O Diabo - Ser de Papel e Tinta PDF
O Diabo - Ser de Papel e Tinta PDF
O Diabo - Ser de Papel e Tinta PDF
Resumo:
No presente artigo pretendemos dar uma viso geral das obras nas quais o Diabo aparece como
protagonista.
tentavam expulsar espritos malignos de possessos. O episdio cmico est relatado em Atos 19:15-
16:
Esconjuro-vos por Jesus, a quem Paulo prega. [...]. Mas o esprito maligno lhes
respondeu: Conheo a Jesus e sei quem Paulo; mas vs quem sois? E o
possesso do esprito maligno saltou sobre eles, subjugando a todos, e, de tal
modo prevaleceu contra eles, que, desnudos e feridos, fugiram daquela casa.
Jesus, seus discpulos e Paulo expulsaram demnios. Mas haviam terceirizado o ritual: os
filhos de Ceva queriam expulsar o demnio numa espcie de exorcismo em terceiro grau, em nome
de Jesus, a quem Paulo pregava e de quem eles conheciam por falar. O demnio deve ter cogitado:
Esto pensando que expulsar demnio brincadeira! O demnio deu uma surra nos sete filhos
de Ceva, a notcia se espalhou e mais uma vez os demnios colaboraram para que o nome do
Senhor fosse engrandecido. O resultado foi a queima, numa fogueira, de livros de artes mgicas.
Que lstima!
E, alis, foi somente no final do primeiro sculo do Cristianismo que a conexo serpente-
Lcifer foi estabelecida. O autor foi Joo, em seu Apocalipse 12:7-9:
Houve peleja no cu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o drago. Tambm
pelejaram o drago e seus anjos. Todavia no prevaleceram; nem se achou no cu
lugar deles. E foi expulso o grande drago, a antiga serpente, que se chama
diabo e Satans, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com
ele, os seus anjos. (negrito nosso)
Quanto ao Diabo na Teologia Catlica e Protestante, grande a tentao de fazer uma rpida
exegese, que se revelaria incompleta, j que desde Santo Agostinho o assunto est em pauta. Esse
Bispo de Hipona (354-420) e sua preocupao com a origem do mal leva a crer que este mundo
reino de Satans, que o Diabo era um anjo perfeito, mas que recusou a graa e virou as costas para o
bem. Assim tambm o creram os Pais da Igreja e at Martinho Lutero (1483-1546) deteve-se no
assunto. Em seus dilogos com o inimigo, suas tentativas de autoexcomunho, o Diabo sempre foi
objeto de escrutnio numa rea que deveria estudar Deus. Exorcizemos esta nossa vontade de falar
do Diabo na Teologia e passemos ao diabo nos tericos.
e magnfica obra de Satans converte-se num personagem literrio de fico. Convence a todos
que no existe. A ns ele j convenceu h tempos!
Luther Link, em O Diabo, a mscara sem rosto, afirma que cada poca compe o rosto do
Diabo de uma forma, pois esta mscara aceita diversos rostos. Aponta para a confuso entre os
nomes Lcifer, Sat e Diabo. Destaca que, no Velho Testamento, Satans no importante, mas
apenas cmplice de Deus. Um intruso criado pela Igreja que no conseguiu nem quis livrar-se dele.
Cita Espinosa para quem O Diabo usado por Deus, trabalha para Deus e, em certo sentido, no
est em conflito com ele. (LINK, 1995, p. 20)
Link afirma que o Diabo foi criado perfeito, ele no se autocriou, foi criado por Deus. Afirma
tambm que se Lcifer cometeu o pecado do orgulho, o pecado era anterior a ele; se Deus criou o
Diabo, o dualismo se desintegra, a oposio bem versus mal passa a ser inexistente. Seguindo as
ideias de Link, podemos ampliar suas e nossas dvidas. Se Lcifer era uma anjo perfeito no
poderia pecar e se pecou no era perfeito! Como sair deste teorema paradoxal? Link tambm aponta
a insignificncia absoluta de Satans no Velho Testamento. Abaixo uma das importantes afirmaes
do crtico:
O Diabo no meramente uma criao literria. Ele real, faz parte da realidade
da civilizao ocidental. Talvez o motivo de o Diabo despertar nosso interesse
resida no fato de definir Deus to seguramente quanto Deus o define. Graas a
Deus pelo Diabo. (LINK, 1995, p. 22, negrito nosso)
Termina sua obra afirmando que o Diabo no tem rosto porque sempre ser o outro, o
diferente, o oponente:
O Diabo uma extraordinria mistura de confuses. Sat uma criatura da
teologia, da ideologia e poltica praticas e de tradies pictricas estranhamente
ligadas. O soberano do Inferno, o anjo rebelde, a contrapartida de Miguel na
pesagem das almas (...). Sem uma iconografia fixa, o Diabo pode ser Godzilla, um
P desvirtuado, uma peste peluda com ou sem asas, com ou sem chifres, com ou
sem cascos fendidos, feroz ou cmico. Uma vez que o Diabo poderia ser tanto um
micrbio quando um anjo cado, como poderia ter um rosto. No poderia, pois
no era um carter, era apenas uma abstrao. (LINK, 1995, p. 193, negrito
nosso)
J Gerald Messadi, em sua Histria Geral do Diabo, faz um apanhado minucioso da
existncia do Diabo em culturas como a indiana, a chinesa, a japonesa, a celta, a grega, a romana, a
egpcia, a africana, a americana, etc. Interessa-nos em especial suas colocaes sobre o Diabo na
cultura israelita e crist. O estudioso aponta o Diabo como sendo usado em todas as culturas e todos
os tempos de forma poltica e que, desde o seu nascimento, o cristianismo governou muito bem a
existncia do Diabo. Para ele, a grande verdade que o Diabo nasceu junto com o Novo
Testamento. Questiona o Diabo como inventor do mal: j que o anjo perfeito caiu, ento o mal
anterior a existncia dele. Informa que os gregos e romanos passavam muito bem sem o Diabo, mas
que o cristianismo precisava de um ser simtrico a Deus para atribuir-lhe os males da humanidade.
Segundo o crtico, o Diabo um recurso usado pelos intelectualmente mais fracos, causador
de tantas crenas, tantos medos e tantas desgraas, tantas idiotices, presena escandalosamente
ausente, um fantasma coletivo do ocidente, objeto exclusivo das mentes humanas no qual
depositamos as peripcias de nossas loucuras. Para Messadi, a nica besta do universo o homem
e Lcifer uma fico insensata, nefasta, ridcula e obscena. Lcifer seria precursor do Diabo; o
Diabo, o precursor de Fausto. O Diabo incomoda a Igreja, j que defende o po sem o suor e o
prazer sem filhos. A Igreja condena a plula e a camisinha porque condena o prazer, porm o
homem no vive sem prazer. O prazer uma injria para a Igreja, por isto ela criou a imagem de
Satans como um ser lbrico, defensor de orgias sexuais. Termina sua obra afirmando que a crena
no Diabo serve para disfarar as tendncias mais bestiais do ser humano e perguntando se o
ocidente conseguiria viver sem a noo do mal.
Em Uma histria do Diabo, Robert Muchembled estuda a biografia do Diabo concentrando-
se entre os sculos XII e XX j que, segundo o autor, no primeiro milnio cristo, o Diabo teria se
XII Congresso Internacional da ABRALIC 18 a 22 de julho de 2011
Centro, Centros tica, Esttica UFPR Curitiba, Brasil
mantido discretamente e seu apogeu teria se dado no final da Idade Mdia. Reafirma a posio de
outros tericos de ser o Diabo a sombra negra e enigmtica do ser, que o Cristianismo precisava de
outra face, pois no h medalha sem reverso. Sendo o Diabo personagem de sucesso milenar, no
pode ser desprezado pela academia, j que sua tradio (na oralidade, nos gibis, nos folhetins, nos
cinemas, na publicidade, na literatura, enfim, na histria humana, milenar). A prpria literatura
fantstica no poderia ser concebida sem o mal e o Diabo. Afirma que a construo de Lcifer foi
uma construo teolgica e revela um paradoxo nas ideias de Santo Agostinho:
Santo Agostinho transformou de maneira sutil esta viso do combate csmico,
afirmando que Deus permitiu o Mal para dele extrair o Bem. Sob esta ptica, o
pecado faz parte da estrutura do universo, uma estrutura benigna para quem
tem a graa. O Bispo de Hipona reinterpreta, assim, o mito csmico da queda de
Sat, como um elemento da conspirao divina, destinada a levar redeno. Em
outros termos, o inimigo de Deus foi transformado em meio de converso.
(MUCHEMBLED, 2001, p. 20, negrito nosso)
3 A salvao do Diabo
O italiano Giovani Papini publica sua polmica obra O Diabo: apontamentos para uma
futura Diabologia em 1953. O interessante do livro, alm de suas ideias polmicas e que causaram
muitas controvrsias, foi o primeiro livro sobre o Diabo escritor por um cristo. Resumimos suas
principais, sensatas e mais polmicas ideias e questionamentos, a maioria deles sem resposta at
agora: 1) os telogos nunca souberam sequer sondar corretamente a essncia do Diabo; 2) o cristo
deve amar no a rebeldia e o pecado de Sat, mas o Arcanjo que foi um dia o mais prximo de
Deus, porque somente o amor dos cristos pode ajudar Sat a salvar-se; 3) se os cristos orarem por
Satans estaro orando pela sua prpria salvao; 4) Cristo talvez queria que o homem se libertasse
da escravido do demnio para poder libertar o demnio de sua escravido; 5) porque a histria
crist, que j teve tantas tragdias, teria que terminar necessariamente em tragdia? 6) porque Deus,
que amor, no reconduz Lcifer ao seu posto celeste? 7) porque Jesus morreu na cruz para libertar
os homens e, no entanto, os homens continuam sendo escravos do Diabo? 8) por que a Igreja prega,
a despeito da vitria de Cristo na cruz e do batismo para a salvao, que a terra o reino de Satans
e que os homens so escravos deste? 9) difere a Demonologia como estudos dos demnios,
comparsas e subalternos do Diabo e a Diabologia como estudo do terrvel protagonista que Deus
precipitou do Cu sobre a terra; 10) a restrita viso dos cristos tem apenas duas hipteses de vida:
hiptese Deus x hiptese Diabo, o eterno amor x o eterno dio; 10) Lcifer ousou emparelhar-se
com Deus, medir-se com Jeov ou por orgulho de sua beleza, ou por inveja de Deus, ou por inveja
de Cristo, ou por querer ser Cristo e aspirar encarnao, ou ainda por inveja do projeto da criao
do homem; 11) a batalha do Apocalipse no se justifica, o exrcito celestial era imenso, por que
Deus no expulsou pessoalmente o Diabo, mas enviou o Arcanjo So Miguel para realizar a tarefa?
12) o que o Diabo estava fazendo no Cu em J, se havia sido expulso?
Na realidade, Papini compe uma verdadeira Suma Diabolgica. O ttulo pode ser uma
pardia da Suma Teolgica, de So Toms de Aquino, mas a profundeza de suas reflexes so
espantosas.
Cabe citar uma de suas lcidas assertivas:
Deus, autor do Universo, criou um mundo no qual o pecado possvel, o mal
possvel, a perdio possvel. Se no tivesse havido no Mundo a possibilidade
(melhor, a facilidade) do mal, a liberdade anglica e a humana teriam podido
sempre escolher livremente, entre vrias ordens de bens, de obras boas, de aces
justas. Lcifer no criou o Mundo, nem se criou a si mesmo, e no pois culpa
sua se a ordem do Mundo estabelecida por Deus permite e tolera o pecado:
no culpa sua se a mesma superioridade a ele outorgada o predispe e o
inclina, como afirma S. Toms, ao pecado da soberba. Se Deus o autor e
legislador de tudo, se nada possvel e pensvel fora de Sua vontade e da Sua lei,
seramos tentados a concluir que ele tem uma parte de responsabilidade no que
XII Congresso Internacional da ABRALIC 18 a 22 de julho de 2011
Centro, Centros tica, Esttica UFPR Curitiba, Brasil
sucede suas criaturas. Criou-as naquele mesmo modo, colocou-as numa realidade
criada por ele, onde tudo possvel; e da vem que todas as coisas, por
admirveis ou terrveis, tm nEle causa e princpio. (PAPINI, 1954, p. 57, grifo
nosso)
Para Papini, a queda de Sat, o resumo de todas as criaturas, a dor de Deus e a
histria do Cristianismo uma sucesso de tragdias. A partir da queda de Sat, Deus est em
agonia desde o princpio, Jesus tambm est em agonia at o final dos tempos. O anjo caiu, o
homem caiu, Jesus encarnou naquilo que pode ser considerada a fase mais espetacular da dor
divina. A vida de Deus, Jesus e o homem, do ponto de vista cristo, trgica. Se o Diabo no pode
amar, Deus no pode odiar, nem mesmo ao Diabo. Deus amor, condenou Lcifer, mas no pode
odi-lo, pois o dio o oposto a essncia do amor que Deus representa. Quem mais do que Lcifer
merece o perdo de Deus? Talvez Deus tenha criado o homem na expectativa de que este ajudasse a
redimir Sat. O holocausto de Jesus na Cruz no modificou muito coisa no mundo.
Eis a dupla razo da dor de Deus, da infinita Dor de Deus. Os cus narram a Sua
Glria, mas o universo espiritual narra Sua desventura. [...] O gigante celestial
abismou-se, o imperador terrestre feriu-se e envileceu. (PAPINI, 1954, p. 68,
negrito nosso)
Um dos seus questionamentos que se Lcifer era o mais amado quando era Anjo predileto
de Deus, no deveria Deus am-lo e perdo-lo agora que ele a criatura mais infeliz entre os
infelizes? Para ele, o Diabo no ateu. Somente a Deus, porque Deus, permitido ser ateu.
Diabo.
No Brasil, O diabo na noite de Natal, de Osman Lins; O bom Diabo, de Monteiro Lobato;
O Diabo loiro; e De morte!, de ngela Lago.
Se a ltima grande obra de Lcifer transformar-se em mero ser de papel, Consummatum est.
Imprimatur!
Nomodiabopadrofilhospritossantamin!
Referncias Bibliogrficas
1] BBLIA Sagrada. Trad. Joo Ferreira de Almeida. Ed. rev. e corr. Rio de Janeiro: Sociedade
Bblica do Brasil.
2] COUST, Alberto. Biografia do diabo. Trad. Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record,
1996. (Coleo Rosa dos Tempos).
3] LINK, Luther. O Diabo: a mscara sem rosto. Trad. Laura Teixeira Motta. So Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
4] MILES, Jack. Deus: uma biografia. Trad. Jos Rubens Siqueira. 3. reimp. So Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
5] MUCHEMBLED, Robert. Uma histria do Diabo: sculo XII-XX. Trad. Maria Helena
Khner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.
6] PAPINI, Giovanni. O Diabo. Trad. Fernando Amado. Lisboa: Livros do Brasil, 1954.
iAutor(es)