Walter Benjamin - Kafka
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Traduo e introduo de
Ernesto Sampaio
H I E N A E D I T O R A
Apartado 2481
1112 LISBOA CODEX
T tulo do original
KAFKA
Autor
WALTER BENJAMIN
Tradu o de
ERNESTO SAMPAIO
Capa de
AUGUSTO T. DIAS
Suhrtamp verlag
I Com fora
I 7
I
1
Esta sombra profunda que Victor Hugo
Adorno, editor de alguns dos principais associa s multides em Les Orientales so
escritos benjaminianos, dir na primeira intro brenatural e monstruosa, daquela espcie de
duo recolha que deles fez: Era inteno de mbito onde reina a demncia que Benjamin
Benjamin renunciar a qualquer forma de inter
diz ser o da massificao, o da reijicao dos
pretao manifesta e deixar que as significaes indiv duos integrados sem saber como nos novos
viessem luz por meio da montagem chocante do esquemas de produo e consumo da sociedade
material. Para coroar o seu anti- subjectivismo, ia industrial. Vem da o interesse do escritor pela
fazer com que a sua obra capital consistisse fotografia, a gravura, a difuso dos jornais, o
unicamente em citaes . cinema, enfim, por todos os produtos reproduz
if Essa obra seria Das Passagenwerk ( Obra
das Passagens ou Livro das Galerias ) e
veis; caracter sticos de uma poca marcada pela
cadoria da grande cidade e a arte se submetia ao aqui, consistiria na transmutao da aura das
servio do comrcio. Tratava-se de um grandepro- antigas obras de arte ( do per odo pr-industrial)
jecto: iluminar a construo histrico-filosfica numa nova espcie de sacralizao, conferida aos
do sculo XIX, mostrar o nascimento da socie produtos culturais pela sua entrada no mercado
dade industrial, da mecanizao, do capitalismo ( como mercadorias). Sem a patina da vetustez,
selvagem, da repercusso nos gestos humanos da sem a aura do refinamento e sem o seu primitivo
passagem do artesanato produo em srie. O valor mgico, diz-nos Benjamin que os produtos
flneur o protagonista da tragicomdia que se art sticos perderam o peso histrico da singula
representa nas passagens : a do isolamento ridade, mas ganharam um novo tipo de unicidade:
insens vel de cada um nos seus interesses o que lhes advm, por um lado, da quantidade de
privados , como disse Engels, ou a do prazer de consumidores, e por outro lado do preo por que
fazer parte de multides, expresso misteriosa do so cotados no mercado, sendo estas as duas for
gozo que a multiplicao proporciona , como mas de escapar ao anonimato onde se dissolvem
escreveu Baudelaire. grandes quantidades de produtos de cultura que
congestionam o mundo das relaes sociais.
r La nuit avec la foule, en ce rve hideux,
Venait, spaississant ensemble toutes deux,
Balzac foi o primeiro a falar das ru nas da
burguesia. O desenvolvimento das foras pro
Et, dans ces rgions que nul regard ne sonde, dutivas destruiu os sonhos e as iluses do sculo
Plus 1homme tait nombreux, plus 1 ombre tait passado, ainda antes de se terem desmoronado os
profonde monumentos que a representavam , escreveu Ben-
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r jamin nutn dos seus brilhantes fragmentos. Nestas
palavras, Hegel ressoa como um eco: Com a crise
drama barroco alemo, talvez o exemplo mais
revelador. O prprio Benjamin tambm foi sub
sumado o universo da filosofia. Supomos que foi tos por aqueles. A leitura do pensamento de
essa inimizade com a filosofia que lhe permitiu Walter Benjamin, ao mesmo tempo testemunho e
uma concentrao to intensa na obra de um ilustrao de uma vida que adquiriu conscien
do comentador nelas descortina. O modelo de vel e imperiosa soberania. Jorge Luis Borges disse
% Winckelmann esquartejando o torso do Hrcules que duas ideias duas obsesses dominavam
de Belvedere e descrevendo-o pedao a pedao, a obra de Kafka: A subordinao a primeira; o
invocado por Benjamin no seu estudo sobre o infinito, a segunda . Entre os dois extremos, est
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;
If I a realidade, de que o poeta nunca conseguiu concentra. Como escreve Elias Canetti, no pre
separarse completamente: h sempre uma base fcio edio das Cartas a Felice; ...temendo o
que infelizmente no pode desligarse da terra . poder sob todas as suas formas, o verdadeiro
A este pequeno judeu tiranizado pelo pai, objectivo da sua vida consistiu em evit-lo
parecia-lhe mais importante compreender a exis
igualmente sob todas as formas, pressentindo-o,
tncia do que simplesmente viver. Nisso um s mil descobrindo-o, nomeando-o e representando-o em
do animal do seu conto O Covil, a quem os breves toda a parte onde os outros no se apercebem
contados com o ar livre da floresta do uma per- dele .
cepo da realidade que reduz a sonhos ou a som
Sobre o mundo da Kafka, sem nenhuma pro
bras as criaes do seu prprio esp rito: Pa
vidncia que lhe valesse, pairava um insondvel
rece-me que tenho a faculdade, no s de ver os poder de destruio. Inventando um universo de
fantasmas nocturnos no indefeso e voluptuoso sonhos e vises, Kafka criava a serenidade que na
abandono do sono, mas tambm, e ao mesmo terra lhe er recusada. Vivia dentro do seu ego
tempo, na realidade, onde os topo com toda a como no interior de uma priso, mas s ali podia
lucidez de um esp rito bem desperto e sereno . observar o pulsar da vida, sabendo que o envio de
ft Kafka no venceu a realidade vivendo-a ou
substituindo-a por uma construo solipsista e
sinais de priso em priso implica deformaes
inelut veis e que pretender fundar um sistema
demi rgica. No se pode retirar da sua obra filosfico a partir desses sinais pura e simples
nenhum sentimento edificante. A parbola da Lei loucura.
como m tica verdade metaf sica ( arbitrariamente No h em Kafka qualquer esperana de
decretada por Deus), invocada pelo padre em O redeno, antes ou depois da morte, e a lei, pre
Prqcesso, ironicamente reduzida por Kafka sena incontorn vel, uma ameaa cont nua e
categoria de fbula, de mentira, de mitologia de angustiante. Para ele, a burocracia no se limita a
mistificao social , como assinalou Michel sufocar o mundo e a tornar a realidade espectral:
Carrouges. existe uma burocracia celeste que exclui toda a
A grandeza do autor de O Castelo deve-se em esperana de libertao. Alguns comentadores
boa parte indissol vel unidade do homem e da observaram um paralelo entre os processos
obra, ambos marcados pela mesma e dupla pro
ritualistas da companhia de seguros onde Kafka
blemtica: por um lado, uma inaptido total a trabalhava e o comportamento impenetr vel dos
estar no mundo; pelo outro, a rejeio de todo o burocratas. Concebidos para garantir a impar
poder, fosse qual fosse. A luta contra o pai j era cialidade, os processos da administrao imperial
uma forma da luta contra um poder superior. A de Francisco Jos so transformados por Kafka
luta contra a noiva, o eterno adiamento do em s mbolo da burocracia e da sua meticulosidade
casamento obedece mesma motivao, j que, a man aca. Kafka descreve a vida como um ritual
partir do pai, na fam lia inteira que o seu dio se cujas obrigaes permanecem desconhecidas dos
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L.
II
participantes, onde qualquer evangelho de es seduzir Walter Benjamim ant tese do flneur
perana no passa de mais uma iluso inventada baudelairiano, o heri kafkiano vagueia no meio
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" por um demiurgo impenetr vel, espcie de deus dos seus concidados como um anjo ca do ou um
irm o gmeo do diabo, que faz as almas etreas e exilado clandestino; o seu ritmo de vida no cor
por outro lado, uma caracter stica comum comunista, notou-o com subtil perspiccia: O
maioria dos escritores alemes que escreveram em director bancrio Joseph K preso na presena
III Praga ou sobre Praga, assim como a ironia com
que se consideram a si prprios, deixando entrever
dos seus subordinados. Ora essa presena s tem
significado se prestarmos ateno aos seus
um verdadeiro dio ao eu, reflexo prov vel da nomes... O alemo Rabensteiner, o checo Kullich e
desiluso mrbida causada pela atrofia das o judeu Kaminer representam a populao de
II energias criadoras da velha ustria, num sen
timento que perdurou na parte alem de Praga
Praga. Joseph K preso urbi e orbi.
S
| mesmo depois do Imprio se haver desfeito.
Nenhuma outra cidade suscitou, entre os seus
escritores, tantas e to veementes condenaes da
Ernesto Sampaio
Outubro de 1987
criao e do criador. Neste aspecto, o gnosticismo
de Praga contrastava com o compromisso moral e
pol tico dos intelectuais hngaros em relao ao
seu mundo e ao seu tempo, e tambm nada tinha a
i ver com o esteticismo de Viena. Apesar do flirt que
mantinham com a morte, os escritores da J vem
Viena nunca formularam cosmogonias para jus
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Potemkin
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^onta-se que Potemkin sofria de depresses
^ intermitentes, regularmente intervaladas,
durante as quais n o tolerava a aproximao de
ningum, ficando proibida em absoluto a entrada
nos seus aposentos. Na corte, nunca se falava deste
morbo: qualquer coment rio ou alus o enfer
midade de Potemkin desagradava Imperatriz
Catarina. Uma das depresses do Chanceler durou
mais do que era costume e causou srios incon
venientes: nas secretrias dos ministros acumu
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II I
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selheiros, que nada tinham a perder, acederam ao ligeiramente e depis fica de mos vazias, o K. de
|i: seu pedido, e Chuvalkin, com o mao de documen
tos debaixo do brao, atravessou galerias e cor
Kafka Mas Potemkin, que descuidado e sonolento
leva uma vida crepuscular num lugar afastado e
redores e encaminhou-se para o quarto de proibido, um antepassado desses poderosos que,
Potemkin. Sem bater nem se deter, ps a mo no em Kafka, so ju zes ou secret rios habitantes de
puxador a porta no estava fechada. Na penumbra, trapeiras e desvos; por mais alto que se encon
avistou Potemkin sentado na cama, envolto num trem, esto sempre em decadncia, em queda, mas
roupo desbotado, a roer as unhas. Chuvalkin em compensao podem aparecer de imprevisto,
aproximou-se da secretria, molhou a pena no tin em pessoa ou atravs dos seus representantes mais
111 teiro e, sem dizer palavra, tirou um documento ao
acaso, colocou-o sobre os joelhos de Potemkin e
nfimos e desprez veis porteiros, funcion rios
decr pitos , em toda a plenitude dos seus
meteu-lhe a caneta na mo. Depois de ter lanado poderes. Em que pensam? Sero porventura
um olhar ausente ao intruso, Potemkin, como num ep gonos dos Atlantes que sustentam o mundo
sonho, assinou maquinalmente, sem os ver, todos sobre a nuca? acaso por isso que mantm a
os documentos que o copista lhe ps a frente. Este, cabea to profundamente enfiada no peito que
quando teve na mo o ltimo, afastou-se sem quase no se lhes podem ver os olhos, como o cas-
cerimnias, tal como tinha chegado, com o seu telo no seu retrato ou Klamm quando fica
dossier debaixo do brao. Com os documentos ao sozinho? Contudo, o que sustentam no o mundo:
alto, num gesto de triunfo, Chuvalkin entrou na o quotidiano, to pesado como o globo terrestre;
antec mara e todos os conselheiros se precipitaram O seu cansao o do gladiador depois da luta;
ao seu encontro, arrancando-lhe os papis das consagra-se ao trabalho de caiar uma parede da
mos. Contendo a respirao, inclinaram-se sobre sala dos funcion rios! Georg Luk cs disse uma
os documentos: ningum disse palavra; todos vez que s algum com o g nio arquitectnico de
ficaram petrificados. Novamente Chuvalkin se um Miguel ngelo seria hoje capaz de fazer mesas
aproximou, novamente se informou com solicitude decentes. Assim como Lukcs pensa em termos de
sobre as causas da consternao geral. Ento tam pocas, Kafka pensa em termos de eras. O homem,
b m os seus olhos viram a assinatura que rematava no acto de caiar, desloca eras inteiras. Arrasta- as
todos os pap is, um aps outro: Chuvalkin, sempre que efecta o m nimo gesto.
Chuvalkin, Chuvalkin... Esses poderosos aparecem-nos em movimento
IfI,
Esta histria como um arauto que anuncia
com dois sculos de antecipao a obra de Kafka.
O enigma que nela se concentra o mesmo de
lento e constante de ascenso ou queda, mas jamais
so to tem veis do que ao emergir da ltima das
abjeces: a dos pais. O filho procura acalmar o seu
! Iff Kafka. O mundo das chancelarias, das reparties, velho, obtuso e pueril, a quem acaba de meter na
dos quartos escuros, gastos e h midos o mundo de cama. Sossega, ests bem tapado. No! ,
Kafka. O solicito Chuvalkin, que toma tudo gritou o pai, e sem lhe dar tempo a uma resposta
II Ilf 20 - 21 -
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destapou-se com tal impulso que por um momento humanidade de que se nutre esta raa Nas
o cobertor ficou suspenso no ar a todo o com estranhas fam lias de Kafka, o pai vive do filho e
primento, antes de cair aos ps da cama. Querias pesa sobre ele como um grande parasita. N o con
tapar- me, amorzinho, mas ainda no estou tapado. some apenas as foras do filho: suga- lhe tambm o
Mesmo que nisso esgote o meu ltimo alento, n o seu direito existncia. O pai ao mesmo tempo o
!
i te deixo tapar- me, no tens fora para tanto. Um juiz e o acusador. O pecado de que acusa o filho
pai no precisa felizmente que lhe ensinem a ler na parece uma espcie de pecado original. Na ver
alma do filho. E assim ficou, dando golpes no ar dade, ningu m mais do que o filho pode ver- se
com as pernas. Resplandecia de perspiccia... At envolvido na verso que Kafka deu do pecado
agora s sabias o que havia em ti; ficas a saber que original: A culpa original, o antigo erro cometido
h no mundo coisas que te excedem. Eras pelo homem, consiste no protesto contra o mal que
ill ! realmente um pequenito inocente, mas mais lhe foi feito. O homem n o desiste de reivindicar
realmente ainda s uma criatura diablica! Ao que o pecado original foi cometido contra si pr
libertar-se do peso do cobertor, o pai liberta-se de prio. Mas quem o acusado desta culpa
um peso csmico. Para reanimar e tomar outra vez
heredit ria o pecado de ter engendrado um filho
fecunda a antiqu ssima relao pai-filho, pe em se no o pai? A acusao, contudo, inculpa tam
movimento eras csmicas. Relao fecunda? Con bm o filho, embora no seja l cito deduzir das afir
dena o filho a morte por asfixia. O pai aquele que maes de Kafka a culpabilidade da acusao pelo
castiga. A culpa, como aos funcionrios do facto de ser falsa. Kafka nunca diz que se trata de
tribunal, atrai-o. Muitos sinais induzem- nos a pen
uma culpa infundada. O que se debate aqui um
sar que para Kafka, o mundo dos funcionrios e o processo sem fim, e no poderia cair pior luz sobre
dos pais o mesmo. A semelhana n o os honra: uma causa do que aquela que recai sobre a
partilham o tdio, a degradao e a sujidade. A ves solidariedade que o pai exige destes funcionrios,
timenta do pai est de alto a baixo coberta de destes tribunais. Neles, o pior no a venalidade
ndoas, assim como falta asseio a sua roupa sem limites, j que, dada a sua natureza, a
!?
interior. A porcaria o elemento vital dos fun venalidade ainda a nica esperana que a
cion rios. No conseguia sequer compreender o humanidade pode alimentar a seu respeito. Os
significado das idas e vindas das partes em lit gio. tribunais possuem cdigos, mas ningum os co
'
'
Andam a s para sujar as escadas , dissera-
-lhe uma vez um funcionrio, talvez encolerizado
nhece. Faz parte deste sistema que se seja con
denado n o s sem culpa formada, mas tambm
mas esta resposta parecera-lhe evidente . A sem o saber , pensa K Na pr- histria, as leis e as
sujidade a tal ponto atributo dos funcionrios que normas definidas permanecem como leis n o
quase poderiam ser considerados como parasitas escritas. O homem pode viol-las sem saber,
gigantescos. Isto no se refere naturalmente s incorrendo assim no castigo. Apesar da crueldade
relaes econmicas, mas s foras da razo e da com que pode ferir algum que no o espera, o cas-
1* 1 22 23
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Administrao devem ter outras propriedades em feitamente com o fragmento de uma conversa
comum com as raparigas . A mais destacada a de
referida por Max Brod. Recordo diz ele um
se prestar a tudo, como as t midas meninas que dilogo com Kafka cujo ponto de partida era a
tropeam em K. no Castelo e no Processo , e que s Europa actual e a decad ncia da humanidade:
abandonam lux ria no seio da fam lia como se
estivessem na cama. Atravessam-se no caminho de
somos murmurou em dado passo pensamen
tos nihilistas, ideias de suic dio , que afloramji
K a todo o momento, o resto apresenta to mente de Deus. Respondi que no, que o nosso
poucas dificuldades como a conquista da mooila mundo era apenas um momento de mau- humor de
da cantina. Abraaram-se, o corpo rolio ardia Deus, um mau dia, e que deveria haver esperana
nas mos de K.; num espasmo a que procurava fora do mundo que conhecemos. Kafka sorriu:
incessantemente, mas em v o, furtar- se, rolaram muita esperana, sem d vida, infinita esperana,
pelo cho at embater levemente na porta de mas n o para ns . Estas palavras aludem s
Klamm; ali ficaram, entre charcos de cerveja e ou- nicas personagens de Kafka, sa das do seio da
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! !"
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fam lia, para quem talvez haja esperana. N o s o modo que na penunbra n o se via no seu cantinho
i os animais, nem esses mutantes ou seres imagin mais do que um enorme novelo. Para eles e para
rios como o cordeiro-gato ou Odradek, que tambm os seus semelhantes, os embrion rios, os tontos, os
vivem sombra da fam lia No por acaso que inaptos, existe a esperana.
Gregorio Samsa acorda transformado em insecto
I precisamente em cas de seus pais, e to- pouco
por acaso que o estranho animal meio gato, meio
Na liberdade e desenvoltura das ocupaes de
tais mensageiros transparece, de forma mais
cordeiro prov m da herana paterna ; Odrdek, pesada e obscura, a lei do mundo de todas estas
loucos que vivem naquela cidade do sul e nunca se cipio de qualquer longa tarefa. N o se pode sequer
cansam. A sua existncia crepuscular evoca a luz falar de ordens ou hierarquias. O mundo do mito
incerta que ilumina debilmente as personagens dos convidaria a faz-lo, mas esse mundo infinita
contos curtos de Martin Walser, autor da novela O mente mais jovem que o mundo de Kafka, a quem o
ajudante e admirado por Kafka. As sagas indianas mito prometeu j a redeno. A este respeito
tm os gandharva, criaturas embrionarias, seres em sabemos apenas que Franz Kafka no cedeu a essa
estado nebuloso. Ao seu tipo pertencem os ajudan quimera. Novo Ulissses, com os olhos fixos no
tes de Kafka, que no correspondem mas tam horizonte, deixou que as sereias desaparecessem
bm no s o estranhos a nenhum dos outros literalmente face sua resoluo; justamente
quando mais prximas estavam, ele j nada sabia
ambientes ou esferas: trata- se de mensageiros que
estabelecem a comunicao entre os v rios grupos. delas . Entre os antepassados que Kafka se atribui
Assemelham- se, como Kafka indica, a Barnab, e na antiguidade, contam-se os judeus e os chineses,
Bamab um mensageiro. Ainda n o sa ram por mas no devemos esquecer este grego. Ulisses
completo do seio da natureza e por isso acomoda encontra-se no limite que separa o mito da f bula.
ram-se no cho, a um canto, sobre dois vestidos de Razo e ast cia introduziram no mito as suas
mulher... Toda a sua ambio... consistia em artimanhas; os seus poderes j no so invenc veis.
I ocupar o menor espao poss vel; fizeram v rias ten
A fbula a recordao da vitria sobre esses
tativas com esse fito, sempre acompanhadas de poderes. E Kafka, quando se props escrever len
risos e murm rios, entrecruzando braos e pernas, das, escreveu f bulas para dialcticos. Introduziu-
metendo-se literalmente um dentro do outro, de -lhes pequenos truques, a fim de obter a prova de
26 27
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L.
I) que at meios insuficientes e pueris podem cent,
duzir salvao. com estas palavras que
apresenta a narrativa O Silncio das Sereias, onde
com a sua decorao, as suas palmeiras, os seus
cavaletes e arabescos, se encontravam a meio
caminho entre a c mara de torturas e a sala do
elas efectivamente se calam; possuem uma arma trono. No retrato, apertado num fatinho estreito,
mais terr vel do que o canto... O seu silncio. E quase humilhante, sobrecarregado de bordados, um
recorreram a essa arma junto de Ulisses. Mas este, menino com cerca de seis anos destaca-se sobre um
narra Kafka, era to astucioso, to subtil que nem fundo de r gidas palmeiras. Como se houvesse a ,
sequer a ideia de destino lhe podia penetrar o ideia de tornar mais quentes e sufocantes aqueles
esp rito. Talvez se tenha apercebido, embora o trpicos de fantasia, o menino tem sua esquerda
fenmeno nos parea execeder a inteligncia um grande chap u de abas largas, como os dos
humana, que as sereias se calavam; a comdia que espanhis. Uns olhos infinitamente tristes sobre
lhes ops ( s sereias e aos deuses) serviu- lhe pem-se paisagem que lhes foi destinada e a
apenas de escudo. cavidade de uma grande orelha aparece escu
'
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29 -
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II
perde-a para sempre! Quem pensa no seu futuro f cio tem sido classicamente encarnado, apaga
connosco que deve estar! Todos so benvindos! todas as poss veis particularidades de carcter. O
Quem quiser ser artista, no falte! O nosso Teatro que distingue o homem chins algo diferente do
tem empregos para toda a gente, cada um no seu carcter uma pureza de sentimentos elementar .
lugar! No percam tempo! Partam para Clayton! Por mais que isso possa explicar- se teoricamente
Depois da meia noite no se admite mais ningum!
Ai de quem no acreditar em ns! O leitor deste
a pureza de sentimentos talvez seja um equil brio
excepcionalmente refinado do comportamento
I
an ncio Karl Rossmann, a terceira e mais feliz
encarnao do K. heri das novelas de Kafka. A
m mico , a verdade que o teatro natural de
Oklahoma nos encaminha para o teatro chins, que
felicidade espera-o no teatro natural de Oklahoma, um teatro de m mica Uma das funes mais
que um verdadeiro hipdromo, assim como a importantes deste teatro natural consiste em
infelicidade o invadira, certa ocasio, sobre o transformar o acontecer em gesto. poss vel ir
pequeno tapete do seu quarto, onde corria em mais alm e sustentar que toda uma s rie de estudos
c rculo como num hipdromo. Desde que e histrias menores de Kafka s ficam plenamente
escrevera as suas consideraes para uso dos iluminadas .se as relacionarmos, por assim dizer
cavalerios e tinha feito subir as escadas do como documentos, com o teatro natural de
tribunal ao novo advogado, levantando as ancas, Oklahoma . S assim se pode descobrir que toda a
com passos ressonantes sobre o m rmore, ou dando obra de Kafka representa um cdigo de gestos que
grandes saltos e de braos cruzados, fizera trotar no priori no possuem para o autor um claro
campo os seus Rapazes na estrada real, a figura do significado simblico, constituindo antes interroga
hipdromo era-lhe familiar. Na pr tica, pode acon es que se expressam atravs de jogos e com
tecer at a Karl Rossmann dar em estado de binaes sempre renovadas. O teatro a sede
sonol ncia, por distraco, saltos demasiado altos, natural destas experi ncias. Num comentrio
com uma intil perda de tempo. Assim, o lugar indito a Fratric dio , Werner Kraft decifrou
onde alcana a meta dos seus desejos s podia ser agudamente o desenvolvimento desta histria como
um hipdromo. acontecer cnico: A representao pode comear
Este hipdromo ao mesmo tempo um teatro e e efectivamente anunciada pelo vibrar de uma
isto constitui um enigma. Mas o lugar enigmtico e campainha. O som produz-se da forma mais natural
a figura clara e transparente de Karl Rossmann logo que Wese sai da casa onde se encontra o seu
encontram-se estreitamente ligados. Transparente, escritrio. Mas diz-se expressamente que, por
puro, talvez frouxo de carcter, -o com efeito Karl demasiado sonora, por se difundir sobre a cidade e
Rossmann, e -o no sentido em que Franz subir at ao cu, essa campainha no apenas a de
b) Rosenzweig, no seu livro Stern der Erlosung , diz uma porta . Assim como o som da campainha
que na China o homem interior se acha privado de ultrapassa a porta e sobe at ao c u, assim os gestos
carcter, o conceito de s bio, tal como desde Con- das personagens de Kafka so demasiado fortes
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para o seu ambiente e irrompem num espao mais -a sobre a palma da mo e, erguendo-a, colocou- a
vasto. medida que foi aumentando a sua mestria diante dos olhos dos dois. Ao fazer isto, no pen
estil stica, Kafka foi renunciando progressivamente sava em nada de determinado: agia apenas sob a
a explicar tais gestos, a adapt-los a situaes nor impress o de que tinha de cumprir aquele gesto um
mais. uma mania curiosa
diz-se em A
Metamorfose essa de se sentar na secretaria e l
dia, se conseguisse terminar o grande memorial que
o libertaria da acusao. Este gesto, tal como o
de cima falar ao empregado, o qual, surdo como , gesto animal, une oT mais simples ao mais
tem de colocar-se- lhe debaixo do nariz . J O Pro enigm tico. poss vel mergulhar nas histrias de
cesso omitira claramente todas as explicaes para animais de Kafka e ler-lhes pginas e pginas sem
situaes como esta. No pen ltimo cap tulo, K. descobrir que afinal no de homens que se trata.
detem-se junto dos primeiros bancos da igreja,
mas a distncia pareceu ainda excessiva ao sacer
Quando depara com o nome do protagonista
macaco, o co ou o rato , o leitor ergue os olhos
o
dote, o qual ergueu a mo e com o indicador espantado e descobre que se encontra j muito
apontou-lhe um s tio mesmo debaixo do plpito. K. longe do continente do homem. Kafka, contudo,
obedeceu, mas daquele lugar era obrigado e sempre assim: retira ao gesto do homem os seus
inclinar a cabea para trs a fim de poder ver o alicerces tradicionais e desse modo consegue um
padre . objecto para reflexes sem fim.
Max Brod diz: Invis vel era o mundo dos fac Estas reflexes s o singularmente inter
tos que contavam para ele, mas o certo que para minveis, mesmo quando tm origem nas histrias
Kafka era o gesto o mais invis vel de todos. Cada simblicas de Kafka. Pense-se na par bola Perante
gesto um acontecimento e quase se poderia dizer a lei. O leitor que a encontrou em O mdico rural
um drama A cena onde este drama se desenrola o tocou talvez o ponto nebuloso no seu interior, mas
Teatro do Mundo e o seu pano de fundo o cu. no teria sequer sonhado com a srie intermin vel
Este c u, porm, s um ciclorama investigar a de consideraes que surgem desta parbola
sua lei seria o mesmo que querer pendurar um quando Kafka se demora a explicar- lha. Em O Pro
cen rio numa galeria de quadros. Como Greco, cesso , isso acontece por intermdio do sacerdote e
Kafka abre o c u a cada gesto, mas tambm como to notrio que se poderia pensar que a novela no
em Greco que era o santo patrono dos expressio-
nistas , o elemento decisivo, o fulcro da questo
mais do que a par bola desenvolvida. O verbo
desenvolver, no entanto, possui um duplo sen
continua a ser o gesto. Quem ouviu a pancada no tido. A flor o resultado de um desenvolvimento
porto, caminha encurvado pelo terror. Assim re diferente do barco de papel que se ensina a fazer s
presentada o terror um actor chins e ningum se crianas e se desdobra numa folha lisa. Este
II sobressaltaria. Noutro fragmento, o prprio K. se segundo desenvolvimento o que se adequa
pe a representar. Quase sem dar por isso, tomou par bola, ao prazer do leitor em desdobr-la at lhe
da mesa uma folha; sem ver o que fazia, manteve- encontrar um significado liso. Mas as par bolas de
'
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Kafka desenvolvem- se no primeiro sentido, no sen sabilidade pessoal dos construtores. Para os
tido da evoluo que culmina na flor. Por isso o seu trabalhos de menos import ncia, podia- se empre
resultado tem afinidades com a poesia, o que no gar gente do povo ignorante: homens, mulheres,
impede que as narrativas kafkianas se resolvam crianas, todos os que viessem oferecer-se atra dos
inteiramente nas formas da prosa ocidental e man pelo salrio; mas para a direco de cada grupo de
tenham com a doutrina subjacente uma relao quatro pessoas era necessrio um homem inte
anloga da Hagadah com a Halakkah ( na religio ligente, perito em construes. Ns falo em
judaica, Hagadah o mundo da lenda, do mito, e
nome de muitos aprendemos a s nos conhecer
Halakkah o da lei sagrada). N o so par bolas, mos e reencontrarmos ao executar as ordens dos
mas to- pouco pretendem ser tomadas em sentido engenheiros supremos, e comprovmos que sem a
literal; esto constru das de modo a poderem ser orientao dos chefes quer o ensino que nos minis
citadas, interpretadas como ilustraes. Contudo, tram na escola, quer o nosso intelecto humano,
ignoramos a doutrina que as par bolas de Kafka seriam insuficientes para a pequena tarefa que nos
acompanham e que ilustram os gestos de K. e os cabe no imenso projecto. Esta organizao
movimentos dos seus animais. Descobrimos que assemelha-se ao destino. Meschnikoff, no seu livro
este ou aquele fragmento se lhe podem vincular, A civilizao e os grandes rios histricos , serve-se
mas isso o mximo que podemos dizer a seu res de expresses que poderiam ser de Kafka. Os
peito. Seja como for, intu mos que se trata de algo canais do Yang-tse- Kiang e os diques de Hoang- ho
que tem a ver com o problema da organizao da
escreve so segundo todas as probabilidades
vida e do trabalho na comunidade humana. Por resultado do trabalho comum sagazmente organi
mais que lhe parecesse impenetr vel, essa questo zado de ... vrias geraes. O m nimo descuido na
preocupou Kafka. Se no clebre dilogo que man escavao de um fosso ou no levantamento de um
teve com Goethe em Erfurt, Napoleo colocou a dique, a m nima neglig ncia, o ego smo de um
variao
pol tica no lugar do destino, Kafka fazendo uma
poderia definir a organizao como
homem ou de um grupo de homens relativamente
ao problema da riqueza hidrulica comum, trans
destino. A organizao, com efeito, surge- lhe no forma- se, em condies to particulares, em fonte
s nas vastas hierarquias de funcion rios, mas tam de desastres e vast ssimas calamidades sociais. Da
bm, de forma mais clara ainda, nos dif ceis e as ameaas de morte que acompanham a exigncia
imperscrutveis empreendimentos de Construo de uma solidariedade estreita e constante entre
cujo modelo esboou em A muralha da China. massas de populao estranhas e frequentemente
A muralha deve constituir uma proteco hostis entre si. A gigantesca empresa condena cada
para durar sculos, exigindo a tarefa da sua cons homem a penosos trabalhos cuja utilidade s se tor
truo, portanto, como condies fundamentais, o nar patente com o tempo e cujo plano quase sem
recurso s experincias arquitectnicas de todos os pre incompreens vel para o homem comum .
tempos e de todos os povos, e o sentido da respon Kafka pretendia incluir- se entre os homens
34 35
Ni '
comuns, e cada passo que tentava dar, esboava-o . O mundo de Kafka um Teatro Universal.
nos limites da compreenso. E assim que gosta de Para ele, o homem encontra-se naturalmente em
apresentar as coisas aos outros. Muitas vezes, cena. E a prova que todos so aceites no teatro
como o Grande Inquisidor de Dostoiewsky, parece natural de Oklahoma. impossvel compreender
no estar longe de dizer Mas se assim, h aqui os critrios que regulam as admisses. aptido
um mistrio e ns no podemos compreend-lo. E declamatria que em princ pio poderia parecer
se h um mistrio, temos o direito de preg-lo e de importante, no se atribui qualquer importncia: s
ensinar aos homens que no a livre deciso dos se pede aos candidatos que representem o papel de
seus coraes, n o o amor aquilo que importa, si prprios. Que possam ser seriamente o que dizem
mas sim o mistrio: ao mistrio que devem ser, coisa que sai do campo do poss vel. Os
submeter- se cegamente, dite o que ditar a sua cons
actores com os seus papis procuram asilo no teatro
cincia . Kafka nem sempre escapou s tentaes natural, tal como as seis personagens de Pirandello
do misticismo. H uma nota no seu di rio, a pro procuram um autor. Em ambos os casos, o que pro
psito do encontro com Rudolf Steiner, que no curam o ref gio derradeiro, e isso n o exclui que
contm, pelo menos na forma em que foi publicada, esse lugar seja a redeno. A redeno n o um
uma tomada de posio precisa por parte de Kafka. prmio atribuido vida: antes o ltimo ref gio de
Teria evitado tom-la? A atitude que manteve em um homem que, como diz Kafka, tem o' caminho
relao aos seus textos leva- nos a pensar que no bloqueado pelo seu prprio osso frontal . A lei
de excluir essa hiptese. Kafka dispunha de uma deste teatro est contida numa frase da Comu
excepcional faculdade para inventar analogias. nicao a uma academia: Imitava-os porque pro
No obstante, nunca aprofunda o que suscept vel curava uma sa da; por nenhuma outra razo. Um
de explicao e tomou mesmo todas as medidas press gio de tudo isto parece aflorar em K. antes do
poss veis contra a interpretao dos seus prprios fim do seu processo. Volta-se imprevistamente para
textos. Quem neles se aventure, deve faz- lo com os dois senhores de chap u alto que vm busc-lo e
cautela e desconfiana, tendo sempre presente a pergunta- lhes: Em que teatro trabalham?
forma de ler prpria de Kafka e a disposio do tes
Teatro? , admira- se um deles, enquanto se volta
tamento em que ordenava a destruio da sua obra para o outro, como que a pedir-lhe conselho.
pstuma; essa vontade, se bem a considerarmos, Depois ficam ambos mudos. N o respondem
to dificilmente compreens vel e exige um exame pergunta, mas tudo leva a crer que os deixou
to minucioso como as respostas do guardio impressionados.
perante a lei. Talvez Kafka, que em cada dia da sua Sobre uma grande mesa, coberta por uma
vida teve de atender a comportamentos inex toalha branca, oferece-se um banquete aos novos
plicveis e a declaraes amb guas, tivesse querido aderentes ao teatro natural. Todos estavam exci
pagar aos seus contemporneos, pelo menos hora tados e alegres . Os antigos comparsas fazem de
da morte, com moeda idntica. anjos, empoleirados em altos pilares que, envoltos
36 37
I
I
em cartes ondulados, ocultam no interior uma determinada, talvez Zurau, em Erzgebirge. Mas
pequena escada. So preparativos de uma feira naquela terra podemos igualmente reconhecer
camponesa ou, talvez, de uma festa infantil, onde o outra povoao: a mencionada numa lenda talm
rapazinho da fotografia, enfeitado por vistosas dica contada pelo rabino em resposta pergunta
andainas, teria perdido a tristeza que se lhe v no que lhe fazem sobre os motivos que ter o levado o
olhar. Se no tivessem asas amarradas cintura, judeu a oferecer um banquete na noite de sexta-
aqueles anjos podiam ser verdadeiros. Kafka o -feira. A lenda refere-se a uma princesa que
seu precursor. Um desses anjos o empres rio
eleva-se at ao trapezista atingido pela primeira
definhava no ex lio, longe da sua gente, numa
aldeia cuja l ngua ignorava. Certo dia recebe uma
dor quando cai na rede de proteco, acaricia-o e carta a anunciar- lhe que o noivo no a esqueceu e
encosta a cabea do ginasta, de modo que as que partiu ao seu encontro. O noivo, diz o rabino,
l grimas do rtista lhe alagaram o rosto. Um outro o Messias; a princesa, a alma; a aldeia do seu des
anjo da guarda ou pol cia , depois do fratric
dio, encarrega-se do assassino Schmar, o qual
terro, o corpo. Como no pode manifestar de outra
forma a sua alegria gente da terra, que no lhe
parece querer esmagar a boca contra as costas do entende a l ngua, oferece-lhe um banquete. Com
polcia, que o arrasta a passo estugado. esta povoao do Talmude, encontramo- nos no
Como em todos os grandes fundadores de centro do mundo de Kafka. Tal como K na aldeia
religies disse-o Soma Morgenstern h em junto ao castelo, assim vive no seu corpo o homem
Kafka um certo ar de aldeia . E oportuno recordar contemporneo; um corpo que lhe foge e se
aqui a definio de piedade religiosa dada por Lao- transforma em seu inimigo. Pode acontecer que o
- Ts, de que Kafka deu qma transcrio perfeita em homem acorde de manh e se veja transformado
A aldeia prxima: As comunidades vizinhas
podem achar-se ao alcance do olhar e tambm
num insecto. O alheamento o que em si mesmo
lhe alheio tomou conta dele. Kafka pertence ao
podem encontrar- se ao alcance do ouvido o uivo ar da aldeia do castelo, e por isso no caiu na ten
dos seus ces e o canto dos seus galos. Isso deveria tao de converter-se num profeta religioso. A essa
contentar os homens, que poderiam morrer de aldeia pertencem tambm o est bulo de onde saem
velhos sem viajar para mais longe . Como Lao- os cavalos do mdico, o desv o sufocante onde
-Ts, tamb m Kafka era uma autor de par bolas, Klamm, de charuto na boca, se senta diante dum
mas no era um fundador de religies. copo de cerveja, e o porto que se abre para as
Consideremos a aldeia no sop do monte do ru nas quando se lhe d uma pancada O ar da
castelo, esse povoado onde a pretenso de K. s aldeia est contaminado de irrealidade e decom
funes de agrimensor confirmada de forma to posio, e Kafka tem de respir - lo toda a vida. No
misteriosa quanto inesperada. No ep logo a novela, era adivinho nem fundador de religies. Como con
Brod disse que Kafka certamente tomou para mo seguiu resistir?
delo da aldeia vizinha do castelo uma localidade
38 - 39
r vaes muito interessantes. Isso no o salvou de
O homenzinho corcunda uma interpetao da obra no sentido do clich
teolgico. O poder superior escreve Haas , o
Como do conhecimento geral, Knut Ham- reino da graa, foi representado por Kafka na sua
sum costuma enviar de vez em quando cartas -
grande novela O Castelo , o poder inferior, o reino
opinativas ao jornal da pequena cidade em cujos do ju zo e da condenao, na f bula igualmente
arredores vive. H alguns anos, realizou-se na co
grande O Processo. O territrio situado entre
marca um processo contra uma rapariga que tinha ambos os reinos, o destino terreno e as suas dif ceis
morto o filho recm- nascido. Condenaram- na a exigncias, procurou pint- lo, mediante uma severa
uma pena de pris o. Pouco tempo depois apareceu estilizao, em A Amrica , sua terceira novela .
no peridico uma declarao de Hamsum cujos ter Segundo Max Brod, o primeiro tero desta inter
mos eram mais ou menos os seguintes: uma cidade pretao pode ser considerado patrimnio comum
incapaz de aplicar a pena capital a to desnaturada da exegese kafkiana. Assim escreve, por exemplo,
criatura s era digna de desprezo; a infanticida Bernhard Rang: Na medida em que pode
merecia, se no a forca, pelo menos priso perp- considerar-se o castelo com sede da graa, todos
rtua. Passaram- se alguns anos e apareceu Bno esses esforos in teis e tentativas vs significam
da Terra , onde o escritor conta a histria de uma precisamente em termos teolgicos que a
criada que comete o mesmo crime e sofre a mesma graa divina no se deixa alcanar e pressionar pelo
pena ( nada de forcas nem de prises perptuas). arb trio e a vontade do homem. A inquietao e a
As reflexes pstumas de Kafka contidas em A impacincia mais no fazem do que impedir e con
Muralha da China convidam a recordar este fundir a sublime quietude do divino. Esta inter
episdio. Ainda mal havia sa do o livro, logo sur pretao decerto cmoda, mas quanto mais se
giu, apoiada nessas reflexes, uma interpetao de procura alarg- la, mais se v que insustentvel. A
Kafka que se comprazia em utiliz -las como evidncia da sua falta de fundamento sobretudo
esponja apagadora do que a obra autntica diz. H notria em Willy Haas, quando declara: Kafka
dois modos de errar completamente na apreciao procede... de Kierkegaard e de Pascal, e pode- se
dos textos kafkianos: um consiste na interpretao inclusivamente consider -lo o nico descendente
natural; o outro na sobrenatural. Ambas a inter leg timo desses filsofos. Os trs tm em comum o
petao psicanal tica e a teolgica descuram
igualmente o essencial. A primeira sustentada por
duro e cruel tema religioso fundamental: o homem
sempre culpvel perante Deus... O mundo
Hellmuth Kaiser, a segunda por vrios autores, superior de Kafka, o chamado Castelo , com o seu
entre os quais H. J. Schoeps, Bernhard Rang, exrcito imperscrut vel, mesquinho, extravagante
Groethuysen e tambm Willy Haas, que no entanto e lascivo de funcionrios, o c u misterioso que o
formulou a respeito de Kafka no referente a cobre, disputa com os homens um jogo terr vel...
outros aspectos que adiante abordaremos obser- Seja como for, at mesmo diante deste Deus o
40 41
homem no pode eximir-se sua profunda culpa .
O menos que se pode dizer que esta teologia, com
postergar os acontecimentos. Em O Processo a
parada com a teodiceia de Anselmo de Canterbury, dilao a esperana do acusado, e o julgamento
no se pode levar muito a srio, incorrendo em transforma-se lentamente num veredicto. O prprio
especulaes b rbaras que nada tm a ver com a patriarca deve aproveitar um adiamento, nem que
letra do texto kafkiano. Acaso um funcion rio para isso haja de perder o seu lugar na tradio.
isolado pergunta-se um O Castelo tem o direito
de perdoar? Pode-se admitir que ao colectivo das
Poderia imaginar outro Abrao, r pido como um
criado, pronto a satisfazer o pedido do sacrifcio
autoridades reunidas seja permitido tomar deci
imediato, mesmo que tal diligncia no bastasse
ses, mas mesmo aqui h que distinguir: podem para transform-lo num profeta ou sequer num
condenar, mas no tm poderes para perdoar . trapeiro. Um Abrao que no entanto n o executa o
sacrifcio por v rias razes: no pode afastar-se do
Este caminho no leva longe: Trata-se senten
lar, indispens vel economia e ao governo
cia Denis de Rougemont
no do estado mise
domsticos, no tem a casa em ordem e sem a casa
r vel do homem sem Deus, mas da mis ria de um
homem submetido a um Deus que no conhece, em ordem, sem esse amparo, no pode partir, como
porque no conhece Cristo. a prpria B blia o reconhece: E ps em ordem a
sua casa.
mais fcil extrair consequncia especula R pido como um criado, diz-se deste Abra
tivas da edio pstuma das notas kafkianas do que o. Para Kafka, algo havia s capt vel pelo gesto. E
esclarecer um nico dos temas que despontam nos este gesto, inintelig vel, o ponto obscuro e
seus contos e novelas. Mas s eles podem iluminar nebuloso das parbolas, o ponto de onde emana a
as foras pr- histricas que Kafka teve de enfren obra de Kafka, cuja avareza em public-la conhe
tar, foras que tambm podemos considerar como cida, deixando em testamento a vontade expressa
pot ncias histricas dos nossos dias. Sob que nome que fosse destru da. Ningum que se ocupe de
tero aparecido a Kafka? Ningum sabe. Sabe- se Kafka pode iludir este testamento: faz constar de
apenas que ele no conseguiu orientar- se entre uma vez para sempre a insatisfao do autor
essas for as, que as no conheceu. No espelho que relativamente obra, a considerao dos seus
a pr- histria lhe apresentava sob a forma da culpa, esforos como inapelavelmente malogrados e a
viu surgir to- s o futuro como ju zo. Kafka, con convico de que o fracasso era a sua vocao e o
tudo, no forneceu nenhuma indicao sobre o seu destino. Na verdade, fracassou na grandiosa
modo como tal ju zo deve entender-se. Ser o ju zo tentativa de reconduzir a poesia doutrina, de
final e universal? o acusado que faz de juiz? O voltar a dar-lhe, como par bola, a simples
prprio processo n o constitui o castigo? Kafka inalterabilidade da razo. Nenhum outro poeta foi
esperaria alguma resposta? N o procurava antes mais rigorosamente fiel ao mandamento: Nenhu
42 43 -
;
-lhe: com estas palavras se conclui O Processo. A duz numa rede de dormir. E Kafka demora-se inter-
vergonha, que corresponde sua elementar minavelmente em consideraes sobre a natureza
^ das experincias. Todas cedem,
incerta, flutuante
pureza de sentimentos , o gesto mais forte de
Kafka. Porm, possui um duplo aspecto: a todas se misturam com as experincias opostas.
vergonha, reaco ntima do homem tamb m uma Fazia um calor sufocante naquele dia de Agosto
reaco socialmente imperativa. N o s vergonha
perante os outros: tamb m pode ser vergonha pelos
comeai Pancada no Porto . Ao regressar a
casa com minha irm passmos diante do porto de
outros. A vergonha de Kafka no assim mais um estbulo. J n o sei se de brincadeira ou por dis-
pessoal do que a vida ou o pensamento que ela rege traeo ela desfechou uma punhada no porto ou se
e governa: no vive a sua vida pessoal, no pensa apenas esboou o gesto, de punho fechado, sem
o seu pensamente pessoal. como se vivesse e pen- bater . A simples possibilidade desta ltima
sasse constrangido por uma fam lia... Essa fam lia hiptese faz aparecer as precedentes, que antes
desconhecida... no pode abandon-lo. Ignora pareciam incuas, a uma nova luz. Do pntano des
mos a composio homens, animais dessa -
tas experincias surgem as figuras femininas de
Kafka: criaturas palustres, como Leni, que estende
fam lia, mas distinguimos claramente uma coisa:
ela que obriga Kafka a remover ao escrever
eras csmicas, ela que faz rolar o acontecer his
os dedos mdio e anular da mo direita, unidos
por uma membrana at quase a ltima falange.
trico como S sifo a sua pedra. E assim lhe sai luz Belos tempos!, exclama a amb gua Frida, ao
a parte inferior, de viso desagrad vel e a que
recordar a sua vida anterior . Nunca me pergun
Kafka no resistiu. Acreditar no progresso n o taste nada sobre o meu passado. Isto conduz- nos a
significa que se tenha verificado j progresso obscura matriz dos tempos, onde se realiza o
algum. Fraca f seria esta . A poca em que vive acasalamento cuja desenfreada lux ria
do Bachofen abominada pelas puras
pot
segun
ncias
no significa para ele qualquer progresso sobre os
comeos pr- histricos. As suas novelas desen da luz celestial e justifica a express o Luteae
rolam-se num mundo palustre, onde as criaturas voluptates de que se serve Ambio.
vagueiam num estdio que Bachofem define como o S a partir daqui se pode entender a tcnica
dos heteras. O facto de ser um est dio esquecido narrativa de Kafka. Quando outras personagens da
no significa que no subsista no presente. A sua novela tm de comunicar algo a K., fazem- no,
presena deve- se mesmo ao seu olvido, embora a mesmo que se trate da coisa mais grave ou mais
experi ncia do burgus mdio no tenha a profun surpreeendente, de forma incidental e como se ele,
didade suficiente para lhe dar a m nima ideia disto. no fundo, devesse saber disso h muito tempo.
primeiros esboos
Tenho experi ncia escreve Kafka num dos seus
e no gracejo se disser que
como se no houvesse nada de novo, como se o pro
tagonista apenas fosse tacitamente convidado a
consiste num enjo de mar em terra firme. N o recordar algo que esqueceu. Willy Haas inter
por acaso que a primeira contemplao se pro pretou neste sentido o desenvolvimento de O Pro-
44 - 45
cesso , ao afirmar com justeza que o objecto do esto sempre a agregar- se aos antigos, cada um
processo, o verdadeiro protagonista deste livro com o seu nome prprio e diferente dos restantes .
incr vel o esquecimento...cuja... propriedade fun Neste texto, no de Kafka que se trata, mas da
damental o olvido de si mesmo... O olvido China. assim que, em Stern der Erlosung, Franz
converteu-se aqui numa figura muda na pessoa Rosenzweig descreve o culto chins dos antepas
do acusado , numa figura de intensidade gran
diosa . A tese de que este centro misterioso
sados. Para Kafka, o mundo dos seus antepassa
dos, tal como o universo dos factos que para ele
deriva da religio judaica deve ser tomada em realmente contavam, era literalmente imperscru
considerao. A memria como piedade desem t vel, e n o h d vida de que o referido mundo,
penha aqui um papel de extraordinria import n
semelhana daquele que os primitivos adoravam
cia. N o ... um entre outros, mas... o mais nas suas rvores totmicas, aponta para baixo, para
profundo atributo de Jeov, o de recordar, de o reino das bestas. Alis, no s em Kafka que os
possuir memria infal vel at terceira, quarta ., animais so depositrios do que se esqueceu. Em O
centsima gerao. O acto... mais sagrado do... loiro Eckbert , um profundo conto de Tieck, o nome
rito consiste na anulao dos pecados do livro
da memria .
esquecido de um cachorro Strohmi a cifra de
uma culpa enigm tica. Podem assim compreender-
O esquecido e com esta noo encontramo- -se os motivos por que Kafka continuamente pro
- nos num umbral ulterior da obra de Kafka
nunca puramente individual. Cada particular
curou captar a presena do esquecido nos animais.
Estes no constituem a meta, mas so indispen
objecto de esquecimento confunde- se com o sveis para alcan-la. Pense-se no artista da
esquecido da pr- histria, com ele entrando em fome, o qual para diz- lo claramente era apenas
inumer veis combinaes, variveis, incertas, que um obstculo no caminho que conduzia aos
do sempre origem a novos abortos. O esque est bulos . E recorde- se o animal de O Covil ou a
cimento o recipiente de onde brota o inesgot vel toupeira gigantesca , absortos em complicadas
mundo intermdio das histrias de Kafka. Aqui a cavilaes sobre os desconhecidos que lhe escavam
nica realidade a plenitude do mundo. Cada a terra. Os seus pensamentos, por outro lado, so
espirito deve ser objectivo, deve manter-se aparte, algo de muito h bil e incerto, oscilando irresolutos
para ter um lugar e direito a existir. O espiritual, na de preocupao em preocupao, saboreando todas
medida em que ainda desempenha uma funo, as angstias com a volubilidade do desespero. Em
resolve-se em esp ritos. Os esp ritos transformam- Kafka at borboletas encontramos: o caador
-se em individuos absolutamente particulares, cada Graco um culpado que no quer reconhecer a
um deles com o seu nome, especialmente ligado ao sua culpa, transformando- se numa borboleta .
nome de quem o venera... Formam uma multido N o se ria , diz o caador Graco. verdade:
num mundo j superpovoado... Uma imensa legio entre todas as criaturas de Kafka, so especial
que se multiplica sem escr pulos... Novos esp ritos mente os animais que se dedicam a reflexo. A cor-
46 - 47
f
rupo est para o direito como a angustia para o Gregorio Samsa ou o grande animal, meio gato e
pensar destas criaturas. A angustia confunde os meio cordeiro, para quem provavelmente a faca
acontecimentos e, no obstante, sempre a nica do magarefe seria uma libertao. Mas todas estas
fonte de esperana. Mas dado que a coisa mais personagens de Kafka esto relacionadas, atravs
estranha e esquecida o corpo o nosso prprio de urna vasta s rie de figuras, com o prototipo da
corpo compreende- se o que levou Kafka a
designar por a besta o acesso de tosse que lhe
deformidade, o corcunda. O gesto mais frequente
dos contos kafkianos o do homem que inclina pro
irrompia das entranhas. Era a primeira ofensiva da fundamente a cabea sobre o peito, como o fazem,
grande manada. por cansao, os senhores do tribunal ou, por ser
O mais estranho bastardo que a pr- histria vilismo, os porteiros do hotel, ou ainda, por causa
engendrou em Kafka mediante a culpa foi Odradek. do tecto ser baixo, os visitantes da galera. Em A
Ao principio parece um carreto achatado, em Colonia Penal, as autoridades servem-se de um
forma de estrela, onde se enrolam desor mecanismo antiquado para gravar letras muito
denadamente velhas linhas soltas de toda a espcie floreadas as costas dos condenados, mecanismo
e cor. Mas mais do que isso; do centro da estrela que ao acumular ornamentos multiplica as feridas,
parte uma pequena vareta transversal onde se at a carne dos supliciados se tornar clarividente,
encaixa outra em ngulo recto. Mediante esta decifrando directamente o texto atravs de cujas
segunda vareta, por um lado, e um dos raios da letras aprendero o nome da sua culpa des
estrela, pelo outro, o conjunto d a impress o de conhecida As costas so, portanto, algo que se tem
poder aguentar- se como sobre duas pemas. de carregar. E assim foi em Kafka desde sempre,
Segundo os casos, Odradek aloja- se em desvos, como o explicita uma velha nota do di rio: Para
escadas, corredores, vest bulos.. Prefere os mes me tomar o mais pesado poss vel, coisa que me
mos lugares do tribunal, que est atrs da culpa. O parece til para adormecer, tinha cruzado os braos
cho o sitio dos objectos abandonados e e posto as mos atrs das costas, de modo que jazia
esquecidos. A obrigao de comparecer a ju zo carregado como um soldado. Aqui o peso coincide
talvez suscite uma sensao semelhante de abrir tangencialmente com o esquecimento prprio de
um ba fechado h anos, abandonado no cho, a quem dorme. Uma cantilena popular como O
um canto. De boa mente adiar amos a empresa at homenzinho corcunda isso mesmo que simboliza.
ao fim dos tempos, como K ao descobrir que a sua Este homenzinho o inquilino da vida desfigurada,
memoria teria servido para manter ocupado o e desaparecer quando chegar o Mesias, o qual,
espirito pueril de um velho reformado. segundo disse um grande rabino, no pensa vir
Odradek a forma que as coisas assumem no transformar violentamente o mundo, mas dar-
esquecimento. Deformam- se, tomam-se irreconhe - lhe to- s uns pequenos ajustes.
c veis. So assim a preocupao do pai, que
ningu m sabe qual , o bicho que representa
48 49
que permanecia acocorado no canto mais escuro.*
A conversa incidira sobre os temas mais diversos.
De s bito, algum animou o sero com uma
pergunta interessante: qual o desejo que cada um
Chego ao meu quartinho formularia se pudesse satisfaz-lo? Um queria
ao leito de dormir dinheiro, outro um genro, um terceiro uma nova
vejo um marrequinho banca de carpinteiro, e por a fora, volta do
que se pe a rir c rculo. Depois de todos terem falado, sobrou o
mendigo, no seu canto escuro. Hesitante e de m
o riso de Odradek, que soa mais ou menos vontade l acabou por responder tambm: Queria
como o crepitar de folhas cadas. ser um rei poderoso, reinar num grande pa s, estar
uma noite a dormir no meu pal cio enquanto o
Ajoelho-me no banquinho inimigo violava as fronteiras e a sua cavalaria me
para as rezas fazer cercava o castelo antes do amanhecer sem encon
vejo um marrequinho trar resistncia; desperto pelo terror, sem tempo
que se pe a dizer. sequer para me vestir, fugia em camisa de dormir,
querido menino, s bonzinho perseguido por montes, vales, bosques e colinas,
reza tambm pelo marrequinho sem trguas nem repouso, at chegar so e salvo a
esta terra. Era isso que queria. Os outros olharam-
vel cantiga. Vision rio
Assim termina a horr no desconcertados. E que terias ganho com
das profundidades, Kafka atinge uma raiz e um fun isso? , perguntaram. Uma camisa, respondeu.
damento que as intuies da sabedoria m tica ou Esta histria pode servir de introduo
a teologia existencial no saberiam dar-lhe. E economia do mundo de Kafka Ningum disse que
essa matriz ltima tanto o fundo do povo alemo as deformaes que o Messias vir corrigir um dia
como o do povo judaico. Se Kafka no rezou
coisa que no sabemos
distinguia-se em
sejam apenas aleijes do nosso espao. So- no
tambm do nosso tempo. Kafka certamente que
alt ssima medida por aquilo que Malebranche deve ter pensado nisso quando fez dizer ao seu av:
define como a prece natural da alma : a ateno. A vida extraordinriamente curta tal a sua
Como os santos atravs das oraes, foi atravs brevidade na minha memria que no compreendo
dela que se solidarizou com todas as criaturas. como que um jovem, por exemplo, pode decidir ir
a cavalo at aldeia vizinha sem temer que des
Sancho Pana contado qualquer desgraado acidente
o lapso
de uma vida normal e feliz possa ser demasiado
Contasse que uma noite, numa aldeia jas dica, (*) Na tradio jas dica, o profeta Elias aparece sob a forma de
no final do Sabat, os judeus estavam reunidos numa vagabundo ou mendigo, continuando no entanto a desempenhar o
papel de mensageiro de Deus: descobri-lo sob a sua aparncia e
casa miser vel. Eram todos do lugar, excepto um, a receber o seu ensinamento ser iniciado nos mistrios da
Tora
quem ningum conhecia, pauprrimo, andrajoso, ( N.T.)
50 51
breve para uma tal viagem . Um ssia deste velho pertos. O jejuado* jejua, o guardio cala-se e os
o mendigo que na sua vida normal e feliz nem estudantes velam. To secretamente obram em
sequer encontra tempo para um desejo, mas que na Kafka as grandes regras da ascese.
vida inslita e desditosa da fuga, para onde se Dos anos submersos da inf ncia, o estudo
transfere com a sua histria, se exime desse desejo, que Kafka evoca. N o fora muito diferentemente
trocando-o pela realizao.
Entre as criaturas de Kafka, h uma ra a que
e agora j tanto tempo havia passado
Karl, em casa., sentado mesa dos pais
fizera
que
os
tem particularmente em conta a brevidade da vida; seus exerccios enquanto o pai lia o jornal, ou fazia
vem da cidade do sul... da qual se dizia que isso escritas e correspondncia para uma firma e a me
sim, era gente! Fixem-se nisto: no dormem! No se atarefava na sua costura, puxando a linha num
dormem porqu ? Porque nunca se cansam. Como gesto largo. Para no incomodar o pai, Karl punha
poderiam cansar-se os loucos? evidente que sobre a mesa apenas o caderno e o material
loucos e ajudantes, que tambm nunca se cansam, necessrio para escrever, ordenando os livros de
so espcies afins. Os ajudantes, contudo, ainda que precisava sua direita e sua esquerda,
chegam mais alto. A propsito da sua fisionomia, empilhados em cadeiras. Como era grande o siln
diz-se em determinado momento que fazem pen cio que ali reinava! Como era raro entrarem
sar em aduitos, quase em estudantes . Os estudan estranhos naquele quarto! Esses estudos talvez
tes, que em Kafka aparecem quando menos se no possuam significado algum, mas esto pr
espera, so com feito os porta- vozes desta raa. ximos do nada que confere significado s coisas,
Mas afinal quando dorme? , pergunta Karl como no Tao. Era isso que Kafka perseguia com o
maravilhado, contemplando o estudante. Dormir? seu desejo de pregar o tampo de uma mesa com
Ah, sim... Dormirei quando terminar os estudos . habilidade paciente e minuciosa e ao mesmo tempo
As crianas tambm vo dormir de m vontade; no fazer nada, mas no de modo que se pudesse
enquanto dormem, podem verificar-se aconteci dizer: para ele cravar pregos no nada!, mas:
mentos que exigem a sua presena. No esquecer aquilo sim, verdadeiramente bater pregos e ao
o melhor soa como advertncia familiar numa mesmo tempo no fazer nada, o que tornaria o acto
obscura massa de antigas histrias, embora talvez ainda mais audaz, mais decidido, mais real e mais
no aparea realmente em nenhuma. O esqueci louco. Igualmente decidida e fantica a atitude
mento, porm, diz sempre respeito ao melhor, e o dos estudantes em relao ao estudo, e n o se
melhor a possibilidade de redeno. A ideia de poderia imaginar nada mais estranho. Os escribas,
pretender ajudar- me diz ironicamente o espirito
errante e sem paz do caador Graco uma
os estudantes, esto sempre sem flego, sempre
correndo atrs de alguma coisa. O funcion rio
doena que leva cama . Os estudos obrigam os dita em voz to baixa que o escriba no consegue
estudantes a velar e posivel que a sua virtude ouvi-lo se permanecer sentado; por isso tem de
m xima consista precisamente em mant- los des levantar-se para escutar o que se lhe dita, voltar
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rapidamente a sentar-se para escrever, tomar a estudo, onde posivel que reencontre fragmentos
levantar-se para ouvir, e assim por diante. tudo da sua prpria exist ncia, partes do papel que lhe
muito estranho e quase incompreens vel . Se pen foi distribuido. possivel que consiga recuperar o
sarmos nos actores do teatro natural, talvez se gesto perdido, como Peter Schlemihl conseguiu
entenda melhor todos devem responder imedia reaver a sua sombra vendida. possivel que chegue
tamente chamada. H, no entanto, outros aspec
a compreender-se mas com que esforo! Porque
tos em que os actores se parecem com aquelas o que brota do esquecimento uma tempestade, e o
personagens diligentes. Para eles, trata- se ver estudo uma cavalgada que avana contra ela.
dadeiramente de bater pregos e ao mesmo tempo Assim o mendigo, que corre desfilada montado
no fazer nada , quer dizer de representar papeis; no seu banco, a um canto escuro, ao encontro do
e mau actor ser quem, por n o estudar devi passado, procurando assenhorear- se de si mesmo,
damente o seu papel, se esquece das palavras ou sob a forma de um rei fugitivo. vida, demasiado
dos gestos que a representao requer. Para os breve para uma cavalgada, corresponde este
membros da companhia de Oklahoma, porm, esse galope, suficientemente longo para uma vida:
papel a vida precedente de cada um. Daqui a ... at lanar fora as rdeas e no ver mais em
natureza deste teatro natural. Os seus actores frente do que um vasto deserto, j sem o pescoo e
so seres redimidos. Mas no o ainda o estudante sem a cabea do cavalo. Assim se realiza a fan
que Karl observa durante a noite, na varanda, em tasia do cavaleiro venturoso, impetuosamente
silncio, enquanto lia no livro, o folheava, con lanado em perseguio do seu passado, numa
sultava de vez em quando um outro livro que
apanhava num gesto rpido, e tomava apontamen
viagem alegre e vazia do cavaleiro que deixou de
ser uma carga para o seu corcel. Este cavaleiro
tos num caderno de que aproximava muito o feliz, mas desgraado do que permanece amarrado
rosto. sua pileca, porque se props, como fim futuro, o
Nesta representao viva do gesto, por mais mais prximo e imediato: a carvoaria A cavalo no
extravagante, Kafka inimitvel. Com razo, balde de carvo, de mos erguidas, segurando a
comparou-se K. ao soldado Schweyk: um espanta- pega, a mais simples das r deas, deso a escada
-se com tudo; o outro no se espanta com nada. Na fatigosamente; mas ao fundo o balde ergue- se,
poca da mxima alienao m tua dos homens, das radioso: magn fico, magnfico! Os camelos dei
relaes infinitamente mediatizadas, que so as tados por terra, agitando- se sob o basto do
nicas que ainda se podem manter, inventaram o cameleiro, no se levantam mais majestosamente.
filme e o disco. No filme, o homem no reconhece o No h regio mais desolada do que a das Mon
seu prprio andar, no disco, no reconhece a sua tanhas de Gelo onde o cavaleiro do balde de car
prpria voz. Isso foi confirmado por diversas vo se perde para nunca mais voltar. Das mais
experincias, e a situao do sujeito delas idntica profundas regies da morte sopra o vento que o
de Kafka. esssa situao que o reconduz ao arrasta: o mesmo que tantas vezes em Kafka
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J
emana da pr- histria do mundo, o mesmo que parquia; os seus estudantes, escolares sem escrita
empurra a barca do caador Graco. Por toda a Agora j nada pode det- los na sua viagem alegre
parte diz Plutarco , nos mist rios e nos sacrifi
cios, entre os gregos e entre os brbaros, se ensina
e vazia . Kafka porm encontrou a lei da viagem
dele: pelo menos uma vez conseguiu adaptar o seu
que devem existir dois seres principais e duas ritmo trabalhoso a uma cad ncia pica tal como
foras espec ficas opostas, das quais uma puxa a durante toda a vida o procuroa confiando tal lei a
direito, para a frente, enquanto a outra desvia a um esboo que resultou no mais perfeito, e no s
primeira e a faz retroceder. O recuo a direco pelo seu carcter de interpretao.
do estudo que transforma a vida em escrita Sancho Pana nunca se gabou disso, mas
Bucfalo o seu mestre, o novo advogado, o qual com o passar dos anos, consumindo as noites a
sem o grande Alexandre, isto , sem o grande con devorar histrias de cavalaria e aventuras, tanto
quistador sempre lanado para a frente, empreende conseguiu transtornar o seu demnio que o fez sair
o caminho do regresso. Livre, os flancos nunca de si e lanar-se desenfreadamente nas empresas
mais apertados pelas pernas do cavaleiro, longe dos mais loucas. Aces, alis, que no faziam mal a
clamores das batalhas alexandrinas, l e rel as ningum, falta do objecto predestinado que
pginas dos velhos livros. Num estudo recente, deveria ter sido precisamente Sancho Pana. Mais
depois de ter analisado minuciosamente todos os tarde, deu a esse demnio o nome de Don Quixote
pormenores do texto, Werner Kraft observa- No e, movido por um sentimento de responsabilidade,
existe na literatura uma cr tica do mito mais seguiu-o calmamente nas suas correrias e desman
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I
Colec o Memria do Abismo
1 ANGELO DE LIMA
Poemas in Orpheu 2 e outros escritos
2 JEAN GENET
O fun mbulo
3 GEORGES BATAILLE
O nus solar
4 LU S CERNUDA
Os prazeres proibidos
5 ANTONIN ARTAUD
A arte e a morte
6 CHARLES BUKOWSKI
D- me o teu amor
7 F. SCOTT FITZGERALD
A fenda aberta
8 LOUIS- FERDINAND C LINE
V o navios cheios de fantasmas...
9 FERNANDO PESSOA
Aviso por causa da moral
10 YUKIO MISHIMA
Genet
11 ALDOUS HUXLEY
O C u e o Inferno
12 GEORGE MOORE
O outro sexo de Albert Nobbs
13 ANTONIN ARTAUD
Van Gogh, o suicidado da sociedade
14 CAMILO CASTELO BRANCO
Maria! N o me mates, que sou tua m e!
15 JOYCE MANSOUR
16
J lio Csar
WALTER BENJAMIN
Historia nociva
Kafka
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1
coleco memria do abismo 16
1
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