Nietzsche - A Gaia Ciência (Trechos)

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Trechos de A Gaia Cincia, tr. Paulo Csar de Souza, So Paulo, Cia.

das Letras, 2001

125. O Homem Louco. No ouviram falar daquele homem louco que em plena manh
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e ps-se a gritar incessantemente: "Procuro
Deus! Procuro Deus!"? E como l se encontrassem muitos daqueles que no criam em
Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Ento ele est perdido? perguntou
um deles. Ele se perdeu como uma criana? disse um outro. Est se escondendo? Ele
tem medo de ns? Embarcou num navio? Emigrou? gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lanou para o meio deles e trespassou-os com o seu olhar.
"Para onde foi Deus?", gritou ele, "eu j lhes direi! Ns o matamos vocs e eu. Somos
todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar a linha do horizonte? Que fizemos ns, ao
desatar a terra do sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos ns? Para
longe de todos os sis? No camos continuamente? Para trs, para os lados, para a
frente, em todas as direes? Existem ainda 'em cima' e 'embaixo'? No vagamos como
que atravs de um nada infinito? No sentimos na pele o sopro do vcuo? No se tornou
ele mais frio? No anoitece eternamente? No temos que acender lanternas de manh?
No ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? No sentimos o cheiro da
putrefao divina? tambm os deuses apodrecem! Deus est morto! Deus continua
morto! E ns o matamos! Como nos consolar, a ns, assassinos entre os assassinos? O
mais forte e mais sagrado que o mundo at ento possura sangrou inteiro sob os nossos
punhais quem nos limpar este sangue? Com que gua poderamos nos lavar? Que
ritos expiatrios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato no
demasiado grande para ns? No deveramos ns mesmos nos tornar deuses para, ao
menos, parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior e quem vier depois de ns
pertencer, por causa desse ato, a uma histria mais elevada que toda histria at ento!"
Nesse momento, silenciou o homem louco e, novamente, olhou para seus ouvintes:
tambm eles ficaram em silncio, olhando espantados para ele. "Eu venho cedo demais",
disse ento, "no ainda o meu tempo. Esse acontecimento enorme est ainda a
caminho, ainda anda: no chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovo
precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos,
precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes mais distante que a
mais longnqua constelao e no entanto eles o cometeram!" Conta-se tambm que no
mesmo dia o homem louco irrompeu em vrias igrejas e em cada uma entoou o seu
Requiem aeternae deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder! "O que so
ainda essas igrejas, se no os mausolus e tmulos de Deus?"

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341. O peso formidvel E se, durante o dia ou noite, um demnio te seguisse mais
solitria das tuas solides e te dissesse: Esta vida, tal qual a vives atualmente, preciso
que a revivas ainda uma vez e uma quantidade inumervel de vezes e nada haver de
novo, pelo contrrio! preciso que cada dor e cada alegria, cada pensamento e cada
suspiro, todo o infinitamente grande e infinitamente pequeno de tua vida acontea-te
novamente, tudo na mesma seqncia e mesma ordem esta aranha e esta lua entre o
arvoredo e tambm este instante e eu mesmo; a eterna ampulheta da existncia ser
invertida sem detena e tu com ela, poeira das poeiras! No te lanars terra ringindo os
dentes e amaldioando o demnio que assim tivesse falado? Ou ento ters vivido um
instante prodigioso em que lhe responderias: "s um deus e jamais ouvi coisa divina".
Se este pensamento tomasse fora sobre ti, tal qual tu s, ele te transformaria talvez, mas
talvez te destrusse tambm; a questo "queres ainda e uma quantidade inumervel de
vezes", esta questo, em tudo e por tudo, pesaria sobre todas as tuas aes com um peso
formidvel! Ou ento, quanto te ser necessrio amar a vida e a ti mesmo para no
desejar outra coisa alm dessa suprema e eterna confirmao?

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342. Incipit tragoedia. Aos trinta anos deixou Zaratustra a sua ptria e o lago da rmia e
dirigiu-se montanha. Por dez anos deus asas ao seu esprito e sua solicitude sem
cansao. Seus nimos, porm, variaram e uma bela manh, levantando-se com a aurora,
ps-se frente ao sol e assim lhe falou: "Grande astro! Qual seria a tua felicidade se te
fossem faltos aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te aproximas de minha gruta e
sem mim, sem a minha guia e a minha serpente estarias fatigado de tua luz e deste
caminho. Ns, entretanto, te aguardvamos todas as manhs, recolhamos o teu
suprfluo e te bendizamos. Sinto-me to entediado da minha sabedoria quanto abelha
que acumulasse excesso de mel. Sinto necessidade de mos que se estendam para mim.
Quisera dar e repartir at que os sbios voltassem a gozar a sua estultcia e os pobres sua
riqueza. Logo, devo descer s profundezas: como fazes noite, astro ubrrimo, quando
cruzas os mares, levando tua claridade para a poro inferior do mundo! Devo
desaparecer, como tu, deitar-me, assim dizem os homens para os quais quero descer.
Abenoa-me, ento, olho tranqilo, que pode ver sem inveja at mesmo to intensa
felicidade! Abenoa a taa que quer transbordar, que dela sejam vertidas guas douradas
levando a toda parte o reflexo da tua alegria! V! Esta taa quer esvaziar-se novamente e
Zaratustra quer tornar a ser homem". Assim comea o declnio de Zaratustra.

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