GONÇALVES, Cristhovão Fonseca. Na Central Da Capital - Entre As Drogas e o Pacto

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UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

COORDENAO GERAL DE PS-GRADUAO


PR-REITORIA ACADMICA
MESTRADO EM DIREITO

NA CENTRAL DA CAPITAL: Entre as Drogas e o Pacto

- etnografando a criminalizao das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela
Vida no Grande Recife

CRISTHOVO FONSECA GONALVES

Prof. Dr. JOS LUCIANO GIS DE OLIVEIRA


(Orientador)

Recife PE
CRISTHOVO FONSECA GONALVES

NA CENTRAL DA CAPITAL: Entre as Drogas e o Pacto

- etnografando a criminalizao das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela
Vida no Grande Recife

Dissertao apresentada ao Programa de


Ps-Graduao em Direito da
Universidade Catlica de Pernambuco
UNICAP, como exigncia parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Jos Luciano Gis Oliveira

Recife-PE
2016
CRISTHOVO FONSECA GONALVES

NA CENTRAL DA CAPITAL: Entre as Drogas e o Pacto

- etnografando a criminalizao das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela
Vida no Grande Recife

Dissertao para obteno do ttulo de Mestre em Direito


Universidade Catlica de Pernambuco/CCJ/UNICAP
Data de Aprovao: ____/____/___

_______________________________________________
Prof. Dr. Jos Luciano Gis Oliveira

________________________________________________
Prof. Dr. Ela Wiecko Volkmer de Castilho

________________________________________________
Prof. Dr. Marlia Montenegro Pessoa de Mello

____________________________________________
Prof. Dr Luciana Maria Ribeiro de Oliveira
AGRADECIMENTOS

A minha av, Snia Queiroz Fonseca, por ser exemplo de f e de luta durante
toda uma vida e por ter sido a minha maior professora. Abre a tua boca a favor do
mudo, a favor do direito de todos os desamparados a lio dos Provrbios 31:8 que
ouvi repetidamente dela e que de alguma maneira pretendo sempre executar. Agradeo
a meu pai Carlos Alberto Penante Gonalves por ter me ensinado que na corda bamba
de sombrinha o show de todo artista tem que continuar numa cano sobre esperana.
Ao meu irmo, Carlos Jnior, por todo o carinho e compreenso, sem os quais no
conseguiria ter realizado minha pesquisa na Central da Capital e a escrita deste trabalho.
A mame, Suely Queiroz Fonseca, por ter me falado de justia social antes
mesmo de eu saber o que era o direito, pelo exemplo de fora e de coragem que sempre
me inspiraram. A Marlia Montenegro Pessoa de Mello por ter me apresentado o saber
pulsante da Criminologia Crtica e por ser uma aguerrida professora. Mirem-se nos
exemplos dessas mulheres de Atenas.
Ao Luciano Oliveira (professor) por colocar em prtica a lio de Rubens
Alves de encorajar voos sem dizer como se deve voar: escolas que so gaiolas existem
para que os pssaros desaprendam a arte do voo; pssaros engaiolados so pssaros sob
controle. Ao Luciano Oliveira (amigo e companheiro) por, numa noite, na Faculdade
de Direito do Recife, ter recebido de braos abertos a mim, um estudante cheio de
sonhos, por ter respeitado o eu militante, e por ter soltado umas das suas, que nunca
esqueci, quando cheguei atrasado em sua aula por estar pelos corredores com uma
camisa vermelha: Quer dizer que a cadeira vazia com livros de Criminologia de um
inconformado?.
A todos os policias que me ajudaram a entender e sentir as polcias e seus
dilemas. Ao amigo Francisco de Assis Ramos por ter me encorajado a seguir nesta
pesquisa. Ao delegado Bruno Chacon pelo compromisso com a garantia de direitos e
com a cidadania, que devem ser as reais metas da polcia. Ao delegado Ademir Soares,
pela sobriedade e exemplo de operador do garantismo penal na atividade de
criminalizar. Ao delegado Albrico Pires pelo sorriso e alegria, que se impem mesmo
diante das situaes de dor verificadas em delegacias. s delegadas Maria Helena
Couto pela elegncia que se destaca na Central e Alcilene Messias pela postura firme e
tica de uma mulher que no aceita injustias de uma ordem policial militarizada. Aos
delegados do DENARC Isaias Novaes e Joo Leonardo por me receberem nessa
repartio policial e terem contribudo significativamente para essa pesquisa. A Luciana
Karla por ter me recebido e por todo o apoio. Aos escrives e s escrivs Cristianne dos
Santos, Daniela de Oliveira, Douglas Gomes, Rafaella Di Paula e Carlos Eduardo de
Oliveira por terem me dado suporte ao longo de toda a pesquisa.
Ao amigo-irmo Diego Lemos pelos sempre desafiadores estmulos, por dividir
bons e maus momentos e por compartilhar sonhos e discursos que, por vezes, saem do
universo do direito e tomam fora na poltica, que, talvez, no seja meio para atingir
qualquer finalidade, seno a liberdade, como sinaliza Hannah Arendt. A Yasmim Vilar
por ser o elo mais belo dos tempos de escola e pelo seu ouvir e ensinar generosos. s
amigas Maria Luiza Caxias, por me completar, Jssica Barbosa e Juliana Serretti,
companheiras e irms de longa data e referncias para mim num agir aguerrido. A
Andrea Mello, por t-la encontrado nos caminhos do afeto, que me ligaram sua filha
Maria Clara, amiga especial e nica. sempre companheira Rafaela de Alcntara pela
caminhada que sempre nos uniu.
A Vera Regina Pereira de Andrade, pela histria de luta e resistncia na
Universidade. Pelo exemplo de altivez que nem a punio nem as vicissitudes da
educao conseguem derrubar. A Vera, matriz ideolgica de um agir criminolgico
comprometido com a luta poltica, capaz de fomentar a criao de grupos como o Asa
Branca de Criminologia. Em nome de todo o Grupo Asa Branca agradeo ainda ris
Dayane por ser uma amiga querida. Considero-a tambm a minha primeira aluna. ris
honra a longa gerao de jovens criminlogos/a sonhados por Roberto Lyra Filho, de
intelectuais orgnicos, para quem o saber s tem sentido se tiver engajamento social.
Universidade Catlica de Pernambuco, onde aprendi o que faz o/a
sertanejo/a quando batem as seis horas e pelo humanismo que resiste nesta
Universidade. Agradeo teloga feminista Ivone Gebara a quem avistei algumas vezes
pela Universidade, mas nunca tive coragem de dirigir a palavra, tamanha a deferncia
que a guardo. Ao Pr-reitor Comunitrio Padre Lcio Flvio por ter, quando um aluno
desta Casa foi levado ao crcere, ido visit-lo, executando ensinamentos abolicionistas
penais e bblicos no silncio do cristianismo libertador. Agradeo aos professores da
Ps-Graduao em Direito em nome de quem sado Marcelo Labanca e Virgnia
Colares, pela acolhida, e a ltima pelas ousadas aulas de metodologia. Agradeo ainda
professora Carolina Feraz pelo exemplo de mulher e docente e pelo abrao que revigora,
sempre amiga e orientadora professora Clarice Castro, professora com quem dividi
as bancas de processo penal e com quem aprendi a ensinar respeitando Ftima Falco e
professora Flvia Santiago pelo notvel conhecimento e apoio. Agradeo s meninas
do Caf com Qu (Marcia, Lu e Amada) pelas divertidas conversas no apagar das luzes
da Universidade. Aos funcionrios do PPGD, Eunise e Alessandro, por tambm estarem
comigo no silncio e no apagar das luzes da Universidade. Pela ateno, presteza e
apoio a Nlia Queiroz, Srgio Wanderley, Danielle Mendes e Eliene Fabrcio.
Universidade Federal de Pernambuco em nome de quem agradeo a Liana
Cirne Lins pela ligao que originou esta dissertao e pela coragem e dignidade de
suas aes em nome da justia e do ensino do direito. A Eugnia Nilsen Barza pelas
aulas de Amrica Latina em que travamos batalhas, mas sobretudo pelo compromisso
com a educao e por ter me ensinado que estamos juntos na luta pela Universidade.
Agradeo ainda a minha professora de processo penal, Ana Maria Campos Torres, e a
sua mestranda, agora a professora Maria Luiza Souza, que me apresentaram ao rico
universo do processo penal e da humildade de ser professor mesmo em meio s
adversidades.
Ao Movimento Zoada, que me orgulho de ter construdo. Aos companheiros e
amigos, que reinventam a histria da esquerda na FDR, Paulo Borges, Anny Lay
Rodrigues, Dafne Dornelas, ele e elas do bonde Paulista, so o retrato da nova fora e
juventude que tomou a Universidade e me renovam e me enchem de jubilo. A Caio
Juc, em quem sempre me enxerguei, e a Elissa Deimiling, Toms Celino e Robeyonc
Lima, almas de grande corao a quem tive a sorte de encontrar na jornada da vida. Pela
fora e coragem, lembro e agradeo ao Grupo Alm das Grades, em nome de quem
agradeo a Murilo Correia, Alana Barros e Lucas Oliveira, por no esquecerem dos
vapores baratos, meros serviais do narcotrfico.
Dedico minhas homenagens ao movimento antiproibicionista que ousa lutar para
alm da institucionalidade e que percebe no haver o direito de punir, mas apenas o
poder de punir, como anuncia Clarice Lispector.
s amigas com quem fui agraciado pela ocasio do mestrado. Do PPGD da
UNICAP: Ana Paula Azevedo, Tassiana Oliveira, Louise Datas, Flora Oliveira, Tmara
Marlia, Vitria Dinu, com quem reatei os laos, e Camila Leite, a quem felizmente
pude conhecer. Do PPGS da UFPE, amiga com quem dividi madrugadas, Patrcia
Bandeira, e a Suzy Luna pelo nosso aproximar.
O sol queimou
Queimou a lama do rio
Eu vi um chi
Andando devagar
Vi um carangueijo
Andando pro sul
Saiu do mangue
Virou gabiru
Josu eu nunca vi
Tamanha desgraa
Quanto mais misria tem
Mais urubu ameaa
(...)
Da lama ao caos
Do caos a lama
Um homem roubado
nunca se engana

(SCIENCE, Chico. Da lama aos caos, 1994)


RESUMO

Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa emprica sobre a criminalizao das
drogas no departamento policial conhecido como Central de Plantes da Capital
(CEPLANC), localizado no bairro de Campo Grande, Recife, Pernambuco. Nesse local
passam a totalidade de pessoas apreendidas pela polcia militar em situao de flagrante
por uso, posse ou ato de traficncia de drogas na regio. Discuto questes tericas
relacionadas poltica proibicionista de criminalizao das drogas luz dos fatos
sociais presenciados ao longo dessa pesquisa de mestrado. Trata-se tambm da questo
das drogas e suas relaes institucionais com a segurana pblica. Na Central de
Plantes da Capital, realizei estudo etnogrfico envolvendo outsiders que l chegaram
conduzidos pela polcia militar com auxlio da Antropologia e Criminologia Crtica. O
objeto de pesquisa cientfica envolve o processo de criminalizao secundria de
usurios e traficantes. Essa engrenagem punitiva tem como motor o regime produtivista
de metas do Pacto Pela Vida que interfere significativamente nesse processo de
criminalizao no qual as polcias so executoras de diretrizes polticas dos governos
estaduais.

Palavras chave: Drogas; Polcia; Segurana Pblica.


RESUM

Ce travail prsente les rsultats dune recherche empirique sur la criminilisation des
drogues dans le departement de la police connu comme Centrale de Garde de la
Capitale ( CEPLANC ), situe dans le quartier de Campo Grande, Recife, Pernambuco.
Dans cet endroit passe la totalit de personnes emprisonnes par la Police Militaire en
situation de flagrant, pour lusage, possession, ou trafique de drogues dans la rgion . Je
discute sur les questions thoriques en relation la politique prohibitive de la
criminilisation des drogues sous la lumire des faits sociaux vus tout au long de cette
recherche. Il est question aussi des drogues et de ses relations institutionnelles avec la
scurit publique. Dans la Centrale de Garde de la Capitale, jai realis une tude
ethnographique avec les outsiders cas de qui arrivaient l-bas emmenes par Police
Militaire, avec laide de lAnthropologie et de la Criminologie Critique. Lobjet dune
recherche scientifique traite le processus de criminilisation secondaire des usagers et
traficants. Ce mcanisme punitif a pour moteur le rgime de production des buts du
Pacte Pour la Vie qui intervient signicativement dans ce processus de criminilisation
dans lequel les polices excutent les directives politiques des gouvernements des tats.

Mots-cls: Drogues; Police; Scurit Publique.


.
SIGLAS UTILIZADAS

CEPLANC Central de Plantes da Capital


IC Instituto de Criminalstica
APF Auto de Priso em Flagrante
TCO Termo Circunstanciado de Ocorrncia
BO Boletim de Ocorrncia
PPV Pacto Pela Vida
RMR Regio Metropolitana do Recife
PJES Programa de Jornada Extra de Segurana
PM Polcia Militar
SDS Secretria de Defesa Social
SEPLAG Secretaria de Planejamento e Gesto
GACE Gerncia Geral de Anlises Criminais
INFOPOL Sistema de Informaes Policiais
SINPOL Sindicato da Polcia Civil
TJPE Tribunal de Justia de Pernambuco
MPPE Ministrio Pblico de Pernambuco
DENARC Departamento de Represso ao Narcotrfico
CICA Centro Integrado da Criana e do Adolescente
DPCA Delegacia de Policia da Criana e do Adolescente
CPP Cdigo de Processo Penal
CAPS-AD Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
IML Instituto Mdico Legal
JECrim Juizado Especial Criminal
CVLI Crime Violento Letal Intencional
MJ Ministrio da Justia
DEPEN Departamento Penitencirio Nacional
GPPV Gratificaes Pacto Pela Vida
SUMRIO

INTRODUO......................................................................................................12

1 DA METODOLOGIA CENTRAL DE PLANTES DA CAPITAL: as


estratgias, os percursos e os percalos do Campo..........................................17
1.1 Constrangimentos Metodolgicos ou Constrangimentos de Pesquisa?
............................................................................................................................17
1.2 Panorama Qualitativo.........................................................................................29
1.3 Panorama Quantitativo.......................................................................................35
1.4 A Central de Plantes da Capital: da gnesis ao
caos.....................................................................................................................49
1.5 Relatos de Campo.............................................................................................53
1.5.1 O da maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da
droga......................................................................................................................58
1.5.2 Diga a seu pai que voc deu droga ao outro; dar, doar j trfico; t na
lei............................................................................................................................64
1.5.3 Nunca tive o prazer de apreender
cocana...................................................................................................................67
1.5.4 Bom trabalho equipe, no esquecer de indicar no BO da gente PONTO
DEBELADO...........................................................................................................67
1.5.5 Sai no contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses
costuma
cair.........................................................................................................................70
1.5.6 Depois da custdia os policiais militares to mais cautelosos com
determinadas prticas que voc conhece...............................................................76
1.5.7 Segurana Pblica se faz com responsabilidade, salrio digno pros agentes
da segurana, mas existem outros interesses financeiros em jogo, mas comigo no
colam certas
coisas......................................................................................................................74

2 A CRIMINALIZAO DAS DROGAS NO GRANDE RECIFE: de qu e de


quem estou falando?...............................................................................................80
2.1 O locus de anlise: a lupa criminoantropolgica................................................80
2.2 Flagrando por meio de nmeros as incoerncias da criminalizao das drogas
no Campo de
Pesquisa....................................................................................................................86
2.3 As categorias de usurios e traficantes no Campo de Pesquisa .........................90
2.3.1 Traficante por
azar........................................................................................................................91
2.3.2 Usurio por sorte..........................................................................................93
2.3.3 Usurios-Revendedores...................................................................................94
2.3.4 Traficante Tpico ............................................................................................95
2.3.5 Usurio Tpico.................................................................................................97
2.3.6 Traficante-
Policial......................................................................................................................98
2.4. O controle das drogas atravs do brao policial: a reduo de danos como
paradigma alternativo ao
proibicionismo..........................................................................................................99
2.5. Anlise dos Relatos de Campo..........................................................................105
2.5.1. O da maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da prpria
droga.......................................................................................................................105
2.5.2. Diga a seu pai que voc deu droga ao outro; dar, doar j trfico; t na
lei.............................................................................................................................106
2.5.3. Nunca tive o prazer de apreender cocana ................................................108

3 AS POLCIAS E A CRIMINALIZAO DAS DROGAS NA SINFONIA DO


PACTO PELA VIDA: de qu e de quem estou falando? ..................................109
3.1 Eu, um estranho no ninho, e o olhar criminoantropolgico sobre as polcias.......109
3.2 Pacto Pela Vida: Vida ou Proibio?....................................................................117
3.3 As Metas Impostas Pela Segurana Pblica Pernambucana na Criminalizao das
drogas..........................................................................................................................125
3.3.1 Bnus Crack.......................................................................................................132
3.3.2 Pontos Debelados...............................................................................................138
3.4 Anlise dos Relatos de Campos............................................................................141
3.4.1 Bom trabalho equipe, no esquecer de indicar no BO da gente PONTO
..DEBELADO...........................................................................................................141
3.4.2 Sai no contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma
cair............................................................................................................................142
3.4.3 Depois da custdia os policiais militares to mais cautelosos com determinadas
prticas que voc conhece........................................................................................144
3.4.4 Segurana Pblica se faz com responsabilidade, salrio digno pros agentes da
segurana, mas existem outros interesses financeiros em jogo, mas comigo no colam
certas coisas..............................................................................................................146

CONSIDERAES FINAIS...............................................................................147

REFERNCIAS.....................................................................................................................150

ANEXOS.................................................................................................................................156
12

INTRODUO

Era 17 de junho 2014. Num dia de sol, o Recife acordou com a mesma
fedentina do dia anterior, exatamente como cantava Chico Science, desde os anos
noventa, sobre os dilemas urbanos da capital pernambucana. Uma violenta reintegrao
de posse da rea Cais Jos Estelita estava em curso. Ningum conseguia acessar essa
regio. A polcia de trnsito garantiu que nenhum carro ou pessoa tivessem acesso
quela localidade. Naquela data, eu iria para o Cabo de Santo Agostinho acompanhar
dada situao de violao de direitos humanos por aquelas paragens.

Muitas ligaes da professora Liana Cirne Lins estavam registradas no meu


celular. Eu tentava ligar para a atuante docente da Faculdade de Direito do Recife sem
sucesso. Parti de minha casa, para apanhar uma amiga que junto comigo avaliaria
algumas questes envolvendo os impactos do desenvolvimento nas praias do litoral
sul. Breve parada para conversas e um caf da manh, recebo uma chamada. Muito
barulho, gritos e o apelo daquela professora para que eu pudesse ajudar na defesa das
pessoas detidas pelo choque durante a atuao da polcia militar. Ela no sabia para
onde as pessoas estavam sendo levadas.

Parei, respirei, e com o incentivo da amiga de faculdade, que resolveria sozinha


o trabalho em Suape, segui na busca da delegacia para onde os ocupantes do Cais
estavam sendo conduzidos. Cerca de cem pessoas ocupavam esse espao histrico h
quase um ms, em protesto contra o projeto urbano aprovado pela Prefeitura do Recife,
autorizando a demolio de antigos armazns para a construo de arranha-cus no que
se convencionou chamar de Novo Recife.

Refleti que em casos de protestos militantes costumavam ser levadas para a


Delegacia de Santo Amaro. J naquele bairro, confirmei que nada havia naquela
repartio policial. Tentei contato com pessoas que se encontravam na zona do conflito.
Parece que esto levando pra Central a mesmo em Santo Amaro, era a informao
que obtive. Perguntei aos transeuntes que afirmaram ser a Central de Flagrantes,
localizada no bairro de Campo Grande, bem perto de onde me encontrava naquela
ocasio.
13

Segui para l. Os reprteres j estavam posicionados fora das dependncias da


Central de Plantes da Capital. Adentrei essa repartio policial sem conversas com os
jornalistas. Quando abri a porta de vidro do departamento avistei a sala da OAB, local
em que escreveria boa parte dos relatos que fundamentam esta dissertao.

Penetrei a rea reservada chamada de permanncia, no respeitando


quaisquer protocolos. Era a primeira vez que entraria no recinto em que por muitas
vezes estaria presente, consultando ocorrncias distribudas por Equipe num quadro de
giz, espcie de distribuidor de demandas. Ali, conversei com um estudante universitrio
e uma arquiteta, ambos integrantes do Movimento Ocupe Estelita, detidos na sala de
permanncia.

Os policiais do choque, que aguardavam a chamada da polcia judiciria para


formalizao da situao dos detidos no Cais, repreenderam-me, ordenando que sasse
da sala de permanncia imediatamente, alegando que eu teria oportunidade de falar com
meus clientes e que no poderia estar naquele lugar. Obedeci para depois estar com trs
jovens acusados de desacato e desobedincia durante a reintegrao de posse.

J no cartrio, argumentei sobre a falta de amparo legal das prises dos


estudantes e sobre questes que eles me informaram para me munir na defesa. Dois
deles foram liberados e o outro assinou um TCO por desacato. Uma colega advogada e
outro advogado contemporneo de faculdade tambm l chegaram, o que ajudou a
agilizar a liberao dos detidos.

Passado o tumulto da priso dessa classe mdia recifense, comearam a chegar


pessoas que no possuam o perfil desses pontualmente presos polticos. Esses homens,
de pele escura, alguns sem camisa, eram conduzidos diretamente para a carceragem sem
direito de espera na permanncia como os detidos no Cais. Perguntei a um agente da
polcia civil do que se tratavam as prises daquelas pessoas: trfico, a resposta seca.

Entendi, durante essa meu encontro com a Central, que todas as apreenses em
flagrante de Recife passavam por aquele local para a formalizao da ocorrncia. Pensei
rapidamente que esse talvez fosse um campo para a realizao de pesquisa emprica a
respeito da criminalizao das drogas, mas no me demorei no local. Parti rpido para o
Instituto Mdico Legal acompanhando os trs jovens que apresentavam leses corporais
por agresses policiais e pretendiam formalizar denncia contra esse abuso de poder.
14

Depois de quase um ano, amadurecendo o projeto de mestrado, e tendo


percorrido caminhos institucionais para conseguir autorizao da pesquisa, voltei
Central. Era 03 de julho de 2015. Naquela data, eu apresentaria um parecer da SDS
sobre a pesquisa e minhas credenciais acadmicas. Na Central, eu deveria dialogar com
o Delegado Gestor a respeito da possibilidade de acompanhar casos envolvendo drogas.

No dia que cheguei CEPLANC, a realidade violadora de direitos humanos,


que j conhecia, estava l. Pessoas presas, familiares chorando e as vidas sem valor se
amontoando em diversas incriminaes por trfico de drogas. Esse seria meu cotidiano
durante os meses de junho a outubro de 2015, quando realizei estudo etnogrfico na
Central de Polcia do Recife, que primeiro conheci como advogado e depois como
pesquisador.

Na Central de Plantes da Capital, realizei estudo etnogrfico envolvendo os


sujeitos desviantes que l chegavam conduzidos pela polcia militar. Falo a todo tempo
no texto na palavra outsiders ou marginais referindo-me aos sujeitos que quebram uma
regra imposta num processo poltico, qual seja: a proibio de venda e de consumo de
determinada droga. Utilizo essa nomenclatura tanto por questes tericas, quanto para
evitar termos estigmatizantes como traficantes ou usurios.

Preciso falar sobre o meu olhar. Cada um tem o seu e carrega consigo
preconcepes no exerccio de enxergar o outro. Eu tinha as minhas vises sobre a
polcia e sobre os criminalizados por trfico de drogas. Pensei que o provrbio africano
do livro de Mia Couto, A Confisso da Leoa: at que os lees inventem as suas
prprias histrias, os caadores sero sempre os heris das narrativas de caa (2012,
p.9) daria a tnica do meu contar a histria dos vencidos sobre o que veria na Central
de Plantes, quando l cheguei.

O campo e suas surpresas modificaram-me. Afirmo e reitero que na


criminalizao das drogas no existem caadores, so todos presas abatidas numa
engrenagem punitiva cruel. Os criminalizados e seus primeiros juzes, os policiais
militares, so todos violados pela conhecida batalha contra as drogas.

Nessa teia de relaes, um policial, aparentemente um caador, possui, em


verdade, a liberdade dos pssaros para deleite dos caadores, na conhecida frase de
Saint Simon, precursor do socialismo chamado de utpico pelos socialistas seguidores
do mtodo dialtico. Os verdadeiros caadores so aqueles que esto imunes s prises,
15

s balas perdidas, aos conflitos corporais e que abastadamente lucram com a


criminalizao das drogas. Eles so muitos e encontram-se nas esferas de poder e no
nas Delegacias de Polcia.
Dito isso, e declarado meu maniquesmo quase que infantil antes da realizao
desta investigao, preciso esclarecer que realizei recortes na rica realidade que
observei. Considerei pertinente ignorar algumas outras questes como, por exemplo, a
atuao de advogados na CEPLANC, alguns deles verdadeiras aves de rapina, carcar,
pega, mata e come, como traduzo liricamente com a cano de Joo do Vale, sem dar
maiores detalhes neste trabalho de como agem parte de meus pares de profisso.

Discorro essencialmente, portanto, enquanto objeto de pesquisa cientificamente


verificvel, a respeito do processo de criminalizao secundria de usurios e
traficantes, pessoas envolvidas numa ambincia de drogas (outsiders). Essa engrenagem
punitiva tem como motor o regime produtivista de metas do Pacto Pela Vida que
interfere significativamente nesse processo de criminalizao no qual agncias policiais
so apenas executoras de ordens, a ponta da lana que fere determinado grupo.

O ttulo remete ao local em que as incurses etnogrficas ocorrem, bem como


encruzilhada de relaes polticas em que este pesquisador esteve inserido: entre as
drogas e o Pacto, que dita os contornos da criminalizao das substncias ilcitas. Com
essa ideia pretendo ressaltar que fui, com o passar do tempo na imerso do universo da
Central, entendendo que a imagem da criminalizao das drogas na RMR era moldada
pelo Programa de Segurana Pblica conhecido como Pacto Pela Vida.

O Pacto Pela Vida formulou regime de atuao policial, guiado por rigorosas
metas, como bnus crack, malhas da lei e pontos debelados, que indicariam as
eficincias e produtividades dos agentes da lei. Essas bonificaes norteiam a
criminalizao das drogas. Na toada dessas metas do PPV literalmente danam policias
e sujeitos desviantes conforme a msica do governo do estado, com o consentimento do
Ministrio Pblico e do Poder Judicirio.

No primeiro captulo, realizo passeio metodolgico anunciando os sentimentos,


os percalos, as estratgias e os percursos relacionados ao campo de pesquisa. Tambm
revelo o meu passo a passo no conduzir a investigao cientfica. Nesse captulo, o
leitor poder ter a dimenso descritiva e exploratria da Central de Plantes. Relatos de
campo diretamente conectados com o objeto da pesquisa, bem como panorama
qualitativo e quantitativo da pesquisa esto sinalizados nesta parte da dissertao.
16

No segundo captulo, apresento pilares da criminalizao das drogas na RMR,


salientando de qu e de quem falo na roda viva da criminalizao nesta capital.
Apresento ferramenta essencial ao estudo, o que chamo de olhar criminoantropolgico,
juno de saberes da Criminologia da Reao Social com a Antropologia Social.
Discorro sobre modalidades de drogas apreendidas e questes envolvendo a percepo
de policias sobre as drogas que combatem. Tambm apresento a criao de categorias
de pessoas envolvidas no universo das drogas.

No terceiro captulo, trago o que se chama de cultura policial, conceito que


envolve vrias dimenses do trabalho e interao das polcias com a sociedade.
Apresento, assim, o toque da discricionariedade e do exerccio de autoridade como
vetores dessa cultura, fortemente ligada sociabilidade do povo brasileiro. Dentro
dessa dimenso, apresento ao leitor anlise detalhada de algumas modalidades de
bonificaes e regime de metas norteadoras da criminalizao das drogas no Grande
Recife.

Passo, agora, a expor o campo, a Central de Plantes da Capital e a


metodologia que utilizei para execuo de investigao nesse Departamento Policial.
17

1 DA METODOLOGIA CENTRAL DE PLANTES DA CAPITAL: as


estratgias, os percursos e os percalos do Campo

1.1 Constrangimentos Metodolgicos ou Constrangimentos de Pesquisa?

Comeo um captulo metodolgico, tradicional nos trabalhos de ps-


graduao, de maneira nada convencional, reconheo! Ocorre que em contextos de
dores, como foi meu campo de pesquisa na Central de Planto da Capital, em que
iniquidades de algozes e dores de corpos aprisionados igualam-se, no poderia comear
um trabalho cientfico sem a necessria reflexo sobre os constrangimentos de pesquisa,
isto , obstculos enfrentados pelo pesquisador para concretizar sua investigao.
Explico-me melhor, quando falo em constrangimentos metodolgicos, refiro-
me ao que j se espera encontrar num trabalho de ps-graduao, com as dicas que se
aprende na obrigatria disciplina da metodologia da pesquisa. Vou, portanto, falar de
constrangimentos no previstos nos manuais e no alertados em sala de aula, mas que se
apresentaram de maneira enrgica e constante, eu diria, como obstculos em minha
rotina de pesquisa. Eu, evidentemente, precisei super-los.
A rotina de acompanhar procedimentos ligados ao objeto ilcito conhecido
como droga tornou-se meu ponto de partida para, como diz a cano de Chico Buarque,
tocar na ferida; nos nervos; nos fios; nos olhos dos homens de olhos sombrios. Posta
essa pequena licena para expor com poesia o que senti na tenso de uma Repartio
Policial, passo a relatar algumas questes consideradas por mim como fundamentais
para a realizao deste trabalho.
18

Foi atravs do projeto de mestrado, que se propunha analisar os procedimentos


de pessoas consideradas usurias de drogas e traficantes por parte das polcias militares,
e posterior chancela ou discordncia dessa incriminao, por parte da polcia judiciria,
que adentrei uma intensa e dramtica teia de questes. Esse emaranhado universo
envolve, por exemplo, as relaes valorativas e laborais da atuao das polcias no
plural mesmo com as drogas no contexto de Pernambuco e com este caracterstico
modo de fazer segurana com o Pacto Pela Vida.
O leitor deve estar se perguntando o que o relatado at o momento tem a ver
com a imagem impactante que abre o texto. O fotgrafo Kavin Carter disparou, em
1993, no Sudo, a foto que lhe viria custar a sua prpria vida, mas que, paradoxalmente,
o coroou na galeria dos maiores profissionais da rea ao captar, por meio de suas lentes,
um retrato de uma tragdia que no precisa de uma slaba sequer para ser entendida e
sentida.
Quando registrou aquela cena, na comunidade conhecida por Ayod, em 1993,
Carter registrou a imagem de um abutre prostrado, aguardando, a espreita, que uma
menina desnutrida tombasse em razo da atroz fome. A metfora perfeita para a fome
que pairava soberana, e matava, a cada dia, vrias outras crianas no Sudo.
Disparou o clique de sua cmara e pouco depois entrou no avio em retorno ao
Primeiro Mundo. O jornal The New York Times publicou a foto, que no ano de 1994,
viria a ganhar o prestigiado prmio Pulitzer. Kevin Carter no suportou a glria de uma
imagem estonteante e perturbadora. O fotografo teve que lidar com o dilema tico e
com um brio profissional de capturar a imagem que melhor demonstrou a tragdia que
varria o Sudo. Ele teve que se olhar no espelho e ver a cena de no ter movido
nenhuma palha para modificar a desgraa da criana que desfalecia diante de seu olhar.
O mundo viu, nessa foto, a morte e a fome; a morte pela fome. A opinio
pblica apressou-se a julgar e a condenar sumariamente a alegada frieza com que teria
agido Carter, considerando que o fotgrafo poderia, e deveria ter feito alguma coisa
para salvar aquela menina. O fotgrafo sentiu o mesmo e foi essa dor que o levou a pr
termo prpria vida, incapaz de suportar a ideia de no ter sido capaz de ajudar a salvar
aquela vida.
Pois bem, embora a opinio pblica no tenha me julgado, uma histria que
no consta nos meus relatos oficiais a seguir expostos precisa ser aflorada ao leitor
deste trabalho. Trata-se de uma histria de uma mulher comum, no sei seu nome, seu
endereo, mas pressuponho sua trajetria.
19

Trata-se de uma Maria, que, como muitas, segue a caminhada da vida


aguentando as ventanias em seu caminho. Maria Caranguejo usava shortinho curto, a
vestimenta das prostitutas de rua, top rasgado com parte dos seios mostra, magra,
cadavrica, lanhada pelas feridas e cicatrizes visveis e invisveis do viver. O odor da
sujeira e o suor formavam um cheiro forte, sentido mesmo se estando relativa
distncia. A boca de Maria a descascar, rachada e esbranquiada com pequenas fissuras,
dizia-me o bvio: ela era uma usuria de crack; ela era um ser humano alvo da
vulnerabilidade pela atividade do sexo em troca de pedras de crack para se entorpecer.
Eis que encontrei essa Maria cruzando o meu caminho quando retornava para o
conforto de minha casa, depois de um intenso dia de pesquisas na CEPLANC.
Consegui saber, com o policial militar que a acompanhava, que ela estava praticando
trfico de drogas no Mangue de Santo Amaro, por isso a batizei de Maria Caranguejo.
Ela estava sentada no jardim da Central esperando mais uma pgina de sua
vida ser dita por outros que no ela mesma. De algum modo que no consigo entender
plenamente, talvez pelo blazer1 que ostentava nos braos, Maria entendeu que eu era
advogado, e por isso suplicou: Me ajuda!. Captei como Carter o horror de um ser
humano a desfalecer, junto da ave de rapina, que esperava seu destino para quem sabe
ter alguma vantagem financeira (explicarei adiante as mincias do bnus crack) e eu, eu
fui o fotografo que, aps captar intensa representao de dor, no conseguiu interferir
em favor de uma sujeita a tombar. Parti e rpido, atordoado com o que vi e registrei.

1
A roupa outro constrangimento que abordarei a seguir. Explico ao leitor que, nesse dia, teria reunio na
CEHAB, Companhia Estadual Habitao e Moradia a respeito de um processo judicial sobre uma rea
conhecida como Passarinho. A CEHAB est localizada no mesmo conjunto de prdios onde esto o
Instituto de Criminalstica, o 13 Batalho e a CEPLANC. Os ossos de ofcio fizeram-me ir vestido mais
formalmente para aquela localidade.
20

(Imagem de incurses policiais no Mangue de Santo Amaro, por Paulo Paiva, Dirio de
Pernambuco)

Poderia ter esperado mais um pouco e acompanhado a definio oficial do seu


caso pela Polcia Civil. Poderia ainda ter esperado e me apresentado como advogado
Equipe que daria continuidade ao procedimento da polcia militar. Poderia, quem sabe,
conseguir, ali, que ela fosse considerada usuria de drogas e no traficante e, ento, ela
estaria livre para voltar a p para o Mangue de Santo Amaro (muito prximo de onde
estvamos), mas no o fiz! E se tivesse o feito, teria quebrado uma promessa pessoal ao
Delegado Gestor daquela Central, para quem disse com todas as letras que no
advogaria na Central (remunerado ou de maneira pr-bono) enquanto estivesse
executando minha pesquisa de mestrado.
21

(Imagem das Marias Caranguejo no Mangue de Santo Amaro, por Gianny Melo, Blog
de Jamildo)

Essa catarse atravs da imagem que inicia as reflexes deste trabalho uma
representao da sociedade, que tomei como minha, para descrever uma cena que
vivenciei. Parto da compreenso sociolgica de que falar sobre a sociedade envolve
uma comunidade interpretativa. Assim, numa organizao de pessoas rotineiramente
existiro representaes padronizadas de determinada situao (BECKER, 2009, 20).
O uso de imagens tem sido utilizado nas Cincias Sociais como forma descritiva
e no padronizada, para determinadas situaes sociais. Desse modo, alm das formas
clssicas como a etnografia, descrio verbal detalhada do modo de vida, considerado
em sua totalidade, de alguma unidade social, h outros modos de enxergar e analisar as
realidades sociais.
Para alm das formas tpicas que tambm usarei nesta dissertao, valho-me da
imagem. Procuro, com isso, resgatar naquela representao os elementos que me
remeteram ao nosso campo de pesquisa com a usuria de crack (a menina), a ave de
rapina (o policial militar) e o fotogrfico com seus dilemas ticos (o pesquisador, eu).

O retrato, pois, foi uma forma de salientar que o mundo mais amplo e mais
cheio de circunstncias do que pode ser revelado por qualquer representao
22

fotogrfica. A imagem da dor no Sudo remeteu-me outra situao de dor na Central


de Plantes do Recife. Poderia ainda traduzir essa imagem da criminalizao das drogas
em Terras de Josu de Castro, que retratou a misria do mangue, com os versos do
Chico pernambucano: Josu, eu nunca vi tamanha desgraa, quanto mais misria
tem, mais urubu ameaa. Retomo, com esse trecho musical, a imagem de Maria
Caranguejo, seu urubu e as dores que brotam do mangue do Recife.
A pesquisa na rea do Direito afetada por muitas das caractersticas do
prprio mundo jurdico. Uma delas a noo de autoridade, o que de certa maneira tem
como consequncia uma pesquisa jurdica marcada pela verticalidade: os estudos sobre
o Direito comumente baseiam-se na lio de renomados doutrinadores e, muitas
vezes, restringem-se a estudar as decises oriundas de autoridades judicirias. Pode-se
dizer assim que a construo do saber jurdico se legitima usualmente a partir da
autoridade (FILPO, 2012, p. 11), concepo bastante diversa da Antropologia, da a
escolha pelo mtodo antropolgico para construir esta pesquisa.
As angstias, os percalos, as ansiedades, os medos passaram a ser parte dos
estudos das Cincias Sociais, quebrando-se, dessa maneira, a lgica de que esses
sentimentos constituem intrusos que os manuais tendem a rechaar e solenemente
ignorar. Esse lado robustamente subjetivo o lado obscuro do ofcio dos etnlogos,
mas tambm o mais significativo. Esconder esse sentir um modo muito envergonhado
de varrer o lado humano e fenomenolgico da Antropologia; um temor infantil de
revelar o quanto vai de subjetivo nas pesquisas de campo; temor esse que tanto maior
quanto mais voltado est o etnlogo para uma idealizao do rigor nas disciplinas
sociais (cf. DAMATTA, 1978, p. 26).

Os constrangimentos de pesquisa no param por aqui, mas obvio que expus,


nesta ocasio, as questes emocionais considerados por mim mais relevantes, as que me
afetaram tecnicamente falando. Por ser afetado, a literatura antropolgica explicita que
essa uma dimenso central do trabalho de campo, quando se tem a experincia de
habitar um outro lugar; de ser um estranho a aprender com os responsveis por uma
cultura e, com isso, ser tomado pelas intensidades deste local e seus modos (cf.
FAVRET-SAADA, 2005, p. 160).
Como a antroploga francesa, fui tomado pela feitiaria do meu campo,
chorei, tive medos de ser preso, senti-me como um policial, adquiri certa aspereza e
brutalidade, caractersticas fartamente encontradas na Central. Muitas pessoas prximas
23

no compreenderam que eu estava mergulhado no universo que me propus a estudar por


meses e tal como ocorreu com Jeanne Favret-Saad, mandaram-me procurar ajuda2. Eu
pesquisei sem saber o que estava investigando, titubeando com a pergunta: afinal, qual
seu objeto de pesquisa?(cf. FAVRET-SAADA, 2005, p. 157). Preciso afirmar que eu fui
tocado e aproximado ao ofcio dos etngrafos, que nunca havia sentido, mesmo j tendo
estado em delegacias e com alguma experincia no universo de dores do Sistema Penal.
Ao comear a pesquisa, uma questo imps-se para este pesquisador: como irei
vestido para os dias (madrugadas tambm) na CEPLANC? Se a formalidade imperasse,
poderiam entender-me como um ator do sistema de justia, um advogado, o que
tambm sou, mas eu estava ali como pesquisador. Ento, abandonei a ideia de usar
qualquer vestimenta que denunciasse meu status profissional, usei a roupa formal de
estudante de direito: cala jeans, camisa de boto e tnis. Confesso ao leitor que mesmo
assim fui ao longo do tempo identificado como advogado e escutava o constrangedor
doutor, sobretudo por parte dos agentes e dos comissrios de polcia que sempre me
viam circulando pela Central.
A preocupao com a indumentria relacionava-se com o dilema pesquisador
versus advogado, verdade, mas envolvia questo de foro ntimo, valendo-me do
jurisdiqus. Explico-me: os estudos de gnero e sexualidade costumam relatar o que se
chama de homofobia3 de Estado, isto , agentes do Estado, notadamente os profissionais
da segurana, costumam realizar prtica discriminatria contra LGBTs.
O medo de ser ferido pelo preconceito que atinge os LGBTs era uma razo no
declarada para a demorada escolha da roupa que vestiria. No sofri constrangimentos
por parte de nenhum policial civil ou at mesmo os temidos policiais militares, mas
sofri, por meio de piadas, de dois sujeitos algemados numa cadeira. Chacota que fiz

2
A Psicologia Comportamental h algum tempo fala sobre o efeito lcifer. Esse termo refere-se
experincia cientfica realizada por jovens estudantes que simularam a experincias de estarem alguns nos
papeis de presos e outros de carcereiros, no que se convencionou chamar de experimento de Stanford,
bastante significativo para explicar metamorfoses comportamentais entre os algozes e seus aprisionados.
No sigo nessa linha argumentativa, pois me reconheo adepto da Antropologia e seu anthropological
blues ou do ser afetado".
3
O termo representativo LGBTfobia, uma vez que no somente o homossexual a pessoa atingida pelo
preconceito relacionado identidade de gnero e orientao sexual ( nada de opo!). Lsbicas,
bissexuais, travestis e transexuais tambm encontram num processo social de julgamento de sua moral e
conduta uma pratica recorrente (LEMOS 2015, p. 87). Sobre a modalidade das travestis e das transexuais
preciso que, ainda, como constrangimento de pesquisa eu diga que so elas as vtimas do preconceito do
Estado, notadamente da polcia, quando chegam presas por crimes patrimoniais ou delitos relacionados s
drogas. O desrespeito comea com o tratamento no masculino e a exposio do nome real, constante na
carteira de identidade, a despeito do nome social que essas mulheres escolheram para si.
24

questo de ignorar, mas que, neste momento, deve ser apresentada como
constrangimento com que minha condio de sujeito teve que se deparar.
Falando do que se chama de opresses, alm da LGBTfobia, tive que conviver e
contornar outras como o machismo e o racismo. Para isso, preciso relatar, brevemente,
uma situao envolvendo o agir de um policial militar contra uma advogada e o
preconceito racista dessa bacharela em direito em relao ao soldado.
Esse caso ocorreu em um dos procedimentos envolvendo trfico de drogas que
acompanhei. Nele, a advogada, de postura firme e atuante, sofreu o constrangimento
que mulheres so levadas a experimentar num mundo em que impera a dominao
masculina.
O conduzir do procedimento pelo policial militar a impedia de exercer suas
funes de advogada ( At fazer o flagrante, quem manda sou eu!, ele gritava). Ela,
contratada pela famlia do rapaz acusado de trfico, era impedida de comunicar-se com
seu cliente, tendo o policial exigido uma procurao. Essa situao revelou-me que, ali,
a doutora estava sendo menosprezada pelo lugar da mulher advogada, coisa que
nenhum advogado tem que, de regra, suportar.
Tento conversar com o policial militar, quando ele se aproxima da rea em que
estou tomando um caf e fumando um cigarro. Ele parece querer conversar comigo,
desde quando entendeu que eu era um acadmico. Inicio o dilogo perguntando quantos
pontos debelados4 essa ocorrncia teria pontuado para ele. Dois pontos. Ele, o
policial responsvel por impedir o exerccio da defesa, apressa-se em dizer-me que
possui especializao em Direitos Humanos pela Universidade Catlica de Pernambuco.
Pausa um pouco tragando seu cigarro e, em seguida, fala um pouco sobre a
teoria dos direitos humanos. A conversa, que termina com o cigarro, encerrada de
forma inusitada com a seguinte frase: s vezes eu tenho que atuar5, mas tudo
encenao.
Ao conversar com a advogada ofendida em sua condio de mulher e de
profissional, tentando confort-la, ouvi que ela no se importava com o que macacos
diziam! Sim, o policial era negro e o racismo estava ali escancarado na minha frente.
Calei-me, engolindo em seco tamanha violncia.

4
Sobe as metas do que o Pacto Pela Vida chama de pontos debelados e bnus crack, mencionados
neste trabalho, ver as anlises no terceiro captulo.
5
A expresso atuar nos remete ao termo performatividade. A polcia militar tem a dela. O leitor pode
construir mentalmente como a polcia atua. Quero frisar que essa representao mental do leitor, talvez,
defina esse modo de encenar, mas no necessariamente do agir do ser humano que tem que encen-lo.
25

Pensando sobre essas situaes limites, tenho a percepo de que a delegacia o


local em que sentimentos paradoxais tm curso. A realidade dali artificializa relaes,
como diria o abolicionista Louk Hulsman no clssico Penas Perdidas (1993). De outra
banda, tambm vi que um militar capaz de atos sensveis, como o fez ao se dirigir
me do rapaz que prendera, e com a conversa comigo, e uma mulher sensvel que no se
intimida com um policial militar, no exerccio de sua funo de advogada, pode ser
extremamente violenta ao chamar o policial militar de macaco.

Narrativas brutalizadas da realidade, forjadas em distanciamentos e no exerccio


de disputa e de demonstrao de poder ocorrem no ambiente das delegacias. Esses
preconceitos, tambm repetidos de outras maneiras, em outras ocasies que presenciei,
foram situaes que tive que lidar e at mesmo naturalizar enquanto observador daquela
realidade.

Igualmente difcil para mim, foi ter que administrar a condio de militante
poltico sendo tambm pesquisador. Como esclareci na introduo, e at mesmo neste
captulo, os caminhos que me conduziram Central foram as veredas de uma
reintegrao de posse violenta ocorrida no Cais Jos Estelita.

Como lidar com a pergunta de um escrivo de boa memria: voc no esteve


aqui como advogado do Estelita? Esse foi um constrangimento que superei de forma
simples, esclarecendo que foi dessa atuao como advogado que me interessei pela
Central como espao de pesquisa e que no realizaria, durante meu tempo de estudo
naquele local, nenhuma atividade de advocacia remunerada ou no.

Em outra oportunidade, em 25 de setembro, quando um caso, envolvendo vrios


adolescentes e drogas, chegou CEPLANC e, por ordem do delegado que recebeu o
procedimento, ele deveria ser imediatamente remetido ao Centro Integrado da Criana e
do Adolescente (CICA) na Fernandes Vieira, no Centro do Recife, decidi ir l ver o fim
do caso, j que acompanhava aquele Auto de Priso em Flagrante que, agora, seria um
Auto de Apreenso em Flagrante de Ato Infracional. J na DPCA (Departamento de
Polcia da Criana e do Adolescente), sou reconhecido por um agente como advogado,
que esteve aqui com os black-block6 no ano 2013. J sabia como responder, respondi

6
Num dia 7 (sete) de Setembro, depois do tradicional Grito dos Excludos, que h 21 anos sai s ruas do
Brasil nesta data, denunciando a excluso social, soube que alguns jovens na Praa do Derby estavam
sendo presos por usar mscara. Naquele dia, tornou-se crime/ato infracional de Desobedincia, artigo 330
do Cdigo Penal, cobrir o rosto e ir s ruas. Sim, eu realmente estive na DPCA como advogado.
26

e ainda tive timas informaes sobre o Pacto Pela Vida desse mesmo agente. Senti
uma espcie de respeito nesse reconhecimento. A polcia sabe quando algumas coisas
esto ocorrendo apenas pela vontade poltica de governos.

Outra questo envolvendo minha atuao poltica, essa um pouco mais delicada,
constrangeu-me durante a execuo da minha pesquisa. Depois de algum tempo em
campo, comecei a conversar informalmente com os policias civis que sempre estavam
na CEPLANC, entre eles as agentes que trabalham na sala do administrativo, com as
quais mantive um contato mais prximo.

Numa dessas vrias conversas com L. do administrativo, e aps descobertas de


colegas professores em comum, sai a seguinte pergunta: - voc tem facebook? Poderia
ter dito que no, mas resolvi ceder-lhe meu contato nessa rede social. Mas ali havia
fotos que me ligavam diretamente ao Coletivo Antiproibicionista de Pernambuco
(CAPE- Mujica), Marcha da Maconha do Recife e at mesmo Associao Brasileira
de Reduo de Danos (ABORDA). Mesmo temendo essa compreensvel confuso entre
pesquisador e militante antiproibicionista, resolvi correr o risco do julgamento. Ser
pesquisador e interagir politicamente nas esferas do meu campo de estudo me tornaram
ainda mais comprometido com o que falo.

Eis que na semana seguinte, diante de outros funcionrios do administrativo, a


pergunta difcil de ser respondida me foi lanada por L. : tu a favor da legalizao
da maconha, n? A resposta poderia ser uma desonestamente negativa, mas no foi.
No s da maconha, mas do crack e de outras drogas mais perigosas tambm, foi o que
respondi com o corao a mil. Espantos parte, pelo menos trs agentes que trabalham
no administrativo escutaram-me de maneira reflexiva e interessada.

Comecei explicando sobre modelos de legalizao, a exemplo do Uruguai, de


Amsterdam, de algumas localidades dos Estados Unidos e do famoso distrito
autogestionado, conhecido como Christiania, em Copenhague. Falei ainda sobre a
reduo de danos e sobre o fracassado paradigma policial-penal no controle do uso de
drogas. No sei como tive coragem de faz-lo, sobretudo, por estar onde estava, mas o
fiz, sendo bem verdade que, ao sair dali, pelo celular mesmo, ocultei qualquer referncia
fotogrfica no facebook que me comprometesse com a luta antiproibicionista.

Preferi faz-lo. Foi uma escolha, uma estratgia que adotei para evitar esse
delicado debate dentro da Central. Eu nem sempre estaria na sala do administrativo com
27

calma e no silncio da burocracia policial. Este debate exige bastante cautela e


responsabilidade, o que dentro do calor de um Departamento Policial complicado.
Falar de qualquer forma sobre legalizar correr o risco de negligenciar uma pauta que
traz consigo feixe de questes raciais, de classe, gnero e de sexualidade para o Poder
Pbico brasileiro.

Se for pra dizer que a gente s prende preto e pobre num precisa nem perder
teu tempo aqui, doutor. Essa frase resume um soco no estmago que recebi de um
policial militar cansado dos intelectuais que o julgam. Esse agente da segurana falou-
me com riquezas de detalhes sobre os ftidos lugares que entra. Ele chegou a sugerir
que eu tinha que entrar numa viatura para ver como a coisa. Meu Dirio de Campo
revela a aflio dessas recordaes, quando um criminlogo crtico por plena convico
intelectual foi constrangido pelo tipo de conhecimento que produz junto a uma gama de
autores. Breve passagem do Dirio de Campo da madrugada de 13/09/15:

Quando essa frase foi dita, me senti sem cho e percebi como a polcia tem
noo que a crtica pela crtica dos intelectuais de esquerda no constri. Ela
est no div enquanto a policia t na rua. O sentimento foi de sair do salto alto
e perceber que a gente precisa ouvir e debater com a polcia.

No! No direi isso, falarei dos incentivos perversos na gesto da segurana


pblica que impem esse agir a vocs! Eu respondi algo assim, com toda pompa e
circunstncia. Falei tambm do bnus crack e o policial perguntou-me como eu gastava
R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) menor valor da gratificao por apreenso de
crack. Calei-me com minha retumbante futilidade, ainda mais depois da resposta: o
leite da menina, boy. O tratamento mudou e o boy me definiu muito melhor do que
doutor.

Este estudo, de fato, sinaliza para o rasgado recorte racial7 e para o de classe que
vi no campo de pesquisa, e como as primeiras anotaes em meu dirio de campo
pontuam enfaticamente. Decidi, por outro lado, seguir o conselho indireto daquele
agente da lei e analisar o que est encoberto pelos vus da criminalizao das drogas e
das prticas policiais.

Esse constrangimento, agressor de meus brios intelectuais, foi bastante vlido


para as reflexes e amadurecimentos deste pesquisador. Isso, entretanto, no inviabiliza

7
Ver na categoria traficante tpico (p. 95-96), oportunidade em que trago trecho do relato do jovem
acorrentado pelos ps. Nesta pesquisa essa cena o retrato da escravido e da persistncia de aoites e
grilhes que se estendem por sculos na sociedade brasileira.
28

algumas regularidades referentes cor da pele, tipo de roupa, de emprego (ou melhor,
subemprego), local de moradia, modo de falar, baixa-renda e todas as variveis que
forjam a figura humana tpica das classes populares, frequentadoras das Delegacias de
Polcia no Grande Recife, tanto como bandidos quanto como vtimas.

Por fim, o uso de dependncias privativas de policiais a convite desses mesmos


(refeitrio, banheiro) foi uma oportunidade nica para poder conversar com eles, sem a
tenso de ver pessoas algemadas nos casos envolvendo drogas, os quais, geralmente,
traziam muitas dores e mazelas.
O uso do banheiro naquela Central foi um bocado de constrangimento. Os
delegados possuem um nico, exclusivo. Os policiais militares, via de regra, usavam o
banheiro dos presos e seus familiares, um banheiro capaz de gerar nsias de vmitos,
como gerou em mim. Com o passar do tempo, fui convidado a usar o banheiro da
classe mdia da delegacia (agentes, comissrios e escrives). H estratificaes que
dividem at mesmo o uso de banheiros, como no apartheid.
Seguindo na catarse, tomar a gua do bebedouro, vinda da caixa dgua, como
qualquer outro policial, inclusive os delegados, foi outro constrangimento que procurei
administrar, mesmo sabendo da origem da gua, tudo para no parecer superior queles
homens e mulheres trabalhadores da segurana. As condies da Central, durante a
escrita desse trabalho, foram denunciadas em matria do Jornal do Comrcio, a que fao
a devida meno:
(...) O primeiro vem de funcionrio da Secretaria de Defesa Social. Gostaria de fazer
uma denncia sobe as pssimas condies de trabalho da Central de Plantes da Capital,
prdio no qual funciona o Instituto de Criminalstica da Polcia Civil. Neste local,
funcionam cinco delegacias de planto, uma sala de administrao, uma de
permanncia. Sem exceo nenhuma, todos os aparelhos de ar condicionado esto
abarrotados de poeira, causando inclusive problemas pulmonares nos servidores da
segurana pblica. Muitos desses aparelhos esto quebrados (nas delegacias e na sala de
permanncia), alguns poucos funcionam e um fica vazando. Embora sejam cinco
delegacias funcionando 24 horas, existem apenas trs impressoras, para dar conta de
todo esse trabalho, incluindo a permanncia e a administrao. Ou seja, sete salas para
apenas trs impressoras, para enviar toda a movimentao diria e ininterrupta dos
trabalhos realizados. Tudo isso causa esgotamento fsico das impressoras, os toners
ficam vazios. Os dormitrios masculinos que ficam dentro das delegacias no tm
ventilao nenhuma. Uma sala improvisada como dormitrio masculino, onde o ar
funciona com vazamento eterno. No banheiro masculino h vazamento. No existe
gua potvel de qualidade para os servidores que l trabalham. A gua do
bebedouro onde os garrafes so abastecidos provm da caixa dgua, que nunca
passou por nenhum tipo de limpeza ou manuteno. Presidente do Sindicato de
Policiais Civis de Pernambuco, ureo Cisneiros, confirmou as informaes. E disse que
na segunda, entrega relatrio Secretaria de Administrao. Secretaria de Defesa Social
no se pronunciou. (Negritos Nossos) (LINS, Letcia. Segurana e Direitos Humanos
esto em Crise em Pernambuco: do sucateamento aos salrios atrasados. Jornal do
Comrcio (em negrito), Recife, 17 out. 2015. Caderno JC nas Ruas. Disponvel em:
<http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/jcnasruas/2015/10/17/seguranca-e-direitos-humanos-
29

estao-em-crise-em-pernambuco-do-sucateamento-aos-salarios-em-atraso/>. Acesso em
08 nov. 2015).

Haveria ainda muitos outros constrangimentos a relatar, contudo passo agora a


ser mais tcnico, j a partir do prximo tpico, e apresentar ao leitor um panorama
qualitativo e quantitativo desta pesquisa. No posso, por outro lado, encerrar esta parte
sem ressaltar que os elementos que se insinuam no trabalho de campo so o sentimento
e a emoo; esses seriam, para parafrasear Lvi-Strauss, os hspedes no convidados da
situao etnogrfica (DAMATTA, Op, cit., p. 30).

1.2 Panorama Qualitativo

O projeto de mestrado que originou esta dissertao buscava os critrios


definidores e diferenciadores entre usurios e traficantes em uma mesma Repartio
Policial. Intitulado NAS REDES DA PROIBIO: Um Estudo Etnogrfico do Perfil
de Usurios e Traficantes na Cidade do Recife, esse projeto foi o ponto de partida para
acompanhar na Central de Plantes da Capital (CEPLANC) casos relacionados
incriminao de usurios, traficantes e, por ventura, pessoas associadas atividade de
associao para o trfico de drogas.
Ocorre que a realidade vivida e sentida naquele local acabou revelando-me a
insuficincia das categorias de usurios e traficantes, tratados muitas vezes pela
literatura do tema como blocos homogneos e universais. A partir da, percebendo que o
real processo de criminalizao secundria8 mais complexo do que advoga a Ideologia
da Diferenciao, tentei aglutinar, com base na observao, categorias desses sujeitos
desviantes envolvidos numa ambincia de drogas, apresentada ao leitor no segundo
captulo deste trabalho.
O termo Ideologia da Diferenciao de bastante importncia no estudo sobre
drogas. Esclareo que a Conveno nica sobre Entorpecentes de 1961 da Organizao
das Naes Unidas resultou num protocolo assinado em 1972 pelos Estados
Participantes, quando se inicia a Ideologia da Diferenciao. Desse modo, possvel
perceber que at os anos sessenta do sculo XX no havia nas legislaes nacionais a
criminalizao da figura do usurio de drogas. com o marco da Ideologia da

8
Sabe-se que o ato de criminalizar o resultado de processos de definio e seleo que escolhem
determinados indivduos aos quais se atribui o rtulo de criminoso. Esses processos se realizam por trs
fases distintas: a criminalizao primria (criao dos tipos penais), a criminalizao secundria (atuao
da Polcia, Ministrio Pblico e Poder Judicirio) e, por fim, a criminalizao terciria (ingresso de
indivduos no sistema prisional)
30

Diferenciao que o traficante definido como criminoso e o usurio como doente (cf.
ZACONNE, 2011, p. 86). So as marcas histricas da criminalizao das drogas, que
transitou de um modelo sanitrio para um blico. Os autores brasileiros da Criminologia
Crtica costumam afirmar que essa ideia passou a tratar pessoas das camadas populares
envolvidas com drogas como traficantes e os privilegiados como usurios de drogas.
Essa uma meia verdade, como mostrarei ao leitor no segundo captulo.
Alm disso, saltou aos olhos a necessidade de debruar-me e direcionar o estudo
para compreender o regime de metas. Essa forma gerencial de tratar a questo criminal
criada ou corroborada pelo Pacto Pela Vida produziu entre os agentes policiais uma
cultura de apreenso e de prticas, por vezes ilegais, desnudadas ao leitor, no captulo
terceiro desta dissertao.
Desse modo, o objeto de pesquisa fechado e delimitado em torno do que se
conhece como Ideologia da Diferenciao entre usurios e traficantes passou a percorrer
outro caminho para compreender novas categorias de usurios e traficantes e as
idiossincrasias do modo pernambucano de fazer segurana pblica, sobretudo em
relao questo das drogas. Eis o objeto de pesquisa que norteia esta dissertao,
leitor.
As interaes que marcam a quase integralidade desde trabalho so fruto, no de
entrevistas, mas de pontos que, no caminhar da pesquisa de campo, comecei a sentir
necessidade de esclarecer pouco a pouco, sem pressa.
E por que no utilizar o modo tradicional das entrevistas? As entrevistas so
definidas como perguntas que o entrevistador-pesquisador faz aos entrevistados com o
objetivo de conhecer as opinies deles a respeito de alguns pontos ou fatos necessrios
ao estudo proposto.

Poderia ter feito o clssico e protocolar modelo de entrevistas semiestruturadas e


utilizado um gravador porttil. Ocorre que, para perguntar sobre pontos sensveis e
ilegalismos tolerados9, sobre flagrantes forjados e at mesmo sobre prticas como
corrupo relacionadas questo das drogas preferi dialogar de maneira o mais natural
possvel e, aos poucos, ir compondo o mosaico de minha entrevista (cf. OLIVEIRA,
1984, p. 42).

9
Prticas ilcitas, definidas como crime, mas toleradas pela cultura policial e outras instncias de controle
social como Ministrio Pblico e Poder Judicirio e, em ltima anlise, pela prpria sociedade. A lista
extensa, mas a tortura um exemplo.
31

A fim de ter mais segurana no que aos poucos descobria, fazia a mesma
pergunta para outra pessoa da mesma patente do primeiro informante. Assim, depois
de garimpar uma informao de um policial militar, ratificava esse mesmo elemento
informativo por meio de outra conversa, nos mesmos termos da anterior, com outro
policial militar. Se conseguisse com um delegado, de igual modo, procurava ter a
mesma informao com outro delegado.
Sobre a quem dirigir esses informais dilogos, como se pode perceber do passo a
passo desse trabalho, no so muitas as conversas com as pessoas que estavam na
Central na condio de autores do fato do crime de porte/uso de drogas ou autuados
pelo crime de trfico. E qual a razo para essa deciso de campo? As pessoas presas por
trfico quase sempre se encontravam em situao de muita vulnerabilidade, razo pela
qual decidi no importun-las como faziam os jornalistas de programas policialescos
que se encarregavam desse fardo cotidianamente. Conversei com alguns autuados que
falaram comigo e com usurios, esses geralmente mais tranquilos e confortveis para
um dilogo, mas devo esclarecer que este trabalho possui majoritariamente
interlocutores policiais.
Pensei em utilizar tcnicas mais atuais como os grupos focais10. Depois de
algum tempo de reflexes11, cheguei mesma concluso (acima apresentada) para no
fazer entrevistas, com a agravante de que estaramos pelo menos em trs pessoas. Essa
situao poderia agudizar constrangimentos entre os participantes e informaes que me
teriam pouca validade, a exemplo de informaes que negassem prticas peculiares da
polcia em seu agir, que qualquer cidado brasileiro est farto de saber.

10
Trata-se de um tipo especial de grupo em termos do seu propsito, tamanho, composio e dinmica.
Basicamente, o grupo focal pode ser considerado uma espcie de entrevista de grupo, embora no no
sentido de ser um processo onde se alternam perguntas do pesquisador e resposta dos participantes.
Diferentemente, a essncia do grupo focal consiste justamente em se apoiar na interao entre seus
participantes para colher dados, a partir de tpicos que so fornecidos pelo pesquisador (que vai ser no
caso o moderador do grupo). Uma vez conduzido, o material obtido vai ser a transcrio de uma
discusso em grupo, focada em um tpico especfico (por isso grupo focal) (CARLINI-COTRIM, 1996,
p. 150).
11
Algumas outras questes seriam, por exemplo, onde realizar o Grupo Focal. Ainda consegui contato
com o Sindicato da Polcia Civil atravs de conhecidos que l labutam mas conclui que os lugares
para entender a atuao da polcia so por excelncia: a rua e a delegacia. De outra banda, no SINPOL
correria o risco de no dialogar com policiais militares, que so desautorizados a estarem em Sindicatos
por ordens de seus superiores, como pude sondar. Alm disso, como alerta Darcy Ribeiro em Diagrama
sobre a Estratificao Social Brasileira a classe poltica integra a classe dominante, da qual no deixo de
incluir um Sindicato, por mais de esquerda que ele o seja. Alm disso, segundo o esquema do mesmo
autor, no dialogaria com as classes subalternas, na qual podemos incluir escrives, agentes de polcia e
comissrios, acima apenas do que se conhece como classes oprimidas como as prostitutas, delinquentes e
biscateiros que encontrei na CEPLANC (cf. RIBEIRO, 2013, p. 193).
32

So marcadores tericos de minhas prticas em campo os trabalhos dos


pesquisadores Luciano Oliveira (1984) e Edson Arajo (1978), com seus improvisos e
declarados no formalismos em prol de uma imerso numa realidade muito visceral para
ser simplesmente desperdiada em nome das caixinhas metodolgicas. Esse ltimo
antroplogo, organizador da obra Aventura Sociolgica, define o norte nos percursos
desta pesquisa:
(...) no decorrer de um trabalho de campo so tantas as questes a resolver,
tantos os pequenos detalhes, tantos os improvisos, to intenso, sistemtico e
penoso o afastamento entre a pesquisa e o projeto inicial que, talvez indicava
o providencial bom senso esta fosse a regra, e no a exceo e que, talvez,
ainda fosse sensato e relevante produzir relatos que pudessem fixar
publicamente esta experincia (1978, p. 13).

Em termos de tcnica de pesquisa, a de que basicamente me vali foi a


observao no participante 12 durante os meses de junho a outubro, totalizando-se 18
visitas CEPLANC e 1 visita ao Departamento de Represso ao Narcotrfico/
DENARC13. Os horrios que dediquei para entender o funcionamento da Central foram
alternados entre os turnos da tarde, noites e madrugadas, em mdia envolvendo 5 horas
de atividades, tempo que, com sorte, se consegue ao menos acompanhar um auto de
priso em flagrante. E pode demorar muito, muito mais!
Conversando com policiais, e at mesmo intuitivamente, adotei as sextas-feiras
como dias preferenciais para realizao das incurses etnogrficas, tanto pelas tardes,
quanto nas noites e madrugadas. Conversa com o escrivo E. nos traduz um quadro
geral de dias e ocorrncias na Central de Plantes da Capital:

Nas sextas-feiras, quando o povo recebe, geralmente, tem muito furto, roubo
e trfico de rdo; nos domingos por volta das 17 h comeam a chegar as
brigas de vizinhos e os crimes de menor potencial ofensivo como os sons
altos. Os dias refletem nossa sociedade (Dirio de Campo 25/09/2015)

12
Utilizo esse termo apenas para fins didticos e compreensivos. Quero dizer que no participo como ator
principal dos processos observados, entre eles a criminalizao de usurios e traficantes. Entendo que
minha observao poderia ser declaradamente participante se utilizasse para a pesquisa a descrio de
casos em que atuasse, por exemplo, como advogado. No estou com a utilizao do termo observao
no participante afirmando que estive absolutamente neutro no agir etnogrfico, bem como ignorando
qualquer modificao de condutas no campo de pesquisa com a presena do pesquisador. Reitero a ideia
de Soares (2005, p. 167) de que no ser visto significa no participar, no fazer parte, estar fora, tornar-se
estranho. Eu fui visto, meu papel na CEPLANC no foi muitas vezes bem compreendido, afinal os
advogados que l frequentam esto por questes profissionais.
13
O DENARC a Delegacia de Represso ao Narcotrfico, que visitei por uma vez, em 15 de outubro de
2015, com o enceramento do campo na CEPLANC. Por l, h prises envolvendo quantidade maior de
pessoas e drogas. Realizam-se l algumas investigaes com melhores condies. O DENARC est
instalada numa casa aparentando ser do sculo XIX, na Rua da Unio, no Centro do Recife, muito
prximo da Faculdade de Direito do Recife. A atividades de pegar grandes traficantes envolve
informantes que possuem interesses diversos da concretizao da justia penal.
33

As observaes serviram-me para, estando presente na CEPLANC, levantar


aspectos descritivos das categorias de sujeitos criminalizados. A posteriori, com a
percepo de que a cultura de apreenso estava inserida numa estrutura maior ditada
pelo Programa Pacto Pela Vida ou Estratgias de Estado na Gesto da Segurana
Publica, essas questes passaram a conduzir a investigao. Essa ltima parte ocorreu,
basicamente, nos ltimos meses da pesquisa, agosto, setembro e outubro de 2015.
A pesquisa de campo, com base no saber antropolgico, ensina que o
pesquisador no deve tentar encaixar o campo na sua teoria, mas sim respeitar a
territorialidade de estudo e utilizar as teorias como mais uma ferramenta a ser
aproveitada na sua pesquisa. Saber que o campo uma descoberta a ser feita faz parte
do estranhamento necessrio para a conduo da pesquisa por meio do mtodo
etnogrfico, tendo em vista que encaixar o campo em teorias segundo a vontade do
pesquisador comprometeria o olhar questionador que o mtodo etnogrfico busca
proporcionar.
Karina Biondi, numa etnografia sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC),
destaca que em sua pesquisa oportunizou a seus interlocutores a possibilidade de
formular suas teorias e vises a respeito da forma de conceberem essa organizao
criminosa para uns e uma organizao poltica para outros. Evita-se, com isso,
enquadrar, por exemplo, a organizao nos moldes conhecidos de organizao estatal e
empresarial (2010, p. 144), o que poderia comprometer a compreenso a respeito do
funcionamento do grupo estudado.
Preciso informar ao leitor que os casos comearam a se repetir e decidi que
acompanhar outras demandas semelhantes no acrescentaria em qualidade a nossa
investigao. Esse critrio conhecido como saturao e consiste na definio de um
nmero limite de entrevistas, casos, observaes durante uma pesquisa, para evitar um
maior percurso que pouco acrescentaria significado ao contedo do universo estudado
(S, 1988, p. 92). Depois do campo, ainda precisava compreender, de algum modo, e
at mesmo entender minimamente o funcionamento do DENARC, o que tambm o fiz
em uma nica e proveitosa visita, aps j saber a lgica da engrenagem policial de
represso s drogas na RMR.
Mais uma vez ressalto que a realizao desse panorama qualitativo no ocorreu
num silencioso laboratrio, mas numa agitada Central de Plantes que recebe
ocorrncias policiais de toda a RMR e, s vezes, at de municpios como Cabo de Santo
34

Agostinho e So Loureno da Mata, cidades que no compem a conurbao Recife,


Olinda e Jaboato dos Guararapes.
Desse modo, num labirinto de dramas, como diria Roberto DaMatta, foi que esta
pesquisa de vis etnogrfico teve que literalmente se virar. No estava num espao
vazio muito pelo contrrio , neste campo se pde ouvir um anthropological bues
(DAMATTA, p. 31), isto , os sentimentos, os medos, os dramas, as tristezas que no
escondi do leitor de meu trabalho. bem verdade que em alguns momentos preciso
chamar a razo para neutralizar nossos sentimentos e, de certa maneira, manter-se
distante do vendaval de fatos e realidades sociais que perpassam o ofcio do etngrafo.
No estou, com isso, espero ter sido bastante claro, proclamando a falncia do
rigor cientfico nos estudos da sociedade. Estou explicitando a necessidade de perceber
a realidade social em que consiste o campo de pesquisa enquanto objetividade relativa,
mais ou menos ideolgica e sempre interpretativa (cf. VELHO, 1978, p. 43).
Compartilho da percepo do antroplogo Gilberto Velho14. Assim, ao estudar o
que est prximo a sua prpria sociedade, o antroplogo expe-se, com maior ou menor
intensidade, a um confronto com outros especialistas e inclusive leigos que possuem
tambm saber emprico.
Se o leitor atento no percebeu at agora, as lentes de anlises desta pesquisa
partem prioritariamente de autores que se debruam a compreender (e por que no
construir?) o conhecimento para a sociedade brasileira15. No poderia deixar de
mencionar o estudo no conjunto habitacional conhecido como Cidade de Deus, no Rio
de Janeiro dos anos 80, realizado pela pesquisadora Alba Zaluar. A estudiosa ensina em
sua anlise sobre o que chama de introduo metodolgica e afetiva sobre falsas
antinomias, que fiz questo de ressaltar, ao longo de todo o texto, entre mtodo
objetivista da cincia e a cegueira engolfada na prtica cotidiana (Cf. ZALUAR, 1985,

14
Em Nobres e Anjos, Um Estudo de Txicos e Hierarquia (que retomaremos no segundo captulo deste
trabalho) duas das pessoas que Velho entrevistou no concordaram com algumas concluses dele,
apresentando crticas que o levaram a rever seus posicionamentos. Estou aberto e disposto a receber essas
contribuies, sobretudo por parte da Polcia. Sem exerccios de futurologia, gostaria, neste momento, to
somente de alertar ao leitor sobre como o estranhar o familiar torna-se possvel quando somos capazes
de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes interpretaes existentes a respeito
de fatos e situaes.
15
Referendo o pensamento genuinamente brasileiro, mas este estudo no poderia deixar de mencionar o
antroplogo William Foote Whyte, que analisou a estrutura social de uma rea pobre e degradada
(CorneVille), investigando gangues juvenis. Tive as seguintes contribuies desse antroplogo: no
querer imergir totalmente no agrupamento estudado, como ensina o clssico antroplogo Malinowisk;
saber ouvir e escutar e, quando necessrio, calar e engolir em seco absurdos, como tive que fazer; criar
uma rotina de trabalho que no pode ser interrompida (no meu caso quando a interrompi pelo trabalho
como advogado fui cobrado pelos policiais que sentiram minha falta) e, por ltimo, a humidade de saber
que nunca teremos o controle das situaes que perpassam o campo ( WHYTE, 2009).
35

p. 35). Como Alba, estive diante de problemas ticos e polticos de um pesquisador, os


quais fiz questo de expor.
A etnografia, ao reverso do utpico dever ser dos juristas, estaria interessada
naquilo que , podendo mesmo evidenciar que o que est escrito na lei e nos manuais
no corresponde ao que acontece nos corredores e nas salas de audincia dos tribunais
(FILPO, Op, cit., p. 15). Nesta pesquisa de vis etnogrfico, afirmo que sem a
Antropologia no poderamos fazer uma anlise franca do que ocorre nos nada limpos
(com e sem aspas) corredores da polcia.
O uso do mtodo etnogrfico representa uma opo metodolgica com o
objetivo de explorar da melhor maneira a realidade, de modo a perceber como se
perfazem as relaes sociais do grupo estudado nesta etnografia: policiais e outsiders.
Agora, sigo para a anlise quantitativa com base nos documentos oficiais dos
autos de priso em flagrante e ternos circunstanciados de ocorrncia que acompanhei
nesta pesquisa.

1.3 Panorama Quantitativo

Para a obteno dos dados quantitativos da pesquisa, optei por realizar uma
pesquisa documental, a qual compreendeu a coleta e anlise de documentos
considerados fontes de informaes que ainda passaram pela sistematizao,
contemplao e tratamento cientficos atravs de tabulao em planilha do excel.
As fontes documentais escolhidas foram os autos de priso em flagrante e os
termos circunstanciados de ocorrncia das observaes que fiz e que, voluntariamente,
consegui dos delegados e escrives envolvidos nesses procedimentos. Os documentos
constituem objeto de anlises por parte do estudioso do direito que realiza pesquisas
empricas (TREVES, 1999, p. 67-68).
Ressalto que pela preparao jurdica adequada possvel realizar a leitura desse
cdigo de linguagem aliada arguta tcnica sociolgica. Essa a tendncia de quem
trabalha no o direito definido juridicamente, mas redefinido pelas cincias sociais,
atravs de pressupostos tericos e epistemolgicos destas (cf. JUNQUEIRA, 1993, p.
4).
Em defesa do direito ou dos estudantes de direito que se dedicam a pesquisar,
esclareo que os juristas-socilogos detm perspectiva e familiaridade com o mundo do
direito (OLIVEIRA, 2015, p. 170). Esse perfil universitrio, assim, garante ao
36

pesquisador social com formao em direito compreender, por exemplo, a linguagem da


polcia judiciria por j ter ouvido sobre autos de priso em flagrante ou denncias
criminais em sala de aula ou nos fruns, onde geralmente um estudante de direito j
esteve.
Existe certa tradio na realizao desse tipo de investigao emprica no to
autorreferente e autocentrado universo do direito. So exemplos de trabalhos que
desvelam a fronteira da norma, por exemplo, a pesquisa etnogrfica revelando como a
polcia agia como instncia conciliadora de conflitos nas classes populares do Recife do
incio da redemocratizao (OLIVEIRA, 1984) e a pesquisa documental sobre a Lei N
7.292 de 1986 que define os Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional
demonstrando como o direito penal desigual na sua formulao e aplicao no que diz
respeito sofisticada criminalidade do colarinho branco. Essa imunizao dos crimes
dos poderosos pode ser percebida tanto na fase investigativa (em inquritos da Polcia
Federal e comunicaes do Banco Central ao Ministrio Pblico Federal) quanto nas
sentenas (CASTILHO, 1986).
Quero que o leitor desta pesquisa perceba como os dados quantitativos aqui
expostos no esto apartados da etnografia realizada e da essncia qualitativa que
norteia todo este trabalho. Dessa maneira, os grficos e tabelas, a seguir analisados,
confirmam os achados de campo e tambm ilustram questes importadas da
investigao documental que formalizam a observao emprica realizada na Central da
Capital. O leitor poder confirmar alguns dados numricos apresentados ao longo de
todo trabalho.
De maneira geral, a moldura quantitativa desta pesquisa muito semelhante a
outros trabalhos j realizados nacionalmente. Desse modo, o maior contingente de
presos condenados por trfico de drogas no Rio de Janeiro e em Braslia primrio
(66,4%); 91,9% foram presos em flagrante; 60,8% estavam sozinhos quando foram
presos e que s 15,8% respondem por associao para o trfico, alm de apenas 14,1%
terem sido condenados em concurso com posse de arma (BOITEUX et al., 2009). Esses
dados so de pesquisa realizada em parceria de professores da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de Braslia (UnB) e possuem concluses
numricas bastante aproximadas s informaes que garimpei na CEPLANC.
Acompanhei um total de 23 procedimentos envolvendo 32 pessoas no
identificadas entre os meses de junho a outubro de 2015. O local em que essa amostra
foi realizada a Central da Capital. Uma visita foi realizada no DENARC para entender
37

outro local onde ocorrncias de drogas tambm so realizadas em Recife, mas esclareo
no ter acompanhado nenhuma ocorrncia do DENARC. Os horrios da pesquisa e
detalhes mais propriamente qualitativos so esmiuados nos relatos de campo ainda
neste primeiro captulo.
Levando em conta estritamente a documentao, interagi acompanhando os
procedimentos, bem como dialogando sobre pontos que ajudaram a construir o objeto
de pesquisa, como detalhes da criminalizao das drogas e funcionamento das metas do
Pacto Pela Vida. Tudo isso com 10 delegados, todos com muito tempo de carreira na
polcia civil, conforme pude verificar. Desse total, 4 so mulheres e 6 so homens. Os
escrives tornaram-se ao longo do tempo importantes interlocutores desta pesquisa. No
posso precisar exatamente com quantos escrives interagi, mas quatro, dois homens e
duas mulheres, foram fundamentais execuo desta investigao.
Partindo da documentao oficial no que cinge aos policiais militares dos
procedimentos que acompanhei, estimo que entrei em contato direto com pelo menos
69. Esse nmero leva em conta o nmero de procedimentos (23, como j expus) e com
o fato de que por ocorrncia participam em mdia 3 PMS (um como condutor do
infrator e dois como testemunhas do fato). claro que procurei conversar com outros
policiais em outros espaos ao redor da CEPLANC, como esmiucei no panorama
qualitativo.
Chamo ateno do leitor para o fato de que a PM , via de regra, a nica
testemunha nos procedimentos envolvendo a Lei de Drogas, o que bastante pitoresco.
Pontuo que do universo de 23 casos que acompanhei em apenas dois houve
reconfigurao dessa realidade autocrtica de acusao. Nos dois casos, pessoas trazidas
como autuadas deixaram de figurar como indiciadas por deciso da polcia civil. No
primeiro deles, o usurio deixou de ser rotulado como tal por cola de sapateiro no ser
droga oficialmente criminalizada (detalhes pp. 84-85) e num segundo outro caso de um
moto-txi que transportava passageiro que trazia consigo crack tambm se entendeu que
no havia razo para realizar enquadramento em associao para o trfico como
pretendia a polcia militar. A PM ento a soberana voz que prende e que acusa,
conforme meus dados documentais e de observao etnogrfica.
Passo a algumas dessas informaes agora apresentadas ao leitor. Na ordem: 1)
ocorrncias; 2) atuao da polcia militar por ocorrncias; 3) delegacia responsvel por
ocorrncia; 4) substncia ilcita apreendida por ocorrncia; 5) objetos apreendidos por
38

ocorrncia; 6) municpios da RMR por ocorrncia; 7) idade dos autuados por


ocorrncia.

Grfico 1. Ocorrncias ligadas s drogas

APF 33

4% 5% APF 33 e 35

23%
50% APF 33 e 35 e 333 CP

4%
14% TCO 28

PORTARIA 33

AAAI 33

A ocorrncia que mais se verifica o Auto de Priso em Flagrante por Trfico


de Drogas, artigo 33 da Lei N 11.343/2006.
Esses nmeros revelam contradio na engrenagem punitiva no Recife.
possvel observar mais criminalizados pelo comrcio das substncias proibidas do que
consumidores. A incriminao dos envolvidos na ambincia de drogas bastante
peculiar revelando-se facilmente desnudada pela investigao emprica.
Em um dos casos o APF por trfico de drogas e associao para o trfico foi
conjugado com o crime de corrupo ativa, previsto no artigo 333 do Cdigo Penal.
Esse crime refere-se a uma acusao da PM que nesse procedimento recebeu propostas
de suborno por parte dos autuados.
Ressalto que, diferentemente do que esperava, no vi nenhum caso de crime de
drogas cumulado materialmente com os crimes previstos no Estatuto do Desarmamento,
Lei N 10.826/2003, porte e posse ilegal de armas de fogo de uso permitido ou restrito.
Essa constatao semelhante com o que colheram pesquisadores da UnB e UFRJ em
Pesquisa para o Ministrio da Justia (BOITEUX et, al, 2009).
39

A portaria a exceo que se verifica no campo de pesquisa, nela ao invs de


usar a medida extrema do flagrante e da priso, o delegado decide baixar uma portaria
para que se investiguem as situaes relatadas pelos responsveis pelo policiamento
ostensivo. Para maiores detalhes observar item 1.5.7 dos relatos de campo ( a partir da
p. 74) neste mesmo captulo.
Dados do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (2015, p. 28), em recente
pesquisa a respeito da aplicao das penas no Pas, confirmam a fatdica realidade do
inqurito policial brasileiro fartamente representado pelo ato de priso em flagrante.
Assim, em pesquisas em processos criminais, constata-se que 59,2% deles foram
instrudos por um inqurito instaurado a partir da priso em flagrante dos suspeitos e
34,8% a partir de inquritos iniciados por portaria. Alm disso, em 6,0% dos casos os
acusados j se encontravam presos por motivos alheios ao processo. Ou seja, em 64,4%
dos processos analisados os acusados j se encontravam presos no momento da
instaurao dos inquritos policiais. Transcrevo parte do Relatrio de Pesquisa que
apresenta a siamesa similitude com os dados que coletei:

(...)No Brasil, apesar de a legislao indicar a necessidade de instaurao de


inqurito policial sobre todas as notcias-crime, na prtica, no bem isso o
que acontece em uma delegacia de polcia. Nem todas as notcias de crime se
convertem em BO e nem todas as ocorrncias so transformadas em
inquritos policiais. Fatores ligados repercusso do crime e ao status social
das vtimas contribuem significativamente para a instaurao dos inquritos,
mas, de forma geral, a lgica de seleo dos casos refere-se muito mais
necessidade que os delegados e agentes de polcia tm de administrar o
volume de trabalho. Assim, havendo informaes suficientes no BO,
instaura-se inqurito sem a realizao de investigao. Do contrrio, arquiva-
se a ocorrncia. Portanto, a investigao criminal no uma regra, mas uma
exceo (...) (IPEA, 2015, p. 28).

O Auto de Apreenso em Flagrante por Ato Infracional regido pelo Sistema do


Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei N 8.069/1990) que possui nomenclatura
diferente da previso dos demais autos e instrumentos normativos, todos de acordo com
o Cdigo de Processo Penal e a Lei Penal Especial de Drogas.
40

Grfico 2. Batalho da polcia militar responsvel por ocorrncia

5
1 BPM
6 BPM
4
4 11 BPM
13 BPM
3 3 16 BPM
3
19 BPM
20 BPM
2 2
2 CIP CES
ROCAM
1 1 1 1 1 1 1 1 1 BPTran
1
GATI
Guarda Municipal
0 No Informado
Batalho

Apresento ao leitor as corporaes da polcia militar de Pernambuco com quem


mantive contato durante a pesquisa etnogrfica na Central da Capital. Os Batalhes do
1 BPM ao 20 BPM integram a Diretoria Integrada Metropolitana da Polcia Militar
(DIMPM). CIP-Ces, 1 BPtran e ROCAM, por exemplo, compem, a Diretoria
Integrada Especializada (DIRESP). A ROCAM realiza blitzs e escoltas, realizando
policiamento ostensivo com motocicletas.
Sobre CIPCes significa Companhia Independe que utiliza ces farejadores,
sobretudo em operaes que envolvem drogas e outras que precisam desses animais.
Registro que o 19 Batalho o que mais figura em nossa pesquisa como agente
da polcia militar responsvel pelos procedimentos que acompanhei. O 19 Batalho,
alm de atuar nos bairros de Boa Viagem e Pina, Zona Sul do Recife, exerce funes na
Imbiribeira, Milagres e Ibura, bairros onde h elevado nmero de prises por trfico de
drogas como o leitor poder conferir no grfico 6.
O Batalho que atua na maior faixa territorial do Recife o 11 Batalho
abrangendo quase toda a Zona Norte da Cidade do Recife.
O 13 Batalho localizado no mesmo conjunto de prdios em que localizada
a Central de Plantes da Capital. Tive oportunidade, pela proximidade do Batalho de
conhecer as estruturas daquele Quartel, bem como dialogar com os policiais que sempre
estavam pela proximidade da CEPLANC.
41

O GATI o Grupo de Aes Tticas Itinerantes, seus componentes so atores


frequentes na CEPLANC e so, como os policiais do 13 Batalho, importantes
interlocutores desta pesquisa. Eles podem ser visualizados como os homens de preto.

Grfico 3. Delegacia responsvel pela ocorrncia

12

10
10

8 1
2
6 3
5
4

4 DPCA
3
PLANTO
2
2
1 1

0
Equipe do procedimento

Devo esclarecer que as quatro equipes e o planto funcionam na CEPLANC. A


DPCA localizada no Centro Integrado da Criana e do Adolescente. Apenas um caso
de um auto de apreenso em ato infracional levado por equivoco Central foi enviado
para a instncia adequada, o Departamento de Polcia da Criana e do Adolescente, que
decidi acompanhar, pois desde a chegada da ocorrncia vinha dialogando com os
policiais responsveis pela apreenso, como j esclareci anteriormente.
No incio deste trabalho, a CEPLANC possua quatro equipes que trabalhavam
no horrio de 7 h s 19 h. Havia tambm um planto no regime de 24-72 h, isto , um
dia de trabalho e trs de folgas. Este local, portanto, sempre funcionou 24 h por dia, nos
fins de semanas e feriados, dando continuidade engrenagem punitiva. As delegacias
dos bairros continuavam existindo, mas funcionam no horrio de 8h s 18 h. Durante a
execuo desta investigao, por razes polticas, ocorreu uma reorganizao funcional
na Central de Plantes. Num tpico mais a frente delineio o quadro poltico e funcional
dessa mudana, quando todas as equipes passaram a ter o regime de trabalho do planto.
42

Grfico 4. Substncias ilcitas apreendidas por ocorrncia

14%

13%
Maconha
Crack
73%
Maconha e Crack

As sustncias tornadas ilcitas apreendidas por procedimento so o crack e a


maconha juntos ou separados.
Pontuo aqui que em nenhuma oportunidade vi um Termo Circunstanciado de
Ocorrncia (TCO) quando a droga o crack. Quando se trata dessa famigerada droga
realiza-se Auto de Priso em Flagrante (APF) em trfico de drogas, a despeito da pouca
quantidade de pedras e at mesmo do degradado estado fsico do sujeito autuado. Essas
questes envolvendo o crack sero retomadas ao longo dos outros dois captulos, pois se
entrelaam com o objeto de pesquisa, isto , como as metas do Pacto Pela Vida do os
contornos da criminalizao das drogas na RMR.
Um TCO um procedimento escrito realizado em crimes de menor potencial
ofensivo, como o caso do delito de uso e posse de drogas no Brasil, que est sujeito ao
controle despenalizador dos Juizados Especiais Criminais. O Auto de Priso em
Flagrante ocorre em crimes para os quais prevista a possibilidade de pena privativa de
liberdade como o caso do delito de trfico de drogas.
Preciso esclarecer que na maioria dos procedimentos que se referem maconha,
na verdade big-big de maconha. A expresso big-big de maconha presente nos
laudos de constatao preliminar de sustncia entorpecente, realizados pelo Instituto de
Criminalstica, faz aluso modalidade de maconha em big-big (pequenos tabletes
em forma quadricular) que, na verdade, trata-se vulgarmente do que se conhece como
43

prensado (maconha processada quimicamente com outras substncias como amnia).


Geralmente, a maconha natural aquela que chega com as pessoas incriminadas como
usurias pela polcia militar.
Deixo de apresentar quantidades de todas essas substncias, pois no consegui
unidade de medida padro. Assim, nos procedimentos envolvendo apreenses de
maconha, pode haver indicao de um dolo, uma dolinha, um cigarro, uma
cinquentinha16, x big-big, x gramas x kg17. No caso do crack, x pedras18,
x gramas de crack.
O leitor ter nos relatos de campo quantidades de drogas sinalizadas, bem como
a incriminao de acordo com a quantidade. Saliento, desde j, que no h uma tabela
de quantidade que orienta a polcia para a rotulao como traficante ou usurio.

Grfico 5. Objetos apreendidos por ocorrncia

16 15

14

12

10 Nenhuma
Dinheiro
8
Balana de preciso

6 Arma

4 Celular
4
2
2 1 1

0
Apreenses

Chamo ateno do leitor para o fato de que as pessoas apreendidas na RMR


salvo em rarssimas excees portam arma de fogo ou entram em confronto com a
polcia militar. Em um dos casos, houve apreenso de um revolver calibre 38, no

16
Por cinquentinha entende-se a quantidade de 50 gramas de maconha.
17
No mximo consegui visualizar 0,5 kg (meio quilograma) de maconha de uma ocorrncia de So
Loureno da Mata.
18
60 pedras de crack equivalem a 14 gramas como pude confirmar em mais de uma vez pelos laudos do
IC.
44

havendo, por outro lado, incriminao em nenhum artigo do Estatuto do Desarmamento.


A quantidade de dinheiro nunca ultrapassou os R$ 100,00 (cem reais).
Como pode ser percebido da observao do grfico, a maioria dos autuados,
afora a substncia tornada ilcita apreendida, no traz consigo nem dinheiro, nem arma,
nem qualquer outro objeto de valor. Alguns deles no portam nem documento de
identificao19 e tambm no tm amigos ou familiares que compaream CEPLANC
para auxili-los.
Sobre a ausncia de apreenses de armas associadas s atividades de trfico de
drogas preciso conectar esse achado de campo com o fato de a maioria dos traficantes
conduzidos Central serem vapores baratos, meros serviais do narcotrfico como
menciona a cano fora da ordem de Caetano Veloso.
Em outras palavras, traficantes do varejo no costumam trazer consigo armas de
fogo ou outras com potencial letal. Os mercadores do varejo na RMR costumam no ter
local de atuao definido, so errantes, no criam razes em territrios fixos. Luiz
Eduardo Soares explica que justamente da necessidade de proteger um territrio do
qual emana o poder do trfico (boca de fumo, biqueira etc..) que nasce o casamento
perverso entre arma e trfico de drogas a partir de uma sendentarizao do comrcio
varejista ou do comrcio atacadista que costuma garantir sua segurana por meio de
arsenal blico (2005, p. 248-249).
As pessoas apreendidas com crack eram aquelas que quase nunca tinham algum
valor de dinheiro ou outro objeto. Sem leno, sem documento, e nem cachimbo, mas
com muitas caractersticas em comum: magreza, dedos queimados, bocas ressecadas e
em estado de rachaduras, ausncia de banho e forte cheiro das entranhas, alm do quase
sempre abandono familiar e tambm autoabandono.

19
Da realiza-se o procedimento de identificao civil por razo da persecuo penal. Esse procedimento
ocorre em uma sala da Central, perto da carceragem, reas que nunca conheci exceto quando um porto
de ferro ficava aberto de onde avistava esta sala e as grades.
45

Grfico 6. Municpio da RMR por ocorrncia

4%
14%

Recife
Olinda
82% So Loureno da Mata

Um leitor mais conhecedor da Regio Metropolitana do Recife deve estar se


questionado onde est Jaboato dos Guararapes que juntamente com Olinda e Recife
formam a cornubao urbana. Esclareo que os procedimentos de Jaboato so
encaminhados Delegacia do bairro de Prazeres. Quando o procedimento versa sobre
drogas, por outro lado, o laudo que se realiza no Instituto de Criminalstica feito no
mesmo IC, que fica ao lado da CEPLANC.
A ideia motivadora da criao da CEPLANC tambm tem relao com a
proximidade do IC. Antes da Central qualquer delegacia de Recife precisava de laudos e
tinha que mandar substncias ilcitas apreendidas para o IC para realizao dessa
necessria formalidade pericial.
Sobre os bairros que ocorrem as apreenses da Polcia Militar nesse universo
que compreende os municpios de Recife, Olinda e So Loureno da Mata so os
seguintes:
Na Capital Pernambucana por ordem decrescente de ocorrncias envolvendo
APFs e TCos: Curado, Campo do Bueiro (Torre), Santo Amaro, Coelhos, Boa Vista,
Milagres (Ibura), Ibura de Baixo, Favela do Detran (Iputinga), Linha do Tiro,
Macaxeira, Alto Guilhermino (gua Fria), Dois Irmos, Imbiribeira, San Martin, Santo
Antnio, So Jos e Recife Antigo.
46

Pela CEPLANC tambm chegam ocorrncias de outras localidades como o Cabo


de Santo Agostinho, mas em minha investigao etnogrfica, bem como em meus
documentos, s figuram procedimentos de Recife em elevada representatividade, um
nico de So Loureno da Mata e outros da cidade vizinha de Olinda.
Sobre Olinda, as localidades so as pauperizadas reas de Peixinhos e a
comunidade do Pantanal no bairro de Rio Doce.
Em So Loureno da Mata a investigao sinaliza para Vrzea Fria como local
de atuao da PM.
Esclareo que as polcias trabalham com a diviso territorial chamada de reas
Integradas de Segurana20 (AIS). Desse modo, o bairro de Santo Amaro corresponde a
AIS 1, os bairros da zona sul (Boa Viagem. Imbiribeira, Ipsep e parte do Ibura)
representam a AIS 3. As localidades do Detran, Campo do Bueiro equivalem a AIS 4.
Dois Irmos e parte dos Altos recifenses so localizados na AIS 5. A cidade de Olinda
AIS 7. A cidade de So Loureno possui equivalncia com a AIS 9 e a cidade do
Cabo de Santo Agostinho a AIS 10. Esclareo que Jaboato dos Guararapes
corresponde AIS 6. No acompanhei casos vindos desse ltimo municpio, embora
tenha percebido que o 6 Batalho que atua na AIS 6 tambm costuma fazer ocorrncias
em Recife. As AIS 2 correspondem ao Bairro do Espinheiro e AIS8 a Paulista, locais
de que no vi nenhuma ocorrncia.
No incio da pesquisa, a CEPLANC recebia somente casos da Capital, depois,
por razes que externalizo a partir do prximo tpico, passou a ser Central no mais s
da Capital, mas de quase toda a RMR.

20
Explico no captulo no tpico do Pacto Pela Vida essa diviso de Pernambuco em reas Integradas de
Segurana.
47

7. Idade dos autuados por ocorrncia

7%
29%
25%

3% No Indicado
Adolescente
18 a 25 anos
36%
26 a 35 anos
Mais de 35 anos

Sobre a idade, esclareo que os 36% entre 18 e 25 anos correspondem ao que as


pesquisas sobre violncia urbana e civilizao j alertavam sobre a predominncia de
YAMs nos processos de criminalizao nas cidades. Essa expresso significa young
adult males homens adultos jovens. Esse nmero pode ser ainda maior e suspeito que
o seja, mas obedecendo as informaes colhidas dos documentos da CEPLANC, em
29% dos casos no h informaes sobre idade dos autuados, a maioria homens.
Argumenta-se que esse nicho populacional, por ser especialmente consciente de
sua fora fsica, precisa colocar-se prova, tendo menos a perder que os velhos com
responsabilidades. Em So Paulo, por exemplo, em 1994, 93% das vtimas registradas
de violncia tambm eram do sexo masculino e cerca de 75% tinham entre 15 e 49 anos
de idade. Novamente a predominncia dos YAMs (cf. BURKE, 2002, p. 37-38).
Preciso aqui esclarecer que a faixa de idade tambm se deve a outros fatores j
mapeados pela pesquisa social que se debrua sobre a tragdia brasileira revigorada a
cada dia pela criminalizao das drogas.
Existe no Brasil afora uma cultura de violncia gestada, alimentada e
reproduzida pelo trfico de drogas. Essa rede de crimes e violncias reforada a partir
do recrutamento dos jovens vulnerveis integrados ao sistema de poder do trfico de
drogas. Essa juventude que est engrossando as fileiras da criminalidade abarca no s
os jovens adultos, mas muitos adolescentes. Esse um dado alarmante e parafraseando
48

Mv Bill, se voc est lendo este trabalho, ento no estou sozinho na preocupao com
o drama da juventude negra e pobre de nossa terra (cf. SOARES, 2005, p. 282).
Essa juventude no possui acesso educao digna, empurrada ladeira abaixo
para o desemprego, o subemprego e as subeconomias da barbrie, estando o trfico de
drogas localizado nessa ltima e restrita possibilidade. Esse mesmo contingente tambm
corresponde ao setor populacional cujas marcas do crcere que retroalimentam o ciclo
de criminalizao e a letalidade so as ferramentas que tm impedido um porvir adulto
desses YAMs.
Em Cabea de Porco (SOARES, 2005, p. 247), apresenta-se o perfil da vtima
letal brasileira. Jovem do sexo masculino entre 15 e 24 anos (ainda que o espectro etrio
se estenda rpida e perigosamente para baixo e para cima). Esses quase cadveres, pelas
cruis estatsticas do Pas, moram nas vilas, favelas ou periferias das metrpoles e,
frequentemente, so negros. Essa explanao converge com os dados que colhi na
CEPLANC. Esse quadro, pois, revela que a face cruel da criminalizao, narrada pela
Criminologia, encontra correspondncia com outro lado perverso, o das mortes, contado
pela Vitimologia. Aqui, peo licena a um leitor mais austero, para denominar essa
tragdia brasileira, sem nenhum exagero retrico, como ge-no-c-dio21 do crcere ou do
corpo estendido no cho.
De acordo com relatrio da Presidncia da Repblica, que utilizei em pesquisa
realizada por mim a respeito de juventude e trfico de drogas no territrio do Grande
Recife, possvel afirmar que Pernambuco est em terceiro lugar no pdio de unidades
da federao em que mais morrem jovens entre 17-24 anos. Entre os anos de 2005 a
2007 a Nova Roma de Bravos Guerreiros figurou como 1 lugar de mortes de ndice
de Homicdios na Adolescncia (IHA) (cf. BABINI, rica, GONAVES, Cristhovo,
2015, p. 323).
Explicito que a marcha criminalizadora das drogas tem tragado para um ciclo de
criminalizao secundria das polcias e Poder Judicirio e, por fim, a criminalizao
terciria das prises da juventude entre 18 e menos de 25 anos, o que revela a faceta
perversa de uma criminalizao que segrega jovens adultos para quem o fracasso do
Estado comea com a excluso de acessos educao formal.

21
Luiz Eduardo Soares afirma que esse genocdio paradoxal, autofgico e fraticida. Desse modo, jovens
pobres so mortos pela polcia ou por seus pares numa dinmica que no conhecem e no controlam, em
que todos so vtimas, mesmo aqueles que ocupam provisoriamente o papel circunstancial de algoz, no
circuito vicioso que os conduzir morte precoce e cruel (SOARES, Op, cit., p. 247).
49

1.4 A Central de Plantes da Capital: da gnesis ao caos

(Imagem de Cristhovo Gonalves da entrada da CEPLANC em dia de feriado)

Esclarecidos os caminhos, nada ortodoxos, que me conduziram Central num


dia de extremas efervescncias polticas e violncia policial na cidade do Recife,
quando o eu advogado encontrou a Central de Plantes da Capital, exatamente no dia
17 de junho 2014. Naquela data, entendi que, por ali, tambm passavam todas as
ocorrncias envolvendo os sujeitos apreendidos com drogas, levando o eu
pesquisador a cogitar um estudo de campo de mestrado naquele local e comear a
execut-lo no dia 03 de junho de 2015.
Inaugurada no dia 06 de maro de 2014, a Central de Plantes da Capital
(CEPLANC), conhecida tambm como Central de Flagrantes, rene flagrantes advindos
da atividade ostensiva da polcia militar que convergem para esse local, situado no
bairro de Campo Grande, Recife. Esse espao localizado no mesmo conjunto de
prdios onde tambm esto o Instituto de Criminalstica, 13 Batalho da Polcia Militar
e Companhia Estadual de Habitao e Moradia (CEHAB).
O prdio tem setores de permanncia, sala de registro de procedimentos,
gabinetes dos delegados, cartrios, arquivos, sala da OAB, sala de imprensa, duas salas
de custdia, carceragem, depsito de apreenses e setor administrativo.
50

Em virtude de uma reorganizao interna das polcias civis e militares, por


esta localidade, que visitei de junho a outubro de 2015, que passam a maioria das
ocorrncias criminais na Cidade do Recife e adjacncias.
No incio deste trabalho, a CEPLANC funcionava22 com quatro equipes que
trabalhavam das 7 h s 19 h e um planto no regime de 24-72 h, isto , um dia de
trabalho e trs de folga. Este local, portanto, no para, funcionando 24 h por dia, nos
fins de semanas e feriados, dando continuidade engrenagem punitiva. As delegacias
dos bairros continuavam existindo, mas funcionam no horrio de 8h s 18 h.
A ideia da abertura do espao era, em princpio, desafogar as atividades das
delegacias dos bairros da cidade do Recife. A CEPLANC seria a localidade em que
autos de priso em flagrante, termos circunstanciados de ocorrncia e portarias para
abertura de inqurito investigativo comeariam. Nesse local, ento, d-se a abertura do
procedimento penal, arbitramento de fiana, assinatura de termo de comparecimento aos
Juizados Criminais da Capital ou encaminhamento da pessoa sob tutela estatal para
estabelecimento prisional adequado23.
Os procedimentos, tanto relativos aos autos de priso em flagrante quanto
termos circunstanciados de ocorrncia ou raras portarias, aps o trabalho inicial
realizado na CEPLANC, so enviados s delegacias dos bairros e de l seguem para o
MPPE e instncias judicirias.
Logo aps o incio desta pesquisa, um nmero de ocorrncias ainda maior,
novos rostos de agentes da polcia civil e ocorrncias de Camaragibe e de Olinda
comearam a chegar Central, que passou a ser no mais s da Capital, mas de quase
toda a regio metropolitana do Grande Recife.
Depois da brusca mudana, o local tornou-se uma verdadeira panela de
presso prestes a explodir, nas palavras de uma escriv comentando comigo sobre a
sobrecarga de trabalho. Naquele momento, houve transferncia de policiais civis dos
municpios vizinhos de Camaragibe e de Olinda para a Central e o que era regime
apenas da equipe de planto passou a ser regra, ou seja, todos passaram a trabalhar em
regime de 24/ 72 h, logo 48 horas semanais.

22
Funcionava no pretrito imperfeito, que se tornou ainda mais imperfeito, durante nosso estudo, como
explicaremos a seguir.
23
Na verdade, com as audincias de custdia, em que o preso apresentado em 24 h ao juiz, da
CEPLANC os autuados so conduzidos ao Frum Desembargador Rodolfo Aureliano, o Frum da Joana
Bezerra. As custdias foram institudas no meio da execuo de nossa pesquisa (dia 17/08/2015) e s
acontecem se o caso envolver a territorialidade da cidade de Recife no Servio de Planto de Flagrantes
do TJPE.
51

O que j era catico tornou-se ainda pior, da ter acima falado no pretrito
ainda mais imperfeito, j que mesmo antes da mudana j no se conseguia dar conta do
enorme fluxo de ocorrncias que passa pela Central, o que tornou-se ainda pior. A
modificao, ocorrida por questo de reorganizao, foi pensada pelo governador de
Pernambuco, Sr. Paulo Henrique Saraiva Cmara, do Partido Socialista Brasileiro
(PSB), pelo Decreto N 41.901, datado de 8 de julho de 2015 (legislao acoplada aos
anexos deste trabalho).
As razes da reorganizao funcional no estavam, por bvio, declaradas no
Decreto N 41.901, mas, como descobri, aconteceram em decorrncia da entrega dos
PJES (Programa de Jornada Extra de Segurana). Delegados, agentes e escrives
tomaram no ms de julho de 2015 a Avenida Conde da Boa Vista realizando inmeras
reinvindicaes na melhoria das condies de trabalho, salariais e criticando duramente
o Pacto Pela Vida24.
Policiais civis e delegados entregaram as gratificaes para no mais assumir
os trabalhos de plantes por meio dos PJES. Esse fato foi manchete recorrente dos
jornais naquele ms. O Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (SINPOL), cuja
direo passou a ser ligada ao Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL), comeou a
incomodar e a incentivar todos os cargos da Polcia Civil a entregar os PJES25. Segundo
o SINPOL, a polcia civil funciona com apenas 40% do efetivo necessrio (formulrio
de entrega dos PJES, panfleto do SINPOL juntados aos anexos). A imagem de um dos
cartrios das equipes da Central, a seguir exposta, ilustra as tonalidades vermelhas nas
reivindicaes polticas da polcia civil de nosso estado:

24
A Avenida Conde da Boa Vista o corao do Centro do Recife. As reinvindicaes polticas de
movimentos sociais, partidos, sindicatos e setores da esquerda costumam acontecer por l. Polcia na rua,
com discurso de esquerda, para mim era novidade!
25
PJES (Programa de Jornada Extra de Segurana) foi criado pelo Decreto N 21.858 de 25 de novembro
de 1999 pelo ento governador Jarbas Vasconcelos do PMDB, Partido do Movimento Democrtico
Brasileiro. Os PJES, uma forma de pagar pouco e no fazer concurso, como alegam os policiais civis, e
como pude comprovar de fato, foram incorporados pelo Pacto Pela Vida, institudo em 2007. Sobre o
Pacto Pela Vida e a precarizao do trabalho de policiais civis e militares falarei melhor no captulo 3,
destinado a analisar as questes da segurana pblica e outras relacionadas aos atores da segurana
pblica, policiais civis e militares.
52

(Imagem de Cristhovo Gonalves do cartrio de uma das equipes da CEPLANC)

E foi esse o cenrio poltico, acima descrito, que delineou a deciso do


governador Paulo Cmara de jogar para Recife os plantes das cidades vizinhas e
instituir um novo regime de trabalho de 48 h semanais regulares para todos os policiais
civis lotados na CEPLANC.
A respeito das transferncias e da reorganizao funcional dos Plantes na
Regio Metropolitana, preciso dizer que essa situao ocorreu por imposio poltica
do Governo do Estado de Pernambuco. Compartilho opinio do escrivo A. no dia 13
de setembro de 2015, madrugada do sbado para o domingo, em que cheguei s exatas
00 h na Central e deparei-me com um silencioso prdio, sem nenhuma ocorrncia
envolvendo drogas, exceto um procedimento envolvendo fiana que no averiguei com
mais detalhes. Durante o silncio da madrugada o escrivo, relatou-me:

(...) Para fazer o mal num instante sai um decreto, uma portaria. Sai uma no;
sai logo trs, mas pra resolver minha situao j fez um ms. (Dirio
13/09/2015)

pela Central de Plantes da Capital, como j deve ter entendido o leitor, que
passam os corpos aprisionados espera de um destino. Se rotulados como usurios
sairo dali espera de uma audincia no Juizado Criminal, se forem etiquetados como
traficantes, sairo da CEPLANC para o Centro de Observao e Triagem Everardo
53

Luna (COTEL) ou para a Colnia Penal Feminina do Recife disposio da Justia


Penal26.

1.5 Relatos de Campo

Nesta parte do trabalho, pretendo apresentar a meu interlocutor sete itens de


visitas Central aos quais chamo de relatos de campo, considerados como achados
primorosos que s um trabalho de campo poderia proporcionar. que a teoria resta
deitada eternamente em bero esplendido na calmaria dos livros, enquanto a realidade
pulsa.

A escolha no segue razo cronolgica, como a leitura dos prprios relatos


demonstrar, por isso sinalizarei o dia, o ms e, na medida do possvel, a hora do relato.
Adianto que esses relatos envolvem subjetividades particulares do narrador/interprete da
situao. A atividade de contar uma histria evolve um sentir prprio daquele que narra
e, por essa razo, no sustento a clssica neutralidade evocada por pesquisadores em
autodefesa.

No quero, com isso, afirmar que nossas percepes particulares a respeito dos
fatos acontecidos, durante as visitas na Central de Plantes da Capital, impediram-me
de relatar com mximo empenho e preciso como essas situaes ocorrem. No pode
haver atividade de pesquisa que se pretenda cientfica com a noo de neutralidade
totalmente descartada (cf. OLIVEIRA, 1988, p. 19).

Desse modo, quando aspeio frases, sinalizo que aquelas frases foram proferidas,
ditas, e algumas vezes gritadas, pelos respectivos sujeitos na situao narrada (policiais
civis ou militares, autuados, familiares dos presos, peritos etc.). H neutralidades e
neutralidades. A primeira, aplicada ao conjunto da atividade de investigao cientfica,

26
Para sinalizar a diferena de tratamento dado s duas figuras (traficantes versus usurios) mantemos a
imagem de sada da CEPLANC para o COTEL (homens) ou para o Bom Pastor (mulheres) dos
considerados traficantes. J expliquei, contudo, que, agora, os envolvidos em acusaes a respeito de
trfico de drogas saem da Central para o Frum do Recife para sua clere audincia de custdia. Nessa
solenidade, diante de juiz, promotor de justia e, geralmente, defensor pblico, avaliar-se- a legalidade
da priso em flagrante, podendo haver relaxamento da priso em caso de ilegalidades. De outra banda,
superadas as (i)legalidades do flagrante, pode-se considerar no ser o caso de decretao da priso
preventiva, ainda que o flagrante esteja de acordo com a legalidade. No caso de trfico de drogas, embora
os rus sejam primrios, portadores de bons antecedentes e arrisquem-se no trfico de pequenas
quantidades de substncias entorpecentes, a priso preventiva costuma ser decretada/ mantida, conforme
acompanhei em So Paulo nas primeiras audincias de custdias realizadas no Pas no Frum Criminal da
Barra Funda. Crvel suposio do pesquisador de que em Pernambuco no seja muito diferente.
54

impossvel, mas a segunda, aplicada a um dos momentos em que se divide essa


atividade, indispensvel. (cf. OLIVEIRA, Op, cit., p.122)

Posso falar seguramente que em contextos de pesquisa, sobretudo o pesquisar


que envolve suas vises polticas, como em meu caso, muito embora no se possa falar
em neutralidade da investigao, no conduzir da pesquisa que se pretenda cientfica, o
cientista social, por uma obrigao at mesmo tica, a fim de impedir a interferncia de
valoraes ideolgicas em sua experimentao, deve adotar mtodos com tcnicas
demonstrveis por procedimentos lgicos. Trata-se da possibilidade de uma
neutralidade operacional que, por ser sistematicamente controlada, conduz
apresentao de dados de pesquisa objetivamente vlidos (cf. OLIVEIRA, Op, cit., p.
126).

Por questo de limitao temporal, os relatos que se seguiro pertencem a um


dia de visita de campo. Cada dia de campo (dezoito na CEPLANC e um no DENARC
num lapso temporal de 03 de junho de junho a 17 de outubro de 2015) envolve
conversas, interaes e outras apreenses de situaes que sero utilizadas, na medida
do possvel, nos demais captulos deste trabalho. Optei, ento, por diluir nos outros dois
captulos outros relatos para fortalecer a anlise e aproveitar ao mximo as vivncias na
Central.

Peo pacincia ao leitor, para que aguarde at o final do segundo e do terceiro


captulos, onde efetivamente direi o que penso sobre as situaes que sero apresentadas
e como elas se agregam ao objeto da pesquisa. De alguma maneira, reconheo desde j
que minha forma de narrar, a adjetivao e o horror de algumas situaes j do pistas
ao leitor do que, efetivamente, analisarei e, por ventura, direi a respeito dessas situaes.

Os relatos de campo poderiam ser sobre questes vrias, mas para fins
cientficos, resolvi apresentar ao leitor relatos que se costuram com o objeto de pesquisa
desta etnografia. Desse modo, os relatos discorrem a respeito do processo de
criminalizao secundria de usurios e traficantes de drogas, pessoas envolvidas numa
ambincia de drogas (outsiders) e sobre o regime produtivista de metas do Pacto Pela
Vida que interfere significativamente no modo como as polcias conduzem o processo
de criminalizao das drogas na RMR, criando uma cultura policial de apreenses. Meu
Grande Serto , por assim dizer, a criminalizao secundria retroalimentada pelo
regime de metas, havendo veredas relacionadas ao denso universo da criminalizao
que sero apresentadas en passant.
55

Os sete relatos escolhidos sero retomados ao final dos captulos subsequentes,


momento no qual me debruo sobre os relatos; agora, apenas sero apresentados ao
leitor. O terceiro, friso, por ter intersees com o segundo e terceiro captulos, ser
sucessivamente analisado nas duas oportunidades. No segundo captulo uso esse
terceiro relato como Nunca tive o prazer de apreender cocana, j no terceiro como
Bom trabalho, equipe, no esquecer de indicar no BO da gente PONTO
DEBELADO. Portanto, teremos sete relatos, sendo que um deles se desdobra em
questes fundamentais dos dois captulos sequentes.

A escolha dos sete relatos deve-se ao fato de eles estarem intimamente


conectados com as duas questes fundamentais que passaram a guiar a pesquisa de
campo. Os trs primeiros blocos de anlise so categorias e questes relacionadas aos
sujeitos desviantes envolvidos numa ambincia de drogas, apresentada ao leitor no
segundo captulo deste trabalho. Os quatro ltimos explicitam o gerencialismo
criminolgico da segurana pblica pernambucana e o que chamo de uma cultura de
apreenso e quadro de prticas policiais.

As informaes sobre bairro e quantidade de drogas so compatveis com as


informaes oficiais constantes nos autos de priso em flagrante, termos
circunstanciados de ocorrncia e portarias. No houve a realizao de entrevistas, nem a
identificao das pessoas integrantes do universo da CEPLANC.

Tal como pesquisadores em delicadas situaes de perigo, o que tambm esteve


em jogo constantemente nas anlises que realizo e nos relatos que apresento so os
momentos de compartilhamento, estranhamento, aproximao e significaes ocorridas
nas interaes entre mim e meus interlocutores. (cf. RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2012, p.
49). Chamo ateno para o fato de que esta etnografia foi realizada por pesquisador com
algumas leituras antropolgicas e no uma formao densa e burilada em Cincias
Sociais.
Meus interlocutores, como perceber o leitor, so tanto policiais como os
autuados por eles, o que exigiu de mim duplo jogo de cintura na escolha dos momentos
de quando dialogar com cada um deles. Tal como pesquisadora, que adentrou os muros
de penitenciria feminina no Recife, para escutar presas, e contribuir com seu agir
intelectual para a produo do saber cientfico, reconheo que procurar compreender
certas dinmicas dos interlocutores no significa louv-las, nem advogar sua
preservao, mas manter postura que permita aos interlocutores o direito de falar,
56

ansiado por muito deles (cf. RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2012, p. 76). De mim esse
exerccio exigiu a no comum demonizao dos viles policiais e nem da vitimizao
dos autuados em que de maneira simplista poderia incorrer.
Deixei a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco ciente de minhas aes,
quando dei entrada, por meio de Portaria Acadmica de n 213 de 2010, na Gerncia de
Anlises Criminais e Estatsticas (GACE), em pedido de levantamento de dados
estatsticos sobre a CEPLANC (protocolo - SIGEPE n 4006923-6/2015). Na SDS, fui
orientando a apresentar o parecer da GACE a respeito de minhas credenciais estudantis
e apresentao da pesquisa na Central para que l fossem estabelecidas a convenincia
de minha pesquisa de campo e as particularidades em que ela ocorreria.
Esse necessrio contato com o setor estatstico da segurana pernambucana
durou de 24 de abril de 2015 a 22 de maio do mesmo ano. Durante esse tempo, estive
diante da conhecida burocracia brasileira, isto , com perdas de papis, muitas
ligaes e visitas presenciais, nas quais minha condio de advogado feliz ou
infelizmente contou mais do que meu currculo lattes (documentos nos anexos).
Cheguei Central que eu chamava como Central dos Flagrantes no dia 03 de
junho s 15 horas, quando tentei conversar com um velho comissrio que, sem entender
bem se eu era advogado ou estudante, encaminhou-me ao administrativo, onde logo
conheci acolhedores agentes da polcia que me informaram que eu devia apresentar toda
a documentao conseguida junto da SDS ao Delegado Gestor. Por volta das 17 h fui
chamado sala do Delegado Gestor, em que cedi toda a documentao da GACE junto
com a minha identificao profissional de advogado (a documentao foi arquivada no
setor administrativo). Naquela oportunidade esclareci que estudava o tema das drogas
desde a graduao e que no atuaria como advogado enquanto estivesse realizando
minha pesquisa.
O Delgado sugeriu-me que ficasse na sala da OAB esperando procedimentos de
drogas e que teria que lidar com as exigncias de cada delegado e assim prontamente o
fiz para construir esta dissertao. Estava na CEPLANC no outro dia, em 04 de junho,
quando me ambientei com o campo de pesquisa num dia calmo. Logo em seguida,
estive na Central dia 09, um dia de tranquilidade, e depois, no 10 de junho, num dia de
paralisao da polcia, cujo relato segue na sequncia:
57

1.5.1 O da maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da droga

Cheguei, no dia 10 de junho, na quarta visita ao campo, por volta das 14 h, na


Central de Plantes da Capital. Havia nesta visita, ao contrrio da anterior, 09 de junho,
intenso movimento no local. Muita gente estava no prdio e imediaes; pessoas
chorando passavam por mim no caminho do Instituto de Criminalstica (na entrada do
conjunto de prdios) em direo sala da OAB na CEPLANC.

J na Central, dirigi-me permanncia/carceragem, onde vi, no quadro de giz


que indica as demandas dirias, que ali chegaram algumas ocorrncias envolvendo
drogas, trfico e porte/uso. Logo, seriam ocorrncias que eu poderia acompanhar
naquela tarde, que coincidiu com uma paralisao da polcia civil.

Quando cruzei o jardim, em direo s quatro equipes, para tentar acompanhar


uma das vrias ocorrncias de drogas, vi um rapaz algemado ao lado de uma equipe.
Esse seria um dos casos que acompanharia. M., como pude descobrir depois, havia sido
apreendido com 140 big-big de maconha, como dizem os documentos oficiais a que
tive acesso. Entendi que esse tal de big-big , na verdade, o que se conhece como
prensado, maconha processada quimicamente e mais barata.

Tendo batido de porta em porta, nas quatro equipes, conheci, na 3 Equipe, o


escrivo E. que se interessou por minha pesquisa e disse que me ajudaria. Escrivo E.
levou-me at o Jardim e apresentou-me ao Cabo. R. para conversarmos sobre drogas e
polcia na cidade de Recife.

Conversei com Cabo R. bacharel em direito e que j foi aprovado no Exame da


OAB mas no fez o juramento para se tornar advogado, pois tem orgulho de ser
defensor da sociedade, como ele mesmo bradou para este pesquisador. Apresento-me
como mestrando, embora ele tenha insistido em saber se eu era advogado. Confessei
esse ttulo que sempre quis omitir.

Cabo R. demonstrou interesse por minha pesquisa e disse que gostaria de relatar
muitas coisas para que eu entendesse a re-a-li-da-de, falou o PM com essa cadncia
pausada. Entre as muitas questes dialogadas, a que se sobressaiu foi que o Pacto Pela
Vida no funcionava. Reclamou que estava ali por mais de quatro horas esperando um
laudo do Instituto de Criminalstica atestando que se trata de maconha o que M. estava
trazendo consigo. Diz que essa questo atrapalha o andamento do seu ofcio. As
viaturas ficam presas na CEPLANC. Ele afirma que o BO nosso, isto , da PM,
58

mas que os delegados so tendenciosos e tentam descredenciar a atividade da PM (


encontrou a droga na mo dele?; tinha muita gente no local?; cad as
testemunhas?).

Cabo R., bastante exaltado, diria at mesmo indignado, continua esbravejando


que muito mais fcil fazer um TCO e que a polcia civil no sabe o que trabalho de
verdade. A gente que PM sabe quem e o que um bandido, doutor. Como um
menino desses est usando bermuda de bacana seaway e sandlias havaianas?.
Provavelmente devido a algum olhar ou reao meus que tenham transparecido minha
contrariedade a essa fala, ele completou: so indcios, embora paream
lombrosianos27, doutor! Quer dizer o Pacto Pela Vida foi um programa bom, mas a
demora acaba com tudo T no CPP, no mesmo, doutor? A celeridade
princpio do Cdigo de Processo Penal.

Escrivo E. nos chamou no jardim para a 3 Equipe, dando-se incio ao


depoimento de M. que, alm da seaway e da havaiana, nada tinha de valor. Na 3
Equipe, tentei explicar a M., j no cartrio, do meu compromisso com o sigilo das
informaes, mas fui interrompido por um comissrio que estava ao lado do escrivo E.:
fica vontade, senta a! .

Comea o procedimento de ouvida, como costumeiramente se fala em


ambientes policiais. M. afirma, aps a inquirio do escrivo, que achou os 140 big-big
de maconha na linha do trem do Ibura quando veio do bairro de Areias, onde reside o
acusado. Afirma, com certo orgulho, que j caiu trs vezes quando era de menor,
tambm por trfico de drogas. Ele declara que viciado em maconha, mas no usa a
merda do crack, em tom de desprezo a respeito do crack. M. no sabe endereo da
famlia, no possui capacidade cognitiva bem articulada e no sabe seu sobrenome, no
parecendo ter capacidade motora para escrever, como verifiquei da sofrvel e dislexa
assinatura no APF.

O escrivo E. comenta comigo que no saber o nome completo, e, s vezes, nem


saber falar direito, assim como no informar endereo da famlia, muito comum, pois

27
Cesare Lombroso o principal idelogo e mais conhecido da Escola Positivista composta de estudiosos
como Enrico Ferri e Garofalo. Em linhas gerais, o pensamento lombrosiano e dessa Escola fundamenta-se
no paradigma etiolgico que tem preocupao em indagar as causas do comportamento criminoso.
Afirmava-se que a necessidade da proibio de certas condutas se justificava porque se buscava defender
a sociedade do homem perigoso, biologicamente predisposto ao crime.
59

a famlia abandona quem segue essa vida. Ele acredita que M. usa crack, mas como
muitos usurios dessa substncia, M. possui vergonha de se dizer usurio da pedra
maldita (termos do escrivo), diferentemente do que fazem os usurios da maconha.
O de maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da droga que usa.

Aproveito e tento esclarecer a questo do Laudo Preliminar (atestando que se


trata da substncia entorpecente) que o Cabo. R comentou comigo, afirmando que a
demora acaba prejudicando o trabalho da polcia militar. Est no CPP, diz E.
Coincidentemente, o escrivo argumentou pela legalidade processual penal, da mesma
maneira com o fez o Cabo R., que bacharel em direito. Polcia militar e polcia civil
argumentam a respeito da desnecessidade ou da necessidade de laudo pericial nas
drogas, antes de comear o procedimento da polcia judiciria, com base no
ordenamento jurdico. Os militares com base na malsinada lgica dos princpios (no
caso em questo o da celeridade), enquanto os civis com base na necessidade de
realizao de provas periciais na fase do pr-processual. Fico com a polcia civil e sua
explicao.

Volto para o jardim, recuperando um antigo vcio: o de fumar. Escuto l que no


param de chegar casos envolvendo drogas. Umas patricinhas caram na Praa
Oswaldo Cruz, Praa da Maconha, disse um comissrio que j sabia a razo de eu estar
ali. Hoje o dia teu, boy, se tu aguentar o rojo.

Nesse tempo, encontro um policial militar bastante curioso a respeito do meu


estudo. Ele pergunta onde me formei e sobre minha pesquisa de mestrado, esclareo por
quais Universidades passei e sobre a minha pesquisa. Aproveito para conversar sobre a
paralisao da polcia civil, fumando um cigarro US28, oferecido pelo soldado. O agente
da segurana solta: acho certo, eles podem lutar pelos direitos deles, j a gente tem
que ficar calado. Se Deus quiser, um dia muda.

Retorno para a sala da OAB para tentar escrever essas muitas informaes.
Quando saio da sala da OAB, uma senhora confundindo-me com algum funcionrio da
CEPLANC, questiona-me se demora muito o BO do meu irmo, maconheiro safado
que chegou da Caxang (outro TCO).

28
O cigarro US parece custar em torno de R$ 3,50 (trs reais e cinquenta centavos) bastante forte, no
vendido nos postos de gasolina, mas nas quitandas de rua. Dizem ser produto advindo do Paraguai. Muito
provavelmente eu no fumaria um cigarro como esse em outra oportunidade, mas foi a forma de interagir
e aproximar-me de meu interlocutor.
60

O pai do rapaz (Mi 29, como descobri depois) chegou junto da filha e informou-
me que tinha dado R$ 20,00 para ele ir na casa da boyzinha, mas ele foi comprar
essa merda!. O rapaz toma remdio controlado e, por enquanto, ainda tem famlia,
como diz o prprio pai, mas se continuar nessa vida... (entorta a boca a irm de Mi.).
Ele foi apreendido perto da UPA da Caxang com um big-big de maconha.

Saio para me alimentar na parte de fora da CEPLANC e a irm de Mi.


novamente chega perto de mim, mesmo depois de eu ter dito que sou pesquisador e no
policial, e pergunta se pode comprar algo para ele comer. O dono do comrcio de
alimentos e um PM lhe respondem quase que no mesmo momento: depende dos
permanentes30 que esto com ele.

J ao lado das Equipes, esperando um dos casos para acompanhar, um PM fala


alto para o outro que no vale a pena, a gente espera muito pra fazer um flagrante,
passa da hora e no tem retorno!. Reclamam da demora dos laudos do IC. Aproximo-
me e tento conversar. No demora e um forte desabafo nesse momento lanado: ou
legaliza essa porra ou trata tudo como traficante e bandido; que comam 30 anos de
cadeia; o Estado decida!. Tento perguntar se ele acha a priso uma medida vlida at
para os usurios e escuto a seguinte frase: o usurio pior que alimenta o trfico.
Esse PM, descobri depois, foi o responsvel pela conduo das meninas de classe mdia
alta que vieram da Praa Oswaldo Cruz. Ele tambm comentou que j levou tiro de
traficante.

Outro caso de usurio aparece enquanto aguardo Mi. ou as patricinhas da


Oswaldo Cruz. Apresento-me ao delegado Dr. G. que, de pronto, autoriza-me a ficar
junto do escrivo F. que alerta o delegado sobre a paralisao em curso nesta data. Dr.
G. no sabe a orientao do Sindicato, mas acredita que o TCO, como veio da PM, tem
que ser feito (a orientao do sindicato foi de que s confeccionassem o termo de
responsabilidade, isto , comparecimento ao Juizado Criminal). Nesse caso o TCO foi

29
Mi para diferenciar de M., o primeiro caso do dia M. Diferena meramente ilustrativa para no
confundir o leitor, pois M. um traficante do tipo comum que lota as delegacias do Brasil, enquanto Mi
constitua o perfil do usurio de classe mdia. Sobre usurios e traficantes falaremos melhor no segundo
captulo
30
Permanente o agente da polcia militar que, com outros dois colegas, fica esperando pela realizao
do auto de priso em flagrante e termo circunstanciado de ocorrncia na sala da permanncia e
carceragem na CEPLANC. Esses policiais militares figuram oficialmente como condutor e como
testemunha. Todos julgam primeiramente a condio de usurio e traficante dos sujeitos que
apreendem pelo Recife, e se a polcia civil concordar com eles, depois de algum tempo, esses policiais
estaro todos na presena dos poderosos juzes na condio de testemunha do fato criminoso.
61

realizado integralmente. Esse um caso de menos de um baseado de maconha de um


rapaz vindo da comunidade do Coque. No segundo captulo analiso essa situao no
comumente advertida pela teoria crtica como a Criminologia da Reao Social.

Escrivo F. sai da sala e pergunta a ocupao do autuado: fao bico. O


escrivo esclarece-me que o TCO no tem ouvida de PM nem do autuado e que TCO de
maconha uma besteira. TCO mais de maconha, eu nunca vi um de crack ele fala
devido a um questionamento meu que retomo durante os outros dois captulos. O rapaz
do Coque, chamado L., entra na sala para assinar a documentao e F. diz: fume
antes de sair de casa, rapaz. Tu fuma s isso mesmo? , pergunta F. Fumo o
crack, mas s quando bebo, responde o autuado. F. termina com: Escolhe uma
droga s, rapaz, ou o lcool que pode!. L. diz que no vai dar mais vacilo. Procuro
tomar nota da durao do procedimento (entrada na CEPLANC: 15h: 10min; entrega
da ocorrncia: 20h: 30min e sada do autuado: 21h: 18min). Realmente demora!

Na mesma 3 equipe, sob direo de Dr. G, junto com o escrivo F. e outro


senhor, agente ou comissrio de polcia, no consegui saber ao certo sua funo,
apresentam-se as meninas da Oswaldo Cruz. S chegam duas, descubro que a terceira
era adolescente e o PM entregou para a me aps um esporro. Na CEPLANC no se
realizam procedimentos de adolescente em conflito com a lei, isso ocorre no Centro
Integrado da Criana e do Adolescente (CICA) e na Delegacia de Polcia da Criana e
do Adolescente (DPCA), onde outros pesquisadores do Grupo Asa Branca de
Criminologia executam seus trabalhos de mestrado e doutorado.

As patricinhas so estudantes universitrias, uma de 18 anos e outra de 24,


respectivamente A. e G. (de dupla nacionalidade, brasileira e italiana) esto tranquilas,
mas cansadas da longa espera. Elas so lindas, esteticamente falando, e esclarecidas,
pois sabem que hoje est ocorrendo a Operao Saturao31. Elas deram o azar de
nesse dia tentarem fumar um na Praa Oswaldo Cruz, muito visada, segundo o
escrivo.

O escrivo F. d uma risada com o conhecimento das meninas. E comea a falar.


Isso uma maneira de obrigar a gente da polcia civil a trabalhar. O Tribunal de
Justia de Pernambuco (TJPE) declarou ilegal a paralisao no mesmo dia. A gente

31
A PM vai toda pra rua catando todo tipo de ocorrncia e sem fazer vista grossa para crimes de
pequena monta, como o fato de pessoas de classe mdia fumarem um baseado em praa pblica. Essa
operao revela o uso poltico explcito da polcia para calar outra polcia,
62

tem que ficar calado e, para isso, eles jogam a polcia militar contra a gente,
Cristhovo. Ele fala meu nome e mira nos meus olhos.

G. comenta com o escrivo F. A vida d voltas, agora t eu aqui!. As duas s


assinam o termo de responsabilidade de comparecimento, depois que os escrives
descobrem que a orientao do Sindicato (SINPOL) essa. No horrio em que me
encontro na CEPLANC acompanho o regime de Programa de Jornada Extra de
Segurana (PJES) e conheo outro delegado, Dr. S.

Quando o procedimento simplificado acontece, as meninas parecem ficar um


pouco preocupadas com a impossibilidade de fazer um concurso pblico ou ficarem
com a ficha suja, no dizer tipicamente policial. O escrivo F., que tem formao em
Administrao, no sabe explicar ao certo o procedimento dos Juizados Especiais
Criminais, institudos pela Lei N 9.099/95. Explico, em linguagem simplificada, sobre
a negociao, atravs do Ministrio Pblico, a chamada transao penal e sou
enftico para tranquiliz-las de que essa medida no significa condenao e que a ficha
delas continuaria limpa 32 mesmo depois que esse ato ocorrer no Juizado Criminal.

Dr. A., para quem falei com profundidade sobre meu estudo33, v-me pelo
corredor e diz que a delegada C. est no Planto com um caso fronteirio34 que podia
me interessar. V logo pra l!. Segui sem pensar duas vezes.

Seis pedras de crack e dois homens aparentando idade entre 40 e 5035 anos,
respectivamente C. e J., esto algemados na porta da Equipe de Planto quando adentro
no cartrio. Dra. M. est com Dra. C., quando chego na Equipe que funciona em regime

32
Uma semana depois de acompanhar o caso das estudantes universitrias, no Centro de Filosofia e
Cincias Humanas (CFCH) da UFPE, numa sexta-feira, depois das 18 h, aps uma aula de Sociologia do
Crime no Programa de Ps-Graduao em Sociologia (PPGS), encontrei-as. Elas seguiam para o laguinho
da UFPE pra dar aquela bola. Lindas, divertidas e irreverentes, disseram-me que, agora, no iam mais
dar vacilo nas ruas ou nas praas. Descobri, a partir da troca de contatos, que o TCO delas corre no
Juizado Criminal da Universidade Catlica de Pernambuco.
33
Falei do que estudava desde a graduao, os cdigos ideolgicos, second codes, que seriam os
esteretipos e caractersticas negativas no expressamente presentes em documentos oficiais, mas que
orientariam o julgador. Eu disse a Dr. A que os policiais militares, na minha avaliao, eram os primeiros
juzes como falava no projeto de dissertao. O projeto, como j disse, buscava o critrio definidor e
diferenciador entre usurios e traficantes.
34
Por fronteirio entendemos a figura que, no universo dos adictos, tambm comercializa a droga que usa
ou outras, em diferentes oportunidades, para poder gozar do prazer de sua substncia ilcita. Ele usurio-
traficante, as duas coisas, tudo junto e misturado.
35
Tive acesso aos dados da INFOPOL quando se procuravam informaes sobre os dois usurios
considerados traficantes. Eles so nascidos em 1977 e 1969, portanto, 38 anos e 46 anos. Um breve
desabafo: o crack envelhece e desfigura!
63

de Planto. Dra. M apresenta-me a Dra. C. que me diz que est na dvida nesse caso se
eles, os atuados em flagrante, so usurios ou traficantes.

Nem sempre que chegam dizendo que se trata de trfico de drogas eu


considero como tal. O dilogo com a delegada comea com essa frase. Acredito que
pela pouca quantidade de pedras (apenas seis) e tambm pela aparncia deteriorada pelo
crack dos indivduos o dilema de mandar dois usurios, no pior estgio da drogadio,
para o crcere tomou conta da delegada. A delegada C. tentava se aconselhar com a
delegada M.

C., como delegada, tenta buscar dos PMs algum sinal de que os homens so
usurios. Sem sucesso, e com a afirmao enrgica do trfico, passa busca dos
antecedentes dos sujeitos. Os dois j tm passagem pelo artigo 33 da Lei 11.343/2006,
ali mesmo pela CEPLANC. Ela discretamente olha para o escrivo e d a ordem para
iniciar o flagrante. Ela chega depois a comentar s comigo a preocupao com a questo
das gratificaes do Pacto Pela Vida por apreenso de crack, mas que os PMs tm f de
ofcio e que ela precisa respeitar as prerrogativas desses policiais.

O escrivo de Dra. C reconhece-me como advogado do dia em que estive na


CEPLANC por conta dos militantes presos na reintegrao de posse do Cais Jos
Estelita (narrada na introduo). Com um leve desconforto, digo que foi daquele dia que
tirei a ideia da pesquisa, mas que estou agora como estudioso e que fico na sala da
OAB, por sugesto do Delegado Gestor, a quem garanti que enquanto ali estivesse no
exerceria nenhuma atividade, remunerada ou no, como advogado.

Um comissrio sai da sala da delegada para o cartrio explicando aos autuados


sobre o direito constitucional ao silncio36 e que eles no precisam falar ali, por
orientao da prpria Dra. C.. Eles querem prestar declaraes, mas s sero ouvidos
aps o retorno da delegada que vai jantar, j que passaria a madrugada toda ali. Os
autuados so conduzidos carceragem e eu consigo cpia da investigao de
antecedentes em mos e o auto de priso em flagrante completo acabar assim que a
delegada retornar. O PM quando percebe que eu solicitei documentos, requer

36
Previsto no art. 5, inciso LXIII: o preso ser informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistncia da famlia e de advogado. Essa uma forma de
realizar um procedimento mais sucinto e clere, mas poucos, ou quase nenhum autuado, aceitam. Eles so
calados diariamente, eles querem falar, embora para eles o silncio seja realmente a melhor sada
processualmente falando.
64

igualmente, para o pagamento de bnus do Pacto Pela Vida, nas palavras do prprio
policial militar.

Saio da CEPLANC depois da 00 h, desistindo de acompanhar outros


procedimentos envolvendo acusaes de traficantes e de usurios. Aquela foi uma
madrugada de confuso, de cansao e de muitos conflitos sobre o que pensar a respeito
de tudo que vi. As situaes percebidas no se encaixavam em teorias prt--porter e o
acintoso uso poltico da polcia, sobretudo a militar, apareceu no meu campo de
pesquisa. Esse foi um dia atpico, mas que muito revela das tenses polticas que
envolvem a polcia civil, militar e os interesses governamentais.

1.5.2 Diga a seu pai que voc deu droga ao outro; dar, doar j trfico; t na lei

Cheguei no dia 14 de agosto por volta das 22 h na Central de Plantes da


Capital. Era a primeira noite, que se prolongaria pela madrugada, em que tive coragem
de l estar para executar meu estudo. no escuro e no silncio das madrugadas que
melhor se compreende a polcia e sua clientela.

Nessa oportunidade, conheci L., advogada, com quem sempre conversaria dali
para frente em outras oportunidades. Conheci a advogada numa barraca do comrcio
informal, fora da CEPLANC, tomando caf para aguentar ficar acordado e atento a tudo
que se apresentasse como novidade durante aquele novo horrio de pesquisa.

Procuro sondar com a advogada L. como se fecham defesas37 na CEPLANC, j


que as pessoas que chegam ali advm das classes populares de nossa Regio
Metropolitana. Ela conta-me que: advocacia know-how. Ela, obviamente,
reconhece o notrio fato de que a clientela dali composta pelos habitus da Defensoria
Pblica. Ela e o vendedor do comrcio informal, naquele momento, comeam a falar da
CEPLANC: Falta gua, papel higinico. Continuam comentando do caos da
localidade e arrematam: parece que a coisa feita para no funcionar. O
comerciante comenta sobre o bom trabalho do Delegado Gestor e de seu empenho
quando da abertura da localidade, mas no fim tudo poltica, encerra o trabalhador
informal a nossa conversa com essa mxima.

37
Fechar defesas uma expresso que se refere ao acordo entre advogados e seus constituintes a respeito
de valores para realizao de defesas criminais, que comeam algumas vezes na Central.
65

Enquanto anoto essas observaes na sala da OAB, j dentro da CEPLANC, fico


sabendo que um caso de trfico ser distribudo para a 4 Equipe. Escuto, quando saio
da sala dos advogados, um guarda municipal falar em um caso de drogas registrado
pelas cmeras do Marco Zero no Recife Antigo.

Dirijo-me 1 Equipe, mudando de planos de acompanhar o caso da 4 Equipe,


para observar esse caso em que, de maneira incomum, os condutores so guardas
municipais38 e no a PM, como de costume. Chego ao cartrio da 1 Equipe e ouo um
rapaz falando das sedas e dos big-big. Fudeu pra mim!, resmunga o rapaz que est
na sala algemado. O rapaz fala da filmagem que a guarda municipal trouxe como prova
do crime. Ele repete que usurio procurando defender-se de uma possvel acusao de
trfico. Mostra ao escrivo as bagas 39 na carteira de cigarros.

Outro rapaz envolvido no caso entra no recinto. Ele logo se apressa em dizer que
apenas deu a seda para o rapaz algemado. O escrivo mostra a filmagem no
computador. Isso entrega de seda, aonde, meu filho?. sim, uma colomy40.
Fui inventar de fumar, hoje, maldita hora!. Libera ele, diz o delegado S. Se
no mudar de vida, a gente te coloca na cadeia que a gente da tua rea. O delegado e
o escrivo esto trabalhando em regime de PJES, mas exercem suas funes
normalmente numa delegacia do bairro na mesma rea em que residem os atuados.

O outro rapaz que estava com 6 big-big de maconha e bagas na carteira de


cigarros vai ser autuado por trfico de drogas. Ele usava um chapu com a conhecida
expresso 4:2041. Essa alegoria simblica chamou-me muita ateno na pesquisa de

38
Quando ouvi a indicao do guarda civil da Prefeitura da Cidade do Recife, pensei, em princpio, que
seria ilegal essa modalidade de priso. No turbilho de sentimentos e acontecimentos no podia refletir,
mas somente tomar nota dos fatos. Os fatos valem muito mais que a subsuno normativa. Acredito que
a justificativa esteja no art. 301 do Cdigo de Processo Penal: qualquer do povo poder e as autoridades
policiais e seus agentes devero prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito (flagrante
obrigatrio), j outra pessoa do povo, adolescente inclusive ou at mesmo pessoa que no esteja no pleno
gozo dos seus direitos polticos pode realizar a priso em flagrante (flagrante facultativo). Poderamos
aqui elucubrar sobre o velho pndulo entre o ser (operacionalizao) e o dever ser (programao), to
conhecido pela teoria geral do direito, mas no me delongo por essa anlise. Entendo essa priso nos
conformes formalmente, j que se qualquer pessoa do povo pode realizar priso, a guarda municipal
tambm o pode.
39
Por baga entende-se o resto do cigarro de maconha. A baga , portanto, a sobra do outro baseado, na
linguagem especfica do universo do uso da maconha, e seria prova de que o rapaz usurio habitual da
cannabis.
40
Colomy uma modalidade de seda, da mais barata possvel, para confeco de cigarros artesanais e de
cigarros de maconha.
41
4:20 (quatro e vinte) uma referncia ao uso da cannabis. Essa uma histria de origem anglo-sax
bastante difundida. A verso mais conhecida que o formato 4:20 (16h20) indicava o momento em que
nos anos 1970, um grupo de amigos, estudantes de um determinado colgio na Califrnia, Estados
66

campo (Peo que o leitor observe essa indispensvel nota de rodap a respeito dos
sentidos histricos e culturais da expresso 4:20).

Na outra sala esto pai e filho, o dito traficante L., numa conversa informal com
o delegado S. Desse dilogo, escutei a frase que marca o ttulo deste relato. Voc
viciado e traficante, diz o delegado. O pai do rapaz parece estar resignado com a
situao, embora tente argumentar com o Delegado S. que o rapaz estava no CAPS-
AD42. Diga a seu pai que voc deu droga ao outro, dar, doar j trfico, t na
lei. Assim termina o primeiro caso que acompanhei nesta visita CEPLANC.

Volto para a 4 Equipe, que seria o lugar que primeiro me dirigiria naquela
madrugada. Chego na 4 Equipe, aps uma pausa para um caf, e logo escuto uma fala
do delegado A.: so 18 verbos que podem indicar a conduta do trfico de drogas;
transportar um deles.

Trata-se de uma abordagem advinda do Municpio de So Loureno da Mata de


0,5 kg de maconha (quantidade elevada para o que costuma chegar CEPLANC). Esta
ocorrncia chegou na CEPLANC s 18 h e j perto das 00 h. O motorista da moto
responder por associao ao trfico (artigo 35) e o outro por trfico de drogas (artigo
33). O dito traficante fecha e abre os olhos, visivelmente cada vez mais aflito.

Acompanho outro flagrante na 2 Equipe envolvendo trs autuados no Campo do


Bueiro, rea pobre e favelizada da Torre, um bairro de classe mdia alta. Deixo aqui de
dar mais detalhes sobre o caso, pois ele envolve o nosso relato a seguir sobre a meta de
pontos debelados, e limitaremos as narrativas em face da limitao de espao. Saio da
CEPLANC s 02 horas da manh.

1.5.3 Nunca tive o prazer de apreender cocana / 1.5.4 Bom trabalho equipe, no
esquecer de indicar no BO da gente PONTO DEBELADO

Unidos, habitualmente se reunia para fumar . Era um cdigo usado entre eles para falar sobre o encontro
sem despertar suspeitas. Com o passar do tempo, o tal cdigo transformou-se numa referncia mundial na
cultura de luta pela legalizao da planta. Em muitos pases, o 20 de abril (4/20 na expresso anglo-sax)
celebrado pelos apreciadores da erva. Esse 20 de abril, por exemplo, a data escolhida para as
manifestaes sobre a legalizao. No Brasil, as Marchas da Maconha costumam sair s 16:20 como a
tradicional Marcha da Maconha de So Paulo e tambm a que ocorre em Recife.
42
O Centro de Atendimento Psicossocial para lcool e outras Drogas (CAPS AD) rgo da rede de
sade pblica que atua no acolhimento e tratamento de pessoas envolvidas com problemas de drogadio.
67

Cheguei dia 01 de julho por volta das 14 h na CEPLANC. Logo que chego,
descubro que um caso de auto de priso em flagrante por drogas est em curso na 3
Equipe. O escrivo D, no sabendo quem eu sou, me pergunta se eu sou o escrivo que
vai rend-lo. Explico que sou pesquisador, apresento documentos.

O caso de R., um jovem adulto que veio de Escada comprar maconha no


Recife. Eu sou um aviciado. Eu vim comprar aqui porque mais barato.
Adianta o autuado em sua defesa em tom de desespero s frases anteriores. Tu usa
crack, boy? Pergunta o escrivo D. Oxe, e eu l gosto dessas coisas?!.

O escrivo D. comenta comigo sobre o perodo de reinvindicaes que a polcia


civil est vivenciando. Fala dos PJES criados43 pelo Pacto pela Vida, conta tambm de
sua transferncia de Olinda para CEPLANC e diz que em breve far um concurso para o
Tribunal de Justia, que o trabalho na polcia massacrante (fala bastante recorrente por
parte dos servidores da segurana pblica).

O escrivo nota que o celular do autuado no est com chip, e explica para mim,
em tom bastante didtico, que esse fato pode sinalizar que esse aparelho de telefone
possa ter sido penhorado por algum usurio que comprava do autuado. Peo para
observar o B.O. da PM e ao final est escrito ponto debelado.

Aproveito a oportunidade para perguntar ao sargento sobre que tipo de drogas


ele cotidianamente apreende. Sempre crack e maconha. Insisto e pergunto sobre a
cocana. Nunca tive o prazer de apreender cocana a resposta com todas as letras e
estranhamentos que essa colocao possa trazer. Ele tambm esclarece que os PMs do
19 Batalho, cuja atuao no bairro de Boa Viagem, ainda conseguem apreender
cocana quando os aviezinhos esto indo fazer entrega em moto ou carro, mas que
raro. O sargento fala do Presdio Anbal Bruno, das revistas que faz por l, da devassa
de quebrar tudo, mas que mesmo depois de 30 anos de polcia no entende o porqu de
um jovem arriscar-se no mundo das drogas.

Esse sargento fala da experincia de policiamento comunitrio que fracassou


aqui em Pernambuco por disputas polticas. O sargento afirma que a polcia comunitria

43
Escrivo D. entrou na Polcia Civil depois de 2007, provavelmente, por isso, deu-me informao
equivocada. Como j expliquei, os PJES foram criados pelo Decreto 21.858 de 25 de novembro de 1999
pelo ento governador Jarbas Vasconcelos e foram incorporados pelo Pacto Pela Vida, no governo de
Eduardo Campos.
68

uma maneira de tornar a populao mais prxima da polcia e resolver questes sem
violncia/priso. Ele acha que o problema das drogas poderia ser resolvido por esse
caminho.

Pergunto aos policias militares sobre o que significa esses tais pontos
debelados. Um soldado, presente na apreenso, esclarece que essa expresso para
contagem de pontos para computao de folgas. O sargento mostra-me inclusive o
pedido de seu comandante num grupo de whatsap para no haver esquecimento por
parte da equipe em indicar que ali se trata de ponto debelado e a quantidade de pontos.
Bom trabalho, equipe, no esquecer de indicar no BO da gente PONTO
DEBELADO . Essa frase representa exatamente o que li no grupo de whatsap por
gentileza do sargento.

Continuo insistindo para entender o que ponto debelado. Coloco a pergunta:


uma boca de fumo derrubada? Mais ou menos, meu filho!. Dou-me por satisfeito e
sigo para outro procedimento.

Na Equipe do Planto, diante de outro caso, pergunto sobre o que seriam esses
pontos debelados. Um incentivo ao forjado, fala a escriv A. Ela esclarece que essas
metas e o que elas trazem de recompensa para o policial militar dependem de cada
Batalho, mas que h interferncia do governo nesse processo. Geralmente, nas metas,
um TCO de drogas vale menos que APF de drogas, o exemplo que ela me concede
para que eu entenda a dinmica do Pacto Pela Vida na criminalizao das drogas.

Estou diante de um caso de conflito entre a polcia militar e a civil. A PM


entende que trfico, mas ser realizado um T.C.O. O rapaz J. vem da favela do
DETRAN, ele esteve algemado o dia todo como ficam os considerados como
traficantes, e s no final do dia soube que no cairia e que seria considerado usurio.

Comea a qualificao. Profisso, pergunta a escriv. Vendedor, diz a


policial em tom irnico. Dessa tu se livrou, diz a escriv, mas se tu num parar de
vender tu vai cair de novo.

A policial militar, quando a escriv sai, desabafa comigo. , meu filho, a


gente depende da boa vontade da Civil pra fazer um flagrante, porque isso a um caso
de flagrante, sim senhor!.
69

J. continua, mesmo depois de ter assinado alguns documentos, ainda sentado no


cartrio da Equipe esperando a ordem para ser liberado. Pergunto a A. porque ele ainda
no foi liberado e ela diz-me que ele no pode liber-lo antes da PM sair, demais.
Um comissrio pergunta para J. quando ele volta para a CEPLANC. Um outro
comissrio entra na sala e pergunta se a me do autuado que est l fora. Minha
Tia, completa J. O comissrio diz que informou tia dele que ele seria autuado por
trfico e no posse para uso pessoal. Voc s est prevendo o que vai acontecer, diz
a escriv A. Outra pessoa dirige-se a J. e fala da chance que ele teve, mas que no
ocorrer uma segunda vez.

Tento conversar com A. sobre a situao observada. O problema no


encontrar; provar. A escriv A. continua falando que a PM no entende que tem que
haver provas para embasar o procedimento, sobretudo um auto de priso em flagrante.
Segundo a escriv, a PM precipita-se muito nas apreenses, no trazendo junto com o
acusado prova do crime. Que ele traficante, isso , eu sei, mas no pode s apontar
o dedo, tem que provar.

1.5.5 Sai no contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma
cair

dia 28 de julho, mais uma tarde de pesquisa na CEPLANC. Comeo as


atividades por volta das 15 h. Um TCO por porte/uso de drogas est em curso com
ofcio para realizao de Laudo Preliminar de Substncia Entorpecente j encaminhado
ao Instituto de Criminalstica. Acompanhei L. do administrativo at o IC, maconha
diferente dos big-big que sempre por l esto. A maconha dos usurios tpicos
geralmente de melhor qualidade que a dos traficantes tpicos 44.

Os plantes de Olinda e Camaragibe foram transferidos para a CEPLANC, e,


agora, flagrantes de quase toda Regio Metropolitana do Recife esto passando por
aqui. O fluxo de pessoas assustadoramente maior e os policiais civis andam
visivelmente mais tensos e aborrecidos. Alguns gritos e caras cansadas so sempre
frequentes.

44
Sobre as categorias usurio tpico e traficante tpico, explicaremos no captulo seguinte.
70

Procuro dialogar com um policial militar sobre a histria do bnus crack e ele
me diz que antes mesmo da Lei Estadual N 15.458 do ano de 2015 eles j recebiam
essa gratificao por apreenso de crack, mas no sabe me informar a legislao anterior
que tratava da questo. O dilogo continua: hoje, t mais difcil receber a
gratificao. Ele tambm me explica que a gratificao (tanto por apreenso de arma
como de substncia conhecida como crack) sai descriminada no contracheque. Sai no
contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma cair

O soldado continua explicando que no algo mensal, mas de 6 em 6 meses


costuma aparecer no seu contracheque. Ele diz que de 21 mil policiais militares na rua
apenas uns 2 mil recebem benefcios. Veja s, amigo, num tem nem farda pra ir pra
rua que dir pagar bnus crack. O buraco da precarizao parece ser mais em baixo.

Foi a primeira vez que fui tratado no por doutor ou boy, a palavra amiga
teve um peso para mim, que sempre enxerguei a polcia como inimiga. Ele me olhou
nos olhos e me disse que ningum nunca quis saber do que ele faz todo dia pela rua.
Ele, como muitos policiais militares, estudante de direito e disse que quer melhorar
de vida, quem sabe ser algum estudioso, como voc, eu, no caso. Ele aperta minha mo
e a conversa encerra-se.

Enfim, aps essas valiosas informaes, adentro na 3 Equipe, para acompanhar


um TCO. Tento dialogar com o escrivo que no se mostra nada contente com minha
presena! O delegado autorizou, mas quem conduziu aquele procedimento foi, na
verdade, aquele escrivo. Consultei quem manda, mas no quem, de fato, faz o trabalho
que me interessava. Os conselhos dos policiais militares para o autuado seguiram ao
longo do procedimento. 21 anos, no alfabetizado e com um irmo que estuda para ser
polcia. A famlia de G. est na CEPLANC. Me domstica, o autuado trabalha como
auxiliar de uma Padaria na Zona Norte do Recife.

Eu no sei por que proibiram essa porra da maconha!. O comissrio solta


essa frase e uma relao descontrada entre civis, militares e o usurio d a tnica desse
procedimento bem atpico. O procedimento encerrado; consigo um resumo do caso,
mas no a ntegra do documento como de costume.

Encontro o mesmo soldado que me chamou de amigo no jardim, peo um


cigarro para tentar conversar, um hollywood. Tu fuma do hollybomba?. Respondo
que sim e a conversa comea com o cigarro. Peo que ele me fale da sua impresso
71

sobre esse bnus crack, se ele acha bom ou ruim e como isso interfere no trabalho da
polcia. Por meta de quantidade de auto de priso em flagrante tambm se ganha,
mas varia muito de Batalho para Batalho. No meu ver essa forma individualista
de pagar s beneficiando uma equipe no ajuda a ter cooperao e pode incentivar
a corrupo!

Continua exemplificando: se eu souber de uma notcia de onde t tendo crack


e tiver de folga, eu vou bem indicar a outra equipe?. O soldado tambm fala na
irregularidade de recebimento de bnus crack e depois fala da competio e rivalidade,
insinuando a existncia de flagrantes plantados45. Alis, os prximos relatos trataro
melhor dessa questo.

1.5.6 Depois da custdia os policiais militares to mais cautelosos com determinadas


prticas que voc conhece

dia 04 de setembro, a CEPLANC est tranquila por volta das 14 horas. Vejo
na sala da permanncia que um caso de usurio est na 3 Equipe. Dirijo-me para l,
mas o agente que j me conhece se apressa em dizer: O TCO acabou de acabar.
Sigo para o jardim para tentar perceber qualquer movimentao.

J no jardim fumando e observando, como de costume, e, pela primeira vez, tive


a oportunidade de conversar com T., o rapaz que vive pela CEPLANC. T. mora no carro
abandonado que fica perto do Instituto de Criminalstica.

T. pergunta-me o porqu de eu ser o nico advogado que vai ali, mas nunca ter
entregado tambm carto para ele indicar aos criente. Explico que no estou ali para
advogar, mas pra fazer uma pesquisa pra ser professor. Falei da maneira mais simples
pra que ele entendesse. Ele conta-me que toma banho na torneira perto do IC. Ele relata
que vive da ajuda da polcia, lava os carros dos delegados e outros policiais. T. j foi
preso por trfico de drogas e porte de armas. Ele diz que s vendia, mas no usava a
pedra e que isso coisa de otrio.

Sigo novamente para a 3 Equipe onde um auto de priso em flagrante por


trfico de drogas foi distribudo. Na Central s um delegado est presente. Os policiais

45
Sobre plantados entende-se como flagrantes forjados que analisaremos de maneira adequada
oportunamente. Esses flagrantes forjados, como deve desconfiar o leitor, integram uma cultura policial de
metas impostas por programas de segurana pblica como o Pacto Pela Vida em Pernambuco.
72

civis que aqui se encontram dizem que no podem comear esse APF, j que cada
delegado tem sua cabea, eles j aceitaram a proposta do governo, a gente no!46.

O autuado afirma que foi um forjado e conversa comigo perguntando se deve


falar que foi um armado quando entende, de alguma forma, o fato de eu ser tambm
advogado. Tu advogado do privado ou do pblico?. Explico que fao mestrado e
que no advogo na CEPLANC. O autuado pede a um agente da polcia civil para sentar.
O olhar atravessado e a fala spera: no cho!. O rapaz permanece escorado do
mesmo lado que estou da parede e olha-me, no momento da fala do agente, e balana a
cabea.

Num vou assumir nada, vou falar tudo perante o juiz amanh. F. fala essa
frase e mais uma vez mira-me e eu tento no esboar reaes, afinal no estava ali como
advogado, embora o sentimento de defesa pulsasse dentro de mim naquele momento.
Ele bastante simptico e chama sempre os policias por senhor.

Vou tomar um caf e encontro l a advogada L. Converso sobre o caso que


acompanhei de L. e que estou espera de delegado para realizao do APF. No meio
do caf com a advogada L. escuto uma conversa que me deixa curioso. No Batalho
XX s tem bandido. repasse direto47. Presumo que a conversa seja uma referncia
ao trfico de drogas como atividade policial.

A advogada L. continua a conversar comigo sem parecer ter percebido a sria


informao anterior. Ela conta que os clientes que consegue na CEPLANC so
normalmente pessoas autuadas por trfico de drogas. Se no tm dinheiro, quem o
chefe tem. Veja s, os casos que chegam aqui so das classes c e d, ento voc
no pode cobrar dos furtos, o caso que possvel o trfico mesmo.

Nesse tempo de conversa, chega um txi do qual desce uma senhora com uma
criana do colo bastante agitada e nervosa. Descubro, logo mais, que a famlia de F., o
autuado que conheci hoje. Dr. A. chega CEPLANC por volta das 18 h sempre
tranquilo e sorridente e, logo quando me v, cumprimenta-me perguntando dos meus
estudos. Dr. A assume o caso de F. na ausncia de outro delegado presente na Central.

46
Com a entrega dos PJES, por 240 delegados, como relatei, o governo teve que negociar com a categoria
dos delegados dando melhorias salarias e, segundo soube, com a renncia por parte deles de precatrios e
outros direitos garantidos por meio de acordo mediado pela Procuradoria Geral do Estado, a PGE.
47
Falam dois policiais civis criticando um batalho da polcia militar que atua no Recife.
73

F., ao ser ouvido, confirma a mesma verso que tinha me falado e pede,
inclusive, que seu depoimento seja sem a presena dos policiais militares. Fecha-se a
porta e ele comea a falar em tom baixo. O escrivo fala da audincia de custdia que
avalia a legalidade do flagrante e do direito constitucional ao silncio. Eu quero falar
porque o delegado tem que saber o que rolou e eu amanh digo o mesmo ao juiz.

Veje s, eu tivesse com 15 big, eu ainda vou levar pra outro canto pra
botarem mais coisa em nimim? Eu sou pobre, mas no sou burro!. Se eu fosse
traficante e me pegassem l nos Coelhos, por que eu ainda levava a polcia pra minha
casa?. O escrivo olha para o autuado e pergunta do que foi a queda anterior que ele
teve. Furto, diz o autuado. , se no fosse essa tua queda eu tinha quase certeza
que tu seria liberado amanh.

Pergunto a um policial militar se esse foi um caso de ponto debelado. Ele diz
que sim e vai ter folga remunerada, graas a Deus. A gente no quer saber de ser
destaque, quer mesmo a folga, t na rua no fcil.

Hoje quebrei certo protocolo e desejei sorte ao interlocutor autuado enquanto ele
se aproximou de mim para reforar a histria do forjado. Fico comovido com a cena de
encontro do autuado com seu filho pequeno e com a esposa. Ele nesse momento
sustenta a verso at agora apresentada junto de Dr. A.

Checo o BO da PM (documento informativo de uma nica folha) fala-se em 315


big-big de maconha, sendo tambm a histria que consta no APF, que consigo cpia
antes de encerrar minhas atividades por ali.

Hoje, acreditei que esse flagrante forjado. Senti vontade de estar na defesa do
autuado na audincia de custdia, que ocorreu num sbado. O autuado dormiu na
carceragem da CEPLANC e de l seguiu para o Frum do Recife, pelo que pude me
informar, por volta das 13 h. Procuro at o momento de trmino desta pesquisa, afastar
o eu advogado.

Tento conversar com o escrivo A. sobre o que aconteceu com F. Nunca d


pra saber quem t dizendo a verdade, num isso?. Ele d um sorriso de canto de boca
como quem dissesse que entende o que estou pensando/refletindo. Ele diz que j
trabalhou no DENARC e j viu outros casos convincentes como esse. Reitera o que
74

disse e afirma: Depois das audincias de custdia, os policiais militares esto mais
cautelosos com determinadas prticas que voc conhece (flagrante forjado).

Estou na 15 visita na CEPLANC e sigo pelo ms de setembro quando pretendi e


decidi concluir a pesquisa de campo pelos casos que j comeavam a se repetir.

1.5.7 Segurana Pblica se faz com responsabilidade, salrio digno pros agentes da
segurana, mas existem outros interesses financeiros em jogo, mas comigo no colam
certas coisas

18 de Setembro, uma sexta-feira. Resolvi chegar j no fim da tarde para ficar


pela noite, sem adentrar pela madrugada. Estava cansado e tentando mudar os horrios
das visitas para ver se alguma modificao nos casos, que j se repetiam, acontecia.
Chego por volta das 16 h na CEPLANC.

Na sala da OAB, falo com a advogada L., que me diz que a semana est muito
agitada. Ela trabalha no seu computador porttil num pedido de liberdade de um caso
que conseguiu na Central. Conversamos um pouco sobre processo penal e sobre a
questo das audincias de custdia, que tive oportunidade de ver no Frum Criminal da
Barra Funda, o maior da Amrica Latina, pertencente ao Tribunal de Justia de So
Paulo. Ela est ansiosa por fazer uma audincia dessas.

Ao dirigir-me sala da distribuio, verifiquei que dois casos de trfico estavam


em curso na Central, um na 1 Equipe e outro na 3 Equipe. Sigo em direo 1
Equipe, onde esto trabalhando uma nova delegada e J. que num dia no refeitrio
contou-me que est sem sentir gosto das comidas e ouvir direito, devido a um fungo
adquirido quando dormiu num colcho da CEPLANC.

J., logo quando me v, diz que vai falar com Dra. A. Dra. A no permitiu que eu
acompanhasse o procedimento, dizendo a J. que era necessria uma autorizao por
escrito do Delgado Gestor. Especulo, depois de descobrir a gravidade do caso em
questo, que essa negativa talvez tenha ocorrido por tratar-se de um caso muito
delicado.

No jardim, depois que saio da 1 Equipe, encontro L. do administrativo, que me


aconselha a ir para a 3 Equipe, l esto Dr. M., que no me cede documentao
completa e onde um escrivo ficou chateado com a minha presena. Sigo desapontado
75

para 3 Equipe. Dr. M. me recebe e aceita que eu acompanhe o auto de priso em


flagrante, mas naqueles termos, ele refora. Ele tambm diz que o escrivo deve
decidir quais os documentos so importantes eu ter acesso, chamando-me de senhor.
Logo aps chegar naquela Equipe, o Gestor por frias do Delegado Gestor, aparece na
3 Equipe e fala com Dr. M que o doutor t fazendo um estudo srio e que tem
autorizao. Dr. M. reitera que j me autorizou a ficar l e eu senti um grato
sentimento de reconhecimento depois que esse gesto ocorreu.

Comeo, ento, a acompanhar o caso em curso na 3 Equipe. A qualificao do


autuado tem incio. Trata-se de um jovem que j foi preso duas vezes. Ele permaneceu
calmo durante todo o procedimento e afirma, sem nenhum sinal de estar se
vangloriando, que j respondeu a dois processos: num foi absolvido e num outro foi
condenado a 7 anos de priso.

O jovem rapaz autuado confessa a prtica delituosa e diz que estava traficando
no lugar em que mora. Maconha a substncia apreendida com ele, melhor dizendo, so
47 big-big de maconha. Primeiramente, foram achados alguns com o indiciado e, aps a
apreenso, o prprio autuado informou onde estava o resto num terreno baldio. (2
pontos debelados)

O escrivo pede para o autuado tentar descrever o rapaz com quem comprou a
droga (minha presena pode ter influenciado nessa pergunta). Ele pergunta ao autuado
se a droga era para consumo pessoal. O rapaz diz que, em princpio, disse isso aos
policiais militares, mas que depois assumiu que estava traficando mesmo.

Vou tomar um caf. Esse um caso comum a outros que j tinha visto. Penso
que as barreiras que encontrei no dia de hoje me reforam que eu sou um estranho no
ninho. Um sentimento de desconforto parece ter ressurgido em mim. Sempre houve em
mim muitos preconceitos a respeito da polcia.

Quando volto para 3 Equipe, Dra. A., que me negou observar o procedimento
sob sua conduo, percorre o caminho como se estive seguindo para o mesmo lugar que
eu. Ela, de fato, seguia para l para se aconselhar com Dr. M.. Ela pergunta vrias
coisas. Consigo ouvir ela, a delegada, dizendo que no vai colocar ningum na
cadeia por um crime grave s com base nisso. Quando ela sai da sala de Dr. M. estou
sentado no cartrio da 3 Equipe e, de pronto, apresento-me e digo que possuo
76

autorizao para estar na CEPLANC. Ela diz que eu mostre os documentos da prxima
vez.

Nesse meio tempo, o procedimento do caso que estou acompanhando na 3


Equipe acaba. Retiram-se as algemas do autuado para que ele possa assinar. Na mesma
equipe, acompanho a captura de um condenando por trfico, um fulgado, no dizer
tpico da polcia e das classes populares, desde o ano de 2003. Pela CEPLANC passam
esses procedimentos de capturas. O condenado seguir para a penitenciria Barreto
Campelo, pois j foi condenado.

40 pontos uma folga. Esperando o resumo que Dr. M. me cede, chega um


rapaz vestido paisana possvel policial militar e outro fardado, eles solicitam um
ofcio para o Instituto de Criminalstica e falam essa frase que, em muito boa hora, veio
at mim. 40 pontos debelados daro direito a uma folga no Batalho deles.

Depois de conseguir o resumo do caso de R., decido falar com Dra. A. Um clima
de grande tenso est colocado na frente da 1 Equipe. Os policiais militares esto no
jardim e conversam entre si isolados. Descubro nesse mesmo tempo que a advogada L.,
est frente do caso que no pude inicialmente acompanhar.

Ela, a advogada L., logo me diz que esse um forjado evidente, tanto foi
assim que a delegada decidiu baixar uma portaria. A fala da delegada A. pedindo
aconselhamento de Dr. M., que coincidentemente pude escutar, tambm corrobora com
essa suspeita. A delegada decidiu baixar uma portaria para que se investigue o crime de
trfico de drogas e essa portaria segue para a Delegacia da Avenida Rio Branco, Centro
do Recife, j que o caso ocorreu na Dantas Barreto.

A portaria, com a ouvida dos suspeitos, descreve provveis prticas de torturas


de ambos os rapazes presos e a suspeita de que arbitrariedades tenham sido realizadas
pelo que chamo, neste trabalho, de incentivos perversos (folgas por pontos debelados e
bnus crack). L., advogada do caso, ficou de ceder-me toda a documentao do caso,
quando tiver acesso para fazer a defesa. Fico perto da 1 Equipe, e quando o clima se
torna mais ameno, procuro conversar com a delegada, Dra. A.

Comeo apresentando-me, e dizendo que o caso que ela conduziu hoje me


interessa muito para a dissertao. Ela diz que no me ceder esses documentos, mas
que de uma prxima vez posso acompanhar outros casos. A delegada arremata: o
77

flagrante uma medida cautelar extrema, segurana pblica se faz com


responsabilidade, salrio digno para os agentes da segurana, mas existem outros
interesses financeiros em jogo, mas comigo no colam certas coisas!.

O caso em questo de uma apreenso na Avenida Dantas Barreto e pelo que


pude apurar, extraoficialmente, envolve a apreenso de um irmo de um conhecido
traficante da regio para conseguir uma ia48. Aparentemente, a ia no foi
conseguida e um flagrante forjado tentou implicar pontos nas metas chamadas de
pontos debelados e bnus crack.

H depoimentos nessa portaria que mencionam tortura (um dos rapazes tem a
roupa rasgada e o brao machucado) e que um dos suspeitos sofreu ameaas de ser
seviciado com um cabo de vassoura, e que num deles teria sido colocado um saco
plstico no rosto impedindo a respirao. Esse ltimo violento ato teria sido realizado
contra o mesmo indivduo que teve a blusa rasgada.

No tive coragem de perguntar se o rapaz que supostamente sofreu violncia


sexual realmente teria sido seviciado de maneira to brutal. Para um homem
heterossexual, dos que sustentam ser um sujeito macho, essa poderia ser uma grave
ofensa. A portaria fala em ameaas, mas o jeito que ele senta com desconforto corrobora
com minha suspeita de que ele sofreu um estupro.

Dra. A. no aceitou fazer o comum flagrante pelo teor das alegaes, acredito
eu, porque os policiais militares no conseguiram provar que havia trfico por parte dos
suspeitos. Falaram em um vdeo, e ela quis ter acesso a essa prova, mas os militares no
o trouxeram e disseram que no tinham como consegui-lo. Por outro lado, j vi pessoas
sendo autuadas mediante vdeo (item 1.5.2 e relato do traficante 4:20, quatro e vinte).
Postura garantista a da delegada. Um dos rapazes parece ser um pouco devagar e a
delegada ainda diz: isso maconha, meu filho, preste ateno na sua vida!.

Embora os dois investigados tenham se livrado do crcere, talvez pela


hecatombe que se delineou frente da delegada A., eles levam um ch de cadeira na
CEPLANC, pois a delegada diz que no tem viatura para leva-los ao Instituto Mdico
Legal (IML) no bairro de Santo Amaro. Dra. A. afirma na conversa informal em sua
sala que melhor que eles fiquem na Central, dando um tempo pro bem de todos. Ela
diz que nunca se sabe o que pode acontecer no meio da rua...
48
ia, sem meias palavras: su-bor-no!
78

Um clima de tenso ainda era sentido no escuro das 22 h, quando decidi partir da
Central.

Como diria o poeta, meninos, eu vi, ouvi e senti!

2 A CRIMINALIZAO DAS DROGAS NO GRANDE RECIFE: de qu e de


quem estou falando?

2.1 O locus de anlise: a lupa criminoantropolgica

Analisar as drogas49, a partir da Criminologia Crtica, permite a compreenso


no das razes que levam algum a realizar mercancia de drogas ou utiliz-las. So as
condies da criminalizao, ou seja, as interaes das esferas de controle social formal
(legislativo, polcia, ministrio pblico, judicirio, priso, clnicas de internao) com os
rotulados como usurios e como traficantes que passam a interessar como fenmeno a
ser estudado e problematizado politicamente. Desse modo, aqui, exporei como se opera,
na prtica, a engrenagem punitiva que gerencia a questo das drogas no Grande Recife.

Essa Criminologia, tambm chamada de Criminologia da Reao Social,


revela, atravs de uma literatura dos ltimos sessenta anos, que a criminalidade no
existe num plano abstrato, mas vai sendo construda, percebendo-se no processo de
criminalizao as funes de controle e dominao exercidas com amparo no sistema
punitivo. So as marcas desse controle construdo historicamente de forma violenta50
que vo delineando a criminalidade (a menina fcil, o aluno indisciplinado e, por que
no, o maconheiro, o drogado) (ANDRADE, 2012, p. 137).

49
Drogas, txicos, narcticos, entorpecentes, estupefacientes so diferentes nomenclaturas para indicar
substncias proibidas, ilegais, na legislao penal brasileira. Para fins de uniformizao e estabelecimento
de nomenclatura tcnica, sinaliza-se, nesta parte do trabalho, para a utilizao do termo drogas, a fim de
referir de forma geral as substncias com capacidade qumica psicoativa, isto , de gerar alucinaes
(maconha), estmulos (crack e cocana), e podendo gerar entorpecimento (pio e substncias derivadas).
Portanto, o uso reiterado do termo, nesta parte da dissertao, deve-se preservao de uma coerncia
terminolgica e tcnica em detrimento da no repetio de termos para fins estilsticos de construo do
texto.
50
Trata-se de um quadro social e poltico, que explicita a internacionalizao do controle das drogas
marcado pelo modelo sanitarista, reformado centripetamente, isto , de fora para dentro no qual a
legislao brasileira funciona como ressonncia que reflete a influncia das legislaes internacionais
sobretudo na Amrica Latina, constituda por pases que, na diviso internacional do trabalho, no mercado
das drogas ocupam a funo de produtores de maconha e cocana, por exemplo.
79

Esclareo ao leitor que, nesta parte do trabalho, analiso parte do objeto desta
pesquisa, qual seja: a criminalizao secundria das drogas atravs dos casos que
chegaram Central de Plantes da Capital durante os meses de junho a outubro do ano
de 2015. Utilizo embasamento de base terica com o auxilio da Criminologia Crtica e
suporte emprico da Antropologia para nortear minha investigao. Da ter cunhado o
termo criminoantropolgico51.

Num contexto de criminalizao das drogas, percebe-se que em nome da


ideologia da segurana urbana qualquer pessoa identificada como participante da
engrenagem do trfico de drogas torna-se objeto vulnervel de prises, chacinas e
violaes corporais de natureza diversificada, como revela a observao da realidade
brasileira. As prticas que envolvem a guerra s drogas em tudo lembram velhas tticas
de interveno, observadas nos regimes ditatoriais52.

A propsito das lentes que condenam as drogas, preciso que se diga que se
utiliza um binmio doente e criminoso, referindo-se aos usurios e aos traficantes
respectivamente. Percebo, nesse cenrio, o fenmeno que os antroplogos chamam de
exorcizao dos sujeitos e suas drogas (MACRAE, 2000, p. 124). Assim, por meio do
discurso de temor s drogas, o aparelho institucional e o saber oficial (com respaldo na
lei) podem exercer coero e controle de diversos grupos, pertencentes a subculturas
delinquentes tambm variadas.

preciso captar a questo das drogas a partir da juno delas com fatores
socioculturais. Em outros termos, o problema da droga no existe em si, mas resultado
do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sociocultural
(OLIEVENSTEIN, 2007 apud KARAM, 2014).

Sobre a percepo sociocultural, o antroplogo Gilberto Velho, em estudo


realizado na Zona Sul do Rio de Janeiro nos anos 70, retratou grupos urbanos que
faziam uso de diversas substncias psicoativas revelando os diferentes usurios e grupos

51
O termo criminoantropolgico guarda inspirao no termo criminodogmtico cunhado pela
pesquisadora Vera Andrade (ANDRADE, 2009, p. 171). Por criminoantropolgico quero sinalizar a lente
e predilees epistemolgicas para minha anlise da criminalizao das drogas, isto , a Criminologia
Crtica e a Antropologia.
52
A propsito, a Escola Superior de Guerra, com a colaborao da Misso Militar Americana, teve
relevncia nesse processo. Modelou-se, pois, a Doutrina de Segurana Nacional, a qual estabeleceu os
inimigos internos, associados aos comunistas. Algum tempo depois, ocorreria novo deslocamento nessa
plataforma terica de combate para uma nova categoria de inimigos internos: os traficantes de drogas. O
Brasil, assim, passou a integrar o modelo de poltica criminal blica.
80

de subcultura delinquente que se socializam em torno de relaes hierrquicas e de


txicos53 a exemplo da cocana, do LSD e da maconha (VELHO, 1998).

O olhar antropolgico essencial para, junto com a percepo criminolgica


crtica, desmistificar falcias como a de que se pode falar em apenas uma modalidade
ou tipo-ideal de usurio de drogas, bem como um nico perfil de traficante, esse
responsvel pelo problema da segurana pblica, conforme o discurso oficial. Esse
modo de enxergar o problema, a fim de dar-lhe diferentes respostas, no consegue ser
executado pela atual legislao penal de enfrentamento das drogas.

Observando-se a poltica criminal a respeito das substncias psicoativas, nota-


se uma tnue linha entre traficantes e usurios. A ausncia de critrios
delimitadores das duas categorias vem possibilitando margens s construes
hermenuticas no mbito da criminalizao do trfico e da reafirmao de esteretipos.
Desse modo, ao traficante, inimigos, destinado o rigor penal e aos usurios,
amigos, o direito penal da conciliao dos Juizados Criminais54.

A questo das drogas to densa e envolta em teia de questes polticas que


pude sinalizar enrgicos e deliciosos desabafos de policiais, notadamente policiais
militares, sobre o tema da legalizao e descriminalizao.

Ou legaliza essa porra ou trata tudo como traficante e bandido; que


comam 30 anos de cadeia55; o Estado decida! (Dirio de Campo, 10/07/2015). Essa
frase dita durante dia bastante peculiar, como j explicado nos relatos de campo, revela
o incmodo da polcia militar com os dedos que tem que ter com o usurio
(notadamente o com cara de cidado, estudante universitrio) que, por outro lado, no

53
Txico uma expresso vetusta e at mesmo ultrapassada. Ocorre que o antroplogo Gilberto Velho a
utilizou, pois a Lei de Drogas vigente durante sua pesquisa era de N 6.368 de 1976 que fala
repetidamente em txico. A nova lei a de N 11.343/ 2006 fala em entorpecentes. Deixo nessa parte o
termo mais antiquado para preservar a linguagem originria.
54
Em visita CEPLANC pude acompanhar caso de um rapaz apreendido pela segunda vez durante a
semana fumando maconha no bairro de Casa Amarela, Zona Norte do Recife. No se podendo configurar
outra tipificao para o ato do rapaz que no a do artigo 28 da Lei de Drogas (usurio) sua pena
informal foi restar algemado o dia todo. - Vai levar um caro do juiz duas vezes, disse o PM, tomara
que algemado aprenda a no se envolver com essas coisas para no cair em algo pior (trfico). Essa
situao ser neste captulo relatada. Logo, esses no so to amigos (Dirio de Campo, 16/07/2015).
55
A Constituio probe a pena de priso perptua. Veja o que diz o artigo 5, XLVII, b: XLVII - no
haver penas (b) de carter perptuo. O Cdigo Penal, em seu artigo 75, diz que o tempo de
cumprimento das penas privativas de liberdade no pode ser superior a 30 anos. 1 - Quando o agente
for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 anos, devem elas ser
unificadas para atender ao limite mximo deste artigo. Em outras palavras, quando algum condenado
a mais de 30 anos, o juiz dever somar todas essas penas e unific-las em uma s, de 30 anos. E num
que o policial militar respeitou a legalidade!
81

precisa ter com o considerado bandido, traficante. Entre manter um sujeito envolvido
numa ambincia de drogas privado de liberdade pelo tempo de trinta anos e a
legalizao, acredito que a deciso do Estado brasileira deva seguir nessa ltima
direo. Observe, leitor, outro exemplo:
Eu no sei por que proibiram essa porra da maconha (Dirio de Campo,
28/07/ 2015).

Para responder ao policial preciso falar de histria. E no se trata do enfadonho


e protocolar modo dos juristas de discorrer sobre codificaes e legislaes retomando
fatos histricos pouco relevantes anlise (OLIVEIRA, 2013). Trato aqui de uma
necessidade para compreender o approach da proibio da erva em nossas terras.

O artigo 281 do Cdigo Penal, hoje revogado56, um dos marcos histricos da


criminalizao das drogas no Brasil. Sua redao inicial, depois alterada pela Lei N
4.451/1964 e o Decreto-Lei N 385/1968, afirmava: importar ou exportar, vender ou
expor venda, fornecer ainda que a ttulo gratuito, transportar, trazer consigo, ter em
depsito, guardar, ministrar ou de qualquer maneira entregar ao consumo substncia
entorpecente- Pena - recluso, de um a cinco anos, e multa de dois a dez contos de
ris.

O artigo 281 no diferenciava as condutas de usurios e traficantes. com a


Lei N 4.451/1964 que se introduz ao tipo do artigo 281 a ao de plantar, mas foi
quinze dias aps a decretao do Ato Institucional n 5, o AI-5, no ano de 1968, que
ocorre substancial modificao na legislao de enfrentamento de drogas, como frisa
Zaconne (2011, p. 90). Em 1968, com o Decreto-Lei N 385/1968 modificou-se o
mesmo artigo para sancionar traficantes e usurios da mesma maneira.

Conforme anlise, acima lanada, percebe-se que com a Lei N 4.451/1964


que se introduz ao tipo do artigo 281 a ao de plantar. A partir desse momento o verbo
plantar tornou-se mais um ato perigoso a ser controlado pela norma penal.

Identifico o dado legislativo acima demarcado temporalmente como possvel


criminalizao organizada e oficial especfica a respeita do uso da cannabis em Terra
Brasilis. Em 1946, realizou-se em Salvador-Bahia o Convnio Interestadual da
Maconha, no qual foram reunidos os representantes das Comisses Estaduais de

56
A criminalizao das drogas trouxe para o ordenamento jurdico a descodificao, isto , retirou do
Cdigo Penal os crimes relacionados s drogas para trabalh-los em Leis Penais Especiais, primeiramente
a Lei N 6368/76 e, depois, a Lei N 11.343/2006. Portanto, o artigo 281 foi revogado do Cdigo Penal.
82

Fiscalizao de Entorpecentes (CEFE) de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, alm


de representantes da Comisso Nacional de Fiscalizao de Entorpecentes, visando
unificar o combate ao uso de maconha e rever a legislao. Ao final desse encontro, foi
aprovada uma srie de medidas para unificao e incremento dos trabalhos de
erradicao desse uso. Estas incluam: planejamento de medidas para atuao comum
regio; destruio dos cultivos; medidas jurdicas de reviso ou interpretao da
legislao; incluso em congressos de psiquiatria, higiene e correlatos, do tema
represso e profilaxia das toxicomanias especialmente a produzida pela maconha (cf.
MACRAE, 2000, p. 21).

Existem diferentes usos de substncias psicoativas, como o recreativo,


religioso, medicinal, no se podendo falar em uma nica modalidade de uso. As
legislaes penais, bem como as convenes a respeito do tema, por outro lado, numa
perspectiva de simplificao de um fenmeno complexo, tratam de maneira nica o uso
de substncias como a cannabis, ignorando-se, com isso, a grande heterogeneidade dos
modos de consumo, das razes, das crenas, valores, ritos, estilos de vida e vises de
mundo que sustentam a perpetuao do uso de substncias de carter ilcito nas
sociedades.

Caindo em chaves moralistas e preconceituosos da luta contra as drogas,


como se fosse possvel combater uma substncia sem atingir a populao que a utiliza,
as formas hegemnicas no tratamento do problema das drogas acabam reproduzindo a
ideia, anteriormente mencionada, de que um mundo livre de drogas possvel 57.

O estigma, que nos primrdios era constatado atravs da existncia de marcas


corporais que identificavam negativamente o indivduo na vida social, hoje, no to
evidenciado corporalmente, assume principalmente a forma de desventuras que findam
por configurar a identidade de um indivduo em sociedade (GOFFMAN, 2012, p. 11-
12).

57
Antes mesmo do surgimento da Organizao das Naes Unidas, a ONU, j existiam Convenes
Internacionais sobre o pio, como a adotada em Haia em 23 de janeiro de 1912. A imposio da
criminalizao no plano internacional s se concretiza com as convenes da ONU, a saber: 1961, a
Conveno nica sobre Entorpecentes; 1971, a Convnio sobre Substncias Psicotrpicas de 1971; 1988,
a Conveno de Viena. Sobre essa ltima, em sesso especial da Assembleia-Geral das Naes Unidas
(UNGASS), foi cunhado o slogan A Drug-Free World - We Can Do It, no qual o paradigma da
proibio e a ideia de que a humanidade pode viver livre de drogas foram reiterados. Uma nova
Assembleia vem sendo preparada para o ano de 2016 em Genebra, na Sua.
83

Nesse contexto, constitui o estigma uma categoria distintiva, a qual tanto


funciona como uma caracterizao negativa e depreciativa do indivduo, como tambm,
numa perspectiva relacional, como um meio de confirmao da normalidade dos outros,
no detentores de atributos negativos. Estas pessoas, rotuladas como normais, ainda que
imperceptivelmente, so responsveis por julgamentos, com base em preconcepes de
uma identidade virtualmente concebida, que diminuem as pessoas que no
correspondem a expectativas normativas virtuosas. Concedem-lhes, pois, o status de
inferiores e de indesejadas, de modo a exclu-las das relaes sociais quotidianas e
reduzir, assim, as suas chances na vida (GOFFMAN, 2012, p. 13-16).

Observando-se a poltica criminal a respeito das substncias psicoativas, com o


auxlio de estudos da Criminologia e da Antropologia, possvel perceber nuances e
fissuras da criminalizao das drogas que no so notadas numa anlise legislativa
descontextualizada da realidade social. Um estudo sobre interaes entre modos de usos
e possveis problemas decorrentes desse ato precisa pontuar uso, fatores socioculturais e
o necessrio trato da questo com o prioritrio cuidado da sade, uma questo, por
essncia, no penal.

Sobre a segurana jurdica e a iluso latente ao direito (ANDRADE, 2015, p.


311), entendo que a unio da Criminologia e da Antropologia condio sine qua non
para compreender a insegurana gerada pelo prprio Sistema Penal. Assim, na questo
das drogas que o modo de agir do Sistema de Justia Criminal mais explicitado,
trazendo margem os traos do violento controle punitivo.

A respeito desse quadro de dvidas, incertezas e inseguranas na aplicao da


lei penal na criminalizao das drogas, registrei no Dirio de Campo em 23/06/2015:
(...) A testemunha M., flanelinha, outrora tambm suspeito, magro e declara
dependncia de drogas e passagem por clnicas, apresentando olheiras
profundas e diz que comprou cola de sapateiro (tolueno) e s foi encontrado
com essa substncia. O PM, desde o incio do procedimento, diz que M. no
ser preso por trfico, mas no sabe se cair como usurio. Um dos agentes
da policia civil presente no cartrio reconhece o declarante por passagem
envolvendo cola quando era soldado da polcia militar. M. tem passagem por
tentativa de homicdio e aps o tramite como testemunha liberado.

O leitor deve estar se perguntando: cola no droga? A definio de droga


remete o aplicador da lei a uma norma penal em branco. Desse modo, na Lei N
11.343/2006, lei de drogas vigente, no h o conceito do que seja droga, sendo a lei
completada pela Portaria N 344/SVS da ANVISA, de natureza administrativa.
Algumas substncias no esto previstas, tais como: tolueno (cola de sapateiro). Pode-
84

se, assim, fazer o agente responder pelo crime previsto no art. 243 do ECA58 (substncia
que causa dependncia fsica ou psquica) no caso de venda dessa substncia para
adolescente, mas para pessoa adulta essa conduta fato atpico, isto , sem previso
proibitiva na lei penal e, portanto, sem possibilidade de aplicao de pena.

A dvida do policial militar decorre da prpria arbitrria viscosidade do


conceito definidor de droga. Afinal, a cola de sapateiro droga da pobreza, tal como o
crack, e, portanto, reprimida pela polcia, mas a legislao to confusa que nem os
agentes da lei responsveis pela criminalizao secundria tm segurana jurdica59
nesse tortuoso processo de incriminao.

Sigo com o olhar criminoantropolgico para demonstrar quem, de fato, define


quem usurio e quem traficante no sistema legal brasileiro. Reza a Lei N
11.343/2006 e acreditam os que tm f nesse instrumento:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depsito, transportar ou trouxer
consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorizao ou em desacordo
com determinao legal ou regulamentar ser submetido s seguintes
penas(...) 2 Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o
juiz atender natureza e quantidade da substncia apreendida, ao local e
s condies em que se desenvolveu a ao, s circunstncias sociais e
pessoais, bem como conduta e aos antecedentes do agente.

Embora a lei fale em juiz, a definio da categoria desviante de traficante e de


usurio conta prioritariamente com o julgamento de policiais militares. Eles so os
primeiros agentes do Estado a julgar usurios e traficantes. verdade que vrios fatores
podem, por outro lado, levar a polcia civil a discordar da definio realizada
inicialmente pela polcia militar. Mas isso raro. Da mesma forma, factvel acreditar
que dificilmente um promotor de justia, e muito menos um juiz, venha a modificar a
categoria incriminadora decidida na Delegacia.

Os juzes, ainda que sem soldo de magistrado e tambm sem a formao


acadmica de Suas Excelncias, so os policiais militares. Eles, os juzes da rua, que
julgam sob o sol das periferias, longe dos gabinetes do Poder Judicirio, sero
considerados pelo Direito Oficial como testemunhas de acusao, que sentaro, numa
58
Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criana ou
adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependncia fsica ou
psquica, ainda que por utilizao indevida: Pena deteno de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se
o fato no constitui crime mais grave.
59
Sobre esse conceito remeto o leitor pesquisadora Vera Andrade (2015, p. 313). Vera relata a marcha
da criminalizao encoberta contra os sujeitos que vivem em simbiose com ela, afirmando que vivemos
no imprio da insegurana jurdica como uma dogmtica penal simblica. Vera desnuada a dogmtica ao
considerar a fantasia da segurana jurdica, no fundo a fantasia de poder que alimenta a onipotncia
dogmtica e dos prprios operadores jurdicos formados na sua tradio.
85

audincia, diante de Doutos Juzes e Promotores de Justia e com sua palavra


condenaro pela segunda vez algum considerado primeiramente por eles como
traficantes.

A legalidade penal corresponde, para alm da letra fria dos cdigos e leis, a uma
lgica de crenas, opinies e valoraes que se estabelecem sobre os objetos ou
situaes, descumprindo as funes sistemtica, hermenutica e de garantia que so
assinaladas pelo mope pensamento dogmtico. Tem-se, desse modo, um saber
comprometido com as prticas e as decises do homem, um saber de valor persuasivo
(CUNHA, 1979, p. 116). Esse saber no se mantm firme ao mais leve sopro de anlise
da realidade, como verifiquei a respeito da atividade incriminadora das drogas.

Ainda na constatao da iluso da segurana jurdica, percebo-a na arbitrria


criminalizao de apenas algumas substncias. Delegada interlocutora desta pesquisa
converge com a constatao de que as apreenses por drogas na RMR restringem-se ao
crack e maconha sempre em quantidades reduzidas:

Aqui na Central chegam muitos casos de uso e trfico sempre de pequenas


quantidades de entorpecentes e alguns usurios que revendem para sustentar
o vcio. No DENARC, pelas possibilidades de investigao da polcia civil,
se consegue algumas vezes chegar ao topo de cadeia (...). So muitos os tipos
de usurios e traficantes (...). Dificilmente chega aqui grandes quantidades de
crack. J vi chegar 10 kg de maconha, mas os envolvidos conseguiram se
evadir. Geralmente chega 2kg de maconha (Dirio de Campo, 04/06/2015).

Em outra oportunidade, tomei nota das consideraes de um escrivo


interlocutor desta pesquisa frente apreenso de um usurio-traficante de crack no
bairro de Santo Amaro. As consideraes a seguir explicitam a vulnerabilidade do
pblico que chega CEPLANC com ocorrncia de crack, geralmente desacompanhados
de familiares, amigos, sem leno nem documento, para ser eufmico:

muito comum investigados por crack no saberem o nome, endereo. No


caso desse menino que caiu trs vezes enquanto adolescente pode ser que a
famlia no o aceite mais. A maconha mais social, o usurio nem considera
algo errado (crime), algumas vezes fazem at discurso poltico. J o usurio
de crack tem repulsa da droga que usa. So formas diferentes de tratar o
prprio vcio (Dirio de Campo, 17/06/2015).

Os extratos de narrativa, acima apresentados, revelam ao leitor a marca da


iluso dessa modalidade de criminalizao. Para compreender melhor esse panorama
preciso apresentar o pensamento de Alessandro Baratta (1992, p. 35-49), que ao tratar
dos fundamentos ideolgicos da poltica criminal sobre drogas, aborda a construo do
86

sujeito atravs do que Foucault chamou de prticas de diviso: cidados decentes e


criminosos. Estes, no simbolismo criado pelo mito da droga no Pas, so representados,
em geral, pelos jovens negros e pobres, moradores das periferias e favelas dos
aglomerados urbanos. Essas prticas de diviso passam a enxergar como pessoa que
utiliza drogas apenas o outro, para quem o Sistema Penal deve intervir em sua
intimidade atravs da violenta interveno atravs dos aparelhos policiais.

Prticas de diviso podem ser flagradas na incriminao de apenas algumas


drogas e dos sujeitos j manjados pela Justia Penal, os quais fazem uso de substncias
como crack e maconha. Visualizei, assim, prticas de diviso e desigualdades estruturais
nesse processo de criminalizao com auxlio dos pilares da Criminologia e da
Antropologia a cada dia de pesquisa na Central de Plantes da Capital.

2.2 Flagrando por meio de nmeros as incoerncias da criminalizao das drogas


no Campo de Pesquisa

Dados conseguidos junto Gerncia de Anlise Criminal e Estatstica da


Secretaria de Defesa Social do Estado de Pernambuco, antes mesmo de realizao desta
minha investigao, certificam que as ocorrncias relativas Lei de Drogas (Lei N
11.343/2006), que acompanhamos na Central de Plantes da Capital, so demandas
frequentes no cotidiano do Departamento Policial de Planto.

Solicitei informaes envolvendo apresentao de nmeros sobre procedimentos


envolvendo drogas (entre 06 de maro de 2014, data de abertura da localidade, e 06 de
maro de 2015). A GACE apresentou os seguintes nmeros:

ANO DO ENTORPECENTES ENTORPECENTES ENTORPECEN TOTAL


REGISTRO (POSSE E USO) (TRFICO) TES
(ASSOCIAO)
2014 453 2488 243 3184
2015 199 510 27 736
TOTAL 652 2998 270 3920
(*Fonte Sistema Infopol/GACE/SDS. Dados extrados em 22 maio de 2015)
87

As ocorrncias de drogas costumam ser as sempre presentes nas quatro equipes


que funcionam at s sete da noite e, depois, costumavam chover no horrio da noite.
Uma simples leitura dos dados estatsticos do ano de 2014 explicita que em
mdia chegam proporcionalmente 6,8 casos de trfico de drogas para 1,2 de posse/uso
por dia na localidade.
A quantidade de ocorrncias envolvendo trfico/uso de drogas depende de
inmeras variveis, entre as quais mencionamos a quantidade de viaturas e efetivo
disponvel da polcia militar nas ruas da Regio Metropolitana.
No dia 10/06, por exemplo, houve a chamada Operao Saturao, todo o
efetivo da polcia militar, por ordem do governo do estado, foi colocado na rua. Por
ironia, nesse dia os policiais civis decretaram paralisao pela melhoria das condies
de servio.
No dia da paralisao da polcia judiciria, a CEPLANC no parou.
Acompanhei (aproximadamente das 14 h at depois da 00 h) dois autos de priso em
flagrante por trfico e trs termos circunstanciados de ocorrncia por uso/posse de
drogas. Em visita posterior pudemos conferir junto ao setor administrativo da instituio
e o registro de ocorrncias eletrnico que foram mais de dez ocorrncias envolvendo
trfico de drogas s no dia 10 de junho e mais cinco computadas no dia 11 de junho e
alguns outros crimes de menor potencial ofensivo.
As incriminaes, por trfico, previstas no artigo 33 da Lei N 11.343/2006,
costumam ser as mais comuns quando o procedimento envolve drogas, como se pode
constatar na tabela acima, e como presenciei nos dias em que me dirigi at a
CEPLANC.
No que se refere s ocorrncias de incriminao de usurios por porte/uso de
substncias psicoativas, prevista no artigo 28 do mesmo Diploma Legal, tm aumentado
consideravelmente em comparao com o ano de 2014. Residualmente associar-se ao
trfico (artigo 35) aparece como categoria limite, por vezes utilizada quando no se
pode enquadrar o conduzido nas figuras de traficante ou de usurio.
Esses nmeros revelam contradio na engrenagem punitiva na RMR. possvel
observar mais criminalizados pelo comrcio das substncias proibidas do que usurios e
consumidores. de se questionar se existe mais gente vendendo do que usando drogas
ou a incriminao dos envolvidos na ambincia de drogas bastante esquizofrnica?
Fico com a ltima premissa e desde j afirmo, como j o fiz, que a incriminao um
tortuoso processo sem nenhuma segurana jurdica.
88

Usurios, traficantes, usurios-traficantes apreendidos dentro de uma


ambincia das drogas em situao de flagrante so necessariamente conduzidos a esse
Departamento Policial de Planto espera de um julgamento decorrente do desvio
cometido.

2.3 As categorias de usurios e traficantes no Campo de Pesquisa

Para entender as categorias tericas decorrentes da criminalizao secundria


realizada pelas polcias e confront-las com as narrativas de campo, apresento ao leitor
alguns novos extratos de relatos. Tambm, busco nos relatos do captulo anterior fatos,
passagens, a fim de contextualizar e concatenar esta anlise.
Howard Becker, no clssico da sociologia do crime, Outsiders, marginais,
explica a respeito das carreiras desviantes, relacionadas ao uso de drogas, estabelecendo
distino entre aqueles que utilizam a maconha, no caso especfico dessa conhecida
pesquisa, pela primeira vez para terem o barato; curiosos e que, de acordo com a
sociabilizao especifica e do sentimento de prazer, vo engrenando no universo
particular das drogas, tornando-se usurios, pessoas que habitualmente lanam mo de
drogas em seu cotidiano.
De acordo com esse pesquisador, identifiquei o uso dessas substncias em trs
fases: iniciante (a pessoa que usa alguma droga pela primeira vez); usurio ocasional
(aquele para qual o consumo espordico e depende de fatores fortuitos como encontrar
determinado grupo desviante em que se utiliza a droga) e usurio regular (para quem
fumar se torna uma rotina sistemtica, em geral diria) (BECKER, 2009, p. 71).
Recorro a outro socilogo, Goffman, para apresentar ao leitor a anlise sobre as
categorias de traficantes e usurios. Para esse autor, quando um estranho apresentado
a um desconhecido, inicia-se um processo de busca de atributos na identidade social
do diferente, nessa atribuda a honestidade, ocupao (2012, p. 12). Esses julgamentos
morais, tambm norteadores do agir policial, constituem a formulao social a respeito
da identidade dos usurios de drogas e dos que fazem mercancia dessas substncias
proibidas.
No quero que parea que, ao criar categorias de usurios e traficantes, como
ver a seguir o leitor, esteja almejando expor algum tipo de construo estereotipada.
Muito pelo contrrio, o que pretendo explicitar que no existe um nico tipo ideal de
89

traficante nem de usurio de drogas, embora a dogmtica penal compreenda que


traficantes e usurios sejam categorias estanques.
A realidade da Central de Plantes da Capital acabou revelando-me a
insuficincia das categorias de usurios e traficantes tratados, muitas vezes, pela
literatura do tema como blocos homogneos e descritos de maneira simplificadora da
dicotomia ser usurio ou ser traficante. Usurios e traficantes esto em relao
umbilical e de difcil diferenciao.
A partir da, tentei aglutinar minha atividade descritiva em categorias desses
sujeitos desviantes envolvidos numa ambincia de drogas. A categorizao, por certo,
tambm peca por tentar restringir a realidade, mas, de algum modo, j apresenta ao
leitor a multiplicidade cultural e categrica dos sujeitos desviantes que cruzaram meu
caminho durante a pesquisa.
Afirma-se que em meio ilegalidade, a economia das drogas convocou os
indivduos que no tem espao no mundo legal. Sendo assim, comum encontrar
casos em que a nica prova do trfico o desemprego ou o subemprego daquele que
surpreendido na posse de drogas, visto naturalmente como traficante, por se supor que,
estando desempregado ou subempregado, no teria condies de adquirir a substncia
para uso pessoal. (KARAM, 1993, p. 58). Se essa mxima carrega verdade, ela no
absoluta, pois muitos usurios, como constatei, so subempregados ou no possuem
trabalho e tambm provm de reas pobres como o Coque e os Coelhos, marcadas pelo
poder do trfico de drogas na em Recife.
Dessa maneira, a ligao entre controle social da pobreza e proibicionismo, que
perpassa a literatura criminolgica, atribuindo o lugar do usurio e traficante devido
condio social do infrator, no me parece como via inteiramente adequada para
compreender o processo criminalizador das drogas.
Assim, a mxima de que, desde os momentos mais antigos da proibio das
drogas, as atividades de produo e venda de psicoativos ficaram a cargo de indivduos
postos margem do sistema econmico-social dominante deve ser temperada
(RODRIGUES, 2003, p. 57) para no se realizar anlise totalizante e precipitada.
Este trabalho consiste na utilizao do conceito de inqurito biogrfico do
criminoso, lanado na tese doutoral A Iluso de Segurana Jurdica do controle da
violncia violncia do controle penal. Assim, a observao do processo de
incriminao revelou-me que j na atividade de criminalizar pelas polcias se procuram
no s circunstncias do crime, mas causas do crime; na histria de vida do infrator, sob
90

o triplo ponto de vista da organizao da posio social e da educao. Em sntese,


percebi que algumas vezes os fatos valem menos do que as condies subjetivas do
criminalizado. A busca por esse inqurito biogrfico do criminoso nasce nas apreenses
da polcia militar e indiciamento da polcia civil e, depois, ser utilizado pelo Ministrio
Pblico e o Poder Judicirio para dar continuidade marcha da criminalizao
(ANDRADE, 2015, p. 250).
As categorias traficante por azar; usurio por sorte; usurios
revendedores; traficante tpico; usurio tpico e traficante policial so as
tipologias que cunhei para apresentar ao leitor um panorama da diversidade de sujeitos
envolvidos na roda viva da criminalizao das drogas. Os termos sorte, azar, tpico
guardam referncia na ideia de iluso de segurana jurdica no processo de
criminalizao secundria, quando o dficit de tutela real dos Direitos Humanos
compensado pela criao, no pblico, de uma iluso da segurana jurdica e de um
sentimento de confiana no Direito Penal e nas instituies de controle que tm uma
base real cada vez mais escassa (cf. ANDRADE, Ob, cit., p. 311). Verifiquei esse
processo sem bases reais fundadas e de uma insegurana decorrente de prises por
drogas durante a realizao da pesquisa de campo.
Apresento, na sequncia, ao leitor essas categorias construdas a partir desta
pesquisa etnogrfica, agora, com o tom descritivo-exploratrio dos casos encontrados
durante a investigao na Central de Plantes da Capital no ano de 2015 entre os meses
de junho a outubro em horrios diversos, como j esclareci no curso do primeiro
captulo deste trabalho. Adianto ao leitor que, para evitar repeties desnecessrias e
pela limitao de espao, no descreverei todos os casos que acompanhei, mas apenas
aqueles que considero importantes para embasar a anlise, bem como recorro aos j
apresentados nos relatos de campo.

2.3.1 Traficante por azar

O termo traficante por azar pretende salientar a imagem do sujeito que utiliza
drogas, apresenta, muitas vezes, estado de dependncia qumica de alguma substncia
psicoativa tornada ilcita. Esse sujeito tambm possui marcas corporais como a
magreza, queimaduras e outras caractersticas que explicitam o quadro social e clnico
de adico e vulnerabilidade desse usurio de drogas.
91

Desse modo, a despeito das visveis evidncias corporais, esses usurios sero
considerados pelos policiais militares os primeiros juzes como traficantes. Por
questo de azar, a polcia civil, por fatores diversos (a f pblica de que gozam os
policiais militares no exerccio de declarar os fatos ou ainda os maus antecedentes
desses indivduos), passa a consider-los como traficantes, mesmo com sua explcita
degradao corporal.

Caso significativo do azar do usurio rotulado como traficante nesta


investigao foi apresentado no item de relato de nmero 1.5.1. C. e J., ambos foram
presos com 6 pedras de crack no bairro de Santo Amaro, quando a condio degradada e
envelhecida dos autuados revelou-me que eles eram usurios de crack em estado de
dependncia.

A delegada interlocutora, naquele caso, tentou que ali fosse realizado, ao invs
de um auto de priso em flagrante, um termo circunstanciado de ocorrncia e os sujeitos
considerados como usurios. O julgamento da polcia militar prevaleceu mesmo com a
discreta tentativa de defesa da delegada e, por azar, os dois dependentes qumicos foram
considerados traficantes e, com isso, a eles destinados os rigores da lei. Nessa situao
trazida ilustrao, os dois usurios foram considerados como traficantes devido aos
antecedentes criminais que atestavam que eles tinham ali mesmo pela Central
passagem pelo crime de trfico de drogas.

Ainda poderia rememorar ao leitor a imagem da Maria Caranguejo, j


dolorosamente descrita nesta dissertao. Ela foi encontrada numa regio marcada pelo
uso de crack e pela prostituio, a regio do Mangue de Santo Amaro e da Ponte do
Limoeiro, conhecida vulgarmente como Ponte do Chupa-Chupa. Aquela mulher teria
sido incriminada por trfico de drogas, a despeito de sua condio fsica e ter sido
apreendida numa localidade em que o escambo do corpo feminino por drogas como o
crack marca constitutiva. Essa Maria foi uma traficante por azar.

Em outros casos o azar verificado em situao de difcil entendimento se


aqueles usurios so de fato revendedores de alguma droga ou s esto no lugar errado,
novamente por questo de azar.

Assim, o caso ilustrado no item de relato 1.5.2 tambm revelou o azar de um


dependente qumico com passagem comprovada pelo Centro de Atendimento
Psicossocial para lcool e outras Drogas (CAPS AD), ligado ao Sistema nico de
92

Sade (SUS). Ele, o jovem adulto L., apesar de ser considerado como viciado pelo
delegado interlocutor dessa situao, foi indiciado por trfico de drogas com a
quantidade de 6 big-big de maconha, pois estava numa rea movimentada de
comrcio de drogas no tradicional Bairro do Recife.

Muitas vezes, esses casos que nomeio como azar so confirmados pelo fato de
o indiciamento pelo crime de trfico de drogas acontecer mesmo sem prova de venda ou
ganho material na ambincia de drogas. O caso relato no item de nmero 1.5.2, acima
mencionado, explicitou nas palavras do prprio delegado essa premissa: dar, doar j
trfico.

Eis algumas interaes de campo que sobressaram no momento de pesquisa e


que agora explicito ao leitor. Trata-se do puro azar no processo de incriminao das
drogas que no conta com qualquer segurana jurdica, como j esclareci.

2.3.2 Usurio por sorte

A categoria usurio por sorte pretende complementar a ideia


criminoantropologicamente fundamentada do traficante por azar acima apresentada.
Alm disso, almejo apresentar a imagem do sujeito que utiliza drogas e apreendido
primeiramente considerado como traficante de drogas.

Desse modo, a questo primordial nesse ponto se relaciona com apreenso do


sujeito como traficante de drogas pela polcia militar, mas ao final do procedimento
policial, escrives e delegados entendem que ali est um usurio de drogas e que a
Justia Penal deve exercer o controle sobre esse individuo atravs do Juizado Especial
Criminal e no atravs de uma das Varas Criminais dos Feitos Relativos aos
Entorpecentes. Usurios pela palavra final, mas no pelo julgamento inicial da PM.

Entre o crime de posse de drogas para consumo pessoal e trfico de drogas h


uma diferena abissal de tratamento. A primeira infrao estabelece como sano
medidas alternativas priso e no configuradoras de antecedentes criminais (a
conhecida ficha suja do linguajar policial-popular), j a segunda com a aplicao de
penas de 05 a 15 anos.

Ora, encontrei no campo de pesquisa alguns usurios por sorte. Percebi que no
estava diante de um usurio como os que so normalmente apreendidos como autores
93

do fato60 para quem a prpria polcia militar informa sobre as medidas despenalizantes
do Juizado Especial Criminal.

No caso dos usurios por sorte, o sujeito muitas vezes permanece o dia todo
algemado ou recolhido carceragem da CEPLANC e possui consigo mesmo a infeliz
certeza de que sair da Delegacia para Estabelecimento Prisional. O feliz espanto dos
prprios autuados, ao descobrirem que sero considerados como usurios, no pode ser
descrito brevemente. Eles foram usurios, mas usurios por sorte, e s depois de horas
ou quase um dia inteiro de espera do pior da Justia Penal: o crcere.

Remeto o leitor para ao item de nmero 1.5.2, em que relato situao em que me
vi diante de um delimitado conflito entre as policiais civis e militares a respeito dessa
categoria que nomeei como usurio por sorte. Naquele caso de um jovem rapaz, J.,
apreendido na favela do Detran, a polcia militar entendeu que J. estava praticando
trfico de drogas, mas a polcia civil, atravs da escriv e do delegado responsvel,
decidiu que ali se tratava de um usurio de drogas e, portanto, seria realizado TCO.

A sorte deve-se a uma postura garantista61 de alguns agentes da polcia civil que
exigem provas e situaes fticas concretas para realizarem o indiciamento por trfico
de drogas. Nas palavras de uma escriv interlocutora: o problema no encontrar,
provar.

Essa situao antagnica aos autos de priso em flagrante cuja apreenso


precipitada e em que se encontram os indivduos com drogas em lugar suspeito, mas so
apenas conjecturas da realizao do trfico de drogas. As palavras da escriv, que
podem ser encontradas pelo leitor no item 1.5.2 resumem esse quadro incriminador:
que ele traficante, isso , eu sei, mas no pode s apontar o dedo, tem que provar.
Sorte para alguns ou azar para outros; tudo depender do garantismo da polcia civil na
conduo do procedimento em flagrante.

60
No plano do Juizado Especial Criminal, onde se processam as infraes penais de menor potencial
ofensivo, a linguagem diferente da Justia Penal Comum. No JECRim no h criminoso, mas autor do
fato. O crime de posse de drogas para consumo pessoal tratado no plano dessa instncia judiciria, onde
a infrao passvel das medidas despenalizantes, como a transao penal.
61
A teoria do garantismo, em apertada sntese, advoga a garantia de direitos e liberdades individuais do
indivduo frente atividade persecutria do Estado, detentor do monoplio da violncia legtima.
94

2.3.3 Usurios-Revendedores

Na expresso usurios-revendedores saliento a ideia de que, em vrios casos no


universo de outsiders, muitos usurios realizam venda de substncias entorpecentes para
poderem arcar com os custos de sua demanda de consumo de drogas ou vcio, mais
cruamente falando.

Pude construir essa imagem categorial, os usurios vendedores, a partir das


conversas com alguns delegados interlocutores e observando o interrogatrio de muitos
autuados. Esse sujeito aquele que, apreendido com drogas, geralmente, tambm faz
uso da substncia que repassa.

Essa , ento, a modalidade do trfico que tem como finalidade custear o


consumo pessoal dos indivduos. O usurio-revendedor geralmente faz uso abusivo de
alguma substncia e por questes como ter sido abandonado pela famlia, estar nas ruas,
s encontra no trfico a maneira de honestamente ter sua noia, nas palavras de
alguns autuados. A frase a seguir, recorrentemente verificada em delegacias, resume o
que estou tentando mostrar ao leitor: melhor vender para usar do que t roubando o
que dos outros.

Transporto o leitor para o item 1.5.3 e o caso de R., autuado por trfico de
drogas declarando ser um aviciado que veio do interior de Pernambuco, Municpio de
Escada, para comprar mais em conta no Recife.

Na cadeia do trfico, os usurios-revendedores esto na base da organizao


das redes de venda de drogas, sendo o risco de sua liberdade o preo do prazer e do
consumo das substncias de que fazem uso. Pela base da pirmide da empresa, que
constitui o trfico de drogas, percebi estrutura complexa de diviso do trabalho que
envolve vrios sujeitos que exercem diferentes papeis. Nessa cadeia, os usurios-
revendedores so os ltimos.

Para que o leitor no desconhea, a face lucrativa do trfico envolve outras


atividades como a de gesto de fluxo financeiro e lavagem de dinheiro (BERGERON,
2012, p.86). claro que afora os pequenos traficantes no encontrei nenhum traficante
do alto da pirmide dessa complexa organizao.

Deixo claro que so muitos os tipos de traficantes, do mandachuva ao


dependente qumico. Esse sujeito geralmente um usurio-revendedor que poder ser
95

incriminado tanto como traficante por azar quanto como usurio por sorte. Esses
usurios-revendedores arriscam-se nessa atividade comercial por, normalmente, estarem
submersos nas teias da adico e da vulnerabilidade social. Eu sou um aviciado e a
fissura me trouxe at aqui!.

2.3.4 Traficante Tpico

Saliento por essa figura categorial a ideia j informada pela Criminologia.


Assim, esta tipologia refere-se ao sujeito apreendido com pouca quantidade de drogas e
rarssimas vezes com arma de fogo. Esses sujeitos, dentro dos vultosos lucros do
mercado das drogas, nada mais so do que os vapores baratos, serviais do
narcotrfico.

Esses casos que apresento ao leitor so ilustrados pela Teoria do Iceberg


Invertido para explicar a criminalizao desses pequenos traficantes nos centros das
capitais e nas periferias. Essa teoria ilustra, como pude verificar empiricamente, que o
comrcio ilcito de drogas nas reas pobres a ponta de um iceberg invertido, no qual se
concentra o maior nmero de pessoas que ficam expostas represso (criminalidade
nvel 3); ao passo que os novos ricos e os cidados acima de qualquer suspeita
estariam situados na criminalidade de nveis 2 e 1, o que conota a ponta submersa
(oculta) do iceberg invertido (cf. ZACONNE, Op, cit., p.12) .

Alm da necessria pontuao terica realizada, para entender a categoria que


nomeio de traficante tpico, devo esclarecer que esses sujeitos geralmente j possuem
histrico de registro do crime de trfico de drogas, portadores de maus antecedentes ou
j reincidentes. A ficha suja que para a polcia indcio cabal de que esses sujeitos
so realmente traficantes, a mim revelou a ineficcia do controle penal e do crcere no
combate ao mercado ilcito das drogas. Passo a apresentar trecho de relatos:

Comeo por algum que tem em si tatuada a expresso vida loka. A expresso,
que a priori pensei se referir a um conhecido rap dos Racionaiss Mcs, a marca de
uma galera, espcie de gangue urbana no territrio do Recife, como descobri.
96

A vida to louca que esse rapaz (acorrentado pelos ps) lembrou-me a imagem
dos livros de histria dos negros no mercado de escravo: jovem acorrentado pelos ps62
e andando com dificuldade por conta dos grilhes que o prendiam. L. seguia tranquilo
para a porta da Equipe onde se realizaria o auto de priso em flagrante que o mandaria
para o crcere mais uma vez. Ele interagia com os policiais militares e ria para meu
espanto. J comi cadeia.

Breve pausa no relato, preciso aqui explicitar que essa cena demonstra o quadro
de disciplinamento e controle das classes populares no contexto latino americano das
sempre colnias, onde se praticou o sequestro de povos negros e originrios
(ZAFFARONI, 2001, p. 74). O Sistema Penal destas terras, cujas veias continuam
abertas, recorre aos mtodos de origem colonial e escravocrata, como as algemas
pelos ps apresentadas ao leitor (PRANDO, 2006).

A cena descrita, aliada ao inexplicvel sorriso do aprisionado, remete a ideia


lanada em O Povo Brasileiro de que a brutalidade racista e classista das autoridades
disposta a seviciar os pobres encontra num povo sofrido, sentido, mas resistente at o
ltimo suplcio, o jeito particular de encarar a vida ( RIBEIRO, 2006, p. 108). Essas so
as indelveis e peculiares marcas desta gente.

Breve digresso, volto ao relato, identificando que se tratava de 60 pedras de


crack, que equivalem a 14 gramas, como informou o Laudo do IC. No depoimento, L.
justifica a venda de drogas por necessidades financeiras. A situao no era mais de
harmonia como se mostrava no incio da tarde. Tento saber do autuado, ao menos, se a
tatuagem diz respeito aos Racionais, sem sucesso. Ru confesso e reincidente o rapaz
comeou a mudar as feies conforme a ouvida se prolongava, quase que como se a
ficha tivesse caindo naquela agora.

T com frio, perguntou o escrivo. Murmura L.: eu no sinto mais


nada. A sala ficou to gelada que coloquei o blazer que evitei usar na Central. A pessoa
que ria antes de entrar na Equipe, agora, volta para o outro lado da sala a pedido do
escrivo, que nota como a sala est congelante e o autuado est sem nem uma camisa.

62
Para compreender melhor como o sistema oficial de punio convive com um controle sciopunitivo
parainstitucional ou subterrneo (atravs de mtodos como castigos corporais e at mesmo tortura),
pontuo o trabalho A Contribuio do Discurso Criminolgico Latino Americano Para a Compreenso do
Controle Punitivo Moderno Controle Penal na Amrica Latina da pesquisadora Camila Prando
(PRANDO, 2006).
97

Quer dizer mais alguma coisa, indagou o escrivo No acabou!. Uma discreta
lgrima nos olhos do vida loka, percebi. Acabou mais uma vez.

Essa figura do traficante tpico equivale ao pequeno traficante e j participante


do processo criminalizador das drogas, um ru confesso e j conhecedor das violncias
do crcere e dos operadores do Sistema de Justia Criminal. O ethos da culpa, a
confisso, realizado e mais uma condenao ocorrer. A redeno por meio de um
SJC capaz de reeducar, por outro, nunca vir. que para um ex-detento o mercado das
drogas o nico capaz de receb-lo sem fechar-lhe as portas. E a engrenagem segue
repetindo-se.

2.3.5 Usurio Tpico

Quando falo em tpico refiro-me ao retrato que a literatura criminolgica j


traou, isto , pessoa de alguma posse de drogas, via de regra, um sujeito de classe
mdia, considerado usurio de drogas desde o primeiro ato criminalizador realizado pela
polcia militar.

Esse sujeito o usurio tpico para quem o tratamento como usurio ocorrer
desde a polcia militar, passando pela polcia civil e terminando no controle realizado
pelo Ministrio Pblico e Poder Judicirio nos Juizados Especiais Criminais. De
maneira geral, esse sujeito aquilo que a teoria criminolgica crtica aponta como
indivduo de algumas posses e instruo educacional, apreendido, geralmente, em reas
no pauperizadas como as demais categorias de sujeitos criminalizados o so. Eles
costumam estar presentes em delegacias com menos frequncia, mas podem tambm ser
encontrados nesses ambientes policiais.

Exemplo emblemtico desta pesquisa o caso apresentado no item 1.5.1 das


meninas A. e G., chamadas de patricinhas, que foram apreendias enquanto tentavam
fumar na Praa Osvaldo Cruz. Como j esclareci, ali se tratava de estudantes
universitrias, uma delas de dupla nacionalidade, e vestidas de maneira que as pessoas
que regularmente frequentam as delegacias no esto, isto , vestidas com roupas que
anunciavam seu lugar social.

Devo esclarecer que, conforme minhas observaes e me valendo das


consideraes tericas da sociologia do desvio, muitos desses usurios tpicos nem
98

chegam delegacia, seja pelo tempo dos procedimentos, no mnimo 6 horas, como
percebi, seja pela ausncia de vontade da PM de conduzi-los s delegacias.

Sabe-se que o grau em que um ato ser tratado como desviante depende de quem
comete a infrao. Os estudos de delinquncia infantil revelam que meninos de classe
mdia quando detidos no chegam to longe no processo legal como meninos de bairros
miserveis (BECKER, Op, cit., p. 25).

preciso aqui tambm reforar que existiro usurios que no so tpicos como
o caso descrito no mesmo item 1.5.1. Nesse episdio, um rapaz vindo de uma rea
pobre do Recife (localidade do Coque), apreendido com menos de um cigarro de
maconha e com os esteretipos que normalmente so atribudos ao traficante (cor da
pele, condio social, ausncia de emprego e ser apreendido em favela) foi considerado
como usurio. Ou seja, preciso relembrar dos usurios por sorte, como j expliquei.

2.3.6 Traficante-Policial

Essa ltima categoria pretende explicitar que a atividade ilcita do trfico de


drogas realizada tambm por agentes da lei. No cometerei a injustia de afirmar que a
polcia ator principal do trfico de drogas, mas afirmo que existem agentes da lei que
se prevalecem da proibio de drogas para realizar atividades ilcitas.

Durante a pesquisa de campo na Central de Plantes da Capital tive a


possibilidade de dialogar com muitos policiais militares, alguns exercendo suas funes
sem necessariamente estarem fardados, liberados, como se diz. Ao final da pesquisa,
pude me deparar com notcias de jornais em que dois desses policiais interlocutores
desta pesquisa haviam sido presos por trfico de drogas pela Delegacia de Represso ao
Narcotrfico, os dois liberados para realizar operaes que conheci na CEPLANC.

Pude identific-los pelos nomes que havia colhido e registrado no Dirio de


Campo e pelas fotos que foram estampadas nos jornais. Deixo de apresentar as iniciais
de seus nomes por questes de tica da pesquisa. Mas posso afirmar que foram presos
pelo DENARC, encaminhados ao Creed (Centro de Reeducao da Polcia Militar de
Pernambuco).

Segundo as notcias de jornais e informaes do DENARC, em veculo


particular pertencente a um dos autuados foram encontrados 12,715 quilogramas de
99

maconha, que estavam dentro de uma caixa de papelo coberta por um colete da PM, e
mais duas pistolas dos dois policiais. A quantidade apreendida muito superior a
qualquer apreenso realizada em flagrante na Central de Plantes, conforme j expus na
p. 84.

Esta ltima categoria encerra as aglutinaes realizadas com base na


criminalizao secundria realizada pelas polcias na RMR. Pontuo que nesse caso a
criminalizao secundria aplicou-se queles encarregados de criminalizar os pobres,
mas essa espcie de criminalizao no comum.

2.4 O controle das drogas atravs do brao policial: a reduo de danos como
paradigma alternativo ao proibicionismo

O termo proibicionismo refere-se diferenciao seletiva de legalidade versus


ilegalidade de algumas drogas, independente de potencialidade lesiva e outros critrios
cientficos. Para as ditas drogas ilcitas o brao penal chamado a intervir por meio das
agncias de persecuo penal, notadamente a polcia. Esse eixo de atuao de controle
estatal vem sendo hegemnico na poltica de drogas do Brasil e inviabiliza outros
paradigmas de cuidado, como o caso das Polticas Pblicas de Sade e Reduo de
Danos e de Riscos (PRDs) no uso de diversas drogas.

A proibio que se firma na falsa ideia de que a tutela penal em relao ao tema
de drogas medida necessria para a proteo da sade coletiva mostra outra
incongruente face do proibicionismo. At mesmo no plano da dogmtica penal e da
legalidade, tentar justificar a interveno penal no controle das drogas para proteger a
sade torna-se um arranjo argumentativo pfio.

O saber dos juristas, por vezes descontextualizado da realidade, alardeia a


incriminao das drogas em funo da expansibilidade do perigo abstrato sade
pblica e como medida necessria para defender a sociedade, suposta vtima dos crimes
dessa natureza.

Ora, quando no traz um risco concreto, direto e imediato para terceiros (a


exemplo da posse para uso pessoal de drogas ou ainda quando o responsvel pela
conduta de vend-las age de acordo com a vontade do titular do bem jurdico, pessoa
com capacidade de se autodeterminar) a proteo da sade mostra-se sem sentido,
100

incua. O dano a si mesmo no pode ser objeto de incriminao, segundo os preceitos


da dogmtica penal. A autoleso situa-se na esfera de privacidade do indivduo, no
sendo alvo da ao do Estado, sobretudo com seu brao penal.

Falarei nesta parte, a todo tempo, de substncias psicoativas tornadas ilcitas


(MACRAE, 2000) para reforar que somente algumas drogas so proibidas, o que
explicita a incoerncia da proibio. Essa expresso refere-se ao conhecido termo
droga. Por essa denominao, chamo ateno para o importante fato de que algumas
substncias capazes de alterar a psique foram tornadas ilcitas (a exemplo da maconha,
da cocana e do crack). Esse termo tambm se relaciona com a ideia de que os efeitos
resultantes do uso dessas substncias so resultado da complexa interao de variveis
de natureza biolgica, psquica e social.

A medicalizao da sociedade (o uso quase louvado de drogas receitveis e


necessrias aos sintomas decorrentes do estresse da vida contempornea) um
fenmeno que no pode passar despercebido nesta anlise. Por meio de substncias
mais danosas sade que o vcio que pretende curar (MACRAE, 2000, p. 121), a
mesma sociedade que repudia a maconha e a cocana faz usos desregrados e habituais
de drogas como ritalina e rivotril, na busca da cura da ansiedade e da depresso
(sintomas da vida contempornea).

O modo hegemnico de lidar com a questo da drogadio, represso policial,


representa um fracasso histrico do ponto de vista da preveno e freio do consumo
dessas substncias. As instncias estatais no possuem controle sob o uso de substncias
psicoativas tornadas ilcitas, a despeito das campanhas blicas promovidas no combate
s drogas.

Se h flagrante fracasso do discurso oficial de combate s substncias


psicoativas tornadas ilcitas em sua misso de livrar a sociedade delas, preciso
explicitar que a instrumentalizao do controle penal das drogas tem servido para
aprofundar marcas de violncia que constituem a histria da punio no Brasil. No
manto de penumbra que envolve a discusso das substncias psicoativas tornadas
ilcitas, um olhar no muito apurado pode constatar a falcia legislativa no trato do tema
e o discurso de parte da classe poltica brasileira.

A proibio das drogas forja um paradigma blico no trato de um problema


eminentemente de sade e de proteo. No se pode, assim, falar de substncias
101

psicoativas sem perceber os adensamentos de classe, raa, vulnerabilidade como de


pessoas em situao de abandono que habitam as ruas. A questo sobre o uso e venda de
substncias psicoativas entrelaa-se a uma srie de variveis sociais, formando
complexa teia de relaes entre o Estado e o reconhecimento de respeito, cidadania e
possibilidade de autodeterminao a alguns sujeitos.

Em um novo agir pblico ainda tmido a reduo de danos apontada nos


estudos da toxicomania como uma nova forma de atuao frente drogadio. Essa
forma de interveno progressista enfatiza a preveno das possveis consequncias
danosas sade decorrente do uso de substncias psicoativas, minimizando-se eventuais
malefcios decorrentes dessa atividade (ORNELAS, 2014, p. 68).

Opondo-se ao hospital psiquitrico hoje rememorados em asilos de


internao de pessoas em situao de dependncia de drogas, as chamadas comunidades
teraputicas e priso, a reduo de danos aposta no empoderamento do sujeito, que a
partir da autogesto de seu corpo passa a interagir com as drogas de maneira diferente.

Existe uma firula se reduo de danos poltica de sade ou movimento social.


Divergncias parte, reconheo algo novo nas propostas de reduo de danos, o fato de
que elas apontam para outro modo de o Estado entrar em contato com a populao em
situao de abuso de drogas. Esse contingente humano de drogados de todo gnero, ao
longo de toda a histria brasileira, fora fundamentalmente visto como um problema
legal ou policial (MISSE; VARGAS, 2010, apud RUI, 2014, p. 78).

Ao leitor menos familiarizado com a reduo de danos explico que o


profissional que a conduz pode ter formao ampla. Os apontamentos da reduo de
danos e riscos pretendem diminuir usos mais nocivos aos usurios, apostando na
capacidade individual desses sujeitos gerirem seus corpos e, consequentemente, o
prprio consumo de drogas. Atravs da distribuio de insumo como seringas,
cachimbos e preservativos63 ou substituio de drogas (crack por maconha) esforos so
focados na sade e cuidado do usurio, sem necessariamente exigir a abstinncia
abrupta de determinada droga (RUI, Op, cit., p.103).

63
preciso pontuar que a poltica progressista de reduo de danos se imps como necessidade, a
despeito do preconceito e gritaria do vai incentivar uso de drogas. Nos anos 90, com o boom do HIV no
Brasil, os riscos de contaminao e populao infectada a partir do uso de drogas injetveis eram
representativos, especialmente com o uso da cocana. O ento governador de So Paulo, Mario Covas,
promulgou lei que autorizava a Secretaria de Sade a promover programas de distribuio de seringas
com o objetivo de prevenir a epidemia HIV/Aids ( RUI, Op, cit., p. 74).
102

Preciso retomar um relato para discutir a questo da reduo de danos como


forma de trato da questo das substncias psicoativas tornadas ilcitas. Esse foi um caso
que acompanhei no dia 17 de junho na Central de Plantes da Capital e revela como a
reduo de danos muitas vezes desconhecida pelos agentes da lei que trabalham com a
represso criminal das substncias psicoativas tornadas ilcitas.

O autuado J. foi apreendido com 30 pedras de crack e um dolo de maconha.


J. declarou estado de dependncia de drogas e que sua me j pagou vrias dvidas de
drogas e que j foi internado em uma comunidade teraputica e ainda hoje
acompanhado por clnica conhecida como Saravida. Junto da apreenso encontra-se
uma balana de preciso. O autuado afirmou que a maconha estava sendo utilizada para
largar o crack. A despeito de certo estranhamento dessa afirmao por parte dos
policiais presentes durante a ouvida de J., essa uma estratgia de reduo de danos
adotada como forma de substituio de drogas mais pesadas por outras mais leves.

Segundo esclarece o autuado, R$ 100,00 equivalem quantidade de 5 g, ou


seja, em torno de 30 a 35 pedras, quando se consegue a substncia na comunidade do
Detran. Ele tambm esclareceu que no sabe dizer se iria vender ou consumir, mas que
quando vende cada pedra sai por R$ 10,00.

O autuado esclarece que j esteve na CEPLANC por conta de dvida de droga,


e com a mesma delegada, num caso em que foi vtima de tentativa de homicdio. R., um
agente administrativo, reconheceu o autuado e recordou dessa situao, confirmando a
veracidade da afirmao com a delegada interlocutora. J. j tinha sofrido uma tentativa
de homicdio por dvidas de drogas.

Esse trecho de um dos casos que acompanhei revela que a resposta estatal a um
usurio envolvido numa ambincia de drogas foi eminentemente penal, tendo o autuado
sido considerado como traficante. J. precisava (e quem sabe ainda hoje precise) de um
amparo mdico e social que pudesse ajud-lo a estabelecer uma relao mais saudvel
com as drogas de que faz uso sem impor-lhe a priso, o isolamento asilar em alguma
clnica ou ainda a abrupta abstinncia.

Esclareo que o abuso em meio ao peculiar e blico modo de tratar a questo


das drogas acaba no sendo tratado como questo de sade, mas como questo
policial, como se percebe do relato. A estrutura hegemnica de trato do tema ignora a
essencial questo de sade para prevenir e tratar o abuso de drogas. A ideia de livrar um
103

mundo de drogas ilusria e traz muitos mais danos do que o consumo das prprias
drogas (LEMGRUBER; BOITEUX, 2014, p. 362).

Num outro caso, do dia 16 de julho, o autuado continuou algemado segundo a


comissria porque muito queixudo. Os PMs falam que ele repassa e o rapaz
imediatamente tenta se defender. Aqui voc fica calado, aqui a nossa casa64!. O
rapaz j teve passagem por posse e a justificativa que o PM me deu para ele ficar
algemado o dia todo para que ele depois no caia por algo pior. Essa histria de
Juizado no consegue inibir uso dessas merdas!, arremata um policial militar com
concordncia dos policiais civis no cartrio de uma das Equipes da CEPLANC.

Do que adianta trazer pra c, mandar pro Juizado um noiado65? Essa pessoa
precisa de sade, mas a lei a lei (Dirio de Campo 29/07/2015). Essa frase confirma
que o controle penal, mesmo aquele mais brando, exercido por meio dos Juizados
Especiais Criminais, que considera o usurio como doente, no consegue inibir ou
arrefecer o consumo de drogas por parte dos usurios. Repita-se, o controle penal
impede a consolidao do trato da questo como problema de sade.
A propsito dos Juizados Criminais, esclareo que essa instncia acabou se
conjugando com minha pesquisa na CEPLANC a respeito do controle de drogas na
realizao da criminalizao secundria levada a cabo pelas polcias. Em pesquisa de
doutorado, no Juizado Especial Criminal da Universidade Catlica de Pernambuco,
Marlia Montenegro constatou que, no ano de 2007, aquela repartio judiciria ficou
praticamente esvaziada, quando da criao do Juizado de Violncia Domstica
(MONTENEGRO, 2015, p. 148).

Nos dias de hoje, o Frum Universitrio para os Crimes de Menor Potencial


Ofensivo encontra-se abarrotado de processos de usurios de drogas. Mas adianto ao
leitor que no so todos os usurios que l esto. Uma crvel suposio a respeito das
explanaes da polcia para mim, como a frase T.C.O. mais de maconha ou

64
Roberto DaMatta explicita a confuso entre casa e rua e como o gerencialismo da coisa e do dever
pblico acabam sendo uma confuso brasileira. A fala de uma policial mulher, provavelmente agente da
polcia civil, rememorou, no momento em que a escutei, o dilema brasileiro de uma Repblica e
democracia brasileira, na qual a confuso entre o espao pblico e privado marca constitutiva da
miscelnia brasileira( DAMATTA, 1997, p. 234) .
65
O termo noiado ou noia refere-se ao usurio de drogas em avanado grau de dependncia. Pesquisadora
responsvel por um estudo etnogrfico na Cracolndia de So Paulo, a respeito do termo noia, esclarece
que sem a substncia qumica no se constri esse tipo de corpo, sem esse corpo no se constri essa
pessoa, sem essa pessoa no se acionam os feixes de relaes j observados e sem essas relaes no se
constri territorialidades que se tornam igualmente abjetas. Est tudo imbricado (cf. RUI, 2014, p.279).
104

raro fazer T.C.O. de crack (encontrados no item 1.5.1), revelam que os conhecidos
noiados de crack no esto sob o auspicioso controle despenalizador da Justia Penal.
Essa situao possui correspondncia causal com a bonificao de bnus crack,
instituda em Pernambuco e explorada no captulo a seguir.

Explicito que o modo policial de enfrentar o problema das drogas e a


criminalizao de algumas substncias tornadas ilcitas precisa ser questionado. Este
discurso mope oculta o verdadeiro processo histrico (ZALUAR, 2000, p. 56) e as
causas estruturais da violncia, da criminalidade e das consequncias danosas de uma
segurana pblica que lida com a questo da droga com tabus e sem verificaes
cientficas.

Atravs da observao criminoantropolgica possvel flagrar a poltica


criminal a respeito das substncias psicoativas, perceber nuances e fissuras da
criminalizao das drogas que no so notadas numa anlise legislativa
descontextualizada da realidade social. Assim, os estudos sobre os outsiders e as
substncias de que eles fazem uso precisam pontuar, para alm das drogas, os fatores
socioculturais que se relacionam a esse universo desviante, para quem se dirigem
esforos policiais, mas poucos cuidados no plano da sade.

2.5 Anlise dos Relatos de Campo

2.5.1 O da maconha nem acha que crime, o de crack tem repulsa da prpria
droga

Este relato expe as duas substncias fartamente encontradas na criminalizao


secundria na RMR. A frase que intitula o relato embasada na fala de um escrivo
interlocutor. Tal orao emblemtica, pois carrega a marca da vulnerabilidade e da
vergonha que as pessoas apreendidas com crack trazem consigo.

Diferentemente das pessoas apreendidas com maconha (tanto usurios quanto


traficantes), aquelas encontradas com as pedras no tm fora para externalizar
contrariedade ao processo de sujeio em que se encontram. Alguns usurios tpicos ou
ainda usurios-revendedores de maconha so capazes de bradar contra uma ordem que
invade sua esfera de escolhas pessoais, violando uma identidade.
105

O ator, vulgarmente conhecido como crackeiro geralmente incriminado


como traficante de crack , a despeito de sua condio fsica, psquica e social, como j
expus, algum que para se inebriar precisava revender a substncia que utiliza. Esse ,
ento, o principal personagem nas teias da proibio que conheci. Sobre crack e seus
dependentes, ambos podem ser descritos como genunos filhos da rua e suas
vicissitudes, expostos nas praas pblicas e locais urbanos em que seu uso
massificado, as Cracolndias.
Os mangues recifenses, sobretudo na territorialidade de Santo Amaro,
assumem a correspondncia espacial daquilo que se conhece em outras localidades
como a cidade de So Paulo, como Cracolndia. Como ali, guardada as devidas
propores, na regio da boca do lixo, o crack, que est prestes a completar duas
dcadas e meia de ingresso no Brasil, chega maioridade desafiando as polticas de
sade, de segurana pblica, urbansticas e assistenciais no plano das cidades (RUI,
2014, p. 17).
A Cracolndia66, de onde veio a Maria Caranguejo, marcada pelo cheiro da
lama do mangue e constituda pela marca de um esgoto sexual, como diria Oswald de
Andrade no seu poema Santero do Mangue. Na lama, no vcio, nas dores e nos
segundos de prazer com o crack utilizado nos cachimbos e nas latas.
preciso desmistificar a ideia construda de droga mais leve ou pesada.
Embora se possa afirmar que por um curto prazo a potencialidade lesiva do crack seja
muito mais danosa que a da maconha, esclareo que a unio de fatores socioculturais
que trar os contornos do abuso de drogas.
A toxicomania depende da reunio de fatores muitos mais complexos do que a
simples natureza de uma substncia entorpecente sobre o organismo. Assim necessrio
atentar-se para as condies psicolgicas do usurio e para os significados atribudos ao
uso em determinados contextos socioculturais (MACRAE, 2000, p. 32-33). Ento, a
repulsa a que o escrivo faz referncia envolve a condio do sujeito que usa o crack,
geralmente em situaes de vulnerabilidade.

66
A localidade exata dessa territorialidade a Ponte do Limoeiro que liga o Bairro do Recife ao de Santo
Amaro, Avenida Prefeito Artur Lima Cavalcanti. Essa localidade pejorativamente conhecida como
Ponte do Chupa-Chupa, em referncia atividade do sexo que l se pratica.
106

2.5.2 Diga a seu pai que voc deu droga ao outro; dar, doar j trfico; t na lei

Analisando este relato gostaria de ressaltar como algumas brechas na tcnica


da dogmtica constituem sustentculo da proibio, permitindo que discricionariedades
ocorram e que continuem se perpetuando no exerccio da criminalizao secundria das
drogas.
A Lei N 11.343/2006 marcada por profunda ambiguidade legislativa e
aporias interpretativas. Utiliza-se tcnica legislativa alicerada em normas penais em
branco (p.84, explicao da razo de cola de sapateiro no ser droga); proliferao dos
verbos nucleares que sinalizam o que seja o ato de traficar; utilizao de termos
imprecisos e genricos; incriminao de condutas autolesivas supostamente para
preservar a sade pblica e incriminao de atos meramente preparatrios; indefinio
do dolo de trfico; desproporcionalidade das sanes penais aplicadas. Todas essas
caractersticas revelam problemas na Lei de Drogas.
Do ponto de vista do processo, possvel verificar a minimizao de
princpios processuais garantistas, como o contraditrio e a ampla defesa, tal como a
prtica corrente da escuta do acusado antes das testemunhas de defesa e acusao, a
exemplo da questionvel regra do artigo 57 da Lei 11.343/2006 e do artigo 44 do
mesmo diploma legal, declarado inconstitucional incidentalmente pelo STF no Habeas
Corpus 97.256/RS, que vedava a liberdade provisria para quem respondesse por crimes
de trfico (artigo 33) e associao (artigo 35).
possvel ainda afirmar que a Lei de Drogas refora o que se conhece como
descodificao penal, isto , desde a Lei 6.368/76 as normas incriminadoras das
condutas relacionadas s drogas passaram a integrar leis penais especiais, logo fora do
Cdigo Penal. Com isso, possvel desde h muito perceber que com a fragmentao e
autonomia do direito penal das drogas, houve a flexibilizao de preceitos penais e uma
ruptura com a base garantista do direito penal (cf. CARVALHO, 2010, p. 197).

A Lei N 6.368/1976 continha 12 verbos nucelares incriminadores do ato de


traficar, j com a Lei N 11.343/2006 as condutas indicativas do trfico de drogas
passaram a ser 18. Interessante observar tal progresso para afastar a difundida ideia de
um conceito ontolgico de crime que distorce este de um processo de construo
histrica e social. A histria da criminalizao das drogas, nesse ponto, torna latente que
no existe, per se uma criminalidade, mas uma criminalizao: atos no so, eles se
tornam (cf. CHRISTIE, 2011, p. 29).
107

Ademais, a Lei de Drogas no possui claramente uma distino precisa na


finalidade de agir do usurio e do traficante. Prova disso que verbos como adquirir, ter
em depsito, transportar, trazer consigo, guardar constituem condutas sinalizadoras do
trfico e da posse de drogas para consumo pessoal. Observe, leitor, essa identidade
siamesa dos verbos incriminadores previstos no mesmo Diploma Legal, a Lei N
11.343/2006:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depsito, transportar ou trouxer


consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorizao ou em desacordo
com determinao legal ou regulamentar ser submetido s seguintes penas:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,
vender, expor venda, oferecer, ter em depsito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda
que gratuitamente, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal
ou regulamentar:

No caso em questo a finalidade do agir no fica clara. O rapaz indiciado pelo


crime de trfico de drogas deste relato tambm usurio de drogas com comprovao
de dependncia qumica e passagem pelo CAPS-AD. importante frisar que em meio a
uma lei aberta, porosa e que torna fcil o cometimento de arbitrariedades no ato de
incriminar, necessrio uma postura garantista da polcia, notadamente a polcia que
oficializa a criminalizao secundria das drogas: a civil/judiciria.

Valendo-se de preceitos garantistas, poder-se-ia considerar o sujeito


criminalizado como traficante como usurio ou ainda uma modalidade de trfico
privilegiado, cujas penalidades no seriam a priso, mas sim uma medida do JECrim.
Por minhas constataes de campo e alguma experincia na prtica forense, acredito
que essa modalidade de trfico constitui letra morta na criminalizao secundria, in
verbis:

Art. 33 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa


de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - deteno, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700
(setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuzo das penas
previstas no art. 28.

O garantismo penal se desenvolve sob trs acepes: teoria epistemolgica


(FERRAJOLI, 2006, p.786): sistema cognitivo de poder mnimo neste ponto que
se estabelece axiomas e qual modelo de direito penal deve ser adotado para que o
ordenamento jurdico seja considerado garantista; como teoria poltica uma tcnica
108

de tutela idnea a minimizar a violncia e a maximizar a liberdade (Op. cit., p.786);


uma doutrina democrtica dos poderes do Estado. (Op. cit., p.787).
Embora possua crticas ao garantismo penal, cuja ideologia essencialmente
liberal, preciso reconhecer que no h somente juzes garantistas, mas policiais
tambm, esses com um poder muito maior na blindagem das arbitrariedades no
exerccio de punir. verdade que a criminalizao no possui geralmente critrios
seguros, mas algumas vezes, como pude verificar, o garantismo pode ser observado na
atividade da polcia judiciria. Esse garantismo da polcia judiciria necessrio e at
louvvel, evitando-se discricionariedades, as quais ocorrem na maioria dos casos
flagrados quando se realiza interpretao da to permissiva Lei de Drogas.

2.5.3 Nunca tive o prazer de apreender cocana

Nem todas as drogas formam a engrenagem punitiva na Central de Plantes da


Capital. Drogas qumicas por excelncia (cido lisrgico mais conhecido como LSD,
cocana, cstasy) no costumam estar presentes nos procedimentos dirios em curso na
Central de Plantes da Capital. Os big-big de maconha e as pedras crack, por outro
lado, so quase que drogas exclusivas encontradas no cotidiano do Departamento
Policial estudado.

Nunca tive o prazer de apreender cocana. Em Boa Vigem ainda se consegue


apreender traficante de p, mas muito raro. Escutei essa frase, certa vez, de um
sargento da polcia militar ao indagar sobre as substncias apreendidas em flagrantes na
RMR. Essa frase, dita por um agente da lei, de mais de trinta anos de servio em
atividades policiais, tem muito a nos dizer sobre o controle excessivo da criminalizao
de algumas drogas pelas polcias.

As drogas que formam a engrenagem diria da criminalizao so, portanto,


substncias mais baratas como o crack e a maconha. Os comerciantes apreendidos,
diariamente, so aqueles que carregam as aludidas substncias. Conforme os policiais
militares, o pino de cocana custa em mdia R$ 100,00 (cem reais), valor dez vezes
mais caro que uma pedra de crack, cujo valor de R$ 10,00 (dez reais).

A cocana, desse modo, aparece na CEPLANC somente atravs dos laudos que
atestam tratar-se de crack, cocana em pedra, como diz a linguagem tcnica.
Tecnicismos parte, cocana e crack, faces da mesma moeda, ou do mesmo componente
109

qumico, diferenciado apenas por uma molcula de cloreto, so substncias irms


destinadas a diferentes sujeitos. Aos filhos da pobreza destinado o crack, resduo da
cocana, misturada com substncias como gasolina e outros aditivos qumicos.

Quando falo em faces da mesma moeda, mais do que chamar ateno para a
identidade qumica dos componentes do crack e da cocana, gostaria de salientar que a
setorizao dos usos dessas substncias representa forte estratificao social. A cocana
encontra abrigo nos protegidos apartamentos de luxo e nas festas privadas, enquanto o
crack o genuno filho da rua e suas vicissitudes, exposto nas praas pblicas e locais
urbanos em que seu uso massificado, como nas Cracolndias, que so muitas.

As prticas de diviso estudadas por Alessandro Baratta (explicadas em tpico


anterior) podem ser observadas no s na dicotomia cidados de bem x
traficante/criminoso, mas numa engrenagem que blinda traficantes e usurios de
determinadas drogas (como a cocana) e salienta a vulnerabilidade dos outros atores
(como os envolvidos com a maconha e o crack).

Usurios e traficantes continuam a fazer parte de um universo pouco conhecido


e discutido fora da brutalidade intervencionista do Sistema Penal, o qual j mostra sinais
retumbantes de fracasso no combate s drogas. Esse quadro retrata um fnebre sucesso
na perpetuao de um autoritarismo e gerncia da pobreza e vulnerabilidade social. So,
assim, as drogas da pobreza aquelas amplamente criminalizadas na RMR.

3 AS POLCIAS E A CRIMINALIZAO DAS DROGAS NA SINFONIA DO


PACTO PELA VIDA: de qu e de quem estou falando?

3.1 Eu, um estranho no ninho, e o olhar criminoantropolgico sobre as polcias

Esta derradeira parte da pesquisa apresenta as questes de organizao e


estruturao da segurana pblica, condutoras da criminalizao secundria realizada
pelas polcias no Grande Recife.

Apresento ao leitor, agora, a sinfonia que rege a pera da criminalizao das


drogas, que tem na Central de Plantes da Capital o seu palco maior, antes de ganhar
110

lugar nos estabelecimentos prisionais e nos processos das prateleiras do Tribunal de


Justia de Pernambuco.

Falarei, ento, da forma de conduzir a segurana pblica em Pernambuco criada


a partir do Pacto Pela Vida. Essa forma de nortear o agir das polcias ocorre atravs de
um regime de metas que possui contundentes relaes com o controle penal das drogas
no Grande Recife exposto ao leitor nos relatos de campo e no captulo anterior. Mais
uma vez preciso esclarecer que meu olhar a respeito das polcias ocorreu atravs do que
denomino olhar criminoantropolgico, isto , a juno de saberes da Criminologia
Crtica e da Antropologia Social.

Desse modo, para conhecer a instituio policial, seus usos e costumes, preciso
ver como a polcia atua67, uma vez que as prticas policiais em muito ultrapassam o
discreto papel que lhe determinado pelo arcabouo legal (cf. OLIVEIRA, 2003, p.
283). Alis, se um pesquisador for analisar as polcias, perceber farta defasagem no
Cdigo de Processo Penal sobre as polcias militares e sobre autos de priso em
flagrante e portarias, que constituem a principal tarefa burocrtica da polcia civil,
chamada de polcia judiciria.

Outras pesquisas j sinalizavam para o que tive que executar, isto , para estudar
a totalidade dos modos do ser polcia preciso romper as barreiras que tentam
enquadrar a polcia como simples estrutura da justia criminal com funes restritas ao
Cdigo de Processo Penal. As funes da polcia transbordam singelas simplificaes
dogmticas e normativas. A observao revelou-me que as aes policiais afetam
muitas pessoas e envolvem vrios nveis de autoridade e coero que s podem ser
sentidos a partir da imerso na realidade do trabalho policial (GOLDSTEIN, 2003, p.
53).

No bastava, portanto, s a Criminologia com sua ampla literatura policial, na


qual esse importante ator social visto como principal agente de um direito penal

67
O pesquisador Luciano Oliveira, nos anos 80, na Cidade do Recife, a partir de visitas em vrias
reparties policiais, mostrou como a polcia resolvia pequenas contendas de ordem civil e criminal.
Essas questes estariam, por exemplo, relacionadas briga de vizinhos, ao no pagamento de alugueis, e
aos xingamentos, configuradores de crime contra a honra. Tudo envolvendo as classes populares, com a
condescendncia do Poder Judicirio que, em tese, estaria ocupado com crimes mais graves. Luciano
chamou essa atuao de praticas judicirias dos comissariados de polcia nas delegacias da cidade do
Recife. Esse trabalho est registrado nos Anais da Constituinte de 1988 e um dos responsveis pelo
constituinte ter inserido o Juizado Criminal no artigo 98 da nossa Carta Magna (JUNQUEIRA, 2004, p.
09).
111

subterrneo que enraizou suas prticas na Amrica Latina, secundando uma estrutura de
poder-dominao (CASTRO, 2005, p.129). Esse modo de agir da polcia tem marcas
em eventos, a exemplo do massacre do Carandiru, da Candelria e de Eldorado dos
Carajs, nos quais a polcia atua protagonizando episdios de brutalidade como aparelho
repressor a servio das classes dominantes.

De igual maneira, no bastava s a Antropologia com a suave descrio de


eventos que conduzem a densas compreenses da realidade exposta pelo etngrafo.
Para compreender as polcias, como propus nesta pesquisa, foi preciso realizar juno
desses dois saberes, no que denomino olhar criminoantropolgico, de cunho analtico-
descritivo.

Ressalto que as polcias so muitas. Por isso, reforo com a pluralizao do


termo polcia essa multifacetada teia de culturas e agir dos policiais, sendo possvel
observar pontos de convergncia na atuao, como o atuar repressivo a respeito das
drogas, mas tambm a verificao de marcas particulares de cada organizao policial,
departamento policial ou corporao.

Posso exemplificar, secundando as diferenas das polcias, que os problemas e


formas de atuar de uma Delegacia de Bairro so diferentes da Central da Capital. De
igual modo, ressalto que os onze batalhes da polcia miliar, representados na p. 40, que
cruzaram meu olhar de pesquisador, possuem inmeras idiossincrasias que este
pesquisador no pode esgotar neste trabalho de mestrado.

Comeo esta parte final desta dissertao expondo algumas questes de ordem
subjetiva a respeito do meu olhar sobre as polcias. Como j mencionei na p. 75, sempre
houve em mim muitos preconceitos a respeito da polcia e suas prticas. Preconceitos
esses que foram depurados e alguns, a partir de amadurecimento deste pesquisador,
superados a partir do olhar criminoantropolgico.

Preciso aqui falar de que muitas percepes positivas e negativas a respeito


do agir policial esto inseridas no que a literatura da sociologia do crime chama de
cultura policial. Assim, o herosmo, a ideia de combater o mal personificado na
criminalidade de drogas, o herosmo de ser um defensor da sociedade e a conjectura
de que um bom policial o que prende so faces de uma cultura policial que um leitor
atento j viu delineada neste trabalho. A cultura policial, ento, possui condies
subjetivas e tambm condies estruturais que so impostas aos agentes da segurana
112

como o caso de programas de segurana pblica que moldam e direcionam o agir


policial.

O termo cultura policial refere-se ao complexo conjunto de valores, atitudes,


smbolos e prticas que envolvem tanto a esfera da individualidade do policial quanto s
regras e construes da segurana pblica como as do Pacto Pela Vida a respeito da
criminalizao das drogas e as que so ditadas pelos batalhes da polcia militar em
obedincia poltica que os governos lanam para as polcias. A cultura e sociabilidades
policiais, assim como a de todos ns brasileiros, so marcadas pela cicatriz de
torturador. Relembro que a tortura j foi exorcizada da histria do Pas, mas sempre
retorna na exploso da brutalidade policial (OLIVEIRA, 2009).

As polcias no poderiam ser diferentes da histria da nao constituda a partir


de um moinho de triturar gente. Legatria da marca dos bandeirantes, as polcias,
sobretudo a militar, ainda representam a figura dos brasileiros que pelejam contra a
pobreza e cujo ofcio de caador de gente se converteu em gnero de vida. preciso
reconhecer na cultura brasileira as marcas de vigilncia perptua de alguns grupos, bem
como a violncia atroz da punio preventiva (cf. RIBEIRO, 2006, p. 96-107).

A frase de um agente da polcia civil, que outrora foi policial militar, sobre sua
forma de ser policial, confirma a esfera de valoraes de prticas que constituem o ser
um policial militar: eu sa da PM, mas a PM no saiu de mim (Dirio de Campo
23/06/ 15). O modo como esse comissrio68 da polcia civil exclamou esse significativo
desabafo revela o jeito PM de ser, ou de encenar seu ofcio, por assim dizer. Esse
mesmo interlocutor esclareceu-me que h PMs que j so sargentos, mais ainda assim
fazem concurso para a polcia civil, mesmo ganhando menos, s para no ter que lidar
com o estresse que o bandeirante das capitais brasileiras precisa se submeter para
exercer sua labuta diria.

O artigo 144 da Constituio afirma que cabe PM ou melhor dizendo, s


polcias militares o policiamento ostensivo, uniformizado, tambm chamado
preventivo. Da diviso (por que no social do trabalho?), as investigaes cabem com

68
Sobre os comissrios que julgavam pequenos casos como juzes do povo no Grande Recife
(OLIVEIRA, 1984) preciso esclarecer que nos dias de hoje eles so apenas chefes setoriais. O comissrio
um agente com mais tempo de polcia. Quando um PM entra na polcia civil ele aproveita o tempo de
servio como praa, cabo, sargento, por exemplo, para j ser comissrio e no agente de polcia. Os
comissrios geralmente fazem a triagem e analisam as demandas (Dirio de Campo, madrugada do dia
14/08/2015).
113

exclusividade s policiais civis, restando, portanto, aos policiais militares, quando se


lhes cobra produtividade, fazer o qu? Prender e apreender drogas e armas69 (SOARES,
2015, p. 29).

Boa parte das polcias, notadamente aquela que se encontra nas ruas, continua,
por definio legal e por heranas de um entulho autoritrio, definida como instituio
militar. Isso significa que a PM deve se organizar semelhana do exrcito, do qual ela
considerada fora de reserva. Isso implica a imposio sobre os aparelhos policiais de
um modo de organizao que a obriga a mobilizar grandes contingentes humanos com
rapidez e preciso, o que requer centralizao decisria, hierarquia rgida e estrutura
fortemente verticalizada.

O Brasil possui ainda algumas caractersticas particulares em relao a suas


foras policiais: embora o controle das polcias estaduais seja formalmente do exrcito,
do ponto de vista prtico elas subordinam-se autoridade do governador dos estados
(cf. BEATO, 1999, p. 20). No item 1.5.1, especificamente a partir das pp. 59/60,
descrevo o uso poltico da polcia militar para barrar a luta por direitos da polcia civil.

Ainda falando sobre os Poderes subjugadores e as polcias, preciso esclarecer a


identidade do que se chama polcia judiciria. Quando me refiro ao que chamo de
identidade explico que essa identidade rf. As polcias civis no pertencem ao
Judicirio, mas so chamadas de judicirias, abastecendo os Tribunais como amas de
leite de seu sumo vital: inquritos policiais que se tornam aes penais. Elas no so
nunca retribudas devidamente por suas atividades essenciais vida da justia brasileira.

Alm disso, as polcias rfs so as primas pobres do Ministrio Pblico, que


deve fiscaliz-las devido s atribuies funcionais de controle externo da atividade
policial, o que, geralmente, no se realiza (artigo 129, VII da Constituio Federal).
Ainda posso afirmar que elas so enteadas mas nunca filhas do Poder Executivo,
no tendo oramento prprio, desse modo, seu padrasto concede-lhes incentivos
polticos e financeiros para atuar de determinada forma, como relato a todo tempo neste
trabalho.

69
Essa frase foi escrita pelo pesquisador Luiz Eduardo Soares e revela afinidade descritiva com a gerncia
da segurana pbica no Grande Recife. Acredito que o produtivismo policial marca de uma cultura
policial que deve ser questionada. Essa cultura da produo parece ter dado a tnica do agir policial como
revelam anlises de autores brasileiros, bem como a srie sobre polcia organizada pelo Ncleo de
Estudos da Violncia da USP, citada neste captulo.
114

Preciso esclarecer a respeito da cultura policial das drogas, conforme a literatura


sociolgica j havia me alertado, que alguns policiais tm uma espcie de interesse
missionrio em reprimir o mal encarnado na figura da droga e seus mercadores e
consumidores. Por outro lado, a grande maioria dos agentes da lei dispe de certa viso
neutra e objetiva de seu trabalho de represso s drogas (cf. BECKER, Op, cit., p. 161).

Nesse sentido, muitos dos agentes da lei at so favorveis descriminalizao


da maconha, como mostrei em captulo anterior. De outra banda, os policias exercem o
papel de empreendedores morais verdadeiros cruzados na luta contra drogas como o
crack, para a qual existe uma esfera de demonizao e incentivos financeiros para que
eles os policiais livrem a sociedade desse tipo de mazela.

tambm preciso esclarecer que a polcia muito dificilmente questiona o


contedo da regra que o desviante traficante ou usurio de drogas quebra, afinal a
existncia da regra que lhe fornece um emprego, uma profisso. Devo pontuar, com
base em minhas incurses em campo e com o que j foi escrito a respeito do agir
policial, que esses agentes da lei no costumam discutir as razes do trfico. verdade
que por vezes questionam sem respostas definitivas as razes de algum se tornar
traficante, mas sem muitas reflexes.

Nessa esfera de ausncia de debates e discusses com as agncias policiais cria-


se uma cultura de raiva da polcia por parte de setores sociais, sobretudo a militncia
social, viso a qual trazia comigo antes da investigao na Central. Da mesma forma,
por no haver comunicao, a polcia passa a oferecer medo parte da populao e certa
ojeriza a quem defende o tema do controle das drogas por outras vias que no a penal
(SOARES, 2005, p. 48).

Nesse ponto, as pesquisas tm revelado que ao lidar com o problema das drogas,
a polcia trata com situaes extremamente variadas, envolvendo vrias significaes do
universo das drogas. Logo, ela atua com diversos usurios e traficantes, bem como com
infinidade de drogas, algumas perigosas no plano da potencialidade lesiva imediata no
organismo e outras inofensivas se se considerar efeito a curto prazo, fisiologicamente
falando (GOLDESTEIN, Op, cit., p.123).

Assim, a discusso sobre drogas entrelaa-se com o debate sobre a retirada dessa
questo do brao policial. Em sntese, a srie NEV-USP congrega essas experincias
especialmente em terras estadunidenses da seguinte maneira. A atividade policial pode
115

ocorrer com esforos para descriminalizar certas formas de comportamento; esforos


para se diversificar o modo como se lida com o problema e esforos para suprir
alternativas que ultrapassem o sistema como um todo. (cf. GOLDESTEIN, Op, cit., p.
106). Enquanto o agir policial estiver guiado represso, ver-se-o cenas como
verifiquei em campo: cidados sofrendo com o abuso de alguma droga, geralmente
pessoas sem um lar, que passam a ser preocupao das polcias militares e civil (como
as mulheres do mangue recifense).

Continuando essa anlise, conjugando teoria e observao emprica, o uso de


maconha no considerado um problema to grave quanto o uso de outras substncias
de natureza opicea, como descreveu Becker. Essa mesma concluso pode ser
apresentada para a realidade brasileira, substituindo-se as opiceas pelo crack. Um PM,
desse modo, capaz de bradar pela legalizao da maconha ou pela pena mxima de
priso para usurios e traficantes como sendo situaes semelhantes para seu trabalho
como analisei nas pginas 80-81. J a respeito do crack o buraco muito mais embaixo.

Tenho convergncia com Becker a respeito da explicao do agir seletivo da


polcia na atribuio de mais mal aos envolvidos com algumas drogas como a herona
no passado e o crack no presente. Isso decorre da afirmao factvel e verificvel de
que alguns usurios tanto de drogas como a herona no sculo XX quanto os de crack
no XXI praticam atos desviantes como prostituio e pequenos crimes como furto. O
intuito de obter de obter essas drogas nos casos desses usurios leva prtica de outros
pequenos delitos que os usurios da maconha no costumam por em prtica (Op, cit., p.
166).

Essa questo de propenso ao crime de alguns usurios de drogas tm razes


outras para existir diferentes de uma simplria e ignbil explicao, quase etiolgica, de
que usar determinada droga conduz prtica de crimes. Assim, observo que o motivo
para que alguns usurios sejam duplamente estigmatizados como delinquentes (no
ontem com as drogas como a herona e no hoje com o crack) gira em torno da ausncia
de amparo. Eles sero estigmatizados como usurios ou traficantes e como pequenos
116

batedores de carteira e de celulares70 ou como prostitutas praticantes de delitos


patrimoniais de bagatela.

So, portanto, os usurios em situao de abandono, e geralmente tambm em


situao de rua, que praticam esses delitos de pequena monta. Desse modo, por falcias
tidas como verdades, os impositores de regras, notadamente os policiais, por presses de
sua prpria situao de trabalho, acabam aplicando regras e criando outsiders de uma
maneira seletiva. O sujeito desviante que vive na ambincia do crack aquele para
quem os esforos policiais vo convergir, como esta pesquisa pde concluir.

Os procedimentos relacionados s drogas, como constatou Louk Huslman (1993,


p. 164), so situaes em que a polcia empurrada a atuar (procedimentos ativos),
diferentemente dos procedimentos reativos, nos quais existem vtimas, pessoas com
alguma leso ou perda de direito a reclamar em dada situao. Dessa maneira, no
coincidncia que as polcias, notadamente as militares, figurem como nica testemunha
da incriminao por trfico ou posse de drogas, como expus na p. 37.

Ratifico que nem o Sistema de Justia Criminal nem a polcia so veculos


apropriados para lidar com outsiders que no violem nenhuma outra norma. O direito de
utilizao da substncia que lhe apetea o paladar e a conscincia no pode ser
criminalizado, bem como a venda no pode ser criminalizada, sob pena de
criminalizao concreta e equivocada de usurios como se traficantes fossem. A
interveno penal no caso das drogas ocorre acobertada pela premissa de que a
interveno penal necessria para ajudar pessoa com problemas com essas
substncias. Isso no verdade e essa cultura policial envolvendo drogas deve ser
desvelada, questionada e, esperanoso que sou, modificada. Sigo agora explicando
particularidades da poltica pblica de segurana que moldou e aperfeioou o agir das
polcias em Pernambuco.

70
Durante a escrita desse trabalho na Praia de Piedade fui alvo de uma ao sem violncia por parte de
dois usurios de crack. Levaram-me o celular dois rapazes com uma lata de cerveja com sinais de que j
havia sido queimada. Latas de cervejas e refrigerantes so usadas na falta de cachimbos para fumar o
crack.
117

3.2 Pacto Pela Vida: Vida ou Proibio?

O Pacto Pela Vida (PPV) uma poltica de segurana pblica implantada em


Pernambuco a partir do ano de 2007. O Pacto centrou seus esforos em Crimes
Violentos Letais Intencionais (CVLIs), ou seja, delitos que resultam em falecimento. O
objetivo do enfoque foi tentar diminuir os assustadores ndices de homicdios que se
verificavam em abastada representao neste estado.

O estado de Pernambuco, na adequada fragmentao logstica instituda pelo


Pacto Pela Vida, corresponde a 26 reas Integradas de Segurana (AIS) da Capital ao
Serto. Essa diviso territorial pretendia melhorar o acompanhamento de aes e
resultados para uma melhor atuao no plano da segurana pblica. A capital envolve as
AIS numeradas de 1 a 5. A Regio Metropolitana do Recife envolve a AIS 6 a
10. Apresento ao leitor essa delimitao para que ele compreenda que falo e apresento
casos que envolvem apenas o Grande Recife.

Pernambuco, uma das 27 unidades federativas do Pas, e o segundo estado mais


populoso do nordeste brasileiro, apresentou uma taxa mdia de homicdios por 100.000
habitantes de 50, 40 durante o perodo compreendido entre 2000 e 2011, segundo os
dados do Sistema de Informao de Mortalidade do Ministrio da Sade. J na vigncia
do PPV, especificamente entre 2007 e 2011, houve uma reduo de 26,26% nas taxas de
homicdio, com uma reduo mdia de 5,25% ao ano (cf. RATTON et al, 2014, p.10).

O PPV, atravs da Gerncia de Anlise Criminal Estatstica, por onde este


pesquisador iniciou seus contatos com as polcias pernambucanas, dentro da Secretaria
de Defesa Social, fortaleceu a GACE para que esta pudesse assumir protagonismo na
produo de informaes de qualidade com a finalidade de subsidiar as aes da polcia
e os mecanismos de monitoramento e gesto policiais, conferindo certa transparncia
delicada questo da segurana pblica. (RATTON et al, Op, cit., p.13).

Esse programa de segurana contou para sua formulao com 16 cmaras


tcnicas por ordem temtica. Entre essas cmaras, aquela sobre poltica de drogas
interessa a essa investigao, por ter guiado o eixo de atuao das polcias a respeito do
tema das substncias tornadas ilcitas como o crack, tema que se entrelaa com toda esta
pesquisa. Alm disso, houve a criao de um Comit Gestor que se desdobra em cinco
cmaras tcnicas: 1) defesa social; 2) administrao prisional; 3) articulao com Poder
118

Judicirio, Ministrio Pblico e Defensoria; 4) preveno social e 5) enfrentamento do


crack. (RATTON et al, Op, cit., 14).

Essas cmaras renem-se na Secretria de Planejamento e Gesto (SEPLAG)


semanalmente e norteiam as diretrizes do Programa. Essa configurao representa
importante avano na forma de pensar segurana pblica. Por limitao de espao,
detenho-me nas relaes entre o PPV e as drogas, entre elas a criao de gratificaes e
estmulos para os policiais que atingirem metas de apreenses de drogas em sua rea de
atuao. Entre essas metas, apresentarei ao longo deste captulo duas modalidades
desses incentivos: o bnus crack e os pontos debelados.

Saliento e secundo as informaes de delgados interlocutores deste trabalho


sobre alguns aspectos positivos do Pacto Pela Vida. Ele certamente ajudou as polcias a
terem uma melhor leitura sobre si mesmas, sua estrutura e os problemas relacionados
criminalidade. Programa de Segurana Pblica exitoso em alguns aspectos como a
reduo dos homicdios em Pernambuco (de at 40% no estado at 60% na capital
pernambucana) (RATTON et al, Op, cit., p.11), bem como no estabelecimento de uma
logstica informacional, que transformou o quadro no qual as polcias antes
desconheciam sua imagem no espelho.

Estudar segurana pblica envolve uma srie de variveis complexas e de


conhecimentos de experincias que se acumulam para um pensar o direito de
segurana de forma sria e comprometida para o bem-estar da populao, sobretudo
das sofridas classes populares. Existem, portanto, na linha de frente, com que se depara
o intelectual da segurana pblica, contradies na atividade de tentar medir o
fenmeno do crime e da violncia.

Assim, no plano da segurana pblica a reduo de mortes e crimes computveis


pode ser subproduto perverso do aumento do perigo representado por grupos criminosos
(SOARES, 2002, p. 231). Ento, estudar segurana envolve uma srie de variveis
complexas nas quais um resultado aparentemente positivo no controle da criminalidade
pode ser consequncia da ao de organizaes delinquentes.

A tarefa difcil e minhas consideraes carregam respeito pelos acadmicos


que se dedicam a pensar o tema da segurana, motivo pelo qual as crticas que realizo
no so direcionadas s pessoas, mas aos fatos que etnograficamente mapeei. As
incurses etnogrficas ensinaram-me que, em se falando de polcia, por onde a real
119

mudana comea, todos os esforos e estudos so vlidos e devem somar ricos


intercmbios de pensamento e jamais sectarismos na ilusria feira das vaidades em que
se perde a Universidade brasileira.

O modo pernambucano de fazer segurana tem conexes com a Escola de Minas


que, por sua vez, possui inspiraes operacionais no que se realizou em Medeln e
Bogot na Amrica Latina. Em ltima escala, no modelo implementado na cidade de
Nova York que as polticas de segurana pblica sul-americanas, acima mencionadas,
guardam sua primognita linhagem. Contudo, preciso ter cuidado na importao de
modelos prt--porter sem o devido perceber de particularidades brasileiras envolvendo
a segurana pblica.

Tal como em Nova York, o PPV obteve xito no controle de determinada


criminalidade, mas esta pesquisa relata que esse xito tambm um enigma, j que o
encarceramento por trfico de drogas, assustadoramente, quase que quadruplicou, ao
passo que a reduo de homicdios tambm ocorreu, mas em menor proporo. Naquela
megalpole, ainda hoje h um enigma posto: os ndices positivos de reduo de
criminalidades que dominavam expressivos territrios da cidade que nunca dorme
vieram acompanhados de brutalidade e corrupo policiais.

O exemplo nova-iorquino ajuda a compreender um grande encarceramento de


violadores de normas como, por exemplo, no quebrar uma janela, usando a
conhecida metfora de Wilson, que justifica a tolerncia zero (SOARES, 2002, Op, cit.,
p 232). Depois de algum tempo, os custos desse modelo de segurana comearam a
aparecer e por um ponto em comum ao modelo Pernambuco: a superlotao e
escndalos em seus sistemas penitencirios que passaram a no conseguir administrar e
custear seus recolhidos da cidade. O sistema prisional pernambucano est pelas
tabelas com o encarceramento transbordante por crimes envolvendo a Lei de Drogas,
para usar palavras amenas.

Preciso, neste momento, recorrer aos dados do Departamento Penitencirio


Nacional (Sistema Nacional de Informao Penitenciria atravs do que se chama de
estatsticas consolidadas dos anos de 2006 a 201271) sobre a criminalizao das drogas

71
A tabela est incompleta no que diz respeito ao delito de homicdio simples e qualificado, porquanto os
dados do MJ esto inacessveis a partir de 2011. Os dados esto defasados, pois no tm informaes a
partir de 2012 sobre o trfico e a partir de 2011 nem podem ser consultados sobre os crimes contra a vida.
A respeito da completude dos dados a respeito de populao, populao carcerria, presos provisrios e
120

para depois proceder ao entrelace dessa criminalizao com o Pacto pela Vida no
combate s mortes violentas intencionais. Note com ateno, caro leitor, o progredir da
criminalizao dos delitos relacionados ao trfico de drogas e aos crimes de homicdio
simples e qualificado:

Delito de
Delito de
Populao Presos Homicdio
Perodo Populao Trfico de
Carcerria Provisrios Simples e
Drogas
Qualificado
Jun/2006 8.502.602 16.509 6.448 1.205 1.682
Dez/2006 8.502.602 15.778 5.954 1.508 1.478
Jun/2007 8.502.602 17.400 10.723 1.998 3.398
Dez/2007 8.502.602 18.836 10.508 2.577 4.578
Jun/2008 8.502.602 18.888 10.576 2.688 4.450
Dez/2008 8.734.194 19.808 11.243 2.844 4.897
Jun/2009 8.734.194 20.865 12.299 2.911 5.005
Dez/2009 8.810.256 21.041 12.349 2.940 5.089
Jun/2010 8.810.256 23.086 13.762 3.185 5.443
Dez/2010 8.810.256 23.925 13.737 3.391 5.594
Jun/2011 8.810.256 25.321 14.857 3.745 -
Dez/2011 8.796.032 25.850 15.177 4.127 -
Jun/2012 8.796.032 27.193 16.504 4.990 -

Tabela 1. Populao carcerria no Estado de Pernambuco.


Fonte: DEPEN (montagem Cristhovo Gonalves).

possvel perceber, no perodo de informaes disponveis no stio eletrnico


do Ministrio da Justia, como o encarceramento aumentou significativamente no
Estado de Pernambuco na regncia do Pacto Pela Vida. Os nmeros comparados do
delito de trfico de drogas chegam em determinadas pocas a ser muito semelhantes
(proporcionalmente falando) constrio da liberdade de pessoas envolvidas em delitos
de homicdio simples e qualificados, duas modalidades de crimes contra a vida
(somadas para apresentao desses dados ao leitor).

de trfico de drogas, esclareo que fiz esse preenchimento em garimpagem anterior. A montagem dessas
variveis ocorreu por ocasio do trabalho de concluso de curso deste pesquisador intitulado
DENEGUE-SE A ORDEM: Um Estudo Criminodogmtico sobre os Second Codes (Cdigos
Ideolgicos) nos Julgamentos dos Habeas Corpus Relativos Lei n 11.343/2006 no Tribunal de Justia
de Pernambuco pela Universidade Federal de Pernambuco e sob orientao da Prof. Dr. Marlia
Montenegro Pessoa de Mello.
121

O problema do estarrecedor encarceramento em questo de drogas neste


estado envolve predominantemente a jovem populao adulta, como mostrei no
panorama quantitativo. Essa questo tambm perpassa alarmante nmero em relao
aos adolescentes em conflito com a lei, praticantes de atos infracionais anlogos ao
crime de trfico de drogas, pela mesma razo que verifiquei em relao aos adultos que
passaram pela Central: metas do Pacto Pela Vida.

Esclareo, ao leitor, que a partir de outra investigao que conduzi pelo Grupo
Asa Branca de Criminologia, em parceria com pesquisadora, constatei que Pernambuco
tinha em 2011 a segunda maior taxa de encarceramento de adolescentes com a cifra de
1.456 adolescentes internados, s perdendo para a de 6.814 do estado de So Paulo, cuja
proporo demogrfica muito maior que a deste estado. Alm disso, pude constatar o
fato de que 90% desses jovens encarcerados usam drogas me amparando em dados
oficiais do Ministrio da Justia (cf. BABINI, rica, GONAVES, Cristhovo, 2015, p.
323).

O crcere, dessa maneira, usado como poltica social de combate s drogas


no territrio pernambucano. Quem comercializa drogas ilcitas de forma alguma no
est cooperando para um bom desenvolvimento social (...). Queremos ver varrido da
sociedade (cf. BABINI, rica, GONAVES, Cristhovo, 2015, p. 328). Esse trecho
recortado de sentenas de internao dessa juventude revela o quadro de prises por
drogas na Regio Metropolitana do Recife, no qual a polcia recolhe outsiders e os
juzes declaram varrer da sociedade essas pessoas envolvidas no comrcio ilcito de
drogas.

Em tese de doutorado do ano de 2015 do PPGS- UFPE, pesquisadora apresenta


a motivao dos homicdios em ordem decrescente de acordo com investigaes do
Ncleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violncia e Poltica Pblica de
Segurana (NEPS-UFPE). A relao com drogas figura como principal causa dos
homicdios em 17,5 %. Depois, aparecem outras razes, em 14,8%, motivo imediato;
13,6%, motivo passional; 13%, transao criminal (retirada da computao acertos
relacionados ao trfico de drogas); 8,3%, conflitos entre gangues; 7,7%, justia privada;
4,1%, delao ou boato; 3%, motivo incidental; 3%, reao ameaa de morte; 2,4%,
conflito envolvendo relaes domsticas ou familiares (no includo motivo passional) e
1,8%, motivo desconhecido (cf. ANDRADE, 2015, p. 120).
122

Essa motivao confirma as informaes de delegados interlocutores do motivo


de o Pacto Pela Vida focar esforos e reforos policiais no combate s drogas, embora
essa relao causal da droga como principal motor dos homicdios no seja inteiramente
verdadeira. Assim, no perodo em que realizei pesquisa, verifiquei que as metas por
drogas estavam sendo cumpridas, mas as de homicdio em compensao no estavam
sendo batidas, no dizer policial. preciso trazer ao leitor informaes coletadas junto
a delegado interlocutor que refora a tese apresentada neste trabalho:

O crime de trfico de drogas responsvel por mortes. Pernambuco


no exceo. Aqui, por outro lado, as mortes ocorrem em
decorrncia de disputas territoriais. Quando um grupo assume o
controle de determinada rea, as mortes caem. Exemplo disso foi na
Favela do Detran, onde havia grandes disputas por controle do
mercado das drogas. A inteno do Pacto Pela Vida foi ir na principal
causa de mortes, porm hoje as metas de arma e drogas so cumpridas
com tranquilidade mas os homicdios no caem. (Dirio de Campo
17/10/2015)

O trecho acima retirado de meu Dirio de Campo encontrada respaldo em


pesquisas sociais no campo do trfico de drogas e a questo de mortes. A invaso de
territrios alheios por falanges rivais apresentada por ampla literatura do tema como
causa de homicdios ou crimes violentos letais intencionais como pontua o Pacto Pela
Vida.

Em Cabea de Porco, por exemplo, uma anlise sobre as fronteiras da tenso


entre crime e violncia, o domnio territorial tambm apresentado na mesma lgica
expositiva pelo delegado interlocutor. Desse modo, o novo modelo do trfico na cidade
do Rio de Janeiro requer como base um amplo domnio territorial que se desgarra de
seus determinantes geogrficos e sociais, generalizando-se e tornando-se forma por
excelncia da organizao dos grupos criminosos vinculados ao varejo de txicos (cf.
SOARES, 2005, p. 256).

Diante do quadro acima apresentado, preciso afirmar que o vis de segurana


pblica que instrumentaliza esforos para o controle das drogas para tentar proteger a
vida no pode se valer da mxima de que a principal causa de homicdios so as
drogas. Ao afirmar que as drogas so as causas primeiras das mortes no se visualizam
particularidades e se legitimam imbrglios argumentativos que fundamentam tortuoso
quadro prisional por trfico de drogas. A nova janela da segurana pblica
paleorepressiva, ao invs de dirigir-se aos crimes de pequena monta, agora centra
123

esforos no trfico de drogas, com a desculpa de que este causa de mortes violentas
intencionais.

Afirmo embasado em interlocuo confirmada por mais de dois sujeitos, um


escrivo e um delegado, que quando algum morre em Pernambuco, no DHPP
(Departamento de Homicdios e Proteo a Pessoa) tende-se, quando se tem a longnqua
notcia de que algum usurio de alguma droga at mesmo pela famlia como
resposta a perguntas induzidas , a fazer com que os inquritos e sistemas da INFOPOL
sejam alimentados com a causa mortis: drogas. Perceba, caro leitor, as nuances da
criminalizao das drogas. No foi fcil construir esse mapa da colcha de retalhos que
envolve a segurana pblica e a criminalizao das drogas com todas essas
idiossincrasias.

Desse modo, um exemplo de causa de morte no territrio da RMR quando um


usurio-revendedor sai de sua comunidade, por estar endividado com os que controlam
o comrcio das drogas, para contrair dvidas com outros mandachuvas do trfico de
outra rea. A morte pode ocorrer pela insubordinao hierrquica deste sujeito que est
na base do trfico, ou pelo fato de ele revender droga de outra localidade na sua
comunidade. Saliento, todavia, que a principal causa de mortes ocorre por disputas
territoriais que elevam o risco de crimes letais violentos (de pessoas alheias ao universo
das drogas, mas que habitam esses territrios de conflito), como pude perceber dos
dilogos com delegados interlocutores.

Tais mortes nunca so decorrentes da ao de pequenos traficantes/usurios-


revendedores, que so, via de regra, apreendidos pelas polcias. Esses indivduos so
sujeitados tanto pelo trfico quanto pelo Estado e portam geralmente crack, no
apresentando possibilidade fsica de promover um CVLI. Torno claro que essas pessoas
no fazem parte da estrutura organizacional que disputa o controle de territrios no
Grande Recife. Muito pelo contrrio, o sujeito apreendido com drogas aquele que se
encontra na base da pirmide do trfico de drogas.

Atrelar a questo das drogas como diretas razes para os homicdios no


recente. Jos Vicente da Silva Filho, ex-secretrio nacional de Segurana Pblica e ex-
coronel da PM, em anlise muito semelhante s diretrizes do Pacto, afirma
expressamente que o papel da PM em aes estratgicas para reduzir homicdios
124

realizar batidas constantes no que ele chama de pontos suspeitos de vender


entorpecentes (cf. 2002, p. 71).

Em conversa com escrivo interlocutor a respeito do Pacto Pela Vida e interao


desse programa com a poltica criminal de drogas dentro da lgica de diretrizes do PPV,
apresento ao leitor a contundente explanao:

A pior coisa para o cidado pobre foi esse tal de Pacto pela Vida.
Ponto debelado no nunca uma boca derrubada. As metas
conduziram a muitos absurdos. Os pontos debelados so para os PMs
que esto na rua, mas que h remunerao financeira para os
comandantes e que, s vezes, h inclusive briga por saber de quem so
as ocorrncias em reas de divisa, justamente por conta dessas
remuneraes aos comandantes. A ideia de atacar a droga por conta
dos homicdios uma falcia. (Dirio de Campo 25/09/2015)

O modo pernambucano de fazer segurana traz muitos desses conflitos e


questes a solucionar com uma possvel reforma das polcias. Sem adentrar em questes
mais complexas sobre a estrutura policial, nas quais no me enveredo para no perder o
norte dessa investigao, percebi que as polcias deste estado trabalham no limite de
suas capacidades operativas e foras humanas, praticando segurana com os parcos
recursos que lhes so destinados por um governo que no tem no direito fundamental
segurana prioridade. Trago trecho representativo lanado pelo pesquisador Luiz
Eduardo Soares, que identifico tendo similitude com o PPV:

No h uma organizao baseada em conhecimentos para solucionar


os problemas que vo enfrentar, sobre a praxis. No planejam suas
prticas, no corrigem os erros a partir dos dados levantados sobre
suas intervenes, ou estes simplesmente so desprezados. A polcia
mquina reativa, inerte e fragmentria, inscrita num ambiente
institucional desarticulado e inorgnico, regido por marcos legais
rgidos e inadequados (SOARES, 2007, p. 100).

Ressalto que a atuao direcionada das polcias na atividade blica de combate


s drogas camufla lgicas estruturais, preponderantemente de ndole poltica e
econmica da criminalizao das drogas, s quais fiz referncia no captulo passado
(DEL OLMO, 1990).

O uso proeminente dos aparelhos policiais no combate s drogas, em


desprestgio do incremento de modelos de legalizao das drogas e do fortalecimento de
redes de atendimento de sade mental e fsica para pessoas imersas na ambincia de
drogas, tem gerado consequncias j apontadas por pesquisadores do tema da proibio
e do controle penal. O aumento da vigilncia, violncia imposta aos mais
125

desfavorecidos que so suspeitos de trfico, at prova em contrrio; favorecimento do


envolvimento dos jovens com o crime, desagregao familiar; incremento do trfico de
armas; incremento das possibilidades de lavagem de dinheiro; a alta dos preos derivada
da ilegalidade torna cada vez mais poderosas as organizaes traficantes; aumento da
corrupo nos poderes pbicos e na polcia, em especial nos pases em
desenvolvimento; aumento da violncia e do nmero de homicdios nos grandes centros
urbanos so sintomas precisos do uso do brao policial no enfrentamento das drogas (cf.
BOITEUX, 2006, p, 242).
Reforo ao leitor que com a justificativa de combater os crimes contra a vida (o
homicdio simples, a modalidade qualificada e at o mesmo latrocnio) o Pacto pela
Vida acabou introduzindo sub-repticiamente um contundente e robusto encarceramento
por crimes de trfico de drogas e associao para o trfico.

Portanto, embora no seja um programa de Segurana Pblica com feies


explicitamente proibicionistas e propagador de uma f salvacionista contra as drogas,
o PPV gerou efeitos deletrios na poltica criminal de drogas, sendo, pois, na prtica e
ao cabo um Pacto Pela Proibio com a permissiva beno de juzes de direito e
promotores de justia curvados s imposies polticas de um governo estadual.
Reafirmo que os contornos proibicionistas devem ser muito mais responsabilizados ao
governo estadual e ao MP e TJPE72 que se quedaram inertes frente a esse quadro,
corroborando institucionalmente com barbaridades em que as polcias foram apenas a
ponta da lana.

3.3 As Metas Impostas Pela Segurana Pblica Pernambucana na Criminalizao


das drogas

Apresento e analiso, nesta parte da exposio escrita do estudo etnogrfico que


realizei na CEPLANC, alguns detalhes operativos do regime de metas criado pelo PPV.
Essas metas so regidas por duas legislaes estaduais, oportunamente expostas ao

72
As rodadas semanais do Pacto Pela Vida na SEPLAG envolvem reunies com participao do MPPE e
do TJPE. A DPPE tambm participa, mas no a coloco como diretamente responsvel por esse quadro
prisional tendo em vista suas atribuies funcionais e sua ausncia de autonomia financeira e
oramentria. A DPPE recebeu aumento de demandas de rus sem condio de arcar com os custos de
processo como consequncia do encarceramento promovido pelo Pacto Pela Vida, por outro lado a
Defensoria Pblica no obteve recursos suficientes para se estruturar como instituio promovedora de
funo de defesas dos necessitados.
126

leitor, e encontradas na integra nos anexos desta dissertao, bem como pelo que chamo
de questes interna corporis dos Batalhes da Polcia Militar.

Essa parte do trabalho predominantemente expositiva e descritiva, de acordo


com legislaes estaduais que tratam do tema das metas, informaes oficiais e as
interaes que vivenciei na Central da Capital. Esse tpico tem como finalidade munir
meu leitor de ferramentas legislativas e de ordem explicativa a respeito da estrutura que
fundamenta as duas metas que formam o objeto desta pesquisa: os pontos debelados de
maconha e o bnus crack.

A Lei N 14.320 de 27 de maio de 2011, assinada pelo Sr. Eduardo Campos,


pagava as gratificaes de acordo com o resultado da unidade qual o policial faz parte.
Com a Lei N 15.458, de 12 de fevereiro de 2015, secundada pelo Sr. Paulo Cmara, as
GPPV passaram a ser calculadas pelo desempenho individual dos policiais civis e
militares.

Chamo ateno para o fato de que meus relatos trazem informaes diferentes de
alguns dados oficiais. Desse modo, os prprios destinatrios dessas benesses afirmaram
que o pagamento calculado de acordo com as equipes formadas por trs policiais.
Portanto, a informao de pagamento individual parece estar mal colocada nas
informaes oficiais. Acredito que no af de ressaltar que as gratificaes agora so
pagas s equipes e no mais ocorre um rateio pela corporao inteira se cometeu
impreciso lexical. Assim, embora a Secretaria de Planejamento e Gesto73 declare que
o pagamento individual, os policiais interlocutores afirmaram-me que o pagamento
por equipe. Os policiais tambm relatam profundas descontinuidades no recebimento
dessas premiaes.

H gratificao chamada de malhas da lei, que bonifica todos os policiais que


cumprirem mandado de priso em cada ms, de acordo com os pontos conseguidos.
Esses pontos so classificados de acordo com o tipo de crime cometido. Atualmente,
uma mdia de 600 mandatos cumprido por ms. Cada mandado cumprido valer de
R$ 80,00 a R$ 400,00 valor a ser dividido pelos policiais envolvidos na operao.

73
Essas informaes datam de 29 de janeiro de 2015, retiradas do stio eletrnico da
SEPLAG<http://www.seplag.pe.gov.br/web/portal/artigo?codigoNoticia=1308>. O atual Secretrio de
Defesa Social de Pernambuco o Sr. Danilo Cabral.
127

Devo pontuar que, segundo informaes coletadas, o crime de trfico de drogas


e os crimes contra a vida, notadamente homicdio e latrocnio, so o pote de ouro.
Essa afirmao decorre de minhas interaes com alguns policiais com quem dialoguei
na CEPLANC. De agosto a outubro, foquei meus esforos para entender esse regime de
metas, que j sentia ser o responsvel pela tnica da criminalizao das drogas no
Grande Recife. Encontrei em legislao estadual essa informao sobre os pontos de
acordo com o tipo de delito. Destaco:

Art. 8 Para fins do artigo anterior observar-se-:


I - quanto modalidade GPPV - Mandados:
(...)
c) o mandado relativo ao Crime Violento Letal Intencional - CVLI
ser ponderado com peso 2 (dois) para efeito da aferio da
produtividade;
(...)
e) o cumprimento de mandado relativo a Crime Violento Letal
Intencional - CVLI ensejar a contabilizao de 16 (dezesseis) pontos,
divisveis entre os policiais responsveis pela captura do indivduo,
observado o disposto nas alneas b e c;
f) o cumprimento de mandado relativo a crimes hediondos, com
exceo dos mandados relativos a trfico de drogas, ensejar a
contabilizao de 16 (dezesseis) pontos, divisveis entre os policiais
responsveis pela captura do indivduo, observado o disposto nas
alneas b e c;
g) o cumprimento de mandado relativo a crime de trfico de drogas
ensejar a contabilizao de 8 (oito) pontos, divisveis entre os
policiais responsveis pela captura do indivduo, observado o disposto
nas alneas b e c;
h) o cumprimento de mandado relativo a CVP - Crime Violento contra
o Patrimnio ensejar a contabilizao de 8 (oito) pontos, divisveis
entre os policiais responsveis pela captura do indivduo, observado o
disposto na alnea b;
i) o cumprimento de mandado relativo aos demais crimes ensejar a
contabilizao de 4 (quatro) pontos, divisveis entre os policiais
responsveis pela captura do indivduo, observado o disposto nas
alneas b e c;

Chamo ateno para o fato de que o trfico de drogas no figura como


bonificao mxima de 16 pontos. Isso se explica pelo fato de j valer metade dessa
pontuao (8 pontos). Alm disso, a respeito das drogas j existem as bonificaes
conhecidas como bnus crack e como pontos debelados.
128

Existem tambm bonificaes por apreenso de armas de fogo. Segundo a


SEPLAG74, houve tambm aumento no valor dessa gratificao. O ltimo reajuste do
bnus tinha sido realizado em 2007 para policiais que, no exerccio de suas funes,
apreendessem e fizessem o flagrante de armas sem registro e/ou autorizao legal.
Deixo de transcrever passagens desse incentivo por no haver registro em meu dirio de
campo. Posso falar ainda que h o que se batizou de Prmios de Defesa Social,75
institudos pela Lei N 15.458, no mesmo ano quando que estive na Central.

As metas da PM no so divulgadas. Trata-se, ento, de questes interna


corporis. Deixo, portanto, de apresentar detalhes a respeito de outras metas da polcia
militar por no ter conseguido mape-las. A questo dos pontos debelados, por
exemplo, varia de acordo com cada Batalho da PM.

Reconheo que essas metas acabam exercendo presso para que cada policial
produza como mquina. Impor metas acaba por tornar o policial um agente mais guiado
pela eficincia do que pela prpria legalidade, sendo aquela geralmente relacionada
priso.

Nesse ciclo, os policiais sofrem presses polticas por resultados que podem ser
maiores ou menores em perodos diferentes, de acordo com pnicos morais particulares
ou com tendncias expostas em estatsticas criminais Logo, sob a presso para obter
resultados, sob a forma de soluo de casos, os policiais sentem-se impelidos a
ampliar seus poderes e violar os direitos dos suspeitos (cf. REINER, Op, cit. p. 136).

74
No mesmo link, apresentado em nota anterior, h a informaes sobre valores por bnus arma.
Como no h lei que verse sobre o tema, s posso presumir que seja questo interna corporis. No incio
do Pacto Pela Vida, o bnus por apreenso variava de R$ 300,00 (armas de fogo curtas, semi-
automticas) a R$ 1.500,00 por arma (de uso restrito, como fuzis e metralhadoras). Com a nova proposta,
as bonificaes por armamento apreendido variam de R$ 700,00 a R$ 2.000,00. Relembro ao leitor que
em minha investigao s vi a apreenso de um revolver calibre 38 (arma de uso permitido) que
apresentei no panorama quantitativo.
75
Prmio da Defesa Social (PDS). Quanto a essa modalidade esclareo que no havia previso na primeira
lei que regulamenta o PPV, no havendo registro na letra fria da segunda lei. Segundo a SDS, o PDS leva
em conta os resultados em funo do desempenho do Estado no processo de reduo dos CVLIs. Esse
benefcio pago semestralmente a todos os policiais civis e militares que estiverem em exerccio na
secretaria de Defesa Social e em seus rgos operativos, podendo variar de R$ 3 mil (reduo de 12% do
CVLI do Estado) a R$ 112,00 (reduo de at 6%) para os oficiais, delegados, peritos criminais e
mdicos legistas. E de R$ 2 mil (reduo de 12% do CVLI do Estado) a R$ 62,00 (at 6%) para os praas,
agentes, escrives, auxiliares de peritos e de legistas e papiloscopistas. O PDS por rea de atuao vai de
R$ 2,4 mil a R$ 560,00 (oficiais, delegados, peritos criminais e mdicos legistas) e de R$ 1,6 mil a R$
320,00 (praas, agentes, escrives, auxiliares de peritos e de legistas e papilocopistas). Caso o Estado
tambm alcance a reduo dos Crimes Violentos Letais Intencionais CVLI haver a bonificao extra,
podendo chegar a um acrscimo de 25%, se alcanada a meta de reduo de 12% nos CVLIs.
129

Nesse quadro de presses por produzir, mesmo um terico da polcia mais


direita76 (no plano ideolgico) capaz de reconhecer que o departamento de polcia tem
a caracterstica de fazer crescer o poder discricionrio na medida em que se desce na
hierarquia policial (cf.WILSON, 1986, apud REINER, Op, cit, p. 132). Nessa cadeia de
violaes de direitos dos policiais inclusive o soldado da rua que exercer o poder
discricionrio para bater uma meta, violando vidas e direitos.

Caractersticas comuns sobre metas e o agir policial podem ser percebidas nos
relatos de estudos feitos em diferentes contextos sociais. Isso acontece porque elas se
originam de problemas constantes que os policiais enfrentam ao realizar o seu papel
cujo mandato precisam exercer a qualquer preo. Essa a considerao externalizada
em um dos livros da srie de estudos sobre as polcias do Ncleo de Estudos da
Violncia da Universidade de So Paulo (REINER, Op, cit, p.133).

Em meio estrutura que exige o cumprimento metas pela polcia (numa


estrutura fordista de produes em massa de autos de priso em flagrante), a priso
passa ser o desejvel dos policiais. Dessa maneira, polcia s cabe formar a culpa ao
invs de realizar investigaes acuradas dos fatos ocorridos. Essa situao no pode ser
analisada sem que o crtico dessa realidade perceba essa realidade como orientao
poltica de programas de segurana pblica que tm norteado as aes polcias nesse
sentido.

Preciso ainda deixar claro que a criao de regimes relacionados intrinsicamente


com realizao de prises em flagrantes, notadamente de pessoas portando drogas,
acaba reforando um recorte seletivo na qualidade de drogas que a polcia deve buscar.
No se criaram, desse modo, metas a respeito do xtase, do LSD ou de outras drogas
mais caras. Essas metas acabam reforando a longa tradio inquisitorial da polcia
brasileira que nem mesmo a redemocratizao foi capaz de expurgar.

No plano prtico, a imposio de regimes de metas um incentivo perverso ao


ofcio do trabalhador policial que acaba sendo empurrado para atravessar a barreira da
legalidade para que seja considerado um profissional eficiente. A eficincia nesse ponto
o incentivo perverso que refora uma cultura policial de carrasco e no de um agente
garantidor de direitos e da democracia. Esse quadro tambm elimina da polcia civil sua
76
Refiro-me ao pesquisador James Q. Wilson, republicano, idelogo do Programa de Segurana Pblica
implementado em Nova York.
130

prerrogativa elementar: investigar. E afirmo que se a polcia no investigar, o Ministrio


Pblico, seu fiscal, muito menos o far.

Preciso explicitar que essas metas so cobradas das polcias, tanto a militar
quanto a civil-judiciria. Com as exigncias direcionadas ao elo mais fraco da corrente,
o Poder Judicirio e o Ministrio Pbico reforam o servio que iniciado nas
Delegacias de Polcia.

Essa prtica de metas e cobranas polticas constantemente exigidas das


instituies policiais permite ao sistema judicial permanecer inocente de atuar em
quaisquer prticas discriminatrias e injustas na aplicao da lei penal (LIMA, 1995, p.
36). Sem meias palavras, polcia cabe o servio sujo de transformar estigma em
identidade criminosa de grupos manjados e projet-los sobre a populao submetida ao
seu constante controle. (MISSE, 2008, p. 24).

Acontecimentos como os flagrantes forjados conhecido tambm como


plantados, no dizer popular no espectro da criminalizao das drogas, como o leitor
j teve contato nos relatos, so os efeitos colaterais das eficientes ilegalidades advindas
da cobrana por produo por metas. Esses ilegalismos tolerados na expresso de
Luciano Oliveira (1984) integram uma cultura policial de metas impostas por programas
de segurana pblica como o Pacto Pela Vida. Outrossim, trago a opinio de delegado
interlocutor desta investigao a respeito dos sintomas das bonificaes para os
policiais por apreenso de drogas:

As remuneraes por drogas criaram um profissional de segurana


pblica adestrado a ter benefcios e condicionado lgica da priso e
do encarceramento. Prende-se para cumprir metas, s vezes sem a
necessria investigao. (Dirio de Campo 17/10/2015)

Outras pesquisas sociais tambm reconhecem tais prticas de manipulao de


situaes para enquadramento de trfico de drogas por razes de produtividade ou de
corrupo. No estou aqui dizendo que esse agir em nome do forjado prtica
majoritria nos APFs de drogas, mas ele existe, seja por razes de ausncia de tica no
agir policial seja para cumprir metas que no deveriam existir. Lembro neste momento
de meu constrangimento de campo a respeito do bnus crack na p. 28 e a resposta dada
ao policial do o leite da menina. Transcrevo parte de relato encontrado em Cabea
de Porco escrito em parceria de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Ahayde:
131

(...) Mas para minha surpresa os caras voltaram dizendo que


encontraram uma parada no carro. Nenhum de ns sabia do que se
tratava. Era um embrulho bem pequeno de jornal, do tamanho de duas
borrachas escolares embrulhadas. Muitos episdios macabros desse
tipo, que escrevem parte da histria do Brasil e que nem mesmo o
Brasil conhece. Era o que eles chamam de forjado (...) Como a palavra
de um cidado de bem , que no tenha antecedentes criminais, pode
ficar subjugada pela palavra de certos policiais que respondem a
vrios e vrios homicdios e acusaes de corrupo? Mas assim. A
lei da selva, a selva chamada Brasil. (...) Claro era uma forma de nos
incriminar por dinheiro, um simples forjado de rotina (...) Segui a
lgica da corrupo: aquele verme estava quase me convencendo de
que a droga era minha (...) ( SOARES, 2005, p 157-159).

preciso ento fazer constar que as metas que as metas so guiadas


centripetamente, isto , de fora para dentro. Assim, as aspiraes polticas de governos
so levadas para dentro dos batalhes e das reparties policiais. Com isso, as presses
polticas podem gerar o no patrulhamento (no caso das militares) e no investigao
(no caso da civil/ judiciria). Concluo ento que a cobrana por metas a responsvel
pela situao em que as polcias realizam apenas apreenses seletivas de um perfil de
pessoas com determinadas drogas. Esse agir equivale produtividade exigida por
programas como o Pacto Pela Vida.

Essas imposies acabam produzindo quadros em que investigar medida de


exceo e realizar flagrantes o desejvel pelas perniciosas metas de produtividade
policial, que podem ser traduzidas como imbrglio para o encarceramento do pequeno
trfico de drogas ou mesmo de usurios-revendedores, como j mencionei.

Identifico teoricamente as metas como incentivos perversos que gerem algumas


instituies brasileiras. Quando me refiro aos incentivos perversos quero ilustrar
mecanismos estabelecidos que premiam comportamentos prejudiciais consecuo dos
propsitos da prpria instituio que fazem parte. Essa afirmao leva em considerao
que as polcias tm atribuies constitucionais de preveno e investigao (cf. SILVA
FILHO, GALL, 2002, p. 200).

Ademais, o regime de metas acaba acirrando antigas rivalidades entre as


polcias civis e as militares. No caso representativo do bnus crack, por exemplo, as
polcias militares passam a investigar supostas reas onde se pratica varejo dessa
substncia e a polcia civil passa a realizar patrulhamento ostensivo para apreender
sujeitos com crack. H, ento, uma oposio de sinergias, que deveriam trabalhar em
conjunto para um bem comum da sociedade em face da competio pelo bnus. Essa
132

situao aprofunda um quadro de rivalidades endmicas como j pde ler e sentir o


leitor.

Passo a expor e analisar algumas das metas que se entrelaam na fnebre


sinfonia criminalizante das drogas. Deixo claro que essas metas constituem incentivos
perversos que transmitem e refletem as estruturas de poder da sociedade atravs de um
padro de discriminao contra determinados grupos ou subculturas.

3.3.1 Bnus Crack

Antes de realizar anlise, recorto partes da Lei N 14.320 de 27 de maio de 2011,


na qual corrida pelo crack teve sua largada legal e depois recorro Lei N 15.458 de
12 de fevereiro de 2015, na qual a busca por crack foi aperfeioada (legislaes
completas nos anexos). Esclareo que mesmo antes dessa lei em 2011 a bonificao por
crack era paga informalmente:

Art. 2 A GPPV tem como indicadores de produtividade as seguintes


modalidades:
I - apreenso de cocana, bem como seus derivados, denominada
GPPV - Represso ao Crack;
Pargrafo nico. Para efeitos desta lei cada grama de cocana ou pasta
base equivale a 3 (trs) gramas de crack. (Acrescido pelo art. 1 da Lei
n 14.890, de 14 de dezembro de 2012.)
Art. 5 Para fins do artigo anterior observar-se-:
I - quanto modalidade GPPV - Represso ao Crack:
a) cada apreenso de cocana e seus derivados s poder ser
contabilizada no total da AIS ou do Grupo de Unidades Operacionais
a partir da quantidade mnima de 20 (vinte) gramas ou de 60
(sessenta) gramas quando em forma de crack por apreenso;
a) cada apreenso de crack s poder ser contabilizada no total da AIS
ou do GUO a partir da quantidade mnima de 12 (doze)
gramas. (Redao alterada pelo art. 1 da Lei n 14.890, de 14 de
dezembro de 2012.)
b) no percebero a GPPV os policiais civis e militares lotados em
AIS ou GUO, quando a AIS ou GUO apreender menos de 200
(duzentos) gramas de crack no ms de apurao. (Redao alterada
pelo art. 1 da Lei n 14.890, de 14 de dezembro de 2012.)
c) s sero computadas as apreenses mediante flagrante;
c) no percebero a GPPV os policiais civis ou militares cujo rgo
operativo, na respectiva AIS, apreenda menos de 50 (cinquenta)
gramas de crack. (Redao alterada pelo art. 1 da Lei n 14.890, de 14
de dezembro de 2012.)
Art. 7 Para fins de GPPV, ser considerado em decorrncia do
ranking de produtividade mensal alcanado os seguintes valores
133

mensais para cada AIS ou Grupo de Unidades Operacionais, por


rgo Operativo:
I - R$ 10.000,00 (dez mil reais) da 1 (primeira) a 5 (quinta) AIS ou
Grupo de Unidades Operacionais no ranking geral de produtividade no
Estado, no podendo nenhum policial perceber mais de R$ 1.000,00
(um mil reais) em 01 (um) ms;
II - R$ 5.000,00 (cinco mil reais) da 6 (sexta) a 10 (dcima) AIS ou
Grupo de Unidades Operacionais no ranking geral de produtividade no
Estado, no podendo nenhum policial perceber mais de R$ 500,00
(quinhentos reais) em 01 (um) ms;
III - R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) da 11 (dcima
primeira) a 15 (dcima quinta) AIS ou Grupo de Unidades
Operacionais no ranking geral de produtividade no Estado, no
podendo nenhum policial perceber mais de R$ 250,00 (duzentos e
cinquenta reais) em 01 (um) ms;

O bnus foi modificado recentemente a fim de dar maior eficincia nas aes
das policiais militares e civis. Da lei N 15.458 , de 12 de fevereiro de 2015, destaco:

Art 3 3 Para o recebimento da GPPV - Represso ao Crack sero


selecionados at 150 (cento e cinquenta) policiais de cada rgo
Operativo, aps a elaborao do ranking referido no inciso III do art.
7.

Essa ltima lei passou a dispor sobre gratificaes aos policiais civis e militares,
estabelecendo em seu artigo 8 valores de R$ 1000,00 para os 50 agentes da lei que
mais apreendem crack (quantidade mnima de 120 gramas de crack para entrar no
ranking). Tambm existe a previso de R$ 500,00 para os policiais classificados entre as
posies de 51 ao 100, (mnimo de 80 gramas de crack para poder concorrer) e R$
250,00 para os 50 ltimos da lista, desde que apreendam o montante mnimo de 40
gramas.

Tomando por base a lista de premiao de abril do ano de 2015, referente


produtividade de maro do mesmo ano, apresento ao meu interlocutor os seguintes
dados: os que receberam mil reais apreenderam entre 2700 gramas a 124 gramas; os
agentes da lei para quem essa atividade rendeu R$ 500, 00 promoveram incurses na
RMR garantidora de apreenses de 124 g a 81 g e, por fim, os ltimos colocados que
embolsaram R$ 250,00 retiraram de circulao a quantidade de 76 g a 55 g de crack. A
maioria PM, mas h alguns policiais civis na lista.

Deixo claro que, desde a Lei N 14.320/ 2011, existe a ponderao que cocana
equivale ao crack na seguinte proporo: 1g de cocana ou pasta base = 3g de crack para
fins de clculo do bnus crack. Explicito tambm que nenhuma ocorrncia envolvendo
134

cocana foi verificada na pesquisa na Central pelas razes de hierarquia social da


cocana, como discorri no captulo anterior.

Quando entendi minimamente o bnus crack, passei a ouvir os nunca escutados


policiais militares. Tive uma dimenso diferente do que anuncia o governo estadual,
podendo afirmar que o bnus crack se torna contraproducente e um benefcio incerto.
Numa dessas interaes tomei nota: hoje, t mais difcil receber a gratificao
(Dirio de Campo 28/07/2015).

O praa ainda explicou-me que a gratificao, tanto por apreenso de arma como
de substncia conhecida como crack, sai descriminada no contracheque. O soldado
disse, naquele fim do ms julho, que no algo mensal, mas de 6 em 6 meses costuma
aparecer no seu contracheque. Ele diz que de 21 mil policiais militares atuantes nas ruas
apenas uns 2 mil recebem alguma espcie de gratificao. Num tem farda pra ir pra
rua que dir pagar bnus crack. O bnus, na verdade, uma maneira de tentar
compensar a precarizao que espreita o trabalho das polcias. Transcrevo mais um
trecho do dilogo com o mesmo interlocutor da polcia militar:

(...) Por meta de quantidade de auto de priso em flagrante tambm se


ganha, mas varia muito de batalho para batalho. No meu ver essa
forma individualista de pagar s beneficiando uma equipe no ajuda a
ter cooperao e pode incentivar a corrupo! Exemplifica: se eu
souber de uma notcia de onde t tendo crack e tiver de folga eu vou
bem indicar a outra equipe?. O soldado tambm fala na
irregularidade de recebimento de bnus crack ( Dirio de Campo
28/07/15).

O debate sobre segurana pblica precisa ouvir os policiais que esto na rua em
linha de frente no enfretamento de problemas reais como crimes violentos ou at mesmo
a questo das drogas. A valorizao das polcias deve ocorrer de maneira mais concreta
e humana.

Ao escutar os primeiros juzes, poder-se-ia evitar que incentivos perversos


acabem desviando recursos humanos e financeiros das necessidades da comunidade.
Manter dilogo com os agentes da segurana uma forma de evitar que interesses de
lobistas e de lideres polticos acabem por dar a tnica da conduo da segurana
pblica.

Defrontei-me na Central com a ineficincia encontrada na preveno e na


represso qualificada, na investigao e na ausncia de confiana pela populao das
135

polcias. Problemas relacionados corrupo e ao excesso de violncia empregado esto


relatados neste trabalho. Reforo, com base na experincia etnogrfica, que o bnus
crack pode dar asas corrupo.

Creio que o bnus crack incentiva uma rivalidade desnecessria e pode causar
prticas de corrupo a exemplo dos flagrantes forjados. Ao vencido dio ou
compaixo ao vencedor as batatas uma conhecida frase de Machado de Assis no
romance Quincas Borba que resume esse quadro de competitividade nada saudvel que
se criou para a polcia na corrida pelo crack.

Ademais, criar uma benesse salaria, como incentivo para apreenso de crack,
uma maneira institucional de querer as ruas limpas, j que notrio que a populao em
situao de rua o pblico que precisa se entorpecer com os efeitos da pedra. Logo,
foi o pblico da rua o sacrificado para que a polcia pudesse ter pequena gratificao em
face de sua tacanha precarizao. Observe leitor, parte trazida pela relevante Etnografia
da Abjeo realizada em regies que compreendem a chamada Cracololndia da capital
paulista:

(...) Desde que chegou ao pas, o crack uma droga que se liga
fortemente ao cotidiano da populao urbana desabrigada (embora no
s)(...) Aqui, porm, trabalho com dupla via: o crack pode tanto ser
uma possibilidade para quem j frequentava as ruas quanto pode levar
indivduos a essa condio. Uma vez na rua, o despojamento corporal,
o consumo continuo da droga, a falta de asseio dirio e a ausncia de
proteo noturna, juntos, denotam com mais evidncia a situao a
que chegaram (...) Quanto mais o tempo que passam a ficar
continuamente na rua, maior a espessura da sujeira. Nesse processo, os
ps vo se tornando speros e empoeirados, as unhas ficam pretas,
grossas e grandes, os cabelos se apresentam ranosos, as peles se
tornam encardidas, manchadas, opacas e ressecadas, em alguns casos
cheias de espinhas ou feridas, os olhos e ouvidos se exibem com
remela. Quem vivencia no corpo esse processo no fica alheio a ele
(...) (RUI, 2014, p. 295-296)

Reforo que alguns dos usurios-revendedores ou traficantes por azar77, que


chegaram Central durante minhas incurses etnogrficas na polcia, possuam as
mesmas caractersticas de degradao corporal descritas acima. Entre esses atores que
sem exagero no conseguem nem levantar a cabea, encontrei a Maria Caranguejo que

77
As pessoas que chegaram CEPLANC durante a execuo da pesquisa de campo nunca foram
consideradas usurias e, portanto, no presenciei a realizao de termo circunstanciado de ocorrncia
quando a substncia ilcita era o crack. A raridade na incriminao de pessoas envolvidas com crack
como usurias sinaliza as consequncias perversas da criao do instituto do bnus crack pelos
idelogos do Pacto Pela Vida.
136

abre as reflexes deste trabalho. Reconheci nessa mulher aprisionada por trfico de
drogas outras que Taniele Rui encontrou em sua pesquisa:

Com esse calor no d vontade transar, ruim. Eu suo, fico melecada,


depois no tenho onde tomar banho. Mas mesmo assim eu prefiro
vender meu corpo do que roubar as pessoas para conseguir o crack
(RUI, 2014, p. 283).

O governo que d bonificaes por apreenso de crack o mesmo que realiza


procedimentos administrativos antiquados, burocratizados e sem muita clareza
metodolgica para pagar tais recursos. Essa forma de gerenciar a polcia acaba tambm
reforando distanciamentos sociais e profissionais, sobretudo o fosso entre soldados da
PM e de comandantes da mesma instituio. Aos praas apenas destinado rarefeita
possibilidade de ganhar uma gratificao incerta, enquanto aos comandantes h gordas
remuneraes por reas Integradas de Segurana que no posso nem ao menos precisar.

preciso reconhecer nesse GPPV crack como parte de uma cultura policial que
costuma focar esforos para grupos minoritrios, para quem a hostilidade da polcia
historicamente focada. Os estudos empricos sobre a cultura policial e suas prticas
revelam que o mapa social da polcia se diferencia de acordo com o poder de grupos
especficos, transformando em propriedade da policia os mais fracos (cf. REINER,
Op, cit., p. 159).

Como j pode ter associado o leitor, bonificar a polcia por apreenso do crack e
de sujeitos vulnerveis que o utilizam e/ou o comercializam tambm marca de uma
rasgada discriminao na atividade de criminalizao secundria pelo aparelho policial.
Quando falo em discriminao, pretendo explicar a ideia j apresentada nos relatos de
campo deste trabalho de um padro diferenciado nos poderes de polcia. Esse agir trs
como consequncia algumas categorias sociais serem super-representadas como alvo
das aes policiais.

Devo aqui novamente pincelar que essa forma de lidar com o problema do crack
produz o enquadramento discricionrio de pessoas apreendidas com crack, mesmo com
poucas pedras, como traficantes de drogas. O imperativo categrico, de quando se
trata de crack haver a incriminao majoritria por trfico de drogas, ilustra um
processo de sujeio criminal, atravs da qual so selecionados preventivamente os
supostos sujeitos que iro compor o tipo social cujo carter socialmente considerado
como propenso a cometer um crime (MISSE, Op, cit., p. 11). Saliento que a busca
137

por esse tipo de recompensa envolvendo crack acaba impossibilitando que os usurios
dessa droga sejam tratados por meio dos Juizados Especiais Criminais (JECrim), sendo
esses quase sempre flagelos humanos levados ao crcere.

Afirmo, com base na observao da operacionalidade dessa forma de gerenciar a


questo do crack, que ela um profcuo exemplo de discriminao institucionalizada.
Nesse quadro, percebe-se que h procedimentos de policiamento estruturados que
abertamente contribuem para prticas discriminatrias.

Percebo como equvoco o fato de trabalhos policiais no controle das drogas


serem destinados fartamente ao traficante do varejo, ou melhor contextualizando, ao
mercador de drogas das ruas e cracolndias, como as que existem em Recife e So
Paulo. Se represso h no combate s drogas, o brao policial no deve ser focado no
pequeno comerciante de drogas. Esse direcionamento acaba recaindo sobre usurios-
revendedores da pedra, como j expliquei.

Scherman, pesquisador da sociologia do crime e de questes urbanas atreladas


ao delito, (2003, p. 234-235) mostra que a epidemia78 do crack trouxe ainda mais
confuso na cartilha policial, tendo os enfoques tornados ainda mais ignorantes,
estrategicamente falando. Assim, o central na represso s drogas tem sido optar pelos
traficantes do varejo e no por aqueles que vendem em atacado. Essa guinada para o
pequeno traficante fruto de presses polticas imaturas sobre a polcia para prender os
revendedores de crack que incomodam os olhos da boa sociedade.

Outra esfera da cultura policial, poucas vezes explicitada, a precarizao de


seus agentes e as violncias a que eles tambm esto constantemente sujeitos. A
precarizao no pode passar silente nos estudos sobre as polcias.

Um exemplo claro de precarizao o que conheci durante as visitas na Central


da Capital como PJES (Programa de Jornada Extra de Segurana). Essa hora-extra foi
criada pelo Decreto 21.858 de 25 de novembro de 1999 pelo, ento, governador Jarbas
Vasconcelos do PMDB, Partido do Movimento Democrtico Brasileiro. Os PJES, uma
forma de pagar pouco, e no fazer concurso, como alegam os policiais civis, e como
pude comprovar, foram incorporados pelo Pacto Pela Vida, institudo em 2007.

78
Epidemia nas palavras do autor, nunca as minhas por toda concepo criminoantropolgica que possuo
a respeito da questo das drogas.
138

Os PJES correspondem a 12 h de trabalho e um acrscimo de 180 reais no soldo


da polcia civil. J para a polcia militar o valor de 120 reais equivale a 8 horas extras de
trabalho. Simples clculo matemtico revela que tanto a civil quanto a militar auferem
15 reais por hora de trabalho extra.

O valor por hora cumprida de PJES79 custa um pouco mais que uma pedra de
crack (normalmente R$ 10,00) ou o valor de uma pedra de crack da melhor(grifei). A
precarizao para correr atrs de crackeiro para a polcia militar e para process-los
em autos de priso em flagrante para a polcia civil o valor de uma pedra,
ironicamente consumida em ligeiros segundos. No sei se meus interlocutores policiais
j pararam para refletir nesse custo-benefcio de seus esforos.

Preciso reconhecer que os agentes da segurana pblica no criaram a


discriminao contra o crack e seus pobres apreciadores. As polcias so agentes
transmissores da discriminao social que prefere expurgar de seus olhos e do seu
convvio o refugo humano que utiliza o crack, um resduo de outras drogas.

Portanto, noto que recursos policiais e at mesmo legislaes so criadas para


discriminar com amparo institucional subgrupos que convivem com a utilizao do
crack como as mulheres que realizam a baixa prostituio a exemplo da Maria
Caranguejo apresentada a partir da p. 19 e outras pessoas geralmente em situao de
rua. A discricionariedade e o mau uso do poder da policia atuando sobre a
vulnerabilidade outra nota da fnebre sinfonia criada pelo Pacto Pela Vida.

3.3.2 Pontos Debelados

Debelar significa vencer em luta armada, cessar efeito ou poder de algo,


derrotar, sujeitar. Essas definies podem ser encontradas no clssico Aurlio, mas
tambm no google, como o mundo contemporneo facilita. Todos esses termos dizem
muitos sobre os sentidos reais que a criminalizao de drogas possui na RMR.
Esclareo que um ponto debelado apresentado nas reunies da SEPLAG ilusoriamente
como uma boca derrubada ou na expresso sulista uma biqueira desmontada por
ao policial.

79
Cada serventurio da polcia pode tirar 8 PJES, mas comum que se tire 4 PJES humanamente falando:
48 horas mensais a mais de trabalho. O PJES de delegado custa R$ 270,00.
139

Cada corporao da polcia militar possui metas extraoficiais, nas quais a


pontuao por apreenso de um traficante maior do que a de um usurio. Ponto
debelado, assim, a expresso que registram alguns policiais militares em seus
boletins de ocorrncia entregues na CEPLANC. Ponto debelado registrado, um corpo
aprisionado e a engrenagem seguindo com incentivos perversos, os quais recaem sobre
os mais vulnerveis, geralmente usurios-revendedores de drogas.

Pude aprender e questionar sobre os tais pontos durante minha pesquisa na


CEPLANC. Escutei um desabafo de uma escriv interlocutora sobre as razes reais que
constituem os pontos debelados: um incentivo ao forjado. Essa frase foi lanada
pela escriv quando pedi melhores explicaes sobre o instituto. Essa fala corrobora a
ideia de que essa modalidade de meta promove fissuras na legalidade e na abordagem
policial norteada pela finalidade de investigar. Assim, a busca por pontos debelados
torna rots as garantias fundamentais nas abordagens policiais:

(...) Essas metas e o que elas trazem de recompensa para o policial


militar depende de cada batalho, mas que h interferncia do
governo. Geralmente nas metas um TCO de drogas vale menos que
APF de drogas (Dirio de campo 01 /07/15).

Certa vez, perguntei a um policial militar se um dos casos que acompanhei


equivalia a um ponto debelado. Ele diz que sim e vai ter folga remunerada, graas a
Deus. A gente no quer saber de ser destaque, quer mesmo a folga, t na rua no
fcil, p 73.

A explicao oficial anuncia que pontos debelados seriam locais onde se realiza
mercancia de substncias ilcitas como maconha, j que o crack equivale ao bnus
crack. Essa no uma afirmao totalmente falsa. Por outro lado, preciso que o leitor
entenda, como eu compreendi, que esses pontos so na verdade prises de pequenos
traficantes em determinado ponto da cidade. Logo, debela-se um ponto de um
traficante varejista que, muitas vezes, revende para arcar com sua prpria necessidade
de consumir determinada droga. Derrubar um ponto que no fixo, que nmade,
errante, um grande contrassenso. Observe pequena explicao sobre esse formato do
comrcio de drogas, leitor:

(...) O traficante varejista nmade, por excelncia, ainda que haja


espaos de referncia, e se resume ao negcio da droga: compra e
venda (SOARES, 2005, p. 249).
140

Dessa maneira, cada ser humano trazido em aresto policial contar, via de regra,
como um ponto, podendo valer mais que um ponto, se essa pessoa, por exemplo, indicar
outros locais de vendas de drogas de drogas. O ponto livre de um criminoso, como
escutei, logo depois da priso do sujeito ser ocupado por outro indivduo que correr o
mesmo risco de seu infortunado antecessor. Dores e momentos de prazer
proporcionados com o uso de drogas formam essa densa teia de proibies. Nesse ponto
preciso que se diga expressamente que a lgica dos pontos debelados representa uma
forma ilusria e ao mesmo tempo perversa de administrar a segurana pblica, como
avalio.

Acumular pontos para ter direito a uma folga figura como uma forma de
incentivar a priso e no a investigao de crimes ligados ao trfico de drogas. Essa
lgica ocasiona a entrada em localidades sem mandato judicial. Nesse sentido, devo
realizar crtica no s s polcias, mas tambm ao Ministrio Pblico e ao Judicirio,
que processam demandas com base em ilegalidades. Essas instituies no se
manifestaram contra certas prticas reforadas pelo Pacto Pela Vida (e poderiam!).

A literatura criminolgica j expos como as leis regentes das prticas policiais


so suficientemente permissivas para dar aos policiais uma ampla margem de poder
discricionrio. Para legitimar tais prticas, as Cortes parecem estar sempre prontas para
adaptar ampliaes das regras. Alguns autores, ao assumirem que a polcia viola
rotineiramente a lei, tambm afirmam que os policiais, funcionrios de baixo-nvel, so
as vtimas fceis do sistema legal e que levam a culpa por todas as injustias. A
responsabilidade, todavia, deveria ser colocada nas elites judiciais e politicas. (cf.
REINER, 2004, p 133).

A engrenagem dos pontos debelados, sobretudos para apreenso de pequenos


traficantes de big-big de maconha, est inserida numa cultura policial gerencialista do
crime com uma estrutura produtivista em que as polcias, especialmente, as militares
devem prender muito, sendo recompensadas com pequenos afagos, como uma folga,
desde que elas cumpram metas. Essa situao ocasiona uma lgica de violaes do
devido processo legal desde o nascedouro da criminalizao: nas ruas e nas delegacias
de polcia.

A reflexo de Zaffaroni de como o sistema penal no respeita a legalidade


porque, para o verdadeiro e fundamental exerccio de poder (o exerccio de poder
141

positivo configurador disciplinante) apropriada para analisar o quadro de pontos


debelados. Assim, a prpria lei ocupa-se de renunciar legalidade, concedendo
amplssima margem de arbitrariedade s suas agncias (2001, p. 28).

Os pontos debelados constituem uma tica policial norteada por um agir


descompromissado com a legalidade. A tica policial, como esclarece o pesquisador
Kant de Lima, forma um conjunto especial de regras e prticas que serve de fundamento
para o exerccio de uma interpretao autnoma da lei (1995, p. 65). Essa tica
fundamenta robusta matria prima que enviada para o Ministrio Pblico e para o
Sistema Judicial que do aparncia de legalidade ao que comea para cumprir uma meta
pura e simplesmente.

Para uma melhor gesto da segurana pblica preciso haver uma reviravolta no
foco estratgico das polcias, repensando-se prioridades organizacionais e operativas
que do nfase s prises. Desse modo, ao invs de agir aps o acontecimento de
delitos, a polcia deve guiar-se pelo foco da preveno que diagnostica e age sobre
causas, fatores e circunstncia de conflito no territrio das cidades (cf. SILVA FILHO,
GALL, Op, cit., p. 218)

O caso desses pontos debelados, que possibilitam folgas aos policiais, mas num
plano prtico no significam desbaratamento de bocas de fumos, revela as prises de
sujeitos que esto na base da cadeia do trfico de drogas. Essas apreenses nas
delegacias transmutam-se em autos de prises em flagrantes, que tornar-se-o denncias
e, por ltimo, viraro sentenas. Pontos debelados, uma folga, um vida sem valor, uma
priso, uma denncia e uma sentena condenatria embasada em metas de uma lgica
degradante de direitos fundamentais.

3.4 Anlise dos Relatos de Campos

3.4.1 Bom trabalho equipe, no esquecer de indicar no B.O. da gente PONTO


DEBELADO

Os relatos deste captulo procuram fazer emergir tese de que so as metas que
do os contornos e as particularidades da criminalizao na RMR. No repetirei
informaes acima j lanadas. Ponto debelado uma meta no clara no sentido de
142

previso legal, sendo um exemplo daquilo que chamei de questes interna corporis. A
quantidade de pontos para a concesso do benefcio varia de acordo com o batalho.
Nessa parte reafirmo que essa lgica de remunerar com folga por ponto debelado no
consiste em premiar um agente da segurana pelo desbaratamento de uma boca de
fumo, longe disso.

Um ponto debelado no consiste na equivalncia de uma boca desmontada,


como escrives e delegados interlocutores me informaram e pude verificar nos BOs da
PM, quando a mim foi permitido consult-los. Os pontos debelados envolvem
geralmente traficantes do varejo, com quantidade nfima de big-big de maconha,
revendidos, muitas vezes, para custear a prpria necessidade do comerciante de fazer
uso dessas substncias.

Os pontos debelados corroboram com uma criminalizao voltada para os


aviezinhos do trfico e ocorrem em reas pobres e degradas, sendo a atuao da PM
naquelas reas absolutamente discricionrias. Os procedimentos que envolvem pontos
debelados nascem de denncias annimas ou da verificao de atitude suspeita por
parte do individuo, como declaram os PMS no documento que primeiro formaliza um
auto de priso em flagrante atravs de escrita manual dos fatos.

Em fria e fordista traduo j tendo o leitor entendido que um ponto debelado


no significa uma boca de fumo derrubada devo dizer, com base na minha incurso
etnogrfica, que um ponto debelado significa geralmente uma priso. Com 40 pontos
debelados em mdia consegue-se 1 folga remunerada.

Para o trabalhador da polcia militar, que no possui remunerao salarial e


condies de trabalho adequadas, o preo de uma folga a priso por volta de 40
pequenos traficantes. A funcionalidade desse instrumento, em desrespeito aos preceitos
constitucionais e at humanitrios, deve ser repensada, com a valorizao da polcia
afastando-se instrumentos que negociem ou debelem vidas.

3.4.2 Sai no contracheque, tanto arma quanto crack, de seis em seis meses costuma
cair

O bnus crack outro exemplo de incentivo perverso, responsvel por eleger


seletivamente uma droga para focar a represso policial. E por que ele existe? As
143

razes so muitas, mas pontuo que essa bonificao tem como objetivo compensar o
alto nvel de precarizao de condies de trabalho das polcias.

O Estado elegeu a droga da pobreza, por excelncia, para contemplar as polcias,


principalmente, a polcia militar com um benefcio. Acredito que os contornos dessa
meta constituem prticas de racismo estatal. O capito do mato na busca pelos escravos
do crack a cena que pude enxergar com o gerencialismo atravs do bnus crack.

A questo de bonificaes, focando o agir policial em grupos como os que esto


ao redor das rodas de crack, um verdadeiro sortilgio. A ao policial guiada para
grupos vulnerveis permite e refora prticas discricionrias. Essa tradio
discricionria na cultura policial persiste desde as milcias dos capites de assalto no
Brasil Colnia origem dos capites de mato negreiros de to tenebrosa memria nas
palavras do historiador Caio Prado Junior (ABSABER, 2015, p. 98).

A histria do Brasil cheia de esquecimentos. At hoje no se resolveu muitas


questes problemticas e violentas do passado, como, por exemplo, a escravido, a
guerra do Paraguai, Canudos, e mais recentemente os crimes da Ditadura Militar. So
muitos os acontecimentos que, por no serem problematizados, se refletem at hoje nas
contradies da sociedade brasileira e no agir policial.

urgente que se discuta, por exemplo, a militarizao das polcias, que haja
reforma de alguns protocolos de ao policial e constantes processos de discusso sobre
atuao policial e cidadania ocorram, no s em cursos de formao para ingls ver.
preciso olhar nos olhos o horror que nos constituiu e que at forma nossa sociabilidade
como este relato explicita.

Como rememora Zafaroni (2012, p. 497), a histria da Amrica Latina


marcada pelo controle urbano sobre concentraes e movimentaes de escravos
libertos. Alm disso, por estas terras, sempre houve a realizao de operaes miliares
de pacificao e massacre de povos originrios.

Dessa marca violenta, associada aos regimes ditatoriais, resultou na gesto da


segurana pblica um deslocamento do paradigma da segurana nacional para o da
segurana urbana, que tanta violncia causou nas democracias deste Cone-Sul
Americano. Por todas essas razes histricas, as polcias so a chave da mudana ideia
do pesquisador argentino com a qual concordo.
144

A operacionalidade do sistema penal poder ter significativas mudanas


conjunturais com a modificao da estrutura dessas agncias. Antes que um leitor
comece a conjecturar, eu falei conjunturais! No acredito no utpico completo
banimento de rano autoritrio da polcia, que sempre poder germinar no ninho policial
a violncia em casos isolados. A existncia de incentivos como o bnus crack, por
inmeras facetas problemticas, corresponde um entrave ao um agir constitucional das
polcias como instncias protetoras de direitos e no violadora de direitos humanos
bsicos.

3.4.3 Depois da custdia os policiais militares to mais cautelosos com determinadas


prticas que voc conhece

Por esse relato, pretendo mostrar que a criao de metas precisa ser controlada e
fiscalizada. Nas palavras de um policial civil, as recentes audincias de custdia, que
passaram a receber autuados da CEPLANC, um dia aps formalizao da priso em
flagrante, possivelmente, fizeram diminuir os caso de flagrantes forjados como sugeriu
o escrivo autor dessa frase.

As custdias foram institudas no meio da execuo desta pesquisa.


Precisamente no dia 17 de agosto de 2015, os presos na rea da capital passaram a ser
encaminhados da CEPLANC para o Servio de Planto de Flagrantes do TJPE.

Menciono aqui, para contextualizar essa inovao no sistema processual penal


brasileiro, que a Conveno Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da
Costa Rica) j previa a obrigatoriedade da apresentao, sem demora, de toda pessoa
detida a um juiz. Contudo, apesar de ratificada pelo Brasil em 1992, este ainda era um
dos poucos pases da Amrica Latina a desrespeitar a norma internacional.

Art. 7 - Direito liberdade: [...] 5. Toda pessoa presa, detida ou


retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz ou outra
autoridade autorizada por lei a exercer funes judiciais e tem o
direito de ser julgada em prazo razovel ou de ser posta em liberdade,
sem prejuzo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em
juzo.

O regramento jurdico interno, mais especificamente o Cdigo de Processo


Penal brasileiro, mostra-se insuficiente e inadequado efetivao da exigncia da
audincia de custdia. Desse modo, no art. 306 do CPP, em seus caput e 1, apenas h
145

previso de que o juiz dever ser imediatamente comunicado da priso de qualquer


pessoa, assim como a ele dever ser remetido, no prazo de vinte e quatro horas, o auto
da priso em flagrante.

Se um indivduo no for apresentado em 24 horas a um juiz80, no ser possvel


fazer com que as autoridades se defrontem com torturas, que ainda persistem como
prticas corriqueiras. De igual modo, a manipulao de situaes fticas e probatrias
pela polcia, os flagrantes forjados, no podem ser oportunamente avaliados,
desvanecendo-se com o tempo.

Antes das custdias, uma pessoa demorava meses para estar em frente de um
magistrado, somente ocorrendo na audincia de instruo, ato em que se escutam a
defesa e acusao e as provas so filtradas pelo principio do contraditrio e da ampla
defesa, ou pelo menos deveriam.

Em todo Pas, a regulamentao do funcionamento das audincias de custdia


foi aprovada no dia 15 de dezembro de 2015, pelo plenrio do Conselho Nacional de
Justia (CNJ). So dois protocolos que estabelecem razo de ser dessas audincias como
instrumento de combate tortura e como ferramenta fortalecedora de normas de direito
internacional pblico.

No entrarei na discusso de ausncia de regulamentao dessas audincias no


CPP e da supremacia de tratados internacionais de direitos humanos. Quero que o leitor
perceba que esse instrumento diante de prticas violatrias de direitos (flagrantes
forjados guiados pela tica das metas) representa vlida ferramenta de controle da
atividade policial.

E que oportunidade melhor, do que um dia aps a priso dos suspeitos, para
realizar controle das aes policias? No estou tambm sendo um entusiasta sem
ressalvas das audincias de custdias como panaceia para questes que envolvem a
abordagem policial e a dinmica da criminalizao das drogas pela polcia. A cultura de
um juiz penal, por vezes, se mostra mais militar do que a dos prprios policias militares,
devo frisar.

80
Com a promulgao da Lei N 12.403/2011, que introduziu medidas alternativas priso preventiva no
artigo 319 do CPP como o monitoramento eletrnico e o comparecimento mensal ao juzo, houve uma
tentativa de reverter o quadro encarcerador brasileiro, notadamente para presos sem condenao, mas essa
inovao processual no conseguiu promover modificaes no quadro prisional brasileiro. A questo no
a lei, a cultura de punio.
146

3.4.4 Segurana Pblica se faz com responsabilidade, salrio digno pros agentes da
segurana, mas existem outros interesses financeiros em jogo, mas comigo no colam
certas coisas

Pontuo que preciso superar a oposio entre as polcias e os direitos humanos.


A segurana pblica deve ser plano de promoo da cidadania. Essa dicotomia
sentida, diariamente, pelas classes populares nos dramas cotidianos provocados pela
poltica de guerra s drogas, na qual no h vencedores como j falo desde a introduo.
A tragdia brasileira ver homens de preto, quase todos pretos, matando e torturando
homens pretos como narra a cano Haiti.

preciso reconhecer, a partir deste relato, o eterno retorno da tortura reavivada a


partir da sinfonia de que a polcia precisa produzir a partir de metas. Essa permanncia
foi a mim exposta num sexta-feira ao entardecer. Prticas de torturas que so ventiladas
nesse relato exemplificam a continuidade que existe entre os castigos fsicos que
qualquer capito-do-mato aplicava antigamente entre os negros fujes e as torturas
(chamadas eufemisticamente de maus-tratos) que qualquer policial pode aplicar ainda
hoje, sem maiores consequncias (cf. OLIVEIRA, 2009, p. 18).

Essas prticas decorrem, na minha avaliao, de heranas violentas, de


desigualdades econmicas e da inflexibilidade da hierarquia social (na qual a polcia
tambm classe popular). Essas variveis histricas forjam com expressividade a atuao
policial brasileira junto s classes populares, principais alvo de uma cultura policial
violenta, como se percebe do relato em questo ocorrido no Centro do Recife.

Sem muitas delongas, pretendo explicitar que segurana pblica no pode ser
construda com prmios e bonificaes. As metas incentivam uma tica do nmero
revelia de uma tica de respeito ao humano, que passa a ser tratado como mercadoria
para ganho financeiro por parte de um policial. Segurana pblica deve ser construda
com responsabilidade, salrio digno para o policial, que cidado e precisa tratar seus
pares como cidado. Valho-me da frase dita pela delegada interlocutora para reforar do
que a segurana necessita para avanar numa sociedade democrtica.
147

CONSIDERAES FINAIS

Guimares Rosa, em Grande Serto: Veredas, lanou: no real da vida as


coisas acabam com menos formato, nem acabam; pelejar por exato d erro contra a
gente; no se queira (2001, p. 101).

As consideraes finais almejam ressaltar, ao iniciar com uma referncia do


conhecido livro da literatura modernista, que esta pesquisa no se pretende pelejar por
um posicionamento exato e no sujeito a outras vises e modos de enxergar o tema.
Expus meu Grande Serto e as veredas que o cortaram. Contei sobre as situaes de
flagrantes que me revelaram a estrutura de controle da polcia pela poltica.

A criminalizao das drogas no Grande Recife, que pude verificar atravs de


cada caso que acompanhei na Central, no ocorre sem incentivos, e eles so perversos.
Ela guiada para um recorte que criminaliza sujeitos jovens, a maioria entre a faixa de
18 a 25 anos, e envolvidos no comrcio de pequenas quantidades de drogas, como a
maconha e o crack.

O universo de represso s drogas est intimamente fundido com a criao de


regime de metas pelo Pacto Pela Vida. Tal situao condiciona o agir policial s
apreenses de drogas e de pessoas (algumas delas em situao de risco, vulnerabilidade
e de rua) como ocorre com o escancarado exemplo das metas ligadas represso do
crack, bonificando parcamente a polcia para, por vezes, recolher das ruas um pblico
que deveria estar em contato com agentes de sade e assistentes sociais.

A criao de regimes de produo para as polcias uma tacanha imposio ao


trabalhador da segurana pblica, constituindo-se como uma fogueira onde a cultura
discricionria continua queimando a legalidade e fortalecendo o agir policial para uma
lgica instrumental, que associa desempenho com produo em srie de prises. Esse
encarceramento ocorre fartamente voltado aos traficantes do varejo de quantidades
irrelevantes na subeconomia da barbrie, que tem no o trfico de drogas seu exemplo
clssico.

A engrenagem do produtivismo, tanto aquela da corrida pelo crack quanto


aquela dos pontos debelados, continua reforando balizas que no dirigem a cidadania
polcia, to criticada, mas pouco compreendida. Passei a entender o agir policial e
respeitar os muitos homens e mulheres que exercem esse ofcio.
148

Afirmo que um policial sem direitos de cidado no pode ser garantidor de


diretos de outros cidados. Com isso, segurana pblica permanece sendo plano de
promoo da violncia e nunca o de garantia de direitos, constituindo a criao de metas
combustvel para que a polcia brasileira continue sendo uma instituio marcada por
um desempenho violador dos direitos humanos mais comezinhos.

As classes populares, desse modo, permanecem submersas nos dramas


cotidianos provocados pela poltica de guerra s drogas, esfera em que no h
vencedores a narrar grandes feitos. A guerra suja e continua firme com amparos e
incentivos governamentais que alimentam a v criminalizao. Procurei no ser
maniquesta no delicado exerccio de investigao antropolgica e de escrita desta
pesquisa. No posso, como alerta Becker (Op, cit., p. 175), cometer a arrogncia de
afirmar que descrevi uma realidade superior, acima das vises da polcia e dos
outsiders.

Se, por um lado, j disse que percebo as dores de algozes e de corpos


aprisionados como equiparadas, e que a polcia violentada no processo de
criminalizao das drogas, preciso deixar bastante claro, ao leitor, neste momento, que
essa criminalizao se mostra sem qualquer proficuidade e, por essas razes, sou
contrrio a qualquer forma de controle penal a respeito do uso de drogas.

A proibio retroalimenta a engrenagem punitiva e boa parte dos problemas da


segurana pblica. Assim, como os sujeitos no conseguem substncias psicoativas
tornadas ilcitas legalmente, recorrem clandestinidade. Esse quadro empurra o preo
das drogas pra um nvel que poucos tm condies de pagar, reforando no s a
criminalizao do usurio, mas a realidade que muitos usurios sero considerados
traficantes por se arriscarem na mercancia de drogas para garantir seus segundos de
prazer e entorpecimento, afinal, Deus permite a todo mundo uma loucura, como canta
Chico Buarque.

A expresso que melhor revela esse quadro de controle penal a iluso. Iluso
por haver incriminaes confusas, que no encontram explicaes racionais a exemplo
do amplo deslocamento de contingentes policiais a combater traficantes que esto
errantes pelas ruas. Esses so essencialmente traficantes pelo primeiro azar que a vida
lhes destinou em face de sua condio social e o segundo por terem encontrado a
polcia. Outros sujeitos tm sorte e conseguem livrar-se apenas como usurios de drogas
149

por interpretao e agir garantista da polcia judiciria, que tambm no uma pratica
recorrente e constante.

A miscelnea entre precarizao das polcias, uma tica do desvalor da


liberdade e desrespeito aos direitos humanos so as faces da mesma moeda. Assim,
considero todas as modalidades de bonificaes como espcie de teorema em que a
polcia prende muito, mas mal, para poder cumprir draconianas tabelas numricas.

O estabelecimento de metas, notadamente o bnus crack e os pontos debelados,


acaba obliterando a autonomia da polcia civil conhecida como judiciria no
processo de investigao criminal. No meu sentir, como se a polcia tivesse se
tornado uma mquina de produzir flagrantes e prises a despeito de sua importante e
necessria funo de investigar a ocorrncia de delitos numa sociedade livre e
democrtica.

tambm atravs de polticas que trazem o saudosismo da tolerncia zero no


plano da segurana pblica, como reavivou o Pacto Pela Vida com sua matriz
estruturante, que as j conhecidas consequncias dessa poltica aparecem: completo
desequilbrio no sistema prisional, que passa a no dar conta dos recolhidos da cidade.
Tudo isso em nome do utpico banimento de drogas, reforando-se o brao policial em
desprestgio de polticas de reduo de danos e sade no trato de tema. Esse quadro
percebido e sentido empiricamente revelou-me a retroalimentao entre criminalizao
e pobreza, ambivalncia to denunciada pela Criminologia de base critica da qual sou
propagador.

Nos sertes da criminalizao, deparei-me tanto com os novos escravos,


acorrentados no autoabandono, nas ruas e na adico de drogas da lama, como o crack,
quanto os novos bandeirantes, cujo ofcio ainda o ato de caar gente para sobreviver.
Acorrentados e levados s delegacias, desviantes so lanados nas teias da
criminalizao e da humilhao, tal como a mulher que brotou do mangue em minha
frente. Crendo na possibilidade de mudana entre vida e morte, almejo que, tal como no
Alto de Natal Pernambucano de Joo Cabral de Melo Neto, a vida severina renasa do
mangue por um porvir melhor.
150

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ANEXOS

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