GONÇALVES, Cristhovão Fonseca. Na Central Da Capital - Entre As Drogas e o Pacto
GONÇALVES, Cristhovão Fonseca. Na Central Da Capital - Entre As Drogas e o Pacto
GONÇALVES, Cristhovão Fonseca. Na Central Da Capital - Entre As Drogas e o Pacto
- etnografando a criminalizao das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela
Vida no Grande Recife
Recife PE
CRISTHOVO FONSECA GONALVES
- etnografando a criminalizao das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela
Vida no Grande Recife
Recife-PE
2016
CRISTHOVO FONSECA GONALVES
- etnografando a criminalizao das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela
Vida no Grande Recife
_______________________________________________
Prof. Dr. Jos Luciano Gis Oliveira
________________________________________________
Prof. Dr. Ela Wiecko Volkmer de Castilho
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Prof. Dr. Marlia Montenegro Pessoa de Mello
____________________________________________
Prof. Dr Luciana Maria Ribeiro de Oliveira
AGRADECIMENTOS
A minha av, Snia Queiroz Fonseca, por ser exemplo de f e de luta durante
toda uma vida e por ter sido a minha maior professora. Abre a tua boca a favor do
mudo, a favor do direito de todos os desamparados a lio dos Provrbios 31:8 que
ouvi repetidamente dela e que de alguma maneira pretendo sempre executar. Agradeo
a meu pai Carlos Alberto Penante Gonalves por ter me ensinado que na corda bamba
de sombrinha o show de todo artista tem que continuar numa cano sobre esperana.
Ao meu irmo, Carlos Jnior, por todo o carinho e compreenso, sem os quais no
conseguiria ter realizado minha pesquisa na Central da Capital e a escrita deste trabalho.
A mame, Suely Queiroz Fonseca, por ter me falado de justia social antes
mesmo de eu saber o que era o direito, pelo exemplo de fora e de coragem que sempre
me inspiraram. A Marlia Montenegro Pessoa de Mello por ter me apresentado o saber
pulsante da Criminologia Crtica e por ser uma aguerrida professora. Mirem-se nos
exemplos dessas mulheres de Atenas.
Ao Luciano Oliveira (professor) por colocar em prtica a lio de Rubens
Alves de encorajar voos sem dizer como se deve voar: escolas que so gaiolas existem
para que os pssaros desaprendam a arte do voo; pssaros engaiolados so pssaros sob
controle. Ao Luciano Oliveira (amigo e companheiro) por, numa noite, na Faculdade
de Direito do Recife, ter recebido de braos abertos a mim, um estudante cheio de
sonhos, por ter respeitado o eu militante, e por ter soltado umas das suas, que nunca
esqueci, quando cheguei atrasado em sua aula por estar pelos corredores com uma
camisa vermelha: Quer dizer que a cadeira vazia com livros de Criminologia de um
inconformado?.
A todos os policias que me ajudaram a entender e sentir as polcias e seus
dilemas. Ao amigo Francisco de Assis Ramos por ter me encorajado a seguir nesta
pesquisa. Ao delegado Bruno Chacon pelo compromisso com a garantia de direitos e
com a cidadania, que devem ser as reais metas da polcia. Ao delegado Ademir Soares,
pela sobriedade e exemplo de operador do garantismo penal na atividade de
criminalizar. Ao delegado Albrico Pires pelo sorriso e alegria, que se impem mesmo
diante das situaes de dor verificadas em delegacias. s delegadas Maria Helena
Couto pela elegncia que se destaca na Central e Alcilene Messias pela postura firme e
tica de uma mulher que no aceita injustias de uma ordem policial militarizada. Aos
delegados do DENARC Isaias Novaes e Joo Leonardo por me receberem nessa
repartio policial e terem contribudo significativamente para essa pesquisa. A Luciana
Karla por ter me recebido e por todo o apoio. Aos escrives e s escrivs Cristianne dos
Santos, Daniela de Oliveira, Douglas Gomes, Rafaella Di Paula e Carlos Eduardo de
Oliveira por terem me dado suporte ao longo de toda a pesquisa.
Ao amigo-irmo Diego Lemos pelos sempre desafiadores estmulos, por dividir
bons e maus momentos e por compartilhar sonhos e discursos que, por vezes, saem do
universo do direito e tomam fora na poltica, que, talvez, no seja meio para atingir
qualquer finalidade, seno a liberdade, como sinaliza Hannah Arendt. A Yasmim Vilar
por ser o elo mais belo dos tempos de escola e pelo seu ouvir e ensinar generosos. s
amigas Maria Luiza Caxias, por me completar, Jssica Barbosa e Juliana Serretti,
companheiras e irms de longa data e referncias para mim num agir aguerrido. A
Andrea Mello, por t-la encontrado nos caminhos do afeto, que me ligaram sua filha
Maria Clara, amiga especial e nica. sempre companheira Rafaela de Alcntara pela
caminhada que sempre nos uniu.
A Vera Regina Pereira de Andrade, pela histria de luta e resistncia na
Universidade. Pelo exemplo de altivez que nem a punio nem as vicissitudes da
educao conseguem derrubar. A Vera, matriz ideolgica de um agir criminolgico
comprometido com a luta poltica, capaz de fomentar a criao de grupos como o Asa
Branca de Criminologia. Em nome de todo o Grupo Asa Branca agradeo ainda ris
Dayane por ser uma amiga querida. Considero-a tambm a minha primeira aluna. ris
honra a longa gerao de jovens criminlogos/a sonhados por Roberto Lyra Filho, de
intelectuais orgnicos, para quem o saber s tem sentido se tiver engajamento social.
Universidade Catlica de Pernambuco, onde aprendi o que faz o/a
sertanejo/a quando batem as seis horas e pelo humanismo que resiste nesta
Universidade. Agradeo teloga feminista Ivone Gebara a quem avistei algumas vezes
pela Universidade, mas nunca tive coragem de dirigir a palavra, tamanha a deferncia
que a guardo. Ao Pr-reitor Comunitrio Padre Lcio Flvio por ter, quando um aluno
desta Casa foi levado ao crcere, ido visit-lo, executando ensinamentos abolicionistas
penais e bblicos no silncio do cristianismo libertador. Agradeo aos professores da
Ps-Graduao em Direito em nome de quem sado Marcelo Labanca e Virgnia
Colares, pela acolhida, e a ltima pelas ousadas aulas de metodologia. Agradeo ainda
professora Carolina Feraz pelo exemplo de mulher e docente e pelo abrao que revigora,
sempre amiga e orientadora professora Clarice Castro, professora com quem dividi
as bancas de processo penal e com quem aprendi a ensinar respeitando Ftima Falco e
professora Flvia Santiago pelo notvel conhecimento e apoio. Agradeo s meninas
do Caf com Qu (Marcia, Lu e Amada) pelas divertidas conversas no apagar das luzes
da Universidade. Aos funcionrios do PPGD, Eunise e Alessandro, por tambm estarem
comigo no silncio e no apagar das luzes da Universidade. Pela ateno, presteza e
apoio a Nlia Queiroz, Srgio Wanderley, Danielle Mendes e Eliene Fabrcio.
Universidade Federal de Pernambuco em nome de quem agradeo a Liana
Cirne Lins pela ligao que originou esta dissertao e pela coragem e dignidade de
suas aes em nome da justia e do ensino do direito. A Eugnia Nilsen Barza pelas
aulas de Amrica Latina em que travamos batalhas, mas sobretudo pelo compromisso
com a educao e por ter me ensinado que estamos juntos na luta pela Universidade.
Agradeo ainda a minha professora de processo penal, Ana Maria Campos Torres, e a
sua mestranda, agora a professora Maria Luiza Souza, que me apresentaram ao rico
universo do processo penal e da humildade de ser professor mesmo em meio s
adversidades.
Ao Movimento Zoada, que me orgulho de ter construdo. Aos companheiros e
amigos, que reinventam a histria da esquerda na FDR, Paulo Borges, Anny Lay
Rodrigues, Dafne Dornelas, ele e elas do bonde Paulista, so o retrato da nova fora e
juventude que tomou a Universidade e me renovam e me enchem de jubilo. A Caio
Juc, em quem sempre me enxerguei, e a Elissa Deimiling, Toms Celino e Robeyonc
Lima, almas de grande corao a quem tive a sorte de encontrar na jornada da vida. Pela
fora e coragem, lembro e agradeo ao Grupo Alm das Grades, em nome de quem
agradeo a Murilo Correia, Alana Barros e Lucas Oliveira, por no esquecerem dos
vapores baratos, meros serviais do narcotrfico.
Dedico minhas homenagens ao movimento antiproibicionista que ousa lutar para
alm da institucionalidade e que percebe no haver o direito de punir, mas apenas o
poder de punir, como anuncia Clarice Lispector.
s amigas com quem fui agraciado pela ocasio do mestrado. Do PPGD da
UNICAP: Ana Paula Azevedo, Tassiana Oliveira, Louise Datas, Flora Oliveira, Tmara
Marlia, Vitria Dinu, com quem reatei os laos, e Camila Leite, a quem felizmente
pude conhecer. Do PPGS da UFPE, amiga com quem dividi madrugadas, Patrcia
Bandeira, e a Suzy Luna pelo nosso aproximar.
O sol queimou
Queimou a lama do rio
Eu vi um chi
Andando devagar
Vi um carangueijo
Andando pro sul
Saiu do mangue
Virou gabiru
Josu eu nunca vi
Tamanha desgraa
Quanto mais misria tem
Mais urubu ameaa
(...)
Da lama ao caos
Do caos a lama
Um homem roubado
nunca se engana
Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa emprica sobre a criminalizao das
drogas no departamento policial conhecido como Central de Plantes da Capital
(CEPLANC), localizado no bairro de Campo Grande, Recife, Pernambuco. Nesse local
passam a totalidade de pessoas apreendidas pela polcia militar em situao de flagrante
por uso, posse ou ato de traficncia de drogas na regio. Discuto questes tericas
relacionadas poltica proibicionista de criminalizao das drogas luz dos fatos
sociais presenciados ao longo dessa pesquisa de mestrado. Trata-se tambm da questo
das drogas e suas relaes institucionais com a segurana pblica. Na Central de
Plantes da Capital, realizei estudo etnogrfico envolvendo outsiders que l chegaram
conduzidos pela polcia militar com auxlio da Antropologia e Criminologia Crtica. O
objeto de pesquisa cientfica envolve o processo de criminalizao secundria de
usurios e traficantes. Essa engrenagem punitiva tem como motor o regime produtivista
de metas do Pacto Pela Vida que interfere significativamente nesse processo de
criminalizao no qual as polcias so executoras de diretrizes polticas dos governos
estaduais.
Ce travail prsente les rsultats dune recherche empirique sur la criminilisation des
drogues dans le departement de la police connu comme Centrale de Garde de la
Capitale ( CEPLANC ), situe dans le quartier de Campo Grande, Recife, Pernambuco.
Dans cet endroit passe la totalit de personnes emprisonnes par la Police Militaire en
situation de flagrant, pour lusage, possession, ou trafique de drogues dans la rgion . Je
discute sur les questions thoriques en relation la politique prohibitive de la
criminilisation des drogues sous la lumire des faits sociaux vus tout au long de cette
recherche. Il est question aussi des drogues et de ses relations institutionnelles avec la
scurit publique. Dans la Centrale de Garde de la Capitale, jai realis une tude
ethnographique avec les outsiders cas de qui arrivaient l-bas emmenes par Police
Militaire, avec laide de lAnthropologie et de la Criminologie Critique. Lobjet dune
recherche scientifique traite le processus de criminilisation secondaire des usagers et
traficants. Ce mcanisme punitif a pour moteur le rgime de production des buts du
Pacte Pour la Vie qui intervient signicativement dans ce processus de criminilisation
dans lequel les polices excutent les directives politiques des gouvernements des tats.
INTRODUO......................................................................................................12
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................147
REFERNCIAS.....................................................................................................................150
ANEXOS.................................................................................................................................156
12
INTRODUO
Era 17 de junho 2014. Num dia de sol, o Recife acordou com a mesma
fedentina do dia anterior, exatamente como cantava Chico Science, desde os anos
noventa, sobre os dilemas urbanos da capital pernambucana. Uma violenta reintegrao
de posse da rea Cais Jos Estelita estava em curso. Ningum conseguia acessar essa
regio. A polcia de trnsito garantiu que nenhum carro ou pessoa tivessem acesso
quela localidade. Naquela data, eu iria para o Cabo de Santo Agostinho acompanhar
dada situao de violao de direitos humanos por aquelas paragens.
Entendi, durante essa meu encontro com a Central, que todas as apreenses em
flagrante de Recife passavam por aquele local para a formalizao da ocorrncia. Pensei
rapidamente que esse talvez fosse um campo para a realizao de pesquisa emprica a
respeito da criminalizao das drogas, mas no me demorei no local. Parti rpido para o
Instituto Mdico Legal acompanhando os trs jovens que apresentavam leses corporais
por agresses policiais e pretendiam formalizar denncia contra esse abuso de poder.
14
Preciso falar sobre o meu olhar. Cada um tem o seu e carrega consigo
preconcepes no exerccio de enxergar o outro. Eu tinha as minhas vises sobre a
polcia e sobre os criminalizados por trfico de drogas. Pensei que o provrbio africano
do livro de Mia Couto, A Confisso da Leoa: at que os lees inventem as suas
prprias histrias, os caadores sero sempre os heris das narrativas de caa (2012,
p.9) daria a tnica do meu contar a histria dos vencidos sobre o que veria na Central
de Plantes, quando l cheguei.
O Pacto Pela Vida formulou regime de atuao policial, guiado por rigorosas
metas, como bnus crack, malhas da lei e pontos debelados, que indicariam as
eficincias e produtividades dos agentes da lei. Essas bonificaes norteiam a
criminalizao das drogas. Na toada dessas metas do PPV literalmente danam policias
e sujeitos desviantes conforme a msica do governo do estado, com o consentimento do
Ministrio Pblico e do Poder Judicirio.
1
A roupa outro constrangimento que abordarei a seguir. Explico ao leitor que, nesse dia, teria reunio na
CEHAB, Companhia Estadual Habitao e Moradia a respeito de um processo judicial sobre uma rea
conhecida como Passarinho. A CEHAB est localizada no mesmo conjunto de prdios onde esto o
Instituto de Criminalstica, o 13 Batalho e a CEPLANC. Os ossos de ofcio fizeram-me ir vestido mais
formalmente para aquela localidade.
20
(Imagem de incurses policiais no Mangue de Santo Amaro, por Paulo Paiva, Dirio de
Pernambuco)
(Imagem das Marias Caranguejo no Mangue de Santo Amaro, por Gianny Melo, Blog
de Jamildo)
Essa catarse atravs da imagem que inicia as reflexes deste trabalho uma
representao da sociedade, que tomei como minha, para descrever uma cena que
vivenciei. Parto da compreenso sociolgica de que falar sobre a sociedade envolve
uma comunidade interpretativa. Assim, numa organizao de pessoas rotineiramente
existiro representaes padronizadas de determinada situao (BECKER, 2009, 20).
O uso de imagens tem sido utilizado nas Cincias Sociais como forma descritiva
e no padronizada, para determinadas situaes sociais. Desse modo, alm das formas
clssicas como a etnografia, descrio verbal detalhada do modo de vida, considerado
em sua totalidade, de alguma unidade social, h outros modos de enxergar e analisar as
realidades sociais.
Para alm das formas tpicas que tambm usarei nesta dissertao, valho-me da
imagem. Procuro, com isso, resgatar naquela representao os elementos que me
remeteram ao nosso campo de pesquisa com a usuria de crack (a menina), a ave de
rapina (o policial militar) e o fotogrfico com seus dilemas ticos (o pesquisador, eu).
O retrato, pois, foi uma forma de salientar que o mundo mais amplo e mais
cheio de circunstncias do que pode ser revelado por qualquer representao
22
2
A Psicologia Comportamental h algum tempo fala sobre o efeito lcifer. Esse termo refere-se
experincia cientfica realizada por jovens estudantes que simularam a experincias de estarem alguns nos
papeis de presos e outros de carcereiros, no que se convencionou chamar de experimento de Stanford,
bastante significativo para explicar metamorfoses comportamentais entre os algozes e seus aprisionados.
No sigo nessa linha argumentativa, pois me reconheo adepto da Antropologia e seu anthropological
blues ou do ser afetado".
3
O termo representativo LGBTfobia, uma vez que no somente o homossexual a pessoa atingida pelo
preconceito relacionado identidade de gnero e orientao sexual ( nada de opo!). Lsbicas,
bissexuais, travestis e transexuais tambm encontram num processo social de julgamento de sua moral e
conduta uma pratica recorrente (LEMOS 2015, p. 87). Sobre a modalidade das travestis e das transexuais
preciso que, ainda, como constrangimento de pesquisa eu diga que so elas as vtimas do preconceito do
Estado, notadamente da polcia, quando chegam presas por crimes patrimoniais ou delitos relacionados s
drogas. O desrespeito comea com o tratamento no masculino e a exposio do nome real, constante na
carteira de identidade, a despeito do nome social que essas mulheres escolheram para si.
24
questo de ignorar, mas que, neste momento, deve ser apresentada como
constrangimento com que minha condio de sujeito teve que se deparar.
Falando do que se chama de opresses, alm da LGBTfobia, tive que conviver e
contornar outras como o machismo e o racismo. Para isso, preciso relatar, brevemente,
uma situao envolvendo o agir de um policial militar contra uma advogada e o
preconceito racista dessa bacharela em direito em relao ao soldado.
Esse caso ocorreu em um dos procedimentos envolvendo trfico de drogas que
acompanhei. Nele, a advogada, de postura firme e atuante, sofreu o constrangimento
que mulheres so levadas a experimentar num mundo em que impera a dominao
masculina.
O conduzir do procedimento pelo policial militar a impedia de exercer suas
funes de advogada ( At fazer o flagrante, quem manda sou eu!, ele gritava). Ela,
contratada pela famlia do rapaz acusado de trfico, era impedida de comunicar-se com
seu cliente, tendo o policial exigido uma procurao. Essa situao revelou-me que, ali,
a doutora estava sendo menosprezada pelo lugar da mulher advogada, coisa que
nenhum advogado tem que, de regra, suportar.
Tento conversar com o policial militar, quando ele se aproxima da rea em que
estou tomando um caf e fumando um cigarro. Ele parece querer conversar comigo,
desde quando entendeu que eu era um acadmico. Inicio o dilogo perguntando quantos
pontos debelados4 essa ocorrncia teria pontuado para ele. Dois pontos. Ele, o
policial responsvel por impedir o exerccio da defesa, apressa-se em dizer-me que
possui especializao em Direitos Humanos pela Universidade Catlica de Pernambuco.
Pausa um pouco tragando seu cigarro e, em seguida, fala um pouco sobre a
teoria dos direitos humanos. A conversa, que termina com o cigarro, encerrada de
forma inusitada com a seguinte frase: s vezes eu tenho que atuar5, mas tudo
encenao.
Ao conversar com a advogada ofendida em sua condio de mulher e de
profissional, tentando confort-la, ouvi que ela no se importava com o que macacos
diziam! Sim, o policial era negro e o racismo estava ali escancarado na minha frente.
Calei-me, engolindo em seco tamanha violncia.
4
Sobe as metas do que o Pacto Pela Vida chama de pontos debelados e bnus crack, mencionados
neste trabalho, ver as anlises no terceiro captulo.
5
A expresso atuar nos remete ao termo performatividade. A polcia militar tem a dela. O leitor pode
construir mentalmente como a polcia atua. Quero frisar que essa representao mental do leitor, talvez,
defina esse modo de encenar, mas no necessariamente do agir do ser humano que tem que encen-lo.
25
Igualmente difcil para mim, foi ter que administrar a condio de militante
poltico sendo tambm pesquisador. Como esclareci na introduo, e at mesmo neste
captulo, os caminhos que me conduziram Central foram as veredas de uma
reintegrao de posse violenta ocorrida no Cais Jos Estelita.
6
Num dia 7 (sete) de Setembro, depois do tradicional Grito dos Excludos, que h 21 anos sai s ruas do
Brasil nesta data, denunciando a excluso social, soube que alguns jovens na Praa do Derby estavam
sendo presos por usar mscara. Naquele dia, tornou-se crime/ato infracional de Desobedincia, artigo 330
do Cdigo Penal, cobrir o rosto e ir s ruas. Sim, eu realmente estive na DPCA como advogado.
26
e ainda tive timas informaes sobre o Pacto Pela Vida desse mesmo agente. Senti
uma espcie de respeito nesse reconhecimento. A polcia sabe quando algumas coisas
esto ocorrendo apenas pela vontade poltica de governos.
Outra questo envolvendo minha atuao poltica, essa um pouco mais delicada,
constrangeu-me durante a execuo da minha pesquisa. Depois de algum tempo em
campo, comecei a conversar informalmente com os policias civis que sempre estavam
na CEPLANC, entre eles as agentes que trabalham na sala do administrativo, com as
quais mantive um contato mais prximo.
Preferi faz-lo. Foi uma escolha, uma estratgia que adotei para evitar esse
delicado debate dentro da Central. Eu nem sempre estaria na sala do administrativo com
27
Se for pra dizer que a gente s prende preto e pobre num precisa nem perder
teu tempo aqui, doutor. Essa frase resume um soco no estmago que recebi de um
policial militar cansado dos intelectuais que o julgam. Esse agente da segurana falou-
me com riquezas de detalhes sobre os ftidos lugares que entra. Ele chegou a sugerir
que eu tinha que entrar numa viatura para ver como a coisa. Meu Dirio de Campo
revela a aflio dessas recordaes, quando um criminlogo crtico por plena convico
intelectual foi constrangido pelo tipo de conhecimento que produz junto a uma gama de
autores. Breve passagem do Dirio de Campo da madrugada de 13/09/15:
Quando essa frase foi dita, me senti sem cho e percebi como a polcia tem
noo que a crtica pela crtica dos intelectuais de esquerda no constri. Ela
est no div enquanto a policia t na rua. O sentimento foi de sair do salto alto
e perceber que a gente precisa ouvir e debater com a polcia.
Este estudo, de fato, sinaliza para o rasgado recorte racial7 e para o de classe que
vi no campo de pesquisa, e como as primeiras anotaes em meu dirio de campo
pontuam enfaticamente. Decidi, por outro lado, seguir o conselho indireto daquele
agente da lei e analisar o que est encoberto pelos vus da criminalizao das drogas e
das prticas policiais.
7
Ver na categoria traficante tpico (p. 95-96), oportunidade em que trago trecho do relato do jovem
acorrentado pelos ps. Nesta pesquisa essa cena o retrato da escravido e da persistncia de aoites e
grilhes que se estendem por sculos na sociedade brasileira.
28
algumas regularidades referentes cor da pele, tipo de roupa, de emprego (ou melhor,
subemprego), local de moradia, modo de falar, baixa-renda e todas as variveis que
forjam a figura humana tpica das classes populares, frequentadoras das Delegacias de
Polcia no Grande Recife, tanto como bandidos quanto como vtimas.
estao-em-crise-em-pernambuco-do-sucateamento-aos-salarios-em-atraso/>. Acesso em
08 nov. 2015).
8
Sabe-se que o ato de criminalizar o resultado de processos de definio e seleo que escolhem
determinados indivduos aos quais se atribui o rtulo de criminoso. Esses processos se realizam por trs
fases distintas: a criminalizao primria (criao dos tipos penais), a criminalizao secundria (atuao
da Polcia, Ministrio Pblico e Poder Judicirio) e, por fim, a criminalizao terciria (ingresso de
indivduos no sistema prisional)
30
Diferenciao que o traficante definido como criminoso e o usurio como doente (cf.
ZACONNE, 2011, p. 86). So as marcas histricas da criminalizao das drogas, que
transitou de um modelo sanitrio para um blico. Os autores brasileiros da Criminologia
Crtica costumam afirmar que essa ideia passou a tratar pessoas das camadas populares
envolvidas com drogas como traficantes e os privilegiados como usurios de drogas.
Essa uma meia verdade, como mostrarei ao leitor no segundo captulo.
Alm disso, saltou aos olhos a necessidade de debruar-me e direcionar o estudo
para compreender o regime de metas. Essa forma gerencial de tratar a questo criminal
criada ou corroborada pelo Pacto Pela Vida produziu entre os agentes policiais uma
cultura de apreenso e de prticas, por vezes ilegais, desnudadas ao leitor, no captulo
terceiro desta dissertao.
Desse modo, o objeto de pesquisa fechado e delimitado em torno do que se
conhece como Ideologia da Diferenciao entre usurios e traficantes passou a percorrer
outro caminho para compreender novas categorias de usurios e traficantes e as
idiossincrasias do modo pernambucano de fazer segurana pblica, sobretudo em
relao questo das drogas. Eis o objeto de pesquisa que norteia esta dissertao,
leitor.
As interaes que marcam a quase integralidade desde trabalho so fruto, no de
entrevistas, mas de pontos que, no caminhar da pesquisa de campo, comecei a sentir
necessidade de esclarecer pouco a pouco, sem pressa.
E por que no utilizar o modo tradicional das entrevistas? As entrevistas so
definidas como perguntas que o entrevistador-pesquisador faz aos entrevistados com o
objetivo de conhecer as opinies deles a respeito de alguns pontos ou fatos necessrios
ao estudo proposto.
9
Prticas ilcitas, definidas como crime, mas toleradas pela cultura policial e outras instncias de controle
social como Ministrio Pblico e Poder Judicirio e, em ltima anlise, pela prpria sociedade. A lista
extensa, mas a tortura um exemplo.
31
A fim de ter mais segurana no que aos poucos descobria, fazia a mesma
pergunta para outra pessoa da mesma patente do primeiro informante. Assim, depois
de garimpar uma informao de um policial militar, ratificava esse mesmo elemento
informativo por meio de outra conversa, nos mesmos termos da anterior, com outro
policial militar. Se conseguisse com um delegado, de igual modo, procurava ter a
mesma informao com outro delegado.
Sobre a quem dirigir esses informais dilogos, como se pode perceber do passo a
passo desse trabalho, no so muitas as conversas com as pessoas que estavam na
Central na condio de autores do fato do crime de porte/uso de drogas ou autuados
pelo crime de trfico. E qual a razo para essa deciso de campo? As pessoas presas por
trfico quase sempre se encontravam em situao de muita vulnerabilidade, razo pela
qual decidi no importun-las como faziam os jornalistas de programas policialescos
que se encarregavam desse fardo cotidianamente. Conversei com alguns autuados que
falaram comigo e com usurios, esses geralmente mais tranquilos e confortveis para
um dilogo, mas devo esclarecer que este trabalho possui majoritariamente
interlocutores policiais.
Pensei em utilizar tcnicas mais atuais como os grupos focais10. Depois de
algum tempo de reflexes11, cheguei mesma concluso (acima apresentada) para no
fazer entrevistas, com a agravante de que estaramos pelo menos em trs pessoas. Essa
situao poderia agudizar constrangimentos entre os participantes e informaes que me
teriam pouca validade, a exemplo de informaes que negassem prticas peculiares da
polcia em seu agir, que qualquer cidado brasileiro est farto de saber.
10
Trata-se de um tipo especial de grupo em termos do seu propsito, tamanho, composio e dinmica.
Basicamente, o grupo focal pode ser considerado uma espcie de entrevista de grupo, embora no no
sentido de ser um processo onde se alternam perguntas do pesquisador e resposta dos participantes.
Diferentemente, a essncia do grupo focal consiste justamente em se apoiar na interao entre seus
participantes para colher dados, a partir de tpicos que so fornecidos pelo pesquisador (que vai ser no
caso o moderador do grupo). Uma vez conduzido, o material obtido vai ser a transcrio de uma
discusso em grupo, focada em um tpico especfico (por isso grupo focal) (CARLINI-COTRIM, 1996,
p. 150).
11
Algumas outras questes seriam, por exemplo, onde realizar o Grupo Focal. Ainda consegui contato
com o Sindicato da Polcia Civil atravs de conhecidos que l labutam mas conclui que os lugares
para entender a atuao da polcia so por excelncia: a rua e a delegacia. De outra banda, no SINPOL
correria o risco de no dialogar com policiais militares, que so desautorizados a estarem em Sindicatos
por ordens de seus superiores, como pude sondar. Alm disso, como alerta Darcy Ribeiro em Diagrama
sobre a Estratificao Social Brasileira a classe poltica integra a classe dominante, da qual no deixo de
incluir um Sindicato, por mais de esquerda que ele o seja. Alm disso, segundo o esquema do mesmo
autor, no dialogaria com as classes subalternas, na qual podemos incluir escrives, agentes de polcia e
comissrios, acima apenas do que se conhece como classes oprimidas como as prostitutas, delinquentes e
biscateiros que encontrei na CEPLANC (cf. RIBEIRO, 2013, p. 193).
32
Nas sextas-feiras, quando o povo recebe, geralmente, tem muito furto, roubo
e trfico de rdo; nos domingos por volta das 17 h comeam a chegar as
brigas de vizinhos e os crimes de menor potencial ofensivo como os sons
altos. Os dias refletem nossa sociedade (Dirio de Campo 25/09/2015)
12
Utilizo esse termo apenas para fins didticos e compreensivos. Quero dizer que no participo como ator
principal dos processos observados, entre eles a criminalizao de usurios e traficantes. Entendo que
minha observao poderia ser declaradamente participante se utilizasse para a pesquisa a descrio de
casos em que atuasse, por exemplo, como advogado. No estou com a utilizao do termo observao
no participante afirmando que estive absolutamente neutro no agir etnogrfico, bem como ignorando
qualquer modificao de condutas no campo de pesquisa com a presena do pesquisador. Reitero a ideia
de Soares (2005, p. 167) de que no ser visto significa no participar, no fazer parte, estar fora, tornar-se
estranho. Eu fui visto, meu papel na CEPLANC no foi muitas vezes bem compreendido, afinal os
advogados que l frequentam esto por questes profissionais.
13
O DENARC a Delegacia de Represso ao Narcotrfico, que visitei por uma vez, em 15 de outubro de
2015, com o enceramento do campo na CEPLANC. Por l, h prises envolvendo quantidade maior de
pessoas e drogas. Realizam-se l algumas investigaes com melhores condies. O DENARC est
instalada numa casa aparentando ser do sculo XIX, na Rua da Unio, no Centro do Recife, muito
prximo da Faculdade de Direito do Recife. A atividades de pegar grandes traficantes envolve
informantes que possuem interesses diversos da concretizao da justia penal.
33
14
Em Nobres e Anjos, Um Estudo de Txicos e Hierarquia (que retomaremos no segundo captulo deste
trabalho) duas das pessoas que Velho entrevistou no concordaram com algumas concluses dele,
apresentando crticas que o levaram a rever seus posicionamentos. Estou aberto e disposto a receber essas
contribuies, sobretudo por parte da Polcia. Sem exerccios de futurologia, gostaria, neste momento, to
somente de alertar ao leitor sobre como o estranhar o familiar torna-se possvel quando somos capazes
de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes interpretaes existentes a respeito
de fatos e situaes.
15
Referendo o pensamento genuinamente brasileiro, mas este estudo no poderia deixar de mencionar o
antroplogo William Foote Whyte, que analisou a estrutura social de uma rea pobre e degradada
(CorneVille), investigando gangues juvenis. Tive as seguintes contribuies desse antroplogo: no
querer imergir totalmente no agrupamento estudado, como ensina o clssico antroplogo Malinowisk;
saber ouvir e escutar e, quando necessrio, calar e engolir em seco absurdos, como tive que fazer; criar
uma rotina de trabalho que no pode ser interrompida (no meu caso quando a interrompi pelo trabalho
como advogado fui cobrado pelos policiais que sentiram minha falta) e, por ltimo, a humidade de saber
que nunca teremos o controle das situaes que perpassam o campo ( WHYTE, 2009).
35
Para a obteno dos dados quantitativos da pesquisa, optei por realizar uma
pesquisa documental, a qual compreendeu a coleta e anlise de documentos
considerados fontes de informaes que ainda passaram pela sistematizao,
contemplao e tratamento cientficos atravs de tabulao em planilha do excel.
As fontes documentais escolhidas foram os autos de priso em flagrante e os
termos circunstanciados de ocorrncia das observaes que fiz e que, voluntariamente,
consegui dos delegados e escrives envolvidos nesses procedimentos. Os documentos
constituem objeto de anlises por parte do estudioso do direito que realiza pesquisas
empricas (TREVES, 1999, p. 67-68).
Ressalto que pela preparao jurdica adequada possvel realizar a leitura desse
cdigo de linguagem aliada arguta tcnica sociolgica. Essa a tendncia de quem
trabalha no o direito definido juridicamente, mas redefinido pelas cincias sociais,
atravs de pressupostos tericos e epistemolgicos destas (cf. JUNQUEIRA, 1993, p.
4).
Em defesa do direito ou dos estudantes de direito que se dedicam a pesquisar,
esclareo que os juristas-socilogos detm perspectiva e familiaridade com o mundo do
direito (OLIVEIRA, 2015, p. 170). Esse perfil universitrio, assim, garante ao
36
outro local onde ocorrncias de drogas tambm so realizadas em Recife, mas esclareo
no ter acompanhado nenhuma ocorrncia do DENARC. Os horrios da pesquisa e
detalhes mais propriamente qualitativos so esmiuados nos relatos de campo ainda
neste primeiro captulo.
Levando em conta estritamente a documentao, interagi acompanhando os
procedimentos, bem como dialogando sobre pontos que ajudaram a construir o objeto
de pesquisa, como detalhes da criminalizao das drogas e funcionamento das metas do
Pacto Pela Vida. Tudo isso com 10 delegados, todos com muito tempo de carreira na
polcia civil, conforme pude verificar. Desse total, 4 so mulheres e 6 so homens. Os
escrives tornaram-se ao longo do tempo importantes interlocutores desta pesquisa. No
posso precisar exatamente com quantos escrives interagi, mas quatro, dois homens e
duas mulheres, foram fundamentais execuo desta investigao.
Partindo da documentao oficial no que cinge aos policiais militares dos
procedimentos que acompanhei, estimo que entrei em contato direto com pelo menos
69. Esse nmero leva em conta o nmero de procedimentos (23, como j expus) e com
o fato de que por ocorrncia participam em mdia 3 PMS (um como condutor do
infrator e dois como testemunhas do fato). claro que procurei conversar com outros
policiais em outros espaos ao redor da CEPLANC, como esmiucei no panorama
qualitativo.
Chamo ateno do leitor para o fato de que a PM , via de regra, a nica
testemunha nos procedimentos envolvendo a Lei de Drogas, o que bastante pitoresco.
Pontuo que do universo de 23 casos que acompanhei em apenas dois houve
reconfigurao dessa realidade autocrtica de acusao. Nos dois casos, pessoas trazidas
como autuadas deixaram de figurar como indiciadas por deciso da polcia civil. No
primeiro deles, o usurio deixou de ser rotulado como tal por cola de sapateiro no ser
droga oficialmente criminalizada (detalhes pp. 84-85) e num segundo outro caso de um
moto-txi que transportava passageiro que trazia consigo crack tambm se entendeu que
no havia razo para realizar enquadramento em associao para o trfico como
pretendia a polcia militar. A PM ento a soberana voz que prende e que acusa,
conforme meus dados documentais e de observao etnogrfica.
Passo a algumas dessas informaes agora apresentadas ao leitor. Na ordem: 1)
ocorrncias; 2) atuao da polcia militar por ocorrncias; 3) delegacia responsvel por
ocorrncia; 4) substncia ilcita apreendida por ocorrncia; 5) objetos apreendidos por
38
APF 33
4% 5% APF 33 e 35
23%
50% APF 33 e 35 e 333 CP
4%
14% TCO 28
PORTARIA 33
AAAI 33
5
1 BPM
6 BPM
4
4 11 BPM
13 BPM
3 3 16 BPM
3
19 BPM
20 BPM
2 2
2 CIP CES
ROCAM
1 1 1 1 1 1 1 1 1 BPTran
1
GATI
Guarda Municipal
0 No Informado
Batalho
12
10
10
8 1
2
6 3
5
4
4 DPCA
3
PLANTO
2
2
1 1
0
Equipe do procedimento
14%
13%
Maconha
Crack
73%
Maconha e Crack
16 15
14
12
10 Nenhuma
Dinheiro
8
Balana de preciso
6 Arma
4 Celular
4
2
2 1 1
0
Apreenses
16
Por cinquentinha entende-se a quantidade de 50 gramas de maconha.
17
No mximo consegui visualizar 0,5 kg (meio quilograma) de maconha de uma ocorrncia de So
Loureno da Mata.
18
60 pedras de crack equivalem a 14 gramas como pude confirmar em mais de uma vez pelos laudos do
IC.
44
19
Da realiza-se o procedimento de identificao civil por razo da persecuo penal. Esse procedimento
ocorre em uma sala da Central, perto da carceragem, reas que nunca conheci exceto quando um porto
de ferro ficava aberto de onde avistava esta sala e as grades.
45
4%
14%
Recife
Olinda
82% So Loureno da Mata
20
Explico no captulo no tpico do Pacto Pela Vida essa diviso de Pernambuco em reas Integradas de
Segurana.
47
7%
29%
25%
3% No Indicado
Adolescente
18 a 25 anos
36%
26 a 35 anos
Mais de 35 anos
Mv Bill, se voc est lendo este trabalho, ento no estou sozinho na preocupao com
o drama da juventude negra e pobre de nossa terra (cf. SOARES, 2005, p. 282).
Essa juventude no possui acesso educao digna, empurrada ladeira abaixo
para o desemprego, o subemprego e as subeconomias da barbrie, estando o trfico de
drogas localizado nessa ltima e restrita possibilidade. Esse mesmo contingente tambm
corresponde ao setor populacional cujas marcas do crcere que retroalimentam o ciclo
de criminalizao e a letalidade so as ferramentas que tm impedido um porvir adulto
desses YAMs.
Em Cabea de Porco (SOARES, 2005, p. 247), apresenta-se o perfil da vtima
letal brasileira. Jovem do sexo masculino entre 15 e 24 anos (ainda que o espectro etrio
se estenda rpida e perigosamente para baixo e para cima). Esses quase cadveres, pelas
cruis estatsticas do Pas, moram nas vilas, favelas ou periferias das metrpoles e,
frequentemente, so negros. Essa explanao converge com os dados que colhi na
CEPLANC. Esse quadro, pois, revela que a face cruel da criminalizao, narrada pela
Criminologia, encontra correspondncia com outro lado perverso, o das mortes, contado
pela Vitimologia. Aqui, peo licena a um leitor mais austero, para denominar essa
tragdia brasileira, sem nenhum exagero retrico, como ge-no-c-dio21 do crcere ou do
corpo estendido no cho.
De acordo com relatrio da Presidncia da Repblica, que utilizei em pesquisa
realizada por mim a respeito de juventude e trfico de drogas no territrio do Grande
Recife, possvel afirmar que Pernambuco est em terceiro lugar no pdio de unidades
da federao em que mais morrem jovens entre 17-24 anos. Entre os anos de 2005 a
2007 a Nova Roma de Bravos Guerreiros figurou como 1 lugar de mortes de ndice
de Homicdios na Adolescncia (IHA) (cf. BABINI, rica, GONAVES, Cristhovo,
2015, p. 323).
Explicito que a marcha criminalizadora das drogas tem tragado para um ciclo de
criminalizao secundria das polcias e Poder Judicirio e, por fim, a criminalizao
terciria das prises da juventude entre 18 e menos de 25 anos, o que revela a faceta
perversa de uma criminalizao que segrega jovens adultos para quem o fracasso do
Estado comea com a excluso de acessos educao formal.
21
Luiz Eduardo Soares afirma que esse genocdio paradoxal, autofgico e fraticida. Desse modo, jovens
pobres so mortos pela polcia ou por seus pares numa dinmica que no conhecem e no controlam, em
que todos so vtimas, mesmo aqueles que ocupam provisoriamente o papel circunstancial de algoz, no
circuito vicioso que os conduzir morte precoce e cruel (SOARES, Op, cit., p. 247).
49
22
Funcionava no pretrito imperfeito, que se tornou ainda mais imperfeito, durante nosso estudo, como
explicaremos a seguir.
23
Na verdade, com as audincias de custdia, em que o preso apresentado em 24 h ao juiz, da
CEPLANC os autuados so conduzidos ao Frum Desembargador Rodolfo Aureliano, o Frum da Joana
Bezerra. As custdias foram institudas no meio da execuo de nossa pesquisa (dia 17/08/2015) e s
acontecem se o caso envolver a territorialidade da cidade de Recife no Servio de Planto de Flagrantes
do TJPE.
51
O que j era catico tornou-se ainda pior, da ter acima falado no pretrito
ainda mais imperfeito, j que mesmo antes da mudana j no se conseguia dar conta do
enorme fluxo de ocorrncias que passa pela Central, o que tornou-se ainda pior. A
modificao, ocorrida por questo de reorganizao, foi pensada pelo governador de
Pernambuco, Sr. Paulo Henrique Saraiva Cmara, do Partido Socialista Brasileiro
(PSB), pelo Decreto N 41.901, datado de 8 de julho de 2015 (legislao acoplada aos
anexos deste trabalho).
As razes da reorganizao funcional no estavam, por bvio, declaradas no
Decreto N 41.901, mas, como descobri, aconteceram em decorrncia da entrega dos
PJES (Programa de Jornada Extra de Segurana). Delegados, agentes e escrives
tomaram no ms de julho de 2015 a Avenida Conde da Boa Vista realizando inmeras
reinvindicaes na melhoria das condies de trabalho, salariais e criticando duramente
o Pacto Pela Vida24.
Policiais civis e delegados entregaram as gratificaes para no mais assumir
os trabalhos de plantes por meio dos PJES. Esse fato foi manchete recorrente dos
jornais naquele ms. O Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (SINPOL), cuja
direo passou a ser ligada ao Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL), comeou a
incomodar e a incentivar todos os cargos da Polcia Civil a entregar os PJES25. Segundo
o SINPOL, a polcia civil funciona com apenas 40% do efetivo necessrio (formulrio
de entrega dos PJES, panfleto do SINPOL juntados aos anexos). A imagem de um dos
cartrios das equipes da Central, a seguir exposta, ilustra as tonalidades vermelhas nas
reivindicaes polticas da polcia civil de nosso estado:
24
A Avenida Conde da Boa Vista o corao do Centro do Recife. As reinvindicaes polticas de
movimentos sociais, partidos, sindicatos e setores da esquerda costumam acontecer por l. Polcia na rua,
com discurso de esquerda, para mim era novidade!
25
PJES (Programa de Jornada Extra de Segurana) foi criado pelo Decreto N 21.858 de 25 de novembro
de 1999 pelo ento governador Jarbas Vasconcelos do PMDB, Partido do Movimento Democrtico
Brasileiro. Os PJES, uma forma de pagar pouco e no fazer concurso, como alegam os policiais civis, e
como pude comprovar de fato, foram incorporados pelo Pacto Pela Vida, institudo em 2007. Sobre o
Pacto Pela Vida e a precarizao do trabalho de policiais civis e militares falarei melhor no captulo 3,
destinado a analisar as questes da segurana pblica e outras relacionadas aos atores da segurana
pblica, policiais civis e militares.
52
(...) Para fazer o mal num instante sai um decreto, uma portaria. Sai uma no;
sai logo trs, mas pra resolver minha situao j fez um ms. (Dirio
13/09/2015)
pela Central de Plantes da Capital, como j deve ter entendido o leitor, que
passam os corpos aprisionados espera de um destino. Se rotulados como usurios
sairo dali espera de uma audincia no Juizado Criminal, se forem etiquetados como
traficantes, sairo da CEPLANC para o Centro de Observao e Triagem Everardo
53
No quero, com isso, afirmar que nossas percepes particulares a respeito dos
fatos acontecidos, durante as visitas na Central de Plantes da Capital, impediram-me
de relatar com mximo empenho e preciso como essas situaes ocorrem. No pode
haver atividade de pesquisa que se pretenda cientfica com a noo de neutralidade
totalmente descartada (cf. OLIVEIRA, 1988, p. 19).
Desse modo, quando aspeio frases, sinalizo que aquelas frases foram proferidas,
ditas, e algumas vezes gritadas, pelos respectivos sujeitos na situao narrada (policiais
civis ou militares, autuados, familiares dos presos, peritos etc.). H neutralidades e
neutralidades. A primeira, aplicada ao conjunto da atividade de investigao cientfica,
26
Para sinalizar a diferena de tratamento dado s duas figuras (traficantes versus usurios) mantemos a
imagem de sada da CEPLANC para o COTEL (homens) ou para o Bom Pastor (mulheres) dos
considerados traficantes. J expliquei, contudo, que, agora, os envolvidos em acusaes a respeito de
trfico de drogas saem da Central para o Frum do Recife para sua clere audincia de custdia. Nessa
solenidade, diante de juiz, promotor de justia e, geralmente, defensor pblico, avaliar-se- a legalidade
da priso em flagrante, podendo haver relaxamento da priso em caso de ilegalidades. De outra banda,
superadas as (i)legalidades do flagrante, pode-se considerar no ser o caso de decretao da priso
preventiva, ainda que o flagrante esteja de acordo com a legalidade. No caso de trfico de drogas, embora
os rus sejam primrios, portadores de bons antecedentes e arrisquem-se no trfico de pequenas
quantidades de substncias entorpecentes, a priso preventiva costuma ser decretada/ mantida, conforme
acompanhei em So Paulo nas primeiras audincias de custdias realizadas no Pas no Frum Criminal da
Barra Funda. Crvel suposio do pesquisador de que em Pernambuco no seja muito diferente.
54
Os relatos de campo poderiam ser sobre questes vrias, mas para fins
cientficos, resolvi apresentar ao leitor relatos que se costuram com o objeto de pesquisa
desta etnografia. Desse modo, os relatos discorrem a respeito do processo de
criminalizao secundria de usurios e traficantes de drogas, pessoas envolvidas numa
ambincia de drogas (outsiders) e sobre o regime produtivista de metas do Pacto Pela
Vida que interfere significativamente no modo como as polcias conduzem o processo
de criminalizao das drogas na RMR, criando uma cultura policial de apreenses. Meu
Grande Serto , por assim dizer, a criminalizao secundria retroalimentada pelo
regime de metas, havendo veredas relacionadas ao denso universo da criminalizao
que sero apresentadas en passant.
55
ansiado por muito deles (cf. RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2012, p. 76). De mim esse
exerccio exigiu a no comum demonizao dos viles policiais e nem da vitimizao
dos autuados em que de maneira simplista poderia incorrer.
Deixei a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco ciente de minhas aes,
quando dei entrada, por meio de Portaria Acadmica de n 213 de 2010, na Gerncia de
Anlises Criminais e Estatsticas (GACE), em pedido de levantamento de dados
estatsticos sobre a CEPLANC (protocolo - SIGEPE n 4006923-6/2015). Na SDS, fui
orientando a apresentar o parecer da GACE a respeito de minhas credenciais estudantis
e apresentao da pesquisa na Central para que l fossem estabelecidas a convenincia
de minha pesquisa de campo e as particularidades em que ela ocorreria.
Esse necessrio contato com o setor estatstico da segurana pernambucana
durou de 24 de abril de 2015 a 22 de maio do mesmo ano. Durante esse tempo, estive
diante da conhecida burocracia brasileira, isto , com perdas de papis, muitas
ligaes e visitas presenciais, nas quais minha condio de advogado feliz ou
infelizmente contou mais do que meu currculo lattes (documentos nos anexos).
Cheguei Central que eu chamava como Central dos Flagrantes no dia 03 de
junho s 15 horas, quando tentei conversar com um velho comissrio que, sem entender
bem se eu era advogado ou estudante, encaminhou-me ao administrativo, onde logo
conheci acolhedores agentes da polcia que me informaram que eu devia apresentar toda
a documentao conseguida junto da SDS ao Delegado Gestor. Por volta das 17 h fui
chamado sala do Delegado Gestor, em que cedi toda a documentao da GACE junto
com a minha identificao profissional de advogado (a documentao foi arquivada no
setor administrativo). Naquela oportunidade esclareci que estudava o tema das drogas
desde a graduao e que no atuaria como advogado enquanto estivesse realizando
minha pesquisa.
O Delgado sugeriu-me que ficasse na sala da OAB esperando procedimentos de
drogas e que teria que lidar com as exigncias de cada delegado e assim prontamente o
fiz para construir esta dissertao. Estava na CEPLANC no outro dia, em 04 de junho,
quando me ambientei com o campo de pesquisa num dia calmo. Logo em seguida,
estive na Central dia 09, um dia de tranquilidade, e depois, no 10 de junho, num dia de
paralisao da polcia, cujo relato segue na sequncia:
57
1.5.1 O da maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da droga
Cabo R. demonstrou interesse por minha pesquisa e disse que gostaria de relatar
muitas coisas para que eu entendesse a re-a-li-da-de, falou o PM com essa cadncia
pausada. Entre as muitas questes dialogadas, a que se sobressaiu foi que o Pacto Pela
Vida no funcionava. Reclamou que estava ali por mais de quatro horas esperando um
laudo do Instituto de Criminalstica atestando que se trata de maconha o que M. estava
trazendo consigo. Diz que essa questo atrapalha o andamento do seu ofcio. As
viaturas ficam presas na CEPLANC. Ele afirma que o BO nosso, isto , da PM,
58
27
Cesare Lombroso o principal idelogo e mais conhecido da Escola Positivista composta de estudiosos
como Enrico Ferri e Garofalo. Em linhas gerais, o pensamento lombrosiano e dessa Escola fundamenta-se
no paradigma etiolgico que tem preocupao em indagar as causas do comportamento criminoso.
Afirmava-se que a necessidade da proibio de certas condutas se justificava porque se buscava defender
a sociedade do homem perigoso, biologicamente predisposto ao crime.
59
a famlia abandona quem segue essa vida. Ele acredita que M. usa crack, mas como
muitos usurios dessa substncia, M. possui vergonha de se dizer usurio da pedra
maldita (termos do escrivo), diferentemente do que fazem os usurios da maconha.
O de maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da droga que usa.
Retorno para a sala da OAB para tentar escrever essas muitas informaes.
Quando saio da sala da OAB, uma senhora confundindo-me com algum funcionrio da
CEPLANC, questiona-me se demora muito o BO do meu irmo, maconheiro safado
que chegou da Caxang (outro TCO).
28
O cigarro US parece custar em torno de R$ 3,50 (trs reais e cinquenta centavos) bastante forte, no
vendido nos postos de gasolina, mas nas quitandas de rua. Dizem ser produto advindo do Paraguai. Muito
provavelmente eu no fumaria um cigarro como esse em outra oportunidade, mas foi a forma de interagir
e aproximar-me de meu interlocutor.
60
O pai do rapaz (Mi 29, como descobri depois) chegou junto da filha e informou-
me que tinha dado R$ 20,00 para ele ir na casa da boyzinha, mas ele foi comprar
essa merda!. O rapaz toma remdio controlado e, por enquanto, ainda tem famlia,
como diz o prprio pai, mas se continuar nessa vida... (entorta a boca a irm de Mi.).
Ele foi apreendido perto da UPA da Caxang com um big-big de maconha.
29
Mi para diferenciar de M., o primeiro caso do dia M. Diferena meramente ilustrativa para no
confundir o leitor, pois M. um traficante do tipo comum que lota as delegacias do Brasil, enquanto Mi
constitua o perfil do usurio de classe mdia. Sobre usurios e traficantes falaremos melhor no segundo
captulo
30
Permanente o agente da polcia militar que, com outros dois colegas, fica esperando pela realizao
do auto de priso em flagrante e termo circunstanciado de ocorrncia na sala da permanncia e
carceragem na CEPLANC. Esses policiais militares figuram oficialmente como condutor e como
testemunha. Todos julgam primeiramente a condio de usurio e traficante dos sujeitos que
apreendem pelo Recife, e se a polcia civil concordar com eles, depois de algum tempo, esses policiais
estaro todos na presena dos poderosos juzes na condio de testemunha do fato criminoso.
61
31
A PM vai toda pra rua catando todo tipo de ocorrncia e sem fazer vista grossa para crimes de
pequena monta, como o fato de pessoas de classe mdia fumarem um baseado em praa pblica. Essa
operao revela o uso poltico explcito da polcia para calar outra polcia,
62
tem que ficar calado e, para isso, eles jogam a polcia militar contra a gente,
Cristhovo. Ele fala meu nome e mira nos meus olhos.
Dr. A., para quem falei com profundidade sobre meu estudo33, v-me pelo
corredor e diz que a delegada C. est no Planto com um caso fronteirio34 que podia
me interessar. V logo pra l!. Segui sem pensar duas vezes.
Seis pedras de crack e dois homens aparentando idade entre 40 e 5035 anos,
respectivamente C. e J., esto algemados na porta da Equipe de Planto quando adentro
no cartrio. Dra. M. est com Dra. C., quando chego na Equipe que funciona em regime
32
Uma semana depois de acompanhar o caso das estudantes universitrias, no Centro de Filosofia e
Cincias Humanas (CFCH) da UFPE, numa sexta-feira, depois das 18 h, aps uma aula de Sociologia do
Crime no Programa de Ps-Graduao em Sociologia (PPGS), encontrei-as. Elas seguiam para o laguinho
da UFPE pra dar aquela bola. Lindas, divertidas e irreverentes, disseram-me que, agora, no iam mais
dar vacilo nas ruas ou nas praas. Descobri, a partir da troca de contatos, que o TCO delas corre no
Juizado Criminal da Universidade Catlica de Pernambuco.
33
Falei do que estudava desde a graduao, os cdigos ideolgicos, second codes, que seriam os
esteretipos e caractersticas negativas no expressamente presentes em documentos oficiais, mas que
orientariam o julgador. Eu disse a Dr. A que os policiais militares, na minha avaliao, eram os primeiros
juzes como falava no projeto de dissertao. O projeto, como j disse, buscava o critrio definidor e
diferenciador entre usurios e traficantes.
34
Por fronteirio entendemos a figura que, no universo dos adictos, tambm comercializa a droga que usa
ou outras, em diferentes oportunidades, para poder gozar do prazer de sua substncia ilcita. Ele usurio-
traficante, as duas coisas, tudo junto e misturado.
35
Tive acesso aos dados da INFOPOL quando se procuravam informaes sobre os dois usurios
considerados traficantes. Eles so nascidos em 1977 e 1969, portanto, 38 anos e 46 anos. Um breve
desabafo: o crack envelhece e desfigura!
63
de Planto. Dra. M apresenta-me a Dra. C. que me diz que est na dvida nesse caso se
eles, os atuados em flagrante, so usurios ou traficantes.
C., como delegada, tenta buscar dos PMs algum sinal de que os homens so
usurios. Sem sucesso, e com a afirmao enrgica do trfico, passa busca dos
antecedentes dos sujeitos. Os dois j tm passagem pelo artigo 33 da Lei 11.343/2006,
ali mesmo pela CEPLANC. Ela discretamente olha para o escrivo e d a ordem para
iniciar o flagrante. Ela chega depois a comentar s comigo a preocupao com a questo
das gratificaes do Pacto Pela Vida por apreenso de crack, mas que os PMs tm f de
ofcio e que ela precisa respeitar as prerrogativas desses policiais.
36
Previsto no art. 5, inciso LXIII: o preso ser informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistncia da famlia e de advogado. Essa uma forma de
realizar um procedimento mais sucinto e clere, mas poucos, ou quase nenhum autuado, aceitam. Eles so
calados diariamente, eles querem falar, embora para eles o silncio seja realmente a melhor sada
processualmente falando.
64
igualmente, para o pagamento de bnus do Pacto Pela Vida, nas palavras do prprio
policial militar.
1.5.2 Diga a seu pai que voc deu droga ao outro; dar, doar j trfico; t na lei
Nessa oportunidade, conheci L., advogada, com quem sempre conversaria dali
para frente em outras oportunidades. Conheci a advogada numa barraca do comrcio
informal, fora da CEPLANC, tomando caf para aguentar ficar acordado e atento a tudo
que se apresentasse como novidade durante aquele novo horrio de pesquisa.
37
Fechar defesas uma expresso que se refere ao acordo entre advogados e seus constituintes a respeito
de valores para realizao de defesas criminais, que comeam algumas vezes na Central.
65
Outro rapaz envolvido no caso entra no recinto. Ele logo se apressa em dizer que
apenas deu a seda para o rapaz algemado. O escrivo mostra a filmagem no
computador. Isso entrega de seda, aonde, meu filho?. sim, uma colomy40.
Fui inventar de fumar, hoje, maldita hora!. Libera ele, diz o delegado S. Se
no mudar de vida, a gente te coloca na cadeia que a gente da tua rea. O delegado e
o escrivo esto trabalhando em regime de PJES, mas exercem suas funes
normalmente numa delegacia do bairro na mesma rea em que residem os atuados.
38
Quando ouvi a indicao do guarda civil da Prefeitura da Cidade do Recife, pensei, em princpio, que
seria ilegal essa modalidade de priso. No turbilho de sentimentos e acontecimentos no podia refletir,
mas somente tomar nota dos fatos. Os fatos valem muito mais que a subsuno normativa. Acredito que
a justificativa esteja no art. 301 do Cdigo de Processo Penal: qualquer do povo poder e as autoridades
policiais e seus agentes devero prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito (flagrante
obrigatrio), j outra pessoa do povo, adolescente inclusive ou at mesmo pessoa que no esteja no pleno
gozo dos seus direitos polticos pode realizar a priso em flagrante (flagrante facultativo). Poderamos
aqui elucubrar sobre o velho pndulo entre o ser (operacionalizao) e o dever ser (programao), to
conhecido pela teoria geral do direito, mas no me delongo por essa anlise. Entendo essa priso nos
conformes formalmente, j que se qualquer pessoa do povo pode realizar priso, a guarda municipal
tambm o pode.
39
Por baga entende-se o resto do cigarro de maconha. A baga , portanto, a sobra do outro baseado, na
linguagem especfica do universo do uso da maconha, e seria prova de que o rapaz usurio habitual da
cannabis.
40
Colomy uma modalidade de seda, da mais barata possvel, para confeco de cigarros artesanais e de
cigarros de maconha.
41
4:20 (quatro e vinte) uma referncia ao uso da cannabis. Essa uma histria de origem anglo-sax
bastante difundida. A verso mais conhecida que o formato 4:20 (16h20) indicava o momento em que
nos anos 1970, um grupo de amigos, estudantes de um determinado colgio na Califrnia, Estados
66
campo (Peo que o leitor observe essa indispensvel nota de rodap a respeito dos
sentidos histricos e culturais da expresso 4:20).
Na outra sala esto pai e filho, o dito traficante L., numa conversa informal com
o delegado S. Desse dilogo, escutei a frase que marca o ttulo deste relato. Voc
viciado e traficante, diz o delegado. O pai do rapaz parece estar resignado com a
situao, embora tente argumentar com o Delegado S. que o rapaz estava no CAPS-
AD42. Diga a seu pai que voc deu droga ao outro, dar, doar j trfico, t na
lei. Assim termina o primeiro caso que acompanhei nesta visita CEPLANC.
Volto para a 4 Equipe, que seria o lugar que primeiro me dirigiria naquela
madrugada. Chego na 4 Equipe, aps uma pausa para um caf, e logo escuto uma fala
do delegado A.: so 18 verbos que podem indicar a conduta do trfico de drogas;
transportar um deles.
1.5.3 Nunca tive o prazer de apreender cocana / 1.5.4 Bom trabalho equipe, no
esquecer de indicar no BO da gente PONTO DEBELADO
Unidos, habitualmente se reunia para fumar . Era um cdigo usado entre eles para falar sobre o encontro
sem despertar suspeitas. Com o passar do tempo, o tal cdigo transformou-se numa referncia mundial na
cultura de luta pela legalizao da planta. Em muitos pases, o 20 de abril (4/20 na expresso anglo-sax)
celebrado pelos apreciadores da erva. Esse 20 de abril, por exemplo, a data escolhida para as
manifestaes sobre a legalizao. No Brasil, as Marchas da Maconha costumam sair s 16:20 como a
tradicional Marcha da Maconha de So Paulo e tambm a que ocorre em Recife.
42
O Centro de Atendimento Psicossocial para lcool e outras Drogas (CAPS AD) rgo da rede de
sade pblica que atua no acolhimento e tratamento de pessoas envolvidas com problemas de drogadio.
67
Cheguei dia 01 de julho por volta das 14 h na CEPLANC. Logo que chego,
descubro que um caso de auto de priso em flagrante por drogas est em curso na 3
Equipe. O escrivo D, no sabendo quem eu sou, me pergunta se eu sou o escrivo que
vai rend-lo. Explico que sou pesquisador, apresento documentos.
O escrivo nota que o celular do autuado no est com chip, e explica para mim,
em tom bastante didtico, que esse fato pode sinalizar que esse aparelho de telefone
possa ter sido penhorado por algum usurio que comprava do autuado. Peo para
observar o B.O. da PM e ao final est escrito ponto debelado.
43
Escrivo D. entrou na Polcia Civil depois de 2007, provavelmente, por isso, deu-me informao
equivocada. Como j expliquei, os PJES foram criados pelo Decreto 21.858 de 25 de novembro de 1999
pelo ento governador Jarbas Vasconcelos e foram incorporados pelo Pacto Pela Vida, no governo de
Eduardo Campos.
68
uma maneira de tornar a populao mais prxima da polcia e resolver questes sem
violncia/priso. Ele acha que o problema das drogas poderia ser resolvido por esse
caminho.
Pergunto aos policias militares sobre o que significa esses tais pontos
debelados. Um soldado, presente na apreenso, esclarece que essa expresso para
contagem de pontos para computao de folgas. O sargento mostra-me inclusive o
pedido de seu comandante num grupo de whatsap para no haver esquecimento por
parte da equipe em indicar que ali se trata de ponto debelado e a quantidade de pontos.
Bom trabalho, equipe, no esquecer de indicar no BO da gente PONTO
DEBELADO . Essa frase representa exatamente o que li no grupo de whatsap por
gentileza do sargento.
Na Equipe do Planto, diante de outro caso, pergunto sobre o que seriam esses
pontos debelados. Um incentivo ao forjado, fala a escriv A. Ela esclarece que essas
metas e o que elas trazem de recompensa para o policial militar dependem de cada
Batalho, mas que h interferncia do governo nesse processo. Geralmente, nas metas,
um TCO de drogas vale menos que APF de drogas, o exemplo que ela me concede
para que eu entenda a dinmica do Pacto Pela Vida na criminalizao das drogas.
1.5.5 Sai no contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma
cair
44
Sobre as categorias usurio tpico e traficante tpico, explicaremos no captulo seguinte.
70
Procuro dialogar com um policial militar sobre a histria do bnus crack e ele
me diz que antes mesmo da Lei Estadual N 15.458 do ano de 2015 eles j recebiam
essa gratificao por apreenso de crack, mas no sabe me informar a legislao anterior
que tratava da questo. O dilogo continua: hoje, t mais difcil receber a
gratificao. Ele tambm me explica que a gratificao (tanto por apreenso de arma
como de substncia conhecida como crack) sai descriminada no contracheque. Sai no
contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma cair
Foi a primeira vez que fui tratado no por doutor ou boy, a palavra amiga
teve um peso para mim, que sempre enxerguei a polcia como inimiga. Ele me olhou
nos olhos e me disse que ningum nunca quis saber do que ele faz todo dia pela rua.
Ele, como muitos policiais militares, estudante de direito e disse que quer melhorar
de vida, quem sabe ser algum estudioso, como voc, eu, no caso. Ele aperta minha mo
e a conversa encerra-se.
sobre esse bnus crack, se ele acha bom ou ruim e como isso interfere no trabalho da
polcia. Por meta de quantidade de auto de priso em flagrante tambm se ganha,
mas varia muito de Batalho para Batalho. No meu ver essa forma individualista
de pagar s beneficiando uma equipe no ajuda a ter cooperao e pode incentivar
a corrupo!
dia 04 de setembro, a CEPLANC est tranquila por volta das 14 horas. Vejo
na sala da permanncia que um caso de usurio est na 3 Equipe. Dirijo-me para l,
mas o agente que j me conhece se apressa em dizer: O TCO acabou de acabar.
Sigo para o jardim para tentar perceber qualquer movimentao.
T. pergunta-me o porqu de eu ser o nico advogado que vai ali, mas nunca ter
entregado tambm carto para ele indicar aos criente. Explico que no estou ali para
advogar, mas pra fazer uma pesquisa pra ser professor. Falei da maneira mais simples
pra que ele entendesse. Ele conta-me que toma banho na torneira perto do IC. Ele relata
que vive da ajuda da polcia, lava os carros dos delegados e outros policiais. T. j foi
preso por trfico de drogas e porte de armas. Ele diz que s vendia, mas no usava a
pedra e que isso coisa de otrio.
45
Sobre plantados entende-se como flagrantes forjados que analisaremos de maneira adequada
oportunamente. Esses flagrantes forjados, como deve desconfiar o leitor, integram uma cultura policial de
metas impostas por programas de segurana pblica como o Pacto Pela Vida em Pernambuco.
72
civis que aqui se encontram dizem que no podem comear esse APF, j que cada
delegado tem sua cabea, eles j aceitaram a proposta do governo, a gente no!46.
Num vou assumir nada, vou falar tudo perante o juiz amanh. F. fala essa
frase e mais uma vez mira-me e eu tento no esboar reaes, afinal no estava ali como
advogado, embora o sentimento de defesa pulsasse dentro de mim naquele momento.
Ele bastante simptico e chama sempre os policias por senhor.
Nesse tempo de conversa, chega um txi do qual desce uma senhora com uma
criana do colo bastante agitada e nervosa. Descubro, logo mais, que a famlia de F., o
autuado que conheci hoje. Dr. A. chega CEPLANC por volta das 18 h sempre
tranquilo e sorridente e, logo quando me v, cumprimenta-me perguntando dos meus
estudos. Dr. A assume o caso de F. na ausncia de outro delegado presente na Central.
46
Com a entrega dos PJES, por 240 delegados, como relatei, o governo teve que negociar com a categoria
dos delegados dando melhorias salarias e, segundo soube, com a renncia por parte deles de precatrios e
outros direitos garantidos por meio de acordo mediado pela Procuradoria Geral do Estado, a PGE.
47
Falam dois policiais civis criticando um batalho da polcia militar que atua no Recife.
73
F., ao ser ouvido, confirma a mesma verso que tinha me falado e pede,
inclusive, que seu depoimento seja sem a presena dos policiais militares. Fecha-se a
porta e ele comea a falar em tom baixo. O escrivo fala da audincia de custdia que
avalia a legalidade do flagrante e do direito constitucional ao silncio. Eu quero falar
porque o delegado tem que saber o que rolou e eu amanh digo o mesmo ao juiz.
Veje s, eu tivesse com 15 big, eu ainda vou levar pra outro canto pra
botarem mais coisa em nimim? Eu sou pobre, mas no sou burro!. Se eu fosse
traficante e me pegassem l nos Coelhos, por que eu ainda levava a polcia pra minha
casa?. O escrivo olha para o autuado e pergunta do que foi a queda anterior que ele
teve. Furto, diz o autuado. , se no fosse essa tua queda eu tinha quase certeza
que tu seria liberado amanh.
Pergunto a um policial militar se esse foi um caso de ponto debelado. Ele diz
que sim e vai ter folga remunerada, graas a Deus. A gente no quer saber de ser
destaque, quer mesmo a folga, t na rua no fcil.
Hoje quebrei certo protocolo e desejei sorte ao interlocutor autuado enquanto ele
se aproximou de mim para reforar a histria do forjado. Fico comovido com a cena de
encontro do autuado com seu filho pequeno e com a esposa. Ele nesse momento
sustenta a verso at agora apresentada junto de Dr. A.
Hoje, acreditei que esse flagrante forjado. Senti vontade de estar na defesa do
autuado na audincia de custdia, que ocorreu num sbado. O autuado dormiu na
carceragem da CEPLANC e de l seguiu para o Frum do Recife, pelo que pude me
informar, por volta das 13 h. Procuro at o momento de trmino desta pesquisa, afastar
o eu advogado.
disse e afirma: Depois das audincias de custdia, os policiais militares esto mais
cautelosos com determinadas prticas que voc conhece (flagrante forjado).
1.5.7 Segurana Pblica se faz com responsabilidade, salrio digno pros agentes da
segurana, mas existem outros interesses financeiros em jogo, mas comigo no colam
certas coisas
Na sala da OAB, falo com a advogada L., que me diz que a semana est muito
agitada. Ela trabalha no seu computador porttil num pedido de liberdade de um caso
que conseguiu na Central. Conversamos um pouco sobre processo penal e sobre a
questo das audincias de custdia, que tive oportunidade de ver no Frum Criminal da
Barra Funda, o maior da Amrica Latina, pertencente ao Tribunal de Justia de So
Paulo. Ela est ansiosa por fazer uma audincia dessas.
J., logo quando me v, diz que vai falar com Dra. A. Dra. A no permitiu que eu
acompanhasse o procedimento, dizendo a J. que era necessria uma autorizao por
escrito do Delgado Gestor. Especulo, depois de descobrir a gravidade do caso em
questo, que essa negativa talvez tenha ocorrido por tratar-se de um caso muito
delicado.
O jovem rapaz autuado confessa a prtica delituosa e diz que estava traficando
no lugar em que mora. Maconha a substncia apreendida com ele, melhor dizendo, so
47 big-big de maconha. Primeiramente, foram achados alguns com o indiciado e, aps a
apreenso, o prprio autuado informou onde estava o resto num terreno baldio. (2
pontos debelados)
O escrivo pede para o autuado tentar descrever o rapaz com quem comprou a
droga (minha presena pode ter influenciado nessa pergunta). Ele pergunta ao autuado
se a droga era para consumo pessoal. O rapaz diz que, em princpio, disse isso aos
policiais militares, mas que depois assumiu que estava traficando mesmo.
Vou tomar um caf. Esse um caso comum a outros que j tinha visto. Penso
que as barreiras que encontrei no dia de hoje me reforam que eu sou um estranho no
ninho. Um sentimento de desconforto parece ter ressurgido em mim. Sempre houve em
mim muitos preconceitos a respeito da polcia.
Quando volto para 3 Equipe, Dra. A., que me negou observar o procedimento
sob sua conduo, percorre o caminho como se estive seguindo para o mesmo lugar que
eu. Ela, de fato, seguia para l para se aconselhar com Dr. M.. Ela pergunta vrias
coisas. Consigo ouvir ela, a delegada, dizendo que no vai colocar ningum na
cadeia por um crime grave s com base nisso. Quando ela sai da sala de Dr. M. estou
sentado no cartrio da 3 Equipe e, de pronto, apresento-me e digo que possuo
76
autorizao para estar na CEPLANC. Ela diz que eu mostre os documentos da prxima
vez.
Depois de conseguir o resumo do caso de R., decido falar com Dra. A. Um clima
de grande tenso est colocado na frente da 1 Equipe. Os policiais militares esto no
jardim e conversam entre si isolados. Descubro nesse mesmo tempo que a advogada L.,
est frente do caso que no pude inicialmente acompanhar.
Ela, a advogada L., logo me diz que esse um forjado evidente, tanto foi
assim que a delegada decidiu baixar uma portaria. A fala da delegada A. pedindo
aconselhamento de Dr. M., que coincidentemente pude escutar, tambm corrobora com
essa suspeita. A delegada decidiu baixar uma portaria para que se investigue o crime de
trfico de drogas e essa portaria segue para a Delegacia da Avenida Rio Branco, Centro
do Recife, j que o caso ocorreu na Dantas Barreto.
H depoimentos nessa portaria que mencionam tortura (um dos rapazes tem a
roupa rasgada e o brao machucado) e que um dos suspeitos sofreu ameaas de ser
seviciado com um cabo de vassoura, e que num deles teria sido colocado um saco
plstico no rosto impedindo a respirao. Esse ltimo violento ato teria sido realizado
contra o mesmo indivduo que teve a blusa rasgada.
Dra. A. no aceitou fazer o comum flagrante pelo teor das alegaes, acredito
eu, porque os policiais militares no conseguiram provar que havia trfico por parte dos
suspeitos. Falaram em um vdeo, e ela quis ter acesso a essa prova, mas os militares no
o trouxeram e disseram que no tinham como consegui-lo. Por outro lado, j vi pessoas
sendo autuadas mediante vdeo (item 1.5.2 e relato do traficante 4:20, quatro e vinte).
Postura garantista a da delegada. Um dos rapazes parece ser um pouco devagar e a
delegada ainda diz: isso maconha, meu filho, preste ateno na sua vida!.
Um clima de tenso ainda era sentido no escuro das 22 h, quando decidi partir da
Central.
49
Drogas, txicos, narcticos, entorpecentes, estupefacientes so diferentes nomenclaturas para indicar
substncias proibidas, ilegais, na legislao penal brasileira. Para fins de uniformizao e estabelecimento
de nomenclatura tcnica, sinaliza-se, nesta parte do trabalho, para a utilizao do termo drogas, a fim de
referir de forma geral as substncias com capacidade qumica psicoativa, isto , de gerar alucinaes
(maconha), estmulos (crack e cocana), e podendo gerar entorpecimento (pio e substncias derivadas).
Portanto, o uso reiterado do termo, nesta parte da dissertao, deve-se preservao de uma coerncia
terminolgica e tcnica em detrimento da no repetio de termos para fins estilsticos de construo do
texto.
50
Trata-se de um quadro social e poltico, que explicita a internacionalizao do controle das drogas
marcado pelo modelo sanitarista, reformado centripetamente, isto , de fora para dentro no qual a
legislao brasileira funciona como ressonncia que reflete a influncia das legislaes internacionais
sobretudo na Amrica Latina, constituda por pases que, na diviso internacional do trabalho, no mercado
das drogas ocupam a funo de produtores de maconha e cocana, por exemplo.
79
Esclareo ao leitor que, nesta parte do trabalho, analiso parte do objeto desta
pesquisa, qual seja: a criminalizao secundria das drogas atravs dos casos que
chegaram Central de Plantes da Capital durante os meses de junho a outubro do ano
de 2015. Utilizo embasamento de base terica com o auxilio da Criminologia Crtica e
suporte emprico da Antropologia para nortear minha investigao. Da ter cunhado o
termo criminoantropolgico51.
A propsito das lentes que condenam as drogas, preciso que se diga que se
utiliza um binmio doente e criminoso, referindo-se aos usurios e aos traficantes
respectivamente. Percebo, nesse cenrio, o fenmeno que os antroplogos chamam de
exorcizao dos sujeitos e suas drogas (MACRAE, 2000, p. 124). Assim, por meio do
discurso de temor s drogas, o aparelho institucional e o saber oficial (com respaldo na
lei) podem exercer coero e controle de diversos grupos, pertencentes a subculturas
delinquentes tambm variadas.
preciso captar a questo das drogas a partir da juno delas com fatores
socioculturais. Em outros termos, o problema da droga no existe em si, mas resultado
do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sociocultural
(OLIEVENSTEIN, 2007 apud KARAM, 2014).
51
O termo criminoantropolgico guarda inspirao no termo criminodogmtico cunhado pela
pesquisadora Vera Andrade (ANDRADE, 2009, p. 171). Por criminoantropolgico quero sinalizar a lente
e predilees epistemolgicas para minha anlise da criminalizao das drogas, isto , a Criminologia
Crtica e a Antropologia.
52
A propsito, a Escola Superior de Guerra, com a colaborao da Misso Militar Americana, teve
relevncia nesse processo. Modelou-se, pois, a Doutrina de Segurana Nacional, a qual estabeleceu os
inimigos internos, associados aos comunistas. Algum tempo depois, ocorreria novo deslocamento nessa
plataforma terica de combate para uma nova categoria de inimigos internos: os traficantes de drogas. O
Brasil, assim, passou a integrar o modelo de poltica criminal blica.
80
53
Txico uma expresso vetusta e at mesmo ultrapassada. Ocorre que o antroplogo Gilberto Velho a
utilizou, pois a Lei de Drogas vigente durante sua pesquisa era de N 6.368 de 1976 que fala
repetidamente em txico. A nova lei a de N 11.343/ 2006 fala em entorpecentes. Deixo nessa parte o
termo mais antiquado para preservar a linguagem originria.
54
Em visita CEPLANC pude acompanhar caso de um rapaz apreendido pela segunda vez durante a
semana fumando maconha no bairro de Casa Amarela, Zona Norte do Recife. No se podendo configurar
outra tipificao para o ato do rapaz que no a do artigo 28 da Lei de Drogas (usurio) sua pena
informal foi restar algemado o dia todo. - Vai levar um caro do juiz duas vezes, disse o PM, tomara
que algemado aprenda a no se envolver com essas coisas para no cair em algo pior (trfico). Essa
situao ser neste captulo relatada. Logo, esses no so to amigos (Dirio de Campo, 16/07/2015).
55
A Constituio probe a pena de priso perptua. Veja o que diz o artigo 5, XLVII, b: XLVII - no
haver penas (b) de carter perptuo. O Cdigo Penal, em seu artigo 75, diz que o tempo de
cumprimento das penas privativas de liberdade no pode ser superior a 30 anos. 1 - Quando o agente
for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 anos, devem elas ser
unificadas para atender ao limite mximo deste artigo. Em outras palavras, quando algum condenado
a mais de 30 anos, o juiz dever somar todas essas penas e unific-las em uma s, de 30 anos. E num
que o policial militar respeitou a legalidade!
81
precisa ter com o considerado bandido, traficante. Entre manter um sujeito envolvido
numa ambincia de drogas privado de liberdade pelo tempo de trinta anos e a
legalizao, acredito que a deciso do Estado brasileira deva seguir nessa ltima
direo. Observe, leitor, outro exemplo:
Eu no sei por que proibiram essa porra da maconha (Dirio de Campo,
28/07/ 2015).
56
A criminalizao das drogas trouxe para o ordenamento jurdico a descodificao, isto , retirou do
Cdigo Penal os crimes relacionados s drogas para trabalh-los em Leis Penais Especiais, primeiramente
a Lei N 6368/76 e, depois, a Lei N 11.343/2006. Portanto, o artigo 281 foi revogado do Cdigo Penal.
82
57
Antes mesmo do surgimento da Organizao das Naes Unidas, a ONU, j existiam Convenes
Internacionais sobre o pio, como a adotada em Haia em 23 de janeiro de 1912. A imposio da
criminalizao no plano internacional s se concretiza com as convenes da ONU, a saber: 1961, a
Conveno nica sobre Entorpecentes; 1971, a Convnio sobre Substncias Psicotrpicas de 1971; 1988,
a Conveno de Viena. Sobre essa ltima, em sesso especial da Assembleia-Geral das Naes Unidas
(UNGASS), foi cunhado o slogan A Drug-Free World - We Can Do It, no qual o paradigma da
proibio e a ideia de que a humanidade pode viver livre de drogas foram reiterados. Uma nova
Assembleia vem sendo preparada para o ano de 2016 em Genebra, na Sua.
83
se, assim, fazer o agente responder pelo crime previsto no art. 243 do ECA58 (substncia
que causa dependncia fsica ou psquica) no caso de venda dessa substncia para
adolescente, mas para pessoa adulta essa conduta fato atpico, isto , sem previso
proibitiva na lei penal e, portanto, sem possibilidade de aplicao de pena.
A legalidade penal corresponde, para alm da letra fria dos cdigos e leis, a uma
lgica de crenas, opinies e valoraes que se estabelecem sobre os objetos ou
situaes, descumprindo as funes sistemtica, hermenutica e de garantia que so
assinaladas pelo mope pensamento dogmtico. Tem-se, desse modo, um saber
comprometido com as prticas e as decises do homem, um saber de valor persuasivo
(CUNHA, 1979, p. 116). Esse saber no se mantm firme ao mais leve sopro de anlise
da realidade, como verifiquei a respeito da atividade incriminadora das drogas.
O termo traficante por azar pretende salientar a imagem do sujeito que utiliza
drogas, apresenta, muitas vezes, estado de dependncia qumica de alguma substncia
psicoativa tornada ilcita. Esse sujeito tambm possui marcas corporais como a
magreza, queimaduras e outras caractersticas que explicitam o quadro social e clnico
de adico e vulnerabilidade desse usurio de drogas.
91
Desse modo, a despeito das visveis evidncias corporais, esses usurios sero
considerados pelos policiais militares os primeiros juzes como traficantes. Por
questo de azar, a polcia civil, por fatores diversos (a f pblica de que gozam os
policiais militares no exerccio de declarar os fatos ou ainda os maus antecedentes
desses indivduos), passa a consider-los como traficantes, mesmo com sua explcita
degradao corporal.
A delegada interlocutora, naquele caso, tentou que ali fosse realizado, ao invs
de um auto de priso em flagrante, um termo circunstanciado de ocorrncia e os sujeitos
considerados como usurios. O julgamento da polcia militar prevaleceu mesmo com a
discreta tentativa de defesa da delegada e, por azar, os dois dependentes qumicos foram
considerados traficantes e, com isso, a eles destinados os rigores da lei. Nessa situao
trazida ilustrao, os dois usurios foram considerados como traficantes devido aos
antecedentes criminais que atestavam que eles tinham ali mesmo pela Central
passagem pelo crime de trfico de drogas.
Sade (SUS). Ele, o jovem adulto L., apesar de ser considerado como viciado pelo
delegado interlocutor dessa situao, foi indiciado por trfico de drogas com a
quantidade de 6 big-big de maconha, pois estava numa rea movimentada de
comrcio de drogas no tradicional Bairro do Recife.
Muitas vezes, esses casos que nomeio como azar so confirmados pelo fato de
o indiciamento pelo crime de trfico de drogas acontecer mesmo sem prova de venda ou
ganho material na ambincia de drogas. O caso relato no item de nmero 1.5.2, acima
mencionado, explicitou nas palavras do prprio delegado essa premissa: dar, doar j
trfico.
Ora, encontrei no campo de pesquisa alguns usurios por sorte. Percebi que no
estava diante de um usurio como os que so normalmente apreendidos como autores
93
do fato60 para quem a prpria polcia militar informa sobre as medidas despenalizantes
do Juizado Especial Criminal.
No caso dos usurios por sorte, o sujeito muitas vezes permanece o dia todo
algemado ou recolhido carceragem da CEPLANC e possui consigo mesmo a infeliz
certeza de que sair da Delegacia para Estabelecimento Prisional. O feliz espanto dos
prprios autuados, ao descobrirem que sero considerados como usurios, no pode ser
descrito brevemente. Eles foram usurios, mas usurios por sorte, e s depois de horas
ou quase um dia inteiro de espera do pior da Justia Penal: o crcere.
Remeto o leitor para ao item de nmero 1.5.2, em que relato situao em que me
vi diante de um delimitado conflito entre as policiais civis e militares a respeito dessa
categoria que nomeei como usurio por sorte. Naquele caso de um jovem rapaz, J.,
apreendido na favela do Detran, a polcia militar entendeu que J. estava praticando
trfico de drogas, mas a polcia civil, atravs da escriv e do delegado responsvel,
decidiu que ali se tratava de um usurio de drogas e, portanto, seria realizado TCO.
A sorte deve-se a uma postura garantista61 de alguns agentes da polcia civil que
exigem provas e situaes fticas concretas para realizarem o indiciamento por trfico
de drogas. Nas palavras de uma escriv interlocutora: o problema no encontrar,
provar.
60
No plano do Juizado Especial Criminal, onde se processam as infraes penais de menor potencial
ofensivo, a linguagem diferente da Justia Penal Comum. No JECRim no h criminoso, mas autor do
fato. O crime de posse de drogas para consumo pessoal tratado no plano dessa instncia judiciria, onde
a infrao passvel das medidas despenalizantes, como a transao penal.
61
A teoria do garantismo, em apertada sntese, advoga a garantia de direitos e liberdades individuais do
indivduo frente atividade persecutria do Estado, detentor do monoplio da violncia legtima.
94
2.3.3 Usurios-Revendedores
Transporto o leitor para o item 1.5.3 e o caso de R., autuado por trfico de
drogas declarando ser um aviciado que veio do interior de Pernambuco, Municpio de
Escada, para comprar mais em conta no Recife.
incriminado tanto como traficante por azar quanto como usurio por sorte. Esses
usurios-revendedores arriscam-se nessa atividade comercial por, normalmente, estarem
submersos nas teias da adico e da vulnerabilidade social. Eu sou um aviciado e a
fissura me trouxe at aqui!.
Comeo por algum que tem em si tatuada a expresso vida loka. A expresso,
que a priori pensei se referir a um conhecido rap dos Racionaiss Mcs, a marca de
uma galera, espcie de gangue urbana no territrio do Recife, como descobri.
96
A vida to louca que esse rapaz (acorrentado pelos ps) lembrou-me a imagem
dos livros de histria dos negros no mercado de escravo: jovem acorrentado pelos ps62
e andando com dificuldade por conta dos grilhes que o prendiam. L. seguia tranquilo
para a porta da Equipe onde se realizaria o auto de priso em flagrante que o mandaria
para o crcere mais uma vez. Ele interagia com os policiais militares e ria para meu
espanto. J comi cadeia.
Breve pausa no relato, preciso aqui explicitar que essa cena demonstra o quadro
de disciplinamento e controle das classes populares no contexto latino americano das
sempre colnias, onde se praticou o sequestro de povos negros e originrios
(ZAFFARONI, 2001, p. 74). O Sistema Penal destas terras, cujas veias continuam
abertas, recorre aos mtodos de origem colonial e escravocrata, como as algemas
pelos ps apresentadas ao leitor (PRANDO, 2006).
62
Para compreender melhor como o sistema oficial de punio convive com um controle sciopunitivo
parainstitucional ou subterrneo (atravs de mtodos como castigos corporais e at mesmo tortura),
pontuo o trabalho A Contribuio do Discurso Criminolgico Latino Americano Para a Compreenso do
Controle Punitivo Moderno Controle Penal na Amrica Latina da pesquisadora Camila Prando
(PRANDO, 2006).
97
Quer dizer mais alguma coisa, indagou o escrivo No acabou!. Uma discreta
lgrima nos olhos do vida loka, percebi. Acabou mais uma vez.
Esse sujeito o usurio tpico para quem o tratamento como usurio ocorrer
desde a polcia militar, passando pela polcia civil e terminando no controle realizado
pelo Ministrio Pblico e Poder Judicirio nos Juizados Especiais Criminais. De
maneira geral, esse sujeito aquilo que a teoria criminolgica crtica aponta como
indivduo de algumas posses e instruo educacional, apreendido, geralmente, em reas
no pauperizadas como as demais categorias de sujeitos criminalizados o so. Eles
costumam estar presentes em delegacias com menos frequncia, mas podem tambm ser
encontrados nesses ambientes policiais.
chegam delegacia, seja pelo tempo dos procedimentos, no mnimo 6 horas, como
percebi, seja pela ausncia de vontade da PM de conduzi-los s delegacias.
Sabe-se que o grau em que um ato ser tratado como desviante depende de quem
comete a infrao. Os estudos de delinquncia infantil revelam que meninos de classe
mdia quando detidos no chegam to longe no processo legal como meninos de bairros
miserveis (BECKER, Op, cit., p. 25).
preciso aqui tambm reforar que existiro usurios que no so tpicos como
o caso descrito no mesmo item 1.5.1. Nesse episdio, um rapaz vindo de uma rea
pobre do Recife (localidade do Coque), apreendido com menos de um cigarro de
maconha e com os esteretipos que normalmente so atribudos ao traficante (cor da
pele, condio social, ausncia de emprego e ser apreendido em favela) foi considerado
como usurio. Ou seja, preciso relembrar dos usurios por sorte, como j expliquei.
2.3.6 Traficante-Policial
maconha, que estavam dentro de uma caixa de papelo coberta por um colete da PM, e
mais duas pistolas dos dois policiais. A quantidade apreendida muito superior a
qualquer apreenso realizada em flagrante na Central de Plantes, conforme j expus na
p. 84.
2.4 O controle das drogas atravs do brao policial: a reduo de danos como
paradigma alternativo ao proibicionismo
A proibio que se firma na falsa ideia de que a tutela penal em relao ao tema
de drogas medida necessria para a proteo da sade coletiva mostra outra
incongruente face do proibicionismo. At mesmo no plano da dogmtica penal e da
legalidade, tentar justificar a interveno penal no controle das drogas para proteger a
sade torna-se um arranjo argumentativo pfio.
63
preciso pontuar que a poltica progressista de reduo de danos se imps como necessidade, a
despeito do preconceito e gritaria do vai incentivar uso de drogas. Nos anos 90, com o boom do HIV no
Brasil, os riscos de contaminao e populao infectada a partir do uso de drogas injetveis eram
representativos, especialmente com o uso da cocana. O ento governador de So Paulo, Mario Covas,
promulgou lei que autorizava a Secretaria de Sade a promover programas de distribuio de seringas
com o objetivo de prevenir a epidemia HIV/Aids ( RUI, Op, cit., p. 74).
102
Esse trecho de um dos casos que acompanhei revela que a resposta estatal a um
usurio envolvido numa ambincia de drogas foi eminentemente penal, tendo o autuado
sido considerado como traficante. J. precisava (e quem sabe ainda hoje precise) de um
amparo mdico e social que pudesse ajud-lo a estabelecer uma relao mais saudvel
com as drogas de que faz uso sem impor-lhe a priso, o isolamento asilar em alguma
clnica ou ainda a abrupta abstinncia.
mundo de drogas ilusria e traz muitos mais danos do que o consumo das prprias
drogas (LEMGRUBER; BOITEUX, 2014, p. 362).
Do que adianta trazer pra c, mandar pro Juizado um noiado65? Essa pessoa
precisa de sade, mas a lei a lei (Dirio de Campo 29/07/2015). Essa frase confirma
que o controle penal, mesmo aquele mais brando, exercido por meio dos Juizados
Especiais Criminais, que considera o usurio como doente, no consegue inibir ou
arrefecer o consumo de drogas por parte dos usurios. Repita-se, o controle penal
impede a consolidao do trato da questo como problema de sade.
A propsito dos Juizados Criminais, esclareo que essa instncia acabou se
conjugando com minha pesquisa na CEPLANC a respeito do controle de drogas na
realizao da criminalizao secundria levada a cabo pelas polcias. Em pesquisa de
doutorado, no Juizado Especial Criminal da Universidade Catlica de Pernambuco,
Marlia Montenegro constatou que, no ano de 2007, aquela repartio judiciria ficou
praticamente esvaziada, quando da criao do Juizado de Violncia Domstica
(MONTENEGRO, 2015, p. 148).
64
Roberto DaMatta explicita a confuso entre casa e rua e como o gerencialismo da coisa e do dever
pblico acabam sendo uma confuso brasileira. A fala de uma policial mulher, provavelmente agente da
polcia civil, rememorou, no momento em que a escutei, o dilema brasileiro de uma Repblica e
democracia brasileira, na qual a confuso entre o espao pblico e privado marca constitutiva da
miscelnia brasileira( DAMATTA, 1997, p. 234) .
65
O termo noiado ou noia refere-se ao usurio de drogas em avanado grau de dependncia. Pesquisadora
responsvel por um estudo etnogrfico na Cracolndia de So Paulo, a respeito do termo noia, esclarece
que sem a substncia qumica no se constri esse tipo de corpo, sem esse corpo no se constri essa
pessoa, sem essa pessoa no se acionam os feixes de relaes j observados e sem essas relaes no se
constri territorialidades que se tornam igualmente abjetas. Est tudo imbricado (cf. RUI, 2014, p.279).
104
raro fazer T.C.O. de crack (encontrados no item 1.5.1), revelam que os conhecidos
noiados de crack no esto sob o auspicioso controle despenalizador da Justia Penal.
Essa situao possui correspondncia causal com a bonificao de bnus crack,
instituda em Pernambuco e explorada no captulo a seguir.
2.5.1 O da maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da prpria
droga
66
A localidade exata dessa territorialidade a Ponte do Limoeiro que liga o Bairro do Recife ao de Santo
Amaro, Avenida Prefeito Artur Lima Cavalcanti. Essa localidade pejorativamente conhecida como
Ponte do Chupa-Chupa, em referncia atividade do sexo que l se pratica.
106
2.5.2 Diga a seu pai que voc deu droga ao outro; dar, doar j trfico; t na lei
A cocana, desse modo, aparece na CEPLANC somente atravs dos laudos que
atestam tratar-se de crack, cocana em pedra, como diz a linguagem tcnica.
Tecnicismos parte, cocana e crack, faces da mesma moeda, ou do mesmo componente
109
Quando falo em faces da mesma moeda, mais do que chamar ateno para a
identidade qumica dos componentes do crack e da cocana, gostaria de salientar que a
setorizao dos usos dessas substncias representa forte estratificao social. A cocana
encontra abrigo nos protegidos apartamentos de luxo e nas festas privadas, enquanto o
crack o genuno filho da rua e suas vicissitudes, exposto nas praas pblicas e locais
urbanos em que seu uso massificado, como nas Cracolndias, que so muitas.
Desse modo, para conhecer a instituio policial, seus usos e costumes, preciso
ver como a polcia atua67, uma vez que as prticas policiais em muito ultrapassam o
discreto papel que lhe determinado pelo arcabouo legal (cf. OLIVEIRA, 2003, p.
283). Alis, se um pesquisador for analisar as polcias, perceber farta defasagem no
Cdigo de Processo Penal sobre as polcias militares e sobre autos de priso em
flagrante e portarias, que constituem a principal tarefa burocrtica da polcia civil,
chamada de polcia judiciria.
Outras pesquisas j sinalizavam para o que tive que executar, isto , para estudar
a totalidade dos modos do ser polcia preciso romper as barreiras que tentam
enquadrar a polcia como simples estrutura da justia criminal com funes restritas ao
Cdigo de Processo Penal. As funes da polcia transbordam singelas simplificaes
dogmticas e normativas. A observao revelou-me que as aes policiais afetam
muitas pessoas e envolvem vrios nveis de autoridade e coero que s podem ser
sentidos a partir da imerso na realidade do trabalho policial (GOLDSTEIN, 2003, p.
53).
67
O pesquisador Luciano Oliveira, nos anos 80, na Cidade do Recife, a partir de visitas em vrias
reparties policiais, mostrou como a polcia resolvia pequenas contendas de ordem civil e criminal.
Essas questes estariam, por exemplo, relacionadas briga de vizinhos, ao no pagamento de alugueis, e
aos xingamentos, configuradores de crime contra a honra. Tudo envolvendo as classes populares, com a
condescendncia do Poder Judicirio que, em tese, estaria ocupado com crimes mais graves. Luciano
chamou essa atuao de praticas judicirias dos comissariados de polcia nas delegacias da cidade do
Recife. Esse trabalho est registrado nos Anais da Constituinte de 1988 e um dos responsveis pelo
constituinte ter inserido o Juizado Criminal no artigo 98 da nossa Carta Magna (JUNQUEIRA, 2004, p.
09).
111
subterrneo que enraizou suas prticas na Amrica Latina, secundando uma estrutura de
poder-dominao (CASTRO, 2005, p.129). Esse modo de agir da polcia tem marcas
em eventos, a exemplo do massacre do Carandiru, da Candelria e de Eldorado dos
Carajs, nos quais a polcia atua protagonizando episdios de brutalidade como aparelho
repressor a servio das classes dominantes.
Comeo esta parte final desta dissertao expondo algumas questes de ordem
subjetiva a respeito do meu olhar sobre as polcias. Como j mencionei na p. 75, sempre
houve em mim muitos preconceitos a respeito da polcia e suas prticas. Preconceitos
esses que foram depurados e alguns, a partir de amadurecimento deste pesquisador,
superados a partir do olhar criminoantropolgico.
A frase de um agente da polcia civil, que outrora foi policial militar, sobre sua
forma de ser policial, confirma a esfera de valoraes de prticas que constituem o ser
um policial militar: eu sa da PM, mas a PM no saiu de mim (Dirio de Campo
23/06/ 15). O modo como esse comissrio68 da polcia civil exclamou esse significativo
desabafo revela o jeito PM de ser, ou de encenar seu ofcio, por assim dizer. Esse
mesmo interlocutor esclareceu-me que h PMs que j so sargentos, mais ainda assim
fazem concurso para a polcia civil, mesmo ganhando menos, s para no ter que lidar
com o estresse que o bandeirante das capitais brasileiras precisa se submeter para
exercer sua labuta diria.
68
Sobre os comissrios que julgavam pequenos casos como juzes do povo no Grande Recife
(OLIVEIRA, 1984) preciso esclarecer que nos dias de hoje eles so apenas chefes setoriais. O comissrio
um agente com mais tempo de polcia. Quando um PM entra na polcia civil ele aproveita o tempo de
servio como praa, cabo, sargento, por exemplo, para j ser comissrio e no agente de polcia. Os
comissrios geralmente fazem a triagem e analisam as demandas (Dirio de Campo, madrugada do dia
14/08/2015).
113
Boa parte das polcias, notadamente aquela que se encontra nas ruas, continua,
por definio legal e por heranas de um entulho autoritrio, definida como instituio
militar. Isso significa que a PM deve se organizar semelhana do exrcito, do qual ela
considerada fora de reserva. Isso implica a imposio sobre os aparelhos policiais de
um modo de organizao que a obriga a mobilizar grandes contingentes humanos com
rapidez e preciso, o que requer centralizao decisria, hierarquia rgida e estrutura
fortemente verticalizada.
69
Essa frase foi escrita pelo pesquisador Luiz Eduardo Soares e revela afinidade descritiva com a gerncia
da segurana pbica no Grande Recife. Acredito que o produtivismo policial marca de uma cultura
policial que deve ser questionada. Essa cultura da produo parece ter dado a tnica do agir policial como
revelam anlises de autores brasileiros, bem como a srie sobre polcia organizada pelo Ncleo de
Estudos da Violncia da USP, citada neste captulo.
114
Nesse ponto, as pesquisas tm revelado que ao lidar com o problema das drogas,
a polcia trata com situaes extremamente variadas, envolvendo vrias significaes do
universo das drogas. Logo, ela atua com diversos usurios e traficantes, bem como com
infinidade de drogas, algumas perigosas no plano da potencialidade lesiva imediata no
organismo e outras inofensivas se se considerar efeito a curto prazo, fisiologicamente
falando (GOLDESTEIN, Op, cit., p.123).
Assim, a discusso sobre drogas entrelaa-se com o debate sobre a retirada dessa
questo do brao policial. Em sntese, a srie NEV-USP congrega essas experincias
especialmente em terras estadunidenses da seguinte maneira. A atividade policial pode
115
70
Durante a escrita desse trabalho na Praia de Piedade fui alvo de uma ao sem violncia por parte de
dois usurios de crack. Levaram-me o celular dois rapazes com uma lata de cerveja com sinais de que j
havia sido queimada. Latas de cervejas e refrigerantes so usadas na falta de cachimbos para fumar o
crack.
117
71
A tabela est incompleta no que diz respeito ao delito de homicdio simples e qualificado, porquanto os
dados do MJ esto inacessveis a partir de 2011. Os dados esto defasados, pois no tm informaes a
partir de 2012 sobre o trfico e a partir de 2011 nem podem ser consultados sobre os crimes contra a vida.
A respeito da completude dos dados a respeito de populao, populao carcerria, presos provisrios e
120
para depois proceder ao entrelace dessa criminalizao com o Pacto pela Vida no
combate s mortes violentas intencionais. Note com ateno, caro leitor, o progredir da
criminalizao dos delitos relacionados ao trfico de drogas e aos crimes de homicdio
simples e qualificado:
Delito de
Delito de
Populao Presos Homicdio
Perodo Populao Trfico de
Carcerria Provisrios Simples e
Drogas
Qualificado
Jun/2006 8.502.602 16.509 6.448 1.205 1.682
Dez/2006 8.502.602 15.778 5.954 1.508 1.478
Jun/2007 8.502.602 17.400 10.723 1.998 3.398
Dez/2007 8.502.602 18.836 10.508 2.577 4.578
Jun/2008 8.502.602 18.888 10.576 2.688 4.450
Dez/2008 8.734.194 19.808 11.243 2.844 4.897
Jun/2009 8.734.194 20.865 12.299 2.911 5.005
Dez/2009 8.810.256 21.041 12.349 2.940 5.089
Jun/2010 8.810.256 23.086 13.762 3.185 5.443
Dez/2010 8.810.256 23.925 13.737 3.391 5.594
Jun/2011 8.810.256 25.321 14.857 3.745 -
Dez/2011 8.796.032 25.850 15.177 4.127 -
Jun/2012 8.796.032 27.193 16.504 4.990 -
de trfico de drogas, esclareo que fiz esse preenchimento em garimpagem anterior. A montagem dessas
variveis ocorreu por ocasio do trabalho de concluso de curso deste pesquisador intitulado
DENEGUE-SE A ORDEM: Um Estudo Criminodogmtico sobre os Second Codes (Cdigos
Ideolgicos) nos Julgamentos dos Habeas Corpus Relativos Lei n 11.343/2006 no Tribunal de Justia
de Pernambuco pela Universidade Federal de Pernambuco e sob orientao da Prof. Dr. Marlia
Montenegro Pessoa de Mello.
121
Esclareo, ao leitor, que a partir de outra investigao que conduzi pelo Grupo
Asa Branca de Criminologia, em parceria com pesquisadora, constatei que Pernambuco
tinha em 2011 a segunda maior taxa de encarceramento de adolescentes com a cifra de
1.456 adolescentes internados, s perdendo para a de 6.814 do estado de So Paulo, cuja
proporo demogrfica muito maior que a deste estado. Alm disso, pude constatar o
fato de que 90% desses jovens encarcerados usam drogas me amparando em dados
oficiais do Ministrio da Justia (cf. BABINI, rica, GONAVES, Cristhovo, 2015, p.
323).
esforos no trfico de drogas, com a desculpa de que este causa de mortes violentas
intencionais.
A pior coisa para o cidado pobre foi esse tal de Pacto pela Vida.
Ponto debelado no nunca uma boca derrubada. As metas
conduziram a muitos absurdos. Os pontos debelados so para os PMs
que esto na rua, mas que h remunerao financeira para os
comandantes e que, s vezes, h inclusive briga por saber de quem so
as ocorrncias em reas de divisa, justamente por conta dessas
remuneraes aos comandantes. A ideia de atacar a droga por conta
dos homicdios uma falcia. (Dirio de Campo 25/09/2015)
72
As rodadas semanais do Pacto Pela Vida na SEPLAG envolvem reunies com participao do MPPE e
do TJPE. A DPPE tambm participa, mas no a coloco como diretamente responsvel por esse quadro
prisional tendo em vista suas atribuies funcionais e sua ausncia de autonomia financeira e
oramentria. A DPPE recebeu aumento de demandas de rus sem condio de arcar com os custos de
processo como consequncia do encarceramento promovido pelo Pacto Pela Vida, por outro lado a
Defensoria Pblica no obteve recursos suficientes para se estruturar como instituio promovedora de
funo de defesas dos necessitados.
126
leitor, e encontradas na integra nos anexos desta dissertao, bem como pelo que chamo
de questes interna corporis dos Batalhes da Polcia Militar.
Chamo ateno para o fato de que meus relatos trazem informaes diferentes de
alguns dados oficiais. Desse modo, os prprios destinatrios dessas benesses afirmaram
que o pagamento calculado de acordo com as equipes formadas por trs policiais.
Portanto, a informao de pagamento individual parece estar mal colocada nas
informaes oficiais. Acredito que no af de ressaltar que as gratificaes agora so
pagas s equipes e no mais ocorre um rateio pela corporao inteira se cometeu
impreciso lexical. Assim, embora a Secretaria de Planejamento e Gesto73 declare que
o pagamento individual, os policiais interlocutores afirmaram-me que o pagamento
por equipe. Os policiais tambm relatam profundas descontinuidades no recebimento
dessas premiaes.
73
Essas informaes datam de 29 de janeiro de 2015, retiradas do stio eletrnico da
SEPLAG<http://www.seplag.pe.gov.br/web/portal/artigo?codigoNoticia=1308>. O atual Secretrio de
Defesa Social de Pernambuco o Sr. Danilo Cabral.
127
Reconheo que essas metas acabam exercendo presso para que cada policial
produza como mquina. Impor metas acaba por tornar o policial um agente mais guiado
pela eficincia do que pela prpria legalidade, sendo aquela geralmente relacionada
priso.
Nesse ciclo, os policiais sofrem presses polticas por resultados que podem ser
maiores ou menores em perodos diferentes, de acordo com pnicos morais particulares
ou com tendncias expostas em estatsticas criminais Logo, sob a presso para obter
resultados, sob a forma de soluo de casos, os policiais sentem-se impelidos a
ampliar seus poderes e violar os direitos dos suspeitos (cf. REINER, Op, cit. p. 136).
74
No mesmo link, apresentado em nota anterior, h a informaes sobre valores por bnus arma.
Como no h lei que verse sobre o tema, s posso presumir que seja questo interna corporis. No incio
do Pacto Pela Vida, o bnus por apreenso variava de R$ 300,00 (armas de fogo curtas, semi-
automticas) a R$ 1.500,00 por arma (de uso restrito, como fuzis e metralhadoras). Com a nova proposta,
as bonificaes por armamento apreendido variam de R$ 700,00 a R$ 2.000,00. Relembro ao leitor que
em minha investigao s vi a apreenso de um revolver calibre 38 (arma de uso permitido) que
apresentei no panorama quantitativo.
75
Prmio da Defesa Social (PDS). Quanto a essa modalidade esclareo que no havia previso na primeira
lei que regulamenta o PPV, no havendo registro na letra fria da segunda lei. Segundo a SDS, o PDS leva
em conta os resultados em funo do desempenho do Estado no processo de reduo dos CVLIs. Esse
benefcio pago semestralmente a todos os policiais civis e militares que estiverem em exerccio na
secretaria de Defesa Social e em seus rgos operativos, podendo variar de R$ 3 mil (reduo de 12% do
CVLI do Estado) a R$ 112,00 (reduo de at 6%) para os oficiais, delegados, peritos criminais e
mdicos legistas. E de R$ 2 mil (reduo de 12% do CVLI do Estado) a R$ 62,00 (at 6%) para os praas,
agentes, escrives, auxiliares de peritos e de legistas e papiloscopistas. O PDS por rea de atuao vai de
R$ 2,4 mil a R$ 560,00 (oficiais, delegados, peritos criminais e mdicos legistas) e de R$ 1,6 mil a R$
320,00 (praas, agentes, escrives, auxiliares de peritos e de legistas e papilocopistas). Caso o Estado
tambm alcance a reduo dos Crimes Violentos Letais Intencionais CVLI haver a bonificao extra,
podendo chegar a um acrscimo de 25%, se alcanada a meta de reduo de 12% nos CVLIs.
129
Caractersticas comuns sobre metas e o agir policial podem ser percebidas nos
relatos de estudos feitos em diferentes contextos sociais. Isso acontece porque elas se
originam de problemas constantes que os policiais enfrentam ao realizar o seu papel
cujo mandato precisam exercer a qualquer preo. Essa a considerao externalizada
em um dos livros da srie de estudos sobre as polcias do Ncleo de Estudos da
Violncia da Universidade de So Paulo (REINER, Op, cit, p.133).
Preciso explicitar que essas metas so cobradas das polcias, tanto a militar
quanto a civil-judiciria. Com as exigncias direcionadas ao elo mais fraco da corrente,
o Poder Judicirio e o Ministrio Pbico reforam o servio que iniciado nas
Delegacias de Polcia.
O bnus foi modificado recentemente a fim de dar maior eficincia nas aes
das policiais militares e civis. Da lei N 15.458 , de 12 de fevereiro de 2015, destaco:
Essa ltima lei passou a dispor sobre gratificaes aos policiais civis e militares,
estabelecendo em seu artigo 8 valores de R$ 1000,00 para os 50 agentes da lei que
mais apreendem crack (quantidade mnima de 120 gramas de crack para entrar no
ranking). Tambm existe a previso de R$ 500,00 para os policiais classificados entre as
posies de 51 ao 100, (mnimo de 80 gramas de crack para poder concorrer) e R$
250,00 para os 50 ltimos da lista, desde que apreendam o montante mnimo de 40
gramas.
Deixo claro que, desde a Lei N 14.320/ 2011, existe a ponderao que cocana
equivale ao crack na seguinte proporo: 1g de cocana ou pasta base = 3g de crack para
fins de clculo do bnus crack. Explicito tambm que nenhuma ocorrncia envolvendo
134
O praa ainda explicou-me que a gratificao, tanto por apreenso de arma como
de substncia conhecida como crack, sai descriminada no contracheque. O soldado
disse, naquele fim do ms julho, que no algo mensal, mas de 6 em 6 meses costuma
aparecer no seu contracheque. Ele diz que de 21 mil policiais militares atuantes nas ruas
apenas uns 2 mil recebem alguma espcie de gratificao. Num tem farda pra ir pra
rua que dir pagar bnus crack. O bnus, na verdade, uma maneira de tentar
compensar a precarizao que espreita o trabalho das polcias. Transcrevo mais um
trecho do dilogo com o mesmo interlocutor da polcia militar:
O debate sobre segurana pblica precisa ouvir os policiais que esto na rua em
linha de frente no enfretamento de problemas reais como crimes violentos ou at mesmo
a questo das drogas. A valorizao das polcias deve ocorrer de maneira mais concreta
e humana.
Creio que o bnus crack incentiva uma rivalidade desnecessria e pode causar
prticas de corrupo a exemplo dos flagrantes forjados. Ao vencido dio ou
compaixo ao vencedor as batatas uma conhecida frase de Machado de Assis no
romance Quincas Borba que resume esse quadro de competitividade nada saudvel que
se criou para a polcia na corrida pelo crack.
Ademais, criar uma benesse salaria, como incentivo para apreenso de crack,
uma maneira institucional de querer as ruas limpas, j que notrio que a populao em
situao de rua o pblico que precisa se entorpecer com os efeitos da pedra. Logo,
foi o pblico da rua o sacrificado para que a polcia pudesse ter pequena gratificao em
face de sua tacanha precarizao. Observe leitor, parte trazida pela relevante Etnografia
da Abjeo realizada em regies que compreendem a chamada Cracololndia da capital
paulista:
(...) Desde que chegou ao pas, o crack uma droga que se liga
fortemente ao cotidiano da populao urbana desabrigada (embora no
s)(...) Aqui, porm, trabalho com dupla via: o crack pode tanto ser
uma possibilidade para quem j frequentava as ruas quanto pode levar
indivduos a essa condio. Uma vez na rua, o despojamento corporal,
o consumo continuo da droga, a falta de asseio dirio e a ausncia de
proteo noturna, juntos, denotam com mais evidncia a situao a
que chegaram (...) Quanto mais o tempo que passam a ficar
continuamente na rua, maior a espessura da sujeira. Nesse processo, os
ps vo se tornando speros e empoeirados, as unhas ficam pretas,
grossas e grandes, os cabelos se apresentam ranosos, as peles se
tornam encardidas, manchadas, opacas e ressecadas, em alguns casos
cheias de espinhas ou feridas, os olhos e ouvidos se exibem com
remela. Quem vivencia no corpo esse processo no fica alheio a ele
(...) (RUI, 2014, p. 295-296)
77
As pessoas que chegaram CEPLANC durante a execuo da pesquisa de campo nunca foram
consideradas usurias e, portanto, no presenciei a realizao de termo circunstanciado de ocorrncia
quando a substncia ilcita era o crack. A raridade na incriminao de pessoas envolvidas com crack
como usurias sinaliza as consequncias perversas da criao do instituto do bnus crack pelos
idelogos do Pacto Pela Vida.
136
abre as reflexes deste trabalho. Reconheci nessa mulher aprisionada por trfico de
drogas outras que Taniele Rui encontrou em sua pesquisa:
preciso reconhecer nesse GPPV crack como parte de uma cultura policial que
costuma focar esforos para grupos minoritrios, para quem a hostilidade da polcia
historicamente focada. Os estudos empricos sobre a cultura policial e suas prticas
revelam que o mapa social da polcia se diferencia de acordo com o poder de grupos
especficos, transformando em propriedade da policia os mais fracos (cf. REINER,
Op, cit., p. 159).
Como j pode ter associado o leitor, bonificar a polcia por apreenso do crack e
de sujeitos vulnerveis que o utilizam e/ou o comercializam tambm marca de uma
rasgada discriminao na atividade de criminalizao secundria pelo aparelho policial.
Quando falo em discriminao, pretendo explicar a ideia j apresentada nos relatos de
campo deste trabalho de um padro diferenciado nos poderes de polcia. Esse agir trs
como consequncia algumas categorias sociais serem super-representadas como alvo
das aes policiais.
Devo aqui novamente pincelar que essa forma de lidar com o problema do crack
produz o enquadramento discricionrio de pessoas apreendidas com crack, mesmo com
poucas pedras, como traficantes de drogas. O imperativo categrico, de quando se
trata de crack haver a incriminao majoritria por trfico de drogas, ilustra um
processo de sujeio criminal, atravs da qual so selecionados preventivamente os
supostos sujeitos que iro compor o tipo social cujo carter socialmente considerado
como propenso a cometer um crime (MISSE, Op, cit., p. 11). Saliento que a busca
137
por esse tipo de recompensa envolvendo crack acaba impossibilitando que os usurios
dessa droga sejam tratados por meio dos Juizados Especiais Criminais (JECrim), sendo
esses quase sempre flagelos humanos levados ao crcere.
78
Epidemia nas palavras do autor, nunca as minhas por toda concepo criminoantropolgica que possuo
a respeito da questo das drogas.
138
O valor por hora cumprida de PJES79 custa um pouco mais que uma pedra de
crack (normalmente R$ 10,00) ou o valor de uma pedra de crack da melhor(grifei). A
precarizao para correr atrs de crackeiro para a polcia militar e para process-los
em autos de priso em flagrante para a polcia civil o valor de uma pedra,
ironicamente consumida em ligeiros segundos. No sei se meus interlocutores policiais
j pararam para refletir nesse custo-benefcio de seus esforos.
79
Cada serventurio da polcia pode tirar 8 PJES, mas comum que se tire 4 PJES humanamente falando:
48 horas mensais a mais de trabalho. O PJES de delegado custa R$ 270,00.
139
A explicao oficial anuncia que pontos debelados seriam locais onde se realiza
mercancia de substncias ilcitas como maconha, j que o crack equivale ao bnus
crack. Essa no uma afirmao totalmente falsa. Por outro lado, preciso que o leitor
entenda, como eu compreendi, que esses pontos so na verdade prises de pequenos
traficantes em determinado ponto da cidade. Logo, debela-se um ponto de um
traficante varejista que, muitas vezes, revende para arcar com sua prpria necessidade
de consumir determinada droga. Derrubar um ponto que no fixo, que nmade,
errante, um grande contrassenso. Observe pequena explicao sobre esse formato do
comrcio de drogas, leitor:
Dessa maneira, cada ser humano trazido em aresto policial contar, via de regra,
como um ponto, podendo valer mais que um ponto, se essa pessoa, por exemplo, indicar
outros locais de vendas de drogas de drogas. O ponto livre de um criminoso, como
escutei, logo depois da priso do sujeito ser ocupado por outro indivduo que correr o
mesmo risco de seu infortunado antecessor. Dores e momentos de prazer
proporcionados com o uso de drogas formam essa densa teia de proibies. Nesse ponto
preciso que se diga expressamente que a lgica dos pontos debelados representa uma
forma ilusria e ao mesmo tempo perversa de administrar a segurana pblica, como
avalio.
Acumular pontos para ter direito a uma folga figura como uma forma de
incentivar a priso e no a investigao de crimes ligados ao trfico de drogas. Essa
lgica ocasiona a entrada em localidades sem mandato judicial. Nesse sentido, devo
realizar crtica no s s polcias, mas tambm ao Ministrio Pblico e ao Judicirio,
que processam demandas com base em ilegalidades. Essas instituies no se
manifestaram contra certas prticas reforadas pelo Pacto Pela Vida (e poderiam!).
Para uma melhor gesto da segurana pblica preciso haver uma reviravolta no
foco estratgico das polcias, repensando-se prioridades organizacionais e operativas
que do nfase s prises. Desse modo, ao invs de agir aps o acontecimento de
delitos, a polcia deve guiar-se pelo foco da preveno que diagnostica e age sobre
causas, fatores e circunstncia de conflito no territrio das cidades (cf. SILVA FILHO,
GALL, Op, cit., p. 218)
O caso desses pontos debelados, que possibilitam folgas aos policiais, mas num
plano prtico no significam desbaratamento de bocas de fumos, revela as prises de
sujeitos que esto na base da cadeia do trfico de drogas. Essas apreenses nas
delegacias transmutam-se em autos de prises em flagrantes, que tornar-se-o denncias
e, por ltimo, viraro sentenas. Pontos debelados, uma folga, um vida sem valor, uma
priso, uma denncia e uma sentena condenatria embasada em metas de uma lgica
degradante de direitos fundamentais.
Os relatos deste captulo procuram fazer emergir tese de que so as metas que
do os contornos e as particularidades da criminalizao na RMR. No repetirei
informaes acima j lanadas. Ponto debelado uma meta no clara no sentido de
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previso legal, sendo um exemplo daquilo que chamei de questes interna corporis. A
quantidade de pontos para a concesso do benefcio varia de acordo com o batalho.
Nessa parte reafirmo que essa lgica de remunerar com folga por ponto debelado no
consiste em premiar um agente da segurana pelo desbaratamento de uma boca de
fumo, longe disso.
3.4.2 Sai no contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma
cair
razes so muitas, mas pontuo que essa bonificao tem como objetivo compensar o
alto nvel de precarizao de condies de trabalho das polcias.
urgente que se discuta, por exemplo, a militarizao das polcias, que haja
reforma de alguns protocolos de ao policial e constantes processos de discusso sobre
atuao policial e cidadania ocorram, no s em cursos de formao para ingls ver.
preciso olhar nos olhos o horror que nos constituiu e que at forma nossa sociabilidade
como este relato explicita.
Por esse relato, pretendo mostrar que a criao de metas precisa ser controlada e
fiscalizada. Nas palavras de um policial civil, as recentes audincias de custdia, que
passaram a receber autuados da CEPLANC, um dia aps formalizao da priso em
flagrante, possivelmente, fizeram diminuir os caso de flagrantes forjados como sugeriu
o escrivo autor dessa frase.
Antes das custdias, uma pessoa demorava meses para estar em frente de um
magistrado, somente ocorrendo na audincia de instruo, ato em que se escutam a
defesa e acusao e as provas so filtradas pelo principio do contraditrio e da ampla
defesa, ou pelo menos deveriam.
E que oportunidade melhor, do que um dia aps a priso dos suspeitos, para
realizar controle das aes policias? No estou tambm sendo um entusiasta sem
ressalvas das audincias de custdias como panaceia para questes que envolvem a
abordagem policial e a dinmica da criminalizao das drogas pela polcia. A cultura de
um juiz penal, por vezes, se mostra mais militar do que a dos prprios policias militares,
devo frisar.
80
Com a promulgao da Lei N 12.403/2011, que introduziu medidas alternativas priso preventiva no
artigo 319 do CPP como o monitoramento eletrnico e o comparecimento mensal ao juzo, houve uma
tentativa de reverter o quadro encarcerador brasileiro, notadamente para presos sem condenao, mas essa
inovao processual no conseguiu promover modificaes no quadro prisional brasileiro. A questo no
a lei, a cultura de punio.
146
3.4.4 Segurana Pblica se faz com responsabilidade, salrio digno pros agentes da
segurana, mas existem outros interesses financeiros em jogo, mas comigo no colam
certas coisas
Sem muitas delongas, pretendo explicitar que segurana pblica no pode ser
construda com prmios e bonificaes. As metas incentivam uma tica do nmero
revelia de uma tica de respeito ao humano, que passa a ser tratado como mercadoria
para ganho financeiro por parte de um policial. Segurana pblica deve ser construda
com responsabilidade, salrio digno para o policial, que cidado e precisa tratar seus
pares como cidado. Valho-me da frase dita pela delegada interlocutora para reforar do
que a segurana necessita para avanar numa sociedade democrtica.
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CONSIDERAES FINAIS
A expresso que melhor revela esse quadro de controle penal a iluso. Iluso
por haver incriminaes confusas, que no encontram explicaes racionais a exemplo
do amplo deslocamento de contingentes policiais a combater traficantes que esto
errantes pelas ruas. Esses so essencialmente traficantes pelo primeiro azar que a vida
lhes destinou em face de sua condio social e o segundo por terem encontrado a
polcia. Outros sujeitos tm sorte e conseguem livrar-se apenas como usurios de drogas
149
por interpretao e agir garantista da polcia judiciria, que tambm no uma pratica
recorrente e constante.
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ANEXOS