Estética em Plotino-Patrick
Estética em Plotino-Patrick
Estética em Plotino-Patrick
1
Gostaria de agradecer a FAPERJ pelo apoio financeiro na realizao de minha pesquisa de ps-
doutorado sobre Plotino.
2
Plotino nasce em Licopolis, no Egito, em 203 d.c. e morre em 270 d.c. Sobre sua vida, ver Vita Plotini,
texto de seu aluno Porfrio que, na maioria das edies, publicado junto com as Enadas.
ordem que ele acreditava ser a melhor, mas teve tambm a generosidade de nos deixar a
suposta ordem cronolgica em que Plotino teria escrito estes tratados. Assim, ao citar
um tratado, normalmente se cita tanto o nmero cronolgico em que o tratado foi
escrito, assim como a localizao em que Porfrio a colocou3.
13
V, 1 [10] 3.
14
V,1 [10] 6.
15
H diversas passagens em Plotino sobre a matria, algumas delas so as seguintes: II, 4 [12], 16 Matria
como no ser. I, 8 [51], 14, Matria no faz unidade com a Forma. III, 6 [26], 13, Espelho sem forma que
reflete o nos, etc.
16
Toda esta descrio que acabamos de fazer pode parece dogmtica e sem fundamentos razoveis. No
entanto, devemos situar a metafsica de Plotino dentro da tradio platnica que, com o chamado Mdio-
Platonismo, j pensa a realidade em uma estrutura tridica. Ver DILLON, J. The Middle Platonists,
Ithaca, Cornell University Press, 1977.
Amante (erasts) e o Filsofo tm certo privilgio nesta jornada de ascenso rumo ao
Princpio.
Na nossa tentativa de descrever a noo de beleza em Plotino, perceberemos sua
caracterizao dupla e parcialmente contraditria: a beleza se encontra e ao mesmo
tempo no se encontra em cada um dos nveis desta subida. Na medida em que a sua
metafsica hierrquica estruturada em nveis que copiam os nveis anteriores, a beleza
que se encontra no nos estar tambm presente, de alguma maneira, em cada uma das
esferas inferiores. Portanto, ao passo que a beleza se encontra mais intensamente em
uma esfera superior, mesmo nesta maior intensidade, ainda ser necessrio ultrapass-la.
O original que antes era o paradigma se torna nova cpia, convidando para novo
movimento de superao. Mesmo com toda paixo da descoberta de um novo grau de
intensidade da beleza, a saudade do alm retorna, insidiosamente, a nos acordar para
continuar a jornada.
Fica claro que a Beleza to cara a Plotino, pois tambm o era para o Divino
Plato. No mestre, assim como no nosso neoplatnico, o esforo pessoal de
transformao o meio de compreender o Belo: esttica e tica. Tanto no clebre
Banquete, no discurso da Diotima17, quanto no Fedro, especialmente no segundo
discurso sobre ros18, Plato apresenta claramente a busca pela Beleza vinculada a uma
ascese19. De acordo com a mais ntima conexo entre tica e esttica, a possibilidade de
compreenso da Beleza est no exerccio (skesis) de transformao pessoal rumo aos
nveis superiores da realidade.
Citando o prprio Fedro20, Plotino, em um de seus tratados 21, vai afirmar que h
trs naturezas humanas aptas viagem rumo a estes nveis superiores: a do msico22, a
do amante e a do filsofo. O msico e o amante comeam seu processo de
aprendizagem pelo prprio mundo sensvel, j o filsofo consegue naturalmente
perceber a beleza dos outros nveis. Mas antes de passarmos para a superao do
sensvel, vale a citao da definio de beleza sensvel: afirmamos que pela
17
Que se encontra inserido no discurso de Scrates, 201d 212c.
18
244a 257b
19
A importncia deste termo, askesis, utilizado filosoficamente primeiro pelos cnicos, fundamental em
Plotino.
20
248d [...] mas a alma que viu maior quantidade de (formas) entrar no nascimento de um homem
filsofo ou de um amante do belo (philokalou) ou de um msico (mousikou) ou de um amante (erotikou).
21
I, 4 [20], 1 Sobre a dialtica.
22
Vale salientar que a natureza de um msico aquela vinculada a todas as ditas belas artes, os amantes
das musas.
participao nas idias que estas coisas so belas.23 Ser belo participar nas formas
perfeitas, que so contempladas pela alma e com certeza no se esgotam no sensvel.
Assim, tal amor ao sensvel deve ser refinado e aprofundado. Como na escalada
ertica proposta por Diotima no Banquete24, o amante e o msico precisaro aprender
que a beleza contemplada no mundo sensvel para um, no rosto do amado, para outro,
no encadeamento das notas e da poesia provm de uma outra ordem da realidade, cuja
descoberta necessria. O primeiro passo da subida consiste em perceber certos entes
belos cuja existncia no pode ser restrita ao mundo corpreo: as cincias, as virtudes,
as atitudes belas no podem ser compreendidas como realidades corpreas. O amante e
o msico devem ser educados a verem beleza tambm nos objetos que no os sensveis,
e devem perceber ali sua maior intensidade. D-se, ento, um primeiro passo na subida
tica proposta por Plotino: o encantamento com a beleza do mundo sensvel e a
correspondente sada para outro nvel.
23
. 1,6 [1], 2, 13-14.
24
210a 212b
que o prprio movimento cclico csmico ordenado pelo que h nele de notico, o que
h nele de inteligvel: o movimento matemtico dos astros25. Surge, para o aprendiz
extasiado de beleza, o Inteligvel que a prpria alma contempla em seu organizar dirio
das coisas do mundo. A maior intensidade se torna ainda pouca, e a nostalgia do mais se
incide no corao daquele que ama o Belo. Continua-se.
Surge, refulgente, o novo vasto mar de beleza26, aquele mesmo que paradigma
das atividades anmicas. Percebe-se um novo nvel de beleza, o do nos, pois a subida
ertica no termina no nvel da psykh. O aprendiz de beleza deve perceber que o ato
especfico da alma, aquele que a proporciona ser e beleza, a contemplao de uma
esfera ainda superior, aquela do nos, do Intelecto. Ao se identificar com o Inteligvel, a
alma encontra aquilo que ela realmente ama, a Beleza em si mesma. Nesta hipstase,
tudo brilha, tudo cintila com o resplendor da Beleza que perpassa todas estas realidades
superiores: as Formas. Na medida em que estamos no mbito dos entes que realmente
so, cada uma das realidades conter o mximo de beleza e perfeio.
O estatuto deste Mundo Inteligvel no pouco complexo, e a sua investigao e
descrio no cabe neste artigo. Mas, uma imagem muito elucidativa para compreend-
lo aquela apresentada no captulo 9 do tratado 31, Sobre a beleza inteligvel. Plotino
nos sugere que imaginemos o cosmos como uma grande esfera, e que, ento, retiremos
tudo que h de corpreo, phele ts hles, e que retenhamos apenas a forma do cosmos,
como uma imensa esfera transparente (ep spharas diaphanos)27. Esta imagem
representa muito bem a interconexo entre todos os entes presentes no nos: ao
contemplar qualquer parte, estaremos contemplando o todo. Todas as Formas contm,
de alguma maneira, a totalidade do mundo inteligvel e, assim, tudo ali pura Beleza.
Trata-se de um ntimo contato de tudo que ali se apresenta, de uma intrnseca conexo
mtua. Tanto o artista quanto o amante encontram aqui o nvel mximo de sua
inspirao neste complexo de Formas, que a hipstase do nos.
25
Vale uma ressalva interessante: tanto Plato quanto Plotino no negam absolutamente a beleza do
mundo corpreo, mas defendem que tal Beleza provm de uma esfera superior que contm mais
radicalmente aquilo que se deseja.
26
Banquete, 210d4. Plotino interpreta a passagem da ascese ertica da Diotima
em que o aprendiz de belo se volta para as belezas da cincia como o alcanar o nvel notico.
27
H certa recorrncia desta expresso em Plotino: ver II, 1 [40], 7, 47-48; IV, 5 [29]; II, 9 [33], 17, 4.
esfera da Beleza, no se trata, no entanto, do ltimo nvel da realidade. H algo ainda
hyperkalos28, alm do Belo. A delicadeza e sutileza de Plotino ao tentar qualificar tal
realidade sumamente transcendente o Uno como sendo ainda objeto do desejo
humano, e ao mesmo tempo, encontrando-se alm de todo ente, bastante interessante.
Como j foi dito aqui, o Uno epkeina ts ousas, alm de todo ser, e, portanto,
nenhuma qualificao lhe pode ser atribuda. A Beleza o superlativo do ser (ousa),
aquilo que expressa a maior realidade do ser, e, no entanto, o Uno, o Bem se encontra
para alm de todo ser. Entretanto, por ser o sumamente amvel, erasmitaton29, ele
tambm, de alguma maneira, belo: kllos hper kllos, beleza alm da beleza.
A alma identificada ao nos percebe que no terminou sua jornada, pois percebe
que h ainda algo mais amvel do que o nos, percebe que a prpria dialtica notica
deve ser ainda ultrapassada. O nos se apresenta tambm como amante, o nos ern30, e
o seu anseio pelo sumamente transcendente, o Uno-Bem.
Em um dos tratados mais famosos das Enadas, o Sobre o Belo, I, 6 [1], Plotino
bastante claro ao afirmar a necessidade de um trabalho sobre si mesmo com vistas
compreenso da Beleza. Ora, na medida em que apenas aquele que a contempla pode
realmente compreender a Beleza, e somente em um trabalho tico de aperfeioamento
de si mesmo possvel contempl-la (pois, em verdade, a contemplao ocorre atravs
de uma identificao), epistemologia, tica e esttica so inseparveis em Plotino.
Podemos perceber traos da necessidade prvia de uma identificao pessoal com a
beleza inteligvel em algumas passagens do tratado 1.
28
Termo provavelmente cunhado pelo prprio Plotino. Ver V, 8 [31], 8 e 13; V, 5 [32], 12; VI, 7 [38],
3229 e 33, 20. Esta idia j aparece na Repblica, na famosa imagem do sol como sumo transcendente,
509a7.
29
VI, 7 [38], 32, 25 e 33, 14.
30
VI, 7 [38] 35, 21-27.
Quanto s belezas superiores que j no cabe percepo ver a alma,
sem rgos, as v e proclama, pois, para aqueles que contemplam, necessrio
elevar-se, abandonando a percepo, que permanece embaixo. Assim como no
possvel descrever aos que no vem, caso forem cegos de nascena, as belezas da
sensibilidade ou aos que no as reconhecem como belas, do mesmo modo no [
possvel descrever] a beleza das ocupaes a no ser para os que as aceitam
plenamente [...]31
Deve-se subir (anabaton) de novo para o Bem, para aquilo que toda a
alma deseja. Se algum viu isto, sabe o que eu digo, em que sentido ele belo
[...] mas somente o obtero aqueles que subirem at o alto e se converterem, e ao
se despir das vestimentas que receberam ao vir para baixo [...] 32
Tal prtica notica de ascese pressupe o trabalho, o exerccio, que nos reporta
necessariamente a Digenes, o Co, o pensador do mais rduo exerccio de toda
31
I, 6 [1], 4, 1
32
I, 6 [1], 7.
33
Aqui estou pensando especialmente no tratado 1, que estilisticamente uma diatribe: forma dialgica
que interpreta um texto clssico (no caso, o Banquete e o Fedon), desenvolvido por perguntas e respostas,
como em uma aula. Tal estilo teve seu incio nas aulas cnicas, e Teles, o cnico, teria sido o primeiro a
compor tratados em diatribe. Ver a BREHIER, introduo da sua traduo das Enadas, pela Belles
Lettres, p. XXXI etc.
antiguidade. Renncia de tudo que for outro, afirmao e prtica daquilo que for mais
prprio, daquelas atividades mais autnticas, o exerccio do que for mais meu: a
filosofia de Plotino , em certo sentido, a livre e nobre autarquia da postura Cnico-
Socrtica. Todo o mundo material, todo o exterior, simplesmente no pode dizer
respeito quele que busca a mxima liberdade, ser como um cnico grego significa
esforar-se. Lembramos, ento do auto-lapidamento de Plotino e chegamos, enfim, no
famoso esculpir a prpria esttua.
A tarefa rumo ao Belo sempre sobre aquele mesmo que o procura, e o aprendiz
do Belo torna-se o prprio objeto a ser vasculhado, escrutinado. Tal a obra do homem
virtuoso que aceita a necessidade de uma experincia pessoal com o belo para a sua
correta compreenso, e por isso busca o mergulho na beleza inteligvel do nos.
Encontramos nas Enadas imperativos de abandono, de limpeza, de se retirar o excesso,
imperativos que descrevem o trabalho de um possvel escultor que aprimora em si
mesmo a sua esttua. Eis uma das mais belas passagens de Plotino:
34
Seria interessante fazer referncia metafsica do artista do Nascimento da Tragdia de Nietzsche.
inteligvel. A grande obra artstica de todos aqueles que buscam a realizao do belo a
prpria vida virtuosa, vida identificada com o mais sublime nos.
No entanto, com j falamos desde o princpio, h um nvel alm do nos, o Uno-
Bem. Aproximamo-nos, agora, do mais hiperblico da transcendncia de Plotino: o
epkeina ts ousas, o alm do ser, alm do alm, a negatividade sumamente positiva da
teologia negativa, que no se deixa apreender nem pela pujana e magnanimidade do
nos. Ao transcender um nvel que j nos parecia transcendente, o nos, adentramos em
um mbito de pura sobreeminncia, do Uno Supremo, o Primeiro, a que nem a dialtica
alcana: abandona-se tudo, o Puro Abandono. Em tal radicalidade de Alm, nem se pode
mais falar de Arte, nem de Belo, nem de Ser: logra-se, agora, em uma inesperada
unificao, o ininteligvel, o inefvel, o Grande Outro, Hn-Agaths.
No entanto, Plotino sempre nos pega de surpresa, e nos apresenta um ros do
prprio uno. Se o ros, na concepo grega que foi solidificada pela dialtica com
Diotima, sempre em busca do Belo, e por isto um atestado de deficincia frente ao
objeto amado, seria estranho descobrirmos o prprio Uno, pura perfeio, tambm como
amante. O refinamento do pensamento de Plotino sublime: trata-se de um auto-
amante: E ele , tambm, amado, e amor e amor de si mesmo, e, sendo belo, no pode
retirar sua beleza a no ser de si mesmo [...] 35. A complexidade de tal expresso em
Plotino, ers auto, no pequena, apesar dos poucos estudos mais aprofundados sobre
esta passagem36, e aqui no o lugar de tratarmos dela. Vale apenas a indicao.
A arte em Plotino
35
VI, 8, [39] 15
36
Ver o livro de LACROSSE, Lamou chez Plotin.
37
Em portugus temos a traduo detalhadamente comentada de SAORES, Plotino, Acerca da Beleza
Inteligvel em Kritrion, 107, Jan Jun, 2003, UFMG.
Mas se algum despreza as artes (tchnas) porque estas produzem
imitando (mimomenai) a natureza (phsin), primeiro precisa ser dito que tambm
as coisas da natureza imitam outras. Em seguida, necessrio saber que a arte no
imita simplesmente isto que se v, mas ela se eleva aos princpios racionais (tos
lgous) dos quais a natureza deriva. Alm disto, elas ainda produzem muitas
realidades por si prprias, j que elas complementam quando quer que algo falte:
porque elas possuem beleza. Pois quando Fdias produziu (poisas) o seu Zeus, no
se voltou para nada que fosse sensvel (aisthetn), mas apreendeu o modo como
seria se Zeus quisesse aparecer para nossos olhos.
38
V, 7 [31],6. Traduo baseada na de SOARES, j citada, com modificaes.
39
Os comentadores so unnimes em afirmar que Plotino desconhecia que os hierglifos, possvel objeto
a que se refere neste texto, que tm tambm uma estrutura alfabtica em sua linguagem.
A definio explcita de beleza no tratado I, 6 [1], que j apresentamos neste
texto, nos remete ao deleite que se sente ao contemplar a forma presente na matria40.
Mas como, ento, so belas as coisas de l e estas daqui? Afirmamos que estas so
belas por participao nas Idias, j que todo amorfo, que capaz por natureza de
receber forma e Idia, feio e excludo da divina razo formativa 41 na medida em
que est alijado da Idia e da razo formativa: o feio absoluto assim. 42