Apontamentos Epistemologia Calvino - Fabiano Almeida PDF
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Resumo
O presente artigo tem a finalidade de apresentar aos leitores, introduto-
riamente, alguns aspectos fundamentais da concepo de Calvino a respeito da
natureza e caractersticas do conhecimento de Deus e do autoconhecimento. A
fim de atingir esse objetivo, ateno especial dada aos elementos constitutivos
da epistemologia religiosa de Calvino, como, por exemplo, a relao entre os
conceitos de f, vontade e razo luz de um registro pr-lapsrio e ps-lapsrio.
Palavras-Chave
Epistemologia Religiosa; Conhecimento de Deus; Autoconhecimento;
Vontade; Razo e f.
Introduo
A epistemologia, tambm conhecida como teoria do conhecimento,
historicamente alcanou sua proeminncia como uma das principais reas
da filosofia na modernidade, a comear de pensadores como Ren Descartes
(1596-1650) e John Locke (1632-1704) no sculo 17, alcanando seu pice
no pensamento crtico de Immanuel Kant (1724-1804). Como disciplina
filosfica, a epistemologia tem o objetivo de analisar todas as questes en-
volvidas no processo de conhecimento da realidade, incluindo suas condi-
es de possibilidade e critrios de justificao. Por epistemologia religiosa
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manifestou-se inicialmente como contraponto ao tipo de espiritualidade clerical e especulativa que vinha
sendo praticada por setores da Igreja Catlica Romana nos sculos 14 e 15. Esse movimento originado na
Holanda entre os Irmos da Vida Comum ficou conhecido como Devotio Moderna e uma de suas obras
mais representativas foi De Imitatione Christi de Thomas Kempis. Segundo Torrance, embora no haja
nenhuma meno explcita nas obras de Calvino ao De Imitatione Christi, h uma aproximao muito
estreita entre os temas e o tratamento que envolvem a doutrina do conhecimento de Deus na sua relao
com este ideal renovado de espiritualidade crist proposto por Thomas Kempis em sua obra. Ambos
concebem, de maneira geral, o conhecimento verdadeiro de Deus e suas relaes ao modo agostiniano,
identificando-o com a prpria sapientia, e o distinguem do conhecimento da realidade terrena (scientia).
Sendo de natureza muito mais prtica do que especulativa, o fim desse conhecimento moldar os
crentes na verdadeira piedade. Outro aspecto de extrema semelhana a nfase, colocada por ambos,
na correlao existente entre o conhecimento de Deus e o autoconhecimento, cuja apropriao resulta de
um ato gracioso e condescendente de Deus em comunicar internamente aos crentes a sua summa Veritas,
por meio da internalizao da mensagem revelada nas Escrituras e tambm de sua recepo humilde por
parte do crente em sujeio e obedincia sua vontade. Ver, por exemplo, De Imitatione Christi I.3.1,2;
I.5.1; III.2.1; III.43.3; III.4.1ss; III.48.1ss; III.46.1ss; III.48.1ss; I.5.1; I.9.1s; II.2.1s; III.13.1s; III.14.2s.
Sendo as Escrituras a fonte suprema por meio da qual Deus comunica sua verdade espiritual ao homem,
verdade esta que transcende toda forma de percepo humana, sua mensagem s pode ser adequadamente
compreendida e aplicada atravs da ao iluminadora do Esprito Santo. Ver, por exemplo, De Imitatione
Christi I.1.1,2; I.5.1; III.31,2s; 53.3; cf. II.1.6; IV.4.1; cf. III.23.8; III.31.2 cf. III.54.1; 58.6. Outra grande
semelhana entre a Devotio Moderna, tal como representada pelo pensamento de Thomas Kempis em
sua obra clssica, e o pensamento de Calvino, o fato de haver entre ambos uma forte resistncia em
associar o verdadeiro conhecimento de Deus, que a sabedoria, com aquele tipo de inquirio meramente
intelectual e especulativa sobre as realidades divinas. Ver, por exemplo, De Imitatione Christi I.25.2;
III.24.1; III.58.1s; IV.18.1 cf. III.3.1; 43.1s. Apesar disso, ambos tambm veem na scientia (conhecimento)
um dom de Deus ao homem quando aplicada ao domnio das investigaes bblicas e teolgicas, sob
a conduo da prpria f, pois seu exerccio pressupe as realidades que vm da divina graa. Ver,
por exemplo, De Imitatione Christi I.3.4; III.43.2 cf. I.7.1; III.21.1; III.54.17s. Para maiores detelhes
ver TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin. Edinburgh: Scottish Academic Press,
1988, p. 72-95; OZMENT, Steven. The Age of Reform 1250-1550: An intellectual and religious history
of late medieval and reformation Europe. New Haven: Yale University Press, 1980, p. 73-134. Para
um tratamento mais extensivo sobre os provveis movimentos precursores da Reforma do sculo 16,
recomendo as seguintes obras: MCGRATH, Alister E. Reformation Thought: An introduction. Malden:
Oxford University Press, 1999; MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. So Paulo:
Cultura Crist, 2007; OBERMAN, Heiko A. The Dawn of the Reformation: Essays in late medieval
and early reformation thought. Grand Rapids: Eerdmans, 1992; OBERMAN, Heiko A. Forerunners of
the Reformation: The shape of late medieval thought. New York: Holt, Rinerhart and Winston, 1966.
OBERMAN, Heiko A. The Reformation: Roots and ramifications. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.
3 MULLER, Richard A. The Unaccommodated Calvin: Studies in the foundation of a theologi-
cal tradition. New York, Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 101,113; DE GREEF, Wulfert. The
Writings of John Calvin: An introductory guide. Grand Rapids: Baker, 1993, p. 196, 197.
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A edio de 1559 foi a ltima edio latina das Institutas. Essa edio final consiste em 4 livros
com 80 captulos ao todo. desta edio completa que parte a anlise a ser feita doravante.
5 Muller, The Unaccommodated Calvin, p. 111-114.
6 Ibid., p. 102-117.
7 Ibid., p. 113-114.
8 Ibid.
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17 Daqui em diante, as citaes das Institutas sero feitas no corpo do texto e seguiro a seguinte
ordem: livro-captulo-pargrafo. Quando explicitadas ou citadas, todas remetero seguinte edio:
CALVINO, Joo. As Institutas: edio clssica. 4 vols. 2. ed. So Paulo: Cultura Crist, 2006.
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Mas, para que a verdadeira religio resplandea em ns, preciso que ela seja
o ponto de partida da doutrina celeste, pois no pode provar sequer o mais leve
gosto da reta e s doutrina, seno aquele que se tornar discpulo da Escritura.
Pois o princpio do verdadeiro entendimento vem do fato de abraarmos, re-
verentemente, o que Deus testifica de si mesmo na Escritura. Da obedincia
Palavra de Deus nascem no somente a f consumada e completa, em todos
os seus aspectos, mas tambm todo o reto conhecimento de Deus. [] Deus
providenciou o auxlio de sua Palavra para todos aqueles a quem quis instruir,
de maneira eficaz, pois sabia ser insuficiente a impresso de sua imagem na
estrutura do universo. Portanto, se desejamos, com seriedade, contemplar a
Deus de forma genuna, precisamos trilhar a reta vereda indicada na sua Pala-
vra. Importa irmos Palavra na qual, de modo vivo e real, Deus se apresenta
a ns em funo de suas obras, ao mesmo tempo em que essas mesmas obras
so apreciadas, no segundo o nosso julgamento corrompido, mas de acordo
com a norma da verdade eterna. [] Devemos pensar que o esplendor da face
divina, que at mesmo o apstolo Paulo reconhece ser inacessvel (1 Tm 6.16),
para ns um labirinto emaranhado, no qual s podemos entrar se, atravs dele,
formos guiados pelo fio da Palavra (I.VI.3).
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E aqui devemos observar outra vez que somos convidados a conhecer a Deus,
no, porm, a buscar aquele conhecimento que, contente com especulao vazia,
18 Portanto, o conhecimento que as Escrituras nos apresentam a respeito de Deus, no tem outro
objetivo, seno aquele que brilha gravado nas criaturas, ou seja, o conhecimento que em primeiro lugar
nos convida ao temor de Deus; em seguida nos convida a confiar nele para, na verdade, aprendermos a
cultu-lo no s com perfeita inocncia de vida, mas tambm com no fingida obedincia e, desse modo,
aprendamos a depender totalmente de sua bondade (I.X.2). E tambm: No incio (desta exposio)
dissemos que o conhecimento de Deus no pode ser obtido da fria especulao (da mente), mas traz
associado consigo o culto que lhe devemos (I.XII.1).
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simplesmente voluteia no crebro, mas aquele conhecimento que, uma vez reta-
mente percebido por ns, finca p no corao, pois ser slido e frutuoso. Ora,
o Senhor se manifesta por seus poderes e, uma vez que sentimos a sua fora e
usufrumos os seus benefcios dentro de ns, necessrio que sejamos muito mais
vividamente afetados por este conhecimento, do que se imaginssemos um Deus
de quem nada percebssemos. Assim, aprendemos que o caminho mais direto
e o processo mais apropriado de buscar-se a Deus consiste em no tentarmos,
mediante ousada curiosidade, penetrar na investigao da sua essncia, essncia
que antes para ser adorada do que para ser meticulosamente perquirida; ao
contrrio, devemos contempl-lo em suas obras, em funo das quais ele nos
mais prximo e familiar e, de algum modo, se comunica conosco (I.5.9).
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19 No Livro I, captulo XV, em seu tratamento sobre a dinmica das faculdades da alma humana no
estado original, Calvino seguir os filsofos clssicos em afirmar a supremacia diretiva do entendimento
(razo, intelecto) sobre a vontade, caracterizando, assim, uma teoria das faculdades de vis intelectualista
(I.XV.6-7). Partindo desta concepo, Calvino identificar o intelecto com o guia e piloto da alma,
submetendo ao seu arbtrio a faculdade volitiva, ao mesmo tempo que reduzir a origem das diversas
operaes da alma a apenas duas faculdades, o entendimento e a vontade (I.XV.7). No entanto, Calvino
deixa claro que esta relao de primazia da mente, que notadamente ele identifica com a faculdade do
entendimento, sobre a vontade, a respeito do que se referiam os filsofos, est associada condio
humana pr-lapsria (estado original), segundo a qual era possvel ao homem desejar e alcanar o conhe-
cimento verdadeiro de Deus e adquirir, consequentemente, a posse da felicidade simplesmente atravs
da reta conduo de sua faculdade racional em funo de seu predomnio sobre a vontade (I.XV.8). A
isso Calvino chama de livre arbtrio. S nesta condio pr-lapsria o homem possua poder real de
desejar e escolher fundado to somente no predomnio de sua razo, pois tanto a mente quanto a vontade
experimentavam os efeitos da retido original (I.XV.8). Daqui em diante, os termos pr-lapsrio e
ps-lapsrio iro aparecer de forma recorrente. Eles designaro, respectivamente, a condio humana
antes da queda e a condio humana aps a queda.
20 O conceito de queda uma categoria tipicamente crist e, portanto, estranha s propostas filos-
ficas antigas. Ele determinante para o entendimento do que seja o homem atual e de como se originou
toda forma de distrbio no mundo. A idia de harmonia presente no conceito judaico-cristo de Shalom
a anttese da idia expressa pelo conceito de pecado que justamente desagregao. Dentro de uma
perspectiva teolgico-filosfica, o pecado seria uma forma de emancipao autonomista do homem em
relao ao seu ponto de referncia eudemnico ltimo, Deus seu criador, redundando na sua conseqente
alienao de sua bem-aventurana ltima.
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Como a vida espiritual de Ado era permanecer unido e ligado a seu Criador,
assim tambm ao alienar-se dele veio-lhe a morte da alma. Portanto, no sur-
preende se, por sua defeco, afundou na runa sua posteridade aquele que
perverteu, no cu e na terra, toda a ordem da prpria natureza (II.I.5).
21 Muito embora comumente Calvino empregue o termo natureza para se referir tambm
condio humana cada, por natureza aqui no se deve entender a natureza original na qual o homem
foi criado, mas sim sua condio ps-lapsria. Ver, por exemplo, II.I.6. Tambm: Portanto, afirmamos
que o homem est corrompido por depravao natural, contudo ela no se originou da prpria natureza.
Negamos que essa depravao tenha se originado da prpria natureza como tal, para que deixemos claro
que ela antes uma qualidade adventcia que sobreveio ao homem, e no uma propriedade substancial
que tenha sido congnita desde o princpio (II.I.11).
22
As afinidades entre Calvino e Agostinho se concentram, principalmente, no campo da doutrina
dos sacramentos, da antropologia e da soteriologia teolgicas, especificamente quanto a aspectos re-
ferentes s doutrinas do livre-arbtrio, da graa e da predestinao divinas. Apesar disso, notrio em
seus escritos o fato de que apenas a Escritura tem valor normativo para a f, o que no pode ser dito de
nenhum pai da Igreja. WENDEL, Franois. Calvin: Origins and development of his religious thought.
Grand Rapids: Baker, 1997. p. 125.
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Visto que j dissemos pouco antes que as faculdades da alma esto sediadas na
mente e no corao, consideremos agora de que poder se reveste uma e outra
dessas partes do ser. Na verdade os filsofos imaginam com avultado consenso
que na mente que se radica a Razo, a qual, semelhana de uma lmpada,
ilumina a todas as decises, e maneira de uma rainha governa a vontade (II.
II.2).23
23 Comumente quando Calvino se refere aos filsofos, de forma genrica, ele tem em mente os
filsofos clssicos, tais como Plato e Aristteles, e tambm filsofos helenistas epicureus e esticos
como Ccero. Por vezes se refere aos filsofos medievais e escolsticos. Em todo caso, mesmo quando
Calvino os menciona de maneira geral e sem designao, possvel identificar o seu matiz atravs do
contexto literrio no qual Calvino discute as suas propostas.
24 Calvino, Institutas, I.XV.3,4; II.I.9; II.V.19; III.II.7,8,33,34,36; III.XX.4,43.
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25
Ibid., III.2.8; 3.6; 3.16; 6.4; 7.8; 20.5,31. Comparar com os comentrios de Calvino sobre Joo
12.40 e Romanos 10.10.
26
HOEKEMA, Anthony Andrew. The centrality of the heart: a study in Christian anthropology
with special reference to the psychology of Herman Bavinck. Thesis submitted to the faculty of Princeton
Theological Seminary, 1948, p. 196, 201.
27 Para um tratamento mais detalhado sobre o assunto remeto os leitores a Hoekema, The
centrality of the heart, p. 177-213, e a Muller, The Unaccommodated Calvin, p. 169.
28 MORONEY, Stephen K. The Noetic Effects of Sin: An historical and contemporary exploration
of how sin affects our thinking. Lanham: Lexington Books, 2000, p. 2.
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pelos juzos e inteleces humanos, Calvino admite que a razo no foi total-
mente destruda pelo pecado, mas apenas debilitada e corrompida.
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por extenso, de um atributo que flui da divindade (II.II.14). Esta luz natural
da verdade, disposta por Deus na mente humana no ato da criao e mantida
por ele, mesmo a despeito dos efeitos do pecado, a causa das mais brilhantes
e teis manifestaes do esprito humano. Dentre os mais expressivos repre-
sentantes do conhecimento profano, Calvino cita os antigos jurisconsultos,
filsofos, mdicos e matemticos cujo legado admirvel e verdadeiro reflete
o elevado potencial racional ainda presente na mente cada, atestando ser o
Esprito de Deus a fonte ltima de todos esses bens e verdades (II.II.15). Se-
gundo Calvino, mesmo os mpios so potencializados pelo Esprito de Deus,
que a todas as coisas preenche, aciona e vivifica, ainda que no de maneira
santificadora, a fim de beneficiarem o mundo atravs da realizao de seu
servio (II.II.16).
Nem h por que algum pergunte: Que os mpios, que se alienaram totalmente
de Deus, tm a ver com o Esprito? Ora, quando lemos que o Esprito de Deus
habita somente nos fiis [Rm 8.9], preciso que se entenda isso como referncia
ao Esprito de santificao, atravs de quem somos consagrados por templos
ao prprio Deus [1Co 3.16]. Entretanto, nem por isso menos preenche, aciona,
vivifica a todas as coisas pelo poder do mesmo Esprito, e isso segundo a pro-
priedade de cada espcie, a que a atribuiu pela lei da criao. Pois se o Senhor
nos quis assim que fssemos ajudados pela obra e ministrio dos mpios na fsica,
na dialtica, na matemtica e nas demais reas do saber, faamos uso delas, para
que no soframos o justo castigo de nossa displicncia, caso negligenciemos as
ddivas de Deus nelas graciosamente oferecidas (II.II.16).
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Nos 14 pargrafos do captulo III do Livro II das Institutas, dedicados ao tratamento da depra-
vao da natureza humana e da vontade, Calvino cita, explicitamente, o testemunho de Agostinho pelo
menos em 7 ocasies (5,7,10,11,12,13,14). Isso demonstra que, num contexto discursivo cristo polmico,
como foi o do perodo da Reforma do sculo 16, a validao e aceitao de uma tese teolgico-filosfica
passava, necessariamente, pelo testemunho da Escritura e pelo testemunho secundrio de expoentes
teolgicos antigos, especialmente Agostinho. Por exemplo, no pargrafo 13 ele diz: Em outro lugar,
porm, [Agostinho] diz que a vontade no removida pela graa, mas mudada de m em boa; e quando
se torna boa, ajudada; significando simplesmente que o homem no de tal maneira impulsionado,
que seja impelido sem a disposio do corao, como se movido por uma fora externa; ao contrrio,
interiormente acionado, de tal forma que obedece de corao (II.III.13).
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Calvino entende que o motor das escolhas resultantes do livre arbtrio est
muito mais relacionado com a vontade do que propriamente com o intelecto
(II.II.26). A vontade, por sua vez, reflete muito mais a inclinao da natureza
humana do que a deliberao da mente (II.II.26). Discorrendo sobre o pare-
cer dos filsofos, cristalizado pelo senso comum, de que a vontade humana
aspira ao bem por disposio natural, Calvino compara, analogicamente, esse
desejo natural do homem pelo bem quele desejo fundado no instinto natural
dos animais. Ou seja, segundo Calvino, a concepo de bem que o homem
cultiva em sua condio natural ps-lapsria, por estar desvinculada dos dons
supernaturais com os quais fora criado, tende a se identificar ao senso de bem-
estar ou preservao imediatos, como acontece com os animais. O que Calvino
faz aqui discorrer sobre o carter pr-reflexivo e pr-deliberativo da vontade
no exerccio prprio de seu ato de escolher, a partir dos influxos daquilo que
melhor qualifica a sua natureza ps-lapsria, que nesse caso seriam sua incli-
nao aos sentidos e sua propenso ao mal e corrupo.
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de perfeio. Por exemplo, o mundo perfeito era o que ficava sobre a lua, este era o mundo dos cus;
enquanto que o mundo sublunar, o mundo da terra, era o mundo imperfeito. Neste mundo fechado, cada
ser possua uma natureza que lhe era prpria e que determinava seu lugar na hierarquia do mundo. Ou
seja, havia um lugar natural para cada coisa; esta era a exigncia da fsica terica de Aristteles. Na
fsica aristotlica, por isso, todo corpo possui a tendncia a permanecer em seu lugar natural ou se dirigir
a ele. Isto mostra que esta concepo de natureza era eminentemente qualitativa, pois era a partir da
qualidade ou natureza dos seres que se determinava o seu lugar no universo; por isso que conhecer a
natureza dos seres era muito importante. O principal acontecimento que contribuiu para a dissoluo da
viso de mundo aristotlico-medieval e para o estabelecimento de uma nova cosmoviso caracterizada
pela nova racionalidade cientfica foi a geometrizao do espao e a dissoluo do cosmos, isto , o
desaparecimento, no interior da racionalidade cientfica, de toda considerao a partir do cosmos e a
substituio do espao, da fsica pr-galileana, pelo espao abstrato da geometria euclideana. esta
substituio que permitiu, por exemplo, a inveno da lei da inrcia. Galileu foi o primeiro a formular o
mtodo experimental e o problema crtico do conhecimento a partir de um modelo geomtrico. KOYR,
Alexandre. Estudos galilaicos. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 18.
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Agostinho proclama por toda parte esta necessidade, ainda quando era odien-
tamente acossado pela cavilao de Celstio, contudo nem ainda vacilou em
afirm-la nestas palavras: Ocorreu que o homem caiu em pecado pelo uso de
sua liberdade; mas j que a corrupo que se seguiu veio como castigo, ele fez
da liberdade uma necessidade. E sempre que ocorre nele meno desta mat-
ria, no hesita em falar nesses termos acerca da servido necessria do pecado.
Portanto, observe-se este ponto principal de distino: o homem, como foi
corrompido pela queda, certamente peca porque o quer, no contra a vontade,
nem coagido; pela mui natural inclinao da mente, no por compulso forada
pelo ardor de concupiscncia pessoal, no por presso externa; contudo, tudo
faz por depravao da natureza, que no pode ser movido e impulsionado seno
para o mal. Se isso verdadeiro, ento no se expressa obscuramente que de
fato o homem est sujeito necessidade de pecar (II.III.5).
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Por outro lado, preciso que ponderemos bem qual o remdio da graa divina
merc do qual se corrige e cura a depravao da natureza. Ora, querendo trazer-
nos ajuda, o Senhor nos prodigaliza o de que carecemos, ao fazer-se patente
quem que opera em ns, e em contrapartida veremos em seguida qual nossa
carncia. Quando o Apstolo diz aos filipenses estar confiante em que Aquele
que neles comeara uma boa obra a haveria de aperfeioar at o dia de Jesus
Cristo [Fp 1.6], no h dvida de que pela expresso comeo de uma boa obra
denote a prpria origem da converso, que est na vontade. Portanto, Deus co-
mea essa boa obra em ns despertando o amor em nosso corao, o desejo e o
zelo pela justia, ou, para que falemos mais adequadamente, inclinando-nos
justia, plasmando, dirigindo-nos o corao. Contudo a consuma firmando-nos
na perseverana (II.III.6).
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31 Adiciona-se outra razo, no contrria: ora, uma vez que o princpio do querer o bem e do agir
corretamente procede da f, impe-se ver donde procede a prpria f (II.III.8).
32 Refiro-me especialmente anlise de R. T. Kendal que se encontra em sua obra Calvin and
English calvinism to 1649. New York: Oxford University Press, 1978, p. 19, 29, 34. Uma refutao muito
bem escrita da tese de Kendal nos oferecida por Richard Muller em The unaccommodated Calvin,
p. 159-161.
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33
Embora Calvino trate de maneira generalizada, atribuindo aos escolsticos a origem da dis-
cusso sobre a f implcita, fica claro que sua contenda dirigida a uma interpretao popularmente
estabelecida em sua poca, do tratamento elaborado de Toms de Aquino sobre a natureza da f impl-
cita e da f explcita encontrado no Quaestiones disputatae de Veritate. Como as Institutas tm uma
finalidade polmico-apologtica de carter prtico-religioso, no interessa a Calvino debater as mincias
filosficas do conceito de f implcita encontradas originalmente no pensamento de Aquino, mas sim
confront-lo em sua expresso atual e popularmente aceita. Para maiores detalhes sobre a relao entre
o conceito de f de Calvino e Aquino ver VOS, Arvin. Aquinas, Calvin, and Contemporary Protestant
Thought. Washington: Christian University Press, 1985, p. 21-40.
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35 O final dessa frase no original latino da edio de 1959 consta da seguinte forma: et affectus
magis quam intelligentiae. Ou seja, mais de afeto do que do intelecto.
36
... A f consiste no conhecimento de Cristo. E Cristo no pode ser conhecido seno em con-
juno com a santificao de seu Esprito. Segue-se, consequentemente, que de modo nenhum a f se
deve separar do afeto piedoso (III.II.8).
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Concluso
O conceito de conhecimento esposado por Calvino, quando aplicado
a Deus e nossa relao com ele, transcende os estreitos limites do iderio
epistemolgico fundacionalista que o define em termos estritamente semnti-
co-analticos e cognitivistas. Como j foi visto, Calvino opera um resgate do
significado escriturstico do verdadeiro conhecimento religioso, apontando
para seu carter pleno. Conhecer a Deus, nesse sentido, no se limita apenas
apreenso cognitiva do dado revelado ou mera confisso nominal das sen-
tenas que formulamos sobre ele.
Segundo a perspectiva apresentada por Calvino, nas Institutas, conhe-
cer a Deus significa, primariamente, uma apreenso real, pessoal e vital das
verdades reveladas, que deve redundar em uma vida de santidade, amor e
obedincia a Deus e sua Palavra. Calvino no deixa dvidas quanto a isso,
pois, em diversas ocasies, repudiou as pretenses escolsticas em prover um
conhecimento meramente intelectual a respeito de Deus, conhecimento este
fundado apenas em demonstraes racionais e desvinculado de uma comunho
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Temos dado o primeiro lugar doutrina, na qual se contm nossa religio, uma
vez que nossa salvao tem nela o ponto de partida. Mas, necessrio que ela
nos seja penetrada no corao e nos seja traduzida no modo de viver, e nos
transforme a tal condio que no nos seja infrutfera (III.VI.4).
37 Embora demonstre diversas afinidades com aspectos da tradio nominalista, na qual foi pro-
vavelmente treinado durante seus anos de estudos em Paris, o mtodo teolgico de Calvino, desde o
incio de sua carreira, demonstra uma clara preferncia por consideraes concretas a especulaes
metafsicas. GANOCZY, Alexandre. The Young Calvin. Philadelphia: Westminster Press, 1987, p. 187.
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ABSTRACT
This article has the purpose of presenting to the reader, in an introductory
way, some fundamental aspects of Calvins concept about the nature and
characteristics of the dual knowledge the knowledge of God and self-
knowledge posited by the reformer in his magnum opus, the Institutes. In order
to attain this objective, special attention is given to the constitutive elements of
Calvins religious epistemology, such as, for instance, the relationship among
the concepts of faith, will, and reason in light of a pre-lapsarian and a post-
lapsarian biblical record.
keywords
Religious epistemology; Knowledge of God; Self-knowledge; Will;
Reason and faith.
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