era vendido no centro da
capital paulista, em tabuleiros, pelas negras quitandeiras, ao lado de comidas tpicas como
biscoito de polvilho, p-de-moleque, cuscuz de bagre ou camaro, pinho quente, batata assada
no forno e car cozido. No por acaso, os cariocas chamavam os paulistas de comedores de
is. E ainda segundo o autor No sculo XIX, o Brasil exportou para os Estados Unidos is
cobertos de chocolate. Cf. LOPES, J. A. Dias. O pas das bananas. So Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2014, p. 63 e 64.
184
alm das frutas, peixes de rio e outros produtos da floresta.697 Ou seja, o autor entende
que a culinria da Amaznia marcada por tais elementos e que estes so sua base.
Seguindo raciocnio semelhante, Cavalcanti, em seu livro A Ptria nas panelas:
histria e receitas da cozinha brasileira, afirma que a cozinha paraense, entre todas,
a mais tradicional, a mais legtima, a mais autntica, a mais nossa. 698 Tal argumento se
baseia no fato de que, segundo o autor, desde os primeiros contatos entre grupos
indgenas e os europeus, alimentos como a farinha e seus derivados j se faziam
presentes na dieta alimentar desses ndios. Desse modo, Cavalcanti afirma que:
(...) vagueando pelos confins da Amaznia, exploradores encontraram
tribos inteiras nas fronteiras da idade da pedra, sem nenhum contato
com a civilizao, sem metais, nem ces, nem bananeiras, nem
animais domsticos e nem anzis. Mas todas elas, sem exceo, j
cultivavam a mandioca e conheciam os utenslios e a tcnica
necessria para transform-la em farinha-dgua, beijus, pires e
mingaus. E foi sobre essa base slida e imutvel da cozinha indgena
que se ergueu a culinria paraense e, durante vrios sculos, a cozinha
de todo o Brasil.699
Diante da pesquisa realizada para essa tese, nos parece que pensar dessa forma
reduz a complexidade de todo o processo histrico que envolve a constituio dessa
697
DRIA, op. cit., p. 62.
698
CAVALCANTI, Pedro. A Ptria nas panelas: histria e receitas da cozinha brasileira. So
Paulo: Editora Senac So Paulo, 2007, p. 127.
699
CAVALCANTI, op. cit., p. 127.
700
ESPIRITO SANTO, lvaro; MARTINS, Fernando Jares. Gastronomia do Par: o sabor do
Brasil. Belm: Abresi; A senda Artes Integradas, 2014, p. 22.
701
MACIEL, op. cit., p. 6.
185
702
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: ROCCO, 1984. p. 56.
703
LVI-STRAUSS, Claude. Lorigine ds manires de table. Paris: PLON, 1968, p. 411.
704
MACIEL, op. cit., p. 2.
186
705
VERSSIMO, Jos. Cenas da vida amaznica. Edio organizada por Antnio Dimas. So
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 4 e 5.
187
706
DABBEVILLE, Claude. Histria da misso dos padres Cpuchinhos na ilha do Maranho e
terras circunvizinhas. Traduo de Sergio Millet. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial,
2008, p. 325.
188
adicionada ao caldo de peixe ou carne (caa) e a essa sopa davam o nome de nug. 707
Utilizava-se muito o assado, alis, as tcnicas de preparo passavam sempre pelo assado
e a utilizao de pimenta em larga medida com a presena de farinha e do molho de
tucupi,708 sendo que as frutas tambm compunham o cardpio deste grupo.
Do mesmo modo, Simo Estcio da Silveira em sua obra, intitulada Intentos da
Jornada ao Par, publicado em 1618, relata que havia tartarugas de carne boa, da qual
se fazia manteiga dos seus ovos e uma grande diversidade de peixes. E mais, o autor
enfatiza que: no foge a observao do autor a disponibilidade de animais silvestres,
como antas, pacas, porcos e veados, alm de aves como patos, galinhas, tucanos, garas
e pombas, entre outras da regio.709 Frei Vicente de Salvador afirma igualmente que,
no sculo XVII, consumia-se as antas cuja carne era no sabor e fevera como de vaca e
tambm h outras mais caas de veados, coelhos, cutias e pacas, que so como lebres,
mas, mais gordas e saborosas, e no se esfolam para se comerem, porque tm couros
como de leito; por fim, os tatus tambm eram destinados ao consumo, sendo que a
sua carne assada como de galinha.710
Os relatos de viajantes, padres e cientistas para os sculos iniciais so
fundamentais para se conhecer parte dos hbitos alimentares. Na obra do padre Joo
Daniel, intitulada Descoberto no Mximo Rio Amazonas, sobre suas observaes da
vida amaznica j mostrava, ento, o consumo do aa e do tacac como iguarias em
larga popularidade, j habitualmente consumidas pela populao.711 No sculo XVIII,
707
O autor ainda salienta a presena de uma espcie de tempero chamado jonquere que era
composto de sal e pimenta moda. DABBEVILLE, op. cit., p. 325.
708
O Tucupi ou Tucupy, s.m. o sumo extrado da mandioca, raiz da Manihot utilssima.
Descascada a mandioca, ralada e espremida no tipiti, escorre um lquido meio grosso, amarelo
se de mandioca amarela, branco se da variedade branca, o qual, deixado em repouso, deposita
no fundo uma finssima tapioca de excelente qualidade. O lquido pode ser preparado para uso
culinrio de dois modos: tucupi do sol e tucupi cozido. O primeiro decantado da vasilha onde
repousou, temperado com sal, alho e pimenta, posto ao sol engarrafado durante alguns dias; o
segundo, depois de receber os mesmos condimentos vai ao fogo onde fervido. Com a fervura
o veneno do tubrculo desaparece. O tucupi um molho excelente sobretudo para o peixe, o
tatu, o pato e o taititu; seu uso no limitado Amaznia, nas Antilhas e alhures ele muito
apreciado com nome de cassarip. O caldo da mandioca mole espremido no tipipi. Etim.
Tucupy. Cf. MIRANDA, op. cit., p. 92.
709
SILVEIRA, Simo Estacio da. Intento da jornada ao Par. Lisboa, 21 de setembro de 1618.
In: SARAGOA, Lucinda. Da Feliz Lusitnia aos confins da Amaznia (1616-1618). p. 273.
710
VICENTE, op. cit., p. 87.
711
O viajante informa ainda sobre os tipos de farinha: farinha dgua, seca, carim e tapioca
bem como os tipos de frutas que eram consumidas entre os anos de 1741 e 1747: manga, jaca,
mangaba, berib (biriba), tirub (taperab), mamo, caju, abiu, ata, araticu, abacate, goiaba,
ara, juta e bacuri, copua (cupuau), cum, ing, gojar, guandu, ginja, pitomba, maracuj,
castanhas do Brasil (castanhas do Par), jenipapo, uvas, figos, laranja, cidra, lima, limo, aa e
189
ao visitar uma casa de ndios, Sampaio informa que justamente o seguinte: estando
cheios de farinhas, frutas, peixes, notando especialmente os moquns cheios de jacars,
ou crocodilos, que para eles bocado estimado.712 E ainda, se ho de fazer reserva,
guardam os assados em cestos, e de tempos em tempos se tornam a aquentar. Para uso
dirio se vai tirando da mesma grelha para os mais dias.713
Nos idos de 1842, o Prncipe Adalberto da Prssia,714 destacava em seu relato o
fato de que os ndios trouxeram ento peixe assado e bananas da terra de presente. 715
Este viajante tambm nos fornece uma amostra do que era a alimentao dos ndios
Juruna quando informa sobre um jantar aos moldes indgenas: Um guariba assado no
espeto la indienne. Segundo seu relato a carne de macaco assemelhava-se a lebre
assada, ainda que parecesse mais dura.716 J em 1848, o viajante ingls Henry Bates
observava vrios aspectos dos costumes alimentares da populao. Semelhante ao que
vira Claude DAbbeville, no sculo XVII, a dieta alimentar girava em torno do consumo
de peixes, em especial, do peixe seco, que juntamente com a farinha e carne formavam o
trip da base alimentar, em especial, a partir da segunda metade do sculo XIX.717
Constatao semelhante de Alfred Russel Wallace, companheiro de viagem de Bates,
que tambm enfatizara sobre a alimentao da populao na Amaznia que ndios e
negros alimentavam-se de a farinha, o arroz, o peixe salgado e as frutas [os quais]
constituem o principal alimento. E que os brancos se alimentavam de peixe salgado,
bananas, pimenta, laranjas e aa.718
Em fins do sculo XIX, outra vez Jos Verssimo, em seu livro A Pesca na
Amaznia, editado em 1895, nos informa da importncia do consumo da carne de
tartaruga, cujas todas as partes eram aproveitadas. Sendo um destes hbitos alimentares
ibacaba (bacaba). DANIEL, Joo. 1722-1776 Tesouro Descoberto no mximo rio Amazonas.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p. 413.
712
SAMPAIO, op. cit., p. 64.
713
SAMPAIO, op. cit., p.64.
714
O Prncipe Adalberto da Prssia nascido em 14 de julho de 1884 e faleceu em 22 de
setembro de 1948, esteve em viagem ao Brasil no ano de 1842, publicou j na Europa um relato
do Brasil onde descrevia a vida na corte, nas fazendas, vegetao, paisagem, mas acima de tudo
os hbitos tanto da Corte do Imprio quanto dos negros escravos.
715
ADALBERTO, op. cit., p. 179.
716
ADALBERTO, op. cit., p. 183.
717
Sobre esse tema ver: MACDO, Sidiana da Consolao Ferreira. Do que se come: uma
histria do abastecimento e da alimentao em Belm (1850-1900). So Paulo: Editora
Alameda, 2014; BATES, Henry Walter. Um naturalista no Rio Amazonas. So Paulo: Livraria
Itatiaia Editora, 1979, p. 126.
718
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Braslia: Senado Federal,
2004, p. 51.
190
719
VERSSIMO, op. cit., p. 80.
720
VERSSIMO, op. cit., p. 80.
721
Folha do Norte, 11 de maro de 1928, p. 3.
722
MORAES, Eneida de. Aruanda-banho de cheiro. Belm: Cejup/Secult, 1997, p. 218.
723
Chamado assim porque eram criados pelos grupos indgenas que os chamavam de ipeca
(Cairina moschata). Segundo HUE estes patos eram utilizados para comer e tambm serviam
para eliminar grilos. HUE, op. cit., p. 138.
191
Aqui vieram ndios e ndias (...) oferecer seus presentes como costumam, uma
melancia, um cacho de bananas (...) paneiros de farinha (...) um galo ou pato pequeno, e
talvez galinhas.724 Do mesmo modo, Frei Vicente do Salvador, no deixa de registrar
em sua crnica que haviam no Brasil animais bravos como muitas galinhas bravas
pelos matos, patos nas lagoas, pombas bravas e uma aves jacus.725 Igualmente,
Gandavo informa que os patos brasileiros no eram menos saborosos e sadios que
aqueles encontrados na Europa e que os moradores da regio os tinham em mais
estima.726 Eram tambm maiores que aqueles encontrados na Europa.
Todavia, o consumo sofreu mudanas e aos poucos foram sendo incorporados
temperos portugueses. Sobre isso nos esclarece o Frei Joo de So Queiroz, no ano de
1763, quando informa que, nos arredores de Faro, no Gro-Par, os patos eram
consumidos j no sculo XVIII, ao gosto portugus, De acordo com seu relato, havia
caa de grandes patos, saborosos e tenros, tambm os inambus (...) so bem estimados,
e no so inferiores s perdizes do termo de Lisboa e Castelo-Branco, temperados,
porm ao gosto portugus.727
Por meio da pesquisa em jornais que circulava em Belm e no interior do Par,
observamos que, j no sculo XX, o consumo dos patos fazia-se em pocas de
festividades. No geral, os moradores criavam os animais que iam consumir em tempos
de festas e o pato no parecia ser prato de consumo dirio. Assim, prximo ao natal de
1917, em Belm, do quintal da residncia do Sr. Joaquim Pantaleo, o Pauta, como
era conhecido o antigo empregado do Teatro da Paz, havia sido roubado pelos gatunos
algumas galinhas e um gordo patarro que aquelle senhor reservava para a noite de
Natal.728 Nesse mesmo dia, 21 de dezembro, a Folha do Norte noticiava que ladres
tambm invadiram um quintal da taberna Vigas, na Rua dos Timbiras, e carregaram
724
QUEIROZ, D. Frei de So Jos. Visitas Pastorais. Rio de Janeiro: Ed. Melso, 1961, p. 210 e
211.
725
Hue informa que: Gndavo diz que os patos e gansos brasileiros no eram menos saborosos
e sadios que os europeus, e que os moradores os tinham em mais estima. HUE. op. cit., p.
138; VICENTE, op. cit., p. 90.
726
GANDAVO, Pero de Magalhes de. A primeira histria do Brasil: Histria da provncia
Santa Cruz a que vulgarmente chamam Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 48.
727
Os moradores tambm criavam os patos, em Portel, no ano de 1763, Joo de So Queiroz
enfatizava que: tm criao de galinhas, patos e pombas: mas coisa de que se servem muito
fora do tempo, e quando esto expirando. Faziam parte do cardpio indgena o jacar e o juin;
nos arredores do Guam, em 1762, Os ndios andavam contentssimos, esperando ter caa, e
diziam ser saborosssima e alvssima a carne daquele animal anfbio, e que por isso se come
qualquer dia. QUEIROZ, op. cit., p. 304.
728
Folha do Norte, 21 de dezembro de 1917, p. 5
192
todas as galinhas. Igualmente tentaram roubar umas cotias que o Sr. Carlos Alberto de
Pinho, maquinista de lancha, havia trazido de sua ltima viagem,729 E que
provavelmente seria degustada tambm nas festas de fim de ano. A grande procura por
patos, no havendo menos afeio pelas galinhas e cutias, se fazia tendo em vista que
eram muito consumidos, possivelmente, como prato principal, ou ao lado de outras
carnes que eram servidas nas festas de Natal e Ano Novo. Para alm desse consumo dos
dias festivos, que certamente levavam a esses roubos, tambm no se pode perder de
vista a fome dos mais pobres.
Mas, alm do pato, outros tipos de carne, como as caas, eram consumidos ao
tucupi. Em 19 de julho de 1888, por exemplo, j vemos notcias, no jornal Dirio de
Belm, acerca do lugar conhecido como Bandeira Branca, localizado no Marco da
Lgua, tido como recreio do povo paraense. Aos domingos e dias santificados, nesse
espao era possvel encontrar petisqueiras suculentas e saborosas havendo paca no
tucupy, paca guizada, paca assada (sem o calembourg), tatu no tucupy (petisco
ona).730 No sculo XX, em 1927, comia-se tambm gorda paca no tucupy no Bar
Paraense.731 No mesmo ano, ao lado das pacas, anunciava-se tambm pato no
tucupy732 e gordo veado preparado por um processo especial.733 Em 1929,
continuava a ser oferecido freguesia um saboroso veado caadora.734 Como se
pode perceber as carnes de caa ainda eram consumidas com assiduidade na cidade, e
no raro oferecidas em restaurantes. Algumas delas possivelmente eram servidas no
tucupi de maneira semelhante forma dos grupos indgenas.
Na dcada de 1920, ao lado das festas de fim de ano, um pouco antes dessa data
encontramos tambm sendo servidos patos como presena obrigatria nas mesas da
festa anual de Nossa senhora de Nazar, em outubro. Em 6 de outubro de 1939, o Bar
BB, no Largo de Nazar, em virtude do arraial oferecia o saboroso PATO NO
TUCUPY.735Nesse perodo, inclusive, era constante os avisos deste prato nos
restaurantes e outros locais de venda de comida, alm das casas onde tambm havia o
consumo do pato no tucupi. Os patos eram vendidos em pontos fixos na cidade e por
vendedores ambulantes. Em 21 de outubro de 1927, os vendedores Jos de Almeida e
729
Folha do Norte, 21 de dezembro de 1917, p. 5
730
Dirio de Belm, 19 de julho de 1888, p. 1.
731
Folha do Norte, 2 de agosto de 1927, p. 5.
732
Folha do Norte, 15 de novembro de 1927, p. 2.
733
Folha do Norte, 6 de agosto de 1927, p. 2.
734
Folha do Norte, 19 de janeiro de 1929, p. 2.
735
Folha do Norte, 6 de outubro de 1939, p. 3.
193
Manuel Miranda foram presos por estarem vendendo no bairro de So Braz patos
amarrado em varas de cabea pra baixo e assim estavam a infringir o Cdigo de Policia
736
Municipal. Enfim, independentemente de datas festivas, o pato no tucupi j fazia
parte dos pratos que eram oferecidos prontos em restaurantes, como em 16 de janeiro de
1928, no Bar Paraense, que era conhecido por servir carnes de caas aos fregueses.737
Igualmente, surgiram locais de venda especializada de Tucupi pela cidade,
medida que esse produto ganhava espao maior na mesa dos paraenses. Em 13 de maio
de 1949, por exemplo, vendia-se tucupi, na rua Bernal do Couto, 401, prximo a
Faculdade de Medicina, o qual, de acordo com o anunciante era gostoso e preparado
com higiene. Tal como uma espcie de alerta, para que o fregus fosse logo comprar o
tucupi, o anncio dizia: Habilitam-se os amantes do tacac e do pato no tucupi, que os
interessados so muitos.738 Neste momento, alis, o pato no tucupi j era preparado de
acordo com Jacques Flores com lambuzado de banha, salpicado de pimento e de
outros elementos condimentosos.739
Vemos ento o pato no tucupi, apesar do uso desse molho de origem indgena,
como um prato mestio, pois, j possvel temos a presena de alhos, pimenta-de-
cheiro e banha. Sobre essa realidade Jacques Flores assim de refere ao pato no tucupi:
Vindo do forno, tostado, com aquela cor caracterstica aos assados,
nadando em gordura, o petiscoso canard esquartejado ou melhor
trinchado, sendo os respectivos pedaos, numa verdadeira fuso entre
a ave e o suco da mandioca, mergulhados no tucupi (...). Ento, mais
que depressa, o jamb posto dentro da panela onde se acham em
amistosa unio o pato e o tucupi (...). Enquanto isso, espremem-se na
molheira vrios dentinhos dalho e algumas pimentas de cheiro. Pe-
se aps, nessa vasilha, um pouco de tucupi, e est pronto o molho,
molho que a alma do pato no tucupi.740
O autor ainda nos informa que, nos idos de 1947, se comia Pato no tucupi s
em prato fundo e com farinha dgua, da boa... Nada mais.741 Mestio tambm na sua
forma de preparo, uma vez que, como informa Lopes, se o forasteiro prestar ateno na
receita, porm, ver que a tcnica de cozimento do pato, em duas etapas, europeia. Foi
736
Folha do Norte, 21 de outubro de 1927, p. 3.
737
Folha do Norte, 16 de janeiro de 1928, p. 5.
738
Folha do Norte, 13 de maio de 1949, p. 5.
739
FLORES, op. cit., p. 94.
740
FLORES, op. cit., p. 95.
741
FLORES, op. cit., p. 95.
194
Pela descrio de Vtor Sobral, o pato no tucupi, cujo consumo tem origem
nos grupos indgenas, foi aos poucos sendo mestiado, ao seu preparo foram
incorporadas as tcnicas de assado moda portuguesa, e posteriormente cozido em um
lquido. O pato que era apenas consumido pelos grupos indgenas com molho de tucupi,
pimenta e farinha, como j foi descrito acima, passa a ser assado e posteriormente
fervido no tucupi com jambu sendo acrescido ainda no momento de consumo o arroz,
alm da farinha.
At mesmo o molho apimentado servido com o tucupi tambm passou por um
processo de mestiagem. Assim, em relao aos molhos presentes como
acompanhamentos de pratos paraenses, Osvaldo Orico, escrevendo por volta de 1972,
no seu Cozinha Amaznica adverte que na cozinha amaznica, o fundamental o
molho, combinando-se o limo, a pimenta, o sal e o alho, para a caa, para os peixes e
mariscos com que se regala o paladar de gente nortista.745 Notemos a mestiagem nesse
conjunto de temperos que constituem os molhos, que tem ingredientes indgenas como
pimenta e limo, mas que tambm pode conter o sal e o alho. E aqui o alho aparece
como o ingrediente de maior mestiagem, uma herana portuguesa.
Por outro lado, alguns pargrafos atrs falvamos de carnes de caa servidas
com tucupi, sendo que o consumo dessas carnes seria uma herana indgena, lembrando
742
LOPES, J. A. Dias. O pas das bananas. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2014, p.
201.
743
LOPES, op. cit., p. 201.
744
LOPES, op. cit., p. 202 e 203.
745
ORICO, op. cit., p. 68.
195
que eles faziam largo consumo das carnes de caa. Uma delas era a capivara, as quais
eram criadas para esse fim. Ambrsio Fernandes Brando, no sculo XVI, j observava
que: Tambm se criam pelas lagoas e rios um animal a que chamam capivara, os quais
vivem nas guas e pastam sobre a terra, semelhantes lontra na natureza, mas no nas
feies, o qual bom para se comer.746 Dizendo mais ainda:
746
BRANDO, op. cit., p. 262.
747
BRANDO, op. cit., p. 274.
748
BRANDO, op. cit., p. 278.
749
BIARD, Auguste Franois. Dois anos no Brasil. Braslia: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2004. P. 142.
750
Segundo Simonian, essa identidade de Ia, elemento central no contexto de uma das lendas
do aa- apareceu pouco na cultura belenense do aa. Pelo menos aqui em Belm se associa
muito pouco a ndia personagem do aa, no foi atrelado ao campo comercial, ao contrrio, os
196
seu estudo de histria ecolgica sobre esta planta, a mesma tornou-se conhecida como
palmeira amaznica, de cujo fruto se prepara um suco, designado atualmente pelos que
dele fazem uso como vinho de aa. Conforme Mouro, o consumo do aa ocorria
entre os Aruans, Anajazes, Mocohons, Mapuazes, Arus, tanto quanto entre os
751
Tupynambs, todos moradores do esturio amaznico. E com menor intensidade
entre os Mundurucu, Maus, Caripunas, Timbiras, Guajs e Galibis do Amap.752 Ainda
de acordo com Leila Mouro as primeiras aparies do consumo de aa foram nos
relatos de padres missionrios franceses, no Maranho, onde se fez descrio dos
diversos usos da palmeira e a fabricao da bebida aa. DAbbeville (1614) constata a
presena de grandes extenses de palmeiras (babau e yassara-aa) no Estado do
Maranho e faz referencias bebida feita dos coquinhos, muito apreciada pelos
indgenas e colonos.753 O Padre Joo Daniel, no trabalho intitulado Tesouro descoberto
no Rio Amazonas, datado do sculo XVIII, nos informa que: De algumas outras
bebidas mais deliciosas, como vinho de aa, de itacaba, de cacau, como os mais usados
locais de venda esto mais associados as imagens da fruta e da bandeirinha vermelha do que ao
da ndia Ia. A autora encontrou em um banner de associao, colocado em fachada do prdio
sede. SIMONIAN, Ligia T. L. Aa, ah! Em Belm do Par tem! Natureza, cultura e
sustentabilidade. Belm: Editora do NAEA; MAA; PROEX-UFPA, 2014, p. 105.
751
MOURO, Leila. Do Aa ao palmito: uma histria ecolgica das permanncias, tenses e
rupturas no esturio amaznico. Belm: Ed. Aa, 2011, p. 186 e 187.
752
Segundo a autora, o consumo do aa tambm est ligado as relaes dos grupos indgenas
com o seu lugar de origem, as florestas e desta forma, com o prprio imaginrio que permeiam
tais sociedades, em especial a mitologia. Assim, a lenda do aa associa a apropriao e uso
dos frutos a uma situao de crise alimentar e, portanto, de subsistncia. A lenda do aa diz
que havia uma tribo que vivia onde hoje se localiza Belm, que passava por grandes
dificuldades em termos de subsistncia. Essa situao agrava-se com o aumento da populao
tribal. Preocupado com o advento de uma grave crise o cacique Itaqui, em comum acordo com
os mais velhos guerreiros e curandeiros da tribo, resolveu sacrificar toda criana que nascesse a
partir daquele dia, durante um certo perodo de tempo. Durante muitas luas nenhuma concebeu
ou pariu, porm certo dia, a filha do Cacique Iaa, concebeu e pariu uma linda criana. Mas,
como havia sido estabelecida e imposta a medida do sacrifcio ao recm-nascido, a filha de Iaa
foi sacrificada. Iaa face ao ocorrido, trancou-se em sua tenda e rogou aos deuses, para que no
permitissem que o mesmo repetisse com outras crianas inocentes da tribo. Aps algum tempo,
certa noite, avistou sua filha prxima a sua taba, correu para ela mas a menina desaparecera,
chorou copiosamente. No dia seguinte, foi encontrada morta, abraada a uma palmeira, com os
olhos fitos para o alto da planta. O cacique notou que a palmeira tinha um cacho de frutinhas
escuras e ordenou , aps experimentar, que as mesmas fossem tiradas do cacho e amassadas
resultando num caldo de cor escura e bom sabor. A partir desse dia, o vinho de aa, tornou-se a
alimentao de toda a tribo, fortalecendo-a e revigorando-a. Segundo essa lenda, para nominar
esse alimento, o Cacique inverteu o nome de sua filha, denominou o fruto da palmeira e o
estranho caldo dele derivado de Aa. MOURO, op. cit., p. 187 e 192.
753
MOURO, op. cit., p. 194.
197
dos ndios mansos, e dos brancos, diversos mais adiante.754 Igualmente o viajante
Alexandre Rodrigues Ferreira confirma a importncia do uso do aa, em fins do sculo
XVIII, quando enfatizara que:
754
DANIEL, Padre Joo. Tesouro descoberto no Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1976, p. 205.
755
FERREIRA, A. R. Viagem Filosfica pela Capitanias do Gro-Par, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiab. Memrias: zoologia e botnica. Braslia: Conselho Federal de Cultura, 1972,
p. 237.
756
FLORENCE, HERCULES. Viagem fluvial do Tiet ao Amazonas. So Paulo: EDUSP; Belo
Horizonte: Itatiaia, 1976, p. 303 e 304.
757
AV-LALLEMANT, Robert. No Rio Amazonas (1859). Belo Horizonte: Itatiaia;So Paulo:
EDUSP, 1980, p. 53.
758
AGASSIZ, Louis. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Por Luiz Agassiz e Elisabeth Cary Agassiz.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1975, p. 101.
759
LEAL, op. cit., p. 161.
198
760
AV-LALLEMANT, op, cit., p. 37.
761
Segundo Osculati, o pirarucu alguns dos quais pesam at 600 libras, e cujas as carnes so
cortadas em longas tiras e deixadas para secar. Tem um sabor semelhante ao bacalhau, e faz-se
dele um enorme consumo em toda a comarca do rio Negro e do Par. Os ndios Ticunas vo
sua pesca com arpes, com os quais o atingem, mal se apresenta flor da gua. Este
desmesurado peixe de gua-doce tem a cabea muito volumosa, ou seja, quase cilndrica. O
corpo oblongo, as escamas so grandes, sseas, com a espinha dorsal muito longa. A cor de
um verde escuro por cima e rosa escuro debaixo; a maioria das escamas tem uma mancha rosa
de um lado, e as caudas so listradas de vermelho e azul. O pirarucu ou sudis gigas encontra-se
no rio das Amazonas e no Japur; atinge o comprimento de 7 a 8 ps; os naturais do lugar
guardam a sua lngua, que ssea, rugosa, e da qual se servem para raspar o guaran.
OSCULATI, Gaetano. De Tabatinga Belm (1847). In: ISENBERG, Teresa (Org.).
Naturalistas Italianos no Brasil. So Paulo: cone; Secretria de Estado da Cultura, 1990, p.
143.
762
AV-LALLEMANT, op. cit., p. 56.
763
TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belm do Gro-Par. Belo Horizonte: Itatiaia,
1987, p. 44.
764
TOCANTINS, op. cit., p. 210.
765
Apud ACAYABA, Marlene Milan; ZERON, Carlos Alberto (Orgs.). Equipamentos, usos e
costumes da Casa Brasileira. So Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000, p. 141.
766
QUEIROZ, op. cit., p. 295.
199
de certo modo, havia diferenas na forma de consumo, uns o consumiam com gua,
acar e farinha de mandioca, outros apenas com farinha de mandioca. Em 1910, o
viajante Paul Walle escreve sobre o Aa que seu sabor doce e adstringente e que:
Para o seu preparo, emprega-se a polpa de aa triturada e diluda com
gua. Na mistura entra tambm uma boa quantidade do pericarpo, ou
casca, da fruta, o que se reconhece pelos fragmentos speros e
inspidos que se prendem no cu da boca. Os paraenses no
pertencentes elite a bebem misturada com farinha de mandioca, o
que aumenta seu poder nutritivo. Este ser sem dvida o motivo por
que a populao pobre a consome to constantemente.767
Paul Walle, em sua visita Belm, permite por meio de seu relato visualizar
certas mudanas no consumo do aa, bem como sua importncia como alimento
regional consumido por todas as classes:
idos de 1947, tambm ressalta a diferena entre o tomar aa nos interiores e na capital,
segundo ele Os filhos do interior pem no aa simplesmente farinha e s o tomam,
bem grosso, na cuia em contrapartida, Os nascidos na capital, no entanto, (nem todos),
o ingerem com farinha, acar e, a mais das vezes, gelado. 771 Para o autor nada melhor
que um pedao de pirarucu assado comido com um piro de aa. Segundo o literato,
era o aa o maravilhoso licor, o decantado nectar que as cunhantans serviam aos
heris quando, triunfadores, mereciam, nas tabas, as honrarias gloriosas.772
Nos relatos de Jacques Flores possvel identificar duas questes fundamentais
no que se refere ao aa. A primeira delas, o modo de consumo que continuava o
mesmo, sendo o aa consumido com peixe e farinha. O segundo aspecto a ideia de
seu consumo como uma herana indgena. J por volta de 1960, Monteiro continua se
referindo ao aa como vinho.773 O autor ainda lembra o aa consumido com
farinha seca, para servir de pequeno almoo, merenda, sobremesa.774 Sendo assim
dito: Bebida de grande consumo na Amaznia, entre a populao pobre, com casas
especiais para a venda, assinaladas por bandeiras vermelhas. imprescindvel a
farinha. 775
Em relao a essa planta, Paulo Cavalcante afirma que o aaizeiro uma das
palmeiras mais tpicas do Par, onde seguramente tem o seu indigenato.776 Todavia, tal
indigenato foi com passar do tempo sendo mestiado. Do aa fabricado pelos ndios aos
poucos so acrescentados outras formas de preparo, outras formas de consumo e outros
ingredientes. Assim, ele passa a ser consumido com acar ou com sal (peixe, carne ou
camaro), com farinha, como mingau777 cozido com arroz,778 tapioca,779 ou mandioca-
puba.780
771
FLORES, Jacques. Panela de Barro. Belm: Fundao Cultural do Par Tancredo Neves.
Secretria do Estado de Cultura, 1990, p. 69.
772
FLORES, op. cit., p. 71.
773
A expresso vinho no incomum no vocabulrio de algumas pessoas para referirem-se ao
sumo de algumas frutas tomadas como suco. Citamos como exemplo vinho de muruc, vinho de
buriti e at mesmo vinho de caju.
774
MONTEIRO, op. cit., p. 67.
775
MONTEIRO, op. cit., p. 56.
776
CAVALCANTE. Paulo B. Frutas comestveis da Amaznia. Belm: Museu Paraense Emlio
Goeldi; Companhia Souza Cruz, 1998, p. 25.
777
MIRANDA, op. cit., p. 55.
778
Segundo Miranda, no Rio Capim o Mandiocaba: o mingau do arroz adoado com o sumo
da manicuera. Dado o ponto pela ebulio ao sumo da manicuera, acrescentar-se-lhe o arroz que
em pouco tempo fica cozido. MIRANDA, op. cit., p. 50.
779
Segundo Ambrsio Fernandes Brando a tapioca Compe-se da gua ou sumo que se
espreme da mesma mandioca; porque depois de junta em um vaso, cria p por baixo, a modo de
201
Por meio das suas memrias, Orico relembra o consumo e os modos de se fazer,
portanto, o hbito do mingau de banana como um produto autntico da terra, consumido
farinha de Alentejo, muito alva, e lanada a gua que est por cima fora dela fica o que se
chama tapioca, que o que disse que se mistura com farinha. E pera mantus engomados e
outras cousas semelhantes muito melhor que a goma que se faz em Portugal. BRANDO,
Ambrsio Fernandes. Dilogos das grandezas do Brasil. Braslia: Senado Federal, 2010, p. 208
e 209.
780
TOCANTINS, op. cit., p. 210.
781
MIRANDA, op. cit., p. 55.
782
MONTEIRO, op. cit., p. 42.
783
SPIX, Johann Baptiste Von & MARTIUS, Carl Friedrich Philippe von. Viagem pelo Brasil.
(1817-1820). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, p. 165.
784
ORICO, op. cit., p. 41.
202
por vrios grupos sociais. Na verdade, um prato j mestiado, pois alm das bananas
levava leite. Voltemos, no entanto, ao aa que poderia ser encontrado em vrios lugares
para o seu consumo, conforme vimos anteriormente. Por meio da imprensa percebemos
tambm seu consumo por vrios grupos sociais, conforme j asseveramos. Desse modo,
o aa aparece em cardpios como o do Hotel Ideal, localizado na Ilha de Mosqueiro,
importante balnerio e distrito de Belm, que anunciava ter em seus menus
variadssimos asssahy fresco a qualquer hora.785 Em 8 de outubro de 1939, por sua vez,
o Assahy era servido na Sorveteria Japoneza de propriedade de Matuite Guemba, na
Avenida Independncia, na qual se oferecia por 800 ris aa completo. 786 Sobre essa
realidade, nos idos de 1930, o escritor Raimundo Moraes asseverava o consumo do aa
em grupos sociais distintos e de forma diversa:
Em geral, os roceiros o bebem misturados com farinha dgua ou de
tapioca, fresquinho mal sado das mos da amassadeira. As gentes
ricas de Belm e Manaus mandam prepar-lo em casa e bebem-no
com acar tambm adubado de farinha, em tigelas, em cuias, em
copos. O mingau e o sorvete so magnficos (...).787
785
Folha do Norte, 11 de dezembro de 1927, p. 5.
786
Folha do Norte, 8 de outubro de 1939, p. 6.
787
MORAES, Raimundo. Paiz das Pedras verdes. 1930, p. 103 e 104.
788
CAVALCANTE, op. cit., p. 27.
789
Sobre outros trabalhos sobre o aa ver: CALZAVARA, Batista Benito G. As possibilidades
do aaizeiro no esturio amaznico. Boletim da Faculdade de Cincias Agrrias do Par, 1972;
CHAVES, J. M. & E. O aa, um dos alimentos bsicos da Amaznia. Amap, 7 f. (mim), 1945.
E, COSTA, Dante. Presena de vitamina A no aa. Boletim da Faculdade de Cincias Agrrias
do Par, Belm, 1959, n. 9, p. 53-63.
203
apenas a bebida que se tomava, mas, principalmente, o mais importante alimento de tais
classes. 790 Segundo Cavalcanti o aa era um complemento bsico na alimentao das
790
A relao entre doenas vinculadas ao consumo do aa tambm foi ponto de discusso em
1918, quando no jornal Folha do Norte, em 24 de janeiro de 1918, publica o estudo do Doutor
Redomark de Albuquerque, cientista que fazia parte do Servio Sanitrio Estadual, segundo o
qual o aa era um dos veculos de contaminao e consequentemente aumento dos casos da
lepra em Belm. Segundo o doutor, o aa deveria ser abolido, uma vez preparado pelo
processo comum. Processo esse que era feito por macerao do fructo do euterpe oleracea,
seguindo-se-lhe o da despolpao manual. Uma vez que segundo Redomark A bebida assim
obtida representa um grande perigo sade, e deve ser condemnada. Ele ainda enfatiza que as
autoridades sanitrias deveriam proibir a venda do aa que fosse manipulado desta forma j que
esta bebida um dos maiores vehiculos transmisso do Bacillo de Hansem. Desta forma, em
meio aos inmeros casos que aumentavam em Belm, o doutor Redomark conseguiu observar
que o aa era um dos veculos de transmisso da doena na cidade. Sua teoria vai ser contestada
posteriormente no mesmo jornal. O caminho no era dos mais fceis, uma vez que o doutor
defendia a suspenso de um dos produtos mais consumidos na regio. O aa sempre teve
espao nas mesas do paraense fosse rico ou pobre, sendo o seu consumo dirio e no caso das
famlias mais pobres era o alimento substancioso que completava e que, por vezes, nico na
mesa destas famlias. Ou seja, o aa era mais que complemento era parte cultural da
alimentao destes indivduos. Era quase impensvel deixar de consumi-lo. Segundo o doutor
Lauro Sodr, em 1919: Se verdade que se no conhece, ainda hoje, o modo por que se
propaga a molstia, verdade que a sua transmissibilidade um facto confirmado, seja Ella
directamente de individuo a individuo, seja por intermdio de uma agente vehiculador. Era
justamente desta forma que o doutor Redomark Albuquerque acreditava que, no ano de 1918,
ocorria a contaminao pelo aa. Uma vez que: Nas paragens amaznicas o leproso, enquanto
lhe permitte o seu estado, aproveitado no preparo de certos produtos alimentcios de consumo
dirio, e para no ir mais longe limito-me a citar um que j entrou nos hbitos da populao, no
qual trabalha grande nmero de doentes, dispersando a molstia, contaminando o povo,
diariamente, ininterruptamente o assahy. Para o doutor as classes menos favorecidas buscam
no negcio do aa uma forma de fazer dinheiro, de lucro e que ningum ignora que os doentes
de lepra, e os h por toda a parte, contribuem com contingente de trabalho manual na fabricao
da bebida. o que se pode desejar de mais deshumano e de mais perigoso. E mais, Redomark
Albuquerque ainda dizia que No exerccio da minha profisso tenho entrado em algumas casas
das que vendem assahy, e sempre deparo um leproso, que, ao que me affirmam todos,
empregado na industria daquella bebida. Segundo ele com o agravo da doena em que a pele
abre-se em ulceras, inclusive chegando aos membros superiores, em especial, com a mutilao
dos membros a contaminao seria maior. Nesta fase, o doente ao menor contacto com os
objetos que o cercam distribue a mancheias a bactria de Hansem, de que esto impregnados os
productos do sphacelo orgnico a que elle fica condenado. Uma vez que, na tcnica de
fabricao do aa a macerao e despolpao dos frutos, de forma tida pelo doutor como
rudimentar, em que se empregava as mos e desta forma o leproso ao manusear os frutos vai
eliminando as escaras que se desagregam de suas mos. O resultado a contaminao dos
detritos necrosados do Bacilo de Hansen que a partir de ento tomam parte integrante da bebida.
Os quais por no passarem por nenhum tipo de choque trmico ou mesmo tcnica de
esterilizao e que aps a macerao e a despolpao em gua fria levada ao consumo. O
estudo do Doutor Redomark de Alburquerque enfatizava que o aa era um veculo da lepra pela
forma na qual era fabricado. Para ele o principal remdio para combater essa contaminao seria
as autoridades proibissem a venda do aa e caso esta medida no fosse tomada, os
consumidores deveriam tomar a bebida de fonte segura. Talvez isso explique em parte muitas
das casas de poder econmico da cidade contratarem amassadeiras de aa particulares e
conhecidas. Quanto aos outros de menor poder aquisitivo estes no poderiam ter tais privilgios.
Para ele: Beber assahy que no seja de fonte segura representa uma verdadeira autoinfeco da
lepra, que passa despercebida no s das classes ignorantes como tambm dos elegantes. Desta
204
classes populares e, na maioria das vezes, deixa descer apenas um complemento para
constituir-se na principal alimentao.791 At mesmo os mdicos sanitaristas Godinho e
Lindenberg que, no incio do sculo XX, em visita a Belm, no apreciaram o aa,
questionado seu sabor e certa falta de higiene no seu preparo, no deixaram de ser
referir ao seu carter nutricional. Dessa forma, deixaram assim registrado: os filhos da
terra preferem sabore-lo de mistura com farinha. Esta adio vem aumentar o seu
poder nutritivo, tido em grande conta pelos indgenas, tanto que fazem do aa uso
dirio e constante na sua alimentao.792
forma, para o doutor o assahy era nada mais nada menos que um caldo de cultura do bacillo de
Hansen com que a populao diariamente, momento a momento se envenena, ingerindo o
micrbio da hedionda molstia numa bebida que muita gente adora. Folha do Norte, 24 de
janeiro de 1918.
791
CAVALCANTE, op. cit., p. 27.
792
GODINHO, op. cit., p. 106.
793
SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro. Dirio da viagem da Capitania do Rio Negro (1774-
1775). Lisboa: Tipografia da Academia de Lisboa, 1825, p. 53.
794
BRANDO, op. cit., p. 258.
205
boi tem virtude para conservar anos incorruptos os presuntos, e assim dela nos
servimos.795 No sculo XIX, o pastor metodista Daniel Kidder dava notcia tanto da
gordura, como da carne desse mamfero que eram muito apreciadas.796 Ao lado do
peixe-boi, a tartaruga sempre teve papel de destaque na alimentao em toda a regio
estudada. Dela se aproveita praticamente tudo: a carne, a banha para frituras, os ovos
para manteiga, biscoitos e at mesmo doces. Silva ao estudar a alimentao no perodo
colonial, enfatiza que a manteiga de tartaruga ser a gordura por excelncia nessas
terras, igualando-se gordura de porco no litoral e no sul, usada para conservar e
temperar os alimentos.797
Vrios eram os tipos desse quelnio que eram utilizados para alimentao, uma
delas era a tartaruga Manat consumida por grupos indgenas locais, como era o caso de
Moju, no Par. Essa tartaruga por volta de 1819, ainda que consumida pelos ndios,
descrita como um animal repulsivo: No poderia criar animal mais hediondo do que
esta tartaruga pardo-escura, com apndices de carne no pescoo e cabea (...) s sendo
comida, por causa de seu aspecto medonho, pelos ndios que tm menos nojo.798
Havia tambm o consumo dos ovos de tartaruga, do qual se fazia manteiga. Em
1762, em Boim, no Par, frei Joo de So Jos Queiroz informava que: (...) estimam-se
os ovos saborosos, como os da tartaruga, pela manteiga excelente e pela multido.799
Em 1839, Kidder salientava o carter regional da dita manteiga:
A manteiga de tartaruga da Amaznia um produto peculiar regio.
Em certas pocas do ano as tartarugas aparecem aos milhares sobre as
margens dos rios, para desovar na areia. Dizem que se ouve a grande
distncia o rudo de suas cascas batendo umas contra as outras, na
agitao da corrida. O trabalho dos quelnios comea tarde e
termina com os primeiros albores da madrugada, quando de novo se
retiram para o seio das guas. A operao se repete at que cada
tartaruga tenha depositado de sessenta a cento e quarenta ovos. 800
795
QUEIROZ, op. cit., p. 235 e 236.
796
KIDDER, Daniel P. Reminiscncias de viagens e permanncia no Brasil. Editora da
Universidade de So Paulo: So Paulo, 1972, p. 182.
797
SILVA, op. cit., p. 65.
798
Apud ACAYABA, Marlene Milan; ZERON, Carlos Alberto (Orgs.). Equipamentos, usos e
costumes da Casa Brasileira. So Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000, p. 106.
799
Apud ACAYABA; ZERON, op. cit., p. 176.
800
KIDDER, op. cit., p. 182.
206
801
Ibidem, idem.
802
OSCULATI, Gaetano. Amaznia. In: ISENBERG, Teresa (Org.). Naturalistas italianos no
Brasil. So Paulo: cone; Secretria de Estado de Cultura, p. 146.
803
OSCULATI, op. cit., p. 147.
207
bastante aceita e preferida por boa parte da populao da regio amaznica, a qual,
segundo Kidder, os ndios a utilizavam como condimento.804 Inclusive, no s o
costume de seu consumo, mas as formas de coleta dos ovos e de produo da manteiga
era uma herana indgena, ainda que sofrendo alguma alterao ao longo do tempo.
Sobre est realidade, Av-Lallemant, nos informa que:
Alm da manteiga feita a partir dos ovos, a prpria tartaruga com suas carnes
permitia se fazer diversas iguarias, tais como a sopa, que tambm era consumida
indistintamente da classe social. Segundo Spix e Martius:
804
SPIX & MARTIUS, op. cit., p. 241.
805
AV-LALLEMANT, op. cit., p. 84/85.
806
SPIX & MARTIUS, op. cit., p. 133 e 134.
807
Os mdicos ainda descreveram a caa: Curiosa a caa da tartaruga: - a fisga ou arpo
ligada a um longo cordel enrolado; atirada pelo arco, atravessa o casco da tartaruga, s ficando
ao caador o trabalho de arrastar o rptil para junto da canoa e de segur-lo com as mos.
GODINHO, Victor; LINDENBERG, Adolpho. Norte do Brasil: atravs do Amazonas, do Par
e do Maranho. Braslia: Senado Federal, 2011, p. 24.
208
808
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p. 24.
809
KIDDER, op. cit., p. 182.
810
ORICO, op. cit., p. 96.
811
LEAL, Oscar. Viagem a um pas de selvagens. Braslia: Senado Federal, 2012, p. 157.
209
Em relao aos peixes amaznicos, talvez nem um outro tenha chamado tanto a
ateno de Oscar Leal como o O pirarucu (Vastrix Cuveiru) descrito, por ele, como o
rival do Bacalhau, possivelmente, pelo fato de que quando salgado este peixe ter certa
semelhana com o bacalhau. Assim, chamando ateno para o consumo do pirarucu ele
observou que substitui perfeitamente o bacalhau e como aquele tem particular sabor,
vendem-no nas casas de secos e molhados e nas tavernas. Segundo Leal o, um peixe
pintado de manchas encarnadas pira-peixe- urucu- vermelho.814 Ainda de acordo
com Leal, o pirarucu, naquele contexto de finais do sculo XIX, ocupa sem dvida o
primeiro lugar na mesa do pobre, que o come de preferncia assado e com farinha de
mandioca.815 Tal afirmao sem dvida retrata uma realidade que difere muito do
presente, quando o pirarucu deixou de ser um peixe de consumo do pobre ou de pobre,
para se tornar um produto de consumo mais seletivo, em funo do preo desse peixe no
mercado, o qual foi encarecendo ao longo do tempo, no sculo XX. Essa constatao,
conforme exploraremos mais ao final da tese, nos sugere que as mudanas nos hbitos
alimentares se do tambm por questes econmicas.
O tucupi, largamente utilizado e que tem sua origem nos grupos indgenas, como
j nos referimos anteriormente, passou a fazer parte da cozinha mestia que estamos
defendendo aqui nessa tese. O naturalista britnico Henry Bates salientava, referindo-se
a sua dificuldade de comer o tucupi, certamente por estranhar tal paladar, conta que s
consegui com-los [ovos de iguana], misturados com molho de tucupi, de que tnhamos
sempre uma grande jarra cheia, para temperar os bocados desagradveis. 816 Foi o sabor
desse molho que permitiu ao viajante comer os ovos de iguana, alimento que no fazia
parte de seu repertrio cultural. Partindo dessa evidncia no seria descabido dizer que
812
LEAL, op. cit., p. 159.
813
ORICO, op. cit., p. 45.
814
LEAL, op. cit., p. 159.
815
LEAL, op. cit., p. 159.
816
BATES, op. cit., p. 136.
210
foi o sabor apetitoso do tucupi que acabou por transform-lo num ingrediente da comida
mestia do Par.
817
SPIX & MARTIUS, op. cit., p. 111.
818
AGASSIZ, op. cit., p. 120.
819
AGASSIZ, op. cit., p. 120.
820
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. So Paulo: Ed. Nacional, 1944, p.
175.
821
MONTEIRO, op. cit., p. 66.
211
Monteiro quem nos informa que para a elaborao do Tucupi deixa-se azedar
de um dia para o outro, depois tempera-se com alho, muita pimenta, salsa, pedacinho de
folha de mandioca, leva-se ao fogo para coz-lo, eliminando-se o princpio
venenoso.823 Os temperos citados, conforme j apontemos anteriormente, so
exceo da pimenta, ingredientes conhecidos e utilizados pelos europeus como alho e a
salsa. Era tambm servido com peixes ou outro tipo de carne, como tambm observou
Henry Bates em meados do sculo XIX: O tucupi, outro molho feito tambm do suco
da mandioca (...) preparado pelo aquecimento ou coco do liquido puro (...) e
temperado com pimenta e pequenos peixes.824 Passadas algumas dcadas, no sculo
XX, Osvaldo Orico, em seu livro Panela Amaznica, editado nos idos de 1940,
identificava o tucupi com molho que devia ser fervido com alho, pimenta de cheiro e
coentro.825 Nesse sentido, podemos identificar que houve mudanas na forma de
preparar e consumir o dito tucupi, uma vez que, nas aldeias, originalmente era um
molho, que era utilizado quase cotidianamente com peixes e farinha. Pois, como nos
informava Monteiro: No se come peixe sem tucupi apimentado e mesmo as carnes
perdem a graa sem a presena dele.826
822
MONTEIRO, op. cit., p. 66.
823
MONTEIRO, op. cit., p. 67.
824
BATES, op. cit., p. 50.
825
ORICO, Osvaldo. Cozinha Amaznica: uma autobiografia do paladar. Universidade Federal
do Par. 1972.
826
MONTEIRO, op. cit., p. 53.
827
MONTEIRO, op. cit., p. 65.
828
MONTEIRO, op. cit., p. 65.
212
Por esse relato de Alexandre Rodrigues Ferreira, vemos que havia uma panela
com gua para fazer o tacac, sendo esse alimento um dos mais consumidos nas
principais refeies de grupos indgenas, que havia observado, o que demonstra a
importncia do tacac para essas populaes. Jacques Flores, em aluso a importncia
dos diversos pratos oriundos da mandioca e de origem indgena no deixa de destacar o
tacac:
A manioba j era consumida desde o sculo XVI, como informa Gabriel Soares
de Sousa, afirmando que os indgenas comiam a folha () cozida em tempo de
necessidade, com pimenta da terra.836 Em relao a esse consumo, Ambrsio Brando
aponta que os indgenas chamavam folhas de mandioca cozidas, de manioba. Tais
folhas segundo registrou eram excelentes para tempo de fome. Desse modo, era usada
por muitas pessoas por mantimento.837Apresentava j no sculo XVI formas de
consumo diferenciadas, pois ainda que elaborada com Folhas de mandioca cozidas
podia ser misturada com peixe, s vezes com carnes (de caa) e somente temperado com
sal ou pimenta.838
834
ORICO, op. cit., p. 38.
835
ORICO, op. cit., p. 38 e 39.
836
SOARES, Gabriel Soares. Notcia do Brasil. Livraria Martins Editora: So Paulo, 1974. p. 99.
837
BRANDO, op. cit., p. 215.
838
BRANDO, op. cit., p. 215.
839
Segundo o historiador portugus Ferro as tcnicas culinrias portuguesas constavam de
assar, cozer, fritar ou estufar (...) Usava-se tambm muito o (afogar), espcie de guisado.
Corra, tostar ou enxugar eram tcnicas de acabamento de refeio. FERRO, Joo Pedro.
Arqueologia dos hbitos alimentares. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1996, p. 35. E ainda
segundo Gomensoro: Refogar: mtodo de cozimento que emprega calor mido, atravs do qual
o alimento parcialmente assado, parcialmente cozido em lquido. ferver na gordura com
temperos como cebola, alho e cheiro-verde carnes, aves, peixe ou legumes, at ficarem tenros
ou dourados, de acordo com o que for pedido pela receita. Diferencia-se de ensopar porque
utiliza muito menos lquido. Na cozinha mineira, este processo chamado de afogar. Usa-se
tambm saltear. GOMENSORO, Maria Lucia.Pequeno dicionrio de gastronomia. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1999, p. 341.
214
evidenciamos, uma das formas mais utilizadas pelos ndios para assar era chamado
moqum,840 que consistia em envolver o peixe ou outra carne em folhas e cobrir com
cinza quente. Era uma forma mais lenta de assar, essa tcnica era caracterstica dos
diversos grupos indgenas. Tal preparo das carnes, como salienta Cmara Cascudo, era
uma maneira de defend-la do apodrecimento, e no a uma forma de apresent-la para
comer.841 Essa tcnica, inclusive, j era utilizada na Grcia no perodo anterior a
Cristo. Arquestrato, em Hedypatheia, ensinava uma tcnica de fazer peixes assado em
folha de figueira: Envolva o peixe em folhas de figueira com um pouco de manjerona
(...) basta coloc-lo com delicadeza sobre folhas de figueira e amarr-lo com um
barbante, depois o deixe sob cinzas quentes.842
840
Era assim tambm chamado o pequeno jirau a 30 ou 45 centmetros do solo, sobre o qual se
colocava o peixe ou a carne de caa a moquear. MIRANDA, op. cit., p. 57.
841
CASCUDO, op. cit., p. 86.
842
SITWELL, William. A histria da culinria em 100 receitas. So Paulo: Publifolha, 2013, p.
19.
843
AMADO, Paloma Jorge. A comida baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro
Arcanjo com as merendas de Dona Flor. So Paulo: Editora Panelinha, 2014. p. 126.
844
SERNA, op. cit., p. 85.
845
CAVALCANTI, op. cit., p. 20.
215
uma verdade construda com apelo comercial dos dias atuais.846 Na Bahia que tambm
tem a manioba como comida tpica associa-se este prato no necessariamente s
tradies indgenas, a manioba vista como comida herdada dos africanos e dos
orixs,847 ainda que tenha as mesmas caractersticas da do Par. Sobre essa realidade
nos informa Serna das folhas tratadas, fervidas e modas da mandioca surge a maniva
consumida apenas no Par e na Bahia, com a qual se prepara a manioba, cozido de
carnes defumadas e linguias.848 Fica ento evidente o carter mestio da manioba,
que foi se constituindo pelas mudanas na forma de seu preparo e pelos ingredientes que
a fazem uma comida hibrida. Muito diferente daquela que Ambrsio Brando menciona
com carnes de peixe ou de caa e s vezes com carne de tartaruga e temperados com sal
e pimenta. Tal como nos informa Alves Filho, sobre a manioba dos ndios: era
comida geralmente acompanhada de pimenta, a gequitaia, que queima nos intestinos,
(...) e peixes e tartarugas.849
846
Espirito Santo sobre a gastronomia nos informa que: A singularidade da cozinha regional,
em qualquer contexto territorial, um apelo para estimular o consumo turstico. Nessa
perspectiva, evidenciar o que peculiar e especfico uma estratgia promocional que fortalece
a atratividade do destino. E mais, A cozinha regional, a amaznica em particular, est sob a
influencia das dinmicas da ps-modernidade e sua sustentabilidade no horizonte futuro -
depende da adoo de estratgias que, sem se oporem recriao necessria, fortaleam os
valores culturais ancestrais que suscitaram a imagem de singularidade do territrio. ESPRITO
SANTO, op. cit., p. 29.
847
Segundo Osvaldo Orico, A cozinha baiana uma consequncia das predilees e caprichos
dos orixs e est subordinada s suas preferncias e implicncias. Estas acodem pelo nome de
quesilhas e manifestam-se na indisposio dos deuses negros por certas comidas, como no caso
de Xang contra o feijo-branco. ORICO, op. cit., p. 76.
848
SERNA, op. cit., p. 38.
849
ALVES FILHO. Cozinha Brasileira: (com recheio de histria). Rio de Janeiro: Revan, 2000,
p.76.
850
CAVALCANTI, op. cit., p. 134.
851
AMADO, op. cit., p. 127.
216
Nos vrios pratos tidos como tpicos da Amaznia, tratados at aqui, observamos
a presena da mandioca. Herdada dos costumes e hbitos alimentares indgenas, tomou
importncia salutar e nica na alimentao das populaes amaznicas. Consumida
desde antes da colonizao pelos grupos indgenas, em forma de farinha, a mandioca
ganha novas possibilidades de consumo. Ambrsio Fernandes Brando, no sculo XVI,
salientava que a macaxeira se comia assada ou cozida, tendo o sabor das
castanhas da nossa terra.854 Brando, em suas impresses nos Dilogos das Grandezas
do Brasil, tambm informava que dos mantimentos que sustentavam os moradores do
Brasil ocupava o primeiro lugar a mandioca, descrita como a raiz de um pau que se
planta de estaca, o qual, em tempo de um ano, est em perfeio de se poder comer; e
por este mantimento se fazer de raiz de pau, lhe chamam em Portugal farinha-de-
pau.855 Em relao mandioca, Paula Pinto e Silva adverte que ela dominou todo
litoral brasileiro, acompanhando a constante migrao dos povos de origem tupi.
Diante desse processo a autora enfatiza que foi se constituindo o complexo da
mandioca composto por bens de cultura material tais como raladores, peneiras, prensas
e fornos de barro.856
852
AMADO, op. cit., p. 127; ALVES FILHO, op. cit., p. 77.
853
AMADO, op. cit., p. 129; ALVES FILHO, op. cit., p. 75 e 76.
854
BRANDO, op. cit., p. 209.
855
BRANDO, op. cit., p. 207.
856
SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijo e carne-seca: um trip culinrio no Brasil. So Paulo:
Editora Senac So Paulo, 2005, p. 81.
217
O autor ainda cita alguns dos derivados da mandioca como os beijus e a carim
quando Tambm se faz da mandioca, depois de ralada em fresco, umas como obrias, a
que chamam beijus, e por outro nome tapioca, das quais se servem na mesa em lugar de
po, e duram muitos dias.859 Raul Lody, no trabalho Farinha de mandioca: o sabor
brasileiro e as receitas da Bahia, afirma que a mandioca uma marca fundamental, e
nativa, da organizao de vrios sistemas alimentares. Segundo o autor seus muitos
produtos possibilitam realizaes culinrias que trazem a ancestralidade de povos
autctones das florestas. 860
857
BRANDO, op. cit., p. 208.
858
BRANDO, op. cit., p. 208.
859
BRANDO, op. cit., p. 210.
860
LODY, Raul (Org.). Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia. So
Paulo: Editora Senac So Paulo, 2013, p. 9.
861
MONTEIRO, Mrio Ypiranga. Alimentos preparados base da mandioca. Revista Brasileira
de Folclore, janeiro/abril de 1963, p. 37.
218
862
SERNA, op. cit., p. 39.
863
SERNA, op. cit., p. 43.
864
SERNA, op. cit., p. 44.
865
A mandioca dava origem a uma rica diversidade de produtos usualmente utilizados na
alimentao. Como farinha de tapioca, farinha dgua e outras. A farinha de mandioca puba ou
carim. Dela faz-se o tucupi e a goma. Das folhas ainda faz-se a manioba. Originalmente
utilizada pelos grupos indgenas, manteve-se com suas variedades em diversos pratos
mestiados. Cf. REGO, op. cit., p. 158. Monteiro consegue elencar 6 tipos de farinha originados
da mandioca: Farinha dgua ou amarela (conduto). a melhor farinha indicada para conduto
de certos pratos especiais como cozido de tartaruga, de tracaj, peito e casco de tartaruga,
enchimento de aves, farofa composta (...) Farinha de carim (alimento auxiliar) (...) Farinha de
Guerra (conduto e prato auxiliar) (...) foi a principal e necessria fonte alimentcia a que se
recorria em tempos ruins e entreveros. O nome que recebeu dos selvagens se explica porque
usavam dela nas suas incurses predatrias e punitivas, e dependiam dela por tempo
indeterminado (...) Farinha de Macaxeira (conduto) (...) branca e bem torrada (...)Farinha seca
escura; farinha seca branca (conduto) (...) a farinha de surui (conduto) (...)S utilizado essa
farinha na aplicao de caldinhos para enfermos, alimentos leves, enchimento de aves, farofa,
por ser muito fina e propensa a aderir garganta. A torrao muito leve (...) Farinha de tapioca
(conduto) (...) que utilizada para doces. Cf. MONTEIRO, op. cit., p. 59 e 60.
866
MIRANDA, op. cit., p. 38.
219
por trs dias para fermentao. Aps o que ela retirada e amassada com as mos,
triturada sobre uma tbua, at reduzir-se em papa, essa massa assim preparada
introduzida no tipiti e espremida. Posteriormente levada ao forno de onde sa seca e
torrada.867
Agassiz, no sculo XIX, em sua estada em Tef descreve com preciso o forno
onde era feito a farinha de mandioca uma casa, ou antes, a um telheiro coberto de
folhas de palmeira, situado em plena floresta e onde se prepara mandioca. E mais:
867
MIRANDA, op. cit., p. 38.
868
AGASSIZ, op. cit., p. 143.
869
BEIJU, s. m. Espcie de biscoito ou bolo chato, leve, fino, mui quebradio de 8 a 15
centmetros de dimetro, fabricado com massa de mandioca ralada. Cf. MIRANDA, Vicente
Chermont de Glossrio Paraense. Belm: Universidade Federal do Par, 1968. E ainda, existem
diversos tipos de Beijus, de origem indgena, ou dos chamados povos da floresta, que mantm
na forma de preparo as tcnicas indgenas: pegue a mandioca, tire a casca, rale a raiz, lave,
passando por vrias guas e, com o tipiti, esprema e retire a goma, que deve ser separada e posta
para secar. Aps seca, com o uso da peneira, a massa torna-se um tipo de farinha. Segue ento,
para um processo de assar em instrumentos de barro, amplos, para se poder observar a qualidade
do que o bem-assado. Eis o beiju, peas de grandes formatos nas tradies e nas memrias
milenares (...) povos da Amaznia. Existe o beiju seco, que o mais tradicional e aqueles cuja
massa curada com tucum, castanha-do-Par, castanha de Warque ou ainda a marapat de
umari que do cor e sabor aos beijus. Cf. LODY, op. cit., p. 67. Monteiro identifica cerca de 14
tipos de beijus: o curucua, chato grande, feito de tipioca granulada acrescentado de castanha de
caju; beijuau ou catimpuer maior com forma de discoide; puqueca um tipo feito com sal e
pimenta envoltos em folhas de pacova-sororoca; curuba misturado com castanha de caju
quebrada; cica o menor e mais casta tem forma de preparo e cozimento diferenciados; membeca
no assado e tem massa mole em forma de disco; tinin ou branco vai ao sol para secar e
endurecer; teca elaborado com massa de tapioca; carim feito com farinha de carim; marapat
levado para cozinhar na cinza quente, protegidos apenas por folhas; enrodilhado enrolado ao
invs de ser dobrado; caba; cambraia um tipo muito alvo quase transparente, fofo como pastel,
bem caprichado, feito com a massa de tipioca e torrado levemente. Cf. MONTEIRO, op. cit., p.
57.
220
870
VICENTE, do Salvador, Frei. Histria do Brasil. Braslia: Senado Federal, 2010, p. 84.
871
MONTEIRO, op. cit., p. 67.
872
bom salientar que esta era as provises da tripulao, j que a sua era composta de arroz,
feijo (preto), acar, chocolate, caf, ch, biscoitos, sal, presuntos, queijo holands, manteiga
hamburguesa, vinagre, azeite e vinho. ADALBERTO, Prncipe da Prssia. Brasil: Amazonas e
Xingu. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1977, p. 145.
873
E ainda segundo o autor a farinha compunha o prato principal de trabalhadores ndios: O
capito Antnio tratava todos os seus ndios como escravos no lhes pagava salrio e os
mantinha com escassas raes de peixe salgado e farinha. Cf. BATES, op. cit., p. 132.
874
VERSSIMO, op. cit., p. 11.
875
Uma das mais consumidas era a malagueta, a qual, segundo Miranda era o acepipe mais
empregado na Amaznia. MIRANDA, op. cit., p. 49.
221
Com a mo desgastava um naco de peixe, que bem embebido no molho espera na borda
do prato o punhado de farinha, tirada do montculo ao lado (...).876
O prprio piro,877 que tem originalmente na sua base a farinha, gua e pimenta,
j aparecia no relato do cientista alemo Jorge Marcgrave, de 1637, quando informa que
o piro de ndio consistia de carim878, gua fervente, pimenta, ervas e peixes.879 Com
o tempo este foi acrescido de ovos, alho e pimenta-do-reino. O que demonstra seu
carter mestio, em especial, no acrscimo de ovos e alho, ingredientes da dieta
portuguesa.880 Como ressalta Serna os cozidos de influncia portuguesa acharam na
farinha da colnia uma parceria perfeita para enriquec-los.881 No Glossrio Paraense,
de Vicente Chermont, coleo de Vocbulos peculiares Amaznia, datado de 1906, o
piro aparece como qualquer farinceo embebido em gua, leite, ou caldo em ebulio,
ficando a massa assim preparada consistente. Os mais usuais so os de farinha-dgua e
de batata. Segundo Vicente Chermont: Etim. Mandipyron que ficou abreviado em
piro.882Alm do piro, existia o arub que segundo Miranda era feito com massa de
mandioca mole com pimenta e alho.883
farofa em Santa Catarina que alm da mandioca leva farinha de mandioca; Mingau de
Pitinga do Nordeste que leva macaxeira ralada; Mojica de pirarucu do Amazonas que
leva farinha de mandioca; pamonha de carim, da Bahia que leva massa de mandioca e
p de moleque das regies Norte e Nordeste que leva mandioca.884
Em Belm do Par, tais usos tambm podem ser vistos, por meio dos registros
dessas prticas alimentares nos jornais. No jornal Dirio de Notcias de 23 de junho de
1887, por exemplo, anunciava-se que na confeitaria do bairro de SantAnna de
propriedade de Silva Almeida e Companhia, estavam venda deliciosos bolos de
mandioca e grandes variedades de pasteis.885 J no sculo XX, no ano de 1939, o jornal
Folha do Norte informava acerca de um estabelecimento comercial em que era possvel
comprar a farinha de mandioca e as suas derivadas, mas, era possvel tambm comprar
outros tipos de farinha, que, ao que parece, eram bastante consumidas pela populao.
Alm da farinha de macaxeira e de carim, havia farinha de banana, de arroz e de milho
alm de temperos diversos e regionais como urucum e outros.886
884
SERNA, op. cit., p. 49 a 65.
885
Dirio de Notcias, 23 de junho de 1887, p. 3.
886
Folha do Norte, 2 de janeiro de 1939, p. 3.
887
DANIEL, Joo. 1722-1776. Tesouro Descoberto no Mximo rio Amazonas. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2004, p. 19.
888
SPIX, J. B Von & MARTIUS, C. F., op. cit., p. 123.
889
BATES. op. cit., p. 84.
223
Para alm das bananas, Frei Vicente de Salvador, no sculo XVII, informava
sobre as variedades de frutas, em especial, os cajus, maracujs e ainda os ananases890 e
seu consumo:
Pelo relato do Frei nota-se que basicamente todo o caju era consumido na forma
de fruta, como bebida, vinho e ainda faziam uso das castanhas como po e na
elaborao de doces. Das frutas, a mais utilizada para fazer vinho era o caju, segundo
Fernandes, O mais afamado e apreciado vinho de frutas do Brasil era, contudo, o de
caju.892 E mais: Sem desprezar o potencial nutritivo dos frutos e das castanhas,
inegvel que a principal atrao dos cajuais estava no acesso enorme riqueza etlica
representada pelo caju.893 Como asseverou Frei Vicente de Salvador, as mulheres
brancas apreciavam muito as castanhas de caju e as guardavam para o uso ao longo do
ano. Com tais castanhas faziam inclusive doces que consideramos mestios, dentro
das perspectivas defendidas nessa tese como o maapes, que na origem tem nome
de marzip. Esses doces tm origem antiga. Segundo Gomensoro, este tipo de doce
surgiu na Itlia mais precisamente em Veneza, por volta do sculo XIII, como uma
alternativa para aproveitar os grandes carregamentos de amndoas que chegavam da
sia.894 Era um doce feito com amndoas tostadas e modas, acar de confeiteiro e
claras de ovos. Tinha vrias formas de consumo na cobertura de bolos ou mesmo na
890
Frei Vicente ainda ressalta que: H muitas melancias e abobras de quaresma e de conserva,
muitos meles todo o vero, to bons como os bons de Abrantes, e com esta vantagem que l
entre cento se no acham dois bons, e c entre cento se no acham dois ruins. Finalmente se d
no Brasil toda a hortalia de Portugal, hortel, endros, coentro, segurelha, alfaces, celgas,
borragens, nabos e couves, e estas s uma vez se plantam de couvinha, mas depois dos olhos
que nascem ao p se faz a planta muitos anos, e em poucos dias crescem e se fazem grandes
couves: alm destas h outras couves da mesma terra, chamadas taiobas, das quais comem
tambm as razes cozidas, que so como batatas pequenas. Assim, tem-se um quadro das
frutas e hortalias que tinham vez nas mesas no Brasil naquele momento. VICENTE, op. cit., p.
81.
891
VICENTE, do Salvador, Frei. Histria do Brasil. Ed. Revista por Capistrano de Abreu.
Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010. p. 79.
892
FERNANDES. op. cit., p.64.
893
FERNANDES. op. cit., p. 65.
894
GOMENSORO, Maria Lcia. Pequeno dicionrio de gastronomia. Rio de Janeiro: Objetiva,
1999. p. 257.
224
895
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1979, p. 48.
896
FERNANDES, Joo Azevedo. Selvagens bebedeiras: lcool, embriaguez e contatos
culturais no Brasil Colonial (sculos XVI-XVII). So Paulo: Alameda, 2011, p. 62 e 63. Sobre o
uso do caium entre os Tupinambs e as prticas educativas no formais ver ainda o trabalho de
ALBUQUERQUE, Maria Betnia Barbosa. Beber cauim, rememorar e aprender entre os
Tupinamb do Brasil Colonial. Revista Teias (UERJ. Online), v. 15, p. 45-61, 2016.
897
Sobre o cauim recorramos s palavras de Hans Staden: As mulheres faziam a bebida.
Tomam razes de mandioca e cozinham em grandes panelas cheias. Uma vez cozida, retiram a
mandioca da panela, passam-na em outras, ou em vasilhas, e deixam-na esfriar um pouco.
Ento, se assentam as meninas perto, mascam-na, colocando-a numa vasilha especial. Quando
todas as razes cozidas esto mastigadas, pe de novo a massa na panela, deitam-lhe gua,
misturam ambas, e aquecem de novo. Tm para tal vasilhas adequadas, que enterram a meio
cho, e que empregam como aqui os toneis para vinho e cerveja. Despejam dentro da massa e
fecham bem as vasilhas. Isto fermenta por si e fica forte. Deixam-na assim repousar dois dias.
Bebem-na ento e com ela se embriagam. grossa e tem bom gosto. STADEN, Hans. Duas
viagens ao Brasil. Belo Horizonte/So Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1974, p. 165 e 166.
225
bacuris, jenipapos, mangabas, cupus, cajus, cacau e muitas outras menos tolerveis.
Destas frutas fazem doce que prima pela acidez.898 Adentrando o sculo XX, em 1939,
na Usina So Vicente, de propriedade de M. Santos & Filho, havia produo de doces
diversos de frutas regionais como bacuri, cupua, mangaba, abric, cubio, graviola,
muruci, buriti, banana, abacaxi e a inigualvel goiabada de pura goiaba, sendo que, para
dar uma verso regional, aos doces de bananada e goiabada acrescentava-se castanha do
Par. Os fabricantes ainda eram os nicos a produzir a ameixa do Par. 899 Ora, veem-se
claramente um processo de mestiagem nos usos que se fazia das frutas. Desse modo, as
frutas regionais so apresentadas na forma de doces e no caso das frutas que no eram
regionais acrescentou-se um ingrediente da regio: a castanha do Par. A Fbrica So
Vicente, alis, no ano de 1945, ainda oferecia aos seus clientes doces de bacuri,
cupuau, mangaba, abric, cubio, graviola, muruci, banana e abacaxi, alm de
goiabada da pura, inigualvel.900
A pupunha tambm fazia parte do cardpio dos grupos indgenas os quais faziam
uso dela cozida, ou assada, maioria dos outros. [Sendo que] O mingau, feito de
pupunhas e bananas misturadas, seu petisco predileto.907 Incorporada aos costumes
alimentares dos paraenses, a pupunha tornou-se um dos frutos da floresta mais
consumidos pela populao de um modo geral, sendo bastante comum o hbito de ser
consumida cozida com gua, leo e sal, depois descascada e untada ou no de manteiga
ao ser servida acompanhada com caf preto ou com caf com leite. Podendo, inclusive,
ser comprada em vendedores ambulantes ou barracas de feiras para consumo j cozida
acondicionada em pequenos sacos plsticos ou cones de papel, ou, ento, sob a forma
natural, em cachos nas feiras ou nos mercados. Da mesma forma que, vlido lembrar,
a pupunha acabou sendo incorporada ao preparo de diversos pratos servidos no almoo
ou no jantar. Sendo ainda possvel o seu consumo sob a forma de compotas, tal quais
outras frutas e frutos, como, por exemplo, podemos vislumbrar nos anncios da Fbrica
So Vicente, nos idos do ano de 1950.908 Se revelando, portanto, seus usos mestios,
ainda que as formas indgenas do fruto no tenham necessariamente desaparecido.
Ao lado desses frutos e frutas, deve ser lembrado o guaran, que sempre esteve
presente. O guaran foi descrito pelos mdicos Godinho e Lindenberg como uma
herana indgena da seguinte forma:
904
CAVALCANTE, op. cit., p. 215.
905
CAVALCANTE, op. cit., p. 228.
906
CAVALCANTE, op. cit., p. 228.
907
SPIX & MARTIUS, op. cit., p. 119.
908
Folha do Norte, janeiro a dezembro de 1950.
227
909
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p. 30.
910
GODINHO; LINDENBERG, op. cit., p. 30.
911
Folha do Norte, 1 de janeiro de 1932, p. 01.
912
Folha do Norte, 10 de janeiro de 1932, p. 02.
913
Folha do Norte, 14 de janeiro de 1939. p. 02.
228
914
Folha do Norte, 02 de janeiro de 1941, p. 02.
229
Captulo IV
Cardpios e Menus:
a mestiagem tem sabores.
Tomando aqui a cidade de Belm como foco de anlise, temos uma cultura
alimentar marcada por cardpios e menus mestios. Neste sentido, o que deve ser
analisado o fato de que, ao longo de todo o perodo estudado, nos principais
estabelecimentos de venda de produtos de comer ou de refeies no existia uma ideia
de comida tpica dada com nfase pelos vendedores ou anunciantes, mas, sobretudo uma
mistura de pratos e sabores que mostram os produtos locais sendo anunciados com a
mesma importncia de produtos de outros lugares do Brasil ou de outros pases. Alis,
possvel dizer que os produtos importados que ganharam maior espao na segunda
915
CNDIDO, Suely da Silva. Alimentao: Construo/Expresso da Identidade de um povo.
GRUPAM; I Seminrio sobre alimentos e manifestaes culturais tradicionais. Universidade
Federal de Sergipe, So Cristovo-SE, 21 a 23 de maio de 2012, p. 1-10.
916
Aqui gostaria de agradecer a Nan, que to gentilmente lembrou da pesquisa e me ofereceu
este texto. MATOS, Maria Izilda Santos. Cultura, tradio e inveno: temperos com lgrimas
de saudades. In: PATRIOTA, Rosangela; RAMOS, Alcides Freire (Org.). Escritas da Histria:
ver, sentir, narrar. So Paulo: Hucitec, 2014, p. 260.
230
917
OSSIPOW, Laurence. Comer: a alimentao de franceses, outros europeus e americanos.
Claude Fischler (org). So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2010, p. 33.
918
Folha do Norte, 1 de setembro de 1917, p. 3.
919
O Binoculo, 1 de maio de 1898, p. 1.
920
Dirio de Belm, 26 de janeiro de 1888, p. 1.
231
921
Folha do Norte, 19 de outubro de 1917, p. 3.
922
Folha do Norte, 20 de janeiro de 1918, p. 7.
923
PONTES, Romero Ximenes. Assahy-yukic, iassa, oyasa, quasey, ay, Jussara, manac,
aa, acay-berry;rizoma. Belm: Tese do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da
Universidade Federal do Par-UFPA, 2013, p. 64.
232
924
Folha do Norte, 10 de janeiro de 1919, p. 7.
233
Macarro italiana.
Mo de vacca portugueza.
Bifes.
Fiambres.
Ovos.
Sobremesa: queijo, banana, laranja, goiabada, creme de
laranja, pudim, fatias de parida e frutas em calda.
Vinhos: Chambertin, Richeliea, Chateau Larose, Margaua
Medoc, Collares, Dito extra, Ribateyo.925
925
Dirio de Notcias, 14 de agosto de 1887, p. 1.
926
Termo derivado do francs entre, diferentemente da Europa, refere-se, no Brasil, ao prato,
de pequena quantidade, que precede o principal. um prato completo, geralmente carne ou
peixe, com uma guarnio vegetal. GOMENSORO, op. cit., p. 161.
927
Dirio de Notcias, 26 de fevereiro de 1888, p. 3.
234
No mesmo ano, em 28 de maio de 1888, aps passar por grande reforma, em sua
reabertura o Caf Carneiro trazia o seguinte menu, que fora preparado para o almoo
pelo estimvel Jeronymo:
Canja.
Sopa Juliana.
Caldo portugueza.
Pescada de Forno.
Muqueca de peixe Bahiana.
Carur.
Pato no tucupy.
Farofa de ostras, brasileira.
Coxinhas de gallinha, milaneza.
Gallinha com ervilhas.
Dita de cabidella.
Frellos portuguesa.
Torta de carne.
Torta de camaro.
Torta de carangueijo.
Filet com farofa, carioca.
Roast-bife ingleza.
Carne assada com batatas.
Lombo de vacca aux champignon.
Costelletas de porco la minute.
Macarro ***
Salladas diversas.
Sobremezas variadas.928
928
Dirio de Notcias, 28 de maio de 1888, p. 3.
929
ORICO, op. cit., p. XV.
235
locais so uma mestiagem de pratos, onde podia-se comer um pato no tucupi, cuja
aceitabilidade social junto a setores mais elitizados se percebe, mas tambm podia se
comer um roast-bife a inglesa ou uma carne baiana ou ainda um lombo de vaca aux
champignon. Assim, o que temos um cardpio extremamente mesclado que gira em
torno de pratos regionais, mas tambm de pratos de outros estados e de outros pases.
Pela leitura de cada um desses cardpios, vemos que possvel encontrar
influncias de sabores do mundo inteiro. Neste sentido, observamos o uso das
denominaes francesas, quando, por exemplo, no cardpio do Caf Carneiro havia a
oferta de Lombo de vacca aux champignon, sendo ressaltado que o prato tinha essa
origem, ou seja, que seria preparado ao molde francs. Mas, obviamente, no se tratava
de uma simples cpia de receitas importadas. A ideia era mesclar ou adaptar as formas
de preparo dos grandes pratos e sabores reconhecidos internacionalmente com os
ingredientes locais e sabores brasileiros. O peixe escabeche um exemplo, quando se
fez uso das pescadinhas, peixe regional, com tcnicas de preparo europeias. Segundo
Gomensoro, o termo escabeche de origem espanhola e nasceu de um procedimento
antigo de eliminar a cabea do pescado antes de sua preparao.930
Nos cardpios tambm se encontra a Canja de galinha. A canja tem origem na
ndia, provavelmente a palavra deriva do malai, caji, que significa arroz com gua.
Segundo o renomado Diccionrio da Lingua Portugueza, at meados do sculo XVIII,
a canja se tratava do arroz cozido em gua e sal, muito delicado.931 Provavelmente foi
difundido pelo mdico da Corte portuguesa Garcia da Orta, o qual, aps uma viagem
ndia, em 1563 escreveu Colquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da ndia,
no qual mencionou um certo caldo de arroz, ou canja.932 Gilberto Freyre, em Aventura
e rotina: sugestes de uma viagem procura das constantes portuguesas de carter e
ao, nos diz que: certo que h canja: sopa to portuguesa. Ou to lusotropical. Mas
a canja marca, nas relaes de Portugal com os outros povos (...) A canja foi assimilada
da ndia pelo portugus: no sopa castia ou peninsular na sua origem.933 Segundo o
historiador portugus Joo Pedro Ferro galinha com arroz, quem no conhece. Mais
farta de arroz ou com mais caldo tornando-se uma canja, era um prato com longa
930
GOMENSORO, op. cit., p. 163.
931
LELLIS, op. cit., p. 388.
932
COR, Giana; CORO, Mariana; PERATELLO, Heloise & RIBEIRO, Cilene da Silva.
Histria, medicina e a alimentao; A canja e a gripe. In: www.historiadaalimentao.ufpr.br
acessado em dezembro de 2015.
933
FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestes de uma viagem procura das constantes
portuguesas de carter e ao. So Paulo: REALIZAES, 2010, p. 388.
236
934
FERRO, op. cit., p. 32.
935
COR, op. cit., p. 5.
936
Sobre o assunto ver: GOULART, A. da C. Revisitando a espanhola: a gripe pandmica de
1918 no Rio de Janeiro. Histria, Cincias, Sade- Manguinhos, v. 12, n. 1, jan. abr. 2005.
937
COR, op. cit., p. 5.
938
De Campos Ribeiro. Gostosa Belm de Outrora. Belm: Editora da Universidade Federal do
Par, 1966, p. 36.
939
Folha do Norte, 8 de fevereiro de 1919, p. 07.
940
FERRO, op. cit., p. 55.
941
FERRO, op. cit., p. 51.
237
Por meio desses cardpios possvel dizer que tais pratos dividiam espao com
uma culinria oriunda de outras nacionalidades, para alm da portuguesa. De fato, ainda
que no saibamos exatamente como eram preparados, e quais ingredientes eram
utilizados naquele contexto, esses pratos faziam aluso a uma alimentao e a uma
identidade que os liga a lugares como a Amrica, a Inglaterra, a Alemanha ou Frana,
como j dito antes. Desse modo, podia-se comer: Torta de camaro americana;
Rosbife ingleza; Rosbife com molho allemo; Fil com champignon; Lombo
de vacca aux champignon.944 bom dizer que muitos destes pratos que levavam
modos de fazer outros pases tem origem no que Ferro denominou de
internacionalismo gastronmico, o qual consistia em denominar pratos, menus e
cardpios com termos estrangeiros.945 Era o caso do livro de receitas de Domingos
Rodrigues, que obteve grande sucesso em Portugal, intitulado Arte de Cozinha,
publicado pela primeira vez em 1680.946 O referido autor:
(...) no fugiu ao internacionalismo gastronmico, recheando o seu
livro de receitas e termos estrangeiros. Eram sopas ou caldo
francesa, a galinha de potagem Francesa, o folhado francs, as
empadas e tortas inglesas, as sopas ou presuntos agridoce italiana,
pombos e frangos turcos, etc. 947
942
Segundo Ferro, a partir do sculo XVIII, temos o aparecimento pela primeira vez, de
receitas claramente identificadas com a cozinha portuguesa, ou seja, feitas portuguesa, que
nos do uma ideia, pelo menos aproximada, de qual era a cozinha tradicional do Pas (...).
FERRO, op. cit., p. 49.
943
FERRO, op. cit., p. 41.
944
Folha do Norte, 8 de janeiro de 1928, p. 5.
945
FERRO, op. cit. p. 42.
946
FERRO, op. cit., p. 41.
947
FERRO, op. cit., p. 42.
238
espanhola ou o talharim italiana, por exemplo. Ao menos no nome eles eram. Mas,
tambm preciso pensar que, para alm deste estrangeirismo, o aparecimento de pratos
moda internacional, no caso do Par, sugere uma forma de diferenciar o modo
paraense dos pratos ao modo dos outros, do estrangeiro. Da mesma forma que, nos
cardpios aqui analisados, tambm se encontravam pratos identificados como de outros
estados brasileiros como o fil com farofa, carioca; peito de tartaruga amazonense;
camurim a baiana; carne a baiana, ou, ainda, a moqueca de peixe baiana. Este
ltimo item, alis, tambm escrito como o moqueca, era um prato miscigenado e tinha
como ingredientes peixe, azeite de dend ou de caiau, pimenta e outro condimentos e
que deveria ser consumido com farinha seca ou dgua.948 No entanto, segundo
Sampaio, existem vrios tipos de moquecas no Brasil, havendo vrios pratos que
levavam essa denominao no Par: guisado de peixe ou de mariscos ou de carne, com
pimenta e azeite, formando massa a qual dividida em pores que so ento
949
envolvidas em folhas de bananeira. Havendo, ainda, a muqueca na forma de um
bolo elaborado com goma de mandioca, envolvido em folha de bananeira e que era
assada no forno.
Por outro lado, nos cardpios havia tambm pratos tidos de uma maneira mais
geral como brasileira como farofas de ostras, brasileira, ao lado dos pratos
regionais e mestiados como pato no tucupi; torta de carangueijo; unhas de
carangueijo com limo e sal e o caruru.950 No caso deste prato, em particular, ele j
aparece nos relatos desde o sculo XVII, sendo descrito por Lus da Cmara Cascudo
assim: Iguaria indgena constando de um esparregado de bredos, hera vulgar cararu,
escreveu Piso, mdico do Conde de Nassau, 1638-1644: come-se este bredo como
legumes.951 Sendo um prato que viajou para frica Ocidental e Oriental, onde As
pretas minas da Costa do Ouro (Gana), as do Daom (...) fazem o caruru de mistura com
bolos de milho e peixe, e mesmo galinha cozida.952 Foi na frica que ele ganhou
ingredientes locais: O caruru transformou-se na frica, partindo do piro953 do
brasileiro ca-riru, os bredos, ajudado pelo quiabo, planta africana que toma o nome de
948
MONTEIRO, op. cit., p. 62.
949
SAMPAIO, A. J. de A alimentao sertaneja e do Interior da Amaznia. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1944, p. 290/291.
950
Dirio de Notcias, 14 de agosto de 1887, p. 1.
951
CASCUDO, op. cit., p. 181.
952
CASCUDO, op. cit., p. 181.
953
Piro - Qualquer farinceo embebido em gua, leite, ou caldo em ebulio, ficando a massa
assim preparada consistente. Os mais usuais so os de farinha-dgua e de batata. MIRANDA,
op. cit., p. 68.
239
954
Ibid Ibdem, nota 181. Sobre as influncias africanas ver EL-KAREH, Almir. A vitria da
Feijoada. Rio de Janeiro, EDUFF, 1 edio, 2012. RIBEIRO, Pedro Henrique Mendes. Comida
e religiosidade: dos cultos afro-brasileiros para a histria da alimentao brasileira.
Humanidades. 2009. In: www.cchla.ufrn.br acessado em junho de 2016.
955
Cascudo, op. cit., p. 181.
956
GOMENSORO, op. cit., p. 98.
957
Folha do Norte, 2 de setembro de 1898, p. 4.
958
Folha do Norte, 2 de setembro de 1898, p. 4.
959
Belm do Par, 16 de setembro de 1900, p. 4.
240
Tal realidade demonstra que, desde as ltimas dcadas do sculo XIX, nos
cardpios e menus j havia uma incorporao de pratos marcados como especialidades
locais ou regionais, sendo ento importante a oferta deles, uma vez que muitos
estabelecimentos sempre apresentavam as trs opes nos seus cardpios: a comida tida
como internacional, a comida nacional de origem regional e por fim, a comida local.
Desta forma, muitos restaurantes buscavam fregueses pelo anncio de tais pratos,
oferecendo alguma diversidade, considerando que os hbitos de consumo de sua
clientela eram diversificados e mestios. Mais um exemplo disto podemos ver no
anncio publicado no domingo, 16 de julho de 1893, pelo Restaurante Souza, localizado
Rua da Trindade, gerido por Thomaz Souza, o qual tinha o menu aprimorado, onde
servia-se as seguintes iguarias para almoo, jantar e ceia esplendida paca de tucupy,
gorda e apetitosa a valer, borrachinhos, perus e o saboroso tatu. 960 O dito restaurante,
ao que parece, tinha um cardpio marcado por carnes de caa de animais amaznicos,
mas tambm de animais que faziam parte de forma geral de uma cultura europeia, como
os carneiros. Em outro anncio de 3 de setembro de 1893, alis, o Restaurante Souza
no apenas informava quais os pratos seriam servidos, mas, para chamar a ateno do
pblico informava as tcnicas do preparo, dando conta do tempo gasto para que o prato
ficasse pronto, certamente para apurar o gosto e incitar o paladar dos leitores. Assim
sendo, se anunciava: Hontem foi ao cutello um belo carneiro que estava a derreter-se
de banha; elle ter hoje as horas do almoo, ladeado por borrachos to gordos como o
Thomaz, pers, leito, paca de tucupy.961 J em 8 de outubro de 1893, na coluna do
jornal O Paraense intitulada Carteira do Reprter, em seu texto, um misto de notcia e
certamente de propaganda, o proprietrio do Restaurante Souza era descrito com seu
seductor sorriso, a servir a numerosa freguezia que se acotovella pelas mezas.962 O
estabelecimento era muito bem avaliado pelo reprter quando dizia que do restaurante
saa um cheiro de petiscos saborosissmos: pacas de tocupy, borrachinhos com arroz,
costelletas gordas de leito, gallinha de cabidela, etc. 963
960
O Paraense, 16 de julho de 1893, p. 1.
961
O Paraense, 3 de setembro de 1893, p. 1.
962
Correio Paraense, 8 de outubro de 1893, p. 2.
963
Correio Paraense, 8 de outubro de 1893, p. 2.
241
carangueijo e muitas outras iguarias.964Em outro anncio, era possvel encontrar paca
no tucupy e assada de forno, em farofa.965 E como acompanhamento castanhas do
reino966 cozidas e assadas e finssimo vinho especial.967 Em 24 de dezembro, esse
restaurante fez um festival para seus fregueses, onde seria possvel encontrar msica, e
decorao com bandeiras de todas as naes, alm de o que de mais exquisito tem
produzido a arte da culinria.968 O menu constava de:
(...) bacalhao lisboeta; bolos de bacalhau; Pescada Portugueza frita
e de escabeche, camares frescos, casquinhos de carangueijo; ostras e
mariscos; gorda paca de tucupy; marrecas frescas; peru recheado,
borrachinhos cabidella; costellas de leito; perna de carneiro de
forno com batatas; franguinhos assados de forno; gallinha com molho
pardo; repolho portugueza e outros pratos que o cosinheiro Joaquim
apresentar de sua especialidade. (...) rabanadas, castanhas cosidas,
assadas e outras sobre-mesas prprias do grande dia de Natal.969
Por meio dos cardpios percebemos que a variedade dos pratos que mesclavam
produtos de vrias origens no era uma especialidade de apenas um restaurante, mas
possivelmente uma caracterstica daquele contexto de fins do sculo XIX, para atender
ao gosto dos consumidores. Do contrrio no teria razo de ser. Desse modo, podemos
lembrar que em vrios cardpios apareciam, de um lado, os borrachos ou borrachinhos
cabidela ou com arroz, pratos oriundos em alguma medida de uma tradio
gastronmica ibrica, em particular portuguesa. Eram os borrachinhos nada mais que
pombos novos. Por outro lado, temos, apesar do consumo da carne de pato no tucupi, o
hbito de se comer a paca no tucupi ou, ento, assada servida com farofa. Os cardpios
sempre estavam a ressaltar a presena dessa carne de caa, revelando-nos uma dada
preferncia pelo seu consumo, talvez mais significativo desde fins do sculo XIX at a
primeira metade do XX do que o consumo do pato no tucupi, ambos pratos
marcadamente regionais paraenses, ainda que, posteriormente, nos restaurantes e casas
particulares de Belm tenha-se abandonado a paca, sobrando o pato.
964
Correio Paraense, 22 de outubro de 1893, p. 2.
965
Correio Paraense, 26 de novembro de 1893, p. 2.
966
Tambm conhecida como castanhas portuguesas Assim conhecida no Brasil, a castanha
europeia. Na Antiguidade, era abundante na Grcia, principalmente nas encostas do monte
Olimpo, de onde se espalhou para o resto do Continente. Abundante na Europa a partir do fim
do Outono, pequena, achatada, com casca marrom e brilhante. Deve ficar de molho uma noite
antes de ser empregada. Pode ser cozida em gua fervente ou assada. Depois disso, preparada
como doce ou salgado. Tem sabor semelhante ao de batata-doce, porm mais leve e delicado.
matria prima para o conhecido doce francs marrom-glac. GOMENSORO, op. cit., p. 99.
967
Correio Paraense, 26 de novembro de 1893, p. 2.
968
Correio Paraense, 24 de dezembro de 1893, p. 2.
969
Correio Paraense, 24 de dezembro de 1893, p. 2.
242
Vale notar tambm que, mesmo fora do espao urbano de Belm, mas em
localidades prximas situadas em seus distritos, encontramos semelhantes mescla nos
cardpios. Desse modo, no Mosqueiro, uma ilha e balnerio frequentado por parte da
populao da capital paraense, no restaurante de Lima Barbado, ao lado da paca no
tucupi e cotias moqueadas era possvel tambm comer catits preparados em feijoadas,
moqueados, em mlho picante e guizado970. J no Bar Belem-Club, localizado na Vila
do Mosqueiro, na Rua Nossa Senhora do , em 4 de dezembro de 1926, o menu
constava de:
Per brasileira.
Paca no tucupy
Gallinha com ervilhas.
Fillet Belem Club.
Pato no tucupy.
Fritadas. Etc, etc.971
970
O Democrata, 31 de maio de 1890, p. 1.
971
Folha do Norte, 4 de dezembro de 1926, p. 4.
972
Folha do Norte, 25 de maio de 1897, p. 2.
973
GOMENSORO, op. cit., p. 193.
974
Correio Paraense, 30 de setembro de 1892, p. 3.
975
Dirio de Notcias, 23 de junho de 1887, p. 2.
243
976
Segundo Miranda MUU (MUSSUAN). Pequenino quelnio dos campos baixos e
mondongos, abundante no Maraj, cuja carne saborosa mui apreciada pelos paraenses.
MIRANDA, op. cit., p. 58.
977
Folha do Norte, 31 de outubro de 1926, p. 2.
978
Folha do Norte, 21 de agosto de 1927, p. 6.
979
Folha do Norte, 21 de agosto de 1927, p. 6.
980
Folha do Norte, 7 de setembro de 1927, p. 6.
981
Folha do Norte, 23 de outubro de 1927, p. 7.
982
A champanhe um vinho espumante, de origem francesa, da regio da Champanhe.
Legalmente somente o vinho espumante dessa regio, feito com uvas plantadas em rea
delimitada, pode receber este nome. GOMENSORO, op. cit., p. 107.
983
Folha do Norte, 12 de novembro de 1927, p. 5.
984
GOMENOSORO, op. cit., p. 347.
244
985
Folha do Norte, 8 de janeiro de 1928, p. 5.
986
Folha do Norte, 26 de agosto de 1928, p. 7.
987
Bacalhau- Peixe do Norte do Atlntico e do Pacfico, tem carne branca e firme. Pode pesar
de 450 g at 10 kg. Apesar de geralmente ser pescado entre maio e outubro, est a venda durante
o ano todo. Pode ser encontrado fresco, salgado e seco, defumado ou apenas salgado (...)
Tradicional da culinria de Portugal, as primeiras referncias sua utilizao so encontradas no
segundo tratado portugus, O cozinheiro Moderno, de Domingos Rodrigues (1780). So elas
bacalhau provenal, bacalhau a bexamela e bacalhau assado na grelha e outros modos.
Presta-se a grande variedade de prato, sendo muito tradicional na culinria portuguesa.
GOMENSORO. op. cit., p. 46.
988
Folha do Norte, 20 de janeiro de 1929, p. 5
989
Folha do Norte, 14 de abril de 1929, p. 6.
245
990
Folha do Norte, 19 de agosto de 1932, p. 6.
991
Folha do Norte, 17 de dezembro de 1926, p. 2.
992
Folha do Norte, 9 de novembro de 1927, p. 5.
993
Folha do Norte, 11 de fevereiro de 1928, p. 5.
994
Folha do Norte, 1 de maro de 1928, p. 4.
995
GOMENSORO, op. cit., p. 88.
996
Folha do Norte, 2 de agosto de 1928, p. 5.
997
ORICO, op. cit., 46.
246
(...) tpica da cozinha alem, uma salsicha branca, feita com carne de
porco e/ou vitela, bacon, leite, cebolas picadas, gengibre, noz-
moscada, alcaravia, coentro. Tem sabor muito delicado e textura lisa e
fina. Deve ser mergulhada em gua fervente por dez minutos antes de
ser grelhada, frita ou cozida com outros alimentos. Serve-se
normalmente acompanhadas com batatas cozidas e chucrute.999
998
Folha do Norte, 26 de setembro de 1926, p. 5.
999
GOMENSORO, op. cit., p. 56. O chucrute por sua vez um repolho fermentado, prato
tpico alemo. GOMENSORO, op. cit., p. 115.
1000
Folha do Norte, 3 de novembro de 1926, p. 7.
1001
Folha do Norte, 25de novembro de 1926, p. 7.
1002
Folha do Norte, 24 de maior de 1930, p. 7.
1003
Folha do Norte, 24 de maio de 1930, p. 7.
247
tartaruga, tudo ao gosto do fregus.1004 A carne de tartaruga, alis, era uma preferncia
na Amaznia, sendo os hbitos de consumo dessa carne descritos da seguinte forma por
Jos Verssimo:
De vrios modos a preparamos cosida, ensopada ou assada, ou, e um
dos melhores, picada a carne e servindo de assadeira o prprio peito
da tartaruga, assada no forno. Dos midos faz-se o guisado conhecido
por sarapatel, capitulado por Bates de delicious soup, e que no
sino, e para melhor, a celebre sopa de tartaruga dos grandes
restaurantes de Londres e Paris. O sarapatel de tartaruga ou tracaj
contentaria o mais fino gourmet. Fazem-o muitas vezes no prprio
casco, que aguenta perfeitamente o fogo. No mesmo casco, fazendo de
panella, a cozinham ou preparam de outra maneira.1005
Gilberto Freyre a respeito do consumo da tartaruga nos informa que dela se faz
no Extremo-Norte uma variedade de quitutes1009, cada qual mais louvado pelos
1004
Folha do Norte,15 de janeiro de 1939, p. 6.
1005
VERSSIMO, op. cit., p. 80.
1006
MONTELEONE, Joana. Sabores urbanos, alimentao, sociabilidade e consumo: So
Paulo, 1828-1910. So Paulo: Alameda, 2015, p. 123.
1007
MONTELEONE, op. cit., p. 124.
1008
MONTELEONE, op. cit., p. 127.
1009
Quitute - Iguaria, manjar delicado e bem condimentado. MIRANDA, op. cit., p. 72.
248
gourmets; cada qual mais gostoso e ainda H mais a paxic, picado feito de fgado de
tartaruga, temperado com sal, limo e pimenta-malagueta.1010 Com est carne era feito
tambm um prato intitulado mujangu, uma espcie de mingau que se faz com as
gemas dos ovos de tartaruga ou tracaj e farinha de mandioca mole, intumescida de
gua: alguns europezam esse piro, acrescentando-lhe sal ou acar.1011 A fala de
Freyre, ao fazer referncia ao termo europezam, demonstra bem o que estamos
defendendo nesta tese sobre os hibridismo pelo qual a cozinha brasileira e paraense
passou ao longo de seu processo histrico. Ao acrescentar o sal ou acar faz-se uma
alterao na estrutura do prato o que o torna, a partir de ento, mestio. Enfim, a oferta
de pratos base de tartaruga regional era constante, havendo, por exemplo, a tartaruga
guisada; peito de tartaruga amazonense; paxic e tantos outros; os quais compunham
a lista de pratos ofertados nos cardpios da regio sendo extremamente apreciados
dentro dos hbitos alimentares da cidade. Em 26 de abril de 1930, no Bar Pilsen, o seu
proprietrio fazia o seguinte anncio: O proprietrio deste Bar comprou uma tartaruga
do tamanho de um bonde, portanto faz parte do menu hoje e amanh, este delicioso
prato amazonense e o esplendido filet da mesma com batatinha palha.1012
No incio da dcada de 1950, por sua vez, a unha de caranguejo era um dos
acepipes1013 mais cobiados de Belm segundo as memrias de Alfredo Oliveira. De
acordo com o memorialista as mais cobiadas eram as servidas no bar Jangadeiro, na
Santo Antnio, que servia uma unha de carangueijo inesquecvel.1014 Segundo Orico, a
unha-de-caranguejo era uma das especialidades mais apreciadas em Belm e Manaus.
De acordo com Osvaldo Orico, utilizava-se a massa do caranguejo fervida em gua e
sal. Aps o que se prepara um refogado com molho de tomate, alho, sal, pimenta-de-
cheiro e limo e em torno de uma unha principal do caranguejo, com a massa de batata
ou farinha de trigo e uma gema de ovo, faz-se uma espcie de pra. Leva-se ao forno
depois at ganhar certa consistncia e a cor cobreada que adquire. 1015 O memorialista
Alfredo Oliveira, alm das unhas de caranguejo recorda-se de ter dois prazeres
gastronmicos simplrios: o bife cavalo do Plaza e a galinha cabidela do Hotel
1010
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime
da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1994, p. 125.
1011
FREYRE, op. cit., p. 125.
1012
Folha do Norte, 26 de abril de 1930, p. 7.
1013
Acepipe - O mesmo que comida apetitosa, quitute, petisco. GOMENSORO, op. cit., p. 12.
1014
OLIVEIRA, op. cit., p. 138.
1015
ORICO, op. cit., p. 44.
249
1016
OLIVEIRA. op. cit., p. 140.
1017
GOMENSORO, op. cit., p. 82.
1018
A coalhada segundo Gomensoro leite cru, talhado, que ficou abafado por 24 ou 48 horas.
Geralmente conseguida com adio de renina ao leite. Pode ser consumida ao natural, pura ou
acompanhada de acar, ou ser utilizada como ingredientes de diversos pratos.
GOMENSORO, op. cit., p. 118.
1019
OLIVEIRA, op. cit., p. 140.
1020
Canjica - Pudim feito de milho verde ralado, com acar, cco, ou castanha. MIRANDA,
op. cit., p. 17.
1021
Folha do Norte, 31 de outubro de 1926, p. 07.
1022
Folha do Norte, 12 de outubro de 1917, p. 07.
250
1023
Folha do Norte, 15 de dezembro de 191, p. 07.
1024
Folha do Norte, 21 de outubro de 1917, p. 07.
1025
Folha do Norte, 1 de dezembro de 1917, P. 07.
1026
Folha do Norte, 11 de setembro de 1927, p. 07.
1027
Folha do Norte, 27 de janeiro de 1950, p. 07.
1028
Folha do Norte, 12 de fevereiro de 1950, p. 07.
251
1029
DEVROEY, Jean-Pierre. Champagne!, ou a exportao do territrio. In: MONTANARI,
Massimo (Org.). O mundo na cozinha: histria, identidade, trocas. So Paulo: Estao
Liberdade; Senac, 2009.
1030
DEVROEY, op. cit., p. 202.
1031
NOBERT ELIAS. O processo Civilizador: uma histria dos costumes. Jorge Zahar Editor:
Rio de Janeiro, 1990. p. 112.
1032
NOBERT ELIAS, op. cit., p. 116.
1033
E mais O gesto no passou despercebido pela esperta Madame Pompadour, que estimulou
artista a desenhar, par avance, a lista dos pratos do souper (ceias teoricamente informais nos
palcios preparadas para atrair politicamente a presena de convidados) que ela ofereceu em
Versalhes, no dia 4 de novembro de 1757. O inusitado formato circular desse menu divide-se
em quatro peas, cada uma representando um dos servios do banquete. Nele, aparecem
palavras-chave que vo influenciar todos os menus a partir de ento, popularizando termos
252
mesma forma que na capital paraense os banquetes oficiais tambm seguiriam o padro
do que estava em voga ao longo de todo o Brasil. Em 1917, em Belm, no banquete de
comemorao do aniversrio da Brigada Militar do Estado, no Grande Hotel almoaram
os oficiais e demais amigos. O jornal Folha do Norte publicou, naquela ocasio, que o
almoo foi servido de maneira irreprehensivel, com o seguinte menu:
Hors-dEuvre.
Varits assorties.
Poisson
Mayonnaise de Camorim.
Entre.
Blanquette de mouton.
Lgume.
Tomates ao gratin.
Roti.
Dindonneau La Brsilienne.
Grillade.
Filet de boeaf au Madre.
Dessert
Tartelettes La Russe.
Fromages varies.
Vins: Champagne.
Caf-Liqueurs.1034
restritos nobreza como entres, hors doeuvre e entremets, entre outros. LELLIS, Francisco.
Os banquetes do Imperador. Francisco Lellis, Andr Boccato. So Paulo: Editora Senac;
Boccato, 2013, p. 29.
1034
Folha do Norte, 28 de dezembro de 1917, p. 05.
1035
Aperitivo - Bebida alcolica, pura ou combinada, servida antes das refeies para estimular
o apetite. Na Itlia e na Frana, o aperitivo , em geral, um vinho ou alguma bebida derivada.
Em outros pases, toma-se qualquer tipo de destilado, como vodca, usque ou gim. No Brasil, o
aperitivo mais comum a pinga, a cachaa, pura ou na forma de caipirinha. Tambm podem
ser os licores e vinhos de frutas. GOMENSORO, op. cit., p. 32.
1036
Termo em francs cuja traduo integral entrada. Diferentemente do que o nome indica,
no eram pratos que iniciavam a refeio. Segundo Louis Eustache Ude era os pratos de carne,
ave, caa ou peixe servidos durante o segundo servio. GOMENSORO, op. cit., p. 161.
253
1037
Segundo Gomensoro, o entremets algo como um servio separado, depois do prato
principal e antes dos doces da sobremesa, ou ento, um outro prato (que no de carne) servido
ao mesmo tempo que o prato principal. GOMENSORO, op. cit., p. 162.
1038
Palavra francesa que significava sobremesa. Nas refeies modernas, informais, um prato
doce, mas nos banquetes ou refeies formais, o ltimo servio. Serve-se geralmente somente
depois que todos os partos salgados e condimentos foram retirados da mesa. Oferece-se, alm de
doces, frutas frescas e secas, acompanhadas de um vinho de sobremesa, como um Porto.
Pequenos potes de lavanda, para lavar os dedos, tambm podem ser colocados mesa nessa
hora. GOMENSORO, op. cit., p. 148.
1039
CAMARGOS, Marcia; SACCHETTA, Vladimir. mesa com Monteiro Lobato. Rio de
Janeiro: Senac Nacional, 2008, p. 15.
1040
CAMARGOS & SACCHETA, op. cit., p. 15.
254
de uma gemada qualquer e que supreme de Turbot uma papa de cao de Santos.1041
Assim, o regionalismo de Monteiro Lobato choca-se com uma elite que tem gosto
europeu e que entende que o melhor era o que vinha de fora. Por fim, havia uma
valorizao da culinria europeia em detrimento dos sabores regionais, e mesmo que
estes estejam presentes de maneira cotidiana buscavam-se hbitos alimentares europeus.
Mas, voltemos ao cardpio do banquete da brigada, em Belm, onde o uso dos
peixes regionais em pratos tidos como refinados salienta bem essa internacionalizao
da gastronomia da qual estamos falando, especialmente porque eles aparecem em
banquetes e cardpios de restaurantes conceituados. Nestes foram encontradas
pescadinhas fritas, espanhola ou de escabeche; peixe ensopado com batatas; pescada
ao forno, frita ou ao molho creme, maionese de pescada ou de lagosta; peixe de forno
brasileira; bacalhau republicana ou a biscainha; e, ainda, camorim dor, espanhola
e maionese de camorim. Percebe-se que, apesar de se usar o bacalhau, peixe tradicional
da culinria portuguesa, nesses cardpios o uso mais generalizado era de peixes
regionais, que eram elaborados moda internacional como no caso do uso das
maioneses ou dos pratos espanhola. Bem como fazendo uso de tcnicas de preparo
francesas como, por exemplo, o camorim dor, sendo dor uma expresso francesa
que significa dourado. Para preparar um alimento dor, deve-se pass-lo em farinha
de trigo e ovos batidos e frit-lo, imediatamente, em gordura bem quente.1042
Nos cardpios que estamos analisando possvel encontrar em grande medida o
uso do camorim, peixe tambm conhecido como robalo, oriundo de gua marinha.
Sobre o consumo do camorim, De Campos Ribeiro, em suas histrias sobre a Belm de
sua infncia, lembrava O peixeiro portugus, que por mais de vinte anos era quem nos
levava porta a pescada amarela ou o camorim, a dez tostes a posta e quase sem
glo.1043 A mayonnaise de Camorim tambm aparece no banquete da brigada militar de
1917. Alis, as maioneses eram sempre uma opo nos cardpios tidos como finos no
mundo da gastronomia daquele momento,1044 sendo um prato presente nos cardpios da
Corte, na cidade do Rio de Janeiro, em fins do sculo XIX, bem como em Belm, em
1917, como parte dos cardpios de banquetes e de restaurantes da capital paraense. Isso
nos diz muito sobre a manuteno de alguns pratos e seus usos em diferentes pocas, e
1041
CAMARGOS & SACCHETA, op. cit., p. 16.
1042
GOMENSORO, op. cit., p. 151.
1043
De Campos Ribeiro, op. cit., p. 72.
1044
Ver a esse respeito, LELLIS, op. cit., p. 189.
255
mesmo que outros pratos passem a configurar novos padres de refinamento, alguns so
mantidos.
1045
LELLIS, op. cit., p. 331.
1046
LELLIS, op. cit., p. 326.
1047
LELLIS. op. cit., p. 324.
1048
Segundo Lellis, o preo do peru, em 1886, girava em torno de oito a dez mil ris, valor
muito alto para poca e poucos podiam compr-lo. LELLIS, op. cit., p. 377.
1049
O faiso era recheado com foie grs, carne de galinhola, toucinho e especiarias. Envolto em
papel manteiga, colocado em uma frigideira e depois assado com vinho de Mlaga. Depois, de
assado trinchado e disposto em uma travessa, acompanhado de croutons guarnecidos com pur
de galinhola. servido com molho de priguex (molho base de vinho e trufas). Esse prato era
servido como entrada.LELLIS, op. cit., p. 376.
1050
LELLIS, op. cit., p. 377.
256
1926, Joo Coimbra dos Santos, residente travessa Benjamin Constant, 108, h
tempos vinha engordando um peru para sacrificarem [na] commemorao a uma data
intima. A 26 do corrente, porm, ao chegar, pela manh, no quintal, no viu mais a ave,
ficando muito triste.1051
1051
Folha do Norte, 31 de outubro de 1926, p. 02.
1052
LELLIS, op. cit., p. 377.
1053
LELLIS, op. cit., p. 357.
1054
Folha do Norte, 5 de julho de 1928, p. 02.
257
como ingredientes. O exemplo, que mais ilustra isso o Frango la Marengo, receita
que tinha, segundo Aulnoit, suas origens poca de Napoleo Bonaparte, sendo um
frango provenal. De refogado, ele transformou-se em guisado.1055 Uma das
sobremesas era a Charlotte Russe, prato originalmente surgido na Inglaterra para
homenagear a esposa do rei George III, no sculo XVIII, que sofreu inmeras variaes
ao longo do tempo recebendo nomes como Charlotte la parisiense ou Charlotte
Russe, que um variao diferente criada para o czar russo Alexandre I, tambm por
Carme, elaborada com uma massa de ladyfingers1056 em forma de concha, recheada
com bavaroise1057 bem leve e enfeitada com rosinhas de creme chantilly.1058
1055
LAULNOIT, Batrix de. Breve Histria da gastronomia francesa. Rio de Janeiro: Tinta
Negra, 2012, p. 134.
1056
Segundo Gomensoro Ladyfingers - bolo de massa leva e delicada, tem a forma de um
grosso dedo. um tradicional acompanhamento de sorvetes, pudins e outras sobremesas.
Utiliza-se tambm como ingrediente para o preparo de diversos doces, como a Charlotte.
GOMENSORO, op. cit., p. 232.
1057
um tipo de sobremesa com base de creme de leite batido, gelatina e creme de frutas ou
chocolate e que vem perfumada com licores e outras essncias. GOMENSORO, op. cit., p. 108.
1058
GOMENSORO, op. cit., p. 108.
1059
ORICO, op. cit., p. 54.
1060
ORICO, op. cit., p. 54.
1061
DE CAMPOS RIBEIRO, op. cit., p. 60.
258
Jacques Flores, por sua vez, tratando das quitandas, lembrava que havia sobre o
balco, a um canto deste, um tabuleiro com peixe frito para servir seus fregueses.
Dizendo ento que: Quitanda que se preze, que se recomenda, no deixa de ter venda
esse precioso alimento da nossa gente humilde.1063 Alimento que estava presente
cotidianamente na mesa da populao. Segundo Morais, trs eram as refeies
principais da gente Amaznica. No horrio de 7 para s 8 da manh, um caf, que
geralmente era caf com po, beiju, rosca, farinha de tapioca. 1064 Por volta de meio-
dia o almoo e as seis da tarde a janta. Essa realidade tambm j foi ressaltada quando
mostramos que estes eram os horrios nos quais alguns estabelecimentos estavam
funcionando. Segundo o autor, fora dessas horas era comum comer Entre o caf e o
almoo, pra forrar o estmago, mingau de banana verde, mingau de milho, mingau de
arroz. Entre o almoo e o jantar vinhos de Aa e cacau.1065 Quanto a sobremesa era
quase sempre frutos crus como banana com farinha, laranja, uxi, umari, bacuri, alm da
pupunha e do piqui cosidos.1066 Comia-se muito peixe, em especial os regionais,
como tambaqui, tamuats. Alguns pratos eram feitos para os domingos como a
Manioba1067: Vou fazer uma panela de manioba pra nossa janta de domingo. Traga
maniva boa, seu Janurio, e atire num queixada ou caititu.1068
1062
DE CAMPOS RIBEIRO, op. cit., p. 122.
1063
FLORES, Jacques. Obras escolhidas de Jacques Flores. Belm: CEJUP, 1993, p. 102.
1064
MORAIS, op. cit., p. 107.
1065
MORAIS, op. cit., p. 107.
1066
MORAIS, op. cit., p. 107.
1067
Sobre a manioba, era panelada de folhas de maniva socadas ao pilo e cozinhadas com
adubo de peixe ou carne. Em geral a gente da Amaznia faz esse prato com mocot, lngua
salgada, tripa, cabea de porco. Iguaria excelente, muito parecida a uma feijoada completa,
259
precisa ferver pelo menos 24 horas, afim de que as folhas fiquem tenras e macias. MORAIS,
op. cit., p.117.
1068
MORAIS, op. cit., p. 107.
1069
E mais, segundo Bates quando esteve na Amaznia em 1848 esclarece que A
comemorao do dia de Nossa Senhora de Nazar constitui a mais importante festa religiosa do
Par. Muita gente vem para, para as festividades, da cidade do Maranho, situada a 450
quilmetros de distncia. Houve uma ocasio em que Presidente ordenou que o navio-correio
atrasasse dois dias a sua partida do Par a fim de atender s convenincias dos visitantes. A
popularidade da festa se deve em parte poca do ano em que realizada, ou seja, nos dez dias
que precedem a lua cheia de outubro ou novembro, quando o tempo se mostra magnfico.
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So
Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1979, p. 31 e 45.
1070
Dirio de Notcias, 8 de outubro de 1887, p. 1.
1071
ORICO, op. cit., p. 54.
1072
Folha do Norte, 12 de outubro de 1927, p. 02.
1073
Folha do Norte, 12 de outubro de 1927, p. 02.
260
1074
Fiambre - 1. O mesmo que presunto. 2. Pode ser tambm outro tipo de carne, preparada
para ser comida fria. 3. No sul do Brasil, nomeia a proviso de alimentos frios para viagem.
GOMENSORO, op. cit., p. 176.
1075
Gteau - 1. Palavra francesa que designa bolos e tortas, cobertos com calda ou glac, cuja
massa tem consistncia entre seco e o mido. Deve ser substancioso e bem apresentado.
conhecido desde a Idade Mdia. 2. Sobremesa de origem francesa, um bolo gelado, com vrias
camadas de creme. GOMENSORO, op. cit., p. 196.
261
1076
uma espcie de gua mineral gaseificada, colorida artificialmente de laranja, qual so
acrescentadas gotas de essncia de gengibre e de glicose. Os ingleses gostam de tom-la com
gim ou usque e o resultado semelhante ao gim tnica. GOMENSORO, op. cit., p. 199.
1077
Folha do Norte, 22 de outubro de 1927. p. 02.
262
vendida por 2$000, menos que a cerveja da marca nacional Brahma que custava 2$200,
e o guaran saa por 1$000 mais barato do que a Kola Champagne de valor 1$500. Tal
realidade nos permite entender que os produtos regionais no tinham valor mais elevado
porque dava-se importncia maior aos pratos de origem e receitas vindas de fora, ou
seja o vatap baiana deveria ser mais pomposo que o pato no tucupi, no havendo
inclusive referncia a uma maneira paraense de se fazer o vatap. Mas, por outro lado,
essas diferenas de valores, par alm de uma questo de custo, podem ser indicativas de
que, naquele momento, no se tinha uma conscincia de valorizao dos pratos locais,
os quais se comiam por hbito, paladar e gosto. Ou seja, no se tinha elevado tais pratos
a categoria de regionais e marcadores de identidades, logo eles apareciam como pratos
que eram consumidos por hbitos e gosto e assim tinham um valor menor ou igual aos
pratos e produtos de outros lugares. Assim, entende-se que no havia uma importncia
dos pratos regionais elevados a categoria de tpicos, mas que estes aparecem ao lado de
outros que muitas vezes tinham valor mais elevado, o que demonstra que haviam
preferncias para alm dos pratos e produtos regionais, sendo exemplo disso as
sardinhas fritas que aparecem como especialidade do Bar Paraense, em um anncio
com letras maisculas, o que enfatiza sua importncia e provavelmente procura. Em
1930, dizia o seguinte o dito anncio do Bar Paraense: magnfico menu prprio do
dia, destacando-se as saborosas SARDINHAS FRITAS.1078
Para alm do menu, existe outro ponto que deve ser analisado. Apesar de uma
variedade de preos, de uma maneira geral eram preos elevados, o que confirma as
palavras de Osvaldo Orico que a barraca da Santa era uma espcie de restaurante de
luxo, onde a gr-finagem local pagava gostosamente o prazer de saborear as
especialidades da terra.1079 Por outro lado, o Largo de Nazar tinha outros lugares que
vendiam comida para todas as posses. Era um local onde de tudo podia se encontrar, no
dizer de Orico: Havia moendas de cana, alguidares de aa e bacaba porta de
barraquinhas modestas enfiadas no meio do arraial. E tabuleiros de tacac e mingau de
milho.1080
Tambm nos cardpios da festa de Nazar podemos encontrar claramente o
menu mestiado do qual estamos falando nessa tese. Assim, em 21 de outubro de 1941,
na Barraca de N. S. de Nazar encontramos o seguinte apetitoso cardpio: pato no
1078
Folha do Norte, 18 de abril de 1930, p. o7.
1079
ORICO, op. cit., p. 54.
1080
ORICO, op. cit., p. 54.
263
tucupi, pato assado com salada de batatas, leito assado com farofa, galinha assada com
purs de batatas, vatap a baiana, maionese de camaro, peru brasileira, macarro
veneziano, arroz temperado, arroz simples, salada russa, sanduiches americanos,
canudinho de creme, sanduiches variados, empadinhas variadas, barquetes de creme,
pezinhos recheados, saladas de frutas, pudim de coco, pudim de leite, pudim quero
mais, pudim de laranja, pudim beijo de cabocla, bolo saboroso, doces sortidos, Whiski,
cerveja, guaran, vinho, sorvete e caf.1081 J em 23 de outubro, alm dos pratos j
descritos, ainda foram servidos canja, soufl de camaro, rolo de camaro, macarro a
italiana, galinha jardineira, bifes acavalo, arroz paraense, montanha nevada, pav,
cricri, flutuante, bolo de mrmore e sorvetes.1082 Em Belm havia tambm o hbito de
consumir de sobremesas frutas, sendo que nos restaurantes era na forma de salada ou
mesmo cremes, j nas casas geralmente era a fruta de sobremesa como, por exemplo,
em 17 de dezembro de 1926, quando o senhor Valentim Moreira dono de um banco de
vendas de caf e comidas no Mercado Municipal, comprou uma melancia, levando-a
1083
para casa, comendo-a com sua mulher e filhos como sobremesa do jantar. A
diferena que geralmente as frutas servidas nos restaurantes e similares nas saladas de
frutas eram provavelmente as importadas. Em 17 de dezembro, na Casa Carvalhaes era
possvel encontrar frutas frescas como maas brancas e vermelhas, uvas brancas e
ferraes.1084
Ainda na Barraca da Santa, em 26 de outubro de 1941, o menu constava dos
seguintes pratos e bebidas, conforme o Quadro IV:
Quadro IV: Pratos vendidos na Barraca da Santa em 1941.
Prato Valor.
Fil de Pescada milanesa. 3$000.
Caruru Maranhense. 3$000.
Manioba especial. 4$000.
Tartaruga guisada. 4$000.
Peito de tartaruga amazonense. 4$000.
Pato no Tucupi. 4$000.
Fil a minuta com batatas. 4$000.
1081
Folha do Norte, 21 de outubro de 1941, p. 07.
1082
Folha do Norte, 23 de outubro de 1941, P. 07.
1083
Folha do Norte, 17 de dezembro de 1926, p. 07.
1084
Folha do Norte, 17 de dezembro de 1926, P. 07.
264
Algumas consideraes devem ser feitas sobre este cardpio. Ao que tudo indica
era voltado aos grupos mais abastados em funo dos preos, no entanto, a pesquisa
sugere o consumo de alguns desses pratos possivelmente por pessoas com menos poder
aquisitivo, sugerindo um interesse e um desejo de consumo desses pratos por vrios
segmentos sociais e no somente pelos setores mais elitizados que frequentavam o
Largo de Nazar. O referido cardpio tambm nos possibilita afirmar que, nos idos da
dcada de 1940, j aparece uma certa valorizao da comida regional, o que pode ser
entendido em primeiro lugar pelo fato de que quando observamos com ateno os
valores dos pratos regionais seus preos esto acima dos outros pratos, que antes tinham
valores mais elevados. Como exemplo, temos a manioba especial, veja bem no
qualquer manioba a manioba especial, no valor de 4$000; ou, ainda, o pato no
tucupi; a tartaruga guisada e a tartaruga amazonense no valor de 4$000, ao passo que
pratos que antes tinham valor mais elevado agora ou tem o mesmo valor ou so de
1085
Avi - Pequeno camaro de gua doce, muito encontrado na foz do Rio Tocantins. Tem
corpo fino e cerca de 3 cm de comprimento. Com ele, prepara-se uma sopa tpica da regio,
engrossada com farinha de tapioca. GOMENSORO, op. cit., p. 43.
265
1086
Folha do Norte, 8 de novembro de 1950, p. 07.
1087
Folha do Norte, 6 de dezembro de 1950, P. 07.
1088
Folha do Norte, 6 de dezembro de 1930, P. 07.
1089
Folha do Norte, 4 de julho de 1941, P. 07.
266
Ao que tudo indica este local era mais popular, e talvez pretendesse, nesse tempo
de festa, oferecer a um pblico com menor poder aquisitivo um cardpio que nem
sempre era possvel ser consumido pela maioria da populao. Dois dias depois, em
outro anncio, o barraco trazia no menu o seguinte: Per a brasileira, pato no tucupi,
gallinha ensopada com petit pots, casquinho de mussuan, casquinho de caranguejo,
Vatap, Salada de batatas, Arroz, farinha torrada e biscoitinhos especiais de puro trigo
fabricados em casa.1091 E ainda salada de frutas, creme de bacuri, doces diversos,
queijo, etc. Bebidas diversas inclusive Guaran, vinhos nacionais e portugueses,
guas minerais, licores, caf feito na hora. E o saboroso Tacac com Tucupi
especial.1092 Em 23 de outubro de 1941, alm dos j citados pratos podia-se consumir
carneiro de forno, fil minuta, soufl de camaro e bolo americano com creme de
chantili.1093
Em 26 de outubro, ltimo dia da festa de Nazar, a barraca onde havia
funcionado a antiga Fotografia Nazar trazia aos seus fregueses um cardpio com
elementos culinrios mais regionais. Com muitos elementos da cozinha regional o menu
inclua picado de tartaruga; tartaruga guisada; paxic de tartaruga; sarapatel de
tartaruga; pato no tucupi; casquinhas de mussuan; casquinhas de caranguejo; peru
brasileira; fil minuta; galinha guisada com ervilhas, vatap, salada de batatas, bolo
americano com creme de chantilli, bolo tutti frutti, salada de frutas, creme de bacuri,
doces de frutas, queijo, caf, vinhos nacionais e estrangeiros, guarans Simes e
Soberano, gua minerais, cervejas e licores.1094
As quermesses eram outro tipo de festa da poca que traziam um panorama dos
cardpios que eram elaborados na cidade de Belm. Em 30 de abril de 1949, o jornal
Folha do Norte trazia anuncio de uma quermesse promovida pelas alunas do Instituto
Santa Catarina, que deveria entrar pela noite no Bosque Rodrigues Alves em
1090
Folha do Norte, 16 de outubro de 1941, p. 07.
1091
Folha do Norte, 18 de outubro de 1941, P. 07.
1092
Folha do Norte, 18 de outubro de 1941, p. 07.
1093
Folha do Norte, 23 de outubro de 1941, P. 07.
1094
Folha do Norte, 26 de outubro de 1941, p. 07.
267
1095
Folha do Norte, 30 de abril de 1949, p. 07.
1096
Folha do Norte, 30 de abril de 1949, p. 05.
1097
GOMENSORO, op. cit., p. 84.
1098
GOMENSORO, op. cit., p. 84.
1099
Ibdem, nota 157.
268
J o cachorro quente especial que era oferecido em Belm podia tambm ser
elaborado com carne moda acompanhada com molho e outros ingredientes que variam
de acordo com o gosto de quem vai comer. Segundo Lody, no Brasil o cachorro quente
tendo sido, assim, apropriado, reinventado e nacionalizado1100, sendo que a exemplo
de Belm, em Recife era o cachorro quente tambm feito de carne moda, acrescido de
uma rica montagem de outros ingredientes que formam o molho.1101 Dizendo-nos
Lody ainda que Atualmente, h tambm os que so servidos com batata palha, ervilha,
queijo parmeso ralado e pur de batatas.1102
Sendo as quermesses eventos com finalidade da arrecadao de dinheiro para
fins diversos, em especial filantrpicos, em setembro de 1949 foi a vez das alunas do
tradicional Instituto Gentil Bittencourt realizarem uma grande quermesse no Bosque
Municipal. O evento contaria como sempre ocorre, [com] uma grande e especial
variedade de pratos finos e regionais e ainda em diversos coretos, msica boa e alegre
e divertir os que se dispuserem a ajudar as alunas do Gentil, em sua obra de ajuda as
misses.1103 Por ocasio das festas juninas, os clubes de Belm tambm realizavam
quermesses, sendo esse o caso do Bancrvea, que anunciava em 1949, na Folha do
Norte, sua festa, descrita como um momento em que, alm de muita msica, os
participantes iriam saborear gostosos alus, apimentados tacacs no mesmo tempo que
os parentescos se realizaro, pois uma enorme fogueira estilizada dominar o centro
festivo do ambiente.1104
Os cardpios to variados dessas festas tambm nos dizem muito dos hbitos
alimentares da cidade de Belm, os pratos eram muitos diversificados e apresentavam
um menu mestiado. Os quais iam desde os pratos regionais como era o caso da
presena unnime dos casquinhos de caranguejo ou de casquinhos de mussuan, at
outros mais europeizados. Segundo Oliveira cada cozinha regional perde sua coerncia
interna, aquele esprito de economia cuja engenhosidade inventiva e rigor constituam
toda a sua fora; em sua vez e seu lugar, o que me resta apenas uma sucesso de
pratos tpicos cuja origem e funo j no temos possibilidades de entender. E ainda
Mil supostas cozinhas fabricam em nossas cidades pratos exticos simplificados,
1100
LODY, Raul. A virtude da gula: pensado a cozinha brasileira. So Paulo: Editora Senac
So Paulo, 2014, p. 120.
1101
LODY, op. cit., p. 120.
1102
LODY, op. cit., p. 120.
1103
Folha do Norte, 7 de setembro de 1949, p. 05.
1104
Folha do Norte, 7 de junho de 1949, p. 05.
269
adaptados aos nossos hbitos anteriores e s leis de mercado. assim que comemos
fragmentos de culturas locais que se desfazem ou equivalente material de uma viagem
passada ou futura: assim o Ocidente devora com toda garra cpias plidas dessas
maravilhas sutis e ternas, elaboradas com muito vagar durante sculos por geraes de
artistas annimos.1105O autor ainda enfatiza que A aquisio de ingredientes, a
preparao, a coco e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma
gerao outra, ou de uma sociedade outra.1106 Muitas dessas comidas expressam
aquilo que conhecemos como identidade regional, quando criam relaes entre grupos
que passam a se ver como pertencentes a uma mesma matriz cultural, ou melhor, a uma
dada identidade, que em alguns casos pode ser tnica ou como pratos de origem.
1105
OLIVEIRA, Giuseppe Roncalli Ponce Leon. Identidades sociais femininas na Histria da
Alimentao no Brasil. Projeto Histria. N506 40, junho de 2010, p. 517.
1106
OLIVEIRA, op. cit., p. 519.
1107
Folha do Norte, 19 de abril de 1950, p. 3.
1108
Folha do Norte, 20 de abril de 1950, p. 3.
1109
Folha do Norte, 21 de abril de 1950, p. 7.
1110
Folha do Norte, 22 de abril de 1950, p. 3.
1111
Folha do Norte, 23 de abril de 1950, p. 3.
1112
Folha do Norte, 26 de abril de 1950, p. 3.
1113
Folha do Norte, 26 de abril de 1950, p. 8.
1114
Folha do Norte, 27 de abril; 28 de abril; 30 de abril de 1950, p. 3.
270
1115
ORICO, Osvaldo. A cozinha Amaznica: uma autobriografia do paladar. Belm:
Universidade Federal do Par, 1972, p. 42.
1116
ALVES FILHO, Ivan. Cozinha Brasileira: (com recheio de histria). Rio de Janeiro:
Revan, 2000, p. 35.
1117
ALVES FILHO, op. cit., p. 34.
1118
SITWELL, op. cit., p. 173.
1119
SITWELL, op. cit., p. 174.
1120
Folha do Norte, 22 de abril de 1949, p. 3.
271
Jean Baptiste Debret quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 1820, j faz
referncias feijoada descrita como um prato que consistia de apenas um msero
pedao de carne seca, de 7,5-10 cm, com 1,3 cm de espessura; eles cozinhavam com
bastante gua e um punhado de feijo-preto.1121 E mais quando ia ser servido
adicionavam farinha, que, misturada com o feijo amassado forma uma refeio
consistente, levada boca com a ponta de uma faca grande e redonda (...) essa refeio
simples (...) preparada nos fundos da loja (...).1122 Stiwell, afirma que, ao longo do
sculo XIX, a feijoada vai sendo aperfeioada e cada vez mais passa a fazer parte do
cardpio dos restaurantes como, por exemplo, em 5 de janeiro de 1849, quando no
Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, era anunciada a j citada feijoada brasileira:
No restaurante anexo ao bar Fama do Caf com Leite decidimos servir toda semana, s
teras e quintas, a excelente feijoada, para atender ao pedido dos clientes. 1123 Segundo
o autor, neste momento, o prato incorporou novos ingredientes que so fundamentais
para que seja mais aceito e que no era mais feito de sobras: levava cebola, alho,
toucinho e louro.1124 Neste momento tambm j podemos observar a feijoada como um
alimento mestio, alis mestio na incorporao de ingredientes to portugueses como
cebola, toucinho, alho e louro. Segundo afirma Lody, a feijoada uma celebrao da
cozinha brasileira, um prato quase nacionalista, mas sabe-se que suas bases esto no
outro lado do Atlntico, nas matrizes de Portugal.1125 E ainda,
(...) muitas das receitas so tradicionais da Beira, da extremadura e de
Trs-os-Montes. So as feijoadas portuguesa preparadas com feijo-
manteiga, toucinho, chourio, farinheira, chourio de sangue, tomates,
cebolas, cravo, louro, salsa, azeite, ovos, pimenta e sal a gosto.1126
De Campos Ribeiro em seu Capito Papudo, traz tona que feijo com
jab1127, s vezes com bucho, de segunda a sexta-feira era, naqueles dias de 1908,
comida obrigatria de pobre.1128 Talvez a feijoada brasileira tivesse mais
ingredientes, j que era servida aos sbados. J que aos sbados e aos domingos como
registrou o memorialista bem aos domingos era cousa diferente. Um colchozinho de
1121
SITWELL, op. cit., p. 174.
1122
SITWELL, op. cit., p. 174.
1123
STIWELL, op. cit., p. 174.
1124
STIWELL, op. cit., p. 175.
1125
LODY, op. cit., p. 86.
1126
LODY, op. cit., p. 87.
1127
Jab - Charque, carne salgada do Sul. Etim. Segundo Barbosa Rodrigues do tupi o caa,
hebae comida saborosa. MIRANDA, op. cit., p. 44.
1128
DE CAMPOS RIBEIRO, op. cit., p. 16.
272
leito criado com leite (...) bem gordo, que banha melhor no havia que a derretida em
casa. E ainda salada de agrio e alface, avantajada, com vinagre e azeite portugueses e
ainda o reforo do assado de paulista, bem douradinho, carregado nas batatas e
entremeado de bom toucinho do reino.1129 Podemos dizer que esse cardpio descrito
por De Campos referia-se a uma culinria mais domstica e voltada para as residncias.
Mas, voltando ao cardpio do Grande Hotel, nos outros dias temos pratos com
paladar de origem, ou seja, pratos que tinham ingredientes de outros lugares em especial
de outros pases, como, por exemplo, o frango com polenta piemontese que nos
remete Portugal e aos italianos. O frango introduzido no Brasil pelos portugueses, um
dos principais produtos de consumo dos lusitanos, aqui ganha acompanhamento da
polenta. Por falar em lusitanos, os pratos tpicos de l que se encontravam para serem
saboreados eram o pato com azeitonas e o bacalhau portuguesa, os quais j salientam
atravs dos seus ingredientes sua origem: o pato, azeitonas e o bacalhau. A polenta e o
ravili italiana nos remetem a Itlia, onde a polenta constitua a base alimentar e o
ravili massa tradicional. O consumo de pratos de origem italiana tambm aparecia em
outros estabelecimentos da cidade, como, por exemplo, em 1928, no Bar Pilsen, que
tinha no cardpio Talharim a italiana.1130 Em 1939, no hotel e restaurante Maison
Moderne, era possvel encontrar ptimos pratos e quitutes diariamente. Mas, o que
nos chama ateno o fato de que era oferecida uma cozinha talo-brasileira de primeira
ordem, conforme se anunciava na Folha do Norte,1131 marcada pela presena das
massas1132. Em 27 de outubro de 1926, um anncio da Casa Costa revela que alguns
hbitos italianos como comer o macarro com queijo tambm se tornava habitual em
1129
DE CAMPOS RIBEIRO, op. cit., p. 16.
1130
Folha do Norte, 8 de janeiro de 1928, p. 07.
1131
Folha do Norte, 26 de fevereiro de 1939, p. 07.
1132
importante dizer que, segundo Trefzer: as massas j eram conhecidas na Itlia em 1295,
ano da volta de Marco Polo terra Natal (...) pasta fresca, feita de farinha de trigo e ovos, para
o consumo imediato. Ela era conhecida havia muito tempo por muitos povos mediterrneos e
tambm em outros lugares do mundo, inclusive na China. De data mais recente a pasta secca,
que se supe ser de origem rabe. De fato, os primeiros testemunhos europeus da fabricao de
massas secas e, por conseguinte, durveis, vieram da Siclia, regio que sofreu forte influncia
da cultura rabe. De acordo, com o relato do gegrafo Abu-Abdallah Idris, j no sculo XII
macarres secos eram produzidos para exportao na Siclia. Gnova, no norte da Itlia,
estabeleceu-se como importante centro de comrcio e produo de pasta secca. TREFZER,
TREFZER, Rudolf. Os sabores do Piemonte: receitas, histria e histrias. So Paulo: Editora
Senac So Paulo, 2002, p. 74.
273
Belm, pois nos diz que dispunha de queijos para macarro, Minas, Prato e
Flamengo.1133
Vale dizer que a Itlia se apresenta como uma regio muito diversa, e que
segundo Biazioli a polenta era prato de origem pobre juntamente com po campons, a
polenta com queijo, o sangue de porco.1134 E ainda, uma destas regies o Piemonte,
formada no sculo XIX por camponeses, os quais eram em sua maioria pobres. Segundo
o historiador Trefzer a alimentao era simples e pouco variada, sendo constituda
sobretudo do produto do prprio plantio.1135 Um campons, em 1971, recordando de
sua infncia nos fins do sculo XIX, na regio do Piemonte, segundo registrou Trefzer
relata que:
ramos pai, me, av, av, trs filhos e duas filhas. No tnhamos
dinheiro. Vivamos de polenta, batatas, castanhas, feijo e po
mofado. S comamos carne na Pscoa, no dia de So Fidelis e no
Natal. No apenas ns, como tambm quase todos os outros. 1136
1133
Folha do Norte, 27 de outubro de 1926, p. 07.
1134
A autora ainda informa que Olindo Guerrini escreveu a obra, Larte di utilizzare gli avanzi
della mensa, livro com destaque de receitas que atentam para a economia das sobras, atenta as
tcnicas de racionamento aps a primeira guerra mundial. O manual de Olinto Guerrini se
mantm para sempre um instrumento de reciclagem da mesa burguesa. BIAZIOLI, Tnia. A
colheita da cozinha italiana entre os cafezais do interior paulista, 1880-1930. Revista Contextos
da Alimentao. Vol. 4, n 1 - setembro de 2015, p. 86. Disponvel em: www.3sp.senac.br
1135
TREFZER, op. cit., p. 74.
1136
TREFZER, op. cit., p. 29.
1137
Sobre essa temtica ver: FRANZINA, Emilio. A grande Emigrao o Exdo dos italianos
do Vneto para o Brasil. So Paulo: Editora da Unicamp, 2006. COLLAO, Janine H. L.
Sabores e Memrias: Cozinha Italiana e Construo Identitria em So Paulo. Tese de
Doutorado. So Paulo: Centro FFLCH-USP, 2009. OLIVEIRA, Flvia Arlanch Martins de.
Padres alimentares em mudana: a cozinha italiana no interior paulista. Revista Brasileira de
Histria. Vol. 26. N 51, Janeiro/Junho 2006.
1138
EMMI, Marlia Ferreira. Italianos na Amaznia (1870-1950): pioneirismo econmico e
identidade. Belm: NAEA, 2008, p. 33.
274
processo foi um fator determinante nas influncias e mestiagens faz-se necessrio para
se entender as misturas da cozinha amaznica.1139
Logo possvel se pensar nas significativas trocas entre os grupos que viviam
em Belm. Assim, entender como tais trocas culturais resultaram nos pratos que eram
oferecidos, como nos informa Maciel, a construo de uma cozinha em um pas
colonizado a partir dos grandes deslocamentos populacionais e das trocas da
recorrentes. Ao se deslocarem, as populaes levaram com elas, todo um conjunto de
prticas culturais alimentares. E ainda: para satisfaz-las, tinham em sua bagagem
vrios elementos, tcnicas e ingredientes, mas tambm valores, preferncias, prescries
e proibies. Nas novas terras, utilizando elementos locais, criaram sistemas alimentares
e cozinhas novas1140
1139
E aqui importante dizer que nosso foco no uma discusso sobre imigrantes, populao
pelo vis da demografia. Mas, acima de tudo, entender a presena destes imigrantes pelo vis
das influncias sobre a alimentao em Belm ao longo do perodo estudado.
1140
MACIEL, Maria Eugenia. Uma cozinha Brasielira. Revista de Estudos Amaznicos. N. 33,
2004, p. 3.
1141
De Campos Ribeiro, op. cit., p. 37.
1142
De Campos Ribeiro, op. cit., p. 42.
275
Sarges nos aponta que desde fins do sculo XIX, foram estabelecidas leis que
autorizavam a introduo dos estrangeiros na Amaznia e mais que essa admisso de
imigrantes deveria ser de estrangeiros de boa conduta e aptos para o trabalho agrcola
ou ento, dedicar-se a qualquer indstria til, contudo a preferncia era pelos indivduos
acompanhados de famlias.1146Segundo a autora, no ano de 1896 entraram na
Amaznia, um total de 3.168 imigrantes espanhis, onde cerca de 1.777 partiram para
os ncleos agrcolas e 1.368 ficaram na capital assim grande parte dos imigrantes
ainda permanecia em Belm, onde sua presena e permanncia eram
indispensveis.1147 No ano de 1884, a populao na capital chegou a 70.000 habitantes
e, ao longo das dcadas seguintes, os nmeros aumentam.1148 Com o crescimento da
populao vinda de outros pases e mesmo de outros estados, em especial o Cear,1149
alteram de maneira significativa os sabores, os tipos de alimentos e suas formas de
preparo. Tais mudanas fora resultado, segundo Sarges, do desenvolvimento comercial
e as transformaes que modificaram a paisagem urbana de Belm, colocando-a entre as
principais cidades modernizadoras do territrio brasileiro.1150 Essa realidade tambm
1143
De Campos Ribeiro, op. cit., p. 68.
1144
MONTANARI, op. cit., p. 238.
1145
MONTANARI, op. cit., p. 241.
1146
SARGES. Maria de Nazar. A Galcia paraense: imigrao espanhola em Belm (1889-
1910). In: CHAMBOULEYRON, Rafael; ALONSO, Jos Lus Ruiz-Peinado (Orgs.). Trpicos
de Histria: gente, espao e tempo na Amaznia. Belm: Ed. Aa/ Programa de ps-graduao
em Histria Social da Amaznia, 2010, p. 202.
1147
SARGES, op. cit., p. 207.
1148
CANCELA, Cristina Donza. Casamentos e famlias em uma capital amaznica. (Belm
1870-1920). Belm: Ed. Aa, 2011, p. 80.
1149
Sobre a presena cearense, ver LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Par:
faces da sobrevivncia (1889-19176). Belm: Ed. Aa/Programa de Ps-Graduao em
Histria Social da Amaznia. 2010.
1150
SARGES, op. cit., p. 213.
276
QUADRO V.
Nmeros da Populao estrangeira em Belm.
(1872- 1950).
Ano. Populao Par. Populao Estrangeira.
1872. 275.223 6.529
1890. 328.455 4.039.
1900. 445.356. 2.201.
1920. 983507. 22.083
1940. 944.644. 11.074.
1950. 1.123273. 8.215.
Fonte: EMMI, Marlia Ferreira. Italianos na Amaznia (1870-1950): pioneirismo econmico e
identidade. Belm: NAEA, 2008.
Em Belm, por sua vez, havia uma forte presena de portugueses, os quais de
certo modo dominavam o comrcio no Par. Eram proprietrio de lojas, tabernas,
vapores e ainda mercearias. Coelho enfatiza bem a presena dos portugueses no
comrcio local j que este era setor historicamente marcado pela ascendncia
1151
Sobre essa questo, em trabalho anterior demonstramos que muitos produtos que eram
importados eram consumidos porque simbolizavam luxo e poder como vinhos, queijos e que
tais refletiam o carter refinado pelo qual a cidade passava; outros eram consumidos pelo seu
carter de origem. Ver: Macdo, Sidiana da Consolao Ferreira de. Do que se come: uma
histria do abastecimento e da alimentao em Belm, 1850-1900. So Paulo: Alameda, 2014.
1152
MATOS, op. cit., p. 262.
277
1153
COELHO, Geraldo Mrtires. O violino de Ingres. Leituras de Histria Cultural. Belm:
Paka-Tatu, 2005, p. 354.
1154
Folha do Norte, 20 de outubro de 1917, p. 07.
1155
A respeito ver: MACDO, op. cit.
1156
Folha do Norte, 23 de junho de 1911, p. 07.
1157
O bacalhau apesar de ter fama em ser portugus na verdade nrdico das terras
norueguesas, chega alm-mar inicialmente pelos nossos ibricos lusitanos. Acredita-se que o
povo mais antigo a inserir o bacalhau nos seus hbitos alimentares foi o viking. No entanto, no
havia sal naquela regio, ento o peixe era processado em secagem, ao ar livre e frio. Isso
resultava em um gosto muito diferente, pois, com a salga, h outro sabor, aquele que o mundo
reconhece como o do bacalhau tipicamente lusitano. A busca pelo sal fez com que Portugal
comeasse a pertencer histria da gastronomia mundial, formando assim, os hbitos dos
colonos e do cardpio da Europa. LODY, Raul. A virtude da gula: pensando a cozinha
brasileira. So Paulo, 2014, p. 64.
278
celebradas nas mesas; o bacalhau tem de ser de Portugal. 1158 Uma vez que a
alimentao (gosto e cozinha) vincula-se as tradies transmitidas; no caso dos
portugueses os sabores de alm-mar foram reconstrudos no territrio de
deslocamento.1159 E assim:
Alguns hbitos inclusive tornaram-se parte integrante dos pratos oferecidos nos
restaurantes e bares em Belm, por exemplo, em 1927, o Restaurante e Botequim
Portuense, trazia os especiais bolinhos de bacalhau.1161 Em 25 de outubro de 1941, a
comunidade portuguesa era convidada a prestigiar a noite dedicada distinta e
laboriosa comunidade colnia portuguesa com suas exmas. famlias. Comer e beber s
no Bar Soberano. O dono do local o Sr. Joo de Barros havia preparado um menu
supimpa, como seja: pato no tucupi, casquinho de mussuan, galinha assada e guizada,
filet ao bar Soberano. Alm de cervejas e do Guaran Soberano. 1162 Notem que apesar
da festa ser aos portugueses o cardpio era bem regional. Em 15 de outubro de 1949, a
Confeitaria Andrade avisava a sua distinta freguesia especialmente a COLONIA
PORTUGUESA, que tendo contractado um cosinheiro especialista em cosinha
portuguesa e brasileira inaugurou um servio de restaurante, onde alm de um menu
variado, servido diariamente um PRATO ESPECIAL,1163 sendo que em 15 de
outubro de 1949 seria o Prato especial para hoje: - Tripas moda do Porto.1164 Ao
longo deste captulo encontramos em alguns momentos a presena de cozinheiros
especialistas em um determinado tipo de cozinha internacional, alguns inclusive
estrangeiros contratados para atender este paladar de origem especifico. Mas, por outro
lado, o mesmo cozinheiro alemo que preparava as salsichas alems era o que fazia a
paca gorda no tucupi, ou, como no caso do cozinheiro da Confeitaria Andrade, que era
especialista tanto em cozinha portuguesa quanto em brasileira. Assim, tal realidade
1158
LODY, op. cit., p. 65.
1159
MATOS, op. cit., p. 276.
1160
MATOS, op. cit., p. 276.
1161
Folha do Norte, 5 de agosto de 1927, p. 07.
1162
Folha do Norte., 25 de outubro de 1941, p. 07.
1163
Folha do Norte, 15 de outubro de 1949, p. 05.
1164
Folha do Norte, 15 de outubro de 1949, p. 05.
279
contribui para as trocas de sabores, temperos e tipos de pratos, especialmente. Sobre tal
realidade Montanari sobre a Bolonha nos informa que:
1165
MONTANARI, op. cit., p. 242.
1166
Folha do Norte, 19 de fevereiro de 1926, p. 05.
1167
Folha do Norte, 5 de dezembro de 1926. P. 05.
1168
EMMI. op. cit., p. 184.
1169
EMMI. Op. cit., p. 184.
280
Em So Paulo, local onde grande parte dos italianos foram trabalhar nas
lavouras de caf, segundo Biazioli, os italianos conseguiram manter certos hbitos
alimentares:
1170
BIAZIOLI. op. cit., p. 86.
1171
BRENZECRY, Helena Obadia. Culinria tradicional judaico-marroquina: inclui receitas
paraenses segundo preceitos judaicos. Belm: Paka-tatu, 2014.
281
1172
BRENZECRY, op. cit., p. 210 a 229.
1173
Folha do Norte, 10 de junho de 1932, p. 07.
1174
Ao longo do Brasil, houve uma aceitao da influncia americana nos costumes cotidianos.
Paula nos informa que em Fortaleza essa foi uma realidade bem marcante Assim,
vislumbramos uma face desse cotidiano de guerra, onde o consumo e a incorporao de novos
hbitos e costumes tambm propiciou uma maior assimilao cultural por parte dos
fortalezenses em 1940. PAULA, Reverson Nascimento. Do American way of life a
interao de um convvio: Boa vizinhana, uso, soldados, novos costumes e os cidados
fortalenzes. In: www.snh2015.anpuh .
1175
MOURA. Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. A penetrao cultural americana. So Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 8.
1176
MOURA, Op. cit., p. 9.
1177
ORICO, op. cit., p. 147.
282
1178
OLIVEIRA. Alfredo. Belm, Belm. So Paulo: EMPREO, 2015, p. 32.
1179
OLIVEIRA, op. cit., p. 245.
1180
OLIVEIRA, op. cit., p. 246.
1181
Folha do Norte, 1 de novembro de 1950, p. 07.
1182
Folha do Norte, 27 de outubro de 1926, p. 07.
1183
LOPES, J. A. Dias. O pas das bananas. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2014, p.
56.
1184
O Par, 16 de janeiro de 1898, p. 3.
1185
O Par, 5 de fevereiro de 1898, p. 2.
1186
O Par, 5 de fevereiro de 1898, p. 2.
283
1187
Araa (Arass), s. m. Fruta cida de um arbusto do gnero Psidium. MIRANDA, Vicente
Chermont de Glossrio Paraense. Belm: Universidade Federal do Par, 1968, p. 4.
1188
O Par, 2 de fevereiro de 1898, p. 1.
1189
Folha do Norte, 12 de janeiro de 1910, p. 4.
1190
DE CAMPOS RIBEIRO, op. cit., p. 121.
1191
DE CAMPOS RIBEIRO, op. cit., p. 122.
1192
Folha do Norte, 13 de maro de 1918, p. 07.
1193
Folha do Norte, 10 de janeiro de 1919, p. 07.
1194
Folha do Norte, 15 de maro de 1919, p. 07.
1195
MONTANARI, op. cit.,32.
284
Drinks: All sorts and discriptions of the best qualities. Served without
delay. Before your luncheon and dinner, and between times, pop in
and have a simile. 1196
Desta forma, fica evidente que nos cardpios e menus encontrados na cidade de
Belm, no perodo estudado, dois pontos so aqui defendidos e mostrados: 1) havia uma
1196
Folha do Norte, 1 de setembro de 1917, p. 05.
1197
Folha do Norte, 1 de setembro de 1932, p. 05.
1198
Folha do Norte, 19 de agosto de 1932, p. 04.
1199
Folha do Norte, 1 de setembro de 1932, P. 05.
1200
Folha do Norte, 2 de setembro de 1932, P. 05.
1201
Folha do Norte, 19 de agosto de 1932, P. 04.
1202
Folha do Norte, 1 de agosto de 1926, p. 5.
285
profuso de pratos mestiados oferecidos todos os dias a populao. Pratos que iam
desde aqueles locais e regionais, at pratos ditos internacionais; 2) por outro lado,
alguns pratos aparecem com influncias relacionadas ao carter de origem. O processo
de imigrao ir aparecer nos hbitos alimentares, pois, a comida estar em movimento
e esta ser orientada em parte por prticas de imigrantes como cearenses, portugueses e
espanhis. Essa realidade se traduz num aumento da entrada de produtos estrangeiros
que chegavam a Belm. Mas, sobretudo, nos sabores que eram oferecidos pela cidade e
por fim, nos tipos de pratos que foram encontrados ao longo da pesquisa e que, de certa
forma, mapeiam a realidade alimentar de Belm. Desta forma, os pratos, mesmo os
considerados tpicos do Par, passaram por todo um processo histrico cujo resultado
so formas de preparo e ingredientes mestiados. Assim, os ingredientes de outros
pases e culturas marcou de maneira consolidada a alimentao dos paraenses.
Concluso.
1203
Sobre a referida foto ver: The Magician of the Amazon. Lufthansa. In:
www.beatofbrazil.ih.com Acessado em junho de 2016.
1204
BELLUZZO, Rosa. Nem garfo nem faca: mesa com os cronistas e viajantes. So Paulo:
Editora Senac So Paulo, 2010, p. 178.
1205
ESPIRITO SANTO. & MARTINS, Fernando Jares. Gastronomia do Par: o sabor do
Brasil. Belm: Abresi; A senda Artes Integradas, 2014.
287
1206
Ver, MENESES, Ulpiano T. B.; CARNEIRO, Henrique. A Histria da Alimentao: balizas
historiogrficas. Anais do Museu Paulista. Nova Srie, v. 5, p. 9-92, jan./dez. 1997.
1207
MONTANARI, Massimo. O mundo da cozinha: histria, identidade, trocas. So Paulo:
Estao Liberdade; Senac, 2009, p. 11.
288
importante dizer que o recorte cronolgico foi pensado entre fins do sculo
XIX e meados do sculo XX, em certa medida um perodo extenso, justamente por ser
um tempo igualmente marcado por grandes mudanas na regio amaznica e,
consequentemente, na cidade de Belm, nas formas de se produzir e de consumir
alimentos. Assim, podemos observar nas ltimas dcadas do sculo XIX transformaes
dos hbitos e costumes alimentares que, seguindo novos padres de civilidade,
perduraram at 1950. Ou seja, no que tange a alimentao, por exemplo, os produtos
importados continuavam a aparecer nos jornais e pautas comerciais, j que se importava
desde frutas at legumes e charque. Tais padres ganham maior importncia em especial
a partir de 1880 e se acentuam com o processo de industrializao dos alimentos
adentrando o sculo XX. Alm disso, a virada do sculo XIX para o XX marcada pela
instalao de ncleos de produo agrcola com presena de imigrantes nacionais e
estrangeiros, visveis no aumento de pratos com carter de origem tnicas diversas, bem
como ingredientes e novas opes alimentares como as salsichas alems, queijos
franceses e outros. Uma Belm, portanto, na qual era possvel encontrar paca ao tucupi,
sanduches americanos, talharim italiana, moqueca baiana e tantos outros pratos que
foram analisados.
Foi preciso ento esse tempo mais longo para entender melhor estas mudanas
nos hbitos e tradies dos moradores da cidade de Belm, sem perder de vista as
alteraes econmicas e sociais do contexto estudado. Desse modo, so momentos
importantes e diferentes que compem o corte cronolgico ora proposto: o boom da
borracha, os projetos de produo agrcola, os movimentos migratrios de nacionais e
estrangeiros (finais do sculo XIX e incio do XX), o declnio das exportaes do ltex e
as crises econmicas na Amaznia a partir de 1913, a I Guerra Mundial (1914-1918), a
crise econmica de 1929, a II Guerra Mundial e a Batalha da Borracha (1939-1945).
Tais marcadores vo interferir no abastecimento, portanto nos hbitos alimentares da
cidade e consequentemente nos costumes a mesa e na sua mestiagem.
Por outro lado, a presente tese de que a comida regional e as comidas que eram
consumidas em Belm so essencialmente mestiadas, num processo que desde o sculo
1208
MONTANARI, ibdem: nota 4.
289
XVII se configura, acreditamos ter sido demonstrado; ou seja, como se deu tais
hibridismos e mudanas nas formas de elaborar e, principalmente, nos ingredientes
usados nos pratos regionais ou identificados como tpicos. Demonstramos ento como
as trocas alimentares tambm se fizeram presentes nas receitas e nos cardpios e menus
servidos na cidade de Belm. Como os hbitos e costumes alimentares se confrontavam
a partir dos diferentes sabores, percebendo como a alimentao sofre variaes tendo
em vista as mudanas de hbitos alimentares e mais do que isso influncias de grupos
tnicos diferentes, pois como nos mostra Montanari a comida expresso da cultura
no s quando produzida, mas tambm quando preparada e consumida, j que o
gosto , portanto, um produto cultural, resultado de uma realidade coletiva e
partilhvel.1209 Ou seja, como a alimentao acaba por ser um agente de grande
diversidade, diferenciador dos indivduos, revelando origens e mesmo hbitos
alimentares.
Atravs das receitas, publicadas nas colunas dos jornais de Belm e dos
primeiros livros de receitas publicados no Brasil, foi possvel entender as misturas e
trocas ao longo do tempo e, mais do que isso, que essas receitas demonstram uma
realidade alimentar daquela sociedade, sendo elas resultados de inmeros hibridismos.
As receitas se analisadas com ateno tem uma histria, carregam nos seus modos de
fazer e em seus ingredientes fuses, trocas e manutenes. Por isso, elas so para o
historiador da alimentao uma fonte to rica e produtiva. No caso de Belm, as receitas
nos permitem a leitura de uma cozinha com forte influncia europeia, tanto no que tange
as formas de preparo, como na composio dos ingredientes. Assim, a culinria
sempre produto de transaes, e estas no se limitam aos espaos nacionais, mas fazem-
se em constantes trocas com o que lhes exterior.1210
1209
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. So Paulo: Editora Senac So Paulo,
2008, p. 7/11.
1210
DRIA, Carlos Alberto. Formao da culinria brasileira. So Paulo: Trs Estrelas, 2014,
p. 18.
290
maneira indgena. O prprio tucupi1211, por sua vez, era em meados da dcada de 1850
descrito como molho de limo com pimenta, que servi para adubar o tacac. 1212 Era
tambm servido com peixes ou outro tipo de carne, como informa Bates: O tucupi,
outro molho feito tambm do suco da mandioca (...) preparado pelo aquecimento ou
coco do lquido puro (...) e temperado com pimenta e pequenos peixes.1213 Ora,
passados algumas dcadas, Osvaldo Orico o identifica com molho que deve ser fervido
com alho, pimenta de cheiro e coentro.1214 Nesse sentido, podemos identificar que as
mudanas na forma de preparar e consumir o dito tucupi, com o acrscimo de
ingredientes e sabores, so exemplos significativos para se entender a mestiagem. Nas
aldeias, originalmente o tucupi era um molho, que era utilizado quase cotidianamente
com peixes e farinha. Pois, como nos informa Monteiro: No se come peixe sem
tucupi apimentado e mesmo as carnes perdem a graa sem a presena dele.1215 A
manioba j era consumida desde o sculo XVII, como informa Ambrsio Brando,
mas apresentava formas de consumo diferenciadas, pois era elaborada com Folhas de
mandioca cozidas e que era misturado com peixe e as vezes carnes e somente
temperado com sal ou pimenta.1216 Depois, como comida mestia passou a ter na sua
composio o toucinho portugus e outros temperos.
1211
Haviam outras variantes de tucupi como nos mostra Monteiro: tucupi-pixuna (tucupi
escuro), quando aqule tucupi (...), cozido duas vzes ao fogo e engrossado para adquirir uma
cor escura; tucupica, quando se junta ao tucupi massa de tipioca, e leva-se ao fogo para
engrossar; tucupi-quinhpira, o tucupi de gente valente, compsito queimante de pimenta, frutos
cortados, sal, flhas tenras de mandioca, e que se come com peixe e a carne, e serve tambm
para conservar o pescado ou a caa, de um dia para o outro, semelhana de vinhadalho.
MONTEIRO, Mrio Ypiranga. Alimentos preparados base de mandioca. Revista Brasileira de
Folclore. Ano III, n. 5, abril de 1963, p. 67.
1212
RUBIM, Braz da Costa. Vocabulrio Brasileiro. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dois de
Dezembro de Paula Brito. Impressor da Casa Imperial, 1853, p. 71.
1213
ACAYABA, op. cit, p. 216.
1214
ORICO, op. cit.
1215
MONTEIRO, op. cit., p. 66/67.
1216
ACAYABA, op. cit., p. 269 e 277.
1217
Segundo Cndido: Para uma melhor compreenso desse fato e das origens dos, faz-se
necessrio recordar o passado bem como os costumes usados pelos indgenas, que contriburam
com a atividade de subsistncia que apresentavam naquela poca; os efeitos da colonizao
pelos portugueses, que procuravam adaptar-se um pouco aos costumes alimentares existentes;
291
os efeitos da escravido, que trouxe africanos com as suas negras espertas e habilidosas.
CNDIDO, op. cit., p. 8.
1218
MONTANARI, op. cit., p. 11.
1219
MONTANARI, op. cit., p. 176/177.
1220
Segundo Av-Lallemant o nome deste prato era: cacac (bebida nacional dos muras); que
era preparado com amido da mandioca macerada, e at com o suco da raiz do mesmo (...) Na
lngua da terra chamam a esse suco tucupi. Que tornam mais picante adicionando-lhe pimenta.
Apud ACAYABA, op. cit., p. 216.
292
Fontes.
1. Site: http://brazil.crl.edu:
Relatrio do 4 Vice-Presidente de Provncia Dr. Abel Graa. 15 Agosto de 1870. Par.
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Fala Dr. Joo Capistrano Bandeira de Mello Filho. Em 15 de Fevereiro de 1877. Par.
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Fala Dr. Joo Jos Pedrosa. 23 de abril de 1882. Par. Typ. Francisco da Costa Jnior.
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294
Relatrio Dr. Jos Joaquim do Carmo. Em 22 de agosto de 1882. Par. Typ. Commercio
do Par. Trvessa das Merces. N. 42. 1882.
Relatrio Exmo. Snr. Presidente de Provncia Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas Filho.
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3. BIBLIOTECA:
Biblioteca Fran-Paxeco. Grmio Literrio Portugus.
BRASIL, Francisco Assis. O Par e a Colnia Portuguesa. Belm:Typ. De Livraria
Gillet. 1920.
Peridicos Diversos:
Almanack Administrativo (1904-1905); Almanach das Senhoras (1895-1905);
Almanach Taborda (1868-1870).
Obras Raras:
Catlogo da Fbrica Palmeira Jorge e Ca. Seco de Bolachas e Biscoutos. Par. Brasil.
Sem data. No numerada.
5. Livros de Viajantes:
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