2013 Celia Maria Gondo
2013 Celia Maria Gondo
2013 Celia Maria Gondo
matrizes de plstico
inverses & reflexes
Goinia GO
2013
Universidade Federal de Gois
Faculdade de Artes Visuais
Programa de Ps-Graduao em Arte e Cultura Visual
Goinia GO
2013
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
GPT/BC/UFG
CDU: 761
Universidade Federal de Gois
Faculdade de Artes Visuais
Programa de Ps-Graduao em Arte e Cultura Visual
Goinia GO
2013
TERMO DE CINCIA E DE AUTORIZAO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E
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Pas: Brasil UF: GO CNPJ: mitindo apenas impresso fraca) usando o pa-
Ttulo: Matrizes de plstico: inverses e reflexes dro do Acrobat.
Palavras-chave: gravura, matriz de plstico, imagens espelhadas, mestiagens
Ttulo em outra lngua: Plastic matrices: inversions and reflections
Data: _____ / _____ / _____
Palavras-chave em outra lngua: engraving, plastic matrix, mirror images, miscigenations
rea de concentrao: arte, cultura e visualidades ______________________________________
Data defesa: (dd/mm/aaaa) 14/05/2013 Assinatura do (a) autor (a)
Programa de Ps-Graduao: Arte e Cultura Visual
Orientador (a): Dr. Jos Csar Teatini de Souza Clmaco
E-mail: [email protected] 1
Neste caso o documento ser embargado por at um
Co-orientador (a):* ano a partir da data de defesa. A extenso deste prazo
E-mail: suscita justificativa junto coordenao do curso. Os da-
dos do documento no sero disponibilizados durante o
*Necessita do CPF quando no constar no SisPG. perodo de embargo.
Universidade Federal de Gois
Faculdade de Artes Visuais
Programa de Ps-Graduao em Arte e Cultura Visual Mestrado
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________
Prof. Dr. Jos Csar Teatini de Souza Clmaco
Orientador e Presidente da Banca
__________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Alice Ftima Martins (FAV/UFG)
Membro
__________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Ceclia Noriko Ito Saito (CEO/PUC-SP)
Membro
______________________________________
Prof. Dr. Edgar Silveira Franco (FAV/UFG)
Suplente
__________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Nei Clara de Lima (MA/UFG)
Suplente
A todos que se pe a caminho
A todos que se deixam levar pelo caminho
A todos que se permitem observar o caminho
Agradeo a todos que participaram, participam e participaro dessa caminhada.
H muitos nomes inesquecveis, outros tantos que a memria no guardou.
Nenhum mais importante que outro, alguns so mais luminosos.
Essa dissertao uma pesquisa de produo em gravura que parte da caracterstica dplice da ma-
triz de plstico (poliestireno), de permitir gravao e impresso, tanto como matriz de encavo quan-
to como matriz de relevo, e segundo a ideia de rebatimento, de espelhamento, formando imagens
que elaboram oposies e semelhanas. A produo potica observada nas particularidades de
suas proposies: na conjugao de dois processos tcnicos distintos, na construo da imagem
em espelhamento, envolvendo a inverso e a reflexo, e na elaborao de elementos multiculturais.
This dissertation is a study of production has as starting point the feature dual of matrix plastic
(polystyrene), allowing to engrave and print, as well as how encavo matrix or woodcutting, and
second the idea of folding, mirroring, creating images that draw contrasts and similarities. The
poetic production is observed in the particularities of their propositions: the combination of two
distinct technical processes, in building the image mirroring, involving inversion and reflection,
and development of multicultural elements.
O artista um ser inserido em seu contexto. Seu mundo cotidiano influencia sua produ-
o, que constar, em alguma medida, de aspectos subjetivos, racionais, afetivos, psicolgicos,
comportamentais, sociais, culturais, polticos. Para Sandra Rey,
Os elementos diversos que formam a pessoa do artista, compe, portanto material ou ma-
tria para a elaborao de sua produo, num dilogo que pode ser mais ou menos evidente.
Ceclia Almeida Salles defende uma
Essa insatisfao movimenta a busca de soluo, envolvendo todos os campos que pos-
sam reverter o incmodo. Assim, questes tcnicas se misturam a movimentos filosficos, ou at
fsicos, na busca de respostas, e todas esto presentes no dirio.
Se o pesquisador acadmico, fundamentado em seus estudos e leitura, fala com proprie-
dade e neutralidade em diversos campos, em outros, que decorrem da experincia, da vivncia
dos momentos mgicos em que a obra de arte nasce e vive, tomando, muitas vezes, direes
que o autor nem imaginava, de o artista fala em um tom mais pessoal e ntimo, pois poesia im-
plica autoralidade, mas tambm, simplesmente enxergar.
captulo 1 1 olutpac
caminhos
captulo 1 caminhos 21 12
pesquisa
A pesquisa em arte, com nfase em Poticas Visuais, tem como objeto o processo de cria-
o do artista, com o artista-pesquisador orientando sua pesquisa a partir do processo de instau-
rao de seu trabalho plstico, a partir das questes tericas e poticas, suscitadas por sua pr-
tica (REY, 1996, p. 82). Abrange, portanto, no apenas questes relacionadas a procedimentos,
mdias e tcnicas, mas tambm conceitos, implicaes tericas e relaes com os processos de
outras obras e artistas. Para Rey, a pesquisa potica dentro do meio acadmico implica na consi-
derao da dimenso terica implcita na prxis do artista, articulando fazer artstico e produo
de conhecimento. Pressupe parmetros metodolgicos diferenciados da pesquisa sobre arte,
onde o objeto o produto final j constitudo. A pesquisa em arte uma modalidade especfica
de pesquisa com particularidades muito prprias ao seu prprio campo (Idem, p. 83).
A pesquisa em arte se fundamenta na poetica, um estudo da gnesis do poema, defendi-
do por Paul Valry, considerando as condutas que instauram a obra: "no o conjunto de efeitos
de uma obra percebida, nem a obra feita, nem a obra a se fazer (como projeto); a obra se fazen-
do." (Idem, p.83)
Se a poetica abrange, por um lado, a criao e a composio, o acaso, a imitao, a influ-
ncia do meio e da cultura, por outro lado, considera os materiais, meios e suportes de ao, as
tcnicas, os instrumentos e os procedimentos. Na pesquisa em arte, o artista tem, assim, o duplo
papel de autor e de testemunho.
captulo 1 caminhos 22 22
nicar de outras maneiras. Podemos expressar contedos subjetivos por meio de diversas ordena-
es de forma: dana, pintura, arquitetura, entre outras. Essas ordenaes so formas simblicas
que representam ordenaes interiores, processos afetivos e psquicos. Assim como a palavra
encerra diversos nveis de significao, a observao do desenvolvimento das ordenaes plsti-
cas presentes no processo de constituio da obra de arte revela os caminhos estticos e tericos
percorridos pelo artista em sua criao, seu pensamento criador. Mas se no texto da pesquisa,
se busca entender e organizar as instncias tericas presentes nesse pensamento criador, nas
imagens que o processo de ordenaes se torna visvel.
A metodologia de investigao terica da pesquisa em artes, com nfase em poticas
visuais, na busca do entendimento do processo de criao da obra de arte, implica a percepo
dos diversos contextos em que as escolhas do artista-pesquisador se fundamentam em suas
subjetividades. Se as ordenaes se fundam em percepes individuais de vida, em avaliaes
internas, a partir do contexto cultural e seus valores coletivos que o artista-pesquisador cons-
truir os valores pessoais. O estilo, por exemplo, abrange a maneira de pensar, de imaginar,
de sonhar, de sentir, de se comover, abrange a maneira de agir e reagir, a prpria maneira de o
homem vivenciar o consciente e as incurses do inconsciente () forma de cultura (OSTRO-
WER, 1987, p.102). Da mesma maneira que a escolha do estilo tem relao com valores presen-
tes na formao do artista-pesquisador, uma tcnica ou um material pode se apresentar mais
afeito aos seus temas e assuntos.
Sylvie Fortin prope o que chama de autoetnografia, na pesquisa do processo criativo,
pois nos d acesso ao mundo representado ou vivido pelo artista (2009, p.82) A etnografia
captulo 1 caminhos 24 42
o mtodo de coleta de dados utilizado pela antropologia que se baseia em contatos intersub-
jetivos, considerando a dimenso cultural. um sistema que
(prxima da autobiografia, dos relatrios sobre si, das histrias de vida, dos
relatos anedticos) se caracteriza por uma escrita do 'eu' que permite o ir e vir
entre a experincia pessoal e as dimenses culturais a fim de colocar uma resso-
nncia a parte interior e mais sensvel de si. (FORTIN, 2009, p.83)
Logo, trata-se de uma coleta de dados que privilegie no s a parte visvel da prtica,
mas tambm a parte invisvel, o que compreende pensamentos, valores e emoes presentes no
processo criador. "Os dados auto-etnogrficos, definidos como expresso da experincia pessoal,
aspiram a ultrapassar a aventura propriamente individual do sujeito" (Idem, p. 84)
Nesse sentido, os dados a serem coletados na pesquisa em artes incluem, no s as
imagens ou obras concludas, mas tambm os esboos, as correes, as anotaes de percur-
so, as conversas com outros artistas, ou mesmo pessoas do seu cotidiano que possam influir
em sua percepo do assunto envolvido em cada trabalho. E h a relao com leituras, filmes,
imagens, msicas, entre outras produes que possam ampliar ou redirecionar sua apreciao
das questes relacionadas dentro do trabalho. importante que todos esses elementos sejam
registrados em um dirio de produo, com descries pormenorizadas, mas tambm com
conexes e possibilidades imaginadas, caminhos que se mostrem produtivos ou no, acertos
e erros, acasos que se apresentam. Em todas essas possibilidades, descartadas ou concretiza-
captulo 1 caminhos 25 52
das, que a obra de arte se constitui, segundo um pensamento que construtivo e pessoal,
mas se forma no coletivo, em relao com todo o contexto em que o artista-pesquisador co-
lhe suas percepes e seus valores.
exceo das texturadas por diversas tcnicas) e linhas coloridas. A matriz de plstico apresen-
ta a peculiaridade de permitir impresses nos dois procedimentos, resultando em imagens
idnticas, mas invertidas em suas relaes de cor e linha.
27 72
Imagem 01
captulo 1 caminhos 28 82
Imagem 02
captulo 1 caminhos 30 03
foi identificada como uma gravura oriental. possvel que esse trnsito entre as duas culturas,
entre as influncias das duas visualidades que constituram meu olhar, tenha induzido minha
afinidade com os processos indiretos, caractersticos da gravura, com suas inverses laterais, de
modos e de cores, seus procedimentos invertidos, seus subterfgios, enfim.
O tema das imagens especulares abre campo para esses movimentos, pois visibiliza os
dois territrios e suas possibilidades de interlocuo. A estruturao da imagem final a partir
da mesma matriz, impressa por processos diferenciados, coloca o problema da distino dos
resultados finais, da interseco das reas, da soluo das reas limtrofes e da organizao de
sentido. No processo de impresso, a mesma matriz apresentar resultados diferentes, relativos
ao procedimento utilizado. Que elementos de similaridade e de distino se configuraro? Que
lgicas surgiro e tero continuidade nas diferentes experimentaes? Que relaes filosficas,
culturais, poticas, se revelaro das reflexes sobre os procedimentos e as imagens?
A pesquisa terica se fundamenta no dilogo com outras produes que se desenvol-
veram ou se desenvolvem contemporaneamente, em proximidade ou distanciamento com es-
ses conflitos. As reflexes processuais podem conduzir a questes tcnicas interessantes que
configurem visualmente ou teoricamente, para clarear certas posies, a aportar solues para
problemas enfrentados na prtica, conferir posies de artistas que apresentem solues seme-
lhantes s nossas (REY, 1996, p.88).
Em Redes da Criao Construo da obra de arte, Ceclia Almeida Salles analisa diferen-
tes processos de construo de obras de arte e, acompanhando esses percursos de criao, a
captulo 1 caminhos 33 33
partir dos documentos deixados pelos artistas: dirios, anotaes, esboos, rascunhos, maque-
tes, projetos, roteiros, copies, etc." (2006, p.13), no que chama de crtica de processo, identifica,
na relao entre esses registros e a obra entregue ao pblico, um pensamento em construo.
Para Salles,
que se colocam em concordncia com as oposies presentes nas percepes identitrias, nas
escolhas e acomodaes de vises de mundo que definem quem sou.
No dirio de ateli, procurando alinhavar a construo das imagens com as percepes
identitrias, registro e analiso as questes de partida e de chegada, divagaes e aprendizados,
novas perguntas que surgem. "A poetica leva em conta a constituio de significado a partir de
como a obra feita." (REY, 1996, p.90)
De incio, meu questionamento bsico sobre a pesquisa se concentrou em preocupaes
tcnicas a cerca das possibilidades de gravao e impresso nas matrizes de plstico mas, du-
rante o processo de produo, uma estruturao mais potica se insinuou, uma curiosidade que
compatilho com a personagem Alice, de Lewis Carrol (s/d, p. 14) "Est vendo a frestinha da
entrada do Fundo do Espelho, quando a gente deixa a porta da nossa sala bem aberta? muito
parecida com a nossa porta, mas do lado de l deve ser muito diferente. Oh!Kity, que beleza seria
se a gente pudesse entrar no Fundo do Espelho". Como esse mundo, to igual e to diferente?
Como minhas imagens recorrentes se comportam nessas situaes de oposio e reflexo?
Para prosseguir, devo fazer o caminho inverso e retomar algumas condies anteriores. Devo
relembrar o caminho que percorri at aqui: minha histria, meu contato com a gravura, minhas
primeiras gravuras, o amadurecimento de minha produo, explicitando alguns elementos invi-
sveis participantes do meu processo de criao.
captulo 2 2 olutpac
processos e materiais
captulo 2 processos e materiais 36 63
plicam outras tantas, pois mesmo que se busque a homogeneidade de semelhana na tiragem,
cada cpia apresenta suas peculiaridades, uma obra em si.
Se, na pintura, a iluso da arte simula um discurso direto e objetivo, na gravura, as diversas
aes indiretas permitem o tempo para pesquisa de sutilezas e possibilidades grficas que, como
num dilogo coloquial e banal, podem revelar grandes verdades intrnsecas e particulares.
O trabalho final da gravura resultado de um dilogo entre o artista e o material. A natu-
reza do material se impe, exigindo respostas correspondentes por parte do artista, no domnio
da tcnica e na aceitao de suas limitaes, segundo seu ntimo anseio criador, mas sempre
atento s circunstncias.
Iber Camargo sintetiza historicamente a origem dos processos principais da gravura,
que se resumem na gravao de relevos e de encavos, definindo onde a tinta ser deposita-
da para ser transferida para o papel. H dois procedimentos de gravura original: a gravura em
relevo e a gravura em cncavo (CAMARGO, 1992, p.11). A utilizao dos relevos mais antiga,
com estampas que datam de 1300, de matrizes de madeira (xilogravuras) e, posteriormente,
tambm de metal (cribl). Substituindo as iluminuras, desenhos feitos mo para ilustrar os
livros manuscritos, anteriores, a inveno da imprensa e seus tipos mveis utilizou, inicialmente,
a xilogravura como letras capitulares.
J o procedimento de sulcar o metal tem origem nos trabalhos de ourivesaria, em enta-
lhes decorativos em prata, com o buril, que eram entintados e imprimiam uma imagem que era
utilizada para acompanhamento do trabalho, uma cpia de estado, e conservao do molde do
captulo 2 processos e materiais 39 93
desenho. Esses sulcos eram preenchidos com um composto que resultaria num relevo escuro
sobre o fundo claro da prata; no consistiam ainda em gravuras, evidente, mas localizam a
origem do procedimento. ... a gravura em cncavo nasceu do buril, esta a tcnica mais antiga.
Os processos que usam cido vieram depois (Idem, p. 13). Depois da tcnica do buril, outros
procedimentos foram sendo desenvolvidos, como a gua-forte, construindo linhas mais fundas
e precisas pela ao de cidos; a policromia, utilizando mais de uma matriz; as manchas e grada-
es da gua-tinta, usando cidos; a maneira negra, com as luzes surgindo de um fundo escuro;
o verniz mole, que possibilita a impresso de texturas; os relevos em metal, e os processos com
acar e lavis.
A litografia foi descoberta por Aloys Senenfelder em 1796, e emprega um processo com-
pletamente diferente, de carter qumico, na oposio entre a tinta gordurosa e a gua, sobre
uma superfcie plana, para definir a imagem a ser impressa. A serigrafia, utilizada j h 3000 anos
antes de Cristo, uma tcnica de estamparia que utiliza uma tela de nylon com reas recortadas
por mtodo direto ou por sensibilizao fotogrfica, e a colagraph uma tcnica aditiva de tex-
turas e elementos diversos por meio de colas e resinas. Estes procedimentos foram incorporados
posteriormente ao rol das possibilidades artsticas contemporneas na gravura.
captulo 2 processos e materiais 40 04
Xilogravura
A mais antiga das tcnicas de gravao a xilogravura, que emprega uma matriz de ma-
deira, um bloco que pode ser de topo ou ao fio. As madeiras ao fio exigem cuidado especial de
trabalho, respeitando o sentido das fibras. A madeira retirada em p, ou de topo, possibilita a
construo de linhas sinuosas, transversalmente por entre as fibras. As madeiras mais firmes se
prestam a trabalhos mais detalhados, pois conservam o trao e a imagem ao passo que as ma-
deiras mais macias, pela ao da impresso, podem manifestar deformaes e mudanas.
Outros materiais podem ser utilizados como matriz, seguindo os mesmos procedimen-
tos, ou semelhantes: o linleo, alguns metais e plsticos, ditos polmeros.
A xilografia a linoleogravura e similares so feitas com instrumentos como o buril, as goi-
vas e os formes e facas, com os quais se escava a madeira, formando sulcos na matriz(FAJARDO,
SUSSEKIND E VALE, 1999, p.71). A superfcie recebe a tinta, o que definir a rea de cor, e as inci-
ses so feitas para construir linhas e texturas em no cor.
Um bom impressor busca tirar todas as cpias semelhantes. Mas existe tambm
a possibilidade de interferncias a cada cpia ou at mesmo a possibilidade de
se fazer uma nica cpia (FAJARDO, SUSSEKIND E VALE, 1999, p.77).
captulo 2 processos e materiais 42 24
A escolha dos papis tem relao com o detalhamento da imagem desejado. O papel
arroz um papel liso, que adere tinta e recebe com detalhamento os elementos da imagem.
Papis com textura permitiro que esses padres interfiram no desenho, ocasionando efeitos e
mesmo falhas. Papis com alta gramatura tambm apresentaro dificuldade em acomodarem-
-se aos relevos da matriz, interferindo e modificando o desenho. Estes ltimos podem ser ume-
decidos para retirada da camada superficial de goma, facilitando a absoro da tinta.
A xilogravura japonesa surgiu e se difundiu a partiu do perodo Edo, no sculo XVII, mas
influenciou a arte ocidental a partir de imagens presentes em folhas de papel arroz utilizados
por comerciantes de objetos laqueados, com o fim de acondicion-los para a viagem do Oriente
para a Europa, no sculos XIX e XX. Eram imagens de uma arte popular, isto , cenas de pessoas
comuns, em atividades corriqueiras, multiplicadas pela xilografia para consumo dessas mesmas
pessoas comuns, retratos do mundo flutuante, o Ukiyo-. As cenas referem-se a situaes rela-
cionadas ao cotidiano, considerado efmero, condio do ciclo terreno de nascimento, vida e
morte, para o budismo. Retratavam lutadores de sum, cortess, atores de teatro, trabalhadores
em seus afazeres e paisagens. A beleza dessas imagens encantou aos ocidentais que passaram
a colecion-las, principalmente entre os impressionistas e ps-impressionistas. Chamava a aten-
o, a maneira peculiar, no renascentista, de organizao do espao, tanto interior como ex-
terior, que os artistas japoneses praticavam, bem como o colorido intenso mas elegantemente
harmonioso. No processo de elaborao dessas xilogravuras, um desenho era concebido e cola-
do prancha de madeira cortada pelo topo, a matriz, onde suas formas e padres eram escava-
captulo 2 processos e materiais 43 34
das com esmero. As imagens policromticas usavam diversas pranchas uma para cada uma das
diversas cores. Utilizavam tinta base de gua, aplicada com pincel, e a impresso acontecia em
folhas de papel arroz, esfregando o baren, um instrumento confeccionado com fibras de bambu.
Gravura em Metal
A ponta seca a mais simples das tcnicas da gravura em metal. Consiste, basicamente,
em ferir a superfcie da matriz com uma ponta de metal, riscando-a. Esses arranhes formam
uma rebarba que confere-lhes uma aparncia aveludada e caracterstica ao trao.
O procedimento do talho-doce semelhante ponta-seca, mas utiliza o buril, um ins-
trumento de entalhe para realizar as linhas. A caracterstica de corte desse instrumento evita
as rebarbas, o que resulta em linhas claras e traos precisos. H o buril simples, que realiza uma
linha direta, e o raiado, que faz linhas paralelas e permite a combinao em tramas e texturas.
O crivo constitui uma tcnica semelhando aos procedimentos de relevo. Uma chapa de
metal malevel rebaixada por martelamento com uma ponta de metal em algumas reas.
A maneira negra uma tcnica que principia por preparar a superfce da matriz ferindo-
-a com um instrumento, o berceaux, que produz mltiplos pontos, configurando uma rea de
negro aveludado. A raspagem e polimento dessa matriz negra com os instrumentos adequados,
o raspador e o brunidor, abrem espaos suaves de luz, que acabam por formar a imagem; essa
tcnica exige persistncia e pacincia, pois todo o processo de construo da imagem deve ser
acompanhado com inmeras provas de estado para verificao da sutileza de luz nas sombras
obtida. chamada tcnica da maneira negra porque a imagem surge do preto para o branco, da
sombra para a luz.
Na gua-forte, as linhas so conseguidas atravs de um processo de isolamento da su-
perfcie da matriz com um verniz. Sobre essa superfcie isolada, as linhas so riscadas por uma
ponta arredondada, expondo o metal da matriz. Solues cidas so colocadas sobre a matriz,
captulo 2 processos e materiais 45 54
corroendo apenas as reas riscadas, expostas, da superfcie. Essas linhas caracterizam-se pela
nitidez, mesmo sendo finas e delicadas. A tcnica da gua-forte, em sua complexidade, insere di-
versas possibilidades de interferncia, no processo de criao da imagem: a preciso dos traos
da gua-forte possibilita sutilezas no domnio do desenho das linhas; o uso desse procedimento
implica no cuidado com o nvel de acidez da soluo, o tempo de exposio a ela, os modos de
aplicao; entre outros aspectos.
A tcnica da gua-tinta tem o objetivo de obter reas com diferentes tonalidades, numa
sequncia gradativa de sombras. As reas so isoladas e gravadas em diferentes perodos de
tempo, numa soluo de cido ntrico, o que define seu efeito suave e caracterstico.
A textura formada pelos pontos de breu derretido, isolada em reas e controladas para
a gravao cumulativa por minutos ou mesmo segundos, cria um efeito de tonalidades de luz e
sombra.
O verniz-mole consiste na aplicao de um verniz especial sobre a placa; um papel co-
locado sobre esse verniz e riscado com lpis, surgindo ento traos e linhas semelhantes aos do
lpis ou crayon. Objetos em relevo ou texturas tambm podem ser pressionados contra o verniz,
deixando nele suas marcas e transferindo suas caractersticas imagem.
captulo 2 processos e materiais 46 64
O professor Jos Csar Teatini de Souza Clmaco, em sua tese de doutoramento, Las
matrices de plastico para grabado y su estampacion, pela Universidad Complutense de Madrid,
U.C.M., Espanha, discorre sobre sua pesquisa de materiais, em que investiga os plsticos, ou
polmeros, como matrizes de gravura. Seu trabalho testou os sete tipos de plsticos mais fre-
quentemente encontrados no comrcio: o PVC, o PVC expandido, o poliestireno, o acrlico, o
policarbonato, o polipropileno e o polietileno. Em disciplinas da graduao, a tcnica da ponta
seca experimentada, inicialmente, em acetatos reaproveitados de chapas de exames de raio X,
por seu baixo custo, como preparao para os exerccios com matrizes em encavo tradicionais,
como as chapas de ferro e cobre. A investigao abrangente do professor Clmaco, sistematizou
captulo 2 processos e materiais 47 74
e abriu um campo extenso para experimentaes poticas pontuais, como a presente, onde
experimento apenas o poliestireno.
Na pesquisa potica em curso, o material plstico escolhido foi o poliestireno, por suas
caractersticas de receptividade s incises e sensibilidade a solventes diversos, bem como, pela
sua facilidade de obteno, no comrcio local.
O poliestireno um termoplstico rgido, com pouca flexibilidade, o que o torna susce-
tvel ao impacto e ao calor, amolecendo a baixas temperatura. transparente, incolor, inodoro,
no txico e muito sensvel a quase todos os solventes, com exceo do lcool. possvel en-
contr-lo em tubo, lmina, barra e espuma, e utilizado na fabricao de artigos para escritrio,
pequenos recipientes, colas plsticas, brinquedos, vasilhas no retornveis de alimentos, etc.
mrmore e carborundum podem ser agregados superfcie amolecida; outros materiais maio-
res, como tecidos, papis e outros fragmentos de plstico tm a possibilidade serem soldados
a essa superfcie; e ela, assim amolecida, se apresenta mais sensvel a ataques de instrumentos
contundentes no to incisivos, como escovas, pontas abauladas, etc.
A aplicao dos solventes acontece com a prancha na horizontal, utilizando-se um pin-
cel, para controle das reas e para no causar enfraquecimento e ondulaes, que podem ocor-
rer com a submerso das placas, como feito com placas de metal. As reas que no se pretende
atacar so isoladas com cola branca.
O solvente aplicado com um pincel macio, mas possvel que a textura se intensifique
com a esfregadura de um pincel duro. A tonalidade da mancha resultado, no da quantidade
de solvente, mas de sua potncia. Diferentes tons so conseguidos com o uso de diferentes sol-
ventes. Solventes comerciais comuns resultam em cinzas suaves e o thinner, um cinza mais forte
e, mesmo, um negro.
Para proteger dos solventes as reas que se quer brancas, ou para preservar
um trabalho anteriormente executado sobre a prancha, isto , para evitar que
o solvente destrua o trabalho anterior, h uma forma muito prtica e simples
trata-se de aplicar uma camada de cola branca sobre as reas. (Clmaco,
1995, p.38) .
vente (suave) utilizado na retirada da tinta no seja aplicado diretamente na matriz, mas seja
embebido em estopa ou trapo, antes. A aplicao de goma laca ou verniz de poliuretano fazem
a proteo da matriz.
O removedor, um produto utilizado para retirada de camadas de tinta antiga em super-
fcies diversas, tem uma ao intensa no poliestireno, resultando superfcies bastante speras,
que apresentam, na impresso, reas de cinzas e negros intensos. Apresenta-se pastoso, um
gel, que facilita, em termos, sua aplicao e controle, pois no escorre. Amolece a superfcie do
plstico em cerca de cinco minutos, possibilitando as diversas aes descritas anteriormente, e
secando novamente em meia hora. Essas superfcies, normalmente, apresentam diferenas de
nvel que se prestam bem impresso em oco e em relevo.
Para uma boa impresso, que reproduza os efeitos grficos construdos na matriz, ne-
cessria a escolha de um bom papel. Para Clmaco,
Primeiras Experincias
Analisando o contexto em que construi minha viso de mundo, escolhi minhas perspecti-
vas, percebo como o olhar tergiversante da gravura, com seus procedimentos indiretos se mostrou
a expresso perfeita para minha percepo de sentir-me japonesa/brasileira. Minhas primeiras
experincias com gravura tateavam o espao/tempo que me parecia incerto e indefinido, inserin-
do nele, pequenos elementos triviais do cotidiano (objetos, flores, chamins, etc) que me conferis-
sem uma certa segurana. So singelas afirmaes, tmidas ocupaes de espao
56 65
Imagem 03
captulo 2 processos e materiais 57 75
Michiko Okano, em sua tese Ma: Entre-espao da Comunicao no Japo, um estudo acer-
ca dos dilogos entre Oriente e Ocidente, defendida na Pontficia Universidade Catlica de So
Paulo, sob orientao da Profa. Dra. Cristhine Greiner, analisa esse termo que composto de
dois ideogramas, sendo que o primeiro significa voar, farfalhar, virar, por do avesso, subverter, e
o segundo, ver o significado, traduzir. Segundo Okano, o Ma faz parte do senso comum japons,
uma herana cultural, sendo um termo plurissignificante, que possui ora conotaes objetivas,
ora subjetivas (OKANO, 1983, p.14).
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captulo 2 processos e materiais 59 95
Sua pesquisa relaciona Ma ao espao vazio do zen budismo, potente em energia Ki,
relativo ao silncio e no-ao. Coloca-o, ainda, como ressonncia entre duas contrapartes:
"Chama-se Ma a um estado de franja constitudo quando dois elementos se associam. (...) uma
rea criada quando o elemento A se encontra em oposio com o B"(OKANNO, 1983, p.2).
Identifico ambos entendimentos em minhas referncias de trabalho, visvel nas gravuras
da produo anterior. um pequeno universo aracndeo que se desenvolve, indiferente ao tur-
bilho de angstias humanas que a cerca; ou a tnue fumaa que escapa da chamin, misturan-
do-se nvoa da manh chuvosa, mesclando as sensaes do ntimo da fornalha com a vastido
do cu. E continua norteando, de alguma maneira, minha produo atual, com matrizes de
poliestireno, pois eu continuo a ser eu.
Na graduao, havia experimentado o processo da ponta-seca em folhas de acetato, en-
fatizando a obteno de linhas borradas e reas de negro aveludado, caractersticas principais
dessa tcnica. Posteriormente, experimentei possibilidade de combinao mltipla de peque-
nas matrizes em composies distintas, imagens que no constituem uma tiragem, a partir da
homogeneidade, mas mantm a persistncia dos elementos recombinados.
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com a diversos aspectos do espao-tempo Ma, lgica intrnseca da cultura japonesa, de absor-
o e adaptao de aspectos dspares, analisada pela pesquisadora Okano.
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deslocamentos
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Percepes
A imigrao japonesa no Brasil tem como marco inicial a chegada do navio Kasato Maru,
em 1908, como resultado das negociaes iniciadas com o acordo de relaes diplomticas as-
sinado em 5 de novembro de 1895. A vinda dos imigrantes asiticos foi ajustada entre os dois
pases para suprir a mo de obra escassa, no Brasil, em razo da abolio dos escravos negros em
1888, embora contrariassse a opinio pblica que os considerava to inferiores e problemticos
quanto os negros, por isso, eram chamados "negros amarelos".
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Perteno terceira gerao de minha famlia no Brasil. Meus avs paternos, Kiyoji e Sachi
Gondo, chegaram ao Brasil em abril de 1930, a bordo do Kawachi-maru. Dentre seus oito filhos,
o terceiro, Masami Gondo, meu pai, contava onze anos de idade. J a famlia Tamura, chegou em
junho de 1932, com Keijiro e Mitsu, meus avs, e os filhos Yoshihiro, Mitsue, Aki e a caula Rii,
minha me, ento com seis anos de idade. Depois de algumas tentativas e experincias, as duas
famlias se encontravam fixadas na regio de Andradina, no noroeste do estado de So Paulo.
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Em 1943, Kiyoji Gondo resolve casar o filho Masami, ento com 25 anos, e realiza uma
pesquisa para encontra uma pretendente de qualidades entre as moas solteiras das famlias
locais. Decide-se pela jovem Rii Tamura, de 16 anos: munido de uma pequena fotografia do
filho, procura os pais dela e faz a proposta, que aceita. Meus pais se casam, enfim, e procuram
estabilizar-se na regio. Em 1949/50, j com trs filhos, tomam conhecimento de um projeto de
ocupao do interior brasileiro, no estado de Gois, municpio de Formosa, a Fazenda Boa Espe-
rana, levado a termo pelo ento deputado Hugo Borghi, bastante conhecido por ser aviador.
Na expectativa de uma vida melhor, decidem inscrever-se e tentar a sorte na promissora regio
onde, posteriormente, seria construda a nova capital federal. O projeto no teve o sucesso espe-
rado, o deputado no foi re-eleito, e a famlia Gondo buscou por um centro urbano prximo, j
com alguma estrutura, onde pudessem oferecer estudo aos jovens filhos: Goinia, a nova capital
de Gois, ento com cerca de 20 anos.
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Segundo a professora Ftima Alcdia Costa Mota, em Meia Volta ao Mundo: Imigarao
Japonesa em Gois, o fluxo de imigrantes nipnicos para a regio de Gois se deu principalmen-
te atravs da colnia do Cerrado, atual Nerpolis, na regio de Anpolis, e nos municpios ao lon-
go da estrada de ferro, por volta de 1929-30. Oriundos dos estados de Minas Gerais e So Paulo,
variando o grau de poupana acumulada por cada uma das famlias, custearam-nas prprias
despesas decorrentes da mudana para Gois e a instalao nas terras da colnia[sic] (ANBG e
MOTA, 2008, p.37). Aos que no contavam valor suficiente para adquirir as terras prprias, res-
tava a opo do arrendamento. Foi como a famlia Gondo iniciou sua trajetria na regio.
No entorno de Goinia, a famlia passou a viver em stios distantes da zona rural, mas pro-
curando manter, minimamente, o contato com outras famlias de origem japonesa, pela visita-
o mtua e pela frequncia associao cultural e esportiva local. Nesse perodo, a Associao
Nipo Brasileira de Gois funcionava na Rua R-12, no Setor Oeste, com um salo onde se realiza-
vam eventos como casamentos, formaturas, bailes, etc. e a prtica de tnis de mesa e jud. Pos-
teriormente, Masami Gondo, meu pai, chegou a compor o time de basebal da Associao. Esse
contato, entretanto, foi escasseando gradativamente, em funo das contingncias de estudo e
trabalho; proporcionalmente, as relaes com a comunidade brasileira aumentaram.
Quando nasci, em 1965, como stima filha de uma prole de nove, minha famlia j tinha
reduzido, consideravelmente, o contato com a comunidade japonesa de Goinia, e mesmo com
o restante da famlia, que continuaram morando em So Paulo, Rio de Janeiro e Paran. Esse
ambiente de formao me proporcionava pouqussimas relaes com outros japoneses que no
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a minha prpria famlia. Estudvamos e trabalhvamos com brasileiros; os vizinhos eram quase
todos brasileiros.
No fluxo da construo do sentimento de nacionalismo presente na Constituio de
1934, a Campanha Nacionalista de Getlio Vargas,somada a preconceitos em relao aos imi-
grantes japoneses por parte da populao brasileira da poca e enfatizada pela adeso do Japo
s foras do Eixo, imps diversas medidas de restrio, e mesmo sanes, a essa populao.
Entre tantas, a obrigatoriedade de uso de nome brasileiro: desse modo, Masami toma o nome
de Maurcio, e Rii, Helena; esses foram os nomes pelos quais foram conhecidos at o fim da vida.
Meus irmos e eu fomos registrados j com nomes brasileiros e japoneses. Gradativamente, dei-
xamos de ser chamados, mesmo em casa, pelos nomes japoneses e adotamos integralmente o
nome brasileiro. Com o tempo, mesmo entre ns, no utilizvamos mais a lngua japonesa, com
exceo das conversas com minha av e tios, que no dominavam o portugus. Minha identi-
dade se formava, assim, na vivncia interna de um modo de ser japons, com comportamentos,
valores e viso de mundo caractersticos, em confronto com o contexto externo, diferenciado,
das relaes gerais com os brasileiros. Era uma sensao de estranheza, desterro, exlio e ausn-
cia de identificao, portanto.
Se muitos imigrantes submetidos a essa condio se integram com alguma facilidade
ao novo ambiente aprendendo a comportar-se de modo semelhando ao grupo dominante, no
caso de orientais e negros, isso mais difcil, pois, em qualquer local onde estiverem, suas carac-
tersticas fsicas e culturais to distintas, reforaro a percepo de diferena e distanciamento
captulo 3 deslocamentos 74 47
do grupo, tanto mais encontrando uma disposio discriminatria nesse meio. A convivncia
com os semelhantes, dentro da colnia minimizaria essa percepo, fornecendo um lugar de
pertencimento e afirmao de sua subjetividade. Num cotidiano de pouco contato com japone-
ses, sem esse sentido de parecena, meu processo de adaptao acabou por criar uma condio
peculiar: entre os brasileiros, me sentia uma aliengena, e entre os descendentes de japoneses
tambm. No me identificava com o contexto japons nem com o brasileiro. Nem uma coisa
nem outra.
Se a percepo de oposies a marca do meu contexto social, o contexto familiar in-
terno no ficava muito distante disso. A famlia de meu pai, Gondo, tem origem na cidade de
Fukuoka-shi, capital da provncia de Fukuoka-shi, ao norte da meridional ilha de Kyushu, e os Ta-
mura so originrios de Fukushima-shi, capital da provncia de Fukushima-ken, nordeste da ilha
principal, Honshu. Desde pequena, ouvia comentrios recprocos sobre o sotaque e expresses
caipiras do povo do norte e do povo do sul. O sul do Japo apresenta um clima mais quente,
com raras ocorrncias de neve, ao contrrio da regio norte, onde neva grande parte do ano.
Assim como meu av, meu pai foi um segundo filho, o que, na organizao familiar japo-
nesa significa menores privilgios e cobranas, e que permitia algumas liberdades na escolha de
interesses para a autoformao: vov apreciava muito a leitura, compunha poemas, se vestia com
kimonos coloridos e floridos, tocava uma flauta de bambu (shakuhachi), e tinha fama de bomio,
na juventude. Quando decidiu migrar para o Brasil, j tinha uma famlia de mulher e oito filhos, e
trabalhava na contabilidade de uma mineradora de carvo. Meu pai, seguindo a afinidade paterna
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pelo estudo, apesar de s ter podido estudar at o sexto ano, tambm lia muito, e sabia aplicar in-
jeo, cortar cabelos, tirar (fotografava, revelava e copiava, usando um saco de revelao) fotogra-
fias, fazer tijolos, redes e partos, cavar cisternas, tratar e montar cavalo, e uma grande variedade
de atividades teis dentro das comunidades em que viveu. Estudava, em especial, sobre assuntos
que pudessem se tornar negcios promissores, em alguns dos quais, se aventurou: plantao de
pimentes, de morangos, de palmas-de-santa-rita, de sempre-vivas, de estrelitzas, de bambu co-
mestvel, de carioquinhas, de mudas de azalas (projetou e executou jardins, por algum tempo,
em Goinia), etc. Aos 45 anos, ele conheceu e aderiu seita japonesa Seicho-no-ie, da qual foi pa-
lestrante e orientador, por muitos anos, e foi marcante em minha formao.
Minha me era a caula de quatro, um homem e trs mulheres. De uma famlia tradicio-
nal e agrria de sua regio, seu av materno era um homem tradicional e austero, chegou a ser
escolhido prefeito da localidade. Minha av, sua me, casou-se com Keijiro Tamura, que havia
morado anteriormente na Manchria, e conta-se que tinha um temperamento calmo e pacato.
Em oposio ao carter visionrio e sonhador de meu pai, minha me foi pragmtica e organiza-
da na administrao de nossas finanas, com propsitos na sobrevivncia e formao dos nove
filhos, e superao dos reveses decorrentes dos consecutivos projetos de meu pai. Seus irmos
mais velhos possuiam a ndole tmida e pacata de meu av, nunca aprendendo, mesmo, a se
expressar corretamente em lngua portuguesa; a ela coube dar continuidade sagacidade e
praticidade de minha av.
Meu av materno faleceu em 1949, ainda em So Paulo, e devido perda recente e afi-
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nidade profunda entre me e filha, o grupo familiar restante seguiu junto para a regio central
do pas, quando de sua busca por novas condies de trabalho. Desde ento, pemaneceram jun-
tos, morando prximos ou mesmo na mesma casa. Essa situao me concedeu a oportunidade
de receber todo um repertrio de estrias, cantigas, superties e prticas populares do interior do
Japo, como Urashima Tar, Momotar-san, Mononoke no him, Fuji-sama, Oshoogatsu, Medaka
no gakkoo, origami, etc. Acredito que minha viso de mundo e meu repertrio visual se estruturou
a partir desse mundo imaginrio e sua poesia: dessas preocupaes infantis, suas narrativas sin-
gelas, seus personagens hbridos, seus pequenos objetos mgicos. Com frequncia, noite, sob
a luz de lamparina, ou depois, de fracas lmpadas eltricas, minha av nos entretinha com suas
encenaes das histrias tradicionais japonesas, misturando narrao, gestos e msicas.
O empenho de ambos, meu pai e minha me, em suas convices e prioridades acabaria
por estabelecer dois parmetros norteadores para nossas (dos filhos) escolhas, um mais idealista
e outro pragmtico. Tentamos, cada um de ns, filhos, corresponder a ambos. E foi assim que, no
perodo decisivo de prestar o vestibular, fiquei em dvida entre os cursos de engenharia eltrica
e artes visuais. Meu pai me incentivou dizendo que eu sempre poderia dar aulas de arte.
Identidade(s)
Segundo Stuart Hall (2006), essa condio de incerteza identitria prpria da moder-
nidade tardia, como decorrncia das transformaes ocorridas na sociedade, posteriormen-
captulo 3 deslocamentos 77 77
Para Serge Gruzinski "cada criatura dotada de uma srie de identidades, ou provida de refe-
rncias mais ou menos estveis, que ela ativa sucessiva ou simultaneamente, dependendo dos
contextos, (2001, p.53) submentendo-se ou recusando as regras, interiorizando valores, a pes-
soa cria uma histria pessoal. Socialmente, o indivduo no para de enfrentar uma pliade de
interlocutores, eles mesmo dotados de identidades plurais.(Idem)
Hall afirma que as sociedades da modernidade tardia, ao invs de um nico centro de
poder, se caracterizam pela existncia de vrios centros organizadores, gerando deslocamentos,
em diversos sentidos e direes. Essa caracterizao pela diferena, pelas divises e antagonis-
mos, resultaria na produo de mltiplas posies de sujeito. A complexidade desse novo en-
tendimento de identidade implica posies provisrias e instveis, mas que abrem possibilida-
des de articulao antes impossveis. Entretanto, na relao entre o indivduo e o coletivo social,
surge a ideia de multido, e tambm de impessoalidade, de anonimidade, de alienao.
Com sua nfase nos processos inconscientes levada a termo por Sigmund Freud e seus
sucessores, a psicologia tambm contribui para o descentramento do sujeito e da identidade.
Os processos de formao da personalidade como instncia psquica se do, predominante-
mente nas experincias inconscientes, atravs de entidades que configurem a ideia de outro e,
consequentemente, de si mesmo.
tuais permitiam a iluso de coeso e unicidade, numa identidade, tanto pessoal como coletiva.
Para Hall, toda identidade tem, sua margem, um excesso, mas, tambm, toda identidade
tem necessidade daquilo que lhe falta mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro
silenciado e inarticulado. (2000, p.110) Os contextos multiculturais que caracterizam a contem-
poraneidade abrem campo para configuraes e reconfiguraes identitrias que se revelam
especialmente na arte, na moda e nos meios de comunicao. Na anlise do processo de produ-
o de arte de um indivduo que se formou nessas conjunturas, essas instncias podem fornecer
indcios sobre os modos de articulao dos elementos afetivos, estticos e materiais que confor-
mam essa produo.
Em O crisntemo e a espada, a autora Ruth Benedict analisa, entre outras, a caracterstica
de contradio, presente na cultura japonesa. O livro foi escrito em 1944, sob encomenda do
governo americano, que desejava conhecer melhor a cultura desse opositor to diferente e sur-
preendente, com o qual teria que lidar intimamente, no perodo psguerra. Em sua introduo,
a autora j esclarece que nenhuma afirmao sobre os japoneses poderia ser dita sem um acrs-
cimo iniciado por mas tambm: de uma cortesia nunca vista, mas tambm, insolentes e
autoritrios; uma incomparvel rigidez de conduta, mas se adaptam prontamente a inovaes
extremas. Por si s, essa caracterstica confere complexidade a essa cultura e oferece possibili-
dades de estudos profundos relativos s novas configuraes que caracterizam os estudos cul-
turais atuais. A esse primeiro referencial familiar, somado o contexto social externo de um pas
jovem, um estado em pleno processo de ocupao, e cidade recm fundada e povoada por
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Imagens em Reflexo
olhar. Para o socialismo cientfico, as ideologias perpassam e compem esse olhar, como con-
cepes falsas sobre si mesmos, sobre o que so e o que devem ser, uma falsa conscincia. Essa
falsa conscincia constituiria sua realidade, passvel de transformao, contudo, pela mudanas
de organizao corporal e de relao com o resto da natureza. As transformaes sugeridas pelo
marxismo, como superao de realidades (ou percepes) indesejadas, se fundamentam no
exerccio da vontade a partir de condies mais conscientes. So desenvolvimentos ao mesmo
tempo individuais e coletivos.
As dimenses pessoais, individuais e coletivas passam a se opor, em muitos momentos,
trazendo questes mais complexas sobre a percepo que temos das imagens devolvidas pelos
diversos espelhos em que nos baseamos para enxergar as realidades com as quais temos que
lidar. Se, num sentido geral, o verbo identificar coincide com o sentido que temos do conheci-
mento, a ideia da identidade se impe como afirmao do poder. Nossas identificaes cons-
troem posies nesse mundo, constituindo nossa sobrevivncia e vitria, ou no. No h uma
essncia a ser aprendida, compreendida, mas a ser construda. A linguagem se revela no campo
maior da construo das identidades.
Uma das dificuldades em abordar as imagens espelhadas, sua ambiguidade entre a
verdade invertida e a iluso. Na aparente naturalidade com que fitamos a imagem que o espelho
nos devolve, processos de adequao ntima da percepo de mundo se configuram: condicio-
namentos, noes e julgamentos. um processo de busca de equilbrio perceptual, onde con-
frontamos a confiana e a desconfiana no que enxergamos, pois apesar de se constituir uma
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pois a imagem desfocada de Jacobina s toma nitidez quando este se encontra vestido com a
farda de sua patente, h a escolha por uma de suas almas. No livro Primeiras Estrias h um
conto O espelho, onde Guimares Rosa (1998, p.67) analisa a identidade a partir das imagens
devolvidas pelo espelho, num processo que vai descascando as iluses com que o homem se
reconhece e se constitui como real.
Se na alegoria contida no Mito da Caverna, Plato (2000, p.263) localiza nossas limitaes
sobre o conhecimento das coisas em condicionamentos a cerca de ns mesmos, tambm nos
convida a superar essas limitaes pela liberdade imaginativa. A caminhada do homem pela su-
perao de suas limitaes conceituais tem deslocado a parede da caverna para diversos outros
anteparos projetivos e reflexivos, na comparao com o ato de mirar indiretamente, atravs de
um espelho, o conhecimento ainda inacessvel. Talvez, nossa mente no consiga lidar objetiva-
mente com alguns conhecimentos antes de abord-los, indiretamente, em sucessivas aproxima-
es, como a grgona Medusa, que Perseu s pode enfrentar atravs de sua imagem refletida
num espelho. Esse mundo nos conduz por caminhos que, muitas vezes, parece invertido: como
nos impulsos iniciais de Alice, em sua aventura dentro do espelho, quanto mais tenta se aproxi-
mar de um objeto, mais longe se encontra.
Um espelho uma superfcie muito lisa que permite alto ndice de reflexo da luz que in-
cide sobre ele. Num espelho comum, nossa imagem se apresenta com mesma forma e tamanho;
ela parece estar mesma distncia que ns, mas atrs do espelho. Contudo, a experincia de
percepo da imagem refletida se deu, anteriormente, a partir da superfcie da gua tranquila, o
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que inspirou a fabricao dos primeiros artefatos de reflexo. O espelho convencional moderno,
de forma geral, consiste em uma folha de vidro sobreposta a uma fina camada de fundo met-
lico. Antes disso, os espelhos eram fragmentos de rocha ou metal planos e polidos. Entretanto,
um campons no podia pagar por isso, se quisesse ver seu reflexo, tinha de procurar o lago
mais prximo.
Como objetos raros e caros, os espelhos eram ligados decorao e vaidade das classes
ricas. Racionalmente, construmos uma funo objetiva para os espelhos: perceber a aparncia
de nossa imagem. Mas a percepo no um fenmeno objetivo, envolvendo toda uma cons-
truo psicolgica e cultural. O espelho sempre esteve associado ideia de magia e mistrio, e
posteriormente, cincia.
Ainda hoje, nossa reao ao nosso reflexo est distante de ser objetiva e previsvel.
Experimentos tm demonstrado que as pessoas apresentam dificuldade em antecipar o mo-
vimento e avaliar corretamente as dimenses de seus reflexos. Os espelhos ressoam profunda-
mente na psiqu humana, mas no estamos intuitivamente preparados, ainda, para lidar com
nossos reflexos. Podendo representar verdade e iluso ao mesmo tempo, os reflexos integram
a ideia de poder nos mostrar como somos, nosso desconhecido mundo ntimo, e, ainda, suge-
rem outros mundos a explorar por detrs do espelho.
Nossa literatura est repleta de espelhos mgicos: do mito de Narciso, apaixonado por
sua prpria imagem nas guas de um lago, ao orculo especular da rainha da Branca de Neve
e passagem de Alice para o outro lado do espelho de sua sala. A mitologia chinesa conta
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de um Reino do Espelho, de onde as criaturas acordaro para guerrear com nosso mundo.
Segundo a lenda, podemos antever o acordar desse mundo nos estranhos movimentos que
vemos nos cantos dos olhos quando olhamos no espelho.
Da ligao entre espelhos e o conceito de alma, temos diversas supersties como a no
reflexo dos vampiros, seres sem alma; os sete anos de azar dos que quebram um espelho; o
perigo de bebs tenros e parturientes olharem em espelhos, por exemplo. No ritual fnebre
judaico, os espelhos so cobertos em respeito ao morto; para outros, um espelho pode prender
a alma que est morrendo, devendo ser cobertos, se algum est prximo de morrer.
Para a psicologia, atravs da experincia com o espelho que fazemos nossa ligao com
nosso corpo, reconhecendo-lhe os limites e descobrindo-nos como seres individualizados. For-
mamos nossa ideia de eu com base em identificaes com as devolues daqueles com quem
convivemos e do controle corporal desse outro no espelho que seria nosso esboo de ego, uma
matriz imaginria do eu. Essa identificao conduz a um reconhecimento que nos constitui
como eu, mas constitui tambm uma alienao da totalidade, que consistia na indiferenciao.
A busca pelo conhecimento de uma essncia do ser fundamenta o preceito antigo Co-
nhece-te a ti mesmo, que o mito de Narciso torna complexo, a partir de sua iluso de paixo,
seu enlevamento com sua prpria imagem refletida no lago. Para Narciso, sua imagem no
trazia conhecimento, descoberta, crescimento, mas sim encantamento com uma percepo
equivocada desse outro invertido, conduzindo-o morte. A conscincia da imagem refletida
se torna mais complexa tendo em vista a certeza de que nosso olhar no neutro, mas cons-
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O espelho um ser em oposio. E como tal que funciona. um ser que as-
sumiu uma posio que oposio: uma posio negativa. um ser que nega.
por isto que reflete. No permite que aquilo que sobre ele incide passe por
ele. Refletir negar, e isto a sua estrutura. (Idem)
negao, e como se distingue do mundo que o cerca. Esta a resposta que articula contra o
mundo que o cerca. E pode faz-lo graas ao nada que o fundamenta. () O nada o nitrato de
prata que faz do homem o que ele : espelho. (Idem) O autor identifica duas maneiras de virar o
espelho: a anlise formal do pensamento, que conduz inexoravelmente a uma tautologia, isto ,
a um no-pensamento; e, tambm, uma espcie de fenomenologia, um mtodo que desvende
a origem potica do pensamento.
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As incises de buril simples no desenho da figura, e de buril raiado, nos grafismos do fun-
do, visibilizam mais essa oposio, a inverso que os dois processos de impresso contrapem:
a rvore de linhas pretas sobre fundo branco e a rvore branca sobre fundo preto. Aqui nasce
uma dvida sobre qual imagem a regio superior e qual a inferior. Na dvida, esto lado a
lado. Mas qual fica esquerda e qual direita? Que critrios posso utilizar para fazer essas esco-
lhas? Qual a hierarquia dessas localizaes? Que sistema eu poderia escolher e estabelecer para
organizar internamente essas imagens? Talvez um critrio simblico, talvez um esttico, ou um
afetivo De onde vm tantas dvidas? uma indeciso, mesmo, ou apenas a tenso de ter de
justificar a escolha? A quantidade de decises que protelo dizem, principalmente, do tamanho
de minha ambivalncia que perdura.
As rvores crescem para baixo (em raiz) a mesma dimenso da sua copa. Imaginei, as-
sim, a contraparte da imagem anterior como o espelhamento da raiz. Mergulhando mais ainda
na ideia dos processos indiretos, utilizei o removedor de tinta para sensibilizar a superfcie do
poliestireno, e golpeei-a com uma escova dura, buscando produzir uma textura de fundo seme-
lhante ao efeito da gua-tinta. S ento, sobre esse fundo, desenhei e gravei a imagem da raiz
utilizando um buril simples.
Na impresso, ambos os processos resultaram em fundos bastante escuros, por isso, re-
solvi diferenciar os tons, usando tinta spia contaminada com preto, na impresso em encavo, e
somente tinta preta, na em relevo. A diferenciao maior se d nas linhas radiculares, que apre-
sentam a presena da tinta (preta), no processo em encavo, e sua ausncia (branca), em relevo.
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Imagem 18
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Curiosamente, as manchas que se formaram nas sombras, como as razes que se desen-
volvem subterraneamente, sem contato com a luz, se mantiveram nessa sombria condio, em
ambos os procedimentos de impresso. As imagens especulares devem se contrapor, mas con-
servar semelhana suficiente para perpetuar a iluso da similaridade. Frequentemente, a chave
para distinguir a realidade de sua imagem refletida est na conscincia que temos das estrat-
gias de administrao dessa iluso. O que caracteriza uma imagem virtual? Com base na ideia
da imagem dentro do espelho como espao virtual, Waltrcio Caldas, em sua exposio Hori-
zontes, de 2008/2009, na Fundao Calouste Gulbenkian, em Lisboa, dispe objetos singelos,
pedras, letras grafadas, frutas e interfere no espao onde repousam esses objetos, com placas
de vidro, estruturas metlicas, fundos de cor, etc., alterando-o, criando virtualidades induzidas
que remetem especularidade.
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Imagem 19 Imagem 20
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Imagem 21
captulo 4 gravando, imprimindo e refletindo 106 601
Constru uma terceira gravura combinando as duas matrizes anteriores: copa e raiz. Di-
vidi as duas matrizes ao meio e combinei-as com base nos dois processos de impresso, organi-
zando uma composio com quatro quadrantes. Em princpio, com esse artifcio, multipliquei as
regies fronteirias, aumentando os pontos de conflito. Entretanto, a fragmentao da compo-
sio relativizou as relaes entre as partes, possibilitando uma abordagem mais ldica, menos
incisiva. Em Reflexos de sonhos no sonho de outro espelho (Estudo sobre Tiradentes de Pedro Am-
rico), de 1998, Adriana Varejo joga com a fragmentao, a imagem virtual e a repetio. Em seu
estdio, pintado de preto, dispe modelos em tamanho real dos fragmentos de corpo pintados
por Pedro Amrico em seu trabalho Tiradentes esquartejado, e os fotografa a partir de seus re-
flexos em espelhos de diversos tamanhos dispostos nas paredes. Essas fotografias serviram de
modelo para telas da mesma dimenso dos espelhos que os substituram nas paredes em uma
instalao com as paredes pintadas de branco.
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Imagem 22 Imagem 23
captulo 4 gravando, imprimindo e refletindo 108 801
Imagem 24
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posio final da imagem, entre uma composio vertical ou horizontal. Na gravura seguinte,
experimentei a horizontalidade justapondo a matriz no sentido lateral e, por acaso, cheguei
forma quadrangular. A composio poderia continuar indefinidamente, em linha, invertendo e
modulando a matriz, mas na simetria precisa da forma quadrangular encontrei a soluo com-
positiva que procurava, o que resultou no adiamento da deciso pela localizao da assinatura.
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Imagem 29
captulo 4 gravando, imprimindo e refletindo 115 511
Imagem 30
captulo 4 gravando, imprimindo e refletindo 117 711
Neste momento, ficou muito claro que a questo esttica se sobreps representao.
A harmonia compositiva, a organizao dos espaos, as equivalncias e oposies das massas
e linhas, so elementos que respondem a uma necessidade interior de ordem, necessidade
que se tornou o aspecto fundamental para as escolhas e decises. Ser que esse senso de
ordem tem origem em minha ascendncia cultural oriental ou na influncia das visualidades
regionais? Muito provavelmente, uma singular mistura das duas. Como em cada ato nosso,
no exerc-lo, no compreend-lo e no compreender-nos dentro dele, transparece a projeo
de nossa ordem interior(OSTROWER, 1987, p.9), analisar meus modos de perceber o mundo
me aproxima do entendimento de meus processos de criao.
At ento, havia trabalhado pelo procedimento tradicional de realizar a impresso da
matriz pelo processo em encavo, que implica utilizar papel umedecido, em uma etapa e reali-
zar a impresso como relevo, posteriormente. Essa maneira de trabalhar apresenta o inconve-
niente de, pela diferena de umidade de papel, resultar em imagens com dimenses diferen-
tes, em cada etapa. No primeiro, o papel est molhado e a imagem impressa; quando o papel
seca, a imagem encolhe; na segunda impresso, a matriz j no coincide com a dimenso
encolhida da imagem. Por isso, resolvi por realizar as duas impresses ao mesmo momento,
cobrindo o papel com folhas de jornal midas, para mant-lo umedecido para a segunda im-
presso. Em geral, os processos de impresso de uma gravura so trabalhosos, pois envolvem
a tinta grfica que gordurosa, aderindo com facilidade nos instrumentos, superfcies e tudo
o mais que alcanar, e papel. O cuidado com a limpeza constante em todo o processo, e a
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limpeza de todos os materiais, ao final, deve ser criteriosa. O procedimento alternativo implica
uma preparao ainda mais complexa, j que compe dois espaos de impresso, com todo
aparato relativo a cada tcnica, uma verdadeira linha de montagem, um exerccio de con-
centrao e disciplina constantes, para no confundir e misturar os processos. Com o trabalho
multiplicado, a ateno foi exigida ao extremo.
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Nessa nova estruturao compositiva, as configuraes das metades opostas abrem campo para
experimentaes to amplas que passo a trabalhar com quatro matrizes, ao mesmo tempo: duas
retangulares e duas triangulares. Com cada matriz, fao uma tiragem contrapondo a metade
impressa como matriz de encavo com a outra, impressa como relevo. Em seguida, experimento
justapor as duas matrizes retangulares entre si, e as triangulares, tambm. Formo imagens jus-
tapondo os processos iguais e os diferentes, resultando em quatro possibilidades: relevo/rele-
vo, encavo/encavo, relevo/encavo e encavo/relevo. Muitas das imagens apresentam diferena
muito sutil, com mais semelhanas que diferenas. Dispostas distncia, na parede, poderiam
passar por cpias de uma mesma tiragem. No exame cuidadoso, cada distino vai se revelando,
na confuso que a oposio das imagens espelhadas cria, to bem, na nossa percepo. Durante
o processo de impresso, mesmo com mais de vinte anos de experincia com gravura, cheguei
a perder algumas provas por me confundir e imprimir a matriz ao contrrio.
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Partindo das proposies poticas que as oposies e reflexes presentes em uma ima-
gem sugeriam, iniciei uma caminhada de estudo e descobertas tendo como campo de explo-
rao, um material novo, o poliestireno. Apesar de partir dos procedimentos tradicionais que,
destarte, domino, esse material novo colocou-me num ponto de partida, pois me deparei com
uma srie de adaptaes, dificuldades materiais e conceituais, especficos de sua natureza e situ-
ao. Da dificuldade em harmonizar a regio de fronteira entre as reas distintas, passei neces-
sidade de visibilizao dos traos delicados, que o material me permitia e o tema me solicitava.
Para tanto, tive de abrir mo dos atraentes papis artesanais texturados que desejava utilizar, e
buscar uma superfcie mais simples e lisa, que recebesse com respeito as linhas e texturas que
foram surgindo nas composies. Definido o suporte adequado, a adaptao estratgica dos
processos de impresso simultnea exigiu-me toda a ateno na administrao de procedimen-
tos e cuidados bsicos multiplicados.
Chegamos, assim, Clia Gondo e matriz de poliestireno, a um bom termo, ao fim desse
perodo, mas num incio de dilogos. A aproximao que comeou por minha afinidade com a
versatilidade do material desdobrou-se em imagens que falam dessa nossa qualidade comum.
Aps vencer uma srie de barreiras, nossa concordncia surgiu no reconhecimento de alguns de
nossos limites e possibilidades. As gravuras finais desse perodo vieram como um jorro, aos bor-
botes, como a confirmao de uma presena, um sim caloroso. O processo criativo dinmico,
quando se configura algo e se define, surgem novas alternativas (OSTROWER, 1987, p.26). Na
resoluo dos problemas tcnicos que foram surgindo, uma organizao se sistematizou, abrin-
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POST SCRIPTUM
ano de produo e a assinatura do autor. Se o processo envolveu mais de uma pessoa, no caso
da impresso por um profissional, isso pode ser informado, tambm. Quando a cpia no com-
pe uma tiragem, sua condio diferenciada identificada: prova de estado, prova do artista,
entre outros. Todas essas informaes, incluindo a assinatura, so feitas lpis.
Desde as gravuras iniciais da pesquisa, tive dificuldades em concretizar essa etapa e assi-
nar cada cpia, no me decidia pelo local adequado para tanto, em funo da dvida em definir
uma posio final para a imagem. Adiei a deciso o quanto pude, ou seja, at o final. Por esse
motivo, nenhuma das imagens de gravuras produzidas est assinada ou identificada.
Em razo dessa dificuldade perenal, e por uma das gravuras no configurar uma tira-
gem, visto ter sido produzida pelo processo da matriz perdida, decidi fugir a essa conveno e
concebi identificar as gravuras atravs de um carimbo com minhas iniciais dispostas segundo a
estrutura compositiva quadrangular a que cheguei, ao final deste processo.
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Para Sardelich (2006), a relevncia dos estudos em cultura visual no se resume na abor-
dagem mais ampla das imagens da atualidade, suas representaes e ideologias, mas na per-
cepo de ns mesmos, na relao com essas imagens. Na pesquisa potica em que procurei
analisar meu processo de criao em gravura partindo de algumas limitaes conceituais e ma-
teriais: matrizes de plstico em oposio especular de procedimentos de gravao e impresso,
encavo e relevo, quero entender como concebo e organizo essas imagens a partir de uma viso
de mundo particular. Quando repito a pergunta de Alice, diante do espelho: Como seriam as
coisas, dentro do espelho?, debruo-me sobre mim mesma, minha trajetria pessoal e artstica.
Desde o incio, minha relao com a gravura foi carregada de uma emoo que, depois,
entendi em Dewey (2010) como emoo esttica. E ele quem afirma que a expresso do eu
em e atravs de um meio, constituindo uma obra de arte, em si uma interao prolongada de
algo em que ambos adquirem uma forma e uma ordem que de incio no possuam. (p.153)
Minhas imagens recorrentes, assim como minhas memrias pessoais e artsticas, no decorrer da
pesquisa, cresceram em leveza e conscincia.
Elaborando essas imagens, escrevendo sobre o processo, percebi que oposio e refle-
xo, similaridade e distino, japoneses e brasileiros, sonhadores ou pragmticos, eu e o outro,
somos apenas configuraes, carregando suas belezas e inconsistncias. Seguindo esse cami-
nho, enxerguei a sabedoria da artista Ostrower que j percorreu tantos caminhos: ao seguir
certos rumos a fim de configurar uma matria, o prprio homem com isso se reconfigura, pois
em todas as matrias com que o homem lida se far sentir sua ao simblica (1987, p.51) Con-
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tudo a afinidade com a gravura revela, tambm, minha necessidade de um tempo de gestao
mais lento, com a matria e com as ideias, que com outras mdias. E um tempo, no de intelec-
tualizao e meditao, mas de elaborao, de atividade fsica imersa nas questes envolvidas:
lixando as pranchas, ferindo as superfcies, esfregando e limpando tinta, rodando a prensa
Meu pai e minha me concordavam em um ponto: se pensa melhor, trabalhando.
Acredito que uma das qualidades da gravura, principalmente nesses tempos de profuso
de imagens fugidias, mediadas eletronicamente, esse olhar de proximidade, de intimidade.
Uma gravura no imagem para ser vista de longe, como uma paisagem, ela pede contato e
tempo, exige uma aproximao simptica que beira a cumplicidade. A gravura nos solicita uma
atitude de degustao que se ope ao nosso padro atual de alimentao fast-food. Nascendo
de processos trabalhosos e intrincados, a gravura nos convida a recriar sua imagem na aprecia-
o pausada, atentos s suas sutilezas. Segundo Ostrower, na matria formada, se vislumbra
a figura de um homem que responde ele fala sobre si, sobre sua vida, sobre seus valores de
viver. (Idem, p.53) Essa produo visibiliza minha afinidade com esse espao/tempo que pro-
cura no se contaminar com a urgncia reinante, para que os pequenos detalhes possam ser
percebidos. A autora fala de uma identificao do homem com a matria, nos processos de cria-
o, onde formando a matria, ordenando-a, configurando-a, dominando-a, tambm o homem
vem a se ordenar interiormente e dominar-se.(Idem) Acrescento, assim, que a identificao se
aplica, tambm, aos modos de relacionar com o objeto artstico.
Talvez, a necessidade de uma matria mais resistente, de um tempo mais lento, de ima-
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gem, mas, no contexto dessa produo e de suas reflexes, foi uma imagem muito significativa.
Uma parte da composio no se submeteu ordenao rgida da simetria e preferiu realizar
um delicado giro, um alegre passo de bal, como uma despretensiosa gargalhada infantil Foi
to inslito que resolvi acompanhar sua lgica e finalizei o processo de impresso ordenando as
partes com liberdade.
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Fayga Ostrower localiza o artista criador, todo indivduo vivente, imerso num contexto
coletivo que o influencia e forma, mas, tambm, a partir e sobre o qual ele pode agir. Na mul-
tiplicidade do contexto contemporneo, onde somos solicitados por diversas instncias e nos
construmos na administrao dessas diferentes identidades, a estratgia da movimentao,
do trnsito entre as diversas mscaras e verdades, pode ser a brecha para a nossa interao
consciente e ao sobre o mundo. O indivduo pode descobrir no real, novas realidades, cujos
horizontes novos encerram a proposta da requalificao dos valores culturais. (Idem, p.103) Se
no desenvolvimento geral do ser humano, podemos perceber a conscincia de si e do mundo
elaborando e melhorando esses modos de relao com sua prpria trajetria, e a chamamos
sabedoria, na produo artstica, o processo semelhante, dessa forma, poderamos vislumbrar
a aproximao de uma maturidade?
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