Neves - Marcelo Neves - (NÃO) SOLUCIONANDO PROBLEMAS CONSTITUCIONAIS - TRANSCONSTITUCiONALISMO ALÉM DE COLISÕES PDF

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(NO) SOLUCIONANDO PROBLEMAS CONSTITUCIONAIS:

TRANSCONSTITUCIONALISMO ALM DE COLISES*


Marcelo Neves

Da inflao constitucional ao transconstitucionalismo


A partir do final do sculo passado, constitucionalistas de
diversas tradies tericas e de pases os mais diferentes,
vinculados fortemente ao estudo das Constituies esta-
tais, passaram a preocupar-se com os novos desafios de um
direito constitucional que ultrapassou as fronteiras dos res-
pectivos Estados e tornou-se diretamente relevante para
outras ordens jurdicas, inclusive no estatais. Assim, por
exemplo, nos Estados Unidos, Bruce Ackerman, reconhe-
cendo o provincialismo enftico da prtica e teoria ame-
ricana, sublinhou que ns deveramos resistir s tentaes
de um particularismo provinciano (Ackerman, 1997, pp.
773 e 794). Por sua vez, Mark Tushnet, mais recentemente,
em palestra no Instituto de Direito Internacional de Haia,
sustentou a inevitvel globalizao do direito constitucio-
nal (Tushnet, 2008), esclarecendo que no estava tratando

*
O presente artigo baseia-se no meu livro Transconstitucionalismo (Neves, 2009; 2
tiragem, 2012). Para o aprofundamento no tema, sugere-se a consulta dessa obra
monogrfica.

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(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

da existncia da chamada Constituio global ou interna-


cional, mas sim da globalizao do direito constitucional
domstico (Tushnet, 2008, p. 2, nota 7). Do outro lado do
Atlntico, Canotilho, com base em Lucas Pires, refere-se
interconstitucionalidade, restringindo-se, porm, rela-
o da ordem jurdica da Unio Europeia com as ordens
constitucionais dos seus Estados-membros (Canotilho, 2006,
pp. 265 e ss.; Pires, 1997, pp. 101 e ss). Por seu turno, na
Alemanha, Pernice, tambm tendo em vista especialmente
a experincia europeia, desenvolveu o modelo de um cons-
titucionalismo de nveis mltiplos (Pernice, 1999; 2002).
Fora do mbito dos constitucionalistas vinculados tra-
dio estatal, passou a ser lugar comum a utilizao do ter-
mo Constituio em outras reas disciplinares, para refe-
rir-se a situaes as mais diversas: Constituio europeia1,
Constituio da comunidade internacional2, constituies
civis da sociedade mundial (Teubner, 2003) etc. Dessa
202 maneira, o uso inflacionrio do termo tornou-o muito vago,
perdendo o seu significado histrico, normativo e funcio-
nal. Nesse contexto, a importncia de se chamar Constitui-
o (Maduro, 2006, pp. 335 e ss.) tomou o primeiro plano,
persistindo o equvoco do nominalismo, a que se referiu
Ackerman em relao ao constitucionalismo comparado.
Da por que cabe tambm aqui afirmar: Diferenas impor-
tantes so frequentemente obliteradas em discurso vago
que invoca um rtulo comum (Ackerman, 1997, p. 794)3.
Portanto, no se trata aqui de um conceito histrico-
-universal de Constituio (Canotilho, 1991, p. 59), de acor-

1
Entre muitos, Weiler (1999).
2
Cf., p. ex., Fassbender (1998) e Tomuschat (1995, p. 7).
3
Hespanha (2004, pp. 67 e ss.) aponta para o carter plurvoco da palavra cons-
tituio, que, alm de implicar variaes histricas no seu significado poltico-
-jurdico, ultrapassa a dimenso do mundo cultural, denotando disposies bio-
lgicas ou fsicas. Mas cabe advertir que um excessivo apego ao significante pode
afastar-nos da compreenso do respectivo significado (semntico) e sua funo
(pragmtica) em determinado contexto social ou histrico.

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do com o qual vale a frmula: nenhum Estado sem Cons-


tituio (Biaggini, 2000, p. 447). Em uma perspectiva de
histria da Constituio, Koselleck amplia o conceito para
incluir todas as instituies juridicamente reguladas e suas
formas de organizao, sem as quais uma comunidade social
de ao no politicamente capaz de agir, esclarecendo:

Minha proposta de que a histria da Constituio deveria


abranger todos os domnios que se caracterizam pela
repetibilidade em virtude de regras jurdicas visa a superar,
portanto, a fratura entre histrias pr-modernas do direito
e histrias modernas da Constituio e, assim, tematizar
inclusive fenmenos ps-estatais e, em certa medida,
supraestatais, no apenas interestatais, de nossa poca
(Koselleck, 2006, pp. 370-71)4.

Thornhill tambm prope um conceito de Constitui-


o em termos que pode ser aplicado a muitas sociedades 203
em diferentes perodos histricos, embora limitando sua
viso de Constituio ao fato de que ela se refere prima-
riamente s funes dos estados [em geral, no dos estados
modernos] e estabelece uma forma legal relativa ao uso do
poder pelos Estados ou, no mnimo, por atores que detm
ou utilizam autoridade pblica (Thornhill, 2011, p. 11)5.
Entretanto, a proposta mais extrema de um conceito his-
trico universal oferecida por Teubner nos seguintes ter-
mos: no apenas ubi societas, ibiius, como uma vez disse
Grotius, mas sim ubi societas, ibi constitutio (Teubner, 2012,
p. 65 )6.

4
Parece-me que Koselleck tambm cai em anacronismo ao ampliar o conceito de
Constituio para abarcar instituies e experincias muito diversas historicamente.
5
Diferentemente do que sugere Thornhill, entendo que essa discusso no deve
ser confundida com a questo referente existncia ou no de constituies for-
malmente escritas (Thornhill, 2011, pp. 9-10).
6
Trad. ingl., 2012, p. 35 a referncia a Grotius s aparece na traduo.

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Normalmente, o conceito histrico-universal de Cons-


tituio apresenta-se no plano emprico, para apontar que
em toda sociedade ou Estado h relaes estruturais bsicas
de poder, determinantes tambm das formas jurdicas. Con-
forme essa concepo, que se encontra em autores to ds-
pares como Engels, Lassale e Weber7, no se pode excluir
a presena de uma Constituio de qualquer ordem social,
inclusive das sociedades arcaicas, pois, tambm nelas, have-
ria estruturas bsicas do poder difuso (Burdeau, 1949,
pp. 249-51). Mas o conceito histrico-universal apresenta-se
tambm na concepo da Constituio em sentido mate-
rial como conjunto de normas jurdico-positivas supremas
(Kelsen, 1960, pp. 228-30 [trad. bras., 2006, pp. 247-49];
1946, pp. 124-25 [trad. bras., 2005, pp. 182-83]; 1925, pp.
251-53), pois um ncleo normativo supremo pode ser
detectado em qualquer ordem jurdica. Um conceito desse
tipo poderia excluir ordens jurdicas primitivas, na medida
204 em que nelas faltariam as normas secundrias de organi-
zao, sobretudo a regra ltima de reconhecimento, que
atuaria como uma Constituio em sentido material; no
obstante, para todo e qualquer Estado, haveria uma Consti-
tuio (regras ltimas de reconhecimento)8. Por fim, tam-
bm pode ter um carter histrico-universal o conceito cul-
turalista, seja quando define a Constituio do Estado como
dialtica da normalidade poltica e normatividade jurdi-
ca (Heller, 1934, pp. 249 e ss. [trad. bras., 1968, pp. 295 e
ss.]) ou quando a concebe como processo de integrao
(Smend, 1968 [1928], espec. pp. 136 e ss. e pp. 189-91), pois
tal dialtica e tal processo so encontrveis em qualquer
tipo de Estado, inclusive no pr-moderno, no absolutista e

7
Cf. Engels (1988 [1844], espec. pp. 572 e ss.); Lassalle (1987 [1862], p. 130);
Weber (1985 [1922], p. 27 [trad. bras., 2004, vol. I, p. 35]).
8
Cf. Hart (1994, pp. 91-123 e ss., espec. p. 107 [trad. port., 2001, pp. 101-35,
espec. pp. 118 e ss.]). Hart (1994, p. 60 [trad. bras., 2001, p. 69]) fala tambm de
questes constitucionais em relao s regras secundrias de alterao.

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no autoritrio. A anlise da especificidade do sentido e da


funo da Constituio, como uma das poucas aquisies
da civilizao moderna que so o resultado de um plane-
jamento intencional (Luhmann, 1990a, p. 176), fica pre-
judicada com esses conceitos de perfil histrico-universal9.
Afasto-me dessa tendncia de sempre identificar a
existncia de uma nova Constituio quando surge uma
ordem, instituio ou organizao jurdica na sociedade
contempornea. Partindo da slida noo de que a Cons-
tituio em sentido estritamente moderno vincula-se ao
constitucionalismo que resultou das revolues liberais dos
fins do sculo XVIII na Frana e nos Estados Unidos e, de
maneira atpica, da evoluo poltico-jurdica britnica,
procurarei determinar quais problemas se apresentaram
como condio de possibilidade histrica do surgimento
do Estado constitucional. Fixados os problemas, cabe inda-
gar qual foi a resposta funcional e normativa que se preten-
deu consubstanciar nas constituies do Estado moderno. 205
exatamente essa relao entre problema e soluo de
problema que vai viabilizar a fixao do conceito de Cons-
tituio do constitucionalismo.
Dois problemas foram fundamentais para o surgimento
da Constituio em sentido moderno: de um lado, a emer-
gncia, em uma sociedade com crescente complexidade
sistmica e heterogeneidade social, das exigncias de direi-
tos fundamentais ou humanos; de outro, associada a isso, a
questo organizacional da limitao e do controle interno
e externo do poder (inclusive mediante a participao dos
governados nos procedimentos, sobretudo nos de determi-

9
Cf. Luhmann (1990a, p. 212). Ao contrrio do que afirma Thornhill (2011, p.
9), Luhmann no aceitou latitude na definio de Constituio, antes props um
conceito muito estrito de Constituio: Minha tese ser que o conceito de Consti-
tuio, ao contrrio da primeira impresso, reage a uma diferenciao entre direito
e poltica e, de fato, dito fortemente, diferenciao plena desses dois sistemas fun-
cionais e necessidade de conexo que da resulta (Luhmann, 1990a, pp. 179-80).

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nao da composio de rgo de governo), que tambm se


relacionava com a questo da crescente especializao das
funes, condio de maior eficincia do poder estatal. O
fato que, mais recentemente, com a maior integrao da
sociedade mundial, esses problemas tornaram-se insuscet-
veis de serem tratados por uma nica ordem jurdica estatal
no mbito do respectivo territrio. Cada vez mais, proble-
mas de direitos humanos ou fundamentais e de controle
e limitao do poder tornam-se concomitantemente rele-
vantes para mais de uma ordem jurdica, muitas vezes no
estatais, que so chamadas ou instadas a oferecer respostas
para a sua soluo. Isso implica uma relao transversal
permanente entre ordens jurdicas em torno de problemas
constitucionais comuns. O direito constitucional, nesse sen-
tido, embora tenha a sua base originria no Estado, dele se
emancipa, no precisamente porque surgiu uma multido
de novas Constituies, mas sim tendo em vista que outras
206 ordens jurdicas esto envolvidas diretamente na soluo
dos problemas constitucionais bsicos, prevalecendo, em
muitos casos, contra a orientao das respectivas ordens
estatais. Alm do mais, surgem permanentemente relaes
diretas entre Estados para tratar de problemas constitucio-
nais comuns. A exceo, nos dois casos, passou a ser a regra.
Em face dessa situao, introduzo o conceito de trans-
constitucionalismo. Por um lado, o transconstitucionalismo
no se confunde com um mero transjuridicismo, que pode
ser observado inclusive na relao entre ordens jurdicas
no pluralismo medieval, sobretudo entre direito cannico
(e romano), direito urbano, direito real e direito feudal10,
pois, na experincia medieval, no se tratava de problemas
constitucionais no sentido moderno, ou seja, nem de ques-
tes de direitos fundamentais nem de limitao e contro-
le jurdico-positivo do poder, muito menos de pretenses

Cf. Berman (1983, figura 2, pp. 522-26 [trad. bras., 2006, pp. 646-50]).
10

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diversas de autofundamentao do direito (em ltima ins-


tncia e em geral, o direito tinha um fundamento sacro11).
Por outro lado, no se trata de constitucionalismo inter-
nacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. O
conceito aponta exatamente para o desenvolvimento de pro-
blemas jurdicos que perpassam os diversos tipos de ordens
jurdicas. Um problema transconstitucional implica uma
questo que poder envolver tribunais estatais, internacio-
nais, supranacionais e transnacionais (arbitrais), assim como
instituies jurdicas locais nativas, na busca de sua soluo.
Para tratar do transconstitucionalismo, recorro ao conceito
de razo transversal de Wolfgang Welsch (1996; 2002, pp.
295-318), mas me afasto um tanto desse ambicioso concei-
to, para analisar os limites e possibilidades da existncia de
racionalidades transversais (pontes de transio) tanto
entre o sistema jurdico e outros sistemas sociais (constitui-
es transversais) quanto entre ordens jurdicas no interior
do direito como sistema funcional da sociedade mundial12. 207
Alm disso, ao tratar do transconstitucionalismo, no o
considerarei apenas como exigncia funcional e pretenso
normativa de uma racionalidade transversal entre ordens
jurdicas, mas tambm levarei em considerao, empirica-
mente, os aspectos negativos dos entrelaamentos trans-
constitucionais, inclusive em caso de o problema envolver
situaes de ordens ou prticas anticonstitucionais, ou seja,
contrrias proteo dos direitos humanos e fundamentais,
assim como ao controle e limitao do poder. Da mesma
maneira, sero discutidas prticas anticonstitucionais pre-
sentes em ordens de Estados tipicamente constitucionais13.
Nesse sentido, cabe distinguir o transconstitucionalismo
(gnero), que inclui relaes entre ordens constitucionais
e anticonstitucionais, do interconstitucionalismo (espcie),

11
Cf. Neves (2009, pp. 8-10 e 16, nota 63 [trad. ingl., 2013, pp. 9-11 e 14, nota 63]).
12
Cf. Neves (2009, pp. 38 e ss. [trad. ingl., 2013, pp. 28 e ss.]).
13
Cf., p. ex., Scheppele (2006), Roach (2006) e Gross (2006).

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que s comporta relaes entre ordens jurdicas que satisfa-


zem as exigncias constitucionalistas.
O transconstitucionalismo no toma uma nica ordem
jurdica ou um tipo determinado de ordem como ponto de
partida ou ultima ratio. Rejeita tanto o estatalismo quanto o
internacionalismo, o supranacionalismo, o transnacionalis-
mo e o localismo como espao de soluo privilegiado dos
problemas constitucionais. Aponta, antes, para a necessida-
de de construo de pontes de transio, da promoo de
conversaes constitucionais, do fortalecimento de entre-
laamentos constitucionais entre as diversas ordens jurdi-
cas: estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais e
locais. O modelo transconstitucional rompe com o dilema
monismo/pluralismo. A pluralidade de ordens jurdicas
implica, na perspectiva do transconstitucionalismo, a rela-
o complementar entre identidade e alteridade. As ordens
envolvidas na soluo do problema constitucional especfico,
208 no plano de sua prpria autofundamentao, reconstroem
continuamente sua identidade mediante o entrelaamento
transconstitucional com a(s) outra(s): a identidade rearti-
culada a partir da alteridade. Da por que, em vez da busca
de uma Constituio herclea, o transconstitucionalismo apon-
ta para a necessidade de enfretamento dos problemas-hidra
constitucionais mediante a articulao de observaes recpro-
cas entre as diversas ordens jurdicas da sociedade mundial.

Da fragmentao jurdica e constitucional ao


transconstitucionalismo
O modelo transconstitucional no compartilha irrestrita-
mente a ideia to amplamente difundida de fragmentao
do direito, que ganhou contornos sistmico-teorticos pre-
cisos especialmente na obra de Teubner e seus discpulos14.

Cf. Teubner (2012 [trad. ingl., 2012]; 2006, pp. 185 e ss.); Fischer-Lescano e
14

Teubner (2006; 2007); Fischer-Lescano (2005, pp. 187 e ss.).

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Considerando que a teoria dos sistemas adota conceitos ori-


ginrios da biologia, como diferenciao, evoluo, coevo-
luo, autopoiese, acoplamento estrutural, entre outros15,
no no sentido de analogia, mas sim de generalizao, cabe
arguir, com uma certa ironia, que, nesse contexto, a noo
de terico-social ou sociolgico-jurdico de fragmentao
deveria ser relacionada a suas razes na concepo biolgi-
ca de fragmentao como processo reprodutivo. Se enten-
demos assim, esbarramos em problemas que a teoria social
ou jurdica da fragmentao da sociedade ou do direito no
teria enfrentado adequadamente. Aqui, cabe referncia
red queen hypotheses, baseada na seguinte afirmao da Rai-
nhaVermelha para Alice, na obra Through the looking glass, de
Lewis Carroll: Como voc v, nesse mundo preciso correr
o mximo que puder para ficar no mesmo lugar16 (Now,
here, you see, it takes all the running you can do, to keep in the same
place (Carroll, 1939 [1872], p. 166). Formulada inicialmente
por Leigh Van Valen (1974, pp. 90 e ss.), essa hiptese apon- 209
ta, especialmente na varivel desenvolvida por William D.
Hamilton (1980; Hamilton, Henderson e Moran, 1981), para
o papel da reproduo sexual na promoo de variabilidade
gentica e maior capacidade de seleo em relao aos ele-
mentos e fatores do ambiente, especialmente em relao aos
parasitas17. A fragmentao, ao contrrio, como forma tpica
de reproduo assexual, importa limitada variao gentica,
frgil capacidade de seleo e de reposta s adversidades do
ambiente, o que significa poucas alternativas evolutivas. Uma
das vantagens das espcies sexuais em relao s assexuais
est associada a abundante polimorfismo (Riddley, 2003,
p. 84)18, implicando que as espcies sexuais tm maior capa-

15
Cf. Teubner (1989, espec. pp. 66 e ss. [trad. ingl., 1993, espec. pp. 51 e ss.]).
16
Traduo do autor.
17
A respeito, ver a exposio abrangente de Riddley (2003). Com algumas restri-
es, ver Neiman e Koskella (2009).
18
Cf. Hamilton (1980, espec. p. 283) e Hamilton, Henderson e Moran (1981,

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cidade de responder s adversidades do ambiente19. Apesar


das divergncias, a red queen hypotheses parece j encontrar
elementos precursores na obra de Darwin, o qual, embora
considerando que as espcies assexuais no so totalmente
incompatveis com a evoluo (Darwin, 1971 [1872], p. 24),
enfatizava, alm daquela hiptese, que, mesmo na repro-
duo sexual, a autofertilizao envolve uma limitada ou
implausvel capacidade evolutiva, nos seguintes termos, afir-
mando ser uma lei geral da natureza que nenhum ser org-
nico fertiliza a si mesmo para uma perpetuidade de geraes;
mas que o cruzamento com outro indivduo ocasionalmen-
te talvez em intervalos longos de tempo indispensvel
(Darwin, 1971 [1872], p. 95). E apontava inclusive para a des-
vantagem dos cruzamentos prximos:

[...] eu coletei um amplo conjunto de fatos e fiz muitos


experimentos mostrando que [...], com animais e plantas,
210 um cruzamento entre diferentes variedades, ou entre
indivduos da mesma variedade, mas de outra linhagem,
d vigor e fertilidade prole; e, por outro lado, que
cruzamento prximo diminui vigor e fertilidade (Darwin,
1971 [1872], p. 95).

espec. p. 66), que enfatizaram, porm, que pretendiam ir alm da questo do po-
limofismo, para concentrarem o seu foco no problema do sexo (p. 65). A questo
da importncia do polimorfismo remonta a Haldane (1990 [1949]), que tambm
advertia para o perigo da homogeneidade (329 [6]).
19
Na linguagem metafrica de Ridley, as espcies sexuais podem recorrer a um
tipo de biblioteca de fechaduras que no est disponvel s espcies assexuais
(Sexual species can call on a sort of library of locks that is unavailable to asexual
species [Riddley, 2003, p. 72]). De acordo com Hamilton, Axelrod e Tanese
(1990, p. 3568), o sucesso do sexo aumenta como nmero de loci envolvidos na
defesa contra parasitas. Eles afirmam: A essncia do sexo em nossa teoria que
ele armazena genes que esto ruins, mas oferecem promessa para reutilizao. Ele
os prova continuamente em combinao, espera do momento em que o foco de
desvantagem mudou para outro lugar. Quando isso acontece, os gentipos que
comportem esses genes espalham-se mediante exitosa reproduo, tornando-se,
simultaneamente, reservas para outros genes ruins e, assim, progressivamente, em
sucesso contnua (Hamilton, Axelrod e Tanese,1990, p. 3569).

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Dessa maneira, j se assinalava a importncia da sexua-


lidade entre seres geneticamente diversos para a evoluo
das espcies.
Estou consciente do perigo de uma leitura conserva-
dora da red queen hypotheses se for transportada de forma
sociobiologista para o campo das cincias sociais, assim
como do fato de que a teoria dos sistemas sociais desenvol-
vida a partir de Luhmann afirma, nos termos da concepo
dos fundadores da sociologia, radicalizando-a, a emergn-
cia de cima na relao entre sistemas sociais, psquicos e
biolgicos (Luhmann, 1987 [1984], pp. 43-44 [trad. esp.,
1998, pp. 45-46]; Teubner, 1989, pp. 40-41 [trad. ingl.,
1993, pp. 29-30])20. Aqui caberia uma releitura socialmen-
te adequada. Parece-me oportuno considerar que a mera
fragmentao incompatvel com transformaes adequa-
das dos sistemas sociais em face do seu ambiente sempre
mais complexo. Os problemas se renovam e os sistemas
sociais ou ordens jurdicas precisam construir no apenas 211
acoplamentos estruturais com seu ambiente, mas tambm
construir novas pontes de transio com outras ordens
jurdicas ou sistemas sociais, para que sejam aptos a arti-
cular-se em face da flutuao permanente dos fatores dos
respectivos ambientes. A simples fragmentao no ofere-
ce caminhos de soluo ao novos problemas que emergem
nos processos de transformao social contnua. Sem o
desenvolvimento de polimorfismo mediante pontes de
transio flexveis, os sistemas ou ordens jurdicas seriam
paralisados na sua reproduo, sendo levados morte
pelo cristal, ou seja, cairiam na hiperintegrao por exces-
so de redundncia21. Em outras palavras, a construo de

20
Nem por isso Luhmann e Teubner deixaram de recorrer a conceitos da teoria
biolgica de Maturana e Varela (1980, pp. 107-11; 1987, pp. 196 e ss.), que partem
da emergncia de baixo, considerando os seres vivos como componentes dos
sistemas sociais.
21
Uso aqui a metfora de Atlan (1979, p. 281), ao distinguir, no limite, entre a

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eclusas, especialmente no concernente ao direito, depen-


de, paradoxalmente, de conexes transversais entre siste-
mas sociais e ordens jurdicas. por isso que a orientao
funcional da relao entre problema e soluo de proble-
ma deve considerar como ocorre a tessitura dos fragmen-
tos em uma ordem diferenciada de comunicao. Para
isso, necessria uma certa desintegrao interna, que
indissocivel do incremento de flexibilidade ou variedade
para fora, dependente de intercruzamentos promotores
da renovao permanente da identidade em vista da alte-
ridade. Isso significa, enfim, que os problemas de coliso
no so enfrentados ou solucionados a cada passo no nvel
da mera fragmentao ou dos simples fragmentos, mas
sim por via de pontes construdas transversalmente entre
as unidade constitutivas de uma ordem diferenciada de
comunicao em constante transformao.
Do ponto de vista do sistema jurdico, essa situao
212 ainda mais patente se considerarmos que as diversas ordens
jurdicas do sistema jurdico mundial utilizam o mesmo
cdigo binrio de comunicao (lcito/ilcito), mas tm
estruturas e nveis de autonomia totalmente diversos. A
esse propsito, cabe apontar para um outro problema da
concepo de pluralismo jurdico na sociedade mundial.
O modelo heterrquico do mainstream sistmico parte de
conceitos quase apriorstico de autonomia ou autopoiese
de regimes fragmentados supostamente constitucionais,
em uma dinmica plena de diferenciao funcional22. No
observa, empiricamente, que diversas formas e ordens jur-

morte por rigidez, a do cristal, do mineral, e a morte por decomposio, a da fu-


maa, ou seja, entre excesso de redundncia e excesso de variedade.
22
Conhecidamente, a globalizao significa sobretudo que a dinmica da dife-
renciao funcional, que, historicamente, realizou-se primeiramente nos estados
nacionais da Europa e da Amrica do Norte, alcana, agora, todo o globo terres-
tre (Teubner, 2012, p. 72 [trad. ingl., 2012, p. 42]; cf. tambm pp. 119-20 [trad.
ingl., pp. 74-75], a respeito da relao entre Constituio e autonomia do sistema
jurdico no plano do pluralismo constitucional global).

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dicas do sistema jurdico mundial no dispem de um mni-


mo de autonomia, muito menos de autonomia constitucio-
nal, no s por serem instrumentos (direito como meio)
da poltica (totalitarismo e autoritarismo) ou da economia
(formas de direito orientadas quase exclusivamente efici-
ncia do mercado), mas tambm por no disporem sequer
das chamadas regras secundrias de organizao, como o
direitos dos povos indgenas e tribais. Todas elas, porm,
encontram-se expostas aos mesmos problemas constitucio-
nais. Quando o modelo dominante de pluralismo constitu-
cional enfrenta o problema de ordens jurdicas tribais, limi-
ta-se a considerar, especialmente na perspectiva do direito
de propriedade intelectual, como essas ordens sero com-
patibilizadas com o modelo do direito de patente23. No se
leva a srio a observao irnica (alguns dizem cnica) de
Luhmann de que o modelo de diferenciao do direito tal-
vez seja apenas uma anomalia europeia (Luhmann, 1993,
p. 586 [trad. esp., 2002, p. 664]). Esse o paradoxo da 213
sociedade mundial: a diferenciao funcional e autonomia
dos sistemas irradiou-se do seu centro como exigncia fun-
cional e em certa medida como pretenso normativa, sen-
do quase que imposta (evidentemente de forma seletiva) s
suas periferias, que no estiveram e no esto em condies
de corresponder ou dispostas a adequar-se ao modelo da
diferenciao. Isso decorre da imensa assimetria da socie-
dade mundial, insuscetvel de ser considerada em um foco
evolutivo simplificado.
Relacionado a isso, gostaria de enfatizar aqui que o
modelo dominante de pluralismo constitucional parte de
uma evoluo linear da sociedade mundial que considera
apenas o desenvolvimento do direito na modernidade cen-
tral, na passagem do direito liberal (racionalidade formal),

Cf. Teubner e Fischer-Lescano (2008) e Teubner (2012, pp. 242 e ss. [trad. ingl.,
23

2012, pp. 162 e ss.].

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(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

passando pelo direito do Estado social (racionalidade mate-


rial), para, com a crise deste, alcanar o direito reflexivo
(Teubner, 2012, pp. 33 e ss. e pp. 45 e ss., espec. pp. 62-63
[trad. ingl., 2012, pp. 15 e ss., 24 e ss., espec. p. 35])24. Da
mesma maneira que j falamos acima em relao ques-
to da autonomia, o pluralismo constitucional dominante
desconsidera que o Estado liberal, muito menos o Estado
social, no se realizou na maioria dos contextos geogrfi-
cos e demogrficos de comunicao da sociedade moderna.
No se pode falar de crise do Estado social ou do Welfare
State nesses contextos. Em muitas regies do globo terres-
tre, os movimentos sociais demandam a presena de um
mnimo de Estado social, sem o qual perde sentido falar em
pluralismo jurdico ps-moderno ou global, seno como
romantizao ps-colonialista da misria. Este o parado-
xo e tambm o equvoco decorrente do pluralismo jurdico
na sociedade mundial: como se falar de insero em redes
214 transacionais horizontais sem considerar as assimetrias gri-
tantes e no apenas a nova avalanche de excluso decor-
rente da desmontagem do Estado social (Luhmann, 2000,
pp. 427-28), mas tambm a persistncia de devastadora
excluso nas periferias da sociedade mundial? Alm disso,
como incluir na evoluo linear de direito liberal (formal),
direito do Estado social (material) e direito reflexivo, as for-
mas tribais de ordens jurdicas no diferenciadas, que, antes
de envolvidas na diferena incluso/excluso, envolvem o
problema do isolamento/no isolamento?
O transconstitucionalismo leva a srio essas assimetrias
na afirmao das pontes tanto contenciosas quanto coope-
radoras de transio. Evidentemente, no se trata no trans-
constitucionalismo de dilogos constitucionais orientados
para o entendimento entre cortes ou instncia de ordens
jurdicas diversas. Os problemas transconstitucionais impor-

Ver tambm, em sua primeira formulao desse modelo, Teubner (1982, pp. 24-29).
24

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Marcelo Neves

tam a dimenso contenciosa. E, mesmo quando se trata de


dilogo, este no deve ser entendido em termos de con-
ciliao ou consenso, mas, antes, para referir a formas de
comunicao destinadas absoro do dissenso, assumin-
do a dupla contingncia (Neves, 2009, pp. 270 e ss. [trad.
ingl., 2013, pp. 169 e ss.]). Observe-se que a dupla contin-
gncia no diz respeito apenas s relaes entre alter e ego
enquanto pessoas na interao, mas refere-se tambm a sis-
temas (no apenas a sistemas organizacionais), na medida
em que estes observam um ao outro reciprocamente, como
bem salientou Luhmann, indo alm do modelo de dupla
contingncia proposto pela teoria da ao (Luhmann, 1987
[1984], pp. 152 e 155 [trad. esp., 1998, pp. 115 e 117]).
Entre diferentes ordens jurdicas, especialmente no plano
dos problemas constitucionais, dilogo deve apontar para
comunicao transversal, assentado na dupla contingncia.
Dilogo, aqui, poderia ter um sentido anlogo ao formula-
do por Feyerabend25, referindo-se a formas de comunicao 215
orientadas para influenciar e modificar um ao outro reci-
procamente, mostrando os limites das perspectivas corres-
pondentes, sem que da possa esperar-se algo como consen-
so. Mas, inclusive nesse sentido dissensual, a possiblidade
de dilogo apenas uma dimenso limitada do transcons-
titucionalismo entre ordens jurdicas. Talvez seja bem mais
importante o aprendizado recproco mediante o conflito,
a contenda nas pontes de transio. E tudo isso implica
paradoxo decorrente da necessidade de surpreender-se per-
manentemente com o outro e sobre si mesmo.
A esse respeito, vou considerar nesta oportunidade ape-
nas um caso que tratei em meu livro Transconstitucionalis-
mo, em que o paradoxo transconstitucional sobremaneira
marcante.

Ele pode mostrar o efeito de argumento sobre estranhos e sobre expertos de


25

uma diferente escola, assim como demonstrar que a natureza quimrica do que
cremos so as partes mais slidas de nossa vida (Feyerabend, 1991, pp. 164-65).

Lua Nova, So Paulo, 93: 201-232, 2014


(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

Um caso emblemtico: transconstitucionalismo entre


ordem normativa de comunidade indgena e a ordem
constitucional do Estado brasileiro
O transconstitucionalismo envolve tambm a relao pro-
blemtica entre as ordens jurdicas estatais e as ordens
extraestatais de coletividades nativas, cujos pressupostos
antropolgico-culturais no se compatibilizam com o mode-
lo de constitucionalismo do Estado. Evidentemente, nesse
caso, trata-se de ordens arcaicas que no dispem de prin-
cpios ou regras secundrias de organizao e, por conse-
guinte, no se enquadram no modelo reflexivo do constitu-
cionalismo. A rigor, elas no admitem problemas jurdico-
-constitucionais de direitos humanos e de limitao jurdica
do poder. Ordens normativas dessa espcieexigem, quando
entram em coliso com as instituies da ordem jurdica
constitucional de um Estado, um transconstitucionalismo
unilateral de tolerncia e, em certa medida, de aprendiza-
216 do. Essa forma de transconstitucionalismo impe-se porque
embora as referidas ordens jurdicas, em muitas de suas
normas e prticas, afastem-se sensivelmente do modelo de
direitos humanos e de limitao jurdica do poder nos ter-
mos do sistema jurdico da sociedade mundial a simples
imposio unilateral dos direitos humanos aos seus mem-
bros contrria ao transconstitucionalismo. Medidas nessa
direo tendem a ter consequncias destrutivas sobre men-
tes e corpos, sendo contrrias ao prprio conceito de direi-
tos humanos26. Nesse contexto, h um paradoxo do trans-
constitucionalismo, pois ele se envolve em conversaes
constitucionais com ordens normativas que esto margem
do prprio constitucionalismo. Mas essa situao resultan-
te da necessidade intrnseca ao transconstitucionalismo de

A questo dos direitos humanos, no sentido rigoroso, deve ser compreendida


26

hoje como ameaa integridade de corpo/alma do homem individual por uma


multiplicidade de processos de comunicao annimos e independentes, atual-
mente globalizados (Teubner, 2006, p. 180 [trad. ingl., 2006, p. 341]).

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Marcelo Neves

no excluir o desenvolvimento de institutos alternativos que


possibilitem um dilogo construtivo com essas ordens dos
antropolgico-culturalmente diferentes, baseadas mile-
narmente no territrio do respectivo Estado. Portanto, nes-
sas circunstncias, embora limitado, o transconstitucionalis-
mo no perde o seu significado para o desenvolvimento da
dimenso normativa da sociedade mundial do presente.
A experincia latino-americana rica de problemas
jurdico-constitucionais decorrentes do entrelaamento
entre ordens normativas nativas e ordens constitucionais
dos Estados, especialmente no que concerne aos direitos
fundamentais.
Um dos casos mais delicados apresentou-se recente-
mente na relao entre a ordem jurdica estatal brasileira
e a ordem normativa dos ndios Suruah, habitantes do
municpio de Tapau, localizado no estado do Amazonas,
que permaneceram isolados voluntariamente at os fins da
dcada de 1970 (Segato, 2011, p. 363). Conforme o direi- 217
to consuetudinrio dos Suruah, obrigatrio o homicdio
dos recm-nascidos quando tenham alguma deficincia fsi-
ca ou de sade em geral. Em outra comunidade, a dos ind-
genas Yawanaw, localizada no estado do Acre, na fronteira
entre Brasil e Peru, h uma ordem normativa consuetudi-
nria que determina que se tire a vida de um dos gmeos
recm-nascidos. Nesse contexto, tambm se tornou pbli-
co o fato de que prticas desse tipo eram comuns entre os
Yanomami e outras etnias indgenas. Essa situao levou
a polmicas, pois se tratava de um conflito praticamente
insolvel entre direito de autonomia cultural e direito
vida. O problema j tomara destaque na ocasio em que
uma indgena Yawanaw, em oficina de direitos humanos
da Fundao Nacional do ndio, em 2002, descreveu a obri-
gatoriedade, em sua comunidade, da prtica de homicdio
de um dos gmeos, apresentando-se como vtima dessa pr-
tica jurdica costumeira (Segato, 2011, pp. 357-58). Nesse

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(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

contexto, a questo tambm foi apresentada como conflito


entre direito de autonomia cultural e direito das mulheres.
Passou, porm, a ter ampla repercusso pblica em relao
ao direito da criana vida sobretudo mediante a desta-
cada difuso nos meios de comunicao de massa de gran-
de influncia com a divulgao do resgate, por um casal
de missionrios, de uma criana com uma grave disfuno
hormonal congnita, que estava condenada morte entre
os Suruah27. Sobretudo a repercusso pblica do costume
dos Suruah levou proposio por parte do deputado
federal Henrique Afonso, representante do estado do Acre,
do Projeto de Lei n 1.057, de 2007, destinado especifica-
mente criminalizao dessa prtica. A ementa desse pro-
jeto tinha originariamente o seguinte teor: Dispe sobre
o combate a prticas tradicionais nocivas e proteo dos
direitos fundamentais de crianas indgenas, bem como
pertencentes a outras sociedades ditas no tradicionais.28
218 Para fins de medidas especficas de combate a essas prticas,
inclusive a criminalizao daqueles que, em contato com a
comunidade nativa, no fizessem a devida notificao s
autoridades competentes, assim como das autoridades que
no tomassem as providncias cabveis (artigos 3, 4 e 5),
o artigo 2, incisos I a VIII, do Projeto, previa a tipificao
dos seguintes casos de homicdio de recm-nascidos: em
casos de falta de um dos genitores; em casos de gestao
mltipla; quando estes so portadores de doenas fsicas
e/ou mentais; quando h preferncia de gnero; quan-
do houver breve espao de tempo entre uma gestao ante-
rior e o nascimento em questo; em casos de exceder o
nmero de filhos apropriado para o grupo; quando estes
possurem algum sinal ou marca de nascena que os dife-
rencie dos demais; quando estes so considerados de m

Cf. Segato (2011, p. 363).


27

Disponvel em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitaca


28

o?idProposicao=351362>. Acesso em: 17 dez. 2014.

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Marcelo Neves

sorte para a famlia ou para o grupo. O Projeto originrio


tambm propunha a tipificao dos homicdios de criana,
em caso de crena de que a criana desnutrida fruto de
maldio, ou por qualquer outra crena que leve ao bi-
to intencional por desnutrio (artigo 2, inciso IX). Essas
hipteses previstas no Projeto, alm de outras referentes a
abusos sexuais, maus tratos e outras agresses fsico-psqui-
cas de crianas e seus genitores por fundamentos culturais e
tradicionais (artigo 2, incisos X, XI e XII), correspondem a
prticas verificadas nas comunidades indgenas localizadas
no territrio do Estado brasileiro. Esse Projeto deu ensejo a
uma audincia pblica na Comisso de Direitos Humanos
da Cmara dos Deputados29. Embora no tenha logrado
xito, o contexto em que foi elaborado e a discusso que
engendrou apontam para um caso singular de dilogo e
coliso transconstitucional entre ordem jurdica estatal e
ordens normativas locais das comunidades indgenas.
Os elaboradores e defensores do Projeto de Lei partiram 219
primariamente da absolutizao do direito fundamental indi-
vidual vida, nos termos da moral crist ocidental. Secunda-
riamente, tambm contribuiu para a proposio do Projeto
o direito fundamental da me maternidade. Essa postura

29
Convocada pela Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados em
agosto de 2007 e realizada em 5 de setembro de 2007 (cf. Segato, 2011, pp. 357 e
369). Posteriormente, esse projeto de lei foi profundamente alterado, reduzindo-
-se a declaraes genricas e a previsode apoios respectivas comunidades, nos
seguintes termos:
Art.54-A. Reafirma-se o respeito e o fomento s prticas tradicionais indgenas, sempre que
as mesmas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Consti-
tuio Federal e com os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos de que
a Repblica Federativa do Brasil seja parte.
Pargrafo nico. Cabe aos rgos responsveis pela poltica indigenista oferecerem oportu-
nidades adequadas aos povos indgenas de adquirir conhecimentos sobre a sociedade em seu
conjunto quando forem verificadas, mediante estudos antropolgicos, as seguintes prticas:
I infanticdio;
II atentado violento ao pudor ou estupro;
III maus tratos;
IV agresses integridade fsica e psquica de crianas e seus genitores.

Lua Nova, So Paulo, 93: 201-232, 2014


(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

unilateral pela imposio dos direitos individuais em detri-


mento da autonomia cultural das comunidades no pareceu
adequada para os que se manifestaram em torno do proble-
ma em uma perspectiva antropolgica mais abrangente. A
simples criminalizao das prticas indgenas, em nome da
defesa do direito vida, pode ser vista, outrossim, como um
verdadeiro genocdio cultural, a destruio da prpria comu-
nidade, destruindo suas crenas mais profundas.
Com intensa participao no debate, inclusive na audi-
ncia pblica realizada em 5 de setembro de 2007 na Cma-
ra dos Deputados, as ponderaes da antroploga Rita Lau-
ra Segato contriburam positivamente para o esclarecimento
dessa coliso de ordens jurdicas, enfatizando a necessidade
de um dilogo entre ordens normativas30, em termos que
se enquadram em um modelo construtivo de transconstitu-
cionalismo. No contexto do debate, Segato reconheceu que
tinha diante de si a tarefa ingrata de argumentar contra
220 essa lei, mas, ao mesmo tempo, de fazer uma forte aposta
na transformao do costume (Segato, 2011, p. 358). No
mbito de sua argumentao, ela invocou pesquisa emprica
sobre os Suruah, na qual se verificou que, em um grupo de
143 membros da comunidade indgena, entre 2003 e 2005,
houve dezesseis nascimentos, 23 suicdios, dois homicdios
de recm-nascidos (denominados pelos antroplogos infan-
ticdio, sem o sentido tcnico-jurdico do tipo penal) e uma
morte por doena. Ou seja, enquanto 7,6% das mortes ocor-
reram por infanticdio, houve 57,6% de mortes por sui-
cdio entre os Suruah. Essa situao aponta uma compre-
enso da vida bem distinta da concepo crist ocidental.
Entre essa comunidade indgena, a vida s tem sentido se
no for marcada por excessivo sofrimento para o indivduo
e a comunidade, se for uma vida tranquila e amena. Assim
se justificaria o homicdio de recm-nascido em determina-

Cf. Segato (2011, pp. 370 e ss.).


30

Lua Nova, So Paulo, 93: 201-232, 2014


Marcelo Neves

dos casos (Segato, 2011, pp. 364-65). O significado atribu-


do vida e morte pelos Suruah no seria menos digno
do que o sentido que lhes atribui o cristianismo: Tambm
constatamos que se trata de uma viso complexa, sofisticada
e de grande dignidade filosfica, que nada deve aos cristia-
nismos (Segato, 2011, p. 364).
O argumento fortificado com a referncia prtica
yanomami, na qual a mulher tem direito absoluto sobre a vida
dos seus recm-nascidos. O parto ocorre em ambiente natu-
ral, fora do contexto da vida social, deixando a opo me:

[...] se no toca o beb nem o levanta em seus braos,


deixando-o na terra onde caiu, significa que este no foi
acolhido no mundo da cultura e das relaes sociais, e que
no , portanto, humano. Dessa forma, no se pode dizer
que ocorreu, na perspectiva nativa, um homicdio, pois
aquele que permaneceu na terra no uma vida humana
(Segato, 2011, p. 365). 221

Essa concepo bem diversa da vida humana impor-


ta realmente um delicado problema que parece-me
incompatvel com uma mera imposio de concepes
externas sobre a vida e a morte, mediante aquilo que, em
outro contexto, chamei paradoxalmente de imperialismo
dos direitos humanos (Neves, 2005, pp. 23 e 27). E isso
vlido no apenas de um ponto de vista antropolgico-
-cultural ou antropolgico-jurdico, mas tambm na pers-
pectiva especfica de um direito constitucional sensvel ao
transconstitucionalismo.
Impe-se nesse contexto considerar a coliso entre duas
perspectivas diversas dos direitos, procurando no fazer
injustia mediante a imposio de uma, a da ordem dos
mais fortes, outra, a da ordem dos mais fracos. De um lado
est o direito autonomia coletiva, do outro o direito auto-
nomia individual. Simplesmente submeter aquele, considera-

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(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

do expresso de uma forma tica de vida, a este, considerado


expresso de uma moral universal que se apresenta como
base dos direitos humanos31, no parece a soluo mais opor-
tuna em um modelo de transconstitucionalismo. Ao contr-
rio, nesse contexto de coliso radical entre a ordem jurdica
estatal e as ordens normativas indgenas, tem-se de conside-
rar e ponderar entre o direito vida do sujeito individual
e o direito vida do sujeito coletivo, como argui Segato
(2011, p. 367)32. No caso, a ultracriminalizao das prticas
do homicdio de recm-nascidos praticadas no interior das
comunidades indgenas, proposta na verso original do Pro-
jeto de Lei n 1.057, de 2007, poderia ser etnocida, ao elimi-
nar valores culturais indispensveis vida biolgica e cultural
de um povo (Botero, 2006, p. 156; tambm citada por Sega-
to, 2011, p. 367). Assim sendo, tal soluo legal teria implica-
es de difcil compatibilizao inclusive com a ordem cons-
titucional do Estado brasileiro33. Parece ser necessria, nessas
222 circunstncias, a busca de outros caminhos.
A proposta que se afigura mais adequada ao transconsti-
tucionalismo reside em garantir a jurisdio ou foro tnico,

31
Klaus Gnther (1988, p. 196 [trad. ingl., 1993, p. 153]), embora sustente que
a aplicao adequada de normas jurdicas no pode, sem fundamento, ofender for-
mas de vida (grifo meu), mostra-se antes favorvel a uma tal orientao, quando
sustenta que as colises entre princpios de justia e orientaes da vida boa, no
nvel ps-convencional, s podem ser resolvidas universalistamente, portanto, em
favor da justia. Cabe advertir, porm, que nos termos da teoria habermasiana da
ao comunicativa e do discurso, segundo a qual Gnther se orienta, haveria, no
caso, a coliso entre uma moral ps-convencional e uma pr-convencional. Sobre
os nveis do desenvolvimento da conscincia moral na teoria da evoluo social de
Habermas, ver Neves (2006, pp. 25 e ss.).
32
A respeito, afirmou Segato na referida audincia pblica, referindo-se ao signi-
ficado da expresso direito vida nesse contexto: Essa expresso pode indicar
dois tipos diferentes de direito vida: o direito individual vida, quer dizer, a
proteo do sujeito individual de direitos, e o direito vida dos sujeitos coletivos,
isto , o direito proteo da vida dos povos em sua condio de povos (Segato,
2011, p. 372).
33
E especificamente por fora do disposto no art. 231, caput, da Constituio Fede-
ral: So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas
e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Lua Nova, So Paulo, 93: 201-232, 2014


Marcelo Neves

para que cada comunidade indgena resolva seus conflitos


e elabore seu dissenso interno por um caminho prprio
(Segato, 2011, pp. 375 e 377). Isso no implica simplesmen-
te tolerncia do mais poderoso, tampouco tolerncia perante
o intolerante (Rawls, 1990 [1972], pp. 216-21), antes se trata
de capacidade de admitir a autonomia do outro, isto , da
esfera de comunicao, do jogo de linguagem ou da forma
de vida diferente do nativo, no submetida aos modelos do
constitucionalismo estatal. Muito menos cabe falar de socie-
dades decentes e indecentes, ou seja, dignas ou indignas
do dilogo com as sociedades liberais do Estado demo-
crtico constitucional (Rawls, 1999, pp. 4-5 e 59 e ss.), como
se no estivssemos na mesma sociedade mundial, com coli-
ses e conflitos entre domnios de comunicao e jogos de
linguagem. Mas cabe ponderar que, no s de um ponto de
vista antropolgico, mas tambm na perspectiva do transcons-
titucionalismo, diante dos dissensos e conflitos no interior
das comunidades indgenas, inclusive em torno da prtica do 223
homicdio de recm-nascidos, o papel do Estado, na pessoa
dos seus agentes, ter de ser o de estar disponvel para supervi-
sionar, mediar ou interceder com o fim nico de garantir que
o processo interno de deliberao possa ocorrer livremente,
sem abuso por parte dos mais poderosos no interior da socie-
dade (Segato, 2011, p. 375)34. Assim, neste contexto, a pos-
tura transconstitucional apresenta-se na limitao jurdica do
poder abusivo dentro da comunidade. Isso porque, caso haja
manipulao das decises comunitrias pelos mais poderosos,

34
A esse respeito, acrescenta Segato (2011, pp. 375-76): Tampouco se trata de so-
licitar a retirada do Estado, porque, como atestam as mltiplas demandas por pol-
ticas pblicas colocadas perante o mesmo pelos povos indgenas a partir da Consti-
tuio de 1988, depois da intensa e perniciosa desordem instalada pelo contato, o
Estado j no pode, simplesmente, ausentar-se. Deve permanecer disponvel para
oferecer garantias e proteo quando convocado por membros das comunidades,
sempre que essa interveno ocorra em dilogo entre os representantes do Estado
e os representantes da comunidade em questo. Seu papel, nesse caso, no poder
ser outro, a no ser o de promover e facilitar o dilogo entre os poderes da aldeia
e seus membros mais frgeis.

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(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

sem legitimidade na ordem normativa respectiva, desaparece


a autonomia tnica de que se parte para o dilogo consti-
tucional. Portanto, observa-se, dessa maneira, que nenhuma
forma de apresentao de autonomia de esferas sociais, inclu-
sive das construdas por comunidades nativas no diferencia-
das funcionalmente, tem um carter absoluto, sendo todas
relativas no mbito da sociedade mundial do presente.
Esse delicado problema no se restringe ao dilema
entre relativismo tico (das culturas particulares) e uni-
versalismo moral (dos direitos dos homens), antes aponta
para o convvio de ordens jurdicas que partem de expe-
rincias histricas diversas35, exigindo especialmente por
parte do Estado constitucional uma postura de moderao
relativamente sua pretenso de concretizar suas normas
especficas, quando essas entrem em coliso com normas de
comunidades nativas fundadas em bases culturais essencial-
mente diferentes. A discrio e o comedimento, nesse caso,
224 parecem ser a via que pode levar a conversaes construti-
vas que estimulem autotransformaes internas das comu-
nidades indgenas para uma relao menos conflituosa com
a ordem estatal. A tentativa de buscar modelos internos de
otimizao, nos termos da teoria dos princpios, pode ser
desastrosa nessas circunstncias. Em relao ao outro,
ordem diversa dos nativos, cabe antes uma postura trans-
constitucional de autoconteno dos direitos fundamen-
tais cuja otimizao possa levar desintegrao de formas
de vida, com consequncias destrutivas para os corpos e as
mentes dos membros das respectivas comunidades36.
Mas esse problema no se restringe relao das ordens
jurdicas consuetudinrias das comunidades indgenas com
a ordem jurdica estatal, envolvendo tambm a ordem inter-

35
Cf. Segato (2011, pp. 375-77); ver, de maneira mais abrangente, Segato (2006,
pp. 207-36). A respeito da relao intrnseca entre universalismo e diferena, ver
Neves (2001).
36
Ver supra nota 25.

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Marcelo Neves

nacional. H, ento, um entrelaamentos pluridimensional


em torno de direitos humanos. A respeito, relevante a
Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho
(OIT) sobre Povos Indgenas e Tribais37, cujo art. 8, n 2,
prescreve: Esses povos devero ter o direito de conservar
seus costumes e instituies prprias, desde que eles no
sejam incompatveis com os direitos fundamentais defi-
nidos pelo sistema jurdico nacional nem com os direitos
humanos internacionalmente reconhecidos [...]. Esse pre-
ceito torna mais complicada a coliso das ordens locais nati-
vas com a ordem dos direitos fundamentais estatais e dos
direitos humanos internacionais. Uma interpretao literal
desse dispositivo, em nome da proteo absoluta da vida
dos recm-nascidos, levaria tendencialmente a um etnoc-
dio contra as respectivas comunidades indgenas. Parece-
-me que os argumentos apresentados no item anterior no
perdem o seu significado em virtude dessa referncia ao
direito internacional. Nesses casos, cabe no apenas uma 225
releitura complexamente adequada tanto das normas esta-
tais de direitos fundamentais quanto das normas internacio-
nais de direitos humanos. Um universalismo superficial dos
direitos humanos, baseado linearmente em uma certa con-
cepo ocidental ontolgica de tais direitos, incompatvel
com um dilogo transconstitucional com ordens nativas
que no correspondem a esse modelo. Ao contrrio, a nega-
o de uma comunicao transversal com ordens indgenas
em torno dessas questes delicadas contrria aos prprios
direitos humanos, pois implicaria uma ultracriminaliza-
o de toda a comunidade de autores e coautores dos res-
pectivos atos, afetando-lhes indiscriminadamente corpo e
mente mediante uma ingerncia destrutiva. No mbito de
um transconstitucionalismo positivo impe-se, nesses casos,

A respeito dessa Conveno, ver a breve exposio de Wolfrum (1999 [trad.


37

bras., 2008]).

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(No) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo alm de colises

uma disposio das ordens estatais e internacionais de sur-


preender-se em um aprendizado recproco com a experin-
cia do outro, o nativo em sua autocompreenso.

***

Uma transformao profunda tem ocorrido, nas con-


dies hodiernas da sociedade mundial, no sentido da
superao do constitucionalismo provinciano ou paroquial
pelo transconstitucionalismo. Essa transformao deve ser
levada a srio. O Estado deixou de ser um locus privilegiado
de soluo de problemas constitucionais. Embora funda-
mental e indispensvel, apenas um dos diversos loci em
cooperao e concorrncia na busca do tratamento desses
problemas. A integrao sistmica cada vez maior da socie-
dade mundial levou desterritorializao de problemas-
-caso jurdico-constitucionais, que, por assim dizer, eman-
226 ciparam-se do Estado. Essa situao no deve levar, porm,
a novas iluses, na busca de nveis inviolveis definitivos:
internacionalismo como ultima ratio, conforme uma nova
hierarquizao absoluta; supranacionalismo como panaceia
jurdica; transnacionalismo como fragmentao libertadora
das amarras do Estado; localismo como expresso de uma
etnicidade definitivamente inviolvel38.
Contra essas tendncias, o transconstitucionalismo
implica o reconhecimento de que as diversas ordens jur-
dicas entrelaadas na soluo de um problema-caso cons-
titucional a saber, de direitos fundamentais ou humanos
e de organizao legtima do poder , que lhes seja conco-
mitantemente relevante, devem buscar formas transversais
de articulao para a soluo do problema, cada uma delas
observando a outra, para compreender os seus prprios

O nvel inviolvel pode envolver-se, no dinmico jogo transconstitucional,


38

com outros nveis (entrelaados) em um nvel superentrelaado, nos termos de


Hofstadter (1979, pp. 686 e ss. [trad. bras., 2001, pp. 753 e ss.]).

Lua Nova, So Paulo, 93: 201-232, 2014


Marcelo Neves

limites e possibilidades de contribuir para solucion-lo. Sua


identidade reconstruda, dessa maneira, enquanto leva
a srio a alteridade, a observao do outro. Isso me pare-
ce frutfero e enriquecedor da prpria identidade porque
todo observador tem um limite de viso no ponto cego,
aquele que o observador no pode ver em virtude da sua
posio ou perspectiva de observao (Von Foerster, 1981,
pp. 288-89). Mas, se verdade, considerando a diversidade
de perspectivas de observao de alter e ego, que eu vejo o
que tu no vs (Luhmann, 1990b), cabe acrescentar que o
ponto cego de um observador pode ser visto pelo outro.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o transconstitucionalis-
mo implica o reconhecimento dos limites de observao de
uma determinada ordem, que admite a alternativa: o ponto
cego, o outro pode ver.

Marcelo Neves
professor de Direito Pblico da Faculdade de Direito da 227
Universidade de Braslia (UnB).

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Resumos / Abstracts

(NO) SOLUCIONANDO PROBLEMAS CONSTITUCIONAIS:


TRANSCONSTITUCIONALISMO ALM DE COLISES
MARCELO NEVES
Resumo: O artigo discute criticamente o modelo de coliso
entre regimes jurdicos e constitucionais luz da concepo
de transconstitucionalismo. Em um primeiro momento, o
autor procura afastar-se da ideia em voga de que teria ocorrido
a emergncia de uma multido de novas constituies, con-
forme um uso inflacionrio do termo constituio. Em um
segundo passo, o artigo faz uma crtica ao modelo de fragmen-
tao de regimes jurdicos e constitucionais, tal como propos-
to por Gunther Teubner, para apontar a necessidade de tessi-
tura dos fragmentos, na perspectiva de uma razo transversal.
Em seguida, o autor expe o problema transconstitucional do
homicdio de crianas recm-nascidas com deficincias, entre
os ndios Suruah e outros grupos indgenas, para colocar o
paradoxo do transconstitucionalismo alm de um modelo oci-
dentalista e simplesmente cosmopolita de constitucionalismo
global. Na observao final, o autor aponta para um caminho
que vai alm de reconhecer que todo observador tem um pon-
to cego, para enfatizar uma perspectiva de alteridade em que
o ponto de cego de um pode ser visto por um outro, em uma
conexo transversal de dupla contingncia.
Constituio; Constitucionalismo alm do
Palavras-chave:
Estado; Colises de Regimes; Teoria dos Sistemas; Trans-
constitucionalismo.
(NOT) SOLVING CONSTITUTIONAL PROBLEMS:
TRANSCONSTITUTIONALISM BEYOND COLLISIONS
Abstract:The paper critically discusses the theorical model that
emphasizes the collision between legal and constitutional regimes
in the light of the theory of transconstitutionalism. At first, the

Lua Nova, So Paulo, 93: 2014


Resumos / Abstracts

author takes distance from the currently widespread idea that


there has been the emergence of a multitude of new constitutions
according to an inflationary use of the term constitution. In a
second step, the paper develops a critical approach on the model
of fragmentation of legal and constitutional regimes, as proposed
by Gunther Teubner, in order to point out the need for weaving
of fragments in the perspective a transversal rationality. Then,
the author exposes the transconstitutional problem concerning the
murder of newborn children with disabilities, among Suruawa
Indians and other indigenous groups to approach the paradox
transconstitutionalism beyond a westerner and simply cosmopolitan
global constitutionalism model. In the final observation, the author
points to a path that goes beyond recognizing that every observer has
a blind spot to emphasize to gain a perspective of alterity in which
a blind point can be seen by another in a transversal connection of
double contingency.
Keywords: Constitution; Constitutionalism beyond the State; Regimes
Collisions; Theory Systems; Transconstitutionalism.

Lua Nova, So Paulo, 93: 2014

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