Bourdieu - 'O Senso Da Honra' - 'A Cas A Cabilia Ou o Mundo Ao Contrário'
Bourdieu - 'O Senso Da Honra' - 'A Cas A Cabilia Ou o Mundo Ao Contrário'
Bourdieu - 'O Senso Da Honra' - 'A Cas A Cabilia Ou o Mundo Ao Contrário'
textos
DIDTICOS
ENSAIOS SOBRE A
FRICA DO NORTE
MARIZA CORRA (ORG.)
FRANTZ FANON
ERNEST GELLNER
PIERRE BOURDIEU
MRCIO SILVA
IFCH/UNICAMP
n 46 FEVEREIRO de 2002
TEXTOS DIDTICOS
IFCH/UNICAMP
Setor de Publicaes
ISSN: 1676-7055
Setor de Publicaes:
Marilza A. da Silva e Magal Mendes.
Grfica
Sebastio Rovaris, Marcos J. Pereira, Luiz Antonio dos Santos, Marcilio Cesar de
Carvalho e Jos Carlos Diana.
Endereo para correspondncia:
IFCH/UNICAMP
SETOR DE PUBLICAES
Caixa Postal: 6110
CEP: 13083-970 - Campinas - SP
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SOLICITA-SE PERMUTA
EXCHANGE DESIRED
ENSAIOS SOBRE A
FRICA DO NORTE
MARIZA CORRA
Departamento de Antropologia
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Universidade Estadual de Campinas
ORGANIZAO E TRADUO DOS TEXTOS DE
FRANTZ FANON, ERNEST GELLNER E
PIERRE BOURDIEU
MRCIO SILVA
textos Didticos
n 46 Fevereiro de 2002
In memoriam
Ernest Gellner
Pierre Bourdieu
SUMRIO
Mariza Corra
1 Esta breve e geral introduo foi escrita como prlogo discusso feita durante o
primeiro semestre de 1995 no mbito do curso HZ 362-Histria do Pensamento
Antropolgico II, cujo programa de leituras est em apndice. A explicitao com-
pleta de vrias observaes e comentrios s seria possvel num texto muito mais
longo ou durante as discusses desses textos. Se aceitei a sugesto de fazer uma
segunda edio deste nmero dos Textos Didticos, h muito esgotado, foi tambm
porque essas leituras assumiram nova importncia luz dos acontecimentos polti-
cos mundiais no ano de 2001.
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sociedade primitiva trata de algo que no existe e nunca existiu. Uma das
minhas razes para escrever este livro remover a constituio da
sociedade primitiva da agenda da antropologia e da teoria poltica de uma
vez por todas.2
Vrios anos antes, Pierre Bourdieu fizera uma observao semelhante a
respeito da histria da dupla patrilinear-matrilinear, igualmente
atribuindo-a s reconstrues imaginrias de pensadores do sculo
dezenove, concluindo, caracteristicamente:
Dois trechos desse importante ensaio esto traduzidos em Pierre Bourdieu, org. de
Renato Ortiz, na coleo Grandes cientistas sociais, Editora tica, S.P., 1983.
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tudo seguinte matiza a afirmao de A. Kuper de que ele e Fortes no estavam in-
teressados na classificao dos sistemas polticos no tempo e sim no espao.
A.Kuper, Antroplogos e antropologia, Francisco Alves, Rio, 1978, p.106. J em Os
Nuer, seja ao tratar da histria da regio, seja ao tratar da histria dos indivduos,
essa ateno fica clara: A relatividade dos valores que notamos ao discutir os sis-
temas poltico e de linhagem tambm pode ser vista no sistema dos conjuntos etrios.
Observamos que um conjunto que visto como um todo no segmentado pelos
membros dos outros conjuntos internamente segmentado, e que membros de cada
um dos seus segmentos veem a si mesmos como unidades exclusivas em relao aos
outros, embora essas divises estreitem-se medida que o conjunto se torna mais
velho e tenha uma nova posio com relao aos conjuntos posteriormente criados e
que se situam abaixo dele. 1993:264, nfase adicional.
A Lbia tornou-se independente em 1951 e seu primeiro chefe poltico foi o rei Idris,
lider religioso da ordem dos Sanusi.
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14 Ver A. Kuper, captulo 5. Para uma tentativa bem humorada de ordenar um pou-
co o debate que se seguiu, ver David Schneider, Some muddles in the models: or,
how the system really works, em M. Banton (ed.), The relevance of models for social
anthropology, Tavistock, London, 1965. Apesar de dizer que um tipo de socieda-
de, como um todo, o que est em questo, Schneider insiste em definir o modelo, ou
os modelos, como derivados do parentesco.
15 Ver G.Tillion, Le harem et les cousins, Seuil, Paris, 1966, livro no qual a autora
ope o que chama de repblica dos primos repblica dos cunhados, enfatizada
no modelo da aliana de Lvi-Strauss. proposta de Lvi-Strauss, que enfatizava a
necessidade da troca para o estabelecimento da sociedade, Tillion ope a mxima
no trocar, isto , guardar as moas da famlia para os moos da famlia (p.37).
Discutiremos essa contraposio com mais vagar durante o curso, mas veja a insti-
gante retomada do problema por Jack Goody em The development of the family and
marriage in Europe, Cambridge University Press, Londres, 1983, especialmente o
captulo 2.
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re-edio desse trabalho em 1983. A citao que serve de epgrafe a este texto vem
dessa resenha.
18 Veja tambm a introduo de Gellner a Evans-Pritchard, Histria do pensamento
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passado do terceiro mundo, Editora tica, S.P., 1991, cuja apresentao desse
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24C.Geertz, Suq: the bazaar economy in Sefrou, em Geertz e outros, Meaning and
order in Moroccan society, Cambridge, 1979. Veja tambm a resenha de V.
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Gellner dir de um crtico de Ibn Khaldun que ele trata a produo dele
como uma aberrao , o que significaria que o seu trabalho tambm o
relato de algo aberrante, mas tambm mostra, em sua etnografia do Atlas,
que a garganta da serra provida de gua abundante na qual vivem os
profetas uma espcie de anomalia, situada entre os interesses opostos
de grupos nmades e sedentrios, cujo controle pelos profissionais
neutros, os santos, permite seu uso por todos eles. Ironicamente, j que
seu modelo constituiu o chamado casamento rabe numa anomalia, foi o
prprio Lvi-Strauss quem chamou a ateno para a importncia das
anomalias para a antropologia.26
O Magreb, e sua organizao social, pode assim ter sido, durante muito
tempo, visto como anmalo mesmo pelos estudiosos que por ele tinham
simpatia ou interesse de pesquisa anmalo porque situado nas franjas de
um continente que se definia, ou era definido, por sua negritude, primeiro
na literatura, depois na poltica, anmalo porque seus modos de ser
aparentemente no se coaduavam com os modos postulados pela
antropologia tradicional e, enfim, anmalo pela sua pertinncia ao mundo
rabe.27
A teoria das sociedades segmentares, no entanto, no se restringiu a
esse mundo e embora tenha se desviado pelos caminhos das anlises de
parentesco, teve uma vida mais longa e frutfera do que a teoria das
linhagens. Resenhando a questo num breve mas esclarecedor verbete,
Pierre Bonte chama a ateno para uma das idias importantes no
trabalho original de Evans-Pritchard que foi deixada de lado pela
associao de ambas: a idia da relatividade estrutural dos grupos sociais.28
Como veremos, essa mais uma contribuio original de Evans-Pritchard
que estar presente como evocao nos textos de anlise de Bourdieu e
Geertz.
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As sociedades segmentares & a antropologia
29 Agradeo a Suely Kofes por ter me contado que Marcio escrevera um texto sobre
a casa Kabila.
Uma nota de cautela sobre esta apresentao e sobre o nosso programa de dis-
cusso: a vasta bibliografia sobre a frica do Norte provavelmente s comparvel
extenso da ignorncia da antropologia brasileira sobre essa regio. Os textos
aqui selecionados, o foram antes por facilidade de acesso do que por outra razo
ainda que, acredito, expressem razoavelmente o estado da questo na bibliografia
internacional, sendo, alm disso, excelentes exemplos da prosa e do modo de pensar
de antroplogos das trs tradies. Este caderno dedicado aos estudantes da tur-
ma de 1994 do Mestrado de Antropologia Social, aos quais agradeo pela pacincia
que tiveram de primeiro percorrerem comigo essas trilhas pouco conhecidas de nos-
sa histria . E , agora, tambm dedicado aos alunos da turma de 1995 (ver o pro-
grama em anexo), da Graduao em Cincias Sociais, aos quais devo tambm agra-
decer por no me deixarem esquecer dessas questes: minha ignorncia sobre elas,
assim, diminuiu um pouco, mas rediscut-las levaria a um outro texto.
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A ARGLIA SE DESVELA*
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A Arglia se desvela
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A Arglia se desvela
Os homens argelinos, por sua vez, eram objeto da crtica de seus colegas
europeus ou, mais oficialmente, de seus patres. No foi um trabalhador
europeu, no contexto das relaes pessoais do estaleiro, da oficina ou do
escritrio, o encarregado de apresentar ao argelino as questes rituais: Tua
mulher usa vu? Porque no te decides a viver europia? Porque no levar
tua mulher ao cinema, ao jogo, ao caf?
Os patres europeus no se contentam com a atitude interrogativa ou com
o convite circunstancial. Eles empregam manobras escusas para encurralar
o argelino e exigir dele decises penosas. Por ocasio de uma festa, natal ou
ano novo, ou simplesmente de uma comemorao interna, o patro convida o
empregado argelino e sua mulher. O convite no coletivo. Cada argelino
chamado ao escritrio da direo e convocado particularmente a vir com sua
pequena famlia. A empresa sendo uma grande famlia, seria mal visto se
alguns viessem sem suas esposas, voc compreende, no ?... Diante desta
situao, o argelino enfrenta s vezes momentos difceis. Vir com sua mulher
confessar-se vencido, prostituir sua mulher, exibi-la, abandonar um
modo de resistncia. Por outro lado, ir sozinho recusar satisfao ao patro,
possibilitar o desemprego.
O estudo de um exemplo escolhido ao acaso, o desenrolar das emboscadas
utilizadas pelo europeu para obrigar o argelino a se singularizar, a dizer:
Minha mulher usa o vu, ela no vai sair, ou a trair: J que voc a queria
ver, aqui est ela; o carter sdico e perverso dos laos e das relaes,
mostraria de forma resumida, ao nvel psicolgico, a tragdia da situao
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destilado dia a dia por um colonialismo que se instalou com uma perspectiva
de eternidade.
A jovem argelina, cada vez que chamada, estabelece uma relao. Argel
no mais a sua cidade rabe, mas a zona autnoma de Argel, o sistema
nervoso do dispositivo inimigo. Oran, Constantina, ampliam suas dimenses.
Desencadeando a luta, o argelino desata o lao que se fechava em torno das
cidades nativas. De um ponto a outro de Argel, de Ruisseau a Hussein-Dey,
de El-Biar a rua Michelet, a revoluo cria novas relaes. a mulher
argelina, a jovem argelina, que, numa proporo cada vez maior, assumir
essas tarefas.
Portadora de mensagens, de ordens verbais complicadas, s vezes
decoradas por mulheres sem qualquer instruo, tais so algumas das
misses confiadas mulher argelina. Ela deve tambm montar guarda,
durante uma hora ou mais, em frente a casas onde se realizam encontros
entre os dirigentes. No decorrer desses minutos interminveis, em que
preciso evitar ficar parada porque se chama a ateno e evitar afastar-se
muito porque se responsvel pela segurana dos irmos l dentro,
freqentemente ocorrem cenas tragi-cmicas.
Esta jovem argelina sem vu que faz o trottoir freqentemente notada
por jovens que se comportam como todos os jovens do mundo, mas com um
toque especial, conseqncia da idia que habitualmente se tem sobre quem
no usa o vu. Reflexes desagradveis, obscenas, humilhantes. Quando tais
coisas acontecem, preciso apertar os dentes, caminhar alguns metros,
escapar aos passantes que dirigem sua ateno sobre voc e que do a outros
passantes seja a idia de agir como eles, seja a de tomar sua defesa. Ou ento,
com vinte, trinta, quarenta milhes que a mulher argelina se desloca,
levando o dinheiro da revoluo em sua bolsa ou numa maleta, o dinheiro que
servir para cobrir as necessidades das famlias dos prisioneiros ou para
comprar medicamentos e vveres para o maquis.
Este aspecto da revoluo tem sido conduzido pela mulher argelina com
uma constncia, um controle de si e um sucesso inacreditveis. A despeito
das dificuldades internas, subjetivas, e malgrado a incompreenso s vezes
violenta de uma parte da famlia, a argelina assumir todas as tarefas que
lhe foram confiadas.
Progressivamente as coisas se complicam. Os chefes que se locomovem e
que utilizam como mulheres-guias jovens trabalhadoras no so mais
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pelas ruas: Que cada um de ns pegue dez e os enterre e voc ver que o
problema se resolve logo.
E o povo argelino, especialmente nas cidades, v essa jactncia enlamear
sua dor e constata a impunidade desses criminosos que no se escondem.
Podemos perguntar a todos os argelinos, a todas as argelinas de uma cidade o
nome dos torturadores e dos assassinos da regio e obter respostas.
A partir de um certo momento, uma parte da populao admite a dvida
em seu esprito e se pergunta se verdadeiramente possvel resistir
quantitativa e qualitativamente s ofensivas do ocupante.
A liberdade merece que se penetre nesse enorme circuito do terrorismo e
do contra-terrorismo? Tal desproporo no exprime a impossibilidade de
escapar opresso?
Entretanto, outra parte da populao se impacienta e quer parar a
vantagem que o inimigo leva na via do terror. A deciso de atacar
individualmente e nominalmente o adversrio no pode mais ser descartada.
Todos os prisioneiros abatidos ao tentar fugir, os gritos dos supliciados,
exigem que novas formas de combate sejam adotadas.
So visados em primeiro lugar os policiais e os lugares de reunio dos
colonialistas (cafs em Argel, Oran, Constantina). A argelina mergulha
totalmente, desde o incio, e com obstinao, na ao revolucionria. ela que
transporta em sua bolsa as granadas e os revlveres que um fidai recolher
no ltimo minuto, frente ao bar ou quando passe o criminoso designado.
Durante esse perodo, os argelinos apanhados na cidade europia so
impiedosamente interpelados, presos, revistados.
Porisso preciso seguir o caminho paralelo deste homem e desta mulher,
deste casal que leva a morte ao inimigo, a vida revoluo. Um apoiando o
outro, mas aparentemente estranhos um ao outro. Uma transformada
radicalmente em europia, desenvolta e desembaraada, insuspeita, adaptada
ao meio, e o outro, estrangeiro, atento, caminhando para seu destino.
O fidai argelino, ao contrrio dos anarquistas desequilibrados, tornados
clebres pela literatura, no se droga.
O fidai no tem necessidade de ignorar o perigo, de obscurecer sua
conscincia ou de esquecer. O terrorista, desde que aceita uma misso,
deixa a morte entrar em sua alma. com a morte que ele tem um encontro
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deste ento. O fidai tem, ele, um encontro com a revoluo e com sua prpria
vida. O fidai no um sacrificado.
Certamente ele no recua diante da possibilidade de perder a vida pela
independncia da ptria, mas em nenhum momento ele escolhe a morte.
Froger, por exemplo, simboliza uma tradio colonialista e um mtodo
inaugurado em Stif e em Guelma em 1954.36 Alm disso, a pretensa fora de
Froger cristaliza a colonizao e autoriza as esperanas daqueles que
comeavam a duvidar da solidez real do sistema. ao redor de homens como
Froger que se reunem e se encorajam uns aos outros os ladres e assassinos
do povo argelino. Isto, o fidai, e a mulher que o acompanha, a mulher-
arsenal, o sabem.
Portadora de revlveres, de granadas, de centenas de cartes falsos de
identidade ou de bombas, a mulher argelina sem vu evolui como um peixe
na gua ocidental. Os militares, as patrulhas francesas sorriem sua
passagem, derretem-se em cumprimentos sobre seu fsico aqui e ali, mas
ningum suspeita que em suas maletas esto as pistolas-metralhadoras que,
em seguida, destruiro quatro ou cinco membros de uma das patrulhas.
preciso voltar a esta jovem, que ontem tirou o vu, avanando na cidade
europia coberta de policiais, de paraquedistas, de milicianos. Ela no
caminha mais junto aos muros, como tendia a fazer antes da revoluo.
Constantemente chamada a se apagar diante de um membro da sociedade
dominante, a argelina evitava o centro da calada que, em todos os pases do
mundo, pertence de direito aos que mandam.
As espduas da argelina que tirou o vu se endireitam. O passo solto e
planejado: nem muito rpido, nem muito lento. As pernas esto nuas, no
presas num vu, deixadas a seu bel-prazer, e as ancas esto liberadas.
Na sociedade tradicional, o corpo da jovem argelina lhe revelado pela
nubilidade e pelo vu. O vu recobre o corpo e o disciplina, o tempera, no
exato momento em que ele conhece sua fase de maior efervescncia. O vu
protege, d segurana, isola. preciso ter ouvido as confisses de argelinas
ou analisar o material onrico de algumas mulheres que tiraram o vu
recentemente, para apreciar a importncia do vu no corpo vivido da mulher.
Impresso de corpo rasgado, lanado deriva; os membros parecem se
alongar indefinidamente.
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A Arglia se desvela
Quando a argelina precisa atravessar uma rua, durante muito tempo ela
erra no julgamento da distncia exata a percorrer. O corpo desvelado parece
escapar, ir-se aos pedaos. Impresso de estar mal vestida, quer dizer, estar
nua. Impresso intensa de ser incompleta. Uma sensao angustiada de
inacabamento. Uma sensao amedrontadora de desintegrao. A ausncia
do vu altera o esquema corporal da argelina. Ela precisa inventar
rapidamente novas dimenses para seu corpo, novas formas de controle
muscular. Ela precisa criar para si um passo de mulher-desvelada-fora. Ela
precisa quebrar toda timidez, todo mau jeito (porque preciso passar por
europia), evitando ao mesmo tempo a sobranceria, as cores vivas, que
chamam a ateno. A argelina que entra completamente nua na cidade
europia reaprende seu corpo, se reinstala de maneira totalmente
revolucionria. Esta nova dialtica do corpo e do mundo capital no caso da
mulher.37
Mas a argelina no est apenas em conflito com seu corpo. Ela um elo,
s vezes essencial, da mquina revolucionria. Ela carrega armas, conhece
refgios importantes. E em funo de perigos concretos que ela enfrenta
que preciso compreender as vitrias intransponveis que ela teve de vencer
para poder dizer a seu chefe, na volta: misso concluda... R.A.S.38
37A mulher que, antes da revoluo, no saa nunca de casa, a no ser acompanha-
da de sua me ou de seu marido, vai se ver com misses precisas: como ir de Oram
a Constantina ou Argel. Durante vrios dias, inteiramente s, levando mensagens
de importncia capital para a revoluo, ela toma o trem, dorme com uma famlia
desconhecida, com militantes. preciso tambm mover-se de maneira harmoniosa,
j que o inimigo presta ateno aos que fracassam. Mas o importante aqui notar
que o marido no coloca nenhuma dificuldade para deixar sua mulher partir em
misso. Seu orgulho, ao contrrio, ser dizer, na volta do agente de ligao: Voc
v, tudo foi bem em sua ausncia. O velho cime do argelino, sua desconfiana
congnita, sumiram em contato com a revoluo. preciso observar tambm que
militantes procurados refugiavam-se na casa de outros militantes ainda no identi-
ficados pelo ocupante. Nessas condies, durante todo o perodo, a mulher que, a
ss com o refugiado, busca seu alimento, o jornal, o correio. Em nenhum momento,
tambm a, aparece qualquer desconfiana ou temor. Engajados na luta, o marido
ou o pai descobrem novas perspectivas sobre as relaes entre os sexos. O militante
descobre a militante e em conjunto eles criam novas dimenses para a sociedade
argelina.
38 Fazemos aqui uma descrio de atitudes. H todo um outro trabalho a fazer so-
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A Arglia se desvela
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ANEXO39
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SENSO DE HONRA40
Pierre Bourdieu
40Este texto foi publicado com o ttulo The sentiment of honour in Kabyle society,
em Honour and Shame, ed. J. Peristiany, Chicago, The University of Chicago
Press, London, Weidenfeld e Nicholson, 1966.
51
Pierre Bourdieu
opunham a ele. Sem dvida era por isso que ele era tido por um amahbul.
Amahbul o indivduo que no tem vergonha, descarado, que ultrapassa os
limites da convenincia, garantia das boas relaes, quem abusa de um
poder arbitrrio e comete atos contrrios ao que manda a arte de viver. Esses
imahbal (plural de amahbul), so evitados porque ningum gosta de brigar
com eles, j que eles no tem vergonha, e quem os enfrentasse seria a vtima,
mesmo se tivesse razo.
Nosso homem tinha que consertar um muro em sua horta. Seu vizinho
tinha um muro de sustentao. Ele pe o muro abaixo e carrega as pedras
para sua casa. Esse ato arbitrrio no se dirigia, desta vez, contra algum
mais fraco, a vtima tinha, de sobra, meios para se defender. Era um
homem jovem, forte, com muitos irmos e parentes, pertencendo a uma
famlia numerosa e poderosa. Era portanto evidente que se ele no aceitava o
desafio, no era por temor. Por conseguinte, a opinio pblica no podia ver
nesse ato abusivo um verdadeiro desafio que atingisse a honra. Ao contrrio,
a opinio e a vtima fingiram ignor-lo: absurdo, de fato, entrar numa rixa
com um amahbul; no se costuma dizer: fuja do amahbul?
Apesar disso, a vtima procurou o irmo do culpado. Este deu razo ao
queixoso mas se perguntava como fazer o amahbul entender sua razo. Ele
deu a entender a seu interlocutor que tinha feito mal em no reagir com a
mesma violncia no momento, acrescentando: Por quem se toma este
velhaco? O visitante, ento, mudando bruscamente de atitude, indignou-se:
Oh! Si M. por quem me tomas? Achas que eu iria discutir com Si N. por
algumas pedras? Vim te ver, a ti, porque sei que s sbio e que contigo posso
falar, que tu me comprenders, no vim pedir que me paguem as pedras (e a
ele multiplicou os juramentos por todos os santos, deixando claro que jamais
aceitaria uma indenizao). Porque o que Si N. fez, preciso ser um
amahbul para faz-lo e eu, eu no vou tambm passar vergonha
(adhbahadlagh ruhiw41) com um amahbul. Observo apenas que no
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Senso de honra
dessa maneira que se constri uma casa legtima, justa (akham nasah) E
acrescentou, no final da conversa: Quem tiver um amahbul a seu lado,
cuide dele antes que os outros o faam; como quem diz: Ests errado em no
te solidarizares com teu irmo frente a mim, o que estou pedindo que te
entendas com ele e o corrijas na minha ausncia42. (AGHBALA) Para
compreender toda a sutileza dessa discusso, preciso saber que nela se
opunham um homem perfeitamente senhor da dialtica do desafio e da
resposta e um outro que, por ter vivido muito tempo fora de Kabilia,
esquecera o esprito da tradio: ao no ver no incidente seno um furto que
ele podia renegar em nome da justia e do bom senso, sem que as regras de
solidariedade familiar fossem violadas, ele raciocinava em termos de prejuzo:
o muro vale tanto, esta pessoa deve ser indenizada. E seu interlocutor
surpreendeu-se que um homem to instrudo pudesse enganar-se a tal ponto
sobre suas verdadeiras intenes.
Certo ano, numa outra aldeia, um campons foi roubado por seu
administrador. Este ltimo costumava fazer isso, mas, naquele ano,
ultrapassara todos os limites. Depois de esgotadas todas as censuras e
ameaas, levaram o caso assemblia. Os fatos eram conhecidos de todos, era
intil procurar provas e, vendo sua causa perdida, o administrador
rapidamente pediu perdo, de acordo com a tradio, no sem ter recorrido a
todo tipo de argumento: que ele cultivava essa terra h muito tempo, que a
considerava como sua propriedade pessoal, que o proprietrio ausente no
tinha necessidade da colheita, que, por desejo de lhe ser agradvel, ele lhe
dava seus prprios figos, de melhor qualidade, esperando descont-los depois
na quantidade, que ele era pobre, que o proprietrio era rico e rico para dar
aos pobres, etc., todas razes destinadas a adular o proprietrio. Ele
pronunciou a frmula Deus me perdoe que deve, segundo o costume,
encerrar definitivamente a discusso. Mas acrescentou:
mim mesmo) com ele. Chemmeth tem quase o mesmo sentido e os mesmos usos
(ichemmeth iman-is: ele se desonra).
42 Diz o provrbio: Aquele que desnuda seu irmo, desnuda-se a si mesmo. Ele
injuria a si mesmo (isto , seu irmo ou sua famlia), o asno vale mais do que ele.
(Its' ayar imanis, daghyul akhiris).
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Pierre Bourdieu
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Senso de honra
mais para onde ir, vejam, causam d... (e outras razes que permitam salvar
as aparncias). Faamos a paz, esqueamos o passado. Aquele a quem se
vem assim rogar manifesta alguma reticncia, alguma reserva; ou, ento,
atravs de um acordo tcito, uma parte de seu campo endurece, enquanto
outra, para no romper definitivamente, se mostra mais conciliadora. No
meio da discusso os mediadores intervm: eles acusam a parte procurada,
apontam suas falhas, para restabelecer o equilbrio e evitar uma humilhao
total (elbahadla) para quem os procurou. J que s o fato de ter apelado
para os bons ofcios de marabouts, de t-los alimentado e ter vindo com eles,
constitui uma concesso suficiente de sua parte; no se pode ir mais longe na
submisso. Alm disso, os que intercedem estando, por funo, acima das
rivalidades, e gozando de um prestgio capaz de forar o consentimento,
podem permitir-se admoestar aquele que se faz de rogado: Certo, talvez eles
tenham feito mal, mas tu, Si X., tu foste culpado disso.., tu no deverias.., e
hoje deves perdo-lo; vocs se perdoam mutuamente, ns nos incumbiremos
de sancionar a paz concordada, etc. A sabedoria dos notveis os autoriza a
operar esta distribuio de certo e errado.
Mas, no caso, aquele a quem se vinha rogar, por desconhecer a regra do
jogo, no podia compreender essas sutilezas diplomticas. Ele queria
esclarecer tudo e raciocinava em termos de ou isto ... ou aquilo: Como, se
vocs vem me rogar, porque os outros esto errados; a eles que devem
condenar, ao invs de acusarem a mim. A menos que, porque ele vos
alimentou e pagou, vocs venham aqui em sua defesa. Era a injria mais
grave que se podia fazer ao grupo; na lembrana de Kabilia, era a primeira
vez que uma delegao de personagens to venerveis no conseguia obter o
acordo das duas partes e as piores pragas foram rogadas ao refratrio.
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Pierre Bourdieu
43 O bigode, usado como termo descritivo para situar a idade (sua barba aponta,
seu bigode aponta) um smbolo de virilidade, componente essencial do nif; tam-
bm a barba, sobretudo antigamente. Para falar de um grande ultraje, dizia-se:
Ele me raspou a barba (ou o bigode).
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Senso de honra
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Pierre Bourdieu
Djurdura, certa vez, durante uma guerra entre duas tribos, uma delas
contraps negros aos seus adversrios que depuseram as armas. Mas os
vencidos salvaram sua honra, enquanto os vencedores tiveram sua vitria
desonrada. Tambm se diz, s vezes, que para escapar a uma vingana de
sangue (thamgarth, pl., thimagrat) outrora, bastava agregar-se a uma
famlia de negros. Mas era uma conduta to infamante que ningum aceitava
pagar esse preo para salvar sua vida. No entanto, esse era o caso, segundo
uma tradio local, dos aougueiros de Ighil ou Mechedal, os Ath Chabane,
negros que tinham um kabila como ancestral o qual, para escapar
vingana, tornou-se aougueiro e cujos descendentes tiveram de se aliar, por
conseqncia, apenas aos negros. (AIT HICHEM).
As regras de honra regiam tambm os combates. A solidariedade
impunha a todos os indivduos a proteo de um parente contra um no
parente, de um aliado contra um homem de outro partido (suf), um
habitante da aldeia, ainda que de partido adverso, contra um estrangeiro na
aldeia, um membro da tribo contra um membro de uma outra tribo. Mas a
honra proibia, sob pena de infmia, o combate de muitos contra um; tambm
inventava-se, atravs de mil pretextos e artifcios, modos de renovar a rixa,
para poder retom-la por conta prpria. Assim, as menores rixas continham
sempre a ameaa de ampliao. As guerras entre os partidos, essas ligas
polticas e guerreiras que se mobilizavam sempre que um incidente explodia,
j que a honra de todos era atingida atravs da honra de cada um, tomavam
a forma de uma competio ordenada que, longe de ameaar a ordem social,
tendia, ao contrrio, a salvaguard-la, permitindo ao esprito de competio,
ao pundonor, o nif,45 manifestar-se atravs de formas prescritas e
institucionalizadas. O mesmo ocorria nas guerras entre tribos. O combate
tem e no tem porque ter honra. Eram excludos dos negcios pblicos; se podiam
participar de certos trabalhos coletivos, no tinham o direito de tomar a palavra
nas reunies da assemblia; em certos lugares, era proibido at assisti-las. Escutar
os conselhos de um negro, seria cobrir-se de vergonha aos olhos de outras tribos.
Excludos da comunidade ou clientes de grandes famlias, eles exerciam profisses
tidas como vis, eram aougueiros, negociantes de peles ou msicos ambulantes
(AIT HICHEM).
45Nif literalmente nariz, e tambm pundonor, amor-prprio; diz-se tambm, com
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47 Um velho da aldeia Ain Aghbel, na regio de Collo, nos deu recentemente (du-
rante o vero de 1959) uma descrio semelhante em todos os pontos.
48 Souvenirs d'un vieux Kabyle -Lorsqu'on se battait en Kabylie, Bulletin de
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sangue) que durou de 1931 a 1945, na tribo dos Ath Khellili (Ath Zellal). Comeou
assim: dois irmos mataram dois irmos de outra famlia. Para que se acreditasse
que eles tinham sido atacados, um dos dois irmos feriu o outro. Eles foram conde-
nados, um a oito anos de priso, o outro a um pouco menos. Quando o segundo foi
libertado (o mais influente da famlia), ele se voltava a cada passo, vigiava sem
cessar, estava sempre em guarda. Ele foi morto por um assassino de aluguel. Um
terceiro irmo, militar, esmagou a cabea de um membro da outra famlia com uma
pedra. As duas famlias ameaavam exterminar-se mutuamente. J havia oito v-
timas ( entre elas, os quatro mencionados). Os marabouts foram convocados para
tentar apaziguar o conflito. Eles tinham esgotado as palavras de apaziguamento e o
terceiro irmo, o militar, continuava decidido a manter e prolongar a luta. Foi pedi-
da a mediao de um notvel de uma tribo vizinha que tinha sido cado e que era
unanimemente respeitado. Este foi procurar o recalcitrante e lhe fez um sermo.
Tua cabea est no delu (funil que leva o gro at a m); em seguida, tua cabea
vai passar pela m. O moo teve uma crise e ofereceu sua cabea. Pediram a ele
que dissesse solenemente que estava de acordo em por fim ao extermnio. Pronun-
ciou-se a fatiha. Em presena de toda a aldeia, um boi foi imolado. O jovem militar
ofereceu dinheiro aos marabouts. E o cuscuz foi comido em comum. (Relato de um
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52 Conforme o primeiro relato, no incio do texto. Diz-se que uma famlia est per-
dida se no tem pelo menos um bobo. O homem honrado no pode condescender
em aceitar as injrias de um indivduo indigno e, no estando ao abrigo de suas
ofensas, sobretudo na cidade, preciso que ele possa jogar um bobo contra outro
bobo.
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Senso de honra
Basta para isso adotar uma atitude de humildade que, enfatizando sua
fraqueza, explicite o carter arbitrrio, abusivo e desmesurado da ofensa. Ele
evoca assim, mais inconsciente do que conscientemente, o segundo corolrio
do princpio da igualdade na honra que diz que aquele que ofende um
indivduo incapaz de responder ao desafio se desonra a si mesmo.53
Evidentemente, esta estratgia s admissvel quando no haja qualquer
dvida, aos olhos do grupo, sobre a disparidade entre os antagonistas; ela
comum entre os indivduos reconhecidos pela sociedade como fracos, os
clientes (yadh itsumuthen, os que se apoiam em) ou os membros de uma
famlia pequena (ita'fanen, os magros, os fracos) (AGHBALA).
Seja, finalmente, o caso no qual o ofensor inferior ao ofendido. Este pode
responder, transgredindo o terceiro corolrio do princpio da igualdade na
honra; mas se abusa de sua vantagem, expe-se a recolher para si a desonra
que normalmente recairia sobre o ofensor desconsiderado e inconsciente,
sobre o indivduo desprezado (amahqur) e presunoso. A sabedoria o
aconselha a abster-se de qualquer resposta e de dar o que chamaramos de
ar de desprezo.54 Como se diz, ele deve deix-lo latir at cansar e recusar-
se a competir com ele. A ausncia de resposta no podendo ser imputada
covardia ou fraqueza, a desonra recai sobre o ofensor presunoso.
Ainda que pudssemos ilustrar cada um dos casos que foram examinados
atravs de um grande nmero de observaes ou de narrativas, permanece o
fato de que, comumente, as diferenas no so assim to ntidas, de tal modo
que, frente opinio, juiz e cmplice, cada um pode jogar com as
ambigidades e os equvocos de conduta: assim, sendo comumente nfima a
distncia entre a no resposta inspirada pelo medo e a recusa em responder
como sinal de desprezo, o desdm pode sempre servir de mscara
pusilanimidade. Mas cada kabila um mestre na casustica e o tribunal da
opinio sempre pode intervir.
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Ausncia de resposta
Desonra
Atentado ao amor Resposta como desafio
Desafio prprio (momento ativo)
Recusa a responder
Desonra virtual Desprezo
Escolha 1 Escolha 2
Ausncia de contra-dom
Desonra
Dom Amor-prprio Contra-dom
questionado (momento ativo)
Desonra virtual Recusa de contra-dom
(momento passivo) Desprezo
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come seu bigode; ele esquece seus ancestrais, o respeito que lhes deve e o
respeito que se deve para ser digno deles (LES ISSERS). O homem
desprovido de respeito por si (mabla el ardh, mabla lahya, mabla erya,
mabla elhachma) aquele que deixa transparecer seu eu ntimo, com seus
afetos e suas fraquezas. O sbio, ao contrrio, quem sabe guardar o segredo,
que d provas a cada instante de prudncia e discrio (amesrur,
amaharuz nessar, que guarda ciosamente o segredo). A vigilncia perptua
de si indispensvel para obedecer a este preceito fundamental da moral
social que probe a singularizao, que exige a abolio, tanto quanto possvel,
da personalidade profunda, em sua unidade e particularidade, sob um vu de
discrio e pudor. S o diabo (Chitan) diz eu; s o diabo comea por ele
mesmo; a assemblia (thajma'th) a assemblia, s o judeu sozinho. Em
todos esses ditados exprime-se o mesmo imperativo, que impe a negao do
eu ntimo e que se realiza to bem na abnegao da solidariedade e da ajuda
mtua, quanto na discrio e no pudor do decoro. Por oposio, aquele que,
incapaz de se mostrar altura de si mesmo, manifesta impacincia ou clera,
fala a torto e a direito ou ri de maneira desconsiderada, precipita-se ou agita-
se desordenadamente, se apressa sem refletir, se irrita, grita, vocifera
(elhamaq), em suma, abandona-se ao primeiro movimento, no fiel a si
mesmo, no corresponde imagem de dignidade, de distino e de pudor,
virtudes que tem todas, em uma palavra, elhachma, o homem de honra
define-se essencialmente pela fidelidade a si mesmo, pelo cuidado em ser
digno de uma certa imagem ideal de si. Ponderado, prudente, contido na sua
linguagem, ele sempre avalia os prs e os contras (amiyaz, por oposio
aferfer, aquele que volteia, o homem leve, ou achettah, o que dana), ele
compromete francamente sua palavra e no foge s responsabilidades
atravs de um wissen, talvez, quem sabe?, resposta que convm s
mulheres e apenas s mulheres. Ele aquele que tem palavra e que mantm
a palavra, aquele de quem se diz um homem e uma palavra (argaz,
d'wawal) (EL KALAA). O pundonor o fundamento da moral prpria a um
indivduo que se percebe sempre sob o olhar dos outros, que tem necessidade
dos outros para existir, j que a imagem que ele forma de si mesmo no
deveria ser diferente da imagem de si que lhe remetida pelos outros. Diz o
provrbio: O homem ( homem) para os homens; (s) Deus ( Deus) para si
mesmo (Argaz sirgazen, Rabbi imanis). O homem honrado (a'ardhi)
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exlio
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da, extremamente lbil. Essar designa tambm a graa de uma mulher ou de uma
jovem.
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60 Eis aqui, segundo um velho kabila dos Aith'idel, que o recebeu de seu pai, o re-
trato do homem de honra, retrato em todos os aspectos idntico ao que me fez um
membro da tribo dos Issers, o que sugere que se trata de um personagem mtico e
exemplar cuja aventura cada vez situada num ambiente familiar: Era uma vez
um homem que se chamava Belkacen ou Aissa e que, apesar de sua pobreza, era
respeitado por sua sabedoria e sua virtude. Seu prestgio se estendia sobre vrias
tribos. Cada vez que sobrevinha uma desavena ou um combate, ele servia de me-
diador e apaziguava o conflito. Os Ben Ali Chrif, grande famlia da regio, tinham
cimes de sua influncia e de seu prestgio, mais ainda porque ele se recusava a
lhes prestar homenagem. Um dia, os membros da tribo decidiram tentar reconcili-
los. Convidam ao mesmo tempo o mais velho dos Ben Ali Chrif e Belkacem ou Ais-
sa. Quando este entra, o velho, j sentado, diz ironicamente: Que bonitos so teus
arkasen (plural de arkas, sapatos rsticos de trabalhador)! Belkacen respondeu:
O costume manda que os homens olhem os homens de frente, no rosto, e no para
seus ps. o rosto, a honra do homem, que conta. Aos estranhos que lhe pergun-
tavam como ele adquirira sua influncia na regio, Belkacem respondia: Ganhei
primeiro o respeito de minha mulher, depois de meus filhos, depois de meus irmos
e de meus parentes, depois de meu bairro, depois de minha aldeia; o resto s se
seguiu.
61 nessa lgica que se entende a reprovao que cerca o celibatrio. Assim, i-
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62 Essa bipartio, que aparece, de fato, como uma das categorias fundamentais do
pensamento kabila e, especialmente, do sistema mtico-ritual, fornece os postulados
fundamentais (natureza impura da mulher, por exemplo) a partir dos quais o sis-
tema de valores desenvolve sua lgica prpria. Devemos nos contentar aqui em
relembrar as significaes cujo conhecimento indispensvel para compreender o
sistema de valores que elas fundam.
63 Antigamente, em algumas regies da Grande Kabilia, a thajma'th (assemblia)
obrigava os homens da tribo, sob pena de punio, a comprarem um fuzil para de-
fenderem a sua e a honra do grupo. Aquele que no o fazia, apesar da penalidade,
era posto no ndice, desprezado por todos e considerado como uma mulher.
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entre o espao feminino, a casa e sua horta, lugar por excelncia de haram,65
espao fechado, secreto, protegido, ao abrigo das intruses e dos olhares, e
espao masculino, thajma'th, lugar da assemblia, da mesquita, do caf, dos
campos ou do mercado.66 De um lado, o segredo da intimidade, velado pelo
pudor, de outro, o espao aberto das relaes sociais, da vida poltica e
religiosa; de um lado, a vida dos sentidos e dos sentimentos, do outro, a vida
das relaes de homem a homem, do dilogo e das trocas. Enquanto que no
mundo urbano, onde o espao masculino e o espao feminino interferem um
com o outro, o recolhimento e o vu asseguram a proteo da intimidade, na
aldeia kabila, onde o uso do vu tradicionalmente desconhecido67, os dois
espaos so nitidamente separados; o caminho que leva fonte evita o
domnio dos homens: o mais comum que cada cl (thakharruth ou
adhrum) tenha a sua fonte prpria, situada em seu bairro ou perto dali, de
modo que as mulheres podem ir at l sem arriscar serem vistas por um
homem estranho ao grupo68 (AIT HICHEM); quando isso no ocorre, a funo
apenas no caso do xeque da mesquita da aldeia (ao qual a aldeia assegurava, entre
outros servios, a proviso de madeira e a manuteno do thanayamts, encarrega-
do do transporte de gua), de algumas famlias de santos que no habitassem um
azib (isto , um tipo de povoado isolado) e de alguns chefes de famlias importantes
que distinguiam uma das mulheres da casa (geralmente a mais jovem de suas es-
posas), fazendo-a thanahdjabth.
68 Cada linhagem, mesmo no nvel mais baixo, constitui-se numa unidade social
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Senso de honra
que cabe num certo local a uma oposio espacial atribuda a um ritmo
temporal e as mulheres vo fonte durante certas horas, quando cai a noite,
por exemplo, e mal visto que um homem v espi-las. A fonte para as
mulheres o que thajma'th para os homens: l que elas trocam as
novidades e mantm suas conversas que tratam essencialmente de todos os
casos ntimos sobre os quais os homens no poderiam falar entre eles sem
desonra e dos quais eles s so informados por seu intermdio.
O lugar dos homens fora, nos campos ou na assemblia, entre homens:
algo que se ensina muito cedo ao menino. Suspeita-se daquele que permanece
muito tempo em casa durante o dia. O homem respeitvel deve se deixar ver,
mostrar-se, colocar-se sem cessar sob os olhares dos outros, fazer frente
(qabel). Da o dito que as mulheres repetem e pelo qual do a entender que o
homem ignora muito do que se passa na casa: Homens, pobres coitados, todo
dia nos campos como burro no pasto! (AIT HICHEM). O imperativo principal
velar todo o domnio da intimidade: as desavenas internas, os fracassos e
as insuficincias no devem, nunca, ser exibidas frente a um estranho ao
grupo. Tantas coletividades encaixadas, tantas zonas de segredo
concntricas: a casa a primeira ilha de segredo no seio do sub-cl ou do cl;
este no seio da aldeia, ela mesma fechada em seus segredos em relao a
outras aldeias. Nessa lgica, natural que a moral da mulher, no corao
desse mundo fechado, seja constituda essencialmente de imperativos
negativos. Teu tmulo tua casa, diz o ditado. A mulher deve fidelidade a
seu marido; sua casa deve ser bem cuidada; ela deve zelar pela boa educao
dos filhos. Mas, sobretudo, ela deve preservar o segredo da intimidade
familiar; ela no deve nunca rebaixar seu marido ou faz-lo passar vergonha
(mesmo que tenha todas as razes e todas as provas), nem na intimidade,
nem frente a estranhos; isso o obrigaria a repudi-la. Ela deve mostrar-se
satisfeita ainda que, por exemplo, seu marido muito pobre no traga nada do
mercado; ela no deve se meter nas discusses entre os homens. Ela deve
79
Pierre Bourdieu
confiar em seu marido, evitar duvidar dele ou procurar provas contra ele.
(EL KALAA). Em resumo, a mulher sendo sempre filha de Fulano ou
esposa de Sicrano, sua honra reduz-se honra do grupo de agnados ao qual
estiver vinculada. Ela deve tambm zelar para no alterar em nada, por sua
conduta, o prestgio e a reputao do grupo.69 Ela a guardi do essar.
DENTRO FORA
Domnio feminino Domnio masculino
casa, horta assemblia, mesquita, campos, mercado
mundo fechado e secreto mundo aberto da vida pblica,
da vida ntima: de atividades sociais e polticas
alimentao, sexualidade trocas
NATUREZA CULTURA
mido, gua, etc. Seco, fogo, etc.
O homem, por seu lado, deve antes de tudo, proteger e velar o segredo de
sua casa e de sua intimidade. A intimidade em primeiro lugar a esposa que
jamais se nomeia assim e menos ainda por seu prenome, mas sempre atravs
de perfrases, como a filha de fulano, a me de meus filhos ou, ainda,
minha casa. Em casa, o marido jamais se dirige a ela na presena de outros;
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Senso de honra
ele a chama com um sinal, com um resmungo ou pelo nome de sua filha mais
velha e no demonstra nunca sua afeio, especialmente na presena de seu
prprio pai ou de seu irmo mais velho. Pronunciar em pblico o nome de sua
mulher seria uma desonra: conta-se com freqncia que os homens que iam
registrar um recm nascido no cartrio recusavam-se obstinadamente a dar o
nome da esposa; do mesmo modo, os jovens alunos que davam sem
dificuldade o nome de seu pai, evitavam dar o nome de sua me, temendo
sem dvida tornar-se vulnerveis injria (chamar algum pelo nome da
me acus-lo de bastardo) e at ao malefcio (sabe-se que, nas prticas
mgicas, sempre o nome da me que utilizado). A boa educao manda
que nunca se fale a um homem de sua mulher ou de sua irm: porque a
mulher uma dessas coisas vergonhosas (os rabes dizem, lamra'ara, a
mulher a vergonha) que no se nomeiam sem pedir desculpas e
acrescentando hachak, com todo respeito.
tambm porque a mulher para o homem a coisa mais sagrada, como
testemunham as expresses do costume nos juramentos: Que minha mulher
me seja ilcita (thahram ethmattuthiw), ou, ainda: que minha casa me
seja ilcita (ihram ukhamiw), se eu no fizer tal ou qual coisa.
A intimidade tudo o que do mbito da natureza, o corpo e suas
funes orgnicas, o eu e seus sentimentos ou afeies: todas coisas que a
honra manda velar. Qualquer aluso a esses temas, em particular prpria
vida sexual, no apenas proibida mas quase inconcebvel. Durante muitos
dias antes e depois de seu casamento, o jovem se refugia numa espcie de
retiro, para evitar achar-se em presena de seu pai, o que causaria a ambos
um incmodo insuportvel. Do mesmo modo, a jovem que atinge a puberdade
aperta seus seios com uma espcie de colete duplo abotoado; alm disso, em
presena de seu pai e de seus irmos mais velhos, ela fica com os braos
cruzados sobre o peito.70 (AZEROU n-CHMINI). Um homem no saberia falar
de uma jovem ou de uma mulher estranha famlia com seu pai ou seu irmo
mais velho; portanto, quando o pai quer consultar o filho sobre seu casamento,
ele se utiliza de um parente ou de um amigo que serve de intermedirio. Evita-
se entrar num caf onde j se encontrem seu pai ou seu irmo mais velho (e
70O tabu da nudez absoluto, mesmo nas relaes sexuais. Sabe-se, por outro lado, que
a desonra descrita como nudez (ele me desnudou, ele me tirou a roupa, ele me esfo-
lou).
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Pierre Bourdieu
inversamente) e com mais razo ainda, evita-se ouvir com eles algum desses
cantores ambulantes que recitam poemas picantes.
Tampouco deve-se falar em comida. Nunca se deseja bom apetite a
algum, mas apenas a saciedade. A polidez manda que o dono da casa insista
sem parar que seu convidado sirva-se de novo, ao passo que este deve comer o
mais discretamente possvel. Comer na rua indecente e impudico. Quando
algum almoa no mercado, se retira para um canto afastado. Quando se
carrega a comida, ela dissimulada num saco ou no albornoz. Durante a
prpria refeio, a nfase no colocada sobre o fato de se estar comendo,
mas de comer em comum, de partilhar o po e o sal, smbolos de aliana. Um
pudor extremo preside tambm a expresso de sentimentos, sempre
extremamente discreta e reservada e isso mesmo no seio da famlia, entre
marido e mulher, entre pais e filhos. Hachma (ou lahya), pudor que domina
todas as relaes, mesmo em famlia, essencialmente a proteo de haram,
do sagrado e do secreto (essar). Quem fala de si mesmo indecoroso ou
fanfarro; no sabe se submeter ao anonimato do grupo, preceito essencial de
boas maneiras que pede que se empregue o ns como forma de polidez ou
que se fale no modo impessoal, deixando que o contexto mostre que se trata
de si.
Outros princpios correlatos das oposies fundamentais regem a diviso
de trabalho entre os sexos, e, mais precisamente, a diviso entre homens e
mulheres de condutas tidas por honrosas e desonrosas. De modo geral, so
consideradas desonrosas para um homem a maior parte das tarefas que
cabem s mulheres, em razo da diviso mtico-ritual dos seres, das coisas e
das aes. Os berberes de Chenoua no podem tocar em ovos ou em galinhas
na presena de pessoas estranhas famlia. proibido transport-los ao
mercado para venda, trabalho de crianas ou de mulheres. uma ofensa
perguntar a um Achenwi se ele tem ovos para vender. Os homens podem
degolar galinhas e comer ovos, mas apenas em famlia.71 Os mesmos
costumes, mais ou menos alterados, so encontrados na Kabilia. Do mesmo
modo, a mulher pode montar uma mula se seu marido a puxar pelo brido;
montar um asno, ao contrrio, vergonhoso. As moas que desonravam suas
famlias eram s vezes passeadas em pblico montadas sobre um asno. Outro
71Cf. E. Laoust, tude sur le dialecte berbre du Chenoua compar aavec celui des
Beni Menacer et des Beni Salah, Paris, Leroux, 1912, p. 15.
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Senso de honra
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Pierre Bourdieu
pode ser direita, s pode ser endireitada pela proteo benfica do homem.72
Sem pretender analisar aqui a lgica objetiva das trocas matrimoniais, pode-
se pelo menos observar que as normas que as regem e as racionalizaes
freqentemente utilizadas para justificar a forma ideal, o casamento com a
prima paralela, formulada numa linguagem estruturada de acordo com as
categorias mtico-rituais. O desejo de salvaguardar a pureza do sangue e
conservar inalterada a honra familiar a razo mais freqentemente
invocada para justificar o casamento com a prima paralela. De um jovem que
casou com sua prima paralela, diz-se: ele a protegeu, ele fez com que o
segredo da intimidade familiar fosse salvo. Ouve-se com freqncia dizer que
aquele que se casa na prpria famlia tem assegurado que sua mulher se
esforar para salvaguardar a honra de seu marido, que ela guardar o
segredo dos conflitos familiares e no ir se queixar a seus parentes. Uma
mulher estranha na famlia te desprezar. Ela achar que de uma famlia
mais nobre que a tua. Tua prima, ao contrrio, que tem o mesmo av paterno
que tu, no poder maldizer teus ancestrais. (AIN AGHBEL) O casamento
com uma estranha temido como uma intruso; ele cria uma brecha na
barreira de protees de que se cerca a intimidade familiar; diz-se: Mais vale
proteger seu nif do que entreg-lo aos outros.
O etos da honra
72Um provrbio rabe diz: A dignidade da jovem s existe enquanto ela est com
seu pai.
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73 Cf. A Picard, Textes berbres dans le parler des Irjen ( Kabylie, Algrie, 1961), que
retoma por sua conta essa etimologia.
74 A histria coletiva ou individual expressa o movimento incessante atravs do
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Pierre Bourdieu
(Ajuda os teus, estejam certos ou errados), e, por outro lado, as regras que
valem nas relaes com estranhos. Esta dualidade de atitudes decorre
logicamente do princpio fundamental, estabelecido antes, segundo o qual as
condutas honradas se impem apenas em relao queles dignos delas. O
respeito s injunes do grupo fundamenta-se no respeito a si mesmo, isto ,
no sentimento de honra. Mais do que um tribunal, no sentido de organismo
especializado, encarregado de pronunciar decises de acordo com um sistema
de normas jurdicas racionais e explcitas, a assemblia do cl ou da aldeia
de fato um conselho de arbitragem ou at um conselho de famlia.
A opinio coletiva a lei, o tribunal e o agente de execuo da sano. A
thajma'th, na qual todas as famlias so representadas, encarna a opinio
pblica que ela sonda e cujos sentimentos e valores exprime, da toda sua
fora moral. O castigo mais temido ser posto no ndice ou o banimento: os
que so assim atingidos so excludos da partilha coletiva de carne, da
assemblia e de todas as atividades coletivas, em resumo, condenados a uma
espcie de morte simblica. O qanun, conjunto de costumes prprios a cada
aldeia, consiste essencialmente na enumerao de faltas especficas, seguidas
das penas correspondentes. Assim, por exemplo, o qanun de Agouni-n-
Tesellent, aldeia da tribo dos Ath Akbil, num conjunto de 249 artigos, tem
219 leis repressivas (no sentido de Durkheim), isto , 88%, contra 25 leis
restitutivas, isto , 10%, e apenas cinco artigos mencionando os
fundamentos do sistema poltico. A regra costumeira, fruto de uma
jurisprudncia diretamente aplicada ao particular e no da aplicao ao
particular de uma regra universal, pr-existe sua formulao; de fato, o
fundamento da justia no um cdigo formal, racional e explcito, mas o
senso de honra e de equidade. O essencial permanece implcito porque no
discutido e indiscutvel; o essencial, isto , o conjunto de valores e de
princpios que a comunidade afirma pela sua prpria existncia e que
fundamenta os atos da jurisprudncia. Montesquieu dizia: O que a honra
probe, mais proibido quando as leis no o probem; o que ela prescreve,
ainda mais exigido quando as leis no o exigem.
As relaes econmicas no so primeiramente vistas e constitudas como
tais enquanto tais, isto , como regidas pela lei do lucro, e permanecem
sempre como que dissimuladas sob o vu das relaes de prestgio e de honra.
Tudo se passa como se esta sociedade se recusasse a encarar de frente a
realidade econmica, a v-la como regida por leis diferentes daquelas que
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Senso de honra
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A CASA
OU O MUNDO S AVESSAS76
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A casa ou o mundo s avessas
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Pierre Bourdieu
fuzil
manjedoura
2 3
2 tear
2 moinho 3
Estbulo
thaddukant 4
thigejdith
kanun
thigejdith
1 addukan
cntaros
3
manjedoura 3
arado 5 bas
soleira
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A casa ou o mundo s avessas
manda deitar-se primeiro sobre o lado direito e depois sobre o lado esquerdo, j que
a primeira posio a do morto no tmulo. Os cantos fnebres representam o t-
mulo, a casa sob a terra, como uma casa invertida (branco/escuro, alto/baixo, de-
corado com pinturas/grosseiramente escavado), explorando de passagem tal homo-
nmia associada a uma analogia de forma. Encontrei pessoas cavando uma sepul-
tura/ Com sua enxada construam as paredes/ E a faziam bancos (thiddukanin)
/Com um cimento pior que a lama, diz um canto de velrio (Cf. H. Genevoix, cit., p.
27). Thaddukant (pl. thiddukanin) designa o banco encostado na parede de se-
parao, oposta ao que se apia na parede lateral (addukan), e tambm o banco de
terra sobre o qual repousa a cabea do homem no tmulo (a ligeira escavao sobre
a qual repousa a cabea da mulher chamada de thakwath, como os pequenos
nichos escavados nas paredes, que servem para guardar objetos pequenos).
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A casa ou o mundo s avessas
87 Quando entra pela primeira vez no estbulo, a nova parelha de bois recebida e
conduzida pela dona da casa.
88 Tanto o casamento como a construo da casa, que sempre ocorre por ocasio do
95
Pierre Bourdieu
terem sido chamados do alto da mesquita como para um enterro. Espera-se da par-
ticipao no transporte das vigas, ato piedoso, sempre realizado sem contrapartida,
tanta hassana (mrito) quanto a advinda da participao nas atividades coletivas
ligadas aos funerais (cavar o tmulo, extrair as pedras ou transport-las, ajudar a
levar o caixo ou assistir ao enterro).
89 M. Dewulder, Peintures murales et pratiques magiques dans la tribu des
ano agrrio, entre a estao mida e a estao seca, o pastor vai buscar gua muito
cedo de manh e asperge a viga central; durante a colheita, o ltimo feixe, cortado
de acordo com um ritual especial (ou uma espiga dupla), pendurado ali, para l
ficar durante o ano todo.
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A casa ou o mundo s avessas
votos de que ele seja a viga mestra da casa e quando ele termina o
ritual do jejum pela primeira vez, sua primeira refeio feita no
telhado, isto , sobre a viga central (para que ele possa, diz-se,
transportar vigas).
Vrias adivinhaes e ditados identificam explicitamente a mulher ao
pilar central: a mulher o pilar central. Para a recm casada se diz:
que Deus faa de ti o pilar solidamente plantado no meio da casa. Uma
adivinhao : ela fica em p e no tem ps. Forquilha aberta para o
alto e no apoiada sobre seus ps, ela a natureza feminina, fecunda, ou
melhor, fecundvel.91 Contra o pilar central que so amontoados os
odres cheios de gros de hiji e que consumado o casamento.92 Assim,
resumo simblico da casa, a unio de asalas e de thigejdith, que
estende sua proteo fecundante sobre todo o casamento humano, de
certa maneira o casamento primordial, casamento de ancestrais que
tambm, como a lavoura, o casamento do cu e da terra. A mulher, so
as fundaes, o homem a viga central, diz um outro provrbio. Asalas,
que uma adivinhao define como nascido na terra e enterrado no cu,
fecunda thigejdith, plantada na terra, lugar dos ancestrais, senhores de
toda fecundidade, e aberta em direo ao cu.93
A casa se organiza, assim, conforme um conjunto de oposies
homlogas: fogo : gua :: cozido : cru :: alto : baixo :: luz : sombra :: dia :
noite :: masculino : feminino :: nif : hurma :: fecundante : fecundvel ::
91 Da recm casada que se adapta bem nova casa, diz-se tha'mmar, isto , entre
outros sentidos (cf. a nota 30), ela plena e ela enche.
92 Entre os berberes de Aurs, a consumao do casamento se d na segunda-feira,
97
Pierre Bourdieu
94 Sabe-se que o hspede envia dona da casa uma soma em dinheiro que se chama
a vista: isso ocorre no apenas quando se convidado pela primeira vez a uma
casa, mas tambm quando, no terceiro dia aps o casamento, se visita a famlia da
esposa.
95 Para dar a entender que os homens ignoram muito do que se passa na casa, a
mulheres dizem: Os homens, pobres coitados, todo dia no campo como mula no
pasto.
96 A dualidade de ritmos ligados diviso entre a estao seca e a estao mida se
manifesta, entre outras coisas, na ordem domstica; a oposio entre a parte baixa
e a parte alta da casa toma, no vero, a forma de oposio entre a casa propriamen-
te dita, onde as mulheres e as crianas se retiram para dormir, e onde so guarda-
98
A casa ou o mundo s avessas
entre os planos das duas construes: enquanto a casa se abre pela porta da facha-
da, a casa da assemblia se apresenta como uma longa passagem coberta, total-
mente aberta dos dois lados, que se atravessa de ponta a ponta.
99
Pierre Bourdieu
100
A casa ou o mundo s avessas
dvida uma das mais simples e mais potentes que um sistema mtico-
ritual pode utilizar, j que ela no pode opor sem, ao mesmo tempo, unir,
sendo capaz de integrar numa ordem nica um nmero infinito de dados,
pela simples aplicao indefinidamente reiterada do mesmo princpio de
diviso. Segue-se, tambm, que cada uma das partes da casa (e, do
mesmo modo, cada um dos objetos ai guardados e cada uma das
atividades a realizadas) , de certa maneira, qualificada em dois graus,
seja primeiramente como feminina (noturna, obscura, etc.) enquanto
participa do universo da casa e secundariamente como masculina ou
feminina como integrante de uma ou outra das divises desse universo.
Assim, por exemplo, quando o provrbio diz o homem a lmpada de
fora, a mulher a lmpada de dentro, deve-se entender que o homem a
verdadeira luz, a do dia, e a mulher a luz da obscuridade, a obscura
claridade; e tambm sabemos que ela est para a lua assim como o
homem est para o sol. Do mesmo modo, atravs do trabalho com a l, a
mulher produz a proteo benfica da tecelagem, cuja brancura simboliza
a felicidade,101 o tear, instrumento por excelncia da atividade feminina,
posto de frente para o leste, como o arado, seu homlogo, ao mesmo
tempo o leste do espao interior, de modo que, no interior do sistema da
casa, h um valor masculino como smbolo de proteo. Do mesmo modo o
fogo, umbigo da casa (ela prpria identificada ao ventre materno), onde
dormita a brasa, fogo secreto, dissimulado, feminino, domnio da
mulher, investida de toda autoridade no que diz respeito cozinha e
gesto das reservas;102 perto do fogo que ela faz suas refeies,
enquanto que o homem, voltado para fora, come no meio da sala ou no
ptio. Apesar disso, em todos os ritos nos quais intervm, o fogo e as
pedras que o cercam derivam sua eficcia mgica da participao da
ordem do fogo, do seco e do calor solar, 103 seja no caso de proteo do
101 Os dias brancos designam os dias felizes. Uma das funes dos ritos de casa-
mento tornar a mulher branca (asperso de leite, etc.).
102 O ferreiro o homem que, como a mulher, passa todo seu dia no interior, perto
do fogo.
103 O fogo o centro de um certo nmero de ritos e objetos interditos que o tornam
o oposto da parte obscura. Por exemplo, proibido tocar nas cinzas durante a noite;
cuspir no fogo, deixar cair gua ou lacrimejar sobre ele (Maunier). Do mesmo mo-
do, os ritos destinados a mudar o tempo, fundados numa inverso, utilizam a oposi-
101
Pierre Bourdieu
o entre a parte seca e a parte mida da casa: por exemplo, para passar do mido
ao seco, coloca-se um pente de cardar a l (objeto fabricado pelo fogo e associado
tecelagem) e uma brasa ardente sobre a soleira durante a noite; inversamente, pa-
ra passar do seco ao mido, asperge-se com gua os pentes de cardar, sobre a solei-
ra, durante a noite.
104 A aldeia tambm tem sua hurma, que todo visitante deve respeitar. Assim co-
mo deve-se tirar os sapatos para entrar numa casa ou numa mesquita, deve-se des-
cer da montaria quando se entra num aldeia.
102
A casa ou o mundo s avessas
105 'Ammar, isto , tratando-se de uma mulher, ser boa despenseira e dona de casa;
tambm fundar um lar e ser plena. A 'ammar ope-se aquele de quem se diz ik-
hla, homem gastador, mas tambm estril e isolado, ou ainda enger, celibatrio e
estril, isto , resumindo, selvagem, incapaz, como o chacal, de fundar uma casa.
106 V-se, tambm aqui, que o sistema de valores morais tira seus princpios fun-
103
Pierre Bourdieu
fora, o ventre que, como a terra, acolhe a semente que o homem a faz
penetrar e, inversamente, de contrariar a ao de todas as foras
centrfugas, capazes de desapropriar a casa do depsito que lhe foi
confiado. Assim, por exemplo, proibido dar fogo no dia do nascimento de
uma criana ou de um vitelo ou, ainda, na poca das primeiras
semeaduras,107 depois de batido o trigo, ningum deve sair de casa e a
mulher traz de volta todos os objetos emprestados; o leite dos trs dias
seguintes quele em que a vaca deu cria no deve sair da casa; a recm
casada no pode cruzar a soleira antes do stimo dia depois do
casamento; a parturiente no deve deixar a casa antes de quarenta dias;
o beb no deve sair antes do Aid Seghir, o moinho manual nunca deve
ser emprestado e deix-lo vazio atrair a fome para casa; no se deve
levar para fora o tecido antes de estar completo; proibido emprestar
fogo e proibido varrer, ato de expulso, durante os quatro primeiros
dias de semeadura; a sada do morto facilitada, de modo que ele no
leve com ele a prosperidade,108 as primeiras sadas, por exemplo, da
vaca, quatro dias depois de dar cria, ou do seu leite, so marcadas por
sacrifcios.109 O vazio pode resultar de um ato de expulso; pode
tambm introduzir-se com alguns objetos como o arado, que no pode
entrar na casa entre duas jornadas de cultivo da terra, ou os sapatos do
trabalhador (arkassen), associados lakhla, ao espao vazio, ou a
algumas pessoas, como as velhas, porque elas trazem consigo a
104
A casa ou o mundo s avessas
110s vezes tambm se deposita, no vaso que receber o leite, uma pedra que o jo-
vem pastor recolheu quando ouviu o cuco cantar pela primeira vez e que colocou
sobre sua cabea. Tambm ocorre que se tire leite atravs do anel da enxada ou que
se atire um pouco de terra no vaso.
105
Pierre Bourdieu
ainda est sentada sobre o burro que a trouxe da casa de seu pai, recebe
gua, gros de trigo, figos, nozes, ovos cozidos ou empanados, todas coisas
(sejam quais forem as variantes locais) associadas fecundidade
feminina e da terra, e ela as atira em direo casa, fazendo-se assim, de
certa forma, preceder pela fecundidade e a plenitude que deve trazer
casa.111 Ela cruza a soleira nas costas de um parente do marido, ou s
vezes, segundo Maunier, nas costas de um negro (em qualquer caso,
nunca nas costas do marido) e este, se interpondo, intercepta as foras do
mal, capazes de afetar sua fecundidade da qual a soleira, ponto de
encontro entre dois mundos opostos, a sede: uma mulher nunca deve
sentar-se na soleira com seu filho no colo; a criana pequena e a recm
casada no devem pisar nela com freqncia.
Assim, a mulher, atravs de quem a fecundidade chega casa,
contribui com sua parte para a fecundidade do mundo agrrio: votada ao
mundo de dentro, ela age tambm fora, assegurando a plenitude interna
ao controlar, a ttulo de guardi da soleira, essas trocas sem
contrapartida que apenas a lgica da magia pode conceber e atravs das
quais cada uma das partes do universo espera receber da outra a
plenitude apenas pela oferta do vazio.112
Mas um ou outro dos dois sistemas de oposio que definem a casa, seja
em sua organizao interna, seja em sua relao com o mundo exterior,
ocupar o primeiro plano conforme consideremos a casa do ponto de vista
masculino ou do ponto de vista feminino: enquanto que para o homem a
casa menos um lugar onde se entra do que um lugar de onde se sai, a
mulher no pode deixar de atribuir a esses dois deslocamentos e s
diferentes definies da casa, que so solidrias, uma importncia e uma
significao inversas, j que o movimento em direo ao exterior consiste
antes de tudo, para ela, em atos de expulso e que o movimento em direo
ao interior, isto , da soleira em direo ao fogo o que propriamente lhe
cabe. V-se muito bem o significado do movimento em direo ao exterior
106
A casa ou o mundo s avessas
no rito que a me cumpre, sete dias depois de dar luz, para que seu filho
seja corajoso: passando a perna sobre a soleira, ela pe o p direito sobre o
pente de cardar e simula uma luta com o primeiro menino que encontra. A
sada o movimento propriamente masculino, que leva em direo aos
outros homens, e portanto em direo aos perigos e s provas aos quais
importante fazer frente, como um homem, to spero como as pontas do
pente de cardar, quando se trata da honra.113 Sair, ou mais exatamente,
abrir (fatah) eqivale a estar na manh (sebah). O homem que se d o
respeito deve sair da casa logo que o dia desponta, a manh sendo o dia do
dia e a sada de casa, pela manh, um nascimento: da a importncia das
coisas que se encontra e que auguram todo o dia, de modo que melhor, em
caso de um mau encontro (com o ferreiro, com uma mulher carregando um
odre vazio, com gritos ou brigas, com um ser disforme), refazer sua
manh ou sua sada.
Percebemos logo a importncia atribuda orientao da casa: a
fachada da casa principal, a que abriga o chefe de famlia e que tem o
estbulo, quase sempre orientada na direo do leste, a porta principal
por oposio porta estreita e baixa, reservada s mulheres, que se
abre sobre o jardim nos fundos da casa comumente chamada a porta
do leste (thabburth tchacherqith), ou porta da rua, porta do alto, porta
grande.114 Dada a exposio das aldeias e a posio inferior do estbulo, a
parte alta da casa, com o fogo, fica ao norte, o estbulo ao sul e a parede
do tear a oeste. Segue-se que o movimento feito por algum que se dirige
casa para entrar, orienta-se do leste para o oeste, por oposio ao
movimento que se faz para sair, de acordo com a orientao por
113 Enquanto que a menina, quando nasce, envolvida num leno de seda, macio e
flexvel, o menino enrolado em panos duros e speros que servem para abrigar os
feixes da colheita.
114 claro que uma orientao inversa (que se percebe observando o plano da casa
numa transparncia) possvel, ainda que seja rara. Diz-se explicitamente que
tudo o que vem do oeste traz m sorte e uma porta voltada para esta direo s
pode receber obscuridade e esterilidade. De fato, se o plano inverso ao plano ideal
raro, , primeiro, porque as casas secundrias, que so dispostas em ngulo reto
em torno do ptio, so freqentemente simples quartos de estar, sem cozinha e sem
estbulo, e o ptio freqentemente fechado, do lado oposto fachada da casa
principal, pelos fundos da casa vizinha, ela prpria com a frente voltada para o les-
te.
107
Pierre Bourdieu
115 Sabe-se que os dois suffs, ligas polticas e guerreiras que se mobilizavam quan-
do um incidente explodia (e que tinham relaes variveis, desde a superposio
dissociao completa com as unidades sociais fundadas sobre o parentesco) eram
nomeados suff do alto (ufella) e suff de baixo (buadda), ou suff da direita (aya-
fus), e suff da esquerda (azelmaddh), ou ainda, suff do leste (acherqi) e suff do
oeste (aghurbi), este ltimo nome, menos usual, conservado para designar os
campos dos jogos rituais (de onde os combates tradicionais entre os suffs tiravam a
sua lgica) e sobrevivem atualmente no vocabulrio dos jogos infantis.
116 Lembramos que do lado do tear, parte nobre da casa, que o dono da casa rece-
108
A casa ou o mundo s avessas
117 preciso portanto juntar os quatro pontos cardeais e as quatro estaes srie
de oposies e de homologias apresentadas acima (a pertinncia e a adequao des-
ses significados ao sistema mtico-ritual em seu conjunto sendo passveis de de-
monstrao):... cultura : natureza :: leste : oeste :: sul : norte :: primavera : outono ::
vero : inverno.
118
Tentaremos mostrar em outro lugar as implicaes tericas do fato de que as
regras de transformao que permitem passar de um espao a outro possam ser
vinculadas aos movimentos do corpo.
119 Em certas regies da Kabilia, a recm casada e um jovem circuncidado (por
aos ritos destinados a determinar uma inverso do curso das coisas, ao operar uma
inverso das oposies fundamentais, aos ritos que se destinam a obter chuva ou
bom tempo, por exemplo, ou aqueles que so realizados na soleira entre dois pero-
dos (por exemplo, a noite precedente a En-nayer, primeiro dia do ano solar, quando
amuletos so enterrados na soleira da porta).
109
Pierre Bourdieu
OESTE
leste seco
primavera
esquerda outono
mido oeste
LESTE
110
A casa ou o mundo s avessas
atentos.
125 Tambm no espao interno as duas partes opostas so hierarquizadas. Alm dos
indicadores j citados, est o ditado: Melhor uma casa cheia de homens que uma
casa cheia de bens (el mal), isto , de gado.
111
Pierre Bourdieu
Paris, 1963-1964
112
SAINTS OF THE ATLAS*
CAPTULO DOIS: O PROBLEMA
Ernest Gellner
O problema colocado
113
Ernest Gellner
Segmentao e ancestrais
114
Saints of the Atlas
115
Ernest Gellner
128N.T. Guilherme de Occam, filsofo ingls do sculo 14, monge franciscano, con-
siderado por L. Dumont como o precursor do individualismo moderno.
116
Saints of the Atlas
117
Ernest Gellner
118
Saints of the Atlas
119
Ernest Gellner
(1) Contm uma teoria de coeso social, uma teoria que descreve um
avano em relao mxima 'dividir para reinar'. A mxima romana
recomenda uma tcnica para facilitar o governo. As sociedades segmentares
empregam a mesma tcnica para dispensar o governo: dividir para no ser
governado.
A idia subjacente teoria que as funes de manuteno da coeso, do
controle social, da 'lei e da ordem', as quais, em certa medida, de outro modo,
dependem amplamente de agncias especializadas, que disponham de
sanes, possam ser cumpridas com uma eficincia tolervel, simplesmente
atravs do 'equilbrio' e da 'oposio' dos grupos constitudos. A coeso no
mantida pelas agncias de coero internas, mas pela ameaa que vem de
fora; isto , em qualquer nvel de grandeza para o qual exista um 'interno',
deve haver um correspondente 'externo'. claro que no existe nada de
excepcional a respeito do emprego desse princpio: sabe-se bem que em todos
os contextos a coeso e a cooperao podem freqentemente ser melhor
asseguradas pela uma ameaa de um inimigo comum. simples observar a
operao desse princpio em nossa prpria sociedade que certamente no
segmentar. O que define uma sociedade segmentar no que isso
acontea, mas que isso quase tudo o que acontece.
A possibilidade de chegar a tanto a partir de um artifcio to simples
depende de outras caractersticas das sociedades segmentares:
(2) Uma estrutura tipo rvore: grupos aos quais uma pessoa pode
pertencer so arranjados num sistema tal que, a partir do grupo mais amplo,
h no seu interior um conjunto de sub-grupos mutuamente excludentes e
cada um desses, de modo anlogo, tem um conjunto de sub-sub-grupos, e
assim por diante, at se chegar aos ltimos tomos, sejam indivduos ou
famlias.
Mais uma vez, o que define uma sociedade segmentar no que um
sistema de grupos que satisfaa essas condies possa ser encontrado dentro
dela, mas que apenas tal sistema (ou muito prximo dele) possa ser
encontrado dentro dela.
As conseqncias disso so bvias e surpreendentes: do ponto de vista de
qualquer grupo, sua composio pode ser especificada sem ambigidade, e
sem o perigo de utilizar critrios de pertinncia que possam cruzar com
outros.
120
Saints of the Atlas
121
Ernest Gellner
122
Saints of the Atlas
aldeias podem brigar por uma pastagem, duas tribos podem entrar em
conflito num mercado. Numa sociedade anrquica, sem liderana, sempre
que surge um conflito, seja entre dois indivduos intimamente relacionados
ou muito distantes, seja entre grupos de pessoas, no adianta chamar a
polcia, ou o governo, para proteg-lo e resolver a questo, pela simples razo
de que no h polcia nem governo. Voc s pode aspirar a que seu prprio
grupo se mobilize pela lealdade e coeso a partir da ameaa do outro grupo,
seja porque os interesses dos outros membros do grupo esto diretamente
ameaados, ou porque eles precisam de sua ajuda em casos de famlia, ou
ainda porque eles podem supor que uma agresso tolerada num caso
encorajar a sua repetio. Mas antes que tal ameaa possa ativar o 'seu'
grupo, preciso que haja, em algum sentido latente, tal grupo; deve haver
um conjunto de pessoas que possa se identificar como pertencendo ao grupo.
J que, como indicado, no se pode dizer com antecedncia em qual nvel de
grandeza, ou em que distncia nas relaes, o conflito vai surgir, uma
sociedade segmentar s pode funcionar se os grupos so de fato disponveis
em todos os tamanhos.
O ponto de que uma sociedade segmentar fornece coeso envolvendo
grupos hostis 'de toda a linha', grupos de todos os tamanhos, parece merecer
duas qualificaes, uma que diz respeito ao topo, outra a respeito da base, da
escala das unidades sociais. A escala deve terminar em algum lugar, nas
duas pontas, e nessas pontas (por definio: o que marca a ponta que no h
nenhum grupo maior ou menor) no h ningum a ser ativado na oposio,
ningum disponvel para acertar algo errado. Concretamente: na base, se um
de dois irmos mata o outro, quem acerta o erro? Do ponto de vista de outro
grupo de irmos, ele ou melhor, o par fraternal que agora enfraqueceu-se
apenas cuspiu em seu prprio rosto: ele no causou nenhum dano a eles. De
modo similar, no topo, uma vez que se atinja o grupo mais amplo disponvel
que se possa conceber como um grupo, penetramos mais uma vez no mbito
da anarquia moral e poltica. Nesse nvel tampouco h alguma entidade que
possa aplicar sanes que pudessem ser postas em prtica.
Essa concluso ningum est disponvel para resistir ou penalizar a
agresso seja ao nvel da ltima molcula, seja ao do topo conseqncia do
modelo de uma sociedade segmentar 'pura'. Uma sociedade segmentar pura
aquela na qual no h agncia que possa resistir ou punir a transgresso das
123
Ernest Gellner
133 Note-se que isto no significa que o tribalismo segmentar no conhea regras
morais 'universais'. Um esteretipo do homem tribal, popular entre os leigos, espe-
cialmente entre os filsofos, o do homem totalmente escravizado s regras de seu
grupo e totalmente amoral fora dele. Este um duplo erro. As sociedades segmen-
tares so muito comuns. Os membros das tribos dessas sociedades no podem ser
escravizados regras vigentes no seu interior, j que no existe um 'interior' abso-
luto: o que um grupo interno para certos objetivos, um grupo externo para ou-
tros. Em segundo lugar, no certo que regras morais universais, abertas e impes-
soalmente formuladas no estejam presentes: ao contrrio, elas so claramente
presentes. Seu reforo vai variar de acordo com a fora e a determinao do grupo
que sofreu a violao delas; mas esta determinao depender em parte do mrito
do caso. Esse mecanismo discutido em detalhe adiante, em relao ao 'juramento
coletivo'.
124
Saints of the Atlas
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Saints of the Atlas
Isso sugere (de maneira correta) que a segmentao no pode ser definida
em termos de parentesco unilinear, j que a segmentao pode ocorrer
simplesmente em termos territoriais. No obstante, duvido se ambos
segmentao e parentesco unilinear podem ser inteiramente separados. A
caracterstica crucial, definidora das sociedades segmentares, no a mera
presena de segmentao mas tambm a ausncia (ou quase) de tudo o mais.
Segue-se da que ou o parentesco no ter importncia, no sentido de no
produzir grupos socialmente significativos, ou, se presente e definindo grupos
sociais, isso deve ser feito em linhas paralelas aos princpios gerais de
segmentao da sociedade. E isso s pode ser feito se o padro for do tipo
rvore, em outras palavras, se for unilinear. Segue-se que, embora uma
sociedade segmentar no necessite de modo nenhum ser organizada em
linhagens, ela deve ser, pelo menos, unilinear. Qualquer sistema de
parentesco mais complicado iria gerar laos conflitantes.
(4) Monadismo: uso este termo para uma caracterstica muito interessante
das sociedades segmentares, isto , que os grupos de todos os tamanhos se
parecem, ou a refletem, estrutura de cada um dos outros. O menor grupo
uma tribo em embrio, a tribo a expresso ampla do menor grupo.135
Suspeito que a presena dessa caracterstica s vezes exagerada ou,
alternativamente, que este pode ser um exemplo de tomar muito literalmente
um modo de conceituao que de fato encontrado no interior das sociedades
segmentares. Porque de fato verdade que a relao entre dois grandes cls
127
Ernest Gellner
pode ser concebida, por seus integrantes, como a relao entre dois irmos,
em virtude da suposta descendncia dos dois cls de dois homens que eram
irmos. Mas na realidade, as operaes e as funes dos vrios tamanhos, em
nveis diferentes do sistema segmentar, so inevitavelmente diferentes. Os
grupos mais inferiores na escala esto preocupados com a vida cotidiana, o
grupo seguinte, com o equilbrio de poder dentro da aldeia, a aldeia, com a
preservao de seus campos e territrio, os cls maiores, com as pastagens
coletivas, e os grupos ainda maiores, com a defesa da regio como um todo: os
tipos de preocupao que ativam os grupos nos vrios pontos da escala de
segmentao 'encaixada' so muito diferentes e exigem diferentes tipos de
relaes e atividades.136 Esse fato aparece com maior clareza se se examina
as conseqncias da superimposio de uma administrao moderna numa
sociedade segmentar: os grupos maiores tendem a se desmanchar enquanto
aqueles na base da escala continuam a funcionar vigorosamente. No
obstante, verdade que numa sociedade segmentar os grupos grandes e
pequenos so mais semelhantes entre si do que numa sociedade no
segmentar. Nas sociedades complexas, o estado ou a cidade so muito
diferentes da famlia. Numa tribo segmentar, h uma semelhana entre a
tribo ou cl, por um lado, e a famlia, pelo outro, no apenas na terminologia,
mas tambm na realidade.
Densidade da segmentao
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mantidas implicam em que se pode reclamar algo que pode ser politicamente
invivel ou impossvel na prtica no momento, ou at num futuro prximo,
mas que pode ser oportuno reativar algum dia. Talvez os bereberes no sejam
os nicos a se apegar a tradies mais ou menos adormecidas, prontas para
serem reativadas quando chegar o momento (semelhante ao suposto costume
de alguma famlias de Fez que mantinham as chaves de suas casas em
Granada, prontos para o dia em que a expulso dos mouros fosse revertida.)
Um degrau na escada segmentar, um grupo encaixado pode continuar a ser
mantido, no em razo de um interesse compartilhado atualmente, mas em
razo de um passado, acoplado possibilidade de que algum dia ele possa
tornar-se de novo efetivo.
132
Saints of the Atlas
Igualdade
138 Middleton e Tait observam (p. 8) que o uso de Durkheim do termo 'segmentar'
diferente daquele que aqui relevante. Mas me parece que h uma conexo essen-
cial entre os dois usos ( embora talvez Middleton e Tait no queiram negar is-
so),atravs da idia de no especializao e de repetio contidas no conceito de
Durkheim. Elas supem o igualitarismo que tambm essencial na mecnica de
uma sociedade 'segmentar' no sentido corrente. Se a especializao dos grupos em
termos polticos, econmicos ou rituais- ocorre, eles simplesmente no podem se
'equilibrar' uns aos outros, mas a sua complementaridade d lugar a um novo fator
de coeso; inversamente, se eles se equilibram uns aos outros, eles no podem ser
especializados.
139 Cf. E. Leach, Political Systems of Highland Burma, 1954, p. 288.
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Disposio e processo
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141 Podemos encontrar alguns sinais leves de totemismo. Existe um segmento Pan-
tera dos Ihansalen que vivem entre o Ait Bu Iknifen de Talmest. H tambm um
cl do chacal. Mas o uso do nome de animais nesses casos no leva qualquer pr-
tica totmica.
136
Saints of the Atlas
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Ernest Gellner
dois novos cls no topo, correspondentes nova diviso territorial, mas que se
supem originrios de um par de irmos inicial.
A memria sobre o que 'realmente aconteceu' (isto , aquilo que acredito
que realmente tenha acontecido) alm disso perpetuada em vrios grupos
das tribos maiores pela crena genealgica corrente. Uma tribo grande (por
exemplo, Ait Atta ou Ait Daud u Ali de Ait Sochman) engloba uma srie de
sub-cls, digamos A,B,C.D e E. A tribo como um todo possui territrios em
duas ou mais reas. Cada um dos sub-cls possuir terras e direitos
pastagem em ambas as reas (como o caso de Ait Daud u Ali) ou em todas
as vrias reas (como o caso de Ait Atta). Porque assim? Me parece que
podemos oferecer uma explicao tanto em termos da 'histria real' quanto
em termos da utilidade continuada e contempornea das crenas e
instituies associadas. Historicamente, quando uma tribo adquire novas
terras, ela s pode fazer isso num esforo conjugado do qual participam uma
srie de cls, e quando a nova terra adquirida, cada um dos cls
participantes reclama sua parte do butim territorial, e nenhum quer
desfazer-se de sua terra original. Portanto, a fisso ocorre atravessando cada
um dos velhos cls: e, em conseqncia, a diviso territorial atravessa as
linhas dos velhos cls (como de fato o caso nas duas tribos citadas).
Mas uma explicao funcional em termos da utilidade corrente da diviso
tambm est disponvel. Uma vez feito o arranjo, h um motivo para que a
tribo como um todo o perpetue e, alm disso, existem tambm sanes que
levam cada sub-grupo a manter a linha. Suponhamos que uma tribo possua
duas ou mais fronteiras diferentes (isto , fronteiras com diversas outras
tribos e inimigos potenciais), como virtualmente ocorre sempre: se cada cl
estiver representado em cada fronteira, isso amplia as sanes a favor da
coeso da tribo como um todo. Se ocorre um conflito numa fronteira distante
de um integrante da tribo ou de um grupo pequeno, um conflito que no se
constitui numa ameaa imediata para o indivduo ou grupo em questo,
ento no apenas a obrigao abstrata e mais geral da lealdade tribal mas
tambm a obrigao mais concreta e mais imediata da lealdade clnica os
far entrar em ao. E no que se apia at essa lealdade clnica mais
concreta? No, certamente, nos sentimentos. O chamado do sangue
apoiado, em termos gerais, nos direitos pastagem, nas expectativas de
herana e no direito noivas.
138
Saints of the Atlas
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Fisso e fuso
Um pai pode ter dois filhos, mas nenhum filho pode ter dois pais. Segue-se
que uma sociedade segmentar e patrilinear, que basicamente concebe as
relaes entre seus sub-grupos em termos genealgicos, tomados
emprestados apenas paternidade, tenha noes para expressar a fisso,
mas nenhuma para a fuso. claro que isto no cria nenhuma dificuldade
para a segmentao como condio. A condio atemporal. Quando se
precisa simbolizar a unio do grupo, recorre-se aos avs compartilhados e
distantes e quando se quiser enfatizar a des-unio interna, olha-se para a
pluralidade de irmos e netos nas geraes subsequentes. No o tempo que
uma imagem dinmica da eternidade: a genealogia atemporal que uma
imagem esttica do movimento social. Mas parece que no existem noes
que poderiam caracterizar a fuso como um processo datado, definido.
No entanto, a fuso claramente ocorre. Supondo-se grosso modo uma
estabilidade da populao e uma densidade de segmentao sem alteraes,
em qualquer nvel de tamanho, o nmero de fisses, menos o nmero de
140
Saints of the Atlas
141
Ernest Gellner
142
Saints of the Atlas
143
Ernest Gellner
A relevncia da segmentao
144
Saints of the Atlas
145
Ernest Gellner
146
Saints of the Atlas
146 justo registrar um desacordo sobre este ponto. Ver Georges Drague, Esquisse
d'histoire religieuse du Maroc, p. 174. O general Spillman (que usava o pseud-
nimo de Drague) confirmou, em conversa comigo, sua posio sobre este ponto.
147 Ver Andr Adam, La maison et le village dans quelques tribus de l'Anti-
Atlas, Paris, 1951, p. 41: a velha querela em torno da aliana: elas impedem a
guerra ou a desencadeiam fatalmente? Ela ainda se coloca... A misso das leffs pa-
rece ser antes a de impedir que um taqbilt seja esmagado, liquidado, por outro. No
conjunto, elas cumprem bem esse papel.
147
Ernest Gellner
O problema recolocado
148
Saints of the Atlas
149
Ernest Gellner
148 Traduzido por Mariza Corra para uso didtico. Favor no citar.
150
A CASA KABILA REVISITADA: UM EXERCCIO DE
ANTROPOLOGIA LINGSTICA149
Mrcio Silva
149 Sou grato a Luiz Fernando Dias Duarte pelos comentrios primeira verso
deste exerccio, apresentado em 1984, quando fui seu aluno no Museu Nacional.
Quero agradecer tambm a Suely Kofes pela ateno dedicada a este texto. A-
gradeo finalmente a Mariza Corra por ter incentivado a publicao do que de-
nominou com bom humor uma brincadeira tcnica de meus tempos de estudan-
te, justamente em um nmero de nossos cadernos dedicado aos alunos de mes-
trado da turma de '94', com quem tambm tive a alegria de trabalhar.
151
Mrcio Silva
Introduo
1. A casa Kabila
152
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
153
Mrcio Silva
PLANTA DA CASA
muro de
separao tear local de preparao
dos alimentos
porta
dianteira
154
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
155
Mrcio Silva
(a)
S (b)
(d) N
(c)
porta principal E
local por onde
entra a luz
A luz do sol, que penetra pela porta principal, se reflete nas paredes opostas s
paredes externas sul e leste. Conseqentemente, as paredes internas iluminadas so
as indicadas no desenho acima como (a) e (b). Inversamente, as pareces internas (c)
e (d) no recebem luz. Os kabila, no interior da casa, denominam de leste a direo
da parede (a), de oeste a direo da parede (c), de sul a direo da parede (b) e de
norte a direo da parede (d). Assim, na perspectiva de seu interior, o sul da casa
o norte geogrfico, e assim por diante.
156
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
157
Mrcio Silva
158
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
x x
x x x x x y
(a) ( b)
y z z
(c)
150 Para uma viso sistemtica desta oposio conceitual, ver Lyons 1968:cap IV.
159
Mrcio Silva
-
x
x y y
160
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
161
Mrcio Silva
--
m
o c o s mo s
-
m f
a a l d e i a
--
f m
a c a s a
-
f m
o i n t e r i o r i n f e -
r i o r d a c a s a
f m
ou: m ( m ( f ( f (f + m) + m) + m) + f)
162
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
Observaes Finais
163
Mrcio Silva
_
~
Fx (a) : Fy (b) Fx (b) : Fa-I (y)
164
A casa kabila revisitada: um exerccio de antropologia lingstica
Referncias:
165
Mrcio Silva
166
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
HS 103 - HISTRIA DA ANTROPOLOGIA II
SEGUNDO SEMESTRE - 1994
167
Mariza Corra
Semana 1
Apresentao e discusso do programa e dos procedimentos de
avaliao.
Aos estudantes matriculados neste curso sero pedidos dois trabalhos
escritos: uma resenha de algum livro ou ensaio da bibliografia suplementar
- a ser entregue na ltima aula de outubro - e um texto no qual seja
discutida a relao entre alguma das questes tericas analisadas e o seu
tema especfico de pesquisa.
Semana 2
Reconhecendo o terreno
Os homens esto em toda a parte, mesmo no centro do deserto. (Paul
Nizan)
Fernand Braudel, O Mediterrneo e o mundo mediterrneo na poca de
Filipe II (Livraria Martins Fontes, SP, 1983), vol. I, captulo 3 (65 pp.)
Albert Hourani, Uma histria dos povos rabes (Companhia Das Letras,
SP, 1994), parte IV (caps. 16 a 20) (84 pp.)
Paul Nizan, Aden, Arbia (Editora Marco Zero, SP,1987), captulos 4, 5, 6 e
13 (22 pp.)
Claude Lvi-Strauss, Tristes trpicos (Edies 70, Lisboa, 1979),
cap.XXXVIII (11pp.)
Leia tambm os captulos no indicados para discusso em aula;
O Quarteto de Alexandria*, de Lawrence Durrell (Ed. Ulissia, Rio, 1960);
Orientalismo, de Edward Said (Companhia das Letras, SP,1990);
Vozes de Marrakech, de Elias Canetti (L&PM, PA,1987) e Retrato do
colonizado precedido pelo retrato do colonizador, de Albert Memmi
(Paz e Terra, Rio, 1977)
168
HS 103 Histria da Antropologia II 2 semestre de 1994
Semana 3
Predecessores ilustres
Yves Lacoste, Ibn Khaldun, nascimento da histria, passado do terceiro
mundo(Ed. tica, SP, 1991), captulos 2 a 5 (74 pp.)
Edward Rice, Sir Richard Francis Burton (Companhia Das Letras, SP,
1991),captulos 16, 17 e 18 (44pp.)
Ernest Gellner, The sociology of Robert Montagne (1893-1954), em Muslim
Society (Cambridge University Press,1989).(15 pp)
Leia tambm os captulos no indicados para discusso em aula; Rimbaud
da Arbia, de Alain Borer (L&PM, PA, 1991); The sufis, de Idries Shah
(h traduo brasileira do Crculo do Livro); El Aleph, de Jorge Luis
Borges (Emec, BsAs, 1968); Histrias de Nasrudin (Edies Dervish,
Rio, 1994) e consulte o volume 3, Espaa Musulmana, da Historia de
Espaa, Manuel Tuon de Lara, org. (Ed.Labor, Barcelona, 1984).
Semanas 4, 5, 6, 7 e 8
A tribo e o bazar: ingleses e norte-americanos na frica
muulmana
4 E.E.Evans-Pritchard,Os Nuer (Ed. Perspectiva, SP, 1993), captulo 4 (50
pp.) e
The Sanusi of Cyrenaica (London, 1968), captulos II e III (60 pp.)
5 Ernest Gellner, Saints of the Atlas (London, 1968), captulos 1 e 2,
e Muslim Society(Cambridge, 1981), captulo 6 (94 pp.)
6 Clifford Geertz, Suq: the bazaar economy in Sefrou (141 pp.)
7 Hildred Geertz, The meanings of family ties (64 pp.) - ambos em Meaning
and order in Moroccan society(Cambridge, 1979)
8 E. Gellner, cap 1 (1981) e C, Geertz, Local Knowledge (New York, 1983),
captulo 3 (92 pp.)
Leia tambm os captulos no indicados para discusso em aula (e veja,
particularmente, o belo ensaio fotogrfico de Paul Hyman em Geertz e
outros,1979); Paul Rabinow, Reflections on fieldwork in Morocco (Berkeley,
1977) e Vincent Crapanzano, Tuhami, portrait of a Moroccan (Chicago,
1980) e releia o captulo 1 de A interpretao das culturas, de C.Geertz. O
Cahiers dtudes africaines dedicou seu nmero XXX (3), 1990, ao Magreb.
169
Mariza Corra
Semanas 9, 10, 11 e 12
Esa fina membrana llamada honor
Foi ento que o Ocidente perdeu a sua oportunidade de permanecer mulher.
(Lvi-Strauss)
9 Jack Goody,The development of the family and marriage in Europe
(Cambridge,1984), captulos 2 e 3
Germaine Tillion, Le harem et les cousins (Seuil, Paris, 1966), captulos I e
IX (83 pp.)
10 Pierre Bourdieu, El concepto del honor en la sociedad de Cabilia, em
J.G.Peristiany, El concepto del honor en la sociedad mediterrnea
(Labor, Barcelona, 1968) e La maison ou le monde renvers em Esquisse
d'une thorie de la pratique(Droz, Genebra, 1972) (76 pp.)
11 Leila Ahmed, The discourse of the veil, em Women and gender in Islam*
(Yale university Press, 1992)
Franz Fanon, L'Algrie se dvoile, em Sociologie d'une rvolution (Maspero,
Paris, 1972) (60 pp.)
12 Nawal al-Sa'dawi, La cara desnuda de la mujer arabe*(Madrid, 1991),
captulos 1 a 6 (70 pp)
Leia tambm Sociologie de l'Algrie, de P. Bourdieu (PUF, 1961); A vida
cotidiana em Argel nas vsperas da interveno francesa, de Pierre
Boyer (Livros do Brasil, Lisboa, 1962); Las madres contra las mujeres*,
de Camille Lacoste-Dujardin (Madrid, 1993) e, da mesma autora, o belo
contraste com Tuhami que Dialogue de femmes en ethnologie
(Maspero, 1977). Sobre a reao da sociedade francesa prtica da
mutilao de mulheres, veja L'immigration face aux lois de la
Rpublique*, especialmente a segunda parte, de Edwige Rude-Antoine
(Paris, 1992). E, sobre a prtica e sua extenso, Female genital
mutilation: proposals for change*, relatrio de Efua Dorkenoo e Scilla
Elworthy, preparado para o Minority Rights Group (Londres, 1994).
Com exceo dos textos marcados com *, todos os outros esto disponveis
na Biblioteca do IFCH. Duas sesses esto reservadas para reflexo sobre o
conjunto do material lido e discusso do primeiro trabalho.
170
HZ 362 ANTROPOLOGIA III
HISTRIA DO PENSAMENTO ANTROPOLGICO II
PRIMEIRO SEMESTRE DE 1995
TERAS E SEXTAS TARDE
Mariza Corra
PROGRAMA
Maro,7
1 Apresentao do programa e discusso das atividades do semestre
Maro,10
2 "Prendam os suspeitos habituais": retomando o fio da meada
Maro,14
3 Encontro e desencontro de tradies: o caso da frica do Norte
Maro,17
4 Seminrio: o contexto histrico social
A.Hourani, Uma histria dos povos rabes, Cia das Letras, S.P.,1994,
caps. 16,17,18,19 e 21
171
Mariza Corra
Maro, 21
Reposio a combinar
Maro, 24
4b Seminrio: o contexto histrico social
F.Fanon, A Arglia se desvela (Textos Didticos) e G. Pontecorvo, A batalha
de Argel
Maro, 28
5 A antropologia poltica de Evans-Pritchard: os Nuer e os Sanusi
Maro 31
6 Seminrio: Evans-Pritchard, Os Nuer, Ed.Perspectiva, SP, 1993, cap.4
Abril, 4
7 Primeira leitura da questo: a antropologia inglesa e as sociedades
segmentares
Abril,7
8 Seminrio: Adam Kuper, Antroplogos e antropologia, Francisco Alves,
Rio,1978, caps. III e V
Abril,11
Reposio a combinar
Abril,14
Sexta feira Santa
Abril,18
9 Lvi-Strauss entra em cena: parentes e afins
Abril, 21
Tiradentes
Abril, 25
10 Interregno: a repblica dos primos versus a repblica dos cunhados
Abril, 28
11 Seminrio: C.Lvi-Strauss, O olhar distanciado, Edies 70, Lisboa,
1986, cap.III e O pensamento selvagem, Cia Ed.Nacional/Edusp, SP, 1970,
cap.7
Maio, 2
12 O estruturalismo entra em cena: o cruzamento das fronteiras
disciplinares
172
HZ 362 Histria do Pensamento Antropolgico II 1 semestre de 1995
Maio, 5
13 Seminrio: F.Dosse, Histria do estruturalismo, Ed. Ensaio/Ed.da
Unicamp, SP/Campinas, 1994.
Maio, 9
14 A questo retomada: a teoria poltica da segmentaridade
Maio, 12
15 Seminrio: E.Gellner, Saints of the Atlas, Londres, 1969, cap.2
Maio, 16 (Ateno: entrega do texto 1)
16 Interregno estratgico: habitus e gnero
Maio, 19
17 Seminrio: Pierre Bourdieu, Senso de honra (Textos Didticos)
Maio, 23
18 Discusso do primeiro trabalho
Maio, 26
19 Seminrio: Pierre Bourdieu, A casa ou o mundo s avessas e Marcio
Silva, A casa kabila (Textos Didticos)
Maio, 30
20 Os americanos entram em cena: a tribo e o bazaar
Junho, 2
21 Seminrio: Clifford Geertz, Local knowledge, N.Y., 1983, cap 3
Junho, 6
22 Os americanos entram em cena 2: segmentao, fragmentao e o lado
escuro da lua
Junho, 9
23 Seminrio: Cl.Geertz, A interpretao das culturas, Zahar eds., Rio,
1978, cap.1 e Cl.Lvi-Strauss, A obra de Marcel Mauss, em Mauss,
Sociologia e Antropologia, vol II, Epu/Edusp, SP,1974
Junho, 13
24 Levantando o vu: segmentaridade, sexualidade e a histria da
antropologia
Junho, 16
No h aula
173
Mariza Corra
Junho, 20
25 Seminrio: Camille Lacoste-Dujardin, Las madres contra las mujeres,
Madrid, 1993, caps. 1 e 2
Junho, 23
26 As sociedades segmentares & a antropologia
Junho, 27
27 Discusso sobre o trabalho final.
BIBLIOGRAFIA
174
HZ 362 Histria do Pensamento Antropolgico II 1 semestre de 1995
175