Um Mundo Além Do Humano David Abram PDF
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DAVID ABRAM2
RESUMO: A partir de um projeto inicial que visava investigar a relao entre a mgica e a
medicina tradicional conforme praticada pelos xams tradicionais das regies rurais do sul da
sia, o enfoque passou gradativamente para uma ateno negociao que as pessoas da
medicina ou xams estabelecem entre a comunidade humana e a comunidade mais ampla de seres.
Essa ateno ao mundo alm do humano no ocorre em um domnio supernatural acima da
natureza ou dentro da psiqu pessoal do xam, porm o resultado da habilidade especial do xam
de projetar sua conscincia horizontalmente em direo a outras formas de sensibilidade com as
quais a existncia humana est entrelaada. A funo ecolgica do xam consiste em manter um
equilbrio constante entre o que retirado e o que dado de volta para a comunidade mais ampla.
Os espritos das culturas indgenas no so definidos em oposio materialidade, mas so
essencialmente aqueles modos de inteligncia ou ateno que no possuem forma humana. Ao
explorar paisagens diferentes e as inteligncias que nelas vivem, uma nova sensibilidade despertou,
permitindo a comunicao com aquelas inteligncias. Entretanto, o abafamento dessas outras
vozes na cultura ocidental, que reduz o outro a um objeto, produz um mal-estar que dificilmente
percebido a no ser como uma incapacidade de interagir com tudo alm do humano e suas
consequncias na forma do comportamento destrutivo da civilizao.
ABSTRACT: From an initial project to investigate the relationship between magic and traditional
medicine as practiced by shamans in Southern rural Asia, the focus of attention gradually shifted to
an awareness of the negotiation traditional medicine people or shamans exert between the human
1
Traduzido por Pietra Acunha Pereira a partir do original: ABRAM, David. The Spell of the Sensuous:
Perception and Language in a More-Than-Human World. New York: Vintage, 1996. A alterao do nome do
captulo para esta publicao foi feita a pedido do autor. No entanto, chamamos a ateno para a existncia de
uma edio portuguesa do livro publicada em 2007 pela Fundao Calouste Gulbenkian e traduzida por Joo
C. S. Duarte sob o ttulo A magia do sensvel: percepo e linguagem num mundo mais do que humano. O
presente captulo tambm foi traduzido, em junho de 2013, pela biloga e analista ambiental Sandra Michelli
da Costa Gomes com o ttulo original. A traduo encontra-se no link
http://transecoqueer.wordpress.com/2013/06/16/capitulo-1-a-ecologia-da-magica-uma-introducao-pessoal-a-
investigacao/ [Nota da tradutora].
2
Ph.D. em filosofia pela State University of New York at Stony Book, ecologista e escritor freelance. E-mail:
[email protected] .
community and the larger community of beings. This attentiveness to a more-than-human world
does not occur at a supernatural domain above nature or inside her personal self but is the result of
the shamans special ability to project her consciousness horizontally to other forms of sensibility
with which human existence is interwoven. The ecological function of the shaman is to maintain a
constant balance between what is taken and what is given from the human community to the larger
community. The spirits of indigenous cultures are not defined in opposition to materiality but are
essentially those modes of intelligence or awareness that do not possess a human form. By
exploring different landscapes, and the sensibility living in them, a new sensitivity is awoken that
allows for communication with those intelligences. However, the drowning of these other voices in
Western culture, which reduces otherness to an object, creates an uneasiness that is hardly
perceived except as an inability to interact with anything more-than-human and its dire
consequences in the form of civilizations destructive behavior.
3
Este trabalho foi realizado na associao Philadelphia Association, uma comunidade teraputica dirigida
pelo Dr. R. D. Laing e seus associados.
4
Uma simples ilustrao desse fato pode ser encontrada entre vrios povos indgenas dos Estados Unidos,
para quem o termo "medicina" normalmente traduz uma palavra que significa "poder" - em particular o poder
sagrado que um ser humano recebe de um animal ou outra entidade no humana. Assim, uma determinada
pessoa da medicina pode ser famosa por sua "medicina texugo", "medicina urso", pela sua "medicina guia",
"medicina alce" ou, at mesmo, "medicina trovo". pelo seu envolvimento direto com esses poderes no
humanos que as pessoas da medicina obtm suas prprias habilidades, incluindo sua habilidade de curar
doenas.
cima; enquanto assistia, uma delas arrastou o gro para fora da folha,
ento partiu com o gro de volta ao lado da fila de formigas que se dirigia
para a oferenda. A segunda formiga pegou outro gro e desceu com ele,
arrastando e empurrando, e caiu da beirada da folha, ento uma terceira
subiu para dentro da oferenda. A linha de formigas parecia surgir de um
tufo denso de grama na base de uma palmeira prxima. Caminhei at a
outra oferenda e descobri outra fila de formigas levando embora os gros
brancos. Essa fila surgia do topo de um pequeno monte de terra a cerca de
quatro metros das construes. Tambm havia uma oferenda no cho no
canto da minha construo e uma fila quase idntica de formigas. Entrei
em meu quarto rindo comigo mesmo: o balian e sua esposa haviam tido
tanto trabalho para acalmar os espritos da casa com presentes e suas
oferendas foram roubadas por pequenos ladres de seis pernas. Que
desperdcio! Mas um pensamento estranho me ocorreu: e se as formigas
fossem de fato os espritos da casa para quem as oferendas estavam
sendo feitas?
Logo comecei a entender a lgica disso. O complexo familiar, como
muitos outros dessa ilha tropical, havia sido construdo na vizinhana de
vrias colnias de formigas. Uma vez que se cozinhava muito nesse
complexo (que alojava, alm do balian, sua esposa e seus filhos, vrios
membros de sua famlia) e que tambm se preparava as oferendas
elaboradas em formas de comida para vrios rituais e festivais dos vilarejos
ao redor, a rea e as construes do complexo eram vulnerveis a
infestaes por parte da enorme populao de formigas. Tais invases
poderiam variar de um incmodo raro para cercos ocasionais ou at
mesmo peridicos. Ficou claro que as oferendas dirias de folhas de
palmeiras serviam para impedir tal ataque por foras naturais que
cercavam (e ficavam abaixo) da terra da famlia. Os presentes dirios de
arroz mantinham as colnias de formigas ocupadas e, provavelmente,
satisfeitas. Colocadas sempre nos mesmos lugares regulares nos cantos
das vrias estruturas do complexo, as oferendas pareciam estabelecer
certas fronteiras entre as comunidades humanas e de formigas; ao honrar
como proteger seus filhotes, que ele sabe perfeitamente bem como
sobreviver na floresta sem as ferramentas das quais ns dependemos.
Tambm evidente que a mangueira tem a habilidade de gerar frutos ou
que a erva-de-carpinteiro pode baixar a febre de uma criana. Para a
humanidade, esses Outros so portadores de segredos, providos de uma
inteligncia que ns frequentemente precisamos: so esses Outros que
podem nos informar sobre as mudanas fora de poca do tempo ou nos
avisar de erupes e terremotos iminentes, que nos mostram, quando
esto procurando por alimentos, onde podemos encontrar as frutas
silvestres mais maduras ou o melhor caminho de volta para casa. Ao v-los
construrem seus ninhos e abrigos, recolhemos pistas de como fortalecer
nossas habitaes, e suas mortes nos ensinam sobre as nossas.
Recebemos deles incontveis presentes: comida, combustvel, abrigo e
vesturio. No entanto, eles ainda so Outros para ns, habitando suas
prprias culturas e expondo seus prprios rituais, nunca totalmente
compreensveis.
Alm disso, no so somente aquelas entidades reconhecidas pela
civilizao ocidental como vivas, no so somente os outros animais e
plantas que falam, como espritos, para os sentidos de uma cultura oral,
mas tambm o rio sinuoso onde os animais bebem e as chuvas torrenciais
de mono e a pedra que se encaixa perfeitamente na palma da mo. A
montanha, tambm, tem seus pensamentos. Os pssaros da floresta
cantando e conversando enquanto o sol desliza para baixo do horizonte
so rgos vocais da prpria chuva tropical5.
claro que Bali dificilmente pode ser considerada uma cultura
aborgene; a complexidade da arquitetura de seus templos e a sofisticao
5
Para as mentes ocidentais, tais vises podem parecer "projees" temerrias da conscincia humana sobre
materiais inanimados e mudos, que serviriam, talvez, para a poesia, mas que no tm, de fato, nenhuma
relao com as prprias aves e as florestas. Tal a nossa viso comum. Este texto ir examinar a possibilidade
de que a civilizao que sempre foi confusa, e no os povos indgenas. Ir sugerir, e dar evidncia, de que s
podemos perceber um mundo quando nos projetamos nesse mundo, que s estabelecemos contato com as
coisas e os outros quando participamos ativamente deles, lanando nossa imaginao sensorial em direo s
coisas, a fim de descobrir como elas transformam e alteram essa imaginao, como nos refletem de volta
mudados, como so diferentes de ns. Este texto ir sugerir que a percepo sempre participatria, e, por
isso, essa negao moderna de uma conscincia da natureza no humana no nasce de nenhum rigor
conceitual ou cientfico, mas sim de uma inabilidade ou recusa de perceber profundamente outros organismos.
ao cho e depois outro; logo a aranha comeou a balanar entre eles como
numa trelia circular, arrastando sempre um fio crescente que ela afixava a
cada ala lanada, enquanto se movia de um para outro, girando em
espiral para fora. A aranha parecia totalmente destemida com o tumulto
das guas passando por ela, embora de vez em quando ela quebrasse sua
dana em espiral e escalasse para o teto ou para o cho para puxar com
fora os raios para l, assegurando a tenso dos fios, depois escalasse de
volta para onde ela os havia deixado. Sempre que perdia o foco correto,
esperava para ver o aracndeo que girava em espiral e ento deixar sua
forma de danar gradualmente desenhar os contornos da rede trazendo-o
de volta visibilidade, prendendo meu foco em cada novo n de seda
enquanto ele se movia, ondulando, meu olhar fixo dentro de um padro
cada vez mais profundo.
E ento, abruptamente, meu olhar notou uma estranha
incongruncia: outro fio se inclinava atravs da teia, nem irradiando, nem
girando em espiral da conjuntura central, violando a simetria. Enquanto eu
o seguia com os olhos, ponderando seu propsito no padro geral,
comecei a perceber que o fio estava num plano diferente do resto da teia,
pois a teia saa de foco sempre que essa nova linha se tornava mais clara.
Logo vi que ela levava a seu prprio centro, cerca de trinta centmetros
direita da primeira, outro centro de foras de onde vrios fios se esticavam
em direo ao cho e ao teto. E ento vi que havia uma aranha diferente
tecendo essa teia, testando a sua tenso ao danar ao seu redor como a
primeira fazia, agora posicionando o sedoso fio nas tramas ao redor do
ponto nodal e serpenteando para fora. As duas aranhas giravam
independentemente uma da outra, mas para meus olhos elas teciam um
padro cruzado simples e nico. Essa ampliao de minha viso logo
revelou outra aranha girando em espiral na boca da caverna e de repente
percebi que haviam muitas teias sobrepostas, irradiando em ritmos
diferentes dos inumerveis centros colocados algumas mais altas,
algumas mais baixas, algumas minuciosamente mais prximas de meus
olhos, outras mais afastadas entre a pedra de cima e a de baixo.
nos abismos desse mundo que ns habitamos normalmente e foi com eles
que aprendi que meu corpo pode, com a prtica, entrar de forma sensvel
dentro dessas dimenses. O ofcio preciso e minsculo das aranhas afiou e
focou minha conscincia de tal forma que o prprio trabalho de teia do
universo, do qual minha prpria carne fazia parte, parecia estar sendo
tecido por sua arte arcana. J falei das formigas e dos vaga-lumes, cuja
semelhana sensorial com a luz do cu noturno me ensinou a inconstncia
da gravidade. O transe longo e cclico a que chamamos de malria tambm
me foi trazido por insetos, neste caso mosquitos, e vivi por trs semanas
em um estado febril de tremores, suores e alucinaes.
Antes eu raramente havia prestado ateno ao mundo natural. Mas
meu contato com mgicos e videntes tradicionais estava mudando meus
sentidos; tornei-me cada vez mais suscetvel s solicitaes do no
humano. Ao me esforar para decifrar os gestos estranhos dos mgicos ou
ao sondar suas constantes referncias aos poderes no vistos e no
ouvidos, comecei a ver e ouvir de uma maneira que nunca havia feito
antes. Quando um mgico falava de um poder ou uma "presena" no canto
de sua casa, aprendi a perceber o raio de sol que estava entrando naquele
momento por uma fenda no teto, iluminando uma coluna de poeira
suspensa, e a conceber que aquela coluna de luz era de fato um poder,
influenciando as correntes de ar com seu calor e, de fato, influenciando
toda a atmosfera do quarto; apesar de eu no t-la visto conscientemente
antes, ela j estava estruturando minha experincia. Meus ouvidos
passaram a responder, de uma nova maneira, s canes dos pssaros
no mais apenas uma melodia de fundo para a fala humana, mas falas
significativas por si mesmo, respondendo e comentando eventos do
mundo vivo a sua volta. Passei a ser um aprendiz das diferenas sutis: a
maneira como a brisa pode agitar uma nica folha de uma rvore,
deixando as outras folhas quietas e imveis (no teria sido aquela folha,
ento, tocada por uma mgica?); ou a maneira como a intensidade do calor
do sol se expressa no ritmo preciso dos grilos. Andando por trilhas,
aprendi a diminuir meu passo para poder sentir as diferenas entre duas
colinas prximas, ou experienciar a presena de um campo particular num
certo momento do dia, em que, como me foi dito por um dukun local, o
local tinha um poder especial e ofertava dons nicos. Era um poder
comunicado aos meus sentidos pela forma como as sombras das rvores
se apresentavam naquela hora, pelos cheiros que permaneciam na
superfcie das gramas sem serem soprados para longe pelo vento, e outros
elementos que eu s podia identificar depois de parar e escutar por muitos
dias.
E, gradualmente, ento, outros animais comearam a cruzar meus
caminhos, como se a qualidade da minha postura ou o ritmo da minha
respirao tivesse desarmado suas defesas; de repente, encontrava-me
cara a cara com macacos e grandes lagartos que no deslizavam para
longe quando eu falava, mas se inclinavam em minha direo com uma
certa curiosidade. Na parte rural de Java, frequentemente percebia que os
macacos me acompanhavam pelos galhos mais altos e os corvos
caminhavam em minha direo grasnando pela rua. Quando eu estava em
Pangandaran, uma reserva natural numa pennsula na costa sul de Java
("um lugar de muitos espritos", disse-me um pescador local), sa de um
bosque e quando percebi estava face a face com um lindo e raro biso que
existe apenas nessa ilha. Nossos olhos se fixaram uns nos outros. Quando
ele bufou, eu bufei de volta; quando ele trocou de apoio, tambm mudei
minha postura; quando balancei minha cabea, ele balanou a sua em
resposta. Vi-me no meio de uma conversa no verbal com esse Outro, um
dueto gestual em que minha percepo consciente tinha um papel
pequeno. Foi como se meu corpo com sua ao fosse de repente motivado
por uma sabedoria mais antiga que minha mente pensante, como se fosse
guiado e movido por um logos mais profundo que as palavras, ditado pelo
corpo do Outro, pelas rvores e pelas rochas sob nossos ps.
A falta de aptido da Antropologia para perceber a aliana dos
xams com a natureza no humana leva a circunstncias curiosas no
"mundo desenvolvido" de hoje, onde muitas pessoas, em busca de
entendimento espiritual, esto se inscrevendo em workshops relacionados
a mtodos "xamnicos" de descoberta e revelao pessoais. Alguns
psicoterapeutas e mdicos se especializaram em "tcnicas de cura
percebi extasiado que ele estava vindo em minha direo; parei de girar a
moeda e o encarei. Justamente ento o lammergeier parou em seu voo,
imvel por um instante contra o pico, ento, mudou de direo e voou para
junto de seu parceiro no horizonte. Desapontado, peguei a moeda e
comecei a gir-la entre meus dedos novamente, sua superfcie prateada
pegando os raios do sol enquanto girava e os refletindo de volta para o
cu. Instantaneamente, o condor saiu de seu caminho e comeou a planar
de volta fazendo um grande arco. Mais uma vez, assisti seu tamanho
aumentar. medida que o tamanho espetacular do pssaro se tornou
aparente, senti minha pele arrepiar e ficar viva, como um enxame de
abelhas em movimento, e um zumbido tomou conta de meus ouvidos. A
moeda continuava girando entre meus dedos. A criatura ficava cada vez
maior e maior, at que, de repente, estava l uma silhueta imensa
pairando sobre minha cabea, as penas enormes da asa sussurrando
levemente enquanto dominavam a brisa. Meus dedos estavam congelados,
incapazes de se mexer; a moeda caiu da minha mo. E, ento, me senti
desnudado por um olhar infinitamente mais lcido e preciso que o meu.
No sei quanto tempo fiquei paralisado, s sei que sentia o ar passando
pelos meus joelhos nus e ouvia o vento sussurrando entre minhas penas
por muito tempo depois do Visitante ter partido.
Voltei aos Estados Unidos, cuja nica espcie indgena de condor
estava beira da extino, principalmente devido ao envenenamento por
chumbo oriundo de balas presentes na carnia que o pssaro consome.
Mas no pensei nisso. Estava empolgado com as novas sensibilidades que
foram atiadas em mim com minha conscincia recentemente
descoberta de um mundo alm do humano, do imenso potencial da terra e,
especialmente, da inteligncia aguada dos outros animais, grandes e
pequenos, cujas vidas e culturas se entrecruzam com as nossas. Choquei
vizinhos ao conversar com esquilos, que rapidamente desciam dos troncos
de suas rvores e atravessavam o gramado para brincar comigo, ou
olhando por horas a fio uma gara pescando em um esturio das
proximidades ou as gaivotas derrubando mariscos do alto sobre rochas na
praia para abri-los.