Nietzsche - A Virtude Dadivosa de Zara
Nietzsche - A Virtude Dadivosa de Zara
Nietzsche - A Virtude Dadivosa de Zara
Que me importa a minha virtude! Ainda no me fez delirar. Como estou farto
daquilo que, para mim, o bem e o mal! Tudo isso no passa de misria, sujeira e
mesquinha satisfao! [...] (Assim falou Zaratustra, Prlogo, 3, p.37).
Amo aquele que prodigaliza a sua alma, no quer que lhe agradeam e nada devolve:
pois sempre dadivoso e no quer conservar-se. [...] (Assim falou Zaratustra,
Prlogo, 4, p.39).
Rara, a mais alta virtude, e intil, reluzente e suave em seu brilho: uma virtude
dadivosa a mais alta virtude. (Assim falou Zaratustra, "Da virtude dadivosa", 1,
p.101).
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dormiam". Como resposta, Zaratustra afirmou amar os homens e que lhes
trazia um presente. Ao que o eremita o aconselhou a no dar nada aos
homens, mas a "tirar-lhes, de preferncia, alguma coisa de cima e ajud-los
a lev-la" ou a dar-lhes apenas no mais que uma esmola; "e, mesmo assim,
s depois [de a terem mendigado]". Com veemncia, Zaratustra respondeu
que no daria esmolas, pois no era "bastante pobre para isso". E quando
inquirido acerca do presente destinado aos homens, achou por bem no
compartilh-lo naquela circunstncia e abruptamente se despediu alegando
no ter nada para dar ao santo da floresta, mas sim a lhe tirar. Quando
novamente ficou s, mostrou-se bastante surpreso com o fato do eremita
ainda no saber da morte de deus: "Ser possvel? Esse velho santo, em sua
floresta, ainda no soube que Deus est morto!" (Cf. Assim falou
Zaratustra, Prlogo, 1 e 2, pp. 33-35).
Desde o princpio da obra, a trajetria de Zaratustra marcada pela
ddiva. Ele deixa a solido por se sentir "repleto", "cheio" da sabedoria que
acumulou "como a abelha do mel que ajuntou em excesso" e por precisar
"de mos que [para ele] se estendam". Busca companhia por sentir
necessidade de "compartilhar", de "dar" esta sua selvagem sabedoria
(wilden Weisheit). Tambm por amor aos homens que deseja encontr-los
para lhes dar um presente. (Cf. Assim falou Zaratustra, Prlogo, 1, pp.33-
34). Neste contexto o gesto de presentear bastante significativo, pois no
se trata de mera troca de favores motivada por interesse nem de pretensa
compaixo benemrita semelhante ao conselho dado pelo santo. O presente-
ddiva de Zaratustra uma oferta necessria, decorrente de um excesso
afetivo e que tem um fim em si mesmo. "desinteressado", mas no de um
desinteresse que implica em falta de vontade, mas enquanto expresso de
uma alma prdiga que no espera que lhe agradeam nem encara sua ao
como "pagamento" ou "devoluo". (Cf. Assim falou Zaratustra, Prlogo,
4, p.39). Mas no que precisamente consiste essa ddiva que ele reserva aos
homens?
Inicialmente Zaratustra estava disposto a dar "seu presente" a todos
os homens, mas quando percebeu que o eremita ainda no estava ciente da
morte de deus optou por no compartilha-lo com ele, pois, no seu caso,
receb-lo no seria um ganho, mas uma subtrao. Imediatamente depois
desse encontro, foi praa pblica da cidade mais prxima e anunciou o
alm-do-homem (bermenschen) como novo sentido da terra aps a morte
de deus. (Cf. Assim falou Zaratustra, Prlogo, 2, 3 e 4, pp.35-40).
Portanto, pode-se supor que o presente de Zaratustra consiste neste anncio
do alm-do-homem enquanto possibilidade de superao do tipo humano
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at ento vigente e que esta ddiva no pde ser compartilhada com o santo
justamente por ele ainda desconhecer a morte de deus.
Na estrutura dramtica do livro, aparentemente Zaratustra se deu
conta desse acontecimento ao longo dos dez anos em que "cultivou seu
prprio esprito e solido" na caverna da montanha. Levando-se em conta as
demais obras publicadas por Nietzsche, o primeiro momento em que ele se
referiu "morte de deus" foi no livro imediatamente anterior, A gaia cincia
de 1882. O aforismo 125, intitulado Der tolle Mensch ("O homem louco",
"transtornado", "insensato", "desequilibrado", "perturbado") narra a histria
de um homem que "em plena manh acendeu uma lanterna e correu para um
mercado" procura de Deus. Aqueles que o viram ridicularizaram sua busca
at que, em meio ao deboche de seus contemporneos, ele gritou: "para
onde foi Deus? J lhes direi! Ns o matamos vocs e eu. Somos todos
seus assassinos! Mas como fizemos isso?". Entretanto, o "homem
transtornado" no estava preocupado apenas com o modo como deus teria
morrido, mas principalmente com o que fazer aps a constatao desse
inquietante acontecimento: "Nunca houve um ato maior e quem vier
depois de ns pertencer, por causa [dele], a uma histria mais elevada que
toda histria at ento!" No entanto, essa questo deixada em aberto.
Diante do silncio aptico dos demais cidados, ele concluiu ter vindo cedo
demais: "Esse acontecimento enorme [ainda] est a caminho [...]: ainda no
chegou aos ouvidos dos homens [...] e, no entanto, eles o cometeram!" (Cf.
A gaia cincia, 125, pp.147-148).
Conforme sugere Roberto Machado, esta "morte de deus"
mencionada por Nietzsche pode ser compreendida como uma referncia
modernidade filosfica que provocou "o desaparecimento dos valores
absolutos, das essncias, do fundamento divino e o aparecimento de valores
humanos demasiado humanos." Atravs de seus questionamentos de cunho
lgico-racional, a modernidade promoveu uma "substituio da autoridade
de Deus e da Igreja pela autoridade do homem considerado como
conscincia ou sujeito; substituio do desejo de eternidade pelos projetos
de futuro, de progresso histrico; substituio de uma beatitude celeste por
um bem-estar terrestre [...]". Ainda segundo Roberto Machado, "Nietzsche
foi talvez o primeiro filsofo a situar a origem do humanismo justamente
nos acontecimentos que esto no incio da modernidade: a filosofia de Kant
e seu projeto de estabelecer os limites do conhecimento humano, a cincia
positiva e sua independncia da teologia, a Revoluo Francesa e sua defesa
das 'idias modernas' de igualdade, liberdade e fraternidade, a arte
romntica e sua simpatia pelo que doentio [aos olhos de Nietzsche]." (Cf.
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MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, pp.85-86). Contudo,
Nietzsche tambm intensamente crtico da hiper-valorizao humanista da
racionalidade, sobretudo, por considerar que apesar dela combater a
transcendncia, igualmente professar valores absolutos semelhantes aos que
critica, por exemplo, por pressupor a existncia de uma natureza humana
que igualmente privilegia o intelecto e a veracidade como valores superiores
e universais.
No Prlogo de Assim falou Zaratustra, assim como no aforismo 125
de A Gaia Cincia, o personagem vai praa pblica discursar sobre
questes urgentes que supe inquietarem a todos, mas se surpreende com o
descaso e escrnio com que recebido por seus contemporneos. Ao longo
de sua trajetria Zaratustra busca precisamente encontrar meios afirmativos
de viver em um mundo "sem deus" e sem a crena em uma suposta natureza
humana pr-determinada, evitando recair em condutas niilistas, negadoras
da vida. Um dos principais diferenciais entre as duas narrativas que
Zaratustra no apenas anuncia a morte de deus, mas tambm sugere como
lidar com ela. O principal objetivo de seu primeiro discurso em praa
pblica justamente o de apresentar o alm-do-homem como sentido da
terra aps a morte de deus.
Outrora, o delito contra Deus era o maior dos delitos; mas Deus
morreu e, assim, morreram tambm os delinqentes dessa espcie. O
mais terrvel, agora, delinqir contra a terra e atribuir mais valor s
entranhas do imperscrutvel do que ao sentido da terra! (Assim falou
Zaratustra, Prlogo, 3, p.36).
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incompatvel com a doutrina difundida pelo prprio Zaratustra,
principalmente se atentarmos para seu ensinamento de que "o que h de
grande, no homem, ser ponte, e no meta: o que pode amar-se, no homem,
ser uma transio e um ocaso." (Assim falou Zaratustra, Prlogo, 4,
p.38). Zaratustra no se identifica ao alm-do-homem, mas se apresenta
como seu profeta e anunciador, "corisco e trovo do grande raio que
irromper da negra nuvem humana". Mas apesar de serem dois personagens
diferentes, parece-nos que tanto Zaratustra quanto o alm-do-homem agem
de acordo com uma mesma virtude, denominada schenkenden ("dadivosa",
"generosa"). O que seria essa virtude dadivosa que norteia o comportamento
de ambos personagens e em que ela se distingue dos valores professados
pelos contemporneos de Zaratustra que, em larga medida, representam os
contemporneos de Nietzsche enquanto herdeiros da modernidade
filosfica?
Consideramos que o livro Genealogia da moral uma polmica,
escrito como glossrio explicativo aos discursos de Zaratustra, oferece
grande auxlio para esta investigao. Nietzsche chega a se referir s trs
dissertaes que o compem como "trs decisivos trabalhos de um
psiclogo, preliminares a uma transvalorao de todos os valores" (Ecce
homo, "Genealogia da moral", p.98) provavelmente por ter sido a obra em
que ele mais detidamente apresentou sua avaliao dos valores
habitualmente tidos por virtuosos.
Um dos principais aspectos que ele ressalta com relao aos valores
que foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal [...] no o
tomaram, no o acharam, no lhes caiu do cu em forma de voz. (Assim
falou Zaratustra, I, De mil e um fitos, p.86). Ou seja, apesar de
habitualmente o valor dos valores ser considerado como dado, como
efetivo, como alm de qualquer questionamento, ele foi criado e conferido
pelos prprios homens (Cf. Genealogia da moral, Prlogo, 6, p.12). A
prpria palavra homem (em alemo, Mensch) significaria "aquele que
avalia". Diante desta constatao, a principal tarefa que se apresenta a de
avaliar se os juzos de valor morais vigentes so manifestaes de vida
ascendente que promove crescimento, fora, coragem e revela plenitude, ou
de vida descendente, que obstrui o crescimento do homem. (Cf. Genealogia
da moral, Prlogo, 3, p.9). O parmetro avaliativo adotado no poderia
ser outro seno a prpria vida, compreendida como Wille zur Macht
("vontade de potncia"): ininterrupto estado de guerra em constante
experimentao criativa que tem como diretriz a expanso e auto-superao.
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Na "Primeira Dissertao" da obra Nietzsche identifica a existncia
dois tipos humanos proeminentes e assinala grandes distines entre seus
modos de avaliar a existncia e estabelecer valores. Caracteriza o tipo nobre
como aquele que cria seus prprios valores de modo ativo e afirmativo,
tomando a si e a seus pares por referencial absoluto. Inicialmente o nobre
declara a si prprio e a seus atos como bons e apenas por contraste classifica
aqueles que lhe so distintos como ruins. Diferencia-se dos plebeus devido
incapacidade que percebe neles para comungarem de seus atos e valores
aristocrticos. J a valorao do tipo plebeu caracterizada como tendo sua
origem em uma reao, na negao dos valores dominantes. Inicialmente o
plebeu recusa os valores nobres alegando julg-los como maus e, somente
por reao e inverso, considera-se bom. Nietzsche detecta que o que
predomina em sua poca precisamente o modo de valorar plebeu
decorrente daquilo a que denomina "revoluo plebia no campo da moral"
que teria sido protagonizada pela ampla difuso do cristianismo no
Ocidente. Graas a esta inverso crist de valores, a equao aristocrtica
que identificava os valores bom, nobre, poderoso, belo, feliz e caro aos
deuses foi substituda pela concepo de que somente os miserveis,
impotentes, sofredores, necessitados e humilhados seriam beneficiados e
recompensados em um suposto alm-vida. (Cf. Genealogia da moral, I, 7,
p. 26). Com isso, as aes resultantes da mera impotncia "dos fracos"
terminaram por se converter em valores reputados socialmente, tidos at
mesmo por virtudes morais.
Atravs de sua avaliao genealgica do valor dos valores, Nietzsche
diagnostica que os juzos morais correntes na modernidade ocidental so
indcios de misria, empobrecimento e degenerao de vida e responsabiliza
esta decadncia dos valores morais pelo fato do homem ainda no ter
alcanado seu supremo brilho e potncia. Diante desse panorama, adverte
sobre a necessidade de efetuar uma Umwertung ("transvalorao") dos
atuais valores em outros que se pautem pela vida enquanto vontade de
potncia. Significativamente sinaliza para seu personagem Zaratustra como
contra-ideal ao sistema de vontade, meta e interpretao vigente. Refere-
se a ele como tipo nobre dotado de um "esprito fortalecido por guerras"
para o qual "a conquista, o perigo e a dor se tornaram at mesmo
necessidade". Homem de grande amor e de grande desprezo, "esprito
criador cuja fora impulsora afastar sempre de toda transcendncia e toda
insignificncia". (Cf. Genealogia da moral, II, 24 e 25, pp.83-85). Razes
pelas quais julgamos conveniente observar mais atentamente como se d o
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aprendizado, vivncia e ensino dos valores e da virtude por esse
personagem "transvalorador".
De acordo com Laurence Lampert, os discursos da primeira parte de
Assim falou Zaratustra tm a funo pedaggica de criticar o niilismo do
ensino vigente e apresentar o inovador ensino de Zaratustra como
alternativa afirmativa (Cf. Nietzsche's teaching, Part I). O primeiro dos
discursos em que os valores correntes so criticados de modo mais incisivo
Von den Lehrsthlen der Tugend ("Das ctedras da virtude"). Momento
em que Zaratustra levado por um grupo de jovens para ouvir os
ensinamentos de um mestre bastante popular e tido por sbio que vinha
angariando o interesse, inclusive, de boa parte dos jovens. Quase todo o
discurso consiste na pregao desse mestre que falava "doutamente do sono
e da virtude" enumerando frmulas e esquemas mecnicos com o intuito de
ensinar sua audincia a evitar conflitos, conciliar adversidades e se adaptar
s mais diversas situaes com a finalidade de "dormir bem". Depois de
ouvi-lo Zaratustra riu e comentou que finalmente havia compreendido "o
que outrora se procurava, acima de tudo, quando se procuravam os mestres
da virtude. Procuravam um bom sono e virtudes com a virtude da papoula".
Importante destacar que da papoula que se extrai o entorpecente pio e
que ela uma planta tradicionalmente utilizada no combate insnia. De
onde se depreende que aquilo a que Zaratustra ironicamente denomina
"virtude da papoula" consiste em uma virtude que ele considerada quietiva,
e responsvel por promover um embotamento dos sentidos e um
entorpecimento que inibe as aes e leva acomodao e ao descanso.
Neste discurso o "sono" tambm usado como metfora da morte com a
inteno de criticar aqueles que negligenciam a vida ao privilegiarem um
"alm vida" a que se teria acesso atravs da morte. No toa os discursos
subseqentes so Von den Hinterweltlern ("Dos trasmundanos") e Von den
Verchtern des Leibes ("Dos desprezadores do corpo") que versam
justamente sobre os malefcios da metafsica transcendente para a vida.
Diante destas intensas crticas ao valor das virtudes predominantes,
pode-se perceber que a virtude anunciada por Zaratustra de outra ordem.
No quinto discurso da primeira parte, Von den Freuden und Leidenschaften
("Das alegrias e das paixes"), ele afirma que no deseja o seu bem "como
uma lei de Deus", uma norma ou uma necessidade, pois sua virtude no
deve ser "seta indicadora de mundos ultraterrenos e parasos", mas terrestre,
com pouca prudncia e sem "a razo de todo o mundo". Adverte que no h
bem e mal para todos como em um grande rebanho, mas que os valores
devem ser criados por cada vivente.
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O discurso mais esclarecedor com relao virtude de Zaratustra o
ltimo da primeira parte da obra que se intitula justamente "Da virtude
dadivosa". No primeiro momento deste discurso, ele acabou de deixar a
cidade onde at ento difundiu seu ensino, die bunte Kuh ("Vaca Malhada"),
acompanhado por "muitos que se diziam seus discpulos". Quando chegam
a uma encruzilhada, ele dispensa seus acompanhantes alegando ser "amigo
de caminhar sozinho" e, como despedida, discursa sobre a virtude dadivosa
almejada por eles. Compara esta mais alta virtude ao ouro por ele ser
igualmente "o valor mais alto", assim como raro, intil e sempre "dar-se de
presente". Tambm destaca sua novidade enquanto "um novo bem e um
novo mal, um novo murmrio e a voz de uma nova fonte" que difere
radicalmente do egosmo doente que s deseja a conservao e expressa a
degenerescncia de um corpo enfermo.
No segundo momento do discurso alerta para o fato de que, graas
predominncia do "egosmo dos doentes", sempre houve virtude
desorientada do que terrestre. Conclama seus ouvintes a permanecerem
fiis terra e, ao apresentar o alm-do-homem como "nova esperana" e
"nova aurora", chama para si a tarefa de trazer a virtude desorientada de
volta terra, ao corpo e vida para que todos os valores sejam novamente
estabelecidos pelos homens de modo imanente.
Na ltima parte de seu discurso, ressalta que esta mudana no pode
vir de fora, mas deve ser provocada pelo prprio "doente": "mdico ajuda-te
a ti mesmo, assim ajudar o doente. Que a melhor ajuda seja ver com os
prprio olhos aquele que cura a si mesmo". Finalmente se despede alertando
que se retribui mal um mestre quando se permanece somente discpulo.
Adverte que os que se mantm na posio subserviente de meros seguidores
dogmticos o fazem por nunca terem procurado a si prprios: "Agora, eu
vos mando perder-vos e achar-vos a vs mesmos; e somente depois que
todos me tiverdes renegado, eu voltarei a vs." (Assim falou Zaratustra, I,
"Da virtude dadivosa", 3, p.105).
Este emancipador discurso de despedida ajuda a compreender a
figura do alm-do-homem enquanto sada de uma situao heternoma em
direo a uma autonomia criativa por meio de uma auto-educao em que o
silncio e a solido so fundamentais. Ele no desempenha a funo de
meta concreta, de ideal utpico ou de norma dogmtica a ser mimetizada de
modo passivo, mas de exemplo vital afirmativo que incentiva a um processo
de auto-cura e auto-educao. Como observou Deleuze o alm-do-homem
"um novo modo de sentir, um novo modo de pensar, um novo modo de
avaliar; uma nova forma de vida." (Cf. Nietzsche e a filosofia, "O super-
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homem: contra a dialtica", p.136). A principal marca da virtude dadivosa ,
sem dvida alguma, a novidade, j que ela difere radicalmente das
principais caractersticas denunciadas por Nietzsche com relao aos
valores e virtudes niilistas e reativos que vigoram desde a "revoluo
plebia no campo da moral".
No quinto discurso da segunda parte, Von den Tugenhaften ("Dos
virtuosos"), Zaratustra contrape diretamente sua inovadora virtude
dadivosa s demais. Caracteriza os auto-proclamados virtuosos como
dotados de sentidos "langues e adormecidos" em formulao semelhante
presente em "Das ctedras da virtude" quando ironicamente usou a
expresso "virtude da papoula" para se referir sua indolncia, falta de
paixo e pretensa negao da vontade com relao prtica dos valores e
virtudes. Um dos principais objetivos do discurso o de desmistificar o
suposto desinteresse de que os virtuosos tanto se orgulham. Zaratustra
denuncia que seus interesses egostas se camuflam sob a roupagem asctica
de gestos abnegados e compassivos: "induziram, mentindo, prmio e castigo
no fundo das coisas e, agora, tambm no fundo de vossas almas,
virtuosos! Mas, igual s presas do javali, dever minha palavra rasgar o
fundo das vossas almas; relha de arado, quero ser para vs." (Assim falou
Zaratustra, II, "Dos virtuosos", p.124). Aponta para o paradoxo de que,
apesar de se pretenderem abnegados, introduziram "vingana, castigo,
prmio, recompensa" nos valores e esperam ser pagos pelas virtudes que
alegam praticar por abnegao. Em contrapartida, Zaratustra ensina que no
existe paga nem pagador, mas tambm adverte que a virtude tampouco
sua prpria recompensa. Compara sua virtude dadivosa ao amor que a me
sente pelo filho e que no esperar retribuio de qualquer ordem.
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de conduta da coletividade de que se faz parte. Tampouco visa utilidade
prtica, satisfao de vingana ou a algum tipo de recompensa ou
retribuio. No se trata de uma norma prescritiva, mas de uma espcie de
"padro de comportamento", "modo de agir" que deve ser criado por cada
vivente de modo autnomo e individual em decorrncia de uma necessidade
afetiva "desinteressada" e "com fim em si mesma". Consideramos que a
virtude dadivosa do alm-do-homem e de seu profeta Zaratustra consiste em
uma expresso da vontade de potncia que no almeja mera conservao,
mas, sobretudo, intensificao da vida atravs da auto-superao e
expanso criativa que promove uma transvalorao dos valores vigentes.
Bibliografia
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