O Escolhido Foi Você - Miranda July

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PARA JOE E CAROLYN PUTTERLIK

Dormi na casa do meu namorado todas as noites, nos primeiros dois anos de namoro,
mas no levei para l uma s pea de roupa, um p de meia que fosse nem roupas de
baixo. O que significou eu ter que usar as mesmas roupas por muitos dias, at arranjar
um tempo para voltar minha miservel caverna, a poucas quadras de distncia. Depois
de vestir roupas limpas, andei por ali meio em transe, hipnotizada por aquela cpsula
do tempo da minha vida antes dele. Tudo estava exatamente como eu havia deixado.
Algumas loes e xampus tinham se decantado em camadas, mas na gaveta do banheiro
ainda estavam os preservativos extraextragrandes do namorado anterior, com quem as
relaes eram dolorosas. Eu tinha jogado fora algumas comidas, mas as no perecveis,
os timos feijes do Norte, a canela e o arroz, todos aguardavam o dia em que eu me
lembraria da mulher sozinha que eu realmente era, voltaria para casa e poria o feijo de
molho. Quando, enfim, coloquei minhas roupas em sacos plsticos pretos e levei-as de
carro para a casa dele, fiz isso com uma espcie de atrevimento como quando cortei o
cabelo nos ltimos anos do colgio ou larguei a faculdade. Coisa de impulso, garantia
de acabar em catstrofe, mas foda-se.
Estou morando na casa do namorado h quatro anos (sem contar os dois em que
vivi l sem minhas roupas), estamos casados, ento passei a pensar nela como minha
casa. Quase. Ainda pago o aluguel da pequena caverna, e quase tudo o que possuo
ainda est l, exatamente como antes. S no ms passado joguei fora os preservativos
extraextragrandes, depois de muito pensar numa forma de d-los, sem me expor, a
algum sem-teto bem-dotado. Mantenho a casa porque o aluguel barato e l que
escrevo; virou meu escritrio. E os timos feijes do Norte, a canela e o arroz so a
minha garantia de volta, caso alguma coisa d terrivelmente errado ou eu caia em mim e
resolva reassumir minha condio de pessoa mais solitria que j existiu.
Esta histria se passa em 2009, logo depois do nosso casamento. Eu estava
escrevendo um roteiro na casinha. Escrevia na mesa da cozinha ou em minha antiga
cama com seus lenis baratos. Ou, como sabe muito bem qualquer um que tenha
tentado escrever alguma coisa nos ltimos tempos, esses eram os lugares em que eu
preparava o cenrio para escrever, mas em vez disso ficava procurando coisas online.
Parte disso poderia ter a ver com uma das personagens do meu roteiro, que tambm
estava tentando fazer alguma coisa, uma dana, mas em vez de danar ficava
procurando danas no YouTube. Ento, de certa forma, a procrastinao era pesquisa.
Como se eu j no soubesse como funcionava: me ver sendo levada pelo mar, fascinada
demais pelas ondas para pedir socorro. Eu tinha inveja dos escritores mais velhos, que
haviam conseguido se disciplinar antes da chegada da internet. Eu s tinha conseguido
escrever um roteiro e um livro antes que isso acontecesse.
O engraado na minha procrastinao era que o roteiro j estava quase
terminado. Era como se eu tivesse lutado contra drages, perdido membros, rastejado
por pntanos e agora, finalmente, avistasse o castelo. Eu via crianas minsculas
agitando bandeiras das sacadas; tudo o que precisava fazer era atravessar um campo
para chegar at elas. Mas de repente eu senti muito, muito sono. E as crianas no
acreditaram quando me viram dobrar os joelhos e cair de cara no cho, de olhos
abertos. Imvel, eu observava formigas entrando e saindo apressadas de um buraco,
sabendo que me levantar seria mil vezes mais difcil do que ter enfrentado o drago ou o
pntano, e por isso eu nem mesmo tentei. S ficava clicando numa coisa atrs da outra,
e atrs da outra.

O filme era sobre um casal, Sophie e Jason, que planejava adotar um gato perdido
muito velho e doente chamado Paw-Paw. Como um beb recm-nascido, o gato iria
precisar de cuidados contnuos, s que pelo resto da vida, e poderia morrer tanto em
seis meses como em cinco anos. Embora bem-intencionados, Sophie e Jason esto
apavorados com sua crescente falta de liberdade. Ento, depois de apenas um ms da
adoo, eliminam de sua vida todas as distraes deixam seus empregos,
desconectam-se da internet e passam a se concentrar em seus sonhos. Sophie quer
coreografar um bal e Jason se oferece como voluntrio em um grupo ecolgico,
vendendo rvores de porta em porta. medida que o ms avana, Sophie sente-se cada
vez mais humilhantemente paralisada. Num momento de desespero, ela tem um caso
com um desconhecido Marshall, um homem conservador de cinquenta anos que vive
em San Fernando Valley. No mundo suburbano de Marshall, Sophie no precisa ser ela
mesma; enquanto estiver l, no precisar mais tentar (e falhar). Quando Sophie o deixa,
Jason para o tempo. Ele emperra s 3h14 da manh e s tem a lua com quem falar. O
resto do filme sobre como eles encontram suas almas e voltam para casa.
Talvez porque eu no me sentisse muito segura enquanto escrevia o roteiro, e
porque tivesse me casado havia pouco tempo, o filme acabava sendo sobre f, e mais
ainda sobre o pesadelo de no ter f. Era assustadoramente fcil imaginar uma mulher
que falha consigo mesma, mas a histria de Jason me deixava confusa. Eu no
conseguia criar as cenas dele. Eu sabia que no final do filme ele perceberia que estava
vendendo rvores no porque acreditasse que aquilo fosse resolver alguma coisa ele
na verdade achava que era tarde demais , mas porque amava este lugar aqui, a Terra.
Era um ato de devoo. Um pouco como escrever ou amar algum nem sempre
achamos que vale a pena, mas, de alguma forma, no desistir disso faz um sentido
inesperado depois de um tempo.
Portanto, eu sabia o comeo e o fim; s precisava imaginar um miolo
convincente, a parte em que a empreitada de Jason o pe em contato com estranhos,
talvez at dentro de suas casas, onde ele tem uma srie de conversas interessantes,
hilrias ou transformadoras. Na verdade, escrever esses dilogos foi fcil; criei sessenta
rascunhos diferentes com sessenta textos diferentes de vendas de rvores, e cada um
deles me parecia realmente inspirado. Todas as vezes eu me convencia de que tinha
encontrado a pea que faltava para completar a histria de um jeito hilrio,
transformador. Todas as vezes eu me achava o mximo quando, muito orgulhosa,
mandava o texto por e-mail para gente que eu respeitava, pensando, Ufa, s vezes
demora um pouco, mas, se a gente tiver f e continuar tentando, a coisa certa acaba
chegando. E todos esses e-mails foram seguidos de e-mails escritos um dia ou, s
vezes, apenas algumas horas depois. Assunto: No leia o rascunho que acabei de te
mandar!! Em breve mando outro!!
Portanto, eu tinha perdido a f. Estava deitada no campo olhando as formigas.
Jogava meu prprio nome no Google, como se a resposta para o meu problema
pudesse estar secretamente codificada num blog que falava do quanto eu era chata. Eu
nunca tinha entendido muito bem isso da bebida, o que era uma coisa que me afastava
da maioria das pessoas, mas agora eu chegava todos os dias da minha casinha e
procurava s falar com meu marido depois de tomar um gole de vinho. Eu tinha
passado trinta e cinco anos em intenso contato comigo mesma e no aguentava mais.
Conversava com as pessoas sobre bebida como se fosse um novo tipo de ch que eu
tivesse descoberto numa loja de produtos orgnicos. O gosto ruim, mas baixa a
ansiedade, e deixa a gente mais socivel voc precisa experimentar! Tambm me
tornei taciturnamente caseira. Lavava a loua fazendo barulho. Preparava pratos
complicados e os apresentava com um desespero cheio de ressentimento. Parecia que
agora aquilo era tudo que eu era capaz de fazer.
Conto tudo isso para que vocs entendam por que eu ansiava pelas teras-feiras.
Tera-feira era o dia em que o folheto PennySaver era entregue. Vinha escondido entre
cupons e outras correspondncias inteis. Eu o lia enquanto almoava e depois,
porque no tinha pressa de voltar a no escrever, acabava lendo-o inteiro, at os
anncios de imveis no final. Examinava com cuidado cada item no como
compradora, mas como uma curiosa cidad de Los Angeles. Cada entrada era como um
pequeno artigo de jornal. Os anncios faiscavam: algum na cidade est vendendo uma
jaqueta. A jaqueta de couro. Ela tambm grande e preta. A pessoa acha que vale dez
dlares. Mas a pessoa no est muito certa quanto ao preo e pode considerar outros,
mais baixos. Eu quis saber mais a respeito do que pensava essa pessoa da jaqueta de
couro, como ela passava seus dias, com o que sonhava, o que receava mas nenhuma
dessas informaes constava l. O que constava era o telefone dela.
De um lado havia meu problema ficcional com Jason e as rvores e, do outro,
aquele nmero de telefone. Para o qual, em circunstncias normais, eu jamais teria
ligado. Com certeza eu no precisava de uma jaqueta de couro. Mas naquele dia eu
realmente no queria voltar para o computador. No s para o roteiro, mas tambm
para a internet e sua escravido. Ento peguei o telefone. A regra implcita dos
classificados que voc s pode ligar para um nmero para falar a respeito do item
venda. Mas a outra regra, sempre, que este um pas livre, e eu estava querendo muito
sentir minha liberdade. Aquela poderia ser minha nica chance de me sentir livre o dia
todo.
No meu mundo paranoico, todo lojista acha que estou roubando, todo homem
acha que sou prostituta ou lsbica, toda mulher acha que sou lsbica ou arrogante, e
toda criana ou animal v meu verdadeiro eu, e ele mau. Por isso, quando liguei, tomei
cuidado para no ser eu mesma; perguntei sobre a jaqueta numa voz emprestada do
Beav de Leave it to Beaver. Esperava ser recebida com o mesmo tipo de tolerncia
perplexa que ele provocava.
A pessoa que atendeu era um homem com uma voz sussurrante. No estava
surpreso com minha ligao claro que no, afinal tinha publicado o anncio.
Ainda est venda. Voc pode fazer uma oferta depois de v-la disse ele.
T bom, timo.
Houve uma pausa. Calculei o espao gigantesco entre a conversa que estvamos
tendo e aonde eu gostaria de chegar. Saltei.
Na verdade, eu estava pensando se, quando eu for a ver a jaqueta, eu poderia
tambm entrevist-lo sobre sua vida e sobre voc. Suas esperanas, seus medos
Meu pedido foi acolhido com o tipo de silncio que explode como um alarme.
Acrescentei depressa:
Claro que eu pagaria pelo seu tempo. Cinquenta dlares. Levar menos de uma
hora.
Tudo bem.
Bom, timo. Qual o seu nome?
Michael.
MICHAEL

JAQUETA DE COURO PRETA, TAMANHO GRANDE
US$ 10

HOLLYWOOD

Era maravilhoso ter a oportunidade de sair da minha toca. Numa sacola, pus iogurte,
mas, garrafas de gua e um pequeno gravador. Era do tipo que usava minifitas
cassete; comprei quando tinha vinte e seis anos, para ouvir as fitas que o diretor Wayne
Wang me mandou depois de ter gravado nossas conversas sobre minha vida sexual
como parte da pesquisa que ele realizava para um filme que estava fazendo. Sempre
pensei nisso como um exerccio meio bizarro do qual participei por dinheiro e porque
eu gostava de falar de mim. Mas agora, ao pr o gravador na bolsa, fui mais
condescendente. Talvez o sr. Wang s estivesse querendo conhecer melhor algum que
ele no entendia direito. Talvez fosse apenas uma contingncia do trabalho.
Fui de carro at a casa de Michael com uma fotgrafa, Brigitte, e meu assistente,
Alfred. Brigitte conhecia toda a minha famlia e os meus amigos, mas eu a conhecia fazia
pouco tempo, e no muito bem ela era nossa fotgrafa de casamentos. Na minha
cabea, o equipamento fotogrfico dela legitimava aquela sada; talvez eu fosse uma
jornalista ou detetive sabe l? Alfred ia junto para nos proteger de um estupro.
O endereo era o de um prdio de apartamentos gigantesco e velho no Hollywood
Boulevard, o tipo de lugar em que as atrizes de segunda categoria viviam nos anos 1930,
mas que agora era um pardieiro dos mais ordinrios. No que meu mundo seja l muito
perfumado minha casa, as casas dos meus amigos, as compras na Target, meu carro,
o correio , s que so cheiros que eu conheo bem. Tentei fazer de conta que aquele
tambm era um cheiro familiar, alguma coisa doce demais combinada com outra
fritando na chapa h trinta anos. Tambm procurei valorizar as pequenas bnos,
como quando apertamos o 3 no elevador, ele subiu e parou num andar com o
correspondente nmero 3.
A porta se abriu e l estava Michael, um homem de sessenta e muitos anos,
troncudo, ombros largos, nariz de batata, uma blusa fcsia, peitos, batom cor-de-
rosa. Antes de abrir a porta completamente, ele declarou com toda a calma estar
passando por uma mudana de sexo. Que legal, eu disse, e ele nos convidou para, por
favor, entrar. Era um apartamento conjugado, do tipo em que sala e cozinha so
delimitadas por uma tira de metal no cho, unindo o carpete ao linleo. Ele nos
mostrou a jaqueta de couro e fiquei meio deslumbrada: ali estava ela, a coisa real.
Toquei o couro e na mesma hora senti uma vertigem. s vezes isso me acontece quando
fico frente a frente com objetos autnticos como um dj-vu, mas, em vez da
sensao de que aquilo j aconteceu, sou invadida pela conscincia de que est
acontecendo pela primeira vez, de que todas as outras vezes s existiram na minha
cabea.
Murmuramos nossa admirao pela jaqueta, que era absolutamente comum, e
perguntei se podia ligar o gravador. Michael se acomodou numa espreguiadeira
anatmica e eu me empoleirei no sof. Dei uma olhada nas minhas perguntas, mas agora
elas pareciam fora de propsito.

Miranda: Quando voc comeou a mudana de sexo?

Michael: H seis meses.

Miranda: E quando foi que voc soube que

Michael: Ah, bom, eu soube quando era criana, mas passei a vida inteira no armrio.
Sa em 1996 e depois voltei, mas desta vez no vou voltar para o
armrio. Vou at o fim com a minha transformao.

Miranda: Ento a primeira vez deve ter sido difcil Voc no teve uma boa experincia,
foi isso?

Michael: No, no foi difcil. Eu decidi fazer a transformao e no sei por que voltei
para o armrio. uma dessas coisas psicolgicas que estou
tentando resolver com um psiclogo.

Michael falava baixo e com uma espcie de monotonia na voz que me fez pensar
se ele no estaria meio dopado. Nada de muito doido, talvez s alguns relaxantes
musculares para baixar a ansiedade. Esse pensamento me acalmou fiquei contente de
haver algum amortecedor entre ele e minhas perguntas invasivas. Desejei ter tomado
alguns relaxantes musculares tambm.

Miranda: Como era a susa vida antes de voc se assumir?

Michael: Eu tentava ser como todos os homens e escondia o fato de que por dentro eu
me sentia uma mulher. Eu sabia disso desde criana, mas por
muito tempo tive um medo enorme de me assumir. O movimento
para que os gays sassem do armrio me ajudou a entender que eu
no devia agir daquela maneira.

Miranda: Como voc ganhava a vida?

Michael: Eu tinha uma oficina mecnica.

Miranda: E o que voc faz agora?

Michael: Agora estou aposentado.


Miranda: E est vivendo de qu?

Michael: Da aposentadoria. Este prdio do programa de baixa renda, ento o aluguel


bem razovel. Antes eu vivia na espelunca mais barata de
Hollywood.

Miranda: E como voc passa o seu tempo?

Michael: Fao compras e vejo televiso, e caminho para manter a sade.

Miranda: Quais os seus programas preferidos?

Michael: The Price is Right e os noticirios.

Miranda: Voc se sente parte de uma comunidade aqui?

Michael: Eu fao parte de uma comunidade. Vou todas as sextas-feiras s reunies de


Percepes Transexuais, no Centro de Gays e Lsbicas em
McCadden, e um monte de transexuais tambm vo. Homem-para-
mulher, mulher-para-homem. Conheci dois l que fizeram sua
grande cirurgia h quarenta anos.

Perguntei se eu podia dar uma olhada no apartamento e ele disse claro que sim.
Michael continuou sentado e ficou nos vendo andar por ali, examinando tudo em
silncio.
Aquilo me fez pensar na venda de objetos pessoais em garagens, a sensao
grosseira de avaliar a vida inteira de algum com um nico olhar ganancioso. A cada
segundo eu erguia as sobrancelhas numa garantia de interesse, mas Michael no estava
nem a.

Miranda: Posso ver sua coleo de filmes?

Michael: Ah! tudo pornografia.

Fiz um gesto de concordncia e abri um sorriso caloroso, para mostrar que


pornografia no me incomodava.
Michael: Pode olhar.

Ajoelhei-me e analisei as fitas. Eram todas de mulheres, ou do que parecia ser


mulheres. Fiz um desses clculos modernos: homem-para-mulher + porn para
homens hteros = ele quer ser lsbica?

Miranda: de mulheres que voc gosta?

Michael: Bem, a tem pornografia htero e pornografia trans. Tambm tem um pouco de
pornografia de travestis. isso a.

Essa resposta s despertou mais perguntas, mas eu estava envergovvnhada


demais para faz-las. Tirei do bolso as perguntas que eu havia preparado.

Miranda: Voc j teve computador?

Michael: No. Nunca tive computador. Talvez um dia desses eu arrume um. Uso o
computador da biblioteca.

Miranda: H alguma coisa que voc queira e que ache que nunca vai ter?

Michael: No. No na minha idade.

Miranda: Voc se sente de bem com a vida?

Michael: , sinto. A nica coisa que est faltando a minha transio total; a nica
coisa que me faz falta e que eu desejo. Estou ansioso por isso.

Miranda: E qual voc diria que foi a poca mais feliz da sua vida at agora?

Michael: Ah, eu gosto de viver. Estou sempre feliz. No sei dizer, entre uma poca e
outra, qual foi a mais feliz. Nunca pensei nisso.

Miranda: Nem todo mundo gosta de viver voc j nasceu com esse temperamento ou
acha que seus pais incutiram esse sentimento em voc?

Michael: No. Faz parte do meu temperamento. Nunca ningum me ensinou isso.

Lancei um ponto de interrogao para Brigitte e ela fez que sim com a cabea,
tinha fotografado tudo. Ento nos despedimos de Michael, com frases feitas nervosas e
insistentes, e em silncio descemos de elevador at o primeiro andar. Samos para o
ensolarado Hollywood Boulevard, uma rua pela qual passo de carro todos os dias.
Agora, quando eu olhar para esse prdio, vou saber que Michael est l, vivendo de sua
aposentadoria, curtindo a vida e desejando apenas uma ltima coisa transformar-se
em mulher. Sua convico me contagiou. Eu me senti acesa e alerta. As provas de sua f
nesse desafio quase impossvel estavam por toda parte: a blusa rosa, a maquiagem
atulhando o banheiro, o suporte de peruca em forma de falo. No eram sinais de
derrota. No se tratava de algum que caa sonolento no final do percurso; na verdade,
tudo pelo que ele havia passado lhe trouxera a certeza do que importava agora.
Presa minha mesa, eu tinha ficado bitolada e mope. Tinha me esquecido da
ousadia, de que ela ainda era uma opo. Se eu no era capaz de escrever as cenas,
ento deveria realmente ir em frente com o fato de no conseguir escrev-las. Decidi me
afastar do computador e da sugesto de que eu poderia estar beira de uma boa ideia.
Iria me encontrar com todos os vendedores do PennySaver que concordassem em me
receber. Me obrigaria a fazer isso como um trabalho. Arranjaria um gravador melhor e
sairia de carro por Los Angeles inteira como uma assistente social inexperiente e intil.
Por qu? Pois . Era a pergunta a ser respondida por meu novo trabalho.
Todas as vezes que eu tinha que discar para o nmero de um estranho, eu
precisava me esforar, mas me obriguei a fazer isso, porque eu estava sem sada; no
telefonar seria o comeo de no fazer um monte de outras coisas, como sair da cama.
Comecei pelo primeiro item venda (duas taas de champanhe de prata, gravadas com
o ano 2000, vinte dlares) e fui seguindo a lista. A maioria das pessoas no queria ser
entrevistada, ento, quando algum concordava, eu me sentia lisonjeada, como se
tivessem me dito: Sim, e depois que voc me pagar cinquenta dlares pela entrevista,
vou pagar a voc um milho e meio de dlares para financiar o seu filme. Porque esse
era o outro problema. Com o tempo que eu havia levado para escrever o filme, minhas
economias tinham virado p. De repente, todas as empresas que um ano antes tinham
ficado to animadas para me conhecer no financiavam nada que no tivesse Natalie
Portman como estrela. O que meio que me fez abraar o movimento Riot Grrrl eu saa
das reunies civilizadas em Beverly Hills me vendo dar meia-volta e entrando l nua,
com alguma coisa perfeita rabiscada na minha barriga com pincel atmico preto. Mas
qual seria a resposta perfeita para uma insensibilidade lgica e cautelosa? Eu no sabia.
Ento, continuava vestida e ia para a casa de algum que tinha me dito sim, sem
questionamentos. Uma mulher que vendia trajes da ndia por cinco dlares cada um.
PRIMILA

TRAJES DA NDIA
US$ 5 CADA

ARCADIA

Eu achava que pessoas muito ricas no anunciavam no PennySaver, mas, quando


chegamos a uma casa com torrees e talvez at balaustradas, dependendo do que fosse
isso, revi minha opinio. E, quando ouvi as notas longas da campainha musical de
Primila, pensei em rever muito mais minha sexualidade, minha profisso, meus
amigos; tudo isso se desmanchou no ar enquanto aqueles sinos tocavam. Seria assim
com as igrejas? E se eu me tornasse evanglica neste instante? Cruzei os braos para
impedir que isso acontecesse e me lembrei de ficar atenta a conselhos misteriosos e
mensagens em cdigo. Em qualquer roteiro do tipo busca espiritual, era preciso ficar
muito alerta; eu me mantinha de sobreaviso para algo como As rvores tm olhos.
No faria nenhum sentido na ocasio, mas depois me salvaria a vida.
Uma indiana de meia-idade abriu a porta. Ela no usava trajes tpicos, apenas uma
roupa normal de me de famlia riquinha e conservadora. Tinha nas mos um mata-
moscas e cordialmente nos convidou para entrar, enquanto batia nas moscas com
ferocidade.

Miranda: Muito obrigada por nos receber.

Primila: Ento, voc pode me contar um pouco mais do que se trata? Voc tem algum
folheto ou alguma coisa escrita sobre o que voc faz ou sobre sua
empresa?

Miranda: Estou s entrevistando pessoas. Estou interessada apenas em obter uma viso
das pessoas e daquilo pelo que elas se interessam, ter uma noo
da histria de vida delas. Sou escritora e costumo escrever fico,
mas isto voc sabe, sempre sinto curiosidade pelas pessoas.
Ento esta uma oportunidade de

Primila: Voc escreve fico? Trabalha com algum tema em especial? Tem alguma
encomenda, segue alguma tendncia?

Miranda: Eles so quer dizer, caramba! Em geral sobre pessoas tentando se conectar
de algum jeito, e a importncia disso. E sobre as vrias maneiras de
como as pessoas meio que fazem isso ser mais difcil do que o
necessrio.

Primila: apenas curiosidade, porque assim de repente

Miranda: Eu sei, eu sei. Ento, sei que j conversamos um pouco por telefone, mas
agora que estou gravando O que levou voc a anunciar o que
voc est vendendo no PennySaver?
Primila: Estou vendendo alguns trajes da ndia. Tenho uma boa quantidade deles. Estou
tentando fazer duas coisas. Uma lev-los a pessoas que
provavelmente apreciariam esse tipo de traje tnico e que em geral
no tm oportunidade de possuir um. Tudo comeou, eu acho, no
ano passado, em julho. Fomos para a ndia, para uma aldeia de l.
Meu marido tem um interesse especial por esse lugar, porque sua
av era dessa aldeia. Nos ltimos tempos, devido falta de chuvas
e tudo o mais, as colheitas foram escasseando. As pessoas da
aldeia disseram: Voc pode nos ajudar mandando algum dinheiro?
Estamos precisando de um sistema de irrigao motorizado.

Ento, organizei um evento em casa e vendi todos os trajes


indianos que eu tinha trazido da ndia. Fiz isso dois dias, dois
sbados, e levantei cerca de acho que foram algumas centenas de
dlares Mandei tudo para l, e eles conseguiram a tal bomba
motorizada.

Em abril, meu marido voltou para l, e eles estavam muito felizes


com o sistema de irrigao, mas agora querem expandir seus
campos. Eu pensei: Vou pr um anncio no PennySaver e talvez
encontre pessoas que queiram comprar as roupas. Veio uma
senhora e levou muita coisa, porque ela trabalha como figurante
em filmes e uma mulher latina. Disse que s vezes eles querem que
ela se vista como indiana. Ento, ela adorou tudo aqui.

Miranda: De que lugar da ndia voc ?


Primila: Bombaim. Meu pai era meteorologista do aeroporto de Bombaim. Ento
construmos uma casa perto do aeroporto. Uma casa grande,
enorme, de trs andares.

Miranda: Voc sabe me dizer qual a sua lembrana mais antiga?

Primila: Sei. Eu tinha dois anos. Estava num navio, indo de Bombaim para a Inglaterra.
Era como uma grande casa de bonecas. Naquela poca, as pessoas
no viajavam de avio, s de navio. Eu tinha apenas dois anos e me
lembro muito bem de tudo. Eu me chamo Primila, mas dizia para
todo mundo que meu nome era sra. Haggis. No sei por que ou
como. Minha me conta a histria de como aquela menininha eu
tinha cachos ficava cercada por um grupo de pessoas que
perguntavam a ela: Como o seu nome, menina?. E eu
respondia: Sra. Haggis. Insistia que esse era o meu nome. Eu
nunca tinha comido haggis, ento no sei de onde Talvez eu
tenha ouvido falar de haggis e pensado voc sabe um prato
ingls.

Primila me mostrou a casa. Era imaculada e feminina, forrada de carpete branco e


enfeitada de bonecas grandes com vestidos de babados. E, mesmo sabendo que eu no
era reprter nem algum de prestgio, comeou a me contar coisas sobre si mesma,
como Michael tinha feito, como se a entrevista realmente valesse alguma coisa. Ocorreu-
me que a histria de cada pessoa interessa demais a ela prpria, ento quanto mais eu
ouvia, mais ela queria falar.

Primila: Eu escrevo poemas com um tema ou uma mensagem. Cada dia um presente
foi um tema. A, depois do Dia de Ao de Graas, escrevi Dez
razes para agradecer. H outro, Procure o arco-ris. Tantas
coisas me aconteceram, mas ainda tento me manter sempre pra
cima e positiva a qualquer custo. Perdi minha irm de uma forma
trgica, de cncer, h alguns anos. Ela teve cncer de clon, quarto
estgio. Tinha trinta e cinco anos e quatro filhos pequenos. No
queriam dar o visto para ela vir aos Estados Unidos, e ela estava no
ltimo ms. Eu falava com a embaixada na ndia e era sempre no,
no, porque eles no acreditavam; ela parecia to saudvel, da eles
no acreditavam.

Era Ao de Graas aqui nos Estados Unidos. Ento no dia seguinte


eu acordei e pensei: Vou falar com o funcionrio mais graduado. O
nome dele era Tom Fury, ainda me lembro. Era toda aquela
hierarquia de gente. Finalmente ele veio ao telefone e eu disse: Sr.
Fury, eu s quero lhe dizer uma coisa. Se minha irm no
conseguir, eu ficarei em paz porque fiz tudo o que podia. E ela sabe
quanto eu a amo. Depois eu disse: Quem quer que tenha sido um
instrumento para negar a ela esta ltima oportunidade ter que
viver com isso pelo resto da vida e ter que responder por isso no
Dia do Juzo Final. Foi tudo o que eu disse, e Muito obrigada. E
isso de eles no concederem o visto j durava trs meses.

s duas da manh o telefone tocou. Era minha me, da ndia.


Primila, voc no vai acreditar. Ligaram da embaixada. Concederam
o visto para a famlia inteira. E, quando meu irmo foi buscar os
vistos, eles disseram que aquilo nunca havia acontecido na histria
da embaixada.

Ela morreu no dia 24 de dezembro. Ns a enterramos no dia 31 de


dezembro, em Forest Lawn. Ento fiquei com os filhos dela, e os
criei. Por isso, acontea o que acontecer, eu sempre tento
compartilhar as coisas que podemos aprender com o que acontece
na nossa vida, como podemos ajudar os outros.

Miranda: E como voc ganha a vida?

Primila: Sou diretora de reabilitao em um hospital. Trabalho l h vinte e trs anos.


Sou to apaixonada pelo meu trabalho que em vinte e trs anos
nunca tive uma falta que no fosse programada. Nunca cheguei e
disse: Hoje no vou. Mas hoje eu tranquei a minha porta sem
querer sempre tranco a porta do meu quarto quando meu
marido est na ndia e percebi que minha bolsa tinha ficado l
dentro com a chave do carro. Eu no sabia o que fazer. Fui l e
sacudi a porta. Ela no abriu. Ento pensei: O que eu fao? Vou
ligar para o meu filho. A meu filho diz: Me, voc nunca ficou
doente. Estou ocupado. Talvez hoje seja a primeira vez na sua
vida que voc tem um motivo: voc est sem carro. Eu disse:
Voc no pode estar falando srio. Eu nunca faria uma coisa
dessas. No dia que eu cair morta a eu no apareo no trabalho.
Ento fui l em cima de novo, sacudi um pouco mais a porta e
consegui tir-la do lugar.

Miranda: Voc arrombou a porta?

Primila: Sim.

Primila nos levou ao andar de cima e nos mostrou a porta saindo das dobradias,
e depois chamou nossa ateno para duas paredes da casa onde um pequeno
quadrado havia sido removido. Disse-me para adivinhar para que serviam aqueles
buracos, e eu respondi que no fazia a menor ideia.

Primila: Tudo bem, vou contar, porque uma histria engraada. Um dia, eu estava no
trabalho, meu sobrinho Benny me telefona e diz: Tia, estou
ouvindo vozes na parede. No vm do teto, vm da parede
mesmo. Eu disse: Que bobagem!. Mas quando cheguei em casa
eu ouvi, e era verdade; no closet, atrs da parede dentro da
parede , havia um miau, miau. Ento meu genro abriu um buraco
na parede do closet e ps um pouco de comida l dentro. E de
manh l estava o mais lindo gatinho branco e preto, com apenas
duas semanas de vida.

E ento, uma ou duas semanas depois, logo atrs do aquecedor, ele me chama e diz:
Tia, tem outro miau aqui. E era verdade, abrimos um buraco ali e
outro gatinho apareceu. E depois aconteceu mais uma vez! Uma
rvore tinha crescido acima da nossa parede, a gata tinha subido,
feito um buraco no nosso telhado e entrado no sto para ter seus
filhotes. E eles estavam caindo pelo vo do isolamento trmico.
Minhas filhas esto casadas e estou esperando pelos netos, e a
piada que a cegonha s traz bebs de quatro patas para a minha
casa.
Antes de irmos embora, ela me mostrou como vestir um sri corretamente.
Enquanto ela enrolava o tecido em volta dos meus quadris, percebi que iria me juntar
atriz latina quando Primila contasse sua histria sobre as pessoas que haviam
respondido ao anncio. Eu tinha me achado escandalosamente ousada, mas os
vendedores do PennySaver no se preocupavam muito em convidar desconhecidos
para entrar em sua casa. Ento eu no precisava ficar to nervosa Podia abandonar a
voz de Leave it to Beaver e me concentrar nas pistas secretas que cada pessoa tentava
me transmitir.
Naquela noite, escrevi: (1) Cada dia um presente e (2) Procure o arco-ris.
Presente. Arco-ris. Primila era uma bruxa derrubando portas e ameaando funcionrios
com a danao eterna. Tinha adotado quatro filhos e trs netos de quatro patas. Risquei
as pistas um e dois. Eram obviamente mensagens enganadoras. Claro que a verdade no
seria docemente escondida por um lema, porque eu no era nem Joo nem Maria. Minha
investigao foi inconclusiva, mas no foi de faz de conta, eu no estava num conto de
fadas ou numa fbula. Fechei os olhos e absorvi o puuuf silencioso que sempre
acompanha essa revelao. o som do mundo real, gigantesco e improvvel
substituindo a verso menor da realidade que uso como um gorro, amarrada com
firmeza sob o queixo. Seria preciso uma vigilncia constante para no substituir as
pessoas pela minha prpria verso ficcional delas.
PAULINE E RAYMOND

MALA GRANDE
US$ 20

GLENDALE

Pauline se mostrou ansiosa por telefone, comeou a me contar sua vida antes mesmo
de eu fazer a pergunta ou oferecer os cinquenta dlares. Ela morava em uma parte
bonita de Glendale, bairro do meu ex-namorado. Enquanto eu fazia aquele caminho to
familiar, pensei e se fosse a mesma rua, a mesma casa, e se fosse ele que estivesse
vendendo a mala, e se a mala fosse minha, alguma coisa que eu tivesse esquecido, e se
eu a comprasse e dentro encontrasse eu mesma criana, ou meu pai criana, ou um
filho meu criana, o filho que eu ainda no tinha encontrado tempo para ter? Mas,
como o nome do meu ex-namorado no era Pauline, passei direto pela rua dele e
estacionei em outra, algumas quadras adiante. De novo uma casa grande e imponente.
Pauline tinha uns setenta anos e no mesmo instante comeou a me mostrar fotos e a
me contar histrias do seu grupo de cantores amadores, o Mellow Tones.

Pauline: Ns cantamos Two Sleepy People, Hello, Dolly

Miranda: Que foto essa de voc segurando um revlver?

Pauline: Ah, sou eu , sou eu. Bem, em outras palavras, voc pode me chamar de
canastrona. Isso o meu pot-pourri de George Cohan esqueci o
nome do que eu cantava. Hello, My Honey, acho. Ainda canto,
mas fiz uma operao na orelha por causa de um carocinho, que
depois eles descobriram ser duas clulas cancerosas. Ento tiveram
que cavar mais fundo. E por causa disso perdi um pouco a audio
e as coisas ficaram confusas. No sei qual o som da minha
prpria voz. Ento larguei os grupos de canto.

Miranda: Ento a sua mala que voc est vendendo no PennySaver?

Pauline: A mala? Ah, , ela est no saguo. Voc quer v-la?

Miranda: Talvez fosse bom v-la.

Pauline: claro, foi para isso que vocs vieram.

Fiz que sim com a cabea, mas em seguida dei de ombros, numa sugesto de que
minhas razes para estar l evoluam e se ampliavam sem parar.
Miranda: Por que a est vendendo?

Pauline: Bem, quando minha filha e meu neto se mudaram para c, uma poro de
coisas precisou ser vendida. Ela disse: Onde voc vai conseguir um
lugar para as minhas coisas?. Ento precisei me desfazer de uma
poro de livros e apertar tudo. Vendi lenis roupas de cama e
colches. Vendi quadros. O que mais eu vendi? A cama.

Miranda: Como voc publica os anncios? Voc tem computador?

Pauline: Eu telefono. Eu redijo o anncio tem um jeito especial de fazer isso, voc s
pode pr umas tantas palavras. O PennySaver publica o anncio do
seu objeto de graa se ele custar menos de cem dlares. Ento isso
ajuda muito. Mas vender um de cada vez um trabalho que no tem
fim.

Miranda: E quando sua filha e seu neto se mudaram para c?

Pauline: J faz uns dois ou trs anos. Ou quatro?

Raymond: Sete anos.

Era o neto de Pauline ele havia surgido do nada. Tinha entre trinta e quarenta
anos e usava um aparelho de surdez. Um cachorro muito magro vestido com uma
camisa listrada de rgbi seguiu-o at a sala.
Pauline: Sete anos? No brinca! Ai, no. Como o tempo passa!

Raymond: Eu comecei a trabalhar um ano depois.

Miranda: Onde voc trabalha?

Raymond: Sou motorista de uma empresa. Entrego manequins.

Miranda: Voc entrega manequins?

Pauline: Manequins nus.

Miranda: Manequins nus.

Raymond: Ns os fabricamos, vendemos e alugamos. E consertamos tambm.

Pauline: Ele conheceu algumas pessoas tambm, no foi?

Raymond: Conheci um monte de gente.

Pauline: Celebridades.

Raymond: No muitas.

Pauline: Voc podia dizer algumas.

Raymond: Conheci algumas. Cameron Diaz eu conheci. E Mark Jenkins.

Miranda: Que legal. Voc tem alguma foto sua com os manequins?

Raymond: Tenho um manequim l em cima.

Miranda: Sei. Talvez a gente v l dar uma olhada.

Raymond: Posso trazer.

Miranda: >A gente pode subir. No precisa traz-lo aqui para baixo.
Enquanto subamos as escadas, comecei a perceber que o tamanho da casa era
uma iluso. Esses eram os parentes pobres do antigo dono. Tanto a me quanto o neto
tinham comida e uma geladeira pequena em seus quartos, vivendo neles como em
minsculos apartamentozinhos com cozinha e banheiro compartilhados. Antes de
olharmos o manequim, Raymond me mostrou uma foto sua com a atriz Elizabeth
Hendrickson, de All My Children.

Raymond: Eu a conheci na Disneylndia. Precisamos ficar duas horas esperando na fila.

Miranda: E como ela ? O que voc gosta nela?

Raymond: Ela simptica. E bonita, linda.

Em seguida ele me mostrou o manequim. Era igualzinho a Elizabeth Hendrickson.

Miranda: Ento isto quer dizer meio parecido com ela. Por que to parecido com
ela?

Raymond: Eu me baseei numa foto dela.

Miranda: Voc que fez o rosto dela?

Raymond: Meu chefe.


Miranda: Ah, seu chefe.

Raymond: , ele que fez.

Miranda: Pela foto. E ele fez isso s para voc?

Raymond: Foi.

Miranda: Ah, que gentil.

Raymond: Ele ps no molde.

Miranda: Isso custa caro? Quer dizer, voc teve que comprar?

Raymond: Se uma pessoa qualquer fosse comprar, provavelmente custaria uns mil e
quinhentos dlares. Ele me deu um desconto.

Miranda: Estou vendo que voc tem dois computadores. O que voc faz nos
computadores?

Raymond: Mando e-mails. Mando e-mails para os meus amigos. s vezes para a minha
irm, se preciso perguntar alguma coisa. E baixo msicas.

Miranda: Que tipo de msica?

Raymond: Dido.

Miranda: Ela legal.

Raymond: Foi ruim demais o Michael Jackson ter morrido.

Miranda: .

Raymond: Fiquei arrasado.

Miranda: E bem antes da grande turn dele.

Raymond: a minha gerao.

Miranda: Quantos anos voc tem?

Raymond: Trinta e nove.

Miranda: Eu tenho trinta e cinco.

Raymond: Ento a nossa gerao.


Miranda: isso a.

Era um alvio encontrar algum com quem eu tinha pelo menos alguma coisa em
comum. Michael, Primila e Pauline haviam me esgotado com sua sinceridade e sua
pitoresca falta de habilidade, mas Raymond e eu ramos da mesma gerao, sabamos
clicar em coisas, tnhamos uma verso do nosso nome com um @ nele. Quando sa do
quarto, eu disse alguma coisa como Talvez a gente se veja por a, como se toda a
nossa gerao costumasse se reunir num caf.
Mas no instante em que voltei para o carro soube que nunca mais o veria de novo.
De repente, me pareceu bvio que o mundo todo, e Los Angeles em especial, tinha sido
projetado para me proteger dessas pessoas que eu estava encontrando. No havia
nenhuma lei contra conhec-las, mas isso no iria acontecer. Los Angeles no uma
cidade em que se anda a p ou uma cidade com metr, ento, se algum no estiver na
minha casa ou no meu carro, ns nunca vamos estar juntos, nem mesmo por um
instante. E, s para ter absoluta certeza disso, quando saio do carro o meu iPhone me
acompanha, deixando todo mundo na agncia de correios saber que eu no estou
realmente com eles, estou com a minha prpria gente, to divertida que no posso
deixar de sorrir sozinha enquanto respondo s mensagens deles.
No que eu estivesse encontrando s um tipo de gente atravs do PennySaver,
ou que todo mundo vendesse coisas pelo mesmo motivo. Michael era pobre, Pauline
era mais solitria do que pobre, Primila, apenas antiquada. Mas at agora havia uma
coisa em comum, algo to bvio que s precisei de um instante para perceber. No
processo de tentar tranquilizar as pessoas para quem eu telefonava, eu dava um jeito de
mencionar que eu era algum mais ou menos situada na vida no uma estudante, mas
uma escritora j publicada. Digitem Miranda July no Google, eu sugeria (Fao isso o dia
inteiro!). Mas eles no eram usurios do Google. Gente que publica anncios na edio
impressa do PennySaver no tem computador claro que no, ou teriam usado um
site de anncios digitais como a Craigslist.
E, enquanto eu circulava e comparava os anncios, o prprio folheto impresso
comeou a me parecer uma espcie de relquia. Em alguma tera-feira futura, o nmero
de pessoas sem computador seria pequeno demais, e o folheto simplesmente no
chegaria. Isso me deixou um pouco ansiosa, ento liguei para o PennySaver e perguntei
se eles existiriam para sempre.
O conceito PennySaver sempre existir disse Loren Dalton, presidente do
PennySaver eua (que na verdade atende apenas a Califrnia) , mas no
necessariamente no formato impresso. Por isso temos investido bem pesado na rea
digital Internet, celular, estamos nos preparando para fazer algumas coisas para iPad.
Mas ele garantiu que nada iria acontecer agora, no durante a recesso. O
PennySaver sempre foi mais forte quando a economia esteve mais fraca; a primeira
edio foi impressa durante a Grande Depresso na garagem de algum. O termo nunca
tinha sido registrado, ento o PennySaver de Maryland no pertencia ao PennySaver da
Flrida nem ao PennySaver de Nevada. Todos tinham comeado suas verses online na
ltima dcada, e todas as verses impressas vo acabar na prxima dcada.
Assim, a recesso de agora talvez fosse o ltimo grande momento do PennySaver.
Em 2009, o slogan interno da empresa era Nossa hora Agora. Soava como uma
abordagem bastante otimista da crise. Reivindiquem! Possuam. E viva a recesso! O
PennySaver abastecia pessoas para quem dez dlares valiam muito pessoas que
economizavam centavos. O que, agora, significava um monte de gente.
ANDREW

GIRINOS DE R-TOURO
US$ 2,50 CADA UM

PARAMOUNT

Quando meus amigos me perguntavam como estava indo o meu roteiro, eu respondia
contando sobre meu novo trabalho como reprter para um jornal que no existia,
entrevistando pessoas que eu descobria num folheto enviado por mala direta que logo
seria extinto. E como a maioria das pessoas para quem telefonava me rejeitava, aquelas
com quem eu me encontrava no eram aleatrias ns nos escolhamos mutuamente.
Paramount estava completamente fora do que eu conhecia de Los Angeles.
Limitei-me a fazer o que o gps mandou, e l estava eu. Fazia mais calor do que onde eu
morava, a pavimentao nova e ofuscante mal disfarava o deserto. Como cheguei
muito cedo, fiquei subindo e descendo as ruas de carro, passando por fileiras de casas
novas e idnticas. Imaginei o homem que havia construdo todas elas, uma das mos
segurando o martelo e a outra batendo na testa pela milsima vez ao se dar conta de
que sua mais nova criao, de novo, era exatamente igual ltima casa que ele havia
construdo, ali ao lado. Detesto quando fico tendo o mesmo pensamento ruim, ento
decidi simpatizar com o homem. Parecia um bairro violento para uma r-touro que
apenas estava comeando a vida, um girino. Apressei-me em voltar para o endereo,
agora atrasada. Sempre me atraso, e sempre porque chego cedo demais.
Andrew revelou-se um jovem de dezessete anos com trs tanques no quintal.
Meninos adolescentes nunca fizeram muito sentido para mim, e desde o ensino mdio
eu praticamente os evitava. Mas Andrew era um tipo de adolescente que eu conhecia: o
meigo e solitrio curioso. Meu irmo tambm tinha construdo tanques na escola. Os de
Andrew estavam cheios de jacintos aquticos e dos peixes especiais que comem ovos
de mosquitos. Folhas de nenfares flutuavam ao sol e as rs pareciam felizes, como
toda r suburbana.

Miranda: Como voc fez isso?

Andrew: Eu s cavei.

Miranda: Voc estudou a respeito de tanques? Como descobriu isso?

Andrew: Na verdade eu no estudei. As pessoas me falaram. Aos poucos, foi dando


tudo certo.

Miranda: Por que voc gosta disso?


Andrew: No sei. relaxante. Observar tudo isso me relaxa muito.
Concordei com a cabea, fingindo que tambm estava relaxada. Vi a luz do sol
brilhando na gua e pratiquei a integrao mente-corpo por alguns segundos,
hiperventilando em silncio.

Miranda: Voc j tinha posto algum anncio no PennySaver?

Andrew: Nunca tinha tentado. Ele chega toda quarta ou quinta-feira. Eu s comecei a
olhar para ele e disse: Vamos experimentar isso. Eu s queria
experimentar para ver. E meio que funcionou mesmo.

Miranda: Ah, ? Teve gente que comprou os girinos?

Andrew: . As pessoas gostam deles. Ficavam meio chocadas, porque ningum


conseguia realmente encontrar um girino de r-touro.

Miranda: Os girinos esto aqui?

Andrew: Deixe eu tirar esta planta daqui e voc vai ver.

Ele ergueu um monte de plantas gotejantes e pegou um girino na gua.

Miranda: Uau, eles esto ficando mesmo com cara de rs. Pensei que fossem menores.
Isto deve ser bem empolgante, porque de repente voc vai ter um
monte de quer dizer, em que velocidade acontece?

Andrew: A transformao?
Miranda: .

Andrew: Bem rpido. Eu diria que este aqui s tem mais algumas semanas.

Miranda: Estou imaginando o tipo certo, com a coisa grande e branca que vai fazer um
barulho assim bom, eu no vou fazer o barulho.

Andrew: .

Miranda: Ento vai ser assim meio incrvel voc vai ter aquele som.

Andrew: Por toda parte. muito alto.

Miranda: Isso vai ser uma surpresa para os vizinhos.

Andrew, atento, observava um pombo que tentava decidir onde pousar e que
depois se empoleirou nervosamente perto do tanque.

Andrew: Olhe o pombo. Eu nunca tinha visto isso. O tanque atrai a vida selvagem. Atrai
todo tipo de animais.

Miranda: Que outros tipos?

Andrew: Lagartos tambm.

Miranda: Acho que grande parte da cidade no deve parecer muito acolhedora para um
animal, portanto isto aqui um pouco como
Andrew: , o hbitat deles.

Miranda: E se, enquanto estivermos aqui, lees e antlopes comearem a chegar?

Andrew: Seria uma loucura.

Miranda: O que seus pais fazem? Esto trabalhando agora?

Andrew: Meu pai acabou de ser despedido. Ele trabalhava em Buena Park, perto da
Knotts Berry Farm. Era zelador. Foi despedido, ento agora est em
casa. Passamos mais tempo com ele agora. Minha me, ela trabalha
na Kaiser.

Eu estava torrando no sol, ento entramos, passando na ponta dos ps pelo pai,
que assistia tv, e fomos at o quarto de Andrew. Instintivamente fechei a porta depois
que entramos Por que os adolescentes sempre deixam a porta do quarto aberta? Mas
ento isso pareceu estranho eu era uma desconhecida , a reabri a porta e deixei
uma fresta.

Miranda: Os seus pais esperam alguma coisa de voc agora que se formou? Voc tem
algum projeto?

Andrew: Ir para a faculdade, ter uma boa formao, comear uma carreira.

Miranda: Para onde voc vai?

Andrew: Long Beach. J me matriculei. Tenho os folhetos e tudo o mais.

Miranda: E voc quer estudar o qu?

Andrew: Eu quero fazer engenharia, com avies e tudo o mais, trabalhar com motores
ou coisa parecida. No sei. Alguma coisa usando as mos, como
um mecnico.

Miranda: E, alm de um emprego, alm da faculdade e depois de um emprego, que


coisas voc visualiza no seu futuro?

Andrew: Visualiza?

Miranda: O que voc imagina?

Andrew: Tipo no futuro?

Miranda: , qualquer coisa.


Ele olhou para o teto, invocando uma viso como se eu tivesse lhe pedido para
realmente ver seu futuro.

Andrew: Eu provavelmente me imagino, acho, estando na floresta e coisas assim nas


montanhas, alguma coisa assim, perto da vida selvagem.

Miranda: Ento, talvez no aqui.

Andrew: No, aqui no.

Algo se mexeu no terrrio de Andrew; pensei que fosse uma tartaruga, mas a
olhei de novo.

Miranda: Uau!

Andrew: . a minha aranha de estimao.

Miranda: uma tarntula?

Andrew: . Ela no morde. Est tudo bem.

Miranda: T legal. Bom saber que h uma tarntula atrs de mim. Ento t. Qual foi o
momento mais feliz da sua vida at agora?

Andrew: O momento mais feliz? Eu diria que foi a festa de formatura que minha me e
meu pai fizeram para mim.

Miranda: Aposto que eles ficaram muito orgulhosos.

Andrew: . Ficaram orgulhosos. Um dos meus objetivos era terminar o ensino mdio.

Miranda: Foi difcil?

Andrew: Bom, para mim no foi to difcil. Eu estava na Educao Especial, e l os


professores no esperam muito da gente. fcil.

Miranda: Foi muito fcil?

Andrew: Bem fcil. Poderia ter sido mais difcil. Eles no tentam ensinar porque acham
que a gente no vai ser capaz de absorver a informao que esto
dando.

Miranda: Voc sabe por que estava na Educao Especial?


Andrew: >No. Estive l desde 2000.
Miranda: Ento desde que voc tinha oito anos.

Andrew: . Eles s me deram a minha papelada, e no papel diz que porque eu sou
lento para me lembrar.

Miranda: verdade?

Andrew: L diz que parece que quando estou na sala de aula fico devaneando. O
professor deve achar isso porque eu no converso com as pessoas
na classe, porque no conheo ningum. Eu s sento l e fao as
lies e no falo com ningum. Acho que o professor deve pensar
que estou devaneando porque no interajo com os outros.

Miranda: O que voc gostaria de ter aprendido mais?

Andrew: Acho que cincias. Nas minhas aulas de cincias, no podamos fazer
experincias. Se voc der uma faca, ou coisa parecida, a alguns
alunos da Educao Especial, eles vo ficar brincando, e acho que
eles realmente no confiavam em ns, por isso preferiam no dar
materiais para que a gente pudesse fazer experimentos e esse tipo
de coisa. Eu meio que ficava furioso com essa parte. No podamos
fazer experincias, enquanto as outras crianas faziam projetos e
tudo o mais. Ns nunca tivemos uma chance dessa.

Miranda: E voc teria sido muito bom em biologia e

Andrew: Todas essas coisas. uma loucura.

Miranda: Isso me deixa furiosa.

Andrew: Isso me deixava furioso.

Miranda: No todo mundo da sua idade que constri um tanque inteiro e mantm
tudo vivo. Eu me pergunto quanto a sua faculdade vai dar ateno
a esses papis e se voc poder ter uma espcie de recomeo.

Andrew: Eles vo dar ateno. A minha orientadora me disse para eu levar todas essas
informaes ao servio de Educao Especial ou coisa assim.

Miranda: Parece que poderia ser fcil para voc trabalhar tanto como guarda-florestal,
ou coisa parecida, quanto em avies quer dizer, se tivesse
escolha.

Andrew: Eu no sei, porque as pessoas dizem que difcil. E eu no sou muito bom
com tudo isso. Quando quero fazer uma coisa, quero saber que eu
posso ir at o fim, mas, se eu comear a pensar que a longo prazo
aquilo vai ser superdifcil, eu meio que dou um passo para trs.

Miranda: Bem, ainda mais se voc j teve gente dizendo que voc no bom nisso. A
aprender a ir at o fim fica uma coisa difcil mesmo. Pelo menos
voc j quase um adulto h coisas boas nisso. Na escola voc
no tem direitos de verdade, mas na faculdade

Andrew: . Agora s comigo.

Era tentador dar alguns conselhos; estive a um passo de lhe oferecer um estgio
no trabalho do meu irmo, de recuperao de reas midas. Mas eu parecia ter a
tendncia a procurar o problema de cada pessoa e com isso esquecer tudo o mais sobre
ela. Ento, tentei ver o que mais Andrew era, alm de um perdido no sistema. Ele estava
um pouco irritado, porm, mais do que isso, orgulhoso. Da, mudei de abordagem;
disse o oposto do que eu estava sentindo, e foi mais verdadeiro.

Miranda: Ento ns pegamos voc numa espcie de momento emocionante de sua vida.

Andrew: Ah, um momento muito bom mesmo.

Miranda: Isto meio idiota de dizer, mas voc como um girino prestes a se
transformar.

Andrew: . verdade.

Miranda: Voc um desses que daqui a pouco tempo sero adultos.

Andrew: Voc tem razo, um girino.

Por um instante, senti o tempo como ele sentia interminvel. Na verdade, no


importava que seus sonhos de vida selvagem estivessem na direo oposta do hangar
para onde ele estava indo, porque havia tempo para vrias vidas. Tudo ainda podia
acontecer, portanto nenhuma deciso poderia ser muito errada. Aquilo era exatamente
o oposto de como eu estava me sentindo com trinta e cinco anos. Voltei de Paramount
me achando uma velhinha, como os personagens do meu roteiro.
Sophie: Daqui a cinco anos vamos ter quarenta anos.

Jason: Quarenta quase cinquenta, e depois de cinquenta o resto s troco mido.

Sophie: Troco mido?

Jason: Com ele no d pra comprar nada que a gente quer.

Eu sabia que no era bem verdade, mas a sensao era paralisante. No havia
mais tempo para cometer erros ou fazer coisas sem saber por qu. E cada coisa que eu
fazia precisava ser mais incrivelmente desafiadora do que a anterior, que tinha sido de
arrepiar os cabelos, j que desde o incio eu estava em total desespero.
A primeira coisa que fiz profissionalmente isto , para ser mostrada a um
pretenso pblico foi uma pea sobre a minha correspondncia com um homem na
priso. Comecei a escrever para Franko C. Jones com catorze anos. Eu tinha encontrado
o endereo dele nos classificados (onde mais?), numa seo que tudo indica j no
existir mais chamada Correspondentes na priso. Quando eu era menor, meu pai lia
para mim The minds of Billy Milligan antes de dormir, a histria real de um ladro e
estuprador com distrbio de personalidade mltipla (meu pai gostava de ler para mim
livros nos quais ele prprio estava interessado). Assim, minha simpatia por presidirios
era uma espcie de tradio familiar; posso at ter escrito a primeira carta para Franko
porque queria fazer uma coisa que meu pai achasse interessante. Mas depois continuei
escrevendo para ele por trs anos, todas as semanas.
A distncia entre um assassino de trinta e oito anos cumprindo seu dcimo
oitavo ano em Florence, no Arizona, e uma estudante de dezesseis anos da escola
preparatria de Berkeley, na Califrnia, fica romntica em escala, como o tamanho de
um oceano ou do espao sideral. Atravess-la parecia ser uma das poucas coisas a meu
alcance que podiam ser sagradas ou transcendentes. Venho tentando h muito tempo,
h dcadas, levantar um pouquinho a tampa, para ver o que h embaixo da margem da
vida e de alguma forma dar um flagrante nele este ele no sendo Deus (porque a
palavra Deus faz uma pergunta e costuma respond-la antes que haja alguma chance de
a gente dar uma pensada), e sim alguma coisa nessa direo. Escrevamos sobre notas
escolares, motins penitencirios (Franko gravou os sons de um), meus amigos
(Johanna, Jenni), os amigos dele (Lefty, Caolho), e tudo o mais em nossa vida, exceto
sexo, que no incio eu disse estar fora dos nossos limites.
Escrevi a pea porque eu no conseguia explicar essa relao, conversas sobre ela
terminavam mal e eu queria ser compreendida em grande escala. Pus um anncio para o
elenco no jornal semanal gratuito e fiz as entrevistas em um clube de reggae. Escolhi um
terapeuta de dependentes de lcool e drogas por volta dos trinta anos para ser Franko,
e a personagem baseada em mim foi interpretada por uma latina de vinte e poucos anos
chamada Xotchil. (Achei que me levariam mais a srio como diretora se eu no atuasse
tambm coisa de que sempre me esqueo hoje em dia.) Ensaiamos no meu sto e
encenamos a pea The Lifers no nmero 924 da Gilman Street, um clube punk. Aluguei
cadeiras numa igreja e me sentei com meus amigos, parentes, amigos dos meus
parentes e alguns roqueiros punks atnitos. Juntos, assistimos quela representao
da minha improvvel amizade e seu desajeitado anseio espiritual. Eu estava ao mesmo
tempo to eletrizada de vergonha e orgulho que, um tero antes do fim da pea,
levantei da cadeira e me arrastei at o canto do palco. No sei bem o que eu planejava
fazer dali talvez parar o espetculo ou redirecion-lo enquanto ele prosseguia. O
terapeuta me olhou feio l do palco e eu me esgueirei de volta para o meu lugar. E fui
obrigada a simplesmente aguentar.
BEVERLY

FILHOTES DE GATOS-DE-BENGALA
PREO A COMBINAR

VISTA

Filmes so a nica coisa que fao que me deixa na mo de financiadores, e em parte


por isso que fao outras coisas tambm. Escrever de graa e posso ensaiar uma
performance na minha sala; pode acontecer que ningum queira publicar o livro ou
apresentar o espetculo, mas pelo menos eu no fico esperando permisso para fazer a
coisa. Ter um roteiro e nenhum dinheiro para realiz-lo seria quase pior do que no ter
um roteiro e alimentar o sonho de algum quer-lo. s vezes parecia que eu s estava
fingindo que o script no estava pronto, para livrar a cara, para me permitir alguma
sensao de controle. E, num nvel mais supersticioso, no ntimo eu acreditava que o
financiamento viria quando eu tivesse terminado minha busca espiritual, aprendido o
que eu precisava saber. Os deuses estavam na beirinha da cadeira, desejando que eu
fizesse tudo certo para que eles pudessem me recompensar.
Eu vinha evitando Beverly porque Vista, no mapa, parecia perigosamente
distante. Mas ou eu estava ficando mais intrpida, ou meu tempo parecia menos
valioso. Se, na pior das hipteses, em Vista eu no conseguisse encontrar o caminho de
volta para casa, poderia simplesmente ficar morando l. Ento, liguei para Brigitte e
Alfred e partimos de manh. Entre as cidades e os vilarejos da Califrnia, h colinas
cobertas de palha que s vezes explodem em chamas. Beverly vivia numa dessas
montanhas marrons, o que fazia sentido: a gente pode manter uma mala ou um casaco
na cidade, mas filhotes de gatos-de-bengala precisam de mais espao. A estrada era de
terra, a casa estava rodeada por mveis e mquinas abandonadas, e Beverly, que foi ao
nosso encontro no gramado, estava dolorosamente dilacerada. Ela tinha me dito ao
telefone que no queria ter o rosto fotografado porque acabara de sofrer um acidente
com uma p. O ferimento ainda estava descascando.

Beverly: Venham, vou lev-los l pra casa e mostrar-lhes primeiro os gatos; depois a
gente continua. Voc sabe o que isto?

Ela apontou para uma coisa na parede. Tinha olhos.

Miranda: Sei.
Beverly: O qu? O que ?

Miranda: o focinho de alguma coisa.

Beverly: Muito bom! Excelente!


Miranda: Mas de qu?

Beverly: De um cervo. E esse osso veio do Vietn. Algum homem l os esculpe. No


incrvel?

Miranda: , impressionante.

Beverly: tudo feito mo. Entrem. Estes so peixes. Isto veio de um vulco.

Era como um museu de histria natural bem questionvel; cada coisa poderia ter
um milho de anos ou ter sido feita nos anos 1970. Mas eu estava aprendendo a avaliar
as pessoas depressa, e Beverly no era louca; s estava muito feliz por nos ver e com
pressa de comear a festa. Havia muita coisa para ver e fazer.

Beverly: Ah, e isto um coc de dinossauro. E sabem o que isto? um dente de


dinossauro no, um dente de mamute, mas um pr-mamute.
Esta uma foto do meu segundo casamento. Meu primeiro marido
morreu. Fomos casados por quarenta anos quarenta anos e meio
e ele morreu de cncer. Foi horrvel.

Miranda: Sinto muito. H quanto tempo voc est com seu atual marido?

Beverly: Oito anos.

Miranda: como ter duas vidas.

Beverly: >, sim duas vidas completamente diferentes. Esse o nosso amor.

Com amor ela quis dizer os gatos; tnhamos acabado de entrar em uma cozinha
toda cercada por grades e formigando de gatinhos.

Beverly: Estas so as meninas, no deixo elas subirem na mesa, e elas sabem disso
muito bem. Esta aqui uma verdadeira paixo. Esta a Bonnie
Blue, e est no cio, por isso toda essa gritaria. So diferentes, no
so?

Concordei com a cabea, mas a princpio os bichos no me pareceram muito


diferentes nem semelhantes a tigres. Tigres no eram encorpados e mortais? Aqueles ali
pareciam mais gatinhos. Ento, de repente, um deles saltou no ar, na altura do meu
rosto. Outros dois comearam a lutar, jogando um ao outro de encontro parede com
estrondos violentos. Eram pequenos, porm no pareciam mais gatinhos
engraadinhos; havia um homem forte dentro de cada um deles. Tentei apreciar raas e
cruzamentos, mas meu conhecimento era precrio e eu tinha que complement-lo com
o que sabia sobre o Homem-Aranha e Frankenstein. E o Incrvel Hulk.

Beverly: Comecei isto h vinte anos, em 1988. Vinte e um, acho. Esses gatos so crias
de uma cruza com um pelo curto britnico, porque o de Bengala
mesmo pesa apenas de trs quilos e meio a quatro quilos e meio
um pequeno. Ento, eles foram cruzados com o pelo curto
britnico para ficarem um pouco mais robustos, um pouco mais
pesados.
Beverly nos levou para fora, para nos mostrar os gatos maiores em suas jaulas,
que compartilhavam uma parede com um viveiro cheio de pssaros estridentes.

Miranda: No enlouquece os gatos ter todos esses pssaros como vizinhos?

Beverly: Ah, eles adoram! o seu parque de diverses.

Eu estava satisfeita em admirar o viveiro de fora, mas Beverly me disse para correr
logo l pra dentro antes que um voasse para fora. Dezenas de pssaros se juntaram ao
redor de nossas cabeas. Os gritos e chilreios eram ensurdecedores. Pensei na fobia de
pssaros do meu pai e no quanto ele acharia aquilo desagradvel. Ento, inspirei e
expirei devagar e fiz de conta que eu era uma adolescente rebelde tentando ser diferente
dos meus pais, e com isso consegui ficar no viveiro e continuar a entrevista.

Miranda: Que tipo de pssaro aquele?

Beverly: No lindo? E so raros. uma pomba-de--asa-verde. H tambm um


pssaro que aqui chamamos de Bobo. Ele preto e branco com o
bico vermelho veja se voc acha um. De manh, ele canta como
um canrio; vem da frica. E o tentilho absurdamente bonitinho.

Miranda: . O som bem alto aqui...


Beverly: Depois de um tempo a gente se acostuma. Veja as cores. Nosso criador tem
mesmo uma imaginao inacreditvel.

O som, o cheiro e as asas batendo em volta do meu rosto fizeram eu me sentir


um pouco histrica, como se fosse chorar. E tambm no conseguia parar de sorrir. Eu
deveria ir para o Mxico, pensei. No que Beverly fosse mexicana, que eu sempre quis
ir l. Ela tirou um passarinho do ninho e segurou-o na palma da mo. Parecia um
embrio.

Beverly: Est vendo como a lngua vai de um lado para o outro? Eles tm bolinhas na
boca, isso que atrai a me para aliment-los. Este aqui acabou de
nascer.

Miranda: Talvez ele devesse voltar para o ninho.

Beverly: Deixe eu dar alguns ovos para vocs. Vocs podem levar estes.

Miranda: mesmo? Ser que eles vo vingar?

Beverly: S se voc ficar sentada em cima deles trinta dias! E agora temos uma surpresa
venham!

Ela nos fez sair depressa do viveiro e entrar num campo, onde rapidamente
fomos cercados por corpulentos carneiros. No estou acostumada com carneiros, por
isso levei algum tempo at perceber que aqueles tinham muitos, muitos chifres, chifres
saindo de chifres, todos encaracolados.
Beverly: Esta a raa mais antiga que o homem conhece. Eles so de Israel e esto na
Bblia. Esto no Gnesis 28 a 30 so de Jac. So muito, muito
especiais. Tm de dois a seis chifres.

Miranda: , eles tm um monte de chifres.

Trs cachorros vieram correndo at a cerca.

Beverly: O nome dela Raspberry, o preto o Squooshy e o maior o Puppy-Puppy


Se voc lhes der de comer na mo, eles so maravilhosos, mas
ficam selvagens se no der.

Miranda: Esses foram criados com comida na mo?

Beverly riu, ento eu ri.


Sugeri irmos para dentro, para que eu pudesse entrevist-la longe do som dos
pssaros. Fomos para a cozinha e enquanto conversvamos ela preparou o almoo dos
gatinhos.

Miranda: Conte-me um pouco da sua histria.

Beverly: Eu comecei com uma fmea.

Miranda: T. Mas voc de...?

Beverly: Sou de Huntington Beach.

Miranda: H quanto tempo voc mora aqui?

Beverly: Deixe eu ver trinta e sete anos? Desde 1972.

Miranda: Como voc ganha a vida?

Beverly: >Os gatos. As aves no esto dando certo agora simplesmente no esto.

Miranda: Voc fica atenta economia? Ela afeta sua vida?

Beverly: Ah, afeta, sim. As pessoas no esto comprando como antes.

Miranda: Voc tem computador?

Beverly: Tenho, mas no uso.

Miranda: >Ento no h venda on-line, nada disso


Beverly: Aham. E isso tambm atrapalha, porque agora todo mundo compra pelo
computador. Eu estou jogando contra mim mesma, mas no tenho
tempo nem energia. Simplesmente no tenho. No me interesso por
computadores.

Miranda: Voc tem muitas coisas com que se ocupar. Voc sente que tem uma
comunidade por aqui ou est muito isolada? Como isso funciona
nesta regio?

Beverly: Em relao a pessoas? , estou isolada.

Miranda: Qual foi a parte mais estranha da sua vida at agora?

Beverly: Perder meu marido foi a pior.

Miranda: Voc diria que ele era o amor da sua vida?

Beverly: Ah, era sim.

Miranda: Quantos anos voc tinha quando o conheceu?

Beverly: Dezesseis.

Miranda: E como o conheceu?

Beverly: Na igreja. Um homem muito bonito. Olhos azuis, um metro e noventa, quase
dois, um belo fsico.

Miranda: Voc tem fotos dele?

Beverly: Tenho, mas fico com vergonha. Meu marido, Fernando eu me sentiria mal por
ele.

Miranda: Entendo.

Eu me senti meio envergonhada por ter perguntado. Mas teria sido mais
romntico se ela tivesse puxado da blusa uma foto do marido de olhos azuis, aquele
que eu acabava de sugerir ter sido o amor da vida dela. Duas vidas, uma aps a outra,
mas a segunda nunca pode ser comparada

Beverly: Eu preparei uma surpresa para vocs. O nome dele Sebastian e s vai estar
aqui s quatro e meia.
Miranda: Ah, bem, voc sabe que ns temos outra entrevista s quatro e meia.

Beverly: Ah, no.

Miranda: Desculpe, eu no imaginei que

Beverly: Eu realmente sinto muito que voc no possa ver o Sebastian. Ele pesa quase
dezesseis quilos. o dobro dos que temos aqui. E ela o traz pela
coleira como um cachorro, a coisa mais impressionante que
vocs iriam ver na vida. E o incrvel que ela bate nele como se
fosse num tambor com fora. Ela vai l e bate, e ele aguenta
tudo no sei como, mas aguenta. Vejam o que eu fiz para vocs,
meninos.

Beverly tirou da geladeira uma tigela gigante de salada de frutas. Era do tipo com
marshmallows; eles tinham derretido no suco, deixando-o leitoso. Comecei a fazer um
educado som de recusa, mas ao ver o rosto dela desmontar percebi que recusar seria o
oposto de ser educada. Apertei meu iPhone no bolso. Seria estranho dar uma olhada
nos e-mails agora? Ou quem sabe ler as notcias? Eu estava morrendo de vontade de
fazer uma pausa. Uma opo seria ir ao banheiro.

Miranda: Uau, tem um monte de pedaos a. Voc poderia me mostrar onde fica

Beverly: me tomou a manh toda. Posso encher uma caneca para vocs levarem.

Ela tinha comprado uma quantidade enorme de frutas e passado a manh inteira
picando tudo. Havia incumbido o marido de arrebanhar os carneiros bblicos para ns
assim que sassemos do avirio, tinha convidado Sebastian, o gato-de-bengala de
quase dezesseis quilos. O mnimo que eu podia fazer era comer a salada.

Miranda: O.k., nos d uma caneca, seria timo.

Beverly: Tambm posso preparar um pote. Ou vrias canecas o que vocs preferem?

Miranda: Um pote est bom. S um pote e ns

Beverly: Ah, no! Cada um de vocs vai levar um! Querem bolachas junto? Ns
gostamos das nossas com bolachas, esmigalhadas por cima, mas
vocs que sabem.

Levamos os potes pingando para o carro e fomos at o posto de gasolina.


Obriguei cada um de ns a comer um pedao de abacaxi antes de jogar tudo no lixo. O
gosto era bom. Pus alguns jornais em cima dos potes, porque e se Beverly fosse buscar
gasolina, jogasse alguma coisa no lixo e os visse? Nada seria pior. Tnhamos ido ao lugar
de onde vm todas as coisas vivas, tinha um cheiro ftido e exageradamente doce, era
cheio de carnes cruas e chifres enroscados, o rosto dela estava dilacerado, tudo ali
estava reproduzindo e cruzando, recm-nascidos ou bblicos. Eu no aguentava aquilo.
A plenitude da vida dela era ameaadora para mim no havia espao para a inveno,
no havia lugar para o tipo de criao ficcional que faz com que eu me sinta til ou sinta
seja l o que for. Ela s queria que eu estivesse l e comesse frutas com ela.
Fui para casa e no mesmo instante ca no sono, como que fugindo da minha
conscincia. Acordei trs horas depois e, em vez de ir para a internet, tentei fingir que
era Beverly, que estava to envolvida com coisas vivas que no tinha tempo ou
energia para o computador. O PennySaver no era mais to fascinante como antes, no
entanto me sentei com a ltima edio e uma caneta para circular novas ofertas. O
anncio de Andrew ainda estava l, os girinos provavelmente se transformariam durante
a semana. Parecia que Michael tinha vendido a jaqueta de couro, ele estava dez dlares
mais perto da condio feminina. Tudo se transformava, menos eu. Eu continuava
sentada na minha pequena caverna, tentando extrair alguma coisa do nada. Eu no
podia simplesmente inventar uma fico as respostas s minhas perguntas sobre
Jason precisavam ser reais, forjadas da vida, como todas as outras partes da histria.

Cada personagem do filme tinha sido forado a criar vida, depressa ou devagar,
em geral devagar, e depois todos de uma vez s. Um ano antes, eu vivia uma semana
infrutfera quando disse a mim mesma T legal, perdedora, se voc realmente incapaz
de escrever, ento vamos ouvir. Vamos ouvir como soa uma incapaz. Emiti sons
abatidos e desumanos e depois tentei digit-los, com mos embrutecidas e
desajeitadas. Escrevi a pattica lenda da Incapaz. Era longa e irrelevante para a minha
histria de Sophie e Jason. Quem falaria daquele jeito? No um homem ou uma mulher,
no algum adequado para um filme.
Desliguei o computador, grata pelo som do carro do meu marido l fora. Acenei
da varanda enquanto ele estacionava, e ento, com horror crescente, vi nosso cachorro
pular do carro e perseguir um gato pela rua enquanto um carro se aproximava em alta
velocidade. O carro desviou para no bater no cachorro e atingiu o gato. Aconteceu to
depressa num minuto eu estava escrevendo sobre Incapaz e no minuto seguinte
estava pondo um gato morto em um saco. Era um gato velho, sujo e perdido que eu j
tinha visto por ali. Senti que ramos todos cmplices eu, meu marido, o motorista.
Todos tnhamos sido negligentes, se no hoje em outro dia, e toda aquela negligncia
havia culminado na morte de um estranho.
Depois de enterrado o gato, voltei afinal ao trabalho e reli o monlogo
interrompido. Senti mais ternura pela voz desumana; ela no era realmente incapaz, s
muito sozinha, cansada e no desejada perdida. Chamei o gato de Paw-Paw e jurei
vingar sua morte. Ele agora era parte do roteiro. Levei muito tempo para descobrir o
lugar do gato na histria. Vezes seguidas me foi respeitosamente sugerido cortar o
monlogo de Paw-Paw. Mas eu no poderia mat-lo duas vezes e achava que sua voz
poderia ser a alma angustiada, ridcula e problemtica do que eu tentava fazer. No que
minha convico me protegesse, sempre constrangedor espetar um rabo no ar, nem
um pouco perto do burro. Poderia estar errado, com certeza parece estar, mas, outra
vez, talvez o burro esteja no lugar errado, ou ento h dois burros e o rabo
simplesmente chegou l primeiro.
PAM

LBUNS DE FOTOGRAFIAS
US$ 10 CADA UM

LAKEWOOD

Pam no acreditava que estivssemos vendo sua casa num momento em que ela estava
to bagunada. Garantimos que tudo parecia muito limpo o que era verdade, limpo e
caoticamente cheio de arte. O Menino Azul, de Gainsborough, A Caa ao Unicrnio e
diversas outras imagens familiares haviam sido meticulosamente recriadas por Pam em
bordados ao longo dos anos. Ns nos acomodamos em torno de uma grande pilha de
lbuns e botei um deles no colo.

Miranda: De onde veio isto?

Pam: Um amigo meu tem um amigo que est vendendo muita coisa. Fiquei olhando
para o primeiro e para o segundo lbum e disse: Ah, meu Deus,
isto interessante. Queria passar frias como esta senhora aqui.

Enquanto ela falava, folheei o lbum, e depois outro. Todos estavam repletos de
fotos do mesmo casal branco e rico, desde seu casamento nos anos 1950 at o ltimo
cruzeiro deles.

Pam: Essas pessoas andam pelo mundo inteiro. Grcia, Itlia, Japo, e uma
maravilha em todo lugar. Isso mesmo muito bom, e espero um dia
poder ir, mas agora estou sem dinheiro. Minha vida, eu me casei
muito jovem e no tenho tempo para frias. E digo: Bem, posso
ficar olhando estas fotos; melhor do que nenhum tipo de frias.

Miranda: Ento voc no conhece essas pessoas?

Pam: No, no conheo as pessoas, mas no quero que os lbuns sejam jogados
fora. Na verdade, estou com eles aqui em casa h quase dez anos.

Olhei para Pam e me perguntei se ela no seria meio uma acumuladora. Ela usava
uma blusa rosa sem mangas, no muito diferente da de Michael, e sua decorao
barroca a fazia parecer mais velha do que era. Achei que devia ter quarenta e oito anos.
Exaustos quarenta e oito anos.

Miranda: Como voc imagina que era a vida deles?

Pam: Acho que tinham uma vida muito, muito boa. Na verdade, uma vida agradvel e
feliz, se voc vive assim tanto tempo.
Miranda: , eles parecem bem velhos em algumas fotos.

Pam: , tudo muito, muito velho, e bom no s que eles estejam a, mas bom
v-los felizes um com o outro. Olhe para ele, ele vive sorrindo, e
bom. Eu sempre me sinto muito bem vendo algum feliz de
verdade.

Miranda: Voc acha que eles morreram muito velhos?

Pam: , acho que essa senhora tem uns noventa e cinco e o sujeito uns noventa, .

Miranda: Fico surpresa que os filhos deles no tenham guardado isto. Voc no acha

Pam: Eles no tm filhos, . No tm filhos.

Miranda: E vocs, quando vieram da Grcia? Quantos anos vocs tinham?

Pam: Eu tinha dezessete. Casei e vim pra c, depois tive trs filhos.

Miranda: Logo depois?

Pam: , depois de um ano.

Miranda: Ento voc tinha dezoito. E o que vocs faziam?

Pam: Ns trabalhamos em restaurantes, fazendo comida.

Miranda: Ento vocs tiveram um restaurante?

Pam: . Vinte anos um e treze anos outro.

Miranda: Uau ento vinte e trs anos.

Pam: , trinta e trs anos.

Miranda: Claro, trinta e trs. O que voc fazia no restaurante? Qual era o seu trabalho?

Pam: Meu trabalho era de garonete, na arrumao, no caixa falar com as pessoas,
sabe.

Miranda: Voc tem computador?

Pam: No. No entendo de computador. Queria entender, mas no entendo.

Pam abriu outro lbum, e, enquanto olhvamos as fotos de desconhecidos


brancos e ricos num navio, tive a incmoda sensao de que eu era o reverso de Pam.
Ela tinha inventado todo tipo de felicidade para aquelas pessoas que me pareciam
chatas, ao passo que sua histria de imigrante havia me impressionado como
inerentemente comovente e profunda. E era provvel que nenhuma de ns estivesse de
todo enganada; s estvamos, mais do que tudo, cansadas de nossos prprios
problemas.

Miranda: Voc j tinha posto algum anncio no PennySaver?

Pam: No.

Miranda: E por que acha que decidiu fazer isso agora?

Pam: Porque, voc sabe, eu preciso de espao.


Miranda: E algum telefonou para comprar os lbuns?

Pam: , um monte de gente, mas

Miranda: Mas eles no compram.

Pam: . Mas no posso jog-los fora. No restaurante, eu tinha uma cliente de uns
noventa e cinco anos. Ela se chamava Meg. Era to doce Chegava
todos os dias s onze em ponto e comia. E essa senhora, ela estava
fazendo um tipo de trabalho, como o seu trabalho, ela ia at as
pessoas, tirava fotos e conversava. Depois que fez sessenta e cinco
anos, sabe o que ela fazia? Tirava fotos de si mesma todos os dias.
Ia para casa e as colocava no lbum de recortes. Era to
cuidadosa trs quartos cheios, cheios de lbuns. E um dia ela
morreu. O genro pegou todos os lbuns e jogou tudo no lixo.
muito triste. Foi por isso que eu peguei estes lbuns, para que no
acabem numa lixeira, sabe? Isso triste para mim.

Com sessenta e cinco anos, uma idade to avanada, com quase mais nada de
feminino, uma mulher decidira se fotografar todos os dias. No mesmo instante isso se
tornou uma das minhas obras de arte favoritas, ainda mais porque ela no era Sophie
Calle nem Tracey Emin. Ela sabia que ningum iria reivindicar os trs quartos cheios de
lbuns; o valor deles era absolutamente autodeclarado. E, embora seja bvio que eu
gostaria de ter salvado de algum modo os lbuns, a performance terminaria com a
morte dela e com a coleo sendo jogada no lixo. um final que realmente faz pensar.
Comprei alguns lbuns de Pam e, ao chegar em casa, me obriguei a olhar as fotos
do casal posando em eventos de ex-alunos e diante de atraes tursticas. A moral da
histria dessas pessoas era clara para mim: se voc passar a vida num eterno cruzeiro ao
redor do mundo, sem jamais parar para plantar filhos em terra firme, quando voc
morrer uma mulher grega que voc nem conhece se tornar a administradora do seu
legado. E, quando ela precisar de mais espao em casa, vender seu legado no
PennySaver. E ningum quer isso.

Fiquei esperando pelo ttulo perfeito para o filme, mas depois resolvi eu mesma
escolher. Tinha que ser curto, uma palavra curta e muito familiar. Procurei os
substantivos mais usados. O primeiro substantivo mais comum era tempo. O que me
fez sentir menos sozinha, todo mundo estava pensando na mesma coisa. O segundo
era pessoa. O terceiro, ano. O 320o era futuro. O futuro.
Eu no tinha planejado escrever um roteiro sobre o tempo, mas, quanto mais eu
demorava para escrev-lo e v-lo pronto, mais o tempo se tornava um protagonista na
minha vida. No incio, meu namorado e eu pensvamos em nos casar assim que nossos
filmes estivessem prontos, mas depois de quase seis meses tentando conseguir
financiamento achamos melhor desistir desse plano e marcar uma data, acontecesse o
que acontecesse. Nada aconteceu, ns nos casamos. Ento, bem na poca em que
passei a me encontrar com os vendedores do PennySaver, comecei a me dar conta de
que eu no s j tinha idade suficiente para ter um beb como eu praticamente j tinha
idade suficiente para ser considerada velha demais para ter um beb. Faltavam cinco
anos. O que no muito, se um filme independente leva pelo menos um ano para se
financiar, um ano para ficar pronto, e vamos reservar mais um ou dois anos para
desastres imprevistos. (E, mesmo que quisesse, eu no poderia fazer o filme durante a
gravidez, porque eu estava nele.)
Ento, todo o meu tempo foi gasto calculando o tempo. Enquanto ouvia pessoas
estranhas e tentava pacientemente ter f no desconhecido, eu tambm me perguntava
quanto tempo aquilo ia levar, e se alguma coisa realmente tinha mais importncia do
que ter um beb. O senso comum dizia que no. Nada era mais importante do que ter
um beb.
Agora que eu havia prometido ficar com aquele homem at morrer, eu tambm
pensava muito na morte. Parecia que eu no tinha me casado s com ele, mas me
casado tambm com a minha morte. Antes dos votos, eu poderia ter vivido sozinha
para sempre; agora eu definitivamente no estava sozinha e definitivamente iria morrer.
Eu tinha concordado em morrer na frente de toda a minha famlia e amigos. Brigitte
havia tirado uma foto desse momento: eu sorrindo e, o que era compreensvel,
chorando. A nica coisa entre mim e a morte era aquela criana. Se eu adiasse a criana,
ento meio que tambm poderia adiar a morte. Portanto, eu tinha pressa de atravessar
o vazio para poder fazer o filme e assim poder ter um filho antes que fosse tarde demais
mas, l no fundo, eu no tinha pressa.
Eu tambm tinha encurtado a minha vida de outra maneira, ao me casar com um
homem oito anos mais velho do que eu, o que significava que ele morreria exatamente
oito anos antes de mim, tornando inteis os ltimos oito anos da minha vida. Eu os
passaria apenas chorando.
RON

ESTOJO DE PINTURA COM 67 PEAS
US$ 65

WOODLAND HILLS

Mais ou menos nessa poca, me sugeriram gentilmente que o que eu precisava mesmo
no era de mais uma verso do roteiro de O futuro, e sim de um grande astro como
protagonista para tranquilizar potenciais investidores. Isso era perturbador, porque eu
j tinha imaginado algumas pessoas para fazer Jason e Marshall, o homem com quem
minha personagem tinha um caso. Eram atores incrveis que tiveram pequenos papis
em grandes filmes e grandes papis em filmes que ningum tinha visto. Tentei
argumentar que eu tambm no tinha escolhido grandes astros no meu primeiro filme,
e que havia funcionado muito bem. Mas isso no importava, porque tinha sido em
2005. Voc no conseguiria fazer o seu primeiro filme agora, disseram-me,
ameaadores. O que me fez sentir como se a recesso pudesse voltar no tempo e
destruir Eu, voc e todos ns, desfinanci-lo, desfilm-lo, desedit-lo.
Tentei pensar em grandes astros de meia-idade do cinema e da tv para interpretar
Marshall. A ideia de um retorno me deixou mais vontade, ento tentei me lembrar
dos protagonistas da minha poca de criana, e pesquisei onde eles estavam agora. De
modo geral, foi uma pesquisa heterognea. Aqueles homens tinham inchado, muitos
haviam abusado de suas mulheres ou das drogas, muitos tinham fotos de frente e de
perfil na polcia e muito poucos pareciam capazes de me pegar. O que era atraente,
porque o papel pedia isso algum improvvel, quase impensvel. Nesse meio-tempo,
continuei telefonando para vendedores do PennySaver. Na verdade, fiquei mais
determinada quanto s minhas entrevistas, mais rebeldemente decidida a continuar,
agora que tinha reunies reais com os atores.

Ron tentou me convencer a entrevist-lo por telefone, disse ter razes para no
querer que eu fosse sua casa. Mas, ento, de repente mudou de ideia e me deu seu
endereo. Ao bater porta, me preparei para algum sem rosto, ou sem cabea, ou com
cabea mas sem corpo, uma cabea sobre rodas. Mas Ron tinha um corpo com uma
cabea e at mesmo um chapu de beisebol. Era a pessoa mais comum que eu j tinha
visto. Preparando-se para o nosso encontro, ele havia espalhado objetos em cima da
cama e no cho, livros e dvds novssimos e um estojo de pintura com sessenta e sete
peas. Eram acima de tudo para crianas ali estava Mrs. Doubtfire, bem como Hop on
Pop e todos pareciam vagamente ter chegado ali de um jeito ilcito. O apartamento era
pequeno, e Ron deu voltas por ali arrumando cadeiras para ns.
Ron: Tive um pouco de dificuldade de tirar algumas coisas do armrio para mostrar
para voc.

Miranda: Sei, obrigada.

Ron: No muita dificuldade. S um pouco.

Miranda: Bem, agradeo muito por dedicar um pouco do seu tempo a isso. Em que voc
me disse que trabalha?

Ron: Sou empresrio.

Miranda: Sei. Voc pode falar mais sobre isso?

Ron: Dirijo uma sociedade financeira de investimentos. Uso a margem uso o


dinheiro dos bancos, ento pego o dinheiro da sala de corretagem
a apenas oito ou nove por cento por dia de utilizao. Se a gente faz
o emprstimo por um dia e vende o estoque no mesmo dia isto
o que as pessoas no sabem , se a gente tem dez mil dlares,
pode pegar um emprstimo de dez mil dlares da empresa de
corretagem, e ento so vinte mil dlares. Voc pode usar esses
vinte mil dlares naquele dia e vend-los no mesmo dia, e sobre os
dez mil dlares que pegou emprestado da corretora voc no paga
juros.

Miranda: Sei.

No sou exatamente brilhante com nmeros, ento foi como se ele tivesse
acabado de jogar alguns confetes para cima e os chamado de palavras. Tentei prestar
mais ateno talvez eu fosse realmente aprender alguma coisa ali. Talvez depois ele
pudesse me explicar os impostos.

Ron: Se ficarmos com ele durante a noite, a gente deve a eles o dinheiro de um dia,
nove por cento de juros por um nico dia dividido por trezentos e
sessenta e cinco. So quase centavos.

Miranda: Claro.

Ron: Vai subindo, se for por semanas e meses.

Miranda: Claro, entendo.

Ron: Voc entende o que estou dizendo?


Miranda: Sim.

Ron: Eu sou uma pessoa de nmeros. Sempre fui bom com nmeros. Sempre amei
os nmeros. Muito rpido com nmeros. No ensino fundamental,
fui um aluno nota dez at por volta do quinto ano, quando
comearam as fraes. A tive um pouco de dificuldade.

Miranda: Claro.

Ron: E por causa disso tive o que vocs chamam de milhares de horas de experincia
em vinte e um quando comecei em Atlantic City. Infelizmente, tive
sorte de principiante. Eu no era bom, mas tive sorte de
principiante. Por isso ganhei. E a, depois de algum tempo, perdi.
Ganhei e perdi, ganhei e perdi e acabei perdendo e perdendo mais
do que ganhei.

A conversa sobre vinte e um foi longa e detalhada. Ele tentou explicar o que era a
contagem de cartas, por que ela era ilegal e como o que ele fazia era legal, embora,
tecnicamente, fosse contagem de cartas. Fazer uma pergunta era como mergulhar numa
estrada eu tinha que acelerar para entrar numa de suas pausas.

Miranda: Quais so seus planos para o futuro?

Ron: Bem, eu tive um perodo de vrios anos na minha vida que foram uma tortura e
um tormento. Eu no tinha a opo de me casar.

Miranda: Sei.

Ron: Voc consegue entender do que se trata?

Miranda: No.

Ron: Vai acabar em alguns meses.

Miranda: Sei.

Ron: E foi coisa de negcios.

Miranda: Sei.

Ron: Coisa de negcios tipo Martha Stewart

Ele levantou um pouco a perna da cala para revelar uma tornozeleira de priso
domiciliar.
Miranda: Ah, sim. Sei. Claro.

Ron: Est quase acabando.

Miranda: Vai ser bom no ter mais isso.

Falei de um jeito afetuoso, quase maternal. O importante era continuar me


comportando exatamente como antes de saber que ele estava sob priso domiciliar. Um
monte de gente poderia ter se encolhido, mas eu torcia para que ele tivesse percebido
que eu no. Ele se inclinou para mim como se o que tivesse para me dizer fosse
ultrassecreto.

Ron: Vou lhe dizer uma coisa que uma realidade. Uma tornozeleira pode significar
uma destas trs coisas. Se voc pertence a uma gangue, ganha uma,
ou se voc uma ameaa para a comunidade, porque tem mais de
uma vtima, como so chamadas, que poderia estar ligada a
negcios ou

Miranda: Claro.

Ron: a um crime sexual, ou ser um traficante de drogas. No coisa pequena, mas o


que eles consideram um traficante-traficante mesmo.

Miranda: Claro.

Ron: Se voc for um desses quatro, vai ganhar uma dessas. As pessoas acham que se
voc tem uma porque um criminoso sexual. Porque criminosos
sexuais tm que usar uma.

Miranda: Claro. Claro.

Ron: Mas o caso que membros de gangues tambm. E tambm, como eu disse, os
traficantes de drogas. E tambm algum que o conselho de
liberdade condicional acha que poderia ser uma ameaa para a
comunidade. Fui para a priso.

Miranda: verdade. Sei. Bem, qual foi a pior coisa da priso?

Ron: As pessoas. Os detentos. Muito difcil conviver com tantas pessoas to


escandalosas, que vo tentar tirar vantagem de algum que
considerado fraco.

Miranda: . Sei.
Ron: E, para ser completamente sincero com voc, eu sem dvida era considerado
fraco. Eu era mais velho. Era manso. Calmo.

Miranda: Sei.

Ron: Pus um pouco de descaramento no meu jeito de andar, exatamente como


quando me sinto excludo. Andei com altivez, portanto, se
aparecessem gangues ou coisa parecida, eles meio que iam notar
minha atitude de desafio, tipo No se meta comigo.

Miranda: Claro.

Ron: Eu no ando devagar. No ando como um velho. Tenho um jeito de andar, um


passo rpido. E sempre percebo quem est ao meu redor, sempre
fiz isso.

Ron era exatamente o tipo de homem que voc passa a vida inteira evitando,
tomando cuidado para no acabar no apartamento dele. E, como fui educada para fazer
o que fosse preciso para que tais homens se sentissem compreendidos, tomei um
cuidado superespecial com a entrevista dele. Mas, enquanto ele falava sem parar (a
transcrio original teve mais de cinquenta pginas), percebi que na verdade no quero
compreender esse tipo de homem s quero que eles se sintam compreendidos
porque tenho medo do que vai acontecer se eu for considerada mais uma pessoa que
no acredita neles. Quero ser a nica que eles poupem no dia do acerto final de contas.
Brigitte tinha parado de tirar fotos e estava encostada perto da porta, de olhos
arregalados. Alfred estava muito quieto e silencioso em algum lugar atrs de mim.

Miranda: O que voc gosta de fazer?

Ron: Adoro cantar.

Miranda: O que voc gosta de cantar?

Ron: Gosto por exemplo, tem uma msica chamada A Teenager in Love.

Miranda: The Everly Brothers?

Ron: Dion e os Belmonts, ou talvez apenas Dion. s vezes eu realmente sinto que
quero gritar aquilo tudo e s liberar a tenso.

Miranda: Sei o pessoal que canta, como se eles pudessem expressar a emoo de um
jeito que os outros no podem.

Ron: Bom, vou te contar resumindo o que os outros sempre me disseram.


Disseram que eu sempre fui bom com crianas. Eu trabalhei em
Reseda como um monitor de ordem judicial Quando o marido
tinha uma ordem judicial para a esposa, e algum precisava se
ocupar das crianas, ou a mulher tinha uma ordem, era de mim que
precisavam. Isso mostra bem o tipo perigoso de gente que eu sou,
certo?

Miranda: . .

Ron: O tribunal verificou todo o meu passado. Fiz isso nos anos 1980, meio
expediente. E na verdade tive problemas, porque um monte de
crianas estava pedindo por mim e a agncia me disse: Ei, Ron.
Tem gente demais pedindo voc.

Miranda: .

Ron: Eu sou bom com as crianas. Sei como descer at o nvel delas e me divertir
com elas. No do tipo Michael Jackson, mas

Miranda: No, eu entendo. Qual foi a poca mais feliz da sua vida at hoje?

Ron: Uma poca feliz foi quando eu tive um relacionamento de trs anos com uma
garota mais nova, quando eu tinha vinte e seis anos, uma garota
que eu amei muito, muito mesmo. Mas ela era muito jovem para
casar. E eu disse a ela: Daqui a alguns anos, quando voc tiver
dezoito, se ainda sentir a mesma coisa, me diga. Mas eu sabia que
ela iria abrir as asas e descobrir o que era a vida. Eu era esperto o
bastante para saber disso.

Miranda: Ento essa foi uma poca feliz?

Ron: Foi uma poca muito feliz mesmo. Outra poca boa foi estar aqui com uma
mulher muito mais velha do que eu. At que ela precisou ir para um
asilo. Na verdade, eu tive que chamar os dois filhos dela que
tinham mais ou menos a minha idade, para que eles soubessem
que ela poderia se machucar.

Miranda: Deve ter sido difcil.

Ron: Quero dizer, o que a gente tinha era assim tipo uma coisa sria, muito sria. E
ela era muito, muito, muito mais velha do que eu.

Miranda: Que idade ela tinha?

Ron: S vou dizer que passava dos setenta. Mas ela era magra. Era limpa. Falava
macio. Era afetuosa. Foi o amor da minha vida.
Depois de muito tempo, comecei a entender que ele nunca nos deixaria ir embora.
Precisvamos ir. Contei at trs em silncio e me levantei. Alisei a roupa, como se
costuma fazer, e fiz sons e gestos de agradecimento. Quando nos despedamos e
andvamos em direo porta, Ron me parou.

Ron: Miranda, pergunta rpida.

Miranda: Sim.

Ron: Voc tem famlia?

Miranda: Aham.

Ron: Filhos?

Miranda: Sem filhos. Acabei de me casar.

Ron: Ah, acabou de se casar

Miranda: .

Ron: Eu ia dizer, algum to adorvel como voc no pode ser solteira. Eu realmente
me abri com voc sobre quem eu sou e o que eu sou. E parte da
empresa que eu tenho, eu fao pesquisa de marketing. Fao um
monte de coisas em que bem, mais fcil mostrar do que dizer.

Miranda: Ns temos que ir, porque estamos

Ron: O.k., bem, eu s ia pegar uma coisa bem aqui pra te mostrar.

Miranda: Tudo bem, tudo bem.

Ron: Isto aqui so cartes da Starbucks. H vinte cartes desses aqui. Est vendo?

Ele os abriu em leque como notas de milhes de dlares, como se nossas mentes
fossem delirar com aqueles vinte cartes da Starbucks.

Miranda: Uau!

Ron: Tambm tenho cartes da Exxon Mobil. Tenho mais de vinte aqui. L em cima
tenho carteiras cheias de cartes de presente da Wal-Mart, o.k.?

Miranda: Uau!
Ele me mostrava seu dote. Seu p-de-meia.

Ron: Eles no esto aqui porque os roubei. Me custaram muito tempo. Me custaram
muita pacincia, muita disciplina, muita busca. Mas com isso, com
isso vem o benefcio de, bem

Miranda: Bom, obrigada. Eu gostaria que

Ron: Obrigado a voc.

Miranda: no tivssemos outra entrevista depois desta.

Ron: Sei. Tudo bem.

Miranda: Podemos parar por aqui.

Ron: Tudo bem. Eu tomei muito o seu tempo.

Miranda: , bem, foi realmente timo.

Ron: Foi um prazer.


Fomos para o elevador quase correndo, e Alfred apertou o boto de descer vrias
vezes at que as portas dele se abrissem. Claro que Ron me lembrou um pouco de
Franko, meu correspondente da priso ou pelo menos eu me lembrei do quanto tinha
concedido a Franko o benefcio da dvida. Eu me concentrei no que havia de
encantador e terno nele e nunca pensei muito sobre a pessoa que ele matou. Quem era
eu para julgar? Eu era to jovem naquela poca que no poderia imaginar que
assassinatos no fossem fazer parte do meu futuro tambm. Parecia to improvvel
mas tudo parecia.
Vinte anos depois, eu estava mais cautelosa. Ron passava a sensao de um
ponto frio no universo, um lugar que simplesmente jamais se tornaria quente. Havia
ainda um pequeno pedao de mim que desejava ser a nica a acreditar nele, a que ele
pouparia, porm, mais do que qualquer coisa, eu queria pegar a mo de mim mesma
com dezesseis anos e a mo da minha futura filha, e sair correndo dali.

Depois de entrevistar Ron, me reuni com um ator que havia lido meu roteiro e
estava considerando fazer o papel de Marshall. Era Don Johnson, de Miami Vice. Como
sempre, cheguei cedo, ento fiquei rodando por l e me perdi, o que me fez chegar
atrasada, como sempre. Estacionei na rua, caminhei at um grande porto e apertei um
boto que alertou uma cmera de vdeo. Acenei e tentei dizer alguma coisa sobre no ser
necessrio abrir de todo o porto, porque eu no iria entrar de carro. Ergui as mos
para a cmera, indicando a largura do meu corpo. O porto comeou a se abrir, eu me
esgueirei por ele, mas ele continuou se abrindo. Mesmo depois de estar l dentro
sentada diante de Don em seu escritrio, eu ainda ouvia o porto se abrindo. Por fim ele
mudou de direo e comeou sua longa viagem de volta.
Don era bonito e muito slido, do jeito que os homens muitas vezes so depois
dos cinquenta. Homens com esse tipo de fsico s vezes pedem que a gente d
soquinhos neles; no aconteceu dessa vez. Falamos de meditao e budismo. Eu no
conseguia me lembrar se ele tinha tido problemas com drogas, mas desejei que tivesse
chegado meditao atravs da recuperao. sempre um alvio para mim quando
algum est em recuperao, isso automaticamente vira assunto da conversa. No que
eu esteja em recuperao, mas me identifico com o sentimento de tentar e falhar e
tentar de novo. Pessoas que passaram por uma reabilitao esto acostumadas a falar
sobre o assunto uma exigncia do processo.
Don e eu conversamos sobre estar presente e a indefinio do agora, depois ele
elogiou por algum tempo o talento do filho, o que, como era de esperar, me levou s
lgrimas. Para no chorar, precisei usar o truque de contrair a bunda at o tamanho de
um punho e repetir mentalmente as palavras foda-se-foda-se-foda-se. Discutimos o
roteiro e sugeri que ele fizesse um teste para o papel, o que a nica coisa que nunca se
deve dizer nesse tipo de reunio parece uma ofensa, e sempre me esqueo disso.
Ento de repente a reunio acabou. Ele me acompanhou at l fora, o porto se abriu, e
ainda continuava se abrindo quando sa com meu carro.

Eu me mudei para Portland, Oregon, quando tinha vinte anos. Portland era a
cidade natal de Gary Gilmore, o assassino sobre quem Norman Mailer escreveu em A
cano do carrasco. Eu tinha lido esse livro com quinze anos, portanto passei muito
tempo pensando no lado sombrio de Portland, mas no foi essa a razo pela qual me
mudei para l. Eu queria fazer parte da revoluo do Northwest Riot Grrrl e ficar mais
perto da minha namorada. Mas, se no desse certo, eu sabia que o submundo estaria
minha espera.
Encontrei emprego nos classificados para trabalhar no Pop-A-Lock abrindo
portas de carro. A entrevista foi feita num restaurante da cadeia Dennys, e fui treinada
num depsito cheio de carros destrudos cobertos de sangue, cabelo e adesivos de
risco biolgico. Eu usava um grande colete vermelho e levava um bipe no cinto. Dava
planto vinte e quatro horas por dia, atendendo toda a regio do tricondado. Os
clientes quase sempre pareciam desanimados ao ver algum to pouco viril vindo em
seu socorro, e muitas vezes eu levava mais de uma hora para conseguir abrir a porta,
mas sempre acabava conseguindo (apertar e sacudir era o truque). Louvei o Pop-A-
Lock at a hora que pedi demisso, quando admiti que aquele era um dos piores
empregos que algum poderia ter. Abrir portas de carro foi meu ltimo trabalho
assalariado real, mas a verdade que eu no ainda no vivia inteiramente da minha arte
eu era uma ladra. Roubava no apenas minha comida e roupas, mas quase tudo o que
no estivesse bem preso. Um dia, roubei da Payless ShoeSource um par de tnis pretos
com fechos de velcro. Eles meio que pareciam Reeboks falsificados. Uma etiqueta de
alarme estava presa na lingueta de velcro do tnis do p esquerdo, razo pela qual eu
levava comigo uma tesoura. Cortei a etiqueta e pus o tnis na bolsa. Sa da loja e fui
caminhando at uma loja de consertos de sapatos chamada Irmos Greiling. Perguntei
ao homem que trabalhava l se ele poderia fazer aquele timo tnis de velcro preto ficar
mais alto; eu queria ser alta. Ele me perguntou por que uma parte da lingueta de velcro
do p esquerdo estava cortada. Examinei-a com ateno, como se a estivesse vendo
pela primeira vez. Ele inclinou a cabea para trs, me olhando de cima a baixo, e disse
alguma coisa como Voc um pssaro estranho. No exatamente isso, mas algo que
me deixou meio na defensiva essa era a minha emoo primria naqueles anos, o que
compreensvel, j que eu poderia ser acusada de muita coisa e at mesmo ir presa. Dei
uma resposta vaga sobre ser uma artista e precisar do tnis para uma performance. Ele
disse que gostaria de saber exatamente que performance eu fazia, por isso, quando fui
buscar o tnis, agora mais alto, levei para ele uma cpia do meu cd, Ten Million Hours a
Mile.
Assim foi o incio da minha amizade com Richard Greiling, da Greiling Irmos
Consertos de Sapatos. No havia outro irmo, ele s gostava do som desse nome.
Richard era rouco e maltrapilho, sempre prestes a fazer algo ridiculamente perigoso ou
dizer alguma coisa categoricamente profunda. Com o tempo, eu o convenci de que, se
ele era capaz de consertar qualquer parte de um sapato, ento era provvel que pudesse
tambm fazer sapatos do zero. Ele fez para mim trs pares de sapatos
maravilhosamente estranhos e pesades, que desenhamos juntos. Com o tempo,
perdeu a loja e precisou trabalhar como vendedor de sapatos na loja de departamentos
Meier & Frank. Nessa poca, ele j tinha estrelado dois curtas-metragens meus, Getting
Stronger Every Day [Ficando mais forte a cada dia] e Nest of Tens [Ninho de dezenas], e
inspirou o protagonista masculino, Richard Swersey, do filme que eu estava
escrevendo, Eu, voc e todos ns. Eu o tinha imaginado no papel dele mesmo nesse
filme, mas no fim acabei dando uma de covarde ou de inteligente, e escolhi um ator que
tinha o mesmo tipo de caracterstica tosca e voltil dele John Hawkes.
Perdi contato com Richard anos depois. Sem perceber, eu o associei mentalmente
a John; os sucessos da carreira de John pareciam significar que tudo tinha dado certo
para todo mundo. Mas bem na poca em que eu estava me encontrando com atores e
anunciantes do PennySaver cruzei outra vez com Richard Greiling. Ele parecia o mesmo,
mas disse que no era mais. Descreveu sua queda at o fundo do poo, que foi onde ele
disse estar. Para mim, ele ainda era extraordinrio, mas vi que no estava brincando. As
contradies entre ele e o ator que o tinha interpretado me apertaram o corao. Revi
seus desempenhos em meus curtas, e ele era muito bom, talvez to bom quanto John
Hawkes, s que um pouco mais extravagante. Eu sabia que no tinha cometido um
erro, mas isso me fez pensar que tipo de diretora eu queria realmente ser. Los Angeles
muitas coisas, mas tambm uma cidade industrial quase todo mundo que eu
conhecia trabalhava em filmes, pelo menos uma parte do tempo. O que tornava difcil,
quase impossvel, resistir s regras e aos rituais cinematogrficos de Hollywood; de
certa forma, eu estava grata por fazer parte daquilo. Por outro lado, tentava
desesperadamente me lembrar de que no havia uma frmula para um bom filme; na
verdade, eu poderia escrever qualquer coisa e escolher qualquer um para o elenco.
Poderia escolher fantasmas ou sombras, um abacaxi ou a sombra de um abacaxi.
MATILDA E DOMINGO

URSINHOS CARINHOSOS
US$ 2 US$ 4

SINO

Passei muito tempo sem ler O futuro, e de propsito; no mnimo, as entrevistas do


PennySaver me mantinham ocupada enquanto eu me distanciava de Sophie e Jason.
Gostava de pensar no roteiro adormecido, curtindo como um pernil numa cabana de
tbuas de nogueira. A cada dia que era deixado quieto, melhor ficava. E agora era hora
de dar uma olhada no progresso que havia feito sem mim. Imprimi tudo e deixei na
minha escrivaninha. Sa do quarto e voltei, fazendo de conta que eu era uma faxineira
intrometida; s vezes isso me ajuda a querer ler meu prprio texto. O que temos aqui?,
perguntei a mim mesma, espiando a primeira pgina e depois olhando furtivamente
sobre meu ombro. Na ltima pgina, eu estava em pnico. A pausa surtira o efeito
contrrio. Os anunciantes do PennySaver me emocionavam tanto, eram to vvidos e
reais, que meu roteiro a fico inteira, inclusive Paw-Paw e a Lua Falante parecia
agora uma chatice s. Eu no tinha novas ideias sobre como trabalhar as cenas de
Jason, e de algum jeito perdera partes que eu pensava resolvidas. Meu desespero
aumentava. S que a sensao no era bem como a frase Meu desespero aumentava;
no era to dramtica e impressionante como nuvens negras antes de uma tempestade.
Era pattica e tediosa, como algum que voc no quer por perto.
Se eu fosse Sophie, minha personagem no filme, teria tido um caso naquele
momento. No por paixo, s para me colocar inteira nas mos de algum, como uma
criana. Mas nem no filme isso funcionou direito. Ento pensei, como fao sempre, na
cena de Indiana Jones e a ltima cruzada, em que Indiana se v diante do que parece
ser ar rarefeito, um vazio, e d um passo frente. Faz isso achando que vai morrer, mas
sabendo que no tem escolha. Ento, de um jeito impossvel, em vez de cair, seu p
pousa sobre alguma coisa slida. Acontece que na verdade h uma ponte invisvel
atravessando o vazio. Estava ali o tempo todo.
Os dilemas de Indiana so sempre de vida ou morte, ento o movimento
audacioso bvio aquele que vai fazer a plateia gritar: No faz isso, Indiana!. Meus
riscos eram bem menores. Podia desistir das entrevistas e terminar o roteiro ou podia
continuar me encontrando com estranhos, acreditando que eles acabariam me levando
ao que eu precisava aprender para terminar o roteiro. A plateia, provavelmente, no se
importaria muito com nenhuma dessas duas solues; nada a faria gritar: No faz isso,
Miranda!. Mas resolvi que Indiana no se sentaria na frente do computador. Ele
ignoraria as vozes que diziam que ele no passava de um procrastinador, pegaria o
telefone e ligaria para Matilda, que estava vendendo Ursinhos Carinhosos por dois a
quatro dlares cada um.
Matilda no sabia que nosso encontro se dava num momento to crucial, e eu
no contei. Como sempre, s fiquei ouvindo e tentei sentir a realidade da vida dela,
morando com marido, irmo, filho e um cachorrinho minsculo. Ela usava um vestido
bonito e tinha a segurana mas no o rosto de uma mulher bonita. O marido era
majestoso e um tantinho galante, passando de vez em quando pela sala com um aceno
corts. Sentamos no sof, perto de uma pilha de roupa para lavar, e falamos sobre os
ursos.

Matilda: Ns os colecionamos. Eu vou a encontros de trocas, a bazares caseiros. Mas


minha coleo especial est ali, so os Precious Moments. Aqueles
so meus.

Miranda: Do que voc gosta neles?

Matilda: Ah, talvez dos olhos.

Miranda: So meio tristes. Meio que parecem estar chorando.

Achei que era projeo minha. Mas Matilda fez que sim com a cabea.

Matilda: Eles so fofos.

Miranda: E voc tem um bom lucro com a venda?

Matilda: Ah, tenho, sim!

Miranda: Que tipo de gente compra?

Matilda: Bem, na maioria americanos, japoneses porque os latinos, voc sabe, eles
no gastam dinheiro com colees.

Miranda: De onde voc ?

Matilda: De Cuba. Sou de Cuba.

Miranda: Quando se mudou para os Estados Unidos?

Matilda: Em dezembro de 1971. Eu tinha catorze anos.

Miranda: E qual foi a poca mais feliz da sua vida at agora?

Matilda: Quando eu vivia no meu pas.

Miranda: Em Cuba?
Matilda: .

Matilda me mostrou a casa. A garagem tinha sido transformada em quarto.


Transformada no bem a palavra todos os mveis de um quarto tinham sido
colocados l, mas ainda havia a porta automtica que subia enrolando e o cho de
cimento. Esse era o quarto principal, onde Matilda e o marido dormiam.
O irmo e o filho dela ficavam nos quartos de verdade. Enfiei a cabea pela porta
de um deles. Acima de uma cama de solteiro, havia uma colagem elaborada de mulheres
e crianas.
Miranda: Bonita colagem!

Matilda: do meu irmo. Ele solteiro e faz uma baguna.

Miranda: Ento essas a so s

Matilda: Ele coleciona vrios tipos de atrizes, atrizes e bebs. Ele solteiro. Deve andar
sonhando.

A colagem era o de menos. Espalhados pelo cho, havia montes de envelopes


pardos cheios de fotos do mesmo tipo e com etiquetas como FOTOS DE CADEIAS,
GAROTAS, BEBS, FOTOS DE CARROS DE POLCIA, FOTOS DE INTERIORES DE CARROS
DE DELEGADOS, BELAS GAROTAS, FOTOS DE BEBS E TAMBM FOTOS DE UMA PRISO.
No meu lxico de sinais e smbolos, fotos obsessivamente organizadas de
prises, bebs e belas garotas so um indcio de que algo muito grave est
acontecendo. Algum anda fazendo alguma coisa desnecessria por razes que so um
mistrio para todo mundo. O irmo de Matilda, Domingo, no estava, e Matilda no
tinha muito a dizer sobre ele.
Voltei para casa e fiquei olhando as fotos dos envelopes at a curiosidade ficar
maior do que eu. Ento telefonei de novo e marquei um encontro com Domingo para
algumas semanas depois. Ele estava nossa espera na calada quando chegamos de
carro grande, gentil e nervoso. A colagem na parede de seu quarto tinha mudado, mas
ainda era do tipo Belas Garotas e Bebs. Pareceu-me mal-educado perguntar sobre os
itens em questo antes de saber alguma coisa sobre ele, ento comecei com o que j
sabia.
Miranda: Voc se lembra de quando veio de Cuba? Ou era muito pequeno?

Domingo: No me lembro de nada l. A nica coisa que me lembro de morar no andar


de cima. S isso.

Miranda: Quantos anos voc tinha?

Domingo: Seis. Vim do mesmo jeito que a minha irm, e que a minha tia tambm, como
refugiado cubano. No viemos ilegalmente na poca tnhamos
permisso para vir de Cuba para c, sem problemas, sem precisar
fugir de l nem nada disso. Estvamos aqui e pronto. Alguns anos
depois passamos a ser residentes e depois cidados.

Miranda: Como o seu dia normalmente?

Domingo: Eu me levanto s oito ou nove da manh. Me visto, pego uma bolsa que uso
sempre e vou para o Taco Bell, que fica logo ali, na esquina da
Carmenita com a Telegraph. Consigo uma soda grtis porque
conheo todo mundo l e sou uma pessoa humilde. Tenho bom
corao. Gosto de ajudar as pessoas, da fiz amigos por l. Liguei
para o escritrio deles e disse, sabe, como eles so timos. Tem
uma moa que trabalha l ela muito gentil. Ela negra, mas fala
espanhol. Se voc for l, ela vai te dar um sorriso. Eu j disse a ela e
ao patro dela, sabe como , que eu acho ela legal, e vou continuar
ligando para o escritrio deles at ela ser promovida. No h
ningum para quem ela no d um sorriso e, sabe, bom-dia, boa-
tarde, at-logo quando a gente sai. Ela vai at as mesas e pergunta
para todo mundo: Est tudo bem?.
Miranda: E quanto tempo voc fica l?

Domingo: Em geral uma hora ou duas, por a. Sabe como , eles tm ar-condicionado,
ento bom l dentro. E de l eu vou para a biblioteca ou para a
farmcia. Na biblioteca, fico no computador e tento achar umas
informaes, umas fotos. Mas infelizmente essas fotos de
computadores normais so s em preto e branco. Se a gente quer
em cores, como eu s vezes quero, tem que pagar um pouco mais.
Mas em geral quando a minha amiga, a bibliotecria, faz as fotos
para mim, ela faz no computador dela, ento ela me d as fotos
coloridas. Essa costuma ser a minha rotina diria. Ah, s vezes eu
tambm gosto de ir ao frum assistir aos casos, voc sabe, casos
criminais e audincias preliminares, que so parecidas com
julgamentos. Observo o caso desde os primeiros trmites dos
procedimentos at a sentena.

Miranda: Fale de um dos melhores perodos da sua vida.

Domingo: A poca mais feliz da minha vida foi, eu acho, quando me tornei um cidado.
Eu tinha que estudar muito, e costumo ter dificuldade para decorar
tipo tenho problemas com a interpretao da leitura. Mas eu
consegui ler, li todas as perguntas e respostas da prova para me
tornar um cidado. Eles testam a gente uma pessoa da Imigrao
senta na sua frente e faz perguntas, e voc tem que responder sem
olhar. Ento a gente precisa ter aquilo na cabea, tem que estudar
antes. Eram muitas pginas, muitas. Eu tive que estudar muito; um
monte de coisas que eu estudei eles no me perguntaram, mas eu
aprendi muito.

Miranda: Quantos anos voc tinha?

Domingo: Foi h muito tempo. No colgio. Mas essa foi uma das fases mais felizes da
minha vida. Quando eu fiz alguma coisa que realmente deu certo.
Fiquei mesmo muito feliz com isso, fiquei de verdade.

Miranda: Ento me fale dessas fotos na parede.

Domingo: Eu tenho tipo assim fantasias e essas coisas tipo fao de conta que sou
um oficial, voc sabe, um delegado, coisas assim

Miranda: Quando comeou a colecionar?


Domingo: J fao isso h alguns anos. Na verdade, comecei logo depois de me formar
no colgio. Nunca consegui me tornar oficial de polcia nem
delegado nem nada parecido. E o que aconteceu aqui foi que eu
constru uma fantasia em que eu sou um juiz, ou um oficial de
polcia, ou um delegado, e ento eu investigo telefono e
descubro como so os turnos de trabalho deles. Estou fazendo
tambm um tratamento psicolgico e psiquitrico, ento conto
isso ao meu terapeuta. Ele disse, bem, se isso uma coisa que no
te impede de fazer outras coisas, tudo bem ter fantasias, desde
que voc no saia por a dizendo que voc o que voc diz que
na sua cabea. E tudo na minha cabea. Ento eu ponho fotos na
parede de que eu sou um juiz, de que eu tenho uma famlia, de que
eu tenho um carro, coisas assim. Preciso das fotos na parede para
que tudo seja de verdade na minha cabea. Porque se eu no
ponho na parede

Miranda: Voc no consegue ver.

Domingo: No consigo ver na minha cabea. Ento tem que ser alguma que eu
humm

Miranda: Possa ver numa foto.


Domingo: Possa olhar e ver tudo ali. Me encontro com a bibliotecria, minha amiga, e
ela quem arranja essas fotos pra mim. Ela sabe para que servem,
ento sabe que eu nunca coleciono nada humm voc sabe
fotos de gente nua ou coisas desse tipo.

Miranda: vida de famlia.

Domingo: , com filhos e coisas assim. Voc sabe, fao isso h anos, e sempre troco as
fotos, quando sinto necessidade de mudar, de ser algum
diferente.

Domingo nos acompanhou de volta ao carro. Agradecemos um ao outro muitas


vezes. No ficou claro por que estvamos to gratos s podia ser por motivos
completamente diferentes, ou talvez apenas pela euforia da confraternizao. Eu me vi
pagando a ele um pouco mais do que a qualquer outro, como se isso de algum jeito
nivelasse as coisas. Porque, de todas as pessoas com quem me encontrei, Domingo
sem dvida era o mais pobre. No o mais triste nem o mais indefeso, mas a pessoa
perto de quem eu me senti mais bizarramente privilegiada. Voltamos para casa, no meu
Prius. Se eu s interagisse com gente como eu, me sentiria normal de novo, no bizarra.
O que tambm no me parecia certo. Ento decidi que tudo bem eu me sentir bizarra,
era adequado, porque eu era meio bizarra. Mas me sentir s daquele jeito seria um erro
terrvel, porque havia um milho de outras coisas para perceber.
Tudo o que eu sempre quis mesmo saber como as pessoas esto se virando na
vida onde pem o prprio corpo, hora a hora, e como do conta de tudo. Domingo
era compulsivo e livre, aparentemente destemido, e sua essncia, seus sonhos estavam
pregados na parede. Naquela noite, Brigitte me mandou as fotos do dia; examinei todas,
para o caso de haver alguma coisa que eu tivesse deixado escapar pelo fato de estar no
local. Analisei uma foto do calendrio de Domingo. Hoje meu aniversrio, estava
escrito num dos quadrados. Tenho quarenta e cinco anos, um velho. Supus que ter
quarenta e cinco anos pareceria a ele absolutamente implausvel, considerando que no
tinha mulher nem filhos nem emprego, nenhum dos acessrios da passagem do tempo
como eles so descritos para todos ns.
Cliquei em todas as fotos que Brigitte tinha feito at ento. O que eu procurava?
Imagino que calendrios. Mais fotos de calendrios. E l estavam elas. Todo mundo
tinha um, e eram todos calendrios muito cheios. Por um momento, eles me pareceram
estranhamente compulsivos, como se eu tropeasse num grupo de fanticos por
calendrios, ento lembrei que todos ns costumvamos ter um desses, at muito,
muito pouco tempo atrs. Todos ns anotvamos nossa vida nos quadrados dos dias,
intrincadamente escrita mo, e pendurvamos na parede para que todo mundo visse.
Por uma frao de segundos, senti como as coisas eram, como o tempo costumava ser
sentido antes dos computadores.
Tentar ver as coisas que so invisveis mas prximas sempre me atraiu. Parece-me
uma causa real, algo por que lutar, e ainda assim to abstrato que a luta precisa ser
igualmente sutil. Quando eu tinha vinte e poucos anos e fazia performances e fanzines
e tentava me conceber como cineasta, tinha certeza de que aquela tarefa era difcil no
s porque havia muito poucos filmes feitos por mulheres, mas porque aquilo parecia
normal at para mim. Ento decidi me tornar capaz de perceber a falta desses filmes
feitos por mulheres. Entrevistei garotas adolescentes, mes ocupadas e mulheres mais
velhas pelas ruas de Portland, parando-as e perguntando: Se voc fosse fazer um
filme, sobre o que ele seria?. Compilei respostas e fotos num pster chamado O
relatrio dos filmes inexistentes. Algumas respostas foram interessantes, a maioria
no. Mas ser que agora eu sentia a ausncia? Agora que eu tinha pedido ajuda a elas,
ser que aqueles filmes no feitos estariam me modificando, como fantasmas? Os
resultados do relatrio foram inconclusivos.
Havia uma questo to incmoda quanto essa, mas perguntei obstinadamente a
cada vendedor do PennySaver se ele usava computador. A maioria no usava e, embora
tivessem muito a dizer sobre outras coisas, no tinham muito a dizer sobre essa, sobre
essa ausncia. Comecei a perceber que fazia a pergunta s para lembrar a mim mesma
que eu estava num lugar onde computadores na verdade no importavam, s para me
admirar com isso. Como se eu receasse que o escopo daquilo que eu podia sentir e
imaginar estivesse sendo limitado na surdina pelo mundo dentro de um mundo, a
internet. As coisas fora da rede tornavam-se mais distantes de mim, e tudo dentro dela
parecia relevante ao extremo. Blogs de estranhos precisavam ser lidos todos os dias e
pessoas prximas, sem presena no ciberespao, tornavam-se quase figuras de
desenho animado, como se faltasse nelas uma dimenso.
No quero dizer que eu pensava assim de verdade; aquilo s estava acontecendo
como o tempo, como a geografia. A rede parecia to inerentemente infinita que no
me ocorria o que no estava ali. Minha nsia por fotos, vdeos, notcias e msicas era
agora to gigantesca que se alguma coisa estava encolhendo, alguma coisa
incomensurvel, como eu perceberia? No que minha vida antes da internet fosse to
fantasticamente diversificada mas era apenas um mundo e na verdade continha todas
as coisas. O blog de Domingo foi um dos melhores que j li, mas precisei ir at ele para
saber disso, ele precisou me falar do blog com todo o seu ser, e no havia uma maneira
fcil de procurar por Domingo. Ele s poderia ser encontrado por acaso.
Cientificamente, minhas entrevistas so um tanto frgeis, to questionveis
quanto O relatrio dos filmes inexistentes, mas num dia no muito distante no
haveria mais ningum sem computador em Los Angeles e esse exerccio seria impossvel.
A maior parte da vida est off-line e acredito que sempre estar; comer, sentir dor,
dormir, amar so coisas que acontecem no corpo. Mas no impossvel me imaginar
perdendo o interesse por essas coisas; elas nem sempre so fceis, e tomam muito
tempo. Daqui a vinte anos, estarei entrevistando o ar, a gua e o calor, s para me
lembrar de que um dia eles tiveram importncia.
DINA

SECADOR DE CABELO CONAIR
US$ 5

SUN VALLEY

Eu conhecia Sun Valley; no comeo do ano, eu havia trabalhado com um serralheiro


instalado l que me ajudou a fazer uma srie de esculturas. Eu tinha andado de carro
por ali algumas vezes por semana, mas sempre com a mente focada em mim e sempre
com pressa difcil parar o carro quando ele comea a andar. Dessa vez, percebi que
muitas outras coisas tambm eram fabricadas em Sun Valley, adereos gigantes para
filmes e vigas enormes de metal. L tambm eram destrudos e reciclados objetos
grandes, como carros e eletrodomsticos. E, enquanto eu caminhava em direo casa
de Dina, de repente me dei conta da maior de todas as coisas enormes que havia ali: as
Montanhas Verdugo. Sun Valley vivia sombra delas. Perguntei-me como no as tinha
visto todas as vezes que havia ido para l, e me senti como se eu fosse agora uma
pessoa melhor uma mulher que no estava mais interessada apenas em sua prpria
paisagem interna. Eu poderia nunca terminar o roteiro, e o mundo no seria nem um
pouco pior por causa disso. O mais provvel que eu abraasse uma dessas profisses
assistencialistas, talvez me tornasse uma freira secular casada.

Tagarelando, chegamos a um loteamento fechado, cheio de fileiras do que


pareciam ser casas transportveis, formando ruas para pedestres. O lugar adotava um
meticuloso padro governamental de preveno de calamidades. No era deprimente,
s que tudo era muito novo; como um Tupperware novo, ficaria velho na mesma hora.
Dina e sua filha Lynette tinham acabado de se mudar e mostravam-se animadssimas
por estar l. Era uma vida absolutamente nova e uma boa hora para se livrar de coisas.

Miranda: Ento ele est funcionando?

Dina: Ah, t funcionando, sim.

Miranda: E h quanto tempo voc tem esse secador de cabelo?

Dina: Ah, tenho esse secador de cabelo h muito, muito tempo. Desde pelo menos o
ensino mdio ou o fundamental, ento so muitos anos. Mas ele
tem uns probleminhas.

Miranda: Ele est aqui?


Dina: T, t aqui, sim.

Miranda: Voc pode ir peg-lo?


Dina: Quer que eu pegue agora? Tudo bem. At que ele no t ruim para uma coisa
to velha.

Dina saiu e voltou com um secador de cabelo muito antigo.

Miranda: , no um secador moderno.

Dina: No, no , mesmo assim ele tem o boto do frio, o boto de ar frio.

Miranda: Ento voc o ganhou no ensino mdio ou no fundamental Voc se lembra


mesmo disso?

Dina: Lembro que eu o usava. Acho que quem comprou foi minha me. , eu me
lembro que eu o usava. A gente costumava pr laqu.

Miranda: Voc tem fotos dessa poca?

Dina: No.

Eu queria descobrir como ela havia se tornado a mulher misteriosa que era. Seu
corpo grande e sardento era decorado com tatuagens e piercings, e as sobrancelhas
pintadas, que apenas vagamente lembravam sobrancelhas reais, eram cor de vinho. Ela
usava, como se fosse uma joia, um fone de ouvido rosa-escuro de celular, e uma
imagem do Popeye torcia o nariz em sua camiseta. Eu no sabia se ela era mais velha ou
mais nova que eu; talvez fosse de uma nova era que no tinha a ver com nmeros.

Dina: Sabe de uma coisa espera um pouco. Eu tenho um lbum de recortes. Posso
te mostrar.

Miranda: Seria timo. Eu adoraria.

Ela abriu um armrio e remexeu l dentro por algum tempo, falando em voz alta
com o lbum, perguntando onde ele estava. Ele afinal se mostrou e ela o pegou,
balanando a cabea.

Dina: Este lbum est com uma cara pssima, n?

Miranda: Ele bem antigo.

Dina: , este o original. Veja isto! Veja isto! Que criativo eu tirava das revistas.
A adolescente Dina tinha colado fotos de revistas de mulheres negras eram suas
irms fictcias. Parecia que todos com quem eu me encontrava tinham uma famlia
imaginria de papel. Dina alisou o rosto da modelo e decifrou sua prpria letra
arredondada.

Dina: Pea, pea irms s estrelas. No o mximo? Mas, se me lembro direito, a


melhor irm est na pgina seguinte. Eu chegava a dar nomes para
elas.

Miranda: Claro. Ento esta a Sharon e esta a Linda. Eu quero minha melhor irm. Eu
quero mesmo dizer que ela sempre ser minha irm. Ela tambm me
ama.

Dina: bem profundo, n?


Enquanto Dina falava sobre sua famlia, eu observava a sala. No tinha as
camadas de vida das quais eu costumava extrair minhas perguntas. A maior parte dos
mveis parecia to provisria quanto a casa, projetada para servir de dormitrio.

Miranda: Que tal o sof inflvel?

Dina: Fantstico. Ainda no o testamos, mas essa coisa capaz de aguentar


queen-size. um cinco-em-um, na verdade.

Miranda: Ele vira cama.

Dina: . cinco-em-um.

Miranda: Deixa eu ver um sof, uma cama dois.

Dina: Eu me esqueo.

Miranda: Talvez flutue, ento um barco trs.

Dina: Bem que ele parece um, n? E voc sabe a coisa boa? Ele aguenta at duzentos
e setenta quilos. Srio, aguenta um peso enorme, por isso bom.
Eu gosto de coisas diferentes, entende o que quero dizer, n? Eu
gosto disso.

No fim percebi que a prpria Dina era a coisa mais intrincada e pitoresca da casa.
Seu tamanho podia ser intimidante, mas suas tatuagens e enfeites eram um convite
claro.
Miranda: Me conta desse seu rosto incrvel dos piercings e tudo o mais. Quando voc
entrou nessa?

Dina: Eu gosto de decorar o corpo, s isso, mesmo sabendo que no muito legal
, a gente sabe. que eu amo enfeites. Eu gosto de arte. Ento, por
que no, n?

Miranda: Voc faz alguma coisa especial com o piercing da lngua?

Dina: , pode ser. Voc vai me fazer falar disso?

Miranda: Estou curiosa.

Dina: No sei se devo falar dessas coisas.

Miranda: Claro que deve.

Dina: Na verdade, quando fiquei mais velha, comecei a ficar curiosa, da eu estou
ficando vermelha. Vou falar. Sexo oral, pois . Isto vai dar uma
esquentada bem legal. Liguei para a loja antes de pr este, e eles at
tm uns que vibram.

Miranda: No!

Dina: Sim! Da, eu meio que pensei: Pera a! Isso parece uma coisa incrvel, pra mim,
no meu livro!.

Miranda: Ento isso j foi testado?

Dina: Ainda cedo.

Miranda: Porque ainda est cicatrizando?

Dina: , est cicatrizando. Eu t esperando.

Miranda: Voc tem um parceiro?

Dina: Bem, na verdade, no, mas o pai deles, voc sabe Ele uma pessoa meio
problemtica, mas tudo bem. Seria um candidato.

Miranda: E essa tatuagem, o que ?

Dina: Ah, o pai das crianas. Eu acabei no fazendo o dever de casa e no sabia
quanto custaria pra apagar o nome dele. A, o que eu fiz agora?
Botei rip embaixo Rest in Peace, Descanse em Paz. Ele ficava
ouvindo que eu tinha tirado, a, quando vi ele de novo, mostrei. Ele
ficou surpreso. Eu disse: Bom, pelo menos eu no botei rih
tipo Rest in Hell, de Descanse no Inferno, est entendendo?

Miranda: Ah, claro verdade. Voc disse: Descanse em Paz.

Dina: Eu s estava tentando dizer a ele sabe romper com ele. Porque quando a
gente diz no d mais, no d mais. A gente pode voltar para a
criatura, tudo bem, mas no d mais. Eu quero fazer uma nas
minhas costas dizendo: Respeite a Rainha. Na linha da cintura.
Vai ser a prxima.

Pedi que Dina me mostrasse a casa. Foi rpido. Espiamos o quarto de sua filha,
Lynette; ela estava mandando mensagens enquanto via televiso mas, depois que a me
insistiu, ela concordou em ir para a sala cantar para ns uma msica de Miley Cyrus
chamada The Climb. Lynette cantou-a com a boca bem aberta, agitando os braos e
agarrando o ar com as mos.

I can almost see it


That dream Im dreaming, but
Theres a voice inside my head sayin
Youll never reach it.
Every step Im taking,
Every move I make feels
Lost with no direction.
My faith is shaking but I
Got to keep trying,
Got to keep my head held high.

Theres always going to be another mountain.


Im always going to want to make it move.
Always going to be an uphill battle,
Sometimes youre going to have to lose.
Aint about how fast I get there,
Aint about whats waiting on the other side,
Its the climb.

Keep on moving.
Keep climbing.
Keep the faith, baby.

Its all about


Its all about
The climb.
Keep the faith.
Keep your faith.*
Senti como se Miley Cyrus estivesse falando comigo atravs de Lynette, e ela
estava sendo muito clara: queria que eu mantivesse a f. Li na camiseta de Popeye da
Dina: eu sou o que sou e senti que eu tambm era o que era. Eu era uma escritora, e os
meus personagens Sophie e Jason estavam bem aqui comigo. Na verdade, eles eram eu,
os dois. Ser que Jason lia o PennySaver? Eu sabia por experincia prpria que ele lia,
porque o filme era ambientado em Los Angeles, e todos na cidade, reais ou fictcios,
recebem o PennySaver pelo correio. Era to bvio, estava l o tempo todo, a ponte
invisvel Jason no estava vendendo rvores; ele estava comprando coisas atravs dos
anncios. Ele se encontrava com desconhecidos, do mesmo jeito que eu, e aquilo o ia
transformando e o ligando humanidade. Ele ficaria numa sala exatamente como aquela
e ouviria algum como Lynette cantar. Talvez no consegussemos pagar os direitos da
msica de Miley Cyrus, mas quem sabe? No era hora de pensar pequeno. Tentei
imaginar quem faria o papel de Dina. Ou de Ron. Ou de Domingo. Foi uma ideia
afrontosa. No, claro que essas pessoas teriam que fazer o papel de si mesmas.
Agradecemos Dina e me despedi sabendo que no era exatamente uma despedida. Tive
vontade de piscar um olho para ela ou lhe mandar algum tipo de sinal de que ela em
breve iria estrelar um grande filme, mas me contive.
Era como a cena de Pollock em que Marcia Gay Harden olha para os primeiros
borres de tinta de Ed Harris e diz, muito sria: Voc acertou em cheio, Pollock, e
voc sabe que ela tem razo, porque aqueles borres de tinta agora valem zilhes de
dlares na vida real. Como Marcia Gay Harden no estava comigo enquanto eu saa de
Sun Valley e voltava para casa de carro, eu tive que dizer, muito sria, a mim mesma:
Voc acertou em cheio, July, e ento, do mesmo jeito que Ed Harris, precisei parecer
exausta e inconsciente da grandeza em que mergulhava, e precisei ser a mulher que via o
filme baseado na minha vida, algum que poderia ter nascido hoje, mas que daqui a
trinta e cinco anos saberia que a histria tinha provado o brilhantismo de Jason
comprando coisas pelo PennySaver. Ela estremeceu um pouco, aquela mulher que teria
trinta e cinco anos daqui a trinta e cinco anos; seus olhos se encheram de lgrimas
enquanto assistia encenao daquele momento crucial na histria do cinema. Nem
importava que ela no fosse f do meu trabalho eu no sou uma grande f de Pollock.
s o jeito como Marcia diz aquilo. Sussurrei de novo: Voc acertou em cheio, Pollock.
Eu havia tido uma revelao igualmente inovadora vinte e cinco anos antes,
quando tinha nove anos. A epifania veio numa noite, pouco antes de eu pegar no sono:
eu construiria uma cidade inteira com caixas de cereais. Colecionaria as caixas durante
meses e as pintaria, centenas delas, lojas, ruas, casas e estradas, formando um mundo
inteiro em miniatura que seria uma representao exata da minha cidade natal, Berkeley
(embora eu ainda no estivesse absolutamente certa dos detalhes talvez fosse melhor
fazer uma espcie de Everytown, eua, j que geografia no era o meu forte). A cidade
ocuparia todo o poro e eu levaria pessoas especiais para l, acenderia as luzes e, bum!,
elas ficariam de queixo cado. Depois de alimentar apaixonadamente essa ideia por cerca
de uma hora, de repente tive outra: No, eu no ia fazer aquilo. Claro que no
construiria uma cidade inteira de caixas de cereais no poro. No instante que tive o
segundo pensamento, eu soube que esse era o verdadeiro. Mas tambm tive a certeza
de que o pensamento em si era a nica coisa que me paralisava, como uma maldio de
bruxa ou, melhor, como os caadores de bruxas, essas mesquinhas e temveis
Autoridades Locais.
Desde aquela poca at aquele exato momento, eu tinha feito o possvel para
evit-las, mas depois de quase trs dcadas de supersties conclu que as Autoridades
Locais esto sempre l, por dentro e por fora, e ficam mais irritadas quando eu comeo
a mudar. Cada vez que sinto alguma coisa nova, as Autoridades Locais intervm e
gentilmente me encorajam a me queimar viva.
Ento, no mesmo instante liguei para Dina, antes que o segundo pensamento
surgisse. Ela concordou com a ideia de um ensaio, como se fosse o desdobramento
natural de sua tentativa de vender o secador de cabelo. No dia seguinte, voltei ao
acampamento-modelo com Alfred e uma cmera de vdeo e sugeri que comessemos
reencenando nosso encontro do dia anterior. Eu bateria na porta, ela me deixaria
entrar, me falaria sobre o secador de cabelo. Tudo certo? Tudo. Muito bem, vamos
tentar.
Uma coisa inesperada aconteceu quando Dina abriu a porta, e no foi a coisa
inesperadamente maravilhosa que eu estava esperando. Ela parou de usar todas as suas
contraes e expresses coloquiais n virou no , t virou estou. Seus braos de
repente se moviam como os de um guia de museu ou de uma aeromoa, com gestos
formais pra c e pra l. Tudo o que era vivo nela morreu misteriosamente assim que
ligamos a cmera. Tentei, em vo, comear de novo, para quebrar o gelo, mas depois de
algum tempo senti que estava me descontrolando e comeando a ser grosseira. Acabei
desistindo do meu plano e perguntei se Lynette poderia cantar de novo para ns.
Lynette interpretou um rap escrito por ela mesma chamado Ah. Era muito, muito
bom. Ele ficou na minha cabea por dias. Mas Dina e Lynette no estariam no filme,
aquela ideia de escolher atores via PennySaver era pssima. O responsvel por uma ideia
to ruim deveria arder numa fogueira.

* A subida: Eu quase posso ver,/ Esse sonho que estou tendo, mas/ H uma voz em
mim dizendo/ Voc nunca vai conseguir./ Cada passo que eu dou,/ Cada gesto que eu
fao parece/ Perdido sem direo./ Minha f est abalada, mas eu/ Tenho que
continuar tentando,/ Tenho que manter a cabea erguida.// Sempre vai ser outra
montanha. Eu sempre vou querer tir-la de l./ Sempre vai ser uma batalha dura,/ s
vezes voc vai ter que perder./ No a rapidez com que eu chego l,/ No o que est
esperando do outro lado,/ a subida.// Continue em movimento./ Continue
subindo./ Mantenha a f, baby.// tudo sobre / tudo sobre/ A subida./ Mantenha a
f./ Mantenha a sua f.
JOE

CINQUENTA CARTES DE NATAL ARTESANAIS
US$ 1

LOS ANGELES

Ento fui casa de Joe sabendo que ele seria meu ltimo entrevistado. A misso
PennySaver tinha sido uma fuga digna, mas parecia diferente agora que eu havia
tentado torn-la til e falhado tanto. Foi meio boba e sem dvida frvola, considerando
o pouco tempo de que eu dispunha, em todos os sentidos. Eu tinha ido do pico da
montanha mais alta para o fundo do buraco mais profundo, e agora apenas tentava no
decepcionar o homem que vendia os cartes de Natal.
Joe morava perto do aeroporto de Burbank, um avio rugiu sobre minha cabea
quando toquei a campainha.

Joe: O que isso, uma metralhadora?

Miranda: uma cmera. E, s para no esquecermos, aqui est o seu pagamento pela
entrevista.

Joe: , isso vai ser mesmo til, vou te contar. Estamos vivendo com cerca de
novecentos dlares por ms do Servio Social, ento o dinheiro fica
meio curto, e quando a gente vai envelhecendo precisa de mais
comprimidos e de mais cuidados mdicos. Eu nunca fui a um
mdico nos meus primeiros cinquenta anos de vida, mas depois
disso a gente comea a cair aos pedaos. Acabei de fazer oitenta e
um h umas trs semanas.

Miranda: H quanto tempo voc mora aqui?

Joe: Em agosto vo ser trinta anos morando aqui. Mudamos para c em 1970.

Miranda: De onde voc ?

Joe: Chicago.

A casa estava muito limpa e desgastada, cada pea da moblia era usada at a
ltima gota. As paredes estavam cobertas por uma vida inteira de fotos de animais de
estimao, gatos e cachorros, mas no havia animais vivos na casa. Pelo canto do olho
eu via prateleiras cheias do que pareciam ser cartes artesanais.

Miranda: Qual era o seu trabalho?

Joe: Bem, eu era pintor, fazia trabalhos de pintura, e virei empreiteiro quando vim
para c, e me sa muito bem.

Miranda: Um pintor de assim casas?


Joe: , casas.

Miranda: O que so todos esses cartes? Foi voc quem fez?

Joe: Foi, eu fao cartes para a minha mulher. Veja, o que fao cort-los em
papis como este, depois recorto fotos de revistas e jornais. Ento
escrevo o poema aqui, fao limeriques. Mas no sei se voc vai
querer ler alguns; eles so bem sujos.

Miranda: Ah, mesmo? Voc pode ler algum pra mim?

Joe: Tudo bem, se voc quer. Deixe eu achar um bom.

Era uma vez uma belezura da cidade


Seus peitos eram grandes de verdade
O namorado se encantou com aquele lindo manjar
Naquelas tetas quis logo se fartar
E a mama esquerda atacou com voracidade.

Miranda: Lindas rimas.

Joe: O primeiro, o segundo e o quinto versos tm que rimar, depois o terceiro e o


quarto versos rimam. Digamos, por exemplo, a palavra sexo. Bem,
talvez s tenha umas duas palavras que rimem com ela, ento eu
tenho que procurar e ir pesquisar na biblioteca.

Miranda: E ela gosta? Como ela reage?

Joe: Ah, ela gosta, sim. H alguns anos ela comeou a querer fazer um para mim,
ento ela fez alguns pequenos como estes. Eu fao nove cartes
por ano para ela. No Dia das Mes e no nosso aniversrio; 4 de julho
foi o dia em que a conheci, em 1948, ento este foi o ltimo carto
que fiz. E fao no Natal, no Ano Novo, na Pscoa e no Dia dos
Namorados. Acabamos de comemorar nosso sexagsimo segundo
aniversrio, estamos casados h sessenta e dois anos.
Miranda: Eu acabei de me casar h dois meses Espero que tenhamos muitos Quatro
de Julho juntos assim.

Fiz uma conta rpida em sessenta e dois anos eu teria noventa e sete e meu
marido cento e cinco. Nossos limeriques com certeza no rimariam mais. Voltei a
ateno para uma colagem enorme com fotos de animais de estimao.

Joe: Todos os animais j se foram, mas esses so de anos atrs. Os ltimos


cachorros morreram em 1982. Tivemos nove, e todos morreram
num intervalo de cinquenta e um dias. Acredita nisso? Do dia de
Natal a primeiro de fevereiro.

Miranda: Vocs tiveram nove cachorros ao mesmo tempo?

Joe: , tnhamos doze cachorros quando nos mudamos para c, e nos primeiros
seis, sete anos, as pessoas achavam que s tnhamos um
cachorro, porque eles ficavam mais ou menos dentro de casa o
tempo todo. Agora temos gatos, mas um deles a Me quer pegar
amanh, acho, e talvez se desfazer dele. Ele deve ter uns dezenove
anos, e de repente comeou a descer a ladeira. Ns damos comida
para ele umas oito vezes por dia, mesmo assim ele est que pele e
osso. O veterinrio diz que isso s vezes acontece quando eles
ficam velhos, porque eu sei que ele come. Mas agora est bem mal.

Miranda: Como ele se chama?

Joe: Ele se chama Bola de Neve, deve ter uma foto dele aqui em algum lugar. Est
numa daquelas fotos ali um gato branco. E a outra gata est no
quarto com a minha mulher, o nome dela Sedosa.

Miranda: O que h naquele balde pendurado no teto?

Joe: Ah, aquilo eram os brinquedos favoritos de alguns dos nossos animais de
estimao. Veja, l est escrito: os nomes neste balde so dos oito
filhotes de cachorro que eu trouxe para a califrnia em agosto de
1970. rosie, nossa gata de rua por dezessete anos, jannie, ginger,
bonnie, huggy bumbum, big fat teddy bear, randy dandy do zo,
princess tootsie bell, missapussy, clydie boops, blackie big boy,
corky e por a afora.
Joe parecia ter os olhos cheios de lgrimas enquanto lia os nomes no balde; um
raro momento de silncio caiu sobre ele e Joe passou os olhos pela sala como se
procurasse o que dizer. Apontei para uma pilha de listas.

Miranda: So listas de compras?

Joe: So, eu fao compras para sete vivas e um vivo eles no podem sair de
casa. Tem um casaco que uso quando vou loja. Ele pertencia a um
policial que conheci e que foi baleado e morto; o irmo dele me deu
o casaco. Ele disse: Toda vez que voc for ao supermercado, eu
quero que o use. Bem, eu vou pelo menos quatro vezes por
semana, talvez pelo menos duzentas vezes por ano, por uns trinta
e cinco, trinta e seis anos. Devo ter usado o casaco para ir loja,
ah, trs ou quatro mil vezes, e minha mulher precisou remend-lo.
Mas agora quase j no d pra consertar.

Joe quis me mostrar o quintal, que tinha dezenas de palmeiras minguadas que ele
disse serem todas descendentes de uma rvore que ele havia pegado no lixo de algum.
Serpenteamos por entre as plantas at a parede do fundo, cheia de nomes entalhados.

Joe: Aqui onde enterrei a maioria dos cachorros e gatos. Eu no os enterro a


quinze centmetros do cho. Eu cavo um buraco de dois metros de
profundidade, calculando que assim nunca ningum vai tir-los
daqui, e os mantenho perto do muro. Acho que se algum vier pra
c e fizer uma piscina, eles no vo atrapalhar de jeito nenhum.
Miranda: Isso bem fundo.

Joe: , eu tenho que ter uma escada bem perto do buraco para depois poder sair.
Eu nem consigo sair do buraco.

Miranda: O que est escrito no muro?

Joe: Bem, eu gravei o nome dos cachorros e dos gatos com cinzel e martelo. H
nomes por toda parte Jilly, Corky, Mittens, Puggy, de todos.

Miranda: E esse buraco para um gato que

Joe: para o Bola de Neve vai ter que ser sacrificado.

Miranda: Certo. Ento, este por antecedncia.

Joe era devastador, mas no como Ron. Ele era como um anjo obsessivo-
compulsivo, trabalhando furiosamente do lado do bem. Ficou cada vez mais difcil me
lembrar de que eu o havia conhecido apenas hoje e que no tinha nenhuma
responsabilidade com ele nem uma histria com ele.
Joe: Talvez neste Natal voc possa vir, porque eu comeo a decorar por volta de 15
de novembro e deixo tudo at 15 de janeiro. Ento, voc ser bem-
vinda a qualquer momento. Como foi que disse que o seu
primeiro nome Maria?

Miranda: Miranda.

Joe: Ah, Miranda.

Miranda: E qual mesmo o seu nome?

Joe: Joe.

Miranda: Joe. Claro. Bem, no queremos tomar mais seu tempo. Ns s vamos

Joe: Tudo bem, eu tenho tempo.

Quando afinal nos libertamos dele, nos sentamos no carro muito quietos, nos
sentindo estranhamente piegas. Alfred disse alguma coisa sobre querer ser um
namorado melhor para a sua namorada. Eu me senti como se no estivesse vivendo
bem o bastante eu me confundia com coisas que no me perturbariam se eu tivesse
nascido em 1929.
E para completar a visita tinha sido inundada de morte. Morte mesmo: os tmulos
de todos aqueles cachorros e gatos, as vivas para quem ele fazia compras e sua
prpria morte, qual se referiu mais de uma vez, mas de um jeito tranquilo, como se
estivesse tentando fazer um monte de coisas antes desse prazo. Percebi que fazia
oitenta e um anos que ele tinha comeado a trilhar aquele caminho com sua lista de
coisas a fazer, e ele estava sempre atrasado, e aquilo tornava tudo urgente e vvido,
mesmo agora, especialmente agora. Como estranho cruzar com algum pela primeira
vez pouco antes de seu fim.
Naquele mesmo dia, liguei outra vez para Joe no me permiti pensar muito no
assunto. Peguei Alfred e a cmera de vdeo e voltamos casa prxima ao aeroporto.
Sugeri que reencenssemos nosso primeiro encontro, eu ia bater na porta, ele me
deixaria entrar, me mostraria os cartes de Natal. Certo? Sim. O.k., vamos tentar.
Uma coisa inesperada aconteceu quando Joe abriu a porta, e no foi a coisa
inesperada pela qual eu j sabia que deveria esperar. Joe improvisou. Ele me disse para
ter cuidado onde pisava quando entrei. Ele no foi direto para os cartes; mostrou-me
um pouco do que havia em volta. Apontou algumas coisas que queria me mostrar de
qualquer maneira. Ele no tinha se esquecido de que havamos combinado reencenar
s tinha seus prprios planos. Precisei interromper: Agora eu vou tentar ir embora, e
voc lembra como no me deixou sair?. Ele concordou com a cabea. Faa isso, no
me deixe ir embora. Fui para a porta. Fique mais um pouco, exclamou Joe. Eu posso
lhe mostrar algumas coisas que voc nunca imaginou que existiam.
Fomos para o quintal reencenar a turn de Joe pelo seu cemitrio de animais.
Nosso gato se chama Paw-Paw, falei, imaginando que Jason poderia dizer algo assim.
Joe me olhou confuso e eu expliquei que no filme havia um gato chamado Paw-Paw.
Ele tem esse nome por causa do lago?, perguntou. No, eu disse, e tentei explicar
que ele no era completamente real, mesmo no filme; era mais um smbolo de amor
daquele casal. Ele me interrompeu. Porque eu e minha mulher nos conhecemos no
lago Paw-Paw h sessenta e dois anos.
Fui para casa com uma fita cheia de cenas que comearam como improvisaes,
mas que foram resvalando para a realidade, tornando-se pequenos documentrios. Joe
poderia fazer o que eu pedi, mas sua vida era to exigente, e to bizarramente relevante,
que ultrapassava qualquer fico. E deixei assim.
Pensei nos seus sessenta e dois anos de cartes ternos e obscenos, e alguma
coisa se desenrolou dentro de mim. Talvez eu tivesse calculado mal o que restava da
minha vida. Talvez no fosse troco mido. Ou quem sabe a coisa toda fosse troco
mido do comeo ao fim muitos, muitos pequenos momentos, cada feriado, cada
Dia dos Namorados, cada ano insuportavelmente repetitivo e ainda assim de alguma
maneira sempre novo. A gente nunca pode comprar alguma coisa com ele, nunca pode
contar com ele para algo mais valioso ou mais completo. Eram s todos aqueles dias,
mantidos juntos apenas pela memria frgil de uma pessoa ou, se tivermos sorte, de
duas. E por causa disso, dessa falta de significado ou de valor inerente, era admirvel.
Como a mais intrincada e radical obra de arte, o tipo de arte que eu estava sempre
tentando fazer. Aquilo se atrevia a no significar nada e com isso exigia tudo da gente.
Imaginei Jason se encontrando com Joe e tendo a sensao de atordoamento
que eu sentia. Eu sabia que no seria bem-sucedida naquilo, na hora de reencenar eu
faria alguma coisa um pouco mais desajeitada e menos interessante do que a vida real.
Mas no eram as Autoridades Locais que me diziam isso; vinha mais de cima, ou bem l
de baixo, e vinha com um sorriso um sorrisinho meio rebelde e provocador, um
desafio. Sorri de volta.
FILMANDO

O FUTURO

LOS ANGELES

Jason: Vou me deixar ser


escolhido. S
preciso ficar
atento e ouvir.
Sophie: Mas e se no
Jason: Shhh. Estou ouvindo.

Se Sophie representava todas as minhas dvidas e o pesadelo de quem eu seria se


sucumbisse a elas, Jason poderia ser a curiosidade e a f que afugentariam esse medo.
Voltei ao comeo do roteiro e acrescentei esse trao impulsivo e supersticioso em Jason
ele s iria conhecer Joe, no todos os outros vendedores do PennySaver, mas se
comportaria em sua expedio do mesmo jeito que eu, por capricho, tentando acreditar
que cada coisa significava alguma coisa, e assim aprendendo o que precisava saber.
Levei algum tempo para me conformar com o fato de que Dina, Matilda, Ron, Andrew,
Michael, Pam, Beverly, Primila, Pauline, Raymond e Domingo no fariam parte do filme;
afinal, como uma fico poderia incluir todos eles? Eu j tinha plena conscincia do
quanto era pequeno o mundo que eu havia escrito; aquela precisava ser a minha verso
reduzida e compacta de Los Angeles. Eu sabia que, se realmente quisesse introduzir as
pessoas que conheci, precisaria um dia tentar algum tipo de documento no ficcional.
(Esse dia chegou.)
Escrevi uma srie de cenas simples entre Joe e Jason que recriavam minha
experincia com ele. Depois que Jason e Sophie se tornam obcecados com sua prpria
mortalidade, Jason decide usar o pouco tempo que lhe resta deixando-se levar pelo
destino primeiro atravs de um trabalho aparentemente sem sentido e autoimposto
de venda de rvores, depois respondendo a um anncio no PennySaver. Escrevi trs
cenas para Joe.

(1) Joe vende a Jason um secador de cabelo antigo (inspirado em Dina) e, num tom
inquietante, exorta-o a voltar quando estiver pronto.
(2) Quando Jason volta, Joe lhe mostra os cartes que faz para sua mulher e l
um limerique sujo. Recorda ento as coisas terrveis que podem ocorrer no incio de um
relacionamento. Ns no tivemos nenhum problema desse tipo no comeo, diria
Jason. Voc est s comeando, responderia Joe.
(3) Jason visita Joe mais uma vez, e ento percebe que Joe tem trs estatuetas de
hipoptamo que Sophie e Jason tambm tm. E o sof eles tm o mesmo sof laranja.
E os dois tm a mesma gravura de M. C. Escher de uma escada sem fim. Eu queria usar a
coincidncia real de Paw-Paw, mas ela me pareceu significativa demais, aqueles detalhes
visuais poderiam ser sutis o bastante para passar despercebidos, e o Escher era meu
jeito de rir de mim mesma e do que estava tentando fazer ser surreal quase a ponto
do kitsch e ainda assim falar srio. Antes que Jason se v, Joe lhe d um brinquedo para
Paw-Paw, uma bola numa mola que oscila para a frente e para trs como um
metrnomo.
Essas trs cenas foram oitenta por cento improvisao e vinte por cento
roteirizadas; Joe foi instrudo a, na maior parte do tempo, s falar sobre um tema, mas
ele precisava dizer algumas frases especficas, que eu leria para ele em off e ele repetiria.
Usaria suas prprias roupas e filmaramos na casa dele.
Foi esse quase hipottico nonagsimo terceiro projeto de roteiro que se tornou
totalmente financiado, sinal verde, no inverno de 2009. Sempre imaginei um homem
gordo apertando um boto em sua mesa para acender uma luz verde. fcil voc s
tem que convenc-lo a levantar o dedinho gorducho. Nesse caso, no havia homem
nenhum, nenhum interruptor decisivo, s um monte de clculos, a maioria subtraes,
e-mails entre empresas do mesmo ramo na Alemanha, Reino Unido e Frana. A maior
parte do dinheiro viria da Alemanha, com a condio de contratarmos uma equipe
alem, providenciarmos todos os vistos e acomodaes em Los Angeles, traz-los de
avio para os Estados Unidos, filmarmos em vinte e um dias e mand-los de volta para
casa. Alm disso, determinado percentual do elenco deveria ser europeu, com prova de
cidadania, o que significava que a maioria dos coadjuvantes ia ter sotaque. Por fim, eu
teria que morar na Alemanha enquanto terminava a ps-produo, no inverno. timo,
eu disse, e fui sincera, sabendo que aquele era o nus de escalar atores que no eram
grandes estrelas (inclusive eu mesma) e um ator que, na verdade, era um pintor de
paredes aposentado. Parecia um preo razovel a pagar para conseguir contar uma
histria to estranha no mais caro, mas em ltima anlise mais acessvel, meio de
comunicao. Dankeschn, eu disse. Vamos em frente.
Agora que eu dependia dele, toda a existncia de Joe pareceu de repente um
tanto precria. Nem preciso dizer que ele no tinha e-mail ou celular. Dei o nmero do
telefone dele para o meu produtor, mas Joe parecia nunca atender. Alfred acabou indo
at a casa dele e descobriu que o aparelho tinha quebrado e eles nem sequer se
preocuparam em consert-lo. Alfred comprou um aparelho novo para eles e eu comprei
uma cadeira La-Z-Boy para a mulher de Joe, Carolyn; ela era diabtica e o mdico tinha
dito que ela precisava ficar com as pernas para cima. Eu quase nunca via Carolyn; para
mim ela era uma musa mtica, objeto de centenas de poemas. Eu havia lido sobre seus
peitos e at sua vulva, mas ela estava sempre no quarto, com a porta fechada.
Mantive Joe afastado de uma srie de preparativos que antecederam as filmagens.
Na verdade, no ensaiei com ele como fiz com Hamish Linklater (Jason) e David
Warshofsky (Marshall). Nem sequer lhe mostrei o roteiro. Minha sensao era de que Joe
se sairia muito bem como Joe no dia de rodar, e no havia nada que eu pudesse fazer
para mudar as coisas por isso daria certo. No o chamei para participar da leitura do
roteiro feita meses antes de rodarmos; seria longa e agonizante e poderia lhe dar uma
impresso errada sobre o que era atuar. Um ator chamado Tom Bower leu as falas que
eu tinha esboado para Joe. Pedi a Tom que tambm lesse as falas da Lua; nem todos os
papis estavam preenchidos, ento alguns atores precisaram fazer mais de um
personagem na leitura. Todos nos atrapalhamos, e depois me encontrei com uma amiga
para ouvir seus comentrios. Eram muitos, mas ela achava que eu tinha feito boas
mudanas, sobretudo a ideia de Joe ser tambm a Lua. O que ele passou a ser a partir
daquele momento.

Prefiro no descrever a primeira semana de filmagem. Quando estou ansiosa,


perco peso, e perdi trs quilos naqueles dias. Tudo o que poderia dar errado deu.
Exceto que, e eu registrava isso no fim de cada dia, ningum tinha morrido.
Ento, no final da semana, minha produtora, Gina, disse que precisava me dizer
uma coisa; era sobre Joe. Meu corao ficou apertado. Ele estava bem, mas quando a
equipe de locao examinava sua casa, Joe mencionou ter acabado de receber do
mdico um diagnstico de cncer e que tinha apenas duas semanas de vida.
Filmaramos a cena dele em uma semana. Gina disse haver conversado com ele e que Joe
insistiu em continuar, mas que a deciso era minha. Todos os nossos problemas
cinematogrficos desapareceram por instantes, restando apenas tristeza, uma dor
terrvel por aquele homem e sua mulher. E eu sabia que no havia como continuarmos
com ele; seria irresponsabilidade e uma coisa, sinceramente, assustadora.
E assim foi. Liguei para Joe do estdio. Ele disse que estava se sentindo bem, e eu
disse que sabia que sim, mas que era obrigada a fazer o que eu achava ser o melhor.
Bem, voc a chefe, respondeu ele, sombrio. Eu tinha me acostumado com seu
vozeiro e sua tagarelice, mas naquele momento ouvi o homem que havia pintado
edifcios durante setenta anos, um trabalhador acostumado a ser parte de uma equipe e
fazer o que o chefe mandava. Alguns chefes talvez no tivessem sido muito gentis.
Naquele fim de semana, sentei-me numa sala e vi atores idosos lerem as falas de
Joe. Estava to exausta que meu objetivo era s no chorar durante os testes. Toda a
ideia para o papel de Joe era Joe. A maioria das falas que eu havia escrito no tinha
importncia, eram apenas palavras vazias colocadas para Joe improvisar. Quando
aqueles velhos improvisavam, baseavam-se em suas histrias pessoais de uma vida
inteira como atores. No era um monte de gente chata, mas nenhum deles tinha
conhecido sua mulher no Lago Paw-Paw.
Depois de observar um homem particularmente frgil titubear ao longo da leitura,
reclamei com Gina, dizendo que, na verdade, aqueles homens de oitenta anos pareciam
mais doentes do que Joe; quem nos garantiria que eles tambm no tinham cncer e s
duas semanas de vida? Tambm me ocorreu que Joe contava com os cheques que
estvamos prestes a lhe dar por seu trabalho e pelo aluguel de sua casa. Ser que eu
tinha entrado na vida dele, lhe dado esperanas e depois o tinha desapontado o tinha
deixado l para morrer?
Depois daqueles ensaios deprimentes, pedi a meu marido que fosse comigo ver
Joe; eu no confiava totalmente em mim. Ficamos andando de um lado para o outro na
sala de Joe, tentando dar uma ideia do que seria a filmagem.
Um dia normal muito longo eu disse. Coisa de doze, catorze horas.
Haveria muita gente aqui acrescentou meu marido, passando os olhos pela
casa minscula.
Seria como o Exrcito entrando e assumindo o controle.
Eles vo estragar os tapetes? perguntou Joe.
No, no respondemos , eles cobririam a casa toda com tapetes de
borracha.
Depois de algum tempo, tnhamos discutido todos os detalhes e no havia mais o
que dizer. Eu precisava me decidir.
Bem disse com voz trmula , eu gostaria de fazer isso com voc, se voc
realmente quiser.
Eu realmente quero afirmou Joe.
Exageramos e rodamos com duas cmeras o dia inteiro, sabendo que no
poderamos esperar Joe repetir coisas que tinha feito, ento cada cena foi rodada
fechada e aberta ao mesmo tempo. Depois filmamos diversas reaes de Hamish, que
com sorte amarrariam o dilogo fico. Quando pedi a Joe que vendesse a Hamish o
velho secador de cabelo, ele lidou com aquilo como um improvisador experiente, hilrio
e real. Muito mais difcil era tentar lev-lo a dizer falas especficas, em especial Voc
est s comeando. Fazia um calor infernal, a sala estava entupida de gente e ele vinha
trabalhando por horas e horas (muitas delas espera de que os avies passassem).
Estava difcil continuar insistindo para que ele dissesse essa frase em particular, que h
muito tempo deixara de fazer sentido. Ele deve ter tentado umas cinquenta vezes, com
muita doura, sempre passando longe e engatando num monlogo sobre seus
primeiros anos de casado, dos quais se lembrava perfeitamente. Afinal, numa tomada
ele disse: Voc est s no meio do comeo, bem agora. Era uma ideia muito melhor e
mais especfica a de que um comeo poderia ter comeo, meio e fim.
No final do seu dia de catorze horas de filmagem, Joe estava de bom humor e
parecia relutante em nos ver indo embora, em especial as mulheres bonitas. E duas
semanas depois ele ainda estava muito vivo, fazendo consertos em sua casa. Quando
terminei a filmagem, apressei-me em editar suas cenas e gravar suas falas em off no
papel da Lua. Mas Joe continuava no morrendo, ento depois de algum tempo relaxei
e, enquanto editava e reeditava o filme, ele concordou em refazer muitas, muitas
sesses de gravao. Uma vez, levei meu laptop para poder ver a cena antes de
comearmos o processo de sincronizao da gravao. Ele pareceu desconcertado com
a viso de si mesmo na tela.
estranho se ver aqui, no ? perguntei, tirando a tela de seu campo visual.
Eu no tinha percebido que estava to velho disse ele.
No final da nossa ltima sesso de gravao, perguntei-lhe como descreveria o
que acontecera, o que tnhamos feito juntos.
Joe: Bem, h uns seis anos
comprei
cinquenta mil
cartes de Natal
de um amigo,
quando ele teve
um ataque
cardaco. Depois
anunciei os
cartes no
PennySaver, voc
apareceu e bateu
na minha porta
dizendo que
estava
respondendo ao
anncio. Depois
voc me explicou
o que queria fazer
e me perguntou
se eu estava
disposto a faz-
lo.
Miranda:Por que voc fez?
Joe: Bom, eu sou meio
aventureiro.
Pensei que valia a
pena tentar fazer
e ver se eu
gostava enquanto
fazia.
Miranda:E como foi?
Joe: Foi muito bom trabalhar
com voc. Voc
quer uma coisa
feita e voc vai
parar e pensar de
que jeito
exatamente voc
quer aquilo e vai
fazer tudo
depressa. Eu no
sei se haveria
futuro para mim,
voc sabe,
fazendo um
pouco de
figurao. Mas sei
que no vou ser
um grande ator
de cinema.
Miranda:Como foi o dia em que
filmamos na sua
casa?
Joe: Bom, foi meio agitado,
precisei acordar
cedo para dar
comida para os
gatos por volta
das cinco e meia,
seis horas. Os
gatos so do
vizinho, no
meus. Os meus
agora esto todos
mortos. Fui at
um
estacionamento
onde a maior
parte da equipe
deixou o carro, e
serviram um caf
da manh. Bom,
tomei umas
xcaras de caf e
comi umas
rosquinhas. Ento
voltei para c.
Mas a comeou a
ficar meio
agitado, porque
tinha um monte
de gente em volta
sem fazer nada e
eu no sabia por
que estavam aqui.
Tive que dizer
para eles ficarem
fora de um dos
quartos, porque
eu tenho um
monte de papis
importantes l,
voc sabe, e eu
no queria eles
por l. Mas, fora
isso, foi tudo
muito bom.

Miranda:Como foi trabalhar com


Hamish?
Joe: Hamish foi mesmo legal
me dei bem com
ele desde a hora
em que ele
chegou at a hora
em que saiu.
Fiquei meio
surpreso, voc
sabe, um grande
astro como
aquele entrando
numa coisa
pequena como
essa. Mas imagino
que isso pode vir
a ser um grande
sucesso, sabe.
Ganhar um Oscar.

Miranda:Quando foi a ltima vez


que voc foi ao
cinema?
Joe: Ns no samos muito,
desde que os
preos
comearam a
subir, sabe. A
ltima vez que fui
ao cinema foi em
outubro de 1969.
Era um filme
censurado,
quando eles
comearam a
aparecer, no final
dos anos 1960.
Era uma sesso ao
ar livre no me
lembro mais o
nome do lugar.
Mas em todas as
ruas em volta, os
carros estavam
estacionados
com centenas de
crianas em cima
dos tetos, vendo
o filme. Voc
sabe, vendo de
graa.
Aprendendo uma
coisa nova, como
se nunca
tivessem feito
aquilo.
Finalizei o filme na Alemanha e voltei para casa na vspera do Dia de Ao de
Graas. Um dia depois do Dia de Ao de Graas, telefonei para Joe. Sua mulher Carolyn
atendeu e disse que fazia dois dias que Joe tinha morrido.
Fiquei muito triste e comecei a repetir isso, e, mesmo mal nos conhecendo, ns
duas ficamos rindo e chorando. Eu tinha pensado nela como uma pessoa sombria ou
insignificante, mas ela no era assim, de jeito nenhum. Carolyn era vulnervel e ardente,
com uma voz rouca. Fizemos piadas sobre Joe e, rindo, nos esquecemos por um
instante, e depois nos lembramos e choramos de novo. E o tempo todo tentei desligar
o telefone, porque parecia presunoso falar com ela agora. Quem era eu? Apenas uma
pessoa que tinha respondido ao anncio do marido dela no PennySaver. Mas Carolyn
queria me contar o ltimo dia dele. Ele estava na cama, eu o beijei e, voc sabe,
brinquei um pouco com ele, a sa do quarto por um momento e, quando voltei, ele
tinha ido embora. Murmurei alguma coisa simptica, mas pensando: Brincou com ele?
Ser que Joe tinha sido masturbado antes de morrer? Pensei nos cartes obscenos e
isso me pareceu possvel. Carolyn descreveu algumas pessoas judias maravilhosas do
Skirball que tinham ido lavar o corpo dele e cuidar de tudo. Soluou e disse que o
plano no era aquele; ela deveria morrer primeiro.
Brigitte e eu fomos visit-la algumas semanas depois. Era estranho estar naquela
casa sem Joe, tudo muito quieto. E, claro, Carolyn no estava em seu quarto como de
costume.
Quer v-lo? Ele est bem ali disse ela, apontando atrs de mim.
Sorri meio apavorada e sem entender, e me virei bem devagar.
Na lata de tinta. Porque tudo o que ele fazia era pintar. Ele nunca parava quieto.
Ns o colocamos na lata para que ele fique aqui, onde eu possa v-lo. No est l fora
em qualquer lugar, em qualquer tmulo. E eu disse ao meu filho: Quando eu for,
quero ser colocada na lata com o pai. Ele perguntou: Tem certeza?. E eu disse:
Tenho, tenho certeza! Por que no? E, se a lata no for grande o bastante, arrume
outra maior.
Carolyn e eu andamos pela casa olhando todas as coisas velhas dos dois e
conversando. Me imaginei vivendo sozinha em nossa casa depois da morte hipottica
do meu marido, e isso me pareceu insuportavelmente triste. Eu teria que me mudar para
o escritrio de novo, onde tentara escrever o roteiro, para a pequena caverna.
Recomearia de onde tinha parado antes de conhec-lo, quando eu tinha trinta anos.
Iria afinal fazer uma sopa com os grandes feijes do Norte e me sentaria para tomar a tal
sopa sozinha. Depois iria dormir, como se toda a minha vida com ele tivesse sido um
nico e longo dia.
Brigitte estava fotografando Carolyn e dizendo que ela parecia ser uma pessoa
feliz. Carolyn concordou e depois acrescentou:
Sabe, no bom ser uma pessoa triste. o que Dorothy sempre diz. Dorothy
a minha amiga. Eu falei dela para vocs, certo? Somos amigas h setenta e trs anos.
Aquele nmero me arrancou da minha histria triste.
Ento voc a conhece h mais tempo do que Joe?
Ah, . Eu a conheci quando tinha sete anos.
Toquei na redoma de vidro que continha a minscula noiva e o minsculo noivo
do bolo de casamento de Joe e Carolyn. Dorothy tinha ido ao casamento.
Provavelmente havia jogado arroz em sua melhor amiga. E depois, o que fez? Como
passou o resto da vida? Eu poderia telefonar para ela naquele instante e perguntar.
Quase doeu me lembrar de que Joe e Carolyn eram parte do mundo, cercados por um
nmero infinito de histrias simultneas. Imaginei que aquela era uma das razes pelas
quais as pessoas se casam, para fazer uma fico que pudesse ser contada. No eram
s os filmes que no conseguiam absorver um elenco de personagens; ns tambm.
Precisvamos peneirar a vida para saber onde colocar nosso carinho e ateno, e aquilo
era uma coisa boa e doce. Mas, em conjunto ou isolados, estvamos ainda incrustados
num caleidoscpio, impiedosamente variado e contnuo, at o fim do fim. Eu sabia que
me esqueceria daquilo em menos de uma hora, e depois me lembraria, e me esqueceria,
e me lembraria. Cada vez que me lembrasse, seria um pequeno milagre, e me esquecer
era to importante quanto eu precisava acreditar na minha prpria histria. Talvez eu
no fosse passar meus ltimos dias sozinha no meu escritrio, tomando sopa e vestida
de preto. Talvez eu fosse viver sem ele entre as coisas que tnhamos feito juntos. No
sem tristeza, mas no s tragicamente.
Carolyn estava separando os lbuns de fotografias e eu soube que era hora de ir.
S precisava esclarecer uma ltima coisa.
Eu devo ter ouvido errado, mas quando conversamos pela primeira vez,
quando voc me falou que ele tinha morrido, voc disse que o beijou e depois o que foi
que voc fez? Voc fez alguma coisa e em seguida foi para o outro quarto. Voc
brincou?
Carolyn esquadrinhou o ar, recordando.
Eu estava andando de um lado para o outro, pondo-o na cama. Eu disse ao
Joe que o nariz dele estava gelado e que ele era um cachorrinho. O resto do corpo
estava quentinho porque tnhamos cobertas, voc sabe, cobertores quentes. Mas o
nariz estava frio, e eu disse a ele: Nossa, seu nariz est gelado. Voc um
cachorrinho. E a sa do quarto.
AGRADECIMENTOS

Obrigada a Jesse Pearson por incentivar esta ideia desde o princpio, minha agente
literria, Sarah Chalfant, por ouvir, a Eli Horowitz pela lista de tarefas de dezessete
passos, e a Starlee Kine por me encorajar a terminar. Agradecimentos adicionais a Aaron
Beckum por ser to gentil com Joe e Carolyn, extrapolando em muito suas obrigaes
como meu assistente.
Sobre a autora

Miranda July cineasta, artista e escritora. Seus vdeos, performances e projetos


gerados na internet tm sido apresentados em locais como o Museu de Arte Moderna, o
Museu Guggenheim e em duas bienais Whitney. July escreveu, dirigiu e estrelou o filme
Eu, voc e todos ns (2005), que ganhou um prmio especial do jri no Sundance Film
Festival e a Cmera de Ouro no Festival de Cannes. Seus textos de fico foram
publicados em The Paris Review, Harpers e The New Yorker, e seu livro de contos,
claro que voc sabe do que estou falando (Ed. Agir, 2008), ganhou o Prmio
Internacional de Contos Frank OConnor. July criou o site interativo
learningtoloveyoumore com o artista Harrell Fletcher, e um livro associado ao site foi
publicado em 2007 (Prestel). Criada em Berkeley, na Califrnia, vive hoje em Los
Angeles. Seu segundo longa-metragem, O futuro, foi lanado no vero de 2011.
Copyright 2011 by Miranda July

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa


de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Ttulo original
It Chooses You

Projeto grfico
Project Projects

As fotos da pgina 209 so de Aaron Beckum

Preparao
Cia Caropreso

Reviso
Ana Luiza Couto
Valquria Della Pozza

ISBN 978-85-8086-621-6

Todos os direitos desta edio reservados


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 So Paulo SP
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
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