Vitor Cei-A Voluptuosidade Do Nada - Niilismo e Galhofa em Machado de Assis-Annablume (2016)
Vitor Cei-A Voluptuosidade Do Nada - Niilismo e Galhofa em Machado de Assis-Annablume (2016)
Vitor Cei-A Voluptuosidade Do Nada - Niilismo e Galhofa em Machado de Assis-Annablume (2016)
VITOR CEI
A voluptuosidade do nada
Niilismo e Galhofa em Machado de Assis
Capa
Luan Pirola
Reviso
Thais Castro
Projeto e Produo
Coletivo Grfico Annablume
Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugnio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Iram Jcome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi
Annablume Editora
Rua Dr. Virglio de Carvalho Pinto, 554, Pinheiros
05415-020 . So Paulo . SP . Brasil
Televendas: (11) 3539-0225 Tel.: (11) 3539-0226
www.annablume.com.br
Para minha famlia,
amor e apoio fundamentais.
Regina Sanches,
porque s o amor escapa ao niilismo e galhofa.
Murchas,
As rosas j no surtem
seus efeitos de rosas.
INTRODUO 15
Primeira parte-PROLEGMENOS 25
O problema do pessimismo 79
O cristianismo como instituio promotora de niilismo 81
O desconsolo do Eclesiastes 87
Machado leitor de Pascal 93
Pascal e a condio miservel da existncia humana 98
Schopenhauer, o filsofo dos niilistas 103
Machado leitor de Schopenhauer 109
EPLOGO 341
Olmpio Pimenta
Professor Titular do Departamento de Filosofia
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
Universidade Federal de Ouro Preto
14
INTRODUO
16
conceito ganhou destaque na literatura russa, em obras de autores como
Fidor Dostoivski, Nikolai Leskov e Ivan Turguniev. O autor de Pais e
Filhos ficou clebre por ter popularizado a palavra e equivocadamente cos-
tuma receber sua paternidade.
O primeiro filsofo que se dedicou a pensar o niilismo como um dos con-
ceitos centrais de sua obra foi um contemporneo de Machado de Assis,
Friedrich Wilhelm Nietzsche, autor que, no primeiro quinqunio do s-
culo XX, comeou a se tornar uma verdadeira moda na cena intelectual
brasileira4, mas que no foi citado por Machado, tampouco consta na sua
biblioteca5.
Nietzsche, ainda que no tenha feito nenhum estudo sistemtico sobre o
niilismo, apresentando suas reflexes sobre o problema em trechos espar-
sos de suas obras e manuscritos, consagrou-se como o autor oitocentista a
partir do qual a reflexo sobre o niilismo alcanou seu mais alto grau. Aps
Nietzsche, segundo Theodor Adorno, a filosofia no pde mais renunciar
a esse termo6.
Identificado por Nietzsche como o esgotamento da capacidade humana de
criao de sentido e de valor, o niilismo ganhou repercusso a partir da
situao de crise dos valores da segunda metade do sculo XIX, no con-
texto do problema axiolgico gerado pela imagem cientfica de um mundo
mecanicista e essencialmente desprovido de sentido7.
O niilismo, radical rejeio de valor, sentido, desejo8, designado como o
fenmeno descomunal do esgotamento dos valores e dos ideais que susten-
tavam as esferas valorativas do mundo ocidental moderno: artes, poltica,
economia, metafsica, esttica, cincia, moral, religio e at mesmo o cha-
mado senso comum, que orienta os hbitos cotidianos das pessoas.
Ao longo de suas reflexes fragmentrias, em estilo aforismtico e perspec-
tivista, Nietzsche analisa o problema do niilismo em suas nuances, apresen-
tando segmentaes do conceito, com destaque para as seguintes acepes:
incompleto (unvollstndige), ativo (aktiver), passivo (passiver) e completo
17
(vollkommener). Quando o lugar e a funo outrora ocupados por Deus e
pelos ideais suprassensveis passam a ser ocupados por novos dolos, isto
, quando o homem moderno quebra os dolos religiosos em nome da au-
tonomia da razo, mas continua desvalorizando a vida em nome de valo-
res pretensamente eternos e absolutos, porm, vazios (bem, mal, progres-
so, verdade) tem-se o niilismo incompleto. Alimentado pelos autores que
criticam o projeto moderno com o intuito de rejuvenesc-lo, aprimor-lo
ou reform-lo, o niilismo incompleto se manifesta nas reas das cincias
naturais e da histria como mecanicismo, darwinismo ou positivismo, nas
esferas da poltica e da economia como nacionalismo ou anarquismo, e no
campo das artes como esteticismo ou naturalismo.
Dentro do contexto descrito acima, o niilismo torna-se uma condio nor-
mal, com duplo sentido: niilismo ativo e passivo. O primeiro aparece como
a violenta radicalizao da vontade de destruir, de ir alm do mundo esva-
ziado de valores, tal como observvel nos niilistas e anarquistas russos do
sculo XIX, que exprimem o sinal de uma fora insuficiente para, produti-
vamente, instituir novamente uma finalidade, um porqu, uma crena. O
niilismo passivo, cujo maior exemplo o budismo, pe em cena um estado
patolgico intermedirio: as suas foras produtivas ainda no so suficien-
temente fortes e a decadncia ainda hesita. Ele surge em sociedades que se
encontram desestruturadas, caracterizando a perda do sentido dos valores
estabelecidos. Motivo de ressentimento, regresso e declnio, incapaz de
criar novos valores:
18
e acelera o processo do crepsculo dos dolos. O que significa no apenas
destruir os antigos valores, mas tambm o prprio espao que ocupavam
o do mundo ideal, pretensamente verdadeiro. Assim, alcana-se a pos-
sibilidade de se completar o niilismo e ganhar a condio necessria ins-
taurao de novas maneiras de avaliar.
O filsofo do martelo se considerava o primeiro a ser capaz de levar s
ltimas consequncias a transvalorao de todos os valores, abolindo a dis-
tino entre mundo sensvel e suprassensvel, preparando terreno para a
criao de novos valores afirmadores da vida. Contudo, ele ainda no seria
capaz de criar valores afirmativos, o que seria uma tarefa destinada aos fi-
lsofos do futuro.
Ainda de acordo com Nietzsche, o niilismo parte destrutivo, parte
irnico10. E Machado de Assis retrata o niilista de forma irnica. Exem-
plar o conto ltimo Captulo, narrado pelo suicida Matias Deodato de
Castro e Melo. Cansado e aborrecido, aceitando a insignificncia da vida e
da morte, o narrador entendia que no podia achar a felicidade em parte
alguma, at se deparar com um homem que, apesar de vtima de grandes
reveses, caminhava risonho e aparentemente feliz, contemplando os sapa-
tos novos. Motivado por esse encontro, o narrador determina em seu tes-
tamento que o valor de sua modesta herana seja empregado em sapatos
e botas novas, que se distribuiro por um modo indicado, fazendo certo
nmero de venturosos:
19
problema social ou moral, nem as alegrias da gerao que comea,
nem as tristezas da que termina, misria ou guerra de classes; crises
da arte e da poltica, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-
-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calca com elas o cho de
um globo que lhe pertence. Da o orgulho das atitudes, a rigidez dos
passos, e um certo ar de tranquilidade olmpica... Sim, a felicidade
um par de botas11.
A mxima nada vale nada, ao mesmo tempo em que aponta para o niilis-
mo enquanto experincia histrica da ausncia de fundamento e da nega-
tividade radical, mostra a ironia com a qual o escritor brasileiro repetida-
mente aponta que os conceitos importados da Europa sofrem deslocamen-
tos no Brasil, muitos deles risveis.
Inegavelmente a expresso do niilismo no Brasil diferente da sua expres-
so na Europa.Nietzsche tambm j alertava para a intrnseca relao en-
tre conceito e contexto e os riscos da descontextualizao. Se costumeira-
mente a comunidade cientfica compreende os termos europeu e ocidental
como sinnimos, enquadrando maquinalmente as ex-colnias europeias
no mundo ocidental, o filsofo alemo distinguia o niilismo europeu do
niilismo budista e do niilismo russo, admitindo que o fenmeno no possui
uma histria universal. Pensemos, pois, o niilismo tal qual aparece como
Leitmotiv na obra do escritor brasileiro Machado de Assis, dando fisiono-
mia prpria ao pensamento nacional12.
O niilismo europeu, a despeito de sua inteno de abrangncia universal,
qui fizesse no Brasil oitocentista efeito de ideologia estrangeira, localiza-
da e relativa uma ideia fora do lugar: uma roupa entre outras, muito da
poca, mas desnecessariamente apertada13, como diria Roberto Schwarz.
Por isso, se o niilismo ocupa espao importante na obra de Machado, como
reivindica este livro, o tratamento galhofeiro, como tambm se pode ates-
tar em crnica da srie A Semana, publicada no jornal Gazeta de Notcias
em 26 de junho de 1892:
20
O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois misterioso,
dramtico, pico, lrico, todas as formas da poesia. Um homem est
jantando tranquilo, entre uma senhora e uma pilhria, deita a pilhria
senhora, e, quando vai a erguer um brinde... estala uma bomba de
dinamite. Adeus, homem tranqilo; adeus, pilhria; adeus, senhora14.
21
dado aqui: a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional,
componente de uma estrutura literria, permitindo que esta seja estudada
em si mesma, como algo autnomo18. Isso posto, ressalto que, no entanto,
este livro no adota uma perspectiva sociolgica que visa interpretar a obra
como documento de poca, a partir de uma instncia verificvel e externa
fico. Antes, proponho uma leitura que suspenda preconceitos e no atri-
bua um sentido unvoco obra de Machado de Assis, porque A referncia
ao social no deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo
para dentro dela19.
Sigo o exemplo do mtodo crtico de Antonio Candido, caracterizado por
uma sntese integradora do trilema histria, teoria e crtica, para saber
como que o niilismo, fenmeno concreto, histrico, vem baila com in-
sistncia na obra de Machado de Assis, com valor simblico e para expres-
sar uma preocupao dominante, e de que modo o niilismo que est na
sociedade se transforma no texto literrio:
22
em seus contextos e os contextos nos textos, encontrando na linguagem a
histria cultural, de modo que as fronteiras que separam os elementos en-
volvidos tornam-se porosas.
O mtodo crtico proposto por Candido influenciou a leitura que Roberto
Schwarz fez da obra de Machado de Assis. tese de Schwarz, de que o
processo social toma forma na obra machadiana, vale somar as de John
Gledson e Sidney Chalhoub, para quem Machado incorpora a histria
brasileira oitocentista sua obra, fazendo referncias e stiras aos seus
principais eventos: Independncia, Abdicao, Maioridade, Conciliao,
Guerra do Paraguai, Lei do Ventre Livre, Abolio, Proclamao da Re-
pblica e Guerra de Canudos, temas que foram abordados por Machado e
por seus principais crticos. A esses acontecimentos acrescento o niilismo,
importante fenmeno oitocentista que Machado incorpora sua obra, mas
permanece tema to pouco estudado pelos crticos.
Para discutir essas questes, este livro est estruturado em trs partes. A
primeira tem cunho introdutrio e serve de prolegmenos, estabelecendo
uma base de sustentao adequada para todas as discusses posteriores.
O primeiro captulo apresenta uma reviso da fortuna crtica referente ao
tema do niilismo na obra de Machado de Assis; em seguida, discute a forma
irnica como a filosofia aparece na obra machadiana para, a seguir, analisar
a pena da galhofa e a tinta da melancolia com a qual o autor escreve sua
prosa e, por fim, apresentar breves consideraes sobre a concepo ma-
chadiana de histria e o perspectivismo machadiano.
Os captulos seguintes propem que o niilismo na prosa de Machado de
Assis deve ser investigado no mbito do estabelecimento de um dilogo
com a tradio que o antecede, porque a abordagem do niilismo na obra
do autor brasileiro no se concebe sem uma perspectiva comparativa, no
quadro mais amplo de suas relaes com as tradies locais e internacio-
nais. Assim, percorrem as obras de Eclesiastes, Blaise Pascal, Arthur Scho-
penhauer, Ivan Turguniev, Nikolai Leskov, Fidor Dostoivski e Friedrich
Nietzsche, apresentando um estudo do estado da questo. Desse modo,
contextualizam a emergncia do niilismo como dominante cultural do Oci-
dente no sculo XIX e discutem o problema correlato da morte de Deus.
Concomitantemente, os captulos seguintes tambm se debruaro sobre
algumas crnicas de Histrias de Quinze Dias (1876-1878), Notas Sema-
nais (1978), Balas de Estalo (1883-1886), Bons Dias! (1888-1899) e A
Semana (1892-1897), reputando que Machado no somente se configura
23
como leitor irreverente da tradio, como tambm partiu do antigo e abriu
espaos novos, criou diferenas21.
A segunda parte analisa de que modo o niilismo aparece como um dos
motivos condutores de Quincas Borba (1891) e Esa e Jac (1904). Partin-
do de uma investigao da passagem brasileira modernidade, passagem
desde sempre marcada pelo signo das contradies22, argumento que os
dois romances configuram o niilismo no contexto de modernizao do Rio
de Janeiro.
A terceira e ltima parte do livro analisa de que modo o niilismo se torna
um dos motivos condutores dos romances narrados em primeira pessoa,
aparecendo como perspectiva a ser galhofada. A partir do conceito niet-
zschiano de o cansao que olha para trs23, mostro como, nas narrativas
de Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881), Dom Casmurro (1900) e Me-
morial de Aires (1908), o tempo um componente crucial, na medida em
que tudo destri e devora. Ao revolverem o passado, os trs memorialistas
reagem cada um sua maneira: superao da finitude e negatividade total
(Brs Cubas), ressentimento (Bento Santiago) e ideal asctico (Conselheiro
Aires).
Ao final da leitura deste livro, espero que o leitor possa concluir comigo
como Machado percebe o niilismo com penetrao e constncia, mas em
lugar de represent-lo apenas superficialmente, como tema, em cenas e fa-
las de personagens, incorpora-o como elemento funcional da composio
literria. Enquanto problema artstico, linha de fora literria, o conceito
filosfico de niilismo limado, ganhando algumas caractersticas e per-
dendo outras. Caracteriza-se, nesse sentido, pela polissemia, abrangendo
manifestaes distintas vrios motivos condutores, ou variaes do Leit-
motiv em questo.
21. As crnicas sero lidas enquanto expresses de narradores fictcios. Preserva-se, assim, a
autonomia da obra em relao ao autor emprico. Sobre a crnica, seu lugar na obra de Machado de
Assis e a pluralidade dos cronistas machadianos, cf. CAMPOS. Machado de Assis contra a concepo de
sujeito solar, p. 35-60.
22. FREITAS. Contradies da modernidade, p. 18.
23. NIETZSCHE. Genealogia da moral, prlogo, 5, p. 11.
24
Primeira parte
PROLEGMENOS
1. COMO SE FILOSOFA COM O MACHADO
28
No me deterei na reconstruo dos argumentos apresentados por cada
crtico em sua respectiva obra justamente porque o tema do niilismo no
o foco dessas obras que sero avaliadas. Tampouco pretendo indicar even-
tuais insuficincias ou algo parecido. Meu breve comentrio tem o intuito
apenas de levantar algumas questes que as leituras dos textos crticos su-
gerem, mas que no so diretamente abordadas neles.
O primeiro livro dedicado obra do presidente perptuo da Academia
Brasileira de Letras Machado de Assis: Estudo Comparativo de Literatura
Brasileira, publicado por Slvio Romero no outono de 1897. O pioneiro cr-
tico tentou erigir sobre bases cientificistas uma tipologia das variedades de
pessimismo. Machado surge enquadrado nesta classificao:
29
Slvio Romero, atento ao debate filosfico de seu tempo, um dos primei-
ros pensadores brasileiros a empregar o conceito de niilismo. Para o crtico
sergipano, a obra do escritor carioca, a partir da publicao de Memrias
pstumas de Brs Cubas, com seu tom pessimista, desgostoso e humoris-
ta, seria documento do estado de penria real pelo qual passava o Brasil:
Machado de Assis , disse eu, um representante do esprito brasileiro, mas
num momento mrbido, indeciso, annuviado, e por um modo incompleto,
indirecto, e como que a medo28. Tal momento mrbido seria marcado pelo
nihilismo materialistico, desbragado e sandeu to em moda entre os tolos
de todos os feitios29. E, ao referir-se aos iniciados num certo pessimismo
de pacotilha 30, Romero pontifica que o fecundo Machado de Assis chefe
de fila. Tobias Barreto, em contrapartida, ofereceria uma reao positiva ao
estado de misria intelectual do pas.
Alcides Maya, com suas notas sobre o humour, publicadas em 1912, reno-
vou a leitura da obra do escritor ao abrir uma nova perspectiva crtica que
viria fundamentar reflexes posteriores. O crtico gacho, centrando-se
na anlise do humor machadiano, apontando e analisando os usos desse
recurso em seus contos, romances e poemas, afirma que Machado, par-
tindo de um princpio de celebrao do nada, faz uma profisso de f
s avessas, manifesto platnico de niilismo31. Com uma dolorosa e spera
sinceridade, Machado teria dado ao seu desespero uma expresso esttica:
Maya assume uma posio crtica que se ope avaliao de Romero, com
relao ao emprego do humour, ao mesmo tempo em que reflete sobre o
30
lugar do escritor na histria da literatura brasileira. Enquanto o sergipano
acusa o humor machadiano de artificialismo, o crtico gacho explica que
o dito pessimismo de Machado de Assis exprime a sua viso tragicmica da
vida. A prosa machadiana, ao mesmo tempo em que leva ao riso, apresenta
uma complicada trama de fatores morais, que, alm de apontar as misrias
do ser humano, revela a filosofia do autor, modelada com ironia e humour.
Em 1938, Peregrino Jnior inaugurou a tradio que tratou do niilismo na
perspectiva biogrfica. Em Doena e constituio de Machado de Assis, ele
relacionou os supostos sintomas e caractersticas mrbidas do escritor
gagueira e epilepsia a seu estilo e aos procedimentos literrios que lhe
so prprios, tentando comprovar seu diagnstico com episdios da vida
de Machado, alm de citaes de sua correspondncia e de suas obras fic-
cionais. O crtico-mdico conclui que
33. PEREGRINO JNIOR. Doena e constituio de Machado de Assis, p. 122-123. Grifo meu.
31
Por mais que ponha nas palavras uma graa incomparvel, cheia de
perfdias finas e de pulos imprevistos, no sabe disfarar o pirronis-
mo niilista que forma a raiz do seu pensamento. Com as diversas
mscaras superpostas desse voluptuoso da acrobacia humorstica,
podemos compor uma cara sombria a cara de um homem perdido
em si mesmo e que no sabe rir. Perdido em si mesmo, isto , engaio-
lado na autodestruio do seu niilismo34.
32
do autor, foi uma publicao decisiva para a guinada interpretativa de base
psicolgica que, se renovou a recepo da obra de Machado de Assis, tam-
bm contribuiu para a propagao do clich romntico do artista doentio,
mestio, gago e epiltico.
Em 1940, Afrnio Coutinho publicou A filosofia de Machado de Assis, obra
que busca investigar as fontes do pessimismo machadiano, determinando
os antecedentes e motivos sociais, psicolgicos, intelectuais e hereditrios,
provenientes da sua origem, da sua raa e da sua doena, que repercutiriam
na concepo pessimista da vida, do homem e do mundo, na obra do pa-
trono da ABL. Partindo da premissa de que o escritor era pessimista e s
enxergava o lado mau da natureza humana, Coutinho conclui que justa-
mente este o carter da filosofia de Machado, o sentido de niilismo total da
sua concepo do mundo37.
Coutinho, em sua tentativa de interpretao do problema psicossocial do
mestio brasileiro, repleta de preconceitos, profere uma srie de improp-
rios, dentre os quais ele afirma que O autor de Helena foi um caso tpico
de ressentimento mulato38. O resultado que se deixa a ltima pgina com
uma intensa decepo, avalia Srgio Buarque de Holanda, para quem A
filosofia de Machado de Assis uma obra marcada por uma fragilidade to
patente dos seus argumentos em favor de uma tese artificial e forada39.
Em 1958, o militante comunista Octvio Brando publicou O niilista Ma-
chado de Assis, primeira obra dedicada ao tema. O livro apresenta uma an-
lise biogrfica impressionista por meio da qual, ao atribuir o niilismo como
um defeito tanto do autor quanto da obra, tenta desqualificar o escritor:
33
aram as foras vivas da Nao brasileira. Envenenaram a conscincia
de muitos intelectuais, com o ceticismo, o pessimismo e o niilismo40.
34
ser humano, e no ter acreditado na integridade do bem, que Machado
tido por niilista e cruel43.
Em 1987, Roberto Schwarz defende que o Machado da chamada segunda
fase, ao criar narradores que pertencem elite e reproduzem seus valores,
passa a representar a vida social brasileira pelo ngulo da classe dominante,
revelando, assim, todas as suas iniquidades:
43. RIEDEL. Tempo e metfora em Machado de Assis, p. 49. Este volume rene as duas obras
supracitadas.
44. SCHWARZ. Que horas so?, p. 178. Grifo meu.
45. SCHWARZ. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 128.
35
os movimentos da volubilidade, donde uma espcie de nihilismo ecltico, a
que no falta o trao de comdia46.
Em 1988, Ktia Muricy, com A razo ctica, procura situar o vnculo do
pessimismo de Machado de Assis com as questes de seu tempo. A partir
dessa abordagem, a autora mostra como o escritor construiu uma crtica
ctica s transformaes da sociedade brasileira oitocentista. A obra do au-
tor estaria voltada para o advento da racionalidade burguesa no perodo
em que a sociedade carioca importava os valores da modernidade euro-
peia. A propsito de tais transformaes, Muricy faz uma nica meno a
esse conceito-chave, mas para descartar sua atribuio prosa machadiana:
36
Merquior vai da crtica biogrfica, que discute o aspecto da mobilidade so-
cial em Machado de Assis, abordagem de tipo sociolgico, passando por
comentrios sobre as influncias estilsticas e filosficas do escritor, con-
cluindo que a fico machadiana levanta uma viso eminentemente corro-
siva e negativa da realidade social brasileira e da realidade humana, atravs
do prisma do contexto social especfico.
No mesmo ano, 1989, Enylton S Rego publicou O calundu e a panaceia,
primeira obra da fortuna crtica machadiana que analisa sistematicamente
as relaes entre a prosa madura de Machado e a stira menipeia gne-
ro criado por Menipo de Gadara no sculo III a.C. e retomado pelo srio
helenizado Luciano de Samsata no sculo II de nossa era. Detendo-se,
sobretudo, em Luciano, Menipo e seus seguidores modernos, como Robert
Burton e Laurence Sterne, Rego documenta a insero do escritor brasilei-
ro na chamada tradio lucinica:
37
Em 1999, Alfredo Bosi publicou Machado de Assis: o enigma do olhar, livro
que rene quatro ensaios: dois inditos e dois publicados na dcada de seten-
ta. O tema central o foco narrativo do autor. O olhar machadiano, segundo
o crtico, est voltado para o comportamento humano, mais especificamente
para a percepo de palavras, pensamentos, obras e silncios de homens e
mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Imprio.
Segundo Bosi, o olhar com que Machado penetra nos meandros da socie-
dade fluminense de seu tempo mostra a decomposio do sistema escravis-
ta, com a permanncia da estrutura social assimtrica e injusta. Prevalece o
egosmo das classes dirigentes e a disparidade das relaes sociais: Nada,
porm, impedir que a corrente da vida individual desgue na morte e no
nada: o legado da misria o de toda gente, no excludos os cavalheiros
ricos e ociosos como Brs Cubas51.
Apesar de destacar o pessimismo machadiano, na nica vez em que faz uso
do conceito de niilismo, Bosi nega a atribuio do epteto ao escritor, carac-
terizando-o como ctico: o caso de Machado de Assis, que apenas relativi-
za o que vulgarmente aparece sob a veste de bem ou de mal, de verdadeiro
ou de falso, assim fazendo, nada afirma nem denega com o ar peremptrio
dos dogmticos ou dos niilistas52.
Em 2008, Patrick Pessoa, em A segunda vida de Brs Cubas, parte do princ-
pio, formulado por Friedrich Schlegel, de que toda interpretao filosfica
deve ser ao mesmo tempo uma filosofia da interpretao. Respeitando a
autonomia do texto ficcional, Pessoa prope uma leitura fenomenolgica
da narrativa do defunto autor, visando suspender os pr-conceitos que ele
atribui fortuna crtica machadiana. Sua nica meno ao niilismo encon-
tra-se na introduo de seu livro:
38
A obra de Pessoa, denso exerccio de interpretao do romance Memrias
pstumas de Brs Cubas, oferece contribuies importantes para esta pes-
quisa. No entanto, a prpria estrutura de uma tese de doutorado, da qual
se origina o livro, que exige a delimitao do tema, gerou inevitavelmente
uma lacuna em sua descrio fenomenolgica. Seu estudo bem fundamen-
tado da melancolia, da ironia trgica, da volpia do aborrecimento, da so-
lidariedade do aborrecimento humano e do desdm dos finados aborda a
voluptuosidade do nada a partir de sua relao com as noes supracitadas,
mas no inclui um estudo do niilismo.
Em 2009, o livro Serenidade e fria: o sublime assismachadiano, de Ravel
Giordano Paz, renovou a recepo crtica da poesia machadiana, dedicando-
-se a resgatar o dilogo vivo do escritor carioca com o Romantismo, sob o
prisma de um conceito preeminente na esttica romntica: o sublime. O pon-
to crtico do trabalho a hiptese de que a arte de Machado de Assis mais
fiel ao sublime romntico do que o prprio romantismo pde ser. Tratando-
-se, aqui, de uma fidelidade sentimental e livre (libertria), na medida em
que o escritor carioca mobiliza o sublime em sua instabilidade constitutiva.
Ravel Paz mostra que o sublime machadiano se configura como herana
e problematizao do idealismo romntico dos filsofos e escritores euro-
peus. A tenso entre vida e morte, constitutiva do sublime romntico, seria
um componente fundamental da obra machadiana, visvel em sua implac-
vel desmistificao do sentimentalismo romntico e na constatao de uma
misria universal, que o amor, longe de redimir, agrava: A esse respeito, o
lugar ocupado pela filosofia de Quincas Borba nos dois romances em que
ela se faz presente bastante sugestivo: tentando superar esse niilismo, tam-
bm ela no faz seno agrav-lo54.
Em 2012, Lus Eustquio Soares publicou um pequeno artigo dedicado ao
tema do niilismo. Cinismo, niilismo e utopia aborda o carter paradigm-
tico do niilismo na obra de Machado, apresentando uma breve e sugestiva
anlise da problemtica em questo. O crtico avalia que o niilismo o dis-
positivo atravs do qual tentamos nos fazer modernos destacando a morte
num mundo sem Deus e, por conseguinte, sem salvao na vida eterna: O
niilismo espalha a morte em tudo porque sabe que tudo que reluz no o
ouro da eternidade, mas a respirao do que morre, morrer55.
39
Soares observa que o autor de Memrias Pstumas de Brs Cubas constitui
um exemplo singular de uso criativo do niilismo na fico brasileira, na
medida em que desconstri mitos, verdades e valores, no deixando pedra
sobre pedra, a fim de fazer valer a onipresena da morte:
40
seriam o niilismo e o escritor a ele filiado, de forma que se mostra perti-
nente buscar a resposta na obra do prprio Machado.
A ausncia de um mergulho mais profundo na abordagem do niilismo por
parte da fortuna crtica machadiana reside no fato de no se ter levado em
conta a histria e os desdobramentos do conceito filosfico em questo.
Tal empreendimento ser cumprido nos captulos seguintes, que traam
uma histria do niilismo no sculo XIX, investigando suas origens, seu de-
senvolvimento na Europa oitocentista e o modo como Machado de Assis
maneja ficcional e filosoficamente tal conceito em suas obras.
Nenhuma filosofia?
41
tal retomada e tal transformao, isto , no s quais contedos fi-
losficos esto presentes ali, mas como so transformados em con-
tedos literrios58.
42
a verdade da obra enquanto fico: Nada melhor do que o seu modus
operandi, o seu como, para nos dar uma ideia da exigncia de verdade que
a norteia60.
Mas deixemos com Machado de Assis a ltima palavra a respeito. Para
atentarmos aos pontos de entrelaamento entre as experincias literria e
filosfica na prosa machadiana, no podemos perder de vista o contexto
social. No sculo XIX mais de 70% da populao brasileira era analfabeta,
as referncias culturais da elite estavam do outro lado do oceano e o acesso
informao era difcil e restrito a poucos, o que determinou condies
adversas para o florescimento da literatura e da filosofia, assim como para
a produo e circulao de bens culturais. Por isso, no surpreende que
os livros fossem lanados ao pblico como pedras ao poo, fato de que os
escritores desde cedo se ressentiram61.
No primeiro recenseamento geral do Imprio do Brasil, em 1872, foi apre-
sentado um quadro da populao livre considerada em relao ao sexo,
estado civil, raa, religio, nacionalidade e grau de instruo, arranhando
a imagem ufanista construda pelo discurso oficial e reforada por muitos
escritores romnticos. Hlio de Seixas Guimares, em seu estudo sobre o
pblico de literatura do Oitocentos, resume o resultado do referido censo:
43
O esforo de interlocuo com o minguado pblico leitor foi uma constan-
te nas narrativas de Machado. Exemplar o defunto autor Brs Cubas, que
recorrentemente interrompe a narrativa e se dirige ao leitor, mesmo que de
modo agressivo e irnico. A evocao e a qualificao do ledor chegam a
ser obsessivas, transformando a sua escassez em princpio de escrita: fino
leitor (prlogo), leitor amigo (cap. XV), leitor circunspecto (XXXII), ama-
do leitor (XLIX), leitor obtuso (XLIX), leitora plida (LXIII), curioso leitor
(LXX), leitor pacato (XCVIII) e leitor ignaro (CXVI).
No Brasil analfabeto, patriarcal e escravocrata, o ethos aristocrtico valori-
zava o saber ornamental, que era apenas verniz, status social, no instru-
mento de conhecimento e ao. De acordo com Srgio Buarque de Holanda,
possuir uma educao humanstica constitua verdadeiro sinal de classe:
44
sofia permaneceu um campo pouco frtil, com muitos autores que limita-
ram-se ao nosso sestro nacional das citaes estrangeiras65. Um precrio
autodidatismo foi a soluo encontrada pelos pensadores que desejavam
refletir sobre a realidade brasileira, sendo que apenas alguns poucos elabo-
raram perspectivas filosoficamente relevantes para o Brasil.
Ainda que a filosofia praticada no Brasil tenha uma histria de quase 500
anos, com caractersticas prprias e alguns autores importantes, at o scu-
lo XX, ela ocupou papel secundrio na formao do pensamento brasileiro.
O mesmo no se pode dizer da literatura, que conseguiu florescer durante
os tempos de indigncia:
45
No se trata de demonizar essa configurao, mas sim de pensar a condio
brasileira para alm da tradio europeia, o que demanda uma reflexo
sobre as limitaes da filosofia ocidental limites que, como veremos no
decorrer deste livro, de certa forma foram traados por Machado, que, des-
de 1879, j alertava que o influxo externo que determina a direo do
movimento; no h por ora, no nosso ambiente, a fora necessria inven-
o de doutrinas novas68.
A precariedade do meio intelectual, objeto frequente da indignao de fi-
lsofos europeus oitocentistas como Schopenhauer e Nietzsche, deixar
de ser percebida por Machado como pura negatividade e/ou contingncia
externa atividade literria, passando a ser tratada como condio ineren-
te produo literria no Brasil69. Enquanto os dois solitrios filsofos
alemes se colocavam aristocraticamente numa esfera parte, o fundador
da Academia Brasileira de Letras tratava a indigncia intelectual predomi-
nante em seu tempo como consequncia de uma sociedade fundada em
poderosos procedimentos de excluso sobre os quais a produo literria
deve refletir.
Ao longo da histria, as elites brasileiras procuraram se desenvolver ima-
gem e semelhana da Europa muito se fez sob e para o olhar do europeu,
quer seja para imit-lo, quer para rejeit-lo. Sintomtica a exasperao de
Slvio Romero, que, a partir de uma perspectiva evolucionista, compreen-
dia a situao cultural e intelectual da sociedade brasileira como atrasada
em relao Europa:
46
bando de ideias novas que chegavam da Europa, viam os brasileiros como
brbaros que precisavam receber um banho de civilizao contrariando,
assim, a prpria etimologia da palavra grega, que se refere ao estrangeiro.
Machado de Assis, ao contrrio de Silvio Romero, no ficou preso aos en-
cantos do transoceanismo, ao europesmo que enfeitiou tantos dos nos-
sos intelectuais71. Acerta, pois, Afrnio Coutinho, ao afirmar que H at
em nosso grande criador uma preocupao insistente em ridicularizar os
sistemas filosficos, de satirizar a cega confiana dos autores nas prprias
filosofias, e de modo geral, a confiana na cincia e na razo humana72.
Em 1873, no torvelinho da modernizao do Rio de Janeiro, ento capital
do Imprio, o jovem Machado buscava se situar entre o transoceanismo e
a necessidade de afirmao da cultura autctone da jovem nao. A esse
respeito, publicou no peridico O Novo Mundo, em Nova Iorque, o clssico
ensaio conhecido como Instinto de Nacionalidade:
A partir dos anos 1880, Machado segue essa recomendao e desloca as-
suntos de matriz europeia, que, na corte brasileira, eram remotos no tempo
e no espao, reconfigurando-os a partir de tal sentimento ntimo. Nesse
sentido, o deslocamento de um conceito filosfico como o de niilismo
duplo. Deixa de ser o que era ao sair de seu contexto sistemtico de pensa-
mento e passa a ser algo ambguo e bifronte ao ser manuseado com a pena
da galhofa.
A propsito desses deslocamentos, o tcheco-brasileiro Vilm Flusser, da
perspectiva privilegiada de um filsofo europeu imigrado no Brasil, obser-
vou que sempre haver uma defasagem entre Brasil e Europa, de tal modo
47
que todo aquele que procura compreender a situao brasileira com cate-
gorias importadas da filosofia est condenado ao malogro, pois os modelos
originais se misturam com elementos locais produzindo um ecletismo que
os converte em conversa fiada:
48
havia lgica na loucura75. Tal lgica foi compreendida por Machado de
Assis. O escritor, movido por uma fina intuio da feio ornamental da
filosofia no Brasil, tornou-se um mestre em reiterar o deslocamento das
nossas ideias fora do lugar, ou ideias sem pernas, em nvel formal, revelan-
do o desacordo que havia no pas entre as teorias, ideologias e o contexto
no qual estas se inseriam.
Enquanto na Europa os diferentes estilos de poca nas artes e correntes na
filosofia costumam apresentar conexes internas com a realidade histri-
ca e social na qual se inserem, no Brasil as condies materiais, histricas
e polticas pouco influenciaram as ideias e raras vezes foram transforma-
das pelas mesmas: um latifndio pouco modificado viu passarem as ma-
neiras barroca, neoclssica, romntica, naturalista, modernista e outras,
que na Europa acompanharam e refletiram transformaes imensas na
ordem social76.
As ideias sem pernas, a falta de seriao nas ideias, as ideias fora do lu-
gar e o ecletismo brasileiro, identificados respectivamente por Machado
de Assis, Silvio Romero, Roberto Schwarz e Vilm Flusser, formam uma
colcha de retalhos de filosofias e ideologias importadas, inadequadas para
a compreenso da realidade brasileira, podendo ser consideradas verdadei-
ras loucuras, vide o Humanitismo do louco-filsofo Quincas Borba e a obra
supinamente filosfica de Brs Cubas.
No se trata, aqui, de demonizar essas ideias fora do lugar, mas de assu-
mir tal indigncia a partir das novas possibilidades que elas abrem em
especial a possibilidade de fazer galhofa. Revelador o conto Teoria do
medalho que alveja o vcio das palavras grandiloquentes com riso zom-
beteiro, mostrando de que modo as ideias eram transformadas em signo
material de distino, anulando qualquer potencial reflexivo. A lio do pai
de Janjo resume como deve se comportar um medalho, indivduo posto
em posio de destaque, mas sem mrito para tal:
49
tumam renovar o sabor de uma citao intercalando-a numa fra-
se nova, original e bela, mas no te aconselho esse artifcio: seria
desnaturar-lhe as graas vetustas. Melhor do que tudo isso, porm,
que afinal no passa de mero adorno, so as frases feitas, as locues
convencionais, as frmulas consagradas pelos anos, incrustadas na
memria individual e pblica. Essas frmulas tm a vantagem de
no obrigar os outros a um esforo intil. No as relaciono agora,
mas f-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofcio te ir ensinando os
elementos dessa arte difcil de pensar o pensado77.
Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e flor das p-
ginas. Estevo no compreenderia nunca este axioma de lorde Ma-
caulay que mais aproveita digerir uma lauda que devorar um vo-
lume. No digeria nada; e da vinha o seu nenhum apego s cincias
que estudara. Venceu a repugnncia por amor-prprio; mas, uma
vez dobrado o Cabo das Tormentas disciplinares, deixou a outros o
cuidado de aproar ndia. [...] Opinies no as tinha; alguns escri-
tos que publicara durante a quadra acadmica eram um complexo
de doutrinas de toda a casta, que lhe flutuavam no esprito, sem se
fixarem nunca, indo e vindo, alando-se ou descendo, conforme a
recente leitura ou a atual disposio de esprito78.
50
Dentre os medalhes da obra machadiana destaca-se o bacharel Brs
Cubas, rentista da Corte que ganhou de bero fortuna, certo poder e o t-
tulo de doutor. Para o defunto autor, o estudo universitrio era vlido
por seu carter ornamental, pois, numa nao de analfabetos, propiciava
insgnias de poder e nomeada: o diploma de bacharel, o ttulo de doutor e
o anel de grau:
51
ria das edies humanas de Brs discorda de Pascal: o homem no seria
um canio pensante80, mas sim uma errata pensante. Em toda a obra en-
contramos galhofas em relao filosofia e racionalidade, na forma de
reflexes, teorias, categorias e alegorias. De metafsica, s h casca, verniz
intelectual e galhofa.
Se no Brasil vigora a regra da importao de ideias, vale observar que a
figura do medalho tambm foi importada da Europa. Nesse sentido, im-
portante deixar claro que a nulidade do pensamento filosfico no sculo
XIX no era caracterstica exclusiva da sociedade brasileira. Por exemplo,
Razumkhin, personagem de Crime e Castigo, obra de Dostoivski publica-
da em 1866, se exaspera com os medalhes que tambm povoavam a Rssia:
Nenhuma filosofia?
Entendamo-nos: no papel e na lngua alguma, na realidade nada.
Filosofia da histria, por exemplo, uma locuo que deves empre-
gar com freqncia, mas probo-te que chegues a outras concluses
80. O homem no seno um canio, o mais fraco da natureza, mas um canio pensante. PASCAL.
Pensamentos, 200 (347), p. 86.
81. DOSTOIVSKI. Crime e Castigo, p. 214.
82. DIXON. O chocalho de Brs Cubas, p. 102.
52
que no sejam as j achadas por outros. Foge a tudo que possa chei-
rar a reflexo, originalidade, etc., etc83.
53
o filsofo. Freud, posteriormente, endossa que o melanclico se aproxima
bastante do autoconhecimento86.
Walter Benjamin observa que a doutrina dos sintomas da melancolia, tal
como exposta por Aristteles no captulo XXX dos Problemata, exer-
ceu a sua influncia durante mais de dois milnios. No obstante, a co-
dificao deste complexo de sintomas remonta alta Idade Mdia, mais
especificamente doutrina do humor melancholicus da escola mdica de
Salerno, do sculo XII, que manteve-se em vigor at o Renascimento. Se-
gundo o seu maior representante, Constantinus Africanus, a melancolia
tem origem fisiolgica:
54
cimento que isso causava, as tentaes (preguia, sonolncia, desnimo)
se faziam presentes com mais frequncia e intensidade.Importante ressal-
tar que para os religiosos a melancolia no era uma doena e sim pecado,
resultante das tentaes da carne e mediadas pelo mencionado demnio88.
No sculo IX, autores rabes estabeleceram uma correlao astrolgica en-
tre humores e planetas. O humor sanguneo corresponderia a Jpiter, o co-
lrico a Marte e o fleumtico a Vnus. A melancolia estaria sob o signo de
Saturno, planeta distante, de lenta revoluo um astro pouco auspicioso.
No corpo humano, Saturno governava o bao, sede da bile negra. A asso-
ciao entre Saturno e melancolia era inevitvel. Desde ento o qualificati-
vo soturno, corruptela de Saturno, sinnimo de melanclico.
Durante a modernidade, a melancolia torna-se, na arte, um tema cons-
tante, como mostram numerosas peas de Shakespeare que, nesse sentido,
captou bem a tendncia da poca. Exemplar Hamlet, o prncipe melan-
clico, desiludido com o mundo e dotado de uma superior imaginao.
Mas ningum reflete melhor a melancolia do nobre do que o fidalgo Dom
Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura.
Em Quincas Borba, descobre-se que a disposio melanclica que marca a
paisagem e as narrativas de Cervantes e Shakespeare, configurando Qui-
xote e Hamlet, est no leitor: Diz-se de uma paisagem que melanclica,
mas no se diz igual coisa de um co. A razo no pode ser outra seno que
a melancolia da paisagem est em ns mesmos, enquanto que atribu-la ao
co deix-la fora de ns89.
O filsofo luso-brasileiro Matias Aires publicou, em 1752, um pequeno li-
vro, intitulado Reflexes sobre a Vaidade dos Homens, em que oferece um
testemunho deveras premonitrio sobre os desdobramentos dos roman-
ces de Machado: a melancolia nos desterra para a solido do ermo90.
Os trs narradores em primeira pessoa so solitrios: Aires, o diplomata
aposentado que no pode dar o que se chama de amor; o velho Bento
Santiago, casmurro, de hbitos reclusos e calados; Brs Cubas que, aps
a missa de stimo dia da me, foi meter-se sozinho numa velha casa de
propriedade da famlia e, anos mais tarde, morreu sem ter deixado filhos.
Afinidades eletivas conectam a melancolia de cada um: Muitas so as
55
melancolias deste mundo. A de Saul no a de Hamlet, a de Lamartine no
a de Musset. Talvez as nossas, leitor amigo, sejam diferentes uma da outra,
e nesta variedade se pode dizer que est a graa do sentimento91.
A anatomia da melancolia, de Demcrito Jnior (pseudnimo de Robert
Burton), publicada em 1621 e progressivamente revista e ampliada at
1638, apresenta um galhofeiro estudo mdico dos efeitos do humor melan-
clico. Anatomia, como metfora para anlise e disseco intelectual, era
uma expresso bastante usada nessa poca que viu o nascimento da anato-
mia humana. Em sua obra, concebida para que o estudante possa ler toa,
ante o plpito ou no Liceu, mostra o que a melancolia, com todas as suas
espcies, causas, sintomas, prognsticos e diversas curas:
56
Seja a melancolia considerada doena, pecado, sintoma de genialidade ou
todas essas coisas ao mesmo tempo, seus sintomas eram, para a maioria
das pessoas, uma pssima notcia, porque a sociedade no estava disposta a
tolerar perturbaes mentais, ainda que estimulassem o intelecto. Moacyr
Scliar avalia que no havia mais lugar para o louco da aldeia medieval,
nem mesmo para o mstico que, em seu delrio, ouvia vozes de santos. Os
melanclicos, considerados desocupados, improdutivos, tinham uma des-
tinao certa: o hospcio94.
Demcrito Jnior, autodeclarado expert no tratamento desse humor car-
rancudo, avalia que a melancolia dificilmente curvel, mas aponta que
ela pode ser muito mitigada e abrandada, com a condio de que o doente
esteja disposto a ser auxiliado. Sendo Burton telogo e vigrio, demons-
tra uma preocupao tica em relao eficincia e legitimidade das curas
mgicas praticadas em rituais de bruxaria, que eram proibidas. Dentre as
curas indicadas para a melancolia, o livro recomenda expressamente o em-
prego tanto da prece quanto da medicina, no uma sem a outra, mas ambas
juntas. Ele recomenda medicamentos, sangria, dieta, exerccios, esportes,
banhos diversos e prtica sexual moderada. Tambm prescreve o estudo
de alguma arte ou cincia como sendo o melhor remdio para a melanco-
lia exceto, claro, para os melanclicos cuja molstia seja resultante do
excesso de estudo95.
Do sculo XIX ao XX, medida que o tratado mdico de Burton tornou-se
obsoleto, sua seriedade foi questionada, porque de ponta a ponta percebe-
-se o riso sorrateiro do autor, que teria escrito uma brincadeira de classe
com toda a gravidade necessria. Menes explcitas e implcitas a Luciano
de Samsata indicam que a obra insere-se na tradio da stira menipeia
e, portanto, satiriza o discurso cientfico das anatomias tpicas do sculo
XVII. A despeito da causticidade, a obra adquiriu fama e ainda hoje refe-
rncia obrigatria nos estudos sobre esse pathos, apesar de o autor declarar
que no diz nada de novo e de divergir em muitos aspectos das pesquisas
contemporneas de psicopatologia, psiquiatria e psicanlise.
Ea de Queirs, herdeiro de Burton e da tradio lucinica, escreveu en-
saio sobre a decadncia do riso e a psicologia da macambuzice (tristeza,
taciturnidade, mau-humor), no qual avalia que a vida enfadada, a ausncia
57
da alegria e a perda do dom divino do riso so comportamentos tpicos da
sociedade europeia finissecular: Os homens de aco e de pensamento,
hoje, esto implacavelmente votados melancolia96.
Na medicina moderna, segundo Freud, a definio conceitual de melan-
colia oscilante, apresentando-se sob vrias formas clnicas. No obstan-
te, pode-se caracteriz-la como um desnimo profundamente doloroso,
uma suspenso do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade
de amar, inibio de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de
autoestima97, podendo resultar em autorrecriminaes e autoinsultos.
Freud se prope a esclarecer a essncia da melancolia, comparando-a com
o afeto normal do luto, que revela os mesmos traos, exceto um: falta nele
a perturbao do sentimento de autoestima. No geral, o luto profundo, en-
quanto reao perda de uma pessoa amada, contm o mesmo estado de
nimo doloroso da melancolia, caracterizado pela perda de interesse pelo
mundo externo. A melancolia seria o luto patolgico decorrente da perda
de um objeto que, em ltima anlise, seria o prprio eu.
A melancolia aparece, especialmente, diante de um dos poucos limites que
o homem moderno no conseguiu ultrapassar: a morte. Se, por exemplo,
diante da sociedade um homem como o que o personagem Brs Cubas
representa pode tudo, por ter dinheiro e poder, diante da morte ele no
pode nada. Por sinal, a morte da me um momento crucial na formao
do personagem-narrador, que o leva ao pathos da melancolia: Renunciei
tudo; tinha o esprito atnito. Creio que por ento que comeou a desabo-
toar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitria e mrbida, de um
cheiro inebriante e sutil98.
A indisposio diante da morte e da finitude da vida levou Brs Cubas a
tentar inventar um emplastro anti-hipocondraco destinado a aliviar a
nossa melanclica humanidade99. Num lance de ironia machadiana, tal
medicamento para curar esse mal estar psicolgico, ou espiritual, seria de
uso externo, aplicado pele. E galhofeiramente, a palavra emplastro, por
extenso de sentido, tambm significa tarefa ou conserto mal executados,
indivduo doentio ou intil.
58
Em 1928, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado,
apresenta as grandes linhas de nossa formao cultural, oferecendo uma
interpretao global da histria brasileira com enfoque na melancolia. Ele
avalia que esse estado de nimo, alastrado pelo territrio nacional, de norte
a sul, e a atravessar a sociedade em todas as classes, seria o trao definidor
do carter nacional:
59
de personagens e as mortes simblicas, dentre as quais os fracassos de Brs
em casar com Virglia, conseguir uma cadeira no Parlamento, alcanar a
celebridade e trazer a pblico o seu emplasto anti-hipocondraco, as mortes
da me e do pai de Brs Cubas, de Nh-Lol e Marcela; a suposta traio
de Capitu; as mortes de Escobar, Ezequiel e Capitu; o fracasso de Bento em
atar as duas pontas da vida; a loucura e a morte de Quincas Borba e Rubio;
a morte de Flora; a morte inesperada do marido de Fidlia, a morte do
Baro de Santa-Pia e a partida de Tristo e Fidlia, para citar apenas alguns
exemplos. Enquanto recurso narrativo, a galhofa no apenas oferece leveza
ao peso de gravidade do medo da morte e do fracasso, mas tambm faz gra-
cejo com as aes imorais dos personagens, justificando ou dissimulando
os inmeros atos perversos e corruptos cometidos por figuras como Brs e
Bento, proporcionando-lhes ainda ares de superioridade, negaceando seu
inconformismo diante da finitude.
Com efeito, na obra machadiana o peso da melancolia vai aparecendo cada
vez mais encoberto pela pena da galhofa. H um duplo deslocamento do
conceito de melancolia, que deixa de ser o que era ao sair de seu contexto
sistemtico de pensamento e passa a ser algo ambguo e bifronte ao ser
conduzido pela pena da galhofa, expresso que tambm ambivalente,
porque pena refere-se tanto pequena pea metlica que se adapta a uma
caneta, quanto sano aplicada como punio ou como reparao por
uma ao julgada repreensvel ou ainda como sinnimo de compaixo, pie-
dade e comiserao. Exemplar uma conhecida passagem do prlogo de
Memrias pstumas de Brs Cubas, que resume a natureza da obra:
60
Machado de Assis, pessimista bem-humorado, em boa parte de sua obra,
especialmente a partir da publicao de Memrias pstumas, praticou um
humor de base melanclica. Opostas e complementares, a galhofa e a me-
lancolia configuram a prosa machadiana. A melancolia a tinta com a qual
o autor escreve, enquanto a galhofa o procedimento de construo liter-
ria, a pena que conduz a tinta ao papel:
61
Parece que nos sabemos demasiado quebradios e, talvez, at j que-
brados e incurveis; parece que ns tememos essa mo da vida, que
deve nos despedaar, e refugiamo-nos em sua aparncia, em sua fal-
sidade e variegada trapaa; parece que ns somos alegres porque so-
mos monstruosamente tristes. Ns somos srios, ns conhecemos o
abismo: por isso defendemo-nos contra toda a seriedade109.
62
Seria Machado de Assis capaz da risada de ouro? O humor do escritor bra-
sileiro porventura tenhamos aqui uma significativa distino em relao
a Nietzsche no quer dar golpes de martelo (ou machado) para demo-
lir os edifcios da metafsica, mas sim pagar com piparotes: os piparotes
apenas roam o corpo, chamando-o cena; no tm o intuito visvel de
marteladas. O piparote de Machado de Brs e Quincas abala, no demole;
destrona, no destri112.
Nietzsche, ao filosofar com o martelo, tem o intuito de assumir a respon-
sabilidade por uma transvalorao dos valores, promovendo, assim, o cre-
psculo dos dolos. O que significa no apenas destruir os antigos valores,
derrubar a lei antiga, mas tambm o prprio espao que ocupavam, o do
mundo ideal, pretensamente verdadeiro. Assim, defende o filsofo, alcan-
a-se a possibilidade de se completar o niilismo e ganhar a condio neces-
sria instaurao de novas maneiras de avaliar.
Machado, despretensioso, ri das panaceias, pois sabe que elas levam a
desarranjos sociais impensveis, muito maiores do que aqueles que a pa-
naceia diz combater. Como ironista, qui moralista, quer denunciar, in-
tervir, fazer avanar, abalar e destronar os valores socialmente partilha-
dos, mas para construir, no destruir. A crtica machadiana , pois, um
princpio democrtico de aperfeioamento e no um instrumento de
negao absoluta.
Os narradores machadianos escrevem seus textos com a pena da galhofa,
purificando seus relatos do cheiro da flor amarela, a fim de sobrepujar a
melanclica decadncia da vida: A vida to aborrecida, que no vale a
pena atar as asas s melancolias de arribao. Voai, melancolias!113.
Machado usava o humor como recurso estratgico de escrita, por sua vita-
lidade, poder corrosivo e funo medicinal de purgar o corpo e o esprito
dos humores melanclicos. O efeito humorstico muitas vezes aponta para
a inobservncia das normas sociais, provocando reflexo.
Os valores socialmente partilhados so radical e continuamente postos em
dvida por Machado, que sabe que os termos com os quais so descritas
nossas expectativas de justificao esto sempre sujeitos a mudanas devi-
do contingncia histrico-cultural de todo vocabulrio de descrio de
63
critrios normativos de justificao: Na fico de Machado, o ironismo
surge como uma postura tico-filosfica em relao vida, que auxilia a
revelar as falhas na conduta humana114.
Esse humor de base melanclica perpassa a obra machadiana de ponta a
ponta. No por acaso um dos seus primeiros textos crticos, da srie Ideias
vagas, escrito aos dezessete anos e publicado na Marmota Fluminense, em
31 de julho de 1856, versou justamente sobre a comdia moderna, prenun-
ciando a natureza inquietadora do seu humor da obra madura que deriva
da sua qualidade de viso problematizadora115.
Em 1861, ao estrear como comedigrafo, com a pequena comdia Desen-
cantos: fantasia dramtica, trabalhou o estilo da comdia curta, em um ato,
com personagens lanando mo da linguagem cifrada e dos ditos espiri-
tuosos. Nessa pea, j se esboa o contexto social que estar presente na
maioria das suas obras, o da alta sociedade brasileira de seu tempo:
64
estilo refinado, evocando as noes de ponta aguda e penetrante, de delica-
deza e fora juntamente117.
A ironia moralista, que troa os vcios, e a ironia ideolgica, que simula
apologia classe dominante para melhor denunci-la, ao desajustarem o
sentido imediato e o textual de determinada expresso ou frase, tornavam
Machado um autor bifronte, ambguo, de difcil classificao, como notou
Jos Verssimo:
65
O crtico sergipano tambm acusa Machado de imitar o humor ingls.
Romero se insere, assim, no debate dos humores nacionais, marcado pelo
grande confronto ideolgico nacionalismo contra internacionalismo. Para
os partidrios do nacionalismo, a maneira de rir reflete a qualidade da cul-
tura autctone. O riso ocupa, nesse sentido, lugar importante na mitologia
nacional que se cria. Mas a acusao infundada, tendo em vista que a
existncia de um humor especfico a grupos nacionais um mito. Mesmo
que cada nao alimente seu senso do cmico com elementos prprios
sua histria e cultura, essas so apenas diferenas superficiais121.
A prosa machadiana revela mais um esprito fim de sculo lasso e desen-
cantado do que uma mentalidade nacional. Machado de Assis, herdeiro
da tradio lucinica, encontra-se com os contemporneos Mark Twain,
Oscar Wilde e Nietzsche em um riso fim-de-sculo internacional, prove-
niente de uma constatao de nonsense pessimista, tpico de uma poca,
mais que de um pas:
Esse humor, que uma filosofia, cada vez mais sombrio; e, quanto
mais sombrio, mais ele tem necessidade de humor para superar o de-
sespero. por isso que os mais pessimistas so, muitas vezes, os mais
humoristas. Uma pessoa feliz no tem necessidade de fazer humor:
seu riso natural. A pessoa triste deve fazer do humor sua razo de
viver, se no tem coragem de se suicidar: o humor , frequentemente,
a tbua de salvao dos desesperados122.
66
essa inteno, o livro de Maya contrape-se leitura de Romero, segundo
a qual o to apregoado cultivo do humor machadiano seria o resultado de
uma caprichosa e afetada imitao dos humoristas ingleses.
A autoconscincia irnica de Machado implicaria na desestabilizao per-
manente das posies enunciativas como lugares absolutos, a ponto, como
prope Ravel Paz, de o prprio princpio da alteridade constituir um lu-
gar de fora, naturalmente que instvel por definio, para os narradores
machadianos124. Paz assegura que a ironia machadiana no pode ser com-
preendida em todo o seu alcance e duplicidade de maneira dissociada da
ironia romntica, que constituiria uma assuno da conscincia e da prxis
do artista a uma condio similar da natureza, com sua simultnea parti-
cipao nos processos que cria e a sobrelevao em relao a eles.
A esse respeito, Vladimir Safatle lembra que, principalmente a partir do ro-
mantismo alemo, a ironia ser compreendida no apenas como um tropo
da retrica, mas como manifestao privilegiada da fora de autorreflexo
prpria ao sujeito moderno, ou seja, dessa capacidade dos sujeitos de to-
marem a si mesmos como objetos de reflexo e, com isso, transcenderem,
colocando-se para alm de todo contexto determinado. De certa forma,
isso estaria presente na capacidade do sujeito irnico de nunca estar l para
onde seu dizer aponta, nessa clivagem necessria ao ato de fala irnico en-
tre o sujeito do enunciado e a posio do sujeito da enunciao125.
Machado de Assis, exercendo essa autorreflexo, tomou a si mesmo como
objeto de reflexo e, com isso, colocou-se para alm de todo contexto pre-
viamente determinado, ressignificando o conceito europeu de niilismo apre-
sentado por autores oitocentistas como Nietzsche, Dostoivski e Turguniev,
como ser visto adiante. Ao faz-lo, o escritor carioca contrariou uma ten-
dncia predominante no cenrio intelectual do pas. Como bem notou Ro-
berto Gomes, o intelectual brasileiro s leva a srio os temas que adquiriram
o status de assuntos srios, desprezando o seu pendor para o humor:
67
como forma de conhecimento. S no momento em que, abandona-
da a tirania do srio, percebermos que nossa atitude mais profunda
encontra-se em ver o avesso das coisas que poderemos retirar de
nossas costas o peso de sculos de academicismo. E s ento pen-
sar por conta prpria. Se deslocarmos a acentuao do externo para
o interno, encontraremos condies de pensar o que est diante de
nosso nariz126.
68
to que ri da filosofia, coisa rara entre filsofos de vocao e profisso.
Ter sido, por isso, irnica at a mordacidade a sugesto de Nietzsche
para que se tentasse classificar os filsofos de acordo com a qualida-
de de seu riso. Machado, que no foi filsofo, alveja a filosofia com
riso zombeteiro ou irnico no conto, no romance e at mesmo na
crnica128.
69
da regio serrana do estado do Rio de Janeiro, o cronista Eleazar faz uma
irnica referncia s consequncias niilistas da histria131:
131. Nietzsche anotou essa frase, mas no desenvolveu o texto. Cf. NIETZSCHE. Nachgelassene
Fragmente 1885-1887, p. 127.
132. ASSIS. Notas Semanais, p. 410.
133. O historicista apresenta a imagem eterna do passado, o materialista histrico faz desse passado
uma experincia nica. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a
meretriz era uma vez. Ele fica senhor das suas foras, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o
continuum da histria. BENJAMIN. Sobre o conceito da histria, p. 230-231.
70
Machado, opondo-se s perspectivas teleolgicas e evolutivas que impreg-
nam o pensamento moderno em suas vertentes idealista, marxista e po-
sitivista, atacou o credo oitocentista segundo o qual a sociedade europeia
de ento, em decorrncia dos inmeros avanos tcnicos advindos da Re-
voluo Industrial, representava o pice de plenitude do desenvolvimento
humano, de tal modo que as geraes precedentes e as civilizaes no eu-
ropeias eram consideradas inferiores:
71
Mas isso mesmo que nos faz senhores da Terra, esse poder de
restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impres-
ses e a vaidade dos nossos afetos. Deixa l dizer Pascal que o ho-
mem um canio pensante. No; uma errata pensante, isso sim.
Cada estao da vida uma edio, que corrige a anterior, e que ser
corrigida tambm, at a edio definitiva, que o editor d de graa
aos vermes137.
72
renta, meditativa, tarda em recolher documentos, mais tarda ainda em os
ler e decifrar140.
Essa concepo machadiana, sumamente ctica e irnica, afastada do his-
toricismo tpico do sculo XIX, foi influenciada pela tradio lucinica,
sobretudo em sua tendncia para privilegiar a ironia e a imaginao e tam-
bm para rejeitar todo sistema filosfico totalizador. Loureira, provocante e
infiel, a histria, para Machado, se aproxima mais do simbolismo da lenda
e da arte do que da objetividade da cincia141.
Tal viso tambm se aproxima bastante da viso dos moralistas franceses
dos sculos XVII e XVIII, que se interessavam pelo homem sem recor-
rer metafsica ou teologia; examinavam a conduta humana sem buscar
fund-la em princpios transcendentes. Compreendendo a histria como
uma mistura desordenada de aes, eventos, situaes morais, costumes,
arranjos sociais e traos de carter, no a consideravam uma cincia. Pouco
lhes importava se tinha inteligibilidade ou no, o que contava era o seu uso
para compreender o ser humano142.
Pode-se concluir que o escritor brasileiro apresenta uma imagem no evo-
lucionista que, tomada a um repertrio anterior ao sentimento moderno
da histria como progresso, no deixa lugar para o moderno sentimento da
histria teleolgica se ela no tem fim, objetivo ou tlos, seu sentido no
pode ser apreendido de antemo, tampouco possvel identificar a lei de
seu desenvolvimento. Ora, essa frmula inspirada no Setecentos europeu,
quando deslocada para o contexto brasileiro de modernizao capenga, se
adapta perfeitamente nossa histria volvel, que facilmente muda de dire-
o, passando do Imprio Repblica com a mesma facilidade (ou dificul-
dade) com que uma confeitaria troca de placa. Adequa-se, ainda, histria
moderna, na qual tudo que slido desmancha no ar.
Se a obra de Machado de Assis constri-se sob o signo da representao
histrica, como ensinam Schwarz, Faoro, Gledson e Chalhoub, dentre ou-
tros, foi com essa concepo de histria loureira e volvel que o escritor
interpretou a sociedade brasileira oitocentista e o niilismo nela presente.
Mas isso assunto para os prximos captulos.
73
O perspectivismo machadiano
74
O perspectivismo machadiano se ope ao pensamento metafsico e teleo-
lgico que, ao acreditar em origem, valores eternos, essncias imutveis e
absolutas, reduz por toda a parte a diversidade unidade ao fazer abstrao
das singularidades. Nesse sentido, em Esa e Jac, Aires adverte a Nativida-
de sobre a impossibilidade de apresentar respostas definitivas: Baronesa, a
senhora exige respostas definitivas, mas diga-me o que que h definitivo
neste mundo, a no ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha147.
O cerne do perspectivismo machadiano est na considerao de que tudo
conjectural. Todo valor ou conceito, como, por exemplo, o de niilismo,
apropriado, ao longo de sua histria, por foras e potncias diversas, que a
cada vez lhe impem significados e funes. Por isso necessrio marcar
a historicidade dos acontecimentos, contra a tradio teleolgica que acre-
dita num desenvolvimento progressivo e linear, buscando sempre a gnese
de um estado original e puro. Como diria Brs Cubas, no me ocorre nada
que seja assaz fixo nesse mundo148.
Considerando que todo pensamento parte de um olhar especfico e parcial,
nenhum conhecimento pode dar conta de toda a experincia. O cronista
de A Semana usa uma metfora visual para indicar que o conhecimento
envolve um fato anlogo ao da perspectiva no campo da viso:
75
A palavra perspectiva refere-se percepo visual do espao e dos objetos
nele contidos, de acordo com a distncia e o ngulo. A ideia de um co-
nhecimento no perspectivo seria to absurda quanto a de uma viso no
perspectiva. nesses termos que Machado expressa sua rejeio ao funda-
cionalismo cartesiano, perspectiva epistemolgica segundo a qual o conhe-
cimento deve ser concebido como uma estrutura que se ergue a partir de
fundamentos certos e seguros. Enquanto a tradio cartesiana postula um
sentido prvio interpretao, afirmando um sentido em si para as coisas,
o escritor brasileiro mostra que o sentido dado pela interpretao, pois
no existe sentido a priori a ser descoberto:
76
Perspectivismo e ruminao so dois elos entre a literatura e a filosofia.
Machado, desconfiando de todo e qualquer dogmatismo, rumina ideias
para fazer experimentos com o pensar. Por isso, a crtica precisa levar em
conta que a verdade s pode ser pensada em relao perspectiva que a
engendra. Assumir isso at uma questo de honestidade intelectual, visto
ser recorrente nos estudos literrios e filosficos a tenso irreconcilivel en-
tre vrias interpretaes de um texto, muitas delas possveis e excludentes
entre si. Por isso, importante enfatizar o carter perspectivista deste estu-
do, assim como o de toda interpretao em geral. Nesse sentido, proponho
uma leitura que suspende preconceitos e no atribui um sentido unvoco
obra de Machado de Assis, reconhecendo o carter multiplamente deter-
minado do texto152.
77
2. O PESSIMISMO COMO PROTOFORMA DO NIILISMO
O problema do pessimismo
155. Cf. CONSTNCIO. A ltima vontade do homem, a sua vontade do nada, p. 47.
156. CALDWELL. Machado de Assis: the Brazilian master and his novels, p. 112.
80
O cristianismo como instituio promotora de niilismo
81
bravam-se missas pelas colheitas e pelos rebanhos aes que, em menor
medida, ocorrem ainda hoje.
Veyne avalia que o sucesso inicial do cristianismo primitivo junto elite
romana deve-se autoridade sobre-humana que emanava de Jesus Cristo.
Para quem tinha f, a existncia recebia de repente uma significao eterna
no contexto de um plano csmico, coisa que no lhe dariam nem as filo-
sofias da poca nem o paganismo. Graas ao Deus cristo, a vida recebia a
unidade de um campo magntico no qual cada ao, cada movimento in-
terior adquiria um sentido bom ou mau que o prprio homem no se
dava por si prprio, mas o orientava na direo de um ser absoluto e eterno.
O sucesso do cristianismo se explica tambm pelo dogma do inferno, que
mais exalta a doutrina crist do que a prejudica. Os inventores do infernum
(profundezas da Terra) e das penas eternas em dobro (o fogo, no sentido
prprio da palavra, e o castigo da privao de Deus) ainda hoje aterrorizam
um grande pblico, porque muitas pessoas se deixam impressionar pelas
fices apavorantes. O Deus de amor e de justia tambm o Deus impiedo-
so que pune e aterroriza. Com sua inveno de um Deus do amor que criou
o inferno, se poderia reprovar o fato de terem criado um personagem incoe-
rente, mas uma doutrina religiosa no pretende ter uma coerncia lgica.
Mas, afinal, a principal razo para o sucesso do cristianismo est em outro
ponto, avalia Veyne. O medo da danao no era o principal motivo das
converses, mas sim o que torna o cristianismo uma das religies de salva-
o: o amor de Deus. Nesse sentido, os motivos para algum se converter
eram mais elevados do que o medo da morte:
82
Essa f implicava, aos olhos dos convertidos, que a Providncia preparava
o caminho da salvao para a humanidade. Se Deus engloba o mundo em
seu imenso amor e lhe prepara um destino sublime, o crente prova em seu
corao desse mesmo amor e encontra a divindade presente em si mesmo.
Ao humilhar-se diante dessa divindade amorosa todo aquele que se
humilharser exaltado160 o cristo passa a pertencer a seu alto proje-
to, confessa ser pecador diante de sua grandeza, se oferece a essa divin-
dade com o corao contrito e reconhece sua soberania, para louv-la e
exalt-la. Nessa relao pessoal com Deus, suporta-se o martrio para no
renegar a f. Despreza-se a vida terrena em nome da esperana de uma
destinao sobrenatural.
Segundo Blaise Pascal, Jesus Cristo teria ensinado aos homens que eles
eram escravos, cegos, doentes, infelizes e pecadores; que era preciso que
ele os libertasse, esclarecesse, beatificasse e curasse, que isso se faria pelo
dio de si mesmo e seguindo-o pela misria e a morte na cruz161. Nes-
se sentido, o cristianismo uma religio que prope o dio de si, sendo,
assim, capaz de agradar queles que odeiam a si mesmos e que procuram
um ser superior verdadeiramente amvel. Diante de Deus, o homem deve
aniquilar-se e igualar-se aos vermes da terra, reconhecendo que nada se
pode sem ele e que nada se mereceu dele, afora estar em desgraa: preci-
so amar s a Deus e odiar s a si mesmo162, apregoa Pascal.
Machado de Assis ironiza essa obedincia s injunes morais que alimen-
tam a metafsica crist e geram essa demanda por um mundo suprassens-
vel que redima e justifique a vida na imanncia. O cronista de A Semana,
em um texto de 11 de junho de 1893, dessacraliza a sagrada escritura, ao
emend-la, tirando-lhe o carter inviolvel, o purismo e a venerabilidade:
83
dos homens e faz esquecer por instantes o constrangimento e o tdio.
Acresce que o uso tem grande influncia, acabando por acomodar
muitos homens sua casaca.
Condodo desse melanclico espetculo, Jesus achou um meio
de corrigir os desconcertos, removendo deste mundo para o outro a
esperana das casacas justas. Bem-aventurados os mal-encasacados,
porque eles sero vestidos no cu!163.
84
O niilismo comea com um deslocamento metafsico do centro de gravi-
dade da vida em direo a outra esfera que no ela mesma. A depreciao
promovida pelo cristianismo pressupe a ideia de um mundo suprassens-
vel (Deus, a essncia, o bem, o verdadeiro) que nega a vida terrena. A vida
inteira torna-se ento irreal, representada como aparncia, assumindo em
seu conjunto um valor de nada:
85
amor! Ele ama a vida como a ave de rapina ama o cordeiro: tenra,
mutilada, moribunda168.
86
instauradoras de avaliaes cannicas, so horizontes promotores do
esgotamento e da despotenciao do homem diante de sua finitude.
Porque subtraem do homem a boa conscincia em relao din-
mica que lhe garante vigor, so instituies promotoras de niilismo,
de indiferenciao, de cansao da vida. O que elas instituem o pa-
thos do em vo: paralisam os impulsos hierarquizantes e valorativos
do homem, alienando-o, pois, do que seria sua tarefa fundamental,
a tarefa de se colocar a prpria meta, o prprio para qu? [...] O
homem passa a no querer o que pode e a no poder o que quer;
seus instintos so anarquizados pelas normas morais, baseadas em
valores supostamente divinos, eternos, capazes de corrigir a falta
constitutiva do devir humano, a distncia do homem em relao
perfeio do ser, que metafisicamente e no devm, isto , no car-
rega em si o no-ser170.
O desconsolo do Eclesiastes
Machado faz mais de uma centena de referncias Bblia, cuja edio en-
contrada em sua biblioteca era uma verso da Vulgata, traduzida pelo por-
tugus Antnio Pereira de Figueiredo e publicada em 1866171. Dentre os
livros bblicos, o preferido do escritor aquele que tende a mostrar que as
opinies, planos e empreitadas dos homens so todos em vo e estreis o
Eclesiastes.
H uma frase do Eclesiastes que porventura seja a mais frequentemente
convidada a participar da prosa machadiana: vaidade das vaidades, tudo
87
vaidade. A sua recorrncia muito significativa, seja concordando, como
o cronista de A Semana, para quem o livro bblico tem resposta para
tudo172, ou discordando, como um personagem de Iai Garcia: O Sr. An-
tunes, que no era de extremas filosofias, tinha a convico de que debaixo
do sol, nem tudo so vaidades, como quer o Eclesiastes173. Predomina a
concordncia, ainda que com a pena da galhofa. Exemplar o Elogio da
Vaidade, publicado na revista O Cruzeiro em 28 de maio de 1878. No texto,
Eleazar faz com que a prpria Vaidade, personificada e empertigada, pro-
nuncie o louvor de si mesma para o grande pblico:
88
Onde h muitos bens, h muitos que os comam, diz o Eclesiastes, e
eu no quero outro manual de sabedoria. Quando me afligirem os
passos da vida, vou-me a esse velho livro para saber que tudo vai-
dade. Quando ficar de boca aberta diante de um fato extraordinrio,
vou-me ainda a ele para saber que nada novo debaixo do sol175.
89
O terceiro captulo pontifica que a providncia divina dispe todas as coisas
em seu tempo, alertando que o ser humano no pode alterar as disposies
de Deus, mas deve aproveitar devidamente os dons da vida, resignando-se
ante as injustias deste mundo, porque Deus julgar o justo e o mpio, e en-
to ser o tempo de todas as coisas178. Nesse sentido, seus fins autoritrios
e irracionais no podem ser alcanados por meio de convices racionais,
mas somente na salvao religiosa, pela f.
O captulo IV aborda os sofrimentos provenientes das calnias, violncias e
cimes dos homens uns contra os outros, da ociosidade dos insensatos, da
loucura dos avaros e da vaidade do poder soberano. Conclui que a obedin-
cia prefervel aos sacrifcios: Porque muito melhor a obedincia do que
as vtimas dos insensatos que no conhecem o mal que fazem179.
Os captulos V e VI insistem na precariedade dos bens materiais e na va-
cuidade da vida mundana, porque do mesmo modo que samos nus do
ventre de nossas mes, nus morreremos, sem levar nada conosco. Logo,
indica alguns meios para que o ser humano possa desfrutar da tranquilida-
de: circunspeco nas palavras; moderao no falar e no prometer, mesmo
a Deus; no se admirar ou espantar com as injustias, as ambies e a perda
das fortunas; contentar-se com o necessrio, resistindo aos desejos. Por fim,
ensina que devemos nos abandonar providncia divina.
O stimo e o oitavo captulos ensinam os supostos verdadeiros valores da
vida: a boa reputao, a seriedade, a pacincia em face da contradio, a
pouca importncia do dinheiro, a bondade para com o prximo, a utilida-
de das correes, a obedincia a Deus, a espera dos julgamentos divinos e
a conscincia de que s Deus pode discernir o bem e o mal dos homens.
Ainda apresenta um niilismo metafsico, desvalorizando a vida na Terra
em nome de outra, no alm: Melhor o bom nome do que os blsamos
preciosos, e o dia da morte do que o dia do nascimento180.
O captulo IX pontifica que apenas Deus conhece o ntimo do ser humano,
pois na vida mundana todas as coisas acontecem igualmente ao justo e ao
mpio, ao bom e ao mau, ao puro e ao impuro, de tal modo que ningum
sabe se digno de amor ou de dio o que no nos deve desencorajar, mas
estimular virtude, a qual, contudo, nem sempre recompensada na Terra.
90
O dcimo captulo avalia as consequncias funestas da imprudncia e
aconselha a cautela. Que os homens de bem tomem cuidado com as pala-
vras e aes dos insensatos, especialmente quando estes ocupam posies
elevadas, de cujos erros so cmplices aqueles que os elevaram. Ensina,
ainda, a no criticar as autoridades: No digas mal do rei, ainda no teu
pensamento, e no fales mal do rico, ainda no retiro da tua cmara; porque
at as aves do cu levaro a tua voz, e o que tem penas dar notcia do teu
sentimento181.
O autor do livro, monarca e milionrio, esbanjando riqueza enquanto o
povo vivia na pobreza, porventura seja um demagogo que doutrina os s-
ditos a desprezarem os bens materiais, a resignarem-se ante as injustias do
mundo e a no maldizerem os nobres e abastados. Nesse sentido, o Eclesias-
tes pode ser lido como material de propaganda preocupado com questes
polticas concretas e tangveis. Para obter o apoio dos fiis para objetivos
altamente incompatveis com seu autointeresse racional, s pode faz-lo
criando artificialmente o vnculo com Deus um amor a Deus moldado
em obedincia.
O padro reaparece nos dois ltimos captulos, que no apelam conscin-
cia prpria de seus potenciais seguidores, mas invocam incessantemen-
te valores externos, convencionais e salvacionistas, os quais so tomados
como certos e tratados como autoritariamente vlidos sem jamais serem
submetidos a um processo de experincia viva ou a um exame discursi-
vo. Tal fenmeno expresso adequadamente na frmula do captulo XII:
Ouamos todos juntos o fim deste discurso. Teme a Deus e observa os seus
mandamentos, porque isto tudo do homem182.
O autoritarismo salomnico retorna no Novo Testamento, que ensina a
rendio da vontade individual vontade de Deus. Exemplar um discur-
so de Paulo de Tarso, que prega que os cristos submetam-se servilmente
s instituies estabelecidas, que seriam representantes de Deus na Terra:
91
estabelecida por Deus; e os que a ela se opem, atraem sobre si a
condenao. Em verdade, as autoridades inspiram temor, no porm
a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres no ter o que
temer a autoridade? Faze o bem e ters o seu louvor. Porque ela
instrumento de Deus para o seu bem183.
92
fiis esperam que um poder exterior (Deus) justifique o mundo, obedecen-
do s vontades alheias em detrimento de suas vontades individuais.
Blaise Pascal, em sintonia com Paulo e o Eclesiastes, acredita que a pro-
vidncia divina dispe todas as coisas em seu tempo, aceitando que o ser
humano no pode alterar as disposies de Deus, mas deve aproveitar de-
vidamente os dons da vida, resignando-se ante as injustias deste mundo:
A justia o que est estabelecido; e assim todas as nossas leis estabelecidas
sero necessariamente tidas como justas sem ser examinadas, visto que es-
to estabelecidas185.
Machado de Assis, como consta de sua biografia, seguiu parcialmente a
orientao do Eclesiastes na conduo de sua vida pessoal, vivendo com
sobriedade, ponderao e prazeres moderados. Entretanto, recusou a ex-
trema-uno e demonstrou ser ctico em relao s autoridades terrenas,
ao julgamento divino e ao determinismo csmico que torna todas as coisas
vs. Exemplar o cronista de A Semana, que no quer outro manual de
sabedoria e endossa que nada h de novo debaixo do sol e que tudo vai-
dade, mas recusa veementemente a obedincia cega a um poder totalitrio:
No que eu tenha dio lei; mas no tolero opresses de espcie alguma,
ainda em meu benefcio186.
possvel concluir que a prosa machadiana parece corroborar alguns dos
principais temas tratados pelo texto bblico, como a vaidade do conheci-
mento, a vaidade dos prazeres, a certeza da morte, a incerteza do futuro, a
insignificncia da reputao pessoal (supervalorizada pela sociedade brasi-
leira oitocentista) e o mistrio insondvel da existncia, por vezes tratando-
-os com a pena da galhofa.
Blaise Pascal no dos autores mais citados por Machado de Assis. Con-
siderando que os mais mencionados so a Bblia, Shakespeare e Homero,
o autor de Pensamentos disputaria o quarto lugar com Goethe, Shelley e
93
Voltaire187. Por conseguinte, no se pode exagerar a vinculao do autor
brasileiro ao matemtico e telogo francs. At porque, Machado, longe de
ser um leitor passivo dos clssicos, criou, a partir do que leu, novos textos e
saberes,tornando-se ele prprio um clssico.
No se pode exagerar, tampouco desprezar. As afinidades eletivas entre
o francs e o brasileiro so reconhecidas pelos crticos e admitidas por
Machado de Assis, que possua em sua biblioteca uma edio de 1861 de
Penses. O prprio escritor declara, em carta a Joaquim Nabuco, de 19 de
agosto de 1906, que a leitura da obra de Pascal foi intensa e frequente,
desde a juventude:
Erro dizer como v. diz em uma destas pginas, que nada h mais
cansativo que ler pensamentos. S o tdio cansa, meu amigo, e este
mal no entrou aqui, onde tambm teve acolhida a vulgaridade.
Ambos, alis, so seus naturais inimigos. Tambm no acertado
crer que, se alguns espritos os leem, s por distrao, e so raros.
Quando fosse verdade, eu seria desses raros. Desde cedo, li muito
Pascal, para no citar mais que este, e afirmo-lhe que no foi por
distrao. Ainda hoje, quando torno a tais leituras, e me consolo no
desconsolo do Eclesiastes, acho-lhes o mesmo sabor de outrora. Se
alguma vez me sucede discordar do que leio, sempre agradeo a ma-
neira por que acho expresso o desacordo188.
187. Uma lista com as referncias de citaes feitas por Machado nos romances consta de BRANDO;
OLIVEIRA. Machado de Assis leitor, p. 169-242. Outra fonte de pesquisa de citaes e aluses em
romances e contos o site <http://machadodeassis.net>. Acesso em: 05 ago. 2015.
188. ASSIS. Miscelnea, p. 1342-1343.
189. ASSIS. Miscelnea, p. 1108.
94
No mesmo ano, o Jornal das Famlias, em que o escritor publicou quase
todos os seus contos dos anos 1860 e 70, apresenta o conto Felicidade pelo
casamento, atribudo a Machado, mas no includo em suas Obras com-
pletas. O narrador, F., relata como suas leituras o chamam contemplao
asctica e s reflexes morais, por um lado, e por outro levam seu esprito
s mais elevadas regies da fantasia: Sobre a mesa tenho duas pilhas de
livros. De um lado a Bblia e Pascal, do outro Alfredo de Vigny e Lamartine.
obra do acaso e no parece: tal o estado do meu esprito190.
Em suas crnicas, o filsofo francs citado em pelo menos duas ocasies.
Em anedota de 13 de fevereiro de 1889, o filsofo, chamado de sonhador,
confundido com um confeiteiro chamado Pascoal191. No dia 20 de junho
de 1864 ele citado no original: esta alterao dos princpios segundo
as regies, que faz dizer com Pascal: Plaisante justice quune rivire ou une
montagne borne! Verit au deca des Pyrnes, erreur au dela! [Justia en-
graada essa que um rio limita. Verdade aqum dos Pirineus, erro alm]192.
A frase supracitada faz aluso aos montes Pirineus e ao rio Biddassoa, onde
os franceses trocaram Isabela de Frana (futura esposa de Filipe IV) por
Anna de ustria (futura esposa de Luiz XIII) para selar a paz entre Frana e
Espanha. Os montes marcam a fronteira sul entre os dois pases, enquanto
o rio define a fronteira ao norte. O pensamento pascaliano, se valendo da
dupla acepo do termo justia, refere-se a uma discusso da relatividade
das leis jurdicas. Enquanto a justia positiva, humana, difere em pases
diferentes, sendo relativa, a universalidade da virtude como atributo divino
no admite relatividade.
Pascal tambm mencionado no conto O lapso, de 1883: Temo que
se me argua de comparaes extraordinrias, mas o abismo de Pascal
o que mais prontamente vem ao bico da pena193. A expresso abismo de
Pascal, que se refere alucinao que Blaise sofria com frequncia, vendo
aparecer sempre diante de si um abismo aberto para trag-lo, tambm
alude dificuldade que certos problemas sociais ou morais oferecem em
sua elucidao.
95
Em carta a Magalhes de Azeredo, de 21 de julho de 1897, Machado re-
comenda ao jovem amigo que v completando e multiplicando os seus
trabalhos, sem precipitao, com a pacincia velha de Chateaubriand, de
Pascal, de Flaubert. Nem por isso produzir menos; a questo que pro-
duza bem194.
Nos romances, Pascal aparece somente em Memrias pstumas de Brs
Cubas. O defunto autor avalia que Nh-Lol exprimia inteiramente a dua-
lidade de Pascal, para quem o ser humano no nem anjo nem animal:
lange et la bte, com a diferena que o jansenista no admitia a simulta-
neidade das duas naturezas, ao passo que elas a estavam bem juntinhas,
lange, que dizia algumas coisas do Cu, e la bte, que... No; decidi-
damente suprimo este captulo195. Essa dualidade anjo/besta, que Pascal
retira da Bblia196, crucial em sua antropologia filosfica, segundo a qual o
caos de contradies em que consistem os homens devido participao
em seu ser de duas realidades incomensurveis: a perfeita, sobrenatural, e a
corrupta, natural, aps a queda. Essa seria a condio miservel do homem,
dilacerado entre o nada de onde saiu e o infinito que o envolve, compondo
uma imagem da humanidade como caos de conflitos insolveis. Nem anjo,
nem animal, o ser humano vive numa circunstncia existencial dilacerada,
na tenso entre grandeza e misria, saber e ignorncia.
Em outra passagem, o personagem Quincas Borba, com a discrio pr-
pria de um filsofo, foi ler a lombada dos livros de uma estante da casa de
Brs Cubas, tirando um volume. Era uma obra de Pascal, a quem proclama
um de seus avs espirituais:
96
vantagem de saber que tem fome; e isto que torna grandiosa a luta,
como eu dizia. Sabe que morre uma expresso profunda; creio
todavia que mais profunda a minha expresso: sabe que tem fome.
Porquanto o fato da morte limita, por assim dizer, o entendimento
humano; a conscincia da extino dura um breve instante e acaba
para nunca mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar, de
prolongar o estado consciente. Parece-me (se no vai nisso alguma
imodstia) que a frmula de Pascal inferior minha, sem todavia
deixar de ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem197.
97
e desconsolada, dividida e contraditria, em conflito consigo mesma,
procura de autossatisfao e encontrando o tdio. A seguir, sero vistas as
categorias bsicas do filsofo francs, tais como o divertimento, que ilumi-
nam o pensamento machadiano.
98
[...] o pecado original comprometeu irremediavelmente a nature-
za original do homem, de modo que a sua condio atual o coloca
muito distante da bondade primitiva e completamente despojado de
meios prprios para recuper-la. Essa insuficincia tornou-se carac-
terstica da condio humana, que a do pecado, de modo que a
superao dessa condio no pode dar-se sem a ajuda de Deus, isto
, sem a dispensao da graa, concedida queles que ele escolheu
para contemplar, de maneira gratuita e devida unicamente sua mi-
sericrdia, j que o homem livremente renunciou ao merecimento.
Concordam com a afirmao de uma bondade primitiva, pois o ho-
mem, criado por Deus sua imagem e semelhana, teria de refletir,
no estado de criatura, a perfeio do criador. Criatura perfeita no seu
gnero, uma das perfeies de que o homem dispunha era a liber-
dade. Ele a usou para afastar-se de Deus, sendo assim o responsvel
pela sua prpria queda. Esta seria em princpio definitiva, porque
o homem, dada a sua condio inferior, no poderia por si mesmo
reparar a ofensa feita a um ser infinitamente superior. A gravidade
da ofensa se mede pela dignidade do ofendido e no do ofensor: de
acordo com tal princpio, a humanidade, que pecou em Ado, esta-
ria, de maneira inteiramente justa, porque por sua prpria escolha,
destinada danao. No entanto, Deus, movido pela sua misericr-
dia, que nesse caso superou a justia, ofereceu a possibilidade de sal-
vao por meio da nica reparao devida, o sacrifcio do prprio
Deus na pessoa de Jesus Cristo, que trouxe aos homens, por via da
paixo, a possibilidade de recompor a unio com Deus. Trata-se de
uma graa, isto , de algo que Deus oferece independentemente do
merecimento humano e por isso somente atravs dessa graa que o
homem pode triunfar sobre o pecado202.
99
apologia tradicional da religio crist, no s confronta como tambm as-
sume muitas das ideias apresentadas pelos cticos e descrentes com o qual
dialoga204.
Para Pascal, se trataria de entender o sentido histrico e transcendente da
religio crist, investigando as origens de todas as contradies que viven-
ciamos, buscando no prprio mistrio da f a luz que ilumine as oposies
que dividem a nossa conscincia, porque Deus concederia clareza suficiente
aos que o procuram de corao aberto, mas tambm corroboraria a ceguei-
ra daqueles que no desejam conhec-lo: A religio uma coisa to grande
que justo que aqueles que no quisessem dar-se o trabalho de procur-la,
se ela obscura, fiquem privados dela. De que se queixam ento, se ela tal
que pode ser encontrada quando se procura?205
O Deus absconditus (abscndito, escondido) o nome que Deus teria dado
a si mesmo nas Escrituras206, indicando que os homens esto nas trevas e no
afastamento da divindade, que permanece oculta. No obstante, o criador
do universo teria colocado marcas sensveis na Igreja para se fazer reconhe-
cer por aqueles que o buscam com sinceridade, com o corao:
204. Cf. HAMMOND. Pascals Penses and the art of persuasion, p. 235-240
205. PASCAL. Pensamentos, 472 (574), p. 194-195.
206. Verdadeiramente um Deus se esconde em tua casa, o Deus de Israel, um Deus que salva! (Vere
tu es Deus absconditus, Deus Israel salvator). BBLIA. Isaas, 45, 15, p. 1001.
207. PASCAL. Pensamentos, 269 (692), p. 106. Ver tambm: 427 (194), p. 165.
100
Os maiores inimigos dos homens que procuram Deus seriam as paixes e
a cobia de bens materiais e prazeres carnais. Essa concupiscncia, cobia
natural do homem pelos bens terrenos, consequncia do pecado original,
produz desordem dos sentidos e da razo. O remdio seria a ascese, isto ,
a disciplina e o autocontrole estritos do corpo e do esprito, conduzindo ao
caminho em direo a Deus, verdade e virtude.
Somente Deus poderia preencher a ausncia constitutiva que se manifesta
em nossa insuficincia existencial. E seu filho Jesus Cristo, o Deus humi-
lhado, libertador dos homens, traria aos homens no a justia legal, terrena,
mas sim a justia eterna, e somente para aqueles que tm f e praticam a
ascese. Tem-se, assim, a Misria do homem sem Deus e a Felicidade do
homem com Deus208.
A antropologia pascalina conclui que o homem misria e grandeza. Ali-
mentada tanto por uma aguda observao mundana quanto por uma inter-
pretao rigorosa da Bblia, compreende que o caos de contradies em que
consistem os homens devido participao em seu ser de duas realidades
incomensurveis: a perfeita, sobrenatural, e a corrupta, natural, aps a que-
da o anjo e a besta, j mencionados.
Tentando fugir da circunstncia existencial dilacerada, os homens elabo-
ram toda sorte de distraes, condutas desviantes e artifcios o famoso
divertissement (divertimento). Incluem-se, nessa categoria, as convenes
sociais to ironizadas por Machado: as honrarias, os ttulos honorficos, o
apego aos bens materiais, a opinio pblica, o jogo, o entretenimento com
as mulheres, a guerra e at mesmo a cincia e a filosofia: As misrias da
vida humana foram o fundamento disso tudo. Como viram isso, assumi-
ram o divertimento209.
O divertimento, para Pascal, conduz para o terreno das sensaes imedia-
tas, nos desviando do bom caminho. Isto posto, a nica sada para o ho-
mem a imitao de Cristo, a obedincia aos ensinamentos da tradio
crist e a apologia da nica religio que, segundo ele, seria verdadeira e
capaz de conduzir salvao:
101
Dessa falta de coerncia entre os mais aturados esforos do pensa-
mento para obter a verdade pode-se obter a disposio necessria
para transitarmos at a ltima ordem, o corao. O fracasso como
estmulo para a ascese: humilhados o orgulho e a autossuficincia
dos homens indevidamente reverenciados pela modernidade,
pois tudo o que a cincia nova diz saber no vale nada diante do
mistrio da criao, impenetrvel por nossas razes , resta a ad-
misso de que os textos sagrados esto com a verdade. Se a aceitao
do absurdo contido na noo de pecado original chocante para a
chamada s conscincia, que outra explicao esta mesma conscin-
cia tem a dar para a loucura da existncia diria? escndalo para os
bem pensantes aceitar a palavra dos profetas, que exigem renncia
ao mundo. A resposta pascaliana para isso que os resultados do
prprio bem pensar nunca justificaram, em ltima anlise, qualquer
das opes de adeso ao mundo neles apoiadas. Para um animal to
disparatado como o homem, s a loucura maior do sacrifcio miseri-
cordioso por todos na cruz pode prover salvao210.
102
Schopenhauer, o filsofo dos niilistas
103
moral de mundo ao conduzi-la s suas ltimas consequncias. isso que
faz dele um interlocutor privilegiado dos niilistas. Essa interpretao niet-
zschiana pode ser sustentada tendo-se em vista que Schopenhauer funda o
pessimismo enquanto tema filosfico, ao atribuir-lhe um carter metafsico,
que diz respeito essncia ltima do universo: em essncia, incluindo-se
tambm o mundo animal que padece, TODA VIDA SOFRIMENTO213.
O sofrimento seria o sentido mais prximo e imediato do viver. A dor infi-
nita, de que o mundo estaria pleno, seria originria da necessidade essen-
cial vida. Nossa receptividade para a dor seria quase infinita, enquanto
aquela para o prazer possuiria limites estreitos. Nesse sentido, a infelici-
dade em geral constituiria a regra, avalia o filsofo de Danzig: o Em-si da
vida, a Vontade, a existncia mesma, um sofrimento contnuo, e em parte
lamentvel, em parte terrvel214.
O pessimista alemo considera que toda forma de satisfao o ponto de
partida para um novo esforo, o qual, por sua vez, gera um novo sofrimen-
to. No haveria, pois, prazer duradouro, tampouco fim do padecimento:
Todo QUERER nasce de uma necessidade, de uma carncia, logo, de um
sofrimento. A satisfao pe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada
desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que no o so215.
Para Schopenhauer, a essncia ntima da natureza humana e animal
o querer, manifesto num esforo interminvel e sem repouso, comparvel
a uma sede insacivel. E a base de todo querer necessidade e carncia,
logo, padecimento. Por isso, o homem est destinado originariamente ao
sofrimento:
213. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, 56, p. 400. Caixa-alta
original.
214. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, 52, p. 350. Caixas-altas
originais.
215. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, 38, p. 266. Caixa-alta
original.
104
tncia propriamente dita se encontra apenas no presente, e seu es-
coar sem obstculos no passado uma transio contnua na morte,
um sucumbir sem interrupo; visto que sua vida passada, tirante
suas eventuais consequncias para o presente, e tirante tambm o
testemunho sobre sua vontade ali impresso, j terminou por inteiro,
morreu e no mais existe. Eis por que, racionalmente, tem de lhe
ser indiferente se o contedo daquele passado foram tormentos ou
prazeres. O presente, entretanto, em suas mos sempre se torna o
passado; j o futuro completamente incerto e sempre rpido. Nesse
sentido, sua existncia, mesmo se considerada do lado formal, uma
queda contnua do presente no passado morto, um morrer constan-
te. Se vemos a isso tambm do ponto de vista fsico, ento mani-
festo que, assim como o andar de fato uma queda continuamente
evitada, a vida de nosso corpo apenas um morrer continuamente
evitado, uma morte sempre adiada. Por fim, at mesmo a ativida-
de lcida de nosso esprito um tdio constantemente postergado.
Cada respirao nos defende da morte que constantemente nos afli-
ge e contra a qual, desse modo, lutamos a cada segundo, bem como
lutamos nos maiores espaos de tempo mediante a refeio, o sono, o
aquecimento corpreo etc. Por fim, a morte tem de vencer, pois a ela
estamos destinados desde o nascimento e ela brinca apenas um ins-
tante com sua presa antes de devor-la. No obstante, prosseguimos
nossa vida com grande interesse e muito cuidado, o mais longamente
possvel, semelhante a algum que sopra tanto quanto possvel at
certo tamanho uma bolha de sabo, apesar de ter a certeza absoluta
de que vai estourar216.
216. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, 57, p. 400-401. Caixa-alta
original.
105
que atuam sobre eles com muito mais intensidade do que a sensao dos
prazeres ou sofrimentos a que est restrito o animal:
Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rpida e fcil sa-
tisfao, assaltam-lhe o vazio e tdio aterradores, isto , seu ser e sua
existncia mesma se lhe tornam um fardo insuportvel. Sua vida,
portanto, oscila como um pndulo, para aqui e para acol, entre a
106
dor e o tdio, os quais em realidade so seus componentes bsicos.
Isso tambm foi expresso de maneira bastante singular quando se
disse que, aps o homem ter posto todo sofrimento e tormento no
inferno, nada restou para o cu seno o tdio218.
A nica certeza que temos na vida que vamos morrer. Diante disso, ten-
demos a temer a morte, sem nenhum bom motivo racional, avalia Scho-
penhauer. compreensvel temer o sofrimento de uma morte dolorosa,
mas nesse caso o medo seria em relao dor. Temer a morte em si mesma
ou seja, o fim do sofrimento da vida seria irracional.
107
Filho de um prspero comerciante, criado para seguir a carreira do pai,
Schopenhauer sabe bem o significado de um negcio mal gerenciado. Se
a vida um negcio que no cobre seus custos220, cedo ou tarde, vem
a bancarrota. Por isso, o filsofo conclui que toda biografia (Lebensges-
chichte) na verdade uma patografia (Leidensgeschichte), histria de
sofrimento221. Assim sendo, para aqueles que sentem a vida mesma como
uma doena, a despedida dela lhes cai como uma cura da enfermidade que
seria o prprio viver.
Ao fundamentar filosoficamente a tese de que no h justificao para a
existncia, pois o mundo uma sucesso de sofrimentos infindveis, in-
tercalados por satisfaes momentneas seguidas de tdio, Schopenhauer
conclui que a negao da vontade de viver a nica soluo para o proble-
ma do sofrimento. por isso que o filsofo defende o ascetismo, que seria
o nico remdio eficiente para a doena da vida, enquanto que todos os
outros seriam placebos, simples calmantes. Schopenhauer estabelece qua-
tro etapas em que o processo do ascetismo se desenvolve: 1) castidade; 2)
pobreza voluntria; 3) aceitao do sofrimento, casual ou provocado por
outra pessoa; e 4) mortificao do corpo, que no pode ser ativa e violenta,
como no suicdio vulgar, mas deve ser passiva, uma espcie de inanio
(como a despreocupao com a alimentao, por exemplo). Eis a, segundo
Jarlee Salviano, o consolo oferecido pelo niilismo schopenhaueriano
um paradoxal querer o nada, a vontade de nada222.
Rogrio Lopes avalia que a formulao, por Schopenhauer, da pergunta
pelo valor da existncia, s pde emergir em um contexto de esgotamento
das fontes que alimentavam a soluo moral para o problema da norma-
tividade no Ocidente, ainda que esse esgotamento no tenha se tornado
perceptvel a todos, sequer aos autores que se diziam pessimistas. Na forma
como a encontramos, a tica schopenhaueriana da negao da vontade de
viver encerra o sistema com um niilismo declarado. Ao revelar o conflito
insolvel entre valores vitais e valores morais, ele teria sido o mais conse-
quente dos moralistas223.
108
Machado leitor de Schopenhauer
109
anos, Ablio, abandonou-o em uma estrebaria, onde, sofrendo picadas de
galinhas, agonizou por trs dias, at a morte. Com a pena da galhofa, o cro-
nista formula um dilogo entre o menino moribundo e o filsofo pessimista:
110
nos de Guimares com a de Cristina, e ambos sentiam que nenhuma
outra voz era to doce, to pura, to deleitosa. [...]
Enfim, nasceu Ablio. No contam as folhas coisa alguma acerca dos
primeiros dias daquele menino. Podiam ser bons. H dias bons de-
baixo do sol. Tambm no se sabe quando comearam os castigos
refiro-me aos castigos duros, os que abriram as primeiras chagas,
no as pancadinhas do princpio, visto que todas as cousas tm um
princpio, e muito provvel que nos primeiros tempos da criana os
golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, porque a l-
grima suco da dor. Demais, livre mais livre ainda nas crianas
que mamam, que nos homens que no mamam.
Chagado, encaixotado, foi levado estrebaria, onde, por um descon-
certo das cousas humanas, em vez de burros, havia galinhas. Sabeis
j que estas, mariscando, comiam ou arrancavam somente pedaos
da carne de Ablio. A, nesses trs dias, podemos imaginar que Ab-
lio, inclinado aos monlogos, recitasse este outro de sua inveno:
Quem mandou aqueles dois casarem-se para me trazerem a este
mundo? Estava to sossegado, to fora dele, que bem podiam fazer-
-me o pequeno favor de me deixarem l. Que mal lhes fiz eu antes,
se no era nascido? Que banquete este em que a primeira coisa que
negam ao convidado po e gua?
Nesse ponto do discurso que o filsofo de Danzig, se fosse vivo e
estivesse em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irritao: Cala a
boca, Ablio. Tu no s ignoras a verdade, mas at esqueces o passa-
do. Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se tu mesmo
que os ligaste? No te lembras que, quando Guimares passava e
olhava para Cristina, e Cristina para ele, cada um cuidando de si, tu
que os fizeste atrados e namorados? Foi a tua nsia de vir a este
mundo que os ligou sob a forma de paixo e de escolha pessoal. Eles
cuidaram fazer o seu negcio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o neg-
cio, a culpa no deles, mas tua, e no sei se tua somente... Sobre isto,
melhor que aproveites o tempo que ainda te sobrar das galinhas,
para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as cousas
pelo mido. uma prola. Est no tomo II, livro IV, captulo XLIV...
Anda, Ablio, a verdade verdade ainda hora da morte. No creias
nos professores de filosofia, nem na peste do Hegel....
E Ablio, entre duas bicadas:
111
Ser verdade o que dizes, Artur; mas tambm verdade que, antes
de c vir, no me doa nada, e se eu soubesse que teria de acabar as-
sim, s mos dos meus prprios autores, no teria vindo c. Ui! Ai!226
112
A professora endossa a tradio crtica que, como j foi visto, parte do pres-
suposto de que a lgica de composio e o estilo machadianos esto atre-
lados a uma viso de mundo pessimista. Ignora, assim, que no se sente
em Machado, como em Schopenhauer, desprezo pelo mundo, mas, pelo
contrrio, amor vida228.
Ficcionista do perecvel, inspirado pela falta de sentido da vida, o escritor
foi sim influenciado pelo pessimismo schopenhaueriano, que coloca a per-
gunta pelo sentido da existncia sem dogmatismo ou preconceito religioso,
refutando a crena numa ordenao moral do mundo, despojado de todo
carter divino. No entanto, sua crnica ironiza a metafsica do amor, levan-
do tanto o seu tema quanto o prprio autor ao absurdo.
No se pode perder de vista que a filosofia schopenhaueriana aparece na
prosa machadiana faturada sob a pena da galhofa. Se Machado era scho-
penhaueriano, como comum dizer, ele o era na medida em que ironiza-
va a filosofia de Schopenhauer de forma incessante o que no significa
colocar-se contra o pensamento do filsofo. O que ocorre o deslocamento
dos conceitos filosficos, que deixam de ser o que eram ao sarem de seu
contexto sistemtico de pensamento e passam a ser algo ambguo e bifronte
ao serem reescritos com a pena da galhofa.
113
3. A EMERGNCIA DO NIILISMO
229. Cf. NIILISMO. In: ABBAGNANO. Dicionrio de Filosofia, p. 712; VOLPI. O niilismo, p. 15-16.
valo de Tria para dentro dos muros, venerando-o durante o dia e
deixando-se devorar durante a noite. [...] A Repblica dos Direitos
do Homem, propriamente falando, no nem testa nem atesta;
niilista. A invocao de um fantasma supremo um ponto de partida
absurdo para a legislatura230.
116
quer que seja, quiser denominar quimerismo aquilo que eu contrapus ao
idealismo, que deploro como niilismo234.
Jacobi, filsofo cristo, pietista e proselitista, considera o idealismo a for-
ma mais coerente do filosofar, mas entende que suas concluses so intei-
ramente perversas, tanto do ponto de vista terico quanto do ponto de vista
prtico235. Toda filosofia racionalista seria necessariamente niilista, o que
para ele significa ser incapaz de apreender o ser, de desvelar a existncia e
revel-la. A nica soluo, para Jacobi, seria renunciar filosofia e razo,
se libertar do intelecto e alcanar a f. Assim, Jacobi inverte o uso positivo
que Cloots fez do termo, no se tratando mais de explorar um mundo li-
berado da referncia a Deus, mas sim de depreciar uma tal liberao como
destruidora, produtora de nada. Os idealistas seriam atestas dissimulados,
a quem caberia desmistificar236.
O problema que, como ser visto na seo sobre a morte de Deus, as
sociedades ocidentais modernas substituram a religio e a f, antigos an-
coradouros das tradies e vises de mundo, pela crena no progresso, na
cincia, na revoluo, na literatura e na arte, isto , num sistema secular de
significao que se revelou uma iluso:
117
abertura a um novo horizonte de valores. Assim, surge a seguinte questo: o
processo de autodestruio niilista continuar ou h um contramovimento?
Mais adiante ser verificado que, para Machado, a galhofa e a arte so for-
mas de resistncia ao niilismo. Nietzsche tambm responde positivamente,
propondo uma cincia alegre que afirme a vida:
118
o soobrou: porm, porque ela valia como a interpretao, parece
como se no houvesse absolutamente nenhum sentido na existncia,
como se tudo fosse em vo. Fica por demonstrar que esse em vo
o carter de nosso niilismo atual241.
119
signava na prtica dos anarquistas russos, isto , o cristianismo enquanto
negao institucionalizada da vontade de vida.
Conforme Nietzsche, a condio niilista surge com a experincia histrica
da ausncia de fundamento, quando o homem moderno passa a depre-
ciar os valores tradicionais e a dissolver os princpios e critrios absolutos
basilares da vida em sociedade, lanando-os na nulidade e na inutilidade,
gerando a degradao dos vnculos sociais: Niilismo: falta o fim; falta a
resposta ao porqu. Que significa niilismo? Que os valores supremos
desvalorizam-se244.
Nietzsche define o homem niilista como aquele que, arrebatado pelo sen-
timento de que tudo em vo, experimenta o fastio da vida e aceita a dor
como mais real que o prazer e a pulso de aniquilao da vida como mais
forte que a de afirmao: Se um filsofo pudesse ser niilista, ele o seria
porque encontra o nada por trs de todos os ideais do ser humano. Ou
nem sequer o nada mas apenas o que nada vale, o que absurdo, doentio,
covarde, cansado, toda espcie de borra da taa esvaziada de sua vida...245.
As referncias do filsofo ao cansao e doena no devem ser lidas como
meras metforas, pois em sua obra o niilismo foi pensado no s como
um problema histrico, mas tambm enquanto condio fisiolgica. E
possvel distinguir pelo menos trs usos do termo fisiologia na obra de
Nietzsche: o primeiro, aquele utilizado pelas cincias do sculo XIX, com
o qual filsofo estava familiarizado; o segundo, quando o fisiolgico o
que determina de modo somtico (e por isso fundamental) os homens; o
terceiro, mais propriamente filosfico, rene fisiologia e interpretao, na
medida em que os processos fisiolgicos so considerados como a luta
dos quanta de potncia que interpretam246. preciso estar atento a esta
trindade, quando se leem as consideraes dispersas de Nietzsche sobre o
niilismo como condio fisiolgica, psicolgica ou fisiopsicolgica.
V-se, aqui, um Nietzsche que preconiza a importncia da racionalidade e
do conhecimento cientfico; um leitor do debate cientfico da poca, atento
s dimenses psicolgica e fisiolgica da experincia individual e cultural;
um filsofo que naturaliza a psicologia, fundindo-a com a fisiologia. Essa
fisiopsicologia, anunciada em Alm do bem e do mal, pensa que tanto o
120
corpo quanto a cultura sofrem os mesmos processos por serem resultado
de uma hierarquia de impulsos, dissolvendo os limites entre cultura e fisio-
logia. Nesse sentido, em sua obra, as instncias scio-histrico-culturais
e fisiopsicolgicas so consideradas em conjunto, como as duas faces de
uma moeda, porque os macroprocessos sociais tambm determinar-se-
-iam fisiopsicologicamente247. nesse sentido que Nietzsche apresenta o
diagnstico de que a Europa est doente248. E essa doena, o niilismo,
cuja origem se encontra na filosofia platnica e na moral crist, se agrava e
apresenta seus sintomas mais perceptveis no sculo XIX, que foi descrito
pelo cronista de A Semana nos seguintes termos:
247. Cf. NIETZSCHE. Alm do bem e do mal, 15-23. Ver tambm: FREZZATTI JR. A superao da
dualidade cultura/biologia na filosofia de Nietzsche.
248. NIETZSCHE. O Anticristo, 61, p. 78.
249. ASSIS. A Semana, p. 1375. Grifos meus.
121
segundo o qual o resultado geral do sculo XIX um caos, um suspirar
niilista, um no-saber-para-onde, um instinto de cansao250.
O niilismo enquanto doena deve ser pensado no mbito de uma anlise da
dcadence, questo sobre a qual Nietzsche refletiu desde cedo, mas s veio
a ser um conceito-chave em 1888, seu ltimo ano de atividade intelectual,
quando pareceu subordinar o conceito de niilismo noo de dcadence: o
niilismo no a causa, mas sim a lgica da dcadence251.
A decadncia (ou dcadence), segundo Joo Constncio, consiste em uma
alterao das avaliaes pulsionais e afetivas, em virtude da qual se alteram,
ao mesmo tempo, os valores e a concepo do mundo, conduzindo a uma
degenerao do instinto natural para a expanso, fortalecimento e cultivo
de si num instinto autodestrutivo, ou pulso fisiolgica para a autodesinte-
grao, gerando a vontade de nada, o niilismo252.
O termo dcadence designa a expresso fisiopsicolgica do niilismo, o ho-
mem cansado do homem, o grande nojo ao homem253, o desregramento
confesso dos instintos254, um sintoma da vida que declina255, o interes-
se vital em tornar doente a humanidade256, o penetrante sentimento do
nada257, o ressentimento contra si prprio e contra a prpria existncia a
partir do qual se nega a vida: A viso do homem agora cansa o que
hoje o niilismo, se no isto?... Estamos cansados do homem...258.
Por que o homem cansou do homem? Por que o niilismo e a dcadence ga-
nham destaque no sculo XIX? De onde provm a fadiga e o esfalfamento
oitocentista? Uma crnica da srie Histrias de Quinze Dias, publicada em
15 de maro de 1877, oferece uma pista. O cronista Manasss aproveita um
fait diver, a inaugurao do bonde de Santa Tereza, para pensar as transfor-
maes socioculturais que os avanos revolucionrios das novas tecnologias
provocavam e o aspecto niilista decorrente da obsolescncia programada:
122
Escusado dizer que as diligncias viram esta inaugurao com um
olhar extremamente melanclico. Alguns burros, afeitos subida e
descida do outeiro, estavam ontem lastimando este novo passo do
progresso. Um deles, filsofo, humanitrio e ambicioso, murmurava:
Dizem: les dieux sen vont. Que ironia! No; no so os deuses,
somos ns. Les nes sen vont, meus colegas, les nes sen vont.
E esse interessante quadrpede olhava para o bonde com um olhar
cheio de saudade e humilhao. Talvez rememorava a queda lenta do
burro, expelido de toda a parte pelo vapor, como o vapor o h de ser
pelo balo, e o balo pela eletricidade, a eletricidade por uma fora
nova, que levar de vez este grande trem do mundo at estao
terminal259.
123
Desapareceram do cu os deuses262, observou Alcides Maya; O anticle-
ricalismo se inclua nos seus preceitos263, notou Jean-Michel Massa; Pou-
co pouco, medida que se ia afirmando, foi perdendo todas as crenas.
E s quando chegou descrena total, descrena no cu e na terra, em
Deus e nos homens, que produziu as suas grandes obras264, concluiu Lu-
cia Miguel; Machado, homem sem Deus e s enxergando o homem sem
Deus265, criticou Afrnio Coutinho; No itinerrio de Machado de Assis,
concretamente depois da fogueira das iluses de 1880, na crise dos quaren-
ta anos, no h mais Deus266, analisa Raymundo Faoro.
Quando Machado afirma que o sculo XIX no tem f, ele insinua que o
cristianismo, dominante cultural do Ocidente desde o sculo VI, tornou-
-se incapaz de continuar servindo como fundamento de uma explicao
verdadeira e definitiva dos fenmenos da natureza e da cultura. A posio
de Machado teria que ser descrita, ento, da seguinte forma: o homem mo-
derno abandonou a crena num Deus garantidor da verdade e do sentido
da vida e no pauta suas aes pelos valores genuinamente cristos. O Deus
cristo e a prpria ideia de transcendncia se tornaram indignos de crena.
H o ocaso da fonte divina dos valores que forneciam um sentido ao mun-
do, como constatou Slvio Romero:
124
niscencia potica. E tenhamos coragem de dizel-o: em matria de
amor e fraternidade, que constituem o mago da sua doutrina, Jesus
perdeu o seu latim267.
125
A primeira aluso de Machado ao tema da morte de Deus data de 1 de
julho de 1876. Manasss, acerbado com o momento em que o Oriente se
esboroa por causa da morte do sulto turco, escreveu: Vo-se os deuses e
com eles as instituies. D vontade exclamar com certo cardeal: Il mondo
casca!271. Em 24 de novembro de 1883, Llio repete o dito do Cardeal
Antonelli: il mondo casca272. Uma traduo oferecida somente no Natal
de 1892: O mundo caduca reflexionou tristemente um dia no sei que
cardeal da Santa Igreja Romana; e fez bem em morrer pouco depois, para
no ouvir da parte do oriente este desmentido de incrus: O mundo
reconstitui-se273.
O verbo italiano cascare significa cair por conta do prprio peso, ruir, de-
sabar. O mundo cai, ou caduca, como prefere traduzir o cronista, mas ao
mesmo tempo reconstitui-se uma vida de paradoxo e contradio, em
que tudo o que slido desmancha no ar, como j foi colocado aqui.
Se o torvelinho da modernidade, contexto histrico da emergncia do nii-
lismo, exasperava Manasss, pseudnimo do jovem Machado, Llio aborda
o assunto com a pena da galhofa. Em crnica de Balas de Estalo, publicada
em 11 de agosto de 1883, ele emenda a sentena de seu antecessor:
126
Os deuses foram-se. Esse argumento se assemelha ao do livro Os deuses no
exlio, publicado em 1853, pelo poeta alemo Heinrich Heine, ento exi-
lado em Frana. Essa obra, ao mesmo tempo cmica e melanclica, relata
que os deuses gregos existiram de fato. Outrora dominavam alegremente
o mundo, mas, aps o triunfo de Cristo, foram considerados demnios,
perseguidos e repelidos pelo judasmo espiritualista pregado por aqueles
nazarenos melanclicos que baniram da vida todas as alegrias humanas
para releg-las aos espaos celestes275.
Machado, que foi tradutor de Heine, possivelmente conhecia essa narrativa
sobre os deuses exilados que vagam por a como monstruosos fantasmas
no cu da meia-noite. Esses deuses proscritos viveriam escondidos at hoje,
sob disfarces de toda espcie e nos esconderijos mais obscuros. Alguns de-
les, cujos bens foram confiscados, se viram forados a trabalhar nas mais
humildes ocupaes, e a beber cerveja em vez de nctar.
Esse fenmeno do degredo divino, que a filosofia designa morte de Deus,
no equivalente ao atesmo e est intrinsecamente relacionado ao niilis-
mo, sentimento de vazio que nasce justamente a partir da derrocada da
moral judaico-crist e da metafsica socrtico-platnica, com a decorrente
descrena em fundamentos metafsicos e morais absolutos. O niilismo a
falta de sentido que se instalou entre ns com a morte de Deus: Vo-se os
deuses. Morrem as doces crenas abenoadas276, escreveu o cronista de A
Semana em 26 de agosto de 1894.
Nietzsche, reconhecido como o anunciador da morte de Deus, sabia que o
tema j fazia parte do imaginrio cultural europeu de sua poca, como ele
prprio esclareceu: Eu acredito na ancestral sentena germnica: todos os
deuses devem morrer277. O fillogo helenista tambm conhecia a frase de
Plutarco, citada por Pascal: o grande P est morto278.
O tema recorrente na cultura Ocidental desde a antiguidade clssica, es-
tando presente nos mitos de P e Dioniso, no cristianismo e na modernida-
de ocidental. Por isso, Deleuze afirma que a morte deste Deus, que se dizia
127
o nico, ela prpria plural: a morte de Deus constitui um acontecimento
cujo sentido mltiplo279.
Segundo Daniel Bell, nos diversos perodos histricos das civilizaes,
sempre houve uma tenso entre libertao e restrio das amarras religio-
sas, o que no impedia a religio de assumir a dianteira na busca de uma
unidade cultural, tecendo a tradio como fbrica de sentido e guardando
os portais da cultura, rejeitando tudo o que ameaa as suas normas morais.
A modernidade rompeu essa unidade, promovendo a passagem da cultura
religiosa para a secular, o que ocorreu em meados do sculo XIX com a dis-
soluo da autoridade religiosa280. Da, completa Niall Fergunson, resultou
o processo de descristianizao da Europa entre o final do sculo XX e o
incio do XXI281.
Dostoivski, autor cristo, abordou os excessos da secularizao em sua
fico. Preocupado com o antro de livre-pensamento depravao e
atesmo282, qui com um possvel colapso gradual da Igreja Ortodoxa, ele
viu os niilistas de seu tempo como demnios, espritos do mal que tenta-
vam dominar a Rssia. Em O Idiota, Libediev, amigo de Mishkin, afirma:
128
A vida dor, a vida medo e o homem um infeliz. Hoje tudo
dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo.
Hoje o homem ainda no aquele homem. Haver um novo homem,
feliz e altivo. Aquele para quem for indiferente viver ou no viver
ser o novo homem. Quem vencer a dor e o medo, esse mesmo ser
Deus. E o outro Deus no existir.
Ento, a seu ver o outro Deus existe mesmo?
No existe, mas ele existe. Na pedra no existe dor, mas no medo
da pedra existe dor. Deus a dor do medo da morte. Quem vencer
a dor e o medo se tornar Deus. Ento haver uma nova vida, ento
haver um novo homem, tudo novo... Ento a histria ser dividida
em duas partes: do gorila destruio de Deus e da destruio de
Deus...
Ao gorila?
mudana fsica da terra e do homem. O homem ser Deus e
mudar fisicamente. O mundo mudar, e as coisas mudaro, e mu-
daro os pensamentos e todos os sentimentos. O que voc acha, en-
to o homem mudar fisicamente?
Se for indiferente viver ou no viver, todos mataro uns aos outros
e eis, talvez, em que haver mudana.
Isso indiferente. Mataro o engano. Aquele que desejar a liber-
dade essencial deve atrever-se a matar-se. Aquele que se atrever a
matar-se ter descoberto o segredo do engano. Alm disso no h
liberdade; nisso est tudo, alm disso no h nada. Aquele que se
atrever a matar-se ser Deus. Hoje qualquer um pode faz-lo porque
no haver Deus nem haver nada. Mas ningum ainda o fez nenhu-
ma vez.
Houve milhes de suicidas.
Mas nada com esse fim, tudo com medo e no com esse fim. No
com o fim de matar o medo. Aquele que se matar apenas para matar
o medo imediatamente se tornar Deus285.
129
humanidade s inventou Deus para no se matar, acredita Kirllov. Nesse
sentido, ao concluir pela inexistncia de uma divindade, ele precisa se ma-
tar para provar a sua autonomia e a sua liberdade. Ao suicidar-se, acredita
matar Deus, isto , a ideia suprema que governa a existncia.
O abandono da hiptese testa e seu impacto sobre a reflexo moral uma
preocupao que perpassa toda a produo de Nietzsche a partir de A Gaia
Cincia, com notvel e reconhecida influncia de Dostoivski286. Embora o
filsofo no tenha escrito continuamente sobre a relao do niilismo com a
morte de Deus, h breves, mas importantes consideraes a respeito, com
destaque para o 125 da referida obra:
286. Dostoivski, o nico psiclogo, diga-se de passagem, do qual tive algo a aprender. NIETZSCHE.
Crepsculo dos dolos, IX, 45, p.95.
130
sob os nossos punhais quem nos limpar este sangue? Com que
gua poderamos nos lavar? A grandeza desse ato no demasiado
grande para ns? No deveramos ns mesmos nos tornar deuses,
para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior e
quem vier depois de ns pertencer, por causa desse ato, a uma his-
tria mais elevada que toda a histria at ento!. Nesse momento,
silenciou o homem louco e, novamente, olhou para seus ouvintes:
tambm eles ficaram em silncio, olhando espantados para ele. Eu
venho cedo demais, disse ento, no ainda o meu tempo. Esse
acontecimento enorme est ainda a caminho, ainda anda: no che-
gou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovo precisam
de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois
de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato
ainda lhes mais distante que a mais longnqua constelao e no
entanto eles o cometeram! Conta-se tambm que no mesmo dia
o homem louco irrompeu em vrias igrejas e em cada uma entoou o
seu Requiem aeternae deo. Levado para fora e interrogado, limitava-
-se a responder! O que so ainda essas igrejas, se no os mausolus
e tmulos de Deus?287.
131
tro Digenes, o Lartios, o filsofo do barril andaria durante o dia com uma
lanterna acesa gritando Procuro um homem!291.
Nietzsche, num gesto grandioso, intensificando a crtica da moral cnica
numa crtica esclarecida da religio, transformou a histria popular de Di-
genes com a lanterna num modelo literrio e em expresso de um de seus
pensamentos centrais. A metfora do homem com a lanterna, que atravessa
a obra de Nietzsche veiculando sentidos muitas vezes diferentes, referindo-
-se tanto a Digenes quanto ao Iluminismo, tornou-se a metfora irnica
da intil busca por Deus, que est morto:
Snope e Quincas Borba), que identifica relaes intertextuais com o cinismo antigo no romance de
1891. As afinidades do escritor brasileiro com o antigo cinismo filosfico Digenes de Snope como
precursor de Machado de Assis permanecem um tema a se pensar, sobre o qual me dedicarei no futuro.
291. LARTIOS. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, p. 162. Cf. CARVALHO. Nietzsche e a
lanterna de Digenes.
292. NIEHUES-PRBSTING. A recepo moderna do cinismo, p. 392.
132
mais rigoroso, a sutileza confessional da conscincia crist, tradu-
zida e sublimada em conscincia cientfica, em asseio intelectual a
qualquer preo. Encarar a natureza como se ela fosse prova da bon-
dade e proteo de um Deus; interpretar a histria para glria de
uma razo divina, como perene testemunho de uma ordenao mo-
ral do mundo e de intenes morais ltimas; explicar as prprias
vivncias como durante muito tempo fizeram os homens devotos,
como se tudo fosse previdncia, aviso, concebido e disposto para a
salvao da alma: isso agora acabou, isso tem a conscincia contra si,
todas a conscincias refinadas o veem como indecoroso, desonesto,
como mentira293.
Novas lutas. Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mos-
trada numa caverna durante sculos uma sombra imensa e terr-
133
vel. Deus est morto; mas, tal como so os homens, durante sculos
ainda haver cavernas em que sua sombra ser mostrada. Quanto
a ns ns teremos que tambm vencer a sua sombra!295
Mesmo que a humanidade seja viva de Deus e que o metafsico tenha sido
rejeitado, no houve de fato nenhum avano em relao problematizao
da dependncia dos homens para com uma entidade que garanta seguran-
a e sentido para sua existncia. Assim sendo, predomina a substituio do
fundamento divino por formas de verdade ou justificao laicizadas.
Martin Heidegger, no encalo de Nietzsche (resguardadas as distncias en-
tre os projetos filosficos de ambos), compreende a histria do Ocidente
como um processo fundamental assinalado pelo advento e consumao do
niilismo uma histria da desvalorizao dos valores. O mundo supras-
sensvel, Deus, a lei moral, a autoridade da razo, a ideia de progresso, a
cultura e a civilizao perdem sua fora construtiva e se anulam, mesmo
que a sombra de Deus ainda seja mostrada:
134
Gianni Vattimo endossa que o niilismo, em seu significado mais geral,
como herana do socratismo, do platonismo e do cristianismo, se define
como a perda de todo sentido e valor do mundo: no devir histrico no
existe nenhuma ordem providencial ou nenhum sentido abrangente, por-
tanto, em absoluto, no existem ordem, sentido e valor das coisas, e o ho-
mem perde qualquer ancoradouro que possa dar alguma direo sua ao
no mundo297.
Deleuze corrobora que o niilismo , no sentido mais corrente do termo,
uma reao contra o mundo suprassensvel. A reao contra os valores
superiores consiste em suas negaes, recusando-lhes qualquer validade.
No mais desvalorizao da vida em nome de valores superiores, mas sim a
prpria desvalorizao dos valores superiores. Nesse sentido, o niilista nega
Deus, o bem, a verdade e todas as formas do suprassensvel298.
O supracitado sentido de niilismo decorre de um primeiro e supe um pri-
meiro sentido, a saber, um valor de nada. A vida assume um valor de nada
na medida em que negada e depreciada em nome de uma fico, a fico
de valores suprassensveis, gerando uma sociedade fisiopsicologicamente
adoecida, que perece perante o Deus ausente, resultando em uma situao
existencial insustentvel.
Eric Voegelin contra-argumenta que, mesmo que a vida espiritual tenha
alcanado o nvel da razo esclarecida, da moral burguesa e de uma viso
de mundo liberal ou no liberal, mesmo que os smbolos da transcendncia
tenham sido desacreditados e submetidos a srias deformaes de senti-
do, a ordem social permanece inalterada. Que, mesmo aps o anncio da
morte de Deus, o homem continuou reduzido sua condio de criatura
mortal. E quando o homem moderno tentou substituir a imago Dei pela
imago hominis, o sofrimento da falta de sentido de uma vida desolada (de
renncia a Deus) conduziu a surtos de concupiscncias como a tentativa de
criar o homem novo ou o super-homem299.
Machado, por sua vez, ironiza a situao. A propsito de um fait diver, uma
carta do membro de uma comisso americana em Pernambuco, ele parece
fazer galhofa com as discusses filosficas e teolgicas sobre Deus e a morte
de Deus: Tambm recomenda braos o nosso hspede, braos e temor a
135
Deus. O segundo preocupao anglo-saxnica, que no entra fundo em
almas latinas ou alatinadas300.
lcito concluir que o problema filosfico da morte de Deus aparece na
obra de Machado de Assis como perspectiva a ser galhofada. Quando lida
em chave pardica, a histria da morte de Deus e do niilismo ga-
nha novo interesse, contrastando com a gravidade de autores como Scho-
penhauer e Dostoivski, que tambm no deixam de ter suas ironias.
O niilismo e a Rssia
136
anarquismo e terrorismo, designava de forma pejorativa os movimentos de
rebelio contra o czarismo, o imobilismo da sociedade e os seus valores.
Enquanto o terrorismo, como mtodo de ao poltica, enfraqueceu-se no
cenrio poltico russo, o niilismo ganhou fora na literatura, tornando-se
uma palavra em voga, usada por inmeros jornalistas, filsofos e escritores
da poca: irnico que, exatamente aps o declnio dos grandes atenta-
dos, os niilistas, terroristas, revolucionrios ou conspiradores, como quer
que fossem chamados pela imprensa, tenham ascendido ao estrelato e in-
corporados a peas, romances e folhetins302.
Bruno Gomide afirma que, em meados da dcada de 1880, a literatura rus-
sa foi inventada para consumo internacional, tornando-se a grande sen-
sao europeia: para que a literatura russa fosse transformada em moeda
de troca no mercado internacional de bens simblicos do fim do oitocen-
tos, teve que ser condensada em uma nica categoria303. Nesse cenrio,
Pchkin e Ggol (traduzidos em Frana na dcada de 1840), Turguniev
(celebridade internacional nos anos 1870), Tolstoi e Dostoivski (desco-
nhecidos antes dos anos 80) eram homogeneizados no cenrio mundial sob
o rtulo romance russo.
Segundo o estudo de Gomide, as obras de escritores russos comearam a ser
difundidas no Brasil a partir de fins da dcada de 1880, na esteira da onda
de difuso internacional do romance russo deflagrada em Frana aps a
aliana poltica franco-russa. Desse modo, os brasileiros liam sofregamente
obras de autores j mortos, como Turguniev, Ggol e Dostoivski. Entre-
tanto, uma parcela substancial do que havia efetivamente disposio dos
crticos e leitores brasileiros interessados em literatura russa consistia nas
tradues francesas produzidas em escala industrial, numa gama que ia do
aceitvel mutilao do original.
O valor-notcia do atentado ao tsar, somado ao boom internacional da li-
teratura russa, tornou a tradio da dinamite niilista facilmente acessvel
em qualquer jornal da poca, na Europa e no Brasil. Na corte brasileira, a
repercusso foi grande. Tudo o que acontecia relacionado ao niilismo
julgamentos, execues era acompanhado com interesse. Assim, o nii-
lismo foi uma forma muito eficaz de difuso da literatura russa no Brasil.
137
Interessa-nos, aqui, compreender em que medida Machado atendia a uma ten-
dncia dominante no gosto da poca e em que medida se contrapunha a ela.
Em 18 de maro de 1881, cinco dias aps o atentado contra o tsar, o Jornal
do Commercio, do Rio de Janeiro, iniciou uma srie de reportagens, extra-
das da Revue Suisse, intituladas O niilismo e a Rssia. Durante dez dias,
o autor, que utilizava o pseudnimo Pravda, publicou sete artigos que ga-
nharam destaque no jornal ao se horrorizarem com o fato de que em pleno
sculo XIX um Estado Cristo seja testemunha de semelhantes atentados e
incapaz de se defender contra um bando de conspiradores misteriosos304.
Enquanto o texto do Jornal do Commercio exortava as inteligncias pru-
dentes e liberais para que pusessem freios quilo, alguns anos depois, o
cronista de A Semana fez galhofa com essa linha de pessimismo que po-
voava o imaginrio mundial das dcadas de 1880 e 1890, expressando-se
em matrias jornalsticas, ensaios e textos ficcionais. Em 18 de fevereiro de
1894, ele escreveu:
138
nrios meio msticos, pessimistas negadores, cnicos, no sentido filo-
sfico do vocbulo, de niilistas. O grupo socialista deles distingue-se
alias por socialmente crer em alguma coisa, na regenerao, ou pelo
socialismo ou pelo anarquismo, conforme as nuanas de opinio dos
partidos. Mas para o vulgo o epteto de niilista tornou-se comum a
todos os que desde o decnio de 60 propagavam na Rssia doutrinas
tidas por subversivas do regime nacional. Em 1870 estava a Rssia
em plena efervescncia dessas doutrinas306.
306. VERSSIMO. O sculo XIX, p. 74, apud GOMIDE. Da estepe caatinga, p. 60.
307. ASSIS. Correspondncia de Machado de Assis: tomo III, p. 290.
139
Arkdi representa a intelectualidade formada principalmente por universi-
trios provenientes das classes mais abastadas, enquanto Bazrov faz parte
da nova gerao de intelectuais plebeus que apareceu na Rssia dos anos
1860, os raznochintsy, homens de vrias origens e classes, filhos de sargen-
tos, alfaiates, padres de vilas e funcionrios, que irromperam em cena com
agressiva estridncia, orgulhavam-se de sua vulgaridade franca, de sua falta
de requinte social e de seu desprezo por tudo que fosse elegante308.
A negatividade de Bazrov e da gerao de 1860 limitada e seletiva: os
novos homens tendem a adotar uma atitude positivista acrtica para
com os modos de pensamento e de vida supostamente racionais e cien-
tficos. Frustrados com os lentos avanos das reformas modernizantes, os
niilistas fascinavam-se com o positivismo de Comte. Como teoria do saber,
o positivismo nega-se a admitir outra realidade que no sejam os fatos e a
investigar outra coisa que no sejam as relaes entre os fatos. A cincia
era considerada o nico conhecimento possvel e, por conseguinte, nico
guia da vida individual e social do homem Os niilistas, apesar de tudo,
s vezes so uma gente entendida, at cientfica309, avalia Libediev, perso-
nagem de O Idiota.
Arkdi e Bazrov seguem preceitos positivistas, quando consideram que
o mtodo da cincia, por ser o nico vlido, deve ser estendido a todos os
campos de indagao e da atividade humana: Um qumico honesto vinte
vezes mais til do que qualquer poeta interrompeu Bazrov310. O jovem
niilista, ao associar a crena no progresso cientfico a um profundo pessi-
mismo em relao cultura, sociedade e ao desprezo em relao ao status
quo, provoca um conflito familiar significativo. O sentimento de mal-estar
expresso no dilogo de surdos entre o jovem Arkdi Kirsnov, seu pai,
Nicolai Petrvich, e seu tio, Pvel Petrvich, durante uma refeio:
140
Aquele que considera tudo de um ponto de vista crtico obser-
vou Arkdi.
E no a mesma coisa? indagou Pvel Petrvich.
No, no a mesma coisa. O niilista uma pessoa que no se
curva diante de nenhuma autoridade, que no admite nenhum prin-
cpio aceito sem provas, com base na f, por mais que esse princpio
esteja cercado de respeito.
E o que h de bom nisso? interrompeu Pvel Petrvich.
Depende, titio. Para uns bom, mas para outros pssimo311.
141
Assim, ele nega a Deus, o bem e at mesmo o verdadeiro, todas as formas
do suprassensvel. Tais caractersticas, conforme j foi visto com Nietzsche,
definem o niilista incompleto. Ainda pode-se considerar que o personagem,
sentencioso e pedante, expressando suas opinies de forma peremptria,
apresentando-as com carter de certeza absoluta, um niilista dogmtico.
Bazrov e seu discpulo Arkdi buscam um comeo radical, um outro ca-
minho a partir de si mesmos. Entretanto, a narrativa mostra que ambos,
em busca desse caminho prprio, demonstram impotncia frente vida,
anloga impotncia da cincia frente a sentimentos que a razo no con-
segue dominar. O modo de ser de Bazrov d a entrever uma vida marcada
pela inao, suplantando o esprito positivo apregoado pelo universitrio:
Resolvemos no nos dedicar a coisa nenhuma repetiu Bazrov, com ar
soturno316.
O narrador, atento feio ornamental do positivismo na Rssia de sua
poca em que as ideias eram transformadas em signo de distino, para
separar os filhos dos pais , mostra que a importao do ideal positivista
no encontrou maiores consequncias prticas. possvel identificar algu-
mas amostras disso no comportamento de Bazrov: nega os valores aristo-
crticos, mas hospeda-se na propriedade rural de um aristocrata e desfruta
do seu conforto; recusa o amor romntico, mas apaixona-se; no cr na re-
ligio, mas aceita a extrema uno. nesse sentido, avalia Roberto Schwarz,
que o contexto social da Rssia impunha ao romance burgus um quadro
complexo e ambguo. Nas obras de Turguniev, Leskov e Dostoivski os
homens esclarecidos mostram-se alternadamente lunticos, ladres, opor-
tunistas, crudelssimos, vaidosos e parasitas, distanciando-se da ingnua
imagem do heri da vida moderna:
142
do individualismo que o Ocidente impunha e impe ao mundo. Na
exacerbao deste confronto, em que o progresso uma desgraa e
o atraso uma vergonha, est uma das razes profundas da literatu-
ra russa. Sem forar em demasia uma comparao desigual, h em
Machado pelas razes que sumariamente procurei apontar um
veio semelhante, algo de Ggol, Dostoivski, Gontcharov, Tchecov, e
de outros talvez, que no conheo317.
143
crena e negao, longe de afirmarem a existncia, dissimulam obscureci-
mento pessimista e instinto de fraqueza.
A prpria Rssia se volta contra essa ameaa, surgindo uma popular litera-
tura antiniilista. Exemplar o conto Viagem com um niilista, de Nikolai
Leskov, publicado em 25 de dezembro de 1882. A narrativa se passa numa
viagem de trem em que os passageiros temem que um dos homens presente
no vago seja um niilista armado e perigoso, porque ele respondia com um
irritado No quero a todos os pedidos para que tirasse de cima do assento
um cesto de roupa supostamente seu. O dilogo inicial entre um comer-
ciante e um dicono significativo:
144
Na poca, os padres russos, nas prdicas, faziam ativa campanha contra os
revolucionrios, anarquistas e niilistas. Na narrativa de Leskov, h farpas
implcitas contra a Igreja Ortodoxa, pois o achava-a distanciada da verda-
deira f. Dostoivski tambm assimila o problema do niilismo atravs de
uma nova tica religiosa crist, a partir de uma valorizao do cristianismo
primitivo do campons russo.
Na literatura russa oitocentista, uma das mais importantes menes aos
atentados a bomba promovidos pelos niilistas encontra-se em Os demnios,
de Dostoivski, que apresenta os niilistas como a forma personificada da
maldade, autnticos demnios. O escritor russo, assim como os jornais da
poca dos violentos atentados polticos da dcada de 1880, tratava niilismo
e terrorismo como sinnimos.
Kirllov, o niilista suicida, fazia parte de um pequeno grupo de niilistas ati-
vos liderado por Piotr Stiepnovitch. Eles, assim como outros personagens
dos romances de Dostoivski, so homens da conscincia hipertrofiada,
dominados pela hybris e pelo niilismo, defensores de um negativismo total:
145
de nada e materializa a niilina russa, dinamite do esprito, em uma bomba
de verdade. Ele simula fazer parte de uma vasta conspirao que pretendia
desencadear uma revolta em toda a Rssia, mas acaba apenas provocando
caos e assassinato em sua provncia:
146
homicida (Stiepnovitch, de Os demnios), que converte sua vontade de
negar em vontade de destruir, e o ativo suicida (Kirllov, tambm de Os
demnios), que procede num mundo sem valores, desprovido de sentido e
de objetivo, rolando em direo a seu prprio nada.
Esse pessimismo da revolta dos niilistas russos, que chocou as socieda-
des ocidentais, gerou intensas reaes na Europa e tambm no Brasil, em
livros, jornais, revistas e movimentos sociais. No entanto, se na Rssia
oitocentista o niilismo era a dominante cultural, um elemento interno e
ativo da cultura, com resultados trgicos, o Brasil acompanhava os passos
da Europa distncia. Como j foi discutido, Machado de Assis suspeita
de todas as ideologias importadas. nessa perspectiva que leio a crnica
de 22 de abril de 1894, que relaciona os ataques a bomba niilistas com o
anarquismo e o socialismo:
147
apresentavam alternativas radicais para a organizao poltica do pas. Eles
lanaram jornais e tentaram formar organizaes que pudessem pr seus
princpios em prtica. Mas a Repblica Velha no tolerou os anarquistas
estrangeiros que agitavam o pas. Durante o governo de Floriano Peixoto,
decretos presidenciais, precedendo solicitao do chefe de polcia, expulsa-
ram trinta e seis estrangeiros por crimes polticos, dezenove expressamente
sob a acusao de anarquismo330.
Est claro que o irnico cronista, recusando toda e qualquer panaceia, no
compartilhava do entusiasmo revolucionrio e do otimismo poltico dos so-
cialistas e anarquistas. Com a pena da galhofa, trata os sonhos legisladores
dos que querem consertar o mundo como panaceia. Com sobriedade, quer
reorganizar a sociedade, mas discorda que a sociedade s poder ser refor-
mada aps sua completa destruio e condena a violncia revolucionria.
Tal postura no pode ser confundida com antissocialismo, conservadoris-
mo ou niilismo poltico. Machado, que tambm crtico do capitalismo,
no tem apego s razes histricas da sociedade e s tradies e instituies
herdadas, mas tampouco pensa que a poltica no vale nada e no leva a
nada. Estudiosos como Faoro, Schwarz, Gledson e Chalhoub, para no citar
em demasia, j mostraram que Machado teve perspectivas crticas sobre os
principais eventos polticos do pas e se envolveu na luta pelo fim da escra-
vido: Defendamos a liberdade e o direito331, escreveu o cronista.
A questo que Machado ctico em relao poltica e ri de todo niilismo
programtico e de todo aquele que se deixa levar pelas paixes desmedidas.
A ironia machadiana arrefece a hybris niilista, que passa a ser tratada como
uma atitude risvel, como se pode ler em uma crnica de 8 de abril de 1894.
A propsito de um burro que encontrou agonizando, e depois morto, na
Praa Quinze de Novembro, afirmou: Sem exagerar o mrito do finado,
fora dizer que, se ele no inventou a plvora, tambm no inventou a di-
namite. J alguma coisa neste final de sculo. Requiescat in pace332. Neste
cenrio niilista, o riso tem papel corretivo e revitalizador.
Pelo que foi possvel verificar, a maior stira machadiana aos ideais socialis-
tas importados da Europa uma crnica de 13 de janeiro de 1885, em que
Llio transcreve (inventa) uma carta (ficcional), que teria sido apreendida
148
pela polcia do Rio de Janeiro, de um socialista russo chamado Petroff para
o Centro do Socialismo Universal. Peo licena ao leitor para transcrever
toda a carta, que merece ser lida na ntegra:
149
mente. No obstante, pudemos trocar algumas idias, e at recolhi
muitas notcias, que comunicarei no meu relatrio. Uma dessas que
h outras sociedades anlogas ao clube, e com o mesmo fim.
A principal e a mais brilhante disse-me ela o Cassino Flu-
minense. Ainda no foi ao Cassino?
No, senhora.
Pois v, que vale a pena.
Boa gente, no? Os verdadeiros princpios?
Ah! o melhor que se pode desejar.
Acabada a quadrilha, seguiu-se uma polca, e logo depois outra qua-
drilha. Pareceu-me demais; eu j tinha o sangue em fogo; mas no
houve remdio, e fui fazendo como os outros. As senhoras dana-
vam com um ardor, que, se nesse momento, dssemos uma bomba
explosiva a qualquer delas, iria dali, logo e logo, deit-la onde fosse
conveniente boa causa.
Eram onze horas, e nada de comearem os trabalhos. Eu, impaciente,
fui a um dos membros da diretoria, e perguntei de novo a que horas
era a coisa.
No tarda, meia-noite em ponto. Vamos agora a uma valsa.
Pedi-lhe dispensa da valsa, e fui fumar um charuto, em companhia
de um scio, que me pedia notcias da Rssia, e se l havia algum
clube de socialistas. Respondi-lhe que havia muitos, mas todos se-
cretos, porque o governo no consentia nenhum pblico, e, quando
descobria algum, pegava dos scios e mandava para a Sibria. No
imagina o assombro do meu interlocutor.
Ah! bem duro viver em um tal pas! exclamou ele.
Se , disse-lhe eu.
Agora compreendo os atentados que por l se tm praticado.
Realmente mandar para a Sibria homens que apenas usam de um
direito sagrado...
Expliquei-lhe bem o que era a Rssia, e conclu que, em geral, toda a
Europa um velho edifcio que precisa cair. Nisso bateu meia-noite,
e passamos todos a uma sala interior, onde vi uma mesa cheia de
comidas e bebidas, e nenhuma tribuna para os oradores. Foi engano
meu, como vai ver.
Homens e senhoras sentaram-se e comeram. No fim de 15 a 20 mi-
nutos, levantou-se o presidente, e declarou que saudava, em nome do
Clube dos Socialistas, ao ilustre estrangeiro que ali se achava: era eu.
Levantei-me e respondi com o discurso que levava de cor. No pos-
150
so dar-lhes idia dos aplausos que recebi. Todas as teorias de Bebel,
de Cabet, de Proudhon, e do nosso incomparvel Karl Marx, foram
perfeitamente entendidas e aclamadas. Fizeram-se outros discursos,
em que entendi pouco, mas que me pareceram animados dos bons
princpios. Cada um deles era fechado por toda a reunio com o gri-
to: U, u, Catu! Suponho que a frmula nacional do nosso brado
revolucionrio: Morte aos tiranos!
Um dos mais entusiastas era um militar, a quem fui cumprimentar,
dizendo que estimava ver o exrcito conosco.
O militar precisa de algum descanso respondeu ele sorrindo.
Era uma aluso delicada supresso dos exrcitos permanentes, e eu
apertei-lhe a mo de um modo significativo.
Mandarei mais pormenores por outro vapor. Ao fechar a carta rece-
bo o diploma de scio honorrio do clube. Pas excelente; est todo
nas boas idias333.
151
pouca: a Polca an sich. Olhe que no se pode substituir o primeiro
termo por outro, valsa ou quadrilha. A quadrilha o avesso da gra-
a, a valsa coisa propriamente alem, confinando na metafsica; a
polca a grande naturalizada deste pas, a rasoura que nivela os
palcios e as cabanas, os ricos e os pobres. Tudo polca, tudo treme.
No h propriamente dividendo naquelas associaes; h perenida-
de de lucros334.
Com efeito, muita gente, que julga das coisas pelos nomes, andava
aterrada com a entrada do socialismo na nossa sociedade; ao que eu
respondia: 1, que as idias diferem dos chapus, ou o que os chapus
entram na cabea mais facilmente que as idias e, a rigor, o con-
trrio, a cabea que entra nos chapus; 2, que a necessidade das
coisas que traz as coisas, e no basta ser batizado para ser cristo.
s vezes nem basta ser provedor de Ordem Terceira336.
152
No basta usar o nome socialista para ser socialista. Em 1885, ano do bai-
le frequentado por Petroff, o Brasil era um imprio de economia agrria,
sustentado pelo latifndio e pela escravido, com instituies regidas pelo
clientelismo, mas que proclamavam as formas e teorias do Estado burgus
moderno, compondo uma comdia ideolgica, diferente da europeia337.
Se a sociedade escravocrata que frequentava bailes e cassinos empregava
o vocabulrio burgus da igualdade, do mrito, do trabalho e da razo em
discursos de sobremesa, fugindo a tudo que possa cheirar a reflexo, os
ideais socialistas podiam ser usados do mesmo modo, em discursos impr-
prios e ocos, sem deixar de angariar as simpatias da opinio. Afinal, como
ensina a teoria do medalho: Podes pertencer a qualquer partido, liberal
ou conservador, republicano ou ultramontano, com a clusula nica de no
ligar nenhuma idia especial a esses vocbulos, e reconhecer-lhe somente a
utilidade do scibboleth bblico338.
O rtulo socialista era adotado pelos brasileiros do sculo XIX na pron-
tido de aceitar as ltimas novidades da matriz europeia e tom-lo como
mais um retalho a ser acrescentado na colcha de retalhos ideolgica, o que
evidencia a alienao violenta de uma sociedade defasada. Em contrapar-
tida, o cronista de A Semana, porventura com o intuito de romper essa
defasagem, avalia que no h nada de novo sob o sol e que o socialismo no
constitui nenhuma novidade:
153
Com a pena da galhofa, Machado resiste niilina russa. Antes de avanar
para o prximo captulo, em que ser discutida a resistncia ao niilismo,
fao uma recapitulao. Se o leitor ainda se lembra das pginas percorridas
at aqui, talvez concorde que j se insinuam respostas para as trs reivindi-
caes feitas na introduo deste livro. Porm, tendo em vista que Macha-
do de Assis prefere antes lanar dvidas, desestabilizar certezas e provocar
desconfianas, ainda estamos longe de concluir que (1) a prosa de Machado
de Assis, com a pena da galhofa, conjuga filosofia e literatura de tal modo
que contedo filosfico e forma literria tornam-se indissociveis; (2) o nii-
lismo a dominante cultural do Ocidente no sculo XIX; (3) Machado teve
uma aguda conscincia do carter complexo e multifacetado da presena
do niilismo em seu tempo. As partes II e III, que procuram mostrar como
o niilismo aparece como Leitmotiv nos romances, ajudaro a identificar
como o escritor internalizou elementos significativos da realidade, o niilis-
mo e suas manifestaes, tornando-os matria de fico.
154
4. CONTRA O NIILISMO
Resistncia ao niilismo
341. GIACOIA JNIOR. A autossupresso como catstrofe da conscincia moral, p. 76. Grifos
originais.
342. DE PAULA. Nietzsche e a transfigurao do pessimismo schopenhaueriano, p. 229.
156
Os grandes romances machadianos, ao revelarem diferentes possibilida-
des de interpretao do problema do niilismo voluptuosidade do nada
(Memrias pstumas de Brs Cubas), arquitetura de runas (Quincas Bor-
ba), ressentimento (Dom Casmurro), paralisia da vontade (Esa e Jac) e
ideal asctico (Memorial de Aires) , levando-as s ltimas consequncias
e apresentando-as como perspectivas a serem galhofadas (matando o nii-
lismo pelo ridculo), oferecem uma possibilidade de resistncia ao niilismo.
A partir dessas consideraes, este captulo discute as possibilidades de
resistncia ao niilismo apresentadas pela literatura de Machado de Assis.
Ao escrever com a pena da galhofa, ele exerceu uma crtica contundente
dominante cultural do seu tempo. Entrevejo que a literatura machadia-
na corrobora a tese nietzschiana de que a arte o grande estimulante da
vida, permitindo vislumbrar modos de resistncia ao niilismo. Quando o
filsofo alemo defende A arte como nica fora superior contrria a toda
vontade de negao da vida, como anticrist, antibudista, antiniilista par
excellence343, o escritor brasileiro parece ratific-lo: Vivam as musas! Es-
sas belas moas antigas no envelhecem nem desfeiam. Afinal o que h
mais firme debaixo do sol344. Defendo que o humor e a arte, como Ma-
chado demonstra ficcionalmente e Nietzsche corrobora teoricamente, so
formas de resistncia ao niilismo, na medida em que desencadeiam um
contramovimento (Gegenbewegung) vontade de nada.
157
o escritor no religioso e, portanto, no pode oferecer uma conexo com
Deus como um remdio para a nossa misria, como fez Pascal. E Margutti
critica esse estetismo escapista do autor. Segundo o filsofo, a fim de su-
perar o sofrimento causado por sua viso de mundo pessimista e ctica,
Machado recorre literatura. Como remdio contra o sofrimento, o es-
critor oferece a contemplao esttica da beleza das dores do mundo. Essa
busca de uma redeno provisria na contemplao esttica aproximaria
Machado de Schopenhauer346.
O livro III de O mundo como vontade e como representao, que tanto im-
pactou artistas plsticos, msicos e escritores incluindo Machado de As-
sis trata da metafsica do belo, isto , da investigao da essncia ntima
da beleza, tanto em relao ao sujeito, que possui a sensao do belo, quan-
to em relao ao objeto que a ocasiona. Na contemplao esttica, seja da
natureza ou da arte, ocorreria uma identidade sujeito-objeto, pois o sujeito
consideraria unicamente o essencial do mundo, isto , aquilo que com-
pletamente alheio e independente de todas as relaes fenomnicas e no
est submetido mudana alguma; assim, atinge o que h de mais nuclear
nas coisas, as Ideias. Eis aqui um aspecto fundamental da esttica scho-
penhaueriana para o tema do niilismo:
158
Para o filsofo de Danzig, a atividade artstica revelaria as ideias eternas
atravs de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, escul-
tura, pintura, poesia lrica, poesia trgica e, finalmente, pela msica, que
no includa nessa hierarquia, pairando suprema sobre todas as artes. A
contemplao esttica , assim, elevada a um estado de forma de conheci-
mento do mundo que compete com as cincias e as supera, por ser consi-
derada um meio de supresso da dor. O sofrimento, que, em consequncia
da noo de tempo, mais potente nos homens, encontraria na arte uma
primeira rota de fuga: a contemplao liberta de todos os sofrimentos do
querer e da individualidade348.
Diante do papel conferido por Schopenhauer ao belo, vale lembrar o alerta
de Nietzsche, segundo o qual, ao se atribuir um papel redentor aos produ-
tos da arte, ainda estaramos presos a uma avaliao negativa da existncia,
numa incapacidade de viver as dores e a alegria sem reservas nem desconto.
Por conseguinte, preciso analisar se Machado realmente teria compactua-
do com o escandaloso equvoco de Schopenhauer, que toma a arte como
ponte para a negao da vida349.
Em sua correspondncia dos ltimos anos de vida, que pode ser lida como
documentos da derradeira viso de mundo do homem Machado de Assis,
possvel perceber um tratamento das relaes entre arte e afirmao da
existncia em vis schopenhaueriano, convertendo a arte em instncia de
consolo. O autor recorre ideia de que a arte refgio, d alvio, consola
das perdas e atribulaes do mundo. Ele recomendava aos amigos o refgio
na poesia e na literatura como remdio contra as dores e contrariedades
da vida, confessando que assim procedia. Ao amigo e poeta Magalhes de
Azeredo, por ocasio de uma enfermidade, escreveu Machado, em carta de
16 de junho de 1895:
348. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, III, 43, p. 291.
349. NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1887-1889, p. 298. Cf. PIMENTA. Nietzsche, Thomas
Mann e a superao do niilismo, p. 166.
159
bastantes para traz-lo livre do abatimento e da inrcia. Ver, meu
amigo, que a poesia ainda boa consoladora350.
350. ASSIS. Correspondncia de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900, p. 87. A ideia de que a poesia
consola das dores do mundo j estava presente na obra do jovem autor de Crislidas (1864), em Musa
Consolatrix.
351. ASSIS. Correspondncia, p. 1418.
352. ASSIS. Correspondncia, p. 1419.
353. NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio,1, p. 22. Grifos originais.
160
salva-se nele a vida354. O cristianismo e o platonismo s puderam impor
seus valores metafsicos pessimistas quando os valores dionisacos da po-
ca trgica dos gregos perderam valor, e esse teria sido o incio do niilismo
europeu.
Em um comentrio retrospectivo sobre O nascimento da tragdia, o autor
avalia que os seus traos distintivos foram uma nova concepo dos gre-
gos e uma nova concepo da arte, como o grande estimulante da vida,
para a vida355. Mas de modo ambguo que o filsofo se dirige retros-
pectivamente ao seu primeiro livro publicado, pois pode-se perceber uma
tenso entre o pessimismo da negao extrema e a arte da afirmao irres-
trita da vida. Ao mesmo tempo em que afirma o pessimismo, ele julga ter
encontrado o caminho para sua superao: Este livro , dessa forma, at
mesmo antipessimista: isto , no sentido de que ele ensina algo que mais
forte que o pessimismo e mais divino que a verdade: a arte356. Nietzsche
eleva a criao artstica nica potncia capaz de ser um contramovimento
ao niilismo. Nesse sentido, mesmo a criao de novos valores possuiria um
carter esttico: A arte e nada mais que a arte. Ela a grande possibilita-
dora da vida, a grande sedutora da vida, o grande estimulante da vida357.
Clademir Araldi pondera que a discusso nietzschiana acerca da relao
entre arte e niilismo no chega a bom termo, porque o filsofo no oferece
argumentos slidos para defender a tese de que a arte trgica a principal
potncia contrria ao niilismo. O desenvolvimento da tese de que a arte
um contramovimento ao niilismo muito precrio e intercalado por ques-
tionamentos que de certo modo a abalam. Nietzsche apenas invoca, nos
extremos do niilismo, a arte como a feiticeira da salvao e da cura. Quan-
to mais brada, o que ele percebe, no entanto, o esgotamento do impul-
so criador (de valores e de fices) num mundo sempre mais dilacerado e
inquieto358.
Mas deixemos o Sr. Nietzsche de lado. O que nos importa, aqui, a litera-
tura machadiana, com destaque para as crnicas, porque o irnico Elea-
zar rechaa o pessimismo schopenhaueriano, comparando a si e a seus
contemporneos com quase todos os Hrcules das mitologias: estamos
161
longe da anemia e da debilidade que nos atribui o pessimismo de alguns
misantropos359. Sem tempo sequer de ficar doente, a populao de seu
tempo estaria ameaada de morrer de uma indigesto de prazeres. Com
essa pena da galhofa, no haveria lugar para o otimismo e muito menos
para o radical pessimismo que muitos imputaram ao escritor.
Tambm merece meno o cronista de A Semana, que, a despeito de ter
como principal caracterstica o enfastiamento diante de questes graves,
como a caducidade do mundo e a morte de Deus, tem na arte, na con-
templao esttica, o fim ainda que momentneo do seu tdio360. o que
ocorre, por exemplo, quando comenta a chegada da clebre atriz francesa
Sarah Bernhardt ao Rio de Janeiro:
162
O conselheiro Aires, incapaz de encontrar valores absolutos em outra par-
te [...] os encontra na arte, e numa viso artstica da vida362. Apesar de seu
tdio controvrsia, que ser analisado no captulo 9, ele insiste repetidas
vezes que a arte um modo de resistncia ao niilismo, como se pode ler
numa breve e preciosa observao: No que a poesia seja necessria aos
costumes, mas pode dar-lhes graa363. Exemplar a forte ligao de Aires,
Tristo e Fidlia com a msica, que fala a mortos e ausentes e ainda tem
o dom de fazer esquecer um mal fsico364. Alm da frequncia com que
o jovem casal toca piano, h em seus nomes evidente referncia a Tristo e
Isolda, de Wagner, e Fidlio, de Beethoven.
Voltando ao cronista de A Semana, Bosi corrobora que o seu fastio se es-
vanece nos momentos em que h contemplao esttica. Se, por um lado,
os fatos nus e crus da poltica e da economia invadiam o cotidiano do cro-
nista, por outro, uma opinio reiterada nas pginas da srie que o desen-
cantamento do mundo ainda no tolhera o vigor da criao artstica, capaz
de sobreviver na memria dos homens ainda sensveis ao seu fascnio:
163
Se para os pessimistas e niilistas no houve at hoje nenhum sentido para a
vida humana, e sua existncia sobre a Terra no se apresentava seno como
um deplorvel absurdo, uma aventura desprovida de finalidade, um gran-
de em vo, ao qual falta qualquer horizonte de sentido, o cronista de A
Semana defende a arte como um sentido justificador: Respiremos, ami-
gos; a poesia um ar eternamente respirvel366. Cabe poesia eternizar a
mocidade367, acrescenta.
A arte tem tudo a temer, mas no o niilismo da impotncia368, ensina
Adorno, com a ressalva de que no se deve argumentar com a necessidade
da arte, porque avaliar a arte em funo da necessidade prolongar implici-
tamente o princpio de troca, a preocupao burguesa pelo que ir receber
em retorno. A arte, no fim das contas, deve concernir totalmente ao reino
da liberdade, isto , da no necessidade. O cronista de A Semana tambm
rejeita a atribuio de qualquer funo extra-artstica arte, dentre as quais
possvel incluir o tratamento da arte como consolo no que desdiz o
epistolgrafo Joaquim Maria Machado de Assis. Recusando toda e qual-
quer funo preestabelecida para as obras, afirma que a escola que d
arte um fim til degradante, porque (como dizia um esttico) de todas
as coisas humanas a nica que tem o seu fim em si mesma a arte369.
Em suma, a literatura livre, recusando determinaes de ordem concei-
tual, moral, religiosa, poltica ou ideolgica que possam determinar previa-
mente a sua forma. O que no significa uma adeso doutrina da arte pela
arte, que nega todo e qualquer contedo social para ela. Parece haver o cui-
dado, por parte de Machado, de destacar, que no obstante essa autonomia,
a sua literatura presentifica pensamentos e noes conceituais.
Patrick Pessoa, autor de estudo sobre a autonomia da obra de arte literria,
corrobora que a prosa de Machado, preservando sua prpria (auts) lei (n-
mos), pode contribuir para a especulao filosfica, se resguardando de no
ser apenas o suporte para um sentido que poderia ser igualmente expresso
por um livro de filosofia. A reflexividade potencialmente infinita inerente
experincia esttica revelaria o que, na experincia terica, recalcado pelo
ideal de leis universais e necessrias anteriores experincia:
164
A funo da experincia esttica, portanto, a funo de, acostu-
mando o homem a um encontro prazeroso com o que no tem fun-
o, com o que no se deixa instrumentalizar, com o inteiramente
outro, servir de ponto de partida para que o encontro com o outro
no precise ser necessariamente traumtico, no precise gerar a ne-
cessidade de evit-lo, como o faz Brs Cubas, ou bem a necessidade
de elimin-lo, como fizeram os nazistas370.
165
arrasadoras. Ao se recusar a sentir as dores do mundo como dores, ao exi-
gir os prazeres do mundo e repelir o sofrimento diante das adversidades,
o humorista rebela-se contra a ordem natural das coisas, libertando-se dos
grilhes da natureza. A esse propsito, Machado escreveu em carta a Sal-
vador de Mendona, de 29 de agosto de 1903 que Eu, apesar do pessi-
mismo que me atribuem, e talvez seja verdadeiro, fao s vezes mais justia
Natureza do que ela a ns373.
Opondo-se ao esprito de seriedade e gravidade que marcou a maioria das
discusses a respeito do tema, Marmysz avalia que o niilismo pode ser con-
cebido como um estmulo potencialmente til, tanto para a teoria quanto
para a prtica, na medida em que ele lembra que os homens no so deuses,
e que, apesar de todas as conquistas e maravilhas da civilizao, no se pode
alterar o fato de que possumos apenas uma quantidade finita de domnio
e controle sobre nossos prprios destinos. Nesse caso, o niilismo pode ser
pensado como um bem basta encar-lo com bom humor.
Com humor, reconhecemos que os sentimentos angustiantes ocorrem, mas
que ainda somos capazes de transform-los em ocasies de prazer. Ao faz-
-lo, afirmamos a vida e convertemos em prazer o que de outro modo seria
simplesmente agonizante. Esse talvez seja o principal servio que o humor
pode desempenhar em confronto com o niilismo. Embora desespero e
frustrao sejam aspectos inegavelmente associados com fenmenos nii-
listas, em ltima instncia o niilista no precisa se render a essas sensaes.
Com humor, mesmo o problema do niilismo pode aparecer dentro de seu
contexto apropriado como um doloroso, mas em ltima instncia valioso
fenmeno na histria do nosso mundo374.
Rosana Suarez, em Nietzsche comediante: a filosofia na tica irreverente de
Nietzsche, avalia que o riso seria a chave de interpretao para os grandes
temas da crtica nietzschiana e endossa que o humor uma resposta ao
niilismo. Apesar de no trabalhar explicitamente com essa tese, ela avalia
que O saber enigmtico e assustador que pede proteo alegria o saber
da extrema solido, o saber sobre o niilismo375. A crtica de Nietzsche ao
niilismo teria como correlato a defesa de uma postura bem-humorada que
afirma a vida integralmente, mostrando que a moral faz parte de uma co-
166
mdia. Expondo a filosofia nietzschiana sob a tica cmica, Suarez conclui
que o riso tem papel corretivo e revitalizador376.
O coetneo Ea de Queirs, inserido na tradio de escrita que sempre
usou o riso enquanto arma filosfica377, endossa a tese nietzschiana e diz
que preciso certa coragem para fazer o pblico rir do dolo, sacudindo e
incomodando o repouso da velha tolice humana: O riso a mais antiga e
ainda a mais terrvel forma da crtica. Passe-se sete vezes uma gargalhada
em volta duma instituio, e a instituio alue-se378.
Em relao ao humor, Machado e Nietzsche so filhos de seu tempo. Geor-
ges Minois, em Histria do riso e do escrnio, afirma que no sculo XIX o
riso adquire dimenso filosfica, se transformando num poder que ataca
os dolos. O final do Oitocentos cenrio de cmicos do absurdo e niilistas
do burlesco que riem de tudo. Chamados fumistas, eles so aqueles que
zombam de tudo e de nada. Antiburgueses, anticonformistas, antilgicos,
hostis a todos os credos e religies, eles praticam a suspeita generalizada.
Seu riso de desintegrao:
167
noo de importncia. Assim, esse sculo corrodo pela crise de sentido se
encerrou com uma gargalhada fnebre.
Nietzsche j alertava para os riscos desse riso inconsequente e desfocado,
que zomba a torto e a direito. Ele avalia que a ironia adequada como
instrumento pedaggico, mas fora da relao de formao entre mestre e
discpulos ela um mau comportamento, um afeto vulgar380. Ou seja, nas
mos de um mestre que, atravs da ironia, produz a formao em direo
afirmao da existncia, a ironia adequada. Mas, nas mos de um de-
sencantamento niilista, a ironia nos tornar iguais a um co mordaz que
aprendeu a rir, alm de morder381.
Machado de Assis, o mestre na periferia do capitalismo, tambm inserido
na tradio do riso filosfico, endossa a tese de que o humor o melhor
modo de encarar o niilismo, usando a galhofa como princpio democrtico
de aperfeioamento e no como instrumento de negao absoluta.
A pena da galhofa machadiana no erradica a voluptuosidade do nada,
mas tem o intuito de romper com a gravidade do niilismo, mostrando que,
com bom humor, somos capazes de ver a realidade de uma perspectiva ale-
gre e afirmativa, criadora de valores. Nesse sentido, a galhofa pode ser con-
siderada uma resposta promissora para os impasses gerados pelo niilismo:
Apresso-me de rir de tudo com medo de ser obrigado achorar uma fra-
se espirituosa do barbeiro Fgaro, da pera-bufa O barbeiro de Sevilha, ou a
precauo intil, do compositor italiano Gioachino Rossini, com libreto de
Cesare Sterbini, baseado na comdia Le Barbier de Sville, do dramaturgo
francs Pierre Beaumarchais. Lelio dos Anzis Carapua apressa-se a rir do
168
niilismo com medo de ser obrigado a chorar, transformando o fenmeno
ameaador em ocasio de diverso. Por isso, poderia ser acusado de fomen-
tar o riso a qualquer preo, o humor nonsense, niilista. Porm, Machado,
como humorista, quer denunciar, intervir, fazer avanar, abalar e destronar
os valores socialmente partilhados para construir, no destruir.
O escritor torce a pecha de pessimista e aponta uma profcua via de criao
esttica, marcadamente irnica e autorreflexiva, que nasce justamente de
uma conscincia autocrtica: Em resumo: sou da opinio de Petrpolis:
antes deitar as manguinhas de fora que chorar. O riso sade383.
O cinismo grego stira menipeia pode ter fornecido a Machado a fi-
gura desse riso de estatuto ambguo e carter no moralizante, que se afirma
como fora criadora, transformando-se em modo privilegiado de relao
com uma realidade que perdeu toda a sua substancialidade. A pena da ga-
lhofa machadiana capaz de afirmar, sem com isso petrificar as afirmaes
em explicaes sobre a positividade ou negatividade do estado do mundo,
colocando sua obra como uma fico que se consolida como criadora.
O mundo dos personagens machadianos , em geral, irrestritamente irni-
co, porque o folhetim requer um ar brinco e galhofeiro, ainda tratando de
coisas srias384. Esse princpio de composio baseado na galhofa, como
viso compreensiva do mundo, a base do seu pensamento ficcional. Nesse
sentido, os narradores machadianos transformaram, cada um a seu gosto,
as filosofias para zombar da filosofia, de tal modo que a galhofa mata o
niilismo pelo ridculo.
169
Segunda parte
ARQUITETURA DE RUNAS
5. O NAUFRGIO DA EXISTNCIA
Modernidade capenga
174
sim, intensificou a difuso do sistema capitalista em direo ao limite mxi-
mo de um mercado global que ser alcanado no sculo XX, disseminando
cultura e barbrie:
175
da literatura como espao de construo da identidade nacional, em
um momento em que a arte j no era mais romntica; a continuida-
de e a reiterao da centralizao de poder, a despeito da mudana
de Imprio a Repblica; e, por ltimo, a permanncia do conflito
entre, por um lado, o modelo socioeconmico agrrio e, por outro,
o crescimento das cidades e das classes mdias urbanas, conflito este
associado expectativa, por parte dessas camadas emergentes, de
mais participao poltica e da implantao de um modelo econmi-
co baseado em industrializao, o que s viria a ocorrer de maneira
decisiva com a Revoluo de 1930389.
Machado discerniu que nosso pitoresco, nossa cor local e nossa ori-
ginalidade estavam no funcionamento estrambtico e disparatado
da moderna civilizao ocidental num pas escravista, perifrico,
atrasado. Isso, sendo tratado com humor e comicidade, era tambm
posto como melancolia e runa, formando assim um problema de
fundo de extrema relevncia391.
176
capitalismo financeiro no Brasil, ainda dependente de formas de relao e
de produo pr-capitalistas (ou at anticapitalistas) e as ambiguidades e
contradies criadas a partir da justaposio de estruturas histricas ds-
pares, que ligavam e antepunham impulsos modernizadores e reaes con-
servadoras:
177
ligados ao mundo, a vida cultural levada com educao e elegncia,
a vida mundana marcada por sociabilidades de salo, sem intimi-
dades, mas constantes e proveitosas. Essa configurao serve como
representao da estrutura ambgua, desigual e dual de realidades
histricas justapostas. Machado de Assis foi o primeiro escritor a
perceber esta justaposio e torn-la um vis de composio, uma
tarefa nada fcil que ele foi aprimorando aos poucos. Acredito que o
grau mais elevado, o resultado mais perfeito desta forma de compo-
sio ficcional aparece justamente em Quincas Borba393.
178
Tendo em vista que a colonizao um feito do capital comercial396, a
tenso entre valores aristocrticos e burgueses era inerente estrutura da
sociedade colonial desde os seus primrdios397. Tal tenso, que faz parte
do processo histrico de consolidao do capitalismo enquanto um siste-
ma mundial, alcanou um ponto de crise no perodo histrico configurado
literariamente em Quincas Borba. Essa crise, estado de incerteza, distrbio
ou declnio, dotada de impulsos de destruio e autodestruio, fora uma
ruptura com os valores estabelecidos, incluindo aqueles considerados mais
elevados, isto , os das tradies religiosa, metafsica e humanista, que do
uma finalidade e, portanto, um sentido existncia. Na medida em que
tudo aparece como sendo em vo, a prosa machadiana ironiza os consolos
metafsicos, religiosos e morais da tradio ocidental, revelando a impos-
sibilidade do capitalismo de fornecer um sistema de crenas398, porque a
burguesia afogou os arrepios sagrados do arroubo religioso [...] nas guas
glidas do clculo egosta399.
Se uma das caractersticas da contraditria modernidade o estado de coi-
sas criado pelo advento do capitalismo, o processo de dessacralizao do
mundo presidido pelo sistema econmico deixa marcas na fico de Ma-
chado: Rubio era mais crdulo que crente; no tinha razes para atacar
nem para defender nada: terra eternamente virgem para se lhe plantar
qualquer coisa. A vida da Corte deu-lhe at uma particularidade: entre in-
crdulos, chegava a ser incrdulo...400.
O niilismo, como venho tentando demonstrar, a questo para a qual con-
vergem muitos problemas referentes crise dos valores da modernidade. O
tema ocupa posio central nos romances da maturidade de Machado, ten-
do em vista que o niilismo aparece como elemento maior do diagnstico
de uma poca na qual vigora a experincia do elemento nadificante a
voluptuosidade do nada, a arquitetura de runas, o naufrgio da existncia,
como ser visto a seguir.
179
Nufragos da existncia, arquitetos de runas
O ttulo desta seo evoca personagens. Ainda que meu interesse aqui
no seja analisar as idiossincrasias dos personagens do romance, mas sim
o processo que envolve e determina seus destinos o niilismo faz-se
necessrio delinear os traos da personalidade de Quincas Borba, Rubio,
Palha e Sofia anti-heris da vida moderna na medida em que apresen-
tam caractersticas do niilismo que elucidam a estrutura da trama.
Quincas Borba a biografia da desintegrao da personalidade de Rubio.
Embora a narrativa trate de um perodo da vida do professor que se tornou
capitalista, o ttulo do livro, ambguo, faz referncia tanto ao filsofo-louco
quanto ao seu cachorro homnimo, anunciando o descompasso entre o
projeto biogrfico e o texto:
Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu tambm, ga-
niu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu
morto na rua, trs dias depois. Mas, vendo a morte do co narrada
em captulo especial, provvel que me perguntes se ele, se o seu
defunto homnimo que d o ttulo ao livro, e por que antes um
180
que outro, questo prenhe de questes, que nos levariam longe...
Eia! chora os dois recentes mortos, se tens lgrimas. Se s tens riso,
ri-te! a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia no quis fitar,
como lhe pedia Rubio, est assaz alto para no discernir os risos e
as lgrimas dos homens402.
181
fermo e morto. No captulo LIX, Um encontro, Brs reencontra o amigo
de infncia em sua fase de mendicncia:
404. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, LIX, p. 687. Grifos meus.
405. ASSIS. Quincas Borba, IV, p. 763.
182
a morte como um naufrgio, destacando o carter intrinsecamente doloro-
so, enigmtico e absurdo da existncia humana406. No entanto, mesmo so-
frendo com misria fsica e moral, Borba no assume uma postura niilista,
de que a vida no tem sentido e, por isso, no vale a pena viver. Pelo contr-
rio, ele parece indolente ou at mesmo contente diante das dores do mundo:
406. Cf. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, 57, p. 403.
407. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, LIX, p. 687.
408. ADORNO. Dialtica Negativa, p. 314.
409. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, LX, p. 688.
410. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, LX, p. 688
183
Deus me livre de contar a histria do Quincas Borba, que alis ouvi
toda naquela triste ocasio, uma histria longa, complicada, mas
interessante. E se no conto a histria, dispenso-me outrossim de
descrever-lhe a figura, alis muito diversa da que me apareceu no
Passeio Pblico. Calo-me; digo somente que se a principal caracte-
rstica do homem no so as feies, mas os vesturios, ele no era
o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general sem
farda, um negociante sem dficit. Notei-lhe a perfeio da sobreca-
saca, a alvura da camisa, o asseio das botas. A mesma voz, roufenha
outrora, parecia restituda primitiva sonoridade. Quanto gesticu-
lao, sem que houvesse perdido a viveza de outro tempo, no tinha
j a desordem, sujeitava-se a um certo mtodo. Mas eu no quero
descrev-lo. Se falasse, por exemplo, no boto de ouro que trazia ao
peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descrio,
que omito por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram
de verniz. Saibam mais que ele herdara alguns pares de contos de ris
de um velho tio de Barbacena411.
184
A doutrina do filsofo Joaquim Borba dos Santos, doido e por isso mes-
mo machadianamente lcido415, ser analisada em momento oportuno.
Por enquanto importa saber que Quincas Borba (o defunto) foi descrito
e narrado como um dos maiores homens do tempo superior aos seus
patrcios. Grande filsofo, grande alma, grande amigo416. O autor dos elo-
gios Pedro Rubio de Alvarenga, seu herdeiro universal, apresentado no
captulo primeiro de Quincas Borba:
185
quitrico, conhecido por Colnia, mdicos e funcionrios, com a colabo-
rao do Estado e de setores da sociedade, violaram, mataram e mutilaram
dezenas de milhares de internos419.
Rubio, nico amigo e enfermeiro do filsofo enfermo, tornou-se o her-
deiro universal de sua fortuna e de sua loucura. No toa que o filsofo
em questo se chama Joaquim (o elevado de Deus) e que Rubio se chama
Pedro (a pedra que Cristo escolheu para servir de base sua igreja)420. To-
davia, como j visto, o ex-professor no era religioso. No obstante, como
o apstolo, o personagem teria a funo de fazer-se a pedra sobre a qual se
desenvolveria o Humanitismo, o que efetivamente no aconteceu.
John Gledson sugere que o nome Rubio uma referncia s rubiceas,
quarta maior famlia pertencente s angiospermas, que compreende cerca
de 637 gneros e 10.700 espcies, dentre as quais se destaca o caf, produto
de que dependia, na poca, a riqueza do pas. O boom do caf transformou
o Brasil, permitiu a expanso de algumas cidades, principalmente do Rio
de Janeiro, e formou a base da estabilidade e da segurana do regime mo-
nrquico. Depois de algum tempo, no entanto, mostrou-se que a prosperi-
dade do pas foi apenas temporria, assim como a de Rubio:
186
corao422. Com relao ao sobrenome Alvarenga, originrio de lvaro,
que significa muito circunspecto, ou o que se defende de todos, a relao
de contraposio irnica. O perdulrio e enlouquecido Rubio, deixando-
-se usar pelos amigos de ocasio, imprudentemente dilapida a herana pe-
cuniria deixada por Quincas Borba423.
Eu acrescento que Rubio se assemelha a rubico, o que impede ou difi-
culta o movimento ou o progresso; obstculo424. A locuo atravessar o
rubico significa tomar uma deciso sria e enfrentar as consequncias
que possam advir. Nesse sentido, todos os eventos narrados na obra so
consequncias da deciso de Rubio de se mudar de Barbacena para o Rio
de Janeiro. E se no incio de suas aventuras cariocas ele serviu de catalisador
do progresso de Palha, no final ele se tornou um rubico, isto , um obst-
culo a ser ultrapassado.
As iluses perdidas de um provinciano na cidade grande um tema caro
ao sculo XIX o bom provinciano aparecia como tipo em vrias com-
dias apresentadas com sucesso em palcos do Rio de Janeiro. Mas no era
nenhuma novidade, pois o agroikos (rstico, roceiro ou matuto) um dos
personagens tpicos da comdia desde os seus primrdios425.
A trajetria da ascenso social de Rubio, triste homem sem encantos426,
apresentada de maneira bastante clara, como o caipira que est l para
ser ludibriado e tosquiado427. Depois de receber a herana, ele imigra para
o Rio de Janeiro, onde passa a ser conhecido como um ricao de Minas e
tratado como Vossa Excelncia. Tinham-lhe feito uma lenda. Diziam-no
discpulo de um grande filsofo428.
Rubio satisfaz seu desejo por fortuna e glria, mas, como j alertava
Schopenhauer, isso leva a dor e sofrimento. Querer, ou ter uma vontade,
, segundo o filsofo alemo, sofrer porque querer pressupe desejar e
o desejo, sendo uma falta daquilo que se deseja, uma forma de dor. E a
satisfao de todos os desejos, caso ocorra, tem como consequncia o tdio:
187
Mas no h serenidade moral que corte uma polegada sequer s
abas do tempo, quando a pessoa no tem maneira de o fazer mais
curto. [...] No havia divertimento algum pblico, festa nem ser-
mo. Nada. Rubio, profundamente aborrecido, trocava as pernas,
toa, lendo as tabuletas, ou detendo-se ao simples incidente de um
atropelo de carros. Em Minas, no se aborrecia tanto, por qu? No
achou soluo ao enigma, uma vez que o Rio de Janeiro tinha mais
em que se distrair, e que o distraa deveras; mas havia aqui horas de
um tdio mortal429.
Livros que lhe eram dedicados, entravam para o prelo com a garan-
tia de duzentos e trezentos exemplares. Tinha diplomas e diplomas
de sociedades literrias, coreogrficas, pias, e era juntamente scio
429.ASSIS. Quincas Borba, LXXXV, p. 836. Cf. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como
representao, 56-58.
188
de uma Congregao Catlica e de um Grmio Protestante, no se
tendo lembrado de um quando lhe falaram do outro; o que fazia era
pagar regularmente as mensalidades de ambos. Assinava jornais sem
os ler. Um dia, ao pagar o semestre de um, que lhe haviam mandado,
que soube, pelo cobrador, que era do partido do governo; mandou
o cobrador ao diabo430.
430. ASSIS. Quincas Borba, CXXXV, p. 880. O jornal foi um item de consumo para um pblico
urbano esforado em se ajustar ao figurino da modernidade: a obrigao de cada um ler seu jornal no
caf da manh. NIETZSCHE. Alm do bem e do mal, 208, p. 114.
189
cadoria) e, assim, o valor deixa de ser mvel para ficar imvel. Isso
ocorre porque a transformao do dinheiro em capital no ocorre
no prprio dinheiro, pois ao realizar a funo de compra, o dinheiro
realiza o preo da mercadoria, mas, ao concluir essa etapa, ao equi-
valer-se mercadoria, o dinheiro petrifica-se. Ao financiar luxo e
conforto para si e para os amigos, Rubio manipula o dinheiro em
sua forma simples, como mero equivalente de mercadorias (vinhos,
joias, livros, mveis etc.), mas no como capital, que exige sua inser-
o num sistema de operaes que o multiplique infinitamente431.
190
quncias, como expressaram Rubio, o indigente Quincas Borba, que no
queria trabalhar434, e o orgulhoso Brs Cubas, a quem coube a boa fortuna
de no comprar o po com o suor do prprio rosto435.
O moderno burgus, em contrapartida, introduziu a tica do self-made
man, segundo a qual no h limite para quem se lanar ao trabalho e con-
quista de riquezas materiais. Desse modo, os burgueses se estabeleceram
como a primeira classe dominante cuja autoridade se baseia no no que
seus ancestrais foram, mas no que eles prprios efetivamente fazem:
191
Diga-me, Sr. Freitas, se me desse na cabea ir Europa, o senhor
era capaz de acompanhar-me?
No.
Por que no?
Porque eu sou amigo livre, e bem podia ser que discordssemos
logo no itinerrio.
Pois tenho pena, porque o senhor alegre.
Engana-se, senhor; trago esta mscara risonha, mas eu sou triste.
Sou um arquiteto de runas. Iria primeiro s runas de Atenas; depois
ao teatro, ver o Pobre das Runas, um drama de lgrimas; depois, aos
tribunais de falncias, onde os homens arruinados...438.
192
O qualificativo oferecido pelo narrador, zango da praa442, ironiza o fato
de que o personagem Cristiano Palha mostra o entrelaamento do niilis-
mo e do capitalismo, assim como o livro Quincas Borba em seu todo d
testemunho da emergncia do capitalismo no Brasil. Para a entomologia,
zango o macho das diversas espcies de abelhas sociais, que, alheio s
atividades de manuteno da colmeia, no produz mel e possui apenas pa-
pel reprodutor. Por metfora, derivada da primeira acepo, designa o in-
divduo que vive a expensas de outrem, ou explorando de forma constante
benefcios ou favores alheios.
Em meados do sculo XIX, a classe dos capitalistas, da qual Palha faz par-
te, se emancipa. Com papel social dinmico, ganham relevo e autonomia,
hostilizando o cio dos proprietrios como Rubio e Brs Cubas. A razo
calculadora de homens como Palha trata pessoas como Rubio como mate-
rial para a subjugao, revelando o carter econmico do niilismo:
193
No surpreende, portanto, o final tragicmico de Rubio. Palha corri e
explode os fundamentos da vida do caipira que se colocou em seu ca-
minho, fazendo seu mundo em frangalhos. Nada mais elucidativo, nesse
sentido, do que o malicioso provrbio quem furtou pouco fica ladro,
quem furtou muito, fica baro. Se Palha no chega a baro, ou a banquei-
ro, como desejava, ao menos controla todos os passos de Rubio, como
indica uma alegrica passagem no primeiro pargrafo do romance: Olha
para si, para as chinelas (umas chinelas de Tnis, que lhe deu recente ami-
go, Cristiano Palha)444.
A relao de Rubio e Palha retrata o colapso da sociedade senhorial du-
rante a emergncia do capitalismo. Por um lado, Palha mostra a lgica do
capital que, em princpio, no boa nem ruim, porque A moral no con-
dena a sada do dinheiro de uma algibeira para outra, e a economia pol-
tica o exige. Uma sociedade em que os dinheiros ficassem parados seria
uma sociedade estagnada, um pntano445. Por outro lado, a narrativa mos-
tra o capitalismo como um sistema econmico que h muito se tornou
irracional446, tendo em vista que a inscrio do social no casal Palha se
identifica com a prtica da crueldade.
A irracionalidade do explorador, ou ainda a racionalidade do direito
crueldade, o avesso do esclarecimento, galhofeiramente alusiva ao nome
de Sofia, que significa sabedoria. Esposa de Palha e musa de Rubio, a per-
sonagem em questo marcada por vaidade, interesse financeiro e forte
dose de sensualidade, atributos que s se aproximam do sentido de sabedo-
ria em seu uso informal: astcia, manha, esperteza.
O teatro orquestrado pelo casal Sofia e Cristiano, de simulao de ami-
zade e dissimulao do desprezo que sentem pelo simplrio matuto, tem
como cenrio uma sociedade onde as velhas formas de honra e dignidade,
de tica e moral, so incorporadas ao mercado, ganhando etiqueta de pre-
o, como mercadorias: Com isso, qualquer espcie de conduta humana se
torna permissvel no instante em que se mostre economicamente vivel,
tornando-se valiosa; tudo o que pagar bem ter livre curso. Eis a a essn-
cia do niilismo moderno447.
194
Palha e Sofia mostram que a lgica do melhor desempenho financeiro pas-
sa a ocupar o vazio, submetendo toda a vida social ao crivo do capital. No
obstante, assim como os burgueses descritos por Marx e Berman, eles no
suportam olhar de frente o abismo moral, social e psquico gerado por essa
mesma criatividade448. Por isso o dilema do casal sobre que atitude tomar
diante das declaraes de amor de Rubio, que os foram ao confronto com
esse abismo:
195
Diante do abismo, Sofia padece com dor de cabea e o marido de cime.
Mas quem se torna fisiopsicologicamente adoecido Rubio, cujo esprito
pairava sobre o abismo450. A paixo pela esposa de Palha, essa terrvel
fascinao que o fazia penar ao p daquele abismo de oprbrios451, acar-
reta o seu declnio fisiopsicolgico. A loucura do herdeiro de Borba pode
ser compreendida, nessa perspectiva, como expresso fisiopsicolgica do
niilismo o desregramento confesso dos instintos, um sintoma da vida
que declina452.
Alma sem vigor453, pareciam dizer as flores a Rubio, cujo papel no enre-
do , irremediavelmente, negativo e passivo454. Ele queria matar a paixo
que o ia comendo aos poucos, sem esperana nem consolao455, mas en-
louquece e sucumbe arquitetura de runas:
196
Borba uma espcie de exemplificao do princpio bsico que, segundo a
filosofia do Humanitismo, rege o mundo: ao vencedor, as batatas, isto , a
supresso de uma vida a condio de sobrevivncia da outra.
Humanitismo e niilismo
197
cultura e a disciplina dessa cincia foram dados, dentre todos os seres ani-
mados, unicamente ao homem, e por essa razo foi chamada humanitas459.
Posteriormente, a palavra humanitas foi empregada por intelectuais do Hu-
manismo renascentista como um conceito geral de ser humano ou na-
tureza humana, em oposio a divinitas, indicando que a busca do conhe-
cimento no reside mais em Deus ou na religio. Nesse sentido, humanitas
possui o duplo sentido de busca independente pelo conhecimento, livre de
amarras religiosas, e a natureza humana expressa atravs dessa busca.
E tambm houve, na mesma sequncia de ideias adversas ordem feudal
defendida pela Escolstica e pela cultura monacal, a oposio do conceito
de humanitas ao de nobilitas, numa rejeio de quaisquer privilgios de cas-
ta e sangue, valorizando as verdades comuns a todos os homens. Cultivan-
do o individualismo, os humanistas viam no esforo e nos estudos meios de
dignificao do homem460.
A humanitas renascentista tem a grave consequncia de nos retirar o solo
comum, sobre o qual at certo momento nos sentamos bem e confortados
o solo firme da tradio e da religio, com seus valores vlidos e firmes.
No h como negar que, sob o signo das luzes e do etnocentrismo, isso deu
sentido e felicidade para a vida humana, mas tambm ajudou a corroer pa-
radigmas ticos milenares, o que gerou o fenmeno do niilismo.
Apesar de os ocidentais muitas vezes no diferenciarem os conceitos de
humanitas e anthropos no uso acadmico e geral, existe uma relao assi-
mtrica entre eles: humanos civilizados so humanitas, nunca anthropos.
Humanitas seria o sujeito do conhecimento, enquanto anthropos seria o
homem no ocidental, o brbaro ou selvagem, o amerndio, africano
ou asitico aqueles que se tornaram objetos de estudo da antropologia,
domnio de conhecimento produzido por humanitas461.
O conceito de humanitas exposto acima nos remete a duas problemticas.
A primeira, de dessacralizao do conhecimento humano, que conduz
runa os valores divinos que forneciam um sentido ao mundo, j foi dis-
cutida na seo sobre a morte de Deus. Vale acrescentar que em sua bre-
ve fundamentao terica do Humanitismo (captulos CXVII e CXLI de
198
Memrias pstumas e V e VI de Quincas Borba), Quincas Borba apresenta-
-o como uma nova igreja:
462. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, CXVII, p. 731-732. Grifos originais.
199
primeiro torna-se compreensvel somente atravs das ideias de deuses e es-
pritos; o metafsico seria marcado pela dissoluo do teolgico, substituin-
do o concreto pelo abstrato e a imaginao pela argumentao; o estado
positivo, por fim, que seria o regime definitivo da razo humana, caracte-
riza-se pela subordinao da imaginao e da argumentao observao
dos fatos, considerando impossvel a reduo dos fenmenos naturais a um
s princpio (Deus, natureza ou outro equivalente)463.
A referncia ao bramanismo, religio que tem a ideia de uma hierarquia
natural entre os homens, configurada em castas, nos conduz problemtica
da relao de dominao entre os vencedores civilizados e os outros os
perdedores incivilizados, o anthropos. A dissoluo e o estraalhamento do
indivduo, por sua vez, parecem uma caricatura de aspectos do positivismo
de Comte e do evolucionismo social de Spencer:
Maia Neto avalia que essa caricatura j era identificada por Pascal no es-
toicismo. No a filosofia grega especificamente, mas a viso pantesta que
concebe o intelecto humano como possuindo o mesmo estatuto ontolgi-
co tradicionalmente atribudo a Deus, e uma concepo da natureza como
200
providencial para o homem. Por exemplo, Porfrio relata a opinio de Cri-
sipo de que o porco nasceu para o fim natural de ser abatido e comido.
Quando isto ocorre, ele alcana o seu fim natural e beneficiado. O carter
central deste providencialismo do Humanitismo aparece com clareza no
exemplo do frango citado acima: A ironia crtica da resoluo estoica do
problema do mal e sua insero no contexto brasileiro da poca aparece na
extenso do providencialismo ao uso instrumental de outros homens465.
Machado ironiza, com o Humanitismo, a tese, comum e essencial ao pes-
simismo cristo de Pascal, da capacidade humana de transcender sua con-
dio pecaminosa e decada atravs do saber e da cincia. Enquanto a dou-
trina de Quincas Borba quer divinizar o homem, exagerando o otimismo e
o dogmatismo que os contemporneos de Machado derivam das filosofias
cientificistas do sculo XIX, a narrativa mostra que esta nova ideia no pas-
sa de uma nova iluso:
Quincas Borba leu-me da a dias a sua grande obra. Eram quatro volu-
mes manuscritos, de cem pginas cada um, com letra mida e citaes
latinas. O ltimo volume compunha-se de um tratado poltico, fun-
dado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema,
posto que concebida com um formidvel rigor de lgica. Reorganiza-
va a sociedade pelo mtodo dele, nem por isso ficavam eliminadas a
guerra, a insurreio, o simples murro, a facada annima, a misria,
as fomes, as doenas; mas sendo esses supostos flagelos verdadeiros
equvocos do entendimento, porque no passariam de movimen-
tos externos da substncia interior, destinados a no influir sobre o
homem, seno como simples quebra da monotonia universal, claro
estava que a sua existncia no impediria a felicidade humana. Mas
ainda quando tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspon-
dessem no futuro concepo acanhada de antigos tempos, nem por
isso ficava destrudo o sistema, e por dois motivos: 1 porque sendo
Humanitas a substncia criadora e absoluta, cada indivduo deveria
achar a maior delcia do mundo em sacrificar-se ao princpio de que
descende; 2 porque, ainda assim, no diminuiria o poder espiritual
do homem sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio466.
201
A doutrina do Humanitismo se parece muito com uma passagem dos su-
plementos de O mundo como vontade e como representao, segundo a qual
a morte anual das tartarugas assegura a conservao da sua espcie (visto
que elas no deixam de depositar os seus ovos na praia), alm de assegurar
a conservao dos ces selvagens, que por sua vez assegura a dos tigres. Se-
gundo Schopenhauer, a vontade de viver que motiva as aes de cada esp-
cime serve apenas ao interesse da conservao das espcies. Nesse sentido,
os espcimes so, para a natureza, apenas meios para outro fim:
Da a pouco demos com uma briga de ces; fato que aos olhos de
um homem vulgar no teria valor. Quincas Borba fez-me parar e
observar os ces. Eram dois. Notou que ao p deles estava um osso,
467. SCHOPENHAUER. El mundo como voluntad y representacin II, XXVIII, p. 440. Grifos originais.
202
motivo da guerra, e no deixou de chamar a minha ateno para a
circunstncia de que o osso no tinha carne. Um simples osso nu. Os
ces mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba
meteu a bengala debaixo do brao e parecia em xtase.
Que belo que isto ! dizia ele de quando em quando.
Quis arranc-lo dali, mas no pude; ele estava arraigado ao cho, e
s continuou a andar quando a briga cessou inteiramente, e um dos
ces, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que
ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo con-
vinha a um grande filsofo. Fez-me observar a beleza do espetculo,
relembrou o objeto da luta, concluiu que os ces tinham fome; mas a
privao do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem
deixou de observar que em algumas partes do globo o espetculo
mais grandioso: as criaturas humanas que disputam aos ces os os-
sos e outros manjares menos apetecveis; luta que se complica muito,
porque entra em ao a inteligncia do homem, com todo o acmulo
de sagacidade que lhe deram os sculos etc468.
203
-louco liga-se, assim, aos temas da reificao (transformao do homem
em objeto do homem), do egosmo, da pilhagem monetria e do sadismo:
204
os espectadores palpassem a iluso. No, senhor; ele pegou em nada,
levantou nada e cingiu nada; s ele via a insgnia imperial, pesada de
ouro, rtila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforo que
fizera para erguer meio corpo no durou muito; o corpo caiu outra
vez; o rosto conservou porventura uma expresso gloriosa.
Guardem a minha coroa murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou sria, porque a morte sria; dois minutos de agonia,
um trejeito horrvel, e estava assinada a abdicao470.
205
6. NADA EM CIMA DE INVISVEL
208
compara a composio do livro com uma partida de xadrez, justificando a
colaborao dos prprios personagens na composio da obra:
209
Do ttulo: intertexto
Esa e Jac, dois nomes que o prprio Aires citou nos captulos XIV e XV,
fazem referncia histria bblica dos gmeos que brigaram no ventre da
me, pressagiando a hostilidade entre dois povos irmanados os edomi-
tas, descendentes de Esa, e os israelitas, descendentes de Jac. Segundo o
primeiro livro da Bblia:
O gmeo que nasceu primeiro foi chamado Esa. Saiu em seguida o seu
irmo, segurando o calcanhar do primognito, e deram-lhe o nome de Jac.
O primeiro tornou-se homem do campo e caador, conquistando a afeio
do pai. O segundo, mais pacfico e caseiro, tornou-se o predileto da me.
Um dia, Esa desprezou o seu direito de primogenitura, vendendo-o ao
irmo em troca de um prato de comida.
Como Isaac no estava a par da negociao e a me tinha preferncia pelo
caula, ela planejou um golpe para enganar o patriarca, que estava velho
e cego. Rebeca ajudou Jac a passar-se por Esa, para roubar o direito de
herana deste. Com o ardil, Jac ganhou a bno do pai e usurpou do
irmo a posio privilegiada de sucessor. Quando a farsa foi descoberta,
Isaac confirmou a beno ao impostor.
Em mitos bblicos anteriores sobre a rivalidade de irmos, Deus compare-
cia de forma ativa, dirigindo os acontecimentos, declarando suas escolhas.
Veja-se, por exemplo, o caso de Caim e Abel, onde Deus d preferncia
210
oferenda do segundo em detrimento do primeiro; ou a histria dos
meios-irmos Ismael e Isaac, em que Deus interfere nos rumos da sucesso
familiar, determinando que o segundo d continuidade linhagem patriar-
cal. A narrativa bblica sobre Esa e Jac se distingue por ser guiada por ar-
timanhas humanas, ainda que estas cumpram aquilo que foi predestinado
por Deus, que aparece para dar a palavra final:
A passagem acima deixa bem claro que Deus abenoou a falcatrua de Re-
beca e Jac, anunciando o impostor como o herdeiro que vir a gerar a
linhagem do povo hebreu.Confirma-se, assim, a profecia divina, segundo
a qual o mais velho servir o mais novo. E Jac veio a ser o ltimo patriarca
da histria israelita, o pai do qual descenderam as doze tribos de Israel,
cada uma com origem em um dos seus doze filhos.
Qual a relao do mito bblico com a fico machadiana? Luiz Costa Lima
avalia que, em Esa e Jac, a consulta muda de tempo e figura. De tempo,
pois os gmeos j cumpriram um ano quando Natividade sobe o morro
do Castelo (que foi um dos pontos de fundao do Rio de Janeiro no s-
culo XVI). De figura, pois o consultado no o deus Jav, mas Brbara,
a cabocla em que os brancos acreditavam sem admiti-lo em pblico. Se-
nhoras da sociedade, como Natividade e Perptua, precisavam disfarar
sua presena e interesse476.
Ironicamente, Brbara inicia a consulta repetindo um caso da passagem b-
blica. S que, enquanto no Gnese afirmava-se a briga no ventre, a pitonisa
brasileira deixa a dvida no ar, e indaga se os gmeos no teriam brigado
211
no ventre de sua me. Insinua-se que, tendo ou no brigado no tero, em
algum outro lugar haveriam de faz-lo:
212
Outra distino entre Esa e Jac e a Bblia que Rebeca engravida por
interveno de Isaac junto a Jav, pois at ento fora estril. No romance,
escrito aps a morte de Deus, Natividade engravida a contragosto e de for-
ma imprevista. Santos, o marido e pai das crianas, sentiu o prazer da vida
nova mais do que ela, que a princpio hesitou em aceitar o novo estado:
Por causa da gravidez, Natividade teria que abrir mo, ainda que tempo-
rariamente, do divertimento, da nomeada e de todo o repertrio da vida
elegante. A diferena modernizadora outra vez se intromete na compara-
o, porque a mulher da sociedade burguesa no tem interesse em servir
comunidade, mas em usufruir de seus sales479. Em contrapartida, o que
o embrio quer entrar na vida480, afirma o narrador, endossando a meta-
fsica do amor de Schopenhauer.
O aproveitamento machadiano dos meandros da saga judaica foi escrito
com a pena da galhofa. Por um lado, v-se o uso de nomes e passagens
bblicas para ironizar, enriquecer ou ilustrar o discurso de personagens
213
especialmente dos irmos Pedro e Paulo, que brigavam assim como os
apstolos de mesmo nome. Machado mencionava os dois santos como sm-
bolos do futuro e do passado: So Paulo encarnaria o esprito do progresso,
enquanto So Pedro o da conservao, a rocha, a fora do passado481.
Em relao histria dos filhos de Isaac, um vnculo que merece destaque
o embuste, tendo em vista que o prprio ponto de partida do romance
o embuste armado por Machado ao inventar a histria dos manuscritos
encontrados na secretria do conselheiro Aires482. Enquanto o narrador
bblico no se detm por motivos de ordem tica ou moral, legitimando
as prticas de ludibriar o pai cego e lesar o irmo, os fingimentos da vida
social so ironizados pelo narrador de Esa e Jac, embora muitas vezes ele
tambm compactue com os mesmos.
Por fim, se a narrativa bblica est imbuda do pessimismo cristo pro-
toforma do niilismo na prosa machadiana tem-se o niilismo moderno,
isto , a ausncia de finalidade e de resposta ao porqu; a crise em que os
valores tradicionais se depreciam e os princpios e critrios absolutos se
dissolvem nos planos social e poltico.
Modernidade de caranguejo
214
ra e renasce485. Simultaneamente vivo e defunto, tanto vale mat-lo como
nutri-lo, avalia o narrador. Matar ou nutrir o tempo, o que d no mesmo,
uma das maiores preocupaes do homem moderno, que elabora toda sor-
te de divertimentos para preencher (nutrir) ou passar (matar) as horas e os
minutos. Quem, como esse drago, sofre violncia ou ameaa de constran-
gimento, tem o direito de pedir uma ordem de habeas corpus a seu favor:
Este desejo de capturar o tempo uma necessidade da alma e dos queixos;
mas ao tempo d Deus habeas corpus486.
Habeas corpus ad subjiciendum: traga o corpo que est sob sua guarda.
Este um dos instrumentos jurdicos mais fundamentais das democracias
modernas, que existe com o propsito de garantir que ningum tenha seu
direito de ir e vir ilegalmente tolhido. Direito que at mesmo o finado Deus
teria concedido ao imortal tempo487.
Esse breve excurso sobre o tempo nos remete ao ttulo desta seo. O leitor,
que ainda se lembrar das palavras sobre a modernidade capenga, dado
que me tenha lido o captulo anterior, sabe que a expresso se refere s
contradies inerentes passagem incompleta do Brasil modernidade.
Pois modernidade de caranguejo um conceito gmeo. Filhos do mesmo
pai, ambos identificam processos pares, que compem um conjunto: O
choque entre a razo autocrtica (sem autocrtica) e a desrazo enfurecida
configura a nossa modernidade de caranguejo, sempre andando de lado488.
Marcus Freitas indica que usou a metfora do caranguejo por ser um animal
que, podendo ser encontrado em diversos ambientes, tanto de gua doce e
salgada como terrestres, anda para os lados, nunca para frente. Porventura
tambm tivesse em vista o regionalismo mineiro, que chama de caranguejo
ao indivduo lento e vagaroso. A modernizao brasileira seria lenta e va-
garosa, movendo-se para os lados, conciliando contradies como paradig-
ma cientfico e escravido, capitalismo urbano e modelo socioeconmico
agrrio, continuidade e reiterao da centralizao de poder, a despeito da
mudana de Imprio a Repblica, dentre outras caractersticas j avaliadas.
215
Para pensar o problema, eu acrescento a palavra gmea caranguejola,
usada por Pedro para adjetivar a Proclamao da Repblica489. Alm de
designar um crustceo da costa atlntica rochosa da Europa, por extenso
de sentido, remete a um conjunto infirme de coisas ou estrutura instvel
composta de objetos superpostos; por analogia, refere-se a qualquer coisa
mal presa, em desequilbrio, sem sustentao confivel; em uso pejorativo,
significa empresa ou sociedade pouco confivel, sistema poltico corrupto,
objeto velho ou sem valor. Todas essas caractersticas esto presentes na
modernidade de caranguejo.
Paulo Margutti, em seu estudo da especificidade da Pennsula Ibrica no
contexto da modernidade europeia, afirma que na poca das revolues
cientfica e religiosa a regio j tinha assumido uma forma moderna que
conservava o seu esprito medieval, de tal modo que os lusitanos consegui-
ram manter as suas tradies medievais de maneira relativamente estvel,
apesar das mudanas que foram levados a adotar, em virtude das novas
contingncias histricas com que se defrontaram. Essa conjuntura, segun-
do o filsofo, permitiu o aparecimento de um fenmeno tipicamente ib-
rico, que ele descreve mediante o oximoro modernizao conservadora,
outro conceito gmeo da modernidade de caranguejo:
216
Essa modernizao conservadora, trao cultural tpico dos ibricos, herda-
do pelo Brasil, excludente porque deixou de fora largas parcelas dos can-
didatos a cidados, em funo do vis autocrtico de sua implantao491.
, assim, uma boa caracterizao para o processo que ocorreu no pas no
perodo da Proclamao da Repblica, tal como tematizado em Esa e Jac.
Se a modernidade ocidental foi definida como o desencantamento do mun-
do, a narrativa de Esa e Jac parece assistir ao desencantamento e falncia
dos valores num momento em que a sociedade brasileira vivia a incomple-
tude ou at mesmo a irresoluo entre o arcaico e o moderno, a mo-
narquia e a repblica, impulsos modernizadores e reaes conservadoras.
O movimento ambguo e contraditrio da modernidade de caranguejo e
a justaposio de estruturas histricas dspares constituem a nervura da
obra, que trata do colapso da sociedade estamental dentro do capitalismo
brasileiro daquela poca, recm-sado da escravatura, que foi legalmente
abolida em 13 de maio de 1888, mas ainda hoje persiste: Consolidada por
seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na poltica inter-
na, a combinao de latifndio e trabalho compulsrio atravessou imp-
vida a Colnia, Reinados e Regncias, Abolio, a Primeira Repblica, e
hoje mesmo matria de controvrsia e tiros492. Essa modernidade de ca-
ranguejo, contexto histrico da emergncia do niilismo no Brasil, tem sua
reductio ad absurdum no episdio da tabuleta da confeitaria do Custdio,
que ser abordado mais adiante.
217
Aclimatado no Brasil e ficcionalizado por Machado de Assis, o niilismo po-
ltico recebeu outras caractersticas. Enquanto os niilistas russos rejeitavam
radicalmente as leis e as instituies formais, pregando a destruio das or-
ganizaes polticas e sociais para abrir caminho a uma nova sociedade, os
personagens principais de Esa e Jac Pedro, Paulo, Batista e, principal-
mente, Flora so marcados pela imobilidade, ou, para usar um conceito
nietzschiano, pela paralisia da vontade493. Essa doena da vontade, que
um dos aspectos da voluptuosidade do nada, configura-se no enredo cen-
tral de Esa e Jac, que baseado na imobilidade. A narrativa mostra que a
poltica no nada, no vale nada e no leva a nada. Revela, assim, a impo-
tncia da sociedade em formular os valores que dariam sentido s aes dos
indivduos e contedos positivos liberdade da vida na plis.
A narrativa cobre ficcionalmente o perodo de 1871 a 1894 do nascimen-
to dos gmeos at suas carreiras de deputados da Repblica dos Estados
Unidos do Brasil, no perodo da Repblica Velha conhecido como Rep-
blica da Espada (marcado pela primeira ditadura civil-militar do pas).Os
acontecimentos, smbolos, nomes e episdios que se relacionam com a
histria poltica do pas do fim do reinado de Pedro II ao incio da Re-
pblica Velha so to numerosos a ponto de se tornarem inescapveis,
como mostrou John Gledson. O crtico ingls, apesar de no trabalhar com
o conceito de niilismo, avalia que o senso de vazio que impregna Esa e
Jac , em grande medida, um fenmeno histrico, produto do perodo no
qual se situa o romance:
218
biciosa especulao na qual, se no me engano, a inteno nos
fazer mergulhar494.
219
As diferenas polticas e ideolgicas entre Pedro e Paulo so apenas gra-
vatas de cor particular, belas e sedutoras vestes de pompa e mentira para
a doena da paralisia da vontade. Monarquia e Repblica so apenas eti-
quetas ornamentadas de modo a encobrir o senso de vazio. Nesse sentido,
a dissimulao, a mscara e o artifcio tambm fazem parte do aparato da
modernidade:
Costa Lima avalia que uma sociedade que reala o indivduo e no sua
identificao grupal, cria sobre cada um a presso constante de forar sua
individualizao. neste sentido que Pedro e Paulo, iguais na aparncia,
teriam utilizado a divergncia poltica meio socialmente justificado
como maneira de diferenciao. Exemplar um irnico episdio em que as
opinies dos irmos adolescentes so materializadas em retratos de perso-
nalidades polticas francesas:
220
Lus XVI era considerado pelos conservadores um mrtir do passado glo-
rioso que os ideais iluministas da Revoluo Francesa que teve Maximi-
lien de Robespierre dentre seus lderes destruram. Pedro e Paulo prega-
ram seus respectivos quadros cabeceira das prprias camas. Mas como di-
vidiam o quarto, e dormiam lado a lado, pouco durou esta situao, porque
ambos fizeram pirraas s gravuras eram orelhas de burro, nomes feios,
desenhos de animais at que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e este a do
outro. Vingaram-se a murro, at que foram contidos pela me.
Adultos, os gmeos mantiveram a rivalidade (identidade conflitiva), que
consideravam prova suficiente de diferenciao. Mas a perspectiva de Flora
revela que eles eram distintos, por assim dizer, somente do ponto de vista
da sociedade. De acordo com a imagem interna da moa, Pedro chamava-
-se Paulo e Paulo chamava-se Pedro:
Costa Lima avalia que a troca bem clara, pois todas as cenas em que os
irmos conversam com Flora so absolutamente simtricas, de tal modo
que no importa se ela refere-se a um ou a outro500. Eu acrescento e destaco
que Flora e haver uma seo dedicada a ela revela a falta de sentido
das opinies polticas dos gmeos, que no conseguem encontrar um signi-
ficado consistente e positivo para a experincia da vida poltica. Anuncia-se
aqui, a meu ver, o perigo de um nivelamento de todas as posies polticas,
no sentido de que elas perderiam a sua hierarquia de valores. Ora, se no
h mais hierarquia, a prpria noo de valor perde a sua significao, ma-
nifestando o niilismo, a completa falta de sentido.
221
Pedro e Paulo abraam causas com falso entusiasmo e brigam por algo em
que no creem, revelando sua subservincia opinio alheia. Assim, eles
fingem buscar liberdade, satisfeitos com a prpria paralisia da vontade, es-
pcie de servido voluntria que revela estreiteza espiritual. possvel con-
cluir que a rivalidade lhes garante consolo e contentamento num mundo
sem valor e sentido.
222
pessoais assim como os irmos Pedro e Paulo. Significativa a mxima
atribuda ao poltico pernambucano Holanda Cavalcanti: Nada se asse-
melha mais a um saquarema do que um luzia no poder503. Saquarema
o nome do municpio fluminense onde as principais lideranas conserva-
doras possuam terras e se notabilizaram pelos desmandos eleitorais. Luzia
era o apelido dos liberais em aluso Vila de Santa Luzia, em Minas Gerais,
local da maior derrota deles durante a Revoluo Liberal de 1842, quando
contestavam a elevao doPartido Conservadorao poder.
A poltica desse perodo, e no s dele, em boa medida no se fazia por
motivos ideolgicos ou programticos, mas pelo poder a qualquer custo.
Chegar ao poder significava obter nomeada e benefcios para si prprio e
seu grupo. Liberais e conservadores lanavam mo dos mesmos recursos
para alcanar as vitrias eleitorais, concedendo favores aos amigos e empre-
gando a violncia contra os adversrios e apartidrios.
Batista, da perspectiva de quem considera os valores liberais e conservado-
res infundados, fez profisso de f poltica, mostrando uma dualidade mo-
ral e mental. Sem qualquer parmetro tico a presidir sua escala de valores
e orientar suas aes, ele oferece uma risvel distino entre temperamentos
e ideias, confessando ter o temperamento conservador:
O trecho supracitado parte de uma conversa com Aires, que se deu a pro-
psito do convite recebido por Batista para ser presidente de uma provncia
no norte. Adoentado de paralisia da vontade, arrebatado pelo sentimento
223
de que tudo vo, o pai de Flora experimenta o fastio da vida e se deixa
levar pelos caprichos da esposa:
Ao despedir-se, fez Aires uma reflexo, que ponho aqui, para o caso
de que algum leitor a tenha feito tambm. A reflexo foi obra de
espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem to difcil em
ceder s instigaes da esposa (Vai-te, Satans, etc.; captulo XLVII),
deitou to facilmente o hbito s urtigas. No achou explicao,
nem a acharia, se no soubesse o que lhe disseram mais tarde, que os
primeiros passos da converso do homem foram dados pela mulher.
A mulher a desolao do homem, dizia no sei que filsofo so-
cialista, creio que Proudhon. Foi ela, a viva da presidncia, que por
meios vrios e secretos, tramou passar a segundas npcias. Quando
ele soube do namoro, j os banhos estavam corridos; no havia mais
que consentir e casar tambm. [...] D. Cludia no suspirou, cantou
vitria; a reticncia do marido era a primeira figura de aquiescn-
cia. No lhe disse isto assim, nu e cru; tambm no revelou alegria
descomposta; falou sempre a linguagem da razo fria e da vontade
certa. Batista, sentindo-se apoiado, caminhou para o abismo e deu
o salto nas trevas. No o fez sem graa, nem com ela. Posto que a
vontade que trazia fosse de emprstimo, no lhe faltava desejo a que a
vontade da esposa deu vida e alma. Da a autoria de que se investiu
e acabou confessando505.
224
Batista desejou morrer. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha506, ava-
lia o narrador.
Com a pena da galhofa, a prosa de Esa e Jac mostra que o dcadent Ba-
tista, desprovido da vontade de constituir-se na singularidade de si mesmo,
incapaz de construir instituies duradouras, segue a lio da teoria do me-
dalho e adota os ornamentados e vazios discursos de metafsica poltica,
que apaixonam naturalmente os partidos e o pblico:
225
Filosofia das Tabuletas: niilismo poltico e
desvalorizao dos valores
226
zer; mas a afeio valia muito. Agora que ia trocar de tabuleta sen-
tia perder algo do corpo coisa que outros do mesmo ou diverso
ramo de negcio no compreenderiam, tal gosto acham em renovar
as caras e fazer crescer com elas a nomeada. So naturezas. Aires ia
pensando em escrever uma Filosofia das Tabuletas, na qual poria tais
e outras observaes, mas nunca deu comeo obra509.
227
liquidava a confeitaria. E afinal que tinha ele com poltica? Era um
simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, res-
peitado, e principalmente respeitador da ordem pblica...
Mas o que que h? perguntou Aires.
A repblica est proclamada.
J h governo?
Penso que j; mas diga-me Vossa Excelncia: ouviu algum acu-
sar-me jamais de atacar o governo? Ningum. Entretanto... Uma fa-
talidade! Venha em meu socorro, Excelentssimo. Ajude-me a sair
deste embarao. A tabuleta est pronta, o nome todo pintado.
Confeitaria do Imprio, a tinta viva e bonita. O pintor teima em
que lhe pague o trabalho, para ento fazer outro. Eu, se a obra no
estivesse acabada, mudava de ttulo, por mais que me custasse, mas
hei de perder o dinheiro que gastei? V. Excelncia cr que, se ficar
Imprio, venham quebrar-me as vidraas?
Isso no sei.
Realmente, no h motivo; o nome da casa, nome de trinta anos,
ningum a conhece de outro modo.
Mas pode pr Confeitaria da Repblica...
Lembrou-me isso, em caminho, mas tambm me lembrou que, se
daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em
que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro.
Tem razo... Sente-se.
Estou bem.
Sente-se e fume um charuto.
Custdio recusou o charuto, no fumava. Aceitou a cadeira. Estava
no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chama-
riam a ateno, se no fosse o atordoamento do esprito. Continuou
a implorar o socorro do vizinho. Sua Excelncia, com a grande inteli-
gncia que Deus lhe dera, podia salv-lo. Aires props-lhe um meio-
-termo, um ttulo que iria com ambas as hipteses, Confeitaria
do Governo.
Tanto serve para um regime como para outro.
No digo que no, e, a no ser a despesa perdida... H, porm,
uma razo contra. Vossa Excelncia sabe que nenhum governo
deixa de ter oposio. As oposies, quando descerem rua, podem
implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem-me a tabuleta;
entretanto, o que eu procuro o respeito de todos.
228
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizi-
nho no queria barulhos porta, nem malquerenas gratuitas, nem
dios de quem quer que fosse; mas, no o afligia menos a despesa
que teria de fazer de quando em quando, se no achasse um ttulo
definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, j perdia a ce-
lebridade, alm de perder a pintura e pagar mais dinheiro511.
229
quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na vspera,
menos a constituio513.
230
A reao inicial de um desnorteado Pedro em relao queda da monar-
quia tambm foi de dvida e hesitao. No primeiro jantar da famlia San-
tos aps o golpe civil-militar que proclamou a Repblica, enquanto Paulo,
com seus sentimentos republicanos fortes e quentes, referia os sucessos
amorosamente, mal via o abatimento do irmo e o acanhamento dos pais.
Ao fim do jantar em famlia, bebeu Repblica, mas calado, sem ostenta-
o, enquanto o irmo observava em silncio:
231
no se lamuriava sozinho. Dentre os propagandistas e principais partici-
pantes do movimento republicano, que rapidamente perceberam que no
se tratava da repblica de seus sonhos, o desencanto foi geral520.
Ao trmino do romance, as idias se iam tornando esgaradas, nevoentas521,
at que se perderam e eles trocaram de opinies, mostrando que seus pon-
tos de vista extremos so mais frutos de indeciso do que de certezas522.
Por fim, os gmeos tomaram assento na Cmara dos Deputados, por dois
partidos opostos: Ambos apoiavam a Repblica, mas Paulo queria mais do
que ela era, e Pedro achava que era bastante e sobeja523.
O conselheiro Aires, superando a comodidade que achava em concordar
com as opinies alheias, queria dizer o que pensava sobre a troca de opi-
nies. Porventura com a pretenso de atingir uma interpretao unitria ou
definitiva do fenmeno, gastou algum tempo na escolha das palavras, a fim
de no lhe sarem pedantes nem insignificantes. Ao fim de trs minutos,
segredou a Natividade:
232
esgotamento do poder do esprito. Caracteriza a resignao e quietude con-
formista do animal de rebanho que prefere conservar o status quo.
Minha inteno, aqui, sem alarde de terminologia, no aplicar os concei-
tos nietzschianos aos personagens machadianos, mas somente lanar nova
luz sobre a to comentada averso recproca, apenas disfarada, apenas in-
terrompida por algum motivo mais forte, mas persistente no sangue, como
necessidade virtual526. E, qui, como pequeno saldo, ler Nietzsche luz de
Machado, aclimatando a filosofia alem s condies nativas.
233
Inexplicvel o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem
acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta,
pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a rvore rvore,
nem a choupana. Se se trata ento de gente, adeus. Por mais que os
olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles no di-
zem nada. E retocam com tanta pacincia, que alguns morrem entre
dois olhos, outros matam-se de desespero530.
234
gamento. Enquanto as protagonistas de outras obras sabem muito bem o
que desejam e agem para alcanarem seus objetivos, Flora marcada pela
paralisia da vontade.
A filha de Batista e Claudia no conhece a independncia no decidir, o
ousado prazer no querer. As suas melhores foras se inibem, as prprias
virtudes no permitem uma outra crescer e se fortalecer, falta equilbrio
no corpo e na alma. Sombria como uma nuvem carregada de pontos de
interrogao533, ela aparece sedutoramente enfeitada.
A jovem de cabelos ruivos, rosto comprido, nariz aquilino, boca meio riso-
nha e olhos grandes e claros, dotados de um mover cheio de graa, mavioso
e pensativo, parece ser o nico interesse comum dos contraditrios irmos
gmeos Pedro e Paulo tringulo amoroso sui generis que sintetiza o dile-
ma da modernidade de caranguejo.
Flora recreava com os gmeos. s vezes, simulava confundi-los, para rir
com ambos. Ela tocava piano para Pedro, conversava com Paulo ou ento
fazia ambas as coisas e tocava conversando, soltava a rdea aos dedos e
lngua. Sem rejeitar nem aceitar especialmente nenhum, despertou a pai-
xo nos dois. E pode ser at que nem percebesse nada:
235
um s teto cobrir to diversos pensamentos?536, indaga o narrador. Com o
passar do tempo, a inexplicvel vai se desvendando. Ao contrrio de perso-
nagens que j aparecem completas, Flora parece ser construda ao longo de
toda a narrativa, se revelando ao leitor a cada pargrafo:
Flora nada quer. Ela opta por no optar, porque se sentiria reduzida me-
tade se o fizesse, e s a posse das duas metades a realizaria; isto impossvel,
porque seria suprimir a prpria lei do ato, que a opo. Simbolicamente,
Flora morre sem escolher538. Algum tempo depois de explicar o inexplic-
vel, ela comeou a ter alucinaes. Os dois gmeos, de to iguais que eram,
acabaram sendo uma pessoa s. Esse fenmeno extraordinrio passou a
ocorrer com frequncia: Era um espetculo misterioso, vago, obscuro, em
que as figuras visveis se faziam impalpveis, o dobrado ficava nico, o ni-
co desdobrado, uma fuso, uma confuso, uma difuso...539. Um delrio ao
qual ela foi se acostumando e deleitando:
Tudo se mistura, meia claridade; tal seria a causa da fuso dos vul-
tos, que de dois que eram, ficaram sendo um s. Flora, no tendo
visto sair nenhum dos gmeos, mal podia crer que formassem agora
uma s pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta nica
pessoa solitria parecia complet-la interiormente, melhor que ne-
nhuma das outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar
e transmudar. Pensou enganar-se, mas no; era uma s pessoa, feita
das duas e de si mesma, que sentia bater nela o corao540.
236
Essas alucinaes, enfraquecimento resultante de doena, coincidem com
o diagnstico da dcadence enquanto expresso fisiopsicolgica do niilis-
mo: Flora no mais senhora de si, por causa do desregramento confesso
dos instintos, sintoma da vida que declina e reduz tudo a nada. Nessa si-
tuao de perigo, ela tinha duas opes: afirmar sua vontade ou sucumbir.
Como os santos ascetas, a vontade de Flora foi quase totalmente suprimida;
ela venceu os tumultos, valores e desejos inerentes ao mundo. Mas como
ainda vivia ligada a um corpo, mesmo que doente, no era possvel a disso-
luo completa dos fenmenos da vontade. Essa mortificao da vontade
conduziu-a voluptuosidade do nada.
Prejudicando a si mesma, Flora acaba morrendo vtima de sua indeciso.
A morte, que pe um fim dcadence, porventura seja o nico destino
aceitvel para terminar a construo do inexplicvel: Flora acabou como
uma dessas tardes rpidas, no tanto que no faam ir doendo as saudades
do dia; acabou to serenamente que a expresso do rosto, quando lhe
fecharam os olhos, era menos de defunta que de escultura541.
Flora aniquilou os tumultos inerentes ao mundo. Mas a sua morte ocorreu
em meio a um confuso movimento de grupos, patrulhas, metralhadoras e
tropas nas ruas, com pessoas presas. Uns falavam de manifestaes ao Ma-
rechal Deodoro, outros de conspirao contra o Marechal Floriano (presi-
dente que desagradava s foras econmicas dominantes).
O ano do falecimento de Flora, 1891, marcou a transio definitiva da Mo-
narquia para a Repblica, com a promulgao da Constituio da Rep-
blica dos Estados Unidos do Brasil. E o ano tambm foi particularmente
trgico, com o mais violento surto de epidemias da histria da cidade do
Rio de Janeiro malria, tuberculose, varola e febre amarela, somadas aos
velhos problemas de abastecimento de gua, de saneamento e de higiene,
resultaram em taxa recorde de mortalidade542.
O enterro da filha de Batista teve a novidade de percorrer as ruas em esta-
do de stio, regime de exceo instaurado pelo Marechal Floriano Peixoto
diversas vezes durante o seu mandato, como uma medida provisria de
proteo do Estado. Durante as velhas cerimnias funerrias, toda a gente
que passava, parava. Das janelas debruava-se a vizinhana. Todos os olhos
237
examinavam as pessoas que pegavam nas alas do caixo. O povo, mais
interessado no velrio que no estado de exceo, revela a prpria omisso
diante dos fatos de natureza poltica.
Inviolvel e distante, a virgem estril no aceitou o sacrifcio indispensvel
renovao da vida543. Sem escolher entre Pedro e Paulo, entre a Monar-
quia e a Repblica, ela corrobora o desfecho inacabado do romance, com
irnica sensao de nada. Se o que est verdadeiramente em jogo na mu-
dana de Imprio a Repblica a passagem ou no modernidade544, as
questes poltica e histrica, assim como a amorosa, ficam sem desfecho
pois no tempo, esse tecido invisvel, tambm se pode bordar nada. O livro
acaba meio que abruptamente, dando a impresso de no concludo, como
se algo no tomasse forma definida e completa, como se faltasse o fim e a
resposta ao por qu.
Mas pode algum dar razo ao nada? Pode o nada dar razo a alguma
coisa? Pode a razo dar razo des-razo ou quilo que no tem razo?
Certamente, no545. Mesmo o niilismo mais profundo que afirma a fal-
ta de sentido da vida e do mundo e a falta de sentido das questes sobre
sentido tambm acaba projetando suas significativas vises de mundo
como algo carente de sentido. Essa devastadora sensao de nada que se
forma em sua esteira o resumo fiel de uma experincia, que continuare-
mos a ver a seguir.
238
Terceira parte
O CANSAO QUE OLHA
PARA TRS
7. BRS CUBAS E A VOLUPTUOSIDADE DO NADA
No tendo mais a boa vontade nem a vontade boa para regular suas
vidas, no tendo mais a natureza para se apoiar nem a histria para
se orientar em suas aes, os filhos do sculo, depois de verem tudo
ruir ante os olhos (a religio, a moral, a poltica, a cincia, a tcnica
e a histria), sentem o solo vacilar e abrir-se sob seus ps o abismo
sem fundo do nada. A esperana que a humanidade, que nunca se
entendeu em terra firme, se veja forada a pelo menos se entender
diante do abismo, quando, se no por convico da razo, ao menos
por instinto de sobrevivncia, Eros poder finalmente se impor sobre
Thanatos, e falar mais forte...550.
242
vista a duplicidade constitutiva do niilismo (sintoma de decadncia e, ao mes-
mo tempo, de potncia ampliada), pode-se afirmar que o trio e no niilista.
De uma perspectiva, possvel perceber o comeo do fim, o ponto morto,
o cansao que olha para trs, a vontade que se volta contra a vida, a ltima
doena anunciando-se terna e melanclica551: a vontade de nada e o res-
sentimento em relao ao passado so consequncias da impossibilidade
de criar novos valores, sentidos e possibilidades de viver.
O fardo do passado simultaneamente uma debilidade e uma pendncia
moral para praticamente todos os protagonistas de Machado, em especial
para o trio de narradores do tempo perdido552. Sujeitos ruinosos, ob-
cecados pela restaurao553, pessimistas cansados da vida554, o defunto
autor, o casmurro e o conselheiro tematizam, ironicamente, a relao entre
criao, esterilidade e runa. Diante da impossibilidade de recuperar o tem-
po perdido pois o tempo ministro da morte e arquiteto de runas a
nostalgia desses narradores de si mescla o passado com o presente e desloca
qualquer sentido de futuro. Ao revolverem o passado, os memorialistas ex-
pressam falta de plenitude, sentimento de abandono e um esprito de vin-
gana contra o tempo. Nessa perspectiva, os trs memoriais so apenas rea-
es aos respectivos sentimentos de perda, no gestos ativos de resistncia.
Por outro ponto de vista, existe em Cubas, Santiago e Aires uma inclina-
o para intervir na construo da histria da prpria vida que os defi-
ne como afirmadores mesmo que neguem. Todos eles usam a escrita
como uma forma de organizar a falta de sentido. Assim, eles encontram
na narrativa dos papis que escolhem representar defunto autor, escri-
tor casmurro, diarista solitrio ocasio para a converso de suas expe-
rincias em arte. Nessa afirmao da condio de artistas, criadores de
valores, eles no so niilistas.
Antes de iniciar a anlise de cada obra, vale lembrar que Memrias pstu-
mas de Brs Cubas, Dom Casmurro e Memorial de Aires no so tratados de
filosofia, mas sim narrativas ficcionais. No se deve buscar nos textos ndices
da inteno do autor na orientao da correta interpretao das aes e
palavras dos narradores-autores. Machado, em sua crtica ao romance O
243
Primo Baslio, de Ea de Queirs, j criticava o romance por julgar que nele
as personagens eram tteres a servio da demonstrao de uma tese, o que
resultaria num defeito artstico, a perda da coerncia ficcional555.
Preservando a coerncia ficcional, tambm vale lembrar que a Brs, Bento
e Aires dado o privilgio de, uma vez livres das lutas e dos jogos sociais,
exercer um poder raro e terrvel, o poder de dizer o que se pensa556. Nos
dois primeiros casos, as memrias so narradas anos depois de decorridos
todos os eventos lembrados e aps o falecimento da maioria dos persona-
gens envolvidos, podendo ser recondicionadas de acordo com a vontade
dos narradores. Em relao ao diplomata aposentado, a escrita solitria do
dirio o tornaria aberto sinceridade, ainda que, como ser visto adiante,
por vezes ele no seja digno de confiana.
Para compor o olhar pessimista enfastiado557 de Brs Cubas, Bento San-
tiago e Conselheiro Aires, Machado recupera a forma shandiana, isto , o
modelo do narrador melanclico, hipocondraco e autorreflexivo da obra
The Life and Opinions of Tristam Shandy, Gentleman, de Laurence Sterne:
244
Movidos pela hipocondria, os trs memorialistas escrevem no mbito da
metafico, isto , voltando toda pgina para dentro de si mesma. A fic-
o que explicita o tempo todo que fico refrata e estiliza na escrita a
matria discursiva das formaes ideolgicas que, no tempo de Machado
de Assis, eram tidas por verdadeiras, fornecendo os parmetros estticos,
psicolgicos e sociolgicos, para inventar e motivar a fico como verossi-
milhana.
Um romance inusual
559. ABREU. Sobre as Memrias pstumas de Brs Cubas, p. 11; ASSIS. Memrias pstumas de Brs
Cubas, Prlogo da quarta edio, p. 625.
560. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, Ao leitor, p. 625-626.
245
ou naturalistas. [...] Sem dvida: mas precisamente essa fuso de
humorismo filosfico e fantstico que nos consente atinar com o ver-
dadeiro gnero do romance: Brs Cubas um representante moderno
do gnero cmico-fantstico. Esta a linhagem a que efetivamente
pertence o livro561.
561. MERQUIOR. Gnero e estilo das Memrias pstumas de Brs Cubas, p. 139-140.
562. REGO. O calundu e a panaceia, p. 175-176.
246
prprio de discusso do problema filosfico do niilismo como perspectiva
a ser galhofada.
A zombaria explcita e veemente j comea no ttulo: Memrias pstumas.
O fato de o defunto autor Brs Cubas recusar-se a contar o processo ex-
traordinrio que empregou na composio de sua prosa, trabalhada l
no outro mundo, justificando que seria desnecessrio ao entendimento
da obra563, deixa subentendido que ele viveu em um universo no qual o
mundo suprassensvel perdeu sua fora construtiva e o Deus moral, fun-
damento da metafsica, morreu e foi enterrado, caracterizando o niilismo:
247
certa no mbito da narrativa. Exemplar dessa naturalizao dessacralizante
o humor negro da impactante dedicatria:
AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANA
ESTAS
MEMRIAS PSTUMAS567
248
C embaixo, como ningum opina, limitam-se todos a ser igualmente
devorados, e o sabor o mesmo. s vezes, o liberal melhor que o
conservador; outras vezes o contrrio: questo de idade. Os ver-
mes (no os deuses, como diziam os antigos) os vermes amam os que
morrem moos. Voc por que que no fica hoje mesmo por aqui?570
A terra e o estrume
249
setembro de 1871), passando pela intensa movimentao internacional em
torno da questo servil (o que provocou a abolio da escravatura em todo
o territrio portugus em fevereiro de 1869).
O olhar com que o defunto autor penetra nos meandros da sociedade flu-
minense de seu tempo mostra a decomposio do sistema escravista e a
possibilidade de violao da vontade dos senhores, mas com a permann-
cia da estrutura social assimtrica e injusta. Nesse sentido, o tom de Brs
(que tambm o de Bento e, de certa forma, o de Aires) de pessimismo,
autocomiserao diante da conscincia da derrota e nostalgia em relao a
um mundo que no mais existe.
Tambm vale lembrar que, em 8 de dezembro de 1869, cerca de quatro
meses aps a morte de Brs, teve incio o Conclio Vaticano I, aconteci-
mento de maior relevo na histria da Igreja Catlica no sculo XIX. Pro-
clamado pelo Papa Pio IX, o conclio buscou defender os fundamentos
da f catlica, proclamando a Infalibilidade Papal como dogma e con-
denando os erros do racionalismo, do materialismo e do atesmo. Como
Machado era reconhecidamente anticlerical e ctico, a coincidncia de
datas significativa.
Quando Brs falece, muitos valores morrem junto com ele. Ao passo que
os valores arraigados caducam e se tornam desprovidos de valor, cresce o
temor diante da ausncia do sentido. O defunto autor reconhece e expe-
rimenta o niilismo porque ele mesmo pensa niilisticamente o que ser
comentado mais adiante. Antes, vejam o nascimento e a formao do filho
de Bento Cubas.
O menino diabo nasceu no Rio de Janeiro em 1805. Durante sua vida,
ele testemunhou o fim do perodo colonial, o surgimento e o fim do Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a origem e o ocaso do Primeiro Rei-
nado, a Regncia e trs dcadas do Segundo Reinado, vivenciando a conso-
lidao e a decadncia do sistema escravista-patriarcal.
Rentista que viveu da herana paterna, Brs retrata seus pares como um
conjunto de indivduos violentos, vorazes, lascivos e egostas que perse-
guem, num ritual de aparncias e hipocrisia, os prprios interesses e praze-
res. Os valores que lhe foram inculcados em sua formao familiar foram
resumidos no captulo O menino o pai do homem:
250
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de menino diabo; e
verdadeiramente no era outra coisa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabea de uma escrava, porque me negara uma colher
do doce de coco que estava fazendo, e, no contente com o malefcio,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, no satisfeito da travessura,
fui dizer minha me que a escrava que estragara o doce por pir-
raa; e eu tinha apenas seis anos. Prudncio, um moleque de casa,
era o meu cavalo de todos os dias; punha as mos no cho, recebia
um cordel nos queixos, guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com
uma varinha na mo, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado,
e ele obedecia, algumas vezes gemendo, mas obedecia sem
dizer palavra, ou, quando muito, um ai, nhonh! ao que eu
retorquia: Cala a boca, besta! Esconder os chapus das vi-
sitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das
cabeleiras, dar belisces nos braos das matronas, e outras muitas
faanhas deste jaez, eram mostras de um gnio indcil, mas devo
crer que eram tambm expresses de um esprito robusto, porque
meu pai tinha-me em grande admirao; e se s vezes me repreen-
dia, vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particu-
lar dava-me beijos. [...] Sim, meu pai adorava-me. Minha me era
uma senhora fraca, de pouco crebro e muito corao, assaz crdula,
sinceramente piedosa, caseira, apesar de bonita, e modesta, ape-
sar de abastada; temente s trovoadas e ao marido. O marido era na
Terra o seu deus. Da colaborao dessas duas criaturas nasceu a mi-
nha educao, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa,
incompleta, e, em partes, negativa572.
251
e lugares. A galhofa de Brs, ao mesmo tempo em que busca minimizar e
ocultar a barbrie, revela-a de modo mais escancarado.
O jovem Cubas foi criado nesse ambiente social dominado pela escravocra-
ta aristocracia brasileira que, ao contrrio da moderna burguesia europeia,
no precisava trabalhar e desprezava os que tinham que ganhar o po com
o suor do prprio corpo. A lgica cultural a partir da qual o garoto brejeiro
foi educado pode ser resumida no antigo provrbio: manda quem pode,
obedece quem tem juzo.
Outro membro exemplar dessa famlia, que enfeixa os aspectos marcan-
tes da vida burguesa local, o personagem Cotrim, cunhado de Brs, um
liberal-escravocrata. Diferentemente do protagonista, que j nasceu rico, o
marido de Sabina Cubas lutou feroz e inescrupulosamente para enriquecer,
fazendo caridade pblica com o intuito de dissimular a violncia praticada
contra os escravos chicoteados por ele at o sangramento.
A opinio do narrador em relao ao cunhado traioeira, por usar elo-
gios que incriminam e justificaes que condenam573. Enquanto o captu-
lo XXV o apresenta como um bom rapaz, circunspecto, comerciante em
gneros de estiva que amava a mulher e o filho e labutava da manh at
noite, com ardor, com perseverana574, o captulo CXXIII revela o verda-
deiro Cotrim:
252
sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor
que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova
irrefutvel, acho eu, e no nica575.
253
A barbrie chegou a tal ponto que os prprios oprimidos passaram a se-
guir a mesma lgica dos opressores, aceitando a brutalidade como parte
da ordem social. Exemplar o ex-escravo Prudncio, que, assim como seu
amo e mestre, internalizou a lgica do manda quem pode, obedece quem
tem juzo, inscrita na conduta dos grupos sociais brasileiros do sculo XIX.
Depois de alforriado ele comprou um escravo, em quem descontava as pan-
cadas recebidas outrora:
254
em criana, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o
sem compaixo; ele gemia e sofria. Agora, porm, que era livre, dis-
punha de si mesmo, dos braos, das pernas, podia trabalhar, folgar,
dormir, desagrilhoado da antiga condio, agora que ele se des-
bancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as
quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!577
255
zem respeito a toda uma poca. Mas tambm so atemporais, intempesti-
vos, extemporneos, tendo muito a nos dizer sobre a formao do Brasil
contemporneo.
256
tachos, os olhos na costura, comer mal, ou no comer, andar de um
lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar
a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh
resignada, mas sempre com as mos no tacho e os olhos na costura,
at acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chama-
mos, num momento de simpatia581.
257
O narrador refere-se casa que ele e Virglia alugaram para seus encontros
s escondidas. Era uma casinha nova, caiada de fresco, com quatro janelas
na frente e duas de cada lado, num recanto da Gamboa, onde colocaram
Dona Plcida (ex-agregada dos pais de Virglia) para morar. Escrupulosa e
devota sincera do casamento e da moralidade familiar, a velha acaba pres-
tando servios de alcoviteira, para no morrer na indigncia.
Brs, que como sabido cultiva de modo exagerado a sua vontade indi-
vidual, pensa apenas nos prprios valores e interesses, a despeito dos de
outrem. Compreendendo o mundo a partir do ponto de vista exclusivo de
seu prprio interesse os olhos se fixam na ponta do nariz583 ele v
Dona Plcida como uma criatura que nasceu para servi-lo.
Para uma classe em que, sob o domnio do capricho, triunfa a vontade in-
dividual, o nico limite que no pode ser ultrapassado a morte. Esta, que
mais forte do que a vontade, um dos poucos limites que a modernida-
de no conseguiu ultrapassar. A imortalidade algo que dinheiro nenhum
pode comprar e exrcito algum pode conquistar. A morte, a finitude da
vida, justamente aquilo que Brs Cubas, enquanto vivo, mais temia. Por
isso, hipocondria, melancolia. Se a morte da pobre Plcida tratada com
desdm, a morte da me de Brs, em contrapartida, tratada com amargor,
ainda que com uma sutil galhofa. Aps a morte da progenitora, ele afirma:
Renunciei tudo; tinha o esprito atnito. Creio que por ento que
comeou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, soli-
tria e mrbida, de um cheiro inebriante e sutil. Que bom que estar
triste e no dizer coisa nenhuma! Quando esta palavra de Shakes-
peare me chamou a ateno, confesso que senti em mim um eco, um
eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamari-
neiro, com o livro do poeta aberto nas mos, e o esprito ainda mais
cabisbaixo do que a figura ou jururu, como dizemos das galinhas
tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensao
nica, uma coisa a que poderia chamar volpia do aborrecimento.
Volpia do aborrecimento: decora esta expresso, leitor; guarda-a,
examina-a, e se no chegares a entend-la, podes concluir que igno-
ras uma das sensaes mais sutis desse mundo e daquele tempo584.
258
A morte da me confrontou Brs Cubas com a experincia da finitude, que
lhe oprimiu o crebro pela primeira vez. Se diante da sociedade ele podia
quase tudo, por ter dinheiro e poder, diante da morte da me ele no podia
nada. Assim, esse episdio um momento crucial na formao do persona-
gem-narrador, que o leva ao pathos da melancolia e ao niilismo.
Diante da ausncia de uma relao causal entre as boas aes realizadas no
passado uma criatura to dcil, to meiga, to santa, que nunca jamais
fizera verter uma lgrima de desgosto, me carinhosa, esposa imaculada585
e os seus resultados no presente uma doena sem misericrdia com
um dente tenaz como sustentar a confiana no futuro? Como perseverar
na crena de um grande futuro diante da incontornabilidade do sofri-
mento e da morte? Se o cancro indiferente s virtudes do sujeito; quando
ri, ri; roer o seu ofcio586, qual o sentido de fazer o que quer que seja?
Prostrado, aps a missa de stimo dia da me, Brs foi meter-se sozinho
numa velha casa de propriedade da famlia, localizada na Tijuca, onde per-
maneceu durante uma semana. Ao cabo de sete dias, j estava farto da soli-
do; a dor aplacara; novos divertimentos aparecem; seu pai vai oferecer-lhe
a proposta de casamento com Virglia e o cargo de deputado.
A propsito, Pascal lamenta que o prazer da solido seja uma coisa incom-
preensvel. Ele repete com frequncia que toda a infelicidade dos homens
provm de uma s coisa: de no saber ficar quieto num quarto587. Se tivesse
prazer em ficar em casa, longe dos divertimentos e tumultos, o homem seria
feliz. A razo de tal infortnio que a infelicidade natural da nossa condio
fraca e mortal to miservel que nada pode consolar quando considerada
de perto: Assim se escoa toda a vida; procura-se o repouso combatendo al-
guns obstculos e, se eles forem superados, o repouso se torna insuportvel
pelo tdio que gera. Faz-se necessrio sair e mendigar o tumulto588. Pois
Brs sai para mendigar o tumulto e buscar a nomeada.
Maia Neto avalia que Brs Cubas adota uma viso pessimista da condio
humana, contrria s filosofias otimistas da poca. A antropologia filosfica
do defunto autor inspirada em Pascal, mas desprovida da dimenso reli-
giosa que, na obra do francs, reinstaura o significado da condio humana:
259
Brs Cubas assinala a singularidade de sua obra no contedo refle-
xivo que a qualifica como um discurso filosfico. Embora, evidente-
mente, dentro do contexto ficcional da vida de Brs Cubas, a auto-
biografia sria na medida em que busca reter os aspectos centrais
da sua vida. Tais aspectos so as rabugens de pessimismo que dis-
tinguem a obra tanto dos romances que serviram de modelo formal,
como dos romances usuais. Com efeito, o critrio de seleo dos
fatos relevantes a serem includos na autobiografia no meramente
factual. sobretudo filosfico: so selecionados os fatos que revelam
a precariedade humana589.
Em vida, Brs Cubas tem uma m relao com o tempo, o que gera pes-
simismo. Incapaz de articular um projeto de transformao para si e para
os outros, ele vive, assim, uma espcie de vida moderno-arcaica esvazia-
da de sentido590, sem a proatividade do self-made man e desprovido das
energias realizadoras previstas no individualismo burgus, sem mesmo se
empenhar na manuteno de sua prpria ordem social escravista. Nesse
sentido, o seu maior inimigo o tempo, verme roedor e ministro da morte.
As rabugens de pessimismo no podem ser superestimadas em detrimen-
to da forma livre que foi adotada na prosa. A melancolia experimenta-
da pelo vivente Brs Cubas serve para a pena galhofeira do defunto autor.
Morto, ele no precisa temer o tempo e se torna escritor para recordar o
passado com a pena da galhofa. A rememorao, acompanhada de reflexo
e observao das misrias humanas, a atividade significativa possvel para
este homem desencarnado que no pode mais recorrer ao divertimento e
recusa a alternativa religiosa recomendada por Pascal:
260
Maia Neto observa que, para Brs Cubas, a morte permite a recordao e a
reflexo sobre o passado sem os padecimentos e perturbaes prprios da
experincia vital. Tudo se esvai no tempo, inclusive a gota da baba de Caim
que contamina a felicidade presente. Nesse sentido, a melancolia vivencia-
da pelo personagem vivente (que retida na seleo autobiogrfica, por ser
o vazio que as agitaes vs dos homens buscam preencher), serve para a
pena galhofeira do defunto autor estratagema narrativo de autoafirma-
o, sendo um modo de sobrepujar a melanclica decadncia da vida. A
narrativa na forma livre, a ironia e o humor que transparecem na reflexo
e observao das misrias humanas, contrapontos tinta da melancolia da
vida, purificam suas memrias do cheiro da flor amarela592.
A galhofa, princpio formal da narrativa, tem o intuito de romper com a
gravidade das mortes relatadas, que aparecem aos montes durante o livro.
So muitos os falecimentos de personagens e as mortes simblicas, dentre as
quais os fracassos de Brs em casar com Virglia, em conseguir uma cadeira
no Parlamento, em alcanar a celebridade e em trazer a pblico o seu em-
plasto anti-hipocondraco, destinado a aliviar a melanclica humanidade.
Enquanto recurso narrativo, a galhofa no apenas oferece leveza ao peso de
gravidade do medo da morte, mas tambm faz gracejo com as aes imo-
rais do brejeiro Cubas, justificando ou dissimulando seus inmeros atos
perversos e corruptos, proporcionando-lhe ainda ares de superioridade,
negaceando seu inconformismo diante da finitude. Assim sendo, a narrati-
va uma estratgia que nega a morte e pereniza o narrador.
O delrio
O ttulo deste livro, como o leitor j sabe, foi retirado do captulo VII, O
delrio, de Memrias pstumas de Brs Cubas. Apesar de ser o relato de
uma confuso mental, que interrompe a narrativa biogrfica Se o lei-
tor no dado contemplao destes fenmenos mentais, pode saltar o
captulo; v direito narrao593 , O delrio considerado por muitos
crticos como a chave para a integridade conceitual e esttica do romance
como um todo.
261
O delrio comea no captulo VI, que mostra o protagonista doente, de
cama, recebendo uma visita de Virglia, sua amante de vinte anos atrs.
Para evitar maledicncias da vizinhana, ela foi acompanhada do nico fi-
lho, o bacharel Nhonh, que na idade de 5 anos foi cmplice inconsciente
do adultrio da me. No meio da conversa, subitamente comea a pertur-
bao mental, que dura de 20 a 30 minutos, com desorientao espaotem-
poral, alucinaes visuais e auditivas, terminando no captulo VIII, em que
a Razo volta casa e convida a Sandice a sair.
Brito Junior avalia que o delrio de Brs Cubas, apesar de parecer desmen-
tir toda expectativa de lgica, ser estabelecido como lugar privilegiado de
apreenso da quintessncia da realidade. Adentra-se, ento, numa outra
lgica, que nos vai conduzindo por uma viagem durante a qual sentimentos
humanos, estados de esprito e aes so hipostasiados a ponto de figura-
rem como personagens de um drama universal594:
262
um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Ento
o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas,
atrs de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho
de impalpvel, outro de improvvel, outro de invisvel, cosidos todos
a ponto precrio, com a agulha da imaginao; e essa figura, nada
menos que a quimera da felicidade, ou lhe fugia perpetuamente,
ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e
ento ela ria, como um escrnio, e sumia-se, como uma iluso595.
Hudson Ribeiro avalia que essa fantstica viagem origem dos sculos em
busca dos segredos do tempo uma vigorosa crtica tradio teleolgica
em um dos seus pilares mais sagrados, a saber, a questo da origem: a pro-
blemtica do gnesis, a discrdia da arch, isto , a pretenso de se chegar
origem da nossa prpria essncia, como a explicao derradeira de onde
tudo teria surgido:
263
origem absoluta, tarefa qual se dedicavam algumas disciplinas e correntes
cientficas e filosficas da poca.
O contexto que se monta desde o incio justamente o de (stira a) uma in-
vestigao cientfica Que me conste, ainda ningum relatou o seu pr-
prio delrio; fao-o eu, e a cincia mo agradecer597 e se desdobra numa
descrio do delrio como um empreendimento supostamente metafsico
porque a cincia mais lenta e a imaginao mais vaga. Nesse sentido,
Brito Junior avalia que, em sua perturbao mental, Brs nos ofereceria
nada menos que a chave da histria humana, de consequncias niilistas:
264
Essa fora negativa e destruidora contra a qual Brs Cubas no consegue
lutar personificada por Natureza ou Pandora, me e inimiga, personagem
da mitologia grega cuja verso mais conhecida foi eternizada por Hesodo
em Os Trabalhos e os Dias. Segundo a misgina verso do poeta becio,
Pandora criada como uma maldio para o homem, no intuito de punir o
tit Prometeu, porque ele havia roubado o fogo dos deuses:
265
A Epimeteu o pai enviou nclito Argifonte
Veloz mensageiro dos deuses, o dom levando; Epimeteu
no pensou no que Prometeu lhe dissera jamais dom
do olmpio Zeus aceitar, mas que logo o devolvesse
para mal nenhum nascer aos homens mortais.
Depois de aceitar, sofrendo o mal, ele compreendeu.
Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos
A recato dos males, dos difceis trabalhos,
das terrveis doenas que ao homem pem fim;
mas a mulher, a grande tampa do jarro alando,
dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.
Sozinha, ali, a Expectao em indestrutvel morada
abaixo das bordas restou e para fora no
voou, pois antes reps ela a tampa no jarro,
por desgnios de Zeus porta-gide, o agrega-nuvens.
Mas outros mil pesares erram entre os homens;
plena de males, a terra, pleno, o amor;
doenas aos homens, de dia e de noite,
vo e vm, espontneas, levando males aos mortais,
em silncio, pois o tramante Zeus a voz lhes tirou.
Da inteligncia de Zeus no h como escapar!600.
600. HESODO. Os trabalhos e os dias, p. 27-29. Segundo nota da tradutora Mary Lafer, Elps foi
traduzida por Expectao porque comporta mais o sentido amplo de espera (do negativo ou do
positivo) do que a palavra Esperana, que tradicionalmente aparece nas tradues.
266
na verdade so males: difceis trabalhos e terrveis doenas. Quando Pan-
dora estava pronta, com o vaso na mo, foi enviada ao irmo de Prometeu,
Epimeteu, o que pensa depois (o sem astcia), que apesar dos conselhos
do astucioso irmo para que no recebesse nada da parte de Zeus, encan-
tou-se com a beleza da mulher e a recebeu de braos abertos. Pandora, en-
to, liberou os males do vaso, deixando ficar apenas a esperana. Assim, os
homens passaram a viver dia aps dia entre trabalhos, dores e sofrimentos,
com a experincia da doena e da morte. E a esperana permanece guarda-
da para sempre no fundo do vaso.
De acordo com Izabela Bocayuva, Pandora representa a concepo mtica
dos primrdios do Ocidente a respeito da condio humana. Sendo aque-
la sociedade grega um patriarcado, aquilo que concebido como humano
comea com a criatividade do puro masculino, ficando reservado para o
feminino o papel sui generis de desestabilizar:
267
No caso do delrio, o dilogo entre Cubas e Pandora cultiva ao mximo a
noo de uma grande me de valores contraditrios. Ela anuncia: levo na
minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperana, consola-
o dos homens602. Na sentena, os bens e os males tm igual presena.
A expresso o maior de todos ambgua, pois na sintaxe da orao no
est claro se a esperana o maior de todos os bens ou de todos os males.
O senso comum considera a esperana um bem. Porm, tendo em vista
a atitude ironicamente pessimista do protagonista, ter esperana tambm
poderia considerar-se algo negativo. Pandora continua afirmando sua na-
tureza contraditria: eu no sou somente a vida; sou tambm a morte. Ao
revelar a Brs Cubas, espera-te a voluptuosidade do nada, Pandora cunha
um horizonte prprio de discusso do problema filosfico do niilismo:
268
Dizendo isso, a viso estendeu o brao, segurou-me pelos cabelos e
levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. S ento pude ver-lhe
de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma con-
toro violenta, nenhuma expresso de dio ou ferocidade; a feio
nica, geral, completa, era a da impassibilidade egosta, a da eterna
surdez, a da vontade imvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas
no corao. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expresso glacial, havia
um ar de juventude, mescla de fora e vio, diante do qual me sentia
eu o mais dbil e decrpito dos seres.
Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mtua
contemplao.
No respondi , nem quero entender-te; tu s absurda, tu s
uma fbula. Estou sonhando, decerto, ou, se verdade, que enlou-
queci, tu no passas de uma concepo de alienado, isto , uma coisa
v, que a razo ausente no pode reger nem palpar. Natureza, tu? A
Natureza que eu conheo s me e no inimiga; no faz da vida um
flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro.
E por que Pandora?
Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de to-
dos, a esperana, consolao dos homens. Tremes?
Sim; o teu olhar fascina-me.
Creio; eu no sou somente a vida; sou tambm a morte, e tu ests
prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a
voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovo, naquele imenso vale,
afigurou-se-me que era o ltimo som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposio sbita de mim mesmo. Ento,
encarei-a com olhos splices, e pedi mais alguns anos.
Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns
instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? No ests
farto do espetculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te
deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia
da tarde, a quietao da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim,
o maior benefcio das minhas mos. Que mais queres tu, sublime
idiota?
Viver somente, no te peo mais nada. Quem me ps no corao
esse amor da vida, seno tu? e, se eu amo a vida, por que te hs de
golpear a ti mesma, matando-me?
269
Porque j no preciso de ti. No importa ao tempo o minuto que
passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem forte, jucundo,
supe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o ou-
tro, mas o tempo subsiste. Egosmo, dizes tu? Sim, egosmo, no te-
nho outra lei. Egosmo, conservao. A ona mata o novilho porque
o raciocnio da ona que ela deve viver, e se o novilho tenro tanto
melhor: eis o estatuto universal603.
603. ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, VII, p. 633-634. Grifos meus.
604. NIETZSCHE. O nascimento da tragdia, 3, p. 36. Grifo original.
270
A Pandora do delrio e o Sileno do mito consideram o mundo um caos,
a existncia um sofrimento e o homem finitude e efemeridade, de onde
concluem que o melhor seria no ser ou ento deixar de ser o quanto an-
tes. Ambos, indiferentes com relao aos feitos dos homens e incapazes de
conceber humanamente o mundo humano, jamais entendero a nsia do
homem em viver.
Brs Cubas, ciente dos horrores da existncia e do fundo catico primor-
dial da finitude, assume o sem sentido e tenta superar a mxima de Sileno.
Antes a volpia do aborrecimento que a voluptuosidade do nada esta a
opo desse anti-heri, que jamais experimentara em vida a perspectiva do
novilho, pois apenas preocupara-se, como uma ona bem servida, em saber
se a presa era tenra ou no.
Por um lado, sendo a vitalidade ou o amor vida a categoria a partir da
qual pode-se interpretar Brs Cubas, a resposta do grande lascivo per-
gunta de Pandora Que mais queres tu, sublime idiota? no poderia
ser outra seno Viver somente, no te peo mais nada. Por outro lado, a
compreenso da Natureza como me e inimiga, que s concede a vida
para depois dar a morte, o grande obstculo que emperra os caminhos
possveis de Brs Cubas at a ao, o condenando paralisia da vontade,
pois a maior felicidade no ter nascido inacessvel aos mortais:
271
o do nada em meio ao que aparecer como a nica ao que
lhe resta diante da impossibilidade de nada fazer absolutamente605.
272
Causa-me estranhamento o fato de que Memrias pstumas de Brs Cubas
costume ser considerada uma obra pessimista, tendo em vista que se trata
de uma tragicomdia, com personagens e aes cmicas. Ainda que o de-
funto autor tenha rabugens de pessimismo e escreva com a tinta da melan-
colia, tanto sua morte quanto sua vida recebem tratamentos humorsticos.
No fim das contas, o alvo das comdias machadianas sempre a vaidade
humana, que sobressai at mesmo no delrio.
Das negativas
273
Se o discurso do narrador for tomado a srio, possvel consider-lo uma
negao sistemtica de todos os valores que prendem o homem vida em
sociedade uma vontade de nada. O orgulho de no ter tido filhos, de
no ter propiciado a algum a maior ventura dada aos mortais viver
o colocaria na mesma perspectiva de Pandora e Sileno: o melhor seria
no ter nascido.
J o fato de no ter comprado o po com o suor do prprio rosto uma
vantagem bvia para um rentista de uma sociedade escravocrata. Porm,
do ponto de vista implcito e adverso da tica burguesa do trabalho que
valoriza a meritocracia ou ainda da doutrina crist Comers o teu
po com o suor do teu rosto, at que voltes terra de que foste tirado610
mais outro sinal de menos, outra maneira de no ser611.
Seria possvel concluir que todos os esforos do narrador foram no sentido
de negar a possibilidade de o homem, aps a descoberta da finitude, encon-
trar qualquer sentido para a vida que pudesse propiciar uma superao da
melancolia a que a humanidade estaria condenada612.
Tambm possvel avaliar que Das Negativas aponta o sofrer como pre-
dicado inseparvel da vida, remetendo assim a Schopenhauer e ao seu pon-
to de partida tico e filosfico, segundo o qual toda vida sofrimento. O
desfecho das Memrias Pstumas seria, assim, a constatao de uma mis-
ria universal: a guerra dos apetites e dos dios, a destruio recproca dos
seres e das coisas. A implacvel desmistificao machadiana do sentimen-
talismo romntico deixaria entrever o fundo niilista, redutor de tudo a uma
relao de vida e morte que necessariamente termina em nada.
O ltimo captulo de Memrias pstumas, que parece profundamente pes-
simista e niilista, nos expe hiptese de que a vida pode no ter sentido.
Contudo, apresenta uma clara intertextualidade com Tristam Shandy, obra
marcada por espalhafatosa ironia. A derradeira negativa de Brs Cubas
assemelha-se a uma irnica fala do personagem Cabo Trim: Eu no tenho
esposa nem filho Eu no posso ter sofrimentos nesse mundo613. Sterne,
274
por sua vez, parodia seu predecessor Robert Burton: No tenho esposa ou
filhos, bons ou maus, a quem prover614.
Uma pardia de pardias no pode ser levada a srio. No obstante, como
tenho tentado demonstrar, a prosa machadiana ambgua e perspectivista,
escapando s rotulaes e catalogaes fceis. Tentando superar esse im-
passe da mtua excluso, Alfredo Bosi alerta que a fora crtica do defunto
autor no se exerce numa nica direo, nem se aplica a um s ponto, ainda
que nas negativas sobressaia uma perspectiva niilista:
275
Na prosa de Brs Cubas, o niilismo que de outro ponto de vista seria do-
loroso e frustrante aparece como perspectiva a ser galhofada. Ele tem a
habilidade de interpretar as dores do mundo de uma maneira que lhe traga
mais prazer do que dor assim como o prazer das dores velhas de Bento
Santiago, que veremos a seguir.
276
8. A CONDIO CASMURRA DE BENTO SANTIAGO
Dom Casmurro
278
esse objetivo, este captulo se divide em quatro sees: enquanto esta pri-
meira serve de introduo, a prxima explica o que a condio casmurra;
na sequncia, mostro que o cime foi o fator que levou Bento ao ressenti-
mento, que uma das formas de niilismo; por fim, avalio o ressentimento
como caracterstica fundadora da condio casmurra.
Antes de seguir adiante, fao apenas duas breves observaes a respeito
da caracterizao de Bento como um narrador enganoso e irnico. J no
primeiro captulo, o personagem pode ser visto dissimulando sua opinio
sobre os maus versos So muito bonitos para, logo depois, apare-
cer escondido atrs da porta em sua primeira reminiscncia. Quase todos
os passos do protagonista so dissimulados: omite de Capitu o que ouvira
atrs da porta; esconde da me e de toda a famlia a paixo por Capitu e a
hostilidade ao seminrio; arma a cumplicidade de Jos Dias com motiva-
es falsas; as viagens Europa aps a separao de Capitu eram feitas com
o intuito de simular normalidade no matrimnio e enganar a opinio p-
blica etc. Esse personagem, para quem a dissimulao era tudo, perece e d
a vez ao narrador que publica suas memrias e revela seu prprio vexame:
V, diga-se tudo619. Essa sanha de tudo dizer motivada por ressentimen-
to, como ser visto adiante.
Ao passo que o advogado ressentido acaba por repudiar o cmico, substi-
tuindo-o por uma amarga e negra ironia, o livro torna-se palco sutil que
destri a tragdia que nele livremente se encena. Sozinho, sem autoridade
que confirme a sua histria, Bento acaba com um simulacro de tragdia,
para sempre incapaz de saber o que se passou na prpria vida620.
O estilo tragicmico de Dom Casmurro se assemelha aos dois principais esti-
los que, no sculo XVIII, eram contrapostos na duplicidade doentia do nar-
rador hipocondraco autorreflexivo. Um deles srio e elevado, com traos
lricos, trgicos e picos; enquanto o outro cmico e baixo, irnico e amvel
nas situaes apenas ridculas, e sarcstico e maledicente, nas horrveis:
279
o cmico traduz o elevado trgico e o ridculo baixo equiparado
seriedade grave, o efeito imediato a suspenso do sentido unvo-
co do que se l. A dissonncia ora humorada, ora irnica, produz a
suspenso do sentido como indeterminao que tambm pode, evi-
dentemente, ser traduzida pelo leitor como ceticismo, relativismo
e niilismo621.
Joo Adolfo Hansen avalia que essa aplicao da tcnica do narrador hipo-
condraco como duplicidade de carter garante a possibilidade de encenar
para o leitor perspectivas conflitantes, contrrias, contraditrias, autopar-
dicas e construdas em abismo, revelando uma ntida ironia autoral, mas
sem que o leitor possa saber imediatamente se a ironia do autor ficcional,
Dom Casmurro, ou do autor real, Machado de Assis.
280
vejamos algumas possibilidades de leitura do nome e dos sobrenomes desse
personagem crucial.
Bento, o que foi abenoado, o nome do santo padroeiro da Europa e
patriarca dos monges ocidentais. Nome apropriado para o menino cujo
nascimento foi considerado um milagre e, por isso mesmo, foi prometido
carreira eclesistica. Ele ainda pode ser considerado abenoado no sentido
figurado de ser favorecido pela fortuna.
O apelido Bentinho designa um tipo de escapulrio, objeto de devoo
composto geralmente por dois saquinhos ou pedaos quadrados de pano,
contendo oraes escritas, ou uma relquia, ou outros elementos, que os de-
votos trazem pendentes altura do peito e nas costas. Alcunha irnica para
quem prometia centenas e milhares de oraes e quase nunca cumpria.
O primeiro sobrenome, Albuquerque, pode referir-se ao famoso Dom
Afonso de Albuquerque, o Terrvel, que fundou o imprio portugus na
ndia e lutou na Itlia e na frica contra os turcos. Quando ele morreu,
seu corpo foi envolto no manto da Ordem Militar de Santiago, ou, como
era formalmente escrito, Sant-Iago, isto , So Tiago, um dosdoze aps-
tolosdeJesus Cristo625. Martirizadoem 44 da nossa era, foi feito santo e
chamado Santiago Maior para diferenci-lo de outro discpulo de mesmo
nome, conhecido comoSantiago Menor.
A Ordem de Santiago foi fundada para combater os muulmanos e
guardar as fronteiras dos reinos cristos da Pennsula Ibrica. So Tiago
era considerado o protetor do exrcito portugus at acrise de 1383-1385
(perodo de guerra civil tambm conhecido como Interregno, uma vez
que no existia rei no poder), quando o seu brado foi substitudo pelo
deSo Jorge, trazido pelos ingleses contra as hostes espanholas. Reza a
lenda citada por Miguel de Cervantes que Santiago teria apareci-
domiraculosamenteem vrios combates travados em Espanha durante
aReconquista Crist,sendo a partir de ento apelidado deMata-Mou-
ros. Santiago e cerra Espanha tornou-se ento o grito de guerra dos
primeiros espanhis e portugueses626.
Santiago ainda pode ser lido como uma simbolizao da dualidade que h
no personagem: ele parte santo e parte Iago (o mal, o diabo) qualida-
281
des em guerra por sua alma627. O prprio narrador nos diz haver um par
casado de virtudes dentro de si, uma boa e outra m:
627. Cf. CALDWELL. O Otelo brasileiro de Machado de Assis, p. 68-69. Segundo a autora, a fortuna
crtica de Shakespeare costuma considerar o personagem Iago como a personificao do mal.
628. ASSIS. Dom Casmurro, LXVIII, p. 1005.
282
natureza at que no reste o menor lastro de Bento, e ele seja todo
Casmurro629.
283
detalhes necessrios para a compreenso da obra, deixando o leitor sua
merc. Mas o que acontece se o desobedecermos e consultarmos dicion-
rios? Hellen Caldwell alerta que o leitor que desobedecesse a essa imperativa
orientao para a leitura encontraria nos dicionrios um sentido inconve-
niente para um autor to cioso de sua honra: aquele que teimoso, impli-
cante, cabeudo631. Considerando-se que o narrador conta a sua histria
advogando em causa prpria, preciso, desde a primeira linha, que essa his-
tria convena o leitor, fazendo-o aceitar o seu ponto de vista, que , enfim,
o nico ao qual temos acesso, j que os outros personagens no publicaram
suas memrias. Nesse sentido, teimoso e cabeudo que porventura sejam
os sentidos que o poeta do trem tinha em mente desqualificariam o nar-
rador, que prefere o sentido mais nobre de indivduo ensimesmado.
Em segundo lugar, no podemos perder de vista que temos aqui uma di-
nmica de esvaziamento de sentido, na medida em que o ttulo da obra
no passa de mera alcunha; alm do mais, deslocada em relao ao sentido
dicionarizado e que, por fim, s se conserva como ttulo na falta de outro
melhor. No haveria, pois, um sentido consistente e positivo para a obra,
indicando um esprito destrutivo em relao ao mundo circundante e ao
prprio eu niilismo.
Em terceiro lugar, se o irnico narrador no guarda rancor do poeta do
trem, a recproca no verdadeira. Este ltimo, ressentido com a indife-
rena do vizinho situao cujas consequncias poderiam no ter ultra-
passado os limites do comboio , acaba por se vingar com a criao da
alcunha, que foi assimilada pelos convivas de Bento e por ele mesmo. E
assim o apelido vai atingir a posio talvez mais destacada que um nome
possa ocupar: o ttulo de um livro632.
Por fim, se Bento Santiago no guardou rancor do poeta do trem, no se
pode dizer o mesmo em relao a Capitu, de quem ele guarda profundo
ressentimento. Mas antes de entrarmos nesse assunto ao qual ser dedi-
cada a ltima seo avaliemos mais detidamente a condio casmurra
do velho memorialista.
Aps explicar o ttulo, no segundo captulo, o narrador esclarece os moti-
vos que lhe pem a pena na mo. Ele conta que um dia, h bastantes anos,
631. CALDWELL. O Otelo brasileiro de Machado de Assis, p. 20-21. Cf. CASMURRO. In: HOUAISS.
Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa 3.0, s. p.
632. GUIMARES. Os leitores de Machado de Assis, p. 216.
284
lembrou-se de reproduzir no Engenho Novo a casa em que foi criado na
antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daque-
la outra, que foi demolida:
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na ve-
lhice a adolescncia. Pois, senhor, no consegui recompor o que foi nem
o que fui. Em tudo, se o rosto igual, a fisionomia diferente. Se s
me faltassem os outros, v; um homem consola-se mais ou menos das
pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna tudo. O que
aqui est , mal comparando, semelhante pintura que se pe na bar-
ba e nos cabelos, e que apenas conserva o hbito externo, como se diz
nas autpsias; o interno no aguenta tinta. Uma certido que me desse
vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os do-
cumentos falsos, mas no a mim. Os amigos que me restam so de data
recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos.
Quanto s amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e
quase todas creem na mocidade. Duas ou trs fariam crer nela aos ou-
tros, mas a lngua que falam obriga muita vez a consultar os dicionrios,
e tal frequncia cansativa.
Entretanto, vida diferente no quer dizer vida pior; outra coisa. A cer-
tos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos
que lhe achei; mas tambm exato que perdeu muito espinho que a fez
molesta, e, de memria, conservo alguma recordao doce e feiticeira.
Em verdade, pouco apareo e menos falo. Distraes raras. O mais do
tempo gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e no durmo mal633.
A citao acima revela um senso de seu prprio vazio e uma precria auto-
compreenso de sua prpria identidade, remetendo ao niilismo enquanto
condio psicolgica. Segundo Nietzsche, esse ocorre quando se reconhece
a nulidade de buscar um sentido em todo acontecer, de buscar uma totalida-
de ou sistematizao dos acontecimentos e, finalmente, com a conscincia
de que com o devir nada atingido, nada alcanado634. Essa compreenso
de que com o devir nada alcanado e que sob todo devir no vige nenhu-
ma grande unidade no consegue atar as duas pontas da vida leva o
285
narrador a condenar o seu passado e buscar como via de escape a criao de
sua autobiografia: convm lembrar que Bento advogado de profisso, ca-
lejado no s em manipular os fatos para provar suas alegaes, ao invs de
buscar a verdade, mas em empregar todo um sistema legal, comodamente
complexo, que pode proporcionar um substituto prpria existncia635.
O narrador, dotado de pulso fisiopsicolgica para a autodesintegrao (fal-
to eu mesmo) e incapaz de aceitar a inexorabilidade do tempo, decide revi-
ver o passado e deitar ao papel as suas reminiscncias, em uma tentativa de
dar sentido ao presente. Por conseguinte, a condio casmurra do narrador
fundamentalmente caracterizada pela sua ruptura com a vida exterior e o
seu distanciamento do devir do tempo, de modo a problematizar a vida ativa
na dimenso temporal, como ocorre com Brs Cubas e Conselheiro Aires:
Maia Neto avalia que, enquanto o tema da finitude nas Memrias pstumas
enfatiza a ao destruidora do tempo (morte miservel dos projetos e das
pessoas), em Dom Casmurro, o problema da finitude deriva de alteraes
de perspectivas que atribuem significados distintos s experincias. A fi-
nitude objetiva das coisas daria lugar finitude subjetiva dos significados:
A distncia que Dom Casmurro verifica entre sua vida atual e a vida
no Andara e na Glria no tanto o resultado de mortes e misrias
286
(fragilidade das coisas do mundo), mas o resultado da inverso radi-
cal de significado ocasionada por sua mudana de perspectiva e pela
sua opinio no fundamentada em razes decisivas, possivel-
mente falsa, possivelmente verdadeira da traio de Capitu637.
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me tam-
bm. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudncia,
filosofia e poltica acudiram-me, mas no me acudiram as foras ne-
cessrias. Depois, pensei em fazer uma Histria dos Subrbios, menos
seca que as memrias do padre Lus Gonalves dos Santos, relativas
cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como pre-
liminares, tudo rido e longo. Foi ento que os bustos pintados nas
paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles no
alcanavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contas-
se alguns. Talvez a narrao me desse a iluso, e as sombras viessem
perpassar ligeiras, como ao poeta, no o do trem, mas o do Fausto: A
vindes outra vez, inquietas sombras...?.
Fiquei to alegre com essa idia, que ainda agora me treme a pena na
mo. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Csar, que me inci-
tas a fazer os meus comentrios, agradeo-vos o conselho, e vou deitar
637. MAIA NETO. O ceticismo na obra de Machado de Assis, p. 138. Grifos originais.
287
ao papel as reminiscncias que me vierem vindo. Deste modo, viverei
o que vivi, e assentarei a mo para alguma obra de maior tomo638.
288
grave do que um cisco no olho: Deus te livre, leitor, de uma idia fixa; antes
um argueiro, antes uma trave no olho641.
Em Genealogia da moral, seis anos aps a publicao de Memrias pstu-
mas, Nietzsche endossava o alerta do defunto autor, ao explicar que o siste-
ma nervoso e intelectual fica hipnotizado por essas ideias fixas, indelveis,
onipresentes e inesquecveis, de tal modo que a pessoa com ideia fixa torna-
-se escrava de seus prprios afetos e de sua crena desptica642.
O cime e o ressentimento, isto , a vontade de Bento de tornar Capitu
culpada, at ser impossvel a expiao, sua vontade de v-la castigada, sem
que o castigo possa jamais equivaler culpa, sua vontade de infectar e en-
venenar todo o fundo das coisas com o problema do castigo e da culpa, o
impede de ter uma viso lcida da realidade. No obstante, como o leitor
familiarizado com a fortuna crtica j sabe, durante seis dcadas os leitores
de Dom Casmurro acreditaram cegamente na verso do narrador, conside-
rando Capitu culpada.
A primeira a defender a inocncia da esposa foi Helen Caldwell, com o j
citado estudo OOtelo brasileiro de Machado de Assis, publicado em 1960
nos Estados Unidos. Aps as leituras de Caldwell, tambm Gledson e Sch-
warz sustentaram que, Em lugar da evocao, do memorialismo emocio-
nado e sincero que pareceria merecer todo o crdito do mundo, surgem o
libelo disfarado contra Capitu e a tortuosa autojustificao de Dom Cas-
murro, que, possudo pelo cime, exilara a famlia643.
A propsito da querela entre os crticos a respeito da culpa ou inocncia de
Capitu, Antonio Candido notou que seja o narrador um paranoico mani-
pulador ou um virtuoso marido trado, o resultado o mesmo: dentro do
universo machadiano, no importa muito que a convico de Bento seja
falsa ou verdadeira, porque a consequncia exatamente a mesma nos dois
casos: imaginria ou real, ela destri a sua casa e a sua vida644. Nesse senti-
do, Bento e Capitu tambm so nufragos da existncia a vida deles rui
por causa do cime.
289
A desconfiana de Santiago em relao a Capitu a urdidura de sua
narrativa645, avalia Caldwell. Tendo isso em vista, outro Santiago, o Silvia-
no, alerta para no cairmos no equvoco da crtica enferrujada que insiste
em analisar Dom Casmurro como um estudo psicolgico do adultrio fe-
minino: se estudo for, antes estudo do cime, e apenas deste646. Conside-
rando que o tema j foi exaustivamente estudado e que est fora de dvida
que Bento escreve a sua histria com a finalidade de condenar Capitu, esta
seo dedicada apenas a avaliar como esse estado emocional que envolve
um sentimento penoso provocado pelo receio de que o ente amado dedique
seu afeto a outrem conduziu o narrador ao ressentimento.
Silviano Santiago avalia que o problema do cime no universo machadiano
advm, por um lado, da concepo que os personagens de seus romances
tm do que sejam o amor e o casamento, e, por outro, dos papis sociais
que homens e mulheres tm de representar para poderem chegar unio
conjugal:
Na mesma sintonia, Gledson avalia que, seja qual for a verdade acerca do
adultrio, podemos considerar que o romance um estudo sobre o cime
de Bento e as condies que o produzem. Tais condies so, com efeito,
idnticas quelas que fizeram com que o casamento se realizasse. A fim
de se casar com Bento, Capitu precisou manipul-lo e domin-lo, proce-
dimento que, invertendo os papis tradicionais do homem e da mulher,
provocou cime e ressentimento no marido:
290
Do ponto de vista psicolgico, Bentinho apenas um menino mima-
do, habituado a que lhe faam as vontades, e possui a incapacidade
da criana mimada para compreender que os outros tm uma exis-
tncia independente da sua, de modo que quando eles afirmam sua
independncia, como natural na ordem das coisas, essa afirmao
lhe parece traio648.
291
das as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um
bater de corao, to violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. H
alguma exagerao nisto; mas o discurso humano assim mes-
mo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se
compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a
audincia aqui no das orelhas, seno da memria, chegaremos
exata verdade. A minha memria ouve ainda agora as pancadas
do corao naquele instante. No esqueas que era a emoo do
primeiro amor. Estive quase a perguntar a Jos Dias que me expli-
casse a alegria de Capitu, o que que ela fazia, se vivia rindo, can-
tando ou pulando, mas retive-me a tempo, e depois outra idia...
Outra idia, no um sentimento cruel e desconhecido, o puro
cime, leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao
repetir comigo as palavras de Jos Dias: Algum peralta da vizi-
nhana. Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia to
nela, dela e para ela, que a interveno de um peralta era como
uma noo sem realidade; nunca me acudiu que havia peraltas
na vizinhana, vria idade e feitio, grandes passeadores das tar-
des. Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitu e to
senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim, um
simples dever de admirao e de inveja. Separados um do outro
pelo espao e pelo destino, o mal aparecia-me agora, no s pos-
svel, mas certo. E a alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela
vivia alegre que j namorava a outro, acompanh-lo-ia com os
olhos na rua, falar-lhe-ia janela, s ave-marias, trocariam flores
e...
E... qu? Sabes o que que trocariam mais; se o no achas por ti
mesmo, escusado ler o resto do captulo e do livro, no achars
mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia.
Mas se o achaste, compreenders que eu, depois de estremecer,
tivesse um mpeto de atirar-me pelo porto fora, descer o resto da
ladeira, correr, chegar casa do Pdua, agarrar Capitu e intimar-
-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos j lhe dera o
peralta da vizinhana. No fiz nada. Os mesmos sonhos que ora
conto no tiveram, naqueles trs ou quatro minutos, esta lgica
de movimentos e pensamentos. Eram soltos, emendados e mal
292
emendados, com o desenho truncado e torto, uma confuso, um
turbilho, que me cegava e ensurdecia650.
293
Mas eu no quero, acudi logo, no quero entrar em seminrios;
no entro, escusado teimarem comigo; no entro.
Capitu, a princpio, no disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em
si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta,
toda parada. Ento eu, para dar fora s afirmaes, comecei a jurar
que no seria padre. Naquele tempo jurava muito e rijo, pela vida e
pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora
da morte se fosse para o seminrio. Capitu no parecia crer nem des-
crer, no parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis cham-la,
sacudi-la, mas faltou-me nimo. Essa criatura que brincara comigo,
que pulara, danara, creio at que dormira comigo, deixava-me ago-
ra com os braos atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a
cara lvida, e rompeu nestas palavras furiosas:
Beata! carola! papa-missas!
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha me, e minha me
dela, que eu no podia entender tamanha exploso. verdade que
tambm gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de
outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a
ameaa da separao; mas os improprios, como entender que lhe
chamasse nomes to feios, e principalmente para deprimir costumes
religiosos, que eram os seus? Que ela tambm ia missa, e trs ou
quatro vezes minha me que a levou, na nossa velha sege. Tambm
lhe dera um rosrio, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis
defend-la, mas Capitu no me deixou, continuou a chamar-lhe
beata e carola, em voz to alta que tive medo fosse ouvida dos pais.
Nunca a vi to irritada como ento; parecia disposta a dizer tudo a
todos. Cerrava os dentes, abanava a cabea... Eu, assustado, no sabia
que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite
declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminrio.
Voc? Voc entra.
No entro.
Voc ver se entra ou no653.
Como se sabe, Capitu estava certa. Bentinho quebrou a promessa e foi para
o seminrio. No satisfeito, ele andava carregado de promessas no cum-
294
pridas: rezar dezenas, centenas e milhares de padre-nossos e ave-marias
(captulos XX e LXVII); prometia esposa uma vida sossegada e bela, na
roa ou fora da cidade (XLIX); prometeu a Deus que no faria mais pro-
messas que no pudesse pagar, e pagaria logo as que fizesse (LXIX); jurou
que nunca mais suspeitaria da infidelidade de Capitu (LXXVI); prometeu
no comprar mais nenhuma joia cara para a esposa, mas foi s por pouco
tempo (CV).
Se promessa dvida, como diz o ditado popular teoricamente funda-
mentado por Nietzsche em Genealogia da moral , necessita-se que o de-
vedor recorde-se de sua obrigao moral. Entretanto, h um momento a
partir do qual a conscincia de ter dvidas identifica-se com a m conscin-
cia moral. A noo de culpa volta-se para trs e, entrelaada m conscin-
cia, corri o interior daquele que se sente culpado:
654. ASSIS. Dom Casmurro, XX, p. 953. Grifo meu. As dvidas espirituais de Bentinho devem ser
estudadas parte, junto ao estudo sobre a promessa de Dona Glria, em pesquisa sobre as dvidas
espirituais dos Santiago.
295
ponto se espiritualizaram com o tempo, que chegam a diluir-se no
prazer. No claro isto, mas nem tudo claro na vida ou nos livros.
A verdade que sinto um gosto particular em referir tal aborreci-
mento, quando certo que ele me lembra outros que no quisera
lembrar por nada655.
296
ressentimento. Rosenfield avalia que no mar de ponderaes do narrador
enciumado no h mais espao nenhum para a ao e a paixo tudo
se torna reao e ressentimento, como possvel observar na maliciosa
e irnica cena da descoberta do amor, que se revela a Bentinho no na
prpria cena do beijo e da graciosa entrega de Capitu, mas na denncia de
Jos Dias. Outrossim, a prosa mostra que no h nada de romntico, belo
ou espontneo no amor de Bento, que permanece uma veleidade frgil,
dbil querer, merc das vontades e das opinies alheias, conduzindo-o
ao cime e ao ressentimento:
Oscilando entre o rancor do mal amado e os els romnticos dos bem ama-
dos, o narrador casmurro suprime a verdade (seja ela qual for), asfixiando
a alma e a ao nos nebulosos fantasmas do ressentimento, afirma Rosen-
field. Assim, revela os traos psicolgicos de sua passividade insupervel.
Tendo em vista que, mesmo um exame cuidadoso dificilmente permitiria
mapear todas as variveis presentes no conceito de ressentimento, deixo
de lado as implicaes psicanalticas desta economia psquica para res-
gatar o conceito filosfico de ressentimento apresentado por Nietzsche
como uma configurao fisiopsicolgica do niilismo. Segundo o filsofo,
o ressentido procura, sem entender sua natureza endgena, uma causa
fora de si para o seu sofrimento, para descarregar contra ela o seu prprio
ressentimento e mitigar a dor atravs de uma intensa reao que julga e
despotencializa a vida.
297
Em suma, Dom Casmurro seria um homem do ressentimento, sujeito re-
fm de seu passado e de suas marcas, vingativo no limite da exausto ou
da doena, desprovido daquela que seria a autntica ao, a afirmativa, lhe
restando somente a reao, que consiste numa espcie de autoenvenena-
mento que o devora por dentro. Impotente quanto ao que foi feito, ele um
irritado espectador de tudo o que passou:
298
Pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofri-
mento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente,
um agente culpado suscetvel de sofrimento em suma, algo vivo,
no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou
in effigie [simbolicamente]: pois a descarga de afeto para o sofredor
a maior tentativa de alvio, de entorpecimento, seu involuntariamente
ansiado narctico para tormentos de qualquer espcie. Unicamen-
te nisto, segundo minha suposio, se h de encontrar a verdadeira
causao fisiolgica do ressentimento, da vingana e quejandos, ou
seja, em um desejo de entorpecimento da dor atravs do afeto663.
Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminu-
to. Quis responder que no, que no queria ver o Manduca, e fiz at
um gesto para fugir. No era medo; noutra ocasio pode ser at que
299
entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia to contente! Ver
um defunto ao voltar de uma namorada... H coisas que se no ajus-
tam nem combinam. A simples notcia era j uma turvao grande.
As minhas idias de ouro perderam todas a cor e o metal para se
trocarem em cinza escura e feia, e no distingui mais nada. [...] No
culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento era
o filho. Mas tambm no me culpem a mim; para mim, a coisa mais
importante era Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem
na mesma tarde, e que a morte de um viesse meter o nariz na vida
do outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o
Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota abor-
recida viria interromper as melodias da minha alma. Por que morrer
exatamente h meia hora? Toda hora apropriada ao bito; morre-se
muito bem s seis ou sete horas da tarde665.
300
meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Eze-
quiel se j tomara caf.
J, papai; vou missa com mame.
Toma outra xcara, meia xcara s.
E papai?
Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xcara, to trmulo que quase a
entornei, mas disposto a faz-la cair pela goela abaixo, caso o sabor
lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o caf estava frio... Mas
no sei que senti que me fez recuar. Pus a xcara em cima da mesa, e
dei por mim a beijar doidamente a cabea do menino.
Papai! papai! exclamava Ezequiel.
No, no, eu no sou teu pai!667.
No houve lepra, mas h febres por todas essas terras humanas, sejam
velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre
tifoide, e foi enterrado nas imediaes de Jerusalm, onde os dois
amigos da universidade lhe levantaram um tmulo com esta inscri-
o, tirada do profeta Ezequiel, em grego: Tu eras perfeito nos teus
caminhos. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho
da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava;
pagaria o triplo para no tornar a v-lo669.
301
Essa passagem mais uma grotesca manifestao do amoralismo e do des-
potismo do menino mimado convertido em casmurro que mostra que a
moral no serve de arrimo para nada e no leva a nada. Mas se esse com-
portamento indica crueldade e niilismo, ainda no a demonstrao da
crueldade voltada para trs670 que se revela na redao da prpria obra
Dom Casmurro.
Bento Santiago escreve motivado por ressentimento, com a sua vontade vol-
tada para trs, pois o ressentimento, antes de ser uma forma de ao proa-
tiva (que tem sua origem nela mesma), uma reao que se produz como
resposta a uma agresso que no pode ser revidada de forma imediata.
O ressentido precisa de outro para existir, o seu inimigo mau, o culpado
pelo seu sofrimento para o niilista, algum deve ser culpado por sua
existncia. Nietzsche, quando descreve a maneira de raciocinar comum aos
ressentidos que desconhecem a verdadeira causa do seu mal-estar, parece
referir-se ao velho Bento Santiago:
302
interiorizado pela ofensa sofrida somam-se inmeras novas injrias reais
e imaginrias e, segundo, porque a prpria vingana pode ser mais bem
calculada e planejada.
Como diz o ditado, a vingana um prato que se come frio. E Bento se-
guiu a lio risca, aguardando o momento mais oportuno para agir ele
esperou a morte de Escobar. Com a morte do amigo, o protagonista des-
considera qualquer lao de amizade. Cegado pelo cime, ao amigo morto
sequer concedido o benefcio da dvida. Sufocado pelo ressentimento, ele
se dedica a destruir todos sua volta, inclusive a si mesmo.
Ao propor a separao, Bento disse a Capitu que cada um iria com a sua
ferida673. Mas, no satisfeito com o afastamento, a crueldade internalizada
do seu ressentimento foi lentamente sublimada na forma da corte judici-
ria, que julgou, condenou e castigou Capitu, pois em matria de culpa a
graduao infinita674.
Insatisfeito com o julgamento sem direito a defesa e com a punio sum-
ria, Bento escreve suas memrias sob o domnio das foras reativas para
defender sua tese ao grande pblico. Depois de persuadir a si, transfor-
mando o possvel em certeza e o verossmil em verdade, ele quer advogar a
favor de si mesmo e persuadir o leitor. Por isso, ele um autor que escreve
e simultaneamente interpreta o texto para os leitores.
Bento ignora que os nicos antdotos para o ressentimento so a reao
imediata e o perdo (remisso da ofensa ou da dvida), fatores que permi-
tem s naturezas fortes e plenas sacudirem para longe de si muitos vermes
que em outros, ao contrrio, se enterrariam675. Ou, ainda, o esquecimento
ativo, capaz de livrar a conscincia das amarras do ressentimento, Pois
sadio quem esquece676. Esquecer, nesse sentido, no equivaleria ao mo-
vimento secundrio e passivo de um bloqueio de memria provocado por
trauma, que levaria a um esquecimento de si. O esquecimento ativo, ao
invs de apagar as marcas j produzidas pela memria, antecipa-se a elas
impedindo qualquer fixao negativa. Esse esquecimento entendido como
derivado de uma fora plstica e modeladora propiciaria a Bento desapren-
der o esprito de vingana contra o tempo e desejar o foi, o e o ser.
303
Justamente por ser um ressentido notrio incapaz de redeno e esque-
cimento o aristocrata escritor revela sua prpria fraqueza. Apresentan-
do-se como um senhor respeitvel, honesto, intelectual e vtima de traio,
ironicamente ele se mostra um sujeito mimado, vaidoso, dissimulado, ciu-
mento e ressentido. Personagem satrico, hipocondraco e autorreflexivo,
Bento tambm afirma ser um homem simples, dado conversao comum,
mas o diz com uma retrica complexa; afirma a veracidade do que diz e,
ao mesmo tempo, distorce as informaes hiperbolicamente; se diz sbrio
e racional, mas com frequncia adota posies desmedidas e irracionais.
Revela, assim, o j mencionado princpio de composio baseado na ironia:
304
9. CONSELHEIRO AIRES E A VIDA COMO UM OFCIO CANSATIVO
O dirio da despedida
Papel, amigo papel, no recolhas tudo o que escrever esta pena vadia.
Querendo servir-me, acabars desservindo-me, porque se acontecer
que eu me v desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que
me lerem depois da missa de stimo dia, ou antes, ou ainda antes do
enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.
No, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da
minha mesa, e foge. A janela aberta te mostrar um pouco de te-
lhado, entre a rua e o cu, e ali ou acol achars descanso. Comigo,
o mais que podes achar esquecimento, que muito, mas no
tudo; primeiro que ele chegue, vir a troa dos malvolos ou sim-
plesmente vadios682.
Aires, que recorrentemente trata o papel como seu interlocutor, insiste que
no tem a inteno de publicar os relatos fracionados do seu cotidiano. O
texto do seu dirio ntimo, instrumento de reflexo sobre si mesmo e seus
amigos, no deveria ter outro leitor a no ser ele mesmo. Nesse sentido, ele
vira o clich do avesso ao apresentar a morte no como empecilho cons-
truo da obra, mas como empecilho sua destruio, eventualidade que a
constituir como pea literria683.
Guimares avalia que a forma de dirio produz a impresso de que tanto o
escritor Machado de Assis quanto o editor M. de A. e o autor Conselheiro
Aires tm pouco controle sobre o desenrolar da histria que subordina-
da ao correr do tempo, ministro da morte. Todas as personagens parecem
colocadas na mesma situao de impotncia diante dos fatos, impossibi-
litadas de saber se as conjeturas e cogitaes do dia sero confirmadas ou
desmentidas pelo dia (ou pela pgina) seguinte. Mas o gnero adotado se
disfara, porque na maioria das vezes o dirio de Aires no registra suas
experincias pessoais, mas sim a dos outros especialmente de Aguiar,
306
Carmo, Fidlia e Tristo. E tambm h dias que no se registram no memo-
rial, que em sentido estrito no poderia ser classificado como dirio:
307
escondida no texto ou semioculta do leitor menos esperto ou desconfia-
do que estaria ali, espera do olhar capaz de reconstru-la:
308
Enquanto o contexto histrico, as semelhanas entre Machado e Aires e as
aventuras dos casais de protagonistas so o foco da maior parte da fortuna
crtica, aqui me interessa avaliar o niilismo como Leitmotiv da prosa de
Aires. Comeo respondendo pergunta: quem esse Aires?
Esse Aires
687. Cf. ALCANTARA FILHO. Histria e poltica no Memorial de Aires, de Machado de Assis, p.
19-20.
688. [...] a respeito da modelo de Carmo, nada confie a ningum. ASSIS. Correspondncia, p. 1417.
689. Cf. SALGUEIRO. Prosa sobre prosa, p. 68-74.
309
No sentido literal comum, Aires remete ao plural de ar, indicando um ser
flexvel, que se adapta a quaisquer condies, caracterstica de seu compor-
tamento diplomtico. No sentido etimolgico, Aires pode ser um vocbulo
proveniente da raiz germnica ar, que significa guia; de um lado, guia
significa, em termos figurados, pessoa notvel, que sobrepuja as demais
pela excelncia de seus dotes intelectuais, de seu talento ou de sua pers-
piccia; de outro, a etimologia da palavra, de origem teutnica, significa o
Senhor, aquele que tem o poder.
No sentido literal por metonmia, costa, rea prxima ao mar, aponta para
a relao que Aires estabelece com o oceano e a viagem martima tema j
sugerido tambm na epgrafe do romance: Em Lixboa, sobre lo mar, Barcas
novas mandey lavrar690. Esta cantiga de Joham Zorro pode ser considerada
a hiptese de Aires sobre a natureza humana: o homem, errata pensante,
constri seu barco em alto-mar, isto , traa o sentido da vida vivendo, de
acordo com o modo como lida com as suas circunstncias.
Marcondes, por sua vez, tambm remete a mar, que refora o sentido l-
dico de Costa, e condes nos reporta ao ttulo de nobreza, que contradiz
o plebesmo de Jos. No sentido literrio intertextual, Marcondes pode
ser lido como uma variao de Marcos, rei que perdeu sua amada Isolda
para o guerreiro Tristo (Aires, como sabido, se interessou pela viva Fi-
dlia que por sua vez se apaixonou por ningum menos que Tristo).
O popular prenome Jos disfararia a singularidade (Aires) e a nobre-
za (Marcondes) do protagonista, alm de fazer referncia a trs figuras: So
Jos, a quem o Papa Pio IX instituiu como padroeiro universal da Igreja
Catlica; Jos, o dcimo primeiro filho do patriarca Jac (que intitula o
romance escrito pelo conselheiro); e Jos, o criado de Aires, sugerindo uma
possvel e inesperada similitude entre os dois.
Salgueiro ainda aponta o sentido sonoro entre os nomes Marcondes Ai-
res desaire, que significa aparncia desalinhada, mal aprumada; de-
selegncia; qualidade do que desajeitado, falta de graciosidade; ato ver-
gonhoso, falta de decoro; vexame, desdouro, descrdito; revs da fortuna;
desgraa, derrota. Para o crtico, desaire indicaria um possvel, e pro-
vvel, carter prfido de Aires, tantas vezes ambguo e confessadamente
manipulador de situaes.
310
Por fim, o autor de Prosa sobre prosa ousa supor um perfeito anagrama, do
tipo palindrmico, espelhado no nome Aires: seria (futuro do pretrito
do verbo ser como metfora de um comportamento prudente). E o fato
de originalmente o nome ser grafado com y, Ayres, no invalida nenhuma
das hipteses levantadas, pois o som de /i/ e de /y/, quando usadas como
semivogais, equivalente:
Esse Aires que a aparece conserva ainda agora algumas das virtu-
des daquele tempo, e quase nenhum vcio. No atribuas tal estado
a qualquer propsito. Nem creias que vai nisto um pouco de home-
311
nagem modstia da pessoa. No, senhor, verdade pura e natural
efeito. Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dois, e talvez por isso
mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata de carreira, chegara
dias antes do Pacfico, com uma licena de seis meses.
No me demoro em descrev-lo. Imagina s que trazia o calo do of-
cio, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasio, a
expresso adequada, tudo to bem distribudo que era um gosto ou-
vi-lo e v-lo. Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar
os primeiros sinais do tempo. Ainda assim o bigode, que era moo
na cor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar
de frescura ao rosto, quando o meio sculo chegasse. O mesmo faria
o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabea
havia um incio de calva. Na botoeira uma flor eterna693.
312
Tudo fugaz neste mundo. Se eu no tivesse os olhos adoentados
dava-me a compor outro Eclesiastes, moderna, posto nada deva
haver moderno depois daquele livro. J dizia ele que nada era novo
debaixo do sol, e se o no era ento, no o foi nem ser nunca mais.
Tudo assim contraditrio e vago tambm697.
Aires viveu mais de trinta anos fora do Brasil, trabalhando como diplomata.
Em janeiro de 1887, j aposentado, voltou definitivamente da Europa e fixou
residncia no Rio de Janeiro. O seu retorno sociedade, na condio de ob-
servador, fundamental na composio do Memorial e na definio de sua
313
relao com os demais personagens: Aires comea onde Dom Casmurro
termina. Sai do retiro em busca de fenmenos atuais700, pondera Maia Neto.
O confronto de Aires com o tempo contrastado simbolicamente pela flor
eterna que carrega como enfeite na lapela de seu palet. Se a flor eterna,
a pena vadia e escreve um dirio rarefeito, inacabado, que no pretende
chegar a nenhum lugar, pois o destino dos papis o fogo.
O conselheiro no deve ser considerado um niilista stricto sensu, mas est
envolto numa atmosfera de niilismo. possvel perceber, no Memorial de
Aires, a j mencionada temporalidade que no cumulativa nem evolutiva,
mas que tudo destri e devora. J no incio do dirio, em registro do dia 10
de janeiro, ele endossa a compreenso do tempo como ministro da morte:
Ora, eu creio que um velho tmulo d melhor impresso do ofcio, se tem
as negruras do tempo, que tudo consome701.
Na prosa de Aires, a marcha progressiva aparece corroda internamente por
um contramovimento destrutivo, de modo que a realizao evolutiva no
tempo aniquilada por uma desrealizao que lhe solidria: Costumes e
instituies, tudo perece702, constata o conselheiro do Imprio. Ora, o pe-
recimento de tudo, o esgotamento dos valores e dos ideais que sustentavam
todas as esferas de atividades humanas, justamente aquilo que caracteriza
o niilismo. Esse perecimento de tudo culmina em um incmodo silncio
no fim da narrativa de Memorial de Aires, numa anotao significativa-
mente intitulada Sem data. Aps a sucesso de perdas relatadas, o diarista
descreve a ltima visita a Aguiar e Carmo. Encontrando a porta do jardim
aberta, ele entra e logo se depara com a comovente cena final:
314
nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e
mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos703.
315
No concordou, o que mostra que ainda ento no me entendeu
completamente705.
316
Aires no pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam al-
guma coisa, e fez um gesto de dois sexos. Como insistissem, no es-
colheu nenhuma das duas opinies, achou outra, mdia, que con-
tentou a ambos os lados, coisa rara em opinies mdias. Sabes que o
destino delas serem desdenhadas. Mas esse Aires Jos da Costa
Marcondes Aires tinha que nas controvrsias uma opinio dbia
ou mdia pode trazer a oportunidade de uma plula, e compunha
as suas de tal jeito, que o enfermo, se no sarava, no morria, e o
mais que fazem plulas. No lhe queiras mal por isso; a droga amarga
engole-se com acar. Aires opinou com pausa, delicadeza, circunl-
quios, limpando o monculo ao leno de seda, pingando as palavras
graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma
lembrana, e achava a lembrana, e arredondava com ela o parecer.
Um dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou
de acordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.
No cuides que no era sincero, era-o. Quando no acertava de ter
a mesma opinio, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava
tambm guardar por escrito as descobertas, observaes, reflexes,
crticas e anedotas, tendo para isso uma srie de cadernos, a que dava
o nome de Memorial707.
317
dois verbos parentes708. Tal postura prpria de um medalho e indigna
de um sbio (cordatus).
Flora disse a Aires que todos atendem aos conselhos dele porque ele teria a
arte de agradar a toda gente, de arrast-la, de influir, de obter o que quises-
se. O diplomata aposentado percebeu que ela exagerava para atra-lo e, ape-
sar de no achar mal, respondeu: Mas eu no dou conselhos a ningum,
acudiu Aires. Conselheiro um ttulo que o imperador me conferiu, por
achar que o merecia, mas no obriga a dar conselhos; a ele mesmo s lhos
darei se mos pedir709. Nesse sentido, ele o conselheiro que no aconse-
lha, calando-se estrategicamente para preservar sua condio de sbio aos
olhos dos outros.
Tendo rompido com a maior parte dos elos que vinculam os indivduos
vida exterior no casado, no tem filhos e no trabalha Aires
ainda est levemente ligado sociedade. Tentando manter-se distanciado
das agitaes e dos divertimentos que distraem os outros personagens, ele
interage socialmente no perodo em que j autor, ocupando a condio
de observador710.
Nessa condio de observador, mantendo uma distncia segura do mundo,
o diplomata aposentado compreende as marcas universais da vanidade do
mundo e das paixes humanas, e as marcas nacionais de uma classe em de-
cadncia e de um mundo em vias de desaparecimento. A oligarquia monr-
quica classe qual o conselheiro do Imprio pertence comea a ceder
o seu lugar oligarquia republicana, mas Aires, consciente da escassez de
mudanas nas relaes entre classes no Brasil, v o futuro repetir o passado
e opta por no optar.
Aires, que, como j foi visto no primeiro captulo, adverte sobre a impossi-
bilidade de apresentar respostas definitivas, indica que toda ao humana
tem vrias explicaes possveis e suas motivaes se do em diversos n-
veis. Em relao ao seu tdio controvrsia, ele explica que pode ser heran-
a de sua formao ou decorrente de sua natureza:
318
[...] eu tive de os ouvir com aquela complacncia, que uma qualida-
de minha, e no das novas. Quase que a trouxe da escola, se no foi
do bero. Contava minha me que eu raro chorava por mama; ape-
nas fazia uma cara feia e implorativa. Na escola no briguei com nin-
gum, ouvia o mestre, ouvia os companheiros, e se alguma vez estes
eram extremados e discutiam, eu fazia da minha alma um compasso,
que abria as pontas aos dois extremos. Eles acabavam esmurrando-
-se e amando-me711.
319
que imiscuir-se em divises sediciosas e belicosas: Como Montaigne nos
Ensaios, Aires julga, mas sem dogmatizar as verdades dos seus juzos714.
Um detalhe que no pode passar despercebido que Aires no o primeiro
idelogo da filosofia do compasso, tampouco o nico narrador machadia-
no a expressar o tdio controvrsia ainda que a frmula, nesses termos,
seja do conselheiro. Como j observou Jean Michel Massa, o jovem Macha-
do de Assis, numa crnica publicada em 15 de setembro de 1862, nO Fu-
turo: peridico literrio, oferece um conselho sua prpria pena, reunindo
e expondo todos os elementos que daro origem ao tdio controvrsia:
320
vena nisso era o visconde de Abaet, de quem se conta que, nos
ltimos anos, quando algum lhe dizia que o achava abatido:
Estou, tenho passado mal respondia ele.
Mas, se vinte passos adiante, encontrava outra pessoa que se alegra-
va com v-lo to rijo e robusto, concordava tambm:
Oh! agora passo perfeitamente.
No se opunha s opinies dos outros; e ganhava com isto duas
vantagens. A primeira era satisfazer a todos, a segunda era no per-
der tempo716.
321
to desenganado718. Essa mortificao da vontade expressa com a pena
da galhofa o ndice de uma experincia, que continuaremos a ver na
prxima seo.
322
Repblica, na formao dos guardies da plis a educao musical sobe-
rana, porque o ritmo e a harmonia tm o poder de penetrar mais fundo na
alma e comov-la fortemente. E tambm porque o jovem estudante apren-
de a elogiar o belo e a condenar com justia as coisas feias, fazendo-se assim
nobre e bom. Os instrumentos musicais autorizados so aqueles cujas so-
noridades so consideradas mais simples e contidas: a lira de Apolo e a cta-
ra, para a cidade, e a siringe (flauta de P), para o campo. A flauta comum,
pelo seu teor entorpecente, foi banida da cidade imaginada por Scrates.
Aps haver dedicado suficiente zelo alma, o mestre de Plato ensina o que
concerne ao corpo. Numa vida regrada e corajosa, a ebriedade, a lassido e
a indolncia seriam inconvenientes. Por isso, a ginstica deve ser praticada
seriamente durante toda a vida, desde a infncia. E a dieta precisa ser re-
grada, com comida sem condimentos e absteno de lcool. A temperana
sexual tambm recomendada, porque o homem deve ser amo de si mes-
mo no que concerne aos prazeres do vinho, do amor e da mesa720. Para
Scrates, o prazer excessivo no concorda com a temperana, que a meta
a ser alcanada. Considerando o amor sensual o maior e mais furioso dos
prazeres, o asceta deve recus-lo em nome do verdadeiro amor, que ama
com sabedoria e medida a ordem e a beleza:
323
escravo do prazer. O amor sem o domnio de si seria o amor das almas
desmesuradas, entregues irracionalidade da paixo. Por conseguinte, o
filsofo de Atenas defende o autodomnio (ascese) como um freio aos ex-
cessos da paixo. O domnio de si corresponde ao amor submetido ordem
e medida, em que o desejo do prazer (instintivo e estranho razo) cede
lugar ao desejo do que melhor (de acordo com critrios racionais).
Nietzsche atribui a Scrates o surgimento da m conscincia humana em
relao aos seus prprios instintos e impulsos, algo completamente desco-
nhecido pelo homem de ao que povoava o mundo homrico (que, como
j visto, compreendia a existncia do mundo como justificada por si mesma
e por isso a louvava e aprovava).
O socratismo, precursor do cristianismo, promoveu a hipertrofia do mun-
do interior, transformando e redirecionando o valor da atividade pulsional.
Posteriormente, a figura de Jesus Cristo representar a atitude asctica da
negao da vontade da vida. A metafsica crist, platonismo para o povo,
passou a operar no sentido moral de desnaturalizao e espiritualizao das
paixes e dos valores, substituindo as noes de bom e ruim, no sentido de
apto e inapto, pelas de bom e mau, no sentido de beato e herege722.
O pessimismo cristo, como tambm j foi discutido aqui, teria sua base
numa reinterpretao dos infortnios da vida como parte dos desgnios
divinos que, mesmo incompreensveis, devem ser aceitos como parte do
mistrio da f. Assim, o cristianismo pretende convencer o homem de que
ele no sofre toa, mas por vontade de Deus.
O ser humano, animal metafsico, no apenas sofre, mas pergunta para
que sofrer?, e assim sofre duplamente, porque exige um sentido para o seu
sofrimento. a progressiva intensificao desta exigncia de um sentido,
de um porqu, de uma finalidade, de uma razo para o sofrimento, que
acaba por gerar o ideal asctico, isto , a fadiga geral de sua vontade de
viver723, o ideal de uma vida de renncia individualidade, sensibili-
dade, sensualidade, afetividade a negao do corpo como cerne da
existncia individual.
No sculo XIX, Arthur Schopenhauer deu novo significado metafsico
ascese, condenando a ideia de Deus como uma falsificao que mascara a
722. Cf. NIETZSCHE. Alm do bem e do mal, prlogo; Genealogia da moral, II, 16-22.
723. NIETZSCHE. Humano, demasiado humano, 140, p. 107.
324
profanidade da existncia, o sem sentido da vida, a ausncia de valores ab-
solutos e a falta de uma ordenao moral do mundo. Sendo falso o sentido
sustentado pela ideia de Deus, existiria algum sentido para a existncia
humana? Nietzsche avalia que Schopenhauer teve o mrito de colocar essa
importante questo, que ainda precisaria de sculos para ser compreendi-
da e respondida:
325
No captulo II, foi avaliado que, para o filsofo de Danzig, a essncia ntima
da natureza humana o querer, cuja base necessidade e carncia, que des-
tinam o homem ao sofrimento que seria o sentido mais prximo e ime-
diato do viver. Se a vontade no garante nenhuma felicidade e, ao contrrio,
mantm ativo o sofrimento do eterno desejante, a sada seria a cesso do
querer, isto , a ascese. O ascetismo via para deixar de querer e liberar-se
do sofrimento que a existncia seria o nico remdio eficiente para a
doena da vida, enquanto que todos os outros seriam meros placebos.
Tambm foi visto que, para Schopenhauer, o ascetismo se desenvolve em
quatro etapas: castidade, pobreza voluntria, aceitao do sofrimento e
mortificao passiva do corpo. Nietzsche, por sua vez, reduz a trs as pala-
vras de pompa do ideal asctico: humildade, pobreza, castidade725.
A primeira etapa do ascetismo a castidade. Segundo Schopenhauer, o
corpo saudvel e forte do asceta exprime o impulso sexual pelos genitais;
porm, ele se mortifica, nega a vontade e desmente o corpo, pois no quer
satisfao sexual alguma, sob nenhuma condio:
326
rente. Nos romances machadianos no encontramos nenhum personagem
que represente esse tipo.
A aceitao do sofrimento e a mortificao do corpo que no pode ser
ativa e violenta, como no suicdio, mas passiva, uma espcie de inanio
so consequncias da pobreza voluntria. O asceta, devoto dedicado a
oraes (ou meditaes), privaes e mortificaes, pratica o jejum, a auto-
punio, o autoflagelo e a castidade, a fim de, por constantes privaes e so-
frimentos, quebrar e mortificar cada vez mais a vontade, que ele reconhece
como a fonte de sofrimento da prpria existncia e do mundo.
Aps descrever o ideal asctico, Schopenhauer conclui que os homens mais
ditosos so os ascetas, aqueles raros que se libertam de si mesmos, isto , de
todo querer, de todos os desejos e preocupaes, no apenas por instantes,
mas para sempre, tendo a sua vontade inteiramente extinguida, exceto na-
quela ltima chama que conserva o corpo e com o qual ser apagada:
Tal homem que, aps muitas lutas amargas contra a prpria natureza,
finalmente a ultrapassou por inteiro, subsiste somente como puro ser
cognoscente, espelho lmpido do mundo. Nada mais o pode angus-
tiar ou excitar, pois ele cortou todos os milhares de laos volitivos
que o amarravam ao mundo, e que nos jogam daqui para acol, em
constante dor, nas mos da cobia, do medo, da inveja, da clera. Ele,
ento, mira calma e sorridentemente a fantasmagoria deste mundo
que antes era capaz de excitar e atormentar o seu nimo, mas agora
paira to indiferente diante de si como as figuras de xadrez aps o fim
do jogo, ou as mscaras cadas ao cho na manh seguinte noite de
carnaval, cujas figuras antes tanto nos haviam intrigado e agitado. A
vida com suas figuras flutuam diante dele semelhante a um fenmeno
fugidio, semelhante ao sonho matinal e ligeiro de um semidesperto
que j entrev a realidade e no pode mais ser enganado; igual ao que
ocorre neste sonho matinal, a vida com suas figuras desaparecem,
sem transio violenta [...] Contudo no se deve imaginar que, desde
a negao da Vontade de vida ter entrado em cena pelo conhecimen-
to tornado quietivo, no haja oscilao, e assim se pode para sempre
permanecer nela como numa propriedade herdada. No, antes a ne-
gao precisa ser renovadamente conquistada por novas lutas. Pois,
visto que o corpo a Vontade mesma apenas na forma da objetida-
de ou como fenmeno do mundo como representao, segue-se que
327
toda a Vontade de vida existe segundo sua possibilidade enquanto o
corpo viver, sempre esforando-se para aparecer na realidade efetiva
e de novo arder em sua plena intensidade. Por isso ao encontrarmos
na vida de homens santos aquela calma e bem-aventurana que des-
crevemos apenas como a florescncia nascida da constante ultrapas-
sagem da Vontade, vemos tambm como o solo onde se d essa flora-
o exatamente a contnua luta com a Vontade de vida: pois sobre a
face da terra ningum pode ter paz duradoura727.
Seria Aires esse tipo ideal que paira to indiferente diante de si e do univer-
so? Seria o seu tdio controvrsia uma tentativa de rompimento com os
milhares de laos volitivos que o amarravam ao mundo? Se for considerado
que, das quatro etapas do ascetismo, Aires s cumpre plenamente a casti-
dade e parcialmente a aceitao do sofrimento, ele no se ajusta exatamente
ao modelo. Porventura tenhamos aqui, mais uma vez, a pena da galhofa
machadiana. Nesse caso, seria o conselheiro do Imprio uma galhofa com
os ascetas?
Antes de arriscar uma resposta a essa questo, vale destacar que Nietzs-
che ainda aponta outra caracterstica do ideal asctico, que se ocultaria
sob a humildade a vaidade. O asceta se empenharia em distinguir-se
da maioria. Esse empenho pelo domnio do outro, mesmo que apenas in-
direto ou sonhado, pode ser compreendido como uma tentativa do asceta
de se imprimir na alma alheia, modificando-a e governando-a conforme a
sua vontade. No aforismo de Aurora intitulado justamente O empenho por
distino, pode-se ler:
Ele sente o mais alto prazer em suportar ele mesmo, como conse-
quncia de seu impulso por distino, aquilo que sua contrapartida
no primeiro degrau da escada, o brbaro, inflige a um outro, no qual
e ante o qual quer se distinguir. O triunfo do asceta sobre si mesmo,
seu olhar que a se volta para dentro, que v o homem cindido em so-
fredor e espectador, e que desde ento olha para o exterior somente
para, digamos, reunir lenha para a sua prpria fogueira, esta ltima
727. SCHOPENHAUER. O mundo como vontade e como representao, IV, 68, p. 495-496.
328
tragdia do impulso por distino, na qual resta apenas uma s pes-
soa a carbonizar-se728.
Asceta gamenho
Repito a pergunta que abre a seo anterior: O que significam ideais as-
cticos? Ou, tomando o caso individual do personagem-narrador Jos da
Costa Marcondes Aires, o que significa afirmar que a vida, mormente nos
329
velhos, um ofcio cansativo730? O que significa render homenagem cas-
tidade em sua velhice? Esta seo uma tentativa de respostas a essas in-
terrogaes.
A vida, que de acordo com a biologia o conjunto de atividades e funes
orgnicas que constituem a qualidade que distingue o corpo vivo do morto,
ou, ainda, o perodo de um ser vivo compreendido entre o nascimento e
a morte, seria uma atividade de trabalho que requer tcnica e habilidade
especficas. E, principalmente para os idosos, seria uma ocupao fatigante,
aborrecida e entediante.
Augusto Meyer avalia que no Memorial h uma indulgncia crepuscular
que torna a obra um livro cinzento, morto, cansativo e tedioso, a tal ponto
que o modo de narrar do velho conselheiro seria bocejado, isto , em tom
de enfado, marcado por sono, cansao ou fastio:
330
sas objetivas claras, um motor das aes humanas. O tdio se aproxima
assim que a necessidade e o sofrimento do algum descanso ao homem:
Tdio.
Nada mais insuportvel para o homem do que estar em pleno re-
pouso, sem paixes, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicao.
Ele sente ento todo o seu nada, seu abandono, sua insuficincia, sua
dependncia, sua impotncia, seu vazio.
Imediatamente nascero do fundo de sua alma o tdio, o negrume, a
tristeza, a mgoa, o despeito, o desespero732.
Pascal avalia que o homem to infeliz que se entediaria mesmo sem ne-
nhum motivo, porque o tdio um pathos intrnseco miservel condio
humana. Aires, compreendendo a vida como um ofcio cansativo e sem
sentido, que oscila entre a dor e o tdio, no projeta o futuro e imerge no
presente. Desse modo, ele esvazia o sentido de toda e qualquer ao huma-
na, fornecendo vida um carter de absurdo e de insignificncia, concluin-
do que a condio humana miservel e sem soluo.
Entediado, Aires cansou at mesmo dos divertimentos oferecidos pelos bri-
lhos dos sales cariocas que tanto seduziram Brs Cubas, Rubio, Palha,
Sofia e outros personagens. Tanto em Esa e Jac quanto no Memorial o
conselheiro considera vaidosa e ftil qualquer tentativa de diverso e, por
isso, pratica a ascese e a solido como uma forma de higiene racional:
331
calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha: Alonguei-me
fugindo e morei na soedade733.
Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, no para descansar, por-
que eu no fao nada, mas para no ver nem ouvir ningum, a no
ser meu criado Jos. Este mesmo, se cumprir, mand-lo-ei Tijuca,
a ver se eu l estou. J acho mais quem me aborrea do que quem me
agrade, e creio que esta proporo no obra dos outros, s minha
exclusivamente. Velhice esfalfa [...] Preciso de me lavar da compa-
nhia dos outros734.
332
Casmurro736. Mesmo assim, Aires no descr no humano nem adota a mi-
santropia. Ele um observador da sociedade, no um desdenhador como
foi Bento: J no sou deste mundo, mas no mau afastar-se a gente da
praia com os olhos na gente que fica737.
Quando o repouso se torna insuportvel pelo tdio que gera, faz-se neces-
srio sair em busca de tumulto. Cansado do cansao, Aires sai do retiro em
busca de fenmenos atuais e, por isso, recorre aos divertimentos, atividades
que visam driblar o tdio na busca de iluses de felicidade, mas que no fim
das contas constituem um tdio constantemente postergado:
333
O principal divertimento de Aires, de acordo com suas pginas de
vadiao739, acompanhar de perto a aventura sentimental de Fidlia e
Tristo; e eis aqui como se chega na principal caracterstica da ascese de
Aires: a renncia vida afetiva, a recusa do amor e suas turbulncias, as-
censes e quedas. O ex-rapaz prefere manter-se distncia, seja para re-
cordar sem amargura as paixes de juventude (associando sua fugacidade
suave ironia com que pensa a instabilidade dos governos)740, seja para dei-
xar-se espera, na estratgica distncia que lhe permita uma digna retirada:
Tempo houve, foi por ocasio da anterior licena, sendo ele ape-
nas secretrio de legao, tempo houve em que tambm ele gostou
de Natividade. No foi propriamente paixo; no era homem dis-
so. Gostou dela, como de outras joias e raridades, mas to depressa
viu que no era aceito, trocou de conversao. No era frouxido
ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas.
A questo para ele que nem as queria fora, nem curava de as
persuadir. No era general para escala vista, nem para assdios de-
morados; contentava-se de simples passeios militares longos ou
breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo. Em suma, extrema-
mente cordato741.
A perspectiva que Aires tem da vida social e do ser humano traz elemen-
tos da antropologia pascaliana. Aes como assdio e paquera que po-
dem ser includos na categoria divertissement, conduzem para o terreno
das sensaes imediatas e, por isso, so recusadas. Mas enquanto Pascal
v como nica sada para o homem a imitao de Cristo, Aires vive num
mundo sem Deus e no tem o arrebatamento mstico do filsofo francs,
mas sim recolhimento e quase descrena em relao ao mundo. Portanto,
aqui talvez seja observvel uma ascese purificada de todo elemento mstico,
expressa na autoabnegao e na mortificao da vontade prpria.
Aires o que faz da vida uma prtica de renncia e conformismo742, pode-
-se afirmar com Costa Lima. No que o conselheiro se ponha como santo, a
334
detestar embustes e enganos, a evitar as racionalizaes interesseiras, mas,
em diversas passagens do Memorial de Aires, sobressaem a melancolia, a
viuvez e a solido, palavras-chave de um discurso caracteristicamente ne-
gador do mundo, hostil vida, descrente dos sentidos, dessensualizado,
automortificador e transmissor de um modo de valorar niilista:
possvel constatar que o ideal asctico que mais preocupou Aires em sua
velhice foi a castidade, com uma galhofeira oposio entre sensualidade e
abstinncia sexual. A ambiguidade que ele desenvolveu vivo sem ter
sido propriamente casado revela um personagem livre dos impulsos
sentimentais dos valores tradicionais, como o amor e o casamento. Nesse
sentido, o autoirnico percurso espiritual de Aires passa por essa liberao
e dominao de si a partir da ascese fsica e mental.
Aires recusa o amor, o mais engenhoso dos artifcios da natureza para pr
em prtica a preservao da espcie, que Schopenhauer considera o mais
importante objetivo da vida humana. Atravs do tema da recusa do amor,
Aires trata o grande drama csmico schopenhaueriano como uma pers-
pectiva a ser galhofada. Exemplar o seu ambguo sentimento por Fidlia:
335
pretos; o resto veio vindo pela noite adiante, at que ela se foi embo-
ra. No era preciso mais para completar uma figura interessante no
gesto e na conversao. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis
o que pensei da pessoa. No pensei logo em prosa, mas em verso, e
um verso justamente de Shelley, que relera dias antes, em casa, como
l ficou dito atrs, e tirado de uma das suas estncias de 1821:
I can give not what men call love.
Assim disse comigo em ingls, mas logo depois repeti em prosa nos-
sa a confisso do poeta, com um fecho da minha composio: Eu
no posso dar o que os homens chamam amor... e pena!.
Essa confisso no me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo
veio tomar-me o brao, segui como se fosse para um jantar de np-
cias. Aguiar deu o brao a Fidlia, e sentou-se entre ela e a mulher.
Escrevo estas indicaes sem outra necessidade mais que a de dizer
que os dois cnjuges, ao p um do outro, ficaram ladeados pela ami-
ga Fidlia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o co-
rao aos dois hiprbole permitida para dizer que em ambos ns,
em mim ao menos, repercuti a felicidade daqueles vinte e cinco anos
de paz e consolao [...].
De noite vieram mais visitas; tocou-se, trs ou quatro pessoas jo-
garam cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquela poro de
homens alegres e de mulheres verdes e maduras, dominando a todas
pelo aspecto particular da velhice de D. Carmo, e pela graa apetito-
sa da mocidade de Fidlia; mas a graa desta trazia ainda a nota da
viuvez recente, alis de dois anos. Shelley continuava a murmurar ao
meu ouvido para que eu repetisse a mim mesmo: I can give not what
men call love.
Quando transmiti esta impresso a Rita, disse ela que eram descul-
pas de mau pagador, isto , que eu, temendo no vencer a resistncia
da moa, dava-me por incapaz de amar744.
336
cy Shelley, citado seis vezes no romance, na sua lngua original. O poema
sem ttulo, identificado como To , foi publicado postumamente no ano
de 1824, em coletnea organizada por Mary Shelley:
I
One word is too often profaned
For me to profane it,
One feeling too falsely disdained
For thee to disdain it;
One hope is too like despair
For prudence to smother,
And pity from thee more dear
Than that from another.
II
I can give not what men call love,
But wilt thou accept not
The worship the heart lifts above
And the Heavens reject not,
The desire of the moth for the star,
Of the night for the morrow,
The devotion to something afar
From the sphere of our sorrow?745
745. SHELLEY. The Complete Poetical Works of Percy Bysshe Shelley, p. 408. Grifos meus.
337
Os olhos que pus na viva Noronha foram de admirao pura, sem
a mnima inteno de outra espcie, como nos primeiros dias deste
ano. Verdade que j ento citava eu o verso de Shelley, mas uma
coisa citar versos, outra crer neles. Eu li h pouco um soneto verda-
deiramente pio de um rapaz sem religio, mas necessitado de agra-
dar a um tio religioso e abastado. Pois ainda que eu no desse ento
toda a f ao poeta ingls, dou-lhe agora, e aqui a dou de novo para
mim. A admirao basta746.
Vou reconhecendo que esta moa vale ainda mais do que me parecia
a princpio. [...] O maior valor dela est, alm da sensao viva e pura
que lhe do as coisas, na concepo e na anlise que sabe achar nelas.
Pode ser que haja nisto, da minha parte, um aumento de realidade,
mas creio que no. Se fosse nos primeiros dias deste ano, eu poderia
dizer que era o pendor de um velho namorado gasto que se compra-
zia em derreter os olhos atravs do papel e da solido, mas no isso;
l vo as ltimas gabolices do temperamento. Agora, quando muito,
s me ficaram as tendncias estticas, e, deste ponto de vista, certo
que a viva ainda me leva os olhos, mas s diante deles. Realmente,
um belo pedao de gente, com uma dose rara de expresso747.
338
No obstante, o gamenho748 sinnimo de malandro, bomio sensual
oscilando entre poder ou no amar, sente uma tendncia natural volio
de todo tipo, porm a refreia intencionalmente, ao compelir a si mesmo a
no fazer nada do que gostaria. Nesse conflito fisiopsicolgico, eis Aires
no final de seu Memorial amando ainda a jovem Fidlia, mesmo que sob a
forma de boas lembranas:
No acabarei esta pgina sem dizer que me passou agora pela fren-
te a figura de Fidlia, tal como a deixei a bordo, mas sem lgrimas.
Sentou-se no canap e ficamos a olhar um para o outro, ela desfeita
em graa, eu desmentindo Shelley com todas as foras sexagen-
rias restantes749.
748. Sou um velho gamenho, afirma Aires em Esa e Jac, XXXII, p. 1116.
749. ASSIS. Memorial de Aires, p. 1332.
750. MARGUTTI. Machado, o brasileiro pirrnico?, p. 200.
751. ASSIS. Memorial de Aires, p. 1240.
339
fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive
para mim. Quando muito o meu relgio de parede, batendo as ho-
ras, parece falar alguma coisa, mas fala tardo, pouco e fnebre. Eu
mesmo, relendo estas ltimas linhas, pareo-me um coveiro752.
Pode-se perceber a figura do ideal asctico como uma disposio vital, isto
, como um tipo de disposio fisiolgica para a conduo da vida: um
afeto marcado pelo cansao da vida, pela doena, pela perda do tnus vital,
averso a barulho e busca de uma obscuridade voluntria num cotidiano
que esconda mais do que exponha. Mas o desenlace da anotao supracita-
da pareo-me um coveiro me leva a perguntar se Aires no seria um
desses artistas ambiciosos que posam de sacerdotes e ascetas e no fundo
no passam de trgicos bufes753.
Aires, como todo asceta, considera indispensvel estar livre de coero,
perturbao, barulho, negcios, deveres e preocupaes. Por isso, anula
em si a prpria voz do desejo e preserva o corao alheio. No obstante,
considerando-se que a descrio acima seria um autorretrato, pode-se afir-
mar que o conselheiro consegue rir de si mesmo, conciliando o srio e o
jocoso, a pena da galhofa e a tinta da melancolia, revelando que no leva a
sua ascese to a srio.
O ascetismo sui generis de Aires porventura possa ser bem expresso numa
figura de linguagem em que se combinam palavras de sentido oposto que
parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto, reforam a expres-
so e encerram um sentido espirituoso: asceta gamenho. Tal oximoro, que
no mero capricho de inovao semntica, mostra-se coerente com as
frequentes ambiguidades gnosiolgica e psicolgica que aparecem na prosa
machadiana.
possvel concluir que a noo conceitual que intitula esta seo provoca
uma inovao ou redescrio do ideal asctico atravs da configurao
de novos campos de significao. Frente referncia habitual do ascetis-
mo, asceta gamenho gera uma nova pertinncia semntica, que se torna
impertinente com respeito aos sentidos tradicionais anteriormente men-
cionados.
752. ASSIS. Memorial de Aires, p. 1287-1288. Grifo meu. Ver tambm: p. 1240-1243.
753. NIETZSCHE. Genealogia da moral, III, 126, p. 145.
340
EPLOGO
342
lhe permitiu abordar o tema do niilismo, at ento indito na fico brasi-
leira. Por um lado, o escritor ousa quebrar os nexos de cumplicidade com
o aparato conceitual da filosofia europeia e abandona a concepo paradig-
mtica e maravilhante de modernidade para fazer visveis as peculiarida-
des da modernidade capenga brasileira. Por outro, as aes e inaes dos
protagonistas de Machado, Brs, Rubio, Palha, Bento, Pedro, Paulo, Flora e
Aires, que se esgaram sem rumo e sem avano efetivo, se prestam ao realce
do fenmeno do niilismo. A literatura machadiana, ao tornar o niilismo
visvel, levanta a possibilidade de no aceit-lo sem resistncia.
A tem o leitor, em poucas linhas, o retrato deste livro. Espero ter des-
tacado a importncia do escritor brasileiro no s para a compreenso
do panorama cultural do Brasil da segunda metade do sculo XIX, mas
tambm para a reflexo de questes centrais da histria da filosofia, como
a modernidade, o pessimismo, a morte de Deus, o niilismo, o ressenti-
mento e os ideais ascticos. Concluo que a prosa machadiana sobre o nii-
lismo original e crtica porque se apropria dos cnones da filosofia e
da literatura com irreverncia, rearranjando elementos preexistentes nas
obras de seus precursores. Por isso, as tradies de estudos literrios e filo-
sficos sobre o niilismo tm muito a conversar, seno mesmo a aprender,
com Machado de Assis.
Tentativa de autocrtica
343
O nmero excessivo de referncias bibliogrficas e notas de rodap me faz
suspeitar da originalidade deste livro. Teria pecado por excesso de citao
e erudio? Serei eu apenas um daqueles eruditos mencionados por Niet-
zsche, que no fundo no fazem seno revirar livros758? Teria eu composto
um retalho repleto de frases e pensamentos de vrios autores? Ou pior, se-
ria esta a obra de um medalho, tal qual apresentado no conto de Macha-
do? Como Robert Burton, digo que laboriosamente coletei este cento de
diversos autores: tomei, mas no roubei759. Sem tratar detalhadamente do
mtodo de composio deste livro, no posso negar que o texto que o leitor
tem em mos est assentado sobre outros textos, entremeado por inme-
ras referncias literrias, filosficas e histricas, abarcando muitos autores,
pocas e temas integrados sob o signo do niilismo.
As presenas, que compem um corpus muito amplo, justificam as omis-
ses. Ainda que o ttulo refira-se ao niilismo na prosa de Machado de As-
sis, este livro no ambicionou dar conta do assunto. A prosa desse escritor
inclui, alm dos romances e crnicas, 76 contos publicados em sete colet-
neas organizadas pelo autor, alm de 114 contos avulsos, publicados espar-
samente em peridicos. Por isso, o estudo do niilismo nos contos demanda
uma nova pesquisa. O mesmo vale para os quatro romances de juventude
Ressurreio (1872), A Mo e a Luva (1874), Helena (1876) e Iai Garcia
(1878) que prenunciam o problema do niilismo a partir do pessimismo
romntico e da crise dos valores senhoriais760.
O niilismo na lrica de Machado de Assis tambm merece um estudo ex-
clusivo. Dentre os quatro livros de poesia publicados pelo autor, Crislidas
(1864), Falenas (1870), Americanas (1875) e Ocidentais (1901), esse ltimo
considerado pelos crticos o mais filosfico. Jos Verssimo, j em 1901 ca-
racterizou os textos do ento novo livro como poesias de pensamento, ou
filosficas761. Mais recentemente, Claudio Murilo Leal avaliou que o poeta
reafirma o seu pessimismo filosfico e a lrica amorosa desaparece e cede
lugar ao poema filosfico ou de carter introspectivo762. Miri Xavier Be-
344
ncio endossa que muitos dos poemas ali apresentados atingem um nvel
altamente filosfico, elevando a poesia de Machado de Assis a um patamar
diretamente proporcional s grandes obras de sua prosa realista763. Embo-
ra os poemas de Ocidentais no nos ofeream uma afirmao inequvoca
a respeito disso, eu levanto a possibilidade de considerar o niilismo como
um problema nevrlgico que regula a meditao potica de ponta a ponta,
tendo em vista seus versos que imputam vida uma capacidade ignota de
destruio764.
Como se pode notar, a partir das consideraes feitas at aqui, a reconsti-
tuio da gnese do niilismo no sculo XIX nos reconduz at a atualidade,
na medida em que essa problemtica ainda nos concerne. possvel, toda-
via, que a maneira oitocentista de pensar o niilismo no d mais conta de
certas tendncias contemporneas. Fica, ento, o convite para um estudo
sobre o niilismo como dominante cultural do sculo XXI.
No que diz respeito reconstruo do dilogo de Machado com a tradio
filosfica, seria necessrio inserir os cnicos e os cticos gregos, Montaigne,
Voltaire, Comte, os socialistas e anarquistas, como Proudhon. Esse interes-
se de compreender a posio funcional dos diferentes autores e perspecti-
vas tericas que Machado convoca no seu trabalho intertextual tambm
demandaria outra pesquisa. Tal investigao deveria deter-se em dois tipos
de presenas: as fundadoras, responsveis por contornos decisivos da pers-
pectiva machadiana, e as que representam apenas recursos de circunstn-
cia, permanecendo exteriores ao seu prprio modo de pensar e compor.
Rogrio Lopes sugere que necessrio um estudo sobre a relao entre ce-
ticismo e niilismo na obra de Nietzsche, pois em alguns momentos de sua
obra ele tende a embaralhar as cartas, mostrando que no estabeleceu uma
linha clara entre os dois fenmenos. Um ponto de partida para esse estudo
da passagem do ceticismo ao niilismo na cultura europeia seria o contex-
to da recepo imediata da filosofia crtica alem, pois ali que o termo
niilismo aparece pela primeira vez como um termo tcnico da filosofia765.
A sugesto vlida para a crtica machadiana, que tambm demanda um
estudo comparado entre o ceticismo e o niilismo.
345
H muito trabalho pela frente. Porm, preciso colocar o ponto final.
Tudo acaba, leitor; um velho trusmo, a que se pode acrescentar que nem
tudo o que dura, dura muito tempo766. Tal foi a concluso de Bento San-
tiago, segundo se l no Dom Casmurro. Tal poder ser a do leitor, se gosta
de concluir.
346
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volume 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
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