Andre Luis Nascimento
Andre Luis Nascimento
Andre Luis Nascimento
NATAL/2016
ANDR LUS NASCIMENTO DE SOUZA
NATAL/2016
Catalogao da publicao na fonte.
CDU 94:2(6)
ANDR LUS NASCIMENTO DE SOUZA
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre no curso de
Ps-graduao em Histria, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comisso
formada pelos professores:
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Professor Doutor Sebastio Leal Ferreira Vargas Netto
Departamento de Histria UFRN
(Professor Orientador)
____________________________________________________________
Professora Doutora ngela Meirelles de Oliveira
Departamento de Histria da USP
(Avaliadora Externa)
__________________________________________________________
Professor Doutor Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues Pereira
Departamento de Histria da UFRN
(Avaliador Interno)
Sem dvidas, esta uma das partes mais difceis da dissertao. No so poucas as
pessoas a quem gostaria de agradecer individualmente com palavras e abraos fraternos, mas,
para no correr o risco quase certo de esquecer de algum, deixo de antemo, um muito
obrigado coletivo.
Agradeo aos mestres e mestras da Jurema (encarnados e desencarnados), seus
conhecimentos perpassam qualquer saber acadmico. Obrigado ao companheiro de luta e f
Rmulo Anglico, sua ateno e diligncia so cincia pura. Expresso minha gratido a todos
aqueles que disponibilizaram um pouco do seu tempo e contriburam de modo significativo no
desenrolar desta pesquisa: Pai Odon George e sua esposa Sueleide Medeiros, Thadeu Moreira,
Andr Felipe, Suely Costa, os babalorixs Tiago Lcio e Aderbal dos Santos, a carinhosa Me
I Cremilda de Oxumar, Gedeilson Gomes, Everton Flix, Thagila Maria, Dona Gorete e Dona
Luzia. Gratido tambm aos queridos Rodrigo Soares e Lelo Nascimento; aos sacerdotes
Raimundo dos Santos, Antnio de Noca e Jos Wilton, vocs foram fundamentais. Obrigado.
Ao mestre e amigo, Lourival Andrade Jnior, uma das pessoas mais queridas que j
conheci e principal responsvel pelo meu (des)envolvimento no mundo acadmico. Obrigado
pela confiana depositada, seus ensinamentos foram valiosos. A mesma gratido estendo aos
professores do CERES de Caic, Joel Andrade, Muirakytan Kennedy de Macdo, Jailma Maria
de Lima, Fbio Mafra, Ubirathan Soares (tio Bira) e Maria de Ftima Garcia, obrigado.
A Sebastio Vargas, pela parceria e acolhimento. Pela ateno e autonomia que me
ensinou a ter. Grato mestre, em voc me espelho e me esmero no trato com a Histria. Sua
maneira de lidar com os fatos inspiradora.
Ao professor Luiz Assuno pela cordialidade, ateno e disponibilidade, seus incentivos
foram fundamentais.
Aos professores Durval Muniz, Francisco Santiago, Raimundo Arrais, Renato Amado,
Alessandro Dozena e Maria Eugnia, seus ensinamentos conceituais, tericos e metodolgicos
foram essenciais no desenrolar desta pesquisa. Muito obrigado pela sinceridade e estmulo.
Aos meus pais, Marcos e Mara, pelo apoio quase sempre acompanhado da preocupao
tpica dos progenitores. Obrigado pelas palavras de incentivo e zelo. s minhas irms Izabella,
Izadora (Irm Teresinha) e Ana Paula Oliveira, minha sobrinha Ana Beatriz. Amo vocs.
A minha esposa e companheira Tayane Oliveira. Meu amor, obrigado pelo carinho e
constante encorajamento, sua garra, seu afeto e sua enorme generosidade foram e sero sempre
um exemplo. Suas palavras de animosidade foram e sero sempre de grande estima. Obrigado
pela ateno e por segurar minha mo ao longo deste percurso de desespero e f. Te amo.
Ao meu filho, Tho Lorenzo, mesmo no tendo noo do papel que cumpristes no
decorrer desta pesquisa, saibas, s parte fundamental disso tudo. Este trabalho para voc e por
voc. Te amo.
Aos amigos e amigas com os quais compartilhei conversas e experincias importantes:
Jssica Camila, Ana Regina e Rosenilda Ramalho; aos companheiros de residncia: Matheus
Medeiros (Mohammed), Willian Andriola, Tiago Amorim, Janana Azevedo, Micarla, Suely
Souza, Stefany, Oliveira, Tamisiane Linhares, Rosane, Auri Flix, Antnio Neto, Rosngela
Oliveira, Peterson Javan, Aurino Filho, e todos os meus companheiros e companheiras da
faculdade, lembro de vocs sempre com muito carinho.
A Bruno Fernandes, meu irmo querido. Desejo um dia dividir contigo o mesmo
departamento de Histria numa dessas universidades Brasil a fora, ser um prazer dizer que
comeamos juntos no mesmo curso, com o mesmo orientador e com inquietaes bem
semelhantes. Salve sua viola!
Ao querido Jnio Davi, pela presena nem sempre fsica, mas contnua e atenciosa. Grato
por seu apoio, tenha certeza que, entre fotocpias e encadernaes, impresses e digitalizaes
gratuitas, voc me fez poupar uma boa grana. Obrigado.
No poderia esquecer dos membros e agregados da saudosa Comunas House. Ana Paula,
co-fundadora da memorvel instituio composta por estudantes advindos de vrios rinces do
Brasil. Meu carinho tambm Vanessa Anelise, Ilka Pimenta, Rafael, Romrio, Ruanzito, Kaly,
Sayuri, Keyde, Daniel Holanda e Gildy-Cler, vocs foram minha famlia fora do Serid,
obrigado por absolutamente tudo, sem vocs a experincia do mestrado teria sido solitria e a
caminhada muito mais densa.
A Maria Marcela Freire pela potica sugesto do ttulo desta pesquisa. Ao artista plstico
Assis Costa pela belssima imagem que ilustra a capa deste trabalho. Obrigado pela
sensibilidade.
Por fim, mas no menos importante, agradeo ao mundo espiritual: ao bondoso criador.
Aos mestres, mestras, caboclos, encantados, ciganos, boiadeiros, exus e pombagiras. A Oxssi,
Oxum e aos Ers que me guardam. Ao Mestre Z da Virada e ao Exu Sete Cruzes, graas aos
seus avisos certeiros seguimos caminhando. Salve sua fora e proteo!
Ax!
RESUMO
INTRODUO ................................................................................................................. 11
1 ABRINDO OS TRABALHOS ....................................................................................... 19
1.1 DOS CANDOMBLS AOS CATIMBS ABORDAGENS..................................... 19
1.2 O CATIMB SEGUNDO ANDRADE, BASTIDE e CASCUDO ............................. 29
1.3 MRIO DE ANDRADE ............................................................................................... 30
1.4 ROGER BASTIDE ........................................................................................................ 34
1.5 CMARA CASCUDO ................................................................................................. 40
1.6 CATIMB: OUTROS INTERLOCUTORES .............................................................. 45
2 AS ESPACIALIDADES DO CATIMB ..................................................................... 53
2.1 OS ASSENTAMENTOS............................................................................................... 62
2.2 PEJI, MESA e CONG................................................................................................. 68
2.3 O QUARTO DO SANTO E O QUARTO DA JUREMA ............................................. 71
2.4 OS ESPAOS DA NATUREZA PAISAGENS DO SAGRADO ............................. 73
2.5 O ESPAO-CORPO ..................................................................................................... 80
3 AS CIDADES ENCANTADAS DA JUREMA ............................................................ 91
3.1 REPRESENTAES MATERIAIS CIDADES, REINOS, VIDNCIA93
3.2 JUREMA UM PAU ENCANTADO ....................................................................... 101
3.3 GEOGRAFIA DO SOBRENATURAL: REPRESENTAES IMAGINADAS E
IMAGINRIAS DAS CIDADES DA JUREMA ............................................................. 110
3.4 METFORAS ESPACIAIS E NOES ESPACIALIZANTES .............................. 130
4 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 136
REFERNCIAS ............................................................................................................... 139
LISTA DE FIGURAS
INTRODUO
1
Cntico de abertura das cerimnias do catimb.
2
Usaremos o termo medinico-espiritualista para caracterizar os cultos religiosos afro-brasileiros que estamos
trabalhando nesta pesquisa (a saber: catimb-jurema, a umbanda e o candombl). Para uma leitura mais
aprofundada recomendamos: GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma histria da condenao e
legitimao do Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
3
SALLES, Sandro Guimares de. sombra da Jurema encantada, mestres juremeiros na umbanda de Alhandra.
Recife: Ed. Universitria, 2010, pp. 17-18.
12
4
SALLES, Sandro Guimares de. Catimb nordestino: as mesas de cura de ontem e de hoje. Revista de Teologia
e Cincias da Religio da Unicampi. Recife: FASA, 2008, p. 86.
5
ANDRADE, Mrio de. Msica de feitiaria no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983.
6
BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste mstico em branco e preto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945.
7
CASCUDO, Lus da Cmara. Meleagro, depoimento e pesquisa sobre a magia branca no Brasil. Rio de Janeiro:
Agir, 1951.
8
SILVA, Vagner Gonalves da. Candombl e Umbanda: Caminhos da devoo. So Paulo: Selo Negro, 2005.
13
Motta9, Vandezande10, Assuno11 Salles12, Queiroz13 e outros nomes, inauguraram uma nova
fase no que tange os estudos das religies afro-brasileiras, apresentando o catimb como
elemento central em suas pesquisas sem desviar a ateno dos arranjos constitudos ao longo
do seu espraiamento pelos terreiros do Brasil. Neste sentido, as anlises realizadas a partir de
1960, apresentam o culto catimbozeiro14 e suas reelaboraes em diferentes espaos religiosos
que no ficaram restritos ao cosmo umbandista.
Durante nossa pesquisa, foi possvel observar a presena do catimb em casas de
candombl, umbanda e omoloc. Outros autores ressaltaram evidncias ou resqucios do
universo juremeiro em terreiros de xang no Recife, no tambor-de-mina no Maranho e at
mesmo em centros espritas kardecistas. O processo de reelaborao do catimb inserido na
perspectiva de outras denominaes religiosas afro-brasileiras se deu de maneira visceral, de
modo que o culto a jurema nos terreiros de umbanda e candombl, por exemplo, no visto
como um complemento ou como recurso mgico-religioso15, mas designa uma parte
fundamental do cosmo das religies afro-brasileiras no Nordeste. Nesse sentido, ressaltamos
que em vrios momentos deste trabalho nos remetemos ao candombl e umbanda com o
objetivo de discutir as prticas do catimb nestes respectivos ambientes religiosos.
A emergncia do catimb-jurema noutros contextos religiosos no evidencia nenhum
processo de submisso ou dependncia em relao a outro culto; na verdade, compreendemos
este fato como resultado da dinmica e autonomia que as religies afro-brasileiras possuem
para compor suas prprias referncias. Mais que isto, este contato revela as semelhanas que
existem entre os cultos espiritualistas e medinicos de tradio oral. Bastide (2004) tem razo
ao afirmar que se houve uma aceitao dos cultos de matriz africana em relao aos cultos
amerndios, porque encontrou nele a mesma estrutura mstica existente em sua religio, a
mesma resposta s mesmas tendncias. 16
9
MOTTA, Roberto. As variedades do espiritismo popular na rea do Recife: ensaio de classificao. In:
Boletim da cidade do Recife. Recife: PMR/CMC, n 2, 1977.
10
VANDEZANDE, Ren. Catimb: pesquisa exploratria sobre uma forma nordestina de religio medinica.
Recife: UFPE. Dissertao de Mestrado em Sociologia, 1975.
11
ASSUNO, Luiz. O reino dos mestres, a tradio da jurema na umbanda nordestina. Rio de Janeiro: Pallas,
2006.
12
SALLES, 2010.
13
QUEIROZ, Marcos Alexandre de Souza. Os exus em casa de catio: etnografia, representaes, magia.
Dissertao de mestrado. Natal: UFRN, 2013.
14
Estamos cientes da polissemia deste termo que no senso comum, passou a ter sentido pejorativo e
preconceituoso, sendo sinnimo de magia negra e feitiaria. No entanto, faremos uso deste, com o devido respeito
para designar os adeptos do catimb.
15
MONTERO, Paula. Magia e Pensamento mgico. So Paulo: tica, 1986. Ver tambm: NEGRO, Lsias
Nogueira. Magia e Religio na Umbanda. Revista USP, set./out./nov., 1996.
16
BASTIDE, Roger. Catimb. In: Encantaria brasileira, o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2004, p. 149.
14
17
TUAN, Yi-Fu. Espao e Lugar: a perspectiva da experincia. So Paulo: Difel, 1983.
15
O terreiro abriga os homens e as suas divindades. A grande maioria dos templos que
visitamos apresentava um aspecto domiciliar: a casa do lder religioso que se transforma em
espao religioso. Em uma breve definio, os assentamentos so arranjos materiais que
remetem a um ponto fixo, no qual o esprito est ligado ritualisticamente. A representao
dos assentamentos varia de acordo com a tradio religiosa seguida pela casa. Nos catimbs,
observam-se copos ou taas de vidro (tambm chamadas de vidncia do mestre) e ou troncos
de rvore (geralmente da jurema) simbolizando a morada dos espritos no terreiro. O peji
(chamado de cong ou mesa) o altar onde esto dispostas as imagens dos mestres, orixs,
caboclos e outras entidades. Sua organizao espacial evidencia relaes de poder e hierarquias
dentro do sistema religioso juremeiro.
Uma das caractersticas que configuram as religies afro-brasileiras sua relao com
a natureza. De acordo com a cosmogonia desses cultos, os orixs possuem domnios, espaos
dos quais so regentes: Oxssi o patrono das matas; Iemanj a senhora do mar; Ogum rege
os caminhos; Oxum est ligada aos rios, cachoeiras e demais fontes de gua doce; Ians quem
governa os raios e tempestades; Xang representa a fora dos troves. Neste sentido, a liturgia
dessas religies prev e incentiva a realizao de rituais em espaos localizados fora do que
estamos chamando de complexo do terreiro. Concepes semelhantes tambm podem ser
observadas nas culturas indgenas brasileiras, onde espritos encantados atuam como guardies
Espao essencial nas tradies religiosas medinicas, o corpo usado como um
mecanismo fundamental na comunicao entre o homem e os espritos, constituindo a base de
muitos sistemas religiosos. O corpo uma categoria espacial constituda por elementos
materiais e simblicos. Em se tratando das religies afro-brasileiras, o processo de construo
do corpo-templo se d a partir de rituais de iniciao, como o bori do candombl, o amaci
na umbanda e o tombamento na jurema, rituais com simbologias espacializantes, uma vez
que um dos objetivos inserir e localizar o corpo do novio em um sistema religioso e
hierrquico.
A discusso do terceiro captulo gira em torno de um campo ainda pouco investigado
pelos pesquisadores: os encantos, as cidades espirituais, o lugar sagrado onde habitam e
transitam os mestres da jurema. H registros sobre as urbes juremeiras nas pesquisas pioneiras
de Andrade e Cascudo. Diz-se que estes lugares imaginrios18 possuem paisagens iguais as
nossas, com rvores, animais, montanhas, vales, rios alm de outros aspectos topogrficos
18
A discusso sobre o conceito ser desenvolvida ao longo do terceiro captulo. Estamos nos baseando em
PESAVENTO, Sandra. Em busca de uma outra histria: imaginando o imaginrio. Revista Brasileira de Histria,
So Paulo, v. 15, n. 29,1995.
16
representados19 e imaginados pelos squitos. Cada um dos mestres espirituais que habitam as
paragens mticas possui sua linha de trabalho, isto , uma cincia, que pode variar desde
trabalhos de cura, dinheiro, amor, limpeza fsica e espiritual e outros encantamentos voltados
para feitios e amarraes. H casas em que o juremeiro tem acesso ao mundo espiritual por
meio do tombo, um ritual no qual o discpulo em estado de transe (sem possesso), visita
certos lugares fantsticos os encantos. Por fim, a discusso que conclui o terceiro captulo
apresenta as metforas espaciais e outras noes espacializantes contidas no catimb (e de
modo geral nas religies afro-brasileiras) agenciadas para habilitar os espaos, classificar e
hierarquizar suas entidades e organizar sua liturgia. As metforas de espao esto presente no
cotidiano e no vocabulrio dos adeptos, v-se por exemplo, a classificao das entidades em
espritos de direita, (caboclos e pretos-velhos) e espritos da esquerda, onde os exus,
pombagiras e muitos mestres so os principais representantes. Ao longo deste trabalho
discorremos acerca da construo e das representaes dos encantos da jurema, observando-
os a partir de suas dimenses fsicas (materiais), msticas20 e imateriais.
Este trabalho conta com recursos e mtodos da Histria Oral,21 de forma que as
impresses e as concepes prprias deste campo embasam nossa anlise permitindo-nos
observar a multiplicidade com a qual os adeptos concebem seu credo religioso, a fala dos nossos
entrevistados veio a contribuir de forma essencial para o desenvolvimento desta pesquisa.
Apostamos na interdisciplinaridade. Este trabalho foi pensado histrica e antropologicamente,
o dilogo entre historiadores, antroplogos, gegrafos e socilogos possibilitou a ampliao da
discusso e o alargamento dos conceitos basilares da pesquisa. Por meio deste exerccio foi
possvel compreender como o espao construdo a partir de diferentes mecanismos para
atender as necessidades individuais ou coletivas de grupos religiosos.
Os aportes terico-metodolgicos erigidos a partir das disciplinas no Programa de
Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte foram
fundamentais. Nas glidas salas de aula, as leituras e as discusses expandiam e burilavam
nosso olhar acerca das dizibilidades e visibilidades do espao, as vivncias e os momentos de
cio produtivo nos intervalos despertavam a sensibilidade e davam nimo dura caminhada
da pesquisa. As confabulaes tecidas com os colegas nos umbrticos e promitentes corredores
19
Trabalharemos o conceito de representao segundo Roger Chartier. Ver: CHARTIER, Roger. A histria
cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
20
BETTO, Frei. BOFF, Leonardo. Mstica e espiritualidade. 6 Ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
21
MEIHY, J.C.S.B. Manual de histria oral. 5 ed. So Paulo: Loyola, 2005. Ver tambm: ALBERTI, Verena.
Histria oral: a experincia do CPDOC. Rio de Janeiro: Instituto de Documentao. Editora da Fundao Getlio
Vargas: 1990.
17
do setor dois foram um ensaio para a pesquisa de campo. Por meio de informais e sinestsicas
conversas, percebemos que o acesso aos conhecimentos mgico-religiosos dos mestres e
mestras do catimb se deram de modo mais sensvel e espontneo. Alcanamos um resultado
que talvez no fosse possvel mediante a formalidade cientfica proposta pela academia. Em
suma, estas so algumas das experincias construdas empiricamente durante a pesquisa. Bons
tempos.
Entre leituras e experimentaes in locu, a pesquisa foi se desenrolando. Ir a campo
permitiu a construo de um acervo documental que atualmente conta com mais de duzentas
imagens, mais de trs mil pontos cantados22, a grande maioria dos cnticos cedidos gentilmente
pelo professor e pesquisador Arthur Csar Isaia da UFSC, com quem mantivemos contato
durante o Encontro Nacional de Histria, em Natal-RN, em 2013.
Nosso cabedal conta tambm com entrevistas gravadas e transcritas com mestres do
catimb e sacerdotes de umbanda e candombl. Percorrendo mais de vinte municpios
seridoenses, conhecemos os mestres e as suas prticas, acompanhamos cerimnias diversas,
mas tambm nos deparamos com a adversidade. Casos de resistncia e preconceito contra as
religies afro-brasileiras nos fizeram aprimorar as tticas de busca por mes e pais de santo
dispostos a conceder uma entrevista e abrir as portas de seus templos para uma visita.
Frequentemente ouvamos dos moradores das cidades por onde passamos um discurso de
negao que objetivava por vezes, invisibilizar os adeptos, afirmaes do tipo: aqui no tem
macumbeiro, ou na minha cidade no existe esse tipo de gente. Diante de tamanha averso,
procuramos ultrapassar os percalos com criatividade. Indo a supermercados, bodegas e
mercadinhos, buscvamos informaes sobre provveis consumidores das velas coloridas
(vermelha, verde, preta, azul e outras), tipicamente usadas em rituais de umbanda, catimb e
candombl: Com licena... Quem costuma comprar essas velas coloridas?. Quase como se
confessa um segredo, ramos informados dos nomes e endereos dos terreiros. As informaes
tinham um preo, o silncio dos nossos informantes, o adendo mais comum era: no digam
que fui em quem disse. E assim um a um, os mestres de jurema, pais e mes de santo do
candombl e da umbanda eram encontrados, o que confirmou nossa tese de viagem elaborada
a partir das falas dos moradores: no existe cidade sem macumbeiro.
Por uma questo de organizao e prioridade, selecionamos para este trabalho apenas
as entrevistas que consideramos mais pertinentes. Filmagens existem, mas em menor
quantidade, na maioria das vezes no fomos autorizados a registrar em vdeo as cerimnias,
22
Msica entoada para evocar ou despachar as entidades espirituais. Estas canes tambm so chamadas de linhas
ou toadas.
18
ento recorremos memria e ao tradicional lpis e papel para descrever o que havamos visto.
As gravaes nos auxiliaram na anlise da performance corporal dos mdiuns.
As imagens foram um eficiente aporte para avaliar a composio dos espaos
religiosos, as formas de representar o mundo sobrenatural em que habitam os mestres do
encanto; os cnticos alm de nos fornecer dados biogrficos sobre os mestres e mestras
espirituais, nos permitiram observar algumas dimenses espaciais, como as metforas e outras
noes espacializantes contidas nas ladainhas. Analisar as categorias espaciais no foi (e no )
uma tarefa das mais fceis, principalmente quando se lida com espaos alicerados sob as
sensibilidades humanas e apoiados em investimentos imateriais como as memrias, as
metforas23, as utopias24 e a mstica.
Para alm das imagens, cnticos e bibliografias, utilizamos tambm de entrevistas,
acessamos sites e blogs direcionados ao assunto. Foi interessante observar que o mundo virtual
viabilizou a disseminao da doutrina juremeira dando voz aos prprios mestres e sua cincia
particular. Vale ressaltar que as redes sociais foram utilizadas nesta pesquisa como uma
ferramenta bastante til, vindo a facilitar o contato entre pesquisador e entrevistado.
medida em que esta pesquisa avanava, ficava cada vez mais evidente que
estvamos adentrando em um terreno movedio. Estamos cientes das limitaes deste trabalho;
o estudo das representaes espaciais do catimb exigiu minimamente que sassemos da nossa
zona de conforto e partssemos para anlises mais conceituais e especficas sobre determinadas
concepes que fazem parte da mstica juremeira, isto , os segredos e fundamentos mgico-
religiosos que no devem ser jamais, revelados completamente.
23
IANNI, Octvio. A metfora da viagem. In: ______. Enigmas da Modernidade. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2000.
24
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofgica. So Paulo: Globo, 1990.
19
1 ABRINDO OS TRABALHOS
Arreda homem
Que a vem Mulher
Ela a Pombagira
Rainha do Candombl25
25
Ponto cantado do catimb-jurema.
26
Uma discusso interessante sobre a nao nag pode ser vista em: SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nag e a
morte: Pd, ss e o culto gun na Bahia. Petrpolis: Vozes, 1977.
27
PRANDI, Reginaldo. O candombl e o tempo: concepes de tempo, saber e autoridade da frica para as
religies afro-brasileiras. Revista Brasileira de Cincias Sociais.v. 16, n. 47. So Paulo, 2001, p. 51.
28
CAPONE, Stefania. A busca da frica no Candombl: Tradio e Poder no Brasil. Rio de Janeiro: Contra
Capa/ Pallas, 2009, p. 9.
29
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
1935.
20
da etnografia dos cultos afro-brasileiros30. Embora no seja um dos eixos principais do nosso
trabalho, cabe um adendo sobre o que estamos designando de tradio. Este conceito abrange
um conjunto de prticas sociais de natureza ritual ou simblica, reguladas com objetivo de
expressar valores, crenas ou normas de comportamento, por meio de uma constante repetio,
estabelecendo relaes com o passado. Em se tratando de religies onde a oralidade o
principal veculo transmissor dos ensinamentos ancestrais, a ideia de tradio um elemento
presente e muitssimo importante para a legitimao de dadas prticas forjadas no grupo, sejam
elas antigas (ancestrais) ou modernas, como sugere Hobsbawm ao discutir a noo de
tradies inventadas.31
Com Ramos32 e Bastide33, as questes enfatizando a cultura negra no Brasil tomaram
rumos diferentes; entretanto, ainda continuaram centralizadas em Salvador. Enquanto isso, em
outros lugares do pas, manifestaes religiosas com estrutura muito semelhante do
candombl, atuavam longe dos holofotes acadmicos, a hegemonia do culto nag era notria.
A Bahia, considerada um reduto dos cultos afro-brasileiros, assistia cotidianamente
proliferao de candombls de naes queto, angola, ef, ijex, dentre outros. De acordo com
os autores nagocntricos34, os arranjos litrgicos destes outros eram relativamente mais
flexveis que o candombl ioruba ou jeje-nag. Alm do culto aos espritos ancestrais
africanos, o panteo de outras naes do candombl tambm reverenciava os voduns, inquices,
espritos caboclos e outras entidades consideradas mestias, que destoavam da pura
estrutura ritualstica nag. O aspecto hbrido das naes no-nag, acabou lhes rendendo o
status de religies menos ortodoxas, como apontou Dantas.35 As personagens do culto nag
entrevistadas pela autora, reivindicavam para si a pureza religiosa vinda da frica, enquanto
os no-nag, eram apontados pelo primeiro grupo como, os outros, os misturados, os
no puros.
Para compreender melhor o universo religioso afro-brasileiro, Rodrigues36 elaborou
categorias a fim de analisar as naes do candombl baiano. Embora seus textos expressem
um forte contedo racista, se tornaram referncia nos estudos sobre a temtica. Silva considera
que,
30
FERRETTI, Srgio. Nina Rodrigues e as religies dos orixs. Salvador: Gazeta Mdica da Bahia: 2006, p. 55.
31
HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
32
RAMOS, Arthur. As culturas negras no novo mundo. 4.ed. So Paulo: Ed. Nacional, 1979.
33
BASTIDE, Roger. As religies africanas no Brasil. So Paulo: Pioneira, 1971.
34
MATORY, James Lorand. Black atlantic religions: tradition, transnationalism, and matriarchy in the Afro-
Brazilian Candombl. New Jersey: Princeton Universtity Press, 2005, p. 43.
35
DANTAS, Beatriz. Vov Nag e Papai Branco: Usos e abusos da frica no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988,
pp. 100-101.
36
RODRIGUES, 1935.
21
37
SILVA, Vagner Gonalves da. Orixs da Metrpole. Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 35.
38
Para uma leitura mais aprofundada sobre a medicina e as doenas tropicais no Brasil, recomendamos:
BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, Andr Felipe Cndido da. Ferrovias, doenas e medicina tropical no Brasil
da Primeira Repblica. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro: v.15, n.3. Jul./Set. 2008.
39
Sobre a questo da raa no Brasil, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas,
instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Ed. Nacional, 1979. Ver tambm: MUNANGA,
Kabengele. Rediscutindo a mestiagem no Brasil. Identidade nacional versus identidade negra. Petrpolis:
Vozes, 1999.
40
SEYFERTH, Giralda. Colonizao, imigrao e a questo racial no Brasil. Revista USP, 2002, p. 149.
22
preciso ter sido testemunha dos trejeitos, das contorses, dos movimentos
desordenados e violentos a que os negros se entregam nas suas dansas sagradas,
pr horas e horas seguidas, por dias e noites inteiras; preciso ter as vistas
cobertas de suor copiosissmo que as companheiras enxugam de tempos a tempos
em grandes toalhas ou panos.41
A classificao idealizada por Nina Rodrigues continuou a ser reforada ainda durante
dcadas. No entanto, com as pesquisas de Ramos43, uma fase importante nos estudos culturais
afro-brasileiro foi iniciada. Considerado por muitos pesquisadores, como o discpulo mais fiel
de Rodrigues, Ramos sistematizou o campo de pesquisas afro-brasileiras em trs fases: Pr-
Nina Rodrigues, etapa que abarca a significativa contribuio dos cronistas europeus do perodo
colonial brasileiro ao abordarem os aspectos da vida dos nativos a partir do vis cientfico; a
Fase Nina Rodrigues, momento no qual foram postulados os mtodos de estudo comparativo
das culturas africanas e suas adaptaes ocorridas no territrio brasileiro; e por fim, a fase Ps-
Nina Rodrigues, que se estenderia at o perodo atual.44
O autor prope uma leitura mais abrangente sobre o universo sociocultural e poltico
afro-brasileiro buscando romper com certas ideias defendidas por Nina Rodrigues, dentre as
quais, a de que a religies afro-brasileiras seriam uma marca incontestvel do primitivismo e
inferioridade dos negros. Ramos expandiu o olhar sob as abordagens erigidas at aquele
momento acerca do povo negro e sua cultura. Tratou de problematizar o conceito de raa,
41
RODRIGUES, op. cit., pp, 26-27.
42
RODRIGUES, Nina. In: DANTAS, Beatriz de Gis. Vov Nag e Papai Branco: Usos e abusos da frica no
Brasil, Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 153.
43
RAMOS, 1979.
44
SERAFIM, Vanda Fortuna. Os Conceitos Fetichismo e Animismo no Discurso de Nina Rodrigues. Em
Tempo de Histrias - Publicao do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Braslia - PPG-
HIS, n. 15, Braslia: Jul./dez. 2009.
23
substituindo-o pelo de cultura45, ao passo que direcionava os estudos sobre estas religies para
o campo da etnografia e da antropologia,
45
SILVA, Vagner Gonalves da. Religies afro-brasileiras: construo e legitimao de um campo do saber
acadmico. Revista USP, So Paulo, n 55. Set/nov. 2002, p. 89.
46
SANTOS, Marineide. Revista de Administrao de Empresas, vol. 13, n. 4, out-dez. So Paulo, 1973, p. 136.
24
47
ISAIA, Artur Csar (Org.). Crenas, sacralidades e religiosidades. Entre o consentido e o marginal.
Florianpolis: Editora Insular, 2009, p. 3.
48
PRANDI, Reginaldo. O Brasil com Ax: Candombl e Umbanda no mercado religioso. So Paulo: Estudos
Avanados 18 (52), 2004.
49
BIRMAN, Patrcia. O que umbanda. So Paulo. Brasiliense: Coleo Primeiros Passos, 1983.
50
Faixa energtico-vibratria na qual se manifestam as entidades.
51
Para uma leitura mais aprofundada sobre a umbanda e sua formao recomendamos as leituras de
CAVALCANTI, Viveiros de Castro. Origens, para que as quero? Questes para uma investigao sobre a
Umbanda In: Religio e Sociedade: 13 (2): 84-101, 1986. CAMARGO, Candido Procpio Ferreira de.
Kardecismo e umbanda. So Paulo: Pioneira, 1961. CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Umbanda, uma
religio brasileira. So Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, 1987. PRANDI,
Reginaldo. Cidade em transe: Religies populares no Brasil no fim do sculo da razo. Revista USP, So Paulo:
n 11, out-dez, 1991.
25
52
ASSUNO, Luiz. Os Mestres da Jurema, culto da Jurema em terreiros de Umbanda no interior do Nordeste.
In: Encantaria brasileira, o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 182.
53
LCIO, Tiago. Entrevista realizada em 27 de maro de 2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de
Oxum, em Extremoz-RN.
26
representantes de uma cultura milenar e que simbolizam dentro deste sistema religioso a
transitoriedade.
A umbanda nordestina um claro exemplo dos intercmbios culturais ocorridos em
sociedade. A macumba carioca, como tambm conhecida, chegou a algumas capitais do
Nordeste na dcada de 1960. Vinda com os migrantes da regio Sudeste que chegavam em
numerosas levas atrados pelas oportunidades de emprego oferecidas pelo setor industrial.
Muitos desses trabalhadores fabris adeptos da umbanda, identificaram-se com as expresses
religiosas medinicas nordestinas, gradativamente as trocas e as influncias passaram a ocorrer.
Os influxos culturais apresentam-se como um movimento constante em se tratando do
universo afro-brasileiro, um mecanismo fundamental no espraiamento das trocas materiais e
simblicas entre os grupos religiosos. Brando e Rios afirmam que, as constantes ondas
migratrias (...) devem ter influenciado nestes intercmbios de elementos simblicos54, os
cultos se espalham espacialmente apresentando novas configuraes. Este exerccio delineou
uma multiplicidade de manifestaes religiosas que possuem uma ntima relao com o espao
geogrfico no qual se estabeleceram, recebendo identificaes (nomenclaturas) distintas e
ampliando seu repertrio de prticas mgico-religiosas. No demorou para que estas expresses
chamassem a ateno da academia, as pesquisas sobre o campo religioso afro-brasileiro
expandiram-se consideravelmente a partir de 1950.
A pajelana amaznica estudada por Maus55 e Villacorta56 foi identificada como
fenmeno religioso baseado na possesso dos xams por espritos de antigos ndios e seres
encantados a fim de proporcionar a cura para os males do corpo e do esprito. Semelhante ao
catimb, as sesses xamansticas esto fundamentadas em um riqussimo conhecimento
fitoterpico onde o tabaco um elemento-chave nos rituais trata-se de um item bastante
apreciado pelos pajs e pelos espritos dado seu aspecto sagrado, no h trabalho de cura sem
o tabaco.
Motta57 e Fernandes58 dedicaram suas pesquisas ao xang do Recife, definiram esta
como a principal expresso religiosa afro-brasileira em Pernambuco, sendo comum tanto na
zona urbana como na zona da mata. Motta diz que o xang mescla elementos amerndios, onde
54
BRANDO, Maria do Carmo. RIOS, Lus Felipe. Catimb-Jurema do Recife in: Encantaria brasileira, o
livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 161.
55
MAUS, R. Heraldo. Catolicismo e Pajelana entre pescadores da Zona do Salgado. Comunicaes do ISER
4 (14): 1985.
56
VILLACORTA, Gisela Macambira. Cura e protesto: uma experincia xamanstica em uma populao
amaznica, Colares (nordeste do Par). Monografia de Concluso de Curso em Cincias Sociais. Belm: UFPA,
1996.
57
MOTTA, Roberto. Catimbs, xangs e umbandas na regio do Recife. Recife: Massangana, 1985.
58
FERNANDES, Gonalves. Xangs do Nordeste: investigaes sobre os cultos negro-fetichistas do Recife. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1937.
27
59
MOTTA, Roberto. Umbanda, xang e candombl, crescimento ou decomposio. Cia & Trp. Recife: Vol.
29, n. 1. Jan/jun. 2001, p. 182.
60
FERRETTI, Mundicarmo. Tambor de Mina, cura e baio na Casa Fanti-Ashanti MA. So Lus: SECMA,
1991.Ver tambm: FERRETTI, Mundicarmo. Encantaria de Barba Soeira Cod, capital da magia negra? So
Paulo: Siciliano, 2001.
61
FERRETTI, Srgio. Querebent de Zomadonu: etnografia da casa das Minas do Maranho. 2. ed. So Lus:
EDUFMA, 1996.
28
Nordeste 62. Conversamos tambm com Gedeilson Gomes, o nico filho de santo da Tenda
que trabalha com um encantado do Cod, Sete Lgua Boji. Gedeilson diz que,
62
COSTA, Suely. Entrevista realizada em 27 de maro de 2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de
Oxum, em Extremoz-RN.
63
GOMES, Gedeilson. Entrevista realizada em 27 de maro de 2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino
de Oxum, em Extremoz-RN.
64
SENNA, Ronaldo Salles. Jar, uma face do candombl: manifestao religiosa na Chapada Diamantina, Feira
de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1998.
65
Para outras informaes sobre o jar, ver: ALVES, P.C. A dimenso social da doena no jar. In Cadernos do
Ceas, N. 150 (maro/abril): 1994.
66
SENNA, 1998, p. 75.
29
Analisamos a seguir, trs obras consideradas referncias nos estudos sobre o catimb-
jurema. Partiremos de Andrade68, Bastide69 e Cascudo70, a fim de observar quais consideraes
foram traadas por estes autores, sobretudo, no que tange a concepo das espacialidades, isto
, como os espaos de culto do catimb aparecem retratados nos textos destes autores. Por meio
desta reviso bibliogrfica, poderemos tambm observar os mecanismos agenciados ou mesmo
construdos pelos adeptos do catimb para sua (re)atualizao no cenrio contemporneo.
evidente que as configuraes litrgicas e cosmolgicas da jurema passaram por
transformaes significativas, principalmente aps o contato com o candombl e a umbanda.
poca em que os estudos dos autores foram realizados, o catimb era fortemente vinculado
magia negra e feitiaria o que aparece de maneira explcita nos textos de Cascudo e por isso
era duramente combatido, em contrapartida, a represso ao culto teria dado origem a uma das
ramificaes do catimb: a jurema de cho.
Bastide dedicou anos de sua vida as pesquisas sobre a cultura negra; neste sentido, o
catimb retratado em suas publicaes, como um culto estreitamente ligado ao universo
religioso africano. A paixo de Andrade pela msica deixou marcas seus escritos. O autor legou
para a posteridade um acervo composto por gravaes e documentos em que relata suas
experincias pelo Nordeste, sua pesquisa foi sem dvida, uma experincia antropolgica e
etnogrfica.
67
Ponto cantado do catimb-jurema.
68
ANDRADE, 1983.
69
BASTIDE, 1945.
70
CASCUDO, 1951.
30
Em idos dos anos 1930, o escritor paulista Mrio de Andrade preparou uma equipe de
estudiosos e partiu rumo s terras ridas do Nordeste brasileiro numa expedio denominada
Misso de Pesquisas Folclricas. Assuno lembra que o objetivo de Andrade era documentar
algumas das manifestaes do folclore brasileiro antes do seu completo desaparecimento.71
A campanha inventariou uma srie de msicas que o escritor chamou de msicas de feitiaria
dada sua relao com algumas prticas religiosas consideradas clandestinas e supostamente
voltadas feitiaria. O projeto percorreu vrios estados nordestinos em mais de trinta
localidades, dentre elas, Joo Pessoa, Natal e Recife. O objetivo fulcral da Misso Folclrica
era buscar elementos que representassem uma identidade nacional. Mrio de Andrade
identificava nas cantigas, nas danas e nas religiosidades populares, traos de uma
originalidade contida nas tradies brasileiras, para Andrade, sua pesquisa era uma
ferramenta essencial na percepo do povo brasileiro, como explica Lopez Ancona:
Para o modernista Mrio de Andrade, empenhado em entender a realidade
brasileira dentro de um quadro latino-americano e em traar, na medida de
suas possibilidades, as coordenadas de uma cultura nacional, tomando o
folclore e a cultura popular como instrumentao para seu conhecimento do
povo brasileiro, foi muito importante unir a pesquisa de gabinete e a vivncia
de vanguardistas metropolitanos ao encontro direto com o primitivo, o rstico
e o arcaico, que, em seu enfoque dialeticamente dinmico, puderam lhe valer
como indcios de autenticidade cultural.72
71
ASSUNO, 2006, p. 75.
72
ANCONA LOPEZ, T. P. Viagens etnogrficas e Mrio de Andrade. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 15.
31
sendo abortada em 1938, contexto que delineou a instaurao do Estado Novo por Getlio
Vargas. Os gastos foram cortados e os investimentos na rea cultural, desativados, o que acabou
inviabilizando a continuao das pesquisas.
Msica de feitiaria no Brasil est organizada em cinco sesses, sendo a maior parte
delas compostas por transcries dos cnticos e por inmeras notas de observao, algumas
delas retificando informaes preliminares. A obra traz dados biogrficos dos mestres
catimbozeiros, alguns vivos, outros j falecidos. Por meio dos cnticos, o autor escreveu
algumas consideraes sobre como eram feitos certos trabalhos de catimbozice, apontando
para seu aspecto mgico e enganoso. O pensamento de Andrade acerca dos cultos afro-
brasileiros reflete algumas concepes de seu tempo, sobretudo no que diz respeito a ideia de
que as expresses religiosas de matriz africana e indgena estariam voltadas para prticas de
feitiaria. Andrade parece relutar no reconhecimento destas manifestaes como religies, o
seu texto apresenta nas entrelinhas algumas reservas quanto ao termo religio, sendo
substitudo em vrias passagens por rituais ou prticas feiticeiras.73
A partir do seu conhecimento terico e prtico sobre a msica, Andrade analisou as
estruturas meldicas das linhas do catimb. De acordo com o autor, essas ladainhas unssonas
possuem uma funo fundamental na liturgia do catimb, ele diz que esse o destino principal
da msica que a torna companheira inseparvel da feitiaria dada sua fora hipntica. 74 A
msica religiosa no empregada simplesmente como forma de agradar as divindades ou de
dar ritmo s cerimnias, mas porque, atravs dela, o contato com o universo sagrado se efetiva
de maneira mais concreta.
O autor afirma que a musicalidade que atravessa todo o cerimonial catimb embala os
mdiuns e os conduz ao transe. Acostados em seus cavalos75, os espritos movimentam-se ao
som dos cnticos entoados pelas vozes quase sempre estridente e desentoada do coro de crentes
que recita as ladainhas. Todos esses sons se misturam aos sotaques caractersticos das entidades,
que num cantinho do salo, conversam com seus consulentes, enquanto outros guias,
aparentemente brios, danam, fumam e bebem de maneira descontrada pelo terreiro animados
pelos maracs e pelas palmas daqueles que assistem as sesses.
Para alm das anotaes sobre a funo musical, Andrade organizou de maneira
sistemtica um esquema sobre a estruturao litrgica do culto catimbozeiro. Segundo o autor,
as sesses comeam com a orao da linha o cntico que abre os trabalhos, os mestres da
73
ANDRADE, 1983, p. 23.
74
ANDRADE, op. cit. p. 37.
75
Mdium, chamado tambm de caixa, burro, aparelho.
32
mesa e todos os presentes cantam para invocar as entidades repetindo os louvores at que os
mdiuns cassem em transe. J incorporado o mestre espiritual fuma e defuma os presentes
com um cachimbo colocando a boca no fornilho, soprando a fumaa que sai pelo orifcio onde
costumeiramente se pe na boca.
O esprito acostado vai at a princesa, um recipiente de loua ou de vidro disposto
no centro da mesa representando o Reino do Jurem. Com toda diligncia o mestre faz uma
genuflexo e em seguida, defuma a princesa e os prncipes demonstrando seu respeito aos
encantos da jurema. Depois a entidade ainda incorporada, sada o pblico e se dispe a
conversar com aqueles que necessitam dos seus servios. Por fim, a entidade se despede
cantando uma linha de subida juntamente com a congregao. O esprito, ento, volta sua
morada sagrada abandonando o corpo do mdium.
O autor destaca embora no analise algumas espacialidades importantes na jurema.
A primeira, a princesa, uma representao material dos reinos imaginrios do catimb. Esta
a materializao dos espaos msticos onde moram os espritos dos mestres, a princesa
chamada tambm de vidncia, pois atravs desse recipiente possvel prever ou interpretar
alguns acontecimentos. A segunda categoria de espao mencionada por Andrade, o Reino
encantado, o Jurem, o lugar onde os mestres habitam. O autor fora um dos primeiros
pesquisadores a catalogar alguns destes espaos msticos, como veremos mais adiante.
Para Andrade, o cerne da cerimnia reside no culto a rvore da jurema, da qual se
fabrica o licor sagrado compartilhado nas cerimnias. O arbusto da jurema , segundo seus
adeptos, a fonte de toda cincia, a sabedoria mgico-religiosa dos senhores mestres. O autor
afirma que,
No catimb existe quase uma fitolatria, no culto da jurema. Com ela se faz
uma bebida estimulante [...] os pais-de-santo so chamados de mestres, que
usana tradicional portuguesa a denominao era utilizada em Portugal para
designar mdicos, mas poderia ser empregada tambm para se referir aos
curandeiros e feiticeiros [...]. A palavra mestre utilizada tanto pros
feiticeiros, como pros deuses invocados [...]. Demais, toda ela (a cerimnia)
bordada de cnticos.76
76
ANDRADE, 1983, pp. 30-35.
33
forma a descaracterizar totalmente a essncia desta prtica religiosa. A grande maioria dos
aspectos pontuados nas anotaes de Andrade ainda permanecem presentes nos catimbs
nordestinos.
Em campo, pudemos ter uma noo da importncia que o arbusto da jurema tem na
cosmoviso do catimb. A planta utilizada com finalidades diversas, o ingrediente principal
no preparo da bebida psicotrpica amplamente conhecida como jurema, tambm receitada
como medicamento no tratamento de doenas do corpo e da alma. Parte expressiva dos rituais
conduzidos pelos mestres vivos e desencarnados tem por objetivo a cura fsica e espiritual.
Essas receitas seguem preceitos de preparo rigorosssimos, baseados em uma medicina
ancestral antiga onde as ervas so reverenciadas dado seu aspecto sagrado. Os mestres podem
utilizar-se destas plantas mgicas como ferramenta para o trabalho espiritual, como
demonstra a linha do Mestre Lus dos Montes,
Eu venho das Altas Torre
Do reino do jurem,
Que eu me chamo Luis dos Montes,
Trabio com Vajuc
Com trs galhinhos de alecrim
E os trs reis orientais
Preciso eu dum mestre
Pra me ajuda.77
77
ANDRADE, 1983, p. 81.
78
ANDRADE, 1983, p. 75.
34
cincia, seus habitantes exercem funes relacionadas as necessidades do homem tal como,
sexo, dinheiro, trabalho, etc. Em suma, a cincia a especialidade de atuao mgica dos
mestres.
A obra em debate expressa a metodologia do trabalho cientfico, com as impresses
pessoais do prprio autor, que muitas vezes se coloca como partcipe nos rituais. Numa de suas
andanas por Natal resolveu experimentar de uma das cerimnias mais importantes do
catimb, trata-se da sagrao para fechar o corpo contra todo tipo de malefcio. Sobre o
ritual, ele afirma: impossvel descrever tudo que se passou naquela cerimnia disparatada,
mescla de sinceridade e charlatanice, ridcula, religiosa, cmica, dramtica, enervante,
repugnante, comoventssima, tudo misturado.79 A maneira como o autor narra a experincia
entrelaa o nervosismo e as expectativas do sujeito leigo, curioso e aprendiz, com o
racionalismo e a desconfiana do pesquisador. Sem dvidas, o conjunto desses elementos so
a essncia da obra de Andrade: a narrao sistmica e comedida temperada com a potica que
est intrnseca ao autor.
A obra Msica de feitiaria apresenta as limitaes de uma pesquisa ensasta, contudo,
foi capaz de evidenciar os preceitos substanciais do culto ao analisar a simbologia e a hibridao
presente nos rituais apontando as influncias africanas e europeias. De todo modo, vlido
considerar Andrade como um dos responsveis pela introduo do catimb-jurema nos crculos
de estudos sobre as religies afro-brasileiras.
O socilogo francs Roger Bastide80 foi um dos estudiosos europeus que por volta de
1938, vieram para o Brasil integrando o grupo de professores que lecionaram na Universidade
de So Paulo. Bastide ocupou a ctedra de sociologia e nesta funo, realizou vrias pesquisas
iniciando um perodo importante nos estudos sobre as religies de matriz negra no Brasil. A
grande maioria de suas publicaes foi reeditada o que demonstra a repercusso de suas
pesquisas no mbito dos estudos afro-brasileiros, principalmente do ponto de vista sociolgico.
Para Bastide, o africano aparece como elemento substancial na formao da sociedade
brasileira. A bagagem cultural trazida por estes povos constitui grande parte das nossas
heranas. O autor abordou a questo do sincretismo desenvolvendo a tese de que a
79
Ibidem, p. 32.
80
BASTIDE, 1945.
35
81
Ver tambm: BASTIDE, Roger. Sociologia do folclore brasileiro. So Paulo: Anhembi,1959. BASTIDE,
Roger. Brasil, terra de contrastes. So Paulo, Difuso Europeia do Livro, 1971. BASTIDE, Roger. As Amricas
negras. So Paulo, Difuso Europeia do Livro/EDUSP, 1974.
82
BASTIDE, 1945. p. 205.
83
BASTIDE, 2004, p. 146.
84
Sobre a santidade recomendamos a leitura de VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia
no Brasil colonial. So Paulo, Companhia das Letras, 1999.
36
Bastide afirma que estas religiosidades s convergiram com tamanha fluidez, dada a
semelhana cosmolgica existente entre suas matrizes. O sistema religioso indgena de alguma
forma oferecia ao negro respostas satisfatrias s suas necessidades. Assim, o autor considera
o catimb como um culto dinmico cujo processo de reestruturao est marcado pelo advento
de uma nova sociedade o que influenciou nos tipos sociais representados no panteo
juremeiro. O culto jurema ganhou espao por entre as populaes caboclas, negras e mestias
do Nordeste, saiu do domnio exclusivamente indgena para adentrar em espaos mais
urbanizados e ligados ao mundo proletrio, aglutinando outros adeptos e expandindo sua
mestria espiritual. Neste processo, as cerimnias do catimb tornam-se, segundo Bastide,
individuais e no mais sociais, dado o processo de desagregao da antiga solidariedade
85
BASTIDE, 2004. p. 243.
86
Ibidem. p. 149.
37
tribal.87 Desta forma, o culto que j sofria com o desprestgio de grande parte da populao,
passou a se organizar nos espaos opacos e teimosos, em casinhotos nas zonas marginais das
cidades.
Em sua viagem encantada pelo Nordeste brasileiro, Bastide procurou perceber os
detalhes, os cheiros, os sons, em suma, as subjetividades que compe o universo mstico dos
sertanejos. Sobre os terreiros, Bastide catalogou nomes de objetos rituais e descreveu suas
utilidades: o cachimbo, tambm chamado de marca um dos itens mais importantes da
liturgia, pois por meio dele a fumaa do tabaco aspergida defumando os presentes nos
trabalhos de cura. O tabaco a erva-mestra no exerccio da magia catimbozeira: o fumo a
planta sagrada e sua fumaa que cura as doenas proporciona o xtase, d poderes sobrenaturais,
pe o (mestre) em comunicao com os espritos.88
As bugias so pequenos castiais onde so dispostas as velas em chamas
representando a presena dos espritos. Uma chave de ao, a chave de Salomo, repousa
sublimemente sob a mesa onde ocorrem as invocaes dos mestres. A chave simboliza a
permisso divina para abrir e fechar os trabalhos mgico-religiosos e o corpo-sacrrio dos
mdiuns. Na parede, o crucifixo lembra o aspecto cristo do culto, bem como as oraes,
imagens dos santos, teros e rosrios. Os maracs tocados pelos mestres animam as sesses e
fazem os espritos se abalar de suas moradas sagradas at o terreiro. No centro da mesa, a
princesa, o receptculo por onde descem as entidades e, ao redor dela, singelas taas com
gua simulam as cidades sagradas da jurema.
Bastide observou a um ritual conhecido como jurema de mesa, no qual o mestre da
mesa (sacerdote) doutrina os discpulos e os seus respectivos guias espirituais, sentado em torno
de uma mesa especialmente e espacialmente preparada. Toda a cerimnia acontece com os
participantes acomodados, no h danas ou coreografias corporais. A mesa composta por
taas e copos (as cidades), flores, velas outros elementos litrgicos.
Sobre os lugares encantados, o autor afirma que h no catimb a concepo de um
mundo sobrenatural, um mundo dos espritos entre os quais a alma viaja durante o xtase, onde
h casas e cidades anlogas s nossas.89 De acordo com Bastide, o mundo do alm no catimb,
foi concebido tendo como referncia a organizao social dos adeptos.
O espao onde os rituais ocorrem, foi descrito por Bastide como lugares simples: cho
batido, casa limpa, ambiente silencioso favorecendo a concentrao, a pouca iluminao fora
87
BASTIDE, 2004, p. 244.
88
Ibidem. p. 146.
89
BASTIDE, 2004, p. 147.
38
pensada para manter a aura mstica; soma-se aos cnticos montonos entoados pelos fieis,
complementando o cenrio onde os mestres atuam. A apresentao que o autor faz acerca dos
espaos de culto ressalta o ambiente domstico caracterstico destas religies. Pudemos
constatar o aspecto domiciliar que muitos templos afro-brasileiros possuem, em grande medida,
a casa dos sacerdotes tambm a casa dos espritos.
Bastide afirma que o contato com o catolicismo resultou dentre outras coisas, na
elaborao de uma mitologia notadamente inspirada na narrativa bblica. Reza a lenda que a
planta teria se tornado sagrada aps servir de abrigo para o Menino Jesus, que fugia com sua
famlia do recenciamento imposto pelo rei Herodes. O mito cantado em algumas linhas do
catimb que fazem referncia a planta como o abrigo do filho de Deus.
90
Cntico do catimb. Acervo do autor.
91
ASSUNO, 2006.
39
92
BASTIDE, 2004, p. 246.
93
Ibidem, p. 152.
40
deixou importantes referncias para a anlise por meio de outros prismas as estruturas social,
poltica e cultural do Brasil.
94
CASCUDO, 1951.
95
Para saber mais sobre o folclore, segundo Cascudo ver: CASCUDO, Lus da Cmara. Tradio, cincia do
povo: pesquisas na cultura popular do Brasil. So Paulo: Perspectiva, 1971. CASCUDO, Lus da Cmara.
Locues tradicionais no Brasil: coisas que o povo diz. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/So Paulo: Ed. da USP,
1986.
96
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Traduo e notas de Luiz da Cmara Cascudo. 2a ed. So
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
41
97
CASCUDO, op. cit. p. 32.
98
CASCUDO, op. cit. p. 87
99
FRAZER, James. O ramo de ouro. So Paulo: Zahar Editores, 1982.
42
influenciar de longe, sua vontade, toda pessoa e todo objeto dos quais possua alguma
parcela100, com esta finalidade que so feitos os envultamentos e todo tipo de trabalho
mgico. Ao analisar a primeira edio de Meleagro, Meyer explica que o envultamento um
feitio poderosssimo desenvolvido por experientes bruxos,
Muitas macumbas, termo pelo qual se designa popularmente algumas das prticas
mgicas das religies espiritualistas afro-brasileiras, esto presentes em seu repertrio, embora
frequentemente os sacerdotes neguem fazer o mal a algum por meio desses feitios. O fato
que, medida em que o catimb se aproximou do catolicismo, muitas de suas prticas mgico-
religiosas foram atingidas pela noo de pecado, o que acabou por evidenciar discusses
acerca da moralidade102 e da tica nesta religio, ao mesmo tempo em que tais exerccios se
polarizavam nas categorias maniquestas de bem e mal. Este processo envolveu os
sacerdotes afro-brasileiros, que passaram a ser chamados de macumbeiros, designao que
em geral vem acompanhada de uma viso negativa. No imaginrio popular o macumbeiro
o feiticeiro, o bruxo, aquele que faz o mal.
Vrios sacerdotes que entrevistamos afirmaram no fazer o mal, mas sempre tem
gente que vem procurar essas coisas, diz Raimundo Santos.103 O babalorix Tiago Lcio,
dirigente da Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de Oxum, lembra que em muitos casos, os
trabalhos mgico-religiosos so uma fonte de renda para os sacerdotes,
Aparecem clientes aqui na casa querendo fazer o mal. Muitos pais de santo
tm seu trabalho um trabalho fora da espiritualidade , mas muitos usam a
espiritualidade para se manter. Usam desse trabalho para ter o dinheiro dele,
o que no errado. Mas eu acho que voc deve ir pra dentro de uma casa de
santo, de jurema, de umbanda, pra pedir o bem, porque dentro de uma igreja,
a gente no pede o mal. por isso na religio de jurema, de candombl, ficam
dizendo que s tem o demnio, que s tem o diabo. Por que? Porque vem
gente pedir o mal, e uma coisa que, dentro da jurema, se voc procurar,
acha.104
100
CASCUDO, op. cit. p. 132.
101
MEYER, Marlise. Meleagro, 1 edio. In: SILVA, Marco. (Org.) Dicionrio crtico Cmara Cascudo. So
Paulo: Perspectiva, 2006, p. 178.
102
TEIXEIRA, Wagner Pinheiro. Esprito de catimb: a moral mgico-religiosa na Jurema. Dissertao de
mestrado. Natal, 2014.
103
SANTOS, Raimundo. Entrevista realizada em 09.10.2012 na cidade de Flornia RN. Acervo do autor.
104
LCIO, Tiago. Entrevista realizada em 28 de maro de 2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de
Oxum, no municpio de Extremoz-RN.
43
A questo moral sem dvida, um preceito importante dentro das religies que
lidam com manipulao de energia atravs dos trabalhos. No entanto, apresenta-se tambm
como um assunto com o qual os sacerdotes expressam-se pouco vontade em debater. A ideia
de pecado, passou a influenciar na tica religiosa de muitos terreiros. O processo de
cristianizao pelo qual vrias vertentes religiosas afro-brasileiras passaram, acabou por moldar
ou minimamente influenciar nos procedimentos internos e externos dos terreiros. Prandi
observa que a lida com as prticas mgicas tende a apresentar um modus operandi dbio,
visando atender os diferentes interesses daqueles que procuram estas religies,
105
PRANDI, Reginaldo. Exu, de mensageiro a diabo: sincretismo catlico e demonizao do orix Exu. Revista
da USP, 2001, p. 09. Ver tambm: ASSUNO, Luiz. As transgresses no religioso: exus e mestres nos rituais
da umbanda. Revista Anthopolgicas, ano 14, v. 21 n.1157-183: 2010.
44
106
CASCUDO, 1951, p. 46.
107
Ibidem, p. 49.
108
Ibidem, p. 11.
109
AZEVEDO, Antnio Pereira de. Entrevista realizada em 10 de outubro de 2012, em Timbaba dos Batistas-
RN.
110
BURGOS, Arnaldo Beltro. PORDEUS JR. Ismael, (org). Jurema Sagrada: do Nordeste brasileiro Pennsula
Ibrica. Fortaleza: Expresso Grfica, 2012, p. 44.
45
111
CASCUDO, op. cit. p. 20.
112
TEIXEIRA, op. cit. p. 39.
113
ALVARENGA, Oneyda. Registros sonoros do folclore musical brasileiro. Catimb. So Paulo: Discoteca
Pblica Municipal, 1949.
114
ASSUNO, op. cit. p. 89.
46
A autora anota outros nomes das paragens msticas do catimb, ela cita o Juremal,
Cidade do Bom-Floral, Luanda, Mara, Cidade dos Pssaros, Torre da Jurem, Bom-Passar e
Poo-Fundo.118 As consideraes de Alvarenga parecem no ter se distanciado do que outros
pesquisadores j haviam afirmado, contudo, seus escritos no so considerados de menor
importncia no mbito acadmico.119 O texto de Carlini120 intitulado Cachimbo e Marac: o
catimb da misso (1983), trata basicamente das transcries das obras de Alvarenga e
Andrade, no entanto deixou consideraes interessantes quanto a movimentao rtmico-
litrgica do corpo121
Formao em roda, que se move, ou se mantm parada; movimentos de
rotao e flexo do tronco; movimentos elevatrios e em crculo com o brao
direito, que segura o marac para a direita e para a esquerda, acompanhando
as flexes e rotaes do tronco; movimentos idnticos, mas de menor
amplitude, do brao esquerdo em que fica pendurado o arco-flecha.122
115
TEIXEIRA, op. cit., p. 42.
116
Ibidem, p. 42.
117
ALVARENGA, 1949, p. 90.
118
Ibidem, p. 90.
119
Ver tambm: ALVARENGA, Oneyda. Msica popular brasileira. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1950.
ALVARENGA, Oneyda. A influncia negra na msica brasileira: fatos conhecidos. So Paulo: Boletim Latino-
americano de msica, 1946.
120
CARLINI, lvaro. Cachimbo e Marac: o catimb da misso (1983). So Paulo: CCSP, 1993.
121
TEIXEIRA, op. cit. p. 42.
122
CARLINI, 1993, p. 75.
123
MOTTA, 1977.
47
afro-brasileiro fora bastante significativa, uma vez que desde o fim da Misso de Pesquisas
Folclricas, a temtica encontrava-se abandonada.124
Motta dissertou sobre a relao hbrida existente entre os xangs, os catimbs e
umbanda pernambucana que ele chamou de cultos afro-pernambucanos. O autor concluiu
que havia, no Recife cerimnias religiosas de carter mestio cuja liturgia se pautava na
louvao aos mestres, caboclos e encantados no mbito das casas de orixs e voduns. Para o
autor, o universo umbandista estava intimamente ligado a essas outras formas de culto tidas
como populares entre os pernambucanos: a essas duas categorias de origem
arquetipicamente nordestinas, vm se acrescentando, nos ltimos anos ou dcadas, conjuntos
hagiolgicos procedentes do Rio de Janeiro.125 Esta, teria sido uma das roupagens adquiridas
pela umbanda no Nordeste.
Um ponto crucial do processo de hibridao do catimb/xang/umbanda, apontado por
Motta, foi introduo dos rituais dedicados aos exus e pombagiras. O cerimonial do catimb
passou a apresentar aspectos mais umbandizados, valendo-se dos atabaques, da concepo
de direita e esquerda, dentre outras noes que acabaram sendo retomadas nos estudos de
outro pesquisador, Ren Vandezande, tambm na dcada de 1970.
Cientista social paraibano, Vandezande126 elaborou sua dissertao de mestrado na
Universidade Federal do Pernambuco tendo como foco o catimb observando a partir de sua
configurao no municpio de Alhandra-PB. L, o pesquisador verificou que o catimb e a
umbanda coexistiam numa relao de reciprocidade. Vandezande argumenta em sua pesquisa
que essa hibridao acabou sendo uma ao estratgica que trouxe contribuies para ambas
liturgias. Para o catimb a aproximao com a umbanda apresentava aspectos positivos, uma
vez que, o culto perderia o status de marginal e ilegal na maioria das vezes, tratado como caso
de polcia, frequentemente relacionando-o com diabolismo. Com essa unio, o catimb poderia
gozar da posio de religio oficializada, contando inclusive com o aparato jurdico,
porventura oferecido pela Federao Esprita Umbandista que j se organizava em vrios
Estados do Nordeste. Sobre esse processo, o autor comenta,
A umbanda representada pela Federao, constitui para os catimbozeiros,
geralmente a nica organizao de que fazem parte. a primeira e nica vez
que eles se sabem enquadrados em organizao ou conjunto maior que sua
famlia. a primeira vez que ouvem falar em seu nome no rdio, no nome de
seus vizinhos, no nome de seus stios, no nome de seus mestres. Isto lhes d a
primeira sensao de participao social maior que a famlia ou o estreito
crculo local.127
124
ASSUNO, 2006.
125
MOTTA, op. cit. p. 107.
126
VANDEZANDE, 1975.
127
VANDEZANDE, op. cit. p. 202.
48
128
ASSUNO, 2006.
129
TEIXEIRA, op. cit., p. 46.
130
ASSUNO, 2004, p. 182.
49
Deste contato, o catimb passou a expressar uma face mais prxima da prtica
umbandista, orixs e mestres, encantados e exus, reis e malandros so cultuados no mesmo
espao por meio de uma liturgia hbrida, mas que, ao mesmo tempo, expressa-se favorvel a
uma poltica de espacializao que define os ambientes e as premissas de cada um dos cultos.
A umbanda nordestina, como chamou Assuno, fora construda a partir de constantes
reelaboraes no interior das casas de catimb, umbanda e candombl. O autor compreende
este processo como resultado de uma justaposio de referncias e de prticas, de smbolos e
discursos, um conjunto de concepes que burilaram a ritualstica da jurema com expresses
notadamente umbandistas, o que, claro, no desabilitou, desvalorizou ou desconstruiu os
preceitos e os cdigos prprios do catimb.
Assuno tambm analisou o catimb paraibano de Alhandra, e considerou este
territrio como um dos principais polos difusores da prtica catimbozeira no Nordeste. O cl
do Acais, teria dado origem uma linhagem de mestres juremeiros, e de l se espraiaram para
outros estados atravs da conhecida mestra Maria do Acais.131 Fernandes, outro importante
pesquisador diz que Maria do Acais gozou de um prestgio considervel que impunha sua
reputao de grande catimbozeira, (...) era uma feiticeira notvel.132 A mestra reverenciada
por muitos sacerdotes da nova gerao de catimbozeiros, bem como, veem em Alhandra um
importante local onde podem estar mais prximos dos seus pares,
A cidade da jurema todo aquele lugar que mora a cincia da jurema, o lugar
onde ela nasceu. Um exemplo disso a cidade de Alhandra, onde nasceu a
mestra Maria do Acais, ela viveu durante muito tempo, [...] agora, em 2001,
derrubaram a casa de Maria do Acais, mas l ainda um lugar bem chamativo,
principalmente para os seguidores do mestre Malunguinho. [...] L onde
esto enterrados o mestre Z Pelintra, Maria Farrapo, Manoel Quebra-pedra,
Maria Bigode. [...] Ento podemos dizer que l o pilar que sustenta a jurema
do Rio Grande do Norte; na cidade de Alhandra. 133
131
De acordo com Sandro Salles, o Acais foi uma propriedade herdada por Maria Eugnia Gonalves de Barros
por volta de 1910 de uma tia. Atualmente a terra pertence a uma de suas netas e localiza-se ao Oeste de Alhandra.
SALLES, op. cit. p. 106.
132
FERNANDES, Gonalves. O folclore mgico do Nordeste. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1938, p.
85.
133
WILTON, Jos. Entrevista realizada em 12 de julho de 2015, em Currais Novos-RN.
50
entende que houve uma predominncia das prticas, concepes e cosmovises advindas da
umbanda e incorporadas na liturgia juremeira, assim como tambm pode ser observada nas
prticas desses templos e no discurso dos adeptos.
De algum modo pudemos observar algumas das constataes de Assuno, nos
terreiros que visitamos, pouqussimas pessoas se designavam como juremeiros ou
catimbozeiros, a grande maioria afirmava ser umbandistas. Este dado expressa um processo
dialtico no qual a umbanda, em seu papel hegemnico exerce do modo significativo uma
influncia mais visvel no prembulo juremeiro. neste sentido que Assuno afirma que a
jurema permanece e se reelabora em casas umbandistas algo que o autor define como uma
umbandizao da jurema. Neste processo a umbanda exerceu um papel de agente
modernizante e moralizador das prticas juremeiras, dando-lhes outros formatos e
direcionamentos.134
A tese de Assuno aparece exemplificada na fala de um pai de santo que conhecemos
em Timbaba dos Batistas, Antnio de Noca, dirigente do Centro Esprita de Umbanda So
Gernimo, o qual define a jurema como outro ramo da umbanda. uma fora sagrada, um
poder, uma fora dentro da umbanda.135 O pai de santo concebe a jurema com um culto
complementar umbanda, mas que tambm faz parte da constituio umbandista. O fato de
a jurema estar dentro da umbanda, tambm permite pensar em uma juremizao da
umbanda, pois como sugeriu Assuno, o processo de assimilao no foi, de modo algum,
unilateral. O sistema religioso discutido pelo autor baseia-se, sobretudo, nas possibilidades, a
umbanda nordestina apresenta a dinamicidade de um culto que est relativamente aberto a
investimentos ritualsticos e cosmolgicos que venham a contribuir ampliando o seu corpus
litrgico. O trabalho de Assuno fala de uma religio viva, em constante movimento e que tem
a seu favor a fluidez. Em Assuno, as formas de organizao do catimb no contexto
umbandista (o contrrio tambm acontece) no se esgotam, mas so reatualizadas a medida em
que outras referncias so adicionadas ao seu sistema religioso.
Partindo do mesmo referencial de seu orientador, Salles136 descreve um catimb
umbandizado e tambm com fortes traos do espiritismo kardecista no municpio de
Alhandra-PB, espao escolhido por Vandezande na dcada de 1970. Salles defende a tese de
que o contato entre as prticas de matriz africanas e o catimb tenha ocorrido atravs de um
processo gradual, iniciado principalmente em meados do sculo XVII, se efetivando no decorrer
134
TEIXEIRA, op. cit. p. 46.
135
AZEVEDO, Antnio Pereira de. Entrevista realizada em 10 de outubro de 2012, em Timbaba dos Batistas-
RN.
136
SALLES, 2010.
51
137
Ibidem, p. 114.
138
Ver tambm: SALLES, Sandro Guimares de. Interfaces da Jurema. In: Revista de Teologia e Cincias da
Religio da UNICAMPI, v. 04, 2005.
139
TEIXEIRA, 2014.
140
QUEIROZ, 2013.
141
OLIVEIRA, Kelson. Os trabalhos de amor e outras mandingas: as experincias mgico-religiosas em
terreiros de umbanda. Fortaleza: Premius, 2011.
142
PIRES, Pedro S. Sobre mestres e encantados: a jurema como expresso sentimental. Dissertao pelo
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia. Braslia, 2010.
52
dimenso esttica e afetiva desta religio; podemos citar ainda Rosa143 teve como foco as
performances das mestras, pombagiras, pretas-velhas, ciganas e outras entidades femininas da
jurema na nao Xamb, em Olinda-PE.
Os trabalhos no se resumem a estes citados, existem ainda um vasto nmero de artigos
e monografias apresentadas aos mais diferentes programas de graduao do Brasil. Desde as
primeiras dcadas de 1930, as pesquisas sobre o universo juremeiro tm se ampliado de maneira
significativa um reflexo da dinamicidade com a qual a jurema se movimenta no cenrio
religioso permitindo que outras abordagens sejam contempladas.
143
ROSA, Laila A. C. As juremeiras da nao xamb (Olinda-PE): msica, performances, representaes de
feminino e relaes de gnero da jurema sagrada. Tese pelo Programa de Ps-Graduao em Msica da
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009.
53
2 AS ESPACIALIDADES DO CATIMB
144
Ponto cantado do catimb-jurema.
145
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nag e a morte: Pd, ss e o culto gun na Bahia. Petrpolis: Vozes, 1977
146
De acordo com os pressupostos da umbanda a encruza um caminho ou uma rua com formato da letra T, espao
dedicado s pombagiras. A encruzilhada por sua vez est delineada em forma de + (cruz), domnio dos exus.
54
Neste segundo captulo discutiremos acerca do terreiro e sua relao com os espaos
urbanos, as encruzas e encruzilhadas e tambm o cemitrio. A partir do dilogo com Rosendahl
e Corra147, teceremos nossas consideraes sobre as paisagens, espaos da natureza que de
algum modo, foram transformados pela ao humana: as matas e florestas, rios e mares dentre
outros; por fim, o espao-corpo, ser analisado como um templo marcado pela dinamicidade.
O termo terreiro utilizado para se referir s casas de culto das religies afro-
brasileiras advm dos sculos XVII e XVIII, quando gradativamente a celebrao aos orixs
deixou de ser feita no interior das senzalas e passou a ocorrer em terrenos descampados frente
do cativeiro. A palavra passou a designar genericamente todas as casas onde se cultuam orixs,
inquices, voduns africanos e outras entidades espirituais.
O il abriga os homens e suas divindades. Observamos durante a pesquisa de campo
que a grande maioria desses templos eram construdos na mesma dependncia onde seus
zeladores vivem a residncia do chefe religioso transformada em casa religiosa149. Em
pouqussimas localidades visualizamos o terreiro como uma edificao parte, a regra geral
parece ser abrir o terreiro e faz-lo funcionar na prpria residncia150 afirma o autor.
Esse dado tem relao direta com as condies financeiras dos adeptos, muitos deles
dependem da venda de seus trabalhos mgico-religiosos para a manuteno de sua casa e do
seu templo; para muitos, os recursos so escassos sendo complicado estabelecer uma base
econmica bem estruturada. Gasta-se muito com rituais de iniciao, oferendas, obrigaes e
festas para as entidades embora estas despesas sejam arcadas pelos novios, em alguns casos o
sacerdote auxilia financeiramente 151, afirma Andr Felipe, mestre juremeiro do Il Ax Omim
Oxum Lorum dEw. Aliado a este fator, a prtica do dzimo no comum nessas religies
147
ROSENDAHL, Zeny. CORRA, Roberto Lobato. Paisagem, Imaginrio e Espao. Rio de Janeiro, EDUERJ,
2001.
148
Ponto cantado do catimb-jurema.
149
ASSUNO, 2006, p. 153.
150
Ibidem, p. 154.
151
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN. Acervo do autor.
55
pois, esporadicamente, os fiis contribuem com alguma quantia para a manuteno do lugar:
pagamento de gua, energia, aquisio de objetos rituais, como velas e imagens, por exemplo.
A opo pelo espao domstico bastante recorrente nas religies afro-brasileiras.
Negro, em sua pesquisa sobre a formao do campo umbandista em So Paulo, atentou para
este aspecto,
Na maioria dos casos os terreiros fazem parte do espao domstico,
funcionando nas dependncias da casa: na sala, em um quarto, na cozinha, no
quintal e at na rea de servio []. Mesmo sendo espao religioso especfico,
na maioria das vezes ele no deixa de ser domiciliado no prprio endereo
residencial. So relativamente raros os terreiros que tem endereo prprio,
funcionando de forma independente de residncias. 152
152
NEGRO, 1996, p. 194-195.
153
WILTON, Jos. Entrevista realizada em 17 de julho de 2013, em Currais Novos-RN.
154
NEGRO, 1996, p. 194.
155
Ibidem, p. 45
56
De certo modo, a ausncia de placas e letreiros que identifiquem estas casas, seja
reflexo dos traumas vivenciados pelos adeptos destas religies num passado prximo, mas que
at os dias ainda os assombra. Sem a identificao explcita, os atos de violncia contra a
estrutura fsica das casas-templo se tornam relativamente menos frequentes, conforme explica
Jos Wilton:
Pelo menos na minha casa eu dou meus toques sossegados, tem uns vizinhos
que incomodam de vez em quando, sabe?! Eles ligam o som alto, bota uns
forr com o volume l em cima [] atrapalha. s vezes os mestres
perguntam que danado de zoada essa?! Mas pelo menos na minha casa eu
t protegido.156
Em mais de vinte casas visitadas, apenas trs exibiam identificao acerca das
atividades religiosa, a saber: o Centro Esprita de Oxum, no municpio de Parelhas-RN, o
Centro Esprita de Umbanda So Gernimo, em Timbaba dos Batistas-RN e a Casa Sol
Nascente, em Parnamirim-RN. O centro Esprita de Oxum coordenado por Gilvan
benzedor, funciona em sua residncia, local onde realiza consultas particulares durante a
semana com horrios previamente agendados. Ele recebe os consulentes em seu quarto de
dormir, o altar divide espao com uma cama, um guarda-roupas e duas cadeiras, uma para o
cliente e outra para a entidade.
O aspecto domiciliar dos cultos afro-brasileiros foi constatado por Assuno ainda na
dcada de 1990, momento em que estruturava sua pesquisa de doutoramento. Ele observou que
na grande maioria dos terreiros no existe placa, nem qualquer outro tipo de identificao
nominal157, a no ser algumas marcas as vezes discretas que os caracterizam como
ambientes religiosos, possvel encontrar alguma planta, como a coroa de frade, ou uma
bandeira branca colocada em cima da casa ou do muro que a cerca. Ainda de acordo com o
autor,
Esses espaos que so, ao mesmo tempo, unidades de residncia e locais de
culto, em determinadas situaes concretas se dividem, como nas ocasies de
realizao religiosas, onde o espao utilizado se torna sagrado. Terminada a
cerimnia religiosa, o salo volta a ser o local do cotidiano, dos encontros,
conversas e at dormitrio.158
156
WILTON, Jos. Entrevista realizada em 17 de julho de 2013, em Currais Novos-RN.
157
ASSUNO, 2006, p. 153.
158
Ibidem, p. 154.
57
a casa passa a ter fora mgico-religiosa para abrigar os espritos de orixs, mestres e
encantados.
Dentro de uma abertura no cho do terreiro so colocados diferentes cones a pedido
do mestre ou mestra espiritual, tais como sementes de jurema, fios de conta, crucifixos, punhais,
fumo, cachaa e outros elementos que representem a cincia da entidade principal que
preside a casa. Enquanto se profere oraes e cnticos, os objetos so enterrados e a mina,
vedada como mostram as imagens (figuras 1 e 2).
159
ROSENDAHL, op. cit. p. 26.
58
sagrado. De acordo com a autora, o espao e o culto esto intimamente ligados e incidem
diretamente na forma dos rituais. Em se tratando dos cultos afro-brasileiros, a cerimnia de
implantao da mina o primeiro passo para consagrar o espao s divindades que atuaro
naquele lugar. A mina pode ser interpretada como o corao do terreiro, nela esto fixados
os poderes dos mestres espirituais da jurema.
possvel compreender a analogia entre o corpo e os espaos pensando de acordo com
Richard Sennett.160 O autor defende que em diferentes contextos socioculturais, a geometria do
corpo fora utilizada para ordenar o mundo, as linhas, os quadrados e as curvas observadas no
corpo humano serviram de referncia para a construo de variados espaos de sociabilidade,
dentre eles, os templos religiosos. Se a mina o corao, o salo o corpo. Na maioria dos
casos observados, o cmodo que apresenta maiores dimenses espaciais, justamente para que
possa abrigar um nmero considervel de adeptos e frequentadores. Assuno nota que, o
espao central dessas casas religiosas o salo, destinado realizao de rituais e festas
pblicas, e que serve tambm de sala de visitas. o local mais frequentado e liga-se aos
demais. 161
no salo que ocorrem as hierofanias, manifestaes que podem ser traduzidas como
uma expresso do sagrado. Do ponto de vista epistemolgico, significa algo do sagrado que
se revela. Dentro da liturgia religiosa afro-brasileira, o transe de possesso a expresso
hierofnica mais recorrente, na qual, atuando em seus cavalos, os mestres e mestras fumam,
bebem, fazem e desfazem mandingas e outros feitios, criam laos de amizade e fidelidade com
aqueles que os procuram.
A presena da entidade no terreiro pode demarcar espaos. O mestre espiritual usa seu
cachimbo para defumar o ambiente, purificando-o, e determinando o espao que ser utilizado
naquela cerimnia. Observamos em Caic, no Il Ax Nag Oxagui, que os mestres
baixavam nos mdiuns e o som dos cnticos, palmas e atabaques, cruzavam o salo de uma
ponta a outra fumaando e estabelecendo os limites espaciais onde atuariam os espritos.
A disposio espacial dos terreiros tambm remete a uma construo hierrquica em
relao aos frequentadores da casa. H espaos que no devem ser ocupados ou visitados por
outros espritos ou pessoas a exemplo da camarinha, quarto onde ocorre o processo do transe
de possesso, apenas o pai ou me de santo tem acesso a este cmodo. A cangira, tambm
chamada de tronqueira ou casa dos exus, no visitada por outras entidades, apenas por
160
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilizao ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1999,
p. 94.
161
ASSUNO, 2006, p. 154.
59
espritos de esquerda com a permisso dos espritos assentados naquela tronqueira. De acordo
com a concepo de alguns juremeiros, a casa dos exus no deve erguida junto a outros
assentamentos de entidades consideradas mais evoludas, como pretos-velhos e caboclos.
Exus e pombagiras, ocupam lugar inferior em uma escala de evoluo espiritual. Lapassade
e Aurlio Luz Afirmam que o lugar destas entidades fora dos terreiros162, sendo a rua, o seu
espao de domnio. H objetos litrgicos que no podem ser usados no corpo de outros mdiuns,
pois estes fazem parte da indumentria particular de cada entidade, so os smbolos que
conferem a identidade daquele esprito e o difere de outros entes que descem no terreiro.
Esses preceitos devem ser obedecidos como forma de manter as relaes de poder dentro do il
e determinar que aquilo que faz parte do domnio do sagrado seja obedecido e respeitado.
Observando a relao dialtica entre espao e corpo proposta por Sennett, podemos
compreender a cangira ou a tronqueira, como equivalentes aos membros perifricos desse
organismo que o terreiro. Trata-se de um local dedicado aos exus, pombagiras e mestres(as)
esquerdeiros(as), os assentamentos destas entidades representam sua morada terrena.
Queiroz163 define assentamento como uma estrutura slida, no qual o pai de santo fixa um
esprito ou uma divindade que fica ligada ao mdium, e por sua vez, ao centro (terreiro). A
cangira, termo mais usado no vocabulrio umbandista, pode ser caracterizada como uma
pequena casinha onde esto dispostos os smbolos de exu e pombagira tridentes, velas preta
e vermelha, taas, charutos e cigarrilhas. A tronqueira, no catimb, representada por um
tronco de rvore adornado com os elementos semelhantes aos que mencionamos acima, como
mostram as imagens (Figuras 3 e 4). No candombl possvel representar o assentamento de
exu apenas com uma estrutura de ferro fundida formando garfos. Contudo, vale salientar que
esses arranjos materiais podem variar de casa para casa, podem tambm no existir, ou ainda,
unir-se a outros elementos formando outro tipo de armao.
162
LAPASSADE, Georges. LUZ, Marco Aurlio. O segredo da Macumba. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p.
59.
163
QUEIROZ, 2013, p. 121.
60
unem homem e esprito, e isso se faz alimentando e cultivando a jurema,164 explica Thadeu
Moreira.
Existem algumas semelhanas na composio cnica das imagens (3 e 4), pode-se
visualizar tambm flores e uma vela na cor rosa, elementos que fazem referncia a feminilidade
das moas ali representadas. Postado no centro, dentro de um recipiente est Exu Marab, o
dono do assentamento, seu smbolo a caveira, a que aparece segurando, e um garfo de base
quadrada, diferente do tridente da pombagira. Nas imagens, as entidades aparecem
simbolicamente presas, como se estivessem em uma cela. Esse tipo se situao bastante
comum quando se trata de representar o espao dos dedicado aos exus, uma vez que,
frequentemente estas entidades esto associadas a desordem e ao caos, prend-los, pode de
algum modo, estabelecer a harmonia no terreiro. Sobre esta concepo, Carneiro descreve o
que viu em um terreiro de candombl em Salvador,
164
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 01 de outubro de 2012, em Ouro Branco-RN.
165
CARNEIRO, 1991, p. 136.
166
TRINDADE, 1985.
167
PRANDI, 2001.
168
SOUZA, Andr Lus Nascimento de. o co: uma anlise da construo da imagem do orix Exu como diabo
cristo. In: Anais do I Colquio Histria Cultural e Sensibilidades, Caic: UFRN, 2012.
169
MACEDO, Edir. Orixs, Caboclos & Guias: deuses ou demnios? Rio de Janeiro: Grfica Universal LTDA,
2004.
170
LAPASSADE e LUZ, 1972.
62
2.1 OS ASSENTAMENTOS
171
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN. Acervo do autor.
172
Ponto cantado do catimb-jurema
63
173
QUEIROZ, op. cit. p. 123
174
Ibidem, p. 123.
175
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN. Acervo do autor.
64
prximo da tronqueira dos exus e pombagiras. O seu arranjo material apresenta elementos que
remetem ao esteretipo das bruxas construdo pelo imaginrio europeu: o caldeiro e a vassoura
de palha aparecem como principais smbolos dessas figuras nos assentos.
No panteo juremeiro existem entidades que lidam unicamente com a prtica da
bruxaria, so considerados espritos malficos, eficazes em enviar feitios contra as pessoas.
Sua presena dentro do catimb se justifica por um profundo conhecimento das artes
divinatrias e na manipulao de ervas, energias e outros poderes, Queiroz as caracteriza como
excelentes demandeiras.176 Embora constituam uma categoria especfica, existem outras
entidades que tambm trabalham com feitios, como as mestras, algumas das mais conhecidas
neste tipo de exerccio so Aninha do Ajil, Joana P de Chita, dentre as pombagiras pode-se
citar Leonor e Maria Jos. Entre os mestres esto o Mestre Zinho, um baiano mandingueiro e
confuseiro177 e o Mestre Z do Atrapalho.
Quando questionei dona Gorete sobre o tipo de trabalho que estes espritos
desenvolviam ela afirmou que, trabalham com feitios pesados, com amarraes e com o
fechamento do corpo.178 Indaguei ainda se ela as incorporava, com um sorriso discreto,
respondeu-me que no, justificou apenas que aqueles assentamentos eram simplesmente pra
homenagear a linha das bruxas que muito importante dentro da jurema.
De acordo com o mestre juremeiro Rmulo Anglico, da Casa Sol Nascente, em
Parnamirim, a linhagem catimbozeira de Jos Tavares, Raimundo Tavares e Maria Fernandes,
provavelmente teria sido a responsvel por introduzir no Rio Grande do Norte o culto/trabalho
com as bruxas e espritos feiticeiros. Ele explica:
176
QUEIROZ, op. cit. p. 304.
177
WILTON, Jos. Entrevista realizada em 17 de julho de 2013, em Currais Novos-RN.
178
GORETE, Maria. Entrevista realizada em 08 de julho de 2013, em Currais Novos-RN. Acervo do autor.
179
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
66
assemelham queles vistos frequentemente nos assentos dos espritos infantis, os ers ou ibejis:
bonequinhos coloridos, ursos feitos em biscuit e outros brinquedos. Dona Gorete no
incorpora estas entidades, disse apenas que aqueles eram espritos muito finos e que
cuidavam da proteo do terreiro.
Mesmo sem a orientao das entidades indicando o que deveria ser posto em seu
assentamento, a me de santo utilizou de outras referncias para compor a organizao desses
espaos. O assentamento representa a experincia do adepto, afirma Queiroz180, a partir das
vivncias no cotidiano religioso o sacerdote adquire conhecimento para interpretar as
mensagens dos espritos, o fiel possui certa autonomia para conceber imagtica e
discursivamente o assento de suas entidades.
Onde se assenta o ente, repousam tambm os adereos que o compem o figurino do
mestre. Na tronqueira das mestras, por exemplo, esto chapus, cigarrilhas, brincos, colares,
taas, bebidas (champanhe e cerveja, principalmente), perfumes alm de outros presentes
recebidos de adeptos e consulentes, como paga de uma promessa ou como um simples agrado.
Durante o transe de possesso, as mestras se enfeitam com os apetrechos exibindo os
mimos e as vezes, utilizando deles para realizar algumas mandingas. Os assentamentos podem
ser usados como uma arma mgica poderosa, uma vez contm os fundamentos das entidades,
isto , sua sabedoria e poder. Apenas o sacerdote e seu discpulo devem saber que elementos
foram usados para edificar o assento, significa dizer que uma relao de profunda confiana
deve ser estabelecida entre as partes. Quem descobre os segredos ali fixados tem o controle
sobre o ori (a cabea) e o odu (destino) do adepto,
Caso os smbolos mgicos sejam traduzidos, os segredos esto desvelados, o que pode
acarretar em consequncias graves para um dos envolvidos na demanda desde de problemas
de sade, loucura ou morte. Vrios tipos de trabalhos podem ser feitos nos (e atravs dos)
assentamentos, desde amarraes de amor a litgios, basta que uma das partes interessadas
180
QUEIROZ, op. cit. p. 122.
181
QUEIROZ, op. cit. p. 123.
67
182
Ibidem, p. 123.
183
TUAN, op. cit. p. 23.
68
Peji, cong ou mesa so os nomes dados ao altar onde esto dispostas as imagens das
entidades das religies afro-brasileiras, neste, tambm constam objetos litrgicos, como velas,
cachimbos, fios de conta, flores, copos com gua, etc. O altar ocupa lugar de destaque no
terreiro, esto quase sempre no salo, mas podem ocupar outras dependncias da casa. Qualquer
um que deseja se aproximar e interagir de alguma forma com esta espacialidade, deve seguir
algumas regras, Assuno diz que, para poder entrar no quarto do peji necessrio estar
limpo, ou seja, no ter tido relaes sexuais nas ltimas vinte e quatro horas, como tambm
pedir licena ao chefe da casa. 185
Existem gestos que devem ser feitos diante do altar, o peji abriga a cincia dos mestres,
os fundamentos da casa e a ancestralidade dos orixs. As saudaes expressam reverncia aos
espritos que habitam o templo, a coreografia dos gestos serve tambm para manifestar a
noo de hierarquia, onde mestres e orixs ocupam lugar privilegiado e o fiel deve, portanto,
curvar-se a eles. As saudaes so parte integrante da liturgia de cada terreiro, eles compem
uma performance corpreo-ritual, uma coreografia.
Quando o adepto chega ao terreiro, primeiro faz uma saudao aos exus, em
frente ao seu quarto. Depois segue para o peji, ajoelha-se, estende a mo at o
solo, faz um leve toque com os dedos no cho, na porta do quarto onde est
localizado o peji ou diretamente sobre este quando encontra-se no salo, e em
seguida, leva os dedos para a testa e vrios pontos da cabea. Esta saudao
feita primeiro no quarto dos orixs e repetida no quarto da jurema.
Terminada a saudao, o adepto vai tomar a bno ao seu pai ou me e
cumprimenta o chefe da casa e demais pessoas. 186
184
Ponto cantado do catimb-jurema.
185
ASSUNO, op. cit. p. 155.
186
Ibidem, p. 155.
69
do campo de viso, escondidos por trs de uma cortina. O aspecto sublime dos orixs est
fundamento na concepo cosmognica africana e afro-brasileira, de que estas divindades
correspondem a energias purssimas relacionadas as foras da natureza que se materializam no
plano terreno e na casa dos homens. Nas palavras de Prandi, os orixs so:
187
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: Orixs na alma brasileira. So Paulo: Companhia das Letras, 2005,
p. 2.
188
NEGRO, 1996, p. 339.
70
Na parte superior do altar encontra-se uma escultura de Jesus Cristo, figura comparada
a Oxal durante o processo de hibridao religiosa afro-brasileira. Logo abaixo, So Jorge
representando Ogum, orix dono da coroa, isto , o orix que rege a cabea do mdium. No
mesmo patamar, encontram-se Santana/Nan, Cosme e Damio/Ibeji, So Lzaro/Omulu. Do
outro lado v-se uma esttua da Santa Aparecida, uma telha decorada com a Senhora de Ftima,
dividindo espao com uma Iemanj. Na parte mais abaixo est a mestria da jurema, da esquerda
para a direita: o boiadeiro Z do Lao; Mestre Cibamba; Mestre Z Pelintra (as trs entidades
atuam em Thadeu), e dois Padres Cceros, de acordo com o juremeiro Thadeu Moreira, o
Padre Ccero vem como Mestre na jurema.189 Discretamente sentado base do peji, est o er
Joozinho, entidade criana que tambm se manifesta em Thadeu.
No segundo bloco observa-se mais imagens de santos: So Gernimo/Xang; So
Tadeu; uma representao da Virgem Maria com o menino Jesus; duas Santas Brbaras; e uma
imagem budista, representando a linha do Oriente. No terceiro bloco esto os espritos dos
Caboclos, os falangeiros do orix Oxssi, representado ali por So Sebastio. No quarto bloco,
est a linha dos pretos-velhos, iniciando com So Benedito, seguido de quatro pretos-velhos:
Me Benedita, Pai Joo da Caridade, Me Maria e Pai Cambinda de Angola, principal entidade
recebida pelo mdium. Os copos com gua, dispostos juntos s imagens, representam as
cidades sagradas da Jurema.
Outros elementos decoram o altar. Tomando como base o peji do Terreiro de Umbanda
Preto-Velho, v-se recipientes de barro onde se acendem as velas; as sinetas, para chamar os
espritos; os fios de conta, alm de rosrios, cachimbos, arco e flechas e algumas oferendas. No
espao onde esto as imagens de Cosme e Damio, encontra-se tambm pipoca, balas e
refrigerantes, alimentos ofertados a estas entidades. No existe um modelo pr-estabelecido de
como construir espacialmente o peji, os sacerdotes possuem autonomia para compor seus
espaos de culto. Thadeu Moreira explica que a arrumao do peji vai de cada pessoa, de cada
corrente, vai da indicao do mestre ou do caboclo da casa. Eu coloco santos, pretos-velhos,
caboclos, e at exus e pombagiras.190
O entrevistado deixa claro que o parecer da entidade fundamental, dela a palavra
final sobre o que deve constar no altar. Quando no so obedecidos, os espritos podem
manifestar sua insatisfao destruindo os objetos indesejados, como nos relatou Thadeu
Moreira,
189
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
190
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
71
Aquilo que foi determinado pelos mestres deve ser cumprido, caso contrrio, o adepto
est sujeito a certas punies, segundo nosso entrevistado, estas so formas de a entidade dar
o seu recado e chamar a ateno do filho192. A arrumao do peji deve seguir as regras do
sagrado, as preferncias dos mestres e mestras devem ser satisfeitas como forma de (re)afirmar
os laos de obedincia e subservincia estabelecidos entre o homem e a entidade. Os espritos
podem exigir inclusive, que tipo de material deve ser usado para constituir os pejis e os
assentamentos h mestres que optam por flores e plantas naturais, desprezando suas rplicas
em plstico; tigelas e quartinhas de barro; o fumo deve ser queimado, isto , consumido em
cachimbos artesanais feitos da madeira do angico, imburana de cheiro ou de outro arbusto
considerado sagrado.
A condio financeira dos pais e mes de santo, pode influenciar na configurao dos
pejis e dos assentos, bem como, na estrutura fsica do templo, sendo assim, no h padres que
determinem como um terreiro deva ser ou parecer, o que de alguma forma garante um
sortimento de composies espaciais e cnicas que variam de um terreiro para outro.
191
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 01 de outubro de 2012, em Ouro Branco-RN.
192
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 01 de outubro de 2012, em Ouro Branco-RN.
193
Ponto cantado do catimb-jurema.
72
organizao das primeiras federaes espritas no Nordeste, que o catimb passou por um
processo de ressignificao de algumas de suas prticas religiosas nas casas de umbanda e
candombl. O culto aos mestres, caboclos e encantados integrou-se a liturgia umbandista e
candomblecista no nordeste brasileiro.
No podemos afirmar que este fato esteve baseado na sobreposio de uma cerimnia
em relao a outra; o que houve foi um processo de hibridao que acabou por delinear uma
nova prtica da jurema194 muito mais dinmica que influenciou na estruturao das religies
envolvidas. O catimb soube se reestruturar e encontrar seu lugar dentro das novas
configuraes oferecidas a partir de sua juno com a umbanda e com o candombl coexistindo
harmonicamente, ainda assim, espaos foram pensados para estabelecer aquilo que faz parte
dos domnios da jurema e o que dos domnios dos orixs.
Nos terreiros que fizeram parte do itinerrio da nossa pesquisa, os espaos da jurema
estavam separados do espao do santo. Nos pejis a demarcao pode ser evidenciada atravs
da disposio das imagens, mestres e orixs, que geralmente ocupam lugares diferentes, como
anteriormente mencionado. Observamos que os assentamentos estavam situados espacialmente
em cmodos diferentes. Na Tenda Esprita Iemanj Ogum-T, localizada em no bairro de Igap
em Natal-RN, a jurema possui um quarto exclusivo, totalmente independente do salo dos
orixs. Nele esto os assentos e todos os objetos que fazem parte da liturgia juremeira: chapus,
roupas, guias, o licor da jurema, etc., na outra extremidade da casa est o espao onde se realiza
o culto aos orixs seguindo os pressupostos da nao nag. De acordo com Me Cremilda de
Oxumar, a delimitao desses espaos precisa ser respeitada, pois, no se mistura as coisas
da jurema com as coisas dos orixs.195
O babalorix Tiago Lcio, filho adotivo e filho de santo da Me Cremilda, compartilha
da mesma opinio e configurou o seu il, a Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de Oxum,
de forma que o culto jurema ocorresse separadamente das celebraes do candombl. Nas
palavras de Tiago, a jurema tem o quarto dela, a jurema no tem nada a ver com orix.196 No
terreiro de Tiago, o toque para os mestres acontece em dias determinados, geralmente nas teras
e quintas-feiras, j os xirs de santo ocorrem aos domingos. Lelo Nascimento, filho da casa
Il Il Ax Obaluay, em Extremoz-RN, explica que,
194
ASSUNO, 2006, p. 182.
195
OXUMAR, Me Cremilda. Entrevista realizada em 27.03.2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino
de Oxum, no municpio de Extremoz-RN.
196
LCIO, Tiago. Entrevista realizada em 27 de maro de 2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de
Oxum, em Extremoz-RN.
73
tambm cultuamos e respeitamos a jurema, mas tudo tem sua hora, tem o
momento dos orixs e o momento da jurema; a o terreiro preparado, a gente
fecha as cortinas do peji dos orixs e cultuamos a jurema. 197
A fala dos nossos interlocutores deixa claro que separao espacial entre os cultos
de ordem simblica, mas tambm espacial, algo necessrio segundo a opinio destes
juremeiros. Esta, uma maneira de evidenciar que as prticas religiosas afro-brasileiras
possuem liturgias especficas, mesmo se tratando de terreiros traados.198
Luchiari define a natureza como uma categoria espacial marcada pela ausncia de
investimentos humanos, ou seja, um espao indiferenciado onde as tcnicas e aes simblicas,
materiais e imateriais do homem no influenciaram em sua conformao, ao afastar-se da
natureza, o homem inventa e valoriza a concepo de paisagem200, um fragmento da
configurao territorial que se relaciona com as prticas socioculturais de um determinado
grupo. medida em que o homem a vivencia e experimenta a paisagem, esta, recebe novas
funes e outros significados que se alteram cotidianamente, a paisagem portanto, produto
dos investimentos sensveis e afetivos dos indivduos. Neste sentido, duas categorias
conceituais de espao se aproximam de maneira profcua: o lugar, proposto por Tuan201 e a
paisagem cultural, da gegrafa Giuliana Andreotti.202
A escolha por estes conceitos se baseia no fato de que ambos corroboram com as
pretenses deste artigo: entender as dimenses subjetivas, discursivas e simblicas como
197
NASCIMENTO, Lelo. Entrevista realizada em 08 de abril de 2016, na Casa de Cultura Popular de Currais
Novos-RN.
198
SALLES, 2010, p. 90. O autor usa este termo para se referir aos terreiros de umbanda que tambm cultuam a
jurema.
199
Ponto cantado do catimb-jurema.
200
LUCHIARI, Maria Teresa Duarte Paes. A (re) significao da paisagem no perodo contemporneo. In:
CORRA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Paisagem, imaginrio e espao. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2001, p. 34.
201
TUAN, 1983.
202
ANDREOTTI, Giuliana. Paisagens do esprito: a encenao da alma. In: Revista Eletrnica Ateli Geogrfico.
Goinia, n 4, 2010.
74
A paisagem cultural , por sua vez, rara: contm alma. Por isso o passado no
mais passado porque, por via da integrao psicolgica, sempre uma
relao com o observador. Portanto, deve ser pensado e esta uma das
inumerveis possibilidades de interpretao como um fato ntimo, espiritual,
psicolgico.203
203
ANDREOTTI, Giuliana. Per una architettura del paesaggio. Trento: Artimedia-Trentini, 2008, p.24. In:
TORRES, Marcos Aberto. As paisagens da memria e a paisagem religiosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2013, p. 97.
204
ROSENDAHL, 2001, p. 14.
205
Ibidem, p. 14.
75
O que se observa na fala da entrevistada que sua percepo sobre sagrado (o poder
dos orixs) se torna de alguma forma, mais acessvel, no momento em que h um
relacionamento com a paisagem (o meio natural). Para Torres207, a interseco entre o homem
e a paisagem produz sentidos e significados (re)atualizados a todo momento. A maneira como
o adepto sente e vivencia os espaos considerados sagrados depende das suas convices
religiosas. Neste sentido, a paisagem est carregada de elementos simblicos agenciados para
materializar aquilo que est arquitetado no plano das ideias. Nesta relao dialtica, o homem
e a paisagem esto em dilogo constante, sua cultura, ou seja, seu conjunto de prticas,
discursos e representaes refletem na e so reflexo da paisagem.208
Se ampliarmos a anlise do conceito de paisagem cultural e observarmos sua
aplicao em uma dimenso coletiva, poderemos verificar que cada grupo, segundo seus
valores, se apropria de elementos do meio e os transforma em smbolos que so expressos na
paisagem, como os mitos, a linguagem e as prticas religiosas. A memria outro recurso
importante na compreenso da paisagem. De acordo com Torres 209, as percepes e as
memrias vivenciadas, construdas e compartilhadas no seio do grupo de religiosos,
apresentam-se como importantes elementos compreenso da espacialidade religiosa. Em se
tratando grupos como o catimb-jurema, a umbanda e o candombl, este recurso se torna ainda
mais relevante porque so tradies que no se utilizam de um livro que normatize seus rituais,
sendo religies que se baseiam fundamentalmente na oralidade. Esta, por sua vez, precisa da
memria como subsdio no cotidiano religioso ela quem oferece a continuidade das
tradies. Como j anteriormente afirmamos, nossa inteno no discutir conceitualmente o
significado de tradio ou sua aplicabilidade no contexto religioso do catimb. Todavia,
importante ressaltar que, os discursos acerca de uma tradio remetem, segundo Capone 210,
para a noo de desdobramento algo que tambm implica na ressignificao das prticas
litrgicas.
206
MARIA, Thagila. Entrevista realizada em 14 de abril de 2016, na Casa Sol Nascente, em Parnamirim-RN.
207
TORRES, Marcos Alberto. As paisagens da memria e a paisagem religiosa. Curitiba, ed. UFPR, 2003, p.
96.
208
Ibidem, p. 96.
209
Ibidem, p. 99.
210
CAPONE, 2009, p. 255.
76
Voc pode se conectar com coisas que s tem na mata: espritos de animais,
ancestrais do lugar, ou mesmo espritos elementais; os que de certa forma,
governam aquele lugar espiritualmente. Nessa harmonizao voc pode se
conectar com o passado do lugar, histrias que no so suas, mas que os
espritos podem at de pedir pra voc terminar coisas que outros deixaram
[...]. So [coisas] normalmente reveladas pelos espritos do lugar. 212
211
ASSUNO, 2004; SALLES, 2010.
212
FLIX, Everton Felipe de Santana. Entrevista realizada em 14 de abril de 2016, na Casa Sol Nascente em
Parnamirim-RN.
213
SALLES, 2010, p. 30.
77
nossos antepassados, dos encantados da mata [...]. Ento, o tor mais pra
isso, renovar nossas energias. 214
Estar em contato com uma terra que possui ligaes com a ancestralidade incide na
percepo e nas experincias religiosas dos juremeiros naquela paisagem o Catu foi e ainda
um territrio indgena. Os filhos e os frequentadores da Casa Sol Nascente realizam
determinados rituais na comunidade pelo menos uma vez ao ms com objetivo de estar em
contato com as foras da mata. Em diferentes culturas a noo de natureza expressa uma
ideia de pureza, algo que no foi ainda maculado pelo homem. A leitura que as religies
afro-brasileiras tm deste espao tambm aponta para esta dimenso sagrada e, portanto, mais
prxima das divindades. assim que Thagila Maria explica a relao entre a natureza e a sua
f:
A natureza uma criao divina que nos afasta muito do meio material,
urbano, como se na natureza voc conseguisse se reconectar com Deus, com
os espritos; e como os orixs no so exatamente materiais, mas imateriais,
porque j esto em outro plano, ento essa reconexo com os orixs fica mais
facilitada.215
214
CATU, Lus. Entrevista realizada em 30 de dezembro de 2013, no municpio de Vila Flor-RN.
215
MARIA, Thagila. Entrevista realizada em 14 de abril de 2016, na Casa Sol Nascente, em Parnamirim-RN.
216
PRANDI, 2005, p. 7.
78
O ax dos orixs, isto , sua fora e energia, deve ser transmitido aos adeptos, e isto
ocorre atravs de alguns rituais realizados em espaos da natureza. Em maro de 2013,
presenciamos um ritual de iniciao de Rodrigo Soares, filho de santo da Tenda Esprita Oxal
Ololufam Reino de Oxum. Depois de alguns dias recluso no quarto do santo, o novio foi
levado a outros locais para finalizar sua consagrao s entidades atravs de banhos
ritualsticos. Sendo filho de Iemanj, o primeiro banho foi dado no mar espao de domnio
desta orix; depois, levado ao rio Potengi217, por seu pai de santo. Mergulhou trs vezes e
enquanto saa das guas, saudava Oxum, patrona dos rios. Perto dali, entrou em uma zona de
mata e consagrou-se a Od, regente das florestas. Enquanto proferia algumas oraes e cantava
toadas em homenagem ao orix, o novio era banhado por um preparado de ervas.
O ritual continuou frente de um cemitrio espao dominado por Obalua, orix das
doenas, da cura e da morte. Posicionado de fronte ao porto, Rodrigo tinha pipoca (alimento
de Obalua) derramada sobre sua cabea, cnticos e rezas eram recitados. O banho na
encruzilhada fechou os trabalhos de iniciao era o momento de se consagrar ao seu exu, o
Exu Caveira. Nesta parte do ritual foram usadas bebidas alcolicas e cigarros elementos de
exu. A bebida era derramada sobre a cabea e os ombros do adepto, enquanto seus padrinhos
baforavam a fumaa do cigarro. Rodrigo explica que, embora este tenha sido um ritual
especfico para alguns orixs, aconteceu de acordo com as prticas da jurema da casa a qual ele
filiado.
217
Principal rio do Estado do Rio Grande do Norte. Seu nome, de origem Tupi, significa gua de camaro.
218
SOARES, Rodrigo. Entrevista realizada em 27 de maro de 2013, na Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino
de Oxum, em Extremoz-RN.
219
ANDREOTTI, 2008.
79
relacionados a estas entidades; pois de acordo com a doutrina umbandista, a calunga, nome
dado ao campo santo, o lugar de morada destes espritos. L so depositados elementos
votivos, como cigarro, cachaa, velas dentre outros. O imaginrio ocidental cristo construiu
uma srie de discursos negativos acerca deste espao, nas palavras de Fernandes e Souza,
220
SOUZA, Andr Lus Nascimento de. FERNANDES, Bruno Rafael dos Santos. Encruzilhada do Sagrado:
Representaes religiosas no Cemitrio So Miguel. In: Anais do III Congresso Internacional de Culturas
Africanas: Griots. CCHLA/UFRN: 2014, p. 1.
221
FLIX, Everton Felipe de Santana. Entrevista realizada em 14 de abril de 2016, na Casa Sol Nascente em
Parnamirim-RN.
222
PRANDI, 2005, p. 7.
223
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
80
2.5 O ESPAO-CORPO
No preciso muito esforo para notar que nas religies e religiosidades de carter
animista/espiritualista, o corpo , sem dvida, um mecanismo essencial na comunicao entre
o homem e os espritos, constituindo a base de muitos sistemas religiosos. Desde que o homem
passou a se organizar em sociedade, as primeiras manifestaes religiosas tambm passaram a
ocorrer o que expressa a necessidade, ou pelo menos, a predisposio que o homem possui de
estar em contato com os seus mortos. Em algumas culturas esses ancestrais foram alados
condio de divindades, tendo o poder de controlar as foras da natureza, a exemplo da
sociedade ioruba, onde os orixs, voduns e inquices cumprem esta funo, podendo manifestar-
se atravs dela. Os grupos indgenas que um dia habitaram o territrio brasileiro tambm
desenvolviam rituais onde os espritos dos seus antepassados eventualmente voltavam terra
para serem reverenciados.
Desde que as primeiras manifestaes religiosas foram organizadas, o homem
procurou representar suas divindades, fosse por meio dos desenhos nas cavernas ainda no
perodo Paleoltico e Neoltico, ou atravs da materializao destes espritos em totens,
esculturas em madeira, em meglitos ou simples dolos de barro. Entretanto, nenhum outro
instrumento foi capaz de manifestar de modo mais complexo a interao do homem com o
sagrado, que o seu prprio corpo. Nas religies onde o transe de possesso acontece, o corpo
compreendido como sacrrio dos ancestrais, evocados durante as cerimnias para interagir
com adeptos e consulentes.
O corpo uma categoria espacial constituda por elementos materiais e simblicos.
Em se tratando das religies afro-brasileiras, como o candombl, a umbanda e o catimb, por
224
Ponto cantado do catimb-jurema.
81
225
MAUSS, 1974.
82
conceito de tcnica corporal, para explicar como os diferentes grupos serviram-se dos seus
corpos. Ele desconstri e desnaturaliza este objeto que excessivamente familiar a todos os
seres humanos. O autor entende a tcnica corporal como um conjunto de prticas dotadas de
eficcia e tradicionalidade,
Mutvel de poca para poca, de formao social para formao social, nas
imagens que o definem, nos sistemas de conhecimento que procuram elucidar
a sua natureza, nos ritos que o colocam socialmente em cena, nas
performances que cumpre, no imenso conjunto de valores e representaes,
de fantasmas e imaginrios, de mitos e tabus, de normas e preconceitos, de
226
MAUSS, op. cit. p. 217.
83
227
FERREIRA, Victor Srgio. Elogio (sociolgico) carne: A partir da reedio do texto as tcnicas do corpo
de Marcel Mauss. Coleo Arte e Sociedade. Instituto de Sociologia: Faculdade de Letras da Fundao
Universidade do Porto, 2009, p. 1.
228
PLVORA, Jacqueline B. O Corpo Batuqueiro Uma Expresso Religiosa Afro-Brasileira. In: LEAL, Ondina
Fachel (org.). Corpo e Significado Ensaios de Antropologia Social. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 1995, p.
125.
84
O Saci outro encantado cultuado na jurema, nos terreiros por onde passamos, s
encontramos referncia a este esprito na Casa Sol Nascente. Ele aparece representado no peji
229
Descrio da sesso assistida no Terreiro de Umbanda Preto-Velho, em Ouro Branco-RN, no dia 01 de
dezembro de 2012. Thadeu no permitiu que tirssemos fotos do ritual. Acervo do autor.
85
junto as imagens da Cabocla Jurema, Oxssi, Xang, Oxum e Omulu. Rmulo Anglico,
dirigente da Casa, no possudo pelo encantado, mas mantm a imagem como uma referncia
a linha do Encanto. Na umbanda, o Saci pode se manifestar linha dos Ers espritos infantis;
como Exu mirim um exu criana; e em casos mais raros, como caboclos feiticeiros, em todo
caso, o Saci descrito como uma entidade de ndole duvidosa. Quando esto atuados, os
mdiuns agem segundo o esteretipo construdo acerca dessa entidade pulam numa perna s,
usam gorro vermelho e fumam cachimbo, seguem pelo terreiro praticando mandingas e
traquinagens.
O corpo inspirou a reproduo das representaes imagticas dos mestres, caboclos,
pretos-velhos, pombagiras, exus, ers e demais entidades do panteo afro-brasileiro. Nestas
figuras, observa-se alguns elementos que as caracterizam, sejam os gestos, a posio corporal,
os adereos, as cores com as quais so representadas. As entidades espirituais possuem uma
personalidade que se manifesta durante o transe de possesso, e essa personalidade est marcada
por uma gestualidade e pelas expresses corporais. V-se nas imagens de caboclos, por
exemplo, a destreza e fora de quem viveu na mata, suas esculturas retratam o arrojo e a
intrepidez dessas personagens, estampam sempre um semblante austero e circunspecto (ver
figura 10). Nas imagens de pretos-velhos, observa-se a fragilidade do corpo marcado pela ao
do tempo: aparentam estar cansados, geralmente so representados sentados ou apoiados em
uma bengala, trazem consigo o peso da experincia de quem passou pelo cativeiro (ver
figura11).
230
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 01 de outubro de 2012, em Ouro Branco-RN.
231
CHARTIER, 2002.
232
JOLY, Martine. Introduo anlise da imagem. 6 ed. Campinas: Papirus, 1996.
87
Nas religies afro-brasileiras, o corpo uma extenso da memria. Uma vez que o
orix no se expressa atravs da fala, a gestualidade contida nas danas atua como principal
elemento de comunicao com o adepto ou cliente. Neste sentido, as vestes, o ritmo, as e os
233
Trecho da descrio da sesso no Il Ax Oxum Ox Oxssi Congobira, em Currais Novos, no dia 18 de julho
de 2013. Acervo do autor.
234
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepo. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 114.
235
MERLEAU-PONTY, op. cit, p. 134.
88
Nas imagens acima temos dois mdiuns ornamentados segundo as regras da Tenda
Esprita Oxal Ololufam Reino de Oxum. Z Malandro um mestre que se manifesta na linha
dos Bomios os representantes mais conhecidos dessa categoria espiritual so: Z Pelintra,
Z Pretinho, Z Navalha e Maria Navalha, Maria dos Arcos da Lapa, dentre outros (as). As
roupas e os assessrios do mdium tambm identificam o grupo do qual o sr. Z Malandro faz
parte o chapu estilo panam, sem dvida, a marca registrada dos Malandros. As cores
vermelho, branco e preto esto geralmente associadas aos exus e pombagiras na umbanda, os
Malandros ou Bomios se manifestam na linha dos exus. Tal concepo foi em parte, adotada
e ressignificada pelo catimb, onde a incorporao de mestres bomios tambm passou a
acontecer.
O catimb-jurema, assim como a grande maioria das religies
animistas/espiritualistas, um sistema onde o corpo estimulado pela sonoridade. Cada
entidade possui caractersticas prprias que se expressam no s atravs das vestimentas e dos
movimentos corporais, mas so evidenciadas tambm nos cnticos e nos ritmos dedicados a
elas. A msica (vocal e instrumental) viabiliza o estado de transe. Segundo Rouget236, o transe
sempre ligado a uma superstimulao sensorial mais ou menos marcada (por) barulhos,
msicas e agitao. Os cnticos, o som dos atabaques, os maracs e at mesmo as palmas dos
participantes e adeptos, cadenciam os movimentos do corpo e auxiliam na performance ritual
do mdium.
236
ROUGET, Gilbert. La musique et le transe:. Esquisse dune thorie gnrale des relations de la musique et de
la possession. Paris: Ed.Gallimard, 1980, p. 35.
90
Alguns pontos cantados apresentam-se como narrativas que revelam episdios vividos
pelas entidades. Durante a sesso essas canes so interpretadas pelos mdiuns que, atuados
com seus guias (re)encenam essas histrias de vida. No Il Ax Omin Oxum Lorum dEw em
Currais Novos, o pai Andr Felipe237, paramentou-se com as roupas rituais de sua pombagira,
dona Maria Padilha e entoou seu ponto,
237
Sesso observada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw. Currais Novos RN.
Acervo do autor.
238
Um dos pontos cantados da pombagira Maria Padilha.
91
Uma das crenas basilares do catimb est pautada na concepo de que o mundo do
alm possui cidades; elas so a morada dos mestres catimbozeiros, de l se abalam para o
mundo dos vivos e se fazem presentes nas celebraes e no cotidiano dos homens. A
cosmogonia juremeira acerca destes espaos complexa pois contempla uma srie de
representaes imagtico-discursivas forjadas pelos grupos indgenas nordestinos e
reproduzidas pelos adeptos do catimb no decorrer de sua formao enquanto sistema religioso.
Muitos pesquisadores teceram consideraes acerca da temtica que o diga os trabalhos
pioneiros de Andrade240 e Cascudo241 que identificaram nominalmente algumas das principais
cidades da jurema.
importante salientar que a noo de reino e cidade tem relao com a cultura
ibrica, uma vez que, anterior ao contato com europeus, no se observa referncias aos termos
supracitados, o mais provvel que a construo imagtico-discursiva desses espaos esteja
permeada por concepes baseadas no processo de civilizao trazido pelos europeus para a
Amrica nos sculos XVII e XVIII, momento em que as religiosidades de matriz indgena se
fundiam s prticas europeias e africanas. A utilizao dos termos reinos e as cidades na
jurema surgem em detrimento a ideia de aldeia e encanto, presentes em alguns grupos
amerndios. assim que o mestre juremeiro Rmulo Anglico explica a aplicao dos termos,
A ideia de reino e cidade presentes na Jurema, deve ter sido uma releitura feita
por magos e feiticeiros ibricos do que foi o universo cosmolgico imaginrio
dos nativos. No havia cidade da Jurema entre os nativos, mas pode ter
existido aldeias espirituais. Ainda hoje os caboclos chamam de Encante ou
Encanto esse lugar invisvel. Inkant era como os Tapuya Tarairiu
chamavam o ritual de evocar os seres que viviam nesses lugares. 242
A fala do mestre Rmulo aponta para uma provvel explicao acerca da origem da
terminologia encanto para se referir aos lugares mgicos habitados pelos espritos e
encantados. A crena de que existem lugares sagrados recorrente em grande parte das
religies, desde o ocidente at o oriente. A concepo destes espaos est associada a diversos
239
Ponto cantado do catimb-jurema.
240
ANDRADE, 1983.
241
CASCUDO, 1951.
242
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
92
aspectos das necessidades humanas. Estas espacialidades consideradas eternas e sagradas so,
de alguma forma, para o homem religioso, uma garantia de que a vida no acaba com a morte.
Os indivduos (crentes) depositam nesses universos desconhecidos a esperana de que algo
melhor os aguarda no post-mortem. Desde que os mais antigos sistemas religiosos passaram a
ser pensados, o homem procurou organizar e representar a existncia desses lugares, como
afirma Eliade,
O autor observa que o processo criativo desses espaos est embebido de aspectos
simblicos que visam a ordenao, a qualificao e uma certa hierarquizao pensada para as
experincias com o sagrado. Para grande parte das religies crists, a morte interpretada como
uma passagem para outra(as) dimenso(es). Em se tratando de algumas expresses
religiosas afro-brasileiras, como o catimb, a cosmoviso no est limitada ao maniquesmo
cristo (cu e inferno), pois de acordo com os juremeiros, existem outros espaos identificados
como os reinos da jurema, encantos, aldeias ou cidades para onde vo os espritos.
Trata-se de uma cosmologia complexa e ainda pouco debatida no mbito acadmico
dado o silncio por parte dos informantes, o que pode ser compreendido como uma tentativa de
preservar os segredos da jurema transmitidos pelos senhores mestres. A fundao dessas
cidades est relacionada cincia juremeira, envolve rituais que no devem ser revelados. O
mestre Thadeu Moreira nos alertou desde o incio da conversa, s posso contar at certo ponto,
depois disso, no posso falar mais nada. No fique com raiva no, mas tem coisa que eu no
vou poder passar pra voc.244 Procuramos realizar este trabalho com total respeito aos
discursos, prticas e posicionamentos dos entrevistados. Para a obteno dessas informaes
foi preciso criar minimamente uma relao de confiana para que nossos informantes se
sentissem vontade para conversar sobre um assunto um tanto delicado e caro a eles, algo que
envolve os conhecimentos mgico-religiosos de sua f. Como pesquisadores, procuraremos
fornecer ao leitor o maior nmero de elementos que facilitem a assimilao sobre o universo
juremeiro.
Nesta etapa da pesquisa discorreremos acerca dos reinos encantados da jurema
observando as possibilidades de representaes (materiais e imateriais) destes espaos, este ser
243
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. So Paulo: Martins e Fontes, 1992, p. 17.
244
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
93
nosso primeiro ponto de anlise. A partir da narrativa dos entrevistados, versaremos sobre a
geografia do sobrenatural, onde discutiremos acerca dos aspectos topogrficos,
organizacionais e a (suposta) localizao (espacial) destes reinos. Por fim, teceremos algumas
consideraes sobre as metforas espaciais, vamos observar como as espacialidades sagradas
da jurema aparecem representadas nos pontos riscados e cantados de algumas entidades,
configurando o que estamos chamando de metforas espaciais.
Dentro e fora dos terreiros nos depreendemos com estruturas que representavam as
cidades sagradas da jurema, a morada sobrenatural dos espritos. A forma de simboliz-las
relativamente simples. Na grande maioria das casas, os copos e as taas, aparecem dispostos no
pejis, congs e nas mesas de catimb, representando a cincia dos mestres juremeiros o
encanto, o lugar de onde vieram. Entretanto, h outras maneiras de simul-las. Podem ser
utilizadas bacias de loua ou de vidro e cuias de coco, contudo preciso que material escolhido
tenha sido indicado pelos espritos habitantes das cidades.
Na configurao espacial das mesas e demais altares da jurema, os copos/cidades
aparecem frequentemente aparecem ao lado das imagens dos mestres e orixs, ou arranjados
prximos aos assentamentos (troncos da jurema). Para us-los como habitao espiritual,
preciso que o recipiente seja virgem e que se realize a consagrao do objeto. A importncia
destes recipientes est relacionada a funo que desempenham na liturgia juremeira, atravs
deles, acredita-se que seja possvel a interpretao das mensagens e doutrinas dos mestres,
por este motivo que as cidades de vidro recebem o nome de vidncia. Thadeu Moreira
explica o motivo da atribuio desta qualidade aos copos,
Por que vidncia? Porque atravs dela que a gente sabe [] o recado []
da entidade um mestre ou um caboclo, ou um prncipe, um rei []. A gente
sabe pela zoada quando a gente bate nela [na taa]. [] Quando a gente quer
alguma coisa na vidncia, a gente joga fumaa em cima da vidncia at ficar
uma nvoa ao redor, depois que aquela nvoa sai, a gente v na gua se o que
a gente pediu realmente vai acontecer; se no vai; o que que est
245
Ponto cantado do catimb-jurema.
94
acontecendo; quem que est atrapalhando []. Por isso que se chama de
vidncia.246
Todos os elementos dispostos no peji foram postos a fim de estabelecer uma simulao
da cosmogonia juremeira. O uso de copos e taas de vidro praticamente unnime nos templos
que visitamos. No discurso dos adeptos, o vidro est relacionado diretamente ao dom da
clarividncia acredita-se que possvel ver e interpretar os desgnios dos mestres apenas
observando os recipientes, conforme explicou o umbandista Thadeu Moreira. A utilizao da
gua tambm segue referncias pautadas em pressupostos mgicos e at psicolgicos. Segundo
o mestre Rmulo,
Aonde tem gua, tem vida. E os espritos s vem no lugar que tem vida. Pra
isso ele precisa de um corpo vivo pra se manifestar, pra se juntar quele corpo
e trabalhar. Por isso que ns (sic) usa gua, porque onde tem gua tem vida.
Se tirar todas essas guas [dos copos], acaba a fora das correntes da mesa de
jurema. 248
O exerccio das artes divinatrias pode exigir outros instrumentos que proporcionem
a comunicao com o sagrado. Esse tipo de manifestao hierofnica conta com um vasto
repertrio de objetos que adquirem significado mgico dentro dos rituais, tais como cruzes,
punhais, pentagramas, hexagramas, clices, teros e rosrios, bolas de cristal, etc. Esta ltima,
parece ter encontrado uma correspondente nas mesas de catimb. De certo modo, a
vidncia parece cumprir na jurema, um papel semelhante ao que as bolas de cristal
246
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
247
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
248
FERNANDO, Manoel. Juremeiro. In: A Cincia dos Encantados. Projeto Experimental de Jornalismo.
Universidade Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em
https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU
95
desempenham nos bruxedos europeus. O mestre Rmulo explica que certas tradies forjadas
no catimb, podem ter origem em outros sistemas culturais:
Rmulo procura apresentar outros grupos que de algum modo utilizam a vidncia
em seus repertrios litrgicos. Esta arte pode ter sido introduzida no catimb durante o processo
de hibridao com tradies mgicas advindas da Europa, conforme apontou Cascudo250. Alm
dos judeus, considerados magos cabalistas, segundo Rmulo, os povos de origem cigana
tambm tiveram certa influncia no desenvolvimento desses procedimentos na prtica
juremeira. O catimb foi moldado por diferentes agentes ao longo de sua histria, dentre elas,
ciganos, magos, feiticeiros, bruxos (as) e outras personagens. A vidncia relacionada a
previso e interpretao de fatos (do passado, presente e futuro) pode ter sido introduzida por
esse grupo em algum momento e assimilada pelos mestres e mestras do catimb passando a
servir-lhes como recurso mgico-litrgico. Pode-se observar ainda outros instrumentos usados
com este fim, tais como, cartas de tar, baralho, runas, bzios, dentre outros. Em alguns
terreiros, estes elementos so os objetos de trabalho dos espritos. Na Tenda Esprita Oxal
Ololufam Reino de Oxum, por exemplo, observamos uma mdium atuada com a Cigana da
Estrada, que distribua consultas utilizando um baralho. Em Currais Novos, no Il If Oxum
Ox Oxssi Congobira, o Mestre Zinho, baiano, temido por sua fama de grande feiticeiro,
incorporado em seu cavalo Assis de Xang, segurava um punhal e um copo (sua cidade)
enquanto caminhava pelo salo. Batia no copo com o punhal e fazia perguntas, o tilintar do
recipiente parecia ser a resposta dos espritos que ele consultava atravs do copo.
Para servir como canal, a gua deve estar limpa. Alguns juremeiros recomendam
que o lquido deve ser proveniente da chuva ou recolhida em rios e riachos. O objetivo
oferecer instrumentos que estejam mais prximos da natureza para que a entidade
desempenhe seu trabalho. Thadeu explica que,
249
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
250
CASCUDO, 1971.
96
alguma coisa; se for isso, o mestre vai ter que vir em terra pra decifrar o que
est acontecendo. 251
Em Currais Novos conhecemos Dona Luzia252. Ela nos recebeu em sua residncia e
nos levou ao quarto da jurema. Quando adentramos no espao, percebemos que se dirigiu a
mesa onde estavam os copos e as imagens dos mestres, e ps-se a tocar nas cidades usando um
cachimbo. Quando questionada sobre sua ao, ela comentou que estava acordando as
entidades (ver figura 13).
251
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
252
LUZIA, Maria. Entrevista realizada em 17. 07. 2013, em Currais Novos-RN. Acervo do autor.
97
repassados aos discpulos por meio das vidncias e das vivncias aprendidas e
experimentadas no cotidiano religioso, algo que exige sensibilidade.
Os arranjos nas mesas de jurema podem identificar a entidade os espritos possuem
espaos demarcados por objetos e smbolos que os representam. possvel observar uma
organizao hierrquica na forma como as estruturas esto dispostas na mesa de jurema. O reino
a unidade mais importante, pois abriga o conjunto de cidades, as quais, por sua vez, so
compostas por um incontvel nmero de aldeias habitadas por outras entidades, cada uma delas,
detentoras de uma cincia, uma sabedoria ancestral. No caso de pertencerem a um juremeiro
consagrado (mestre espiritual), estas (estruturas) assumem formas mais complexas, sendo
formadas por sete taas que representam as sete cidades principais253. A formatao mais
recorrente encontrada nos terreiros do Serid, composta por um recipiente de vidro maior ao
centro, simbolizando o Reino do Juremal, rodeado por sete copos menores, representando as
cidades conforme mostra a figura 14.
253
BURGOS e PORDEUS JNIOR, op. cit. p. 27-28.
98
254
BURGOS e PORDEUS JNIOR, op. cit. p. 28.
255
LOMI, Alexandre, juremeiro. A Cincia dos Encantados. Projeto Experimental de Jornalismo.
Universidade Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em:
https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU
256
PEFFFER, Renato Somberg. Das tcnicas mgico-religiosas racionalidade tcnica. Belo Horizonte:
Pretexto, vol. II, n 4, p. 37-42, dez. 2001.
99
A jurema no tem um padro de culto. Existe o culto mais geral que a gente
conhece, [a gira de jurema] uma ritualstica mais geral. Mas cada mestre na
sua jurema, cada mestra, cada lder da espiritualidade da jurema, tem a sua
forma, sua caracterstica de impor a sua lei [...]; cada um tem sua forma
particular de lidar com a magia, com a mgica da jurema. 257
257
LOMI, Alexandre, juremeiro. A Cincia dos Encantados. Projeto Experimental de Jornalismo. Universidade
Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU.
258
SANTOS, Aderbal dos. Entrevista concedida ao Prof. Dr. Lourival Andrade Jnior/UFRN e bolsista de
iniciao cientfica Natiele Barbosa, em 17 de agosto de 2014, no Il Ax Nag Oxagui, na cidade de Caic-RN.
100
Todos os autores que se debruaram sobre a temtica destacaram o papel relevante que
a jurema possui na liturgia catimbozeira. A rvore que d nome a religio, tambm utilizada
para denominar um complexo espacial conhecido como o Reino da Jurema, ou simplesmente
Juremal. O arbusto da famlia das Accias comumente encontrado em praticamente todo o
territrio nordestino, sendo uma rvore tpica da caatinga. Entretanto, diferentemente de outras
espcies de plantas, a jurema considerada sagrada, dotada de poderes mgico-religiosos cujos
usos e significados foram atribudos por diferentes grupos indgenas que um dia habitaram
diversas partes do Nordeste. Mesmo se tratando de tribos distintas, havia certas crenas e rituais
259
GIL FILHO, Slvio Fausto. Geografia das formas simblicas em Ernst Cassirer. In: BARTHE-DELOIZY, F.
SERPA, A. Orgs. Vises do Brasil: Estudos culturais em Geografia [online]. Salvador: EDUFBA: Edies
L'Harmattan, 2012, p. 55.
260
Ponto cantado do catimb-jurema.
102
que eram compartilhados, sobretudo, os que tinham como elemento central o culto jurema.
As celebraes envolviam danas cnticos e a beberagem de um licor mgico que transporta
os indivduos a mundos estranhos e lhes permite entrar em contato com as almas dos mortos e
espritos protetores.261
A liturgia do catimb confere jurema (Mimosa nigra Hub, Mimosa hostilis Benth,
Mimosa tenuiflora) um papel de destaque, sobretudo, no que diz respeito a sua funo mgico-
religiosa. Dela extrado todos os ingredientes utilizados nos rituais: folhas, cascas e razes na
preparao de banhos, defumadores e principalmente na confeco de um licor servido durante
as sesses, conforme explica a passagem a seguir:
por estas e outras qualidades que a jurema reverenciada como um pau sagrado
em muitos pontos cantados. Nestes, as referncias ao arbusto ressaltam principalmente, seu
carter curativo e mgico e atribuem sua sacralidade figura de Cristo. Sendo uma planta to
importante no culto catimbozeiro, muitos cnticos so entoados em sua homenagem:
261
CASCUDO, Lus da Cmara. Antologia do folclore brasileiro. Vol. 2. So Paulo: Global Ed. 2012, p. 112.
262
BURGOS e PORDEUS JNIOR, op. cit. p. 25-26.
103
***
Jurema minha Jurema
Jesus mandou lhe chamar
Abra as portas e as Cincias
Para os Mestres baixar
***
Caboclo bebeu Jurema
Caboclo se embriagou
Com a raiz do mesmo pau
O Caboclo se levantou.263
A jurema uma planta muito peculiar das terras do Serto aqui de Pernambuco
[...]. uma planta da famlia das Accias, uma planta sagrada j desde seu
histrico. Os egpcios cultuavam a Accia egpcia, os hindus cultuam um tipo
263
Pontos da jurema. Acervo do autor.
264
SANTA, Z de. ndio da tribo Xucuru do Ororuba. In: A Cincia dos Encantados. Projeto Experimental de
Jornalismo. Universidade Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em:
https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU
265
BASTIDE, 1974.
104
A noo de que a jurema uma planta especial compartilhada por todos os adeptos
da religio, no entanto, para que ela adquira fora mgico-religiosa, preciso consagra-la, ou
como dizem os juremeiros, calar a rvore,
Sem que o ritual do calo tenha ocorrido, a rvore no pode ser considerada sagrada,
sua cincia no tem reconhecimento perante o terreiro, e mais que isso, o vegetal no
reverenciado como morada dos espritos. Uma das peculiaridades do universo juremeiro se
fundamenta na crena de que os espritos desencarnados dos mestres e mestras, caboclos e reis,
habitam (simbolicamente) a rvore da jurema e transmite atravs dela toda sua sabedoria.
Entretanto, esta concepo se estende tambm a outras espcies da flora nordestina.
Observamos que h uma grande quantidade de topnimos de cidades encantadas que fazem
referncia a nomes de plantas. Sendo assim, encontramos: Cidade do Alecrim, Cidade do
Vajuc, Manac, Angico, Alfazema, dentre outras. Cada uma destas espacialidades erguida
tendo como base, a rvore da jurema, em decorrncia da importncia do arbusto que d nome
a religio. Cada uma destes encantos traz consigo um segredo, um fundamento, ou, uma
cincia, como preferem chamar os juremeiros.
Assim como outras representantes da flora nordestina, compe a base da farmacopeia
desta religio, amplamente receitada nos rituais pelos mestres do alm. Para alm do seu uso
medicinal, essas plantas so utilizadas como mecanismos de aproximao dos mentores
espirituais, conforme explicado por Burgos e Pordeus Jnior268. De acordo com os mestres
catimbozeiros, todas as plantas possuem sua cincia, e por isso, so respeitadas e no raro,
nomeiam uma srie de cidades encantadas.
De acordo com Vandezande269, as mais antigas linhagens de mestres catimbozeiros
estavam localizadas na Paraba. No Acais (ver figura 18), uma pequena propriedade situada no
266
LOMI, Alexandre. Juremeiro. In: A Cincia dos Encantados. Projeto Experimental de Jornalismo.
Universidade Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em
https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU
267
SALLES, 2010, p. 99.
268
BURGOS e PORDEUS JNIOR, 2012.
269
VANDEZANDE, 1975.
105
municpio de Alhandra, abrigou aquela que seria a famlia responsvel por disseminar o culto
jurema pela Paraba e grande parte do Rio Grande do Norte os Gonalves de Barros.
Assuno270 afirma que, para os juremeiros da regio nordeste, Alhandra uma das mais fortes
referncias mitolgicas e simblicas da prtica do catimb e da cincia da jurema. Essa tradio
foi cultuada e mantida pelo mestre Incio e seus descendentes, ainda de acordo com autor,
270
ASSUNO, Lus. Alhandra e o cl do Acais. Disponvel em:
http://lassuncao.blogspot.com.br/2009/07/alhandra-e-o-cla-do-acais.html. Acesso em: 21 de junho de 2016.
271
ASSUNO, Lus. Alhandra e o cl do Acais. Disponvel em:
http://lassuncao.blogspot.com.br/2009/07/alhandra-e-o-cla-do-acais.html. Acesso em: 21 de junho de 2016.
272
VANDEZANDE, 1975.
273
ASSUNO, 2006.
274
SALLES, 2010.
106
Grande parte da tradio juremeira foi disseminada pela Mestra Maria do Acais.
Seus ensinamentos parecem ter chegado a vrias regies do Nordeste. Uma das prticas
litrgicas da jurema do Acais o ritual da ensementao, que consiste na implantao da
semente da jurema no corpo do adepto, este rito possui relaes expressas com as noes de
cidade e cincia do catimb e conhecido tambm como juremao.
A ensementao consolida uma das etapas iniciais, mas fundamentais da vida
religiosa de um juremeiro. O nefito recebe no corpo a semente da jurema275 durante a
275
H casas que no implantam a semente, mas sim o atim, que a semente transformada em p. Informao
concedida pelo babalorix Tiago Lcio da Tenda Esprita Oxal Ololufam Reino de Oxum. Extremoz-RN.
107
cerimnia de batismo, segundo Lopes276, trata-se do ritual mais importante do catimb. Aps
um jejum de sete dias277, a semente implantada, a partir da, torna-se um mestre juremeiro
consagrado. Atravs da semente (retirada de uma rvore j consagrada e, portanto, possuidora
de fora mgica) e tambm da vivncia religiosa, o mestre adquire cincia, e de seus guias
espirituais recebe os ensinamentos que so repassados aos demais membros da casa. Observem
que estes rituais fazem parte de um ciclo que tem incio com a implantao da semente e tm
continuidade quando o mestre juremeiro cufa, isto , quando ele desencarna. neste sentido
que Salles aponta:
A rvore abriga o esprito do mestre para o qual o nefito foi dedicado. A semente
implantada em seu corpo foi extrada de um vegetal sacralizado. Assim, um juremeiro
consagrado ao Mestre Z da Virada, por exemplo, recebe a semente advinda da jurema do
referido mestre. Jos Wilton279, nos contou que quando um mestre catimbozeiro cufa, ele
funda uma cidade. As narrativas acerca do que acontece com os mestres depois da morte so
variadas. Para Wilton, o possuidor da semente d incio a uma cidade, para ele, este o motivo
que justifica a existncia dos inmeros encantos da jurema. Esta verso parece ser
questionada pelo mestre Thadeu Moreira280: j pensou se todo juremeiro que morre cria uma
cidade? Nesse mundo de meu Deus s o que ia ter era esprito de catimbozeiro por todo canto.
Para Thadeu a noo mais pertinente a de que o mestre ensementado passa a habitar junto
do mestre para o qual se consagrou.
Em todo caso, observamos a construo de um legado que de alguma forma permite
que os ensinamentos mgico-religiosos dos mestres (vivos e desencarnados) sejam repassados
e (re)atualizados. A gnese de todo este processo nem sempre est relacionada ao ritual da
ensementao, uma vez que no so todas as linhagens catimbozeiras que adotam este rito em
sua liturgia, neste sentido, a disseminao da cincia juremeira se d pela consagrao ritual
aos mestres e mestras do alm. As vivncias no ambiente coletivo da famlia de santo so
imprescindveis para o fortalecimento das experincias religiosas. A rvore, os prncipes e as
276
LOPES, Nei. Kitbu: O livro do saber e do esprito negro-africano. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2005.
277
O jejum varia de uma casa para outra, assim como a quantidade de dias em recluso.
278
SALLES, op. cit. p. 111.
279
WILTON, Jos. Entrevista realizada em 17 de julho de 2013, em Currais Novos-RN.
280
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
108
Cuidar do espao onde a cidade est assentada to importante quanto zelar da prpria
cidade. A figura do zelador imprescindvel, ele o protetor da cincia deixada pelo mestre,
cabe a ele cuidar dos arredores da cidade.
Alm de muito cuidado com a planta, necessrio manter a rea limpa, varr-
la periodicamente e capinar os matos que crescem sua volta. a que entra
a figura do zelador da Cidade. Os zeladores, em devoo aos mestres, dedicam
parte do seu tempo (ou da sua vida) preservao desses santurios. Em geral,
trata-se de um discpulo ou parente do mestre falecido.284
A paisagem que compe o entorno deve estar sempre bem cuidada, afinal, o espao
abriga um santurio. Em Alhandra, (no Acais) possvel ainda hoje observar o tmulo do
Mestre Flsculo, filho da Mestra Maria do Acais. De acordo com Assuno 285, o Mestre
Flsculo foi sepultado em 1959 atrs da capela (de So Joo Batista). Sobre seu tmulo foi
colocada uma escultura em concreto de um tronco de jurema (figura 20).
281
Ver: ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. So Paulo: Martins e Fontes, 1992.
282
SALLES, op. cit. p. 49.
283
VANDEZANDE, op. cit., p. 130.
284
SALLES, op. cit. p. 112.
285
ASSUNO, Lus. Alhandra e o cl do Acais. Disponvel em:
http://lassuncao.blogspot.com.br/2009/07/alhandra-e-o-cla-do-acais.html. Acesso em: 21 de junho de 2016.
109
Logo aps a destruio, uma me de santo de Joo Pessoa divulga as fotos das
runas pela internet. Os juremeiros de Recife e Joo Pessoa, com apoio de
pesquisadores, sacerdotes da Umbanda e do Candombl de diversas partes do
pas, se organizaram em passeatas, programas de televiso, matrias em
jornais, e-mails, sites, blogs, etc., em uma articulao sem precedentes,
envolvendo terreiros de diferentes cidades. Uma instituio de So Paulo, a
Sociedade Yorubana de Cultura Afro-Brasileira, assinou o pedido de
110
286
SALLES, op. cit. p. 133.
287
GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1978, p. 105.
288
WILTON, Jos. Entrevista realizada em 17 de julho de 2013, em Currais Novos-RN.
289
Ponto cantado do catimb-jurema
290
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas. (O que falar quer dizer). So Paulo: EDUSP, 1998.
111
Backzo291, para citar alguns exemplos. Nossa discusso sobre este conceito se desenvolve nas
consideraes propostas por Pesavento para a autora o imaginrio pois,
291
BACKZO, Bronislaw. Imaginao social. In: Enciclopdia Einaudi, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, Editora Portuguesa, 1985.
292
PESAVENTO, op. cit., p. 24.
293
CHARTIER, 2002.
294
PESAVENTO, op. cit. p. 24.
295
ESPIG, Mrcia Janete. O conceito de imaginrio: Reflexes acerca de sua utilizao pela Histria. Revista
Textura, n 9, Canoas: UFRGS, 2004, p. 51.
112
Manac
Josaf Anjico
Canind Vajuc
Bom-Flor
guas
Claras
Cova de Cidades
Salomo Virgens
Tigre
296
CASCUDO, 1951, p. 46.
113
Andr ainda explica que cada cidade funciona com relativa independncia do reino,
isto , cada uma delas possui um mestre ou mestra espiritual responsvel pelas chaves das
cidades, pelas entradas da jurema300, determinando quais espritos podem ou no entrar nos
encantos e baixar nos terreiros. Segundo ele, existem chefe de falange, espritos cujo alto
grau de purificao lhes confere uma posio de comando na hierarquia juremeira.
297
CASCUDO, 1951.
298
PEREIRA, Walter. Presidente da Federao Paraibana de Cultos Afro. In: A Cincia dos Encantados. Projeto
Experimental de Jornalismo. Universidade Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em
https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU
299
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN.Currais Novos-RN. Acervo do autor.
300
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN.Currais Novos-RN. Acervo do autor.
114
entram muito em mesa no. Eles no so responsveis por nada, eles so mais
de quimbanda, que a linha de feitio.301
De acordo com nosso entrevistado, mesmo existindo mestres mais purificados que
outros, esta hierarquizao no influencia na organizao das cidades. Neste sentido, segundo
o juremeiro Andr Felipe, no h cidades concebidas especificamente para abrigar espritos
mais, ou menos evoludos,
A cidade uma s para todos eles. A cidade dos menos evoludos e dos mais
evoludos uma s. S que os mais evoludos, como Z Pelintra, Z da Virada,
so mestres mais evoludos, so mestres de luz. Eles j esto to evoludos
que algumas pessoas dizem que a falange de Z Pelintra que se manifesta,
Z Pelintra no se manifesta mais [...]. Eles ficam nas mesmas cidades junto
com os coordenadores, os responsveis, s repassando a cincia.302
Cada um destes espaos possui sua linha de trabalho, isto , uma cincia, que pode
variar desde trabalhos de cura, dinheiro, amor, limpeza fsica e espiritual e outras mais voltadas
para feitios. Esta organizao caracteriza a funo especfica de cada cidade encantada:
Cada cidade traz sua cincia e cada mestre procura difundir, procura passar
ela para seus discpulos, entendeu? E ns juremeiros tambm. Ns somos
juremeiros, pegamos os filhos e discpulos da casa e vamos passando: essa
erva serve pra isso, essa raiz serve pra aquilo, essa casca, esse pau, tudo que
de erva, de pau que vem da mata, tem uma serventia, nada pode ser
desperdiado [...]. Da minha cidade da jurema que o Bom-Flor, a gente
trabalha muito com cura, com descarrego. A tem as outras cidades, tem umas
que (sic) trabalha s com a fumaa, pra tirar o carrego na fumaa; outras pra
tirar a perturbao com gua, outras com erva, entendeu? Cada cidade tem
as suas formas especficas de fazer suas limpezas. 303
301
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN.Currais Novos-RN. Acervo do autor.
302
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN.Currais Novos-RN. Acervo do autor.
303
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN.Currais Novos-RN. Acervo do autor.
304
BASTIDE, 2004, p. 147.
115
jurema, um dos momentos mais importantes da vida religiosa do nefito. Suely Costa explica
o ritual do tombo
305
COSTA, Suely. Entrevista realizada em 25 de junho de 2016, na Tenda Esprita Iemanj Ogum-T, em
Extremoz-RN.
306
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
116
A jurema mostra o mundo inteiro a quem bebe: V-se o cu aberto, cujo fundo
inteiramente vermelho; v-se a morada luminosa de Deus; v-se o campo de
flores onde habitam as almas dos ndios mortos [...]. Ao fundo v-se uma serra
azul; veem-se as aves do campo de flores, beija-flores, sofrs e sabis. sua
entrada esto os rochedos que se entrechocam esmagando as almas dos maus
quando estas querem passar por eles. V-se o sol passando por debaixo da
terra.308
Quando voc vai cidade do Mestre pra voc conhecer, uma coisa to
encantadora que voc fica pensando: meu Deus, eu tive a capacidade de ver
isso, o dom de ver isso?! E quando a gente acorda a gente est to cansado
que parece que a gente passou a noite correndo atrs de gado no mato,
entendeu? 309
307
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
308
NIMUENDAJU, Curt. Mitos indgenas inditos na obra de Curt Nimuendaju. In: Revista do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, n 21, 1986, p. 53.
309
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN.
117
A jurema uma Cidade sagrada [...]. uma floresta encantada onde tem muitas
rvores milenares, muitos pssaros que j se extinguiram, muitos rios, muitas
cascatas, muita fora, muita fumaa, muito ndio [...]. Essas cidades se
localizariam dentro do centro da terra, ela no t acima, nem t abaixo, est sob a
terra [...]. A jurema t aqui, t ao nosso redor, t sempre sendo cultuada, a jurema
t na natureza.312
O acesso primaz aos encantos a natureza esta noo parece unssona entre os
juremeiros. possvel perceber nos discursos a convico de que a conformao espacial dos
reinos, cidades e aldeias seja composta por elementos encontrados na natureza rvores, matas,
rios, etc. entretanto, observamos que acerca da possvel localizao espacial as opinies so
divergentes. O mestre Rmulo categrico ao confirmar sua crena na existncia dos reinos
encantados, assim como outros juremeiros fizeram, todavia, seu relato se diferente daquele dado
310
TUAN, 1983, p. 96.
311
FELIPE, Andr. Entrevista realizada no dia 11 de outubro de 2013, no Il Ax Omim Oxum Lorum dEw.
Currais Novos-RN.Currais Novos-RN. Acervo do autor.
312
GEORGE, Odon. Entrevista realizada em 28 de setembro de 2014, durante o IX Kipupa Malunguinho Coco
na Mata do Catuc. Abreu e Lima PE. Acervo do autor.
118
por pai Odon George de Ogum; Rmulo no cr que os portais que do acesso aos encantos
se localizem neste mundo. Vejamos sua fala:
313
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
314
ANGLICO, Rmulo. Entrevista realizada em 09 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.
315
Para mais informaes acessar: https://mestreneto.wordpress.com/galeria-de-videos/reino
http://catimbojuremanatalrn.blogspot.com.br/2011/03/direita-do-mestre-caboclo-e-uma-taca-ou.html
119
316
COSTA, Suely. Entrevista realizada em 25 de junho de 2016, na Tenda Esprita Iemanj Ogum-T, em
Extremoz-RN.
317
Distante 32km da capital Joo Pessoa.
318
Distante 11km de Joo Pessoa.
319
Cerca de 185km de distncia de Joo Pessoa.
320
MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de maro de 2016, em Ouro Branco-RN. Acervo do autor.
321
Localizado a 319km de distncia da capital Natal.
322
Localizado na Grande Natal, na microrregio de Macaba, 28km da capital.
323
H verses que narram seu nascimento em Alhandra.
120
municpios considerados sagrados por terem em algum momento abrigado mestres e mestras
catimbozeiras e por fim, os encantos com nomenclaturas msticas.
Segundo os juremeiros, o nmero de cidades encantadas e aldeias espirituais
incalculvel, estas so algumas das que conseguimos catalogar baseando-nos em relatos dos
entrevistados e tambm pesquisando em sites alimentados por mestres juremeiros. Constatamos
um considervel aumento das pginas e perfis em redes sociais utilizadas para propagar ou
minimamente esclarecer alguns dos aspectos doutrinrios, litrgicos e cosmolgicos acerca do
catimb, dentre as quais revelam algumas informaes sobre os encantos. As obras de
Andrade324, Bastide325, Burgos e Pordeus Jnior326, tambm foram consultadas e encontramos
referncias presentes nos pontos cantados. Na construo da nossa limitada base de dados
fomos auxiliados por mestres e mestras do catimb, muitos mostraram-se dispostos a contribuir
nos fornecendo nomes e caractersticas, no entanto, era perceptvel uma preocupao quanto ao
que faramos com as informaes repassadas, mesmo depois de termos esclarecido os nossos
objetivos, o problema que eles no querem que o conhecimento ultrapasse a transmisso
oral, explica Rmulo Anglico.
A mata o lugar dos espritos de caboclos como, Jaan, Aricuri, Sete-Flechas, Pena
Verde, Caboclo Samambaia e tantos outros. Acredita-se que nela, habitem tambm encantados,
como Malunguinho rei do Catuc, a Me Dgua, entidade que domina os rios e as fontes de
gua, a Caapora, esprito que protege animais e guarda as florestas. Alm de abrigar uma gama
de seres espirituais, a mata considerada um espao potencialmente encantado, segundo a
324
ANDRADE, 1983.
325
BASTIDE, 1945.
326
BURGOS e PORDEUS JR, 2012.
327
MPENHA, Me. Juremeira. In: A Cincia dos Encantados. Projeto Experimental de Jornalismo. Universidade
Catlica de Pernambuco: Recife, 2008. Disponvel em https://www.youtube.com/watch?v=6qGode84uKU
121
Tertuliano um respeitado mestre juremeiro conhecido por seus trabalhos com cura e
feitios. Estaria sepultado em Alhandra junto com outros 42 mestres, dentre eles, Zezinho do
Acais e Maria do Acais. Embora o ponto acima o associe a cidade de Cabos-verdes,
encontramos outros cnticos que o relacionam ao encanto de Ipanema e tambm a Gameleira.
Os trabalhos mgico-religiosos do referido mestre, parecem modificar-se de acordo com o
espao (encanto) de onde ele evocado, a maneira como ministra sua cincia pode tender para
o bem ou para o mal. Quando vem de Ipanema, Tertuliano conta com a ajuda de Cristo
para transportar os males:
de Ipanema, de Ipanema
Tertuliano trabalhando na Jurema
Olha l Tertuliano
Os teus prncipes esto chamando
Com os poderes de Jesus Cristo
328
COSTA, Suely. Entrevista realizada em 25 de junho de 2016, na Tenda Esprita Iemanj Ogum-T, em
Extremoz-RN.
329
BURGOS e PORDEUS JNIOR, 2012. p. 136.
122
Malefcios transportando.330
Ele Tertuliano
Morador da Gameleira
Matou gente e bebeu sangue
S no saiu na carreira.331
Os mestres podem ser evocados para muitas finalidades cura de males fsicos,
limpezas espirituais, abertura de caminhos que levem a prosperidade no dinheiro e no amor,
por exemplo. Todavia, tambm podem ser chamados a provocar contendas entre amigos,
intrigas familiares, ocasionar o fim de um relacionamento, promover separaes ou at mesmo
atos mais prejudiciais como perturbaes mentais, complicaes na sade e outros infortnios
que podem levar o importunado a fazer sua passagem.
De acordo com Assuno332 a umbanda desempenhou papel fundamental na
construo de uma lgica diacrnica estruturada metaforicamente em direita e esquerda. O
autor explica que a partir do contato da umbanda com o catimb, as noes de esquerda e
direita foram introduzidas na cosmoviso e na liturgia juremeira. A primeira, est relacionada
as questes materiais, enquanto a segunda, ligada aos valores espirituais. Partindo dessas
premissas, os mestres e outras entidades descem do plano em que se encontram e vm terra
para trabalhar, ajudando ou atrapalhando a vida das pessoas (...). Estes espritos so
classificados segundo o princpio do bem e do mal.
A esquerda passou a simbolizar uma categoria de entidades voltadas para os feitios,
amarraes e outros trabalhos que os espritos tidos como mais evoludos da direita no
realizariam. Nesta, esto os entes de luz, aqueles que devido sua condio espiritual esto
totalmente voltados para a prtica da caridade. Prandi 333 acredita que o processo de
cristianizao das religies africanas, trouxe algumas transformaes no pensamento e na
prtica religiosa afro-brasileira. A umbanda seria, neste sentido, uma religio cujos valores
morais e ticos, se voltaram exclusivamente para as boas aes, enquanto a quimbanda surge
330
BURGOS e PORDEUS JNIOR op. cit. p. 136-137.
331
Ibidem, p. 137.
332
ASSUNO, 2010, p. 160.
333
PRANDI, 2001.
123
como uma espcie de negao tica da umbanda334 configurando-se como uma zona
fronteiria entre o bem e o mal, onde todo e qualquer desejo pode ser atendido,
334
Ibidem, p. 10.
335
Ibidem, p. 11.
336
ASSUNO, 2006.
337
Ponto do Mestre Manoel Maior do P da Serra. CD pontos cantados de Jurema, 2008.
124
sinais. Andrade Jnior338 vai afirmar que estes, so smbolos que identificam a entidade como
se fosse sua assinatura. Na jurema, h uma relativa escassez de pontos riscados; nos terreiros
que percorremos no encontramos nenhum sacerdote que trabalhasse com esta prtica.
Entretanto, um dos smbolos mais recorrentes no catimb o Signo de Salomo ou Selo de
Salomo, representado por uma estrela de cinco, seis ou sete pontas riscada no cho com
pemba uma espcie de giz. Simbolicamente a estrela aponta para todos os cantos da terra
aludindo cincia do Rei Salomo, uma das entidades mais reverenciadas do catimb e
sinnimo de alta sabedoria.
338
ANDRADE JNIOR, 2013, p. 8.
339
Ponto do Rei Salomo. CD pontos cantados de Jurema, 2008.
125
Borborema; um de seus pontos diz, sou eu Manoel Maior, da Serra da Borborema. Depois de
fazer sua passagem340 o mestre teria ido habitar uma cidade espiritual chamada de Campos
Verdes e l teria continuado sua lida com o gado:
Muitos pontos cantados convergem para a crena na continuidade da vida, mesmo que
em outros planos. interessante perceber que a vida no alm pode apresentar aspectos do
cotidiano, como por exemplo o ato de juntar o gado, citado no ponto acima. Vrios pontos
afirmam existir outras formas de vida nos encantos bois, aves, insetos, etc. De acordo com a
cosmoviso juremeira, o mundo dos espritos se assemelha ao nosso. De alguma forma, as
paisagens descritas nos encantos correspondem aos cenrios anlogos aos da regio Nordeste
assim como o modus vivendi dos mestres e mestras eles parecem retomar no alm o estilo
de vida que tinham quando habitavam neste mundo. Vejamos o exemplo do Mestre Navizala:
Eu venho de longe
Sem conhecer ningum
Venho colher as rosas que a roseira tem
Mas eu sou boiadeiro
No nego o meu natural
Quem quiser falar comigo
Bem-vindo seja no Juremal.342
340
Desencarnar.
341
Ponto do Mestre Manoel Maior do P da Serra. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp
Acesso em: 02 de julho de 2016.
342
Ponto do Mestre Navizala. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em: 02 de
junho de 2016.
126
343
Ponto do Caboclo Flecheiro. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em: 02 de
junho de 2016.
344
Ponto do Mestre Zezinho do Acais. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em:
02 de junho de 2016.
127
Z Pelintra chegou.345
Vinha caminhando a p
Para ver se encontrava
A minha Cigana de f
Ela parou e leu minha mo
E disse-me toda verdade
Eu s queria saber se ela
A minha Cigana de f. 346
345
Ponto do Mestre Z Pelintra. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em: 02 de
junho de 2016.
346
Ponto de Povo Cigano. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em: 02 de junho
de 2016.
347
AUG, Marc. No-Lugares: introduo a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.
128
Na Aroeira de So Benedito
Santo Antnio Mandou me chamar
Pai Joaquim ,
Pai Joaquim , a
Pai Joaquim veio de Angola. 349
Na pemba de Angola
de mina angol
de mina Angola
Preto-velho vem de Aruanda
Pra seus filhos sarav.350
348
ANDRADE JNIOR, 2013, p. 4.
349
Ponto de Pai Joaquim de Angola. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em: 02
de junho de 2016.
350
Ponto da falange de Preto-velho. Disponvel em: http://www.yorubana.com.br/encantados.asp Acesso em: 02
de junho de 2016.
351
ANDRADE JNIOR, 2013, p. 6
129
352
TUAN, op. cit.
353
Ibidem, p. 103.
130
e o factual oprime e cerceia, a imaginao, por meio de todas as suas nuances, liberta, permite,
incentiva e (re)cria.
Em suma, o espao mtico difere-se dos espaos reais porque no so concebidos
pragmtica e cientificamente, mas baseados em simbolismos e metforas. Em todo caso,
percebe-se que referncias concretas e visveis so agenciadas para compor imagtica e
discursivamente os espaos invisveis, imaginados. Nesse exerccio, o homem organiza uma
srie de dispositivos extrados do meio social e cotidiano para que sirva de base para seu sistema
espacial religioso. Pensando via Tuan, possvel compreender as aluses entre as cidades
encantadas e as espacialidades da natureza. que, de alguma forma, atribuir caractersticas que
faam parte de seu sistema cultural pode oferecer-lhes alguma sensao de segurana e bem-
estar. De modo gradativo, os espaos imaginrios tomam forma e ganham personalidade,
significado e sentido transformando-se no que Tuan chamou de lugar.
de prdios e outras edificaes no mundo antigo: o corpo e sua geometria foi usada para
ordenar o mundo.354 Tuan, em uma leitura semelhante diz que o corpo um dos princpios
fundamentais da organizao espacial 355, a partir de suas dimenses possvel produzir noes
espacializantes como direita e esquerda, frente e verso, alto e baixo, dentre outras
metforas de espao que podem contribuir na compreenso de certas concepes religiosas do
universo afro-brasileiro, vejamos como estes aspectos tericos se aplicam na prtica.
Tuan esquematizou uma srie de valores espaciais356 pensando-os a partir do corpo
e como estes valores se aplicam nas relaes individual e coletiva, social e poltica, econmica
e cultural. O autor analisa as categorias de alto-baixo para exemplificar uma relao de poder,
esses opostos produzem duas noes de mundo357: o primeiro, interpretado como algo que
sugere afirmao, segurana e altivez; j o segundo, transmite uma mensagem de submisso e
resignao. Observando as estruturas dos templos afro-brasileiros em algumas cidades do
Serid, nos deparamos com arranjos muito simples, sendo a grande maioria residncias
utilizadas como espao religioso abrigando homens e entidades espirituais. No h placas,
letreiros ou outras referncias visuais que indiquem que ali existe um templo religioso. Em
contrapartida, os templos de outras denominaes religiosas na mesma regio, so construes
mais imponentes e esto edificadas em espaos privilegiados no que diz respeito de sua
localizao, o que lhes garante maior visibilidade em relao aos terreiros. No se trata de uma
regra, h casas de catimb situadas em outros bairros considerados de boa localizao, mas
ainda assim, os terreiros tm pouca evidncia.
No estamos encarando este fato como uma disputa para definir quem possui o melhor
espao arquitetnico no nossa inteno alm de que, esta parece ser uma discusso pouco
interessante aos pais e mes de santo ou mestres do catimb. Todavia, observamos que a
disposio espacial que estes templos possuem hodiernamente fruto de um processo histrico
que tratou de marginalizar os cultos afro-brasileiros, em detrimento a hegemonia gozada pelo
catolicismo e posteriormente por outras designaes crists. Aliado a este processo, a
localizao espacial de muitas denominaes evanglicas e neopentecostais, foi um dos fatores
decisivos para o seu sucesso como empresa religiosa, cujo objetivo atender as demandas de
uma sociedade cada vez mais imediatista. A dinmica socioeconmica acabou inserindo muitas
igrejas em um sistema mercadolgico, onde os servios mgico-religiosos so vendidos aos
mais diferentes tipos de clientes que buscam de solues rpidas e eficazes para os problemas
354
SENNETT, 2003, p. 94.
355
TUAN, op. cit. p. 39
356
Ibidem, p. 42.
357
Ibidem, p. 42.
132
cotidianos, como sade, xito financeiro e questes amorosas. Neste sentido, vende mais
quem tem as melhores estratgias, e a localizao espacial , sem dvida um item preponderante
para o sucesso do empreendimento.
As dades alto-baixo, direita-esquerda para analisar alguns aspectos da ritualstica
afro-brasileira, so metforas de espao presentes em sua cosmologia. Uma das expresses mais
recorrentes no vocabulrio afro-brasileiro diz respeito a uma dessas metforas. Costuma-se
dizer que a possesso acontece quando uma entidade baixa no mdium. Nesse sentido, parte-
se do pressuposto de que se o esprito baixou, supostamente, este teria vindo de cima, o
que nos leva a outro questionamento: o mundo dos espritos se localiza acima deste mundo?
Grande parte das religies medinicas e espiritualistas concebe a ideia de planos
superiores, onde habitariam os espritos, deuses e divindades. Todavia, o termo superior
pode ser pensado a partir de duas frentes: a primeira, como sinnimo de evoluo os espritos
que l habitam estariam mais evoludos que os encarnados; a segunda, vai no sentido da
localizao geogrfica-espacial, o mundo do alm estaria acima deste mundo fsico. A grande
maioria das religies parece crer na existncia de um espao astral para onde vo as almas dos
mortos, porm, no h unanimidade quanto a da localizao espacial. O catimb, por exemplo,
considerada uma religio com bases crists, situa os seus vrios mundos, prximos dos seres
humanos; a ideia de plano superior aplicada em relao ao nvel dos espritos que abrigam
esses espaos.
O transe de possesso demonstra outro exemplo da relao alto-baixo. A postura
ereta dos caboclos os caracterizam como entidades altivas, velozes e proativas, o corpo do
mdium aparenta certa robustez e os gestos emitidos por ele parecem indicar ordem. Por outro
lado, v-se os mdiuns possudos pelos espritos dos preto-velhos apresentarem uma posio
reclinada indicando cansao e resignao, seus movimentos so frgeis e moderados. Outra
referncia ao alto-baixo pode ser observada na forma como os caboclos danam, embora no
seja uma regra e aqui no existe nenhuma tentativa de enquadramento e generalizao, mas
alguns estudiosos do corpo e da dana nas religies afro-brasileiras358, observam que os
caboclos falangeiros de Ians (relacionada aos ventos e tempestades) expressam gestos que
apontam para cima e movimentam-se para o alto. J os caboclos de Omulu/Obalua (orix que
domina o espao do cemitrio) apresentam coreografias em planos mais baixos.
As noes de direita-esquerda 359
extradas da poltica, enriquecidos por uma
bagagem axiolgica multifacetada adquirida atravs dos sucessivos contextos histricos e
358
ROSA, 2009.
359
BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda. Razes e significados de uma distino poltica. So Paulo: UNESP,
1995.
133
Gente, fechamos agora os trabalhos com os caboclos com esse toque muito
bonito; agora ns vamos comear os trabalhos com o outro lado. Peo que
todos estejam concentrados, porque o povo que vem agora um povo muito
poderoso, mas muito perigoso tambm. A gente tem que t concentrado e
pensar s em coisas boas.363
Wilton utiliza de uma metfora espacial para estabelecer uma suposta diviso entre os
rituais. O outro lado a que o babalorix se refere a esquerda, segundo ele, composta por
um povo muito perigoso. Pensando a relao diacrnica entre a direita-esquerda Tuan
afirma que,
360
QUADROS e MADEIRA, 2010, p. 184.
361
PRANDI, 2001.
362
Ibidem, p. 4
363
WILTON, Jos. Babalorix do Il Ax Oxum Ox - Oxssi Congobira, em sesso que assistimos aconteceu no
dia 25 de agosto de 2013, em Currais Novos-RN.
364
TUAN, op. cit. p. 49.
134
Ele Tertuliano
morador dos Afogados
Na direita ele bonzinho
Na esquerda ele malvado.365
365
BURGOS e PORDEUS, op. cit., p. 137.
366
JONAS, Pai. In: SANTIAGO, Idalina Maria Freitas Lima. A jurema sagrada da Paraba. Qualitas. Revista
Eletrnica. ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano 2008, p. 8.
367
SANTIAGO, Idalina Maria Freitas Lima. A jurema sagrada da Paraba. Qualitas. Revista Eletrnica. ISSN
1677-4280 V7.n.1. Ano 2008, p. 8-9.
135
368
BOURDIEU, Pierre. Ce que parle veut dire. Paris: Fayard, 1982, p. 135 in: PESAVENTO, Sandra. Em
busca de uma outra histria: imaginando o imaginrio. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 15, n 29,
1995, p. 15.
369
TUAN, op. cit. p. 46.
136
4 CONSIDERAES FINAIS
370
TEIXEIRA, op. cit, p. 173.
371
Ibidem, p. 36
137
menor grau) relaes de poder estabelecidas dentro do cosmo afro-brasileiro, como se observa
na disposio organizacional do peji (mesa e cong), atravs do lugar que cada imagem ocupa
nestes altares. O quarto do santo e o quarto da jurema constituem demarcaes espaciais
fsicas, mas tambm expressam uma fronteira simblica entre os orixs e os mestres e suas
respectivas formas de atuao.
Quando nos aproximamos de Andreotti e de seu conceito de paisagem cultural,
procuramos evidenciar a dimenso ntima, espiritual e psicolgica372 que os homens atribuem
ao espao. Guiados pelas consideraes desta autora, discutimos acerca do que chamamos de
espaos da natureza e as paisagens do sagrado, a fim de demonstrar como os adeptos das
religies afro-brasileiras enxergam determinadas espacialidades: o mar, as estradas, a mata,
dentre outras mais consideradas sagradas por conter a fora o ax dos orixs e voduns.
Ao discutirmos o papel do corpo, observamo-lo como uma categoria espacial,
pensando-o a partir das consideraes de Tuan e Mauss: o corpo um espao que ganha sentido
e significado por meio das experincias que este proporciona. O corpo um espao construdo,
a porta e o portal que liga o homem aos espritos. medida em que este instrumento passa a
ser usado no contexto religioso, torna-se um dispositivo coletivo que presta servios
comunidade religiosa. As expresses e as gestualidades so fundamentais para performance
corporal do mdium na encenao religiosa. Aliado msica danada pelas entidades no
ritmo dos atabaques, a marcao das palmas, a cadncia dos maracs, os cnticos animadamente
entoados pelos crentes, a linguagem e a forma descontrada com a quais se apresentam as
entidades fazem do espao-corpo um sacrrio. O corpo fala, transmite, interpreta e encarna as
personagens mticas do cosmo religioso afro-brasileiro. Nesse sentido, o mdium visto como
possuidor de um lugar sagrado ocupado temporariamente pelas entidades espirituais.
Os conceitos de imaginrio posto por Pesavento e o de mstica pensado por Frei
Betto e Leonardo Boff, foram essenciais para desenvolvermos nossas consideraes sobre os
espaos mticos da jurema. Procuramos ao longo do terceiro captulo apresentar minimamente
os elementos simblicos elencados na construo imagtico-discursiva das cidades
encantadas. Observamos que em grande medida, este processo criativo reflete a dimenso
sociocultural na qual os homens esto inseridos. Ressignificados, as imagens e os smbolos
serviro para compor o cosmo juremeiro. Dos encantos provm a fora mgico-religiosa dos
mestres espirituais, sua sabedoria e seu modus operandi. Representam tambm a crena na
continuidade da vida em um alm que independente de sua localizao espacial (geogrfica e
mtica): est acessvel e transitvel. Sueleide, uma de nossas entrevistadas afirmou que os
372
ANDREOTTI, 2008, p. 24.
138
encantos esto aqui, sobre ns, ao nosso redor373, observamos que estes espaos imaginados
tornam-se materializados por meio dos copos e taas as vidncias. O complexo mundo
encantado dos mestres e mestras espirituais representado diante dos nossos olhos por
intermdio de estruturas relativamente simples.
Em suma, observamos que os mecanismos que compem a construo dos espaos e
das espacialidades exigem o entrecruzamento de elementos sensveis que perpassam a
dimenso fsica e racional e adentram o mbito psicolgico. Esperamos ter minimamente
alcanado os objetivos aos quais nos propomos nesta pesquisa. Estamos cientes acerca das
limitaes e insuficincias deste estudo, sabendo tambm que muitas destas falhas passaram
despercebidas a quem escreve. Por este motivo, buscamos estar apoiados em outros autores a
fim de que os lapsos conceituais e metodolgicos fossem reduzidos. Desejamos que, de alguma
forma, este estudo venha a contribuir para outras pesquisas. As lacunas deste trabalho podem e
devem ser preenchidas com outras consideraes e apontamentos.
Concordamos totalmente com Weber374 quando afirma que um mesmo objeto terico
pode ser analisado por diferentes prismas, cientes da importncia das manifestaes religiosas
como objeto histrico e ferramenta til para compreender as relaes do homem com o espao
e pretendemos seguir tecendo consideraes profcuas acerca da espacialidade do terreiro e
continuar atentos para as subjetividades que este lugar desperta: eis um dos nossos objetivos
com esta pesquisa.
373
MEDEIROS Sueleide Oliveira de. Entrevista realizada no IX Kipupa Malunguinho Coco na Mata do
Catuc em Abreu e Lima PE, 28 de setembro de 2014.
374
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