2016 - Tradição Revisitada - T. S. Eliot e o Caso John Donne

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Cadernos de Letras da UFF Dossi: A crise da leitura e a formao do leitor n 52, p.

509-523 509

TRADIO REVISITADA: T. S. ELIOT E O CASO


JOHN DONNE

Andr Cechinel

RESUMO
A partir da noo de dissociao da sensibilidade, ex-
posta por T. S. Eliot no ensaio Os poetas metafsicos
[The Metaphysical Poets], de 1921, este artigo bus-
ca discutir o modo como o poeta desloca as posies
ocupadas por John Milton e John Donne no cnone
literrio ingls por meio de um argumento que defende
a necessidade de aliar o talento individual tradio
passada.

PALAVRAS-CHAVE: Eliot; tradio; cnone.

Introduo

principal tenso terica que, direta ou indiretamente, atravessa a obra


ensastica de T. S. Eliot est expressa j no ttulo de seu mais famoso
ensaio, datado de 1919: Tradio e talento individual [Tradition
and the Individual Talent]. Contrariando a tendncia individualista evidente,
por exemplo, nos textos crticos de William Wordsworth, Eliot argumenta que
tradio e talento individual, longe de constiturem polos opositivos, so antes
termos complementares; em outras palavras, a individualidade mais se afirma
quando em contato efetivo com a tradio literria. nesse sentido que o make
it new de Ezra Pound pode ser apropriado por Eliot sem que isso constitua
uma contradio conceitual; afinal de contas, para ambos os autores s possvel
inventar a partir de um movimento semelhante quele que Walter Benjamin
(1987, p. 226) identifica no Angelus novus de Paul Klee, ou seja, a inovao
torna-se vivel apenas quando assumimos um gesto tambm retrospectivo.
Cechinel, Andr.
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Ora, para dialogar com a tradio necessrio reconhecer a existncia de


obras e autores tradicionais, por assim dizer. com essa preocupao que Eliot
inicia seu ensaio de 1919: Nos textos ingleses raro falarmos de tradio [...].
No sabemos nos referir tradio ou a uma tradio [...] (1989, p. 37). Mais
adiante no ensaio, o poeta observa que o desenvolvimento artstico no aban-
dona nada en route, no aposenta nem Shakespeare nem Homero, nem os
desenhos rupestres do artista magdaleniano (1989, p. 41). Apesar do suposto
eurocentrismo sinalizado pelos nomes citados, Eliot apresenta a tradio como
um corpo mvel de orientao afirmativa que, como dito, nada deixa para trs.
Conforme Richard Poirier assinala, Tradio e talento individual desestrutura
[...] qualquer noo do passado ou da literatura como algo fixo, qualquer noo
de que uma ordem conquistada mais que provisria (1992, p. 49, traduo mi-
nha). Em suma, reconhecer que a tradio atua no tempo presente no significa
estabelecer uma lista final de autores tradicionais, pelo contrrio, segundo Eliot,
no nos devemos surpreender com a ideia de que o passado deva ser modificado
pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo passado (1989, p.
40). Modificado pelo presente, o passado tambm reconfigura seu corpo de obras.
Assim, contrariando a tendncia de muitos dos new critics, Eliot jamais
concebeu a tradio literria como um corpo cristalizado, imvel; em seus en-
saios, defendeu, desde o princpio, que os escritores do passado podem ser ma-
nipulados a ponto de fazer a cronologia tremular, pois dialogar com a tradio
no o mesmo que desejar retornar a uma condio prvia que imaginamos
poder ter sido preservada perpetuamente (ELIOT, 1933, 18, traduo mi-
nha). Em poucas palavras, este breve ensaio se prope discutir um dos casos
em que Eliot, a partir de uma concepo orgnica do cnone, opera a inclu-
so, ou melhor, a reavaliao de uma gerao de autores mais frequentemente
conhecida de nome do que lida, e amide mais lida do que proveitosamente
estudada (ELIOT, 1989, p. 113): a gerao dos chamados poetas metafsi-
cos ingleses do sculo XVII, aqui representados principalmente pela figura
de John Donne, poeta capaz de elaborar uma figura de linguagem levada ao
grau extremo a que a engenhosidade seria capaz de conduzir (ELIOT, 1989,
p. 114). O caso John Donne nos ajuda a compreender de que modo Eliot
manipula o cnone como um objeto mvel que se reconstri a todo instante.1
1
Um argumento semelhante ao defendido neste artigo foi apresentado por Leyla Perrone-
-Moiss no captulo intitulado Um caso de recuperao: John Donne (1572-1631), pre-
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Sensibilidade dissociada

Donne, I suppose, was such another / Who found no substitute


for sense; / To seize and clutch and penetrate, / Expert beyond
experience, // He knew the anguish of the marrow / The ague of
the skeleton; / No contact possible to flesh / Allayed the fever of the
bone.
T. S. Eliot Whispers of Immortality2

Conforme Marc Manganaro argumenta no ensaio intitulado Mind,


Myth, and Culture: Eliot and Anthropology, o conceito de dissociao
[dissociation] desempenhou um papel decisivo na reformulao do cnone
empreendida por Eliot, em que os poetas metafsicos foram colocados em as-
censo e a poesia posterior ao sculo XVII passou a ser menosprezada (2009,
p. 85, traduo minha). Dessa forma, para entender o modo como Eliot ma-
nipula o cnone, necessrio passar pelo conceito de dissociao tal como
exposto, em particular, no conhecido ensaio Os poetas metafsicos [The
Metaphysical Poets], de 1921. Nesse texto, Eliot exalta a habilidade associa-
tiva dos poetas metafsicos, capazes de condensar experincias dspares num
nico poema sem abrir mo da correlao entre pensamento e experincia:
Para Donne, o pensamento era uma experincia; ele modificou a sua sensibi-
lidade (1989, p. 121). A partir da tcnica associativa vislumbrada em Donne
e nos demais poetas metafsicos, Eliot apresenta aquela que a sua principal
hiptese no texto em questo:

Quando a mente de um poeta est perfeitamente aparelhada


para seu trabalho, ela est constantemente combinando expe-

sente no livro Altas literaturas. Como o percurso analtico, a bibliografia e as concluses


apresentadas se diferenciam em alguns pontos, os textos em questo podem ser lidos como
referncias complementares para um mesmo problema, a saber, a relao entre Eliot, Donne
e a ideia de tradio literria.
2
Donne, suponho, foi outro que jamais / Renunciou volpia dos sentidos / Para agarrar,
cingir e penetrar; / Pesquisador alm da experincia, // Conhecia toda a angstia da medula,
/ O surdo calafrio do esqueleto; Nenhum toque carnal era capaz / De apaziguar-lhe a febre
dos ossos. In: ELIOT, T. S. Obra completa, vol. 1 - poesia. Traduo, introduo e notas de
Ivan Junqueira. So Paulo: Arx, 2004.
Cechinel, Andr.
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rincias dspares; a experincia do homem comum catica,


irregular, fragmentria. Este ltimo se enamora, ou l Spinoza,
e essas duas experincias nada tm uma com a outra [...]; na
mente do poeta, essas experincias esto sempre formando no-
vos conjuntos [...]. No sculo XVII, teve incio uma dissociao
da sensibilidade [dissociation of sensibility], da qual jamais nos
recuperamos; e essa dissociao, como natural, viu-se agra-
vada pela influncia dos dois mais vigorosos poetas do sculo,
Milton e Dryden (ELIOT, 1989, p. 122).

Resumidamente, a dissociao da sensibilidade, posterior poesia de


Donne e dos demais metafsicos, nada mais seria do que a separao entre
intelecto e sensibilidade, ou seja, para o poeta, que vtima desse processo,
restariam duas alternativas: ou ele capaz de produzir um poema intelectua-
lizado sem a devida correlao no plano da sensibilidade, ou ento recai num
sentimentalismo destitudo de qualquer correlativo intelectual, como seria o
caso caracterstico dos poetas romnticos. Se Eliot no hesita em colocar Don-
ne na posio privilegiada de quem encerra um perodo em que o intelecto
estava em sintonia com os sentidos, em que a sensao se tornava palavra, e
a palavra era sensao (1932, p. 209, traduo minha), ele tampouco vacila
ao apontar os responsveis por agravar uma tal dissociao: Milton e Dryden.
Uma vez reconstituda a cena do crime, Eliot passa a investir sistematica-
mente contra Milton e Dryden, no s em Os poetas metafsicos Se
continussemos a produzir Miltons e Drydens, isso no importaria muito,
mas do jeito que as coisas vo seria uma pena que a poesia inglesa permane-
cesse to incompleta (1989, p. 125) , como tambm em inmeros outros
textos, a exemplo do ensaio John Dryden, de 1922: Dryden, com todo o
seu intelecto, tinha uma mente banal (1989, p. 157). Muito embora revele
espasmos de generosidade em relao a Dryden, Eliot mantm-se constante
em sua crtica inicial a Milton:

Os sinais contra ele [Milton] so mais significativos do que o


seu crdito. Como um homem, ele antiptico. Seja do ponto
de vista do moralista ou do telogo, ou do ponto de vista do
psiclogo, ou do filsofo poltico, ou julgando por qualquer
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padro comum do que apreciado nos seres humanos, Milton


insatisfatrio. As dvidas que tenho a expressar em torno dele
so mais srias que essas [...]. O que me parece necessrio afir-
mar , ao mesmo tempo, sua grandeza [...] e as srias crticas
acerca da deteriorao a que ele submeteu a lngua (ELIOT,
1961, p. 156, traduo minha).

Nesse mesmo ensaio, intitulado apenas Milton (1936), Eliot avalia a


m influncia que o poeta do Paraso perdido [Paradise Lost] exerceu sobre a
poesia inglesa do sculo XVIII, a ponto de declarar, em suma, que estamos
diante de uma influncia contra a qual devemos lutar (ELIOT, 1961, p. 157,
traduo minha). Em linhas gerais, est delineada a reformulao do cno-
ne ingls, ou melhor, da tradio literria inglesa tal como empreendida por
Eliot: por um lado, os poetas metafsicos souberam unir intelecto e sensibili-
dade, e, por isso, compem uma rede literria a ser seguida; por outro, Dryden
e Milton especialmente Milton so os pais da dissociao da sensibilidade
que afeta a literatura inglesa, e assim, apesar de seus mritos, devem ser evita-
dos. Independente da preciso com que Eliot aborda a obra dos poetas envol-
vidos nesse embate, sua defesa da poesia metafsica ganha corpo na academia,
e John Donne, por exemplo, passa a ser objeto de novas anlises que no raro
utilizam precisamente a terminologia que Eliot adota em seu ensaio.
Como exemplo do efeito causado pelas teses de Eliot na academia, pode-
-se citar o livro Novas tendncias da poesia inglesa [New Bearings in English Po-
etry] (1932), de F. R. Leavis. No terceiro captulo do livro, Leavis descreve o
impacto exercido por Eliot sobre o contexto potico ingls, concluindo que
Prufrock, que data de 1917, constitui por si s um evento importante na his-
tria da poesia inglesa (1960, p. 75, traduo minha). Cabe observar aqui que,
em sua anlise, Leavis se vale exatamente da nomenclatura estabelecida por
Eliot para aprovar ou desaprovar os poetas que cita: [...] isso nos serve para
lembrar a prevalncia de certas limitaes no modo como o ingls tem sido
usado na poesia desde Milton [...]. Milton utiliza apenas uma pequena parte
dos recursos da lngua inglesa (1960, p. 82, traduo minha). Como vemos, o
crtico subscreve de imediato a reconstruo do cnone nos termos propostos
por Eliot em seus ensaios, no somente validando suas teses quanto dissocia-
o da sensibilidade, como, desde j, colocando-as em prtica em suas leituras:
Cechinel, Andr.
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[...] Se a tradio potica do sculo XIX tivesse sido menos completamente


diferente da tradio metafsica, ento o sr. Yeats poderia ter despendido menos
energia fora da poesia (1960, p. 44, traduo minha). Ou ainda, para aqueles
que simpatizam com o ponto de vista deste livro, Donne um dos maiores
mestres da tcnica que j viveram (1960, p. 200, traduo minha).
Com efeito, embora Eliot tenha posteriormente suavizado as declaraes
acerca de John Donne, os argumentos expostos no ensaio de 1921 provocaram
uma espcie de ciso nos estudos acadmicos sobre seu antecessor. Conforme
Thomas Docherty expe, no obstante a centralidade de Donne na literatura
j estar praticamente definida antes mesmo da publicao de Os poetas me-
tafsicos, de modo geral creditava-se a Eliot a redescoberta desse precursor
exilado. Desse modo, seria possvel dividir os estudos de Donne, naquele
momento, em duas vertentes fundamentais: por um lado, o Donne j conhe-
cido, cujos estudos seguiam orientaes to antigas quanto a prpria literatura
inglesa; por outro, o Donne ligado a uma esttica e movimento modernista
autoconsciente na poesia um Donne ps-eliotiano (DOCHERTY, 1986,
p. 3, traduo minha). O Donne ps-eliotiano torna-se, na verdade, um tipo
de terapia para o poeta ou leitor modernista, cuja conscincia partida [entre
senso e sensibilidade] requer restituio, completude e pura individualidade
(DOCHERTY, 1986, p. 4, traduo minha). Donne responderia, nesse se-
gundo caso, muito mais a uma necessidade constatada a posteriori do que a
uma singularidade evidenciada em seus poemas.
nesse sentido que caminha a crtica formulada por Frank Kermode no
livro Romantic Image, publicado em 1957. No captulo intitulado justamente
Dissociation of Sensibility, Kermode concentra-se em refutar a tese de Eliot,
apontando, inclusive, a abordagem parcial a que o poeta de A terra desolada
[The Waste Land] submete os autores cannicos: A consequncia mais deplo-
rvel da doutrina que os perodos e poetas escolhidos para ilustr-la acabam
recebendo um tratamento perverso; voc precisa represent-los equivocada-
mente para justificar a falsa teoria (1957, p. 146, traduo minha). Seja como
for, a anlise de Kermode vai alm da objeo parcialidade com que Eliot l,
por exemplo, Milton e Dryden; a rigor, sua crtica desnuda o prprio discur-
so da crise que funciona como um dispositivo de sustentao para o debate
modernista. Em outras palavras, Kermode declara que a grande catstrofe que
Eliot assegura ter ocorrido no sculo XVII poderia ter sido igualmente loca-
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lizada no sculo XIII ou XVI tampouco seria difcil construir o mesmo


argumento em torno de outros perodos (1957, p. 142, traduo minha). Se-
gundo Kermode, h crticos que at mesmo sustentam que a posio de Eliot,
curiosamente, no difere de todo da prpria frmula tornada convencional,
dentre outros, por um poeta romntico como Coleridge, um dos antagonistas
da tese. De resto, dentre os paradoxos da suposta dissociao da sensibilidade,
o crtico comenta que

[...] a mais estranha das ironias nisso tudo eis o que tenho a
dizer sobre o segundo dos poetas corrompidos que Milton
[...], que realmente acreditava e defendia a unidade da alma
(um contnuo entre mente e sensibilidade), permitiu que
sua insistncia na inseparabilidade entre forma e contedo
o conduzisse heresia; Milton acreditava que a poesia tinha
precedncia sobre as demais atividades da alma por ser simples
(indissociada pelo intelecto), sensvel e apaixonada. Mas isso
no importava; havia razes primordiais para que Milton
tivesse de ser curvado ou violado (KERMODE, 1957, p. 150,
traduo minha).

Em sua avaliao final sobre a questo da dissociao da sensibilidade,


Kermode prope concluses fundamentais. Em primeiro lugar, mais impor-
tante do que denunciar a impreciso da leitura de Eliot, que identifica no
sculo XVII o ponto inicial de uma grande catstrofe, seria entender o mo-
tivo urgente que o estimulou, no sculo XX, a estabelecer a historicidade de
um tal desastre (1957, p. 143, traduo minha). A resposta implcita para
a primeira questo diz respeito, logicamente, formulao de uma tradio
literria que encontrasse nele e nos demais modernistas a cura para uma
determinada deficincia histrica. Em segundo lugar, a idade da dissociao,
ou seja, a idade que inventou e desenvolveu o conceito de dissociao, estava
com os dias contados (1957, p. 161, traduo minha). Kermode acertou em
sua previso, e, no por acaso, a publicao de Romantic Image acompanhou
todo um movimento de oposio aos pressupostos estruturantes da histria
literria recontada por Eliot. De todo modo, a dissociao da sensibilidade
parece ter perdido fora justamente no momento em que a reconfigurao das
Cechinel, Andr.
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posies ocupadas, dentre outros, por Milton, Dryden e Donne provava ter
cumprido seu papel no projeto modernista.

Variedades metafsicas

Ainda no ensaio Os poetas metafsicos, T. S. Eliot sinaliza a existncia


de um grupo de poetas que, diferentemente da gerao inglesa posterior dis-
sociao, poderia ser visto como anlogo aos metafsicos do sculo XVII: em
muitos de seus poemas, Jules Laforgue e Tristan Corbire esto mais prximos
da escola de Donne do que qualquer poeta moderno ingls (1989, p. 124).
Novamente, o que est em pauta na fala de Eliot sobre os simbolistas franceses
seria a capacidade de transfigurar ideias em sensaes, de transformar uma
observao num estado de esprito (1989, p. 124), ou seja, de manter indis-
sociada a relao entre intelecto e sensibilidade. Apenas brevemente delineada
no ensaio de 1921, a genealogia que Eliot prope em torno da poesia metafsi-
ca ganha corpo em uma srie de palestras proferidas primeiramente no Trinity
College, Cambridge, sob o ttulo Palestras sobre a poesia metafsica do sculo
XVII (1926), e depois na John Hopkins University, dessa vez intituladas
simplesmente As variedades da poesia metafsica (1933). Desconhecidas do
grande pblico at recentemente, as palestras de Eliot foram publicadas pela
primeira vez em forma de livro em 1993, e por meio delas o leitor tem acesso
a uma descrio minuciosa da tradio literria reformulada segundo uma
linhagem supostamente metafsica.
Conforme Ronaldo Schuchard comenta na introduo ao volume, em-
bora a imerso na poesia de Dante, Donne e Laforgue [...] tenha levado
Eliot a formular uma teoria da poesia metafsica, [...] essa teoria permaneceu
fragmentada em sua crtica literria at encontrar expresso nessas palestras
(in ELIOT, 1996, p. I, traduo minha). Para Eliot, pois, a poesia metafsica
atingiu o auge de sua expresso em trs principais momentos histricos, por
meio de trs variedades metafsicas: Dante, Cavalcanti e a poesia do trecento;
Donne, Crashaw e a poesia metafsica inglesa do sculo XVII; e, finalmen-
te, Laforgue, Corbire e a poesia simbolista francesa do sculo XIX. Mais
uma vez, o ponto de referncia para as palestras o sculo XVII, haja vista a
crena de que nossa prpria mentalidade e sentimentos so veiculados com
mais preciso pelo sculo XVII do que pelo sculo XIX ou XVIII. Donne
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utilizado mais que nunca como um parmetro crtico (ELIOT, 1996, p. 43,
traduo minha). Isso no quer dizer que Donne seja o maior dos metafsicos;
a rigor, Dante o poeta que parece ocupar essa posio na teoria de Eliot. O
centro articulador da tese constitui o sculo XVII, antes, pela crena de que
esse justamente o momento em que se instaura a dissociao da sensibilidade
da qual jamais nos recuperamos.
Nas palavras de Eliot, portanto, o primeiro grande exemplo do tipo de
poesia que busco definir , logicamente, Dante [...]; Dante sempre encontra
o equivalente sensvel, a encarnao fsica, para a concretizao da mais t-
nue e refinada intensidade da experincia (1996, p. 57, traduo minha).
O comentrio de certo modo resume o que Eliot v como trao fundador da
universalidade do poeta italiano: O estilo de Dante tem uma lucidez pecu-
liar uma lucidez potica [...]. O pensamento pode ser obscuro, mas a palavra
lcida, ou melhor, transparente (1989, p. 66). Em outras palavras, o que
determina a posio privilegiada ocupada por Dante nada mais do que sua
capacidade de conferir concretude s imagens, contrastando vivamente com
o obscurantismo que Eliot identifica, entre outros, na poesia romntica. De
todo modo, se uma das funes da poesia fixar e tornar mais conscientes e
precisas as emoes e os sentimentos dos quais as pessoas participam em sua
prpria experincia (1996, p. 51, traduo minha), Dante seria o maior dos
poetas, pois possua, como dito, todas as qualidades possveis que poderiam
adornar um poeta filosfico (1996, p. 58, traduo minha).
Ora, o que diferenciaria, ento, a poesia do trecento, que Eliot ilustra a
partir de Dante todavia sem se limitar a este , da segunda gerao de poetas
metafsicos, por sua vez representada fundamentalmente pela figura de John
Donne? Afora determinado fatalismo histrico que o poeta da terra desolada
introduz com tonalidades no menos metafsicas do que sua tese As dife-
renas [entre Dante e Donne] envolvem certa teoria acerca da desintegrao
do intelecto na Europa moderna (1996, p. 158, traduo minha) , os pontos
que afastam Dante e Donne dizem respeito, uma vez mais, questo do foco,
ou melhor, ao grau com que ambos os poetas lidam com a integrao entre in-
telecto e sensibilidade. Por um lado, o interesse de Dante est na ideia ou no
sentimento a ser transmitido; a imagem sempre torna essa ideia ou sentimento
mais inteligvel. Por outro, em Donne, o interesse revela-se disperso; pode
estar na habilidade de transmitir a ideia por uma imagem em particular, ou a
Cechinel, Andr.
518 Tradio revisitada: T. S. Eliot e o caso John Donne

prpria imagem pode ser mais difcil que a ideia; ou pode estar na compulso,
e no na descoberta, de semelhanas (ELIOT, 1996, p. 120, traduo minha).
Em resumo,

[...] em Dante, como j disse inmeras vezes, voc tem um sis-


tema de pensamento e sensibilidade; todas as partes do sistema
sentidas e pensadas em seu lugar, e o sistema completo sentido e
pensado; voc no pode dizer que ele primeiramente intelec-
tual ou primeiramente emocional, pois pensamento e emo-
o so lados inversos da mesma coisa. Em Donne, voc tem
uma sequncia de pensamentos que so sentidos; [...] nunca h
um balano perfeito (ELIOT, 1996, p. 183, traduo minha).

Um dos pontos cruciais das palestras de Eliot talvez seja, entretanto, sua
abordagem pormenorizada de uma terceira variedade de poesia metafsica, at
ento apenas sugerida en passant em alguns de seus ensaios: seu pai Bau-
delaire, ela existiu na Frana entre 1870-1890, e os poetas importantes, para
o meu propsito, so Jules Laforgue, Arthur Rimbaud e Tristan Corbire
(1996, p. 59, traduo minha). Tal como no caso da diferena entre Dante e
os metafsicos ingleses do sculo XVII, o que distanciaria os simbolistas fran-
ceses de Donne, por exemplo, seria a etapa mais avanada a que chegara a se-
parao entre pensamento e sensibilidade: a desintegrao do intelecto atin-
giu, em Laforgue, um estgio muito mais avanado do que em Donne; para
Laforgue, a vida estava conscientemente dividida entre pensamento e sensibili-
dade (1996, p. 212, traduo minha). Sabe-se que a influncia de Laforgue
e dos demais simbolistas sobre Eliot foi decisiva principalmente em Prufrock e
outras observaes [Prufrock and Other Observations] (1917), seu primeiro livro
de poesia. No entanto, nas palestras sobre as variedades metafsicas, o leitor
adentra uma sorte de histria literria que por vezes silenciosamente, por
vezes de modo explcito caminha com Eliot em sua trajetria potica. Assim,
no contexto dessas palestras possvel notar que o poeta se posiciona como
sucessor imediato dos simbolistas franceses e, em particular, de Laforgue.
De modo geral, por trs do aparente rigor analtico com que Eliot sus-
tenta suas hipteses, por trs dos diversos exemplos que atestam a sua verso
da histria literria e da suposta dissociao da sensibilidade, o que percebemos
Cadernos de Letras da UFF Dossi: A crise da leitura e a formao do leitor n 52, p. 509-523 519

nas palestras , na verdade, uma apreciao parcial por vezes idealizada dos
poetas afetados direta ou indiretamente pela tese. Tal como Edward Lobb indi-
ca, mesmo ao atacar o solipsismo romntico, Eliot partilha (particularmente
nas palestras) de um aspecto da sensibilidade romntica a tendncia de olhar
retrospectivamente como uma fonte de valor (1981, p. 62, traduo minha).
Essa valorao do passado, portanto, apesar de apresentada sob um discurso
pretensamente cientfico, mostra-se carregada de um contedo pessoal, subjeti-
vo. Louis Menand est correto ao afirmar que os ensaios iniciais de Eliot atra-
ram sua gerao [...] por elaborar um argumento que os leitores j conheciam.
Como se sabe, o perodo que se estende do final do sculo XIX ao incio do
sculo XX [...] ficou conhecido pela [...] fabricao de tradies [...]. Foi um
momento na Europa e nos Estados Unidos marcado por aquilo que Hobsba-
wn recentemente chamou de produo de tradies em massa (2007, p. 131,
traduo minha). O discurso da tradio, acompanhado do discurso da crise,
constitui, em suma, um dispositivo do qual Eliot lana mo para projetar a sua
obra como ponto de chegada de um longo percurso histrico. A organicidade
do cnone explorada de modo a efetuar pequenos desvios.

Observaes finais

Em 1947, j amplamente conhecido por sua teoria acerca da chamada


dissociao da sensibilidade, Eliot profere uma palestra para a British Aca-
demy reavaliando sua posio em torno da obra de Milton. Essa palestra foi
posteriormente publicada no livro De poesia e poetas [On Poetry and Poets]
(1957) com o ttulo Milton II, de modo a contrastar com seu ensaio an-
terior, Milton I, datado de 1936 e tambm includo no mesmo volume.
Como o prprio ttulo do texto antecipa, o propsito do poeta comentar
alguns dos erros e preconceitos que tm sido associados ao seu nome (1961,
p. 165, traduo minha). Entre os preconceitos mais evidentes encontram-
-se, claro, as duras crticas a Milton e seu suposto uso parcial da lngua in-
glesa. Em poucas palavras, o que mais chama a ateno na palestra de 1947
o modo com que, aps repetidos ataques desferidos contra seu antecessor em
diferentes momentos, Eliot limita-se a relativizar suas posies anteriores com
argumentos que, de to evidentes, deveriam ter-lhe inquietado j quando da
formulao inicial da tese:
Cechinel, Andr.
520 Tradio revisitada: T. S. Eliot e o caso John Donne

Em primeiro lugar, quando consideramos um grande poeta do


passado, e um ou dois poetas mais, sobre os quais afirmamos
que ele exerceu uma influncia negativa, devemos admitir que
a responsabilidade, se h alguma, antes dos poetas que foram
influenciados que do poeta cuja obra exerceu a influncia. [...].
Estou inclinado agora a concordar com o Dr. Tillyard que
colocar a responsabilidade sobre Milton e Dryden foi um erro.
Se uma tal dissociao de fato ocorreu, as causas so muito
complexas e profundas para justificar a mudana em termos de
crtica literria (1961, p. 173, traduo minha).

Ora, alm de admitir que sua avaliao de Milton, formulada ao lon-


go de vrios anos e em diferentes ensaios, pode ter sido reducionista, Eliot
tambm coloca sob suspeita o prprio conceito que passou a funcionar
como parmetro avaliativo, por exemplo, para a nova crtica. Ou seja,
se nos ensaios iniciais Eliot expe sua tese com ares prescritivos, como
quem chega a uma concluso cujo valor de verdade parece incontestvel,
em Milton II o poeta abandona parcialmente tanto a crtica a Milton
quanto a tentativa de descrever a dissociao da sensibilidade, como se o
seu vnculo com tais posies fosse, digamos, casual e de fcil anulao.
No se trata de afirmar, logicamente, que Eliot deveria ter-se mantido fiel
s suas teses iniciais; a rigor, cabe apenas apontar a facilidade com que o
poeta se desvincula das prprias regras que, paradoxalmente, no deixa de
propor a todo instante em seus textos crticos. Isso nos leva, portanto,
inevitvel questo: at que ponto devemos receber os conceitos de Eliot
como resultado de anlises totalizantes? No seriam estes, pelo contrrio,
parte de uma mquina de formulao de teses que opera segundo as neces-
sidades tericas ou artsticas do autor?
Essa parece ser a concluso a que chega um crtico como John Ha-
rwood quando declara que o apelo de Eliot tradio simplesmente im-
pede qualquer avaliao da questo, pois tradio significa qualquer coisa
que desejarmos, e nada em particular. Construda como ferramenta pr-
tica, mostra-se, como quase todas as prescries de Eliot, absolutamente
intil (1995, p. 121, traduo minha). Com efeito, se tomarmos como
exemplo o tratamento posteriormente conferido noo de dissociao da
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sensibilidade e vale ressaltar que no estamos diante de um caso excep-


cional em que Eliot abandona suas posies anteriores , ento teremos
sim a impresso de que, para o poeta, mais importante do que a validade
do argumento , de fato, a sua proposio. Ao analisar a ideia de tradio
em Eliot, Jeffrey Perl conclui que sua devoo tradio e conveno
no expresso de um absolutismo cultural, mas sim o contrrio: ex-
presso de um ceticismo radical em relao a qualquer perspectiva filos-
fica (1989, p. 63, traduo minha). Em ltima instncia, partilhar desse
ceticismo do autor seria no mnimo aconselhvel para uma leitura menos
ingnua de seus textos crticos.
De resto, o caso John Donne nos prova que, para Eliot, tradio preci-
samente mudana e novidade. [...]. A mudana no meramente um aspecto
da tradio, mas sim a prpria tradio (DAVIDSON, 1985, p. 80, traduo
minha). Nesse sentido, os escritores que Eliot considera tradicionais ocupam
um lugar relativamente provisrio que pode ser reajustado de acordo com as
discusses formuladas num tempo presente. A fala de Eliot sobre a importn-
cia da tradio, em vez de assinalar uma postura classicista diante do objeto
literrio, revela uma leitura do passado que converge, sempre, para o presente,
de modo a suscitar o estranhamento de algo que se anuncia como familiar. No
fim, a tradio no passa daquilo que retomamos devido a uma incompletude
fundamental que sempre volta a nos assombrar.

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TRADITION REVISITED: T. S. ELIOT AND


THE JOHN DONNE AFFAIR

ABSTRACT
From the notion of dissociation of sensibility, exposed
by T. S. Eliot in his essay The Metaphysical Poets,
published in 1921, this paper discusses how the poet
shifts the positions occupied by John Milton and
John Donne in the English literary canon through
an argument that defends the connection between
individual talent and literary tradition. In sum,
despite the apparent classicism associated to the idea
of literary tradition, Eliot conceives the canon as a
movable body that can be adjusted according to the
interests of the present time. Tradition is, in short, an
object that can be manipulated due to its permanent
reconstruction.

KEYWORDS: Eliot; tradition; canon.

Recebido em: 03/09/2015


Aprovado em: 13/03/2016

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