2016 - Tradição Revisitada - T. S. Eliot e o Caso John Donne
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2016 - Tradição Revisitada - T. S. Eliot e o Caso John Donne
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Andr Cechinel
RESUMO
A partir da noo de dissociao da sensibilidade, ex-
posta por T. S. Eliot no ensaio Os poetas metafsicos
[The Metaphysical Poets], de 1921, este artigo bus-
ca discutir o modo como o poeta desloca as posies
ocupadas por John Milton e John Donne no cnone
literrio ingls por meio de um argumento que defende
a necessidade de aliar o talento individual tradio
passada.
Introduo
Sensibilidade dissociada
[...] a mais estranha das ironias nisso tudo eis o que tenho a
dizer sobre o segundo dos poetas corrompidos que Milton
[...], que realmente acreditava e defendia a unidade da alma
(um contnuo entre mente e sensibilidade), permitiu que
sua insistncia na inseparabilidade entre forma e contedo
o conduzisse heresia; Milton acreditava que a poesia tinha
precedncia sobre as demais atividades da alma por ser simples
(indissociada pelo intelecto), sensvel e apaixonada. Mas isso
no importava; havia razes primordiais para que Milton
tivesse de ser curvado ou violado (KERMODE, 1957, p. 150,
traduo minha).
posies ocupadas, dentre outros, por Milton, Dryden e Donne provava ter
cumprido seu papel no projeto modernista.
Variedades metafsicas
utilizado mais que nunca como um parmetro crtico (ELIOT, 1996, p. 43,
traduo minha). Isso no quer dizer que Donne seja o maior dos metafsicos;
a rigor, Dante o poeta que parece ocupar essa posio na teoria de Eliot. O
centro articulador da tese constitui o sculo XVII, antes, pela crena de que
esse justamente o momento em que se instaura a dissociao da sensibilidade
da qual jamais nos recuperamos.
Nas palavras de Eliot, portanto, o primeiro grande exemplo do tipo de
poesia que busco definir , logicamente, Dante [...]; Dante sempre encontra
o equivalente sensvel, a encarnao fsica, para a concretizao da mais t-
nue e refinada intensidade da experincia (1996, p. 57, traduo minha).
O comentrio de certo modo resume o que Eliot v como trao fundador da
universalidade do poeta italiano: O estilo de Dante tem uma lucidez pecu-
liar uma lucidez potica [...]. O pensamento pode ser obscuro, mas a palavra
lcida, ou melhor, transparente (1989, p. 66). Em outras palavras, o que
determina a posio privilegiada ocupada por Dante nada mais do que sua
capacidade de conferir concretude s imagens, contrastando vivamente com
o obscurantismo que Eliot identifica, entre outros, na poesia romntica. De
todo modo, se uma das funes da poesia fixar e tornar mais conscientes e
precisas as emoes e os sentimentos dos quais as pessoas participam em sua
prpria experincia (1996, p. 51, traduo minha), Dante seria o maior dos
poetas, pois possua, como dito, todas as qualidades possveis que poderiam
adornar um poeta filosfico (1996, p. 58, traduo minha).
Ora, o que diferenciaria, ento, a poesia do trecento, que Eliot ilustra a
partir de Dante todavia sem se limitar a este , da segunda gerao de poetas
metafsicos, por sua vez representada fundamentalmente pela figura de John
Donne? Afora determinado fatalismo histrico que o poeta da terra desolada
introduz com tonalidades no menos metafsicas do que sua tese As dife-
renas [entre Dante e Donne] envolvem certa teoria acerca da desintegrao
do intelecto na Europa moderna (1996, p. 158, traduo minha) , os pontos
que afastam Dante e Donne dizem respeito, uma vez mais, questo do foco,
ou melhor, ao grau com que ambos os poetas lidam com a integrao entre in-
telecto e sensibilidade. Por um lado, o interesse de Dante est na ideia ou no
sentimento a ser transmitido; a imagem sempre torna essa ideia ou sentimento
mais inteligvel. Por outro, em Donne, o interesse revela-se disperso; pode
estar na habilidade de transmitir a ideia por uma imagem em particular, ou a
Cechinel, Andr.
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prpria imagem pode ser mais difcil que a ideia; ou pode estar na compulso,
e no na descoberta, de semelhanas (ELIOT, 1996, p. 120, traduo minha).
Em resumo,
Um dos pontos cruciais das palestras de Eliot talvez seja, entretanto, sua
abordagem pormenorizada de uma terceira variedade de poesia metafsica, at
ento apenas sugerida en passant em alguns de seus ensaios: seu pai Bau-
delaire, ela existiu na Frana entre 1870-1890, e os poetas importantes, para
o meu propsito, so Jules Laforgue, Arthur Rimbaud e Tristan Corbire
(1996, p. 59, traduo minha). Tal como no caso da diferena entre Dante e
os metafsicos ingleses do sculo XVII, o que distanciaria os simbolistas fran-
ceses de Donne, por exemplo, seria a etapa mais avanada a que chegara a se-
parao entre pensamento e sensibilidade: a desintegrao do intelecto atin-
giu, em Laforgue, um estgio muito mais avanado do que em Donne; para
Laforgue, a vida estava conscientemente dividida entre pensamento e sensibili-
dade (1996, p. 212, traduo minha). Sabe-se que a influncia de Laforgue
e dos demais simbolistas sobre Eliot foi decisiva principalmente em Prufrock e
outras observaes [Prufrock and Other Observations] (1917), seu primeiro livro
de poesia. No entanto, nas palestras sobre as variedades metafsicas, o leitor
adentra uma sorte de histria literria que por vezes silenciosamente, por
vezes de modo explcito caminha com Eliot em sua trajetria potica. Assim,
no contexto dessas palestras possvel notar que o poeta se posiciona como
sucessor imediato dos simbolistas franceses e, em particular, de Laforgue.
De modo geral, por trs do aparente rigor analtico com que Eliot sus-
tenta suas hipteses, por trs dos diversos exemplos que atestam a sua verso
da histria literria e da suposta dissociao da sensibilidade, o que percebemos
Cadernos de Letras da UFF Dossi: A crise da leitura e a formao do leitor n 52, p. 509-523 519
nas palestras , na verdade, uma apreciao parcial por vezes idealizada dos
poetas afetados direta ou indiretamente pela tese. Tal como Edward Lobb indi-
ca, mesmo ao atacar o solipsismo romntico, Eliot partilha (particularmente
nas palestras) de um aspecto da sensibilidade romntica a tendncia de olhar
retrospectivamente como uma fonte de valor (1981, p. 62, traduo minha).
Essa valorao do passado, portanto, apesar de apresentada sob um discurso
pretensamente cientfico, mostra-se carregada de um contedo pessoal, subjeti-
vo. Louis Menand est correto ao afirmar que os ensaios iniciais de Eliot atra-
ram sua gerao [...] por elaborar um argumento que os leitores j conheciam.
Como se sabe, o perodo que se estende do final do sculo XIX ao incio do
sculo XX [...] ficou conhecido pela [...] fabricao de tradies [...]. Foi um
momento na Europa e nos Estados Unidos marcado por aquilo que Hobsba-
wn recentemente chamou de produo de tradies em massa (2007, p. 131,
traduo minha). O discurso da tradio, acompanhado do discurso da crise,
constitui, em suma, um dispositivo do qual Eliot lana mo para projetar a sua
obra como ponto de chegada de um longo percurso histrico. A organicidade
do cnone explorada de modo a efetuar pequenos desvios.
Observaes finais
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ABSTRACT
From the notion of dissociation of sensibility, exposed
by T. S. Eliot in his essay The Metaphysical Poets,
published in 1921, this paper discusses how the poet
shifts the positions occupied by John Milton and
John Donne in the English literary canon through
an argument that defends the connection between
individual talent and literary tradition. In sum,
despite the apparent classicism associated to the idea
of literary tradition, Eliot conceives the canon as a
movable body that can be adjusted according to the
interests of the present time. Tradition is, in short, an
object that can be manipulated due to its permanent
reconstruction.