A Furia Do Assassino - Robin Hobb

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Ficha Tcnica

Robin Hobb 1997


Publicado originalmente no Reino Unido pela
HarperCollins Publishers em 1997
Todos os direitos reservados.
Verso brasileira Texto Editores Ltda., 2014
Ttulo original: Ther Farseer: Assassins Quest

Preparao de texto: Gabriel Oliva Brum


Reviso: Simone Zac
Capa: Rico Bacellar
Ilustrao de capa: Marc Simonetti

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)


Anglica Ilacqua CRB-8/7057
Hobb, Robin
A fria do assassino / Robin Hobb; traduo de Jorge Candeias. So
Paulo: LeYa, 2014.
(Saga do Assassino, v. 3)
ISBN 9788544101087
Ttulo original: Ther Farseer: Assassins Quest
1. Literatura americana 2. Fico 3. Fantasia I. Ttulo II. Candeias, Jorge
14-0693 CDD813
ndices para catlogo sistemtico:
1. Literatura americana

2014
Texto Editores Ltda.
Uma editora do Grupo LeYa
Rua Desembargador Paulo Passalqua, 86
01248-010 Pacaembu So Paulo SP
www.leya.com.br
Para a muito real Kat Ogden

A qual ameaou, numa idade precoce, crescer e tornar-


se uma

danarina de sapateado, esgrimista, judoca, estrela de


cinema,
arqueloga e presidente dos Estados Unidos.

E est chegando assustadoramente perto do fim da lista.


Nunca confundam o filme com o livro.
NOTA DO EDITOR

Uma das regras bsicas da traduo diz que nomes


e topnimos no devem ser traduzidos. Entretanto,
conforme explicado no incio da histria, os nomes
na Saga do Assassino no so aleatrios, mas
atribuem caractersticas aos personagens. Assim,
optamos por traduzi-los a fim de evidenciar essas
caractersticas. Fitz o nico personagem que teve
o nome original mantido, visto que no h
correspondente em portugus.
PRLOGO

Os Esquecidos

Acordo todas as manhs com tinta nas mos. Por


vezes estou estatelado, de bruos, sobre a minha
mesa de trabalho, no meio de uma confuso de
pergaminhos e papis. O meu criado, quando
entra com a bandeja, pode se atrever a me
repreender por no ter ido para a cama na noite
anterior. Mas s vezes olha para a minha cara e
no ousa proferir palavra. No tento explicar
por que ajo como ajo. No um segredo que seja
possvel entregar a um jovem; algo que ele ter
de conquistar e aprender sozinho.
Um homem tem de ter um objetivo na vida.
Agora conheo este fato, mas precisei da
primeira vintena de anos da minha vida para
aprend-lo. Nisso, julgo que dificilmente serei
nico. Mesmo assim, uma lio que, uma vez
aprendida, ficou comigo. De modo que, tendo
pouco que me ocupe nos dias que correm, alm
da dor, procurei um propsito para mim.
Debrucei-me sobre uma tarefa que tanto a Dama
Pacincia como o Escriba Penacarrio
defenderam h tantos anos. Dei incio a estas
pginas num esforo para escrever uma histria
coerente dos Seis Ducados. Mas achei difcil
manter a mente fixa num nico tema durante
muito tempo, e por isso me distraio com tratados
menores, com as minhas teorias sobre a magia,
com observaes sobre estruturas polticas, e
com reflexes sobre outras culturas. Quando o
desconforto est no auge e no consigo ordenar
suficientemente bem os meus pensamentos para
anot-los, trabalho em tradues, ou tento fazer
um registro legvel de documentos mais antigos.
Ocupo as mos na esperana de distrair a mente.
A escrita me serve como a criao de mapas
serviu em tempos Veracidade. O detalhe do
trabalho e a concentrao necessria so quase
suficientes para me levar a esquecer tanto os
anseios do vcio, como as dores residuais de ter
em tempos cedido a ele. Um homem pode se
perder em tal trabalho, e se esquecer da sua
pessoa. Pode chegar cada vez mais fundo, e
encontrar muitas recordaes dessa pessoa. Com
demasiada frequncia, descubro que derivei para
longe de uma histria dos ducados e para uma
histria de FitzCavalaria. Essas recordaes me
deixam cara a cara com aquele que fui um dia, e
com aquele que vim a ser.
Quando se est profundamente absorto em tal
relato, surpreendente quantos detalhes se
capaz de recordar. Nem todas as memrias que
evoco so dolorosas. Tive mais do que uma
parcela justa de bons amigos, e descobri serem
mais leais do que tinha qualquer direito a
esperar. Conheci belezas e alegrias que puseram
tanto prova a fora do meu corao como as
tragdias e feiras. No entanto possuo, talvez,
uma poro maior de memrias sombrias do que
a maior parte dos homens; poucos so os que
conheceram a morte numa masmorra, ou so
capazes de recordar o interior de um caixo
enterrado sob a neve. A mente se retrai perante
os detalhes de tais coisas. Uma coisa me
lembrar de que Majestoso me matou. Outra me
concentrar nos detalhes dos dias e noites que
suportei enquanto ele me matava de fome, e
depois mandou que eu fosse espancado at
morte. Quando o fao, h momentos que ainda
conseguem me congelar as tripas, mesmo depois
de todos estes anos. Consigo recordar os olhos
do homem e o som do seu punho quando me
quebrou o nariz. Ainda existe para mim um lugar
que visito nos meus sonhos, onde luto por me
manter em p, tentando no ceder tentao de
pensar em como irei fazer um ltimo esforo
para matar Majestoso. Recordo do golpe que ele
me deu e com o qual me abriu a pele inchada e
deixou a cicatriz no rosto que ainda ostento.
Nunca me perdoei pelo triunfo que lhe cedi
quando tomei veneno e morri.
Mas mais dolorosos do que os acontecimentos
que consigo recordar so aqueles que esto
perdidos para mim. Quando Majestoso me matou,
morri. Nunca mais fui comumente conhecido
como FitzCavalaria, nunca renovei os laos com
as pessoas de Torre do Cervo que me
conheceram desde que eu era uma criana de
seis anos. Nunca voltei a viver no Castelo de
Torre do Cervo, nunca mais visitei a Dama
Pacincia, nunca mais me sentei nas pedras da
lareira aos ps de Breu. Ficaram perdidos para
mim os ritmos das vidas que tinham se
entrelaado com a minha. Amigos morreram,
outros casaram, bebs nasceram, crianas
tornaram-se adultas, e eu nada disso vi. Embora
j no possua o corpo de um jovem saudvel,
ainda esto vivos muitos dos que outrora me
chamaram de amigo. s vezes, ainda hoje, anseio
em colocar os olhos neles, em tocar mos, em
trazer paz solido dos anos.
No posso.
Esses anos esto perdidos para mim, bem como
todos os anos das vidas que lhes faltam viver.
Tambm perdido est aquele perodo, de no
mais de um ms, mas que me pareceu muito mais
longo, em que fui confinado masmorra e depois
ao caixo. O meu rei morrera em meus braos, e
no entanto no vi o seu enterro. E tampouco
estive presente no conselho aps a minha morte,
em que fui considerado culpado de ter usado a
magia da Manha, e por isso merecedor da morte
que me fora imposta.
Pacincia veio reclamar o meu corpo. A esposa
do meu pai, outrora to angustiada por descobrir
que ele gerara um bastardo antes de se casarem,
foi quem me tirou daquela cela. Foram suas as
mos que lavaram o meu corpo para o enterro,
que me endireitaram os membros e me
envolveram numa mortalha. A estranha,
excntrica Dama Pacincia, por qualquer
motivo, limpou minhas feridas e as enfaixou com
tanto cuidado como se eu ainda estivesse vivo.
Ordenou sozinha a escavao da minha sepultura
e tratou do enterro do meu caixo. Ela e Renda,
sua criada, choraram por mim, enquanto todos os
outros, por medo ou repugnncia pelo meu crime,
abandonaram-me.
E, no entanto, ela nada soube sobre como
Bronco e Breu, o meu mentor assassino, foram
noites mais tarde at aquela sepultura e
escavaram a neve que cara e os torres gelados
de terra que tinham sido atirados sobre meu
caixo. S esses dois estavam presentes quando
Bronco quebrou a tampa do caixo e puxou o
meu corpo para fora, e ento convocou, atravs
da sua prpria magia da Manha, o lobo ao qual
fora confiada a minha alma. Arrancaram essa
alma do lobo e voltaram a sel-la no corpo
espancado de onde fugira. Ergueram-me, para
voltar a caminhar em forma de homem, para
recordar como ter um rei e estar preso a um
juramento. At hoje, no sei se lhes agradeo por
isso. Talvez, como o Bobo insiste, no tivessem
alternativa. Talvez no possa haver
agradecimentos nem culpas, mas apenas o
reconhecimento das foras que nos reuniram e
nos ligaram aos nossos inevitveis destinos.
CAPTULO 1

Nascimento Sepulcral

Nos Estados de Calcede existem escravos. So


eles que realizam o trabalho mais duro. So eles
os mineiros, os operadores de foles de forja, os
remadores das gals, os condutores das carroas
de desperdcios, os trabalhadores rurais e as
prostitutas. Estranhamente, os escravos so
tambm as amas-de-leite, os tutores de crianas,
os cozinheiros, escribas e artesos qualificados.
Toda a cintilante civilizao de Calcede, das
grandes bibliotecas de Jep aos fabulosos banhos
e fontes de Sinjon, baseia-se na existncia de
uma classe de escravos.
Os mercadores de Vilamonte so a maior fonte
de abastecimento de escravos. Em certo
momento, a maioria dos escravos era de cativos
capturados na guerra, e Calcede ainda afirma
oficialmente que assim o . Em anos mais
recentes no tem havido guerras suficientes para
atender demanda de escravos educados. Os
mercadores de Vilamonte so bastante versteis
para descobrir outras fontes, e a exuberante
pirataria nas Ilhas Mercado frequentemente
mencionada em conjunto com isso. Aqueles que
possuem escravos em Calcede demonstram pouca
curiosidade sobre os locais de onde os escravos
provm, desde que sejam saudveis.
A escravatura um costume que nunca ganhou
razes nos Seis Ducados. Um homem condenado
por um crime pode ser obrigado a servir aquele a
quem causou dano, mas sempre imposto um
limite de tempo, e ele nunca visto como menos
do que um homem em expiao. Se um crime
demasiado hediondo para ser redimido pelo
trabalho, o criminoso paga com a morte. Nunca
ningum se torna escravo nos Seis Ducados, e as
nossas leis tambm no apoiam a noo de que
uma famlia possa trazer escravos para o reino e
obrig-los a permanecer escravos. Por esse
motivo, muitos escravos de Calcede que se
libertam dos seus donos por um caminho ou por
outro procuram frequentemente os Seis Ducados
como a sua nova casa.
Esses escravos trazem consigo as remotas
tradies e folclore das suas terras. Uma dessas
histria, que preservei, tem a ver com uma
garota que era Vecci, ou aquilo a que ns
chamaramos Manhosa. Ela desejava abandonar
a casa de seus pais, para seguir um homem que
amava e ser sua esposa. Os pais no o acharam
digno dela e lhe negaram autorizao. Quando se
recusaram a deix-la partir, ela se mostrou uma
filha respeitadora demais para desobedecer-lhes.
Mas era tambm uma mulher ardente demais
para viver sem o seu amor verdadeiro. Deitou-se
na cama e morreu de mgoa. Os pais a
enterraram com grande pesar e muito remorso
por no a terem deixado seguir o corao.
Porm, sem que eles soubessem, ela estava
vinculada pela Manha a uma ursa. E quando a
garota morreu, a ursa assumiu a guarda de seu
esprito, para que no abandonasse o mundo.
Trs dias depois de a garota ter sido enterrada, a
ursa escavou a sepultura e devolveu o esprito da
garota ao seu corpo. O nascimento sepulcral da
garota fez dela uma nova pessoa, que j no
devia obedincia aos pais. E assim abandonou o
caixo estilhaado e foi em busca do seu
verdadeiro amor. A histria tem um final triste,
pois tendo sido durante algum tempo uma ursa,
ela nunca mais voltou a ser inteiramente
humana, e o seu amor verdadeiro no a quis.
Este fragmento de histria serviu de base
deciso de Bronco de tentar me libertar da
masmorra do Prncipe Majestoso me
envenenando.

O quarto estava quente demais. E era demasiado


pequeno. Arquejar j no me esfriava. Levantei-
me da mesa e fui at o barril de gua que estava no
canto. Tirei a tampa e bebi longamente. O Corao
da Matilha ergueu os olhos com um quase-rosnado.
Use um copo, Fitz.
A gua escorreu pelo meu queixo. Olhei-o com
firmeza, observando-o.
Limpe a cara. O Corao da Matilha
afastou os olhos de mim, de volta s suas mos.
Tinha nelas gordura, que esfregava numas
correias. Senti o cheiro. Lambi os lbios.
Estou com fome disse-lhe.
Sente-se e termine o trabalho. Depois
comeremos.
Tentei me lembrar do que ele queria de mim. Ele
moveu a mo na direo da mesa e eu me lembrei.
Mais correias de couro na minha ponta da mesa.
Voltei e me sentei na cadeira dura.
Estou com fome agora expliquei-lhe. Ele
voltou a me olhar daquela maneira que no
mostrava os dentes, mas que ainda era um rosnado.
O Corao da Matilha era capaz de rosnar com os
olhos. Suspirei. A gordura que ele estava usando
cheirava muito bem. Engoli em seco. Ento olhei
para baixo. Havia correias de couro e pedaos de
metal na mesa minha frente. Olhei-os durante
algum tempo. Passados alguns momentos, o
Corao da Matilha largou as suas correias e
limpou as mos num pano. Veio ficar de p ao meu
lado, e eu tive de me virar para conseguir v-lo.
Aqui ele disse, tocando o couro minha
frente. Estava consertando aqui. Ficou junto
de mim at que eu voltei a pegar no couro. Dobrei-
me para farej-lo e ele bateu no meu ombro.
No faa isso!
O meu lbio se torceu, mas no rosnei. Rosnar-
lhe o deixava muito, muito zangado. Durante algum
tempo fiquei apenas com as correias nas mos.
Ento foi como se as mos se lembrassem antes de
a mente faz-lo. Observei os meus dedos
trabalhando o couro. Quando terminei, ergui as
correias na frente dele e puxei-as com fora, para
mostrar que aguentariam mesmo se o cavalo
atirasse a cabea para trs.
Mas no h cavalo nenhum lembrei-me em
voz alta. Todos os cavalos se foram.
Irmo?
J vou. Levantei-me da cadeira. Dirigi-me
porta.
Volte aqui e sente-se disse o Corao da
Matilha.
Olhos-de-Noite me espera, disse-lhe. Ento me
lembrei de que ele no conseguia me ouvir.
Achava que conseguiria se tentasse, mas ele no
queria tentar. Sabia que se voltasse a falar com ele
dessa forma ele me empurraria. Tambm no
queria me deixar falar muito com Olhos-de-Noite
dessa forma. At empurrava Olhos-de-Noite se o
lobo falasse demasiado comigo. Parecia muito
estranho.
Olhos-de-Noite me espera disse-lhe com
a boca.
Eu sei.
Agora uma boa hora para caar.
uma hora melhor para ficar em casa. Tenho
comida para voc aqui.
Olhos-de-Noite e eu podamos arranjar carne
fresca. Salivei ao pensar nisso. Um coelho
aberto, ainda soltando vapor na noite de inverno.
Era isso que eu queria.
Olhos-de-Noite ter de caar sozinho esta
noite disse-me o Corao da Matilha. Dirigiu-
se janela e abriu um pouco as folhas. O ar gelado
entrou depressa. Consegui cheirar Olhos-de-Noite
e, mais longe, um gato das neves. Olhos-de-Noite
ganiu. V embora disse-lhe o Corao da
Matilha. V l, v caar, v se alimentar. No
tenho o suficiente aqui para aliment-lo.
Olhos-de-Noite afastou-se da luz que se
derramava pela janela. Mas no foi muito longe.
Estava l, minha espera, mas eu sabia que no
podia esperar por muito tempo. Tal como eu, ele
estava com fome agora.
O Corao da Matilha dirigiu-se ao fogo que
tornava a sala quente demais. Havia uma panela
ali, e ele afastou-a do fogo e tirou a tampa. Saiu
vapor l de dentro, e com ele vieram cheiros.
Cereais e razes, e um bocadinho minsculo de
cheiro de carne, quase desaparecido pela fervura.
Mas eu tinha tanta fome que me pus a farej-lo.
Comecei a ganir, mas o Corao da Matilha voltou
a fazer o rosnado de olhos. De modo que voltei
para a cadeira dura. Sentei-me. Esperei.
Ele demorou muito tempo. Tirou o couro todo da
mesa e pendurou-o em um cabide. Em seguida,
guardou o pote de gordura. Ento trouxe a panela
quente para a mesa. Depois trouxe duas tigelas e
dois copos. Ps gua nos copos. Colocou na mesa
uma faca e duas colheres. Trouxe po e um
pequeno pote de geleia do armrio. Ps o cozido
na tigela que eu tinha frente, mas eu sabia que
no podia toc-lo. Tinha de ficar sentado e no
comer a comida enquanto ele cortava o po e me
dava um pedao. Podia segurar o po, mas no
podia com-lo at que ele tambm se sentasse,
com a sua tigela, o seu cozido e o seu po.
Pegue a colher lembrou-me. Depois
sentou-se lentamente na cadeira ao meu lado. Eu
estava com a colher e o po na mo e esperando,
esperando, esperando. No tirei os olhos dele, mas
no consegui deixar de mover a boca. Isso o
deixou zangado. Voltei a fechar a boca. Por fim,
ele disse: Agora vamos comer.
Mas a espera ainda no tinha terminado. Foi-me
permitida uma mordida. Ela tinha de ser mastigada
e engolida antes de pegar mais, caso contrrio ele
me daria uma bofetada. Eu s podia levar boca o
cozido que coubesse na colher. Peguei o copo e
bebi. Ele sorriu para mim. Muito bem, Fitz.
Bom garoto.
Respondi com um sorriso, mas em seguida dei
uma mordida grande demais no po, e o Corao
da Matilha franziu o cenho. Tentei mastigar
lentamente, mas agora estava com tanta fome, e a
comida estava mesmo ali, e eu no compreendia
por que que ele no me deixava com-la agora.
Comer levou muito tempo. Ele fizera o cozido
quente demais de propsito, para que eu
queimasse a boca se a enchesse demais. Pensei
naquilo por um momento. Depois disse:
Voc fez a comida quente demais de
propsito. Para que eu me queimasse se comesse
depressa demais.
O seu sorriso surgiu mais lentamente. Confirmou
com a cabea.
Mesmo assim acabei de comer antes dele. Tive
de ficar sentado na cadeira at que ele tambm
acabasse de comer.
Bom, Fitz disse ele por fim. Hoje no
foi um dia muito ruim. Hein, garoto?
Eu me limitei a olh-lo.
Responda qualquer coisa disse-me ele.
O qu? perguntei.
Qualquer coisa.
Qualquer coisa.
Ele franziu o cenho e eu quis rosnar, porque
fizera o que ele me dissera. Aps algum tempo, ele
se levantou e foi buscar uma garrafa. Despejou
qualquer coisa no seu copo. Ofereceu-me a
garrafa.
Quer um pouco?
Afastei-me daquilo. At o cheiro ardia nas
minhas narinas.
Responda lembrou-me ele.
No. No, gua ruim.
No. conhaque ruim. Conhaque de amoras
silvestres, muito barato. Eu costumava detest-lo,
mas voc se acostuma a gostar dele.
Soprei o cheiro para fora das narinas.
Ns nunca gostamos disso.
Ele colocou a garrafa e o copo na mesa.
Levantou-se e foi at janela. Abriu-a de novo.
Eu disse para voc ir caar! Senti Olhos-
de-Noite saltar e depois fugir. Olhos-de-Noite tem
tanto medo do Corao da Matilha como eu. Uma
vez ataquei o Corao da Matilha. Eu tinha estado
doente durante muito tempo, mas depois fiquei
melhor. Queria sair para caar, mas ele no queria
deixar. Colocou-se na frente da porta e eu saltei
sobre ele. Atingiu-me com o punho e depois me
manteve dominado, no cho. Ele no maior do
que eu. Mas mais agressivo e mais esperto.
Conhece muitas maneiras de dominar, e a maioria
delas machuca. Manteve-me no cho, de costas,
com a garganta nua e espera dos seus dentes
durante muito, muito tempo. Toda vez que eu me
mexia, ele me dava uma bofetada. Olhos-de-Noite
rosnara fora da casa, mas no muito perto da porta,
e no tentara entrar. Quando gani por misericrdia,
ele voltou a me bater.
Cale-se! disse ele. Quando me calei, ele
disse:
Voc mais novo. Eu sou mais velho e sei
mais coisas. Luto melhor do que voc, cao
melhor do que voc. Estou sempre acima de voc.
Far tudo o que eu quiser que faa. Far tudo o que
eu lhe disser para fazer. Entendeu?
Sim, respondi. Sim, sim, isso alcateia, eu
entendo, eu entendo. Mas ele limitara-se a me
bater de novo e a me segurar ali, de garganta
descoberta, at que eu lhe respondi com a boca:
Sim, eu entendo.
Quando o Corao da Matilha voltou para junto
da mesa, ps conhaque no meu copo. Colocou-o na
minha frente, onde eu seria obrigado a cheir-lo.
Bufei.
Experimente insistiu ele. S um pouco.
Voc costumava gostar. Costumava beber isso na
cidade, quando era mais novo e no devia entrar
em tavernas sem mim. E depois mascava menta e
pensava que eu no saberia o que tinha feito.
Sacudi a cabea.
Eu no faria o que me dissesse para no
fazer. Eu compreendia.
Ele fez aquele seu som que era como sufocar e
espirrar.
Oh, voc fazia muitas vezes o que eu lhe
dizia para no fazer. Muitas vezes.
Voltei a sacudir a cabea.
No me lembro disso.
Ainda no. Mas vai se lembrar. Voltou a
apontar para o conhaque. Vai. Prove. S um
pouco. Pode lhe fazer bem.
E como ele disse que eu devia faz-lo, provei. A
bebida me ardeu na boca e no nariz, e no
consegui afastar o sabor com uma bufada.
Derramei o que restou no copo.
Enfim. Pacincia ficaria to contente foi
tudo o que ele disse. E depois me obrigou a
arranjar um pano e a limpar o que derramei. E
tambm a lavar os pratos com gua e sec-los.
s vezes, eu tremia e caa. No havia motivo. O
Corao da Matilha tentava me manter quieto. s
vezes os tremores me faziam adormecer. Quando
acordava mais tarde, tinha dores. Doa-me o peito,
doam-me as costas. s vezes mordia a lngua.
No gostava dessas ocasies. Elas assustavam
Olhos-de-Noite.
E s vezes havia outro comigo e com Olhos-de-
Noite, outro que pensava conosco. Era muito
pequeno, mas estava l. Eu no o queria l. No
queria l ningum, nunca mais, exceto eu e Olhos-
de-Noite. Ele sabia, e fazia-se to pequeno que
durante a maior parte do tempo no estava l.
Mais tarde apareceu um homem.
Um homem est vindo eu disse ao
Corao da Matilha. Estava escuro, e o fogo
estava quase apagado. O tempo bom para caa
passara. A escurido era completa. Ele nos faria
dormir em breve.
No me respondeu. Levantou-se rapidamente e
em silncio e pegou a faca grande que estava
sempre em cima da mesa. Disse-me com um gesto
para ir para o canto, para sair do seu caminho.
Dirigiu-se em silncio para a porta e esperou.
Ouvi o homem caminhar pela neve, l fora. Ento
farejei-o.
o cinzento disse-lhe. Breu.
Ele ento abriu a porta muito depressa, e o
cinzento entrou. E espirrei com os odores que ele
trouxe consigo. Ele cheirava sempre a ps de
folhas secas e a fumos de vrios tipos. Era magro
e velho, mas o Corao da Matilha comportava-se
sempre como se fosse o mais importante na
hierarquia da alcateia. O Corao da Matilha ps
mais lenha no fogo. A sala ficou mais iluminada e
mais quente. O cinzento empurrou o capuz para
trs. Olhou-me durante algum tempo com os seus
olhos claros, como se estivesse espera. Depois
falou para o Corao da Matilha.
Como est ele? H melhoras?
O Corao da Matilha mexeu os ombros.
Quando farejou voc, disse o seu nome. H
uma semana que no tem nenhum ataque. H trs
dias consertou alguns arreios. E fez um bom
trabalho.
J no tenta roer o couro?
No. Ao menos enquanto eu estou vendo.
Alm disso, um trabalho que ele conhece muito
bem. Talvez toque alguma coisa l dentro. O
Corao da Matilha soltou uma gargalhada curta.
Pelo menos arreios consertados so coisas que
podem ser vendidas.
O cinzento foi ficar junto da lareira e estendeu
as mos para o fogo. Tinha manchas nas mos. O
Corao da Matilha foi buscar a garrafa de
conhaque. Beberam conhaque em copos. Ele me
obrigou a segurar um copo com um pouco de
conhaque no fundo, mas no me obrigou a prov-
lo. Conversaram durante muito, muito, muito
tempo, sobre coisas que no tinham nada a ver
com comer, dormir ou caar. O cinzento tinha
ouvido dizer qualquer coisa sobre uma mulher.
Podia ser crucial, um ponto de reunio para os
ducados. O Corao da Matilha disse:
No quero falar disso na frente de Fitz. Fiz
uma promessa. O cinzento perguntou se ele
achava que eu compreendia, e o Corao da
Matilha disse que no importava, pois dera a sua
palavra. Eu queria ir dormir, mas eles me
obrigaram a ficar sentado, quieto, numa cadeira.
Quando o velho teve de partir, o Corao da
Matilha disse:
muito perigoso para voc vir at aqui. Uma
caminhada to longa para voc. Conseguir entrar
de volta?
O cinzento limitou-se a sorrir.
Tenho as minhas maneiras, Bronco disse
ele. Eu tambm sorri, lembrando-me de que ele
sempre se orgulhara dos seus segredos.
Um dia, o Corao da Matilha saiu e me deixou
sozinho. No me amarrou. Disse apenas:
Ali h um pouco de aveia. Se quiser comer
enquanto eu estiver fora, ter que se lembrar de
como se cozinha. Se sair pela porta ou pela janela,
at mesmo se abrir a porta ou a janela, eu saberei.
E vou espanc-lo at a morte. Compreende isto?
Compreendo respondi. Ele parecia muito
zangado comigo, mas eu no conseguia me lembrar
de ter feito alguma coisa que ele tivesse me dito
para no fazer. Abriu uma caixa e tirou coisas l
de dentro. A maior parte era metal redondo.
Moedas. De uma coisa eu me lembrava. Era
brilhante e recurva como uma lua, e cheirava a
sangue quando eu a consegui. Lutara com outro
homem por ela. No conseguia me lembrar de t-la
desejado, mas lutara e a ganhara. Agora no a
queria. Ele a ergueu pela corrente de que pendia
para olh-la, depois a colocou numa bolsa. No
me importei por ele lev-la.
Eu estava com muita, muita fome quando ele
voltou. Quando o fez trazia consigo um cheiro. Um
cheiro de fmea. No era forte, e estava misturado
com os cheiros de um prado. Mas era um cheiro
bom que me fez desejar qualquer coisa, uma coisa
que no era comida, gua ou caar. Aproximei-me
dele para cheir-lo, mas ele no reparou. Cozinhou
o mingau e comemos. Depois ficou apenas sentado
diante da lareira, com um ar muito, muito triste. Eu
me levantei e fui buscar a garrafa de conhaque.
Levei-a para ele com um copo. Ele aceitou as duas
coisas, mas no sorriu.
Talvez amanh lhe ensine a ir buscar. Talvez
seja uma coisa que voc consiga dominar.
Depois bebeu todo o conhaque que estava na
garrafa, e abriu outra garrafa depois dessa. Eu me
sentei e fiquei observando-o. Depois que ele
adormeceu, peguei o casaco que tinha o cheiro.
Estendi-o no cho e me deitei nele, farejando-o at
adormecer.
Sonhei. Mas o sonho no fez sentido. Havia uma
fmea que cheirava como o casaco de Bronco, e eu
no queria que ela fosse embora. Era a minha
fmea, mas quando partiu eu no a segui. S
consegui me lembrar disso. Lembrar-me daquilo
no era bom, da mesma forma que ter fome ou sede
no era bom.
Ele estava me obrigando a ficar em casa.
Obrigava-me a ficar em casa h muito, muito
tempo, quando tudo o que eu queria fazer era sair.
Mas daquela vez estava chovendo, muito, tanto que
a neve estava quase toda derretida. De repente,
pareceu bom no sair.
Bronco eu disse, e ele ergueu muito
subitamente os olhos para mim. Moveu-se to
depressa que pensei que fosse atacar. Tentei no
me encolher. Encolher-me s vezes o deixava
zangado.
O que , Fitz? perguntou, e a sua voz
estava gentil.
Estou com fome disse. Agora.
Ele me deu um grande pedao de carne. Estava
cozido, mas era um grande pedao. Comi-o
depressa demais e ele me observou, mas no me
disse para no faz-lo, nem me deu nenhuma
bofetada. Dessa vez.
Eu no parava de coar o rosto. A barba. Por fim,
fui me colocar diante de Bronco. Cocei a barba na
sua frente.
No gosto disso disse-lhe. Ele pareceu
surpreso. Mas me deu gua muito quente e sabo, e
uma faca muito afiada. Deu-me um vidro redondo
com um homem nele. Olhei-o durante muito tempo.
Fez com que eu estremecesse. Os olhos dele eram
como os de Bronco, com branco em volta, mas
ainda mais escuros. No eram olhos de lobo. O
seu pelo era escuro como o de Bronco, mas os
pelos no queixo eram irregulares e speros.
Toquei a minha barba, e vi dedos na cara do
homem. Era estranho.
Faa a barba, mas tenha cuidado disse-me
Bronco.
Quase consegui me lembrar de como se fazia. O
cheiro do sabo, a gua quente no rosto. Mas a
lmina muito, muito afiada no parava de me
cortar. Pequenos cortes que ardiam. Depois de
acabar, olhei para o homem no vidro redondo.
Fitz, pensei. Quase como Fitz. Eu estava
sangrando.
Estou sangrando por todo lado disse a
Bronco.
Ele riu de mim.
Voc sempre sangra depois de fazer a barba.
Tenta sempre se apressar demais. Pegou a
lmina muito, muito afiada. Fique quieto
disse-me. Voc deixou passar alguns lugares.
Fiquei muito quieto e ele no me cortou. Era
difcil ficar quieto quando ele se aproximava tanto
de mim e me olhava to de perto. Quando acabou,
pegou meu queixo com a mo. Inclinou meu rosto
para cima e olhou para mim. Olhou bem para mim.
Fitz? perguntou. Virou a cabea e sorriu
para mim, mas depois o sorriso desapareceu
quando me limitei a olh-lo. Entregou-me uma
escova.
No h cavalo para escovar disse-lhe eu.
Ele pareceu quase contente.
Escove isto disse ele, e despenteou o meu
cabelo. Obrigou-me a escov-lo at ficar liso.
Havia lugares doloridos na minha cabea. Bronco
franziu o cenho quando me viu estremecer. Afastou
a escova e me fez ficar quieto enquanto observava
e tocava por baixo do meu cabelo. Desgraado!
disse com dureza, e quando eu me retra, falou:
No voc. Sacudiu lentamente a cabea.
Deu uma palmadinha no meu ombro. A dor
passar com o tempo disse-me. Mostrou-me
como puxar o cabelo para trs e at-lo com couro.
Tinha o comprimento mnimo para isso. Assim
est melhor disse ele. J se parece de novo
com um homem.
Acordei de um sonho, contorcendo-me e ganindo.
Sentei-me e comecei a chorar. Ele veio da sua
cama at o meu lado.
Qual o problema, Fitz? Est bem?
Ele me tirou da minha me! eu disse.
Ele me tirou dela. Eu era novo demais para ficar
longe dela.
Eu sei disse ele, eu sei. Mas isso foi h
muito tempo. Agora voc est aqui, e em
segurana. Ele parecia quase assustado.
Ele fumegou o covil disse-lhe eu.
Transformou a minha me e os meus irmos em
peles.
Seu rosto mudou, e sua voz deixou de ser gentil.
No, Fitz. Essa no era a sua me. Isso foi um
sonho de lobo. Olhos-de-Noite. Pode ter
acontecido com Olhos-de-Noite. Mas no com
voc.
Oh, aconteceu, sim disse-lhe eu, e de
repente me senti zangado. Oh, aconteceu, sim, e
a sensao foi a mesma. A mesma. Levantei-me
da cama e comecei a andar pela sala. Andei
durante muito tempo, at conseguir deixar outra
vez de sentir aquela sensao. Ele sentou-se e me
observou. Bebeu uma poro de conhaque
enquanto eu andava.
Um dia, na primavera, eu estava de p olhando
pela janela. O mundo cheirava bem, a coisas vivas
e novas. Espreguicei-me e descontra os ombros.
Ouvi os ossos estalarem uns nos outros.
uma boa manh para sair a cavalo eu
disse. Virei-me para olhar para Bronco. Ele estava
mexendo em um mingau numa panela ao fogo.
Aproximou-se e parou ao meu lado.
Nas Montanhas ainda inverno disse ele
em voz baixa. Fico pensando se Kettricken
chegou em casa em segurana.
Se no chegou, a culpa no foi de Fuligem
eu disse. Ento algo se virou e doeu dentro de
mim, e por um momento no consegui controlar a
respirao. Tentei pensar o que seria, mas fugiu de
mim. No queria apanhar essa coisa, mas sabia
que era algo que devia caar. Seria como caar um
urso. Quando me aproximasse, a coisa se viraria
contra mim e tentaria me machucar. Mas, mesmo
assim, algo nela me levava a querer continuar.
Respirei fundo e afastei aquilo com um
estremecimento. Voltei a encher os pulmes de ar,
com um som que me ficou preso na garganta.
Ao meu lado, Bronco estava muito imvel e
silencioso. minha espera.
Irmo, voc um lobo. Volte, afaste-se disso,
isso vai feri-lo, avisou-me Olhos-de-Noite.
Saltei para longe da coisa.
E ento Bronco andou pela sala, batendo com os
ps no cho, amaldioando coisas, e deixando o
mingau queimar. Tivemos de com-lo mesmo
assim, no havia mais nada.
Bronco me incomodou durante algum tempo.
Lembra-se? estava sempre dizendo. No
queria me deixar em paz. Dizia nomes e me
obrigava a tentar dizer quem eram. s vezes eu
sabia, um pouco.
Uma mulher respondi-lhe quando ele disse
Pacincia. Uma mulher numa sala com plantas.
Eu tentara, mas ele se zangou comigo mesmo
assim.
Se dormia noite, sonhava. Sonhos de uma luz
trmula, uma luz danarina numa parede de pedra.
E de olhos numa pequena janela. Os sonhos me
seguravam no cho e me impediam de respirar. Se
conseguisse arranjar ar suficiente para gritar,
conseguia acordar. s vezes levava muito tempo
para arranjar ar suficiente. Bronco acordava
tambm, e tirava da mesa a faca grande.
O que , o que ? perguntava. Mas eu no
podia lhe dizer.
Era mais seguro dormir luz do dia, l fora,
cheirando a grama e a terra. Os sonhos das
paredes de pedra no vinham nessas ocasies. Em
vez deles, vinha uma mulher, apertando-se
docemente contra mim. O seu odor era igual ao das
flores do prado, e a sua boca tinha gosto de mel. A
dor desses sonhos chegava quando eu acordava e
compreendia que ela se fora para sempre, levada
por outro homem. noite, eu me sentava e olhava
para o fogo. Tentava no pensar em paredes frias
de pedra ou em olhos escuros chorando e numa
boca doce tornada pesada por palavras amargas.
No dormia. Nem sequer me atrevia a me deitar.
Bronco no me obrigava.
Um dia Breu voltou. Tinha deixado a barba
crescer muito e usava um chapu de aba larga
como se fosse um vendedor ambulante, mas eu o
reconheci mesmo assim. Bronco no estava em
casa quando ele chegou, mas eu o deixei entrar.
No sabia por que motivo tinha vindo.
Quer um pouco de conhaque? perguntei,
pensando que talvez tivesse sido por isso que ele
viera. Ele me olhou com ateno e quase sorriu.
Fitz? perguntou. Virou a cabea de lado
para olhar o meu rosto. Ento, como tem
passado?
Eu no sabia a resposta a essa pergunta, de
modo que me limitei a olhar para ele. Passado
algum tempo, ele ps a chaleira no fogo. Tirou
coisas da mochila que trazia. Trouxera ch
condimentado, um pouco de queijo e peixe
defumado. Tambm tirou para fora maos de
ervas, e os colocou em fila sobre a mesa. Depois
tirou uma bolsa de couro. L dentro havia um
grande cristal amarelo, suficientemente grande
para lhe encher a mo. No fundo da mochila havia
uma grande tigela rasa, com esmalte azul na parte
de dentro. J a pusera na mesa e enchera de gua
limpa quando Bronco regressou. Bronco fora
pescar. Tinha uma linha com seis pequenos peixes
pendurados. Eram peixes de riacho, no peixes do
oceano. Eram escorregadios e brilhantes. Ele j
havia tirado todas as entranhas.
Agora voc o deixa sozinho? perguntou
Breu a Bronco depois de se cumprimentarem.
Tenho de deixar, para arranjar comida.
Ento agora confia nele?
Bronco desviou o olhar de Breu.
Treinei uma poro de animais. Ensinar um a
fazer o que lhe dito no o mesmo que confiar
num homem.
Bronco cozinhou os peixes numa frigideira e
depois comemos. Tambm ingerimos o queijo e o
ch. Depois, enquanto eu limpava as panelas e os
pratos, eles se sentaram para conversar.
Quero tentar as ervas disse Breu a
Bronco. Ou a gua, ou o cristal. Alguma coisa.
Qualquer coisa. Comeo a pensar que ele no est
realmente ali dentro.
Est assegurou Bronco em voz baixa.
D-lhe tempo. No me parece que as ervas sejam
uma boa ideia para ele. Antes de mudar, estava
comeando a gostar demais de ervas. Perto do fim,
andava sempre ou doente, ou cheio de energia. Se
no estava mergulhado nas profundezas da tristeza,
estava exausto de lutar ou de servir como Homem
do Rei para Veracidade ou Sagaz. Depois se metia
no casco-de-elfo em vez de descansar. Tinha se
esquecido de como se descansa e se deixa o corpo
recuperar. Nunca queria esperar. Naquela ltima
noite voc lhe deu sementes de caris, no foi?
Rapoluva disse que nunca tinha visto nada assim.
Acho que outras pessoas poderiam ter ido em sua
ajuda, se no estivessem to assustadas com ele. O
pobre Espada pensou que ele tinha ficado doido
varrido. Nunca se perdoou por derrub-lo.
Gostaria que ele pudesse saber que o garoto no
morreu mesmo.
No houve tempo para escolher com cuidado.
Dei-lhe o que tinha mo. No sabia que ele
enlouqueceria com a semente de caris.
Podia ter dito a ele que no disse Bronco
em voz baixa.
Isso no o teria detido. Teria ido tal como
estava, exausto, e seria morto ali mesmo.
Fui me sentar na lareira. Bronco no estava me
observando. Deitei-me, e em seguida rolei at
ficar de barriga para cima e me espreguicei. Era
bom. Fechei os olhos e senti o calor do fogo no
meu flanco.
Levante-se e sente-se no banco, Fitz disse
Bronco.
Suspirei, mas obedeci. Breu no olhou para
mim. Bronco continuou a falar.
Eu gostaria de mant-lo em guas calmas.
Acho que s precisa de tempo, para se recuperar
sozinho. Ele se lembra. s vezes. E depois luta
contra as recordaes. Acho que no quer se
lembrar, Breu. Acho que ele no quer realmente
voltar a ser FitzCavalaria. Talvez tenha gostado de
ser lobo. Talvez tenha gostado tanto que nunca
mais volte.
Ele tem de voltar disse Breu em voz
baixa. Precisamos dele.
Bronco endireitou-se. Estava com os ps
apoiados na pilha de lenha, mas agora os colocou
no cho. Inclinou-se para Breu.
Teve notcias?
Eu no. Mas Pacincia teve, acho. s vezes
muito frustrante ser a ratazana atrs da parede.
Ento, o que ouviu?
S Pacincia e Renda, conversando sobre l.
Por que isso importante?
Elas queriam l para tecer um pano muito
macio. Para um beb, ou para uma criana
pequena. Ele nascer no fim das nossas colheitas,
mas isso o princpio do inverno nas Montanhas.
Vamos faz-lo grosso, disse Pacincia. Talvez
seja para o filho de Kettricken.
Bronco fez uma expresso de espanto.
Pacincia sabe de Kettricken?
Breu riu.
No sei. Quem sabe o que essa mulher sabe?
Mudou muito nos ltimos tempos. Anda juntando a
guarda de Torre do Cervo na palma da mo e Dom
Brilhante nem sequer nota. Agora acho que
devamos t-la informado do nosso plano, que a
devamos ter includo desde o incio. Mas talvez
no.
Podia ter sido mais fcil para mim se a
tivssemos includo. Bronco tinha os olhos
perdidos no fogo.
Breu sacudiu a cabea.
Lamento. Ela precisava acreditar que voc
tinha abandonado Fitz, que o tinha rejeitado por
usar a Manha. Se tivesse ido reclamar o seu corpo,
Majestoso poderia ter ficado desconfiado.
Precisvamos fazer Majestoso acreditar que ela
era a nica que se preocupava o suficiente para
enterr-lo.
Ela agora me odeia. Disse-me que eu no
tinha nem lealdade, nem coragem. Bronco olhou
para as mos e a sua voz tornou-se mais tensa.
Eu sabia que ela tinha deixado de me amar h
anos. Quando entregou o corao Cavalaria. Isso
eu podia aceitar. Ele era digno dela. E fui eu quem
me afastei dela inicialmente. De modo que
conseguia viver com o fato de ela no me amar,
porque sentia que ainda me respeitava como
homem. Mas agora, ela despreza. Eu Sacudiu
a cabea, e em seguida fechou os olhos com fora.
Por um momento, tudo ficou parado. Ento Bronco
endireitou-se lentamente e virou-se para Breu:
Ento, acha que Pacincia sabe que Kettricken
fugiu para as Montanhas?
No me surpreenderia. No houve nenhuma
notcia oficial, claro. Majestoso enviou mensagens
ao Rei Eyod, exigindo saber se Kettricken fugiu
para l, mas Eyod respondeu apenas que ela era a
Rainha dos Seis Ducados e que o que fazia no
dizia respeito Montanha. Majestoso ficou
suficientemente irritado com isso para interromper
o comrcio com as Montanhas. Mas Pacincia
parece saber muito do que est acontecendo fora
do castelo. Talvez saiba o que est acontecendo no
Reino da Montanha. Pessoalmente, gostaria muito
de saber como que ela pretende enviar a manta
para as Montanhas. uma viagem longa e
cansativa.
Bronco permaneceu em silncio durante muito
tempo. Em seguida, disse:
Devia ter arranjado um modo de ir com
Kettricken e com o Bobo. Mas havia s aqueles
dois cavalos, e provises suficientes para dois.
No consegui arranjar mais do que isso, de modo
que foram sozinhos. Lanou um olhar furioso ao
fogo e em seguida perguntou: Suponho que
ningum ouviu nada sobre o Prncipe Herdeiro
Veracidade?
Breu sacudiu lentamente a cabea.
Rei Veracidade lembrou com suavidade a
Bronco. Se estivesse aqui. Desviou o olhar
para longe. Se fosse regressar, acho que j
estaria aqui a esta altura disse ele em voz
baixa. Mais alguns dias calmos como este e
haver Salteadores dos Navios Vermelhos em
todas as baas. J no acredito que Veracidade
regresse.
Ento Majestoso verdadeiramente rei
disse Bronco com amargura. Pelo menos at
que o filho de Kettricken nasa e chegue
maioridade. E depois podemos esperar uma guerra
civil se a criana tentar reivindicar a coroa. Caso
ainda restem Seis Ducados para governar.
Veracidade. Agora gostaria que ele no tivesse
partido em busca dos Antigos. Pelo menos
enquanto estivesse vivo teramos alguma proteo
contra os Salteadores. Agora, com Veracidade
longe e a primavera ganhando fora, no h nada
entre ns e os Navios Vermelhos
Veracidade. Estremeci com o frio. Empurrei o
frio para longe. Ele voltou e afastou todo o resto.
Eu o mantive distncia. Passado um momento,
respirei fundo.
S a gua, ento? perguntou Breu a
Bronco, e eu compreendi que tinham continuado a
conversa, mas eu no os ouvira.
Bronco encolheu os ombros.
V em frente. Que mal pode fazer? Ele
costumava ver o futuro na gua?
Nunca o testei. Sempre suspeitei de que
poderia faz-lo se tentasse. Tem a Manha e o
Talento. Por que tambm no seria capaz ver o
futuro?
S porque um homem capaz de fazer uma
coisa no quer dizer que deva faz-la.
Durante algum tempo, olharam um para o outro.
Ento Breu encolheu os ombros.
O meu ofcio talvez no me deixe ter tantos
escrpulos de conscincia como o seu sugeriu
numa voz tensa.
Aps um momento, Bronco disse de m vontade:
Peo perdo, senhor. Todos servimos o
nosso rei conforme nossas capacidades.
Breu respondeu com um aceno de cabea. Em
seguida sorriu.
Breu tirou da mesa tudo, menos o prato com
gua e umas quantas velas.
Venha aqui disse-me em voz suave, de
modo que eu voltei para junto da mesa. Fez-me
sentar na sua cadeira e ps o prato na minha frente.
Olhe para a gua disse-me. Diga o que
v.
Vi a gua na tigela. Vi o azul no fundo da tigela.
Nenhuma das respostas o deixou contente. No
parava de me dizer para voltar a olhar e me
perguntava sempre as mesmas coisas. Moveu a
vela vrias vezes, dizendo em cada uma delas para
que eu voltasse a olhar. Por fim, disse a Bronco:
Bem, agora pelo menos responde quando
falamos com ele.
Bronco concordou com a cabea, mas parecia
desencorajado.
Sim. Talvez com o tempo disse.
Soube ento que tinham terminado o que queriam
fazer comigo, e relaxei.
Breu perguntou se podia passar a noite conosco.
Bronco disse que sim. Ento foi buscar o
conhaque. Serviu dois copos. Breu puxou o meu
banco para junto da mesa e voltou a sentar-se. Eu
fiquei esperando, mas eles tornaram a conversar
um com o outro.
Ento, e eu? perguntei por fim.
Eles pararam de falar e olharam para mim.
E voc o qu? perguntou Bronco.
No ganho conhaque?
Olharam para mim. Bronco perguntou com
cautela.
Quer conhaque? Pensei que no gostava.
No, no gosto. Nunca gostei. Pensei por
um momento. Mas era barato.
Bronco me encarou. Breu deu um pequeno
sorriso, enquanto olhava para as mos. Ento
Bronco foi buscar outro copo e me serviu um
pouco de conhaque. Durante algum tempo ficaram
me observando, mas eu no fiz nada. Por fim,
recomearam a conversar. Eu bebi um pequeno
gole de conhaque. Ainda me ardia na boca e no
nariz, mas criava um calor dentro de mim. Soube
que no queria mais. Depois achei que queria.
Bebi um pouco mais. Era igualmente desagradvel.
Como algo que Pacincia poderia me forar a
tomar para uma tosse. No. Afastei tambm essa
memria. Larguei o copo.
Bronco no olhou para mim. Continuou a
conversar com Breu.
Quando caamos veados, frequente
conseguirmos nos aproximar muito mais deles
simplesmente fingindo no os ver. Eles ficam onde
esto, observando a nossa aproximao sem mover
um casco desde que no olhemos diretamente para
eles. Pegou a garrafa e serviu mais conhaque no
meu copo. O cheiro que subia dele me fez soltar
uma bufada. Pensei sentir qualquer coisa se
agitando. Um pensamento na minha mente. Sondei
na direo do meu lobo.
Olhos-de-Noite?
Irmo? Estou dormindo, Alterador. Ainda no
uma boa hora para caar.
Bronco me encarou, furioso. Parei.
Sabia que no queria mais conhaque. Mas havia
outra pessoa que achava que queria. Outra pessoa
que me incentivou a pegar o copo, s para ficar
com ele na mo. Fiz o conhaque rodopiar no copo.
Veracidade costumava fazer o vinho rodopiar no
copo e olhar para ele. Olhei para o copo escuro.
Fitz.
Larguei o copo. Levantei-me e andei pela sala.
Queria sair, mas Bronco nunca me deixava sair
sozinho, muito menos noite, de modo que andei
pela sala at voltar para a cadeira. Sentei-me de
novo. O copo de conhaque ainda estava l.
Passado algum tempo, peguei-o, s para fazer com
que a sensao de querer peg-lo fosse embora.
Mas depois de t-lo na mo, ele mudou a
sensao. Fez com que eu pensasse em beb-lo.
Como o sentiria quente na barriga. Bastaria beb-
lo depressa, e o sabor no permaneceria por muito
tempo, s ficaria a sensao boa e quente na minha
barriga.
Eu sabia o que ele estava fazendo. Comeava a
me zangar.
Ento, s mais um golinho. Uma voz calmante.
Sussurrada. S para ajud-lo a relaxar, Fitz. O
fogo est to quente, e voc comeu. Bronco o
proteger. Breu est logo ali. No precisa estar
to em guarda. S mais um gole. Mais um gole.
No.
Ento, s um golinho de nada, s para molhar
a boca.
Bebi outro gole, para fazer com que ele parasse
de me fazer desej-lo. Mas ele no parou, de modo
que bebi outro. Enchi a boca e engoli tudo. Estava
ficando cada vez mais difcil resistir. Ele estava
me vencendo pelo cansao. E Bronco no parava
de colocar mais no copo.
Fitz. Diga: Veracidade est vivo. s. Diga
s isso.
No.
O conhaque no lhe d uma sensao
agradvel na barriga? To quente. Bebe um
pouco mais.
Eu sei o que est tentando fazer. Est
tentando me embebedar. Para que eu no possa
mant-lo afastado. No deixarei que faa isso.
Meu rosto estava molhado.
Bronco e Breu estavam me olhando.
Ele nunca foi um bbado choro observou
Bronco. Pelo menos no perto de mim.
Pareciam achar aquilo interessante.
Diga. Diga: Veracidade est vivo. Depois
lhe deixarei ir. Prometo. Diga apenas isso. S
uma vez. Mesmo se for num murmrio. Diga.
Diga.
Baixei os olhos para a mesa. Numa voz muito
baixa, disse:
Veracidade est vivo.
Oh? disse Bronco. Estava despreocupado
demais. Inclinou-se muito depressa para colocar
mais conhaque no meu copo. A garrafa estava
vazia. Serviu-me do que tinha no seu prprio copo.
De repente, desejei o conhaque. Desejei-o para
mim. Peguei-o e bebi tudo. Depois, levantei-me.
Veracidade est vivo disse. Est frio,
mas vivo. E isso tudo o que tenho a dizer. Fui
at a porta, puxei o trinco e sa para a noite. Eles
no tentaram me impedir.
Bronco tinha razo. Estava tudo l, como uma
cano que tivesse ouvido com muita frequncia e
no conseguisse tirar da cabea. Corria por trs de
todos os meus pensamentos e coloria todos os
meus sonhos. Voltava para mim aos encontres e
no me deixava em paz. A primavera avanou at
o vero. Velhas memrias comearam a sobrepor-
se s novas. As minhas vidas comearam a se
costurar umas s outras. Havia aberturas e pregas
na unio, mas estava ficando cada vez mais difcil
me recusar a saber coisas. Nomes voltaram a
ganhar significados e rostos. Pacincia, Renda,
Celeridade e Fuligem j no eram meras palavras,
mas ressoavam como sinos com a riqueza das
memrias e emoes. Moli, disse por fim um
certo dia, de mim para mim, em voz alta. Bronco
ergueu subitamente os olhos para mim quando eu
proferi aquela palavra e quase deixou cair a corda
de tripa para armadilhas, fortemente entrelaada,
que estava fazendo. Ouvi-o prender a respirao
como se fosse falar comigo, mas em vez disso
manteve-se em silncio, esperando que eu dissesse
mais coisas. No o fiz. Fechei os olhos, baixei o
rosto para as mos e ansiei pelo esquecimento.
Passei muito tempo em p, janela, olhando o
prado. Nada havia para se ver l. Mas Bronco no
me impedia de olhar, nem me obrigava a voltar
para as minhas tarefas, como teria feito antes. Um
dia, enquanto olhava a grama viosa, perguntei a
Bronco:
O que vamos fazer quando os pastores
chegarem aqui? Aonde iremos para viver?
Pense bem. Ele fixara uma pele de coelho
no cho e a estava limpando da carne e da gordura.
Eles no viro. No h rebanhos para trazer
para os pastos de vero. A maior parte do gado
bom foi para o interior com Majestoso. Ele
saqueou Torre do Cervo de tudo o que pudesse
meter em carroas ou conduzir de l. Estou
disposto a apostar que todas as ovelhas que
tenham restado em Torre do Cervo se
transformaram em pratos de carneiro durante o
inverno.
Provavelmente concordei. E ento algo
entrou fora em minha mente, algo mais terrvel
do que todas as coisas que eu sabia e no queria
recordar: todas as coisas que no sabia, todas as
questes que tinham sido deixadas sem resposta.
Sa para caminhar pelo prado. Continuei para alm
do prado, at a beira do riacho, e depois o desci
at a parte pantanosa onde cresciam as taboas.
Colhi as espigas verdes de taboa para cozinhar
com o mingau. Eu conhecia mais uma vez os nomes
das plantas. No queria isso, mas sabia quais
matariam um homem e como prepar-las. Todo o
antigo conhecimento estava l, esperando para me
reclamar, quisesse eu ou no.
Quando regressei com as espigas, ele estava
cozinhando o cereal. Coloquei-as na mesa e fui
buscar uma panela de gua no barril. Enquanto as
lavava e escolhia, perguntei por fim:
O que aconteceu? Naquela noite?
Ele virou-se muito lentamente para olhar para
mim, como se eu fosse uma pea de caa que
poderia ser espantada por um movimento sbito.
Naquela noite?
Na noite em que o Rei Sagaz e Kettricken
deviam fugir. Por que voc no deixou os cavalos
de trabalho e a liteira espera?
Oh. Aquela noite. Ele suspirou como
quem se recorda de uma velha dor. Falou muito
lenta e calmamente, como se temesse me assustar.
Eles estavam nos vigiando, Fitz. O tempo todo.
Majestoso sabia de tudo. Naquela noite eu no
teria conseguido tirar do estbulo um gro de
aveia, quanto mais trs cavalos, uma liteira e uma
mula. Havia guardas de Vara por todo o lado,
tentando passar a ideia de que tinham ido
simplesmente inspecionar as cocheiras vazias.
No me atrevi a ir at voc para lhe dizer. De
modo que, por fim, esperei at que o banquete
comeasse, at que Majestoso tivesse se coroado e
convencido de que ganhara. Ento sa depressa e
fui buscar os dois nicos cavalos que conseguiria
arranjar. Fuligem e Ruivo. Eu os escondera com o
ferreiro, para me assegurar de que Majestoso no
poderia vend-los tambm. A nica comida que
consegui arranjar foi a que deu para surrupiar da
casa da guarda. Foi a nica coisa que consegui
pensar em fazer.
E a Rainha Kettricken e o Bobo fugiram
neles. Os nomes saram de forma estranha da
minha boca. No queria pensar neles, no queria
me lembrar deles de modo algum. Da ltima vez
que vira o Bobo, ele estava chorando e me
acusando de ter matado o seu rei. Eu insistira para
que ele fugisse no lugar do rei, para lhe salvar a
vida. No era a melhor recordao que podia ter
da despedida de algum a quem chamara de amigo.
Sim. Bronco trouxe a panela de mingau
para a mesa e deixou-a ali para engrossar. Breu
e o lobo os guiaram at mim. Eu queria ir com
eles, mas no pude. S teria tornado a sua viagem
mais lenta. A minha perna Sabia que no
conseguiria acompanhar o passo dos cavalos por
muito tempo, e montaria dupla com aquele tempo
teria deixado os animais exaustos. S podia deix-
los ir. Um silncio. Em seguida um rosnado,
mais grave do que um rosnado de lobo. Se um
dia eu descobrir quem nos denunciou a
Majestoso
Fui eu.
Os seus olhos prenderam-se nos meus, no seu
rosto surgiu uma expresso de horror e
incredulidade. Eu olhei para as mos. Estavam
comeando a tremer.
Fui estpido. Foi culpa minha. A pequena aia
da rainha, Rosamaria. Sempre por perto, sempre
em volta de ns. Devia ser espi de Majestoso.
Ouviu-me dizer rainha para estar preparada, que
o Rei Sagaz iria com ela. Ouviu-me dizer a
Kettricken para vestir roupas quentes. A partir
disso, Majestoso adivinharia que ela ia fugir de
Torre do Cervo. Saberia que ela iria precisar de
cavalos. E Rosamaria talvez tenha feito mais do
que espionar. Talvez tenha levado a uma velha um
cesto de guloseimas envenenadas. Talvez tenha
ensebado um degrau de uma escada que sabia que
a sua rainha desceria em breve.
Forcei-me a erguer os olhos das espigas, para
enfrentar o olhar ferido de Bronco.
E o que Rosamaria no escutou, Justino e
Serena escutaram. Eles estavam presos ao rei,
sugando dele fora de Talento e conscientes de
cada pensamento que ele enviava a Veracidade ou
recebia dele. Depois de ficarem sabendo o que eu
estava fazendo, quando servia como Homem do
Rei, comearam tambm a me espionar com o
Talento. Eu no sabia que era possvel fazer tal
coisa. Mas Galeno descobriu como, e ensinou aos
seus alunos. Lembra-se de Vontade, filho de
Palafreneiro? O membro do crculo? Ele era o
melhor. Conseguia fazer com que voc acreditasse
que ele nem estava presente quando estava.
Sacudi a cabea, tentei afastar dela as minhas
memrias aterrorizantes de Vontade. Ele trazia de
volta as sombras da masmorra, as coisas que ainda
me recusava a recordar. Perguntei a mim mesmo se
o tinha matado. Achei que no. No me parecia
que o tivesse feito ingerir veneno suficiente. Ergui
o olhar para ver Bronco me observando
intensamente.
Naquela noite, mesmo no ltimo momento, o
rei recusou-se a ir disse-lhe em voz baixa.
Eu j pensava em Majestoso como traidor h tanto
tempo que tinha esquecido de que Sagaz ainda o
veria como filho. O que Majestoso fez, quando
aceitou a coroa de Veracidade sabendo que o
irmo estava vivo O Rei Sagaz no queria
continuar a viver, sabendo que Majestoso era
capaz de tal coisa. Pediu-me para ser Homem do
Rei, para lhe emprestar a fora para enviar pelo
Talento uma despedida a Veracidade. Mas Serena
e Justino estavam espera. Fiz uma pausa, com
novas peas do quebra-cabeas encaixando-se nos
seus lugares. Eu devia ter sabido que estava
sendo fcil demais. Nenhum guarda protegendo o
rei. Por qu? Porque Majestoso no precisava
deles. Porque Serena e Justino estavam agarrados
a ele como sanguessugas. Majestoso j no
precisava mais do pai. Coroara-se Prncipe
Herdeiro; j no podia obter de Sagaz nada de
bom. De modo que esgotaram a fora de Talento
do Rei Sagaz. Mataram-no. Antes mesmo de ele
conseguir despedir-se de Veracidade. provvel
que Majestoso lhes tivesse dito para se
assegurarem de que ele no voltaria a contactar
Veracidade pelo Talento. Por isso, depois matei
Serena e Justino. Matei-os da mesma maneira que
eles mataram o meu rei. Sem lhes dar chance para
revidarem, sem um momento de misericrdia.
Calma. Agora calma. Bronco veio
rapidamente at mim, colocou as mos nos meus
ombros e me fez sentar numa cadeira. Est
tremendo como se estivesse tendo uma convulso.
Acalme-se.
No consegui falar.
Era isso que Breu e eu no conseguamos
entender disse-me Bronco. Quem havia
trado o nosso plano? Pensamos em todos. At no
Bobo. Durante algum tempo tememos que
tivssemos enviado Kettricken embora aos
cuidados de um traidor.
Como pde pensar isso? O Bobo amava o
Rei Sagaz como ningum.
No conseguimos imaginar mais ningum que
conhecesse todos os nossos planos disse
simplesmente Bronco.
No foi o Bobo que causou a nossa runa. Fui
eu. E foi esse, creio, o momento em que voltei
completamente a mim. Dissera a coisa mais
impossvel de se dizer, enfrentara a minha verdade
mais difcil de enfrentar. Eu trara todos eles. O
Bobo me avisou. Ele disse que eu seria a morte de
reis se no aprendesse a deixar as coisas em paz.
Breu me preveniu. Tentou me fazer prometer que
no desencadearia mais nada. Mas eu no quis.
Portanto, as minhas aes mataram o meu rei. Se
eu no o tivesse ajudado a usar o Talento, ele no
teria ficado to aberto aos seus assassinos. Eu o
abri, tentando alcanar Veracidade. Mas quem
surgiu foram aquelas duas sanguessugas. O
assassino do rei. Oh, de tantas, tantas maneiras,
Sagaz. Lamento tanto, meu rei. Lamento tanto. Se
no fosse eu, Majestoso no teria tido motivo para
mat-lo.
Fitz. A voz de Bronco estava firme.
Majestoso nunca precisou de um motivo para
matar o pai. S precisava esgotar os motivos para
mant-lo vivo. E voc no tinha nenhum controle
sobre isso. Uma sbita ruga cruzou sua testa.
Por que o mataram naquele momento? Por que no
esperaram at terem tambm a rainha?
Eu sorri para ele.
Voc a salvou. Majestoso achou que tinha a
rainha. Eles acharam que tinham nos detido quando
evitaram que voc tirasse cavalos dos estbulos.
Majestoso at se gabou disso comigo quando eu
estava na minha cela. Que ela fora obrigada a
partir sem cavalos. E sem coisas quentes de
inverno.
Bronco deu um sorriso duro.
Ela e o Bobo levaram o que tinha sido
embrulhado para Sagaz. E partiram em dois dos
melhores cavalos que j saram dos estbulos de
Torre do Cervo. Aposto que chegaram em
segurana s Montanhas, garoto. Fuligem e Ruivo
provavelmente agora esto pastando nas pastagens
da Montanha.
Era um conforto parco demais. Nessa noite sa e
corri com o lobo, e Bronco no me censurou. Mas
no podamos correr longe o bastante, nem rpido
o bastante, e o sangue que derramamos nessa noite
no foi o sangue que eu desejava ver correr, e a
carne quente e fresca tampouco foi capaz de
preencher o vazio que havia dentro de mim.
Assim, lembrei-me da minha vida e de quem fora.
medida que os dias passavam, Bronco e eu
fomos recomeando a conversar abertamente como
amigos. Ele desistiu do seu domnio sobre mim,
mas no sem expressar de uma forma trocista a
pena que sentia ao faz-lo. Recordamos as
maneiras antigas de agir um com o outro, as
maneiras antigas de rirmos juntos, as maneiras
antigas de discordar. Porm, enquanto as coisas se
regularizavam entre ns e se tornavam normais,
ramos lembrados, de uma forma ainda mais
intensa, de tudo aquilo que j no possuamos.
No havia trabalho suficiente num dia para
manter Bronco ocupado. Aquele era um homem
que tivera completa autoridade sobre todos os
estbulos de Torre do Cervo, e sobre os cavalos,
ces e falces que os habitavam. Eu o observava
inventar tarefas para preencher as horas, e sabia o
quanto ele se consumia pelos animais por que fora
responsvel durante tanto tempo. Eu tinha
saudades do alvoroo e das pessoas da corte, mas
ansiava ainda mais por Moli. Inventava conversas
que gostaria de ter tido com ela, apanhava flores
de rainha-dos-prados e carrio-de-dia porque
cheiravam como ela, e me deitava noite
recordando o toque da sua mo no meu rosto. Mas
no eram essas as coisas de que falvamos. Em
vez disso, reunamos as nossas peas para formar
uma espcie de todo. Bronco pescava e eu caava,
havia peles para raspar, camisas para lavar e
remendar, gua para transportar. Era uma vida. Ele
tentou me falar, uma vez, de como fora me visitar
na masmorra, para me levar veneno. As suas mos
trabalhavam com pequenos movimentos de toro
enquanto falava de como tivera de se afastar,
deixando-me naquela cela. No pude deix-lo
continuar.
Vamos pescar propus de sbito. Ele
respirou fundo e fez um aceno com a cabea.
Fomos pescar e no voltamos a conversar nesse
dia.
Mas eu tinha sido engaiolado, e deixado
passando fome, e espancado at a morte. De
tempos a tempos, quando ele olhava para mim, eu
sabia que via as cicatrizes. Barbeava-me em volta
da linha que me descia a bochecha, e via o cabelo
crescer branco por cima da testa, onde o couro
cabeludo fora cortado. Nunca falvamos sobre
isso. Eu me recusava a pensar nisso. Mas no
existe homem capaz de passar por aquilo que eu
passara sem mudar.
Comecei a dormir noite. Sonhos curtos e
intensos, momentos congelados de fogo, de uma
dor dilacerante, de medo impotente. Acordava,
com suor frio deixando meu cabelo lustroso,
nauseado de medo. Nada restava desses sonhos
quando me sentava na escurido, nem o mais
minsculo dos fios com o qual pudesse desfi-los.
S a dor, o medo, a ira, a frustrao. Mas, acima
de tudo, o medo. O medo esmagador que me
deixava tremendo e arquejando, de olhos
lacrimosos, com blis amarga no fundo da boca.
Na primeira vez que aconteceu, da primeira vez
que me sentei com a rapidez de um relmpago e
um grito inarticulado, Bronco rolou para fora da
cama e colocou uma mo no ombro, para perguntar
se eu estava bem. Empurrei-o para longe de mim
com tal violncia que ele caiu sobre a mesa e
quase a derrubou. Medo e ira atingiram o auge num
instante de fria que quis mat-lo simplesmente
por estar ao meu alcance. Nesse momento rejeitei
e desprezei a mim mesmo to completamente que
desejei apenas destruir tudo o que era eu, ou fazia
fronteira com o meu ser. Repeli violentamente o
mundo inteiro, quase expulsando a minha prpria
conscincia. Irmo, irmo, irmo, ganiu
desesperadamente Olhos-de-Noite dentro de mim,
e Bronco cambaleou para trs com um grito
inarticulado. Passado um momento, consegui
engolir em seco e murmurar para Bronco:
Foi s um pesadelo. Desculpe. Ainda estava
sonhando, s um pesadelo.
Eu compreendo disse ele com brusquido,
e em seguida, num tom mais pensativo: Eu
compreendo. Voltou para a cama. Mas eu sabia
que o que ele compreendia era que no podia me
ajudar com aquilo, e nada mais.
Os pesadelos no vinham todas as noites, mas
eram suficientemente frequentes para me fazerem
temer a cama. Bronco fingia passar por eles
dormindo, mas eu sabia que ele se mantinha
acordado enquanto eu travava sozinho as minhas
batalhas noturnas. No tinha qualquer lembrana
dos sonhos, s do terror dilacerante que me
causavam. Eu sentira medo antes. Com frequncia.
Medo quando lutara com Forjados, medo quando
enfrentramos guerreiros dos Navios Vermelhos,
medo quando confrontara Serena. Medo que
avisava, que incentivava, que dava a vantagem
necessria para me manter vivo. Mas o medo
noturno era um terror desencorajante, uma
esperana de que a morte chegasse e lhe pusesse
fim, porque eu estava quebrado e sabia que lhes
daria qualquer coisa para no enfrentar mais dor.
No existe resposta para um medo assim ou para
a vergonha que vem atrs dele. Tentei a ira, tentei
o dio. Nem lgrimas, nem conhaque conseguiam
afog-lo. Permeava-me como um cheiro daninho e
coloria todas as recordaes que eu tinha,
ensombrando a minha percepo de quem fora.
Nenhum momento de alegria ou paixo ou coragem
do qual eu conseguia me lembrar era exatamente o
que fora antes, pois a minha mente acrescentava
sempre traioeiramente: Sim, voc teve isso,
durante algum tempo, mas depois veio isto, e isto
o que voc agora. Esse medo debilitante era
uma presena desencorajadora dentro de mim. Eu
sabia, com uma certeza doentia, que se fosse
pressionado me transformaria naquilo. J no era
FitzCavalaria. Era aquilo que restara depois de o
medo expuls-lo do meu corpo.
No segundo dia depois de Bronco ter ficado sem
conhaque, eu lhe disse:
Ficarei bem aqui se voc quiser ir Cidade de
Torre do Cervo.
No temos dinheiro para comprar mais
provises e no resta nada para vender. Ele
disse isso com um ar taxativo, como se a culpa
fosse minha. Estava sentado junto do fogo. Fechou
as mos uma sobre a outra e apertou-as entre os
joelhos. Tinham estado tremendo, s um pouco.
Agora vamos ter de nos arranjar sozinhos. H caa
em abundncia. Se no conseguirmos nos alimentar
aqui em cima, mereceremos passar fome.
Voc vai ficar bem? perguntei sem
expresso.
Ele me olhou atravs de olhos semicerrados.
E isso quer dizer o qu? perguntou.
Quer dizer que no h mais conhaque
respondi com igual secura.
E acha que eu no posso ficar sem ele? O
seu mau gnio j estava aparecendo. Tornara-se
cada vez pior desde que acabara o conhaque.
Encolhi muito ligeiramente os ombros.
S estava perguntando. Nada mais. Sentei-
me muito quieto, sem olhar para ele, esperando
que no explodisse.
Depois de uma pausa, ele disse, numa voz muito
baixa:
Bem, suponho que isso uma coisa que ns
dois teremos de descobrir.
Deixei passar um longo tempo. Por fim,
perguntei:
O que vamos fazer?
Ele me olhou aborrecido.
J lhe disse. Caar para nos alimentarmos.
Isso uma coisa que voc devia ser capaz de
perceber.
Afastei os olhos dele, fiz um aceno balanando a
cabea.
Percebi. Estou falando depois disso.
Depois de amanh.
Bem. Caamos para arranjar carne. Podemos
aguentar durante algum tempo dessa maneira.
Porm, cedo ou tarde, vamos querer o que no
conseguimos arranjar ou fazer sozinhos. H coisas
que Breu nos arranjar, se puder. Torre do Cervo
est agora to nua como ossos limpos de carne.
Terei de ir Cidade de Torre do Cervo, durante
algum tempo, e arranjar trabalho, se conseguir.
Mas por ora
No eu disse em voz baixa. Eu me
referia a No podemos nos esconder para
sempre aqui em cima, Bronco. O que vem depois
disso?
Foi a vez dele ficar em silncio durante algum
tempo.
Suponho que ainda no tenha pensado muito
nisso. A princpio, isto era s um lugar para onde
lhe trazer enquanto se recuperava. Depois, durante
algum tempo, pareceu que voc nunca
Mas agora estou aqui. Hesitei.
Pacincia comecei.
Acha que voc est morto interrompeu
Bronco, talvez com maior dureza do que
pretendera. Breu e eu somos os nicos que
sabemos que no. Antes de puxarmos voc de
dentro daquele caixo, no tnhamos certeza. Teria
a dose sido forte demais, estaria realmente morto
por causa dela, ou congelado devido aos dias
passados na terra? Eu vi o que tinham feito a voc.
Parou, e por um momento me encarou. Fez uma
expresso de assombro. Sacudiu muito
ligeiramente a cabea. Achei que voc no
conseguiria sobreviver quilo, quanto mais ao
veneno. De modo que no demos esperana a
ningum. E depois, quando o tiramos Sacudiu
a cabea, com mais violncia. A princpio,
voc estava em pssimo estado. O que eles haviam
lhe feito Havia tantos danos No sei o que
deu em Pacincia para limpar e enfaixar os
ferimentos de um morto, mas se no o tivesse
feito Depois, mais tarde No era voc. Aps
aquelas primeiras semanas, eu me senti enojado
por aquilo que tnhamos feito. Pareceu-me que
havamos colocado a alma de um lobo no corpo de
um homem.
Voltou a olhar para mim, com o rosto ficando
incrdulo ao recordar.
Voc pulou na minha garganta. No primeiro
dia em que conseguiu ficar de p, quis fugir. Eu
no deixei e voc pulou na minha garganta. No
podia mostrar a Pacincia essa criatura cheia de
rosnados e dentadas, quanto mais
Voc acha que Moli? comecei.
Bronco afastou os olhos de mim.
Provavelmente ouviu dizer que voc estava
morto. Passado algum tempo acrescentou,
desconfortvel: Algum tinha posto uma vela
acesa na sua sepultura. A neve tinha sido afastada,
e o toco de cera ainda estava l quando fomos
desenterr-lo.
Como um co procura de um osso.
Eu tinha medo de que voc no
compreendesse.
No compreendi. S aceitei a palavra de
Olhos-de-Noite.
Era o mximo com que eu conseguiria lidar
naquele momento. Tentei deixar a conversa
morrer. Mas Bronco estava inflexvel.
Se voltasse Torre do Cervo ou Cidade de
Torre do Cervo, eles o matariam. Voc seria
enforcado sobre a gua e queimariam o seu corpo.
Ou iram desmembr-lo. Mas as pessoas se
assegurariam de que desta vez voc ficaria morto.
Eles me odiavam tanto assim?
Odi-lo? No. Eles gostavam bastante de
voc, aqueles que o conheciam. Mas se
regressasse, um homem que morreu e foi
enterrado, caminhando de novo entre eles, teriam
medo de voc. No algo que se possa afastar
falando em truques. A Manha no uma magia em
que as pessoas pensem com agrado. Quando um
homem acusado dela e depois morre e
enterrado, bem, para que se lembrassem com
simpatia, teria de ficar morto. Se o vissem
andando por a, tomariam isso como prova de que
Majestoso tinha razo; de que voc praticava a
magia dos animais e a usou para matar o rei.
Teriam de mat-lo de novo. Com mais esmero da
segunda vez. Bronco levantou-se de repente e
deu duas voltas na sala. Raios me partam, mas
uma bebida cairia bem disse.
Para mim tambm eu disse em voz baixa.
Dez dias mais tarde, Breu subiu pelo caminho. O
velho assassino caminhava lentamente, com o
auxlio de um basto, e trazia a sua mochila bem
erguida sobre os ombros. O dia estava tpido, e
ele atirara para trs o capuz do manto. O seu longo
cabelo grisalho era soprado pelo vento e ele
deixara a barba crescer para lhe cobrir uma
poro maior do rosto. primeira vista, parecia
um vendedor itinerante. Um velho cheio de
cicatrizes, talvez, mas j no o Homem Pustulento.
O vento e o sol tinham lhe bronzeado o rosto.
Bronco havia ido pescar, que era uma coisa que
preferia fazer sozinho. Olhos-de-Noite viera tomar
sol nossa porta, na ausncia de Bronco, mas
voltara a fundir-se com a floresta por trs da
cabana assim que sentira o odor de Breu no ar. Eu
estava s.
Durante algum tempo, observei-o aproximar-se.
O inverno o envelhecera, nas rugas do rosto e no
grisalho do cabelo. Mas caminhava com mais
fora do que eu me lembrava, como se as
privaes o tivessem endurecido. Por fim, fui ao
seu encontro.
Rapaz? perguntou com cautela quando me
aproximei. Consegui fazer um aceno e um sorriso.
O sorriso que lhe surgiu no rosto em resposta me
encheu de humildade. Deixou cair o bordo para
me abraar e depois encostou o rosto no meu como
se eu fosse uma criana. Oh, Fitz, Fitz, meu
rapaz disse, numa voz cheia de alvio.
Pensei que tnhamos perdido voc. Pensei que
tnhamos feito algo pior do que deix-lo morrer.
Os seus velhos braos estavam apertados e
fortes em volta de mim.
Fui gentil com o velho. No lhe disse que tinham
feito isso mesmo.
CAPTULO 2

A Separao

Depois de se coroar Rei dos Seis Ducados, o


Prncipe Majestoso Visionrio essencialmente
abandonou os Ducados Costeiros aos seus
prprios desgnios. Despojou Torre do Cervo
propriamente dita e uma boa parte do Ducado de
Cervo do mximo de dinheiro que conseguiu
espremer de l. Cavalos e gado de Torre do
Cervo tinham sido vendidos, tendo os de melhor
qualidade sido levados para o interior, para a
nova residncia de Majestoso em Vaudefeira. Os
mveis e a biblioteca da sede tradicional da
monarquia tambm foram saqueados, em parte
para revestir o novo ninho, em parte para
distribuir pelos seus duques e nobres do Interior,
como favores, ou para serem vendidos a eles sem
reservas. Celeiros, adegas de vinhos, os
armeiros, tudo foi pilhado, e o saque foi enviado
para o interior.
O plano que fora anunciado residira em levar
o enfermo Rei Sagaz e a Rainha Expectante
Kettricken, viva e grvida, para Vaudefeira, a
fim de ficarem a salvo das incurses de Navios
Vermelhos que atormentavam os Ducados
Costeiros. Isso tambm serviu de desculpa para o
saque das moblias e coisas de valor de Torre do
Cervo. Mas com a morte de Sagaz e o
desaparecimento de Kettricken, at esse motivo
pouco convincente desapareceu. Entretanto, ele
abandonou Torre do Cervo to depressa quanto
pde aps a coroao. Conta-se a histria de que
quando o seu Conselho de Nobres questionou
essa deciso, ele lhes disse que os Ducados
Costeiros representavam para si mesmo apenas
guerra e despesas, que sempre tinham sido uma
sanguessuga presa aos recursos dos Ducados
Interiores e que desejava aos ilhus alegria na
conquista de um lugar to rochoso e despido de
alegria. Majestoso, mais tarde, negou ter alguma
vez proferido tais palavras.
Quando Kettricken desapareceu, o Rei
Majestoso foi deixado numa posio para a qual
no havia qualquer precedente histrico. O filho
que Kettricken esperava fora obviamente a
pessoa seguinte na linha de sucesso. Mas tanto
a rainha como a criana por nascer haviam
desaparecido, sob circunstncias muito
suspeitas. Nem todos tinham certeza de que no
fora o prprio Majestoso quem orquestrou o
desaparecimento. Mesmo se a rainha tivesse
permanecido em Torre do Cervo, a criana no
podia assumir sequer o ttulo de Prncipe
Herdeiro por pelo menos dezessete anos.
Majestoso ficou muito ansioso para assumir o
ttulo de rei to depressa quanto possvel, mas,
por lei, precisava do reconhecimento de todos os
Seis Ducados para poder reclam-lo. Comprou a
coroa com vrias concesses aos seus Duques
Costeiros. A principal foi a promessa de manter
Torre do Cervo guarnecida e pronta para
defender a costa.
O comando da antiga fortaleza foi impingido
ao sobrinho mais velho de Majestoso, herdeiro
do Duque titular de Vara. Dom Brilhante, aos
vinte e cinco anos, tornara-se impaciente
esperando que o pai lhe passasse poder para as
mos. Estava mais do que disposto a assumir a
autoridade sobre Torre do Cervo e Cervo, mas
tinha pouca experincia a que recorrer.
Majestoso foi para o interior, para o Castelo de
Vaudefeira na margem do rio Vim, em Vara,
enquanto o jovem Dom Brilhante permaneceu em
Torre do Cervo com uma guarda selecionada de
homens de Vara. No h relatos de Majestoso ter
lhe deixado quaisquer fundos com os quais
operar, de modo que o jovem fez o possvel para
extorquir aquilo de que precisava dos
mercadores da Cidade de Torre do Cervo, e dos
j sobrecarregados agricultores e pastores do
Ducado de Cervo que rodeavam o castelo.
Embora no haja sinais de que ele sentisse
alguma m vontade para com o povo de Cervo ou
dos outros Ducados Costeiros, tambm no tinha
nenhuma lealdade para com eles.
Nessa poca, tambm mantinha residncia em
Torre do Cervo um punhado dos nobres de menor
estatuto de Cervo. A maior parte dos
proprietrios de Cervo encontrava-se nas suas
prprias fortalezas, fazendo o pouco que podiam
para proteger o povo da regio. Entre os que
permaneceram em Torre do Cervo, a mais digna
de nota era a Dama Pacincia, que fora Princesa
Herdeira at o marido, o Prncipe Cavalaria,
abdicar do trono em favor do irmo mais novo,
Veracidade. Os soldados de Cervo, a guarda
pessoal da Rainha Kettricken e os poucos homens
que restavam da guarda do Rei Sagaz
guarneciam a Torre do Cervo. O moral era baixo
entre os soldados, pois os salrios eram
intermitentes e as raes pobres. Dom Brilhante
trouxera consigo para Torre do Cervo a sua
guarda pessoal, e naturalmente preferia esses
homens aos de Cervo. A situao tornou-se ainda
mais complicada devido a uma cadeia de
comando pouco clara. Em teoria, as tropas de
Cervo deviam responder perante o Capito
Quefel dos homens de Vara, o comandante da
guarda de Dom Brilhante. Na realidade,
Rapoluva da Guarda da Rainha, Corte da
Guarda de Torre do Cervo e o velho Rubro da
guarda do Rei Sagaz uniram-se e guardavam
para si mesmos os seus planos. Se respondiam
regularmente perante algum, esse algum era a
Dama Pacincia. Com o tempo, os soldados de
Cervo passaram a falar dela como a Senhora de
Torre do Cervo.
Mesmo depois da coroao, Majestoso
manteve-se inquieto a respeito do seu ttulo.
Enviou mensageiros para todo o lado, em busca
de notcias sobre onde poderiam estar a Rainha
Kettricken e o herdeiro por nascer. As suas
suspeitas de que ela poderia ter procurado
abrigo junto do pai, o Rei Eyod do Reino da
Montanha, levaram-no a exigir a sua devoluo.
Quando Eyod respondeu dizendo que o paradeiro
da Rainha dos Seis Ducados no dizia respeito
ao povo da Montanha, Majestoso cortou, furioso,
os laos com o Reino da Montanha,
interrompendo o comrcio e tentando bloquear a
travessia das fronteiras at a viajantes comuns.
Ao mesmo tempo, comearam a circular rumores,
que quase de certeza tiveram incio a mando de
Majestoso, sobre o beb que Kettricken esperava
no ter sido gerado por Veracidade e que, por
esse motivo, no tinha qualquer pretenso
legtima ao trono dos Seis Ducados.
Foi um tempo amargo para o povo de Cervo.
Abandonado pelo seu rei e defendido apenas por
uma pequena fora de soldados fracamente
aprovisionados, o povo foi deixado sem leme num
mar tempestuoso. O que os Salteadores no
roubaram ou destruram, os homens de Dom
Brilhante apreenderam como imposto. As
estradas passaram a ser assoladas por ladres,
pois quando um homem honesto no consegue
sobreviver, as pessoas faro o que tiverem de
fazer. Pequenos vendedores ambulantes
desistiram de qualquer esperana de ganhar a
vida e fugiram da costa, para se tornarem
pedintes, ladres e prostitutas nas cidades do
interior. O comrcio morreu, pois os navios que
eram enviados para o mar raramente
regressavam.

Breu e eu nos sentamos no banco em frente da


cabana e conversamos. No falamos de coisas
portentosas, nem dos acontecimentos significativos
do passado. No discutimos o meu regresso de
alm-tmulo ou a situao poltica atual. Falamos
sobre as coisas pequenas que partilhvamos como
se eu tivesse regressado de uma longa viagem.
Sorrateiro, a doninha, estava envelhecendo; o
ltimo inverno o deixara com os movimentos
presos e nem mesmo a vinda da primavera lhe
dera nova vida. Breu temia que no durasse mais
um ano. Breu finalmente conseguira secar folhas
de planta galhardete sem deix-las embolorar, mas
descobrira que a erva seca tinha pouca potncia.
Ambos sentamos falta dos bolos da Cozinheira
Sara. Breu perguntou se havia alguma coisa no
meu quarto que eu quisesse. Majestoso mandara
revist-lo e o deixara em desordem, mas Breu no
achava que tivessem levado muitas coisas, ou que
dariam pela falta daquilo que eu quisesse agora.
Perguntei se se lembrava da tapearia do Rei
Sabedoria negociando com os Antigos. Ele
respondeu que sim, mas que a tapearia era muito
mais volumosa do que o que conseguiria arrastar
at ali em cima. Eu lhe lancei um olhar to
magoado que ele imediatamente cedeu e disse que
supunha que poderia encontrar um jeito de faz-lo.
Sorri.
Era uma piada, Breu. Aquela coisa nunca fez
nada a no ser me dar pesadelos quando eu era
pequeno. No. No h nada no meu quarto que
agora seja importante para mim.
Breu olhou para mim, quase com tristeza.
Voc deixa para trs uma vida com o qu? A
roupa que traz no corpo e um brinco? E diz que
no h nada l que queira que lhe seja trazido. Isso
no lhe parece estranho?
Fiquei pensando por um momento. A espada que
Veracidade me dera. O brinco de prata que o Rei
Eyod me dera e que fora de Rurisk. Um alfinete da
Dama Graa. A flauta de Pacincia estivera no
meu quarto esperava que a tivesse recuperado.
As minhas tintas e papis. Uma caixinha que
esculpira para guardar os meus venenos. Entre
Moli e eu nunca houvera penhores. Ela nunca quis
deixar que eu lhe oferecesse presentes, e eu nunca
pensei em lhe roubar uma fita do cabelo. Se o
tivesse feito
No. Um rompimento completo melhor,
talvez. Embora voc tenha esquecido uma coisa.
Virei o colarinho da minha camisa grosseira
para lhe mostrar o minsculo rubi envolto em
prata. O alfinete que Sagaz me deu, para me
marcar como seu. Ainda tenho isso. Pacincia o
usara para prender a mortalha em que tinham me
enrolado. Pus esse pensamento de lado.
Ainda estou surpreso por a guarda de
Majestoso no ter saqueado o seu corpo. Suponho
que a Manha tenha uma reputao to maligna que
eles temiam voc tanto morto como vivo.
Ergui a mo para passar os dedos pelo dorso do
nariz onde ele fora quebrado.
No pareceram me temer nem um pouco, pelo
que pude notar.
Breu deu um sorriso torto.
O nariz o incomoda, ? Acho que d mais
personalidade ao seu rosto.
Olhei-o de soslaio luz do sol.
mesmo?
No. Mas o que a boa educao manda
dizer. Na verdade, no est muito ruim. Quase
parece que algum tentou p-lo no lugar.
Estremeci com a ponta cortante de uma
recordao.
No quero pensar nisso disse-lhe com
honestidade.
Seu rosto de repente ficou anuviado de dor por
mim. Afastei o olhar dele, incapaz de suportar a
sua piedade. As recordaes dos espancamentos
que eu sofrera eram mais suportveis se eu
conseguisse fingir que ningum mais soubera
deles. Sentia vergonha do que Majestoso me
fizera. Encostei a cabea na madeira ensolarada da
parede da cabana e soltei um longo suspiro.
Ento, o que est acontecendo l embaixo
onde as pessoas ainda esto vivas?
Breu pigarreou, aceitando a mudana de assunto.
Bem. O quanto voc sabe?
No muito. Sei que Kettricken e o Bobo
escaparam. Que Pacincia pode ter ouvido dizer
que Kettricken chegou em segurana s Montanhas.
Que Majestoso est zangado com o Rei Eyod das
Montanhas e cortou as rotas comerciais. Que
Veracidade ainda est vivo, mas ningum teve
notcias dele.
Opa! Opa! Breu empertigou-se. O
rumor sobre Kettricken Lembra-se dele da noite
em que Bronco e eu o discutimos.
Desviei o olhar.
Da mesma maneira que poderia recordar de
um sonho que j teve. Em cores submersas e com
os acontecimentos fora de ordem. S me lembro de
que ouvi vocs dizerem qualquer coisa sobre isso.
E aquela parte sobre Veracidade? A
tenso sbita nele fez com que um arrepio de
terror me descesse pela espinha.
Ele se comunicou comigo pelo Talento
naquela noite respondi em voz baixa. Eu
disse que ele estava vivo.
RAIOS! Breu levantou-se de um salto e
correu pela sala saltitando de fria. Era um
espetculo que nunca testemunhei antes e o
encarei, encurralado entre o espanto e o medo.
Bronco e eu no demos crdito s suas palavras!
Oh, ficamos satisfeitos por ouvirmos voc proferi-
las, e quando fugiu ele disse: Deixe o garoto ir,
aquilo o mximo que conseguir fazer hoje, ele
se lembra do seu prncipe. Pensamos que era s
isso. Raios e mais raios! Parou de sbito e me
apontou um dedo. Relate. Conte-me tudo.
Procurei s apalpadelas aquilo de que me
lembrava. Era to difcil de organizar como se o
tivesse visto atravs dos olhos do lobo.
Ele estava com frio. Mas estava vivo. Ou
cansado, ou ferido. Lento, de alguma forma. Ele
tentava entrar em contato comigo e eu o empurrava
para longe, de modo que no parava de sugerir que
eu bebesse. Para fazer com que baixasse as
defesas, suponho
Onde ele estava?
No sei. Neve. Uma floresta. Tentei
alcanar memrias fantasmagricas. Acho que
ele no sabia onde estava.
Os olhos verdes de Breu me perfuraram.
Consegue alcan-lo, senti-lo de algum
modo? Consegue me dizer se ainda est vivo?
Sacudi a cabea. Meu corao comeava a
saltar no peito.
Consegue contact-lo agora pelo Talento?
Sacudi a cabea. Senti um aperto na barriga com
a tenso.
A frustrao de Breu cresceu com cada sacudida
da minha cabea.
Maldio, Fitz, precisa faz-lo!
No quero! gritei de sbito. Estava de p.
Fuja! Fuja depressa!
E fugi. De repente, foi assim to simples. Fugi
de Breu e da cabana como se todos os demnios
das ilhas infernais dos ilhus estivessem no meu
encalo. Breu chamou por mim, mas eu me recusei
a escutar as suas palavras. Fugi, e assim que
penetrei no abrigo das rvores, Olhos-de-Noite
ps-se ao meu lado.
Por a no, o Corao da Matilha est a,
avisou-me ele. De modo que nos precipitamos
colina acima, para longe do riacho, subindo at um
grande emaranhado de saras suspenso sobre um
talude onde Olhos-de-Noite se abrigava em noites
de tempestade. O que foi? Qual era o perigo?,
quis saber Olhos-de-Noite.
Ele queria que eu regressasse , admiti passado
algum tempo. Tentei enquadrar o problema de
maneira que Olhos-de-Noite compreendesse. Ele
queria que eu que eu deixasse de ser um lobo.
Um sbito arrepio me percorreu a espinha. Ao
explicar a Olhos-de-Noite, fiquei cara a cara com
a verdade. Ser um lobo, sem passado, sem futuro,
s com o hoje. Ou um homem, atormentado pelo
passado, cujo corao bombeava medo juntamente
com o sangue. Podia caminhar sobre duas pernas,
e conhecer a vergonha e a falta de coragem como
modo de vida. Ou correr de quatro e esquecer
tudo, at Moli no passar de um odor agradvel de
que me lembrava. Sentei-me, imvel, entre as
saras, com a mo pousada com delicadeza no
dorso de Olhos-de-Noite, os olhos fitando um
lugar que s eu podia ver. Lentamente, a luz mudou
e a tarde transformou-se em crepsculo. A minha
deciso cresceu to lenta e inevitavelmente como a
escurido que chegava. O meu corao gritou
contra ela, mas as alternativas eram insuportveis.
Pus nela a minha vontade.
Estava escuro quando regressei. Esgueirei-me
para casa com o rabo entre as pernas. Era estranho
regressar cabana de novo como lobo, cheirar a
fumaa de madeira que se erguia no ar como coisa
de homem, e piscar diante do brilho do fogo que
escapava atravs das folhas das janelas.
Relutantemente, libertei a mente da de Olhos-de-
Noite.
No preferia caar comigo?
Preferia muito mais caar com voc. Mas esta
noite no posso.
Por qu?
Sacudi a cabea. O gume da deciso estava to
afiado e novo que no me atrevi a test-lo falando.
Parei no limite da floresta para sacudir as folhas e
a terra da roupa e alisar para trs o cabelo e voltar
a at-lo num rabo de cavalo. Esperei que meu
rosto no estivesse sujo. Endireitei os ombros e
me forcei a caminhar de volta cabana, a abrir a
porta e entrar e olhar para eles. Senti-me
horrivelmente vulnervel. Eles tinham estado
trocando informaes sobre mim. Os dois
conheciam quase todos os meus segredos. A minha
desgastada dignidade pendia agora em farrapos.
Como eu podia me erguer diante deles e esperar
ser tratado como um homem? Mas no podia
culp-los por isso. Eles tinham tentado me salvar.
De mim prprio, verdade, mas me salvar mesmo
assim. No era culpa deles que o que tinham
salvado de pouco prestasse.
Estavam mesa quando entrei. Se tivesse fugido
daquela maneira algumas semanas antes, Bronco
teria dado um salto, para me sacudir e dar uma
bofetada quando regressasse. Eu sabia que agora
j estvamos alm desse tipo de coisa, mas a
lembrana me deu uma cautela que no consegui
disfarar por completo. No entanto, o rosto dele
mostrou apenas alvio, enquanto Breu me olhava
com vergonha e preocupao.
No queria pression-lo tanto disse ele,
muito srio, antes de eu poder falar.
No pressionou eu disse em voz baixa.
Apenas colocou o dedo no lugar onde eu mesmo
vinha me pressionando mais. s vezes um homem
no sabe quo ferido est at que outra pessoa
verifique o ferimento.
Puxei minha cadeira. Aps semanas de comida
simples, ver queijo, mel e vinho de sabugueiro
postos ao mesmo tempo na mesa era quase um
choque. Tambm havia um po para complementar
a truta que Bronco apanhara. Durante algum tempo,
apenas comemos, sem conversas que no fossem
pedidos de mesa. Isso pareceu diminuir a
estranheza. Mas no momento em que a refeio
terminou e a loua foi tirada, a tenso regressou.
Agora compreendo a sua pergunta disse
Bronco de repente. Tanto Breu como eu olhamos
surpresos para ele. H alguns dias, quando
voc perguntou o que faramos em seguida.
Compreenda que eu desistira de Veracidade, pois
achava que estava perdido. Kettricken esperava o
seu herdeiro, mas estava agora a salvo nas
Montanhas. Nada mais havia que eu pudesse fazer
por ela. Se interviesse de alguma maneira, eu
poderia denunci-la a outros. Era melhor deix-la
permanecer escondida, em segurana com o povo
do pai. Quando o filho chegasse idade de
procurar alcanar o trono Bem, se a essa altura
eu no estivesse na tumba, suponho que faria o que
pudesse. Por ora, eu via o servio ao meu rei
como uma coisa do passado. Assim, quando me fez
a pergunta, vi apenas a necessidade de cuidar de
ns.
E agora? perguntei eu em voz baixa.
Se Veracidade ainda est vivo, ento um
pretendente reclamou o seu trono. Sou obrigado
por juramento a ir em auxlio do meu rei. Breu
tambm. E voc. Ambos estavam me olhando
com grande intensidade.
Fuja de novo.
No posso.
Bronco vacilou como se eu tivesse lhe espetado
com um alfinete. Perguntei a mim mesmo se ele se
atiraria em cima de mim para me impedir de ir na
direo da porta. Mas ele no falou nem se mexeu,
limitou-se a esperar.
Eu no. Esse Fitz morreu eu disse, sem
rodeios.
Bronco fez uma expresso como se eu lhe
tivesse batido. Mas Breu perguntou em voz baixa:
Ento por que que ele ainda usa o alfinete
do Rei Sagaz?
Ergui a mo e o tirei do colarinho. Tome, eu
pretendera dizer, tome, pegue-o e tudo o que ele
traz consigo. Para mim, acabou. No tenho vontade
para isso. Mas me limitei a olh-lo.
Vinho de sabugueiro? ofereceu Breu, mas
no a mim.
Esta noite est frio. Vou fazer ch
contraps Bronco.
Breu assentiu. E eu continuei sentado com o
alfinete vermelho e prateado na mo. Lembrei-me
das mos do meu rei enquanto espetava o alfinete
nas dobras da camisa de um garoto. Pronto,
dissera ele. Agora voc meu. Mas agora ele
estava morto. Isso me libertava da minha
promessa? E a ltima coisa que ele me dissera?
No que eu o tornei? Voltei uma vez mais a pr
essa pergunta de lado. Mais importante: o que eu
era agora? Seria agora o que Majestoso me
tornara? Ou poderia escapar disso?
Majestoso me disse falei num tom
pensativo que bastava que eu me coasse para
encontrar Annimo, o garoto-co. Ergui o olhar
e me forcei a enfrentar o de Bronco. Talvez
fosse agradvel ser ele.
Seria? perguntou Bronco. Houve uma
poca em que voc no pensava assim. Quem
voc, Fitz, se no for o Homem do Rei? O que ?
Para onde iria?
Para onde eu iria, se fosse livre? Para junto de
Moli, gritou o meu corao. Sacudi a cabea,
atirando a ideia para longe antes de ter tempo de
me queimar. No. Mesmo antes de ter perdido a
vida, j a perdera. Refleti sobre a minha vazia,
amarga liberdade. S havia um lugar para onde
realmente podia ir. Reforcei a vontade, ergui os
olhos e os prendi nos de Bronco com firmeza.
Vou embora. Para qualquer lugar. Para os
Estados de Calcede, para Vilamonte. Sou bom com
os animais, tambm sou um escriba decente.
Poderia sobreviver.
Sem dvida alguma. Mas sobreviver no
viver observou Bronco.
Bem, e o que ? perguntei, realmente
zangado de sbito. Por que eles tinham de tornar
aquilo to difcil? As palavras e os pensamentos
jorraram subitamente de mim como veneno de um
ferimento gangrenado. Quer que eu me dedique
ao meu rei e sacrifique todo o resto, como voc
fez. E quando esse rei o abandonou? Engoliu, criou
o seu bastardo no lugar dele. Depois tiraram tudo
de voc, estbulo, cavalos, ces, homens que
comandava. No lhe deixaram nada, nem sequer
um teto sobre a cabea, esses reis aos quais voc
havia feito juramentos. Ento, o que voc fez? Sem
que nada mais lhe restasse, agarrou-se a mim,
arrastou o bastardo para fora de um caixo e o
obrigou a regressar vida. Uma vida que eu odeio,
uma vida que no quero! Encarei-o, furioso,
com olhos acusadores.
Ele ficou me olhando, sem palavras. Quis parar,
mas algo me levou a continuar. A ira trazia uma
sensao agradvel, como se fosse um fogo
purificador. Cerrei as mos em punhos enquanto
perguntava:
Por que voc est sempre presente? Por que
que me coloca sempre em p, para que eles me
derrubem? Para qu? Para fazer com que eu lhe
deva alguma coisa? Para lhe dar direito minha
vida porque no teve coragem para arranjar uma
vida para voc? Tudo o que pretende me tornar
igual a voc, um homem sem vida prpria, um
homem que desiste de tudo pelo meu rei. No
percebe que h mais em estar vivo do que desistir
de tudo por outra pessoa?
Enfrentei os seus olhos, e em seguida afastei os
meus da estupefao magoada que vi ali.
No eu disse, pesadamente, depois de
respirar. Voc no percebe, no pode saber.
No sequer capaz de imaginar o que me tirou. Eu
devia estar morto, mas voc no quis me deixar
morrer. Tudo com a melhor das intenes,
acreditando sempre que estava fazendo aquilo que
estava certo, por mais que isso me magoasse. Mas
quem lhe deu esse direito sobre mim? Quem
decretou que me podia fazer isso?
No havia qualquer som na sala alm da minha
voz. Breu estava congelado, e a expresso no rosto
de Bronco s me zangava mais. Vi-o se recompor.
Tentou recuperar o seu orgulho e dignidade
quando disse em voz baixa:
Foi o seu pai que me deu essa tarefa, Fitz. Eu
fiz o melhor que pude com voc, garoto. A ltima
coisa que o meu prncipe me disse, que Cavalaria
me disse, foi Crie-o bem. E eu
Desistiu da dcada seguinte da sua vida para
criar o bastardo de outro homem interrompi
com um violento sarcasmo. Tomou conta de
mim, porque era a nica coisa que realmente sabia
fazer. Toda a sua vida, Bronco, voc tem cuidado
de algum, posto algum em primeiro lugar,
sacrificando qualquer tipo de vida normal para
proveito de outra pessoa. Leal como um co de
caa. Isso uma vida? Nunca pensou em ser dono
de si mesmo e tomar as suas prprias decises?
Ou ser o medo disso que o empurra pelo gargalo
de uma garrafa abaixo? A minha voz
transformara-se num grito. Quando me faltaram as
palavras, fiquei encarando-o, com o peito subindo
e descendo enquanto arquejava a minha fria.
Quando me zangava, quando era mais novo,
prometi frequentemente a mim mesmo que ele um
dia pagaria por cada bofetada que me dera, por
cada cocheira que tivera de limpar quando achava
que estava cansado demais para ficar de p. Com
aquelas palavras cumpri essa promessazinha
amuada e a multipliquei por dez. Os olhos de
Bronco estavam arregalados e a dor era tal que ele
no tinha palavras. Vi o seu peito elevar-se uma
vez, como que para recuperar o flego que um
murro lhe roubara. O choque nos seus olhos era
igual ao que seria se eu tivesse subitamente
mergulhado uma faca no seu corpo.
Encarei-o. No sabia ao certo de onde aquelas
palavras tinham vindo, mas era tarde demais para
cham-las de volta. Dizer Desculpe no as
desdiria, no as mudaria nem um pouco. De
repente, esperei que ele fosse me bater, que desse
a ns dois pelo menos isso.
Ele levantou-se de uma forma desequilibrada,
arrastando pelo cho as pernas da cadeira. A
prpria cadeira oscilou e caiu com estrondo
quando ele se afastou dela. Bronco, que caminhava
com tanta firmeza quando estava cheio de
conhaque, cambaleou como um bbado ao dirigir-
se para a porta e sair para a noite. Eu permaneci
apenas sentado, sentindo algo dentro de mim ficar
muito imvel. Tive a esperana de que fosse o
corao.
Durante um momento, tudo foi silncio. Um
longo momento. Ento Breu suspirou.
Por qu? perguntou em voz baixa, passado
algum tempo.
No sei. Eu mentia to bem. Foi o prprio
Breu quem me ensinou. Olhei para o fogo. Durante
um momento, quase tentei lhe explicar. Decidi que
no podia. Dei por mim falando com rodeios.
Talvez precisasse me libertar dele. De tudo o que
ele faria por mim, mesmo quando eu no quisesse.
Ele tem de parar de fazer coisas pelas quais nunca
lhe poderei pagar. Coisas que nenhum homem
devia fazer por outro, sacrifcios que nenhum
homem devia fazer por outro. No quero lhe dever
mais nada. No quero dever nada a ningum.
Quando Breu falou, foi com objetividade. Tinha
as mos de longos dedos sobre as coxas,
calmamente, quase relaxadas. Mas os olhos verdes
tinham tomado a cor do minrio de cobre, e a sua
fria vivia neles.
Desde que voc voltou do Reino da
Montanha, como se estivesse ansioso por uma
briga. Seja com quem for. Quando era menino e
ficava carrancudo ou amuado, eu podia atribuir
isso ao fato de voc ser um menino, com o
discernimento e frustraes de um menino. Mas
voc voltou com uma ira. Como um desafio ao
mundo inteiro para que o matasse, se conseguisse.
No foi s voc ter se atirado na frente de
Majestoso: voc mergulhava em tudo o que lhe
fosse mais perigoso. Bronco no foi o nico a ver
isso. Veja o ltimo ano: todas as vezes que eu me
virava, l estava Fitz, rebelando-se contra o
mundo, no meio de uma briga ou no seio de uma
batalha, envolto em bandagens, bbado como um
pescador, ou mole como uma corda e chorando por
casco-de-elfo. Quando esteve calmo e pensativo,
quando esteve alegre com os amigos, quando
esteve simplesmente em paz? Se no estivesse
desafiando os inimigos, estava afastando teus
amigos. O que aconteceu entre voc e o Bobo?
Onde Moli est agora? Acabou de mandar Bronco
embora. Quem o prximo?
Voc, suponho. As palavras saram de
mim de qualquer modo, inevitveis. No queria
diz-las, mas no podia refre-las. Era hora.
J avanou bastante nessa direo com a
maneira como falou com Bronco.
Eu sei eu disse, sem rodeios. Enfrentei seu
olhar. J faz muito tempo que nada do que eu
fao lhe agrada. Ou a Bronco. Ou seja a quem for.
Ultimamente, parece que no consigo tomar uma
boa deciso.
Com isso concordo disse Breu,
implacvel.
E estava de volta, a brasa da minha fria
erguendo-se em chama.
Talvez porque nunca me foi dada a chance de
tomar as minhas prprias decises. Talvez porque
durante muito tempo fui o garoto de todos. O
cavalario de Bronco, o seu aprendiz de assassino,
o animal de estimao de Veracidade, o pajem de
Pacincia. Quando foi que eu pude ser meu, agir
por mim? Fiz a pergunta num tom feroz.
Quando foi que no o fez? perguntou Breu
com a mesma intensidade. Isso foi tudo o que
voc fez desde que voltou das Montanhas. Foi at
Veracidade para dizer que voc tinha se cansado
de ser um assassino precisamente quando um
trabalho discreto era necessrio. Pacincia tentou
avis-lo para voc se manter longe de Moli, mas
voc tambm agiu como bem entendeu a esse
respeito. Isso a transformou num alvo. Voc
arrastou Pacincia para conspiraes que a
expuseram ao perigo. Voc se ligou ao lobo,
apesar de tudo o que Bronco lhe disse. Questionou
todas as minhas decises a respeito da sade do
Rei Sagaz. E o seu penltimo ato estpido em
Torre do Cervo foi se voluntariar para participar
de uma revolta contra a coroa. Levou-nos mais
perto de uma guerra civil do que estivemos numa
centena de anos.
E o meu ltimo ato estpido? perguntei
com uma curiosidade amarga.
Matar Justino e Serena. Proferiu a
acusao de uma forma taxativa.
Tinham acabado de esgotar o meu rei, Breu
observei num tom gelado. Mataram-no nos
meus braos, por assim dizer. O que eu deveria
fazer?
Ele levantou-se e de algum modo conseguiu
avultar-se, como antigamente.
Com todos os anos de treino comigo, todos
os meus ensinamentos a respeito de um trabalho
discreto, saiu correndo pelo castelo afora de faca
desembainhada, cortando a garganta de uma e
apunhalando o outro at a morte no Grande Salo,
perante toda a nobreza ali reunida Meu belo
aprendiz de assassino! No conseguiu pensar em
outra forma de concretizar o que queria fazer?
Eu estava zangado! bradei.
Exatamente! bradou ele em resposta.
Voc estava zangado. De modo que destruiu a
nossa base de poder em Torre do Cervo! Tinha a
confiana dos Duques Costeiros e decidiu se
mostrar a eles como um louco! Estilhaou o ltimo
resqucio de f que tinham na linhagem Visionrio!
Pouco tempo atrs, voc me censurou por ter
a confiana desses duques.
No. Censurei-o por se exibir na frente deles.
Nunca devia ter deixado que oferecessem a voc o
governo de Torre do Cervo. Se tivesse cumprido
os seus deveres como devia, tal pensamento nunca
lhes teria sequer ocorrido. Vezes sem conta, voc
se esquece do seu lugar. Voc no um prncipe,
um assassino. No o jogador, a pea do jogo. E
quando faz as suas prprias jogadas, estraga todas
as outras estratgias e pe em perigo todas as
peas no tabuleiro!
No ser capaz de pensar numa resposta no o
mesmo que aceitar as palavras de outra pessoa.
Olhei-o, furioso. Ele no se afastou, continuou
simplesmente de p, olhando-me de cima para
baixo. Sob o exame do olhar verde de Breu, a
fora da minha fria me abandonou de repente,
deixando apenas amargura. A corrente subterrnea
e secreta de medo voltou uma vez mais
superfcie. A determinao jorrou de mim como
sangue. No podia fazer aquilo. No tinha a fora
necessria para desafiar os dois. Passado algum
tempo, me ouvi dizer, num tom mal-humorado:
Certo. Muito bem. Voc e Bronco tm razo,
como sempre. Prometo que no voltarei a pensar,
simplesmente obedecerei. O que quer que eu faa?
No. Sucinto.
No o qu?
Ele sacudiu a cabea lentamente.
O que se tornou mais claro para mim, esta
noite, que no devo basear nada em voc. No
receber de mim nenhuma misso, nem continuar
a par dos meus planos. Esses dias terminaram.
No consegui compreender o tom definitivo da sua
voz. Ele virou-se de lado, deixando os olhos
partirem para longe. Quando voltou a falar, no foi
como meu mestre, mas como Breu. Olhou para a
parede enquanto falava. Eu amo voc, garoto.
No retiro isso. Mas voc perigoso. E o que
temos de tentar fazer j suficientemente perigoso
sem que voc perca as estribeiras em pleno ato.
Vo tentar o qu? perguntei, sem me
conter.
Os seus olhos encontraram-se com os meus
enquanto ele sacudia lentamente a cabea. Ao
guardar esse segredo, ele quebrou os nossos laos.
Senti-me subitamente deriva. Observei-o,
aturdido, pegar a mochila e o manto.
noite l fora observei. E at Torre do
Cervo a caminhada longa e dura, mesmo luz do
dia. Pelo menos fique durante a noite, Breu.
No posso. Voc simplesmente iria
escarafunchar nesta discusso como se fosse uma
casca de ferida, at conseguir faz-la sangrar de
novo. J foram ditas palavras duras o suficiente.
melhor eu ir agora.
E foi o que fez.
Fiquei sozinho, sentado vendo o fogo apagar.
Fora longe demais com ambos, muito mais longe
do que pretendera ir. Quisera me separar deles; em
vez disso, envenenara todas as recordaes de
mim que eles teriam. Estava feito. No havia
maneira de remediar aquilo. Levantei-me e
comecei a juntar as minhas coisas. Levei muito
pouco tempo. Enfiei-as numa trouxa feita com o
meu manto de inverno. Perguntei a mim mesmo se
agia por ressentimento infantil, ou por um sbito
poder de deciso. Perguntei a mim mesmo se
haveria alguma diferena. Fiquei algum tempo
sentado junto da lareira, agarrado trouxa. Queria
que Bronco voltasse, para poder ver que eu
lamentava, para saber que eu lamentava ao partir.
Obriguei-me a examinar isso com cuidado. Ento
desfiz a trouxa, estendi a manta na frente da lareira
e deitei-me nela. Desde que Bronco me arrastara
de volta da morte, ele dormira entre mim e a porta.
Talvez tivesse sido para me manter ali. Havia
noites em que parecia que ele era tudo o que se
interpunha entre mim e a escurido. Agora no
estava ali. Apesar das paredes da cabana, senti
que me aninhava sozinho sobre a face nua e
selvagem do mundo.
Voc sempre tem a mim.
Eu sei. E voc tem a mim. Tentei, mas no
consegui colocar nenhum sentimento verdadeiro
naquelas palavras. Despejara toda a emoo que
guardara, e agora eu estava vazio. E to cansado.
Com tanto ainda para fazer.
O cinzento est trocando palavras com o
Corao da Matilha. Quer que eu escute?
No. As palavras deles pertencem a eles. Senti
cime por eles estarem juntos enquanto me
encontrava s. Mas tambm retirei conforto disso.
Bronco talvez convencesse Breu a voltar cabana
at a manh. Talvez Breu conseguisse sugar um
pouco do veneno que eu pulverizara sobre Bronco.
Fitei o fogo. No pensei bem de mim.
H um ponto morto na noite, esse momento mais
frio e mais negro em que o mundo j esqueceu o
crepsculo e a alvorada ainda no uma
promessa. Um momento em que cedo demais
para nos levantarmos, mas to tarde que ir para a
cama faz pouco sentido. Foi nesse momento que
Bronco entrou. Eu no estava dormindo, mas no
me movi. Ele no se deixou enganar.
Breu foi embora disse-me em voz baixa.
Ouvi-o endireitar a cadeira cada. Sentou-se nela e
comeou a descalar as botas. No senti
hostilidade nele, nenhuma animosidade. Era como
se as minhas palavras furiosas nunca tivessem sido
ditas. Ou como se ele tivesse sido empurrado para
alm da ira e magoado at o torpor.
Est escuro demais para ele caminhar eu
disse para as chamas. Falei com cuidado, temendo
quebrar o feitio da calma.
Eu sei. Mas ele levava uma pequena lanterna.
Disse que temia mais ficar, temia no conseguir
manter a determinao com voc. De deix-lo ir.
Aquilo por que eu rosnara horas antes parecia
agora um abandono. O medo ergueu-se em mim,
erodindo a minha determinao. Sentei-me
abruptamente, em pnico. Respirei fundo,
tremendo.
Bronco. O que eu lhe disse h pouco, eu
estava zangado, estava
Acertando em cheio. O som que ele fez
podia ter sido uma gargalhada, se no estivesse to
carregado de amargura.
S do modo como as pessoas que melhor se
conhecem conhecem a melhor maneira de se
magoarem argumentei.
No. como disse. Este co talvez precise
de um dono. A zombaria na voz dele enquanto
falava de si era mais venenosa do que qualquer
veneno que eu tivesse cuspido. No consegui falar.
Ele se endireitou, deixou as botas cairem no cho.
Olhou-me de relance. No pretendi torn-lo
igual a mim, Fitz. Isso no algo que eu deseje a
nenhum homem. Queria que voc fosse como o seu
pai. Mas s vezes me parecia que no importava o
que eu fizesse, voc insistia em modelar a sua vida
pela minha. Ficou algum tempo fitando as
brasas. Por fim, recomeou a falar, em voz baixa,
para o fogo. Soava como se estivesse contando
uma velha histria a uma criana sonolenta.
Eu nasci nos Estados de Calcede. Uma
pequena vila costeira, um porto de pesca e
comrcio. Lodos. A minha me lavava roupas para
me sustentar e minha av. O meu pai morreu
antes de eu nascer, levado pelo mar. A minha av
cuidava de mim, mas era muito velha, e muitas
vezes estava doente. Ouvi mais do que vi o seu
sorriso amargo. Uma vida inteira como escrava
no deixa uma mulher com boa sade. Ela me
amava e fez o melhor que pde comigo. Mas eu
no era um menino que brincasse sossegadamente
na cabana. E no havia ningum em casa com fora
para se opor minha vontade.
Assim me liguei, muito novo, ao nico macho
forte no meu mundo que estava interessado em
mim. Um vira-lata. Sarnento. Marcado. O seu
nico valor era a sobrevivncia, a nica lealdade
para comigo. Tal como a minha lealdade era para
com ele. O seu mundo, os seus costumes, eram
tudo o que eu conhecia. Roubar o que quisesse,
quando quisesse, sem nunca pensar alm desse
momento. Tenho certeza de que sabe o que eu
quero dizer. Os vizinhos pensavam que eu era
mudo. A minha me pensava que eu era lerdo. A
minha av, estou certo, tinha as suas suspeitas.
Tentou afastar o co mas, assim como voc, eu
tinha vontade prpria nessas coisas. Suponho que
tinha cerca de oito anos quando ele se meteu entre
um cavalo e a sua carroa e foi escoiceado at a
morte. Estava roubando uma fatia de presunto na
hora. Levantou-se da cadeira e dirigiu-se aos
seus cobertores.
Bronco afastara Narigudo de mim quando eu era
mais novo do que isso. Eu acreditara que estivesse
morto. Mas Bronco passara pela real e violenta
morte do seu companheiro de vnculo. Era pouco
diferente de voc mesmo morrer.
O que voc fez? perguntei em voz baixa.
Ouvi-o fazendo a cama e deitando-se nela.
Aprendi a falar respondeu ele depois de
um tempo. A minha av me forou a sobreviver
morte de Corte. Num certo sentido, transferi para
ela o meu vnculo. No que eu tenha esquecido dos
ensinamentos de Corte. Tornei-me ladro, e muito
bom. Tornei as vidas da minha me e av um
pouco melhores com o meu novo ofcio, embora
elas nunca tivessem suspeitado do que eu fazia.
Cerca de uma mo cheia de anos mais tarde, a
praga de sangue passou por Calcede. Era a
primeira vez que a via. Ambas morreram, e eu
fiquei sozinho. Ento virei soldado.
Escutei, atnito. Ao longo de todos aqueles
anos, eu o conhecera como um homem taciturno.
Beber nunca lhe soltara a lngua, apenas o tornara
mais silencioso. Agora, as palavras jorravam dele,
levando na torrente os meus anos de dvidas e
suspeitas. Por que de repente ele falava to
abertamente? No sabia. A sua voz era o nico
som na sala iluminada pela lareira.
Comecei a lutar por um pequeno chefe da
terra em Calcede. Jecto. Sem saber ou me importar
por que lutvamos, se havia algo de certo ou
errado nisso. Deu uma bufada suave. Como
eu lhe disse, sobreviver no viver. Mas me sa
suficientemente bem. Ganhei reputao de
maldade. Ningum espera que um rapaz combata
com a ferocidade e artimanhas de um animal. Foi a
minha nica soluo para a sobrevivncia entre o
tipo de homens com quem combati naquela poca.
Mas um dia perdemos uma campanha. Passei
vrios meses, no, quase um ano, aprendendo o
dio que a minha av nutria pelos donos de
escravos. Quando fugi, fiz o que ela sempre
sonhara fazer. Vim para os Seis Ducados, onde
no existem nem escravos, nem escravagistas.
Grisalho era ento Duque de Razos. Fui seu
soldado durante algum tempo. De algum modo
acabei cuidando dos cavalos. Gostei bastante. Os
soldados de Grisalho eram uns cavalheiros
comparados com a escria que servia Jecto, mas
mesmo assim eu preferia a companhia dos cavalos
deles.
Quando a Guerra de Orla da Areia terminou, o
Duque Grisalho me levou para os seus prprios
estbulos. Ali me vinculei a um jovem garanho.
Pescosso. Ele estava aos meus cuidados, mas no
era meu. Grisalho o montava quando ia caar. s
vezes, usavam-no para criao. Mas Grisalho no
era um homem gentil. s vezes colocava Pescosso
para lutar com outros garanhes, como certos
homens usam lutas de ces ou galos como
divertimento. Uma gua no cio, e o melhor
garanho a ganharia. E eu eu estava vinculado a
ele. A sua vida era tanto minha como a minha
prpria. E foi assim que cresci at virar homem.
Ou, pelo menos, at ter a forma de um homem.
Bronco ficou em silncio por um momento. No
precisava me explicar mais nada. Aps algum
tempo, suspirou e prosseguiu.
O Duque Grisalho vendeu Pescosso e seis
guas, e eu fui com os animais. Costa acima, at
Rasgo. Pigarreou. Um tipo qualquer de
praga dos cavalos assolou os estbulos desse
homem. Pescosso morreu, s um dia depois de
comear a adoecer. Consegui salvar duas das suas
guas. Mant-las vivas evitou que eu me
suicidasse. Mas depois, perdi toda a vitalidade.
No prestava para nada, a no ser beber. Alm do
mais, dificilmente restavam animais suficientes
naquele estbulo para justificar que lhe dessem tal
nome. De modo que fui despedido. Acabei me
tornando soldado de novo, desta vez ao servio de
um jovem prncipe chamado Cavalaria. Ele tinha
ido a Rasgo para resolver uma disputa fronteiria
entre os ducados de Razos e Rasgo. No sei por
que o seu sargento me aceitou. Aquelas eram
tropas de primeira categoria, a guarda pessoal do
prncipe. Eu tinha ficado sem dinheiro e estava
dolorosamente sbrio havia trs dias. No cumpria
as exigncias deles como homem, quanto mais
como soldado. No primeiro ms que passei com
Cavalaria me apresentei a ele para procedimentos
disciplinares por duas vezes. Por lutar. Como um
co, ou um garanho. Eu pensava que era a nica
maneira de estabelecer uma posio junto dos
outros.
Da primeira vez que fui levado presena do
prncipe, ainda ensanguentado e lutando, fiquei
chocado por ver que ramos da mesma idade.
Quase todos os seus soldados eram mais velhos do
que eu; esperara confrontar um homem de meia-
idade. Fiquei parado diante dele e o olhei nos
olhos. E algo semelhante a um reconhecimento
passou entre ns. Como se cada um visse o que
poderia ter sido em outras circunstncias. Isso no
o fez me tratar melhor. Perdi o soldo e ganhei
deveres adicionais. Todos esperaram que
Cavalaria me expulsasse da segunda vez. Fiquei
diante, pronto a odi-lo, e ele limitou-se a olhar
para mim. Inclinou a cabea como faria um co ao
ouvir algum som distante. Privou-me de soldo e
me deu mais deveres. Mas no me expulsou.
Todos tinham me dito que eu seria despedido.
Agora todos esperavam que eu desertasse. No sei
dizer por que no o fiz. Por que ser soldado em
troca de nenhum soldo e deveres adicionais?
Bronco voltou a pigarrear. Ouvi-o
aconchegando-se melhor na cama. Durante algum
tempo manteve-se em silncio. Por fim prosseguiu,
quase de m vontade.
Da terceira vez foi por brigar em uma
taberna. A Guarda da Cidade me levou sua
presena, ainda ensanguentado, ainda bbado,
ainda querendo lutar. A essa altura os meus
colegas j no queriam ter nada a ver comigo. O
meu sargento estava descontente e eu no tinha
feito amigos entre os soldados comuns. De modo
que a Guarda da Cidade me prendeu. E disseram a
Cavalaria que eu havia deitado dois homens no
cho e mantido mais cinco distncia, com um
porrete, at que a Guarda chegara e pusera a
vantagem do lado deles.
Cavalaria mandou os guardas embora, com uma
bolsa para pagar os estragos do taverneiro. Estava
sentado sua mesa, com uma coisa qualquer meio
escrita sua frente, e me olhou de cima a baixo.
Depois levantou-se sem uma palavra e empurrou a
mesa para um canto da sala. Tirou a camisa e tirou
um pique do canto. Achei que pretendia me
espancar at a morte. Mas em vez disso me atirou
outro pique. E disse: Est bem, mostre-me como
manteve cinco homens distncia. E atirou-se
sobre mim. Pigarreou. Eu estava cansado e meio
bbado. Mas no quis desistir. Por fim, ele teve
sorte. Nocauteou-me.
Quando acordei, o co tinha de novo um dono.
De uma espcie diferente. Eu sei que voc ouviu
dizer que Cavalaria era frio, rgido e correto em
demasia. No era. Era aquilo que acreditava que
um homem devia ser. Mais do que isso. Era aquilo
que acreditava que um homem devia querer ser.
Pegou um patife gatuno e porco e Hesitou,
suspirou de repente. Obrigou-me a levantar antes
da alvorada no dia seguinte. Exerccios com armas
at que nenhum de ns conseguisse se manter em
p. Nunca antes eu tinha tido qualquer treino
formal com armas. Tinham simplesmente me dado
um pique e mandado lutar. Ele me treinou e me
ensinou esgrima. Ele nunca gostara do machado,
mas eu gostava. Ento me ensinou o que sabia
dele, e arranjou um homem que conhecia as
estratgias da arma para me ensinar. Depois,
durante o resto do dia, eu ficava em seus
calcanhares. Como um co, como voc diz. No
sei por qu. Talvez sentisse falta de algum da sua
idade. Talvez tivesse saudade de Veracidade.
Talvez No sei.
Ensinou-me primeiro os nmeros e depois a
ler. Encarregou-me do seu cavalo. Depois dos
ces e do falco. E depois de todos os animais de
carga e de trao. Porm, no foi s a trabalhar
que ele me ensinou. Limpeza. Honestidade. Ps um
valor naquilo que a minha me e av tinham
tentado instilar em mim h tanto tempo. Mostrou-
me essas coisas como valores de homem e no s
modos para se ter dentro de uma casa de mulher.
Ensinou-me a ser um homem e no um animal em
forma de homem. Fez com que eu visse que isso
era mais do que regras, era uma maneira de ser.
Era uma vida em vez de sobrevivncia.
Parou de falar. Ouvi-o levantar-se. Dirigiu-se
mesa e pegou a garrafa de vinho de sabugueiro que
Breu deixara conosco. Observei-o enquanto a
girava vrias vezes nas mos. Em seguida, largou-
a. Sentou-se numa das cadeiras e ficou olhando
para o fogo.
Breu disse que eu devia deix-lo amanh
disse ele em voz baixa. Baixou os olhos para mim.
Acho que tem razo.
Sentei-me e olhei para ele. A luz pouco intensa
do fogo transformava o seu rosto numa paisagem
de sombras. No consegui ler os seus olhos.
Breu diz que voc foi meu garoto por tempo
demais. Garoto de Breu, garoto de Veracidade, at
garoto de Pacincia. Que o mantivemos como
garoto e cuidamos demais de voc. Ele acredita
que quando deparou com decises de homem, voc
as tomou como garoto. Impulsivamente.
Pretendendo estar certo, pretendendo ser bom.
Mas as intenes no so suficientes.
Enviar-me para matar gente me manter
como garoto? perguntei, incrdulo.
No ouviu nada do que eu disse? Eu matei
gente quando era garoto. Isso no fez de mim um
homem. Nem a voc.
Ento o que devo fazer? perguntei com
sarcasmo. Ir procura de um prncipe que me
eduque?
Pronto. Est vendo? Uma resposta de garoto.
No compreende, e por isso se zanga. E se torna
venenoso. Voc me faz essa pergunta, mas j sabe
que no vai gostar da resposta.
Que ?
Poderia fazer coisa pior do que ir procura
de um prncipe. Mas no vou te dizer o que fazer.
Breu me aconselhou a no fazer isso. E acho que
ele tem razo. Mas no porque eu pense que voc
toma as suas decises como um garoto. No o faz
mais do que eu fazia, na sua idade. Acho que voc
decide como um animal decidiria. Sempre no
agora, sem um pensamento para o amanh, ou para
o que se lembra de ontem. Sei que sabe do que
que estou falando. Deixou de viver como um lobo
porque eu o forcei a isso. Agora tenho de deix-lo
s, para que descubra se quer viver como lobo ou
como homem.
Olhou-me nos olhos. Havia compreenso demais
nos seus. Assustou-me pensar que ele podia
realmente saber o que eu enfrentava. Neguei essa
possibilidade, deixei-a inteiramente de lado. Virei
um ombro para ele, quase com esperana de que a
ira voltasse. Mas Bronco ficou sentado em
silncio.
Por fim, ergui os olhos para ele, que estava
fitando o fogo. Precisei de muito tempo para
engolir o orgulho e perguntar:
Ento, o que vai fazer?
J lhe disse. Vou embora amanh.
Foi ainda mais duro fazer a pergunta seguinte.
Para onde vai?
Ele pigarreou e fez uma expresso de
desconforto.
Tenho uma amiga. Est sozinha. Ia lhe ser til
ter a fora de um homem em sua casa. O telhado
precisa ser reparado, e h plantios a serem feitos.
Vou para l, por algum tempo.
Amiga? atrevi-me a perguntar, erguendo
uma sobrancelha.
A sua voz no tinha expresso.
No nada disso. mesmo amiga.
Provavelmente voc poderia dizer que encontrei
outra pessoa de quem cuidar. Talvez tenha
encontrado. Talvez esteja na hora de fazer isso
onde mesmo necessrio.
Ento olhei para o fogo.
Bronco. Eu precisei mesmo de voc. Trouxe-
me de volta do limite, fez com que eu voltasse a
ser um homem.
Ele bufou.
Se eu tivesse tratado voc como devia, para
comear, nunca teria ido at o limite.
No. Eu teria ido para a cova.
Teria? Majestoso no teria acusaes de
magia da Manha para fazer contra voc.
Ele teria encontrado alguma desculpa para
me matar. Ou s uma oportunidade. Ele no
precisa realmente de desculpas para fazer o que
quer.
Talvez sim. Talvez no.
Ficamos vendo o fogo morrer. Levei a mo
orelha, brinquei com o fecho do brinco.
Quero lhe devolver isto.
Eu preferia que voc ficasse com ele. Que o
usasse. Era quase um pedido. Parecia estranho.
No mereo o que quer que seja que este
brinco simbolize para voc. No o ganhei, no
tenho direito a ele.
O que ele simboliza para mim no algo que
se ganhe. algo que eu lhe dei, quer o tivesse
merecido, quer no. Usando-o ou no, ainda assim
ir lev-lo com voc.
Deixei o brinco pendurado da orelha. Uma
minscula rede de prata com uma pedra azul
engastada no interior. Certa vez, Bronco o dera ao
meu pai. Pacincia, sem saber do seu significado,
passara-o para as minhas mos. No sabia se ele
queria que eu o usasse pelo mesmo motivo que o
levara a d-lo ao meu pai. Tive a sensao de que
havia mais naquela histria do que ele me dissera,
mas no quis perguntar. Mesmo assim esperei, na
expetativa de que ele me fizesse uma pergunta.
Mas Bronco apenas levantou-se e voltou para os
seus cobertores. Ouvi-o deitar-se.
Desejei que tivesse me feito a pergunta.
Magoou-me isso no ter acontecido. Respondi
mesmo assim.
No sei o que vou fazer eu disse, para a
sala escurecida. Durante toda a vida, sempre
tive tarefas a cumprir, mestres a quem prestar
contas. Agora que no tenho uma sensao
estranha.
Pensei por algum tempo que ele no ia
responder. Mas ento disse abruptamente:
Conheci essa sensao.
Ergui os olhos para o teto escurecido.
Tenho pensado em Moli. Com frequncia.
Sabe para onde ela foi?
Sim.
Quando nada mais disse, soube que no era boa
ideia perguntar.
Eu sei que o mais sensato deix-la em paz.
Ela acredita que estou morto. Espero que a pessoa
que ela encontrou, seja quem for, tome melhor
conta dela do que eu. Espero que a ame como ela
merece.
Houve um roar nos cobertores de Bronco.
Como assim? perguntou ele com
prudncia.
Era mais difcil de dizer que eu pensei que seria.
Ela me disse quando me deixou naquele dia
que havia outra pessoa. Algum de quem gostava
como eu gostava do meu rei, algum que ela
colocava frente de tudo e todos na sua vida.
Minha garganta se fechou de sbito. Respirei
fundo, afastando fora de vontade o n da
garganta. Pacincia tinha razo eu disse.
Sim, tinha concordou Bronco.
No posso culpar ningum alm de mim.
Depois de saber que Moli estava em segurana,
devia t-la deixado seguir o seu caminho. Ela
merece um homem que possa lhe dar todo o seu
tempo, toda a sua devoo
Sim, merece concordou Bronco,
implacvel. uma pena que voc no tenha
compreendido isso antes de estar com ela.
Uma coisa admitir uma falha para ns mesmo.
outra completamente diferente ter um amigo que
no s concorda conosco, como reala toda a
profundidade da falha. No a neguei, nem exigi
saber como ele ficara sabendo. Se Moli lhe
dissera, eu no queria saber o que mais ela teria
dito. Se ele deduzira sozinho, eu no queria saber
que fora assim to bvio. Senti uma onda de
qualquer coisa, uma ferocidade que me fez querer
rosnar para ele. Mordi a lngua e me forcei a
refletir sobre o que sentia. Culpa e vergonha por
tudo ter terminado em dor para ela e por t-la
levado a duvidar do seu valor. E uma certeza de
que por mais errado que tudo tivesse sido, tambm
havia sido certo. Quando tive confiana na voz,
disse em voz baixa:
Nunca me arrependerei de am-la. S por
no ter podido fazer dela minha esposa aos olhos
de todos, como j era no meu corao.
Ele nada respondeu quilo. Porm, passado
algum tempo, esse silncio de separao tornou-se
ensurdecedor. Eu no conseguia dormir por causa
dele. Por fim, falei:
Bom. Amanh partiremos cada um para seu
lado, suponho.
Suponho que sim disse Bronco. Depois de
algum tempo, acrescentou: Boa sorte. Soava
realmente como se falasse srio. Como se
compreendesse como eu precisaria de sorte.
Fechei os olhos. Eu estava to cansado agora.
To cansado. Cansado de magoar as pessoas que
amava. Mas agora estava feito. Amanh Bronco
partiria e eu seria livre. Livre para seguir o desejo
do meu corao, sem a interveno de ningum.
Livre para ir para Vaudefeira e matar
Majestoso.
CAPTULO 3

A Demanda

O Talento a magia tradicional da realeza


Visionrio. Embora parea ser mais forte nas
linhagens de sangue real, no assim to raro
descobri-lo com menor fora nos que so
distantemente aparentados com a linhagem
Visionrio, ou naqueles cujos ancestrais incluem
tanto ilhus como gente dos Seis Ducados. uma
magia da mente, que d aos praticantes o poder
de comunicarem-se silenciosamente com quem
est longe. As possibilidades que oferece so
muitas; nos seus usos mais simples, pode servir
para enviar mensagens, para influenciar os
pensamentos de inimigos (ou de amigos) a fim de
desvi-los para os fins do praticante. As suas
desvantagens so de dois tipos: requer uma
grande quantidade de energia para que seja
manejada diariamente e oferece ao praticante a
atrao que foi incorretamente apelidada de
prazer. mais uma euforia, que aumenta de
poder em proporo com a fora e durao do
uso do Talento. Pode levar o praticante a viciar-
se no Talento, que acabar por esgotar toda a
fora mental e fsica do mago, deixando-o como
um grande beb babado.

Bronco partiu na manh seguinte. Quando acordei,


estava de p e vestido e andando pela cabana,
embalando as suas coisas. No levou muito tempo.
Levou os seus pertences, mas me deixou a maior
parte das nossas provises. No bebemos na noite
anterior, mas mesmo assim falvamos to baixo e
nos movamos com tanto cuidado como se a manh
nos trouxesse dores. Falamos um com o outro com
deferncia, at que isso me pareceu pior do que se
no falsssemos. Eu queria balbuciar pedidos de
desculpa, suplicar para que reconsiderasse, fazer
alguma coisa, qualquer coisa, para evitar que a
nossa amizade terminasse daquela maneira. Ao
mesmo tempo, desejei v-lo longe, desejei que
tudo terminasse, desejei que fosse o dia seguinte,
um novo dia nascendo comigo sozinho. Agarrei-me
minha determinao como se estivesse pegando
uma espada afiada ou uma faca. Suspeitei de que
ele sentia algo parecido, pois s vezes parava e
olhava para mim como se estivesse prestes a falar.
Ento os nossos olhos encontravam-se e assim nos
mantnhamos por um instante, at que um ou o
outro desviava o olhar. Muito pairava sem ser dito
entre ns.
Aps um perodo horrivelmente curto de tempo,
ele ficou pronto para partir. Ps o fardo no ombro
e tirou um basto de trs da porta. Fiquei parado
observando-o, pensando em como ele parecia
estranho assim: Bronco, o cavaleiro, a p. A luz
do sol do incio do vero que jorrava pela porta
aberta me mostrou um homem no fim de sua meia-
idade, com a madeixa branca que marcava sua
cicatriz anunciando o grisalho que j havia
comeado a se mostrar na sua barba. Ele era forte
e estava em forma, mas era inquestionvel que a
juventude ficara para trs. Passara os dias do auge
das suas foras cuidando de mim.
Bem disse ele num tom impaciente.
Adeus, Fitz. E boa sorte para voc.
Boa sorte para voc tambm, Bronco.
Atravessei rapidamente a sala e abracei-o antes
que ele tivesse tempo de recuar.
Ele respondeu ao abrao, um rpido aperto que
quase me quebrou as costelas, e depois afastou o
meu cabelo do rosto.
V se pentear. Parece um selvagem. Quase
conseguiu dar um sorriso. Deu as costas a mim e
afastou-se a passos largos. Eu fiquei vendo-o
partir. Pensei que no olharia para trs, mas na
outra extremidade da pastagem virou-se e ergueu a
mo. Eu ergui a minha em resposta. E ento ele
desapareceu, engolido pela floresta. Sentei-me
durante algum tempo no degrau, pensando no lugar
onde o vira pela ltima vez. Se me mantivesse fiel
ao meu plano, poderiam se passar anos antes de
voltar a v-lo. Se voltasse a v-lo. Desde os meus
seis anos, ele sempre fora um fator na minha vida.
Sempre pudera contar com a sua fora, mesmo
quando no a desejava. Agora partira. Como Breu,
como Moli, como Veracidade, como Pacincia.
Pensei em tudo o que lhe dissera na noite
anterior, e estremeci de vergonha. Fora necessrio,
disse a mim mesmo. Quisera afast-lo. Mas muito
do que eu dissera irrompera de antigos
ressentimentos que tinham gangrenado durante
muito tempo dentro de mim. Eu no quisera dizer
aquelas coisas. Pretendia afast-lo, no feri-lo at
o osso. Tal como Moli, ele levaria consigo as
dvidas que eu colocara nele. E ao atacar
ferozmente o orgulho de Bronco, eu destrura o
pouco respeito que Breu ainda tinha por mim.
Suponho que uma parte infantil de mim nutrisse a
esperana de que algum dia eu poderia voltar para
eles, de que algum dia voltaramos a partilhar as
nossas vidas. Sabia agora que no.
Acabou-se disse em voz baixa a mim
mesmo. Essa vida acabou, deixe-a ir.
Estava agora livre de ambos. Livre das
limitaes que me impunham, livre das suas ideias
sobre honra e dever. Livre das suas expectativas.
Nunca mais teria de olhar qualquer um deles nos
olhos e prestar contas daquilo que fizera. Livre
para fazer a nica coisa que tinha o nimo ou a
coragem para fazer, a nica coisa que podia fazer
para deixar a minha antiga vida para trs.
Iria matar Majestoso.
Parecia simples justia. Ele me matara primeiro.
O espectro da promessa que fizera ao Rei Sagaz,
de que nunca faria mal a nenhum dos seus, ergueu-
se brevemente para me assombrar. Enterrei-o
lembrando a mim mesmo de que Majestoso matara
o homem que fizera essa promessa, bem como o
homem a quem a fizera. Esse Fitz j no existia.
Nunca mais voltaria a me apresentar ao velho Rei
Sagaz e relatar o resultado de uma misso, no me
apresentaria como Homem do Rei para auxiliar
Veracidade. A Dama Pacincia nunca me
atormentaria com uma dzia de tarefas triviais que
eram da maior importncia para ela. Ela chorara a
minha morte. E Moli. Lgrimas arderam em meus
olhos quando medi a minha dor. Ela havia me
abandonado antes de Majestoso me matar, mas
tambm por essa perda eu o considerava
responsvel. Se eu nada mais obtivesse daquela
crosta de vida que Bronco e Breu tinham
recuperado para mim, eu obteria ao menos a
vingana. Prometi a mim mesmo que Majestoso
olharia para mim enquanto morresse, e saberia que
eu o matara. Aquele no seria um assassinato
discreto, uma empreitada silenciosa de veneno
annimo. Entregaria pessoalmente a morte a
Majestoso. Desejava atacar como uma flecha
isolada, como uma faca arremessada,
precipitando-me diretamente para o meu alvo, sem
ser incomodado por receios por aqueles que me
rodeiam. Se falhasse, bem, eu j estava morto de
todos os modos que tinham importncia para mim.
No magoaria ningum por tentar. Se morresse ao
matar Majestoso, valeria a pena. Protegeria a
minha vida s at tomar a de Majestoso. O que
quer que acontecesse depois no importava.
Olhos-de-Noite agitou-se, perturbado por algum
sinal dos meus pensamentos.
J pensou alguma vez no que a sua morte me
faria?, perguntou-me.
Fechei os olhos com fora por um instante. Mas
tinha pensado. O que faria a ns dois se eu
vivesse como uma presa?
Olhos-de-Noite compreendeu. Somos
caadores. Nenhum de ns nasceu para ser
presa.
No posso ser um caador se estiver sempre
esperando ser presa. E por isso tenho de ca-lo
antes que ele me cace.
Ele aceitou os meus planos com muita calma.
Tentei faz-lo compreender tudo o que eu
pretendia fazer. No queria que se limitasse a me
seguir cegamente.
Vou matar Majestoso. E o seu crculo. Vou
matar todos, por tudo o que me fizeram e por
tudo o que me tiraram.
Majestoso? H carne que no podemos comer.
No compreendo a caa a homens.
Peguei minha imagem de Majestoso e a
combinei com as suas do mercador de animais que
o apanhara quando era filhote e o espancara com
um porrete reforado com lato.
Olhos-de-Noite refletiu sobre a imagem. Depois
de me afastar dele, fui esperto o suficiente para
ficar longe dele. Caar esse tipo to sensato
como ir caar um porco-espinho.
No posso deixar isso para trs, Olhos-de-
Noite.
Compreendo. Tambm sou assim com os
porcos-espinhos.
E foi assim que viu a minha vendeta contra
Majestoso como equivalente sua fraqueza por
porcos-espinhos. Dei por mim aceitando os
objetivos que proclamara com menos
tranquilidade. Depois de proclam-los, no
conseguia imaginar ser desviado por nenhum outro
motivo. As palavras que proferira na noite anterior
regressaram para me censurar. O que acontecera
aos belos discursos que eu fizera a Bronco, sobre
viver uma vida para mim mesmo? Bem, esquivei-
me, e talvez viesse a fazer aquilo, se sobrevivesse
ao atar essas pontas soltas. No era que eu no
pudesse viver a minha prpria vida. Era no poder
suportar a ideia de Majestoso andar por a
pensando que me derrotara, sim, e que roubara o
trono a Veracidade. Vingana, pura e simples,
disse a mim mesmo. Se quisesse deixar o medo e a
vergonha para trs, tinha de fazer aquilo.
Agora voc j pode entrar, propus.
Por que eu iria querer?
No precisei virar para ver que Olhos-de-Noite
j descera at a cabana. Veio sentar-se ao meu
lado, e em seguida espiou para dentro da cabana.
Pfuh! Enche a sua toca com uns fedores que
no me admira que o seu focinho funcione to
mal.
Esgueirou-se com cautela para dentro da cabana
e comeou a perambular pelo interior. Eu
permaneci sentado no degrau de entrada,
observando-o. Passara-se algum tempo desde que
eu o vira como algo mais do que uma extenso de
mim mesmo. Ele estava adulto agora, e no auge
das suas foras. Outra pessoa poderia dizer que
era um lobo cinzento. Para mim, era de todas as
cores que um lobo podia ser, de olhos escuros,
focinho escuro, bege na base das orelhas e na
garganta, com a pelagem salpicada de pelos
externos rgidos e negros, especialmente nos
ombros e na parte plana da anca. As patas eram
enormes, e ainda se abriam mais quando corria
sobre neve dura. Tinha uma cauda que era mais
expressiva do que os rostos de muitas mulheres, e
dentes e mandbulas capazes de quebrar com
facilidade os ossos de uma pata de veado. Movia-
se com aquela economia de foras que os animais
perfeitamente saudveis mostram. Bastava
observ-lo para me tranquilizar o corao. Quando
ficou com a curiosidade praticamente satisfeita,
veio sentar-se ao meu lado. Passados alguns
momentos, estendeu-se ao sol e fechou os olhos.
Fica de vigia?
Eu fico de olho em voc assegurei-lhe. As
suas orelhas torceram-se ao ouvir minhas
palavras. Em seguida, mergulhou num sono
ensopado de sol.
Levantei-me em silncio e entrei na cabana.
Precisei de um tempo notavelmente curto para
avaliar as minhas posses. Dois cobertores e um
manto. Tinha uma muda de roupa, coisas quentes e
lanosas, pouco apropriadas para viajar no vero.
Uma escova. Uma faca e uma pedra de amolar.
Pederneira. Uma funda. Vrias pequenas peles
curadas, provenientes de animais que tnhamos
caado. Fio feito com tendes. Um machado. O
espelho de Bronco. Uma pequena chaleira e vrias
colheres. Estas ltimas eram o fruto do recente
trabalho com madeira de Bronco. Havia um
pequeno saco de farinha grosseira e outro de
farinha mais fina. O que sobrava do mel. Uma
garrafa de vinho de sabugueiro.
No era muito para dar incio quela
empreitada. Tinha pela frente uma longa viagem
por terra at Vaudefeira. Teria de sobreviver a
isso antes de poder planejar um modo de passar
pelos guardas de Majestoso e o seu crculo de
Talento, e mat-lo. Refleti com cuidado. Ainda
no era o auge do vero. Havia tempo para reunir
ervas e sec-las, tempo para defumar peixe e carne
para fazer raes de viagem. Eu no teria de
passar fome. Por ora, eu tinha roupa e as outras
coisas bsicas. Mas acabaria precisando de algum
dinheiro. Dissera a Breu e Bronco que podia abrir
o meu prprio caminho, com base na minha percia
com animais e nos meus conhecimentos de escriba.
Essas habilidades talvez me levassem at
Vaudefeira.
Poderia ter sido mais fcil se eu pudesse ter
continuado a ser FitzCavalaria. Conhecia
barqueiros que se dedicavam ao comrcio fluvial,
e eu poderia ter pago com trabalho a passagem at
Vaudefeira. Contudo, esse FitzCavalaria morrera.
No poderia ir procura de trabalho nas docas.
Nem sequer poderia visitar as docas, devido ao
risco de ser reconhecido. Levei a mo ao rosto,
lembrando-me do que o espelho de Bronco me
mostrara. Uma madeixa branca no cabelo para me
lembrar do local onde os soldados de Majestoso
tinham aberto o meu couro cabeludo pela ltima
vez. Passei os dedos pela nova configurao do
nariz. Tambm havia uma linha fina que me descia
pela face direita, por baixo do olho, onde o punho
de Majestoso me abrira o rosto. Ningum se
lembraria de um Fitz que ostentava tais cicatrizes.
Deixaria a barba crescer. E se cortasse o cabelo
frente moda dos escribas, isso poderia ser uma
mudana suficiente para no atrair interesse com
um relance casual. Mas no queria me aventurar
deliberadamente entre aqueles que tinham me
conhecido.
Estaria a p. Nunca havia feito uma viagem
extensa a p.
Por que no podemos simplesmente ficar aqui?
Uma interrogao sonolenta vinda de Olhos-de-
Noite. H peixe no riacho, caa nos bosques por
trs da cabana. De que mais precisamos? Por
que precisamos partir?
Eu preciso. Tenho de fazer isso para voltar a
ser um homem.
Acredita mesmo que quer voltar a ser um
homem? Senti a sua descrena, mas tambm a sua
aceitao de que eu iria tentar. Espreguiou-se
indolentemente sem se levantar, esticando bem os
dedos das patas da frente. Para onde vamos?
Vaudefeira. Onde Majestoso est. Uma viagem
longa rio acima.
H lobos l?
Tenho certeza de que na cidade propriamente
dita no. Mas h lobos em Vara. Tambm ainda
h lobos em Cervo. Por aqui que no.
Tirando ns dois, observou ele. E acrescentou:
Gostaria de encontrar lobos no lugar para onde
vamos.
Ento se esticou todo e voltou a adormecer. Isso
era parte do que significava ser um lobo, refleti.
Ele no voltaria a se preocupar at partirmos.
Depois simplesmente me seguiria e confiaria a sua
sobrevivncia s nossas habilidades.
Mas eu voltara a ser homem demais para agir
como ele. Comecei a reunir provises no dia
seguinte. Apesar dos protestos de Olhos-de-Noite,
cacei mais do que era necessrio para comermos
todos os dias. E quando tnhamos sucesso, no o
deixava se empanturrar, secava um pouco da carne
e defumava parte dela. Eu tinha habilidade
suficiente para trabalhar com couro, devido ao
infindvel remendar de arreios de Bronco, para
fazer umas botas macias para usar no vero.
Engraxei bem as botas velhas e as deixei de lado
para usar no inverno.
Durante os dias, enquanto Olhos-de-Noite
cochilava ao sol, eu colhia as minhas ervas.
Algumas eram as ervas medicinais comuns que eu
queria ter mo: casca de salgueiro para febre,
raiz de framboeseira para tosse, tanchagem para
infeco, urtiga para congesto e coisas assim.
Outras no eram to benficas. Fiz uma pequena
caixa de cedro e a enchi. Reuni e armazenei os
venenos como Breu me ensinara: cicuta, agrico,
erva-moura, medula de sabugueiro, baga-de-morte
e amor-apertado. Escolhi o melhor que pude,
venenos que fossem inodoros e no tivessem
sabor, venenos que pudessem ser transformados
em ps finos e lquidos cristalinos. Tambm colhi
casco-de-elfo, o poderoso estimulante que Breu
usara para ajudar Veracidade a sobreviver s suas
sesses de Talento.
Majestoso estaria rodeado e protegido pelo seu
crculo. Vontade era aquele que eu mais temia,
mas no subestimaria nenhum deles. Conhecera
Emaranhado como um garoto grande e rude e
Cedoura fora um certo dndi com as garotas. Mas
esses dias haviam passado h muito tempo. Eu vira
o que o uso do Talento fizera a Vontade. J se
passara muito tempo desde que tivera contato quer
com Cedoura, quer com Emaranhado, e eu no os
encararia com ideias preconcebidas. Eram todos
treinados no Talento, e embora o meu talento
natural outrora tivesse parecido muito mais forte
do que os deles, eu descobrira da pior maneira que
conheciam maneiras de usar o Talento que nem
mesmo Veracidade compreendera. Se fosse
atacado por eles com o Talento, e sobrevivesse, eu
precisaria do casco-de-elfo para me recuperar.
Fiz uma segunda caixa, grande o bastante para
conter a caixa dos venenos, mas fora concebida
como estojo de escriba, para criar assim a
aparncia de um escriba ambulante. O estojo me
proclamaria como tal a qualquer um com que eu
viesse a cruzar. Obtive penas de um ganso que
emboscamos no ninho. Eu podia fazer alguns dos
ps para pigmentos, e fabriquei tubos e rolhas de
osso para cont-los. Olhos-de-Noite me forneceu
contrariado pelos para pincis grossos. Tentei
fazer pincis mais finos com pelo de coelho, mas
s me satisfizeram em parte. Era muito
desencorajador. As pessoas esperavam que um
escriba tivesse as tintas, pincis e penas do seu
ofcio. Conclu com relutncia que Pacincia
tivera razo quando me dissera que eu escrevia
com uma letra bonita, mas no podia afirmar que
eu possua as aptides de um verdadeiro escriba.
Eu esperava que as minhas provises fossem
suficientes para qualquer trabalho que pudesse
arranjar a caminho de Vaudefeira.
Chegou uma hora em que sabia que estava to
bem aprovisionado como poderia estar e que
devia partir em breve, para ter o tempo de vero
para a viagem. Estava ansioso por vingana, e no
entanto tambm estava estranhamente relutante em
abandonar aquela cabana e aquela vida. Pela
primeira vez, que me conseguisse recordar, eu
abandonava o sono quando acordasse naturalmente
e comia quando tinha fome. No tinha tarefas a
cumprir alm das que eu mesmo determinava.
Certamente no faria mal se eu esperasse algum
tempo para recuperar a sade fsica. Embora os
machucados do meu tempo passado na masmorra
j tivessem desaparecido h muito tempo, e os
nicos sinais externos dos meus ferimentos fossem
cicatrizes, ainda me sentia estranhamente rgido
em certas manhs. Ocasionalmente, o meu corpo
me chocava com uma pontada quando eu saltava
para apanhar alguma coisa, ou virava a cabea
depressa demais. Uma caada particularmente
extenuante me deixava tremendo e temendo um
ataque. Seria mais sensato, decidi, estar
completamente sarado antes de partir.
Assim, durante algum tempo nos demoramos. Os
dias estavam quentes, a caa era boa. medida
que os dias passavam, eu ia fazendo as pazes com
o meu corpo. No era o guerreiro fisicamente
endurecido que fora no vero anterior, mas
conseguia acompanhar Olhos-de-Noite ao longo de
uma noite de caada. Quando saltava para matar
um animal, os meus atos eram rpidos e seguros. O
meu corpo ficou curado e eu deixei para trs as
dores do passado, reconhecendo-as, mas no as
remoendo. Os pesadelos que tinham me
atormentado caram como os ltimos restos da
pelagem de inverno de Olhos-de-Noite. Eu jamais
conhecera vida to simples. Fizera finalmente as
pazes comigo mesmo.
No h paz que dure muito tempo. Um sonho
veio me acordar. Olhos-de-Noite e eu nos
levantamos antes da alvorada, caamos e matamos
juntos um par de coelhos gordos. Aquela colina em
particular estava crivada das suas tocas, e apanh-
los o suficiente para nos saciarmos degenerara
rapidamente num jogo tolo feito de saltos e
escavadas. J passava da alvorada quando
deixamos a brincadeira de lado. Atiramo-nos no
cho sombra de uma btula salpicada, mais uma
vez com a barriga cheia dos animais que matamos,
e adormecemos. Algo, talvez a luz irregular do sol
batendo em minhas plpebras, fez com que eu
mergulhasse num sonho.
Eu estava de volta a Torre do Cervo. Na velha
casa da guarda, encontrava-me estendido num cho
frio de pedra, no centro de um crculo de homens
de olhar severo. O cho debaixo da minha face
estava pegajoso e escorregadio de sangue que
esfriava. Enquanto arquejava, de boca aberta, o
cheiro e o sabor do sangue combinavam-se para
encher os meus sentidos. Vinham me atacar outra
vez, no s o homem com os punhos enluvados
com couro, mas tambm Vontade, o arredio,
invisvel Vontade, que deslizava silenciosamente
atravs das minhas muralhas para se esgueirar
para o interior da minha mente.
Por favor, esperem, por favor implorei-
lhes. Parem, eu imploro. No sou nada que
precisam temer ou odiar. Sou s um lobo. S um
lobo, nada que os ameace. No farei nenhum mal a
voc, deixem-me ir. Para vocs no sou nada.
Nunca voltarei a lhes criar problemas. Sou s um
lobo. Ergui o focinho para o cu e uivei.
Foram os meus prprios uivos que me
acordaram.
Rolei sobre as mos e os joelhos, sacudi-me
todo e depois me levantei. Um sonho, disse a mim
mesmo. S um sonho. Fui inundado pelo medo e a
vergonha, que me sujaram sua passagem. No meu
sonho, implorara por misericrdia como no fizera
na realidade. Disse a mim mesmo que no era
covarde. Seria? Parecia que eu ainda podia
cheirar e sentir o gosto do sangue.
Onde voc vai?, perguntou indolentemente
Olhos-de-Noite. Estava deitado mais sombra, e a
sua pelagem o camuflava surpreendentemente bem
ali.
gua.
Fui at o riacho, lavei do rosto e das mos o
sangue pegajoso de coelho, e depois bebi
longamente. Voltei a lavar o rosto, raspando a
barba com as unhas para obrigar o sangue a sair.
De repente, decidi que no conseguia suportar a
barba. Fosse como fosse, no pretendia ir para
onde esperasse ser reconhecido. Voltei para a
cabana do pastor a fim de me barbear.
porta, franzi o nariz diante do cheiro de mofo.
Olhos-de-Noite tinha razo; dormir dentro de casa
afetara o meu olfato. Eu mal podia acreditar que
tolerara aquilo. Entrei com relutncia, fungando
para afastar os cheiros de homem. Chovera
algumas noites antes. A umidade penetrara na
carne seca e estragara parte dela. Separei-a,
torcendo o nariz diante do grau de putrefao que
ela mostrava. Havia larvas atacando alguns
pedaos. Enquanto verificava cautelosamente o
resto das provises de carne, afastei uma
persistente sensao de desconforto. Foi s
quando peguei a faca e tive de limpar dela uma
poeira fina de ferrugem que o admiti para mim
mesmo.
Haviam se passado dias desde que eu estivera
ali.
Possivelmente semanas.
No tinha qualquer noo da passagem do
tempo. Olhei para a carne estragada, para a poeira
que cobria os meus bens desarrumados. Apalpei a
barba, chocado com o quanto crescera. Bronco e
Breu no tinham me deixado aqui h dias. Tinham
sido semanas. Fui at a porta da cabana e olhei
para fora. A grama crescia, alta, onde houvera
caminhos que atravessavam o prado na direo do
riacho e do local em que Bronco pescava. As
flores da primavera j haviam desaparecido h
muito tempo e as frutas estavam verdes nos
arbustos. Olhei para as mos, para a sujeira
entranhada na pele dos pulsos, sangue velho
incrustado e seco debaixo das unhas. Antes, comer
carne crua teria me enojado. Agora a ideia de
cozinhar carne parecia peculiar e estranha. A
minha mente desviou-se do assunto e eu no quis
me confrontar. Mais tarde, ouvi-me suplicando,
amanh, mais tarde, v procura de Olhos-de-
Noite.
Est perturbado, irmozinho?
Sim. Forcei-me a acrescentar: Voc no pode
me ajudar com isso. problema de homem, uma
coisa que tenho de resolver sozinho.
Seja um lobo, ento, aconselhou ele num tom
indolente.
No tive foras para responder quilo nem sim,
nem no. Deixei que o conselho passasse por mim.
Baixei os olhos para mim, para a camisa e as
calas manchadas. Minha roupa estava dura de
sujeira e sangue seco, e as calas estavam em
farrapos abaixo dos joelhos. Com um
estremecimento, lembrei-me dos Forjados e de sua
vestimenta esfarrapada. O que eu me tornara?
Puxei pelo colarinho da camisa e em seguida
afastei o rosto do meu prprio fedor. Os lobos so
mais limpos do que isso. Olhos-de-Noite tratava
de si mesmo diariamente.
Falei em voz baixa, e o estado enferrujado da
minha voz s se foi somar ao resto.
Assim que Bronco me deixou aqui, sozinho,
reverti a algo inferior a um animal. Sem tempo,
sem limpeza, sem objetivos, sem conscincia de
nada a no ser comer e dormir. Foi sobre isto que
ele tentou me avisar, ao longo de todos aqueles
anos. Fiz exatamente o que ele sempre temeu que
eu fizesse.
Acendi com dificuldade a lareira. Fiz muitas
viagens ao riacho para buscar gua e aqueci tanto
quanto pude. Os pastores tinham deixado na
cabana um caldeiro para derreter banha, que era
suficientemente grande para encher metade de uma
tina de madeira que havia no lado de fora.
Enquanto a gua aquecia, colhi saponria e
cavalinha. No conseguia me lembrar de j ter
estado to sujo. A spera cavalinha raspou
camadas de pele com a sujeira antes de eu ficar
satisfeito com a minha limpeza. Havia mais do que
algumas pulgas boiando na gua. Tambm
descobri um carrapato preso nuca e o queimei
com um graveto em brasa que tirei da lareira.
Quando fiquei com o cabelo limpo, penteei-o e em
seguida voltei a prend-lo atrs da cabea num
rabo de cavalo de guerreiro. Barbeei-me no
espelho que Bronco me deixara e depois fitei o
rosto que havia ali. Testa bronzeada e queixo
plido.
Depois de j ter aquecido mais gua e de ter
ensopado e batido a roupa at deix-la limpa,
comecei a compreender a limpeza fantica e
constante de Bronco. A nica maneira de salvar o
que restava das minhas calas era fazer uma
bainha no joelho. Mesmo assim, no lhes restava
muito tempo de uso. Estendi tambm a orgia de
limpeza roupa de cama e de inverno, lavando
delas o cheiro de mofo. Descobri que um rato
abrira um buraco no meu manto de inverno para
fazer um ninho. Tambm remendei o manto o
melhor que pude. Ergui os olhos das perneiras
molhadas que eu enrolava num arbusto e dei com
Olhos-de-Noite me observando.
Voc cheira a homem mais uma vez.
Isso bom ou ruim?
melhor do que cheirar caa da semana
passada. No to bom como cheirar a lobo.
Levantou-se e espreguiou-se, fazendo uma
profunda mesura para mim e esticando bem os
dedos sobre a terra. Bom. Voc quer ser um
homem, afinal. Viajamos em breve?
Sim. Viajamos para o oeste, subindo o Rio
Cervo.
Oh. Ele espirrou de repente, ento caiu de forma
abrupta sobre o flanco, para rolar de costas na
terra como um filhote. Contorceu-se alegremente,
enchendo bem o pelo de terra, e em seguida ficou
de p para voltar a sacudi-la para longe. A sua
aceitao indiferente da minha deciso sbita era
um fardo. No que eu o estava metendo?
O cair da noite foi me encontrar com toda a
roupa que possua e toda a roupa de cama ainda
molhadas. Mandara Olhos-de-Noite caar sozinho.
Sabia que no regressaria to cedo. A lua estava
cheia e o cu noturno limpo. Haveria muita caa
em movimento naquela noite. Entrei na cabana e
alimentei o fogo o suficiente para fazer bolos com
o que restava da farinha grosseira. A fina fora
atacada e estragada por gorgulhos. Era melhor
comer agora a que restava do que deix-la estragar
da mesma forma. Os bolos simples com o que
restava do mel granuloso que havia no pote tinham
um gosto incrivelmente bom. Sabia que seria
melhor expandir a minha dieta para incluir mais do
que carne e um punhado de verduras todos os dias.
Fiz um ch estranho com menta silvestre e pontas
de brotos de urtiga e isso tambm teve um gosto
bom.
Levei para dentro uma manta quase seca e a
estendi na frente da lareira. Deitei-me nela,
dormitando e fitando o fogo. Sondei na direo de
Olhos-de-Noite, mas ele desdenhou da ideia de se
juntar a mim, preferindo o animal que acabara de
caar e a terra fofa sob um carvalho na orla do
prado. Eu estava mais s, e mais humano, do que
estivera em meses. Senti-me um pouco estranho,
mas bem.
Foi quando rolei e me espreguicei que vi o
pacote deixado na cadeira. Conhecia de cor cada
um dos objetos que havia na cabana. Aquilo no
estava ali da ltima vez que eu estivera. Peguei o
pacote, farejei-o e descobri nele o leve cheiro de
Bronco, bem como o meu. No momento seguinte
percebi o que havia feito e me censurei por isso.
Era melhor que eu comeasse a me comportar
como se sempre houvesse testemunhas para os
meus atos, a no ser que eu quisesse ser morto
mais uma vez como um Manhoso.
O pacote no era grande. Era uma das minhas
camisas, tirada sem que eu soubesse como da
minha velha arca de roupas, uma camisa de tecido
suave e marrom de que sempre gostei, e um par de
perneiras. Havia um pequeno pote de barro
enrolado na camisa, contendo o unguento que
Bronco usava para cortes, queimaduras e
hematomas. Quatro peas de prata numa pequena
bolsa de couro; ele bordara um cervo nos pontos
da parte da frente. Um bom cinto de couro. Sentei-
me admirando o desenho que Bronco fizera nele.
Havia um cervo, de galhada abaixada para o
combate, semelhante ao braso que Veracidade
sugerira para mim. No cinto, ele mantinha um lobo
distncia. Era difcil no entender essa
mensagem.
Vesti-me diante da lareira, sentindo-me
melanclico por ter perdido a sua visita, e no
entanto aliviado por isso. Conhecendo Bronco, ele
provavelmente sentira algo de muito semelhante
por caminhar at ali e me encontrar fora. Ele havia
me trazido aquelas roupas apresentveis por
querer me persuadir a regressar com ele? Ou para
me desejar boa viagem? Tentei no ponderar qual
teria sido a sua inteno, nem a sua reao ao ver
a cabana abandonada. De novo vestido, senti-me
muito mais humano. Pendurei a bolsa e a minha
faca embainhada do cinto e passei pela cintura.
Puxei uma cadeira para a frente da lareira e me
sentei nela.
Fitei o fogo. Finalmente me permiti pensar sobre
o meu sonho. Senti um estranho aperto no peito. Eu
era um covarde? No tinha certeza. Ia para
Vaudefeira para matar Majestoso. Um covarde
faria isso? Talvez, disse-me minha mente traidora,
um covarde talvez o fizesse, se isso fosse mais
fcil do que procurar o seu rei. Afastei esse
pensamento da cabea.
Ele voltou logo. Matar Majestoso seria a coisa
certa a fazer, ou apenas aquilo que eu desejava
fazer? Por que isso importaria? Porque importava.
Talvez fosse melhor eu ir procurar Veracidade.
Era uma tolice pensar nisso, at que eu soubesse
que Veracidade ainda estava vivo. Se conseguisse
contactar Veracidade pelo Talento, eu poderia
descobrir. Mas nunca fui capaz de usar o Talento
de forma previsvel. Galeno assegurara-se disso,
com o insulto que pegara o meu forte Talento
natural e o transformara numa coisa instvel e
frustrante. Seria possvel alterar isso? Precisaria
conseguir usar bem o Talento se eu quisesse
passar pelo crculo e chegar garganta de
Majestoso. Teria de aprender a control-lo. Seria
o Talento algo que pudesse ser dominado sozinho?
Como uma pessoa poderia aprender uma coisa sem
nem sequer conhecer todo o seu alcance? Todas as
habilidades que Galeno nem me incutira, nem me
fizera perder com a sua violncia, todo o
conhecimento que Veracidade nunca tivera tempo
de me ensinar, como eu poderia aprender tudo isso
sozinho? Era impossvel.
No queria pensar em Veracidade. Isso
justamente me disse que eu devia faz-lo.
Veracidade. Meu prncipe. Agora o meu rei.
Ligado pelo sangue e pelo Talento, vim a conhec-
lo como a nenhum outro homem. Estar aberto ao
Talento, ele me dissera, era to simples como no
estar fechado. A sua guerra de Talento com os
Salteadores transformara-se na sua vida,
esgotando-lhe a juventude e a vitalidade. Ele
nunca tivera tempo para me ensinar a controlar o
meu talento, mas me dera as lies que pudera nas
oportunidades pouco frequentes que tivera. A sua
fora de Talento era tal que conseguia impor um
toque em mim e ser um s comigo durante dias, s
vezes semanas. E um dia, quando eu me sentara na
cadeira de meu prncipe, no seu estdio, diante de
sua mesa de trabalho, eu o contactara pelo Talento.
minha frente estavam os instrumentos que ele
usava para fazer os seus mapas e a pequena
desarrumao pessoal do homem que esperava
para ser rei. Nessa vez, eu pensara nele, ansiara
para que ele estivesse em casa para guiar o seu
reino, e simplesmente estendera a mente e o
contactara pelo Talento. To facilmente, sem
preparao ou mesmo verdadeira inteno. Tentei
me colocar no mesmo estado de esprito. No tinha
a mesa ou a desarrumao de Veracidade para
traz-lo mente, mas se fechasse os olhos
conseguia ver o meu prncipe. Respirei fundo e
tentei evocar a sua imagem.
Veracidade era mais largo de ombros do que eu,
mas no chegava bem minha altura. O meu tio
partilhava comigo os olhos e cabelo escuros da
famlia Visionrio, mas os seus olhos eram mais
encovados do que os meus, e o seu cabelo e barba
rebeldes estavam salpicados de fios grisalhos.
Quando eu era menino, ele fora bem musculoso e
rijo, um homem entroncado que manejava to
facilmente uma espada como uma pena. Estes
ltimos anos o tinham desgastado. Fora forado a
passar tempo demais fisicamente inativo enquanto
usava a fora do seu Talento para defender a nossa
linha costeira dos Salteadores. Porm, mesmo
apesar de seus msculos terem minguado, a sua
aura de Talento aumentara, tanto que ir sua
presena agora era como ir presena de uma
lareira em chamas. Quando eu estava na sua
presena, eu ficava muito mais consciente do seu
Talento do que do seu corpo. Para o odor, trouxe
mente o picante das tintas coloridas que usava
quando fazia os seus mapas, o cheiro do velino, e,
tambm, o toque de casco-de-elfo que se
encontrava com frequncia no seu hlito.
Veracidade eu disse suavemente em voz
alta, e senti a palavra ecoar dentro de mim,
refletindo-se nas minhas muralhas.
Abri os olhos. No conseguia me estender para
fora de mim mesmo at baixar as muralhas.
Visualizar Veracidade no me traria nenhum bem
at abrir um caminho para o meu Talento sair e o
seu entrar na minha mente. Muito bem. Isso era
bastante fcil. Apenas relaxar. Fitar o fogo e
observar as minsculas centelhas que sobem
montadas no calor. Danar entre centelhas.
Relaxar a vigilncia. Esquecer o modo como
Vontade atirara a sua fora de Talento contra essas
muralhas e quase as levara a ceder. Esquecer que
manter as muralhas erguidas fora tudo o que
mantivera a minha mente enquanto eles me
espancavam a carne. Esquecer aquela sensao
nauseante de violao no momento em que Justino
forara entrada em mim. O modo como Galeno
marcara e mutilara a minha capacidade para o
Talento quando abusara da sua posio como
Mestre do Talento para forar o seu controle sobre
a minha mente.
To claramente como se Veracidade estivesse
ao meu lado, voltei a ouvir as palavras do meu
prncipe. Galeno o marcou. Voc tem muralhas
que nem consigo comear a penetrar, e eu sou
forte. Voc teria de aprender a baix-las. Isso
algo difcil. E essas palavras tinham sido ditas a
mim h anos, antes da invaso de Justino, antes
dos ataques de Vontade. Sorri com amargura.
Saberiam eles que haviam tido sucesso em me
roubar do Talento? Provavelmente jamais tinham
sequer pensado a respeito disso. Algum, em
algum lugar, devia fazer um registro do fato.
Algum dia, um rei Talentoso poderia achar til
saber que se se machucasse o suficiente um
Talentoso com o Talento, era possvel sel-lo
dentro de si mesmo e deix-lo impotente nessa
rea.
Veracidade nunca tivera tempo para me ensinar
como baixar aquelas muralhas. Ironicamente,
descobrira uma maneira de me mostrar como
refor-las, para que eu pudesse isolar dele os
meus pensamentos privados quando no desejava
partilh-los. Talvez isso fosse algo que eu
aprendera bem demais. Perguntei a mim mesmo se
alguma vez teria tempo para desaprender.
Tempo, no tempo, interrompeu Olhos-de-Noite
num tom fatigado. O tempo uma coisa que os
homens inventaram para se incomodarem com
ela. Voc pensa nele at me deixar tonto. Por que
segue essas velhas trilhas? Fareje uma nova que
possa ter alguma carne no fim. Se quer a caa,
tem de persegui-la. s isso. No pode dizer:
Perseguir isto leva tempo demais, quero apenas
comer. Tudo uma coisa s. A perseguio o
princpio do comer.
Voc no entende , disse-lhe eu, cansado. O
nmero de horas num dia limitado, e o de dias
nos quais posso fazer isso tambm.
Por que corta a sua vida em pedaos e d
nomes aos pedaos? Horas, dias. como um
coelho. Se eu mato um coelho, como um coelho.
Uma bufada sonolenta de desdm. Quando voc
come um coelho, corta-o e chama de ossos,
carne, pelo e tripas. por isso que voc nunca
tem o bastante.
Ento o que devia eu fazer, oh sbio mestre?
Pare de choramingar e apenas faa o que tem
de fazer. Para que eu possa dormir.
Ele me deu um ligeiro empurro mental, como
um cotovelo nas costelas quando um companheiro
senta-se perto demais de ns no banco da taverna.
Percebi de repente o quo prximo eu havia
mantido o nosso contato ao longo das ltimas
semanas. Houve um tempo em que eu o censurara
por estar sempre na minha mente. No quis a sua
companhia quando estive com Moli e tentei lhe
explicar na poca que esses momentos deviam
pertencer apenas a mim. Agora o seu empurro
deixou claro para mim que eu estivera me
agarrando tanto a ele como ele se agarrara a mim
quando era filhote. Resisti firmemente ao impulso
inicial de me prender a ele. Em vez disso, voltei a
me instalar na cadeira e olhei para o fogo.
Baixei as muralhas. Fiquei algum tempo sentado,
de boca seca, espera de um ataque. Quando nada
veio, pensei com cuidado e voltei a baixar as
muralhas. Eles achavam que eu estava morto,
lembrei a mim mesmo. No estariam espreita
para emboscar um morto. Mesmo assim no era
fcil baixar as muralhas. Era muito mais fcil abrir
bem os olhos num dia em que a luz do sol se
refletia brilhante na gua, ou me manter imvel
espera de um soco. Porm, quando finalmente o
fiz, consegui sentir o Talento fluindo ao meu redor,
abrindo-se minha volta como se eu fosse uma
pedra na corrente de um rio. Bastaria mergulhar
nela e eu encontraria Veracidade. Ou Vontade, ou
Emaranhado, ou Cedoura. Estremeci, e o rio
recuou. Fortaleci-me e regressei para junto dele.
Permaneci durante muito tempo hesitando naquela
margem, desafiando-me a mergulhar. Testar a gua
com o Talento no era opo. Era dentro ou fora.
Dentro.
Dentro, e eu estava rodopiando e caindo, e senti
meu ser rasgando como um pedao de corda podre
de cnhamo. Fios que descascavam e se torciam
para longe de mim, todas as camadas que me
transformavam no que era, memrias, emoes, os
profundos pensamentos que importavam, os
clares de poesia que se experimenta e que batem
mais fundo do que o entendimento, as memrias
aleatrias de dias comuns, tudo isso esfarrapando-
se e desaparecendo. Era to bom. Tudo o que eu
tinha a fazer era me deixar ir.
Mas isso teria feito com que Galeno tivesse
razo a meu respeito.
Veracidade?
No houve resposta. Nada. Ele no estava l.
Recolhi-me ao interior de mim mesmo e puxei
todo o meu ser, rodeando com ele a minha mente.
Descobri que podia faz-lo, que podia me
controlar na corrente de Talento, ao mesmo tempo
que mantinha a identidade. Por que havia sido
sempre to difcil? Pus essa questo de lado e
refleti sobre o pior. O pior era que Veracidade
estivera vivo e falara comigo, alguns meses antes.
Diga-lhes que Veracidade est vivo. s isso.
E eu dissera, mas eles no haviam compreendido,
e ningum agira. Mas o que podia ter sido aquela
mensagem, se no uma splica por ajuda? Um
pedido de ajuda do meu rei no fora respondido.
De repente, aquilo no era algo que se pudesse
suportar, e o grito de Talento que saiu de mim foi
algo que senti como se a prpria vida me saltasse
do peito num apelo de procura.
VERACIDADE!
Cavalaria?
No foi mais do que um murmrio roando na
minha conscincia, to leve como uma mariposa
batendo numa cortina. Aquela foi a minha vez de
alcanar, agarrar e equilibrar. Atirei-me na
direo dele e o encontrei. A sua presena
tremeluzia como a chama de uma vela prestes a se
apagar na poa da sua prpria cera. Sabia que ele
partiria em breve. Eu tinha mil perguntas. Fiz a
nica que era importante.
Veracidade. Pode tirar foras de mim, sem me
tocar?
Fitz? A pergunta mais frgil, mais hesitante.
Pensei que Cavalaria havia regressado Ele
balanava beira da escurido para tirar o seu
fardo de cima de mim
Veracidade, preste ateno. Pense. Pode tirar
foras de mim? Pode faz-lo agora?
Eu no no consigo. Alcanar. Fitz?
Lembrei-me de Sagaz, tirando foras de mim
para enviar pelo Talento uma despedida ao filho.
E de como Justino e Serena o haviam atacado e
sugado todas as suas foras, matando-o. De como
morrera, como uma bolha estourando. Como uma
centelha apagando-se.
VERACIDADE! Atirei-me a ele, enrolei-me
sua volta, equilibrei-o como ele me equilibrara to
frequentemente nos nossos contatos pelo Talento.
Tire de mim, ordenei-lhe, e me abri a ele. Com
pura fora de vontade, obriguei-me a acreditar na
realidade da sua mo no meu ombro, tentei
recordar como me sentira nas vezes em que ele ou
Sagaz haviam obtido foras de mim. A chama que
era Veracidade deu um salto sbito, e aps um
momento ardia de novo, forte e limpa.
Basta, advertiu-me, e em seguida com mais
fora: Tenha cuidado, garoto!
No, eu estou bem, posso fazer isso, assegurei-
lhe, e obriguei as minhas foras a se transferirem
para ele.
Basta!, insistiu, e afastou-se de mim. Foi quase
como se dssemos um pequeno passo para trs e
examinssemos um ao outro. Eu no conseguia ver
o seu corpo, mas podia sentir a terrvel fadiga que
havia nele. No era a fadiga saudvel que chega no
fim de um dia de trabalho, mas a fadiga at os
ossos de um dia opressivo empilhado sobre o
outro, sem nunca se ter comida ou descanso
suficientes entre eles. Eu lhe dera foras, mas no
sade, e ele iria queimar rapidamente a vitalidade
que obtivera de mim, pois ela no era mais
verdadeira fora do que o ch de casco-de-elfo
era uma refeio de sustento.
Onde voc est?, perguntei-lhe.
Nas Montanhas, disse ele com relutncia, e
acrescentou: No seguro dizer mais. Nem
sequer devamos usar o Talento. H quem
gostaria de tentar escutar a nossa conversa.
Contudo, ele no ps fim ao contato, e eu
compreendi que ele estava to vido para fazer
perguntas como eu. Tentei pensar no que podia lhe
dizer. No conseguia detectar ningum alm de
ns, mas no tinha certeza de que saberia se
estivssemos sendo espionados. Durante longos
momentos, o nosso contato manteve-se
simplesmente como uma conscincia um do outro.
Ento Veracidade me advetiu com severidade:
Precisa ter mais cuidado. Atrair problemas
para voc. Ainda assim, isso me anima. Passei
muito tempo sem o toque de um amigo.
Ento qualquer risco que eu corra vale a pena.
Hesitei, e em seguida descobri que no era capaz
de confinar o pensamento dentro de mim. Meu rei.
H algo que tenho de fazer. Mas quando estiver
feito, irei at o senhor.
Nesse momento, senti algo vindo dele. Uma
gratido, cuja intensidade me subjugava. Espero
ainda estar aqui quando voc chegar. E ento,
com mais severidade: No diga nomes, use o
Talento apenas se precisar . Mais suavemente:
Tenha cuidado, rapaz. Tenha muito cuidado. Eles
so implacveis.
E ento desapareceu.
Rompera o contato por completo. Esperei que,
onde quer que estivesse, ele usasse a fora que eu
lhe emprestara para encontrar alguma comida ou
um lugar seguro para descansar. Sentira que ele
vivia como algum acossado, sempre cauteloso,
sempre com fome. To presa como eu. E algo
mais. Um ferimento, uma febre? Recostei-me na
cadeira, tremendo um pouco. Eu sabia que no
devia tentar me levantar. O simples fato de usar o
Talento retirava foras de mim, e eu me abrira a
Veracidade e o deixara drenar ainda mais. Em
alguns momentos, quando o tremor se atenuasse, eu
faria um pouco de ch de casco-de-elfo e iria me
restabelecer. Por ora, permaneci sentado, fitando o
fogo e pensando em Veracidade.
Veracidade partira de Torre do Cervo no outono
passado. Parecia ter sido h uma eternidade.
Quando Veracidade partira, o Rei Sagaz ainda
vivia, e a esposa de Veracidade, Kettricken,
estava grvida. Ele estabelecera para si uma
demanda. Os Salteadores dos Navios Vermelhos
das Ilhas Externas assolavam as nossas costas
havia trs anos, e todos os nossos esforos para
afast-los haviam falhado. Assim, Veracidade,
Prncipe Herdeiro do trono dos Seis Ducados,
determinara que iria at as Montanhas, para
encontrar l os nossos aliados quase lendrios, os
Antigos. Segundo a tradio, muitas geraes antes
o Rei Sabedoria os procurara e eles haviam
ajudado os Seis Ducados contra salteadores
semelhantes. Tambm haviam prometido regressar
se precisssemos deles. E assim Veracidade
deixara para trs trono, esposa e reino para
procur-los e lembr-los de sua promessa. O seu
pai idoso, o Rei Sagaz, ficara para trs, assim
como o seu irmo mais novo, o Prncipe
Majestoso.
Quase no momento em que Veracidade partira,
Majestoso comeara a agir contra ele. Cortejara os
Duques Interiores e ignorara as necessidades dos
Ducados Costeiros. Eu suspeitava que era ele a
fonte dos rumores que escarneciam da demanda de
Veracidade e o pintavam como um tolo
irresponsvel, quando no como um louco. O
crculo de utilizadores de Talento que deviam
estar juramentados a Veracidade haviam sido
corrompidos h muito tempo para se colocarem a
servio de Majestoso. Ele os usara para anunciar
que Veracidade morrera a caminho das Montanhas,
e depois proclamara-se Prncipe Herdeiro. O seu
controle sobre o cada vez mais frgil Rei Sagaz
tornara-se absoluto; Majestoso declarara que iria
mudar a corte para o interior, deixando Torre do
Cervo de todas as formas importantes merc dos
Navios Vermelhos. Quando anunciara que o Rei
Sagaz e a rainha de Veracidade, Kettricken, tinham
que acompanh-lo, Breu decidira que
precisvamos agir. Sabia que Majestoso no
toleraria que nenhum dos dois se interpusesse
entre ele e o trono, de modo que fizemos os nossos
planos para faz-los desaparecer, na mesma noite
em que ele se declarara Prncipe Herdeiro.
Nada correra como planejado. Os Duques
Costeiros estavam prestes a se levantar contra
Majestoso; haviam tentado me recrutar para a sua
rebelio. Eu concordara em auxiliar a sua causa,
na esperana de manter Torre do Cervo como uma
posio de poder para Veracidade. Antes de
conseguirmos fazer o rei desaparecer, dois
membros do crculo o mataram. Apenas Kettricken
fugira, e embora eu tivesse matado aqueles que
haviam assassinado o Rei Sagaz, fui capturado,
torturado e declarado culpado da magia da Manha.
A Dama Pacincia, esposa de meu pai, intercedera
por mim em vo. Se Bronco no tivesse
conseguido me entregar clandestinamente veneno,
eu teria sido enforcado sobre a gua e queimado.
Mas o veneno fora suficiente para simular a morte
de forma convincente. Enquanto a minha alma
acompanhava Olhos-de-Noite no seu corpo,
Pacincia reclamara o meu corpo da cela de
priso e o enterrara. Sem que ela soubesse,
Bronco e Breu me desenterraram assim que
puderam faz-lo em segurana.
Pisquei e afastei o olhar das chamas. O fogo j
havia quase se apagado. A minha vida agora era
assim, toda em cinzas atrs de mim. No havia
maneira de recuperar a mulher que amara. Moli
achava que eu agora estava morto, e no havia
dvida de que via o meu uso da magia da Manha
com repugnncia. E, de qualquer forma, ela me
deixara dias antes de o resto da minha vida ter
desmoronado. Eu a conhecia desde que ramos
crianas e brincvamos juntos nas ruas e docas da
Cidade de Torre do Cervo. Ela me apelidara de
Novato, e sups que era apenas uma das crianas
do castelo, um cavalario ou um aprendiz de
escriba. Apaixonara-se por mim antes de
descobrir que eu era o Bastardo, o filho ilegtimo
que forara Cavalaria a abdicar do trono. Quando
descobriu, quase a perdi. Mas a persuadi a confiar
em mim, a acreditar em mim, e durante quase um
ano nos agarramos um ao outro, apesar de todos os
obstculos. Frequentemente fui forado a colocar
os meus deveres para com o rei frente do que
desejvamos fazer. O rei recusara-se a me dar
permisso para casar; ela aceitou isso. O rei me
prometera a outra mulher. At isso ela tolerou.
Fora ameaada e escarnecida como a rameira do
Bastardo. Fui incapaz de proteg-la. Mas ela
passara por tudo com tal firmeza At que um dia
me dissera simplesmente que havia outra pessoa,
algum que podia amar e colocar acima de tudo na
sua vida, tal como eu fazia com o meu rei. E me
deixou. No podia censur-la. S podia sentir a
sua falta.
Fechei os olhos. Estava cansado, quase exausto.
E Veracidade me avisara para no voltar a usar o
Talento, a menos que precisasse. Mas certamente
no haveria problema em tentar ter um vislumbre
de Moli. S para v-la, por um momento, para ver
que ela estava bem Provavelmente nem teria
sucesso em v-la. Mas que mal poderia haver em
tentar, s por um momento?
Devia ter sido fcil. No custava qualquer
esforo me lembrar de tudo a seu respeito.
Respirara o seu cheiro com tanta frequncia,
combinado com as ervas que usava para perfumar
as velas que fazia e com o calor da sua doce pele.
Conhecia cada nuance da sua voz e o modo como
se aprofundava quando ela ria. Conseguia me
lembrar da linha precisa do seu queixo e da
posio em que ela o colocava quando estava
aborrecida comigo. Conhecia a textura acetinada
do seu rico cabelo castanho e o dardejar dos seus
olhos escuros. Tinha um jeito de colocar as mos
no meu rosto e de me segurar firmemente enquanto
me beijava Levei a mo ao rosto, desejando
poder encontrar ali a sua, para poder prend-la e
segur-la para sempre. Mas, em vez disso, senti a
irregularidade de uma cicatriz. Meus olhos se
encheram com as lgrimas disparatadas e mornas.
Afastei-as, piscando, vendo as chamas da minha
lareira nadando por um momento antes de a viso
se firmar. Disse a mim mesmo que estava cansado.
Cansado demais para tentar encontrar Moli com o
meu Talento. Devia tentar dormir um pouco.
Procurei afastar-me daquelas emoes demasiado
humanas. No entanto, foi isto que escolhi quando
decidi voltar a ser um homem. Talvez fosse mais
sensato ser um lobo. Certamente um animal jamais
tivera de sentir tais coisas.
L fora, na noite, um lobo solitrio ergueu o
focinho e uivou de sbito para o cu, trespassando
a noite com a sua solido e desespero.
CAPTULO 4

A Estrada do Rio

Cervo, o mais antigo ducado dos Seis Ducados,


possui um litoral que se estende para o sul desde
logo abaixo de Fundos Altos, incluindo a foz do
Rio Cervo e a Baa de Cervo. A Ilha da Armao
est includa no Ducado de Cervo. A riqueza de
Cervo tem duas fontes principais: as ricas zonas
pesqueiras de que o povo da costa sempre se
beneficiou e o comrcio martimo criado com o
abastecimento dos Ducados Interiores com tudo
o que lhes falta, atravs do Rio Cervo. O Rio
Cervo um rio largo, e meandra livremente no
seu leito, inundando com frequncia as terras
baixas de Cervo durante a primavera. A corrente
to forte que um canal livre de gelo sempre
permaneceu aberto no rio ao longo de todo o
ano, exceto nos quatro invernos mais severos da
histria de Cervo. No s os bens de Cervo
viajam rio acima at aos Ducados Interiores,
mas os dos ducados de Rasgo e Razos tambm,
sem falar nos artigos mais exticos provenientes
dos Estados de Calcede e dos Mercadores de
Vilamonte. Rio abaixo vem tudo o que os
Ducados Interiores tm a oferecer, bem como as
belas peles e mbares provenientes do comrcio
com o Reino da Montanha.

Acordei quando Olhos-de-Noite empurrou minha


bochecha com um focinho frio. Mesmo assim, em
vez de acordar sobressaltado, fui tomando
conscincia devagar daquilo que me rodeava.
Sentia a cabea latejando e o rosto rgido. A
garrafa vazia de vinho de sabugueiro rolou para
longe de mim quando me sentei no cho.
Voc dorme muito profundamente. Est
doente?
No. Apenas estpido.
Nunca tinha reparado que isso o fazia dormir
profundamente.
Voltou a me cutucar com o focinho e eu o
afastei. Fechei bem os olhos por um momento,
ento voltei a abri-los. Nada melhorara. Atirei
mais alguns gravetos de lenha sobre as brasas do
fogo da noite anterior.
de manh? Perguntei sonolento em voz
alta.
A luz est comeando a mudar. Devamos
voltar at o lugar das tocas dos coelhos.
V na frente. No estou com fome.
Como quiser. Afastou-se, mas depois fez uma
pausa soleira da porta aberta. No acho que
dormir dentro de casa faa bem a voc. E ento
desapareceu, um borro cinzento afastando-se da
soleira. Lentamente, voltei a me deitar e fechei os
olhos. Iria dormir s mais um pouco.
Quando voltei a acordar, a luz do dia jorrava
pela porta aberta. Uma breve busca de Manha
encontrou um lobo saciado cochilando luz
salpicada do sol, entre duas razes de um carvalho.
Olhos-de-Noite via pouca utilidade em dias
ensolarados e luminosos. Hoje eu concordava com
ele, mas me forcei a regressar deciso do dia
anterior. Comecei a pr a cabana em ordem. Ento
me ocorreu que nunca mais voltaria a ver aquele
lugar. O hbito me levou a acabar de varrer o cho
mesmo assim. Limpei as cinzas da lareira e
coloquei l uma nova braada de lenha. Se algum
passasse por ali e precisasse de abrigo,
encontraria tudo pronto. Apanhei a roupa seca e
botei na mesa tudo o que levaria comigo. Era
pateticamente pouco, se se pensasse naquilo como
sendo tudo o que eu possua. Quando me lembrei
que tinha de transportar tudo nas costas, pareceu
muita coisa. Desci ao riacho para beber e me lavar
antes de tentar transformar aquilo num fardo
aceitvel.
Enquanto voltava do riacho, perguntei a mim
mesmo quo descontente ficaria Olhos-de-Noite
com a ideia de viajar durante o dia. Sem que
soubesse como, eu deixara cair o segundo par de
calas soleira da porta. Parei e o recolhi antes
de entrar, atirando-o depois em cima da mesa.
Percebi de repente que no estava s.
A pea de vesturio na soleira da porta deveria
ter me avisado, mas eu me tornara descuidado.
Havia se passado tempo demais desde que eu fora
ameaado. Comeara a depender muito do sentido
da Manha para me informar de quando havia
outros nas imediaes. Os Forjados no podiam
ser detectados dessa forma. Nem a Manha nem o
Talento me serviriam de alguma coisa contra eles.
Eram dois, ambos jovens, e tinham aspecto de no
terem sido forjados h muito tempo. As suas
roupas estavam basicamente intactas, e embora se
encontrassem sujos, no era a sujeira entranhada e
o cabelo emaranhado que eu acabara por associar
aos Forjados.
Na maior parte das vezes que eu combatera
Forjados, era inverno e eles estavam
enfraquecidos pelas privaes. Um dos meus
deveres como assassino do Rei Sagaz fora manter
a rea em volta de Torre do Cervo livre deles.
Jamais conseguimos descobrir que magia os
Navios Vermelhos usavam na nossa gente para
arranc-la de suas famlias e devolv-las poucas
horas mais tarde como brutos sem emoes.
Sabamos apenas que a nica cura era uma morte
misericordiosa. Os Forjados eram o pior dos
horrores que os Salteadores soltaram sobre ns.
Deixavam os nossos prprios familiares para nos
depredar muito depois de seus navios terem
zarpado. O que seria pior: enfrentar um irmo,
sabendo que o roubo, o assassinato e a violao
eram agora perfeitamente aceitveis para ele,
desde que obtivesse o que desejava? Ou puxar a
faca e sair para persegui-lo e mat-lo?
Eu os interrompera enquanto vasculhavam as
minhas posses. De mos cheias de carne seca,
estavam alimentando-se, cada um mantendo um
olho cauteloso no outro. Embora Forjados
pudessem viajar juntos, no possuam
absolutamente nenhuma lealdade para com quem
quer que fosse. A companhia de outros seres
humanos talvez fosse um mero hbito. Eu os vira
voltando-se com violncia uns contra os outros
para disputar a posse de um saque qualquer, ou
simplesmente depois de ficarem com fome
suficiente. Mas, agora, viraram os olhares para
mim, avaliando-me. Estaquei. Durante um
momento, ningum se moveu.
Eles tinham a comida e todas as minhas posses.
No havia qualquer motivo para me atacarem,
desde que eu no os desafiasse. Recuei na direo
da porta, com passos lentos e cuidadosos,
mantendo as mos baixas e imveis. Precisamente
como se tivesse me deparado com um urso
comendo a presa, no olhei diretamente para eles
enquanto me afastava cuidadosamente do seu
territrio. Eu j havia quase sado quando um
deles ergueu uma mo suja para apontar para mim.
Sonha alto demais! declarou num tom
zangado. Ambos largaram o seu saque e saltaram
na minha direo.
Rodopiei e fugi, colidindo em cheio, peito
contra peito, com outro que vinha entrando
precisamente naquele momento. Vestia a minha
segunda camisa e pouco mais. Os seus braos
fecharam-se minha volta quase que por reflexo.
No hesitei. Conseguia chegar faca que trazia ao
cinto e foi o que fiz, mergulhando-a duas vezes na
barriga dele antes de ele cair para trs. Encolheu-
se com um rugido de dor enquanto eu passava por
ele com um empurro.
Irmo!, senti, e soube que Olhos-de-Noite
estava vindo, mas estava longe demais, na colina.
Um homem me atingiu com fora por trs, e eu ca.
Rolei sob o seu abrao, gritando num terror rouco
quando ele despertou de sbito em mim todas as
ardentes recordaes das masmorras de
Majestoso. O pnico tomou conta de mim como um
veneno sbito. Voltei a mergulhar no pesadelo.
Estava aterrorizado demais para me mover. Meu
corao batia com fora no peito, eu no conseguia
respirar, tinha as mos dormentes, no conseguiria
dizer se ainda segurava a faca. A mo dele tocou
minha garganta. Debati-me freneticamente,
pensando apenas em fugir, em me esquivar do seu
toque. O seu companheiro me salvou, com um
chute violento que raspou meu flanco enquanto eu
me contorcia e foi atingir em cheio as costelas do
homem que estava em cima de mim. Ouvi-o soltar
o ar dos pulmes, e com um empurro violento
tirei-o de cima de mim. Rolei para o lado,
levantei-me e fugi.
Corri empelido por um medo to imenso que
nem conseguia pensar. Ouvi um homem logo atrs
de mim, e pensei poder ouvir o outro atrs dele.
Mas agora eu conhecia aquelas colinas e pastos
como o meu lobo as conhecia. Levei-os pela
colina ngreme que se erguia atrs da choupana e
antes de eles terem tempo de ultrapassar o topo,
mudei de direo e me atirei no cho. Um carvalho
cara durante a ltima das violentas tempestades
de inverno, erguendo uma grande muralha de terra
com seu emaranhado de razes e levando rvores
menores consigo. Criara um belo emaranhado de
troncos e ramos e deixara entrar na floresta uma
larga faixa de luz do sol. As amoreiras bravas
tinham germinado em jbilo e haviam coberto o
gigante cado. Atirei-me no cho ao seu lado.
Rastejei de barriga atravs da parte mais
espinhosa dos ramos de amoreira, enfiando-me na
escurido que havia sob o tronco do carvalho, e
depois fiquei completamente imvel.
Ouvi os seus gritos irritados enquanto
procuravam por mim. Em pnico, ergui tambm as
muralhas mentais. Sonha alto demais, acusara-
me o Forjado. Bem, Breu e Veracidade tinham
suspeitado de que o uso do Talento atraa os
Forjados. A intensidade com que o sentiam talvez
exigisse, e o alcance dessa sensao do Talento
talvez tocasse algo neles e os lembrasse de tudo o
que haviam perdido.
E os fazia querer matar qualquer um que ainda
podia sentir? Talvez.
Irmo?
Era Olhos-de-Noite, um tanto abafado, ou a uma
distncia muito grande. Ousei me abrir um pouco a
ele.
Estou bem. Onde voc est?
Aqui mesmo. Ouvi uma farfalhar, e de repente
ali estava ele, rastejando at mim. Tocou-me no
rosto com o focinho. Est ferido?
No. Fugi.
Sensato, observou, e pude sentir que falava a
srio.
Mas tambm consegui sentir que estava
surpreso. Nunca me vira fugir de Forjados. Antes,
sempre me erguera e lutara, e ele se erguera e
lutara ao meu lado. Bem, naquelas ocasies eu
geralmente estava bem armado e alimentado, e
eles estavam esfomeados e sofrendo com o frio.
Trs contra um quando s se tem uma faca de cinto
como arma no das melhores chances, mesmo
que se saiba que um lobo est vindo para ajud-lo.
No havia nada de covardia nisso. Qualquer
homem poderia ter feito o mesmo. Repeti essa
ideia vrias vezes a mim mesmo.
Est tudo bem, acalmou-me ele. Em seguida
acrescentou: No quer sair?
Daqui a pouco. Depois que eles forem embora,
sussurrei-lhe.
J foram embora h muito tempo, informou-me
ele. Partiram quando o sol ainda estava alto.
S quero ter certeza.
Eu tenho certeza. Vi-os ir embora. Eu os segui.
Saia da, irmozinho.
Permiti que me coagisse a sair dos espinheiros.
Quando emergi, descobri que o sol estava quase se
pondo. Quantas horas passara ali, com sentidos
amortecidos, como um caracol enfiado na casca?
Sacudi a terra da frente da roupa, que estivera
limpa. Tambm havia sangue nela, o sangue do
jovem que surgira porta. Teria de lavar a roupa
de novo, pensei, atordoado. Por um momento,
pensei em ir buscar gua e aquec-la, em esfregar
o sangue, e ento soube que no conseguiria entrar
na cabana e ficar de novo encurralado ali.
Porm, as poucas posses que eu tinha estavam
l. Ou o que quer que os Forjados tivessem
deixado.
Por volta do nascer da lua, encontrei a coragem
para me aproximar da cabana. Era uma boa lua
cheia, e iluminava o largo prado em frente
cabana. Permaneci agachado na colina durante
algum tempo, olhando para baixo, em busca de
quaisquer sombras que pudessem se mover. Um
homem jazia na grama alta que havia perto da
porta da cabana. Fitei-o durante muito tempo,
espera de um movimento.
Ele est morto. Use o focinho, recomendou
Olhos-de-Noite.
Aquele seria o homem que eu encontrara ao sair
porta fora. A minha faca devia ter encontrado algo
vital; ele no fora longe. Mesmo assim, aproximei-
me dele na escurido com tanta cautela como se
ele fosse um urso ferido. Mas logo farejei o fedor
adocicado de algo morto que fora deixado o dia
inteiro ao sol. Ele estava estatelado de barriga
para baixo na grama. No o virei, e descrevi um
crculo largo em volta dele.
Olhei pela janela da cabana, examinando durante
alguns minutos a escurido sem movimento do
interior.
No h ningum l dentro, Olhos-de-Noite me
lembrou com impacincia
Tem certeza?
Tanto como tenho de ter um focinho de lobo em
vez de um pedao de carne intil entre os olhos.
Irmo
Deixou o pensamento desaparecer, mas consegui
sentir a sua ansiedade inaudita por mim. Eu quase
a partilhava. Uma parte de mim sabia que havia
pouco a temer, que os Forjados tinham levado tudo
o que quiseram e haviam seguido viagem. Outra
parte no era capaz de se esquecer do peso do
homem em cima de mim, nem da fora daquele
chute de raspo. Eu fora preso dessa forma contra
o cho de pedra de uma masmorra e espancado,
com punhos e botas, e nada pude fazer. Agora que
tinha essa recordao de volta, eu no sabia como
iria viver com ela.
Finalmente entrei na cabana. At me forcei para
acender alguma luz, tateando at encontrar a
pederneira. Minhas mos tremiam enquanto reunia
s pressas as coisas que eles tinham deixado e as
enrolava no manto. A porta aberta atrs de mim
era uma fenda negra ameaadora atravs da qual
eles podiam entrar a qualquer momento. Mas se a
fechasse, eu poderia ficar encurralado ali dentro.
Nem mesmo Olhos-de-Noite de vigia na soleira da
porta conseguia me tranquilizar.
Tinham levado s aquilo para o que tinham uso
imediato. Forjados no faziam planos para alm de
cada momento. Toda a carne seca tinha sido
comida ou jogada de lado. Eu no queria nada
daquilo em que haviam tocado. Tinham aberto o
estojo de escriba, mas perderam interesse quando
no encontraram nada para comer dentro.
Provavelmente supuseram que a caixa menor, para
os venenos, continha os meus potes de cor de um
escriba. No tinham mexido nela. Quanto s
roupas, s aquela camisa fora levada, e eu no
sentia nenhum interesse em recuper-la. Eu lhe
enchera a barriga de buracos. Levei o que restava
e parti. Atravessei o prado e subi at o topo da
colina, de onde tinha uma boa vista em todas as
direes. Sentei-me ali e, com mos trmulas,
embalei o que me restava para a viagem. Usei o
manto de inverno para envolver as coisas e atei
bem a trouxa com tiras de couro. Outras tiras me
permitiram passar a trouxa pelo ombro. Quando
tivesse mais luz, eu imaginaria uma maneira
melhor para carreg-la.
Pronto? perguntei a Olhos-de-Noite.
Agora caamos?
No. Viajamos. Hesitei. Est com muita fome?
Um pouco. Est com muita pressa para se
afastar daqui?
No precisei pensar naquilo. Sim. Estou.
Ento no se preocupe. Podemos viajar e caar
ao mesmo tempo.
Fiz um aceno com a cabea, e em seguida ergui
os olhos para o cu. Descobri o Lavrador no cu
noturno e me orientei por ele.
Por ali disse, apontando para o lado mais
distante da colina. Em vez de responder, o lobo
apenas levantou-se e avanou resoluto na direo
para onde eu apontara. Segui-o, de orelhas
empinadas e todos os sentidos alertas em busca de
algo que se movesse na noite. Desloquei-me em
silncio e nada nos seguiu. Absolutamente nada me
seguia, alm do meu medo.
Viajar de noite transformou-se num padro. Eu
planejara viajar de dia e dormir noite. Mas
depois daquela primeira noite de trote atravs da
floresta, atrs de Olhos-de-Noite, seguindo todos
os rastros de caa que levassem na direo
geralmente correta, decidi que era melhor. De
qualquer modo, eu no teria conseguido dormir de
noite. Durante os primeiros dias, at tive
problemas em dormir de dia. Encontrava uma
posio vantajosa que mesmo assim nos ocultasse
e me deitava, certo da minha exausto. Enrolava-
me sobre mim mesmo e fechava os olhos, e depois
ficava deitado ali, atormentado pela agudeza dos
meus sentidos. Cada som, cada cheiro deixava-me
alerta com um sobressalto e eu no conseguia
voltar a relaxar at levantar para me assegurar de
que no havia perigo. Passado algum tempo, at
Olhos-de-Noite se queixava da minha agitao.
Quando por fim eu adormecia, era apenas para
acordar com um estremecimento de tempos em
tempos, suando e tremendo. A falta de sono
durante o dia me deixava deprimido durante a
noite enquanto avanava a trote no encalo de
Olhos-de-Noite.
Ainda assim, essas horas sem sono e as que
passava trotando atrs de Olhos-de-Noite, com a
cabea latejando de dor, no eram horas
desperdiadas. Nessas horas eu alimentava o dio
por Majestoso e pelo seu crculo. Amolei-o at
deixar o gume afiado. Fora nisto em que ele me
tornara. No bastava que ele tivesse me arrancado
minha vida, minha amante, no bastava que eu
tivesse de evitar as pessoas e lugares de que
gostava, no bastavam as cicatrizes que ostentava
e os tremores aleatrios de que era acometido.
No. Ele me transformara nisto, neste coelho
trmulo e assustado. Nem sequer tinha coragem de
me lembrar de tudo o que ele me fizera, mas sabia
que, quando chegasse a hora de passar das
palavras aos atos, essas recordaes se ergueriam
e se revelariam para me desmoralizar. As
recordaes que eu no podia chamar durante o
dia espreitavam como fragmentos de sons, cores e
texturas que me atormentavam noite. A sensao
de ter o rosto encostado na pedra fria,
escorregadia devido a uma fina camada do meu
sangue quente. O claro de luz que acompanhava o
bater do punho de um homem na parte lateral da
minha cabea. Os sons guturais que os homens
fazem, os gritos e grunhidos que so emitidos por
eles quando observam o espancamento de algum.
Essas eram as arestas irregulares que cortavam as
minhas tentativas de dormir. Trmulo e com os
olhos pesados, eu permanecia acordado ao lado do
lobo e pensava em Majestoso. Em outros tempos
eu tivera um amor que achava que me levaria a
passar por qualquer coisa. Majestoso tirara isso
de mim. Agora, eu nutria um dio igualmente forte.
Cavamos enquanto viajvamos. A deciso que
eu tomara de sempre cozinhar a carne depressa se
revelou intil. Conseguia acender uma fogueira
talvez a cada trs noites, e s se pudesse encontrar
um buraco onde ela no fosse atrair atenes.
Apesar disso, eu no me permitia afundar at ser
menos que um animal. Mantinha-me limpo e
tomava o mximo de cuidado com a roupa que a
nossa vida rude me permitia tomar.
O meu plano para a viagem era simples.
Viajaramos em meio vegetao at chegarmos
ao Rio Cervo. A estrada do rio seguia paralela a
ele at Lago Bode. Muitas pessoas viajavam pela
estrada; podia ser difcil para o lobo manter-se
invisvel, mas era o caminho mais rpido. Uma vez
l, a distncia at Vaudefeira, na margem do Rio
Vim, era curta. Em Vaudefeira, eu mataria
Majestoso.
Isso era o meu plano como um todo. Recusei-me
a pensar em como iria realizar qualquer uma
destas coisas. Recusei-me a ficar preocupado com
tudo aquilo que no sabia. Iria simplesmente
avanar, um dia de cada vez, at ter cumprido os
meus objetivos. Pelo menos isso aprendera sendo
um lobo.
Eu conhecia a costa de um vero passado
manejando um remo no navio de guerra de
Veracidade, o Rurisk, mas no estava
pessoalmente familiarizado com o interior do
Ducado de Cervo. De fato, eu o atravessara uma
vez a caminho das Montanhas para a cerimnia de
noivado de Kettricken. Na ocasio, eu fizera parte
da caravana nupcial e viajara bem montado e bem
aprovisionado. Mas agora viajava sozinho e a p,
com tempo para refletir o que via. Atravessamos
algum territrio selvagem, mas muitos lugares
outrora tambm haviam sido pastagens de vero
para rebanhos de ovelhas, cabras e gado bovino.
Atravessamos com frequncia prados com capim
por pastar que me batia no peito, e fomos
encontrar cabanas de pastores frias e desertas
desde o outono anterior. Os rebanhos que
chegamos a ver eram pequenos, nem perto do
tamanho dos rebanhos de que eu me lembrava de
anos anteriores. Vi poucos criadores de porcos e
de gansos, em comparao com a minha primeira
viagem por aquela rea. Quando nos aproximamos
do Rio Cervo, passamos por searas
substancialmente menores do que aquelas de que
me lembrava, com muita terra boa entregue ao
capim silvestre, sem sequer ter sido arada.
Aquilo fazia pouco sentido para mim. Vira o
mesmo acontecer ao longo da costa, onde os
rebanhos e colheitas dos agricultores tinham sido
repetidamente destrudos pelos ataques. Em anos
recentes, tudo o que no fosse tomado pelos
Navios Vermelhos em fogo e saque era levado
pelos impostos para financiar os navios de guerra
e os soldados que quase no os protegiam. Porm,
rio acima, fora do alcance dos Salteadores, eu
pensara que encontraria Cervo mais prspero.
Aquilo me desencorajava.
Logo chegamos estrada que seguia o Rio
Cervo. Havia muito menos trfego do que eu me
lembrava, tanto na estrada como no rio. Aqueles
que encontramos na estrada mostraram-se bruscos
e pouco amigveis, mesmo quando Olhos-de-Noite
no estava vista. Parei uma vez numa fazenda
para perguntar se podia tirar gua fria do seu poo.
Recebi permisso, mas ningum chamou os ces
que me rodearam e rosnaram enquanto eu o fazia, e
quando fiquei com o odre cheio, a mulher me disse
que era melhor eu seguir viagem. A sua atitude
pareceu ser predominante.
E quanto mais avanava, pior se tornava. Os
viajantes que encontrava nas estradas no eram
mercadores com carroas de bens ou agricultores
levando os seus produtos para o mercado. Eram
famlias esfarrapadas, frequentemente levando
tudo o que possuam em um ou dois carrinhos de
mo. Os olhos dos adultos eram duros e pouco
amistosos, enquanto os das crianas se mostravam
com frequncia magoados e vazios. Quaisquer
esperanas que eu pudesse ter tido de arranjar
biscates ao longo daquela estrada rapidamente
desapareceram. Aqueles que ainda possuam casas
e fazendas as defendiam desconfiados. Ces latiam
nos ptios, e trabalhadores agrcolas protegiam
contra os ladres as novas plantaes depois de
escurecer. Passamos por vrias cidades de
mendigos, aglomerados de cabanas improvisadas
e tendas ao longo da estrada. noite, fogueiras
ardiam vivamente nelas, e adultos de olhos frios
montavam guarda com porretes e piques nas mos.
De dia, as crianas sentavam-se ao longo da
estrada e mendigavam junto dos viajantes de
passagem. Penso que compreendi por que motivo
as carroas de mercadores que vi estavam to bem
protegidas.
J viajvamos pela estrada havia vrias noites,
passando como fantasmas silenciosos por muitas
aldeias pequenas, at chegarmos a uma vila de
tamanho razovel. A alvorada nos surpreendeu
quando nos aproximvamos dos arredores. Quando
uns mercadores madrugadores com uma carroa de
galinhas engaioladas nos ultrapassaram, soubemos
que era hora de nos escondermos. Ns nos
acomodamos para as horas do dia numa pequena
elevao que nos permitia ver uma vila construda
parcialmente dentro do rio. Quando no consegui
adormecer, sentei-me e vigiei o comrcio que se
desenrolava na estrada abaixo de ns. Barcos,
grandes e pequenos, encontravam-se amarrados
nas docas da vila. Ocasionalmente, o vento me
trazia os gritos das tripulaes que descarregavam
os navios. Uma vez cheguei mesmo a ouvir um
trecho de uma cano. Para minha surpresa, dei
por mim atrado pela minha espcie. Deixei
Olhos-de-Noite dormindo, mas fui s at o riacho
que corria pelo sop da colina. Tratei de lavar a
camisa e as perneiras.
Devamos evitar este lugar. Eles tentaro
mat-lo se for at l, sugeriu Olhos-de-Noite em
tom de ajuda. Estava sentado na margem do riacho
ao meu lado, observando-me enquanto eu me
lavava e a noite ia escurecendo o cu. A camisa e
as perneiras estavam quase secas. Eu estivera
tentando lhe explicar por que motivo queria que
ele esperasse por mim enquanto eu ia at a vila e a
taverna que havia ali.
Por que iriam querer me matar?
Ns somos estranhos, recm-chegados ao seu
territrio de caa. Por que no iriam querer nos
matar?
Os homens no so assim, expliquei, paciente.
No. Tem razo. Provavelmente apenas o
colocaro numa gaiola e o espancaro.
No, eles no vo fazer isso, insisti com firmeza
para cobrir os medos que sentia de que talvez
algum me reconhecesse.
J o fizeram antes, insistiu ele. A ambos. E
aquela era a sua alcateia.
No podia neg-lo. Portanto prometi: Eu vou ter
muito, muito cuidado. No vou demorar. S
quero ir ouvir as conversas deles por um tempo,
para descobrir o que est acontecendo.
Por que nos importaramos com o que est
acontecendo com eles? O que est acontecendo
conosco que no estamos nem caando, nem
dormindo, nem viajando. Eles no so nossa
alcateia.
Podemos acabar sabendo o que esperar mais
adiante na nossa viagem. Posso vir a descobrir
se as estradas so muito viajadas, se h trabalho
que eu possa fazer por um dia ou dois para
arranjar algumas moedas. Esse tipo de coisa.
Podamos simplesmente continuar a viajar e
descobrir por ns mesmos, observou obstinado
Olhos-de-Noite.
Enfiei a camisa e as perneiras sobre a pele
mida. Penteei o cabelo para trs com os dedos,
apertei-o para espremer a umidade. O hbito me
levou a at-lo num rabo de cavalo de guerreiro.
Em seguida mordi o lbio, pensando. Planejara me
apresentar como escriba ambulante. Desfiz o rabo
de cavalo e soltei o cabelo. Chegava quase aos
meus ombros. Um pouco longo para cabelo de
escriba. A maioria mantinha o cabelo curto e
afastado da testa para evitar que casse sobre os
olhos quando trabalhavam. Bem, com o cabelo
desgrenhado e barba no aparada, talvez passasse
por um escriba que estivesse h muito tempo sem
trabalho. No era uma boa recomendao para as
minhas habilidades, mas dado o material pobre
que eu tinha, talvez fosse melhor.
Endireitei a camisa para ficar apresentvel.
Apertei o cinto, verifiquei para ter a certeza de
que tinha a faca em segurana na sua bainha, e em
seguida calculei o peso insignificante da minha
bolsa. A pederneira dentro dela pesava mais do
que as moedas. Eu tinha as quatro peas de prata
que Bronco me dera. Alguns meses antes, no teria
me parecido muito dinheiro. Agora era tudo o que
eu possua, e decidi no gast-lo, a menos que
fosse obrigado. A nica outra riqueza que possua
era o brinco que Bronco me dera e o alfinete de
Sagaz. Num reflexo, a minha mo foi at o brinco.
Por mais incmodo que fosse quando cavamos
no meio de arbustos densos, tocar-lhe sempre me
tranquilizara. O mesmo acontecia com o alfinete
no colarinho da minha camisa.
O alfinete que no estava l.
Tirei a camisa e verifiquei o colarinho inteiro, e
depois o resto da camisa. Acendi metodicamente
uma pequena fogueira para ter luz. Em seguida
desfiz completamente a trouxa e vasculhei tudo o
que havia nela, no uma, mas duas vezes. E isto
apesar de saber quase com certeza onde estava o
alfinete. O pequeno rubi vermelho no seu ninho de
prata encontrava-se no colarinho da camisa
vestida por um morto do lado de fora da cabana do
pastor. Eu praticamente tinha certeza, e no entanto
no conseguia admitir para mim mesmo. Enquanto
procurava, Olhos-de-Noite andava em um crculo
vago em volta da fogueira, ganindo em uma
agitao suave diante de uma ansiedade que
detectava, mas no conseguia compreender.
Shhh! disse-lhe com irritao, e forcei a
mente a reviver os acontecimentos como se me
preparasse para apresentar um relatrio a Sagaz.
A ltima vez que conseguia lembrar de ter o
alfinete fora na noite em que afastara Bronco e
Breu. Tirara-o do colarinho da camisa e mostrara-
o aos dois, e ento que ficara olhando para ele.
Depois voltara a prend-lo na camisa. No
conseguia me lembrar de t-lo manuseado desde
ento. No conseguia me lembrar de t-lo tirado
da camisa quando a lavara. Parecia que eu devia
ter me espetado nele, se ainda estivesse l. Mas eu
costumava enfiar o alfinete numa costura, onde se
prenderia melhor. Isso parecera ser mais seguro.
No tinha maneira de saber se o perdera na caa
com o lobo, ou se ainda estaria na camisa que o
morto usava. Talvez tivesse sido deixado na mesa
e um dos Forjados pegara a coisa brilhante quando
eles vasculharam as minhas posses.
Era s um alfinete, lembrei a mim mesmo. Com
uma saudade doentia, desejei poder v-lo de
sbito, preso no forro do meu manto ou cado
dentro de uma bota. Num lampejo sbito de
esperana, voltei a verificar dentro das duas botas.
Continuava a no estar l. S um alfinete, s um
pedao de metal trabalhado com uma pedra
cintilante. S o smbolo que o Rei Sagaz me dera
quando me reclamara, quando criara um vnculo
entre ns para substituir o de sangue que nunca
poderia ser legitimamente reconhecido. S um
alfinete, e tudo o que me restava do meu rei e av.
Olhos-de-Noite voltou a ganir, e eu senti uma
vontade irracional de lhe responder com um
rosnado. Ele deve ter compreendido, mas veio
mesmo assim, empurrando meu cotovelo para cima
com o focinho e enfiando a cabea debaixo do meu
brao at que a grande cabea cinzenta estivesse
encostada no meu peito e o meu brao em volta
dos seus ombros. Ergueu de repente a cabea,
batendo dolorosamente com o focinho no meu
queixo. Abracei-o com fora, e ele virou-se para
esfregar a garganta no meu rosto. O derradeiro
gesto de confiana, de lobo para lobo, essa
exposio da garganta ao possvel rosnado do
outro. Aps um momento suspirei, e a dor da perda
que sentia por causa daquela coisa diminuiu.
Era s uma coisa de um ontem?, inquiriu
hesitante Olhos-de-Noite. Uma coisa que no est
mais aqui? No um espinho na sua pata, ou
uma dor na barriga?
S uma coisa de ontem tive de concordar.
Um alfinete que fora dado a um garoto que j no
existia por um homem que morrera. Talvez fosse
melhor assim, disse a mim mesmo. Menos uma
coisa que podia me ligar a FitzCavalaria, o
Manhoso. Afaguei o pelo na nuca de Olhos-de-
Noite, ento cocei atrs de suas orelhas. Ele
sentou-se ao meu lado e depois me deu um
empurro para eu que voltasse a esfregar suas
orelhas. Fiz isso, pensando enquanto o fazia.
Talvez devesse tirar o brinco de Bronco e mant-
lo escondido na bolsa. Mas sabia que no o faria.
Que ele fosse a nica ligao que eu levava
daquela vida para esta. Deixe-me levantar
eu disse ao lobo, e ele parou com relutncia de se
encostar em mim. Metodicamente, voltei a embalar
as minhas posses numa trouxa e a apertei, ento
pisoteei a fogueira minscula para apag-la.
Devo voltar para c ou encontr-lo do outro
lado da vila?
Outro lado?
Se voc der a volta na vila e depois voltar a se
aproximar do rio, vai encontrar mais estrada l,
expliquei. Devemos nos encontrar l?
Seria bom. Quanto menos tempo passarmos
perto deste covil de humanos, melhor.
Ento est bem. Vou encontrar voc antes da
manh, disse-lhe.
O mais provvel eu encontr-lo, nariz
entorpecido. E terei a barriga cheia quando
encontrar.
Tive de conceder que isso era mais provvel.
Tome cuidado com os ces , avisei-o enquanto
ele desaparecia entre os arbustos.
Tome cuidado voc com os homens , retorquiu, e
ento se perdeu para os meus sentidos, exceto para
o vnculo de Manha.
Coloquei o fardo no ombro e me dirigi estrada.
A escurido j cara por completo. Eu pretendera
chegar vila antes do anoitecer e parar numa
taverna para ouvir a conversa e talvez beber uma
caneca, e depois seguir caminho. Quisera
atravessar a praa do mercado e escutar o que
diziam os mercadores. Em vez disso, entrei numa
vila que estava quase toda na cama. O mercado
estava deserto exceto por alguns ces que
farejavam nas barracas desertas em busca de
restos de comida. Deixei a praa para trs e virei
os meus passos na direo do rio. L embaixo
encontraria estalagens e tavernas em abundncia
para servir o trfego fluvial. Alguns archotes
ardiam aqui e ali por toda a vila, mas a maior
parte da luz nas ruas era a que se derramava
atravs de folhas de janelas mal fechadas. As ruas
empedradas de forma rudimentar no tinham boa
manuteno. Vrias vezes confundi um buraco com
uma sombra e quase tropecei. Parei um vigilante
antes que ele fizesse com que eu parasse, para lhe
pedir que me recomendasse uma estalagem
ribeirinha. A Balana, disse-me o homem, era to
justa e honesta para com os viajantes como o nome
sugeria, e tambm era fcil de encontrar. Avisou-
me severamente de que mendigar no era tolerado
l, e que batedores de carteiras teriam sorte se s
conseguissem uma surra. Agradeci-lhe pelos
avisos e segui caminho.
Descobri a Balana com a facilidade que o
vigilante assegurara. Luz jorrava da porta aberta, e
com ela vinham as vozes de duas mulheres que
cantavam uma alegre cantiga de roda. O meu
corao animou-se com o som amigvel da
cano, e entrei sem hesitar. No interior das
robustas paredes de tijolo de barro e madeira
pesada havia uma grande sala aberta, de teto baixo
e carregada com os cheiros fortes de carne, fumaa
e gente do rio. Uma lareira para cozinhar numa das
extremidades do lugar tinha um belo espeto de
carne na goela, mas a maior parte das pessoas
estava reunida no lado mais fresco da sala naquela
bela noite de vero. Fora ali que as duas
menestris haviam colocado cadeiras em cima de
uma mesa e estavam entrelaando as vozes. Um
sujeito grisalho com uma harpa, obviamente parte
do grupo, suava em outra mesa enquanto botava
uma corda nova no seu instrumento. Presumi que
fossem um mestre e duas cantoras ambulantes,
possivelmente um grupo familiar. Fiquei vendo-as
cantar em conjunto, e a minha mente regressou a
Torre do Cervo e ltima vez que eu ouvira
msica e vira gente reunida. No percebi que
estava com um olhar fixo at ver uma das mulheres
dar uma cotovelada sutil na outra e fazer um gesto
mnimo na minha direo. A outra mulher rolou os
olhos, e ento me retornou o olhar. Baixei os
olhos, corando. Supus que fora rude e afastei o
olhar.
Fiquei nos arredores do grupo e me juntei aos
aplausos quando a cano terminou. O sujeito da
harpa j estava pronto a essa altura e persuadiu as
mulheres a cantarem uma melodia mais suave, uma
melodia com o ritmo constante de remadas. As
mulheres sentaram-se na borda da mesa, com as
costas apoiadas uma na outra, misturando os
longos cabelos enquanto cantavam. As pessoas
sentaram-se para ouvir aquela cano, e alguns
mudaram-se para mesas encostadas parede a fim
de conversarem calmamente. Observei os dedos
do homem nas cordas da harpa, maravilhando-me
com a sua rapidez. Num instante, um rapaz de
bochechas rubras estava ao meu lado perguntando
o que eu queria. S uma caneca de cerveja, disse-
lhe, e ele retornou rapidamente com ela e com o
punhado de cobres que eram o que restava da
minha pea de prata. Descobri uma mesa no
muito longe dos menestris e tive a esperana de
que algum fosse suficientemente curioso para se
juntar a mim. Porm, com exceo de alguns
olhares de relance de clientes que eram claramente
regulares, ningum parecia muito interessado num
estranho. Os menestris terminaram a cano e
comearam a conversar entre si. Uma olhadela
vinda da mais velha das duas mulheres me fez
perceber que eu as estava encarando de novo.
Coloquei os olhos na mesa.
Com metade da caneca esvaziada, percebi que j
no estava habituado cerveja, especialmente de
estmago vazio. Chamei com um aceno o rapaz
minha mesa e pedi um prato de jantar. Ele me
trouxe um naco de carne que havia acabado de ser
cortado do espeto com uma poro de tubrculos
cozidos e cobertos por um caldo. Isso e voltar a
encher a caneca levou a maior parte das minhas
peas de cobre. Quando ergui as sobrancelhas
diante dos preos, o rapaz fez uma expresso de
surpresa.
metade do que lhe cobrariam na Amarrao
da Ponta da Verga, senhor disse-me ele num
tom indignado. E a carne carneiro bom, no a
velha cabra brava de algum depois de ter fim
ruim.
Tentei acalmar as coisas, dizendo:
Bem, suponho que uma pea de prata no
compre mais o que costumava comprar.
Talvez no, mas a culpa no minha
observou ele com descaramento e voltou para a
cozinha.
Bem, e l se foi uma pea de prata mais
depressa do que eu esperava repreendi-me.
Ora, a est uma cantiga que todos
conhecemos observou o harpista. Estava
sentado com as costas voltadas para a sua mesa,
aparentemente me observando enquanto as duas
parceiras discutiam um problema qualquer que
estavam tendo com uma flauta. Acenei-lhe com um
sorriso, e depois falei em voz alta quando notei
que os seus olhos estavam enevoados de cinza.
Fiquei afastado da estrada do rio durante
algum tempo. Bastante tempo, na verdade, quase
dois anos. Na ltima vez que passei por aqui, as
estalagens e a comida eram menos caras.
Bem, aposto que voc poderia dizer isso de
qualquer lugar nos Seis Ducados, pelo menos nos
costeiros. O que se diz agora que temos novos
impostos com mais frequncia do que uma lua
nova. Olhou ao redor de ns como se pudesse
ver, e deduzi que o homem no era cego h muito
tempo. E a outra coisa nova que se diz que
metade dos impostos vo para a alimentao dos
homens de Vara que os coletam.
Gracejo! repreendeu-o uma das parceiras,
e ele virou-se para ela com um sorriso.
No pode me dizer que h algum aqui agora,
Mel. Tenho um nariz capaz de cheirar um vars a
cem passos de distncia.
Ento consegue cheirar com quem voc est
conversando? perguntou-lhe ela com ironia.
Mel era a mais velha das duas mulheres, e tinha
talvez a minha idade.
Diria que um rapaz cuja sorte sofreu alguns
reveses. E portanto no um vars gordo qualquer
vindo para cobrar impostos. Alm disso, eu soube
que ele no podia ser um dos coletores de
Brilhante no momento em que comeou a
choramingar por causa do preo do jantar. Quando
foi que viu algum deles pagar seja pelo que for
numa estalagem ou taverna?
Franzi o cenho ao ouvir aquilo. Quando Sagaz
ocupava o trono, nada era levado pelos seus
soldados ou coletores de impostos sem que fosse
oferecida alguma recompensa. Era evidente que se
tratava de uma delicadeza que Dom Brilhante no
observava, pelo menos em Cervo. Mas isso fez
com que me lembrasse de minhas maneiras.
Posso me oferecer para voltar a encher a sua
caneca, Harpista Gracejo? E as das suas
companheiras tambm?
O que isto? perguntou o velho, entre um
sorriso e uma sobrancelha erguida. Resmunga
sobre gastar dinheiro para encher a sua barriga,
mas abre mo dele de boa vontade para encher
nossas canecas?
O senhor que recebe as canes dos
menestris e lhes deixa as gargantas secas de
cantar devia ter vergonha repliquei com um
sorriso.
As mulheres trocaram olhares pelas costas de
Gracejo, e Mel me perguntou com uma troa
suave:
E quando foi senhor pela ltima vez, meu
jovem?
s um ditado eu disse aps um
momento, embaraado. Mas no seria de m
vontade que pagaria as canes que ouvi,
especialmente se vocs tivessem algumas notcias
para acompanh-las. Vou subir a estrada do rio;
por acaso vocs acabaram de desc-la?
No, tambm vamos nessa direo
interveio a mulher mais nova com vivacidade.
Talvez tivesse catorze anos, e olhos
surpreendentemente azuis. Vi a outra mulher lhe
fazer um gesto para que se calasse. Depois,
apresentou-os. Como ouviu, meu bom senhor,
este o Harpista Gracejo e eu sou Mel. A minha
prima chama-se Flautista. E voc ?
Dois deslizes numa conversa curta. Um foi falar
como se ainda residisse em Torre do Cervo e
aqueles fossem menestris de visita, e o outro foi
no ter um nome planejado. Vasculhei a mente em
busca de um nome e ento, aps uma pausa um
pouco longa demais, deixei escapar:
Garrano. E em seguida perguntei a mim
mesmo com um estremecimento por que motivo
teria adotado o nome de um homem que eu
conhecera e matara.
Bem Garrano e Mel fez uma pausa antes
de dizer o nome, tal como eu fizera. Podemos
ter algumas notcias para voc, e agradeceramos
uma caneca de qualquer coisa, quer tenha sido
ultimamente um senhor ou no. Mas quem voc
est esperando que no tenhamos visto na estrada
sua procura?
Perdo? perguntei em voz baixa, e ento
ergui a caneca vazia para fazer sinal ao ajudante
de cozinha.
Ele um aprendiz fugitivo, pai disse Mel
ao pai com grande certeza. Carrega um estojo
de escriba amarrado trouxa, mas usa o cabelo
crescido, e no h nem um pingo de tinta nos seus
dedos. Riu ao ver o desgosto no meu rosto, bem
longe de adivinhar a causa. Oh, vamos
Garrano, eu sou uma menestrel. Quando no
estamos cantando, estamos testemunhando
qualquer coisa que aparea, para encontrar um
feito capaz de servir de base para uma cano.
No pode esperar que no reparemos nas coisas.
Eu no sou um aprendiz fugitivo eu disse
em voz baixa, mas no tinha nenhuma mentira
pronta para complementar essa declarao. Que
pancada que Breu me daria nos ns dos dedos por
causa daquele deslize!
No nos importamos se for, rapaz
confortou-me Gracejo. Seja como for, no
ouvimos nenhum apelo de escribas furiosos
procura de aprendizes perdidos. Atualmente, a
maior parte ficaria feliz se os seus rapazes
fugissem menos uma boca para alimentar em
tempos difceis.
E um ajudante de escriba dificilmente arranja
um nariz partido ou uma cicatriz no rosto como
essa se tiver um mestre paciente observou
Flautista com simpatia. Assim, voc teria pouca
culpa se tivesse fugido.
O ajudante de cozinha finalmente chegou, e eles
foram misericordiosos com a minha bolsa magra,
pedindo para si mesmos apenas canecas de
cerveja. Primeiro Gracejo e depois as mulheres
vieram dividir a minha mesa. O ajudante de
cozinha deve ter pensado melhor de mim depois de
me ver tratar bem os menestris, pois quando
trouxe as canecas para eles tambm encheu a
minha de novo e no cobrou por isso. Mesmo
assim, foi preciso quebrar outra pea de prata em
cobres para pagar pelas bebidas deles. Tentei
encarar a coisa filosoficamente, e lembrei a mim
mesmo que devia deixar uma moeda de cobre para
o rapaz quando eu fosse embora.
E ento comecei depois que o rapaz
voltou para dentro , que novas h l de baixo?
Mas voc no acabou de vir de l?
perguntou Mel, mordaz.
No, minha senhora, na verdade vim pelo
meio do mato, de uma visita a uns amigos pastores
improvisei. A atitude de Mel estava comeando
a me cansar.
Minha senhora disse ela em voz baixa
para Flautista e rolou os olhos. Flautista deu um
risinho. Gracejo as ignorou.
Hoje em dia, rio abaixo muito parecido
com rio acima, s que mais disse-me ele.
Tempos difceis, e vm a outros ainda mais
difceis para quem cultiva a terra. O gro para
comer foi usado para pagar os impostos, de modo
que o gro de semente foi usado para alimentar as
crianas. Da que s o que restou foi para os
campos, e no h homem que cultive mais
plantando menos. O mesmo acontece com os
rebanhos e as manadas. E no h sinal de que os
impostos vo ser menores nesta colheita. E at
uma criadora de gansos que no sabe nem contar a
prpria idade percebe que, se de menos se tira
mais, nada fica na mesa a no ser fome. Ao longo
da gua salgada pior. Se uma pessoa sai para
pescar, quem sabe o que acontecer sua casa
antes que regresse? Um agricultor planta um
terreno, sabendo que no lhe dar o suficiente para
os impostos e a famlia, e que menos de metade
disso ficar em p se os Navios Vermelhos
fizerem uma visita. J apareceu uma cano
inteligente sobre um agricultor que diz ao cobrador
de impostos que os Navios Vermelhos j fizeram o
trabalho dele.
S que menestris inteligentes no a cantam
lembrou-lhe Mel num tom mordaz.
Ento os Navios Vermelhos tambm assolam
a costa de Cervo eu disse em voz baixa.
Gracejo soltou uma gargalhada curta e amarga.
Cervo, Vigas, Rasgo ou Razos Duvido que
os Navios Vermelhos se importem onde um
ducado acaba e outro comea. Se o mar bate
contra um lugar, atacam-no.
E os nossos navios? perguntei em voz
baixa.
Aqueles que foram levados pelos Salteadores
esto trabalhando muito bem. Os que ficaram nos
defendendo, bem, eles tm tanto sucesso quanto
mosquitos incomodando gado.
Ningum se mantm firme por Cervo
atualmente? perguntei, e ouvi o desespero na
minha voz.
A Senhora de Torre do Cervo se mantm.
No s firme, como ruidosa. H quem diga que ela
no faz nada alm de gritar e repreender, mas
outros sabem que ela no lhes pede para fazer
nada que ela mesma no tenha feito antes. O
Harpista Gracejo falava como se tivesse
conhecimento direto daquilo.
Fiquei confuso, mas no quis parecer muito
ignorante.
Como o qu?
Tudo o que possam fazer. Ela j no usa
qualquer joia. Foi tudo vendido e dedicado ao
pagamento de navios de patrulha. Vendeu as suas
terras ancestrais, e usou o dinheiro para pagar
mercenrios para guarnecer as torres. Dizem que
vendeu o colar que lhe havia sido dado pelo
Prncipe Cavalaria, os rubis da av dele, ao
prprio Rei Majestoso, para comprar cereais e
madeira para as aldeias de Cervo que quisessem
reconstruir.
Pacincia sussurrei. Vira uma vez aqueles
rubis, h muito tempo, quando comevamos a nos
conhecer. Ela os julgara preciosos demais at para
usar, mas os mostrara para mim e dissera que
algum dia a minha noiva poderia us-los. H muito
tempo. Virei a cabea para o lado e lutei para
controlar o rosto.
Onde esteve dormindo neste ltimo ano
Garrano, para no saber nada disto? perguntou
Mel com sarcasmo.
Estive afastado respondi em voz baixa.
Virei-me para a mesa e consegui olh-la nos olhos.
Esperei que o meu rosto nada mostrasse.
Ela inclinou a cabea e sorriu para mim.
Onde? retorquiu vivamente.
Eu no gostava nada dela.
Tenho vivido sozinho, na floresta disse
por fim.
Por qu? Sorriu-me enquanto me
pressionava. Eu estava certo de que ela sabia o
quo desconfortvel estava me deixando.
Porque quis, evidentemente disse. Soei
muito como Bronco quando o disse que quase
olhei por cima do ombro sua procura.
Ela me fez uma boquinha, sem qualquer
arrependimento, mas o Harpista Gracejo colocou a
caneca na mesa com alguma firmeza. Nada disse, e
o olhar que deu a ela com os olhos cegos no foi
mais do que uma piscada, mas ela cedeu
abruptamente. Apertou as mos na borda da mesa
como uma criana censurada, e por um momento
pensei que estava subjugada, at que ela me olhou
por baixo dos clios. Os seus olhos encontraram
diretamente os meus, e o sorrisinho que me deu era
desafiador. Afastei os olhos dela, completamente
confuso com o motivo de ela querer implicar
comigo daquela maneira. Olhei Flautista de
relance, e fui descobrir o seu rosto vermelho vivo
de riso reprimido. Baixei os olhos para as mos,
sobre a mesa, odiando o rubor que subitamente
inundou meu rosto.
Num esforo para dar novo incio conversa,
perguntei:
H mais algumas notcias de Torre do
Cervo?
O Harpista Gracejo soltou uma gargalhada curta.
No h muitas novas desgraas para contar.
As histrias continuam sendo as mesmas, s com
os nomes das aldeias e vilas variando. Oh, mas h
um pequeno detalhe, um detalhe saboroso. Dizem
agora que o Rei Majestoso vai enforcar em pessoa
o Homem Pustulento.
Eu estava tomando um gole de cerveja.
Engasguei abruptamente e perguntei:
O qu?
uma piada estpida declarou Mel. O
Rei Majestoso mandou espalhar por a que dar
uma recompensa em moedas de ouro a qualquer
pessoa que lhe consiga entregar um certo homem,
muito marcado pela varola, ou moedas de prata a
quem consiga lhe dar informaes sobre onde ele
poder ser encontrado.
Um homem marcado pela varola? A
descrio s essa? perguntei, com cautela.
Dizem que muito magro e tem barba
grisalha, e que s vezes se disfara de mulher.
Gracejo soltou um risinho alegre, sem imaginar
como as suas palavras transformavam minhas
entranhas em gelo. E o seu crime alta traio.
Segundo os boatos, o rei o culpa pelo
desaparecimento da Princesa Herdeira Kettricken
e do seu filho por nascer. H quem diga que o
homem no passa de um velho meio louco que diz
ter sido conselheiro de Sagaz, e que escreveu
nessa condio aos duques dos Ducados
Costeiros, pedindo-lhes coragem, pois Veracidade
regressar e o seu filho ir herdar o trono
Visionrio. Mas os boatos tambm dizem, com
igual graa, que o Rei Majestoso espera enforcar o
Homem Pustulento e assim pr fim a todo o azar
nos Seis Ducados. Voltou a rir, e eu botei um
sorriso nauseado no rosto e balancei a cabea
como um pateta.
Breu, pensei comigo mesmo. Majestoso
encontrara o rastro de Breu de algum modo. Se
sabia que ele era marcado pela varola, o que mais
poderia saber? Era bvio que o ligara ao seu
disfarce como a Dama Timo. Perguntei a mim
mesmo onde Breu estaria agora e se estaria bem.
Desejei com sbito desespero saber quais haviam
sido os seus planos, de que estratagema me
exclura. Com um afundamento repentino do
corao, a percepo que eu tinha dos meus atos
foi virada de pernas para o ar. Eu havia afastado
Breu de mim para proteg-lo dos meus planos, ou
o teria abandonado precisamente quando ele
precisava do seu aprendiz?
Ainda est a, Garrano? Ainda vejo a sua
sombra, mas o seu lugar mesa ficou muito
silencioso.
Oh, estou aqui, Harpista Gracejo! Tentei
pr alguma vida nas minhas palavras. Estou s
ponderando sobre tudo o que voc me disse, nada
mais.
Perguntando-se que velho marcado pela
varola poder vender ao Rei Majestoso, pela
expresso que tem no rosto sugeriu Mel num
tom custico. Compreendi de sbito que ela via os
seus comentrios depreciativos e alfinetadas
constantes como uma espcie de flerte. Decidi
depressa que j tivera companhia e conversa
suficientes para uma noite. Estava desacostumado
demais a lidar com pessoas. Iria embora agora.
Era melhor que eles me achassem estranho e rude
do que eu ficar mais tempo e deix-los curiosos.
Bem, agradeo-lhes pelas canes e pela
conversa disse-lhes com a educao que
consegui. Tirei da bolsa um cobre para deixar
debaixo da caneca para o rapaz. E melhor eu
voltar estrada.
Mas noite cerrada l fora! objetou
Flautista, surpresa. Largou caneca e olhou de
relance para Mel, que parecia chocada.
E fresca, minha senhora observei,
alegremente. Prefiro a noite para caminhar. A
lua est quase cheia, o que deve iluminar o
suficiente uma estrada to larga como a estrada do
rio.
No tem medo dos Forjados? perguntou o
Harpista Gracejo, consternado.
Foi a minha vez de ficar surpreso.
To para o interior assim?
Voc tem vivido numa rvore exclamou
Mel. Todas as estradas esto infestadas com
eles. H viajantes que contratam guardas,
arqueiros e espadachins. Outros, como ns, viajam
em grupos sempre que podem, e s durante o dia.
As patrulhas no conseguem pelo menos
mant-los afastados das estradas? perguntei,
atnito.
As patrulhas? Mel soltou uma bufada de
desdm. A maioria de ns preferiria encontrar
Forjados a uma alcateia de vareses com piques.
Os Forjados no os incomodam, e portanto eles
no incomodam os Forjados.
Ento para o que patrulham? perguntei
num tom zangado.
Contrabandistas, principalmente. Gracejo
falou antes de Mel ter tempo de faz-lo. Pelo
menos o que tentam nos fazer crer. Muitos
viajantes honestos foram mandados parar para que
eles revistassem os seus pertences e levassem o
que lhes apetecesse, chamando de contrabando, ou
afirmando que os objetos tinham sido declarados
roubados na ltima vila. Acho que Dom Brilhante
no lhes paga to bem como eles acham que
merecem, ento pegam o que conseguem como
pagamento.
E o Prncipe O Rei Majestoso no faz
nada? Como o ttulo e a pergunta me
sufocavam.
Bem, se for at Vaudefeira, talvez voc possa
se queixar pessoalmente a ele disse-me Mel
com sarcasmo. Tenho certeza de que ele lhe
daria ouvidos, o que no fez s dzias de
mensageiros que j foram at l. Fez uma pausa
e exibiu uma expresso pensativa. Embora eu
tenha ouvido dizer que, se algum Forjado chegar
to longe para o interior que possa ser um
incmodo, ele possui maneiras de lidar com eles.
Senti-me nauseado e infeliz. Sempre fora
questo de orgulho para o Rei Sagaz que houvesse
pouco perigo de encontrar salteadores em Cervo,
desde que o viajante no sasse das estradas
principais. Ouvir dizer agora que aqueles que
deviam proteger as estradas do rei pouco mais
eram que salteadores de estrada era como uma
pequena lmina cravada em mim. No bastava que
Majestoso tivesse reivindicado o trono para si e
em seguida abandonado Torre do Cervo. No
mantinha sequer a aparncia de governar com
sabedoria. Perguntei a mim mesmo, entorpecido,
se ele seria capaz de punir Cervo inteiro pelo
pouco entusiasmo com que fora aceito no trono.
Era uma dvida tola; eu sabia que sim.
Bem, receio que mesmo com Forjados ou
vareses eu precise seguir meu caminho disse-
lhes. Bebi o que restava na minha caneca e
larguei-a.
Por que no esperar pelo menos at de
manh, rapaz, e depois viajar conosco? sugeriu
Gracejo de sbito. Os dias no esto quentes
demais para caminhar, porque h sempre uma
brisa vinda do rio. E hoje em dia quatro esto mais
seguros do que trs.
Muito obrigado pela oferta comecei, mas
Gracejo me interrompeu.
No me agradea, que eu no estava fazendo
uma oferta, e sim um pedido. Eu sou cego, homem,
ou quase. Voc certamente reparou nisso. Tambm
reparou que as minhas companheiras so jovens de
bom aspecto, se bem que pela maneira como Mel o
alfinetou imagino que voc tenha sorrido mais para
Flautista do que para ela.
Pai! exclamou indignada Mel, mas
Gracejo prosseguiu obstinado.
Eu no estava lhe oferecendo a proteo dos
nossos nmeros, mas sim pedindo que pense na
possibilidade de nos oferecer o seu brao direito.
No somos gente rica; no temos dinheiro para
contratar guardas. Mas apesar disso temos de
viajar pelas estradas, com Forjados ou sem eles.
Os olhos enevoados de Gracejo encontraram-se
com os meus sem falhar. Mel desviou o olhar, com
os lbios bem apertados, enquanto Flautista me
observava abertamente, com uma expresso
suplicante no rosto. Forjados. Preso ao cho, com
punhos caindo sobre mim. Baixei os olhos para o
tampo da mesa.
Eu no sou grande coisa para lutar disse-
lhes sem rodeios.
Pelo menos voc veria o que estaria
golpeando replicou ele com teimosia. E
certamente os veria se aproximarem antes de mim.
Olhe, voc vai na mesma direo que ns. Seria
to difcil assim para voc caminhar de dia e no
de noite durante alguns dias?
Pai, no implore a ele! censurou-o Mel.
Prefiro implorar que ele caminhe conosco do
que implorar a Forjados para que no faam mal a
voc! disse ele num tom duro. Voltou a virar o
rosto para mim enquanto acrescentava:
Encontramos alguns Forjados h duas semanas. As
garotas tiveram o bom senso de fugir quando lhes
gritei para que o fizessem quando no consegui
mais acompanh-las. Mas eles levaram a nossa
comida e danificaram minha harpa, e
E o espancaram disse Mel em voz baixa.
E por isso juramos, Flautista e eu, que da
prxima vez no vamos fugir deles, sejam muitos
ou poucos. No vamos fugir se isso significar
deixar papai para trs. Toda a provocao e a
troa brincalhonas tinham desaparecido da sua
voz. Compreendi que ela falava srio.
Vou me atrasar , suspirei a Olhos-de-Noite.
Espere por mim, vigie-me, siga-me sem ser visto.
Viajarei com vocs concedi. No posso
dizer que tenha feito a oferta de bom grado.
Embora eu no seja um homem que se saia bem em
lutas.
Como se no pudssemos dizer isso pelo
rosto dele observou Mel, num aparte para
Flautista. A troa regressara sua voz, mas eu
duvidava de que ela soubesse como as suas
palavras me feriam profundamente.
S tenho o agradecimento para lhe pagar,
Garrano. Gracejo estendeu as mos por sobre a
mesa para mim e eu as apertei no antigo sinal que
marcava a concluso de um negcio. Ele sorriu de
sbito, com um alvio evidente. Portanto, aceite
os meus agradecimentos e uma parte do que quer
que nos for oferecido como menestris. No temos
dinheiro suficiente para um quarto, mas o
estalajadeiro nos ofereceu abrigo no celeiro. As
coisas no esto como antes, quando um menestrel
obtinha um quarto e uma refeio s por pedir.
Mas pelo menos o celeiro tem uma porta que se
fecha entre ns e a noite. E o estalajadeiro daqui
tem bom corao; no vai se recusar a lhe dar
abrigo tambm se disser que vai viajar conosco
como guarda.
Ser um abrigo melhor do que o que tenho h
muitas noites disse-lhe, tentando me mostrar
amvel. O meu corao j se afundara num lugar
frio, na boca do meu estmago.
Em que foi que voc se meteu agora?, quis
saber Olhos-de-Noite. Eu tambm queria.
CAPTULO 5

Confrontos

O que a Manha? Alguns diriam que uma


perverso, um prazer distorcido do esprito
atravs do qual os homens ganham o
conhecimento das vidas e lnguas dos animais,
acabando por se transformar eles mesmos em
pouco mais do que animais. No entanto, o meu
estudo da Manha e dos seus praticantes me levou
a uma concluso diferente. A Manha parece ser
uma forma de ligao mental, normalmente com
um animal especfico, que abre uma via para a
compreenso dos pensamentos e sentimentos
desse animal. Ao contrrio do que alguns
afirmaram, no d aos homens as lnguas dos
pssaros e das feras. Um Manhoso possui uma
conscincia da vida em todo o seu vasto espectro,
incluindo os seres humanos e at algumas das
maiores e mais antigas das rvores. Porm, um
Manhoso no capaz de comear conversas
aleatrias com qualquer animal. Ele pode sentir
a presena prxima de um animal, e talvez saber
se o animal est desconfiado, hostil ou curioso.
Mas a Manha no lhe d domnio sobre os
animais da terra e as aves dos cus, como
algumas histrias fantasiosas nos tentam levar a
crer. A Manha pode ser, isso sim, a aceitao por
um homem da natureza animal dentro de si, e
consequentemente uma conscincia do elemento
de humanidade que qualquer animal traz tambm
em si. A lendria lealdade que um animal
vinculado sente pelo seu Manhoso no de modo
algum igual quilo que um animal leal d ao seu
dono. um reflexo da lealdade que o Manhoso
entregou ao seu companheiro animal, de igual
para igual.

No dormi bem, e no foi s por j no estar


habituado a dormir durante a noite. O que eles
haviam me dito sobre os Forjados me deixara
alarmado. Todos os msicos subiram no palheiro
para dormir na palha que estava empilhada ali,
mas eu descobri para mim um canto onde podia
encostar as costas em uma parede e ter ao mesmo
tempo uma vista desimpedida da porta. Era
estranho estar de novo dentro de um celeiro
noite. Aquela era uma construo boa e firme,
erguida com pedras tiradas do rio, argamassa e
madeira. A estalagem tinha uma vaca e um
punhado de galinhas alm dos cavalos para alugar
e dos animais dos hspedes. Os sons e cheiros
caseiros do feno e dos animais lembravam-me
vivamente os estbulos de Bronco. Senti uma
saudade repentina deles, como nunca sentira do
meu quarto na torre.
Perguntei a mim mesmo como estaria Bronco e
se ele saberia dos sacrifcios de Pacincia. Pensei
no amor que antigamente existira entre eles, e em
como naufragara no sentido de dever de Bronco.
Pacincia seguira a sua vida para se casar com o
meu pai, precisamente o homem a quem Bronco
dera toda aquela lealdade. Teria ele alguma vez
pensado em ir at ela, tentando recuper-la? No.
Soube nesse mesmo instante e sem dvidas. O
fantasma de Cavalaria iria se interpor entre eles
para sempre. E agora o meu tambm.
No foi um grande salto entre ponderar aquilo e
pensar em Moli. Ela tomara por ns a mesma
deciso que Bronco tomara por Pacincia e por si
mesmo. Moli me dissera que minha lealdade
obsessiva pelo meu rei significava que nunca
poderamos pertencer um ao outro, de modo que
encontrara algum com quem podia importar-se
tanto quanto eu me importava com Veracidade. Eu
detestava tudo o que dizia respeito sua deciso,
exceto o fato de ter lhe salvado a vida. Ela me
deixara. No estivera em Torre do Cervo para
partilhar a minha queda e a minha desgraa.
Procurei-a vagamente com o Talento, e logo em
seguida me repreendi. Eu queria mesmo v-la
como provavelmente estaria naquela noite,
dormindo nos braos de outro homem, sua esposa?
Senti uma dor quase fsica no peito com aquele
pensamento. No tinha o direito de espionar
qualquer que fosse a felicidade que ela
conquistara para si. E no entanto, enquanto
adormecia, pensei nela, e ansiei desesperadamente
por aquilo que existira entre ns.
Em vez de Moli, algum destino perverso me
trouxe um sonho com Bronco, um sonho muito
ntido que no fazia qualquer sentido. Estava
sentado na frente dele. Ele sentava-se a uma mesa
junto a uma lareira, consertando arreios como
fazia frequentemente noite. Mas uma caneca de
ch substitura o seu copo de conhaque, e o couro
em que trabalhava era um sapato raso e suave,
pequenssimo para ele. Enfiou a sovela no couro
mole, e ela o atravessou com facilidade demais,
espetando-lhe a mo. Ele praguejou ao ver o
sangue, ento ergueu de repente os olhos para me
pedir um perdo embaraado por usar uma tal
linguagem na minha presena.
Acordei do sonho, desorientado e perplexo.
Bronco com frequncia fizera sapatos para mim
quando eu era pequeno, mas no conseguia me
recordar de alguma vez ele ter pedido desculpa
por praguejar na minha presena, embora me desse
bofetadas com bastante frequncia quando eu era
menino se me atrevesse a usar tal linguagem na sua
frente. Ridculo. Deixei o sonho de lado, mas o
sono fugira com ele.
Ao meu redor, quando sondei com suavidade,
havia apenas os sonhos inspidos dos animais
adormecidos. Todos estavam em paz, menos eu.
Pensamentos sobre Breu vinham me incomodar de
uma forma repetitiva. Ele era um velho, de muitas
maneiras. Quando o Rei Sagaz era vivo, satisfizera
todas as necessidades de Breu, para que o seu
assassino pudesse viver em segurana. Breu
raramente se aventurara a sair do seu quarto
escondido, exceto quando era para desempenhar o
seu trabalho discreto. Agora estava entregue a si
mesmo, fazendo s El sabia o qu, e com as tropas
de Majestoso no seu encalo. Esfreguei em vo a
testa que me doa. Era intil me preocupar, mas eu
parecia no conseguir parar.
Ouvi quatro leves roadas de ps, seguidas de
um baque, como algum descendo a escada do
palheiro e saltando o ltimo degrau.
Provavelmente uma das mulheres a caminho da
latrina. Mas um momento mais tarde ouvi a voz de
Mel sussurrando:
Garrano?
O que ? perguntei com relutncia.
Ela virou-se para a minha voz, e a ouvi
aproximar-se na escurido. O tempo que passara
com o lobo me aguara os sentidos. Um pouco de
luar penetrava atravs de uma janela mal fechada.
Distingui a silhueta dela na escurido.
Aqui disse-lhe quando ela hesitou, e vi o
seu sobressalto com a proximidade da minha voz.
Veio tateando at o meu canto, e em seguida
sentou-se hesitante na palha ao meu lado.
No me atrevo voltar a adormecer
explicou. Pesadelos.
Sei como disse-lhe, surpreso com a
compreenso que sentia. Quando, se fechar os
olhos, se cai logo neles.
Exatamente disse ela e calou-se,
esperando.
Contudo, eu no tinha nada mais a dizer, e por
isso fiquei em silncio na escurido.
Que tipo de pesadelos voc tem?
perguntou-me ela em voz baixa.
Dos ruins respondi secamente. No tinha
qualquer desejo de cham-los ao falar neles.
Eu sonho que Forjados me perseguem, mas as
minhas pernas transformaram-se em gua e no
consigo correr. Mas continuo tentando, e tentando,
enquanto eles se vo aproximando mais e mais.
Hum concordei. Era melhor do que sonhar
com ser espancado, espancado e espancado
Refreei a mente e a afastei disso.
uma coisa solitria acordar no meio da
noite e estar com medo.
Acho que ela quer acasalar com voc. Eles vo
aceit-lo na alcateia deles assim to facilmente?
O qu? perguntei sobressaltado, mas foi a
garota que respondeu, no Olhos-de-Noite.
Eu disse que uma pessoa quando acorda no
meio da noite com medo sente-se solitria. Deseja
uma maneira de se sentir segura. Protegida.
No conheo nada que possa se interpor entre
uma pessoa e os sonhos que chegam noite eu
disse, constrangido. De repente, desejei que ela
fosse embora.
tmido, aprendizinho? perguntou ela,
simulando timidez.
Perdi algum de quem gostava respondi,
sem rodeios. No tenho nimo para pr outra
pessoa no lugar dela.
Estou vendo. Ergueu-se abruptamente,
sacudindo palha da saia. Bem, lamento ter
incomodado. O tom era de quem se sentia
insultada, no de quem lamentava.
Virou-se e seguiu tateando at a escada do
palheiro. Sabia que a tinha ofendido. No senti que
fosse culpa minha. Ela subiu lentamente os
degraus, e supus que esperava que eu a chamasse
de volta. No o fiz. Desejei no ter vindo at a
vila.
Somos dois. H pouca caa, to perto de todos
esses homens. Vai ficar muito mais tempo?
Temo que tenha de viajar com eles durante
alguns dias, pelo menos at a prxima vila.
Voc no quis acasalar com ela, ela no
alcateia. Por que voc tem de fazer essas coisas?
No tentei lhe explicar em palavras. Tudo o que
pude transmitir foi um sentido de dever, e ele no
conseguiu compreender como era que a minha
lealdade para com Veracidade me obrigava a
ajudar aqueles viajantes na estrada. Eram minha
gente porque eram gente do meu rei. At eu achava
a ligao tnue ao ponto de ser ridcula, mas no
havia jeito. Iria lev-los a salvo at a vila
seguinte.
Voltei a dormir nessa noite, mas mal. Era como
se as palavras trocadas com Mel tivessem aberto a
porta aos meus pesadelos. Assim que mergulhei no
sono, tive a sensao de que estava sendo
observado. Aninhei-me bem dentro da cela,
rezando para que no me vissem, mantendo-me to
imvel quanto possvel. Tinha os olhos bem
fechados, como uma criana que acredita que se
no puder ver no pode ser vista. Mas os olhos
que me procuravam tinham um olhar fixo que eu
conseguia sentir; conseguia sentir Vontade minha
procura como se estivesse escondido debaixo de
um cobertor e houvesse mos apalpando-o. Era
assim to prximo que ele estava. O medo era to
intenso que me sufocava. No conseguia respirar,
no conseguia me mover. Em pnico, sa de dentro
de mim mesmo, de lado, introduzindo-me no medo
de outra pessoa, no pesadelo de outra pessoa.
Agachei-me atrs de um barril de peixe em
salmoura na loja do velho Gancho. L fora, a
escurido era estilhaada pelas chamas
ascendentes e pelos gritos dos capturados ou
moribundos. Sabia que devia sair. Os Salteadores
dos Navios Vermelhos iriam certamente saquear e
incendiar a loja. No era um bom lugar para me
esconder. Mas no havia nenhum lugar bom para
me esconder, e eu s tinha onze anos, e minhas
pernas tremiam tanto debaixo de mim que eu
duvidava ser capaz de ficar de p, quanto mais
correr. Em algum lugar l fora estava o Mestre
Gancho. Quando os primeiros gritos tinham soado,
ele agarrara a sua velha espada e correra porta
afora.
Vigie a loja, Chade! gritara ele ao sair,
como se fosse s ali ao lado conversar com o
padeiro. A princpio, fiquei feliz em lhe obedecer.
O tumulto era no fundo da vila, l embaixo, junto
baa, e a loja parecia segura e forte minha volta.
Mas isso fora uma hora antes. Agora o vento que
vinha do porto carregava o cheiro de fumaa, e a
noite j no era escura, mas uma terrvel penumbra
iluminada por archotes. As chamas e os gritos
aproximavam-se. O Mestre Gancho no
regressara.
Saia, eu disse ao rapaz em cujo corpo me
escondia. Saia, fuja, corra o mais depressa e o
mais longe que puder. Salve-se. Ele no me ouviu.
Rastejei para a porta que ainda estava to
escancarada como o Mestre Gancho a deixara.
Espiei para fora. Um homem passou correndo pela
rua, e eu me encolhi para dentro. Mas era provvel
que ele fosse um homem da vila, no um Salteador,
pois corria sem olhar para trs, sem outro
pensamento que no fosse afastar-se o mximo que
pudesse. De boca seca, obriguei-me a me levantar,
agarrando-me ao batente. Olhei para a vila e o
porto. Metade da vila estava em chamas. A amena
noite de vero estava sufocada de fumaa e cinzas
que se erguiam no vento quente gerado pelas
chamas. Havia navios ardendo no porto. luz das
chamas, vi silhuetas que se precipitavam, fugindo
e escondendo-se dos Salteadores, que caminhavam
quase sem oposio pela vila.
Algum virou a esquina da loja do oleiro no fim
da rua. Trazia uma lanterna e caminhava to
despreocupadamente que eu senti uma sbita onda
de alvio. Decerto que se ele podia estar to
calmo, a mar da batalha devia estar mudando.
Levantei-me um pouco do lugar onde me encolhia
s para voltar a me retrair quando ele brandiu
despreocupadamente a lanterna de leo contra a
fachada de madeira da loja. O leo que se
espalhou incendiou-se quando a lmpada se
quebrou e o fogo correu alegremente pela madeira
seca inflamvel. Encolhi-me para longe da luz das
chamas saltitantes. Soube com uma certeza
repentina que no havia segurana a ser
conquistada me escondendo, que a minha nica
esperana residia em fugir, e que o devia ter feito
assim que os alarmes soaram. A deciso me deu
uma pequena quantidade de coragem, suficiente
para me pr em p de um salto e me precipitar
para fora e dobrar a esquina da loja.
Por um instante, estive consciente de mim
mesmo como Fitz. No creio que o rapaz
conseguisse me detectar. Aquilo no era eu
projetando o meu Talento, mas sim ele me
contactando com algum sentido rudimentar de
Talento que possua. Eu no conseguia controlar o
seu corpo de nenhum modo, estava trancado na sua
experincia. Era levado por aquele rapaz, ouvia os
seus pensamentos e partilhava as suas percepes
da mesma forma que Veracidade outrora fora
levado comigo. Mas no tive tempo para pensar
em como estava fazendo aquilo, nem no motivo
por que fora unido de forma to repentina quele
estranho. Pois quando Chade correu para a
segurana das sombras, foi subitamente agarrado
pelo colarinho por uma mo spera. Ficou
paralisado de medo por um breve momento e
ergueu os olhos para o rosto barbudo e sorridente
do Salteador que nos agarrava. Outro Salteador o
flanqueava, com um sorriso escarnecedor e
maligno. Chade ficou mole de terror nas mos do
Salteador. Fitou impotente a faca que se movia, a
cunha de luz brilhante que deslizava ao longo da
lmina enquanto ia se aproximando de seu rosto.
Partilhei, por um instante, da dor quente-fria da
faca me cortando a garganta, o momento
angustiante de reconhecimento, quando o meu
sangue quente e mido escorreu pelo meu peito
abaixo, de que estava tudo acabado, de que j era
tarde demais, de que eu estava morto. Ento,
enquanto Chade era largado pelo Salteador e caa
de cabea na rua empoeirada, a minha conscincia
libertou-se dele. Pairei ali, detectando durante um
horrvel momento os pensamentos do Salteador.
Ouvi os tons rudemente guturais do seu
companheiro, que empurrava o rapaz morto com a
bota, e soube que ele repreendia o assassino por
desperdiar algum que podia ter sido Forjado. O
assassino soltou uma bufada de desdm e
respondeu qualquer coisa sobre ele ter sido novo
demais, sem ter vida suficiente atrs de si para
valer o tempo dos Mestres. Soube tambm, com
um nauseante turbilho de emoes, que o
assassino desejara duas coisas: ser misericordioso
para com o rapaz e saborear o prazer de matar
algum pessoalmente.
Eu olhara o corao do meu inimigo. Continuava
sem conseguir compreend-lo.
Flutuei pela rua abaixo atrs deles, incorpreo e
insubstancial. Sentira uma urgncia no momento
anterior. Agora no era capaz de lembr-la. Em
vez disso, turbilhonei como nevoeiro,
testemunhando a queda e o saque da Vila de
Charcotriste, no Ducado de Vigas. Fui atrado
inmeras vezes para um ou outro dos seus
habitantes, a fim de testemunhar uma luta, uma
morte, a minscula vitria de uma fuga. Ainda
consigo fechar os olhos e reconhecer aquela noite,
recordar uma dzia de momentos horrendos em
vidas que partilhei brevemente. Cheguei por fim a
um local onde um homem resistia, de espada longa
na mo, na frente da sua casa em chamas. Mantinha
afastados trs Salteadores enquanto, atrs dele, a
mulher e a filha lutavam para erguer uma viga em
chamas e libertar um filho que ela prendia, para
que pudessem fugir todos juntos. Nenhum deles
abandonaria os outros, e no entanto eu sabia que o
homem estava cansado e enfraquecido demais pela
perda de sangue para erguer a espada, quanto mais
brandi-la. Tambm senti que os Salteadores
brincavam com ele, incitando-o at a exausto,
para poderem levar e Forjar a famlia inteira.
Conseguia sentir o rastejante arrepio da morte
insinuando-se no homem. Por um instante, a cabea
baixou sobre o peito.
De repente, o homem cercado ergueu a cabea.
Uma luz estranhamente familiar surgiu em seus
olhos. Agarrou a espada com ambas as mos e,
com um urro, saltou de sbito sobre os seus
atacantes. Dois deles caram sob a sua primeira
arremetida, morrendo com o espanto ainda
claramente estampado nos traos dos seus rostos.
O terceiro cruzou espadas com ele, mas no
conseguiu levar a melhor sobre a sua fria. Pingou
sangue do cotovelo do habitante da vila, reluzindo
em seu peito, mas sua espada ressoou como sinos
contra a do Salteador, ultrapassando sua guarda e
depois penetrando nela danando, leve como uma
pena, para traar uma linha vermelha ao longo da
garganta do Salteador. Enquanto o assaltante caa,
o homem virou-se e saltou ligeiro para junto da
mulher. Agarrou a viga em chamas, sem se
preocupar com elas, e ergueu-a de cima do corpo
do filho. Por uma ltima vez, os seus olhos
cruzaram-se com os da esposa.
Corra! gritou-lhe. Pegue as crianas e
fuja. Em seguida desabou na rua. Estava morto.
Enquanto a mulher de rosto de pedra pegava as
mos dos filhos e se afastava correndo com eles,
senti que um espectro se erguia do corpo do
homem que morrera. Sou eu, pensei comigo
mesmo, e ento compreendi que no era. Ele me
detectou e virou-se, com o rosto to parecido com
o meu. Ou pelo menos fora, quando ele tivera a
minha idade. Abalou-me pensar que era assim que
Veracidade ainda se via.
Voc, aqui? Sacudiu a cabea numa censura.
Isto perigoso, rapaz. At eu sou um tolo por
tentar fazer isto. E, no entanto, o que mais
podemos fazer, quando eles nos chamam?
Examinou-me, parado ali to mudo sua frente.
Quando foi que voc ganhou a fora e a
capacidade para caminhar em Talento?
No respondi. Eu no tinha respostas, no tinha
pensamentos meus. Sentia-me como um lenol
molhado esvoaando ao vento noturno, sem mais
substncia do que uma folha levada pelo vento.
Fitz, isto um perigo para ns dois. Volte.
Volte agora.
H realmente magia em se proferir o nome de
um homem? Muitas das antigas histrias insistem
que sim. Lembrei-me de sbito de quem era, e de
que aquele no era o meu lugar. Mas no fazia a
mnima ideia de como chegara at ali, quanto mais
como regressar ao meu corpo. Fitei Veracidade,
impotente, incapaz mesmo de formular um pedido
de ajuda.
Ele compreendeu. Estendeu uma mo
fantasmagrica para mim. Senti uma presso como
se ele tivesse posto a palma da mo na minha testa
e dado um leve empurro.
A minha cabea ricocheteou na parede do
celeiro e vi centelhas sbitas de luz devido ao
impacto. Estava sentado ali, no celeiro atrs da
estalagem da Balana. Em volta de mim havia
apenas uma escurido pacfica, animais
adormecidos, palha que dava coceira. Lentamente
me deitei de lado enquanto onda aps onda de
tontura e nusea caam sobre mim. A fraqueza que
me possua com frequncia depois de ter
conseguido usar o Talento arrebentou sobre mim
como uma onda. Abri a boca para gritar por ajuda,
mas apenas um grasnido inarticulado escapou dos
meus lbios. Fechei os olhos e me afundei no
esquecimento.
Acordei antes da alvorada. Engatinhei at o meu
fardo, vasculhei-o, e em seguida consegui
cambalear at a porta dos fundos da estalagem,
onde supliquei, literalmente, por uma caneca de
gua quente cozinheira que encontrei ali. Ela me
observou, incrdula, quando esmigalhei tiras de
casco-de-elfo dentro da caneca.
Isso no bom para voc, sabe disso
avisou-me, e depois ficou vendo, assombrada,
enquanto eu bebia a infuso, amarga e escaldante.
Eles do isso aos escravos, do sim, l em
Vilamonte. Misturam essa coisa na comida e na
bebida para os manterem de p. Ao mesmo tempo
que lhes d resistncia, tambm os faz se
desesperarem, ou pelo menos o que se diz.
Enfraquece a vontade deles de lutar.
Quase nem a ouvi. Estava esperando sentir o
efeito. Colhera a casca de rvores jovens e temia
que lhe faltasse potncia. Faltava. Passou-se algum
tempo antes de sentir o calor fortalecedor
espalhando-se por mim, firmando minhas mos
trmulas e clareando-me a viso. Levantei-me de
onde estava sentado nos degraus dos fundos da
cozinha para agradecer cozinheira e lhe devolver
a caneca.
um hbito ruim para se arranjar, para um
jovem como voc repreendeu-me ela, e voltou
a cozinhar. Sa da estalagem para percorrer as ruas
enquanto a alvorada despontava sobre as colinas.
Durante algum tempo quase esperei encontrar
fachadas de lojas queimadas e casas destrudas, e
Forjados de olhos vazios vagando pelas ruas.
Porm, o pesadelo de Talento foi erodido pela
manh de vero e pelo vento vindo do rio. luz
do dia, o aspecto gasto da vila era mais visvel.
Parecia-me que havia mais mendigos do que
houvera na Cidade de Torre do Cervo, mas eu no
sabia se isso seria normal para uma vila do rio.
Refleti brevemente sobre o que me acontecera na
noite anterior; depois coloquei o pensamento de
lado com um estremecimento. No sabia como o
fizera. O mais provvel era que no voltaria a
acontecer comigo. Dava-me nimo saber que
Veracidade continuava vivo, ao mesmo tempo que
saber como ele continuava gastando
imprudentemente a fora do seu Talento me
arrepiava. Perguntei a mim mesmo onde estaria ele
naquela manh e se, tal como eu, enfrentava a
alvorada com a boca cheia do amargor do casco-
de-elfo. Se eu ao menos tivesse dominado o
Talento, no teria de ficar na dvida. No era
pensamento que animasse algum.
Quando regressei estalagem, os menestris j
tinham levantado e estavam dentro da estalagem,
tomando um desjejum de mingau de aveia. Juntei-
me a eles, e Gracejo me disse sem rodeios que
temera que eu tivesse partido sem eles. Mel no
tinha quaisquer palavras a me dizer, mas apanhei
vrias vezes Flautista me olhando com um ar
avaliador.
Ainda era cedo quando deixamos a estalagem, e
embora no marchssemos como soldados, o
Harpista Gracejo estabeleceu para ns um ritmo
respeitvel. Eu julgara que ele tivesse de ser
dirigido, mas Gracejo transformava o seu bordo
de caminhante em guia. Por vezes caminhava com
uma mo pousada no ombro de Mel ou de
Flautista, mas isso parecia mais companheirismo
do que necessidade. E a nossa viagem no era
entediante, pois enquanto caminhvamos ele
falava, dirigindo-se especialmente a Flautista,
sobre a histria daquela regio, surpreendendo-me
com a profundidade dos seus conhecimentos.
Paramos um pouco enquanto o sol esteve alto no
cu e eles partilharam comigo a comida simples
que possuam. Senti-me desconfortvel em aceit-
la, mas no havia maneira de me afastar para ir
caar com o lobo. Depois de a vila ficar bem para
trs, eu detectara Olhos-de-Noite nos seguindo.
Era reconfortante t-lo por perto, mas desejei que
fssemos apenas ele e eu viajando juntos. Naquele
dia, vrias vezes fomos ultrapassados por outros
viajantes, montados em cavalos ou em mulas.
Atravs de aberturas nas rvores vislumbrvamos
ocasionalmente barcos remando rio acima, contra
a corrente. medida que a manh ia passando,
fomos sendo alcanados por vrios carros e
carroas bem guardados. Gracejo lhes gritava
cada vez para perguntar se podamos subir nas
carroas. Por duas vezes isso nos foi negado com
polidez. Os outros no deram qualquer resposta.
Deslocavam-se apressados, e um grupo inclua
vrios homens de ar carrancudo com a mesma
libr que eu deduzi serem guardas contratados.
Passamos a caminhada da tarde recitando O
Sacrifcio de Fogocruzado, o longo poema sobre
o crculo da Rainha Viso e o modo como os seus
membros tinham entregue as suas vidas para que
ela pudesse vencer uma batalha crucial. Eu j o
ouvira antes, por vrias vezes, em Torre do Cervo.
Mas ao terminar o dia ouvira-o mais duas vintenas
de vezes, pois Gracejo trabalhava com infinita
pacincia para se assegurar de que Flautista o
cantava com perfeio. Eu estava grato pelas
recitaes sem fim, pois evitavam conversas.
Porm, apesar do nosso ritmo constante, o cair
da noite ainda nos encontrou muito longe da vila
fluvial seguinte. Vi que todos ficaram inquietos
quando a luz comeou a diminuir. Por fim, tomei o
comando da situao e lhes disse que tnhamos de
abandonar a estrada no riacho seguinte que
atravessssemos e arranjar um lugar onde nos
instalarmos para a noite. Mel e Flautista deixaram-
se ficar para trs de Gracejo e de mim, e as ouvi
sussurrando uma com a outra em tom preocupado.
No podia lhes assegurar, como Olhos-de-Noite
fizera comigo, de que no havia sequer sinal de
cheiro de outro viajante nas redondezas. Em vez
disso, na travessia seguinte guiei-os correnteza
acima e descobri uma margem abrigada debaixo
de um cedro onde podamos descansar durante a
noite.
Deixei-os sob pretexto de ir me aliviar, para
passar algum tempo com Olhos-de-Noite,
assegurando-lhe de que tudo estava bem. Foi um
tempo bem gasto, pois ele descobrira um local
onde a gua em turbilho do riacho escavara a
margem. Ele me observou atentamente enquanto eu
me deitava de bruos e enfiava as mos na gua e
em seguida na cortina de ervas que pendia sobre
ela. Apanhei um belo peixe gordo na primeira
tentativa. Vrios minutos mais tarde, outra
tentativa resultou um peixe menor. Quando desisti,
j havia quase escurecido por completo, mas eu
tinha trs peixes para levar comigo para o
acampamento, deixando dois para Olhos-de-Noite,
apesar de achar ruim a ideia.
Pescar e coar orelhas. As duas razes para
terem sido dadas mos aos homens, disse-me ele
de bom humor enquanto se instalava com os
peixes. J devorara as entranhas dos meus assim
que eu os limpara.
Cuidado com as espinhas, tornei a avis-lo.
A minha me me criou com uma dieta de
salmo, observou ele. Espinhas de peixe no me
incomodam.
Deixei-o dilacerando o peixe com bvio deleite
e voltei ao acampamento. Os menestris haviam
acendido uma pequena fogueira. Ao som dos meus
passos, todos se puseram em p de um salto,
brandindo os bastes de caminhada.
Sou eu! disse-lhes tardiamente.
Graas a Eda. Gracejo suspirou enquanto
se sentava pesadamente, mas Mel s me trespassou
com o olhar.
Ficou fora muito tempo disse Flautista
como explicao. Ergui os peixes, pendurados
pelas guelras em um galho de salgueiro.
Encontrei o jantar disse-lhes. Peixe
acrescentei em benefcio de Gracejo.
Isso uma maravilha disse ele.
Mel apresentou po de viajante e um pequeno
saco de sal enquanto eu procurava uma pedra
grande e lisa e a enfiava entre as brasas da
fogueira. Enrolei os peixes em folhas e os
coloquei sobre a pedra para assar. O cheiro do
peixe sendo cozinhado me tentava ao mesmo
tempo em que eu esperava que no atrasse nenhum
Forjado nossa fogueira.
Ainda estou de guarda, lembrou-me Olhos-de-
Noite, e eu lhe agradeci.
Enquanto eu vigiava o peixe, Flautista
murmurava O Sacrifcio de Fogocruzado para si
mesma ao meu lado.
Silncio, o Coxo, e Cutel, o Cego corrigi-
a distraidamente enquanto tentava virar o peixe
sem parti-lo.
Eu disse bem! contradisse-me ela num tom
indignado.
Receio que no tenha dito, minha cara.
Garrano tem razo. Silncio era o do p aleijado e
Cutel era cego de nascena. Sabe os nomes dos
outros cinco, Garrano? Ele parecia mesmo
Penacarrio dando uma aula.
Eu queimara o dedo num carvo em brasa e o
enfiei na boca antes de responder.
Fogocruzado Queimado liderava, e o grupo
que o rodeava era como ele, no de corpo so,
mas de forte corao. E de alma fiel. E deixem-me
listar aqui todo o anel. Havia Silncio, o Coxo, e
Cutel, o Cego, e Quevino, o da mente sem sossego,
o Carpinteiro do lbio leporino, Corte, que era
surdo, e Carregador cujo destino foi ser deixado
como morto sem olhos nem mos. E se acham que
desprezariam homens assim, deixem que lhes
outrossim
Ena! exclamou Gracejo com prazer, e
ento perguntou: Recebeu treinamento de
bardo, Garrano, quando era pequeno? Aprendeu
tanto o fraseado como as palavras. Embora faa as
pausas um pouco simples demais.
Eu? No. Mas sempre tive uma memria
rpida. Era difcil no sorrir com o elogio que
ele me fizera, muito embora Mel ostentasse uma
expresso de desprezo e sacudisse a cabea.
Acha que poderia recitar a coisa completa?
perguntou Gracejo em tom de desafio.
Talvez esquivei-me. Sabia que sim. Tanto
Bronco quanto Breu tinham me treinado com
frequncia as habilidades de memorizao. E eu
ouvira o poema tantas vezes naquele dia que no
conseguia afast-lo da cabea.
Ento tente. Mas no o fale. Cante.
No tenho voz para cantar.
Se capaz de falar, capaz de cantar.
Experimente. Faa a vontade a um velho.
Obedecer velhos talvez fosse simplesmente um
hbito enraizado demais em mim para desafi-lo.
Talvez tenha sido a expresso no rosto de Mel que
me dizia claramente que duvidava que eu pudesse
faz-lo.
Limpei a garganta e comecei, cantando em voz
baixa at ele me dizer com um gesto para aumentar
o volume. Foi balanando a cabea enquanto ia
avanando, estremecendo de vez em quando
sempre que eu desafinava numa nota. Eu j estava
praticamente na metade quando Mel observou
secamente:
O peixe est queimando.
Abandonei a cano e saltei para arrancar a
pedra e os peixes enrolados da fogueira. Os rabos
estavam chamuscados, mas o resto estava bom,
fumegante e firme. Dividimos entre ns e comi
com demasiada rapidez. O dobro daquilo no me
teria enchido, e no entanto eu precisava estar
satisfeito com o que comera. O po de viajante
caa surpreendentemente bem com o peixe, e
depois Flautista nos preparou uma chaleira de ch.
Ns nos acomodamos nos cobertos em volta da
fogueira.
Garrano, voc se sai bem como escriba?
perguntou-me Gracejo de repente.
Soltei um som depreciativo.
No tanto como gostaria. Mas sobrevivo.
No tanto como gostaria murmurou Mel
para Flautista numa imitao trocista.
O Harpista Gracejo a ignorou.
velho para isso, mas poderia ser ensinado
a cantar. A sua voz no muito ruim; canta como
um menino, sem saber que tem a profundidade de
voz e os pulmes de um homem aos quais recorrer
agora. A sua memria excelente. Toca algum
instrumento?
Flauta. Mas no toco bem.
Eu podia ensin-lo a toc-la bem. Se voc se
juntasse a ns
Pai! Mal o conhecemos! objetou Mel.
Eu podia ter lhe dito o mesmo quando voc
saiu do palheiro ontem noite observou ele
num tom brando.
Pai, tudo o que fizemos foi conversar. Ela
me lanou um olhar como se eu a tivesse trado. A
minha lngua havia se transformado em couro na
boca.
Eu sei concordou Gracejo. A cegueira
parece ter me aguado a audio. Mas se o
considerou como algum com quem podia
conversar em segurana, sozinha, noite, ento
talvez eu tambm o tenha avaliado como algum a
quem podemos oferecer a nossa companhia em
segurana. O que diz, Garrano?
Sacudi lentamente a cabea, e em seguida:
No disse em voz alta. Obrigado
mesmo assim. Fico grato pelo que est oferecendo,
e a um estranho. Viajarei com vocs at a vila
seguinte, e desejo que tenham sorte em encontrar
outros companheiros para viajar com vocs a
partir dali. Mas no tenho verdadeiro desejo
de
Voc perdeu algum que lhe era querido. Eu
compreendo isso. Mas a solido total no boa
para qualquer homem disse Gracejo em voz
baixa.
Quem voc perdeu? perguntou Flautista,
do seu jeito franco.
Tentei pensar em como explicar sem me deixar
aberto a mais perguntas.
O meu av respondi, por fim. E a
minha esposa. Dizer aquelas palavras era como
voltar a abrir uma ferida.
O que aconteceu? perguntou Flautista.
O meu av morreu. A minha esposa me
deixou. Falei de um modo conciso, esperando
que eles deixassem o assunto de lado.
Os velhos morrem ao seu tempo comeou
gentilmente Gracejo, mas Mel interrompeu
bruscamente:
Foi esse o amor que voc perdeu? O que
voc pode dever a uma mulher que o deixou? A
no ser que tenha lhe dado motivo para deix-lo?
Foi mais eu no ter lhe dado motivo para
ficar admiti com relutncia. Em seguida: Por
favor disse, francamente. No quero falar
dessas coisas. De modo algum. Vou lev-los at a
prxima vila, mas depois o meu caminho ser s
meu caminho.
Bem. Isso ficou dito com clareza disse
Gracejo com pesar. Algo no seu tom de voz fez
com que me sentisse mal-educado, mas no havia
palavras que eu quisesse desdizer.
Houve poucas conversas durante o resto da
noite. Flautista ofereceu-se para o primeiro turno
de vigia e Mel para o segundo. No fiz objees,
pois sabia que Olhos-de-Noite iria percorrer toda
a regio nossa volta naquela noite. Poucas coisas
conseguiam passar por ele. Dormi melhor ao ar
livre e acordei rapidamente quando Mel se curvou
por cima de mim para me sacudir. Sentei-me,
espreguicei-me e lhe indiquei com um aceno que
estava acordado e ela podia dormir um pouco.
Levantei-me e avivei a fogueira, depois me sentei
junto dela. Mel veio sentar-se ao meu lado.
No gosta de mim, no ? perguntou em
voz baixa. O seu tom de voz era afvel.
No conheo voc respondi, com o
mximo de tato que consegui.
Hum. E no quer conhecer observou.
Olhou-me firmemente. Mas eu quis conhecer
voc desde que o vi corar na estalagem. Nada me
desafia tanto a curiosidade como um homem que
cora. Conheci poucos homens que ficam escarlates
dessa maneira, simplesmente porque so
apanhados olhando para uma mulher. A sua voz
tornou-se grave e gutural, enquanto se inclinava
para frente em confidncia. Adoraria saber o
que voc estava pensando para que o sangue lhe
subisse ao rosto daquela maneira.
Apenas que tinha sido m educao olhar
disse-lhe com toda a honestidade.
Ela sorriu para mim.
No foi isso o que pensei quando olhei para
voc. Umedeceu a boca e aproximou-se mais.
De repente, senti de forma to aguda a falta de
Moli que me doeu.
O meu corao no aguenta este jogo
disse a Mel com clareza. Ergui-me. Acho que
vou buscar mais um pouco de lenha para a
fogueira.
Acho que sei por que sua mulher o deixou
disse Mel num tom maldoso. O corao no
aguenta, o que diz? Acho que o seu problema
um pouco mais embaixo. Levantou-se e voltou
para os seus cobertores. Tudo o que senti foi
alvio por ela ter desistido de mim. Mantive a
palavra e fui juntar mais lenha seca.
A primeira coisa que perguntei a Gracejo na
manh seguinte quando ele se levantou foi:
A que distncia fica a prxima vila?
Se mantivermos o mesmo ritmo de ontem,
devemos l chegar amanh pelo meio-dia
respondeu.
Afastei o olhar do desapontamento que ele tinha
na voz. Enquanto colocvamos os fardos nos
ombros e partamos, refleti amargamente que me
afastara de pessoas que conhecia e de quem
gostava precisamente para evitar a situao em
que me encontrava agora com relativos estranhos.
Perguntei-me se haveria alguma maneira de viver
entre as outras pessoas evitando ficar preso nas
suas expectativas e dependncias.
O dia estava quente, mas no desagradvel. Se
eu estivesse sozinho, teria achado agradvel
caminhar ao longo da estrada. Na floresta, a um
lado de ns, aves chamavam umas pelas outras. Do
outro lado da estrada, conseguamos ver o rio
atravs das rvores pouco abundantes, com
barcaas ocasionais deslocando-se rio abaixo, ou
embarcaes a remo que se moviam lentamente
contra a corrente. Falamos pouco, e passado algum
tempo Gracejo voltou a pr Flautista para recitar
O Sacrifcio de Fogocruzado. Quando ela
tropeava, eu me mantinha em silncio.
Os meus pensamentos comearam a vagar. Fora
tudo to mais fcil quando no tinha de me
preocupar com a minha prxima refeio ou com
uma camisa limpa. Julgara-me to esperto para
lidar com as pessoas, to habilidoso na minha
profisso. Mas tivera Breu com quem fazer planos
e tempo para preparar o que iria dizer ou fazer.
No me saa assim to bem quando os meus
recursos estavam limitados minha prpria
inteligncia e quilo que conseguia carregar nas
costas. Desprovido de tudo aquilo com que outrora
contara sem pensar, no era s da minha coragem
que vim a duvidar. Agora questionava todas as
minhas habilidades. Assassino, Homem do Rei,
guerreiro, homem Eu ainda era alguma dessas
coisas? Tentei me lembrar do jovem precipitado
que puxara um remo no navio de guerra de
Veracidade, o Rurisk, que se atirara sem refletir
para a batalha brandindo um machado. No
conseguia conceber que ele havia sido eu.
Ao meio-dia, Mel distribuiu o resto do po de
viajante que possuam. No era muito. As
mulheres caminhavam nossa frente, conversando
em voz baixa uma com a outra, enquanto
mastigavam o po seco e bebiam dos seus odres.
Aventurei-me a sugerir a Gracejo que podamos
acampar mais cedo naquela noite, para me dar
oportunidade para caar ou pescar um pouco.
Isso significaria que no chegaramos
prxima vila amanh pelo meio-dia observou
com gravidade.
Amanh noite ser suficiente asseverei-
lhe em voz baixa. Ele virou a cabea para mim,
talvez para me ouvir melhor, mas os seus olhos
enevoados pareceram olhar para dentro de mim.
Foi difcil suportar o apelo que vi ali, mas no lhe
respondi.
Quando o dia finalmente comeou a esfriar,
comecei a procurar lugares apropriados para
parar. Olhos-de-Noite avanara para fazer o
reconhecimento do terreno nossa frente quando
senti um sbito eriar dos seus pelos do pescoo.
H homens aqui, cheirando a carne podre e sua
prpria imundice. Consigo cheir-los, consigo
v-los, mas no consigo senti-los de outra forma.
A aflio que ele sentia sempre na presena de
Forjados pairou at mim. Eu a partilhava. Sabia
que eles haviam sido humanos e que tinham
partilhado essa centelha de Manha que todas as
criaturas vivas possuem. Para mim, era mais do
que estranho v-los movendo-se e falando quando
eu no conseguia sentir que estavam vivos. Para
Olhos-de-Noite, era como se pedras caminhassem
e comessem.
Quantos so? Velhos, jovens?
Mais do que ns, e maiores do que voc. A
percepo de vantagens de um lobo. Caam na
estrada, logo depois da curva sua frente.
Vamos parar aqui sugeri de repente. Trs
cabeas viraram para me olhar, perplexas.
Tarde demais. J sentiram o cheiro de vocs,
esto a caminho.
No havia tempo para disfarar, no havia
tempo para arranjar uma mentira plausvel.
H Forjados adiante. Mais do que dois.
Estavam vigiando a estrada e agora esto vindo na
nossa direo. Estratgia? Preparem-se
disse-lhes.
Como voc sabe isso? perguntou Mel.
Vamos fugir! sugeriu Flautista. No lhe
interessava como eu sabia. Os seus olhos dilatados
me diziam o quanto ela temera isto.
No. Eles vo nos alcanar, e quando o
fizerem estaremos sem flego. E mesmo se
conseguirmos correr mais do que eles, ainda
teremos de passar por eles amanh deixei cair a
trouxa na estrada, afastei-a com um chute. No
havia nada nela que valesse a minha vida. Se
ganhssemos, poderia voltar a apanh-la. Se no
ganhssemos, no me importaria com ela. Mas
Mel, Flautista e Gracejo eram msicos. Seus
instrumentos estavam nas trouxas. Nenhum deles
fez um gesto para se desfazer dos seus fardos. No
desperdicei flego lhes sugerindo que o fizessem.
Quase por instinto, Flautista e Mel foram flanquear
o velho. Agarravam os bastes de caminhada com
bastante fora. O meu aconchegou-se nas minhas
mos e segurei-o, equilibrado e pronto, espera.
Por um instante parei completamente de pensar. As
minhas mos pareciam saber o que fazer sozinhas.
Garrano, cuide de Mel e Flautista. No se
preocupe comigo, mas no deixe que elas se
machuquem ordenou-me secamente Gracejo.
As suas palavras conseguiram chegar at mim, e
fui inundado de sbito pelo terror. O meu corpo
perdeu a sua atitude de fcil prontido, e eu s
conseguia pensar na dor que a derrota me traria.
Senti-me nauseado e trmulo e o que mais queria
era simplesmente me virar e fugir, sem um
pensamento para os menestris. Espere, espere,
quis gritar ao dia. No estou pronto para isto, no
sei se lutarei, fugirei ou simplesmente desmaiarei
aqui mesmo. Mas o tempo no conhece
misericrdia. Eles esto se aproximando atravs
da vegetao rasteira, disse-me Olhos-de-Noite.
Dois vo depressa, e o outro est ficando para
trs. Acho que ele ser meu.
Tenha cuidado, adverti-o. Ouvi-os a fazer
estalar galhos nos arbustos e senti o cheiro ftido
que exalavam. Um momento depois, Flautista
soltou um grito quando os viu, e em seguida eles
saram das rvores e correram sobre ns. Se a
minha estratgia era me manter firme e lutar, a
deles era simplesmente correr e atacar. Eram
ambos maiores do que eu e pareciam no ter
quaisquer dvidas. Tinham a roupa imunda, mas
praticamente intacta. No parecia que eram
Forjados h muito tempo. Ambos empunhavam
porretes. Tive pouco tempo para perceber mais do
que isso.
A Forja no tornava as pessoas estpidas, nem
lentas. J no conseguiam detectar ou sentir as
emoes dos outros ou, ao que parecia, lembrar-se
do que essas emoes poderiam levar um inimigo
a fazer. Isso com frequncia tornava os seus atos
quase incompreensveis. No os tornava menos
inteligentes do que tinham sido quando inteiros,
nem menos hbeis com as suas armas. No entanto,
agiam com um imediatismo na satisfao dos seus
desejos que era inteiramente animal. O cavalo que
roubavam um dia poderiam comer no seguinte,
simplesmente porque a fome era um desejo mais
imediato do que a convenincia de seguir montado.
E tambm no cooperavam em batalha. Dentro dos
seus grupos no existia lealdade. Era to provvel
que se virassem uns contra os outros para
conquistar um saque como que atacassem um
inimigo comum. Viajavam juntos e atacavam
juntos, mas no num esforo concentrado. E ainda
assim mantinham-se brutalmente astutos, espertos e
sem remorsos nos seus esforos para obter o que
desejavam.
Eu sabia tudo isso. De modo que no me
surpreendi quando ambos tentaram passar por mim
para atacar primeiro as pessoas menores. O que
me surpreendeu foi o alvio covarde que senti.
Paralisou-me como um dos meus sonhos, e deixei-
os passar correndo por mim.
Mel e Flautista lutaram como menestris
zangadas e assustadas com paus nas mos. No
havia ali percia nem treino, nem mesmo a
experincia de lutar em equipe e assim evitar
golpearem-se ou Gracejo. Tinham sido instrudas
em msica, no na batalha. Gracejo estava
paralisado no meio, agarrado ao seu basto, mas
incapaz de brandi-lo sem se arriscar a ferir Mel ou
Flautista. A fria lhe contorcia o rosto.
Eu podia ter fugido nesse momento. Podia ter
agarrado a minha trouxa e sado em disparada pela
estrada afora sem olhar para trs. Os Forjados no
teriam me perseguido; contentavam-se com a presa
que fosse mais fcil. Mas no o fiz. Um farrapo de
coragem ou orgulho ainda sobrevivia em mim.
Ataquei o menor dos dois homens, mesmo apesar
de ele parecer mais hbil com o seu porrete.
Deixei Mel e Flautista dando pauladas no homem
maior e forcei o outro a me enfrentar. O meu
primeiro golpe o atingiu na parte inferior das
pernas. Eu tentara aleij-lo, ou pelo menos
derrub-lo. Ele urrou de dor quando se virou para
me atacar, mas pareceu no se mover mais devagar
por causa disso.
Era outra coisa em que eu reparara a respeito
dos Forjados: a dor parecia afet-los menos. Eu
sabia que depois de ter sido to brutalmente
espancado, uma grande parte do que me
desencorajava era a aflio que eu sentia com a
destruio do meu corpo. Era estranho
compreender que eu possua uma ligao
emocional com a minha carne. O meu profundo
desejo de mant-la funcionando ultrapassava em
muito a simples evaso da dor. Um homem
orgulha-se de seu corpo. Quando est danificado,
mais do que algo fsico. Majestoso soubera disso.
Soubera que cada golpe que os seus guardas me
davam infligia um medo em conjunto com o
machucado. Poderia ele me lanar de volta para o
que eu fora, uma criatura enfermia que tremia
depois de ficar exausta e temia os ataques que lhe
roubavam tanto o corpo como a mente? Esse medo
me incapacitara tanto quantos os golpes que
haviam me dado. Os Forjados pareciam no
possuir tal medo; era possvel que quando perdiam
a sua ligao com tudo mais tambm perdessem
todo o afeto pelos seus prprios corpos.
O meu oponente rodopiou e me deu um golpe
com o porrete que fez um choque me subir aos
ombros quando o aparei com o meu basto. Dor
pequena, meu corpo me sussurrou a respeito da
sacudida, e ficou escuta de mais. O Forjado
voltou a me golpear com o porrete, e eu o aparei
de novo. Depois de ter comeado a travar batalha
com ele, no havia maneira segura de me virar e
fugir. Ele usava bem o porrete: era provvel que
tivesse sido um guerreiro, e um guerreiro treinado
com o machado. Reconheci os movimentos e
bloqueei, ou aparei, ou desviei cada um. Eu o
temia demais para atac-lo, temia o golpe surpresa
que poderia ultrapassar o meu basto se no me
defendesse constantemente. Cedi terreno to
prontamente que ele olhou de relance por sobre o
ombro, talvez pensando que poderia simplesmente
virar as costas para mim e ir atrs das mulheres.
Consegui dar uma resposta tmida a um dos seus
golpes; ele quase nem vacilou. No se cansava,
nem me dava espao para tirar vantagem da minha
arma mais longa. Ao contrrio de mim, no era
distrado pelos gritos que os menestris davam
enquanto tentavam defender-se. Entre as rvores,
eu ouvia pragas abafadas e rosnados tnues.
Olhos-de-Noite perseguira o terceiro homem e
correra sobre ele numa tentativa de lhe cortar os
tendes. Falhara, mas agora o rodeava, mantendo-
se bem fora do alcance da espada que o homem
empunhava.
No sei se consigo passar por esta lmina,
irmo. Mas acho que posso det-lo aqui. Ele no
se atreve a virar as costas para mim para ir
atacar voc.
Tome cuidado! Foi tudo o que tive tempo para
lhe dizer, pois o homem com o porrete exigia cada
fragmento da minha ateno. Ele fez chover golpe
atrs de golpe sobre mim, e logo percebi que ele
aumentara os seus esforos, colocando mais fora
nos golpes. J no sentia que tinha de se defender
contra um possvel ataque vindo de mim; colocou
todas as suas foras em romper a minha defesa.
Cada pancada que eu apanhava em cheio com o
basto enviava um choque aos meus ombros como
se fosse um eco. Os impactos despertavam velhas
dores, sacudindo ferimentos cicatrizados que eu
quase esquecera. A minha resistncia como
combatente no era o que havia sido. Caar e
caminhar no endureciam um corpo e geravam
msculos como remar o dia inteiro fizera. Uma
inundao de dvida corroa minha concentrao.
Suspeitava que enfrentava um adversrio superior
a mim, e eu temia de tal modo a dor que me
esperava que no conseguia planejar um modo de
evit-la. O desespero de evitar ferimentos no
igual determinao para ganhar. No parava de
tentar me afastar dele para ganhar espao para o
meu basto, mas ele me pressionava, implacvel.
Tive um vislumbre dos menestris. Gracejo
estava precisamente no meio da estrada, com o
basto a postos, mas a batalha afastara-se dele.
Mel recuava mancando enquanto o homem a
perseguia. Estava tentando afastar golpes do
porrete do homem enquanto Flautista o seguia
dando-lhe pauladas ineficazes nos ombros com o
seu basto esguio. Ele simplesmente encurvava as
costas diante dos golpes dela, mantendo-se
concentrado na ferida Mel. Isso despertou algo em
mim.
Flautista, acabe com as pernas dele!
berrei-lhe, e em seguida voltei a ateno aos meus
prprios problemas quando um porrete me acertou
no ombro de raspo. Revidei com dois golpes
rpidos sem muita fora e me afastei dele com um
salto.
Uma espada cortou meu ombro e raspou minhas
costelas.
Soltei um grito, espantado, e quase deixei cair o
basto antes de perceber que o ferimento no era
meu. Senti tanto quanto ouvi o ganido surpreendido
de dor que Olhos-de-Noite soltou. E logo em
seguida o impacto de uma bota na minha cabea.
Atordoado, encurralado. Ajude-me!
Havia outras memrias, memrias mais
profundas, enterradas sob a recordao dos
espancamentos que os guardas de Majestoso
tinham me dado. Anos antes desse momento, eu
sentira o corte de uma faca e o impacto de uma
bota. Mas no na minha carne. Um terrier ao qual
me vinculara, Ferreirinho, que ainda nem sequer
chegara idade adulta, lutara na escurido contra
aquele que atacara Bronco na minha ausncia.
Lutara, e morrera mais tarde dos ferimentos
recebidos, antes mesmo de eu ter tempo de voltar
para junto dele. Descobri de sbito que havia uma
ameaa mais poderosa do que a minha prpria
morte.
O medo por mim reduziu-se a nada diante do
terror de perder Olhos-de-Noite. Fiz o que sabia
que tinha de fazer. Mudei de posio, avancei e
aceitei o golpe no ombro para me pr ao alcance.
O choque desse golpe sacudiu meu brao e por um
instante deixei de sentir qualquer coisa nessa mo.
Confiei que ela ainda estivesse l. Segurei o
basto mais perto do meio e ergui violentamente a
ponta, acertando no queixo do homem. Nada o
preparara para a minha abrupta mudana de ttica.
O seu queixo voou para cima, descobrindo-lhe a
garganta, e atirei um forte golpe contra a cova na
base da sua garganta. Senti os pequenos ossos que
haviam ali cederem. Ele arquejou sangue numa
sbita exalao de dor e eu dancei para trs,
mudei o modo como agarrava o basto e fiz a outra
ponta descrever um crculo para atingi-lo no
crnio. Ele caiu e me virei e corri para o interior
da floresta.
Rosnados e grunhidos de esforo me levaram at
eles. Olhos-de-Noite havia sido encurralado e
tinha a pata esquerda da frente enrolada quase at
o peito. Sangue reluzia no seu ombro esquerdo e
espalhava-se em gotas que eram como joias rubras
ao longo dos pelos grossos no seu flanco
esquerdo. Ele recuara bem para dentro de um
denso emaranhado de ramos de amoreiras
silvestres. Os cruis espinhos e brotos
protuberantes que ele procurara como abrigo o
rodeavam agora por completo e lhe bloqueavam a
fuga. Enfiara-se neles o mximo que conseguira
para evitar os golpes da espada, e eu conseguia
sentir os danos que sofrera nas patas. Os espinhos
que se espetavam em Olhos-de-Noite tambm
mantinham o seu atacante distncia, e os ramos
flexveis absorviam muitos dos golpes da espada
enquanto o homem procurava cort-los e chegar ao
lobo.
Ao me ver, Olhos-de-Noite reuniu coragem e
girou de sbito para enfrentar o seu atacante com
uma exploso selvagem de rosnados. O Forjado
puxou a espada atrs para uma estocada que iria
empalar o meu lobo. No havia ponta na
extremidade do meu basto, mas, com um grito
inarticulado de fria, cravei-o nas costas do
homem com tal brutalidade que ele atravessou a
carne e penetrou nos seus pulmes. O homem urrou
um chuveiro de gotas vermelhas e de raiva. Tentou
virar-se para me enfrentar, mas eu continuava a
segurar o basto. Atirei o meu peso contra ele,
forando-o a cambalear para cima do matagal de
amoreiras silvestres. Suas mos estendidas no
encontraram nada que o sustentasse alm de
espinheiros quebradios. Imobilizei-o contra os
galhos flexveis de amoreira colocando todo o meu
peso no basto, e Olhos-de-Noite, encorajado,
saltou sobre as costas do homem. As mandbulas
do lobo fecharam-se na parte de trs do espesso
pescoo do Forjado e sacudiu-o at que o sangue
respingar em ns. Os gritos estrangulados do
homem foram gradualmente reduzindo-se a
gorgolejos passivos.
Esqueci os menestris por completo at que um
profundo grito de angstia me fez lembrar deles.
Agachei e peguei a espada que o Forjado deixara
cair e corri de volta estrada, deixando Olhos-de-
Noite tombando, exausto, e comeando a lamber o
ombro. Quando irrompi das rvores, uma cena
horripilante surgiu diante dos meus olhos. O
Forjado atirara-se sobre uma Mel que se debatia e
estava lhe rasgando a roupa. Flautista encontrava-
se ajoelhada na poeira da estrada, agarrando o
brao e soltando gritos inarticulados. Um Gracejo
em desalinho e empoeirado pusera-se de p e,
desprovido de basto, tateava na direo dos
gritos de Flautista.
Eu estava no meio deles num instante. Chutei o
homem para tir-lo de cima de Mel, e em seguida
cravei nele a espada com uma estocada de duas
mos. Ele debateu-se violentamente, chutando e
tentando me agarrar, mas eu me apoiei na lmina,
forando-a a penetrar no seu peito. Enquanto ele
lutava contra o metal que o imobilizava, rasgava
mais o ferimento. A sua boca me amaldioou com
gritos desprovidos de palavras e depois com
arquejos que espalhavam gotculas de sangue com
os sons. As suas mos agarraram a barriga da
minha perna direita e tentaram arrancar a perna de
debaixo de mim. Eu me limitei a colocar mais
peso na espada. Ansiava por puxar a arma para
fora e mat-lo depressa, mas o homem era to forte
que no me atrevia a libert-lo. Mel acabou
finalmente com ele, baixando a ponta do seu
basto num golpe esmagador contra o centro do
rosto dele. A sbita imobilidade do homem foi
uma misericrdia tanto para ele como para mim.
Encontrei foras para arrancar a espada do seu
peito, ento cambaleei para trs e fui me sentar
subitamente na estrada.
A minha viso ficou nublada, clareou e voltou a
nublar-se. Os gritos de dor lanados por Flautista
podiam ter sido os gritos distantes de aves
marinhas. De repente, havia muito de tudo e eu
estava em toda parte. Na floresta, eu lambia o meu
ombro, empurrando o pelo denso para o lado com
a lngua, testando com cuidado o corte enquanto o
cobria de saliva. E, no entanto, estava sentado na
estrada, ao sol, cheirando poeira, sangue e
excrementos enquanto o intestino do morto se
soltava. Senti cada golpe que recebera e que dera,
a exausto bem como os danos provocados pelo
impacto do porrete. O modo selvagem como eu
matara de repente possua uma nova implicao
para mim. Sabia como era sentir o tipo de dor que
infligira. Sabia o que eles tinham sentido, no cho
e debatendo-se sem esperana, com a morte como
nica fuga de mais dor. A minha mente vibrava
entre os extremos de assassino e vtima. Eu era
ambos.
E estava s. Mais s do que alguma vez estivera.
Antes, em um momento como aquele, sempre tinha
havido algum para me dar apoio. Camaradas de
bordo ao fim de uma batalha, ou Bronco que vinha
me encher de ataduras e me arrastar para casa, e
uma casa minha espera, com Pacincia para vir
preocupar-se comigo, ou Breu e Veracidade para
reclamar para eu ser mais cuidadoso. Moli
chegando com o silncio e a escurido para me
tocar suavemente. Desta vez, a batalha terminara e
eu estava vivo, mas ningum se importava alm do
lobo. Eu o amava, mas de sbito soube que
ansiava tambm por um toque humano. A
separao daqueles que haviam gostado de mim
era mais do que eu era capaz de suportar. Se fosse
realmente um lobo, teria erguido o focinho para o
cu e uivado. Sendo quem era, estendi-me, de um
modo que no sou capaz de descrever. No foi a
Manha, no foi o Talento, mas uma mpia fuso
das duas coisas, uma terrvel demanda por algum,
em qualquer lugar, que pudesse querer saber que
eu estava vivo.
E quase senti algo. Teria Bronco, talvez, erguido
a cabea em algum lugar e olhado em volta do
campo em que trabalhava, teria ele por um instante
cheirado sangue e poeira em vez da rica terra que
revirava para colher os tubrculos? Teria Moli se
empertigado, tirado as mos da roupa que lavava e
colocado essas mesmas mos nas costas que lhe
doam e olhado em volta, curiosa com uma sbita
pontada de desolao? Teria eu puxado a
conscincia fatigada de Veracidade, teria distrado
Pacincia por um momento ou dois do seu
ordenamento das ervas nas bandejas de secagem,
feito Breu franzir o cenho enquanto deixava de
lado um pergaminho? Sacudi-me contra as suas
conscincias como uma traa esvoaando contra
uma janela. Ansiei por sentir o afeto que julgara
garantido. Quase os alcancei, pensei, s para cair
exausto em mim mesmo, sentado sozinho na poeira
da estrada, com o sangue de trs homens
respingado sobre mim.
Ela chutou terra em mim.
Ergui os olhos. A princpio Mel era uma silhueta
escura contra o sol que caa para oeste. Ento
pisquei e vi a expresso de repugnncia e fria no
seu rosto. Tinha a roupa rasgada e o cabelo sujo
em volta do rosto.
Voc fugiu! acusou-me. Senti o quanto ela
desprezava a minha covardia. Voc fugiu e o
deixou quebrar o brao de Flautista e derrubar o
meu pai a porretadas e tentar me estuprar. Que tipo
de homem voc ? Que tipo de homem pode fazer
uma coisa dessas?
Havia mil respostas quilo, e nenhuma. O vazio
que tinha em mim me assegurava de que nada seria
resolvido falando com ela. Em vez disso, levantei-
me com dificuldade. Ela me encarou enquanto eu
voltava para trs ao longo da estrada at onde
deixara cair a minha trouxa. Parecia que tinham se
passado horas desde que a afastara com um chute.
Peguei-a e a levei at onde Gracejo se encontrava
sentado na terra ao lado de Flautista e tentava
consol-la. A pragmtica Mel abrira os seus
embrulhos. A harpa de Gracejo era um
emaranhado de pedaos de madeira e de corda.
Flautista no iria tocar nenhuma flauta at que o
seu brao sarasse, dali a semanas. As coisas eram
como eram, e eu fiz o que pude a esse respeito.
E isso era nada, alm de acender uma fogueira
beira da estrada e ir buscar gua no rio e coloc-la
para ferver. Escolhi as ervas que acalmariam
Flautista e lhe atenuariam a dor no brao.
Descobri galhos secos e direitos e alisei-os para
os usar como talas. E na encosta da colina, na
floresta atrs de mim? Di, irmo, mas a ferida
no funda. Apesar disso, abre-se quando tento
andar. E espinhos, estou to cheio de espinhos
como moscas em carne podre.
Vou at voc agora e arrancarei todos.
No. Posso cuidar disso sozinho. Cuide desses
que esto a. Fez uma pausa. Irmo. Devamos ter
fugido.
Eu sei.
Por que foi to difcil ir at Mel e perguntar
calmamente se ela tinha tecido que pudssemos
rasgar para atar as talas ao brao de Flautista? Ela
no se dignou a me responder, mas o cego Gracejo
me entregou sem uma palavra o tecido suave que
estivera enrolado na harpa. Mel me desprezava,
Gracejo parecia entorpecido pelo choque e
Flautista estava to perdida na sua prpria dor que
quase nem reparava em mim. Mas de algum modo
consegui que viessem para junto da fogueira. Levei
Flautista para l, com o brao em volta dela e a
mo livre suportando o seu brao ferido. Sentei-a,
e depois dei primeiro a ela o ch que fizera. Falei
mais para o Harpista Gracejo do que para ela
quando disse:
Posso endireitar o osso e botar uma tala.
Tive de fazer isto muitas vezes por homens feridos
em batalha. Mas no afirmo ser um curandeiro.
Quando chegarmos prxima vila, o osso pode
precisar ser endireitado de novo.
Ele assentiu lentamente. Ambos sabamos que
no havia nenhuma alternativa verdadeira, de
modo que se ajoelhou atrs de Flautista e a
segurou pelos ombros, e Mel lhe agarrou
firmemente pelo antebrao. Eu apertei os dentes
com a dor que ela sentia e lhe endireitei
firmemente o brao. Ela gritou, claro, pois nenhum
ch simples podia amortecer por completo aquele
tipo de dor. Mas ela tambm se forou a no se
debater. Lgrimas lhe rolaram pelas bochechas e a
sua respirao manteve-se irregular enquanto eu
lhe colocava a tala e atava o brao. Mostrei-lhe
como lev-lo parcialmente dentro do vestido para
suportar o peso e mant-lo firme contra o
movimento. Depois lhe dei outra caneca do ch e
me virei para Gracejo.
Ele recebera um golpe na cabea, que o deixara
tonto durante um momento, mas no o nocauteara.
Havia um inchao, e ele retraiu-se ao meu toque,
mas a pele no abrira. Lavei-o com gua fria e lhe
disse que o ch poderia alivi-lo tambm. Ele me
agradeceu, e sem saber por que me senti
envergonhado com isso. Depois ergui olhar para
onde Mel me observava com olhos de gato, do
outro lado da pequena fogueira.
Foi ferida? perguntei-lhe em voz baixa.
H um inchao na minha canela do tamanho
de uma ameixa onde ele me bateu. E deixou
marcas de garras no meu pescoo e nos seios
enquanto tentava me pegar. Mas posso cuidar das
minhas dores sozinha, obrigada mesmo assim
Garrano. No muito graas a voc que eu estou
viva.
Mel. Gracejo falou numa voz
perigosamente baixa. Havia nela tanta fadiga como
ira.
Ele fugiu, pai. Abateu o homem dele e depois
se virou e fugiu. Se tivesse nos ajudado nessa
hora, nada disto teria acontecido. Nem o brao
quebrado de Flautista, nem a sua harpa esmagada.
Ele fugiu.
Mas voltou. Nem imaginemos o que teria
acontecido se ele no tivesse voltado. Talvez
tenhamos sofrido alguns ferimentos, mas ainda
pode lhe agradecer por estar viva.
No lhe agradeo por nada disse ela com
amargura. Um momento de coragem, e ele
poderia ter salvo o nosso meio de subsistncia. O
que temos agora? Um harpista sem harpa e uma
flautista que no pode levantar o brao para
segurar seu instrumento.
Levantei-me e me afastei deles. Estava de
repente cansado demais para continuar a ouvi-los,
e muito mais desencorajado do que teria de estar
para explicar os meus atos. Em vez de faz-lo,
arrastei os dois corpos para fora da estrada e
puxei-os para o gramado na margem do rio. luz
que diminua, voltei a entrar na floresta e procurei
Olhos-de-Noite. Ele j tratara melhor dos seus
ferimentos do que eu poderia fazer. Passei os
dedos pela sua pelagem, sacudindo dela espinhos
e pedaos de amoreira silvestre. Fiquei sentado ao
lado dele por um breve momento. Ele deitou-se e
colocou a cabea no meu joelho, e cocei suas
orelhas. Era toda a comunicao de que
necessitvamos. Ento me levantei, encontrei o
terceiro corpo, agarrei-o pelos ombros e o arrastei
para fora da floresta, para se ir juntar aos outros
dois. Sem remorso, revistei seus bolsos e bolsas.
Dois deles renderam apenas um punhado de
moedas pequenas, mas o da espada tinha doze
peas de prata na bolsa. Tirei-lhe a bolsa e
acrescentei a ela as outras moedas. Tambm lhe
tirei o cinturo e a bainha desgastados, e apanhei a
espada, que estava cada na estrada. Em seguida,
ocupei-me at a escurido ficar completa em
arranjar pedras do rio e empilh-las ao redor e por
fim sobre os corpos. Quando terminei, desci at a
beira do rio, lavei as mos e os braos e joguei
gua no rosto. Tirei a camisa e lavei o sangue
dela, ento a vesti de novo, fria e molhada. Por um
momento, isso me aliviou dos machucados; depois,
os msculos comearam a ficar rgidos devido ao
frio.
Voltei para junto da pequena fogueira que agora
iluminava os rostos das pessoas que a rodeavam.
Quando cheguei l, estendi a mo para a de
Gracejo e coloquei nela a bolsa.
Talvez isto seja o suficiente para ajud-los
at conseguir substituir a sua harpa disse-lhe.
Dinheiro de mortos para aliviar a sua
conscincia? zombou Mel.
As pontas desgastadas da minha pacincia se
romperam.
Faa de conta que eles sobreviveram, porque
pela lei de Cervo eles teriam de lhe pagar pelo
menos uma indenizao sugeri. E se isso
ainda no lhe agradar, por mim voc pode atirar as
moedas no rio. Ignorei-a muito mais
completamente do que ela me ignorara. Apesar das
minhas dores e pontadas, desafivelei o cinto da
espada. Olhos-de-Noite tivera razo; o
espadachim fora muito maior do que eu. Encostei o
couro em um pedao de madeira e fiz um novo
buraco na tira com a faca. Feito isso, levantei-me e
afivelei-o ao redor da minha cintura. Havia
conforto em sentir de novo o peso de uma espada
ao meu lado. Desembainhei a lmina e a examinei
luz da fogueira. No era excepcional, mas era
funcional e resistente.
Onde arranjou isto? perguntou Flautista. A
sua voz estava um pouco vacilante.
Tirei do terceiro homem, na floresta
respondi de forma concisa. Voltei a embainh-la.
O que ? perguntou o Harpista Gracejo.
Uma espada disse Flautista.
Gracejo virou os seus olhos enevoados para
mim.
Havia um terceiro homem na floresta com
uma espada?
Sim.
E voc a tirou dele e o matou?
Sim.
Ele bufou baixo e sacudiu a cabea para si
mesmo.
Quando apertamos as mos, soube
perfeitamente que a mo que tinha na minha no
pertencia a um escriba. Uma pena no deixa calos
como os que voc tem, nem o brao musculoso
assim. Est vendo, Mel, ele no fugiu. Apenas
foi
Se ele tivesse matado primeiro o homem que
estava nos atacando, teria sido mais sensato
insistiu ela com teimosia.
Eu desfiz a trouxa e sacudi o cobertor. Deitei-me
nele. Estava com fome, mas no havia nada a se
fazer quanto a isso. Eu podia era fazer algo a
respeito do cansao que sentia.
Vai dormir? perguntou Flautista. O seu
rosto refletia tanto alarme quanto conseguiu reunir
no seu estado entorpecido.
Sim.
E se aparecerem mais Forjados? quis
saber.
Ento Mel poder mat-los na ordem que
achar melhor sugeri com amargura. Mudei de
posio sobre o cobertor at deixar a espada livre
e mo, e fechei os olhos. Ouvi Mel levantar-se
lentamente e comear a preparar os cobertores
para os outros.
Garrano? perguntou Gracejo em voz
baixa. Pegou algum dinheiro para voc?
No devo precisar de dinheiro novamente
respondi, tambm em voz baixa. No expliquei que
eu j no planejava ter muito a ver com seres
humanos. No queria me explicar a ningum nunca
mais. No me interessava se eles me
compreendiam ou no.
Fechei os olhos e me projetei tateando, para
tocar brevemente em Olhos-de-Noite. Assim como
eu, ele estava com fome, mas preferira descansar.
Amanh noite, estarei livre para caar de novo
com voc, prometi-lhe. Ele suspirou, satisfeito.
Ele no estava muito longe dali. A minha fogueira
era uma centelha brilhando atravs das rvores
abaixo dele. Apoiou o focinho nas patas
dianteiras.
Eu estava mais cansado do que imaginava. Os
meus pensamentos vagaram, desfocaram-se.
Larguei tudo e flutuei, livre, para longe das dores
que incomodavam o meu corpo. Moli, pensei com
melancolia, Moli. Mas no a encontrei. Em algum
lugar, Bronco dormia num catre arrumado em
frente de uma lareira. Eu o vi, e foi quase como se
o tivesse contactado pelo Talento, mas no
consegui segurar a viso. A luz da lareira
iluminava os planos de seu rosto; ele estava mais
magro e bronzeado de horas de trabalho no campo.
Rodopiei lentamente para longe dele. O Talento
ondulava contra mim, mas eu no conseguia
encontrar modo de control-lo.
Quando os meus sonhos roaram em Pacincia,
fiquei chocado por encontr-la num aposento
privado com Dom Brilhante. Ele parecia um
animal encurralado. Uma jovem com um lindo
vestido estava evidentemente to surpreendida
como ele pela intruso de Pacincia. Ela estava
armada com um mapa e falava enquanto empurrava
para o lado uma bandeja de petiscos e vinho para
desenrol-lo sobre a mesa.
No o acho nem estpido, nem covarde, Dom
Brilhante. Portanto tenho de assumir que
ignorante. Pretendo me certificar de que a sua
educao deixe de ser negligenciada. Como este
mapa do falecido Prncipe Veracidade lhe
demonstrar, se no agir em breve, toda a costa de
Cervo ficar merc dos Navios Vermelhos. E
eles no tm qualquer misericrdia. Ergueu
aqueles penetrantes olhos cor de avel e o fitou
como me fitara to frequentemente quando
esperava ser obedecida. Quase senti pena do
homem. Perdi meu parco controle sobre a cena.
Como uma folha levada pelo vento, afastei-me
deles rodopiando.
No sei se em seguida fui mais alto ou mais
fundo, sei apenas que senti que tudo o que me
ligava ao meu corpo era um fio tnue. Girei e
rodopiei numa corrente que me puxava,
encorajando-me a me soltar. Um lobo ganiu em
algum lugar, ansioso. Dedos fantasmagricos me
agarravam, como que procurando a minha ateno.
Fitz. Tenha cuidado. Volte.
Veracidade. Mas o seu Talento no tinha mais
fora do que uma baforada de vento, apesar do
esforo que eu sabia que lhe custava. Havia algo
entre ns, um nevoeiro frio, que cedia mas resistia,
emaranhando-se como saras. Tentei me importar,
tentei encontrar medo suficiente para fugir de volta
ao meu corpo. Mas era como estar encurralado no
interior de um sonho e tentar acordar. No
conseguia encontrar uma maneira de me arrancar
do sonho. No conseguia encontrar vontade de
tentar.
Uma baforada de fedor de magia de co no ar,
e olhe o que encontrei. Vontade pendurou-se em
mim como garras de gato, puxou-me bem contra si
mesmo. Ol, Bastardo. A sua profunda satisfao
voltou a despertar cada nuance do meu medo.
Conseguia sentir o seu sorriso cnico. Nenhum
deles morto, nem o Bastardo com a sua magia
pervertida, nem Veracidade, o Pretendente. Tsc,
tsc. Majestoso ficar mortificado ao descobrir
que no teve tanto sucesso como pensara. Desta
vez, porm, eu irei me assegurar de certas coisas
por ele. minha maneira. Senti um teste insidioso
s minhas defesas, mais ntimo do que um beijo.
Como se amassasse a carne de uma rameira,
apalpou-me todo em busca de fraquezas. Fiquei
pendurado em suas mos como um coelho,
espera apenas da toro e do puxo que poriam
fim minha vida. Conseguia sentir como ele
crescera em fora e astcia.
Veracidade, choraminguei, mas o meu rei no
podia nem me ouvir, nem responder.
Ele me pesou em suas mos. De que lhe serve
esta fora que nunca aprendeu a dominar? Para
nada. Mas a mim, ah, a mim dar asas e garras.
Voc me tornar forte o suficiente para
encontrar Veracidade, por melhor que ele se
esconda.
De repente, eu estava derramando fora como
um odre furado. No fazia ideia de como Vontade
penetrara nas minhas defesas, e eu no conhecia
maneira alguma de me defender dele. Vontade
prendeu avidamente a minha mente sua e
comeou a sug-la. Foi assim que Justino e Serena
haviam matado o Rei Sagaz. Ele se fora
rapidamente, como uma bolha estourando. Eu no
conseguia encontrar nem vontade, nem fora para
lutar enquanto Vontade forava todas as muralhas
entre ns a cair. Os seus pensamentos estranhos
eram uma presso no interior da minha mente,
enquanto ele esgravatava os meus segredos ao
mesmo tempo que absorvia a minha substncia.
Porm, dentro de mim, um lobo o esperava.
Irmo!, declarou Olhos-de-Noite, e lanou-se
sobre ele, com dentes e garras. Em algum lugar na
vasta distncia, Vontade guinchou de horror e
assombro. Por mais forte que fosse no Talento, no
possua qualquer conhecimento sobre a Manha.
Estava to impotente diante do ataque de Olhos-
de-Noite como eu estivera diante do seu. Uma vez,
quando Justino me atacara com o Talento, Olhos-
de-Noite respondera. Eu observei Justino cair
exatamente como se estivesse sendo fisicamente
atacado por um lobo. Perdera toda a concentrao
e controle sobre o seu Talento e eu conseguira me
libertar dele. No conseguia ver o que estava
acontecendo a Vontade, mas senti que os maxilares
de Olhos-de-Noite se fechavam. Fui esbofeteado
pela fora do horror de Vontade. Ele fugiu,
quebrando to subitamente a ligao de Talento
entre ns que por um momento me senti inseguro
da minha identidade. Ento eu estava de volta, bem
acordado, no interior do meu prprio corpo.
Sentei-me no meu cobertor, com suor escorrendo
pelas costas abaixo, e ergui com violncia ao meu
redor todas as muralhas que consegui me lembrar
como se erguiam.
Garrano? perguntou Gracejo um tanto
alarmado, e o vi sentar-se de um modo sonolento.
Mel me fitava do seu cobertor onde se sentava, de
vigia. Sufoquei um soluo ofegante.
Um pesadelo consegui dizer em voz rouca.
S um pesadelo. Levantei-me, cambaleante,
horrorizado com o quo enfraquecido me
encontrava. O mundo rodopiava minha volta.
Mal conseguia ficar de p. O medo da minha
fraqueza me impeliu. Peguei minha pequena
chaleira e a levei comigo at o rio. Ch de casco-
de-elfo, prometi a mim mesmo, e esperei que fosse
potente o suficiente. Passei longe das pedras
empilhadas que cobriam os corpos dos Forjados.
Antes de chegar margem do rio, Olhos-de-Noite
veio at mim, avanando sobre trs patas. Deixei
cair a chaleira e afundei-me ao seu lado. Abracei-
o, tendo cuidado com o corte que ele tinha no
ombro, e enfiei a cara no seu pelo.
Eu estava to assustado. Quase morri.
Agora compreendo por que devemos matar
todos eles, disse ele calmamente. Se no
matarmos, nunca nos deixaro em paz. Temos
que persegui-los at o covil onde se escondem e
matar todos eles.
Era o nico conforto que ele podia me oferecer.
CAPTULO 6

A Manha e o Talento

Menestris e escribas errantes tm lugares


especiais na sociedade dos Seis Ducados. So
repositrios de conhecimento, no s sobre as
suas prprias artes, mas sobre muitas outras
coisas. Os menestris guardam as histrias dos
Seis Ducados, no s a histria geral que deu
forma ao reino, mas as histrias particulares das
pequenas vilas e at das famlias que as
compem. Embora ser nica testemunha de
algum grande acontecimento seja o sonho de
todos os menestris, conquistando assim a
autoria de uma nova saga, a sua verdadeira e
duradoura importncia reside em serem
testemunhas constantes dos pequenos
acontecimentos que compem o tecido da vida.
Quando existe uma questo sobre um limite de
propriedade, sobre a linhagem de uma famlia,
ou at sobre uma promessa feita a longo prazo,
os menestris so chamados para providenciar
os detalhes que outros podem ter esquecido. Os
escribas errantes os apoiam, mas no os
suplantam. Por um preo, eles fornecem registros
escritos de um casamento, de um nascimento, da
transao de um terreno, de heranas ganhas ou
dotes prometidos. Tais registros podem ser
coisas intricadas, pois cada uma das partes
envolvidas tem de ser identificada de uma
maneira que seja inconfundvel. No s pelo
nome e profisso, mas por linhagem, localizao
e aparncia. Normalmente, um menestrel
depois chamado para colocar a sua marca como
testemunha daquilo que o escriba escreveu, e por
este motivo no raro encontr-los viajando
juntos, ou que a mesma pessoa pratique ambas as
artes. Menestris e escribas so, por costume,
bem tratados nas casas nobres, encontrando ali
as suas acomodaes de inverno e sustento e
conforto na idade avanada. No h senhor que
deseje ser mal lembrado nas histrias de
menestris e escribas ou, pior ainda, no ser
lembrado de todo. A generosidade para com eles
ensinada como simples cortesia. Sabe-se que se
est na presena de um sovina quando se senta
mesa num castelo que no apresente menestris.

Despedi-me dos msicos porta de uma estalagem


num vilarejo chamado Pescoo de Corvo na tarde
seguinte. Ou melhor, despedi-me de Gracejo. Mel
entrou a passos largos na estalagem sem me olhar.
Flautista olhou para mim, mas o olhar foi to
confuso que nada me transmitiu. Ento seguiu Mel.
Gracejo e eu fomos deixados na rua. Vnhamos
caminhando juntos e a sua mo continuava pousada
no meu ombro.
H um pequeno degrau aqui na porta da
estalagem preveni Gracejo em voz baixa.
Ele agradeceu com a cabea.
Bem. Um pouco de comida quente ser bem-
vindo observou, e apontou o queixo na direo da
porta.
Sacudi a cabea, e ento articulei a minha
recusa.
Obrigado, mas no vou entrar com vocs.
Vou seguir caminho.
Agora mesmo? Vamos, Garrano, pelo menos
beba uma caneca de cerveja e coma qualquer
coisa. Eu sei que Mel difcil de tolerar s
vezes. Mas no precisa pensar que ela fala por
todos ns.
No isso. Simplesmente h algo que tenho
de fazer. Algo que j venho adiando h muito,
muito tempo. Ontem percebi que, at que o tenha
feito, no haver paz para mim.
Gracejo soltou um suspiro pesado.
Ontem foi um dia feio. Eu no basearia nele
nenhuma deciso de vida. Virou a cabea para
olhar na minha direo. Seja o que for,
Garrano, acho que o tempo o tornar melhor. o
que faz com a maior parte das coisas, sabe?
Com algumas coisas murmurei distrado.
Outras no melhoram at que at serem
consertadas. De uma maneira ou de outra.
Bem. Estendeu-me a mo e eu a apertei.
Nesse caso, boa sorte. Pelo menos esta mo de
guerreiro tem agora uma espada para agarrar. Isso
no pode ser m sorte para voc.
A porta est aqui eu disse, e a abri para
ele. Boa sorte para vocs tambm disse-lhe
enquanto ele passava por mim, e fechei a porta s
suas costas.
Quando voltei a sair para a rua, senti-me como
se tivesse posto de lado um fardo. De novo livre.
To cedo no voltaria a me sobrecarregar com
algo assim.
Estou indo, disse a Olhos-de-Noite. Esta noite,
caamos.
Estarei sua espera.
Puxei a trouxa um pouco mais para cima, sobre o
ombro, agarrei de novo meu basto e sa andando
pela rua. No conseguia imaginar nada que
pudesse desejar de Pescoo de Corvo. Contudo, o
meu caminho me levou a passar pela praa do
mercado, e os hbitos de uma vida inteira custam a
morrer. Minhas orelhas se eriaram com os
resmungos e queixas dos que haviam vindo
negociar. Compradores exigiam saber por que os
preos estavam to altos; vendedores respondiam
que o comrcio vindo de rio abaixo estava
escasso, e que todos os bens que subiam o rio at
Pescoo de Corvo eram caros. Os preos eram
piores rio acima, asseguravam-lhes. Por cada um
dos que se queixavam dos preos altos, havia
algum que viera procura de algo que
simplesmente no havia. No era apenas o peixe
marinho e a l grossa de Cervo que j no subiam
o rio. Era como Breu predissera: no havia sedas,
no havia conhaques, no havia trabalhos finos de
pedras preciosas de Vilamonte, nada proveniente
dos Ducados Costeiros e das terras mais
longnquas. A tentativa que Majestoso fizera para
estrangular as rotas comerciais do Reino da
Montanha tambm privara os mercadores de
Pescoo de Corvo do mbar, peles e outros bens
da Montanha. Pescoo de Corvo fora uma vila
mercantil. Agora estava estagnada, sufocada com
um excesso daquilo que produzia e sem nada com
que o trocar.
Pelo menos um bbado trpego sabia onde pr
as culpas. Teceu o seu caminho atravs do
mercado, chocando-se contra barracas e
cambaleando por cima dos artigos que mercadores
menos abonados haviam disposto em esteiras. O
seu cabelo, negro e desgrenhado, caa-lhe at os
ombros e fundia-se com a barba. Cantava enquanto
ia se aproximando, ou rosnava, mais
apropriadamente, pois a sua voz era mais alta do
que musical. Havia pouca melodia para fixar a
cantiga na minha mente, e ele estragava qualquer
rima que a cano pudesse ter tido, mas o seu
sentido era claro. Quando Sagaz fora Rei dos Seis
Ducados, o rio correra com ouro, mas agora que
Majestoso usava a coroa, todas as costas
escorriam sangue. Havia um segundo verso, que
dizia que era melhor pagar impostos para
combater os Navios Vermelhos do que pag-los a
um rei que se escondia, mas esse foi interrompido
pela chegada da Guarda da Cidade. Havia dois
guardas, e achei que os veria mandar o bbado
parar e lhe extorquir moedas para pagar por aquilo
que pudesse ter quebrado. Eu devia ter sido
avisado pelo silncio que caiu sobre o mercado
quando os guardas apareceram. O comrcio
cessou, as pessoas saram do caminho ou
encostaram-se s barracas para lhes ceder
passagem. Todos os olhos os seguiram e se
fixaram neles.
Aproximaram-se rapidamente do bbado, e eu
era um em meio multido silenciosa que
observou a sua captura. O bbado arregalou os
olhos para eles, consternado, e o olhar de apelo
com que varreu a multido foi arrepiante na sua
intensidade. Ento um dos guardas puxou para trs
um punho revestido de manopla e afundou-o na
barriga do homem. O bbado tinha o aspecto de
um homem duro, que ficara panudo como
acontece com alguns homens robustos quando
envelhecem. Um homem mole teria rudo com
aquele golpe. Ele se dobrou para frente por cima
do punho do guarda, o ar lhe saindo dos pulmes
num assobio, e em seguida vomitou um jato
repentino de cerveja azeda. Os guardas deram um
passo para trs, com repugnncia, e um deles deu
ao bbado um empurro que o desequilibrou.
Colidiu com uma barraca, fazendo com que dois
cestos de ovos se espatifassem no cho de terra. O
mercador de ovos nada disse, apenas recuou mais
para o interior da sua barraca como se no
quisesse que reparassem nele.
Os guardas avanaram sobre o desgraado. O
primeiro agarrou-o pela frente da camisa e
colocou-o de p. Deu-lhe um soco curto e direto
no rosto que o atirou para os braos do outro
guarda. Este o agarrou e o manteve de p para que
o punho do parceiro voltasse a encontrar-se com a
sua barriga. Desta vez o bbado caiu de joelhos e
o guarda atrs dele lhe deu um chute indiferente
que o estatelou.
S percebi que comeara a avanar quando uma
mo me agarrou o ombro. Olhei para o rosto
enrugado da velha magra que me agarrava.
No os enfurea sussurrou. Vo deix-
lo ir depois de o espancarem, se ningum os
enfurecer. Enfurea-os, e eles o mataro. Ou, pior,
iro lev-lo para a Arena do Rei.
Fitei o seu olhar cansado, e ela baixou os olhos
como se estivesse envergonhada. Mas no tirou a
mo do meu ombro. Ento, assim como ela, afastei
o olhar do que os guardas estavam fazendo e tentei
no ouvir os impactos na carne, os grunhidos e
gritos estrangulados do homem espancado.
O dia estava quente, e os guardas traziam mais
cota de malha do que eu estava habituado a ver em
Guardas de Cidade. Talvez tenha sido isso o que
salvou o bbado. Ningum gosta de suar dentro de
uma armadura. Olhei para trs a tempo de ver um
deles baixar-se e soltar com a faca a bolsa do
homem, sentir o peso dela e enfi-la no bolso. O
outro guarda olhou em volta para a multido
enquanto anunciava:
Rolfe Negro foi multado e punido pelo ato
traioeiro de zombar do rei. Que sirva de exemplo
para todos.
Os guardas deixaram-no cado na poeira e no
lixo da praa do mercado e prosseguiram a sua
ronda. Um guarda foi observando por cima do
ombro enquanto se afastavam, mas ningum se
mexeu at que eles dobraram uma esquina. Depois,
o mercado foi voltando gradualmente vida. A
velha ergueu a mo do meu ombro e voltou a
pechinchar por nabos. O mercador de ovos deu a
volta at a frente da sua barraca para se agachar e
recolher os poucos ovos que no haviam se
partido e os cestos cheios de gema de ovo.
Ningum olhou diretamente para o homem cado.
Eu fiquei imvel durante algum tempo,
esperando que uma frieza trmula que havia em
mim desaparecesse. Eu queria perguntar por que
Guardas da Cidade se preocupariam com a cano
de um bbado, mas ningum devolveu o meu olhar
inquisitivo. De repente, senti ainda menos vontade
de lidar com qualquer um ou qualquer coisa em
Pescoo de Corvo. Ergui um pouco mais a minha
trouxa e continuei a caminhada para fora da vila.
Porm, quando me aproximei do homem que
gemia, a sua dor bateu contra mim como uma onda.
Quanto mais me aproximava, mais distinta se
tornava, quase como se forasse a minha mo a
penetrar cada vez mais fundo numa fogueira. Ele
ergueu o rosto para me fitar. Terra grudava-se ao
sangue e ao vmito espalhados pelo rosto. Tentei
continuar a andar.
Ajude-o. A minha mente traduziu assim a sbita
exortao mental que senti.
Parei como se tivesse sido esfaqueado, quase
cambaleando. Esse apelo no viera de Olhos-de-
Noite. O bbado enfiou uma mo debaixo do corpo
e ergueu-se. Os seus olhos encontraram-se com os
meus num apelo e numa infelicidade mudos. J
vira antes olhos assim; eram os olhos de um
animal em sofrimento.
Talvez devssemos ajud-lo?, perguntou Olhos-
de-Noite, hesitante.
Shhh, avisei-o.
Por favor, ajude-o. A splica crescera em
urgncia e fora. Sangue Antigo pede a Sangue
Antigo. A voz na minha mente falava com mais
clareza, no em palavras, mas em imagens.
Compreendi pela Manha o significado que elas
traziam. Era como a aplicao de uma obrigao
de cl.
E eles so alcateia conosco?, perguntou Olhos-
de-Noite com espanto. Sabia que ele era capaz de
detectar a minha confuso, e no respondi.
Rolfe Negro conseguira enfiar a outra mo
debaixo do seu corpo. Conseguiu apoiar-se num
joelho, e em seguida estendeu uma mo para mim,
sem uma palavra. Agarrei-lhe no antebrao e
puxei-o lentamente at que ficasse de p. Assim
que se endireitou, balanou ligeiramente. Mantive-
me agarrado ao seu brao e deixei-o equilibrar-se
contra mim. To mudo como ele, ofereci-lhe o meu
basto de caminhante. Ele o aceitou, mas no abriu
mo do meu brao. Lentamente, abandonamos o
mercado, com o bbado pesadamente apoiado em
mim. Gente demais nos fitava com curiosidade.
Enquanto caminhvamos pelas ruas, as pessoas
nos olhavam de relance, e ento desviavam os
olhos. O homem nada me dizia. Continuei
esperando que ele indicasse uma direo qualquer
em que quisesse seguir, que reclamasse alguma
casa como sua, mas ele nada dizia.
Ao nos aproximarmos dos arredores da vila, a
estrada meandrava at a margem do rio. O sol
brilhou atravs de uma abertura nas rvores,
reluzindo prateado na gua. Ali, um baixio do rio
subia para uma margem relvada enquadrada por
salgueirais. Algumas pessoas que transportavam
cestos molhados de roupa lavada estavam de
partida. Ele me deu um puxo silencioso pelo
brao para indicar que queria ir at a beira do rio.
Chegando l, Rolfe Negro caiu de joelhos, ento
se inclinou para frente a fim de mergulhar no
apenas o rosto, mas toda a cabea e pescoo na
gua. Voltou a se erguer, esfregou o rosto com as
mos e voltou a se baixar. Da segunda vez que se
ergueu sacudiu a cabea to vigorosamente quanto
um co molhado, espirrando gua em todas as
direes. Sentou-me sobre os calcanhares e me
olhou com olhos embaados.
Bebo demais quando venho vila disse
com uma voz profunda.
Confirmei com um aceno.
Vai ficar bem agora?
Ele assentiu. Conseguia ver a lngua movendo-se
dentro da sua boca, procura de cortes e dentes
soltos. A memria de velhas dores rolava
agitadamente dentro de mim. Desejei estar longe
de todas as coisas que me fizessem lembrar delas.
Ento, boa sorte disse-lhe. Abaixei-me, a
jusante dele, e bebi e voltei a encher o meu odre.
Depois me levantei, ergui a trouxa e me virei para
ir embora. Um formigamento de Manha me fez
girar subitamente a cabea na direo da floresta.
Um cepo se mexeu, e em seguida empinou-se de
sbito transformado numa ursa parda. O animal
farejou o ar, depois voltou a cair sobre as quatro
patas e caminhou desajeitadamente na nossa
direo. Rolfe eu disse em voz baixa
enquanto comeava a recuar lentamente. Rolfe,
h uma ursa.
Ela minha disse ele, tambm em voz
baixa. Voc no tem nada a temer dela.
Fiquei imvel enquanto o animal saa da floresta
e descia a margem relvada. Ao aproximar-se de
Rolfe, soltou um grito grave, estranhamente
semelhante ao berro de uma vaca pelo seu bezerro.
Em seguida, empurrou-o suavemente com a grande
cabea. Ele levantou-se, botando para isso uma
mo nos ombros inclinados do animal. Eu podia
senti-los comunicando um com o outro, mas no
fazia qualquer ideia do que seriam as mensagens
que trocavam. Ento a ursa ergueu a cabea para
olhar diretamente para mim. Sangue Antigo,
reconheceu-me. Os seus pequenos olhos eram
fundos acima do focinho. Enquanto caminhava, a
luz do sol dava lustro sua pelagem brilhante e
ondulada. Ambos se aproximaram de mim. No me
mexi.
Quando chegaram muito perto, ela ergueu o
focinho, empurrou-o firmemente contra mim e
comeou a dar longas fungadas.
Irmo?, perguntou Olhos-de-Noite, um tanto
alarmado.
Acho que est tudo bem. Quase nem me atrevia
a respirar. Nunca estivera to perto de um urso
vivo.
A cabea do animal era do tamanho de um cesto
grande. O seu hlito quente contra o meu peito
fedia a peixe do rio. Aps um momento, a ursa
afastou-se de mim, arquejando um som gutural de
uh, uh, uh como se estivesse considerando tudo o
que cheirara em mim. Sentou-se sobre os quartos
traseiros, inspirando atravs da boca aberta como
se saboreasse o odor que eu exalava. Balanou
lentamente a cabea de um lado para o outro, e em
seguida pareceu tomar uma deciso. Voltou a cair
sobre as quatro patas e comeou a afastar-se.
Venha disse Rolfe com brevidade, e fez
sinal para que eu o seguisse. Partiram a caminho
da floresta. Por cima do ombro, Rolfe acrescentou:
Temos comida para dividir. O lobo tambm
bem-vindo.
Aps um momento, segui-os.
Isso sensato? Eu conseguia sentir que Olhos-
de-Noite no estava muito longe e vinha na minha
direo o mais depressa que podia,
ziguezagueando por entre as rvores enquanto
descia a encosta de uma colina.
Preciso compreender o que eles so. Sero
como ns? Nunca falei com ningum como ns.
Uma bufada irnica de Olhos-de-Noite. Voc foi
criado pelo Corao da Matilha. Ele mais
como ns do que esses dois. No tenho certeza se
quero me aproximar de um urso, ou do homem
que pensa com o urso.
Quero saber mais, insisti. Como ela me
detectou, como sondou na minha direo? Apesar
da minha curiosidade, permaneci bem atrs da
estranha dupla. Homem e ursa avanavam
desajeitadamente minha frente. Abriam caminho
atravs dos salgueiros junto ao rio, evitando a
estrada. Num lugar onde a floresta se fechava,
densa, at o lado oposto da estrada, atravessaram-
na depressa. Segui-os. Nas sombras mais
profundas dessas rvores maiores, logo demos
com uma trilha de caa que cortava a face de uma
colina. Detectei Olhos-de-Noite antes de ele se
materializar a meu lado. Arquejava da pressa. O
meu corao bateu forte ao ver como ele se
deslocava sobre trs patas. Fora ferido com muita
frequncia por minha causa. Que direito eu tinha
de lhe pedir tal coisa?
No to ruim assim.
Ele no gostava de caminhar atrs de mim, mas a
trilha era estreita demais para ambos. Cedi-lhe o
caminho e segui ao lado dele, esquivando-me a
galhos e troncos, observando atentamente os
nossos guias. Nenhum de ns estava vontade com
aquela ursa. Um nico golpe de uma das suas patas
era capaz de mutilar ou matar, e a minha pequena
experincia com ursos no indicava que eles
possuam temperamentos estveis. Caminhar no
fluxo do odor da ursa mantinha os pelos do
pescoo de Olhos-de-Noite eriados e minha pele
arrepiada.
Por fim chegamos a uma pequena cabana,
aninhada contra a face da colina. Era feita de
pedras e toras, e as fendas entre elas eram tapadas
com terra e musgo. As toras que serviam de
telhado estavam cobertas de turfa. Grama e at
pequenos arbustos brotavam do teto da cabana. A
porta tinha uma largura pouco comum e estava
escancarada. Tanto homem como ursa entraram
primeiro. Aps um momento de hesitao,
aproximei-me para espiar l dentro. Olhos-de-
Noite ficou para trs, com os pelos do pescoo
meio erguidos e as orelhas empinadas para a
frente.
Rolfe Negro recuou at a porta para olhar para
ns.
Entrem e sejam bem-vindos ofereceu.
Quando viu que eu hesitava, acrescentou:
Sangue Antigo no se vira contra Sangue
Antigo.
Entrei lentamente. Havia uma mesa baixa feita
com uma laje no centro da sala com um banco de
cada lado e uma lareira feita de pedras do rio num
canto entre duas cadeiras grandes e confortveis.
Outra porta levava a um quarto de dormir menor.
A cabana tinha o cheiro de um covil de urso, ftido
e terroso. Em um canto viam-se ossos espalhados
e as paredes ali mostravam as marcas de garras.
Uma mulher estava guardando uma vassoura
aps varrer o cho de terra batida. Estava vestida
de castanho, e o seu cabelo curto estava colado
sua cabea como o topo de uma bolota. Virou
rapidamente a cabea na minha direo e fixou em
mim olhos castanhos que no piscavam. Rolfe me
indicou com um gesto.
Aqui esto os convidados de que eu estava
falando, Azevinha anunciou.
Agradeo pela hospitalidade eu disse.
Ela pareceu quase sobressaltada.
Sangue Antigo d sempre as boas-vindas a
Sangue Antigo.
Voltei de novo os olhos para confrontar o
negrume brilhante do olhar de Rolfe.
Nunca ouvi falar desse Sangue Antigo
aventurei-me a dizer.
Mas voc sabe o que . Ele sorriu para
mim, e pareceu um sorriso de urso. O homem tinha
a postura do urso: o seu caminhar pesado, um jeito
de balanar lentamente a cabea de um lado para o
outro, de encolher o queixo e olhar sempre para
baixo como se um focinho dividisse os seus olhos.
Atrs dele, a mulher assentiu lentamente. Ergueu
os olhos e trocou um olhar com algum. Segui o
seu olhar at um pequeno falco empoleirado numa
viga transversal. Os olhos da ave cravaram-se em
mim. As vigas estavam riscadas de branco pelos
seus excrementos.
Fala da Manha? perguntei.
No. esse o nome que aqueles que nada
sabem sobre ele lhe do. por esse nome que
desprezado. Aqueles de ns que pertencem ao
Sangue Antigo no lhe do esse nome. Virou-se
para um armrio encostado na parede robusta e
comeou a tirar comida de l. Longas e grossas
postas de salmo fumado. Um po carregado de
nozes e frutos. A ursa ergueu-se nas patas
traseiras, e em seguida voltou a cair de quatro,
farejando com apreo. Virou a cabea de lado
para tirar uma posta de peixe da mesa; parecia
pequena nas suas mandbulas. Foi pesadamente
para o seu canto com ela e nos virou o dorso
enquanto a comia. A mulher posicionara-se
silenciosamente numa cadeira de onde podia
observar toda a sala. Quando a olhei de relance,
ela sorriu e fez um gesto me convidando para a
mesa. Ento continuou imvel e a observar.
Fiquei com gua na boca ao ver comida. Tinham
se passado vrios dias desde que eu comera at
ficar saciado e no comera quase nada nos ltimos
dois dias. Um ligeiro ganido vindo de fora da
cabana fez com que eu me lembrasse de que
Olhos-de-Noite estava no mesmo estado.
No h queijo, no h manteiga avisou-me
solenemente o Rolfe Negro. A Guarda da
Cidade levou todo o dinheiro que eu tinha ganhado
antes de chegar a comprar manteiga e queijo. Mas
temos peixe e po em abundncia, e favos de mel
para o po. Pegue o que quiser.
Quase inadvertidamente, os meus olhos
voltaram-se para a porta.
Vocs dois clarificou o homem. Entre
os do Sangue Antigo, dois so tratados como um
s. Sempre.
Nevinha e eu tambm lhe damos as boas-
vindas acrescentou a mulher em voz baixa.
Eu sou a Azevinha.
Respondi ao seu convite com um aceno de
gratido e sondei na direo do meu lobo.
Olhos-de-Noite? No quer entrar?
Irei at a porta.
Um momento depois, uma sombra cinzenta
passou furtivamente pela abertura da porta. Senti-o
andando espreita do lado fora da cabana,
analisando os odores do lugar, detectando urso
vezes sem conta. Voltou a passar pela porta, deu
uma breve espiada para dentro e ento deu outra
volta na cabana. Descobriu uma carcaa de veado
parcialmente devorada, com folhas e terra atiradas
sobre ela no muito longe da cabana. Era um tpico
esconderijo de urso. No precisei avis-lo para
deix-lo em paz. Por fim regressou para junto da
porta e instalou-se diante, sentado em alerta, de
orelhas empinadas.
Leve-lhe comida, se ele no quiser entrar
disse-me Rolfe. E acrescentou: Nenhum de ns
acredita em forar um companheiro contra os seus
instintos naturais.
Obrigado eu disse, um pouco rgido, mas
eu no sabia que maneiras eram as adequadas ali.
Tirei uma posta de salmo da mesa. Atirei-a a
Olhos-de-Noite e ele a apanhou com habilidade.
Durante um momento, ficou sentado com ela na
boca. No podia comer e ao mesmo tempo
permanecer totalmente desconfiado. Coma, insisti.
No acho que eles queiram fazer algum mal.
Ele no precisou ser mais instigado do que
aquilo. Deixou cair o peixe, prendeu-o no cho
com a pata da frente e depois arrancou um grande
pedao. Devorou-o, quase sem mastigar. V-lo
comendo despertou minha fome com uma
intensidade que eu vinha reprimindo. Afastei os
olhos dele e vi que Rolfe Negro cortara para mim
uma fatia grossa de po e a cobrira de mel. Estava
servindo-se de uma grande caneca de hidromel. A
minha j estava ao lado do meu prato.
Coma, no espere por mim convidou, e
quando olhei de soslaio para a mulher, ela sorriu.
Fique vontade disse ela em voz baixa.
Veio at a mesa e pegou um prato para si, mas
colocou nele apenas uma pequena poro de peixe
e um fragmento de po. Senti que o fizera para me
deixar vontade e no por estar com fome.
Coma bem pediu-me, e acrescentou: Ns
conseguimos sentir a sua fome, sabia? Ela no
se juntou a ns na mesa e levou a comida para a
cadeira junto da lareira.
Tive o maior prazer em lhe obedecer. Comi com
maneiras muito semelhantes s de Olhos-de-Noite.
Ele j estava na sua terceira posta de salmo, e eu
acabara com um nmero igual de fatias de po e
estava comendo um segundo pedao de salmo
quando me lembrei do meu anfitrio. Rolfe encheu
minha caneca com hidromel e observou:
Uma vez tentei criar uma cabra. Para ter leite,
queijo, essas coisas. Mas ela nunca conseguiu se
acostumar com Hilda. A pobrezinha estava sempre
nervosa demais para produzir leite. Assim, temos
hidromel. Com o nariz que a Hilda tem para o mel,
uma bebida de que podemos nos abastecer.
uma maravilha suspirei. Larguei a
caneca, j esvaziada de um quarto, e expirei. No
acabara de comer, mas a intensidade urgente da
minha fome j passara. Rolfe Negro tirou da mesa
outra posta de peixe e atirou-a descontrado para
Hilda. A ursa a apanhou, com as patas e as
mandbulas, ento nos virou o dorso para
recomear a comer. Ele arremessou outra posta na
direo de Olhos-de-Noite, que perdera toda a
cautela. Saltou para apanhar o peixe e em seguida
deitou-se, com o salmo entre as patas da frente, e
virou a cabea para cortar pedaos e engoli-los.
Azevinha beliscou a sua comida, arrancando
pequenas tiras de peixe seco e baixando a cabea
quando as comia. Toda vez que a olhava de
relance na sua direo, eu a encontrava me
olhando com os seus penetrantes olhos negros.
Voltei a olhar para Hilda.
Como foi que voc se vinculou a uma ursa?
perguntei, e em seguida acrescentei: Se no
for uma pergunta rude. Nunca falei com ningum
que estivesse vinculado a um animal, ou pelo
menos que o admitisse abertamente.
Ele recostou-se na cadeira e pousou as mos na
barriga.
No admito abertamente a qualquer um.
Supus que voc tivesse sabido imediatamente de
mim, visto que a Hilda e eu estamos sempre
conscientes de quando h outros do Sangue Antigo
por perto. Mas quanto sua pergunta A minha
me era do Sangue Antigo, e dois dos seus filhos o
herdaram. Ela o sentiu em ns, claro, e nos educou
nos costumes. E quando cheguei maturidade,
como um homem, realizei a minha demanda.
Olhei-o sem expresso. Ele sacudiu a cabea,
com um sorriso de piedade lhe tocando os lbios.
Parti sozinho, para o mundo, procura do
meu companheiro animal. Alguns procuram nas
povoaes, outros procuram na floresta, uns
poucos, segundo ouvi contar, vo at mesmo para
o mar. Mas eu fui atrado para os bosques. Ento
fui sozinho, de sentidos bem abertos, jejuando,
exceo de gua fria e das ervas que fortalecem o
Sangue Antigo. Descobri um lugar, aqui, e me
sentei entre as razes de uma velha rvore e
esperei. E a seu tempo, Hilda veio at mim,
procurando tal como eu estivera procurando.
Testamos um ao outro e encontramos a confiana
e, bem, aqui estamos, sete anos depois. Olhou
para Hilda com tanto carinho como se falasse de
uma esposa e de filhos.
Uma busca deliberada por algum a quem se
vincular ponderei.
Acho que voc me procurou naquele dia, e que
eu chamei por voc. Embora nenhum de ns
soubesse na poca que estvamos procurando,
refletiu Olhos-de-Noite, pondo o momento em que
eu o resgatara do mercador de animais sob uma
nova luz.
Acho que no, disse-lhe com pesar. Antes disso,
eu j havia me vinculado por duas vezes, com
ces, e aprendera bem demais a dor de perder um
companheiro assim. Tinha decidido nunca mais
me vincular de novo.
Rolfe estava me olhando, incrdulo. Quase com
horror.
Voc se vinculou duas vezes antes do lobo?
E perdeu os dois companheiros? Sacudiu a
cabea, negando que pudesse ser verdade.
Voc muito novo, at para um primeiro vnculo.
Encolhi os ombros.
Era s uma criana quando Narigudo e eu nos
juntamos. Ele foi afastado de mim, por algum que
sabia algo sobre vnculos e no achava que fosse
bom para nenhum de ns. Mais tarde, voltei a
encontr-lo, mas foi no fim dos seus dias. E o
outro cachorro a que me vinculei
Rolfe estava me olhando com uma averso to
fervente quanto a que Bronco tinha pela Manha,
enquanto Azevinha sacudia silenciosamente a
cabea.
Voc se vinculou em criana? Perdoe-me,
mas isso uma perverso. Assim como permitir
que uma garotinha se case com um homem feito.
Uma criana no est pronta para partilhar a vida
completa de um animal; todos os pais do Sangue
Antigo que eu conheo protegem com muito
cuidado os filhos de tais contatos. A
compreenso lhe tocou o rosto. Ainda assim,
deve ter sido terrvel para o seu amigo de vnculo
ser tirado de voc. Mas quem o fez, fez a coisa
certa, quaisquer que tenham sido os seus motivos.
Olhou-me mais de perto. Estou surpreso que
voc tenha sobrevivido, sem saber nada sobre os
costumes do Sangue Antigo.
Raramente se fala disso no lugar de onde
venho. E quando se fala, chamado de Manha e
considerada uma coisa vergonhosa.
At os seus pais lhe disseram isso? Pois
embora eu bem saiba como o Sangue Antigo
visto e todas as mentiras que se contam sobre ele,
normalmente no as ouvimos dos nossos pais. Os
nossos pais prezam as nossas linhagens e nos
ajudam a arranjar parceiros apropriados quando
chega o momento, para que o nosso sangue no se
dilua.
Afastei os olhos do seu olhar franco para o olhar
fixo e aberto de Azevinha.
No conheci os meus pais. Mesmo
anonimamente, as palavras no saram com
facilidade. A minha me me entregou famlia
do meu pai quando eu tinha seis anos. E o meu pai
decidiu no ficar perto de mim. Seja como for,
suspeito que o Sangue Antigo tenha vindo do lado
da minha me. No me recordo de nada dela ou da
sua famlia.
Seis anos? E no se lembra de nada?
Certamente ela lhe ensinou alguma coisa antes de
entreg-lo, transmitiu-lhe alguns conhecimentos
para voc se proteger?
Suspirei.
No me recordo de nada dela. H muito
tempo me cansara das pessoas me dizerem que eu
devia me lembrar de algo dela, que a maior parte
das pessoas tinha recordaes que remetiam at
aos trs anos, ou at antes.
Rolfe Negro fez um som grave com a garganta,
entre um rosnado e um suspiro.
Bem, algum lhe ensinou alguma coisa.
No eu disse, seco, cansado da discusso.
Queria dar um fim a ela, ento recorri ttica mais
antiga que conhecia para distrair as pessoas
quando faziam perguntas demais sobre mim.
Fale-me sobre voc pedi-lhe. O que sua me
lhe ensinou, e como?
Ele sorriu, fazendo com que o rosto gordo
enrugasse em volta dos olhos, tornando-os
menores.
Ela levou vinte anos para me ensinar. Voc
tem esse tempo para me ouvir? Ao ver a minha
expresso, acrescentou: No, eu sei que s
perguntou para puxar conversa. Mas ofereo o que
vejo que lhe faz falta. Fique conosco durante
algum tempo. Ensinaremos o que vocs dois
precisam saber. Mas no aprendero em uma hora
ou em um dia. Levar meses. Talvez anos.
Azevinha falou de sbito do canto, numa voz
calma.
Tambm poderamos lhe arranjar uma
parceira. Ele talvez servisse para a filha de Olita.
Ela mais velha, mas talvez o faa sossegar.
Rolfe deu um largo sorriso.
No mesmo tpico de mulher? Conhece-o
h cinco minutos e j est lhe arranjando
casamento.
Azevinha falou diretamente para mim. O seu
sorriso era pequeno, mas caloroso.
Vita est vinculada a um corvo. Vocs quatro
caariam bem juntos. Fique conosco. Vai conhec-
la e gostar dela. O Sangue Antigo deve juntar-se a
Sangue Antigo.
Recuse educadamente, sugeriu de imediato
Olhos-de-Noite. J ruim o suficiente arranjar
covil entre os homens. Se comear a dormir perto
de ursos, feder de tal maneira que nunca mais
conseguiremos caar bem. E eu tambm no
tenho qualquer desejo de partilhar a caa com
um corvo provocador. Fez uma pausa. A menos
que conheam uma mulher que esteja vinculada a
uma loba?
Um sorriso torceu-se no canto da boca de Rolfe
Negro. Suspeitei que ele estava mais consciente do
que ns dizamos do que deixava transparecer, e
eu disse isso mesmo a Olhos-de-Noite.
uma das coisas que eu poderia lhe ensinar,
se decidisse ficar props Rolfe. Quando
vocs dois falam, para algum do Sangue Antigo
como se estivessem gritando um com o outro por
cima do chocalhar da carroa de um funileiro. No
h necessidade de ser to escancarado. Voc se
dirige apenas a um lobo, no a toda a famlia dos
lobos. No. Ainda mais do que isso. Duvido que
alguma coisa que coma carne no esteja consciente
de vocs dois. Diga-me. Quando foi a ltima vez
que encontrou um grande carnvoro?
Fui perseguido por ces h algumas noites,
disse Olhos-de-Noite.
Os ces marcam uma posio e ladram para
defender o territrio objetou Rolfe. Eu
falava de carnvoros selvagens.
Acho que no vi nenhum desde que nos
vinculamos admiti com relutncia.
Eles o evitaro to certamente quanto os
Forjados o seguiro disse calmamente Rolfe
Negro.
Um arrepio percorreu minha espinha.
Forjados? Mas os Forjados parecem no ter
qualquer Manha. No os sinto com o meu sentido
da Manha de modo algum, s com os olhos, o
nariz, ou
Para os seus sentidos do Sangue Antigo,
todas as criaturas emitem um calor de parentesco.
Todas menos os Forjados. No verdade?
Assenti, inquieto.
Eles o perderam. No sei como roubado
deles, mas o que a Forja faz. E deixa neles um
vazio. Isto bem sabido entre aqueles do Sangue
Antigo, e tambm sabemos que estamos mais
sujeitos a sermos perseguidos e atacados pelos
Forjados. Especialmente se usamos esses talentos
de forma descuidada. O motivo por que as coisas
so assim ningum sabe dizer com certeza. Talvez
s os Forjados saibam, se que ainda sabem
realmente alguma coisa. Mas isso nos d mais um
motivo para termos cuidado conosco e com os
nossos talentos.
Est sugerindo que Olhos-de-Noite e eu
devamos nos abster de usar a Manha?
Estou sugerindo que talvez voc devesse
ficar aqui durante algum tempo, para demorar o
quanto for preciso para aprender a dominar os
talentos do Sangue Antigo. Seno poder se ver em
mais batalhas como aquela que travou ontem.
Ele se permitiu um pequeno sorriso.
No lhe disse nada sobre esse ataque eu
disse em voz baixa.
No precisou observou ele. Tenho
certeza de que todos os do Sangue Antigo o
ouviram por lguas ao redor quando voc lutou
com eles. At que ambos aprendam a controlar o
modo como falam um com o outro, nada entre
vocs verdadeiramente privado. Fez uma
pausa, e acrescentou: Nunca achou estranho que
os Forjados perdessem tempo atacando um lobo
quando no h aparentemente nada a ganhar com
tal ataque? S se concentram nele porque est
vinculado a voc.
Lancei um olhar breve de desculpa a Olhos-de-
Noite.
Agradeo a oferta. Mas temos uma coisa que
precisamos fazer e ela no pode esperar. Acho que
iremos encontrar menos Forjados medida que
avanarmos para o interior. No devemos ter
problemas.
Isso provvel. Aqueles que vo muito para
o interior so recolhidos pelo rei. Apesar disso,
todos os que restarem sero atrados at voc. Mas
mesmo que no encontre mais Forjados,
provvel que encontre os guardas do rei. Eles tm
um interesse especial por Manhosos ultimamente.
Nos ltimos tempos, muitos dos do Sangue Antigo
foram vendidos ao rei, por vizinhos, e at por
familiares. O seu ouro bom, e ele nem sequer
pergunta se h muitas provas de que as pessoas
so mesmo do Sangue Antigo. H anos que a
vingana contra ns no ardia to forte.
Afastei o olhar com desconforto, bem ciente do
motivo por que Majestoso caava os possuidores
de Manha. O seu crculo o apoiaria nesse dio.
Senti-me nauseado ao pensar nas pessoas
inocentes que eram vendidas a Majestoso para que
ele pudesse se vingar nelas em vez de mim. Tentei
manter a raiva que sentia escondida.
Hilda voltou mesa, examinou-a com ar
pensativo, e depois pegou o pote que continha os
favos com ambas as patas. Gingou com cuidado
para longe da mesa, para ir sentar-se no seu canto
e dar incio a uma lambida atenta do pote.
Azevinha continuou a me observar. Eu no
conseguia ler nada nos seus olhos.
Rolfe Negro coou a barba, e ento estremeceu
quando os seus dedos encontraram um ponto
dolorido. Deu-me um sorriso cuidadoso e
pesaroso.
Posso simpatizar com o seu desejo de matar
o Rei Majestoso. Mas no creio que ser to fcil
como supe.
Apenas olhei para ele, mas Olhos-de-Noite
produziu um ligeiro rosnado com o fundo da
garganta. Hilda ergueu os olhos ao ouvir aquilo e
caiu de quatro, fazendo com que o pote de mel
rolasse pelo cho. Rolfe Negro olhou-a de relance
e ela voltou a sentar-se, mas fitou ns dois com um
olhar furioso. No creio que exista algo mais
capaz de gelar o estmago do que um olhar furioso
de um urso pardo. No me movi. Azevinha
endireitou-se na sua cadeira, mas manteve-se
calma. Acima de ns, nas vigas, Nevinha sacudiu a
plumagem.
Se voc ladra todos os seus planos e agravos
lua noturna, no pode ficar espantado por outros
conhec-los. No acho que voc encontrar muitos
do Sangue Antigo que vejam o Rei Majestoso com
simpatia ou algum, talvez. De fato, muitos
estariam dispostos a ajud-lo se voc lhes pedisse.
Ainda assim, o silncio mais sensato, para um
plano como esse.
A julgar pela cano que cantou h pouco,
suspeito que voc partilhe dos meus sentimentos
eu disse em voz baixa. E lhe agradeo pelo
aviso. Mas Olhos-de-Noite e eu j tivemos de ser
circunspectos antes quanto ao que partilhvamos
um com o outro. Agora que sabemos que existe
perigo de sermos ouvidos, acho que podemos
compensar isso. Mas h uma pergunta que lhe
quero fazer. O que importa Guarda da Cidade de
Pescoo de Corvo se um homem toma algumas
bebidas e canta uma cano de zombaria sobre
o rei? Tive de forar a palavra a sair da
minha garganta.
Absolutamente nada, quando so homens de
Pescoo de Corvo. Mas esse no mais o caso em
Pescoo de Corvo, nem em nenhuma das vilas da
estrada do rio. Estes so guardas do rei, com a
libr da Guarda de Pescoo de Corvo, e pagos da
bolsa da vila, mas no deixam por isso de ser
Homens do Rei. Majestoso ainda no era rei h
dois meses quando decretou essa mudana.
Afirmou que a lei seria imposta mais
equitativamente se os Guardas de Cidade fossem
todos Homens do Rei juramentados, mantendo a
lei dos Seis Ducados acima de qualquer outra.
Bem. Voc viu como eles a mantm
principalmente metendo no bolso tudo o que
conseguem tirar de qualquer pobre diabo que pise
nos calos do rei. Apesar de tudo, aqueles dois de
Pescoo de Corvo no so to ruins como alguns
de que ouvi falar. Segundo se diz, l embaixo em
Curvadareia um batedor de carteiras ou ladro
pode ganhar a vida facilmente, desde que a Guarda
receba uma parte. Os chefes da vila so impotentes
para demitir os guardas que o rei nomeou. E
tambm no tm autorizao para suplement-los
com os seus prprios homens.
Aquilo parecia mesmo coisa de Majestoso.
Perguntei a mim mesmo quo obcecado ele ficaria
com o poder e o controle. Colocaria espies para
espionar os seus espies? Ou j havia feito isso?
Nada daquilo pressagiava boas coisas para os
Seis Ducados como um todo.
Rolfe Negro interrompeu minha reflexo.
E agora, tenho uma pergunta que quero lhe
fazer.
Pergunte vontade convidei, mas reservei
para mim o quo livremente responderia.
Na madrugada de ontem depois de ter
acabado com os Forjados. Outro o atacou. No
consegui detectar quem era, apenas que o seu lobo
o defendeu e que ele, de algum modo foi para
algum lugar. Que atirou as suas foras para um
canal que eu no compreendi, nem consegui seguir.
Nada mais sei alm de que ele, e voc, saram
vitoriosos. O que era aquela coisa?
Um servo do rei esquivei-me. No queria
lhe recusar inteiramente uma resposta, e dizer
aquilo parecia inofensivo, uma vez que ele parecia
j sab-lo.
Voc enfrentou aquilo que eles chamam de
Talento. No foi? Os seus olhos prenderam-se
nos meus. Quando no respondi, ele prosseguiu
mesmo assim. H muitos de ns que gostariam
de saber como isso foi feito. No passado, os
Talentosos nos caaram como se fssemos pragas.
Nem um dos do Sangue Antigo pode dizer que a
sua famlia no sofreu nas mos deles. Agora esses
dias voltaram. Se houver uma maneira de usar os
talentos do Sangue Antigo contra aqueles que
brandem o Talento dos Visionrios, esse um
conhecimento que vale muito para ns.
Azevinha saiu sorrateiramente do canto, e ento
veio agarrar as costas da cadeira de Rolfe e me
olhar por cima do seu ombro. Senti a importncia
que a minha resposta tinha para eles.
No posso lhe ensinar isso eu disse com
honestidade.
O seu olhar sustentou o meu, com uma descrena
evidente.
Esta noite, por duas vezes me ofereci para
lhe ensinar tudo o que sei sobre o Sangue Antigo,
para abrir a voc todas as portas que s a sua
ignorncia mantm fechadas. Voc me recusou,
mas, por Eda, eu ofereci e de livre vontade.
Porm, esta nica coisa que peo, esta nica coisa
que pode salvar tantas das nossas vidas, voc diz
que no pode me ensinar?
Os meus olhos tremeluziram para Hilda. Os da
ursa haviam se transformado de novo em contas
brilhantes. Era provvel que Rolfe Negro no
percebesse como a sua postura imitava a da sua
ursa. Ambos me fizeram medir a distncia at a
porta, enquanto Olhos-de-Noite j estava de p e
pronto para fugir. Por trs de Rolfe, Azevinha
inclinou a cabea e me fitou. Acima de ns, o
falco virou a cabea para nos observar. Forcei-
me a descontrair os msculos, a me comportar com
mais calma do que sentia. Era uma ttica
aprendida com Bronco para confrontar qualquer
animal agitado.
Estou lhe dizendo a verdade eu disse com
cuidado. No posso lhe ensinar aquilo que eu
mesmo no compreendo por inteiro. Evitei
mencionar que eu mesmo possua esse desprezado
sangue Visionrio. Eu tinha agora certeza daquilo
que antes s suspeitara. A Manha s podia ser
usada para atacar um Talentoso se um canal de
Talento tivesse sido aberto entre os oponentes.
Mesmo se eu tivesse sido capaz de descrever o
que Olhos-de-Noite e eu tnhamos feito, ningum
mais teria conseguido copi-lo. Para combater o
Talento com a Manha era preciso possuir tanto o
Talento como a Manha. Olhei calmamente nos
olhos de Rolfe Negro, sabendo que lhe dissera a
verdade.
Lentamente, ele descontraiu os ombros
curvados, e Hilda voltou a cair de quatro e foi
farejar o rastro de mel que se derramara.
Talvez disse ele, com uma calma teimosia
, talvez se voc ficasse conosco e aprendesse
aquilo que tenho para lhe ensinar, voc comeasse
a compreender o que faz. Ento poderia me
ensinar. O que acha?
Mantive a voz calma e firme.
Voc testemunhou um ataque de um dos
servos de Majestoso contra mim na noite passada.
Acha que eles toleraro que eu permanea aqui e
aprenda mais coisas para usar contra eles? No. A
minha nica chance enfrent-los no seu covil
antes que venham minha procura. Hesitei, e
depois disse: Embora eu no possa lhe ensinar
a fazer o que fao, pode ter certeza de que isso
ser usado contra os inimigos do Sangue Antigo.
Aquele, finalmente, era um raciocnio que ele
podia aceitar. Fungou vrias vezes com um ar
pensativo. Perguntei desconfortavelmente a mim
mesmo se teria tantos maneirismos de lobo como
ele tinha de urso e Azevinha de falco.
Pelo menos passar a noite aqui?
perguntou ele de sbito.
Gostamos mais quando viajamos de noite
respondi com pesar. mais confortvel para
ns dois.
Ele assentiu com um ar circunspecto ao ouvir
aquilo.
Bem. Desejo-lhe toda a boa sorte do mundo
para atingir o seu objetivo. bem-vindo para
descansar aqui em segurana at o nascer da lua,
se quiser.
Consultei Olhos-de-Noite e aceitamos com
gratido. Verifiquei o corte no ombro de Olhos-
de-Noite e descobri que no estava melhor do que
eu suspeitara. Tratei-o com um pouco do unguento
de Bronco, e ele estendeu-se l fora sombra e
cochilou durante o resto da tarde. Foi bom para
ambos podermos relaxar por completo, sabendo
que outros nos vigiavam. Foi o melhor sono que
qualquer um de ns tivera desde que iniciramos a
viagem. Quando acordamos, descobri que Rolfe
Negro arranjara peixe, mel e po para levarmos
conosco. No havia sinal do falco. Imaginei que
fora se empoleirar para a noite. Azevinha estava
nas sombras perto da casa, olhando para ns com
um ar sonolento.
Vo com cuidado, vo devagar
aconselhou-nos Rolfe depois de termos lhe
agradecido e guardado os seus presentes.
Caminhem pelos caminhos que Eda abriu para
vocs.
Fez uma pausa, como que esperando uma
resposta. Detectei um costume que no me era
familiar. Desejei-lhe simplesmente:
Boa sorte e ele respondeu com um aceno.
Voc regressar, sabia? acrescentou.
Sacudi lentamente a cabea.
Duvido. Mas agradeo por aquilo que me
deu.
No. Eu sei que regressar. No questo de
voc querer aquilo que posso lhe ensinar.
Descobrir que precisa dessas coisas. Voc no
um homem como os homens comuns. Eles acham
que tm direito a todos os animais; a ca-los e a
com-los, ou a subjug-los e governar as suas
vidas. Voc sabe que no tem esse direito de
domnio. O cavalo que o transporta o faz porque
deseja faz-lo, tal como o lobo que caa ao seu
lado. Voc possui uma percepo mais profunda
do seu lugar no mundo. Acredita que tem direito,
no a govern-lo, mas a fazer parte dele. Predador
ou presa; no h vergonha em ser uma coisa ou a
outra. medida que o tempo for passando, voc
descobrir que tem perguntas urgentes. O que deve
fazer quando o seu amigo quiser correr com uma
alcateia de lobos verdadeiros? Garanto-lhe que
esse dia chegar. O que ele deve fazer se voc
casar e tiver um filho? Quando chegar a hora de
um de vocs morrer, como ter de chegar, como o
outro dar espao para o que restar e prosseguir
sozinho? A seu tempo, voc desejar ardentemente
a companhia de outros da sua espcie. Precisar
saber como detect-los e como procur-los. H
respostas para essas perguntas, respostas do
Sangue Antigo, respostas que no posso lhe dar em
um dia, respostas que voc no pode compreender
em uma semana. Voc precisa dessas respostas. E
regressar por elas.
Baixei os olhos para o solo pisado do caminho
da floresta. Eu perdera toda a certeza de que no
regressaria para junto de Rolfe.
Azevinha falou suave, mas claramente de entre
as sombras.
Acredito naquilo que voc vai fazer. Desejo-
lhe sucesso, e eu o ajudaria se pudesse. Os seus
olhos saltaram para Rolfe, como se aquele fosse
um assunto que tivessem discutido, mas sobre o
qual no haviam concordado. Se estiver em
necessidade, grite, como faz com Olhos-de-Noite,
pedindo que qualquer dos do Sangue Antigo que o
oua transmita a mensagem a Azevinha e Nevinha,
de Pescoo de Corvo. Aqueles que ouvirem
podero ir em seu auxlio. Mesmo se no forem,
iro me enviar a mensagem, e eu farei o que puder.
Rolfe soltou um suspiro sbito e irritado.
Ns faremos o que pudermos emendou as
palavras dela. Mas seria mais sensato se
ficasse aqui e aprendesse primeiro a proteger-se
melhor.
Respondi s suas palavras com um aceno, mas
em privado decidi que no envolveria nenhum
deles na minha vingana contra Majestoso. Quando
ergui os olhos para Rolfe, ele deu um sorriso
enviesado e encolheu os ombros.
V, ento. Mas tenham cuidado, vocs dois.
Antes de a lua descer, vocs tero Cervo para trs
e estaro em Vara. Se acham que o Rei Majestoso
nos domina aqui, esperem at chegarem a um lugar
onde as pessoas acreditam que ele tem o direito de
fazer isso.
Respondi quilo com um aceno sombrio, e mais
uma vez Olhos-de-Noite e eu seguimos caminho.
CAPTULO 7

Vara

A Dama Pacincia, a Senhora de Torre do Cervo,


como veio a ser conhecida, subiu ao poder de
uma forma nica. Ela nascera numa famlia
nobre e era, por nascimento, uma dama. Fora
promovida posio mais elevada de Princesa
Herdeira pelo seu casamento precipitado com o
Prncipe Herdeiro Cavalaria. Nunca se impusera
em nenhuma dessas posies para tomar o poder
que o nascimento e o casamento lhe haviam
trazido. Foi apenas quando ficou s, quase
abandonada como a excntrica Dama Pacincia
em Torre do Cervo, que reuniu para si as rdeas
da influncia. Ela o fez, como fizera todas as
outras coisas na sua vida, de um modo
desorganizado e peculiar que no teria
propiciado absolutamente nada a qualquer outra
mulher.
No recorreu aos contatos da famlia nobre,
nem fez uso de contatos influentes baseados na
posio do falecido marido. Em vez disso,
comeou pelo nvel mais baixo de poder, os
chamados homens-de-armas, que eram com igual
frequncia mulheres. Os poucos que restavam da
guarda pessoal do Rei Sagaz e da guarda da
Rainha Kettricken tinham sido deixados na
peculiar posio de guardies sem nada a
guardar. A Guarda de Torre do Cervo fora
suplantada nos seus deveres pelas tropas
pessoais que Dom Brilhante trouxera consigo de
Vara, e haviam sido relegados para tarefas
menores que envolviam a limpeza e a
manuteno do castelo. Os antigos guardas eram
pagos de forma errtica, tinham perdido o
respeito entre e por si, e estavam com muita
frequncia ociosos ou ocupados com tarefas que
os rebaixavam. A Dama Pacincia, sob o pretexto
de no estarem ocupados, comeou a solicitar os
seus servios. Comeou pedindo uma guarda
quando de repente passou a sair montada no seu
velho palafrm, Seda. Cavalgadas de uma tarde
foram gradualmente se prolongando at se
transformarem em incurses de um dia inteiro e
depois em visitas de mais do que um dia a aldeias
que haviam sido atacadas ou temiam ataques.
Nas aldeias atacadas, ela e a sua aia, Renda,
faziam o que podiam pelos feridos, registravam
uma contagem dos mortos ou Forjados, e
forneciam, sob a forma da guarda que traziam,
costas fortes para ajudar na limpeza de detritos
nas ruas principais e no levantamento de abrigos
temporrios para as pessoas deixadas sem casa.
Isso, embora no constitusse um verdadeiro
trabalho para combatentes, era uma lembrana
penetrante daquilo que haviam sido treinados
para combater e do que acontecia quando no
havia defensores. A gratido do povo que
ajudavam devolvia guarda o orgulho e a
coeso interna. Nas aldeias no atacadas, a
guarda era uma pequena ostentao de fora que
mostrava que Torre do Cervo e o orgulho
Visionrio ainda existiam. Em vrias vilas e
aldeias foram erguidas paliadas improvisadas,
para trs das quais as pessoas podiam se retirar,
obtendo uma pequena chance de se defenderem
contra os Salteadores.
No h registro dos sentimentos de Dom
Brilhante com relao s incurses da Dama
Pacincia. Ela nunca declarou essas expedies
de nenhuma forma oficial. Eram os seus passeios
de prazer, os guardas que a acompanhavam
haviam se voluntariado para faz-lo, e o mesmo
acontecia com os deveres que ela lhes atribua
nas aldeias. Alguns, quando comeavam a
conquistar a sua confiana, faziam servios
para ela. Esses servios podiam envolver o
transporte de mensagens at castelos distantes
em Rasgo, Vigas e at Razos, pedindo novidades
sobre como as vilas costeiras estavam e
transmitindo notcias de Cervo; levavam os
mensageiros dela para dentro ou atravs de
territrios ocupados e eram repletos de perigos.
Seus mensageiros frequentemente recebiam um
broto da hera que ela cultivava durante todo o
ano nos seus aposentos, como smbolo a ser
apresentado aos receptores das suas mensagens
e de seu apoio. Foram escritas vrias baladas
sobre os chamados Corredores da Hera, falando
da bravura e desenvoltura que mostravam, e nos
fazendo lembrar que mesmo as maiores muralhas
tm de ceder, a seu tempo, hera trepadeira. A
faanha mais famosa talvez seja a de Amor-
Perfeito, a mais jovem entre os corredores. Aos
onze anos, viajou at onde a Duquesa de Vigas se
encontrava escondida nas Grutas de Gelo de
Vigas para lhe levar novidades sobre onde e
quando um barco com provises chegaria
praia. Durante parte dessa viagem, Amor-
Perfeito viajou sem ser descoberta entre as sacas
de cereais numa carroa requisitada pelos
Salteadores. Escapou do meio de um
acampamento de Salteadores para prosseguir
com a sua misso, mas s aps ter incendiado a
tenda na qual dormia o seu lder, em vingana
pelos pais Forjados. Amor-Perfeito no viveu
para chegar aos treze anos, mas os seus feitos
sero lembrados por muito tempo.
Outros ajudaram Pacincia a trocar as suas
joias e terras ancestrais por dinheiro, o qual
depois empregou como lhe aprouve, como era
seu direito, segundo disse uma vez a Dom
Brilhante. Comprou cereais e ovelhas do
interior, e mais uma vez os seus voluntrios
trataram do transporte e distribuio dessas
coisas. Pequenos barcos de abastecimento
levaram esperana a defensores fortificados. Fez
pagamentos simblicos a pedreiros e
carpinteiros que ajudaram a reconstruir aldeias
assoladas. E deu dinheiro, no muito, mas
acompanhado pelos seus mais sinceros
agradecimentos, queles guardas que se
voluntariavam para lhe prestar assistncia.
Quando o smbolo da Hera se tornou de uso
comum entre a Guarda de Torre do Cervo, isso
s serviu para reconhecer algo que j era um
fato. Aqueles homens e mulheres eram a guarda
da Dama Pacincia, pagos por ela quando
chegavam a ser pagos, mas, o que era mais
importante para eles, apreciados e utilizados por
ela, tratados por ela quando eram feridos e
ferozmente defendidos pela sua lngua cida
contra qualquer um que falasse deles com
desdm. Foram eles a fundao da sua influncia
e a base da fora que veio a possuir. Uma torre
raramente desmorona de baixo para cima, disse
ela mais de uma vez, e afirmou ter ouvido o dito
do Prncipe Cavalaria.

Tnhamos dormido bem e as nossas barrigas


estavam cheias. Sem necessidade de caar,
viajamos a noite inteira. Permanecemos longe da
estrada e fomos muito mais cautelosos do que
tnhamos sido at a, mas no encontramos nenhum
Forjado. Uma grande lua branca nos prateou um
caminho por entre as rvores. Ns nos movamos
como uma s criatura, quase sem pensar, exceto
para catalogar os odores que encontrvamos e os
sons que ouvamos. A glida determinao que
tomara conta de mim infectara tambm Olhos-de-
Noite. No queria lhe anunciar descuidadamente o
meu desgnio, mas podamos pensar nele sem nos
concentrarmos nele. Era um tipo diferente de
impulso de caa, alimentado por um tipo diferente
de fome. Nessa noite deixamos milhas para trs
sob o olhar perscrutador da lua.
Havia uma lgica de soldado naquilo, uma
estratgia que Veracidade teria aprovado. Vontade
sabia que eu estava vivo. Eu no sabia se ele iria
revelar isso aos outros membros do crculo, ou
mesmo a Majestoso. Suspeitava de que ele estava
ansioso para sugar a minha fora de Talento da
mesma forma que Justino e Serena haviam sugado
a do Rei Sagaz. Suspeitava de que haveria um
xtase obsceno com tal roubo de poder, e de que
Vontade desejaria sabore-lo sozinho. Tambm me
sentia bastante seguro de que ele iria me procurar,
determinado a me fazer sair de onde quer que eu
estivesse escondido. Vontade tambm sabia que eu
sentia pavor dele. Ele no esperaria que eu fosse
direto na sua direo, determinado no s a mat-
lo e o crculo, mas tambm Majestoso. A minha
rpida marcha para Vaudefeira poderia ser a
melhor estratgia para me manter escondido dele.
A reputao de Vara de ser to aberta quanto
Cervo escarpado e arborizado. Aquela primeira
alvorada nos encontrou uma espcie de floresta
que no nos era familiar, mais aberta e decdua.
Deitamo-nos para passar o dia numa pequena mata
de btulas numa colina pouco ngreme com vista
para pasto aberto. Pela primeira vez desde o
combate, tirei a camisa e examinei o ombro luz
do dia, onde o porrete me atingira. Estava preto e
azul, e doa se tentasse erguer o brao acima da
cabea. Mas era tudo. Pouco importante. Trs anos
antes, eu o consideraria um ferimento srio. Eu o
teria banhado em gua fria e o teria coberto com
uma cataplasma de ervas para apressar a cura.
Agora, embora me deixasse o ombro inteiro de cor
prpura e me desse pontadas sempre que o mexia,
era apenas um hematoma, e deixei que sarasse
sozinho. Dei um sorriso irnico para mim mesmo
enquanto voltava a vestir a camisa.
Olhos-de-Noite no se mostrou paciente quando
eu examinei o corte no seu ombro. Estava
comeando a fechar. Quando afastei o pelo das
bordas do corte, ele virou-se subitamente para trs
e agarrou meu pulso com os dentes. No com
dureza, mas firmemente.
Deixe isso em paz. Ir curar.
H sujeira l dentro.
Ele farejou a ferida e lhe deu uma lambida
pensativa. No muita.
Deixe-me ver a ferida.
Voc nunca apenas v. Voc cutuca.
Ento fique quieto e me deixe cutuc-la.
Ele consentiu, mas sem graciosidade. Havia
pedaos de capim enfiados no ferimento que
tinham de ser arrancados de l. Ele agarrou meu
pulso mais de uma vez. Por fim, me deu um
rosnado profundo que fez com que eu soubesse que
ele j havia tido o suficiente. Eu no estava
satisfeito. Foi com dificuldade que ele tolerou que
eu pusesse um pouco do unguento de Bronco no
corte.
Voc se preocupa demais com essas coisas ,
informou-me ele num tom irritvel.
Detesto que voc esteja ferido por minha
causa. No est certo. Esse no o tipo de vida
que um lobo devia levar. Voc no devia estar
sozinho, vagando de lugar em lugar. Devia estar
com uma alcateia, caando no seu territrio,
talvez arranjando um dia uma parceira.
Um dia um dia, e isso talvez acontea, ou
talvez no acontea. Isso coisa de homem,
preocupar-se com coisas que podem ou no vir a
acontecer. No se pode comer a carne at mat-
la. E alm do mais, eu no estou sozinho.
Estamos juntos.
Isso verdade. Estamos juntos. Deitei-me ao
lado de Olhos-de-Noite para dormir.
Pensei em Moli. Afastei-a resoluto da cabea e
tentei dormir. No consegui. Remexi-me irrequieto
at que Olhos-de-Noite rosnou, levantou-se,
afastou-se de mim e voltou a deitar. Eu fiquei
sentado durante algum tempo, olhando para um
vale arborizado. Sabia que estava perto de uma
deciso tola. Recusei-me a considerar o quo
completamente tola e imprudente ela era. Respirei
fundo, fechei os olhos e sondei na direo de
Moli.
A possibilidade de encontr-la nos braos de
outro homem me horrorizara. Temera a ideia de
ouvi-la falando de mim com desprezo. Mas, em
vez disso, no consegui encontr-la. Concentrei os
meus pensamentos inmeras vezes, convoquei
todas as minhas energias e sondei na sua direo.
Fui finalmente recompensado com uma imagem de
Talento de Bronco cobrindo de colmo o telhado de
uma cabana. Estava sem camisa e o sol de vero
escurecera-o at deix-lo da cor da madeira
polida. Suor lhe escorria pela nuca. Ele olhou para
algum que se encontrava mais abaixo e um
aborrecimento lhe surgiu no rosto.
Eu sei, senhora. Podia faz-lo sozinha, muito
obrigado. Tambm sei que j tenho preocupaes
suficientes sem temer que vocs caiam daqui.
Arquejei de esforo em algum lugar e fiquei
consciente do meu prprio corpo mais uma vez.
Empurrei-me para longe e sondei na direo de
Bronco. Pelo menos faria com que soubesse que eu
estava vivo. Consegui encontr-lo, mas o vi
atravs de um nevoeiro.
Bronco! chamei. Bronco, Fitz!
Mas a sua mente estava fechada e trancada para
mim; no consegui apanhar nem mesmo um reflexo
dos seus pensamentos. Amaldioei a minha
capacidade errtica para o Talento e voltei a
sondar na direo das nuvens rodopiantes.
Veracidade estava diante de mim, de braos
cruzados sobre o peito, sacudindo a cabea. A sua
voz no era mais forte do que um sussurro de
vento, e ele estava to imvel que eu mal podia
v-lo. Contudo, senti que ele usava grande fora
para me contactar.
No faa isso, garoto avisou-me em voz
baixa. S ir se machucar. E de sbito me vi
num lugar diferente. Ele estava encostado em um
grande bloco de pedra preta e o seu rosto
mostrava-se enrugado de cansao. Veracidade
esfregou as tmporas como se sentisse dores.
Eu tambm no devia estar fazendo isto. Mas s
vezes anseio tanto por Enfim. No ligue. Mas
saiba disto. H coisas que melhor no saber, e os
riscos de usar o Talento neste momento so
grandes demais. Se eu posso sentir e encontrar
voc, outro tambm pode. Ele o atacar de todas
as maneiras que puder. No chame a sua ateno
para eles. No ter escrpulos em us-los contra
voc. Desista deles para proteg-los. De
repente, ele pareceu um pouco mais forte. Deu um
sorriso amargo. Eu sei o que significa fazer
isso, desistir deles para mant-los em segurana.
O seu pai tambm sabia. Voc tem a fora
necessria. Desista de tudo, garoto. Apenas venha
at mim. Se ainda estiver inclinado a faz-lo.
Venha at mim, e eu lhe mostrarei o que pode ser
feito.
Acordei ao meio-dia. O sol batendo em cheio no
meu rosto me dera uma dor de cabea, e eu me
senti ligeiramente abalado com ela. Acendi uma
fogueira minscula, com a inteno de fazer um
pouco de ch de casco-de-elfo para me acalmar.
Forcei-me a ser frugal com as minhas reservas,
usando apenas um pedao pequeno de casca e
complementando com urtigas. No esperara
precisar do ch com tanta frequncia. Suspeitava
de que devia conserv-lo; poderia precisar dele
depois de enfrentar o crculo de Majestoso. Ora,
esse era um pensamento otimista. Olhos-de-Noite
abriu os olhos para me observar por um momento
e depois voltou a adormecer. Sentei-me
bebericando o meu ch amargo e olhando a
paisagem. O sonho bizarro me deixara com
saudades de um tempo e lugar em que as pessoas
haviam gostado de mim. Eu deixara tudo isso para
trs. Bem, no inteiramente. Sentei-me ao lado de
Olhos-de-Noite e botei uma mo no ombro do
lobo. Estremeceu a pelagem ao toque. V dormir,
disse-me, rabugento.
Voc tudo o que eu tenho, disse-lhe, cheio de
melancolia.
Ele deu um bocejo ocioso. E sou tudo do que
voc precisa. Agora v dormir. Dormir coisa
sria, disse-me com gravidade. Sorri e voltei a me
estender ao lado do meu lobo, com uma mo
pousada na sua pelagem. Ele radiou o
contentamento simples de uma barriga cheia e de
dormir ao sol tpido. Ele tinha razo. Era algo que
valia a pena levar a srio. Fechei os olhos e passei
o resto do dia dormindo sem sonhos.
Nos dias e noites que se seguiram, a natureza da
paisagem mudou para florestas abertas
entrecortadas por largas pradarias. Pomares e
searas rodeavam as vilas. Uma vez, h muito
tempo, viajei por Vara. Na ocasio eu estava com
uma caravana e viajamos atravs dos campos em
vez de seguir o rio. Eu era um jovem assassino
confiante a caminho de um assassinato importante.
Essa viagem acabou na minha primeira
experincia verdadeira do carter traioeiro de
Majestoso. Quase no sobrevivi. Agora viajava de
novo por Vara, na expectativa de um assassinato
no fim da viagem. Porm, desta vez eu seguia
sozinho e ao longo do rio, o homem que iria matar
era o meu prprio tio e o assassinato era por
ordens minhas. s vezes eu achava isso
profundamente satisfatrio. Outras vezes, achava
assustador.
Mantive a promessa feita a mim mesmo e evitei
diligentemente a companhia humana. Seguamos
pela estrada e ao longo do rio, mas quando
chegvamos a povoaes, ns as contornvamos
de longe. Isso era mais difcil de fazer do que se
poderia imaginar num territrio to aberto. Evitar
um vilarejo qualquer em Cervo, situada em uma
curva do rio e rodeada por bosques cerrados, fora
uma coisa. Atravessar searas ou nos esgueirarmos
atravs de pomares sem despertar os ces ou o
interesse de ningum era outra. At certo ponto, eu
era capaz de garantir aos ces que no
pretendamos nenhum mal. Se os ces fossem
crdulos. A maior parte dos ces de fazenda
possui uma desconfiana dos lobos que nenhuma
quantidade de garantias era capaz de acalmar. E os
ces mais velhos eram propensos a ver com maus
olhos qualquer ser humano que viajasse na
companhia de um lobo. Fomos perseguidos mais
de uma vez. A Manha podia me dar a capacidade
de me comunicar com alguns animais, mas no
garantia que me dariam ouvidos, ou que
acreditariam no que lhes dissesse. Os ces no so
estpidos.
Caar naquelas reas abertas tambm era
diferente. A maior parte da caa pequena era do
tipo que faz tocas e vive em grupos, e os animais
maiores simplesmente corriam mais do que ns
pelas longas extenses planas de terra. Tempo
passado caando era tempo que no era passado
viajando. Ocasionalmente, eu descobria
galinheiros que no estavam guardados e me
enfiava neles em silncio para roubar ovos das
aves adormecidas. No sentia escrpulos em
surrupiar ameixas e cerejas dos pomares pelos
quais passvamos. A nossa presa mais fortuita foi
um jovem e ignorante haragar, um dos sunos de
pernas longas que alguns dos povos nmades
criavam como animal para abate. No
questionamos de onde aquele se extraviara. Com
presa e espada, conseguimos abat-lo. Deixei que
Olhos-de-Noite se empanturrasse at no mais
poder naquela noite, e depois o aborreci por cortar
o resto da carne em faixas e postas que sequei ao
sol sobre uma fogueira pouco intensa. Precisei da
maior parte de um dia antes de estar convencido
de que a carne gordurosa estava suficientemente
seca para aguentar bem, mas nos dias seguintes
viajamos mais depressa por causa dela. Quando os
animais apareciam, cavamos e matvamos, mas
quando no o faziam, tnhamos o haragar defumado
ao qual recorrer.
E assim seguimos o Rio Cervo para noroeste.
Quando nos aproximamos da substancial cidade
mercantil de Lago Bode, ns nos desviamos muito
dela, e durante algum tempo nos orientamos apenas
pelas estrelas. Aquilo era muito mais do agrado de
Olhos-de-Noite, pois nos levava a atravessar
plancies atapetadas com capim seco e junosos
naquela poca do ano. Vamos frequentemente
manadas distncia, ou rebanhos de ovelhas ou
cabras, e, com pouca frequncia, haragares. O meu
contato com os nmades que seguiam esses
animais limitou-se a vislumbres deles a cavalo, ou
a ver as suas fogueiras delineando as tendas
cnicas que preferiam quando se instalavam por
uma ou duas noites.
Fomos de novo lobos nessas longas noites de
trote. Eu havia revertido mais uma vez, mas estava
consciente disso e disse a mim mesmo que,
enquanto o estivesse, pouco mal me faria. Em
verdade, acreditava que me fazia bem. Se eu
estivesse viajando com outro ser humano, a vida
teria sido complicada. Teramos discutido rotas,
provises e tticas para quando chegssemos a
Vaudefeira. Mas o lobo e eu simplesmente
avanvamos a trote, noite aps noite, e a nossa
existncia era to simples quanto a vida podia ser.
A camaradagem entre ns aprofundou-se cada vez
mais.
As palavras de Rolfe Negro haviam calado
fundo em mim e me haviam dado muito em que
pensar. Sob certos aspectos, eu tomara Olhos-de-
Noite e o vnculo entre ns como algo certo. Ele j
fora um filhote, mas agora era meu igual. E meu
amigo. H quem diga um co ou um cavalo,
como se todos eles fossem iguais uns aos outros.
Eu ouvira um homem chamar uma gua de que era
dono h sete anos de aquilo, como se estivesse
falando de uma cadeira. Nunca compreendi tal
atitude. No preciso ser Manhoso para conhecer
o companheirismo de um animal e saber que a sua
amizade to rica e complicada quanto a de um
homem ou de uma mulher. Narigudo fora um co
amigvel, inquisitivo e infantil quando era meu.
Ferreirinho fora duro e agressivo, inclinado a
intimidar qualquer um que lhe cedesse, e o seu
sentido de humor possura uma aresta cortante.
Olhos-de-Noite era to diferente deles como era
diferente de Bronco ou Breu. No qualquer
desrespeito para nenhum deles dizer que eu era
mais prximo do lobo.
Ele no sabia contar. Mas eu no era capaz de
distinguir o odor de veado no ar e dizer se era de
um macho ou de uma fmea. Se ele no conseguia
fazer planos para alm do dia depois de amanh,
eu tampouco possua a feroz concentrao que ele
podia aplicar a uma perseguio. Havia diferenas
entre ns; nenhum dos dois reclamava
superioridade. Nenhum dava uma ordem ao outro,
ou esperava do outro uma obedincia
incondicional. As minhas mos eram coisas teis
para remover cerdas de porco-espinho, carrapatos
e espinhos e para coar pontos particularmente
comichosos e difceis de alcanar no seu dorso. A
minha altura me dava uma certa vantagem em
avistar caa e em vigiar o terreno. Por isso,
mesmo quando ele se apiedava de mim por causa
dos meus dentes de vaca e pobre viso noturna,
e um nariz ao qual se referia como uma
protuberncia adormecida entre os meus olhos, ele
no me olhava com menosprezo. Ambos sabamos
que a sua habilidade para a caa era responsvel
pela maior parte da carne que comamos. Mas ele
nunca me recusara uma parte igual. Encontrem isso
num homem, se puderem.
Senta, co! disse-lhe uma vez, brincando.
Estava esfolando cautelosamente um porco-
espinho que eu havia matado com um porrete
depois de Olhos-de-Noite ter insistido em
persegui-lo. Na sua avidez de chegar carne, ele
estava prestes a nos encher de cerdas. Sentou-se
com um tremor impaciente nos quartos traseiros.
Por que os homens falam assim?, perguntou
enquanto eu puxava com cuidado a beira da pele
espinhosa.
Como?
Dando ordens. O que d a um homem o direito
de dar ordens a um co, se no so alcateia?
Alguns so alcateia, ou quase eu disse em
voz alta, pensativo. Puxei a pele com fora,
segurando-a por uma aba de pelo da barriga, onde
no havia cerdas, e cortando ao longo do
tegumento exposto. A pele fez um som de rasgo
enquanto se soltava da carne gordurosa. H
homens que pensam que tm esse direito
prossegui depois de um momento.
Por qu?, insistiu Olhos-de-Noite.
Fiquei surpreso por nunca ter pensado nisso
antes.
H homens que pensam que so melhores do
que os animais respondi lentamente. Que
tm o direito de us-los ou comand-los de
qualquer forma que quiserem.
Voc pensa assim?
No respondi logo. Manejei a lmina ao longo
da linha entre a pele e a gordura, mantendo um
puxo constante na pele enquanto contornava o
ombro do animal. Eu montava um cavalo quando o
tinha, no montava? Seria porque era melhor do
que o cavalo que eu o dobrara minha vontade?
Usara ces para caar por mim, e de vez em
quando falces. Que direito eu tinha de comand-
los? E ali estava eu, arrancando a pele de um
porco-espinho para com-lo. Falei lentamente.
Somos melhores do que este porco-espinho
que estamos prestes a comer? Ou ser apenas o
caso de termos levado a melhor sobre ele hoje?
Olhos-de-Noite inclinou a cabea, observando a
minha faca e as mos que limpavam carne para
ele. Eu acho que sou sempre mais esperto do que
um porco-espinho. Mas no melhor. Talvez o
matemos e comamos porque podemos. Assim
como, e esticou languidamente as patas da frente,
assim como eu tenho um humano bem treinado
para esfolar estas coisas espinhosas por mim,
para que eu possa sabore-las melhor. Botou a
lngua de fora para mim, e ambos sabamos que
aquilo era s parte da resposta ao quebra-cabeas.
Passei a faca ao longo da coluna do porco-
espinho, e a pele ficou finalmente solta.
Eu devia fazer uma fogueira e me ver livre de
um pouco desta gordura antes de com-la eu
disse num tom pensativo. Caso contrrio, vou
ficar indisposto.
Apenas d a minha parte e faa o que quiser
com a sua, instruiu-me Olhos-de-Noite com
arrogncia. Eu cortei em volta das patas de trs, e
ento soltei as articulaes e cortei os tendes que
as prendiam. Era carne mais do que suficiente para
mim. Deixei-as na pele do porco-espinho enquanto
Olhos-de-Noite arrastava a sua parte para longe.
Acendi uma pequena fogueira enquanto ele
esmagava ossos e enfiei as pernas num espeto para
cozinh-las.
No penso que sou melhor do que voc eu
disse em voz baixa. Realmente no acho que eu
seja melhor do que qualquer animal. Embora,
como voc diz, eu seja mais esperto do que alguns.
Porcos-espinhos, talvez, observou ele com
benevolncia. Mas um lobo? Acho que no.
Viemos a conhecer cada nuance do
comportamento do outro. Por vezes ramos
ferozmente competentes na caa, descobrindo a
mais intensa alegria numa perseguio e numa
matana, movendo-nos com propsito e perigo
pelo mundo. Em outras vezes brigvamos como
cachorrinhos, empurrando um ao outro para fora
do caminho, para dentro dos arbustos, beliscando-
nos e nos mordiscando enquanto avanvamos,
assustando a caa antes mesmo de chegarmos a v-
la. Havia dias em que passvamos cochilando as
horas do fim da tarde antes de nos levantarmos
para caar e depois viajar, com o sol quente nas
barrigas ou nas costas, e os insetos zumbindo num
som que era como o prprio sono. Ento o grande
lobo podia rolar e ficar de costas como um filhote,
suplicando-me que lhe coasse a barriga e
examinasse as orelhas em busca de carrapatos e
pulgas, ou simplesmente que o coasse todo em
volta da garganta e pescoo. Nas manhs glidas e
brumosas, enrolvamo-nos junto um do outro para
encontrar algum calor antes de dormir. s vezes eu
era acordado por um focinho frio que se espetava
rudemente no meu nariz; quando tentava me sentar,
eu descobria que ele estava deliberadamente em
cima do meu cabelo, prendendo minha cabea
terra. Em outros momentos eu podia acordar
sozinho e descobria Olhos-de-Noite sentado a
alguma distncia, observando a paisagem
circundante. Lembro-me de v-lo assim, uma
silhueta contra o pr do sol. A ligeira brisa da
noite lhe agitava a pelagem. As suas orelhas
estavam empinadas para a frente e o seu olhar
perdia-se na distncia longnqua. Nesse momento
senti nele uma solido que nada vindo de mim
poderia alguma vez remediar. Senti-me humilde, e
deixei-o em paz, sem sequer sondar na sua
direo. Em certos aspectos, para ele, eu no era
melhor do que um lobo.
Depois de evitarmos Lago Bode e as vilas
circundantes, voltamos a virar para o norte, a fim
de chegarmos ao Rio Vim. Era to diferente do
Rio Cervo quanto uma vaca de um garanho.
Cinzento e plcido, deslizava entre campos
abertos, oscilando de um lado para o outro no seu
largo canal pedregoso. De um dos lados do rio,
havia uma trilha que seguia mais ou menos
paralela gua, mas a maior parte do trfego que
seguia por ela era composta por cabras e gado
bovino. Conseguamos sempre ouvir quando um
rebanho ou manada estavam sendo deslocados, e
era com facilidade que os evitvamos. O Vim no
era um rio to navegvel quanto o Cervo, visto ser
menos profundo e dado a apresentar bancos
mveis de areia, mas havia nele algum comrcio
fluvial. Do lado do Vim que pertencia a Lavra,
havia uma estrada muito usada e aldeias
frequentes, e at mesmo vilas. Vimos barcaas
sendo puxadas rio acima por parelhas de mulas ao
longo de certos trechos; deduzi que tal carga teria
de ser transportada para alm dos baixios. Os
povoados do nosso lado do rio pareciam limitados
a desembarcadouros e pouco frequentes
entrepostos comerciais para os pastores nmades.
Podiam apresentar uma estalagem, algumas lojas e
um punhado de casas agarradas aos arredores, mas
no passavam muito disso. Olhos-de-Noite e eu os
evitamos. As poucas aldeias que encontramos do
nosso lado do rio estavam desertas naquela poca
do ano.
Os pastores nmades, que viviam em tendas
durante os meses mais quentes, pastoreavam agora
as suas manadas nas plancies centrais,
deslocando-se calmamente de poo em poo
atravs das ricas terras de pastagem. O capim
crescia nas ruas das aldeias e nas paredes das
casas de adobe. Havia uma paz naqueles povoados
abandonados, e no entanto o vazio continuava a me
lembrar uma aldeia assolada. Nunca nos
demorvamos perto delas.
Ambos nos tornamos mais esguios e mais fortes.
Os meus sapatos ganharam buracos e tive de
remend-los com couro cru. Os tornozelos das
calas ficaram esfarrapados e fiz uma nova bainha
na barriga da perna. Cansei-me de lavar a camisa
com tanta frequncia; o sangue dos Forjados e das
nossas presas tinham deixado a parte da frente e os
punhos salpicados de castanho. Estava to
remendada e esfarrapada quanto a camisa de um
mendigo, e a cor irregular tornava-a ainda mais
pattica. Um dia a enfiei na trouxa e passei a andar
sem camisa. Os dias estavam suficientemente bons
para no sentir a sua falta, e durante as noites mais
frescas ns viajvamos e o meu corpo produzia o
seu prprio calor. O sol me deixou quase to
escuro quanto o meu lobo. Fisicamente, sentia-me
bem. No estava to forte como fora quando
remava e combatia, nem to musculoso. Porm,
sentia-me saudvel, gil e esguio. Conseguia
seguir a noite inteira a trote ao lado de um lobo
sem ficar cansado. Eu era um animal rpido e
furtivo, e comprovei vrias vezes a mim mesmo a
minha capacidade de sobrevivncia. Voltei a
ganhar uma boa parte da confiana que Majestoso
destrura. No que o meu corpo tivesse perdoado e
esquecido tudo o que Majestoso lhe fizera, mas eu
me adaptara s suas pontadas e cicatrizes. Quase
deixara a masmorra para trs. Eu no permitia que
o meu negro objetivo cobrisse de sombras aqueles
dias dourados. Era tudo to simples e bom que me
esqueci de lhe dar valor. At que o perdi.
Tnhamos chegado ao rio enquanto a tarde
escurecia, com a inteno de bebermos bem antes
de darmos incio viagem da noite. Mas, quando
nos aproximamos, Olhos-de-Noite estacou de
sbito, caindo de barriga no solo enquanto
inclinava as orelhas para frente. Segui o seu
exemplo, e ento at o meu nariz embotado
apanhou um odor que no me era familiar. O qu e
onde?, perguntei-lhe.
Vi-os antes de ele ter tempo de responder.
Minsculos veados, pisando com elegncia
enquanto desciam para a gua. No eram muito
mais altos do que Olhos-de-Noite, e em vez de
galhadas tinham chifres em espiral semelhantes
aos das cabras, que brilhavam num negro lustroso
luz da lua cheia. Conhecia tais criaturas apenas
de um velho bestirio que Breu possua, e no me
conseguia lembrar do nome que lhes era adequado.
Comida?, sugeriu Olhos-de-Noite de forma
sucinta, e eu concordei de imediato. A trilha que
eles seguiam os traria at a distncia de um salto e
um pulo de ns. Olhos-de-Noite e eu mantivemos
as nossas posies, espera. Os veados
aproximaram-se mais, uma dzia deles,
apressando-se, e agora descuidados, depois de
sentirem o odor da gua. Deixamos passar o da
frente, esperando saltar sobre o corpo principal da
manada onde estavam mais prximos uns dos
outros. Mas no momento em que Olhos-de-Noite
se preparava com um tremor para saltar, um longo
uivo trmulo deslizou pela noite. Olhos-de-Noite
sentou-se, soltando involuntariamente um ganido
ansioso. Os veados espalharam-se numa exploso
de cascos e chifres, fugindo de ns apesar de
estarmos ambos distrados demais para persegui-
los. A nossa refeio transformou-se de repente
num ligeiro trovo distante. Olhei-os desalentado,
mas Olhos-de-Noite nem pareceu reparar.
De boca aberta, Olhos-de-Noite fazia sons que
eram algo entre um uivo e um lamento, com as
mandbulas tremendo e mexendo-se como se ele se
esforasse para se lembrar de como se falava. O
sobressalto que eu sentira nele quando ouvira o
distante uivo do lobo fizera meu corao saltar no
peito. Se a minha me tivesse me chamado
subitamente do seio da noite, o choque no poderia
ter sido maior. Uivos e latidos de resposta
irromperam de uma leve elevao ao norte de ns.
O primeiro lobo juntou-se a eles. A cabea de
Olhos-de-Noite girou de um lado para o outro
enquanto ele soltava ganidos baixos e guturais. De
repente, atirou a cabea para trs e soltou um uivo
irregular. Um silncio sbito seguiu-se sua
declarao, ento a alcateia voltou a ser ouvida,
no num grito de caa, mas num anncio de quem
era.
Olhos-de-Noite me lanou um rpido olhar de
desculpa, e partiu. Incrdulo, vi-o correr na
direo da elevao. Aps um instante de espanto,
levantei-me de um salto e o segui. Ele j estava a
uma distncia considervel, mas quando tomou
conscincia de mim, diminuiu a velocidade, e
ento se virou para me encarar.
Tenho de ir sozinho, disse-me, muito srio.
Espere por mim aqui. Rodopiou sobre si mesmo
para continuar a sua viagem.
Fui tomado pelo pnico. Espere! No pode ir
sozinho. Eles no so alcateia. Ns somos
intrusos, eles vo atac-lo. melhor que no v.
Tenho de ir!, repetiu. Era impossvel no ver a
sua determinao. Afastou-se a trote.
Corri atrs dele. Olhos-de-Noite, por favor!
Senti-me de sbito aterrorizado por ele, por aquilo
para que ele estava correndo com tal obsesso.
Ele fez uma pausa e me olhou, prendendo os
olhos nos meus naquilo que era um olhar de lobo
muito longo. Voc compreende. Sabe que sim.
Agora a hora para voc ter a confiana que eu
tive. Isto uma coisa que eu tenho de fazer. E
tenho de faz-la sozinho.
E se voc no voltar?, perguntei, em sbito
desespero.
Voc voltou da sua visita vila. E eu voltarei
para voc. Continue viajando ao longo do rio. Eu
o encontrarei. Agora v. Volte.
Parei de trotar atrs dele. Ele continuou a
avanar. Tenha cuidado!, atirei a splica atrs
dele, a minha maneira de uivar noite. Depois
fiquei parado vendo-o trotar para longe de mim,
com os msculos poderosos ondulando sob a sua
profunda pelagem, a cauda esticada com
determinao. Precisei de todas as minhas foras
para me abster de lhe gritar que voltasse, de lhe
suplicar que no me deixasse sozinho. Fiquei
sozinho, arquejando da corrida, e o vi desaparecer
ao longe. Estava to absorto na sua busca que me
senti trancado do lado de fora e posto de lado.
Pela primeira vez experimentei o ressentimento e
cime que ele sentira durante as minhas sesses
com Veracidade, ou quando eu estivera com Moli
e lhe ordenara que se mantivesse afastado dos
meus pensamentos.
Aquele era o seu primeiro contato adulto com a
sua prpria espcie. Eu compreendia a sua
necessidade de procur-los e ver o que eles eram,
mesmo se o atacassem e expulsassem. Estava
certo. Mas todos os medos que sentia por ele me
ganiam que eu corresse atrs dele, para estar ao
seu lado no caso de ser atacado, para estar pelo
menos ao alcance se ele precisasse de mim.
Mas ele me pedira para no faz-lo.
No. Ele me dissera para no faz-lo. Dissera-
me, exercendo o mesmo privilgio de
individualidade que eu exercera com ele. Senti que
me dilacerava o corao dentro do peito lhe virar
as costas e voltar para junto do rio. Senti-me de
sbito meio cego. Ele no estava trotando ao meu
lado e minha frente, transmitindo as suas
informaes para complementar o que os meus
sentidos menos penetrantes me forneciam. Em vez
disso, conseguia senti-lo distncia. Senti a
vibrao de antecipao, medo e curiosidade que
o sacudia. Ele estava absorvido demais na sua
vida no momento para partilhar comigo. De
repente, perguntei-me se aquilo seria semelhante
ao que Veracidade sentia quando eu estava no
Rurisk atormentando os Salteadores enquanto ele
tinha de permanecer sentado na sua torre e
contentar-se com a informao que conseguisse
obter de mim. Eu lhe fizera relatrios muito mais
completos, fizera um esforo consciente para
manter um fluxo de informaes at ele. Mas,
apesar disso, ele deve ter sentido um pouco dessa
excluso de partir o corao que agora me deixava
doente.
Cheguei margem do rio. Parei ali para me
sentar e esperar por ele. Ele dissera que voltaria.
Estendi o olhar por sobre a escurido da gua em
movimento. Sentia a vida pequena dentro de mim.
Lentamente, virei-me para olhar rio acima. Toda a
disposio para caar fugira com Olhos-de-Noite.
Fiquei sentado e esperei durante muito tempo.
Por fim, levantei-me e continuei a avanar atravs
da noite, prestando pouca ateno a mim mesmo e
quilo que me rodeava. Caminhei em silncio pela
margem arenosa do rio, acompanhado pela
quietude das guas.
Em algum lugar, Olhos-de-Noite sentiu o cheiro
de outros lobos, sentiu-o limpo e forte, bem o
suficiente para saber quantos eram e de que sexos.
Em algum lugar, mostrou-se a eles, de uma forma
que no era ameaadora, sem entrar na sua
companhia, mas simplesmente lhes anunciando que
estava ali. Observaram-no durante algum tempo. O
grande macho da alcateia avanou e urinou num
tufo de capim. Em seguida fez sulcos profundos
com as garras das patas traseiras enquanto atirava
terra sobre o tufo. Uma fmea levantou-se,
espreguiou-se e bocejou, e ento se sentou,
olhando-o com cime. Dois filhotes meio
crescidos pararam de se morder um ao outro o
tempo suficiente para examin-lo. Um deles
comeou a dirigir-se at ele, mas um rosnado
baixo da me fez com que corresse de volta. O
filhote voltou a mordiscar o irmo. E Olhos-de-
Noite sentou-se sobre os quartos traseiros, um ato
que mostrava que ele no pretendia fazer nenhum
mal e que permitia que olhassem para ele. Uma
fmea jovem e muito magra soltou um meio ganido
hesitante, ento o interrompeu com um espirro.
Passado algum tempo, a maior parte dos lobos
levantou-se e partiu junta, com um ar determinado.
Para a caa. A fmea magra ficou com os filhotes,
vigiando-as enquanto os outros partiam. Olhos-de-
Noite hesitou, mas depois seguiu a alcateia a uma
distncia discreta. De tempos em tempos, um dos
lobos o olhava de relance. O macho principal
parava frequentemente para urinar e arranhar o
cho com as patas de trs.
Quanto a mim, continuei a andar junto ao rio,
vendo a noite envelhecer minha volta. A lua
realizou a sua lenta passagem pelo cu noturno.
Tirei carne seca da trouxa e mastiguei-a enquanto
caminhava, parando uma vez para beber a gua
calcria. O rio virara na minha direo no seu
leito pedregoso. Fui forado a abandonar a
margem e subir para um talude onde as plantas
cresciam em tufos. Quando a alvorada criou um
horizonte, olhei ao redor em busca de um lugar
para dormir. Decidi-me por uma elevao um
pouco mais alta, na margem do rio, e me encolhi
entre o capim spero. Ficaria invisvel, a menos
que algum quase pisasse em mim. Era um lugar
to seguro quanto qualquer outro.
Senti-me muito s.
No dormi bem. Uma parte de mim continuava
observando outros lobos, ainda distncia. Eles
estavam to conscientes de mim como eu deles.
No tinham me aceitado, mas tambm no haviam
me expulsado. No me aproximara o suficiente
para for-los a tomar uma deciso a meu respeito.
Vira-os matar um macho de um tipo de veado que
eu no conhecia. Parecia pequeno para alimentar
todos eles. Estava com fome, mas no tanta que j
precisasse caar. A minha curiosidade a respeito
daquela alcateia era uma fome mais premente.
Sentei-me e os observei enquanto se estendiam e
adormeciam.
Os meus sonhos afastaram-se de Olhos-de-
Noite. Experimentei o conhecimento desarticulado
de que estava sonhando, mas incapaz de acordar.
Algo me chamava, puxando-me com uma terrvel
urgncia. Respondi aos chamamentos, relutante,
mas incapaz de recusar. Descobri outro dia em
outro lugar e fumaa e gritos doentiamente
familiares, que se erguiam juntos para o cu azul
beira do oceano. Outra povoao em Vigas estava
enfrentando e caindo diante dos Salteadores. Mais
uma vez fui exigido como testemunha. Naquela
noite, e em quase todas as noites que se seguiram,
a guerra com os Navios Vermelhos foi de novo
imposta sobre mim.
Essa batalha e cada uma das outras que se
seguiram esto gravadas a fogo em algum lugar no
meu corao, em detalhes implacveis. Odores,
sons e texturas, vivi todos. Algo em mim estava
escuta, e cada vez que eu dormia me arrastava
impiedosamente para onde o povo dos Seis
Ducados lutava e morria pelas suas casas.
Acabaria por experimentar mais da queda de
Vigas do que qualquer pessoa que realmente
vivesse nesse ducado. Pois, dia a dia, sempre que
tentasse dormir, podia a qualquer momento ser
chamado como testemunha. No vejo qualquer
lgica em tal coisa. possvel que a inclinao
para o Talento existisse adormecida em muitas das
pessoas dos Seis Ducados, e, quando confrontadas
com a morte e a dor, elas chamassem por
Veracidade e por mim com vozes que no sabiam
que possuam. Mais de uma vez senti o meu rei
tambm caminhando por vilas atormentadas pelo
pesadelo, embora nunca mais o tenha visto to
claramente como da primeira vez. Mais tarde,
viria a recordar que partilhara em sonhos um
momento com o Rei Sagaz, quando ele tambm
fora chamado a testemunhar a queda de Baa
Lodosa. Desde ento perguntei frequentemente a
mim mesmo com que frequncia teria ele sido
atormentado por testemunhar os ataques a
povoaes que era impotente para proteger.
Uma parte de mim sabia que eu estava dormindo
junto ao Rio Vim, longe daquela tumultuosa
batalha, rodeado por altos capins fluviais e
atingido por um vento limpo. No parecia
importante. O que importava era a sbita realidade
das batalhas em curso que os Seis Ducados
enfrentavam contra os Salteadores. Esta pequena
aldeia sem nome em Vigas era provavelmente
desprovida de grande importncia estratgica, mas
estava caindo enquanto eu observava, um tijolo
mais a desfazer-se na muralha. Depois de os
Salteadores possurem a costa de Vigas, os Seis
Ducados nunca mais se livrariam deles. E eles
estavam tomando essa costa, vila a vila, aldeia a
aldeia, enquanto o antigo rei se abrigava em
Vaudefeira. A realidade da nossa luta contra os
Navios Vermelhos fora iminente e premente
enquanto eu remava no Rurisk. Ao longo dos
ltimos meses, separado e isolado da guerra,
permitira-me esquecer o povo que vivia esse
conflito todos os dias. Fora to insensvel quanto
Majestoso.
Por fim acordei quando a noite comeava a
roubar as cores do rio e da plancie. No me sentia
repousado, e no entanto acordar era um alvio.
Sentei-me, olhei em volta. Olhos-de-Noite no
regressara para junto de mim. Sondei brevemente
na sua direo. Irmo, cumprimentou-me, mas
senti que estava aborrecido pela minha intruso.
Ele observava os dois filhotes que se perseguiam e
se atiravam ao cho. Puxei, cansado, a mente de
volta a mim. O contraste entre as nossas duas
vidas de repente era grande demais at para pensar
nele. Os Salteadores dos Navios Vermelhos, os
Forjamentos e as traies de Majestoso, at o meu
plano para matar Majestoso, tornaram-se de sbito
coisas humanas repelentes que eu impingira ao
lobo. Que direito eu teria de permitir que uma tal
fealdade esculpisse a sua vida? Ele estava onde
devia estar.
Por menos que gostasse do fato, a tarefa que eu
me impusera era apenas minha.
Tentei solt-lo. Porm, a centelha teimosa
permaneceu. Ele dissera que voltaria para mim.
Resolvi que, se o fizesse, a deciso teria de ser
sua. No o chamaria para junto de mim. Levantei-
me, e segui caminho. Disse a mim mesmo que se
Olhos-de-Noite decidisse voltar a juntar-se a mim,
conseguiria me alcanar com facilidade. Nada era
melhor do que um trote de lobo para devorar as
milhas. E no era como se eu estivesse viajando
rapidamente sem ele. Sentia muita falta da sua
viso noturna. Cheguei a um lugar onde a margem
do rio caa para se transformar em pouco mais do
que um pntano. A princpio no consegui decidir
se seria melhor atravess-lo ou tentar dar a volta
nele. Sabia que podia estender-se ao longo de
milhas. Por fim, decidi permanecer o mais perto
possvel da gua aberta do rio. Passei uma noite
miservel, chapinhando atravs de juncos e taboas,
tropeando no emaranhado das suas razes, com os
ps frequentemente molhados e atormentado por
mosquitos entusiasmados.
Que tipo de idiota, perguntei eu a mim mesmo,
tentava atravessar na escurido um pntano que
no lhe era familiar? Seria bem feito se
encontrasse uma lagoa de areias movedias e me
afogasse nela. Acima de mim, viam-se apenas as
estrelas, e em volta de mim as muralhas sempre
iguais de taboas. minha direita eu tinha
vislumbres do rio largo e escuro. Continuei a me
deslocar para rio acima. A alvorada foi me
encontrar ainda avanando com esforo.
Minsculas plantas de folha nica com razes que
se arrastavam pelo cho cobriam as minhas
perneiras e sapatos, e meu peito estava repleto de
picadas de insetos. Comi carne seca enquanto
caminhava. No havia lugar para descansar, de
modo que continuei a andar. Decidindo obter algo
de bom daquele lugar, colhi uma proviso de
razes de taboa enquanto avanava. J passara do
meio-dia quando o rio voltou a ter uma margem
propriamente dita, e eu insisti em continuar durante
mais uma hora depois disso para me afastar dos
mosquitos. Ento lavei a lama e o lodo esverdeado
do pntano das perneiras, dos sapatos e da pele
antes de me atirar no cho para dormir.
Em algum lugar, Olhos-de-Noite estava imvel
numa pose sem ameaa enquanto a fmea magra se
aproximava dele. Quando se aproximou mais, ele
caiu sobre a barriga, rolou para o lado, ento ficou
de barriga para cima e exps a garganta. Ela
aproximou-se mais, um passo de cada vez. Ento
parou de repente, sentou-se e avaliou-o. Ele soltou
um ligeiro ganido. Ela atirou subitamente as
orelhas para trs, descobriu todos os seus dentes
num rosnado, e em seguida deu meia-volta e
desapareceu. Passado algum tempo, Olhos-de-
Noite levantou-se e foi caar ratos do prado.
Parecia contente.
Mais uma vez, quando a sua presena pairou
para longe de mim, fui chamado a Vigas. Outra
aldeia estava ardendo.
Acordei desencorajado. Em vez de prosseguir
viagem, acendi uma pequena fogueira com madeira
trazida pelo rio. Fervi gua na minha chaleira para
cozinhar as razes enquanto cortava em pedaos
um pouco da minha carne seca. Cozinhei a carne
seca com as razes feculentas e acrescentei um
pouco das minhas preciosas reservas de sal e
algumas verduras silvestres. Infelizmente, o sabor
calcrio do rio predominou. De barriga cheia,
sacudi o manto de inverno, enrolei-me nele para
me proteger dos insetos da noite e voltei a
adormecer.
Olhos-de-Noite e o lder dos lobos estavam
olhando um para o outro. Estavam suficientemente
separados para no haver desafio, mas Olhos-de-
Noite mantinha a cauda abaixada. O lder dos
lobos era mais esguio do que Olhos-de-Noite e a
sua pelagem era negra. Menos bem alimentado,
ostentava as cicatrizes de lutas e caadas.
Conduzia-se com confiana. Olhos-de-Noite no
se mexia. Passado algum tempo, o outro lobo
percorreu uma curta extenso de terreno, ergueu a
pata num tufo de capim e urinou. Esfregou as patas
da frente no capim, ento se afastou sem olhar para
trs. Olhos-de-Noite sentou-se e ficou imvel,
refletindo.
Na manh seguinte, levantei-me e prossegui o
meu caminho. Olhos-de-Noite me deixara dois
dias antes. Apenas dois dias. E, no entanto,
parecia que eu estava sozinho havia muito tempo.
E como, perguntei-me, Olhos-de-Noite mediria a
nossa separao? No em dias e noites. Ele fora
descobrir uma coisa, e quando a tivesse
descoberto o tempo de estar longe de mim teria
chegado ao fim e ele regressaria. Mas o que,
realmente, ele fora descobrir? Como era ser um
lobo entre lobos, um membro de uma alcateia? Se
o aceitassem, o que aconteceria? Correria com
eles durante um dia, uma semana, uma estao?
Quanto tempo levaria at que eu desaparecesse de
sua mente e me tornasse um dos seus infinitos
ontens?
Por que ele iria querer regressar para mim, se a
sua alcateia o aceitasse?
Passado algum tempo, permiti-me compreender
que estava to desgostoso e magoado como se um
amigo humano tivesse me desprezado em favor de
outras companhias. Eu queria uivar, sondar na
direo de Olhos-de-Noite com a falta que sentia
dele. Atravs de um esforo de vontade, no o fiz.
Ele no era um co de estimao, para ser
chamado com um assobio. Era um amigo e
tnhamos viajado juntos durante algum tempo. Que
direito eu tinha de lhe pedir para desistir de uma
chance de acasalar, numa alcateia verdadeiramente
sua, simplesmente para poder estar ao meu lado?
Absolutamente nenhum, disse a mim mesmo.
Absolutamente nenhum.
Ao meio-dia cheguei a uma trilha que seguia a
margem. Ao fim da tarde eu j passara por vrias
pequenas fazendas. Uma rede de valas levava gua
do rio at as plantaes. As casas de adobe
estavam bem afastadas da borda do rio,
provavelmente para evitar as inundaes. Ces
haviam latido para mim e bandos de gordos gansos
brancos haviam grasnado para mim, mas no vira
ningum perto o suficiente para uma saudao. A
trilha alargara-se at se transformar numa estrada,
com sulcos de carroas.
O sol batia nas minhas costas e na cabea vindo
de um cu limpo e azul. Muito acima de mim, ouvi
o estridente qui de um falco. Olhei de relance
para ele, para as suas asas abertas e imveis
enquanto cavalgava o cu. O falco voltou a soltar
um grito, dobrou as asas e mergulhou na minha
direo. Certamente mergulhava sobre algum
pequeno roedor que estaria num dos campos.
Observei-o vir contra mim, e foi s no ltimo
momento que compreendi que era realmente eu o
seu alvo. Ergui repentinamente um brao para
proteger o rosto no momento preciso em que ele
abria as asas. Senti o vento da sua travada. Para
uma ave do seu tamanho, pousou com bastante
leveza no meu brao erguido. As suas garras se
enterraram dolorosamente na minha carne.
O meu primeiro pensamento foi que seria uma
ave treinada que se tornara bravia, que me vira e
por qualquer motivo decidira regressar para junto
dos homens. Um fragmento de couro que lhe
pendia de uma das patas podia ser uma lembrana
de peias. Ficou piscando sobre o meu brao, e era
uma ave magnfica sob todos os aspectos. Afastei-
o de mim para poder v-lo melhor. O couro na sua
pata continha um minsculo pergaminho enrolado.
Posso dar uma olhada nisso? perguntei-lhe
em voz alta. Ele virou a cabea ao ouvir a minha
voz, e um olho cintilante me fitou. Era Nevinha.
Sangue Antigo.
Nada conseguia compreender dos seus
pensamentos alm daquilo, mas era o bastante.
Nunca fora muito bom com as aves de Torre do
Cervo. Bronco acabara me pedindo para deix-las
em paz, pois a minha presena as deixava sempre
agitadas. Apesar disso, sondei gentilmente na
direo da mente brilhante como uma chama do
falco. Ele parecia calmo. Consegui soltar o
minsculo rolo. O falco mudou de posio no
meu brao, enterrando as garras num pedao novo
de carne. Ento, sem aviso, ergueu as asas e
lanou-se para o ar. Subiu em espiral, batendo
pesadamente as asas para ganhar altitude, soltou
uma vez mais o seu agudo qui, qui, e partiu
deslizando pelo cu afora. Fui deixado com sangue
escorrendo do meu brao, vindo de onde as suas
garras tinham me marcado a carne, e um ouvido
ressoando por causa do bater das asas quando
levantara voo. Olhei de relance as perfuraes no
meu brao. Ento a curiosidade fez com que eu me
virasse para o minsculo pergaminho. Eram os
pombos que transportavam mensagens, no os
falces.
A letra estava escrita num estilo antigo,
minscula e fina como uma teia de aranha. O
brilho do sol a tornava ainda mais difcil de ler.
Sentei-me beira da estrada e fiz sombra com a
mo para examin-la. As primeiras palavras quase
me pararam o corao.
Sangue Antigo sada Sangue Antigo.
Do resto era mais difcil obter o sentido. O
pergaminho estava esfarrapado, a ortografia era
bizarra, as palavras no menor nmero possvel. O
aviso vinha de Azevinha, embora eu suspeitasse
que Rolfe o tivesse escrito. O Rei Majestoso agora
estava caando ativamente o Sangue Antigo.
Oferecia moedas queles que capturava se o
ajudassem a encontrar uma dupla de homem e
lobo. Suspeitavam de que quem ele procurava
eram eu e Olhos-de-Noite. Majestoso ameaava
com a morte aqueles que se recusassem a ajudar.
Havia um pouco mais, algo sobre oferecer o meu
cheiro a outros do Sangue Antigo e lhes pedir que
me ajudassem como pudessem. O resto do
pergaminho estava esfarrapado demais para ser
lido. Enfiei-o no cinto. O dia brilhante parecia
agora cercado de escurido. Ento Vontade
dissera a Majestoso que eu ainda vivia. E
Majestoso me temia o suficiente para tomar essas
providncias. Talvez tivesse sido melhor que
Olhos-de-Noite e eu tivssemos nos separado
durante algum tempo.
Quando o crepsculo caiu, subi a uma pequena
elevao na margem do rio. minha frente,
aninhada numa curva do rio, havia algumas luzes.
Provavelmente seria outro entreposto comercial ou
uma doca para barcos destinados a fornecer a
agricultores e pastores passagem fcil para a outra
margem. Observei as luzes enquanto caminhava na
sua direo. Ali em frente deveria haver comida
quente, e pessoas, e abrigo para a noite. Eu podia
parar ali e conversar com as pessoas, se quisesse.
Ainda tinha algumas moedas que eu podia chamar
de minhas. No havia um lobo atrs de mim que
suscitasse perguntas, no havia Olhos-de-Noite
espreita do lado de fora, esperando que nenhum
co o farejasse. Ningum com quem me preocupar
alm de mim. Bem, talvez o fizesse. Talvez
parasse e bebesse um copo e trocasse algumas
palavras. Talvez ficasse sabendo quanto me
faltaria viajar at chegar a Vaudefeira e ouvisse
algumas fofocas sobre o que se passava por l.
Estava na hora de eu comear a formular um plano
real para lidar com Majestoso.
Estava na hora de comear a depender apenas de
mim.
CAPTULO 8

Vaudefeira

Enquanto o vero amadurecia e chegava ao fim,


os Salteadores redobraram os seus esforos para
obter o mximo possvel da costa do Ducado de
Vigas antes que as tempestades de inverno
comeassem. Depois de controlarem os portos
principais, sabiam que podiam atacar ao longo
do resto da linha costeira dos Seis Ducados como
bem entendessem. Por isso, embora nesse vero
tenham feito incurses at o Ducado de Razos,
quando os dias agradveis minguaram
concentraram os seus esforos em tornar sua a
costa de Vigas.
As suas tticas eram peculiares. No faziam
qualquer esforo para capturar povoaes ou
conquistar o povo. Estavam unicamente
concentrados na destruio. Vilas que
capturavam eram completamente queimadas, e o
povo era morto, forjado ou posto em fuga.
Algumas pessoas eram mantidas como
trabalhadores, tratadas como menos que
animais, forjadas quando se tornavam inteis
para os seus captores, ou por divertimento.
Erguiam os seus prprios abrigos rudimentares,
desdenhando usar os edifcios que poderiam ter
simplesmente capturado em vez de destruir. No
faziam qualquer esforo para estabelecer
colnias permanentes, limitavam-se a guarnecer
os melhores portos para se assegurarem de que
no poderiam ser tomados de volta.
Embora os ducados de Razos e Rasgo
providenciassem ajuda ao Ducado de Vigas
sempre que podiam, eles tinham as suas prprias
costas a proteger, e os recursos que podiam
empregar eram escassos. O Ducado de Cervo foi
se arranjando o melhor possvel. Dom Brilhante
compreendeu tardiamente como a proteo de
Cervo dependia dos seus territrios
ultramarinos, mas julgou ser tarde demais para
resgatar essa linha de defesa. Dedicou os seus
homens e fundos a fortificar Torre do Cervo
propriamente dita. Isso deixou o resto do Ducado
de Cervo sem nada, a no ser o seu prprio povo
e as tropas irregulares que tinham se devotado
Dama Pacincia, como baluarte contra os
Salteadores. Vigas no esperava qualquer
socorro vindo da, mas aceitava com gratido
tudo o que lhes chegava sob o smbolo da Hera.
O Duque Fortes de Vigas, h muito longe do
seu auge como guerreiro, enfrentou o desafio dos
Salteadores com ao to cinzento como o seu
cabelo e barba. A sua determinao no conhecia
limites. No hesitou em desfazer-se do tesouro
pessoal, nem em arriscar as vidas da famlia nos
esforos finais para defender o seu ducado.
Encontrou o seu fim ao tentar defender o castelo
onde vivia, Torre Crespa. Mas nem a sua morte,
nem a queda de Torre Crespa evitaram que as
filhas continuassem a resistir contra os
Salteadores.
A minha camisa adquirira uma peculiar forma
nova por ter passado tanto tempo enrolada na
trouxa. Vesti-a mesmo assim, fazendo um ligeira
careta diante do seu odor mofado. Cheirava
vagamente a fumaa de lenha, e mais fortemente a
bolor. A umidade penetrara nela. Persuadi-me de
que o ar livre dispersaria o cheiro. Fiz o que pude
com o cabelo e a barba. Ou seja: escovei o cabelo
e o amarrei num rabo de cavalo, e penteei a barba
com os dedos at a deixar lisa. Detestava a barba,
mas odiava gastar tempo todos os dias me
barbeando. Abandonei a margem do rio onde
fizera as minhas breves ablues e me dirigi s
luzes da vila. Resolvera que daquela vez estaria
melhor preparado. O meu nome, segundo decidira,
era Jri. Fora soldado, e tinha alguns
conhecimentos sobre cavalos e uma pena, mas
perdera a casa para os Salteadores. Estava
atualmente decidido a chegar a Vaudefeira para
dar um novo incio minha vida. Era um papel que
eu poderia desempenhar de forma convincente.
Quando o que restava da luz do dia desapareceu,
mais lmpadas foram acesas na vila ribeirinha, e
vi que me enganara redondamente quanto ao seu
tamanho. A cidade estendia-se at muito longe ao
longo da margem. Senti certa ansiedade, mas me
convenci de que caminhar atravs da cidade seria
muito mais rpido do que rode-la. Sem Olhos-de-
Noite perto de mim, eu no tinha nenhum motivo
para acrescentar essas milhas e horas adicionais
ao meu caminho. Ergui a cabea e assumi um
passo confiante.
A cidade tinha muito mais vida depois de
escurecer do que a maior parte dos lugares onde
eu estivera. Detectei um ar de feriado naqueles que
passeavam pelas ruas. A maior parte dirigia-se
para o centro da cidade e, quando me aproximei,
vi que havia archotes, gente vestida de cores
brilhantes, risos e o som de msica. Os lintis das
portas das estalagens estavam adornados com
flores. Cheguei a uma praa brilhantemente
iluminada. Era dali que vinha a msica, e viam-se
folies danando. Havia barris de bebida
disposio, e mesas com pilhas de po e fruta.
Fiquei com a boca cheia de gua ao ver a comida,
e o po tinha um cheiro particularmente
maravilhoso para algum que estava h tanto
tempo privado dele.
Deixei-me ficar pela periferia da multido,
escutando, e descobri que o Capa-mor da cidade
estava celebrando o seu casamento; por isso a
festa e as danas. Deduzi que Capa-mor fosse
alguma espcie de ttulo usado em Vara para os
nobres, e que aquele em particular fosse bem visto
pela sua gente devido sua generosidade. Uma
mulher idosa, reparando em mim, abordou-me e
colocou trs moedas de cobre na minha mo.
V at as mesas e coma, jovem disse-me
com bondade. O Capa-mor Logis decretou que
na noite do seu casamento todos devem celebrar
com ele. A comida para partilhar. V l, no seja
tmido. Deu-me uma palmadinha
tranquilizadora no ombro, ficando na ponta dos
ps para faz-lo. Corei por ser confundido com um
mendigo, mas achei melhor no a dissuadir. Se ela
me julgava assim, era o que eu aparentava ser, e
era melhor que agisse como tal. Mesmo assim,
quando enfiei os trs cobres na bolsa me senti
estranhamente culpado, como se eu os tivesse
arrancado dela de forma enganosa. Fiz o que ela
me disse, e fui at a mesa para me juntar fila
daqueles que recebiam po, fruta e carne.
Havia vrias jovens cuidando das mesas, e uma
encheu um tabuleiro para mim, entregando-o
depressa por cima da mesa, como se relutasse em
ter o mnimo contato comigo. Agradeci-lhe, o que
provocou alguns risinhos entre as amigas. Ela
pareceu to insultada como se eu a tivesse
confundido com uma prostituta, e afastei-me
rapidamente dali. Descobri um canto de uma mesa
onde me sentar, e reparei que ningum se sentava
perto de mim. Um jovem que botava canecas na
mesa e as enchia de cerveja me deu uma e
mostrou-se suficientemente curioso para me
perguntar de onde viera. Disse-lhe apenas que
vinha viajando rio acima, em busca de trabalho, e
perguntei se ele ouvira falar de algum que
estivesse contratando.
Oh, est procurando a feira de emprego, l
em cima em Vaudefeira disse-me com
familiaridade. Fica a menos de um dia de
caminhada. Pode ser que consiga trabalho nas
colheitas nesta poca do ano. E se no conseguir,
h sempre a construo da Arena do Rei.
Contratam qualquer um para ela que seja capaz de
levantar uma pedra ou de usar uma p.
A Grande Arena do Rei? perguntei-lhe.
Ele inclinou a cabea para mim.
Para que todos possam testemunhar a
execuo da justia do Rei.
Ele ento foi chamado por algum que brandia
uma caneca e eu fui deixado s para comer e
ponderar. Contratam qualquer um. Ento eu tinha
um aspecto assim to instvel e estranho. Bem, no
podia evit-lo. A comida tinha um gosto
incrivelmente bom. J quase me esquecera da
textura e fragrncia do bom po de trigo. O modo
saboroso como se misturava com os molhos da
carne no meu tabuleiro me fez lembrar de repente
da Cozinheira Sara e da sua generosa cozinha. Em
algum lugar, rio acima, em Vaudefeira, ela deveria
estar fazendo agora massa de bolos, ou talvez
salpicando um assado com especiarias antes de
coloc-lo numa de suas pesadas panelas pretas e
de cobri-lo bem, para deix-lo cozinhando
lentamente na brasa a noite inteira. Sim, e nos
estbulos de Majestoso, Mos estaria fazendo as
suas ltimas rondas antes da noite, como Bronco
costumava fazer nos estbulos em Torre do Cervo,
assegurando-se de que todos os animais tivessem
gua fresca e limpa e de que todas as cocheiras
estivessem bem fechadas. Uma dzia de outros
cavalarios vindos de Torre do Cervo tambm
estaria l, rostos e coraes que me eram bem
conhecidos dos anos que passramos juntos nos
domnios de Bronco e sob a sua tutela. Majestoso
tambm levara de Cervo criados domsticos. A
Dona Despachada provavelmente estaria l, assim
como Brante, Antrobaixo, e
A solido me envolveu de repente. Seria to
bom v-los, encostar-me em uma mesa e escutar as
infindveis fofocas da Cozinheira Sara, ou me
deitar de costas no palheiro com Mos e fingir que
acreditava nas suas histrias escandalosas sobre
as mulheres com quem se deitara desde a ltima
vez que o vira. Tentei imaginar a reao da Dona
Despachada minha roupa atual, e dei por mim
sorrindo com o seu ultraje e ofensa escandalizada.
O meu devaneio foi rompido por um homem que
gritava uma srie de obscenidades. Nem o mais
bbado marinheiro que j conheci profanaria
daquela forma uma festa de casamento. A minha
no foi a nica cabea que se virou e por um
momento todas as conversas normais se
interromperam. Fitei aquilo em que antes no
reparara.
De um dos lados da praa, quase fora de alcance
dos archotes, encontrava-se uma parelha e uma
carroa. Uma grande jaula estava em cima dela
com trs Forjados l dentro. No conseguia
distinguir mais do que isso, que eram trs e que
no havia qualquer sinal deles na minha Manha.
Uma condutora aproximou-se da jaula, de porrete
na mo. Bateu com ele ruidosamente nas ripas da
jaula, ordenando aos que se encontravam no
interior que ficassem quietos, e depois virando-se
para dois jovens que se encostavam parte de trs
da carroa.
E vocs tambm vo deix-los em paz, seus
grandes patetas! ralhou. O destino deles a
Arena do Rei e a justia ou misericrdia que
encontrarem por l. Mas at l, vocs os deixaro
em paz, entendido? Lrio! Lrio, traga aqui esses
ossos do assado e d a estas criaturas. E vocs, j
disse, afastem-se deles! Parem de irrit-los!
Os dois jovens afastaram-se do porrete
ameaador que ela brandia, rindo de mos
levantadas enquanto o faziam.
No vejo por que que a gente no pode se
divertir primeiro com eles objetou o mais alto
dos rapazes. Ouvi dizer que l embaixo em
Vaucorrido a vila est construindo a sua prpria
arena de justia.
O segundo rapaz fez um grande espetculo de
rolar os msculos dos ombros.
Eu mesmo vou para a Arena do Rei.
Como Campeo ou prisioneiro? algum
gritou em tom de zombaria, e os dois jovens riram,
e o mais alto deu ao companheiro um empurro
bruto como brincadeira.
Eu fiquei de p no meu lugar. Uma suspeita
doentia estava crescendo em mim. A Arena do
Rei. Forjados e Campees. Lembrei-me do modo
avarento como Majestoso observara os seus
homens espancando-me quando eu estava rodeado
por eles. Um aturdimento surdo espalhava-se por
mim enquanto a mulher chamada Lrio abria
caminho at a carroa e atirava um prato de ossos
com carne aos prisioneiros que l se encontravam.
Caram avidamente sobre eles, batendo e
mordendo uns nos outros enquanto cada um
procurava recolher para si o mximo possvel do
saque. No foram poucas as pessoas que se
colocaram em volta da carroa, apontando e rindo.
Eu fiquei vendo, repugnado. No compreendiam
que aqueles homens haviam sido Forjados? No
eram criminosos. Eram maridos e filhos,
pescadores e agricultores dos Seis Ducados, cujo
nico crime fora serem capturados pelos Navios
Vermelhos.
Eu no sabia o nmero de Forjados que eu
matara. Sentia repulsa por eles, era verdade, mas
era a mesma repulsa que sentia ao ver uma perna
gangrenada, ou um co to atacado pela sarna que
no teria cura. Matar Forjados nada tinha a ver
com dio, punio ou justia. A morte era a nica
soluo para o seu estado e devia ser administrada
o mais rapidamente possvel, por compaixo para
com as famlias que os tinham amado. Aqueles
jovens tinham falado como se houvesse algum tipo
de esporte em mat-los. Fitei nauseado a jaula.
Voltei lentamente a me sentar no meu lugar.
Ainda havia comida no meu tabuleiro, mas o meu
apetite por ela desaparecera. O bom senso me
dizia que devia comer enquanto tinha essa
possibilidade. Por um momento, apenas olhei para
a comida. Obriguei-me a comer.
Quando ergui os olhos, vi dois jovens me
encarando. Por um instante, enfrentei os seus
olhos; ento me lembrei de quem era suposto ser e
baixei o olhar. Era evidente que os jovens estavam
se divertindo comigo, pois vieram sentar-se com
um ar fanfarro, um na minha frente e o outro
desconfortavelmente prximo, ao meu lado. Esse
deu um grande espetculo franzindo o nariz e
cobrindo o nariz e a boca, para divertimento do
camarada. Dei boa-noite aos dois.
Boa noite para voc, talvez. No come uma
comida como esta h algum tempo, hein, mendigo?
Isso foi dito pelo que estava sentado na minha
frente, um palerma de cabelo cor de estopa com
uma mscara de sardas no rosto.
verdade, e agradeo ao seu Capa-mor pela
sua generosidade eu disse com suavidade. Eu j
estava procurando uma maneira de me livrar
daquilo.
Ento. O que o traz a Pomo? perguntou o
outro. Era mais alto do que o seu amigo indolente,
e mais musculoso.
Ando procura de trabalho. Olhei-o
diretamente nos olhos claros. Disseram-me que
h uma feira de emprego em Vaudefeira.
E para que tipo de trabalho voc presta,
mendigo? Espantalho? Ou ser que atrai as
ratazanas para fora da casa de um homem com o
cheiro? Ele botou um cotovelo na mesa, perto
demais de mim, e ento se inclinou para a frente
apoiado nele, como que para me mostrar o feixe de
msculos no seu brao.
Respirei uma vez, e ento outra. Senti algo que
j no sentia h algum tempo. Havia um fio de
medo, e aquele estremecimento invisvel que me
percorria quando era desafiado. Tambm sabia
que por vezes se transformava no tremor que
pressagiava um ataque. Porm, houve algo mais
que tambm cresceu em mim, e eu quase esquecera
esse sentimento. Ira. No. Fria. A fria
irrefletida, violenta, que me emprestava a fora
para erguer um machado e separar o ombro e o
brao do corpo de um homem, ou me atirar a ele e
esgan-lo at que a vida lhe sasse do corpo,
independentemente do quanto ele me batesse
enquanto o fazia.
Acolhi-a de volta em uma espcie de reverncia
e me perguntei o que a teria chamado. Teria ela
recordado amigos que foram arrancados de mim
para sempre, ou as cenas de batalha com que eu
sonhara to frequentemente pelo Talento nos
ltimos tempos? No importava. Tinha o peso de
uma espada no quadril e duvidava de que os
palermas estivessem conscientes disso, ou de
como eu poderia us-la. Provavelmente nunca
tinham brandido nenhuma lmina, exceto uma
foice, provavelmente nunca haviam visto qualquer
sangue alm do de uma galinha ou uma vaca.
Nunca tinham despertado noite com o ladrar de
um co e perguntado a si mesmos se seriam
Salteadores a caminho, nunca tinham chegado aps
um dia de pesca rezando para que quando o cabo
fosse dobrado a vila ainda estivesse de p.
Camponeses abenoados com a ignorncia,
engordando na suave regio fluvial longe da costa
fortificada, sem maneira melhor para demonstrar o
seu valor do que provocar um estranho ou
atormentar homens enjaulados.
Quem dera todos os garotos dos Seis Ducados
fossem ignorantes assim.
Sobressaltei-me como se Veracidade tivesse
colocado a mo no meu ombro. Quase olhei para
trs de mim. Em vez disso fiquei imvel, tateando
dentro de mim para descobri-lo, mas sem nada
encontrar. Nada.
No poderia dizer com certeza que o
pensamento viera dele. Talvez o desejo fosse meu.
E, no entanto, era to caracterstico dele que no
podia duvidar da sua origem. A minha ira
desapareceu to rapidamente quanto fora
despertada, e eu os olhei numa espcie de
surpresa, sobressaltado por descobrir que ainda
estavam ali. Garotos, sim, no passavam de
garotos grandes, irrequietos e ansiosos por provar
o que valiam. Ignorantes e inexperientes como os
jovens eram com frequncia. Bem, nem eu seria
algo em que demonstrariam a sua virilidade, nem
derramaria o sangue deles na terra da festa de
casamento do seu Capa-mor.
Parece que eu talvez tenha abusado das boas-
vindas eu disse com gravidade, e levantei-me
da mesa. J comera o suficiente e sabia que no
precisava da meia caneca de cerveja que estava ao
lado da comida. Vi-os me medir enquanto me
levantava e vi um deles sobressaltar-se claramente
quando viu a espada que pendia do meu flanco. O
outro levantou-se, como que para desafiar a minha
partida, mas vi que o amigo deu uma minscula
sacudida com a cabea. Com as chances igualadas,
o musculoso garoto de fazenda afastou-se de mim
com um sorriso de escrnio, afastando-se como
que para evitar que a minha presena o sujasse.
Foi estranhamente fcil ignorar o insulto. Em vez
de recuar deles, virei-me e penetrei na escurido,
para longe da festa, das danas e da msica.
Ningum me seguiu.
Procurei a margem, com a determinao
crescendo em mim medida que avanava. Ento
eu no estava longe de Vaudefeira, no estava
longe de Majestoso. Senti um desejo sbito de me
preparar para ele. Naquela noite iria arranjar um
quarto numa estalagem, uma que tivesse casa de
banhos, e iria tomar banho e me barbear. Que ele
me olhasse, que visse as cicatrizes que pusera em
mim e soubesse quem o matara. E depois? Se
sobrevivesse para haver um depois, e se alguma
das pessoas que me vissem me reconhecesse, que
assim fosse. Que se soubesse que Fitz voltou do
tmulo para executar uma verdadeira Justia Real
neste suposto rei.
Assim fortalecido, passei pelas primeiras duas
estalagens que encontrei. De uma vinham gritos
que eram ou uma briga, ou um excesso de boa
camaradagem; em qualquer caso, ali no era
provvel que eu conseguisse dormir muito. A
segunda tinha uma varanda bamba e uma porta que
pendia torta das dobradias. Decidi que isso no
dava boas indicaes sobre a manuteno das
camas. Escolhi aquela que exibia uma tabuleta
com uma panela e mantinha um archote noturno
ardendo na rua para guiar os viajantes at a porta.
Tal como muitos dos maiores edifcios de Pomo,
a estalagem fora construda com seixos do rio e
argamassa, e o assoalho era igual. Havia uma
grande lareira no fundo da sala, mas nela s ardia
um fogo estival, apenas o suficiente para manter a
prometida panela de cozido borbulhando. Apesar
da refeio que acabara de comer, cheirou-me
bem. A sala estava calma, com a maior parte da
clientela afastada pela celebrao do casamento
do Capa-mor. O estalajadeiro parecia ser
normalmente um tipo amigvel, mas um franzido
lhe enrugou a testa ao me ver. Coloquei uma pea
de prata na mesa sua frente para tranquiliz-lo.
Gostaria de um quarto para a noite, e um
banho.
Olhou-me de cima a baixo, desconfiado.
Se tomar o banho primeiro.
Sorri-lhe.
No tenho nenhum problema com isso, meu
bom senhor. Tambm vou lavar a roupa; no
precisa temer que eu leve bichos para o colcho.
Ele assentiu com relutncia e mandou um rapaz
cozinha buscar gua quente.
Ento a viagem foi longa? disse em tom de
gracejo enquanto me indicava o caminho para a
casa de banhos atrs da estalagem.
Longa e um pouco mais do que longa. Mas h
um trabalho minha espera em Vaudefeira, e
gostaria de estar com a minha melhor aparncia
quando chegar l. Sorri enquanto dizia estas
palavras, agradado com a verdade que havia nelas.
Oh, um trabalho espera. Ento entendo,
entendo. Sim, melhor parecer limpo e repousado,
e h o panelo de sopa no canto, e no se acanhe
quanto a us-lo.
Antes de ele ir embora, supliquei o uso de uma
navalha, pois a casa de banhos possua um
espelho, e ele me forneceu uma de bom grado. O
rapaz a trouxe com o primeiro balde de gua
quente. Quando terminou de encher a banheira, eu
j cortara a barba para torn-la barbevel. Ele
ofereceu-se para me lavar a roupa por um cobre
adicional, e eu aceitei com toda a alegria. Tirou-a
de mim com um franzir de nariz que me mostrou
que eu cheirava muito pior do que suspeitara. Era
evidente que a caminhada atravs dos pntanos
deixara mais provas do que eu pensara.
Fiquei vontade, ensopando-me de gua quente,
ensaboando-me com o sabo sauve tirado do pote,
e ento me esfregando vigorosamente antes de me
enxaguar. Lavei o cabelo por duas vezes antes de a
espuma escorrer branca e no cinzenta. A gua que
deixei na banheira estava mais espessa do que a
gua calcria do rio. Barbeei-me suficientemente
devagar para s me cortar duas vezes para variar.
Quando alisei o cabelo para trs e o amarrei num
rabo de cavalo de guerreiro, ergui o olhar para
descobrir no espelho um rosto que quase no
reconhecia.
Tinham-se passado meses desde que me vira, e
naquela ocasio fora no pequeno espelho de
Bronco. O roto que me olhava agora estava mais
magro do que eu esperara, mostrando-me malares
que lembravam os do retrato de Cavalaria. A
madeixa branca de cabelo que crescia por cima da
minha testa me envelhecia e me lembrava as
manchas da pelagem de um carcaju. Tinha a testa e
a parte de cima da face bronzeadas pelo vero
passado ao ar livre, mas o rosto estava mais
plido onde a barba estivera, de modo que a parte
inferior da cicatriz que me descia pela bochecha
parecia muito mais lvida do que o resto. O que
conseguia ver do meu peito mostrava muito mais
costelas do que j tivera. Era verdade que havia
ali msculos, mas no havia gordura suficiente
para untar uma frigideira, como a Cozinheira Sara
teria dito. As viagens constantes e a dieta
primordialmente carnvora haviam deixado em
mim as suas marcas.
Afastei os olhos do espelho com um sorriso
enviesado. O medo de ser instantaneamente
identificado por qualquer pessoa que tivesse me
conhecido foi completamente posto de lado. Eu
mesmo quase no me reconhecia.
Vesti minha roupa de inverno para fazer a
viagem at o meu quarto. O rapaz me assegurou de
que penduraria a outra roupa junto lareira e a
entregaria seca de manh. Levou-me at o quarto e
me deixou com um boa-noite e uma vela.
Achei o quarto pouco mobilado, mas limpo.
Havia nele quatro camas, mas eu era o nico
cliente para a noite, e senti-me grato por isso.
Havia uma nica janela, sem folhas nem cortinas
para o vero. O ar frio da noite que vinha do rio
soprava para o interior do quarto. Fiquei em p
durante algum tempo, olhando a escurido. Eu
conseguia ver rio acima as luzes de Vaudefeira.
Era uma povoao substancial. Luzes pontilhavam
a estrada entre Pomo e Vaudefeira. Estava claro
que me encontrava agora em territrio bem
povoado. Ainda bem que viajava sozinho, disse
firmemente a mim mesmo, e afastei a dor da perda
que sentia sempre que pensava em Olhos-de-
Noite. Atirei a trouxa para baixo da cama. Os
cobertores da cama eram speros, mas tinham
cheiro de limpo, e o mesmo acontecia com o
colcho de palha. Aps meses dormindo no cho,
ele parecia quase to mole quanto o meu velho
colcho de penas em Torre do Cervo. Apaguei a
vela e me deitei, esperando adormecer de
imediato.
Contudo, em vez disso dei por mim fitando o
teto escurecido. Conseguia ouvir distncia os
tnues sons da festa. De mais perto vinham os
rangidos e ajustamentos no familiares de um
edifcio, os sons das pessoas movendo-se em
outros quartos da estalagem. Deixavam-me
nervoso, como no acontecera com o vento
atravessando os galhos de uma floresta, ou o
gorgolejar do rio perto do local onde eu dormia.
Temia mais a minha prpria espcie do que
qualquer coisa com que o mundo natural algum dia
me poderia ameaar.
A minha mente vagou at Olhos-de-Noite,
perguntando-se o que ele estaria fazendo e se
estaria em segurana naquela noite. Comecei a
sondar na direo dele, ento me detive. No dia
seguinte eu estaria em Vaudefeira, para fazer uma
coisa com a qual ele no podia me ajudar. Mais do
que isso, encontrava-me agora numa rea onde ele
no podia vir at mim em segurana. Se no dia
seguinte tivesse sucesso, e sobrevivesse para
continuar at as Montanhas em busca de
Veracidade, ento podia esperar que ele se
lembrasse e se juntasse a mim. Mas se eu
morresse, ento ele estava melhor onde estava,
tentando juntar-se sua espcie e ter a sua vida.
Chegar quela concluso e reconhecer a deciso
como correta era fcil. Permanecer firme era a
parte difcil. No devia ter pago por aquela cama,
devia ter passado a noite caminhando, pois teria
obtido maior descanso. Senti-me mais s do que j
me sentira na vida. At na masmorra de Majestoso,
espera da morte, eu fora capaz de sondar at o
meu lobo. Mas no naquela noite em que estava
sozinho, pensando num assassinato que era incapaz
de planejar, temendo que Majestoso estivesse
protegido por um crculo de iniciados no Talento,
cujas habilidades eu s podia adivinhar. Apesar
do calor da noite de fim de vero, sentia-me
enregelado e nauseado sempre que pensava nisso.
A minha determinao em matar Majestoso nunca
vacilou; apenas a minha confiana de que seria
bem-sucedido. At ento no me sara muito bem
sozinho, mas decidi que no dia seguinte atuaria de
uma forma que deixaria Breu orgulhoso.
Quando pensei no crculo, senti uma nauseante
certeza de que eu enganara a mim mesmo a
respeito da estratgia. Eu havia chegado at ali por
minha prpria vontade, ou seria aquilo alguma
artimanha sutil que Vontade incutira nos meus
pensamentos, para me convencer de que correr
para ele era a coisa mais segura a se fazer?
Vontade era sutil com o Talento. Tinha um toque
to insidiosamente suave que quase no o
sentamos quando ele estava usando-o. Ansiei
subitamente por tentar sondar com o Talento, para
ver se conseguia senti-lo observando-me. Ento
tive certeza de que o meu impulso para sondar com
o Talento fora na verdade Vontade me
influenciando, tentando-me a lhe abrir a minha
mente. E assim prosseguiram os meus
pensamentos, perseguindo-se em crculos cada vez
mais apertados at que quase senti o divertimento
dele enquanto me observava.
Aps a meia-noite me senti finalmente
afundando no sono. Rendi os pensamentos que me
atormentavam sem hesitar, atirando-me ao sono
como se fosse um mergulhador decidido a sondar
as profundezas. Reconheci tarde demais os
imperativos desse afundamento. Teria lutado se
conseguisse me lembrar de como se lutava. Em vez
disso, reconheci minha volta as tapearias e
trofus que decoravam o grande salo de Torre
Crespa, o castelo principal do Ducado de Vigas.
As dobradias das grandes portas de madeira
tinham cedido e elas estavam abertas, vtimas do
arete que se encontrava atravessado na soleira,
aps ter concludo o seu terrvel trabalho. Fumaa
pairava no ar do salo, entrelaando-se em volta
dos estandartes de vitrias passadas. Havia corpos
densamente empilhados ali, onde os combatentes
tinham tentado deter a torrente de Salteadores
contra a qual as pesadas pranchas de carvalho no
tinham resistido. Alguns passos depois da muralha
de corpos massacrados, uma linha de guerreiros de
Vigas ainda resistia, mas de forma irregular. No
meio de um pequeno n de batalha encontrava-se o
Duque Fortes, flanqueado pelas filhas mais novas,
Celeridade e F. Brandiam espadas, tentando em
vo defender o pai contra a presso do inimigo.
Ambas combatiam com uma percia e ferocidade
que nunca teria suspeitado possurem. Pareciam
uma parelha de falces, com os rostos
enquadrados por cabelo curto, lustroso e negro, os
olhos azuis-escuros semicerrados de dio. Mas
Fortes estava recusando a proteo, negando-se a
ceder onda assassina de Salteadores. Estava de
pernas abertas, salpicado de sangue e brandia com
duas mos um machado de batalha.
frente e por baixo dele, no abrigo criado pelo
alcance do seu machado, encontrava-se o corpo da
filha mais velha e herdeira. Um golpe de espada se
enterrara profundamente entre o ombro e o
pescoo, estilhaando-lhe a clavcula antes de a
arma se entalar na runa do seu peito. Estava
morta, irremediavelmente morta, mas Fortes no
queria afastar-se do seu corpo. Lgrimas criavam
sulcos de sangue no seu rosto. O seu peito oscilava
como um fole de cada vez que respirava, e os
velhos msculos filamentosos no seu torso eram
revelados por baixo da camisa rasgada. Fortes
mantinha distncia dois espadachins, um dos
quais era um fervoroso jovem que estava
entregando todo o corao derrota daquele duque
e o outro uma vbora em forma de homem, que se
mantinha para trs da presso do combate com a
espada longa pronta para tirar proveito de
qualquer abertura que o jovem pudesse criar.
Soube de tudo aquilo numa frao de segundo, e
soube que Fortes no duraria muito mais. O sangue
escorregadio j travava uma batalha com a mo
que enfraquecia no cabo do machado, enquanto
cada golfada de ar que forava a atravessar a
garganta seca era um tormento por si s. Ele era
um velho, e tinha o corao partido, e sabia que
mesmo que sobrevivesse quela batalha, Vigas
fora perdido para os Navios Vermelhos. A minha
alma gritou diante de sua desgraa, mas mesmo
assim ele deu aquele impossvel passo em frente e
desceu o machado para acabar com a vida do
jovem fervoroso que o enfrentara. No momento em
que o machado se afundou no peito do Salteador, o
outro homem deu um passo frente, penetrou na
abertura de meio segundo e fez danar a sua
lmina para dentro e para fora do peito de Fortes.
O velho seguiu o oponente moribundo at as
pedras ensanguentadas do seu castelo.
Celeridade, ocupada com o seu prprio
oponente, virou-se ligeiramente ao ouvir o grito de
angstia da irm. O Salteador que estivera
combatendo aproveitou a oportunidade. A sua
arma mais pesada enrolou-se na lmina mais leve
dela e a arrancou da mo. Ela deu um passo para
trs, afastando-se do sorriso ferozmente satisfeito
do Salteador, e virou a cabea para longe de sua
morte, a tempo de ver o assassino do pai
agarrando o cabelo de Fortes, preparando-se para
lhe cortar a cabea como trofu.
No consegui aguentar aquilo.
Saltei para o machado que Fortes deixara cair,
agarrei o seu cabo escorregadio pelo sangue como
se estivesse apertando a mo de um velho amigo.
Pareceu-me estranhamente pesado, mas o brandi
para cima, bloqueando a espada do meu agressor e
ento, numa combinao que teria deixado Bronco
orgulhoso, puxei-o para trs para que o trajeto da
lmina passasse pelo seu rosto. Estremeci
ligeiramente ao sentir os ossos do seu rosto
cedendo com aquele golpe. No tive tempo para
pensar nisso. Saltei para frente e atirei com fora o
machado para baixo, cortando a mo do homem
que tentara cortar a cabea do meu pai. O machado
ressoou nas lajes de pedra do cho, dando-me um
choque nos braos. Um jorro sbito de sangue me
respingou quando a espada de F abriu um sulco
no brao do seu oponente. Ele se erguia acima de
mim, de modo que encolhi o ombro e rolei, pondo-
me de p enquanto atravessava a sua barriga com a
lmina do meu machado. O homem largou a espada
e agarrou-se s tripas que se esparramavam
enquanto caa.
Houve um momento insano de completa
imobilidade na minscula bolha de batalha que
ocupvamos. F me encarava com uma expresso
espantada que se transformou brevemente num ar
de triunfo antes de ser substitudo por uma
expresso da mais pura angstia.
No podemos deixar que fiquem com os
corpos deles! declarou de sbito. Ergueu
abruptamente a cabea, fazendo esvoaar o cabelo
curto como se fosse a crina de um garanho de
batalha. Vigas! A mim! gritou, e no era
possvel no perceber a nota de comando na sua
voz.
Por um instante ergui os olhos para F. A minha
viso se perdeu, duplicou-se por um instante. Uma
Celeridade entontecida desejava irm:
Longa vida para a Duquesa de Vigas.
Testemunhei um olhar entre elas, um olhar que
dizia que nenhuma das duas esperava sobreviver
at o fim do dia. Ento, um grupo de guerreiros de
Vigas libertou-se da batalha e veio juntar-se a
elas.
O meu pai e a minha irm. Levem os seus
corpos daqui ordenou F a dois dos homens.
Vocs outros, a mim! Celeridade rolou e ficou
de p, olhou confusa para o pesado machado e
agachou-se para voltar a pegar na familiaridade da
sua espada.
Ali, precisam de ns ali declarou F,
apontando, e Celeridade a seguiu, a fim de
reforar o suficiente a linha de batalha para
permitir sua gente a retirada.
Observei Celeridade afastando-se, uma mulher
que eu no amara, mas sempre admiraria. Desejei
de todo o corao seguir atrs dela, mas o meu
domnio sobre a cena enfraquecia, estava tudo
transformando-se em fumaa e sombras. Algum
me agarrou.
Isso foi estpido.
A voz na minha mente parecia contente.
Vontade!, pensei desesperado enquanto o corao
me subia no peito.
No. Mas podia perfeitamente ter sido. Est
ficando descuidado com as muralhas, Fitz. No
pode se dar a esse luxo. Por mais que eles nos
chamem, voc precisa ser cuidadoso. Veracidade
deu-me um empurro que me impeliu para longe, e
senti a carne do meu corpo me acolher de novo.
Mas voc faz isto protestei, mas ouvi
apenas o som fraco da minha voz no quarto da
estalagem. Abri os olhos. Tudo era escurido do
lado de fora da nica janela do quarto. No
saberia dizer se haviam se passado momentos ou
horas. Sabia apenas que estava grato por ainda
haver alguma escurido para dormir, pois o
terrvel cansao que tomava conta de mim no me
deixaria pensar em mais nada.
Quando acordei na manh seguinte, estava
desorientado. Passara-se tempo demais desde que
eu acordara numa cama de verdade, quanto mais
acordar me sentindo limpo. Forcei os olhos a se
focarem, ento olhei para os ns das vigas do teto
acima de mim. Passado algum tempo, recordei a
estalagem e que no estava muito longe de
Vaudefeira e Majestoso. Quase no mesmo instante,
lembrei-me de que o Duque Fortes estava morto. O
corao saltou dentro de mim. Fechei com fora os
olhos contra a memria dessa batalha e senti o
martelo e a bigorna da minha dor de cabea
comear. Por um instante irracional, coloquei a
culpa de tudo em Majestoso. Fora ele que
orquestrara esta tragdia que me arrancava o
corao e me deixava o corpo tremendo de
fraqueza. Precisamente na manh em que eu
esperara me levantar forte, refrescado e pronto
para matar, quase no conseguia encontrar a fora
para me virar na cama.
Depois de algum tempo, o rapaz da estalagem
chegou com a minha roupa. Dei-lhe mais dois
cobres e ele regressou pouco tempo depois com
uma bandeja. O aspecto e o cheiro da tigela de
mingau me revoltou. Compreendi de sbito a
averso por comida que Veracidade sempre
manifestara durante os veres em que o seu uso do
Talento mantivera os Salteadores afastados da
nossa costa. Os nicos artigos na bandeja que me
interessavam eram a caneca e o cntaro de gua
quente. Sa com dificuldade da cama e me agachei
para puxar a trouxa de debaixo da cama. Centelhas
danaram e flutuaram diante dos meus olhos.
Quando consegui abrir a trouxa e localizar o
casco-de-elfo, estava respirando to fortemente
como se tivesse feito uma corrida. Precisei de toda
a minha concentrao para focar os pensamentos
para alm da dor de cabea. Encorajado pela
cabea latejando, aumentei a quantidade de casco-
de-elfo que desfiz para dentro da caneca. J quase
chegara dose que Breu usava para Veracidade.
Desde que o lobo me deixara que eu vinha
sofrendo daqueles sonhos de Talento. No
importava como erguia as muralhas, no conseguia
mant-los longe. Mas o da noite anterior fora o
pior desde h muito tempo. Suspeitei que isso
acontecera porque eu entrara no sonho e, atravs
de Celeridade, agira. Os sonhos haviam sido um
terrvel sorvedouro tanto das minhas foras, como
da minha reserva de casco-de-elfo. Vigiei
impacientemente a casca soltar a sua escurido na
gua fumegante. Assim que deixei de ver o fundo
da caneca, ergui-a e bebi at o fim. A amargura
quase me fez vomitar, mas no me impediu de
despejar mais gua quente sobre a casca que
esperava no fundo da caneca.
Bebi esta segunda dose mais fraca com menos
rapidez, sentado na beira da cama e olhando ao
longe pela janela. Eu tinha uma bela vista sobre a
plana regio fluvial. Havia campos cultivados, e
vacas leiteiras em pastos cercados logo saindo de
Pomo, e mais alm eu conseguia avistar a fumaa
que se erguia de pequenas fazendas ao longo da
estrada. No havia mais pntanos para atravessar,
no havia mais regies abertas e selvagens entre
mim e Majestoso. Dali em diante, teria de viajar
como um homem.
A minha dor de cabea diminuiu. Forcei-me a
comer o mingau frio, ignorando as ameaas do meu
estmago. Pagara por ele e iria precisar do seu
sustento antes que aquele dia chegasse ao fim.
Vesti a roupa limpa que o rapaz me devolvera.
Estava limpa, mas isso era tudo o que se podia
dizer em seu favor. A camisa estava deformada e
descolorida em vrios tons de castanho. As calas
estavam pudas nos joelhos e no traseiro, e curtas
demais. Quando enfiei os ps nos sapatos que eu
mesmo fizera, percebi pela primeira vez quo
patticos eles eram. Passara-se tanto tempo desde
que eu parara para pensar no aspecto que
apresentava aos outros que me surpreendi por me
ver vestido mais pobremente do que qualquer
mendigo de Torre do Cervo de que conseguia me
lembrar. No admirava que tivesse gerado piedade
e repugnncia na noite anterior. Eu sentiria o
mesmo por qualquer indivduo assim vestido.
A ideia de descer vestido daquela forma fez com
que eu me encolhesse. A alternativa, contudo, era
vestir a roupa de inverno, quente e lanosa, e passar
o dia inteiro sentindo calor e suando. Descer tal
como eu estava no passava de bom senso, mas
agora me sentia um motivo de chacota to grande
que desejei poder escapar sem ser visto.
Enquanto voltava a fazer energicamente a trouxa,
senti um momento de alarme quando percebi a
quantidade de casco-de-elfo que consumira de uma
s vez. Sentia-me alerta; nada mais do que isso.
Um ano antes, tanto casco-de-elfo teria me deixado
balanando nas vigas. Disse firmemente a mim
mesmo que isso era como a roupa esfarrapada.
No tinha escolha. Os sonhos de Talento no me
deixavam em paz e eu no tinha tempo para ficar
deitado espera que o meu corpo se recuperasse
sozinho, quanto mais o dinheiro para pagar por um
quarto numa estalagem e por comida enquanto o
fazia. E, no entanto, quando pus a trouxa ao ombro
e desci a escada, refleti que aquilo era uma
maneira ruim de comear o dia. A morte de Fortes
e a queda do Ducado de Vigas nas mos dos
Salteadores, a minha roupa de espantalho e a
muleta do casco-de-elfo. Tudo isso me deixara
num belo marasmo.
Que chance real eu teria de passar pelas
muralhas e guardas de Majestoso e dar cabo dele?
Um estado de esprito sombrio, dissera-me um
dia Bronco, era um dos efeitos secundrios do
casco-de-elfo. Portanto, era s isso que eu estava
sentindo. Nada mais.
Despedi-me do estalajadeiro e ele me desejou
boa sorte. O sol j ia alto l fora. Prometia outro
dia de bom tempo. Marquei um ritmo regular ao
sair de Pomo em direo a Vaudefeira.
Quando cheguei aos arredores, tive uma viso
inquietante. Havia duas forcas, e de cada uma
pendia um corpo. Aquilo j era perturbador o
suficiente, mas havia tambm outras estruturas: um
pelourinho e dois cepos. A madeira ainda no
embranquecera ao sol; aquelas eram estruturas
recentes, e ainda assim, pelo aspecto que exibiam,
via-se que j haviam tido um uso considervel.
Passei rapidamente por elas, mas no consegui
deixar de me lembrar de quo perto estivera de
decorar uma estrutura como aquelas. Tudo o que
me salvara fora o meu sangue real bastardo e o
antigo decreto que proibia que algum como eu
fosse enforcado. Recordei, tambm, o prazer
evidente de Majestoso enquanto observava o meu
espancamento.
Com um segundo arrepio, perguntei a mim
mesmo onde estaria Breu. Se a soldadesca de
Majestoso conseguisse captur-lo, eu no tinha
dvida de que Majestoso daria fim dele
rapidamente. Tentei no imaginar o aspecto que
ele teria, alto, magro e grisalho luz brilhante do
sol, num cadafalso.
Ou seria o seu fim rpido?
Sacudi a cabea para me libertar de tais
pensamentos e continuei a avanar para alm dos
corpos de espantalho que se esfarrapavam ao sol
como roupa lavada e depois esquecida. Um humor
negro na minha alma fez notar que at eles estavam
mais bem vestidos do que eu.
Enquanto avanava pela estrada, tive de dar
passagem com frequncia a carroas e gado. O
comrcio prosperava entre as duas cidades. Deixei
Pomo para trs e fui passando durante algum
tempo por casas de fazenda bem cuidadas que se
viravam para a estrada, com as suas searas e
pomares por trs. Um pouco mais adiante e eu
passava por propriedades campestres, casas
confortveis de pedra com rvores para sombra,
plantaes em volta dos seus robustos celeiros e
cavalos para passeio e caa nas pastagens. Por
mais de uma vez tive certeza de reconhecer ali
animais de Torre do Cervo. Essas propriedades
deram lugar durante algum tempo a grandes
campos de cultivo, principalmente de linho ou
cnhamo. Por fim, comecei a ver propriedades
mais modestas e depois os arredores de uma
pequena cidade.
Pelo menos era o que eu pensava. O fim da tarde
foi dar comigo no corao de uma grande cidade,
com ruas de paraleleppedos e gente indo e vindo
em todos os tipos imaginveis de negcio. Dei por
mim olhando em volta maravilhado. Nunca vira
algo como Vaudefeira. Havia loja atrs de loja,
tavernas, estalagens e estbulos para bolsas de
todos os pesos, e tudo se espalhava ao longo
daquela terra plana como nenhuma cidade de
Cervo poderia fazer. Cheguei a uma rea de
jardins e fontes, templos, teatros e locais de
aprendizagem. Havia jardins delineados com
caminhos de cascalho que serpenteavam por entre
canteiros, esttuas e rvores. As pessoas que
percorriam a p as caladas ou seguiam em
carruagens estavam adornadas com trajes que as
fariam se sentir em casa em qualquer um dos
acontecimentos mais formais de Torre do Cervo.
Algumas deles usavam a libr dourada e castanha
de Vara, mas mesmo o vesturio desses criados
era mais suntuoso do que qualquer roupa que eu
algum dia j possura.
Fora ali que Majestoso passara os veres da sua
infncia. Sempre desdenhara a Cidade de Torre do
Cervo como pouco mais do que uma aldeia
atrasada. Tentei imaginar um rapaz deixando tudo
isto no outono, para regressar a um castelo cheio
de correntes de ar, erguido numa falsia varrida
pela chuva e aoitada pelas tempestades por cima
de uma suja cidadezinha porturia. No era de
admirar que tivesse se mudado para ali com a
corte assim que lhe fora possvel. De sbito senti
um leve indcio de compreenso por Majestoso.
Isso me irritou. bom conhecer bem um homem
que se vai matar; no bom compreend-lo.
Lembrei-me do modo como ele matara o prprio
pai, meu rei, e revesti de ao a minha
determinao.
Enquanto vagava por entre esses prsperos
quarteires, atra mais do que um relance
compadecido. Se estivesse determinado a ganhar a
vida como pedinte, eu poderia ter prosperado.
Mas eu procurava domiclios e pessoas mais
humildes, junto dos quais poderia ouvir algumas
conversas sobre Majestoso e o modo como o seu
castelo de Vaudefeira estava organizado e
guarnecido. Abri caminho at a margem do rio,
esperando me sentir mais em casa.
Foi ali que descobri o motivo real da existncia
de Vaudefeira. Fiel ao seu nome, o rio
transformava-se ali num imenso baixio que
ondulava sobre cascalho e o leito rochoso. Era to
largo que a margem oposta era obscurecida por
nvoa, e o rio parecia chegar ao horizonte. Vi
manadas e rebanhos inteiros de gado bovino e
ovino atravessando a vau o Rio Vim, enquanto rio
abaixo uma srie de barcaas de pequeno calado,
movidas atravs de cabos, aproveitavam as guas
mais profundas para transportar um fluxo
incessante de bens de uma margem do rio para a
outra. Era ali que Lavra se encontrava
comercialmente com Vara, era ali que pomares,
campos de cultivo e gado se juntavam, e onde os
bens trazidos rio acima desde Cervo, Vigas ou de
terras distantes eram finalmente descarregados e
enviados aos nobres que podiam compr-los. Para
Vaudefeira, em dias melhores, vinham os bens do
Reino da Montanha e das terras que se estendiam
para alm desse reino: mbar, ricas peles, marfim
esculpido e as raras cascas de incenso dos Ermos
Chuvosos. Tambm para ali era trazido o linho
bruto para ser transformado no linho de Vara, e
cnhamo para criar a fibra para cordas e velas.
Foram-me oferecidas algumas horas de trabalho
descarregando sacas de cereais de uma pequena
barcaa e carregando-as numa carroa. Aceitei-as,
mais pela conversa do que pelos cobres. Fiquei
sabendo de pouca coisa. Ningum falou dos
Navios Vermelhos ou da guerra que se travava ao
longo da costa, exceto para protestar contra a fraca
qualidade dos bens que provinham da costa e do
que era pedido pelo pouco que era enviado. Pouco
foi dito sobre o Rei Majestoso, e as poucas
palavras que ouvi orgulhavam-se da sua
habilidade de atrair mulheres e de beber bem.
Sobressaltei-me ao ouvir falar dele como um rei
Montebom, o nome da linhagem real da me. Ento
decidi que me convinha perfeitamente que ele no
se chamasse de Visionrio. Era uma coisa a menos
que tinha de partilhar com ele.
Contudo, ouvi falar muito da Arena do Rei, e o
que ouvi me azedou as entranhas.
O conceito de um duelo para defender a verdade
das palavras de cada um era antigo nos Seis
Ducados. Em Torre do Cervo havia os grandes
pilares verticais das Pedras Testemunha. Dizem
que quando dois homens se encontram ali para
resolver uma questo com os punhos, os prprios
El e Eda testemunham o ato e asseguram-se de que
a justia seja feita. As pedras e o costume so
muito antigos. Quando falvamos da Justia do Rei
em Torre do Cervo, era bastante frequente que nos
referssemos ao discreto trabalho que Breu e eu
fazamos para o Rei Sagaz. Havia quem viesse
fazer peties pblicas ao prprio Rei Sagaz,
submetendo-se ao que ele pudesse ver como certo.
Mas havia ocasies em que outras injustias
chegavam ao conhecimento do rei, e ento ele
podia enviar Breu ou a mim para fazer a sua
vontade ser sentida de forma discreta pelo
malfeitor. Em nome da Justia do Rei, eu selara
destinos tanto com rapidez misericordiosa como
com lentido punitiva. Eu devia ter ficado
insensibilizado perante a morte.
Mas a Arena do Rei de Majestoso tinha em si
mais de divertimento do que de justia. A
premissa era simples. Aqueles que eram julgados
pelo rei merecedores de punio ou morte eram
enviados para a sua arena. Ali poderiam enfrentar
animais famintos e provocados at a loucura, ou
um lutador, um Campeo do Rei. A algum
criminoso ocasional que apresentasse um
espetculo muito bom poderia ser concedida
clemncia rgia, ou podia mesmo tornar-se um
Campeo. Forjados no tinham tal chance.
Forjados eram entregues s feras para serem
estraalhados, ou deixados passando fome e soltos
em cima de outros transgressores. Tais
julgamentos tinham se tornado bastante populares
nos ltimos tempos, to populares que as
multides estavam transbordando da praa do
mercado em Vaudefeira onde a justia era
atualmente feita. Agora, Majestoso estava
construindo uma arena especial. Iria ter a
convenincia de se localizar mais perto da sua
casa senhorial, com celas e paredes seguras,
capazes de confinar mais fortemente tanto os
animais quanto os prisioneiros, com assentos para
os que vinham observar o espetculo da execuo
da Justia do Rei. A construo da Arena do Rei
estava fornecendo novos negcios e empregos
cidade de Vaudefeira. Todos a acolhiam como
uma tima ideia diante do fim das trocas com o
Reino da Montanha. No ouvi ser proferida uma
nica palavra contra a obra.
Quando a carroa ficou carregada, recebi o
pagamento e segui os outros estivadores at uma
taverna prxima. Ali, alm de cerveja, era
possvel comprar um punhado de ervas e um
incensrio de fumo para a mesa. A atmosfera
dentro da taverna estava pesada com os fumos, e
logo senti os olhos ramelosos e a garganta irritada
por causa deles. Ningum mais parecia lhes
prestar nenhuma ateno, ou mesmo ser muito
afetado por eles. O uso das ervas de queimar como
inebriante nunca fora comum em Torre do Cervo, e
eu nunca me habituara a elas. As minhas moedas
compraram um prato de pudim com mel e uma
caneca de uma cerveja muito amarga que para mim
tinha gosto de gua do rio.
Perguntei a vrias pessoas se era verdade que
estavam contratando cavalarios para os estbulos
do rei, e caso estivessem, onde um homem deveria
ir para pedir trabalho. Que algum como eu
pudesse tentar trabalhar para o prprio rei
proporcionou algum divertimento maior parte
deles, mas como eu fingira ser um tanto simplrio
durante o tempo que passara trabalhando com eles,
consegui aceitar o seu humor e sugestes rudes
com um sorriso brando. Um malandro acabou me
dizendo que eu devia ir pedir ao prprio rei, e me
indicou como chegar ao Palcio de Vaudefeira.
Agradeci-lhe, bebi o resto da cerveja e fui
embora.
Suponho que esperara um edifcio de pedra
qualquer com muralhas e fortificaes. Era isso
que eu procurava enquanto seguia as instrues
para o interior e para cima, afastando-me do rio.
No entanto, acabei chegando a uma colina pouco
elevada, se que se podia dar tal nome a uma
elevao to modesta. A altura adicional era
suficiente para fornecer uma vista desobstruda do
rio em ambas as direes, e as elegantes estruturas
de pedra que se erguiam na colina tinham tirado
dela toda a vantagem possvel. Parei na estrada
movimentada, no sop, olhando os edifcios
praticamente de boca aberta. Nada tinham dos
ameaadores aspectos marciais de Torre do
Cervo. O caminho de entrada, coberto de seixo
branco, os jardins e as rvores rodeavam uma
habitao que era ao mesmo tempo palaciana e
acolhedora. O Palcio de Vaudefeira e os
edifcios que o rodeavam nunca tinham sido
usados como fortaleza ou castelo. Fora construdo
como residncia elegante e dispendiosa. A pedra
das paredes fora trabalhada em padres e havia
graciosos arcos nas entradas. Havia torres, mas
no se viam seteiras nelas. Percebia-se que
haviam sido construdas para fornecer ao habitante
uma vista mais vasta das redondezas, mais por
prazer do que por cautela.
Tambm havia muros, entre a movimentada
estrada pblica e a manso, mas eram muros
baixos e espessos de pedra, cobertos de musgo ou
hera, com recantos ou nichos onde esttuas eram
flanqueadas por trepadeiras em flor. Um largo
caminho para carruagens levava diretamente ao
casaro. Outras vias e caminhos mais estreitos
convidavam a investigar lagoas cheias de lrios e
rvores frutferas inteligentemente podadas, ou
vias calmas e cheias de sombras. H pelo menos
cem anos, algum jardineiro visionrio havia
plantado ali carvalhos e salgueiros, que agora se
elevavam, davam sombra e sussurravam ao vento
vindo do rio. Toda aquela beleza espalhava-se por
uma rea maior do que a de uma fazenda de bom
tamanho. Tentei imaginar um governante que tinha
tempo e recursos para criar tudo aquilo.
Seria aquilo o que se podia ter, se no se
precisasse de navios de guerra e exrcitos
regulares? Teria Pacincia alguma vez conhecido
aquele tipo de beleza na casa de seus pais? Seria
daquilo que o Bobo fizera eco nos delicados vasos
de flores e aqurios de peixes dourados que tivera
no quarto? Senti-me sujo e grosseiro, e no por
causa da roupa. Assim era, realmente, senti de
sbito, como um rei devia viver. Entre a arte, a
msica e a graciosidade, elevando as vidas do seu
povo por fornecer um lugar onde essas coisas
podiam florescer. Vislumbrei a minha prpria
ignorncia e, pior, a fealdade de um homem
treinado apenas para matar outros homens. Senti
tambm uma ira sbita por tudo o que nunca me
fora ensinado, por tudo o que nunca sequer
vislumbrara. No teriam Majestoso e sua me
tambm tido uma mo nisso, em manter o Bastardo
no seu lugar? Eu havia sido amolado como uma
ferramenta feia e funcional, do mesmo modo que a
escarpada e estril Torre do Cervo era uma
fortaleza, no um palcio.
Mas quanta beleza sobreviveria ali, se Torre do
Cervo no se erguesse como um co rosnando na
foz do Rio Cervo?
Foi como um balde de gua fria no meu rosto.
Era verdade. No teria sido por isso que Torre do
Cervo fora construda para comear, a fim de
ganhar controle sobre o comrcio fluvial? Se
Torre do Cervo algum dia casse nas mos dos
Salteadores, aqueles largos rios se transformariam
em estradas para as suas embarcaes de pequeno
calado. Mergulhariam como uma adaga na suave
barriga dos Seis Ducados. Aqueles nobres
indolentes e arrogantes garotos de fazenda
acordariam ao som de gritos e ao cheiro de fumaa
na noite, sem castelo para onde fugir, sem guardas
para resistir e lutar por eles. Antes de morrerem,
poderiam vir a saber o que outros haviam
suportado para mant-la em segurana. Antes de
morrerem, poderiam insurgir-se contra um rei que
fugira desses baluartes para vir para o interior e
esconder-se em prazeres.
Mas eu pretendia fazer com que esse rei
morresse primeiro.
Dei incio a uma cuidadosa caminhada ao longo
do permetro do Castelo de Vaudefeira. A maneira
mais fcil de entrar tinha de ser pesada contra a
mais discreta, e as melhores maneiras de sair
tambm tinham de ser planejadas. Antes de cair a
noite, eu descobriria tudo o que podia sobre o
Palcio de Vaudefeira.
CAPTULO 9

Assassino

O ltimo verdadeiro Mestre do Talento a servir


de tutor a pupilos de sangue real em Torre do
Cervo no foi Galeno, como frequente ver
registrado, mas a sua predecessora, Solicitude.
Ela esperara, talvez tempo demais, at selecionar
um aprendiz. Quando escolheu Galeno, ela j
desenvolvera a tosse que iria pr fim sua vida.
H quem diga que ela o aceitou em desespero de
causa, sabendo que estava morrendo. Outros
afirmam que ele lhe foi imposto pela vontade da
Rainha Desejo de ver o seu favorito ascender na
corte. Qualquer que fosse o caso, ele havia sido
seu aprendiz h pouco mais de dois anos quando
Solicitude sucumbiu tosse e morreu. Tendo em
conta que Mestres do Talento anteriores haviam
passado por aprendizados de at sete anos, foi
bastante precipitado que ele tivesse se declarado
Mestre do Talento imediatamente aps a morte
de Solicitude. No parece ser muito possvel que
ela tivesse lhe transmitido todos os seus
conhecimentos sobre o Talento e suas
possibilidades num intervalo de tempo to breve.
No entanto, ningum contestou o direito de
Galeno ao ttulo. Embora estivesse auxiliando
Solicitude no treinamento dos dois prncipes,
Veracidade e Cavalaria, declarou esse
treinamento completo aps a morte de Solicitude.
Depois disso, resistiu s sugestes que lhe foram
feitas para treinar outros at chegarem os anos
das Guerras dos Navios Vermelhos, quando
finalmente cedeu exigncia do Rei Sagaz e
apresentou o seu primeiro e nico crculo.
Ao contrrio dos crculos tradicionais, que
selecionavam os seus prprios membros e lder,
Galeno criou o seu a partir de estudantes
escolhidos a dedo, e enquanto esteve vivo
manteve uma quantidade tremenda de controle
sobre eles. Augusto, o lder nominal do crculo,
viu o Talento lhe ser arrancado num acidente
durante uma misso ao Reino da Montanha.
Serena, que assumiu a liderana aps a morte de
Galeno, pereceu junto com outro membro,
Justino, durante o tumulto que se seguiu
descoberta do assassinato do Rei Sagaz. Vontade
foi quem assumiu em seguida a liderana daquilo
que veio a ser conhecido como Crculo de
Galeno. A essa altura restavam apenas trs
membros: o prprio Vontade, Emaranhado e
Cedoura. Parece provvel que Galeno tenha
inculcado nos trs uma inabalvel lealdade a
Majestoso, mas isso no evitou que entre eles
existisse rivalidade pelo favor de Majestoso.

Quando caiu o crepsculo, eu j explorara os


terrenos exteriores da propriedade real de uma
forma bastante exaustiva. Descobrira que qualquer
um podia caminhar livremente pelas vias
inferiores, usufruindo das fontes e jardins, das
sebes de teixo e das castanheiras, e havia vrias
pessoas bem vestidas fazendo isso mesmo. A
maior parte me olhava com austera reprovao,
alguns com piedade, e um guarda de libr que
encontrei me lembrou com firmeza que no era
permitido mendigar no interior dos Jardins do Rei.
Assegurei-lhe que viera apenas ver as maravilhas
de que tantas vezes ouvira falar nas histrias. Ele
por sua vez sugeriu que histrias sobre os jardins
eram mais do que suficientes para gente da minha
laia, e me indicou o caminho mais direto para sair
dos jardins. Agradeci-lhe com toda a humildade e
me afastei. Ele ficou observando a minha partida
at que o caminho me fez dar a volta em uma sebe
e sair do seu campo de viso.
A incurso seguinte foi mais discreta. Eu
considerara brevemente a ideia de emboscar um
dos jovens nobres que passeavam por entre as
flores e ornamentos herbceos e me servir das
suas roupas, mas decidira no fazer isso. Era
improvvel encontrar algum suficientemente
esguio para que a sua roupa me servisse como
devia ser, e as vestimentas elegantes que eles
traziam pareciam precisar de montes de ns em
fitas de cores alegres. Duvidava de ser capaz de
me enfiar numa daquelas camisas sem a ajuda de
um criado, quanto mais despir uma de um homem
inconsciente. E, de qualquer modo, os tilintantes
ornamentos de prata costurados nas rendas que
pendiam dos punhos no se adequavam ao trabalho
silencioso de um assassino. Decidi confiar na
densidade das plantas ao longo dos muros baixos
para me fornecer abrigo, e subi gradualmente a
colina.
Acabei encontrando um muro de pedra lisa que
rodeava o topo da colina. A sua altura era s
ligeiramente superior que um homem alto
poderia alcanar com um salto. No me parecia
que tivesse sido planejado como uma barreira
sria. No havia plantas ao longo dele, mas tocos
de velhos troncos e razes mostravam que
antigamente fora embelezado com trepadeiras e
arbustos. Perguntei a mim mesmo se teria sido
Majestoso que ordenou a sua limpeza. Por cima do
muro, eu conseguia ver as copas de numerosas
rvores, e ousei, portanto, contar com o abrigo que
elas forneceriam.
Precisei da maior parte da tarde para fazer o
circuito completo do muro sem ficar vista. Havia
nele vrios portes. Um elegante porto principal
tinha guardas de libr saudando carruagens cheias
de gente que entravam e saam. Se eu tivesse
roupas melhores, teria me arriscado a representar
o papel de um criado, mas no me atrevia a tentar
tal coisa com os meus farrapos de mendigo. Em
vez disso, fiquei fora da vista dos guardas no
porto e comecei a mendigar junto dos
comerciantes que iam e vinham. Fazia-o em
silncio, simplesmente me aproximando deles de
mos estendidas e uma expresso suplicante. A
maior parte fez o que as pessoas fazem quando
confrontadas com um mendigo. Ignorou-me e
prosseguiu com as suas conversas. E assim fiquei
sabendo que aquela era a noite do Baile Escarlate,
que havia sido trazido para a festa um nmero
adicional de criados, msicos e mgicos, que
rebentalegre substitura a erva-de-riso como fumo
favorito do rei, e que o rei ficara muito irritado
com a qualidade da seda amarela que um tal Festro
lhe trouxera e ameaara chicotear o mercador por
ter a ousadia de lhe trazer material to ruim. O
baile era tambm uma despedida ao rei, antes de
embarcar na manh seguinte numa viagem para
visitar a sua querida amiga Dama Celestra, em
Salo de mbar, junto ao rio Vim. Ouvi muito
mais coisas, mas poucas que se relacionassem com
o meu objetivo. Acabei tambm obtendo um
punhado de moedas de cobre pelo tempo gasto.
Regressei a Vaudefeira. Descobri uma rua
inteira dedicada confeco de roupas. Na porta
dos fundos da loja de Festro encontrei um aprendiz
varrendo. Dei-lhe vrios cobres em troca de
alguns pedaos de seda em vrios tons de amarelo.
Ento procurei a mais humilde loja da rua, onde
todas as moedas que possua bastaram para
comprar umas calas largas, um guarda-p e um
leno para a cabea semelhante quele que o
aprendiz usava. Troquei de roupa na loja,
entrancei o meu rabo de cavalo de guerreiro e
escondi-o sob o leno, calcei as botas e sa da loja
uma pessoa diferente. A espada pendia agora ao
longo da perna, por dentro das calas. Era
desconfortvel, mas no muito visvel se eu
adotasse um passo rpido. Deixei a roupa velha e
o resto da minha trouxa, exceo dos venenos e
de outros instrumentos pertinentes, num canteiro de
urtigas por trs de um anexo muito malcheiroso no
ptio de uma taverna. Regressei ao Castelo de
Vaudefeira.
No me permiti hesitaes. Dirigi-me
diretamente ao porto dos comerciantes e fiquei na
fila com os outros que tentavam entrar. O meu
corao batia com fora dentro das costelas, mas
adotei um comportamento calmo. Passei o tempo
examinando aquilo que conseguia ver da casa
atravs das rvores. Era imensa. Antes eu me
sentira espantado pela quantidade de terra arvel
que fora dedicada a jardins decorativos e
caminhos. Agora via que os jardins eram apenas o
pano de fundo para uma habitao que se estendia
e erguia num estilo de casa que me era
completamente estranho. Nada nela lembrava uma
fortaleza ou castelo; tudo era conforto e elegncia.
Quando chegou a minha vez, mostrei os pedaos
de seda e disse que trazia as desculpas de Festro e
algumas amostras que ele esperava que fossem
mais do agrado do rei. Quando um guarda rspido
comentou que Festro vinha habitualmente em
pessoa, eu respondi, um tanto mal-humorado, que o
meu mestre achava que riscas ficavam melhor s
minhas costas do que s suas, no caso de as
amostras no agradarem ao rei. Os guardas
trocaram sorrisos e me deixaram entrar.
Subi rapidamente o caminho at me aproximar
de um grupo de msicos que tinha entrado antes de
mim. Contornei atrs deles at os fundos do solar.
Ajoelhei-me para amarrar de novo a bota enquanto
eles pediam instrues, ento me endireitei a
tempo de segui-los para o interior. Dei por mim
num pequeno trio, fresco e quase escuro depois
do calor e luminosidade do sol da tarde. Segui-os
ao longo de um corredor. Os menestris
conversavam e riam entre si enquanto se
apressavam. Eu diminu o passo e fiquei para trs.
Quando passei por uma porta que se escancarava
para uma sala vazia, entrei e fechei-a
silenciosamente atrs de mim. Respirei fundo e
olhei em volta.
Estava numa pequena sala de estar. A moblia
era pobre e combinava mal, de modo que deduzi
que se destinava a criados ou artesos que viessem
de visita. No podia contar com ficar ali sozinho
por muito tempo. Havia, no entanto, vrios grandes
armrios ao longo da parede. Escolhi um que no
estava diretamente vista da porta no caso de ela
se abrir de repente, e me apressei a redistribuir o
contedo para conseguir me sentar l dentro.
Aninhei-me com a porta ligeiramente aberta para
ter alguma luz e tratei de trabalhar. Inspecionei e
organizei os meus frascos e pacotes de venenos.
Tratei tanto a faca de cinto como o gume da espada
com veneno, ento embainhei cautelosamente as
armas de novo. Arranjei um modo de a espada
pender do lado de fora das calas. Ento procurei
ficar confortvel e me instalei para esperar.
Pareceram passar-se dias at que o crepsculo
desse lugar escurido completa. Por duas vezes
houve pessoas que entraram brevemente na sala,
mas conclu pelas suas conversas que todos os
criados se encontravam ocupados preparando-se
para a reunio daquela noite. Passei o tempo
imaginando como Majestoso me mataria se me
apanhasse. Por vrias vezes quase perdi a
coragem. Em cada uma dessas vezes lembrei a
mim mesmo que, se me afastasse daquilo, teria de
viver para sempre com o medo. E, assim, procurei
me preparar. Se Majestoso estava ali, ento o seu
crculo estaria sem dvida por perto. Dediquei-me
cautelosamente aos exerccios que Veracidade me
ensinara para proteger a minha mente contra outros
Talentosos. Senti-me horrivelmente tentado a
arriscar sondar com um minsculo toque de
Talento, para ver se conseguiria detect-los.
Resisti. Duvidava de ser capaz de pressenti-los
sem me trair. E mesmo se conseguisse detect-los
assim, o que me diria tal coisa que eu j no
soubesse? Era melhor me concentrar em me
defender deles. Recusei-me a permitir que eu
pensasse especificamente no que faria, para que
eles no apanhassem sinais dos meus pensamentos.
Quando o cu fora da janela ficou por fim
completamente negro e pontilhado de estrelas,
esgueirei-me para fora do meu esconderijo e me
aventurei a sair para o corredor.
Msica ecoava na noite. Majestoso e os
convidados encontravam-se nas festividades.
Escutei por um momento as notas tnues de uma
cano sobre duas irms que me era familiar, uma
das quais afogava a outra. Para mim, o encanto da
cano no estava numa harpa que tocava sozinha,
mas num menestrel que encontrava um corpo de
mulher e era inspirado a fazer uma harpa com o
seu esterno. Ento deixei de lado a cano e me
concentrei no que tinha a fazer.
Encontrava-me num corredor simples, com cho
de pedra e painis de madeira nas paredes,
iluminado por archotes muito afastados uns dos
outros. rea para criados, deduzi; no era
suficientemente elegante para Majestoso ou para
os seus amigos. Isso, no entanto, no a tornava
segura para mim. Precisava encontrar uma escada
para criados e subir at o segundo andar. Deslizei
ao longo do corredor. Ia de porta em porta,
parando para escutar junto de cada uma. Por duas
vezes ouvi rumor de gente atrs delas, mulheres
conversando em uma, o estalido de um tear sendo
usado em outra. Abri brevemente aquelas portas
silenciosas que no estavam trancadas. Na maior
parte eram salas de trabalho, vrias dedicadas
tecelagem ou costura. Majestoso, aparentemente,
ainda cedia ao seu gosto por belos trajes.
Cheguei ao fim do corredor e espiei em volta da
esquina. Outro corredor, muito mais largo e
elegante. O teto de estuque fora esculpido com
samambaias. Mais uma vez deslizei ao longo de
um corredor, escutando s portas, espreitando
cautelosamente por algumas. Chegando perto,
disse a mim mesmo. Descobri uma biblioteca, com
mais livros de velino e pergaminhos do que eu
podia imaginar que existissem. Fiz uma pausa
numa sala onde aves vivamente emplumadas
cochilavam nos seus poleiros dentro de gaiolas
extravagantes. Lajes de mrmore branco tinham
sido dispostas para suportar tanques de peixes de
movimentos rpidos e lrios de gua. Havia ali
bancos e cadeiras almofadadas, dispostos em volta
de mesas de jogo. Pequenas mesas de cerejeira
espalhadas por todo o lado suportavam
incensrios de fumo. Eu jamais tinha sequer
imaginado uma sala assim.
Acabei chegando a um belo salo, com retratos
emoldurados nas paredes e um cho de ardsia
negra reluzente. Recuei quando vi o guarda e
permaneci em silncio num nicho at que os seus
passos entediados o levaram a passar por mim.
Ento me esgueirei para fora do nicho e passei
depressa por todos aqueles nobres a cavalo e
damas afetadas nas suas molduras suntuosas.
Entrei precipitadamente numa antecmara. Havia
tapearias na parede e pequenas mesas que
suportavam estatuetas e vasos de flores. At as
arandelas para os archotes ali eram mais
ornamentadas. Havia pequenos retratos em
molduras douradas de ambos os lados de uma
lareira encimada por uma elaborada cornija.
Havia cadeiras dispostas junto umas das outras
para conversas ntimas. A msica era mais alta ali,
e ouvi tambm risos e vozes. Apesar da hora
tardia, os festejos prosseguiam. Na parede oposta
viam-se duas grandes portas esculpidas. Davam
para o salo onde Majestoso e os seus nobres
danavam e riam. Recolhi-me ao canto quando vi
dois criados de libr entrar vindos de uma porta
do meu lado esquerdo. Carregavam bandejas com
um conjunto de potes de incenso. Supus que eram
para substituir aqueles que teriam se esgotado.
Fiquei imvel, escutando os seus passos e
conversa. Abriram as portas altas e a msica de
harpa ficou mais sonora acompanhada pelo odor
narctico do fumo. Ambos foram abafados pelas
portas que se fecharam. Aventurei-me de novo a
espreitar. O caminho estava livre minha frente,
mas atrs de mim
Que fazes aqui?
O corao foi parar nas botas, mas forcei um
sorriso acanhado aparecer no meu rosto enquanto
me virava para encarar o guarda que entrara na
sala atrs de mim.
Senhor, perdi-me no grande labirinto desta
casa disse-lhe, com sinceridade.
mesmo? Isso no explica por que est
usando uma espada no interior dos muros do rei.
Todos sabem que as armas esto proibidas, exceto
guarda do prprio rei. Vi-o agora mesmo
espreitando furtivamente. Achava que com a festa
em andamento podia simplesmente esgueirar-se
por a e encher os bolsos com tudo o que
encontrasse, ladro?
Fiquei paralisado de terror, observando o
homem que se aproximava de mim. Tenho certeza
de que a expresso aflita do meu rosto o
convenceu de ter descoberto o meu propsito.
Verde nunca teria sorrido assim se pensasse que
avanava sobre um homem que ajudara a espancar
at a morte numa masmorra. A sua mo repousava
descuidadamente no cabo da espada e ele sorria
com confiana. Era um homem bem bonito, muito
alto e de pele clara, tal como a maior parte das
pessoas de Vara. O distintivo que usava mostrava
o carvalho dourado dos Montebom de Vara, com o
cervo Visionrio saltando sobre ele. Ento
Majestoso havia tambm modificado o seu braso.
Quase desejei que tivesse deixado o cervo de fora.
Uma parte de mim reparou em todas essas coisas
enquanto outra parte voltava a viver o pesadelo de
ser erguido pelo colarinho da camisa e
endireitado, apenas para que aquele homem
pudesse me bater e me atirar mais uma vez no
cho. No era Dardo, aquele que quebrara o meu
nariz. No, Verde viera depois dele, espancando-
me at perder os sentidos uma segunda vez, depois
de Dardo ter me deixado num estado ruim demais
para que eu conseguisse me manter de p sozinho.
Ele havia se agigantado acima de mim na ocasio,
e eu me encolhera e recuara, tentara em vo me
afastar dele engatinhando pelo frio cho de pedra
que j estava salpicado com o meu sangue.
Lembrei-me das pragas que ele proferira em tom
risonho a cada vez que tivera de me levantar para
que pudessem bater de novo em mim.
Pelas tetas de Eda resmunguei para mim
mesmo, e com essas palavras o medo morreu em
mim.
Vejamos o que voc tem nessa bolsa
exigiu ele, e aproximou-se mais.
Eu no podia lhe mostrar os venenos que trazia
na bolsa. No havia maneira de explic-los.
Nenhuma quantidade de mentira tranquila me faria
escapar daquele homem. Teria que mat-lo.
De repente, tudo se tornou to simples.
Estvamos perto demais do salo. No queria
que nenhum rudo alarmasse ou alertasse algum,
de modo que me afastei dele, um passo lento de
cada vez, recuando num grande crculo que me
levou a regressar ao aposento de onde sara. Os
retratos nos olhavam enquanto eu recuava hesitante
do grande guarda.
Fique parado! ordenou, mas eu sacudi
violentamente a cabea naquilo que esperava que
fosse uma exibio convincente de terror. Eu
disse para ficar parado, seu ladrozinho magrela!
Olhei rapidamente de relance por sobre o
ombro, e de novo para ele, desesperado, como se
estivesse tentando encontrar coragem para me
virar e fugir dele. Da terceira vez que o fiz, ele
saltou sobre mim.
Eu esperara que o fizesse.
Esquivei-me com um passo para o lado, ento
enfiei com violncia o cotovelo no fundo das
costas, acrescentando sua carga impulso
suficiente para faz-lo cair de joelhos. Ouvi-os
colidindo com um rudo ossudo contra o cho de
pedra. Verde soltou um urro inarticulado de raiva
e dor. Pude ver a sbita fria que sentiu por o
ladro magrela ter se atrevido a golpe-lo.
Silenciei-o bruscamente com um chute no queixo
que lhe fechou a boca com um estalido. Senti-me
grato por ter voltado a calar as minhas botas.
Antes de ele ter tempo de soltar outro som, eu j
desembainhara a faca e lhe cortara a garganta. Ele
gorgolejou o seu espanto e ergueu ambas as mos,
numa v tentativa de conter o jorro quente de
sangue. Aproximei-me dele e olhei em seus olhos.
FitzCavalaria disse-lhe em voz baixa.
FitzCavalaria Os seus olhos arregalaram-se
numa compreenso e terror sbitos, e ento
perderam toda a expresso quando a vida o
abandonou. De repente tornou-se imobilidade e
nada, to vazio de vida como uma pedra. Para o
meu sentido da Manha, desaparecera.
Terminou to depressa. Vingana. Fiquei
olhando-o, esperando sentir triunfo, alvio ou
satisfao. Em vez disso, no senti nada, senti-me
to perdido para toda a vida como ele estava. Ele
nem sequer era carne que eu pudesse comer.
Perguntei-me tardiamente se haveria em algum
lugar uma mulher que tivesse amado aquele homem
bonito, crianas louras que dependessem dos seus
soldos para terem alimento. No bom para um
assassino ter pensamentos assim; eles nunca
tinham me atormentado na poca em que eu
desempenhava a Justia Real em nome do Rei
Sagaz. Sacudi-os da cabea.
Verde estava fazendo um poa de sangue muito
grande no cho. Eu o silenciara rapidamente, mas
aquilo era precisamente o tipo de desordem que
no desejara criar. Ele era um homem grande e
tinha muito sangue no corpo. A minha mente correu
enquanto debatia se seria melhor gastar tempo para
esconder o corpo ou aceitar o fato de que a sua
falta iria ser rapidamente detectada pelos outros
guardas e usar essa descoberta como distrao.
Por fim, tirei a camisa e absorvi com ela o
mximo de sangue que consegui. Depois, joguei-a
sobre o seu peito e limpei as mos ensanguentadas
na sua camisa. Agarrei-o pelos ombros e o arrastei
para fora do salo dos retratos, quase tremendo
com o esforo de retesar os sentidos para perceber
a aproximao de algum. As minhas botas no
paravam de escorregar nos assoalhos polidos e o
som da minha respirao arquejante era um rugido
aos meus ouvidos. Apesar do esforo que fizera
para limpar o sangue, deixamos um lustre
vermelho nos assoalhos atrs de ns. porta da
sala dos pssaros e peixes, forcei-me a escutar
bem antes de entrar. Prendi a respirao e tentei
ignorar o bater do corao nos meus ouvidos. Mas
a sala estava vazia de seres humanos. Empurrei a
porta com um ombro e arrastei Verde l para
dentro. Ento o ergui e o atirei para dentro de um
dos tanques de pedra. Os peixes dardejaram
freneticamente de um lado para o outro enquanto o
sangue do homem se espalhava e rodopiava na
gua lmpida. Lavei apressadamente o sangue das
mos e do peito em outro tanque e sa por uma
porta diferente. Eles iriam seguir o rastro de
sangue at ali. Esperava que gastassem algum
tempo tentando entender por que motivo o
assassino teria arrastado o guarda at ali e o
despejara num tanque.
Dei por mim numa sala que no me era familiar.
Olhei rapidamente em volta, para o teto
abobadado e paredes revestidas por painis.
Havia uma cadeira grandiosa sobre um estrado na
ponta mais distante. Ento era algum tipo de sala
de audincias. Olhei ao redor para me orientar, e
ento fiquei paralisado onde me encontrava. As
portas esculpidas minha direita abriram-se de
sbito. Ouvi risos, uma pergunta murmurada e uma
resposta risonha. No havia tempo para me
esconder e nenhuma coisa atrs da qual encontrar
abrigo. Encostei-me em uma tapearia de parede e
fiquei imvel. O grupo entrou numa onda de risos.
Havia uma nota de desamparo nos risos que me
informou que estavam bbados ou tontos de fumo.
Passaram bem diante de mim, dois homens
disputando as atenes de uma mulher que soltava
risinhos abafados por trs de um leque
ornamentado com borlas. Os trs estavam trajados
inteiramente de tons de vermelho, e um dos
homens trazia ornamentos tilintantes de prata no
s na renda dos punhos, mas tambm ao longo das
mangas largas, at os cotovelos. O outro homem
carregava um pequeno incensrio de fumo na ponta
de uma vara ornamentada. Fazia-o oscilar de um
lado para o outro frente do grupo enquanto
caminhava, de modo a mant-los sempre envoltos
nos fumos adocicados. Duvidava de que teriam
reparado em mim mesmo se eu tivesse saltado
sua frente dando cambalhotas. Majestoso parecia
ter herdado o gosto da me por intoxicantes, e
estar transformando-os numa moda da corte.
Permaneci imvel at terem passado. Entraram na
sala dos pssaros e peixes. Perguntei-me se
reparariam em Verde, no tanque. Duvidava de que
o fizessem.
Voei para a porta por onde os cortesos tinham
entrado, e a atravessei p ante p. Dei por mim, de
sbito, num grande trio. Tinha cho de mrmore e
senti minha mente vacilar com a despesa de
arrastar uma tal quantidade de pedra at
Vaudefeira. O teto era elevado e estucado de
branco, com relevos de imensas flores e folhas
aplicados sob presso no estuque. Havia janelas
arqueadas de vitral, agora deixadas escuras pela
noite, mas entre elas pendiam tapearias que
brilhavam com cores to ricas que pareciam
janelas para algum outro mundo e tempo. Tudo
estava iluminado com candelabros ornamentados
carregados de cristais cintilantes e suspensos por
correntes douradas. Neles ardiam centenas de
velas. Havia esttuas em exibio, montadas em
pedestais, espalhadas a intervalos pela sala, e,
pelo aspecto, a maior parte representava os
antepassados Montebom de Majestoso, por parte
da me. Apesar do perigo em que me encontrava, a
grandiosidade da sala me capturou por um
momento. Ento ergui os olhos e vi a larga
escadaria que ascendia. Aquela era a escadaria
principal, no as escadas escondidas para criados
que eu procurara. Dez homens podiam ter subido
facilmente por ela lado a lado. A madeira das
balaustradas era escura e cheia de ns em voluta,
mas brilhava com um profundo lustre. Um tapete
espesso derramava-se pelo centro dos degraus
como uma cascata azul.
O salo encontrava-se vazio, e a escadaria
tambm. No dei a mim mesmo tempo para hesitar,
e deslizei em silncio pela sala afora e pela
escada acima. Estava no meio da subida quando
ouvi o grito. Era evidente que haviam reparado em
Verde. No topo do primeiro lance, ouvi vozes e
passos em corrida que vinham da direita. Fugi
para a esquerda. Cheguei a uma porta, encostei o
ouvido nela, no ouvi nada, e esgueirei-me l para
dentro, tudo em menos tempo do que demora a
contar. Fiquei na escurido, com o corao
ribombando, agradecendo a Eda, a El e a
quaisquer outros deuses que pudessem existir por
a porta no ter estado trancada.
Permaneci na escurido, com o ouvido
comprimido contra a espessa porta, tentando
escutar mais do que o bater do meu prprio
corao. Ouvi gritos vindos de baixo e botas
correndo pela escada abaixo. Passou-se um
momento ou dois, e ouvi uma voz autoritria
gritando ordens. Deslizei para um local onde a
abertura da porta me esconderia, pelo menos
temporariamente, e esperei, de respirao
silenciada, com as mos tremendo. O medo
ergueu-se em mim como um negrume sbito,
ameaando me dominar. Senti o cho balanar sob
os meus ps e me agachei rapidamente para evitar
desmaiar. O mundo rodopiou minha volta.
Encolhi-me, abraando-me com fora e apertando
bem os olhos fechados, como se isso de algum
modo me escondesse melhor. Uma segunda onda
de medo tomou conta de mim. Afundei-me o que
faltava at o cho e ca de lado, quase
choramingando. Enrolei-me numa bola, suportando
uma terrvel dor no peito que era como se algo
estivesse me espremendo. Ia morrer. Ia morrer e
nunca mais os veria, Moli, Bronco, meu rei. Devia
ter ido ter com Veracidade. Sabia agora. Devia ter
ido ter com Veracidade. Quis gritar e chorar, pois
subitamente tive certeza de que jamais seria capaz
de escapar, de que seria encontrado e torturado.
Eles iriam me encontrar e me matar muito, muito
lentamente. Senti um impulso quase irresistvel
para simplesmente dar um salto e fugir da sala,
sacar a espada contra os guardas e obrig-los a
acabar comigo depressa.
Firme agora. Esto tentando fazer com que
voc se revele. O Talento de Veracidade era mais
delicado do que uma teia de aranha. Prendi a
respirao, mas tive a sensatez de me manter
imvel.
Aps o que pareceu ser muito tempo, o terror
cego passou. Respirei fundo, longa e
tremulamente, e foi como voltar a mim. Quando
ouvi os passos e vozes do outro lado da porta, o
medo voltou a surgir, mas me forcei a ficar imvel
e a escutar.
Eu tinha certeza disse um homem.
No. Ele j foi embora h muito tempo. Vo
encontr-lo nos jardins, se chegarem a encontrar.
Ningum poderia ter resistido a ns dois. Se ele
ainda estivesse na casa, teramos feito ele sair do
esconderijo.
Estou dizendo que havia alguma coisa.
Nada insistiu a outra voz com alguma
irritao. No senti nada.
Verifique de novo insistiu o outro.
No. uma perda de tempo. Acho que voc
se enganou. A ira do primeiro homem estava
tornando-se bvia, apesar das vozes baixas.
Espero que tenha me enganado, mas temo que
no. Se eu tiver razo, demos a Vontade a
desculpa pela qual ele tem andado procura.
Tambm havia ira na voz do segundo homem, mas
tambm uma auto piedade lamurienta.
procura de uma desculpa? Esse no. Fala
mal de ns ao rei em cada oportunidade. Ouvindo-
o falar, seria de pensar que ele o nico que faz
algum sacrifcio ao servio do Rei Majestoso.
Uma criada me disse ontem que ele j nem usa
sutilezas. Voc, diz ele, gordo, e a mim acusa de
todas as fraquezas da carne que um homem pode
ter.
Se no sou to esguio como um soldado,
porque no sou um soldado. No o meu corpo
que serve o rei, mas sim a minha mente. Melhor
seria que ele olhasse para si mesmo antes de nos
apontar falhas, ele que s tem um olho bom. A
lamria era agora inconfundvel. Emaranhado,
compreendi eu de sbito. Emaranhado
conversando com Cedoura.
Bem. Fico contente por saber que esta noite,
pelo menos, ele no pode nos apontar falhas. No
consigo encontrar nada de errado aqui. Ele o faz
saltar diante de sombras e a ver perigo em cada
canto. Acalme-se. Isso agora tarefa para os
guardas, no para ns. Provavelmente acabaro
descobrindo que aquilo foi feito por um marido
ciumento ou por outro guarda. Ouvi dizer que
Verde ganhava nos dados com uma frequncia um
pouco excessiva. Talvez tenha sido por isso que
ele foi deixado na sala dos jogos. Ento, se me der
licena, vou voltar para junto da bela companhia
da qual voc me distraiu.
Ento v, se s nisso que consegue pensar
disse o lamuriento num tom mal-humorado.
Mas quando voc tiver um momento, acho que
seria sensato nos reunirmos. Aps um momento,
Emaranhado acrescentou: Estou quase decidido
a ir at ele agora mesmo. Fazer com que o
problema seja dele.
Voc s acabaria fazendo papel de tolo.
Quando voc se preocupa tanto assim, est apenas
cedendo influncia dele. Deixe-o lanar os seus
avisos e predies terrveis e passar cada
momento da sua vida em guarda. A julgar pelo que
ele diz, a vigilncia dele tudo de que o rei
precisa. Tenta instilar em ns esse medo. Os seus
tremores provavelmente do grande satisfao a
ele. Guarde com cuidado esses pensamentos.
Ouvi um conjunto de passos afastando-se
vivamente. O rugido nos meus ouvidos atenuou-se
um pouco. Aps algum tempo, ouvi o outro homem
partir, caminhando mais pesadamente e
resmungando consigo mesmo. Quando deixei de
conseguir ouvir os seus passos, senti como se um
grande peso tivesse sido tirado de cima de mim.
Engoli em seco e debati meu prximo passo.
Uma luz tnue infiltrava-se pelas grandes
janelas. Consegui distinguir a armao de uma
cama, com os cobertores puxados para trs, a fim
de exporem os lenis brancos. No estava
ocupada. Via-se a forma escura de um guarda-
roupa no canto e, perto da cama, uma mesinha
suportava uma bacia e um jarro.
Forcei-me a me acalmar. Respirei longa e
firmemente, ento me ergui silenciosamente.
Lembrei a mim mesmo que precisava encontrar o
quarto de Majestoso. Suspeitava de que deveria
ficar naquele andar, com os aposentos dos criados
nos pisos superiores da casa. A furtividade me
levara at ali, mas talvez agora fosse o momento
de ser mais ousado. Atravessei o quarto at o
guarda-roupa do canto e o abri em silncio. A
sorte voltara a me favorecer; aquele aposento
pertencia a um homem. Vasculhei os trajes ao
toque, tateando em busca de um tecido que
parecesse servir. Tinha de trabalhar depressa, pois
supus que o legtimo dono estava na festa l
embaixo e poderia regressar a qualquer momento.
Descobri uma camisa de cor clara, muito mais
complicada nas mangas e colarinho do que eu
desejaria, mas quase com o comprimento
suficiente nos braos. Consegui me enfiar nela e
num par de perneiras mais escuras que ficaram
folgadas demais em mim. Prendi-as com um cinto
e esperei que no me cassem de um modo muito
estranho. Encontrei um pote de pomada aromtica.
Penteei o cabelo para trs com os dedos untados
de pomada e voltei a prend-lo num rabo de
cavalo, renunciando ao leno de comerciante. A
maior parte dos cortesos que eu vira at ali usava
o cabelo em cachos oleosos semelhantes a
Majestoso, mas alguns dos mais jovens mantinham
o cabelo amarrado atrs da cabea. Tateei em
vrias gavetas. Descobri um tipo qualquer de
medalho preso a uma corrente e o coloquei no
pescoo. Havia um anel, grande demais para o
meu dedo, mas isso pouco importava. Passaria na
inspeo de um olhar casual, e eu esperava no
atrair mais do que isso. Eles estariam procura de
um homem sem camisa e com calas de tecido
grosseiro que combinassem com a camisa
ensanguentada que abandonara. Atrevi-me a ter
esperana de que estivessem procura dele no
exterior. Fiz uma pausa na soleira, respirei fundo e
ento abri lentamente a porta. O corredor estava
vazio, e eu sa do quarto.
Uma vez luz, no gostei de descobrir que as
perneiras eram de um verde escuro e a camisa de
um amarelo amanteigado. Bem, no era mais
espalhafatoso do que eu j vira ser usado, mas
seria difcil que eu conseguisse me misturar com
os convidados daquele Baile Escarlate. Deixei
resoluto a preocupao de lado e avancei corredor
afora, caminhando descontrado, mas determinado,
em busca de uma porta que fosse maior e mais
ornamentada do que as outras.
Experimentei com ousadia a primeira que
encontrei, e vi que estava destrancada. Entrei,
apenas para dar por mim numa sala com uma
imensa harpa e vrios outros instrumentos
musicais preparados, como que espera de
menestris. Uma variedade de cadeiras
almofadadas e divs enchia o resto da sala. Todos
os quadros mostravam aves canoras. Sacudi a
cabea, desconcertado pelas infinitas riquezas
daquela nica casa. Prossegui a busca.
O meu nervosismo fez com que o salo se
estendesse sem fim na minha frente. Forcei-me a
caminhar de um modo calmo e confiante. Passei
por portas atrs de portas, experimentando
cautelosamente algumas delas. As da minha
esquerda pareciam ser quartos de dormir, ao passo
que as da direita eram salas maiores, bibliotecas,
salas de jantar e similares. Em vez de arandelas, o
corredor era iluminado por velas protegidas. As
tapearias das paredes eram ricamente coloridas,
e a intervalos havia nichos com vasos de flores ou
pequenas estatuetas. No consegui evitar compar-
las com as fortes paredes de pedra de Torre do
Cervo. Perguntei-me quantos navios de guerra
poderiam ter sido construdos e tripulados com o
dinheiro que fora gasto para ornamentar aquele
ninho elegantemente emplumado. A ira que senti
alimentou a minha competncia. Iria encontrar os
aposentos de Majestoso.
Passei por mais trs portas, ento cheguei a uma
que parecia promissora. Era uma porta dupla, de
carvalho dourado, e o carvalho que era o smbolo
de Vara encontrava-se embutido nela. Encostei
rapidamente o ouvido na porta e no ouvi nada.
Com cautela, experimentei a maaneta polida; a
porta estava trancada. A minha faca era uma
ferramenta pouco adequada para aquele tipo de
trabalho. O suor ensopou as costas da camisa
amarela antes de a tranca ceder aos meus esforos.
Entreabri a porta e deslizei l para dentro,
trancando-a logo atrs de mim.
Aqueles eram com certeza os aposentos de
Majestoso. No o seu quarto, no, mas apesar
disso lhe pertencia. Examinei rapidamente a sala.
Havia nada menos que quatro grandes guarda-
roupas, dois encostados em cada parede lateral
com um espelho alto no meio de cada conjunto. A
porta delicadamente esculpida de um dos guarda-
roupas estava aberta; ou talvez fosse a presso da
roupa que nele se encontrava que no permitia que
fosse bem fechada. Outros trajes pendiam de
ganchos e cabides espalhados pela sala ou
estavam dobrados em cima de cadeiras. Um
conjunto de gavetas trancadas numa pequena arca
provavelmente conteria joias. Os espelhos entre os
guarda-roupas eram enquadrados por dois
castiais, cujas velas ardiam agora bem gastas nos
seus encaixes. Dois pequenos incensrios para
fumo estavam dispostos de ambos os lados de uma
cadeira que se encontrava diante de outro espelho.
Por trs, e de um dos lados da cadeira, uma mesa
continha escovas, pentes, potes de pomada e
frascos de perfume. Uma estreita espiral de fumo
cinzento ainda se erguia de um dos incensrios.
Franzi o nariz diante do odor doce dela, e comecei
a trabalhar.
Fitz. Que est fazendo? A mais tnue das
perguntas vinda de Veracidade.
Justia. No coloquei mais do que um sopro de
Talento no pensamento. No tive certeza se a
apreenso que senti de repente seria minha ou de
Veracidade. Deixei-a de lado e me virei para a
minha tarefa.
Era frustrante. Havia pouco ali que fosse um
veculo seguro para os meus venenos. Eu podia
tratar a brilhantina, mas era mais provvel que
matasse quem quer que lhe tratasse do cabelo do
que Majestoso. Os incensrios continham
principalmente cinzas. Qualquer coisa que eu
colocasse ali seria provavelmente jogada fora com
a cinza. A lareira do canto fora limpa para o vero
e no havia nenhuma reserva de madeira.
Pacincia, disse a mim mesmo. O seu quarto de
dormir no podia estar longe, e as oportunidades
seriam melhores l. Por ora, tratei as cerdas da sua
escova com uma das minhas misturas mais
potentes e usei o que sobrou para tratar o mximo
que consegui dos seus brincos. As ltimas gotas eu
acrecentei aos seus frascos de perfume, mas com
pouca esperana de que ele aplicasse o suficiente
para se matar. Para os lenos aromatizados
dobrados na sua gaveta, tinha o esporo branco do
cogumelo anjo da morte, que distrairia com
alucinaes as horas que demorasse a morrer.
Obtive grande prazer ao cobrir a parte de dentro
de quatro pares de luvas com p de raiz-morta.
Fora aquele o veneno que Majestoso usara em mim
nas Montanhas, e a fonte mais provvel dos
ataques que me atormentavam intermitentemente
desde ento. Eu esperava que ele achasse os seus
ataques e quedas to divertidos como achara os
meus. Escolhi trs camisas, que julguei que talvez
fossem as suas preferidas, e tratei tambm os seus
colarinhos e punhos. No havia madeira na lareira,
mas eu tinha um veneno que se misturava bem com
os vestgios de cinza e fuligem deixados no tijolo.
Salpiquei-o generosamente na esperana de que
quando acendessem um fogo em cima do veneno,
os vapores ardentes chegassem ao nariz de
Majestoso. Tinha acabado de devolver o veneno
bolsa quando ouvi uma chave rodar na fechadura
da porta.
Dei a volta em silncio em um guarda-roupa e
parei ali. A faca j estava na minha mo, espera.
Uma calma mortfera tinha se instalado em mim.
Respirava em silncio, espera, na esperana de
que a fortuna tivesse trazido Majestoso at mim.
Mas era outro guarda com as cores de Majestoso.
O homem penetrou na sala e olhou rpido em
volta. A irritao apareceu em seu rosto enquanto
dizia impacientemente:
Estava trancada. No h ningum aqui.
Esperei que o seu parceiro respondesse, mas ele
estava s. Ficou imvel por um momento, ento
suspirou e se dirigiu ao guarda-roupa aberto.
Tolice. Estou perdendo tempo aqui em cima
enquanto ele foge resmungou para si mesmo,
mas desembainhou a espada e vasculhou
cautelosamente com ela o interior do guarda-
roupa, por trs das roupas.
Quando se inclinou para chegar mais fundo no
interior do guarda-roupa, tive um vislumbre do seu
rosto no espelho minha frente. Meu estmago
virou gua, e ento o dio ardeu em mim. Eu no
tinha um nome para lhe dar, mas o seu rosto
escarnecedor ficara para sempre gravado na minha
memria. Fizera parte da guarda pessoal de
Majestoso e testemunhara a minha morte.
Creio que ele viu o meu reflexo ao mesmo tempo
que vi o seu. No lhe dei tempo para reagir, e
saltei sobre as suas costas. A lmina da sua espada
ainda estava enredada dentro do guarda-roupa de
Majestoso quando a minha faca o apunhalou na
parte de baixo da barriga. Prendi o brao em volta
da sua garganta para obter apoio enquanto puxava
a faca para cima, estripando-o como um peixe. A
sua boca escancarou-se para gritar e eu larguei a
faca para tap-la com a mo. Segurei-o por um
momento, enquanto as entranhas comeavam a sair
do golpe que eu fizera. Quando o larguei, ele foi
ao cho, com o berro no vocalizado transformado
num gemido. No largara a espada, de modo que
pisei em sua mo, quebrando-lhe os dedos em
volta do cabo. Rolou ligeiramente para um lado,
para me fitar em agonia e choque. Fiquei sobre um
joelho ao seu lado e aproximei o rosto do seu.
FitzCavalaria eu disse em voz baixa,
fitando-o nos olhos, assegurando-me de que ele
sabia. FitzCavalaria. Pela segunda vez
naquela noite, cortei uma garganta. Quase no teria
sido necessrio. Limpei a faca na sua manga
enquanto ele morria. Enquanto eu levantava, senti
duas coisas. Desapontamento por ele ter morrido
to depressa. E uma sensao que era como se a
corda de uma harpa tivesse sido dedilhada,
soltando um som que eu sentia em vez de ouvir.
No instante seguinte, senti uma onda de Talento
me inundando. Estava carregada de terror, mas
daquela vez reconheci-o pelo que era e sabia a sua
origem. Mantive-me firme diante da onda, com as
defesas fortes. Quase que a senti abrir-se e me
envolver. Mas tambm senti que mesmo esse ato
era lido por algum, em algum lugar. No me
perguntei sobre quem seria. Vontade sentia a forma
da minha resistncia. Detectei o eco da sua onda
de triunfo. Por um momento, esse eco me paralisou
de pnico. Logo em seguida me pus em
movimento, embainhando a faca, erguendo-me
para me esgueirar pela porta para o corredor que
ainda estava vazio. No tinha mais que alguns
momentos para encontrar um novo esconderijo.
Vontade estivera presente na mente do guarda, vira
aquele aposento e a mim com toda a clareza com
que o moribundo nos vira. Como um soar de
trombetas, eu conseguia senti-lo estendendo o
Talento, pondo os guardas em movimento como se
pusesse ces no rastro de uma raposa.
Enquanto fugia, uma parte de mim sabia com
inegvel certeza que eu estava morto. Poderia ser
capaz de me esconder durante algum tempo, mas
Vontade sabia que eu me encontrava no interior da
manso. Tudo o que tinha que fazer era bloquear
todas as sadas e dar incio a uma busca
sistemtica. Corri por um corredor, virei uma
esquina e subi uma escada que havia ali. Mantive
as muralhas de Talento firmes e apertei contra mim
o meu minsculo plano como se fosse uma pedra
preciosa. Iria encontrar os aposentos de Majestoso
e envenenar tudo o que l se encontrasse. Depois,
iria em busca do prprio Majestoso. Se os guardas
me descobrissem primeiro, bem, eu os conduziria
numa bela perseguio. No podiam me matar.
No podiam faz-lo com todo o veneno que eu
transportava. Acabaria primeiro com a minha
prpria vida. O plano no era grande coisa, mas a
nica alternativa seria me render.
Assim, continuei a correr, passando por mais
portas, por mais esttuas e flores, por mais
tapearias. Todas as portas que experimentava se
mostravam trancadas. Virei outra esquina e me vi
de sbito de volta ao topo da escada. Senti um
momento de desorientao vertiginosa. Tentei
afast-la, mas o pnico ergueu-se no interior da
minha mente como uma mar negra. Parecia ser a
mesma escadaria. Eu sabia que no tinha virado
esquinas suficientes para ter voltado atrs. Passei
a correr pela escada, e de novo pelas portas,
ouvindo os gritos dos guardas abaixo de mim
enquanto o conhecimento crescia e se contorcia de
forma repugnante dentro de mim.
Vontade encostava-se minha mente.
Tontura e presso dentro dos meus olhos. Com
uma disposio sombria, voltei uma vez mais a
erguer as muralhas mentais. Virei rapidamente a
cabea e vi duas imagens por um momento.
Perguntei a mim mesmo se seria fumo. Eu no tinha
cabea para nenhum dos fumos intoxicantes de que
Majestoso gostava. No entanto, aquilo parecia ser
algo mais do que a tontura do fumo ou a alegria do
rebentalegre.
O Talento uma ferramenta poderosa nas mos
de um mestre. Eu estivera com Veracidade quando
ele a usara contra os Navios Vermelhos, para
desnortear de tal forma um timoneiro que ele
virasse os seus navios na direo dos rochedos,
para convencer um navegador de que ainda no
passara um promontrio quando este estava j bem
longe atrs dele, para deixar medos e dvidas no
corao de um capito antes de ir para a batalha,
ou para estimular de tal forma a coragem de uma
tripulao que ela rumasse imprudentemente na
direo do prprio centro de uma tempestade.
Vontade estaria trabalhando em mim h quanto
tempo? Teria ele me atrado at ali, para aquele
encontro, convencendo-me sutilmente de que nunca
esperaria a minha vinda?
Forcei-me a parar junto da porta seguinte.
Mantive-me firme, concentrei-me na fechadura da
porta enquanto trabalhava nela. No estava
trancada. Esgueirei-me para dentro, fechando a
porta atrs de mim. Um tecido azul encontrava-se
sobre uma mesa minha frente, pronto para ser
costurado. Eu j estivera naquela sala. Tive um
momento de alvio, mas logo o controlei. No.
Aquela sala encontrava-se no piso trreo. Eu
estava no primeiro andar. No estava? Atravessei
rapidamente a sala at a janela, parei a um dos
lados dela enquanto espreitava para fora. A
extenso iluminada por archotes dos Jardins do
Rei encontrava-se muito abaixo de mim.
Conseguia ver o branco do grande caminho de
entrada brilhando na noite. Havia carruagens
percorrendo-o, e criados de libr voavam de um
lado para o outro, abrindo portas. Damas e
cavalheiros em extravagantes trajes a rigor
vermelhos partiam em massa. Deduzi que o fim de
Verde causara um dano considervel ao baile de
Majestoso. Havia guardas de libr nas portas,
regulando quem podia partir e quem tinha de
esperar. Absorvi tudo isto num relance, e
compreendi tambm que estava muito mais alto do
que pensara.
E, no entanto, eu tivera certeza de que aquela
mesa e os trajes azuis espera de serem
costurados estavam na ala dos criados do piso
trreo.
Bem, no era de todo improvvel que Majestoso
tivesse dois conjuntos diferentes de roupa azul a
serem costurados. No havia tempo para tirar
aquilo a limpo; tinha de encontrar o seu quarto.
Senti uma estranha exultao quando me esgueirei
para fora da sala e voltei a voar pelo corredor
afora, uma palpitao que no era muito diferente
da de uma boa caada. Que me apanhassem, se
conseguissem.
Cheguei subitamente a um T no corredor e parei
por um momento, confuso. No parecia ajustar-se
ao que eu vira do edifcio no exterior. Olhei para a
esquerda, e depois para a direita. O lado direito
era consideravelmente mais imponente, e as
grandes portas duplas no fim do corredor estavam
decoradas com o carvalho dourado de Vara. Como
que para me impelir, ouvi vozes enfurecidas
vindas de uma sala em algum lugar minha
esquerda. Fui para a direita, sacando a faca
enquanto corria. Quando cheguei s grandes portas
duplas, coloquei em silncio a mo na maaneta,
esperando encontr-la bem trancada. Mas a porta
cedeu facilmente e girou para dentro sem rudo.
Era quase fcil demais. Deixei de lado essas
apreenses e me esgueirei para dentro, de faca
desembainhada.
A sala que se abriu diante de mim estava escura,
exceo de duas velas que ardiam em castiais
de prata na prateleira da lareira. Deslizei para o
interior daquilo que era claramente a sala de estar
de Majestoso. Uma segunda porta encontrava-se
escancarada, revelando o canto de uma cama
coberta por magnficos cortinados e, atrs dela,
uma lareira com uma pilha de lenha pronta para
ser acesa. Fechei suavemente a porta atrs de mim
e avancei para dentro da sala. Uma garrafa de
vinho e dois copos aguardavam o regresso de
Majestoso sobre uma mesa baixa, e o mesmo fazia
uma bandeja de doces. O incensrio que se
encontrava ao seu lado estava cheio de fumo em
p, esperando ser aceso quando ele regressasse.
Era a fantasia de um assassino. Quase no
conseguia decidir por onde comear.
assim que se faz, compreende?
Girei nos calcanhares, e ento experimentei uma
distoro de sentidos que me entonteceu. Estava no
meio de uma sala bem iluminada, mas bastante
vazia. Vontade encontrava-se sentado,
negligentemente relaxado, numa cadeira
almofadada. Um copo de vinho branco esperava
numa mesa ao seu lado. Cedoura e Emaranhado o
flanqueavam, ostentando expresses de irritao e
derrota. Apesar de ansiar por faz-lo, no
conseguia tirar os olhos deles.
Vamos, Bastardo, olhe para trs. No vou
atac-lo. Seria uma pena acionar uma armadilha
destas para algum como voc, s para que
morresse antes de apreciar a totalidade do seu
fracasso. Vamos. Olhe para trs.
Virei lentamente o corpo todo, para conseguir
olhar para trs com um mero movimento de olhos.
Desaparecera, tudo desaparecera. Nada de rgia
sala de estar, nada de cama de dossel ou garrafa
de vinho, nada. Uma sala simples e vazia,
provavelmente para ser dividida pelas aias de
vrias damas. Seis guardas de libr estavam em
silncio, mas atentos. Todos tinham espadas
desembainhadas.
Os meus companheiros parecem pensar que
uma torrente de medo capaz de fazer qualquer
homem sair da toca. Mas eles, claro, no
experimentaram a sua fora de vontade to
completamente como eu. Espero que aprecie a
sutileza que eu utilizei, assegurando-o apenas de
que voc estava vendo precisamente aquilo que
mais desejava ver. Olhou para Cedoura e
Emaranhado. Ele tem muralhas como vocs
nunca experimentaram. Mas uma muralha que no
cede diante de um arete pode ser derrotada pelo
suave entrelaar da hera. Voltou a desviar a
ateno para mim. Voc teria sido um oponente
de valor, se, na sua presuno, no tivesse sempre
me subestimado.
Eu ainda no havia dito uma palavra. Encarei
todos eles, deixando que o dio que me enchia me
fortalecesse as muralhas de Talento. Todos eles
tinham mudado desde que os vira pela ltima vez.
Emaranhado, outrora um carpinteiro bem
musculoso, mostrava os efeitos de um bom apetite
e da falta de exerccio. O traje de Cedoura
ofuscava o homem que se encontrava no seu
interior. Fitas e enfeites engrinaldavam a
vestimenta como se fossem flores numa macieira
primaveril. Mas Vontade, sentado entre os outros
na sua cadeira, mostrava a maior mudana de
todas. Estava inteiramente vestido de azul-escuro,
com um traje cujo corte preciso fazia com que
parecesse mais refinado do que a roupa de
Cedoura. Uma nica corrente de prata, um anel de
prata na mo, brincos de prata; eram esses os seus
nicos ornamentos. S restava um dos seus olhos
escuros, outrora to terrivelmente penetrantes. O
outro estava profundamente afundado na rbita,
mostrando-se enevoado nas profundezas como um
peixe morto num tanque sujo. Sorriu para mim
quando me viu olhando para o olho. Indicou-o com
um gesto.
Uma lembrana do nosso ltimo encontro.
Aquilo que voc atirou no meu rosto, o que quer
que tenha sido.
Uma pena eu disse, com toda a
sinceridade. Pretendia que esses venenos
matassem Majestoso, no que deixassem voc
meio cego.
Vontade soltou um suspiro afetado.
Outra admisso de traio. Como se
precisssemos dela. Enfim. Desta vez seremos
mais meticulosos. Primeiro, claro, passaremos
algum tempo arrancando de voc como foi
exatamente que escapou da morte. Um pouco de
tempo para isso, e mais o tempo que o Rei
Majestoso ach-lo divertido. Desta vez, ele no
ter necessidade de pressa ou discrio. Fez
um minsculo aceno para os guardas atrs de mim.
Sorri-lhe enquanto encostava a lmina
envenenada da minha faca no brao esquerdo.
Apertei os dentes contra a dor enquanto a passava
pelo brao, no profundamente, mas o suficiente
para abrir a pele e deixar que o veneno da lmina
entrasse no meu sangue. Vontade levantou-se de
um salto, chocado, enquanto Cedoura e
Emaranhado observavam, horrorizados e
repugnados. Passei a faca para a mo esquerda,
puxei da espada com a direita.
Agora estou morrendo disse-lhes,
sorrindo. Provavelmente morrerei muito em
breve. No tenho tempo a desperdiar e nada a
perder.
Mas ele tivera razo. Sempre o subestimara.
Sem saber como, dei por mim enfrentando no os
membros do crculo, mas seis guardas de espadas
desembainhadas. Matar-me era uma coisa. Ser
retalhado at a morte enquanto aqueles contra os
quais eu desejava vingana observavam era outra.
Girei e senti uma onda de tontura quando o fiz,
como se fosse a sala, e no eu, que se movesse.
Ergui os olhos para descobrir os espadachins
ainda na minha frente. Virei-me mais uma vez e
mais uma vez experimentei uma sensao de
oscilao. A fina linha de sangue ao longo do meu
brao comeara a arder. A minha oportunidade de
fazer alguma coisa quanto a Vontade, Emaranhado
e Cedoura estava fugindo por entre os meus dedos
enquanto o veneno se espalhava pelo meu sangue.
Os guardas avanavam contra mim, sem pressas,
espalhando-se em meio crculo e me empurrando
sua frente como se eu fosse uma ovelha
desgarrada. Recuei, olhei por sobre o ombro e tive
o mais fugaz dos vislumbres dos membros do
crculo. Vontade estava de p, um passo ou dois
frente dos outros, com uma expresso aborrecida
no rosto. Eu fora at ali na esperana de matar
Majestoso. Mal conseguira aborrecer o seu homem
de confiana com o meu suicdio.
Suicdio? Em algum lugar, bem fundo dentro de
mim, Veracidade estava horrorizado.
Melhor do que a tortura. Menos do que um
sopro de Talento nesse pensamento, mas juro que
senti Vontade ir tateando atrs dele.
Garoto, pare com esta loucura. Saia da. Venha
at mim.
No posso. tarde demais. No h maneira de
fugir. Solte-me, s ir se revelar a eles.
Revelar-me? O Talento de Veracidade
ribombou de sbito na minha mente, como um
trovo numa noite de vero, como ondas de
tempestade sacudindo uma falsia de xisto
argiloso. J o vira fazer aquilo. Irritado, iria gastar
toda a fora do seu Talento num nico esforo,
sem pensar no que poderia lhe acontecer depois.
Senti Vontade hesitando, ento mergulhar naquele
Talento, tentando chegar a Veracidade e lhe sugar
as foras.
Estudem esta revelao, seu ninho de vboras!
O meu rei libertou a sua clera.
O Talento de Veracidade foi uma exploso, com
uma fora que nunca tinha encontrado em parte
alguma. No foi dirigida contra mim, mas mesmo
assim ca de joelhos. Ouvi Cedoura e Emaranhado
gritar, gritos guturais de terror. Por um momento, a
minha cabea e sentidos clarearam, e vi a sala
como sempre fora, com os guardas dispostos em
ordem de batalha entre mim e o crculo. Vontade
estava estatelado sem sentidos no cho. Talvez s
eu tivesse sentido a grande onda de fora que me
salvar custara a Veracidade. Os guardas
cambaleavam, murchos como velas ao sol.
Rodopiei, vi a porta atrs de mim abrir-se para
deixar entrar mais guardas. Trs passos me
levariam at a janela.
VENHA AT MIM!
No me restava qualquer alternativa naquela
ordem. Estava impregnada no Talento que
cavalgava e foi impressa a fogo no meu crebro,
fundindo-se com a minha respirao e o bater do
meu corao. Eu precisava ir at Veracidade. Era
um grito de comando e, agora, de necessidade. O
meu rei sacrificara as suas reservas para me
salvar.
Havia cortinas pesadas tapando a janela, e
espesso vidro espiralado atrs delas. Nem uma
coisa nem a outra me deteve quando me atirei para
o ar, do outro lado, esperando que pelo menos
houvesse l embaixo arbustos que amparassem
parte da queda. Porm, em vez disso, colidi com a
terra entre estilhaos de vidro uma frao de
momento mais tarde. Saltara, esperando cair pelo
menos um andar, de uma janela do piso trreo.
Durante uma frao de segundo, considerei a
forma completa como Vontade me enganara. Ento
me levantei cambaleante, ainda agarrado faca e
espada, e sa em disparada.
A propriedade no estava bem iluminada fora da
ala dos criados. Abenoei a escurido e fugi. Ouvi
gritos atrs de mim, e em seguida Emaranhado
gritando ordens. Estariam no meu rastro dentro de
momentos. No escaparia dali a p. Desviei-me
para a escurido mais slida dos estbulos.
A partida dos convidados do baile pusera o
estbulo em atividade. A maior parte dos
cavalarios em servio estaria provavelmente do
outro lado, frente da manso, conduzindo
cavalos. As portas do estbulo estavam
completamente abertas ao suave ar da noite, e
havia lanternas acesas l dentro. Entrei correndo,
quase derrubando uma cavalaria. Ela no podia
ter muito mais de dez anos, era magricela e
sardenta, e cambaleou para trs, guinchando ao ver
as armas desembainhadas que eu trazia.
Vou s levar um cavalo disse-lhe para
tranquiliz-la. No vou machuc-la. Ela
recuou enquanto eu embainhava a espada e em
seguida a faca. De repente, rodou sobre si mesma.
Mos! Mos! Fugiu guinchando o nome dele.
No tive tempo para dedicar um pensamento
quilo. A trs cocheiras de mim, vi o cavalo negro
de Majestoso que me olhava com curiosidade por
cima da manjedoura. Abordei-o calmamente,
estendi a mo para lhe esfregar o focinho e fazer
com que se lembrasse de mim. Talvez oito meses
tivessem se passado desde a ltima vez que me
farejara, mas eu o conhecia desde que fora parido.
Mordiscou o meu colarinho, fazendo-me ccegas
no pescoo com os pelos do focinho. Vamos,
Seta. Vamos fazer um pouco de exerccio noturno.
Como nos velhos tempos, hein, amigo? Abri a
sua cocheira, agarrei o cabresto e levei-o para
fora. No sabia para onde a menina fora, mas no
conseguia mais ouvi-la.
Seta era alto e no estava habituado a ser
montado em pelo. Saltitou um pouco quando eu
subi no seu dorso lustroso. Mesmo no meio de
todo aquele perigo, senti um prazer penetrante em
estar de novo a cavalo. Agarrei-me sua crina,
apertei os calcanhares para que avanasse. Ele deu
trs passos, ento parou diante do homem que lhe
bloqueava a passagem. Baixei os olhos para o
rosto incrdulo de Mos. Tive de sorrir diante da
sua expresso chocada.
Sou s eu, Mos. Tenho de levar um cavalo
emprestado, seno eles me matam. Outra vez.
Acho que talvez esperasse que ele se risse e me
fizesse sinal para passar. Porm, apenas me
encarou, ficando cada vez mais branco at que eu
achei que ele ia desmaiar.
Sou eu, o Fitz. No estou morto! Deixe-me
sair, Mos!
Ele deu um passo para trs.
Minha Eda! exclamou, e eu pensei que ele
certamente atiraria a cabea para trs e
gargalharia. Mas ele sibilou: Magia dos
animais! Ento girou nos calcanhares e fugiu
para a noite, berrando: Guardas! Guardas!
Talvez tenha perdido dois segundos olhando-o
de boca aberta. Senti uma dor dentro de mim como
no sentia desde que Moli me deixara. Os anos de
amizade, a longa rotina cotidiana do trabalho em
conjunto nos estbulos, tudo varrido num momento
de terror supersticioso. Era injusto, mas me senti
chocado pela sua traio. Uma frieza ergueu-se em
mim, mas esporeei Seta e mergulhei na escurido.
Aquele bom cavalo, to bem treinado por
Bronco, confiava em mim. Levei-o para longe do
caminho para carruagens iluminado por archotes e
das vias desobstrudas, atravessando na fuga
canteiros e plantaes, antes de passar correndo
por um aglomerado de guardas num dos portes
para mercadores. Eles estavam vigiando o
caminho, mas Seta e eu viemos num tropel pela
relva, e j estvamos do lado de fora do porto
antes mesmo de eles saberem o que estvamos
fazendo. Se eu conhecia Majestoso nem que fosse
um pouco, no dia seguinte ostentariam riscas por
causa disso.
Para alm do porto, voltamos a cortar caminho
pelos jardins. Eu conseguia ouvir sons de
perseguio atrs de ns. Seta respondeu muito
bem aos meus joelhos e peso, para um cavalo
habituado a rdea. Convenci-o a atravessar uma
sebe e a sair para uma estrada secundria.
Deixamos os Jardins do Rei para trs e
mantivemos o galope enquanto atravessvamos a
seo mais fina da cidade, por ruas de
paraleleppedos onde ainda ardiam archotes. Mas
rapidamente deixamos para trs tambm as casas
elegantes. Passamos como um trovo por
estalagens ainda iluminadas para os viajantes, por
lojas escuras e de persianas corridas para a noite,
com os cascos de Seta batendo ruidosamente no
barro das estradas. Tarde como era, havia pouco
movimento nas ruas. Corremos por elas to livres
quanto o vento.
Deixei-o ir mais devagar quando chegamos
seo plebeia da cidade. Ali os archotes estavam
espaados a intervalos maiores, e alguns j haviam
se apagado. Apesar disso, Seta sentiu a minha
urgncia e manteve um ritmo respeitvel. Uma vez,
ouvi outro cavalo, a grande velocidade, e por um
momento pensei que a perseguio nos encontrara.
Mas depois um mensageiro passou por ns,
viajando na direo oposta, sem sequer diminuir o
ritmo a que o seu cavalo seguia. Continuei a
avanar, temendo sempre ouvir vozes atrs de ns,
esperando os sons de trombetas.
Quando j comeava a pensar que havamos
escapado dos perseguidores, descobri que
Vaudefeira tinha um ltimo horror a me apresentar.
Entrei naquilo que antigamente fora o Grande
Mercado Circular de Vaudefeira. Nos primeiros
dias da cidade, fora ali o seu corao, um
maravilhoso grande mercado aberto por onde se
podia vagar e encontrar em exibio bens vindos
de todos os cantos do mundo conhecido.
Nunca fui capaz de descobrir com exatido
como degenerara disso at se tornar a Arena do
Rei Majestoso. Soube apenas que quando
atravessei o grande crculo aberto do mercado,
Seta resfolegou diante do cheiro de sangue velho
nas pedras sob os seus cascos. O velho cadafalso
e os pelourinhos ainda se encontravam l, agora
elevados para proveito da multido, junto com
outros dispositivos mecnicos, cuja utilidade eu
no tinha qualquer vontade de compreender. Sem
dvida que os da nova Arena do Rei teriam uma
crueldade ainda mais imaginativa. Apertei os
joelhos contra Seta e passei por tudo aquilo com
um estremecimento gelado e uma prece a Eda para
ser poupado daqueles horrores.
Ento um fio de sensaes contorceu-se pelo ar,
enrolou-se em volta dos meus pensamentos e
curvou-os. Durante um momento de sobressalto,
pensei que Vontade tentava chegar at mim com o
Talento e procurava me levar loucura. Contudo,
eu tinha as muralhas de Talento to robustas
quanto sabia ergu-las, e duvidava de que
Vontade, ou qualquer outro, fosse capaz de usar o
Talento to depressa depois da exploso de
Veracidade. No. Aquilo era pior. Aquilo
provinha de uma fonte mais profunda, mais
primeva, insidioso como gua cristalina que
tivesse sido envenenada. Fluiu para dentro de
mim, dio, dor e uma claustrofobia e fome
sufocantes, tudo enrolado num terrvel anseio por
liberdade e vingana. Voltou a despertar tudo o
que eu sentira nas masmorras de Majestoso.
Vinha das jaulas. Um grande fedor provinha da
fileira de jaulas nos limites do crculo, um fedor
de ferimentos infectados, urina e carne apodrecida.
Ainda assim, mesmo essa afronta ao meu nariz no
era to grande quanto a presso de Manha
impregnada de inferno que emanava delas. As
jaulas continham animais enlouquecidos, as
criaturas que eram mantidas para atacar os
criminosos humanos e os Forjados que Majestoso
atirava contra elas. Havia um urso, fortemente
amordaado, apesar das barras atrs das quais
passeava. Havia dois grandes gatos de uma
espcie que eu nunca vira, sofrendo uma agonia de
dor devido s presas que tinham partido e s
garras que haviam quebrado inutilmente nas
barras, e que apesar disso continuavam ainda a
batalhar contra as suas prises. Havia um imenso
touro negro com uma grande extenso de chifres. A
carne deste ltimo animal encontrava-se cravejada
de dardos com fitas, afundados em ferimentos
gangrenados que expeliam pus que escorria pelo
abaixo. A sua infelicidade me atordoava,
clamando por alvio, mas no precisei parar para
ver as pesadas correntes e trancas que fechavam
cada uma das jaulas. Se tivesse uma gazua, podia
ter tentado arrombar as fechaduras. Se tivesse
carne ou cereais, podia t-los libertado com
veneno. Mas eu no tinha nenhuma dessas coisas, e
ainda possua menos tempo, de modo que passei
por eles e continuei a avanar at que a onda da
sua loucura rebentou e me encharcou. Puxei as
rdeas. No podia deix-los para trs. Mas, venha
at mim, a ordem corria por mim, gravada a
Talento. Desobedecer-lhe no era suportvel.
Encostei os calcanhares ao agitado Seta e deixei-
os para trs, somando conta de Majestoso mais
uma dvida que um dia eu o faria pagar.
A luz verdadeira foi finalmente nos encontrar
nos arredores da cidade. Nunca imaginara que
Vaudefeira fosse to grande. Chegamos a um
crrego lento que alimentava o rio. Fiz Seta parar,
e depois desmontei e levei-o at a margem.
Deixei-o beber um pouco, caminhei com ele por
algum tempo e depois deixei-o beber mais.
Durante todo esse tempo, a minha mente fervilhou
com mil pensamentos. Eles estariam
provavelmente fazendo buscas nas estradas que
levavam para o sul, contando com o meu regresso
a Cervo. Eu tinha agora uma boa dianteira; desde
que me mantivesse em movimento, tinha boas
chances de escapar. Lembrei-me da trouxa que
escondera astuciosamente e que nunca seria
recuperada. As roupas de inverno, o cobertor, o
manto, tudo perdido para mim. Perguntei de sbito
a mim mesmo se Majestoso culparia Mos por eu
ter roubado o cavalo. No parava de me lembrar
da expresso nos olhos de Mos antes de fugir de
mim. Dei por mim sentindo-me contente por no
ter cedido tentao de ir em busca de Moli. J
era suficientemente duro ver aquele horror e
repugnncia no rosto de um amigo. Nunca quereria
v-los nos olhos dela. Voltei a recordar a surda
agonia dos animais que a Manha me levara a
testemunhar. Esses pensamentos foram afastados
pela frustrao que sentia por o atentado contra
Majestoso ter sido frustrado e pelo desejo de
saber se eles conseguiriam detectar os venenos
que eu usara na sua roupa, ou se ainda poderia ter
sucesso em mat-lo. E, acima de tudo, trovejando
atravs de mim, a ordem de Veracidade. Venha
at mim, dissera ele, e eu no conseguia parar de
ouvir essas palavras. Uma pequena parte da minha
mente estava obcecada com elas, atormentando-me
at naquele momento para que no perdesse tempo
pensando ou bebendo, para que simplesmente
voltasse a montar a cavalo e ir, ir at Veracidade,
pois ele precisava de mim, pois ele me ordenara.
Mas parei para beber mesmo assim, e foi
enquanto estava de joelhos borda de gua que
reparei que no estava morto.
Molhei a manga da camisa amarela no crrego,
ento soltei cuidadosamente da pele o tecido cheio
de sangue seco. O golpe que infligira em mim
mesmo era pouco profundo, pouco mais que um
longo arranho pelo brao acima. Estava dolorido
e tinha um aspecto ruim, mas no parecia
envenenado. Lembrei-me tardiamente de que
naquela noite usara por duas vezes a faca para
matar, e que a limpara pelo menos uma vez. O
mais certo era que no restassem nela mais do que
vestgios de veneno quando me cortara.
Como uma alvorada que despontava, a
esperana cintilou de repente para mim. Eles
estariam procura de um corpo na beira da
estrada, ou de um homem envenenado escondido
em algum na cidade, j doente demais para montar
a cavalo. Todo o crculo vira eu me envenenar e
deve ter detectado a minha completa crena na
minha morte iminente. Poderiam convencer
Majestoso de que eu estava moribundo? Eu no
confiaria nisso, mas podia ter essa esperana.
Voltei a montar e prossegui caminho a boa
velocidade. Passamos por fazendas, searas e
pomares. Passamos tambm por agricultores, que
levavam as colheitas para a cidade nas suas
carroas. Eu seguia com o brao apertado ao
peito, olhando diretamente em frente. Era s
questo de tempo at que algum se lembrasse de
interrogar as pessoas que entravam na cidade. Era
melhor desempenhar o meu papel.
Ao fim de algum tempo comeamos a ver
extenses de terra inculta, com ovelhas ou
haragares espalhados por ela em pleno pasto.
Pouco depois do meio-dia, fiz o que sabia que
tinha de fazer. Desmontei junto margem coberta
de arbustos de um riacho, deixei que Seta voltasse
a beber, e depois virei-lhe a cabea para
Vaudefeira.
De volta ao estbulo, garoto disse-lhe, e
quando no se moveu lhe dei uma bela palmada no
lombo. Vamos, volte para Mos. Diga a todos
que eu estou morto em algum lugar. Imaginei a
sua manjedoura para que ele captasse a imagem,
transbordando da aveia de que sabia que gostava.
Vamos, Seta. V embora.
Ele resfolegou para mim com curiosidade, mas
ento afastou-se devagar. Fez uma pausa para me
olhar, na esperana de que eu o seguisse e
apanhasse.
V! gritei-lhe, e bati com o p no cho.
Assustou-se com isso e partiu no seu trote alto,
sacudindo a cabea. Quase nem estava cansado.
Quando regressasse ao estbulo sem cavaleiro,
talvez acreditassem que eu estava morto. Talvez
perdessem mais tempo em busca de um cadver
em vez de me perseguirem. Era o melhor que eu
podia fazer para induzi-los ao erro, e era
certamente melhor do que seguir vista de todos
montado no cavalo do prprio rei. O rudo dos
cascos de Seta afastava-se. Perguntei a mim
mesmo se algum dia voltaria a montar um animal
to elegante, o que dir possuir um. No parecia
provvel.
Venha at mim. A ordem ainda ecoava no
interior da minha mente.
Estou indo, estou indo murmurei a mim
mesmo. Depois de caar algo para comer e
dormir um pouco. Mas estou indo. Abandonei a
estrada e segui o riacho para o interior de
vegetao mais densa. Tinha um longo e cansativo
caminho a percorrer com pouco mais do que a
roupa que trazia vestida.
CAPTULO 10

Feira de Emprego

A escravatura uma tradio nos Estados de


Calcede e encontra-se no corao de boa parte
de sua economia. Eles afirmam que prisioneiros
capturados na guerra so a principal fonte dos
seus escravos. No entanto, uma grande poro
dos escravos que fogem para os Seis Ducados
contam histrias sobre terem sido capturados em
ataques de piratas contra as suas terras natais. A
posio oficial de Calcede que tais ataques no
ocorrem, mas Calcede tambm nega oficialmente
que fecha os olhos aos piratas que operam a
partir das Ilhas Mercado. Ambas as coisas
andam de mos dadas.
A escravatura nunca foi comumente aceita nos
Seis Ducados. Muitos dos antigos conflitos
fronteirios entre Razos e os Estados de Calcede
tiveram mais a ver com a questo da escravatura
do que com linhas de fronteira propriamente
ditas. As famlias de Razos recusavam-se a
aceitar que soldados feridos ou capturados na
guerra fossem mantidos como escravos durante o
resto das suas vidas. Qualquer batalha que Razos
perdesse era quase imediatamente seguida por
um segundo ataque violento contra os Estados de
Calcede, a fim de libertar aqueles que haviam
sido perdidos na primeira batalha. Desta forma,
Razos acabou por possuir vastos territrios
originalmente reivindicados pelos Estados de
Calcede. A paz entre as duas regies sempre
difcil. Calcede queixa-se constantemente de que
o povo de Razos no s d abrigo a escravos
fugidos, como encoraja outros a escapar.
Nenhum monarca dos Seis Ducados alguma vez
negou que isto fosse verdade.

Todo o meu impulso era agora para chegar at


Veracidade, em algum lugar para alm do Reino
da Montanha. Para faz-lo, teria primeiro de
atravessar todo o Vara. No seria tarefa fcil.
Embora a regio ao longo do Rio Vim seja
bastante agradvel, quanto mais nos afastamos do
Vim, mais rida se torna a paisagem. As extenses
arveis so dedicadas a grandes campos de linho e
cnhamo, mas para alm desses h vastas
extenses de terra aberta e desabitada. O interior
do Ducado de Vara, embora no seja desrtico,
uma regio plana e seca, usada apenas pelas tribos
nmades que deslocam por ela as suas manadas,
seguindo os pastos. At elas a abandonam depois
de passarem a parte verde do ano, para irem se
congregar em aldeias temporrias ao longo dos
rios ou perto de lugares irrigados. Nos dias que se
seguiram minha fuga do Palcio de Vaudefeira,
acabei por perguntar a mim mesmo por que motivo
o Rei Manejador teria se incomodado com a
subjugao de Vara, quanto mais com a sua
transformao num dos Seis Ducados. Sabia que
tinha de me afastar do Vim, de rumar a sudoeste na
direo do Lago Azul, de atravessar o vasto Lago
Azul e depois seguir o Rio Frio at o sop das
Montanhas. Mas no era viagem para um homem
solitrio. E sem Olhos-de-Noite, era isso mesmo
que eu era.
No havia cidades de bom tamanho no interior,
embora houvesse vilas rudimentares que
subsistiam durante todo o ano perto de algumas
das nascentes que salpicavam aleatoriamente a
regio. A maior parte destas vilas sobrevive em
virtude das caravanas comerciais que passam por
perto. O comrcio flui, embora lentamente, entre o
povos do Lago Azul e do Rio Vim, e por este
mesmo caminho que os bens do povo da Montanha
penetram em terras dos Seis Ducados. O bvio
seria arranjar maneira de me ligar a uma dessas
caravanas. Mas o que bvio nem sempre fcil.
Quando entrei na cidade de Vaudefeira, eu
parecia ser o mais pobre tipo de mendigo que se
podia imaginar. Abandonei-a bem vestido, em
cima de um dos melhores animais j criados em
Torre do Cervo. Porm, no momento seguinte
minha separao de Seta, comecei a perceber a
gravidade da minha situao. Tinha a roupa que
roubara e as minhas botas de couro, o cinto e a
bolsa, uma faca e uma espada, e ainda um anel e
um medalho em uma corrente. Na bolsa no
restava qualquer moeda, embora ela contivesse
instrumentos para fazer fogo, uma pedra de amolar
para a faca e uma boa seleo de venenos.
Os lobos no esto destinados a caar sozinhos.
Fora o que Olhos-de-Noite me dissera uma vez, e
antes de aquele dia terminar, acabei por
reconhecer a sabedoria da afirmao. A minha
refeio nesse dia consistiu de razes de lrio
negro e algumas nozes que um esquilo reunira num
esconderijo demasiado bvio. Teria de bom grado
comido o esquilo, que se encontrava acima de mim
ralhando comigo enquanto lhe assaltava a
dispensa, mas no tinha os meios para transformar
tal desejo em realidade. Em vez disso, enquanto
batia nas nozes com uma pedra para abri-las,
refleti em como as iluses sobre mim mesmo
tinham sido arrancadas uma a uma.
Julgara ser um indivduo autossuficiente e
esperto. Sentira orgulho das minhas habilidades
como assassino, chegara mesmo, l no fundo, a
acreditar que, embora no pudesse dominar com
competncia as minhas habilidades para o Talento,
a fora que nele tinha era, claramente, to forte
como a de qualquer membro do Crculo de
Galeno. Porm, desprovido da generosidade do
Rei Sagaz e do talento para a caa do meu
companheiro lobo, sendo-me subtradas as
informaes secretas e habilidades conspirativas
de Breu e a orientao de Veracidade no Talento,
o que eu via que restava era um homem esfomeado
vestido com roupa roubada, a meio caminho entre
Torre do Cervo e as Montanhas, com poucas
expectativas de chegar a se aproximar de um lugar
ou do outro.
Por mais satisfatoriamente sombrios que fossem
aqueles pensamentos, nada faziam para mitigar o
incmodo da sugesto de Talento de Veracidade.
Venha at mim. Teria ele pretendido que aquelas
palavras ficassem queimadas na minha mente com
um comando to forte? Eu duvidava. Creio que ele
quisera apenas evitar que eu matasse tanto
Majestoso como a mim. E, no entanto, agora a
compulso estava l, ulcerando como a ponta de
uma seta. At me infectava o sono com ansiedade,
at o ponto de ser frequente sonhar em ir at
Veracidade. No era o caso de eu ter desistido da
ambio de matar Majestoso; uma dzia de vezes
por dia, eu elaborara planos mentais, maneiras de
conseguir regressar a Vaudefeira e cair sobre ele
vindo de um ngulo inesperado. Mas todos esses
planos comeavam com a reserva depois de ir at
Veracidade. Tornara-se simplesmente impensvel
que houvesse mais alguma coisa com uma
prioridade superior.
A vrios dias de fome rio acima de Vaudefeira
fica uma vila chamada Desembarcadouro. Embora
no tenha nem perto do tamanho de Vaudefeira,
uma povoao robusta. Ali feito um couro muito
bom, no s de pele de vaca, mas tambm com a
pele dura proveniente das manadas de haragares.
A outra indstria principal da vila parecia ser uma
cermica de boa qualidade feita a partir dos
taludes de barro branco que davam para o rio.
Muito do que em outros lugares se esperaria que
fosse feito de madeira, vidro ou metal feito de
couro ou cermica em Desembarcadouro. No so
s os sapatos e as luvas que ali so de couro, mas
tambm os chapus e outras peas de vesturio,
bem como os assentos das cadeiras e at os
telhados e paredes das barracas nos mercados.
Nas janelas das lojas, vi tabuleiros, castiais e at
baldes feitos de cermica finamente vidrada, tudo
com inscries ou pinturas numa centena de estilos
e cores.
Tambm acabei descobrindo um pequeno bazar
onde era possvel vender qualquer coisa que se
tivesse para vender sem que ao vendedor fossem
feitas muitas perguntas. Troquei a roupa fina pelas
calas e tnica largas de um trabalhador e por um
par de meias. Devia ter feito negcio melhor, mas
o homem apontou vrias manchas acastanhadas nos
punhos da camisa que ele achava que no sairiam.
E as calas estavam esticadas, por me servirem
to mal. Ele podia lav-las, mas no tinha certeza
de conseguir faz-las voltar forma original
Desisti e me contentei com o negcio que fizera.
Pelo menos aquela roupa no fora usada por um
assassino em fuga da manso do Rei Majestoso.
Numa loja mais ao fundo da rua me separei do
anel, do medalho e da corrente por sete peas de
prata e sete cobres. No chegava nem perto do
preo de uma passagem para me juntar a uma
caravana at as Montanhas, mas foi a melhor oferta
das seis que recebera. A mulherzinha rechonchuda
que me comprou as joias estendeu timidamente a
mo para tocar a minha manga quando me voltei
para ir embora.
Eu no perguntaria isto, senhor, se no visse
que est desesperado comeou hesitante.
Portanto, peo que no se ofenda com a minha
oferta.
Que ? perguntei. Suspeitava que ela
queria se oferecer para comprar a espada. Eu j
decidira que no me separaria dela. No obteria
com ela dinheiro que compensasse o fato de ter de
prosseguir desarmado.
Ela indicou a minha orelha com um gesto
acanhado.
O seu brinco de homem livre. Tenho um
fregus que coleciona essas raridades. Creio que
esse do Cl Butro. Estou certa? Fez a
pergunta de uma forma to hesitante que era como
se esperasse que a qualquer momento eu pudesse
ficar furioso.
No sei respondi-lhe com honestidade.
Foi um presente de um amigo. No algo de que
eu me separaria por prata.
Ela sorriu com ar astuto, de sbito mais
confiante. Oh, eu sei que estamos falando de
moedas de ouro para algo assim. Eu no o
insultaria oferecendo prata.
Moedas de ouro? perguntei, incrdulo.
Ergui a mo para tocar a pequena bugiganga que
trazia na orelha. Por isto?
Claro assentiu ela com facilidade,
pensando que eu estava procurando obter uma
oferta. Consigo ver que a execuo superior.
essa a reputao do Cl Butro. Tambm h a
raridade para se levar em conta. O Cl Butro
raramente concede a liberdade a um escravo. Isso
sabido mesmo aqui to longe de Calcede. Depois
de um homem ou mulher usar as tatuagens de
Butro, bem
Foi preciso muito pouco para lev-la a uma
conversa erudita sobre o comrcio de escravos, as
tatuagens de escravos e os brincos de liberdade de
Calcede. Rapidamente se tornou bvio que ela
desejava o brinco de Bronco, no para nenhum
fregus, mas para si mesma. Ela tivera um
antepassado que conquistara a liberdade. Ainda
possua o brinco de liberdade que lhe fora dado
pelos donos como sinal visvel de que j no era
escravo. A posse de tal brinco, numa
correspondncia correta com o ltimo smbolo de
cl tatuado no rosto de um escravo, era a nica
maneira que um antigo escravo tinha para se
deslocar livremente por Calcede, quanto mais sair
do pas. Se um escravo fosse problemtico, isso
era visto facilmente pelo nmero de tatuagens que
tinha no rosto, traando a histria de propriedade.
De tal modo que a expresso cara de mapa
servia para designar um escravo que tivesse sido
vendido por todos os Estados de Calcede, um
desordeiro que s servia para as gals ou para
trabalhar nas minas. Ela me pediu para tirar o
brinco para poder examin-lo convenientemente,
examinar a delicadeza da prata que constitua a
rede que enclausurava aquilo que era com toda
certeza uma safira.
Veja explicou , um escravo tem no s
de conquistar a liberdade, mas tambm de ganhar
junto do seu mestre o custo de um brinco assim.
Sem ele, a sua liberdade pouco mais do que uma
correia mais longa. No pode ir a nenhum lugar
sem que o mandem parar nos postos de controle,
no pode aceitar trabalho de homem livre sem o
consentimento por escrito do seu antigo dono. O
antigo dono j no responsvel pela sua
alimentao ou abrigo, mas o antigo escravo no
est da mesma forma livre do antigo dono.
Ela me ofereceu trs moedas de ouro sem
hesitar. Aquilo era mais do que o custo de uma
passagem numa caravana; podia ter comprado um
cavalo, um bom cavalo, e no s me juntar a uma
caravana, mas viajar com conforto. Porm, sa da
sua loja antes de ela tentar me dissuadir com uma
oferta mais elevada. Com um cobre, comprei um
po de m qualidade e me sentei para com-lo
perto das docas. Senti curiosidade sobre muitas
coisas. O brinco provavelmente pertencera av
de Bronco. Ele mencionara que ela fora escrava,
mas conquistara a liberdade dessa vida. Perguntei
a mim mesmo o que teria o brinco significado para
ele, para que o desse ao meu pai, e o que teria
significado para o meu pai para ter ficado com ele.
Pacincia soubera algo sobre isto quando o passou
para mim?
Sou humano. Senti-me tentado com a oferta de
ouro que a mulher fizera. Refleti que se Bronco
soubesse da minha situao me diria para vender o
brinco, pois a minha vida e segurana valiam mais
para ele do que um brinco de prata e safira. Podia
arranjar um cavalo e ir at as Montanhas e
encontrar Veracidade e pr fim ao constante
incmodo da sua ordem de Talento, que era como
um comicho que eu no conseguia coar.
Deixei meus olhos vagarem por sobre o rio, e
finalmente confrontei a enorme viagem que se
estendia minha frente. Dali, eu teria de viajar
atravs de um semideserto para chegar ao Lago
Azul. No fazia ideia de como poderia atravessar
o Lago Azul propriamente dito. Do outro lado,
trilhas florestais serpenteavam atravs dos
contrafortes e subiam s terras acidentadas do
Reino da Montanha. Tinha de ir at Jhaampe, a
capital, para de algum modo obter uma cpia do
mapa que Veracidade usara. Baseara-se em
antigos escritos que a biblioteca de Jhaampe
possua; era possvel que o original ainda
estivesse l. S o mapa poderia me levar at onde
Veracidade se encontrava, em algum lugar no
territrio desconhecido para alm do Reino da
Montanha. Precisaria de cada moeda, de cada
recurso que pudesse arranjar.
Entretanto, apesar de tudo isso, decidi ficar com
o brinco. No pelo que a joia significava para
Bronco, mas por aquilo que acabara por significar
para mim. Era a minha ltima ligao fsica com o
meu passado, com quem fora, com o homem que
me criara, at com o pai que outrora o usara. Era
estranhamente difcil me levar a fazer o que sabia
ser sensato. Ergui a mo e soltei a minscula
lingueta que me prendia o brinco orelha. Ainda
tinha as amostras de seda do meu disfarce, e usei a
menor para envolver bem o brinco e o coloquei
dentro da bolsa que trazia ao cinto. A mercadora
estivera interessada demais nele, e gravara muito
bem a sua aparncia. Se Majestoso decidisse
enviar homens minha procura, esse brinco seria
uma das maneiras de me descrever.
Mais tarde, passeei pela cidade, escuta das
conversas das pessoas e tentando aprender o que
precisava saber sem fazer perguntas. Demorei-me
pelo mercado, vagando indolentemente de barraca
em barraca. Atribu a mim mesmo a suntuosa soma
de quatro cobres e gastei-os naquilo que parecia
ser luxos exticos: um pequeno saco de ervas para
ch, fruta seca, um pedao de espelho, uma panela
pequena e um copo. Perguntei por casco-de-elfo
em vrias barracas de ervas, mas ou no
conheciam a planta, ou a conheciam em Vara por
outro nome. Disse a mim mesmo que no havia
problema, pois no esperava ter necessidade dos
seus poderes revigorantes. Esperava ter razo. Em
vez de casco-de-elfo, comprei, cheio de dvidas,
uma coisa que se chamava sementes de fraldassol,
as quais, segundo me garantiram, reanimariam um
homem at deix-lo desperto, por mais cansado
que ele estivesse.
Descobri uma trapeira que me deixou vasculhar
a sua carroa em troca de mais dois cobres.
Descobri um manto malcheiroso, mas
aproveitvel, e umas perneiras que prometiam dar
tanta coceira como calor. Troquei com ela as
amostras de seda amarela que me restavam por um
leno para a cabea, e, com muitos comentrios
maliciosos, ela me mostrou como amarr-lo em
volta da cabea. Fiz o que fizera antes,
transformando o manto numa trouxa para
transportar as minhas coisas, e depois me dirigi
aos matadouros, na zona leste da vila.
Jamais encontrara um fedor como o que
encontrei l. Havia curral atrs de curral,
verdadeiras montanhas de estrume, e o cheiro de
sangue e entranhas vinha das barracas de abate e
das fossas de curtimento. Como se o assalto ao
meu nariz no bastasse, o ar estava igualmente
cheio com os berros do gado bovino, os guinchos
dos haragares, os zumbidos das moscas varejeiras
e os gritos das pessoas que deslocavam os animais
de curral em curral, ou os arrastavam para os
locais de abate. Por mais que me insensibilizasse,
no conseguia me isolar da infelicidade e pnico
cegos dos animais que aguardavam a sua vez. No
tinham um conhecimento claro do que os esperava,
mas o cheiro do sangue fresco e os gritos dos
outros animais despertavam em alguns um terror
equivalente quele que eu sentira quando me
estatelara no cho da masmorra. E, no entanto, eu
tinha de estar ali, pois era ali que as caravanas
terminavam as suas viagens, e tambm onde
algumas comeavam. As pessoas que tinham
conduzido animais para vender ali provavelmente
iriam regressar. A maioria iria comprar outros
bens para levar consigo, para no desperdiar uma
viagem. Eu tinha esperana de encontrar algum
tipo de trabalho com um deles, que me fornecesse
a companhia de uma caravana pelo menos at o
Lago Azul.
Rapidamente descobri que no era o nico a ter
essa esperana. Havia uma feira desordenada de
emprego num espao entre duas tavernas viradas
para os currais. Algumas das pessoas que se
encontravam ali eram condutores de gado que
tinham vindo do Lago Azul com uma manada,
ficado em Desembarcadouro para gastar os seus
ganhos e agora, sem dinheiro e longe de casa,
procuravam passagem de regresso. Para alguns,
era esse o padro das suas vidas de condutores de
animais. Havia alguns jovens, obviamente em
busca de aventuras e viagens e de uma
oportunidade para se lanarem por conta prpria.
E tambm l se encontravam aqueles que eram
claramente a escria da vila, gente que no
conseguia arranjar trabalho permanente, ou que
no tinha personalidade para viver por muito
tempo no mesmo lugar. No me misturava l muito
bem com nenhum dos grupos, mas acabei me
juntando aos condutores de gado.
A histria que eu contava dizia que a minha me
morrera recentemente e entregara minha irm
mais velha a propriedade, a qual no tinha muito
uso para mim, de modo que eu partira para viajar
at junto do meu tio, que vivia alm do Lago Azul,
mas ficara sem dinheiro antes de chegar l. No,
eu nunca fora condutor de gado, mas a nossa
famlia fora suficientemente abastada para ter
cavalos, vacas e ovelhas, e eu conhecia os
cuidados bsicos com eles e, segundo alguns
diziam, tinha um jeito especial para os animais
irracionais.
No fui contratado nesse dia. Poucos o foram, e
a noite veio encontrar a maioria de ns deitando-
se no local onde passramos o dia inteiro. Um
aprendiz de padeiro apareceu entre ns com um
tabuleiro de restos, e eu me separei de outro cobre
em troca de um longo po escuro incrustado de
sementes. Dividi-o com um tipo corpulento cujo
cabelo claro no parava de se esgueirar por baixo
do leno para a frente do rosto. Em troca, Crice
me ofereceu um pouco de carne seca, um gole do
mais horrvel vinho que j provei e uma bela
quantidade de fofocas. Era um falador, um
daqueles homens que adotam a posio mais
extrema em qualquer tpico e no tm conversas
com os seus companheiros, mas discusses. Como
eu tinha pouco a dizer, Crice logo instigou as
outras pessoas que nos rodeavam a entrar numa
discusso controversa sobre a poltica atual de
Vara. Algum acendeu uma pequena fogueira, mais
pela luz do que por haver alguma necessidade de
calor, e vrias foram as garrafas passadas de mo
em mo. Eu me deitei, com a cabea apoiada na
minha trouxa, e fingi cochilar enquanto escutava.
No houve meno aos Navios Vermelhos,
nenhuma conversa sobre a guerra que assolava a
costa. Compreendi de repente como aquela gente
se ressentiria de pagar impostos para tropas que
protegeriam uma costa que nunca tinha visto, para
navios de guerra que navegariam num oceano que
no era sequer capaz de imaginar. As ridas
plancies entre Desembarcadouro e o Lago Azul
eram o seu oceano, e aqueles condutores de gado
eram os marinheiros que por ele viajavam. Os Seis
Ducados no eram, por natureza, seis regies
ligadas num todo, mas constituam um reino apenas
porque uma forte linhagem de governantes os havia
rodeado com uma fronteira comum e os declarara
um s. Se todos os Ducados Costeiros cassem nas
mos dos Navios Vermelhos, isso pouco
significaria para aquela gente. Continuaria
havendo gado a apascentar e vinho repugnante
para beber; continuaria havendo capim e o rio e as
ruas poeirentas. Inevitavelmente, tive de perguntar
a mim mesmo que direito ns tnhamos de forar
aquela gente a pagar por uma guerra to distante de
suas casas. Lavra e Vara haviam sido conquistados
e acrescentados aos ducados; no tinham vindo a
ns pedindo proteo militar ou os benefcios do
comrcio. No que no tivessem prosperado,
livres de todos os seus mesquinhos senhores do
gado do interior, e lhes tendo sido oferecido um
mercado vido pela sua carne, couro e cordas.
Quanta lona, quantos rolos de boa corda de
cnhamo teriam eles vendido antes de fazerem
parte dos Seis Ducados? Mas ainda parecia uma
compensao pequena.
Cansei-me de tais pensamentos. A nica
constante na conversa deles era a queixa contra o
embargo comercial sobre as Montanhas. Comeara
a adormecer quando minhas orelhas se empinaram
ao ouvir as palavras Homem Pustulento. Abri os
olhos e ergui ligeiramente a cabea.
Algum o mencionara do modo tradicional,
como o mensageiro do desastre, dizendo em tom
risonho que todas as ovelhas de Gpis o tinham
visto, pois estavam morrendo no curral antes de o
pobre homem conseguir sequer vend-las. Franzi o
cenho ao pensar em doena em acomodaes to
apertadas, mas outro homem riu e disse que o Rei
Majestoso decretara que ver o Homem Pustulento
j no dava azar, mas era a melhor das sortes que
algum podia ter.
Se eu visse esse velho mendigo, no
empalideceria e fugiria, mas o derrubaria e levaria
ao rei. Ele ofereceu uma centena de moedas de
ouro a qualquer homem que lhe leve o Homem
Pustulento de Cervo.
Foi cinquenta, s cinquenta peas de ouro,
no cem interrompeu Crice num tom
zombeteiro. Bebeu outro gole da garrafa. Que
histria, cem peas de ouro por um velho grisalho!
No, cem, s por ele, e mais cem pelo
homem-lobo que o segue. Ouvi isso sendo gritado
de novo ainda esta manh. Esgueiraram-se para
dentro da Manso do Rei em Vaudefeira e
mataram alguns dos seus guardas com a magia dos
animais. Gargantas rasgadas para que o lobo
pudesse beber o sangue. Agora esse quem
querem mesmo. Anda vestido como um senhor,
dizem, com um anel, um colar e um penduricalho
de prata na orelha. Tem uma madeixa branca no
cabelo de uma antiga batalha com o nosso rei, e
uma cicatriz no rosto e um nariz quebrado pela
mesma razo. Sim, e um belo corte recente de
espada no brao foi o que o rei lhe deu desta vez.
Ouviu-se um murmrio baixo de admirao
diante daquilo, vindo de vrios deles. At eu tive
de sentir admirao pela audcia de Majestoso em
reclamar aquele feito, enquanto eu virava a cara
para a trouxa e a empurrava para baixo, como que
para dormir. A conversa continuou.
Dizem que o tipo foi gerado na Manha e que
capaz de se transformar num lobo sempre que
estiver com a lua. Dormem de dia e vagam noite,
sim, sim. Dizem que uma maldio que aquela
rainha estrangeira que ele expulsou de Cervo por
tentar roubar a coroa lanou sobre o rei. O Homem
Pustulento, dizem, um meio-esprito, conjurado a
partir do corpo do velho Rei Sagaz com a magia
de Montanha dela, e viaja por todas as estradas e
ruas, por toda a parte nos Seis Ducados, levando o
mal para onde quer que v, e exibindo o rosto do
prprio velho rei.
Estrume e podrido disse Crice com voz
de repugnncia. Bebeu mais um trago. Mas alguns
dos outros gostaram daquela histria fantasiosa e
inclinaram-se para mais perto do contador,
sussurrando-lhe que continuasse, que continuasse.
Bem, foi isto que ouvi dizer disse o
homem com arrogncia. Que o Homem
Pustulento o meio-esprito de Sagaz, e que no
pode conhecer descanso at que a rainha da
Montanha que o envenenou esteja tambm no
tmulo.
Ento, se o Homem Pustulento o fantasma
de Sagaz, por que o Rei Majestoso est oferecendo
uma recompensa de cem moedas de ouro por ele?
perguntou Crice em tom azedo.
No o seu fantasma. o seu meio-esprito.
Roubou parte do esprito do rei quando ele estava
morrendo, e o Rei Sagaz no pode descansar at
que o Homem Pustulento esteja morto para que o
esprito do rei possa se recompor. E at h quem
diga e abaixou mais a voz , que o Bastardo
no foi bem morto, que caminha de novo como
homem-lobo. Ele e o Homem Pustulento procuram
vingana contra o Rei Majestoso, para destruir o
trono que o Bastardo no conseguiu roubar. que
ele estava combinado com a Rainha Raposa para
ser rei depois de se livrarem de Sagaz.
Era o tipo certo de noite para uma histria
daquelas. A lua estava inchada e alaranjada, baixa
no cu, enquanto o vento nos trazia os lgubres
mugidos e movimentos do gado nos seus currais,
misturados com o fedor de sangue em putrefao e
peles sendo curtidas. Nuvens altas e esfarrapadas
passavam de vez em quando pela face da lua. As
palavras do contador de histrias me deram
arrepios, provavelmente por um motivo diferente
do que ele imaginaria. Fiquei espera de que
algum me empurrasse com o p ou gritasse: Ei,
vamos l olhar bem para ele. Ningum o fez. O
tom da histria do homem os fez procurar olhos de
lobo nas sombras, no de um trabalhador cansado
que dormia no meio deles. Apesar disso, meu
corao saltava no peito enquanto examinava o
rastro que deixara. O alfaiate onde trocara de
roupa reconheceria aquela descrio. A mulher do
brinco talvez tambm o fizesse. At a velha
trapeira que me ajudara a amarrar o leno sobre o
cabelo. Alguns poderiam no querer apresentar-se,
alguns poderiam querer evitar lidar com os
guardas do rei. Mas alguns o fariam. Eu tinha de
me comportar como se todos o fizessem.
O contador continuava a falar, bordando a sua
histria sobre as ambies malignas de Kettricken
e o modo como ela se deitara comigo para
conceber uma criana que pudssemos usar para
reivindicar o trono. Havia repugnncia na voz do
contador de histrias enquanto falava de
Kettricken, e ningum escarneceu das suas
palavras. At Crice, ao meu lado, mostrava-se
aquiescente, como se aqueles planos bizarros
fossem do conhecimento de todos. Confirmando os
meus piores medos, Crice interveio de sbito.
Voc conta isso como se fosse tudo
novidade, mas todos sabem que a barriga grande
dela no veio de Veracidade, mas sim do
Bastardo-Manhoso. Se Majestoso no tivesse
expulso a rameira da Montanha, acabaramos
tendo um tipo como o Prncipe Pigaro na linha de
sucesso.
Aquilo foi recebido com um murmrio baixo de
assentimento. Fechei os olhos e me estiquei como
se estivesse aborrecido, esperando que a minha
imobilidade e plpebras cerradas escondessem a
raiva que ameaava me consumir. Ergui a mo
para prender melhor o leno em volta do cabelo.
Qual poderia ser o propsito de Majestoso em
permitir que mexericos perversos como aquele se
espalhassem? Pois eu sabia que aquele tipo de
veneno tinha de vir dele. Eu no confiava na minha
voz para fazer perguntas, nem desejava parecer
ignorante sobre coisas que eram obviamente de
conhecimento comum. De modo que me mantive
quieto e escutei com um interesse furioso. Deduzi
que todos sabiam que Kettricken regressara s
Montanhas. A frescura do desprezo que mostravam
por ela sugeria que aquilo se referia a notcias
recentes. Tambm se resmungava que era culpa da
bruxa montanheira que os passos estivessem
fechados para os honestos mercadores de Lavra e
Vara. Um homem at ousou dizer que agora que o
comrcio com a costa estava cortado, as
Montanhas viam uma oportunidade de encurralar
Vara e Lavra e for-los a aceitar as suas
condies, sob pena de perder todas as rotas
comerciais. Um homem relatou que at uma
simples caravana escoltada por homens dos Seis
Ducados usando as cores do prprio Majestoso
fora mandada dar meia-volta na fronteira com a
Montanha.
Para mim, aquela conversa era evidentemente
estpida. As Montanhas precisavam do comrcio
com Vara e Lavra. Os cereais eram mais
importantes para o povo da Montanha do que a
madeira e peles das Montanhas para aqueles
homens das terras baixas. Esse comrcio livre fora
abertamente reconhecido como motivo para o
casamento de Kettricken com Veracidade. Mesmo
se Kettricken tivesse fugido de volta para as
Montanhas, eu a conhecia bem o suficiente para ter
certeza de que no apoiaria nenhum corte no
comrcio entre a sua gente e os Seis Ducados.
Estava ligada demais a ambos os grupos e
decidida demais a ser Sacrifcio para todos. Se
existia um embargo comercial, como ouvira dizer,
eu tinha certeza de que comeara com Majestoso.
Mas os homens ao meu redor continuavam a
resmungar sobre a bruxa da Montanha e a sua
vingana contra o rei.
Estaria Majestoso fomentando uma guerra contra
as Montanhas? Teria tentado enviar para l
soldados armados disfarados de escolta de
mercadores? Era uma ideia tola. O meu pai fora
enviado s Montanhas h muito tempo a fim de
formalizar fronteiras e acordos comerciais com
eles, pondo fim a longos anos de escaramuas e
incurses fronteirias. Esses anos de batalha
haviam ensinado ao Rei Sagaz que ningum iria
tomar e manter pela fora os passos e trilhas do
Reino da Montanha. Com relutncia, segui essa
linha de pensamento. Fora Majestoso que sugerira
Kettricken como noiva para Veracidade. Fizera
todo o trabalho de cortej-la em nome do irmo.
Ento, quando o momento do casamento se
aproximara, tentara matar Veracidade, com o
objetivo de obter a princesa como sua noiva.
Falhara, e as suas intrigas e planos haviam sido
revelados apenas a um punhado de pessoas. A
hiptese que tivera de reclamar como sua a
Princesa Kettricken e tudo o que com ela vinha,
como a herana da coroa da Montanha, havia lhe
escapado por entre os dedos. Recordei uma
conversa que ouvira um dia entre Majestoso e o
traioeiro Galeno. Pareciam pensar que Lavra e
Vara seriam melhor defendidos se fosse possvel
controlar as cordilheiras e passos da Montanha
que faziam limite com eles. Majestoso estaria
pensando agora em tomar pela fora aquilo que um
dia esperara reivindicar atravs do casamento?
Acharia que seria realmente capaz de gerar m
vontade suficiente contra Kettricken para levar os
seus seguidores a crerem que estavam travando
uma guerra justa, uma guerra de vingana contra
uma bruxa da Montanha, uma guerra que se
destinava a manter abertas as suas rotas
comerciais?
Majestoso, refleti, era capaz de acreditar em
qualquer coisa em que desejasse acreditar. Nos
fundos dos seus copos, de cabea envolta nos seus
fumos, eu no duvidava de que ele agora
acreditava nas suas prprias histrias fantasiosas.
Uma centena de moedas de ouro por Breu e outra
centena por mim. Eu sabia muito bem o que fizera
nos ltimos tempos para merecer tal recompensa,
mas senti uma aguda curiosidade de saber o que
Breu andara fazendo. Em todos os anos passados
com Breu, ele sempre trabalhara sozinho e sem ser
visto. Continuava a no ter nome, mas a sua pele
marcada e a semelhana com o meio-irmo eram
agora conhecidas. Isso significava que fora visto
em algum lugar, por algum. Esperei que estivesse
bem e em segurana naquela noite, onde quer que
fosse. Uma parte de mim ansiou por voltar, por
regressar a Cervo e ir sua procura. Como se de
alguma forma eu pudesse mant-lo a salvo.
Venha at mim.
Independentemente do que eu ansiava fazer,
independentemente do que sentia, sabia que iria
at Veracidade. Prometi isso a mim mesmo,
repetidas vezes, e consegui finalmente cair num
sono cansado. Sonhei, mas foram sonhos plidos,
quase no tocados pelo Talento, que mudavam e
rodopiavam como que soprados pelos ventos
outonais. A minha mente parecia ter apanhado e
misturado pensamentos vindos de todas as pessoas
de que eu sentia saudades. Sonhei com Breu
tomando ch com Pacincia e Renda. Ele usava um
roupo de seda vermelha com um padro de
estrelas, cortado num estilo muito antiquado, e
sorria s mulheres de uma forma encantadora por
cima da sua xcara de ch, trazendo riso at os
olhos de Pacincia, embora parecesse
estranhamente envelhecido e fatigado. Depois
sonhei com Moli espiando pela porta de um chal,
enquanto Bronco estava do lado de fora,
aconchegando bem o manto em volta dos ombros
para se defender do vento e lhe dizendo para no
se preocupar, pois ele no permaneceria longe por
tanto tempo assim e quaisquer trabalhos pesados
que houvesse podiam esperar at o seu regresso,
que ela podia permanecer dentro de casa e cuidar
apenas de si mesma. At sonhei com Celeridade,
sonhei que se abrigara nas lendrias Grutas de
Gelo da Geleira Faminta em Vigas e se escondia
ali com os soldados que ainda conseguia reunir e
muita da sua gente que ficara sem casa pela guerra
dos Salteadores. Sonhei que ela cuidava de F,
que se mantinha deitada, sofrendo de uma febre e
de uma ferida infectada de flecha na barriga.
Sonhei finalmente com o Bobo, de rosto branco
transformado em marfim, sentado diante de uma
lareira e fitando as chamas. No restava esperana
em seu rosto, e eu me senti no interior das chamas,
olhando para as profundezas dos seus olhos. Em
algum lugar ali perto, e no entanto no to perto,
Kettricken chorava inconsolvel. Os sonhos
murcharam na minha mente, e depois sonhei com
lobos caando, caando, perseguindo um cervo,
mas eram lobos selvagens, e se o meu lobo se
encontrava entre eles, agora era deles e no meu.
Acordei com uma dor de cabea e um mau jeito
nas costas por ter dormido em cima de uma pedra.
O sol tinha apenas comeado a fender o cu, mas
me levantei mesmo assim, para ir at um poo e
puxar gua para me lavar e beber o mximo que
conseguisse. Bronco me dissera uma vez que beber
muita gua era uma boa maneira de enganar a
fome. Era uma teoria que eu teria de testar hoje.
Afiei minha faca, pensei em me barbear, e ento
decidi no fazer isso. Era melhor deixar a barba
crescer por cima da cicatriz o mais depressa
possvel. Esfreguei com relutncia os pelos
speros que j me irritavam. Voltei para onde os
outros ainda dormiam.
Estavam apenas comeando a acordar quando
um homenzinho largo apareceu para gritar com
estridncia que queria contratar um homem para
ajud-lo a deslocar as ovelhas de um curral para
outro. Era s trabalho para uma manh, se
chegasse a tanto, e a maioria dos homens sacudiu a
cabea, desejando permanecer onde pudessem ser
contratados para uma viagem de condutor de gado
at o Lago Azul. Ele quase implorou, dizendo que
tinha de atravessar as ruas da cidade com as
ovelhas, e por isso precisava faz-lo antes que o
trfego habitual do dia tivesse incio. Por fim,
ofereceu-se para incluir o desjejum, e acho que na
verdade foi por isso que lhe fiz um aceno e o
segui. O seu nome era Damo e no parou de falar
enquanto caminhvamos, agitando as mos,
explicando-me desnecessariamente como queria
que as ovelhas fossem tratadas. Eram bons
animais, muito bons animais, e ele no queria v-
los machucados ou mesmo agitados. Calmamente,
lentamente, era a melhor maneira de deslocar
ovelhas. Assenti sem uma palavra diante da sua
preocupao e o segui at um curral no fim da rua
dos matadouros.
Rapidamente ficou claro o motivo por que ele
estava to ansioso para deslocar as ovelhas. O
curral seguinte devia ter pertencido ao azarado
Gpis. Ainda havia algumas ovelhas balindo nesse
curral, mas a maioria estava cada, morta ou
morrendo de fluxo. O fedor da sua doena
acrescentava uma nova nota ftida aos outros
cheiros que havia no ar. Havia alguns homens ali,
tirando as peles dos animais mortos para salvar o
que pudessem do rebanho. Estavam fazendo um
trabalho sangrento e sujo, deixando os cadveres
esfolados ali mesmo no curral com os moribundos.
Aquilo me fez lembrar de um modo macabro de um
campo de batalha, com saqueadores andando por
entre os cados. Afastei os olhos da cena e ajudei
Damo a agrupar as ovelhas.
Tentar usar a Manha em ovelhas quase uma
perda de tempo. Os seus pensamentos so
volveis. At aquelas que parecem mais plcidas
o so porque se esqueceram daquilo em que
estavam pensando. As piores so capazes de uma
prudncia desmesurada, desconfiadas do mais
simples dos atos. A nica maneira de lidar com
elas agir em boa medida como os ces pastores.
Convenc-las de que tiveram uma boa ideia sobre
o lugar para onde querem ir e encoraj-las a ir.
Diverti-me brevemente pensando em como Olhos-
de-Noite teria reunido e deslocado aquelas patetas
lanosas, mas bastou eu pensar num lobo para que
algumas das ovelhas estacassem de sbito e
olhassem em volta, em pnico. Sugeri-lhes que
deviam seguir as outras antes de se perderem, e
elas sobressaltaram-se como se a ideia as
surpreendesse, ento foram se reunir ao resto das
ovelhas.
Damo me dera uma ideia genrica do lugar
para onde nos dirigamos e me entregara uma vara
longa. Trabalhei a retaguarda e os lados do
rebanho, correndo e logo arquejando como um
co, enquanto ele indicava o caminho e evitava
que o rebanho se espalhasse em cada cruzamento.
Levou-nos at uma zona nos arredores da vila e
enfiamos as ovelhas num dos decrpitos currais
que havia ali. Em outro curral havia um touro
vermelho de belssima qualidade, ao passo que
outro continha seis cavalos. Depois de
recuperarmos o flego, ele explicou que no dia
seguinte uma caravana se formaria ali para viajar
at o Lago Azul. Comprara aquelas ovelhas no dia
anterior, e pretendia lev-las para casa, para
acrescent-las aos seus rebanhos. Perguntei-lhe se
poderia querer outro ajudante para pastorear as
ovelhas at o Lago Azul, e ele me deu um olhar
avaliador, mas no uma resposta.
Manteve a palavra a respeito do desjejum.
Comemos mingau de aveia e leite, comida simples
que para mim tinha um gosto maravilhoso. Foi
servida por uma mulher que vivia numa casa perto
dos currais e ganhava a vida vigiando os animais
encurralados ali e fornecendo refeies e por
vezes camas queles que estavam encarregados
deles. Depois de comermos, Damo me explicou a
custo que sim, precisava de mais um ajudante para
a viagem, talvez dois, mas que julgava pelo corte
da minha roupa que eu pouco sabia do tipo de
trabalho que procurava. Levara-me naquela manh
apenas porque eu fora o nico que parecera estar
realmente acordado e ansioso pelo trabalho.
Contei-lhe a minha histria sobre a irm sem
corao, e lhe assegurei de que estava
familiarizado com o manejo de ovelhas, cavalos
ou vacas. Aps muita indeciso e hesitao, ele
me contratou. As suas condies eram que me
forneceria comida para a viagem e no fim me
pagaria dez peas de prata. Disse-me para ir
buscar correndo as minhas coisas e fazer as
despedidas que tivesse que fazer, mas que me
certificasse de estar ali de volta antes do fim da
tarde, caso contrrio contrataria outro homem para
tomar o meu lugar.
No tenho nada para buscar, nem ningum de
quem me despedir disse-lhe. No seria sensato
regressar vila depois do que ouvira na noite
anterior. Gostaria que a caravana partisse
imediatamente.
Por um instante, ele fez uma expresso chocada,
mas depois decidiu que aquilo lhe agradava.
Bem, eu tenho de tratar das duas coisas, ento
vou deix-lo aqui vigiando as ovelhas. Elas vo
precisar que lhes traga gua; esse foi um dos
motivos por que as deixei nos currais da vila, eles
tm uma bomba l. Mas no gostei de t-las to
perto de ovelhas doentes. Traga-lhes gua, e eu
mandarei um homem com um carro de feno para
elas. Trate de lhes dar uma boa rao. Agora, veja
bem, eu avaliarei como viajaremos juntos pelo
modo como voc comear comigo E
continuou, continuou, dizendo-me at os mnimos
detalhes como queria que fosse dada gua aos
animais, e quantas pilhas de rao devia fazer para
me assegurar de que cada animal obtinha uma
parte. Suponho que era de se esperar; eu no tinha
aspecto de pastor. Aquilo me fez sentir falta de
Bronco e da sua maneira calma de partir do
princpio de que eu conheceria o meu ofcio e o
executaria. Quando estava se virando para ir
embora, voltou-se subitamente para trs. E o
seu nome, rapaz? gritou-me.
Tom respondi aps um momento de
hesitao. Pacincia pensara uma vez em me dar
esse nome, antes de eu aceitar o de FitzCavalaria.
A reflexo trouxe tona algo que Majestoso me
dissera um dia. Basta se coar para encontrar
Annimo, o garoto dos ces troara. Eu
duvidava de que achasse Tom, o pastor, muito
acima disso.
Havia um poo, no muito perto dos currais,
com uma corda muito longa presa ao balde.
Trabalhando constantemente, consegui por fim
encher o bebedouro. Na verdade, enchi-o por
vrias vezes antes de as ovelhas permitirem que
permanecesse cheio. A essa altura, chegou uma
carroa com feno, e eu criei com cuidado quatro
pilhas separadas de alimento nos cantos do curral.
Foi outro exerccio de frustrao, pois as ovelhas
aglomeravam-se e alimentavam-se de cada pilha
medida que a criava. Foi s depois de todas menos
as mais fracas estarem saciadas que consegui por
fim erguer uma pilha em cada canto.
tarde, passei o tempo tirando mais gua do
poo. A mulher me deixou usar uma panela grande
para aquec-la e um lugar privado onde eu podia
lavar o pior da estrada que trazia no corpo. Meu
brao estava sarando bem. Nada mal para um
ferimento mortal, disse a mim mesmo, e esperei
que Breu nunca ouvisse falar daquela trapalhada.
Como riria de mim. Quando fiquei limpo, fui
buscar mais gua para aquecer, esta para lavar a
roupa que comprara da trapeira. Descobri que o
manto era de um cinza muito mais claro do que
pensara. No consegui retirar todo o cheiro dele,
mas quando o coloquei para secar, cheirava mais a
l molhada e menos ao dono anterior.
Damo no me deixara nada para comer, mas a
mulher ofereceu-se para me alimentar se eu
levasse gua ao touro e aos cavalos, visto que essa
era uma tarefa que ela se cansara muito de fazer
nos ltimos quatro dias. Foi o que fiz, e ganhei um
jantar de cozido e biscoitos e uma caneca de
cerveja para ajudar a engolir tudo. Depois fui ver
as ovelhas. Ao descobri-las todas calmas, o hbito
fez com que eu me voltasse para o touro e os
cavalos. Encostei-me na cerca, observando os
animais, perguntando a mim mesmo como seria se
na minha vida no houvesse mais do que aquilo.
Isso me fez compreender que no teria sido ruim,
desde que houvesse uma mulher como Moli
esperando que eu regressasse para casa noite.
Uma gua branca e de pernas altas veio esfregar o
focinho na minha camisa e pedir para ser coada.
Acariciei-a e descobri que ela estava com
saudades de uma camponesa sardenta que lhe
trouxera cenouras e lhe chamara de Princesa.
Perguntei-me se haveria algum, em algum lugar,
que conseguia viver a vida que desejava. Talvez
Olhos-de-Noite tivesse finalmente conseguido.
Esperava sinceramente que sim. Desejava-lhe
felicidade, mas era suficientemente egosta para
ter esperana de que ele s vezes sentisse a minha
falta. Taciturno, perguntei a mim mesmo se talvez
tivesse sido por isso que Veracidade no
regressara. Talvez tivesse simplesmente se fartado
de toda a confuso de coroas e tronos e tivesse
apagado o rastro. Mas mesmo enquanto o pensava,
sabia que no era assim. No aquele. Ele fora para
as Montanhas para trazer os Antigos ao nosso
auxlio. E se falhasse nessa tarefa, pensaria em
outra maneira. E, fosse qual fosse essa maneira,
chamara-me para ajud-lo.
CAPTULO 11

Pastor

Breu Tombastrela, conselheiro do Rei Sagaz, era


um servidor leal do trono Visionrio. Poucos
sabiam dos seus servios durante os anos em que
serviu o Rei Sagaz. Isso no o desagradava, pois
no era homem que procurasse a glria. Pelo
contrrio, era devotado ao reinado Visionrio
com uma lealdade que ultrapassava a lealdade a
si mesmo ou qualquer uma daquelas
interrogaes que assaltam a maioria dos
homens. Levava muito a srio o juramento
prestado famlia real. Com o falecimento do
Rei Sagaz, no abandonou o juramento,
procurando assegurar-se de que a coroa seguiria
a verdadeira linha de sucesso. Foi apenas por
este motivo que foi procurado como fora da lei,
por ter desafiado abertamente a pretenso de
Majestoso de ser Rei dos Seis Ducados. Em
missivas que enviou a cada um dos duques e ao
Prncipe Majestoso, revelou-se aps anos de
silncio, declarando-se um seguidor leal do Rei
Veracidade e jurando que no seguiria nenhum
outro at que lhe fosse mostrada prova de que o
rei morrera. O Prncipe Majestoso declarou-o
rebelde e traidor e ofereceu uma recompensa
pela sua captura e morte. Breu Tombastrela
esquivou-se dele atravs de muitos artifcios
astutos e continuou a congregar os Duques
Costeiros na crena de que o seu rei no estava
morto e regressaria para lider-los na vitria
contra os Navios Vermelhos. Privados de
qualquer esperana de auxlio proveniente do
Rei Majestoso, muitos dos nobres de menor
posio aderiram a esses rumores. Canes
comearam a ser cantadas, e at o povo dizia
com esperana que o seu Rei Talentoso
regressaria para salv-lo, frente dos lendrios
Antigos.
Ao fim da tarde, pessoas comearam a se reunir
para a caravana. Era uma mulher a dona do touro e
dos cavalos. Ela e o marido chegaram num
carroo puxado por uma parelha de bois. Fizeram
a sua prpria fogueira, cozinharam a sua prpria
comida e pareciam satisfazer-se com a companhia
um do outro. O meu novo patro chegou mais
tarde, um pouco embriagado, e arregalou os olhos
para as ovelhas, para se assegurar de que eu as
alimentara e lhes dera gua. Chegou numa carroa
de rodas altas, puxada por um vigoroso pnei, que
imediatamente entregou aos meus cuidados. Disse-
me que contratara outro homem, um tal de Crice.
Eu devia esperar que ele chegasse e lhe mostrar
onde estavam as ovelhas. Depois desapareceu
para dentro de um quarto para dormir. Suspirei
para mim mesmo ao pensar numa longa viagem
acelerada pela lngua e modos abrasivos de Crice,
mas no protestei. Em vez disso, ocupei-me em
cuidar do pnei, uma eguinha obediente chamada
Rufa.
Em seguida chegou um grupo de um tipo mais
alegre. Eram uma trupe de titereiros com um carro
pintado em cores vivas e puxado por uma parelha
de cavalos sarapintados. Havia uma janela de cada
lado do carro, que podia ser baixada para
espetculos de fantoches, e um toldo que podia ser
desenrolado de um dos lados para cobrir um palco
quando usassem as marionetes maiores. O mestre
titereiro chamava-se Vale. Tinha trs aprendizes e
um titereiro viajante, bem como uma menestrel que
se juntara a eles para a viagem. No fizeram a sua
prpria fogueira, e foram animar a casinha da
mulher com canes, os estalidos das marionetes e
uma quantidade de canecas de cerveja.
Os prximos a chegarem foram dois carroceiros
com dois carros cheios de louas de barro
cuidadosamente embaladas, e depois, finalmente, a
chefe da caravana e os seus quatro ajudantes.
Esses seriam os que fariam mais do que
simplesmente nos guiar. O prprio aspecto da
chefe inspirava confiana. Guida era uma mulher
de constituio robusta, e trazia o cabelo cor de
ardsia preso longe do rosto por uma faixa de
couro ornamentada com contas. Dois dos seus
ajudantes pareciam ser uma filha e um filho.
Conheciam os poos, tanto os limpos quanto os
contaminados, iriam nos defender contra bandidos,
levavam provises adicionais de comida e gua e
tinham acordos com nmades cujos territrios de
pastagem iramos atravessar. Este ltimo fator era
to importante como todo o resto, pois os nmades
no viam com bons olhos as pessoas que passavam
pelas suas terras com animais de pasto para comer
o alimento de que os seus prprios rebanhos
necessitavam. Guida nos reuniu nessa noite para
nos informar isso e para nos lembrar de que
tambm iriam manter a ordem dentro do nosso
grupo. No seriam tolerados roubos ou desordens,
seria imposto um ritmo que todos pudessem
aguentar, a chefe da caravana trataria de todas as
negociaes nos poos e com os nmades e todos
tinham de concordar em submeter-se s decises
da chefe da caravana como se fossem leis.
Murmurei o meu assentimento com os outros.
Ento, Guida e os ajudantes verificaram os carros
para se certificarem de que estavam todos
preparados para a viagem, de que as parelhas
eram robustas e de que havia provises adequadas
de gua e alimentos para emergncias. Iramos
descrever uma rota em ziguezague de poo em
poo. O carro de Guida levava vrios barris de
carvalho para gua, mas ela insistiu que cada carro
e grupo particular levasse alguma gua para as
suas prprias necessidades.
Crice chegou com o sol se pondo, depois que
Damo j havia voltado para o seu quarto e cama.
Mostrei-lhe obedientemente as ovelhas, e depois
fiquei ouvindo-o resmungar por Damo no nos ter
fornecido um quarto onde dormirmos. A noite
estava limpa e quente, s com um pouco de vento,
de modo que eu vi pouco motivo para queixas.
Mas no o disse, deixei-o resmungar e protestar
at se fartar. Dormi do lado de fora do curral das
ovelhas, de guarda, para o caso de algum predador
se aproximar, mas Crice foi embora para ir
aborrecer os titereiros com a sua natureza
obstinada e opinies abrangentes.
No sei quanto tempo realmente dormi. Os meus
sonhos abriram-se como cortinas sopradas por um
vento. Fiquei alerta ao ouvir uma voz que
murmurava o meu nome. Parecia vir de muito
longe, mas medida que escutava, eu era
compelido inexoravelmente a me aproximar dela,
como se estivesse sendo chamado por um encanto.
Como uma mariposa errante, tomei conscincia de
chamas de velas e fui atrado para elas. Quatro
velas ardiam brilhantemente numa mesa tosca de
madeira e os seus odores misturados adoavam o
ar. Os dois crios altos exalavam o odor da baga
de loureiro. As duas velas menores ardiam na
frente deles, soltando um odor doce de primavera.
Violetas, pensei, e algo mais. Uma mulher
debruava-se para a frente junto s velas,
respirando profundamente o seu perfume. Tinha os
olhos fechados, a cara umedecida de suor. Moli.
Voltou a proferir o meu nome.
Fitz, Fitz. Como pde morrer e me abandonar
assim? No devia acontecer desta forma, voc
devia vir atrs de mim, devia me encontrar para
que eu pudesse perdo-lo. Devia ter acendido
estas velas por mim. Eu no devia estar sozinha
para isto.
As palavras foram interrompidas por um grande
arquejo, como se proveniente de uma dor
dilacerante, acompanhada por uma onda de medo,
freneticamente reprimida.
Vai ficar tudo bem murmurou Moli para si
mesma. Vai ficar tudo bem. para ser assim.
Acho.
Mesmo dentro do sonho de Talento, o meu
corao parou. Olhei para Moli, ali de p junto
lareira na pequena cabana. L fora, uma
tempestade de outono soprava, furiosa. Ela
agarrou-se borda da mesa e ficou meio agachada,
meio debruada sobre ela. Usava apenas uma
camisola, e tinha o cabelo lustroso de suor.
Enquanto eu observava, horrorizado, ela voltou a
respirar muito fundo e ento expulsou o ar, no
num grito, mas num som que era como um grasnido
agudo, como se s tivesse foras para isso.
Passado um minuto, endireitou-se um pouco e
pousou suavemente as mos em cima da barriga. O
seu tamanho me deixou tonto. Estava to
distendida, ela parecia grvida.
Ela estava grvida.
Se fosse possvel perder a conscincia quando
se est dormindo, acho que eu o teria feito. Em vez
disso, a minha mente vacilou de sbito,
reordenando cada palavra que ela me dissera
quando nos separramos, recordando o dia em que
me perguntara o que eu faria se ela estivesse
espera de um filho meu. O beb era aquele de
quem ela falara, aquele por quem me deixara,
aquele que queria colocar frente de todo o resto
na sua vida. Outro homem, no. O nosso filho. Ela
partira para proteger o nosso filho. E no me
dissera porque tinha medo que eu no fosse com
ela. Era melhor no pedir do que pedir e obter uma
recusa.
E tivera razo. Eu no teria ido. Estavam
acontecendo coisas demais em Torre do Cervo,
havia deveres urgentes demais para com o meu rei.
Ela tivera razo em me abandonar. Era to tpico
de Moli fazer da partida e de encarar aquilo
sozinha escolha apenas sua. Estpido, mas to
tpico dela que desejei abra-la. Desejei sacudi-
la.
Ela voltou subitamente a agarrar-se mesa, com
os olhos arregalando-se, agora sem voz, com a
fora que se movia dentro de si.
Estava s. Acreditava que eu estava morto. E
estava dando luz ao filho sozinha, naquela
minscula cabana aoitada pelo vento, em algum
lugar.
Estendi-me para ela, gritando Moli, Moli, mas
ela estava agora voltada para dentro, concentrada
em si mesma, escutando apenas o seu prprio
corpo. De sbito compreendi a frustrao de
Veracidade naquelas vezes em que no conseguia
me fazer ouvi-lo e precisava me contactar
desesperadamente.
A porta escancarou-se de repente, deixando
entrar na cabana um sopro de vento tempestuoso e
uma rajada de chuva fria acompanhando-o. Ela
ergueu os olhos, arquejando, para fit-la.
Bronco? chamou sem flego. Tinha a voz
repleta de esperana.
De novo senti uma onda de espanto, mas foi
afogada pela gratido e alvio que ela sentiu
quanto o rosto escuro de Bronco espreitou de
sbito em volta da soleira da porta.
Sou s eu, ensopado. No consegui lhe
arranjar mas secas, no importa o que eu
oferecesse. Os armazns da vila esto vazios.
Espero que a farinha no tenha se molhado. Teria
chegado mais cedo, mas esta tempestade
Estava entrando enquanto falava, um homem que
chegava em casa vindo da vila, com uma saca no
ombro. gua lhe escorria pelo rosto e pingava do
seu manto.
Chegou a hora, agora disse-lhe Moli
num frenesi.
Bronco largou a saca enquanto fechava a porta
com dificuldade e a trancava. O qu?
perguntou-lhe enquanto limpava a chuva dos olhos
e afastava o cabelo molhado do rosto.
O beb est chegando. Ela parecia agora
estranhamente calma.
Ele a olhou sem expresso por um instante.
Ento falou com firmeza.
No. Ns contamos, voc contou. No pode
estar chegando agora. De repente, ele quase
pareceu estar zangado, to desesperado que estava
para ter razo. Mais quinze dias, talvez mais. A
parteira, falei com ela hoje e combinei tudo, ela
disse que vinha ver voc em alguns dias
As palavras dele sumiram quando Moli voltou a
agarrar-se borda da mesa. Os lbios se afastaram
dos dentes com o esforo. Bronco ficou imvel
como um homem petrificado. Eu nunca o vira
empalidecer tanto.
Quer que volte aldeia para busc-la?
perguntou numa voz fraca.
Ouviu-se o som da gua tamborilando nas tbuas
irregulares do cho. Aps uma eternidade, Moli
recuperou o flego.
Acho que no h tempo.
Ele continuou parado como que congelado, com
o manto pingando gua no cho. No entrou mais
na sala, permaneceu imvel como se ela fosse um
animal imprevisvel.
Voc no devia estar deitada? perguntou
com incerteza.
J tentei. Di muito se eu estiver deitada e
uma dor vier. Ela me fez gritar.
Ele estava assentindo com a cabea como um
fantoche.
Ento deve ficar de p, suponho. Claro.
No se mexeu.
Ela o olhou, suplicante.
No pode ser assim to diferente arquejou
de um potro ou de um bezerro
Os olhos dele se arregalaram de tal forma que eu
consegui ver o branco em toda a volta da ris.
Sacudiu violentamente a cabea, sem um som.
Mas Bronco no h mais ningum para me
ajudar. E eu estou As palavras foram
subitamente arrancadas dela numa espcie de
grito. Inclinou-se para frente, dobrando as pernas
de modo que a testa foi pousar na borda da mesa.
Soltou um som baixo, to cheio de medo quanto de
dor.
O medo de Moli conseguiu chegar at Bronco.
Ele deu uma sacudida minscula e rpida com a
cabea, um homem despertando.
No. Tem razo, no pode ser assim to
diferente. No pode. J fiz isto centenas de vezes.
a mesma coisa, tenho certeza. Est bem. Bom.
Vejamos. Vai ficar tudo bem, deixe-me s Ah.
Arrancou o manto e deixou-o cair no cho.
Empurrou apressadamente o cabelo molhado para
longe do rosto, ento foi se ajoelhar ao lado dela.
Vou tocar voc avisou, e eu vi a cabea
inclinada de Moli fazer um pequeno aceno de
acordo.
Ento as mos seguras de Bronco encostaram-se
na barriga dela, acariciando-a com suavidade, mas
firmes, como eu o vira fazer quando uma gua
estava tendo problemas e ele queria apressar as
coisas.
J no muito tempo, no falta muito
disse-lhe. J desceu. Ficou confiante de
repente, e eu senti Moli ganhar nimo com o tom
da sua voz. Manteve as mos sobre ela quando
outra contrao a assaltou. Isso bom, est
certo. Ouvira-o dizer as mesmas palavras
reconfortantes uma centena de vezes nas cocheiras
de Torre do Cervo. Entre dores, equilibrou-a com
as mos, falando-lhe o tempo todo com suavidade,
chamando-lhe de linda menina, menina firme, bela
menina que ia dar luz um belo beb. Duvido que
algum dos dois ouvisse o sentido do que ele dizia.
Estava tudo no tom de voz. Levantou-se uma vez
para ir buscar um cobertor e dobr-lo no cho ao
seu lado. No disse nenhuma palavra embaraosa
enquanto lhe levantava a camisola e limitou-se a
falar suavemente, num tom de encorajamento,
enquanto Moli se agarrava borda da mesa.
Consegui ver a ondulao nos msculos, e ento
ela soltou um grito sbito e Bronco estava
dizendo: Continue, continue, estamos aqui,
estamos aqui, continue, isso, e o que temos aqui,
quem este?
E ento a criana estava nos seus braos, com a
cabea em uma mo calejada em taa e a outra
segurando o minsculo corpo enrolado, e Bronco
sentou-se de repente no cho, com uma expresso
to espantada como se nunca antes tivesse visto
algo nascer. As conversas de mulheres que eu
ouvira tinham me levado a esperar horas de gritos
e lagos de sangue. Mas havia pouco sangue no
beb que olhava para Bronco com calmos olhos
azuis. O cordo acinzentado que se enrolava preso
barriga parecia grande e grosso, comparado com
as mos e ps minsculos. Tudo era silncio,
exceo do arquejar de Moli.
Ele est bem? quis saber Moli. A sua voz
tremia. H alguma coisa errada? Por que ele
no chora?
Ela est tima disse Bronco em voz baixa.
Ela est tima. E, bela como , por que
choraria? Ficou em silncio durante muito
tempo, um homem enfeitiado. Por fim, colocou-a
com relutncia no cobertor, virou um canto deste
para cobrir a beb. Voc tem um pouco mais de
trabalho a fazer aqui, garota, antes de acabarmos
disse bruscamente a Moli.
Mas no se passou muito tempo antes de ter
Moli sentada numa cadeira diante da lareira, com
um cobertor sua volta para evitar que se
resfriasse. Hesitou por um momento, e ento
cortou o cordo com a faca de cinto antes de
enrolar a beb num pano limpo e de lev-la a
Moli. Esta a desenrolou imediatamente. Enquanto
Bronco arrumava a sala, Moli examinou cada
centmetro da filha, soltando exclamaes sobre o
seu liso cabelo negro, os minsculos dedinhos com
as suas unhas perfeitas, a delicadeza das suas
orelhas. Ento Bronco fez o mesmo enquanto
segurava a beb e se virava de costas para que
Moli pudesse vestir uma camisola que no
estivesse ensopada de suor. Examinou a criana
com uma ateno que eu nunca o vira dedicar a um
potro ou a um cachorro.
Voc vai ter a testa de Cavalaria disse
beb em voz baixa. Sorriu-lhe e lhe tocou na
bochecha com um dedo. A criana virou a cabea
para o toque.
Quando Moli voltou para a cadeira junto
lareira, ele lhe entregou de novo a criana, mas
agachou-se no cho ao lado da cadeira enquanto
Moli levava a beb ao seio. Esta precisou de
algumas tentativas para encontrar o mamilo e
segur-lo, mas quando finalmente comeou a
mamar, Bronco soltou tamanho suspiro que eu
compreendi que ele estivera prendendo a
respirao com medo de que a criana no
mamasse. Moli s tinha olhos para a beb, mas eu
reparei no modo como Bronco ergueu as mos
para esfregar o rosto e os olhos, e em como essas
mos tremiam. Sorria como nunca o vira sorrir at
ento.
Moli ergueu o olhar para ele, com um rosto que
era como um nascer de sol.
Voc me faria uma xcara de ch, por favor?
pediu-lhe com suavidade, e Bronco assentiu,
sorrindo como um simplrio.
Sa do sonho horas antes da alvorada, sem
saber, a princpio, quando passara de um estado
meditativo para o de acordado. Tomei conscincia
de que tinha os olhos abertos e fitava a lua. Seria
impossvel descrever os meus sentimentos naquele
momento. Porm, os meus pensamentos lentamente
tomaram forma, e compreendi os sonhos anteriores
de Talento que tivera com Bronco. Explicavam
muitas coisas. Eu o estive vendo atravs dos olhos
de Moli. Ele estivera l, todo aquele tempo, com
Moli, cuidando dela. Era ela a amiga que ele fora
ajudar, a mulher que podia usar a fora de um
homem durante algum tempo. Estivera l com ela,
enquanto eu estivera s. Senti uma sbita onda de
raiva por ele no ter vindo me dizer que ela
esperava um filho meu. Foi rapidamente abafada
quando percebi de repente que talvez tivesse
tentado. Algo o trouxera de volta cabana naquele
dia. Voltei a perguntar a mim mesmo o que ele
teria pensado quando a encontrara abandonada.
Que todos os seus piores medos a meu respeito
tinham se concretizado? Que eu me tornara
selvagem e nunca regressaria?
Mas eu iria regressar. Como uma porta que se
abria, compreendi de sbito que podia fazer isso.
Na realidade, nada se interpunha entre mim e
Moli. No havia outro homem na sua vida, s a
nossa filha. Sorri subitamente para mim mesmo.
No deixaria que algo insignificante como a minha
morte se interpusesse entre ns. O que era a morte,
comparada com a vida partilhada de uma criana?
Iria at ela e explicaria tudo, dessa vez lhe diria
tudo, e dessa vez ela compreenderia e me
perdoaria, porque nunca mais haveria segredos
entre ns.
No hesitei. Sentei-me na escurido, peguei a
trouxa que usara como almofada e parti. Descer o
rio era to mais fcil do que subi-lo. Eu tinha
algumas peas de prata, arranjaria maneira de
comprar passagem num barco, e quando o dinheiro
se esgotasse, trabalharia em troca de transporte. O
Vim era um rio lento, mas depois de passar por
Lago Bode, o Rio Cervo me levaria depressa na
sua forte corrente. Eu estava voltando. Para casa,
para junto de Moli e da nossa filha.
Venha at mim.
Parei. No era Veracidade que me contactava
pelo Talento. Eu sabia que no era. Aquilo vinha
de dentro de mim, era a marca deixada por aquele
sbito e poderoso fluxo de Talento. Eu tinha
certeza de que se ele soubesse por que motivo eu
tinha de ir para casa, iria dizer para que me
apressasse, que no me preocupasse com ele, que
ele ficaria bem. Estaria tudo bem. Tudo o que eu
tinha de fazer era continuar a andar.
Um passo atrs de outro ao longo de uma estrada
iluminada pelo luar. A cada passo, a cada
batimento do corao, ouvia palavras na cabea.
Venha at mim. Venha at mim . No posso,
supliquei. No irei, desafiei-as. Continuei a andar.
Tentei pensar apenas em Moli, apenas na minha
pequenina filha. Ela precisaria de um nome. Moli
a batizaria antes de eu chegar l?
Venha at mim.
Teramos de casar imediatamente. Encontrar
alguma Testemunha local numa pequena aldeia
qualquer. Bronco garantiria que eu era um
enjeitado, sem famlia para a Testemunha
memorizar. Eu diria que me chamava Novato. Um
nome estranho, mas eu j ouvira mais estranhos, e
podia viver o resto da vida com ele. Os nomes,
antes to importantes para mim, j no
importavam. Podiam me chamar Bosta-de-Cavalo,
desde que eu pudesse viver com Moli e com a
minha filha.
Venha at mim.
Teria de arranjar algum tipo de trabalho,
qualquer tipo de trabalho. De repente, decidi que
as moedas de prata que trazia na bolsa eram
importantes demais para gast-las, que teria de
trabalhar ao longo de toda a viagem para casa. E
uma vez chegado l, o que eu poderia fazer para
ganhar a vida? Para o que eu servia? Deixei esse
pensamento de lado, irritado. Arranjaria alguma
coisa, arranjaria uma maneira. Seria um bom
marido, um bom pai. No faltaria nada a elas.
Venha at mim.
Os meus passos haviam diminudo gradualmente.
Eu estava agora no topo de uma pequena elevao,
olhando para a estrada minha frente. Ainda
ardiam luzes na vila fluvial, l embaixo. Teria de
ir at l e encontrar uma barcaa que rumasse rio
abaixo e cujo capito estivesse disposto a aceitar
um ajudante que no fora posto prova. Era
apenas isso. Era s continuar a andar.
Naquele momento no compreendi por que no
podia fazer isso. Dei um passo, tropecei, o mundo
oscilou vertiginosamente minha volta e ca de
joelhos. No podia voltar. Eu tinha de continuar
viagem, at Veracidade. Ainda no compreendo,
por isso no posso explic-lo. Ajoelhei na
elevao, olhando para a vila, sabendo com
clareza o que desejava fazer de todo o corao. E
no podia. Nada me detinha, nenhum homem erguia
uma mo ou uma espada para mim e me pedia para
dar meia-volta. S a pequena voz insistente na
cabea que no me largava. Venha at mim, venha
at mim, venha at mim.
E no podia fazer outra coisa.
No podia dizer ao corao para parar de bater,
no podia desistir de respirar e morrer. E no
podia ignorar aquele chamamento. Fiquei sozinho
na noite, encurralado e sufocando na vontade que
outro homem me impunha. Uma parte calma de
mim mesmo dizia: Pronto, bem, veja, assim que
as coisas so para eles. Para Vontade e para o
resto do crculo, com a lealdade a Majestoso
inculcada neles pelo Talento de Galeno. No os
fazia esquecer que haviam tido outro rei, no os
levava a acreditar que o que faziam estava certo.
Simplesmente j no tinham alternativa a esse
respeito. E, recuando uma gerao, assim fora para
Galeno, forado a ser fanaticamente leal ao meu
pai. Veracidade me dissera que a lealdade dele
fora inculcada pelo Talento, uma coisa feita por
Cavalaria quando todos eles no passavam de
garotos. Feita em fria contra uma crueldade
qualquer que Galeno fizera a Veracidade. O ato de
um irmo mais velho que se vingava de algum
que fora mau para com o irmo mais novo. Aquilo
fora feito a Galeno em ira e ignorncia, sem
mesmo saber por completo que uma tal coisa era
possvel. Veracidade dissera que Cavalaria se
arrependera, que a teria desfeito se soubesse
como. Teria Galeno alguma vez despertado para o
que lhe fora feito? Teria isso explicado o seu dio
fantico por mim, teria esse dio sido uma
transmisso para o filho de algo que no se podia
permitir sentir por Cavalaria, meu pai?
Tentei me levantar e falhei. Deixei-me cair
lentamente na terra, no centro da estrada iluminada
pelo luar, e me sentei ali, desesperado. No
importava. Nada daquilo importava, a nica coisa
importante era que a minha dama e a minha filha
estavam em algum lugar e eu no podia ir at elas.
No era mais capaz de ir at elas do que de subir
ao cu noturno e derrubar a lua. Olhei para o rio
ao longe, que brilhava, negro, ao luar, enrugado
como ardsia negra. Um rio que podia me levar
para casa, mas no o faria. Porque nem a fora da
minha vontade era suficiente para ultrapassar
aquela ordem que eu tinha na cabea. Ergui os
olhos para a lua.
Bronco supliquei em voz alta, como se ele
pudesse me ouvir. Oh, cuide delas, assegure-se
de que nada de mal lhes acontea, defenda-as
como se fossem suas. At que eu possa ir at elas.
No me lembro de voltar aos currais, nem de me
deitar para dormir. Mas a manh chegou, e quando
abri os olhos era ali que me encontrava. Fiquei
deitado, olhando o arco azul do cu, odiando a
minha vida. Crice veio interpor-se entre mim e os
cus, e olhou para mim.
melhor levantar disse-me, e depois,
olhando melhor, observou. Seus olhos esto
vermelhos. Voc tem uma garrafa que no dividiu?
No tenho nada para dividir com ningum
respondi de forma sucinta. Rolei e me levantei.
Minha cabea latejava.
Perguntei-me como Moli a chamaria. Um nome
de flor, provavelmente. Lils, ou algo assim. Rosa.
Calndula. Como eu a chamaria? No importava.
Parei de pensar. Durante os dias seguintes, fiz o
que me foi ordenado. Em algum lugar dentro de
mim, um louco enfurecia-se na sua cela, mas
decidi no saber. Em vez disso, guardei ovelhas.
Comi de manh. Comi noite. Deitei-me noite e
levantei-me de manh. E guardei ovelhas. Segui-
as, na poeira dos carros, dos cavalos e das
prprias ovelhas, poeira que se coagulou, espessa,
nos meus clios e na pele, poeira que me cobriu a
garganta de secura, e no pensei em nada. No
precisava pensar para saber que cada passo me
levava para mais perto de Veracidade. Falei to
pouco que at Crice se cansou da minha
companhia, pois no conseguia me provocar at
fazer discutir. Guardei as ovelhas com a
tenacidade do melhor co-pastor que j existiu.
Quando me deitava para dormir, noite, nem
sequer sonhava.
A vida prosseguiu para os outros. A chefe da
caravana nos guiou bem, e a viagem foi
abenoadamente calma. Os nossos infortnios
estavam limitados poeira, pouca gua e ao
pasto pouco abundante, e esses infortnios eram
aqueles que aceitvamos como parte da estrada.
De noite, depois de as ovelhas estarem instaladas
e a refeio cozinhada e comida, os titereiros
ensaiavam. Tinham trs peas e pareciam
decididos a aperfeioar todas antes de chegarmos
ao Lago Azul. Em certas noites, eram apenas os
movimentos dos fantoches e os seus dilogos, mas
por vrias vezes prepararam tudo, archotes, palco
e cenrios, com os titereiros vestidos com as
roupagens de um branco puro que simbolizavam a
sua invisibilidade, e percorriam todo o repertrio
de peas. O mestre era severo, muito propenso a
usar a correia, e no poupava nem o titereiro
contratado de uma ou duas chicotadas se achasse
que as merecia. Uma nica deixa entoada
incorretamente, uma sacudida numa mo de
marionete que no fosse como o Mestre Vale
ditava, e l estava ele no meio do elenco,
brandindo a correia. Mesmo se eu estivesse com
disposio para divertimentos, isso os teria
estragado. Assim, era mais frequente que eu fosse
me sentar para vigiar as ovelhas, enquanto os
outros assistiam s sesses.
A menestrel, uma mulher bonita chamada
Esporana, era com frequncia minha companheira.
Eu duvidava de que isso resultasse de algum
desejo pela minha companhia. Era, isso sim, por
estarmos suficientemente distantes do
acampamento para ela poder sentar-se para
praticar as suas canes e harpejos, longe dos
infindveis ensaios e choros dos aprendizes
corrigidos. Talvez fosse por eu ser de Cervo, e
portanto poder compreender o que lhe causava
saudade quando falava em voz baixa dos gritos das
gaivotas e do cu azul sobre o mar aps uma
tempestade. Era uma tpica mulher de Cervo, de
cabelos e olhos escuros, que me chegava ao
ombro. Vestia-se com simplicidade, com perneiras
e tnica azuis. Havia furos para brincos nas suas
orelhas, mas ela no usava nenhum, e no havia
anis nos seus dedos. Sentava-se no muito longe
de mim, e corria os dedos pelas cordas da harpa e
cantava. Era bom voltar a ouvir um sotaque de
Cervo e as canes familiares dos Ducados
Costeiros. s vezes ela falava comigo. No era
uma conversa. Ela falava para si mesma na noite, e
apenas calhava de eu estar ao alcance da sua voz,
tal como alguns homens falam com o co
preferido. E foi assim que eu fiquei sabendo que
ela fora um dos menestris de um pequeno castelo
de Cervo, no qual eu nunca estivera, possudo por
um pequeno nobre cujo nome eu nem sequer
reconhecia. Era tarde demais para visitar ou
conhecer; o castelo e o nobre j no existiam,
dominados e queimados pelos Navios Vermelhos.
Esporana sobrevivera, mas sem lugar onde
descansar a cabea ou um patro para quem cantar.
Assim, partira sozinha, decidida a ir tanto para o
interior que nunca mais visse um navio de
qualquer cor. Eu conseguia compreender esse
impulso. Ao afastar-se, ela salvava Cervo para si
mesma, como uma memria de como o ducado
havia sido outrora.
A morte chegara perto o suficiente para roar
nela as pontas das asas, e ela no ia morrer tal
como era, uma menestrel menor de um nobre
menor. No, de algum modo iria fazer seu nome,
iria testemunhar algum grande acontecimento e
fazer uma cano sobre ele que seria cantada pelos
anos afora. Ento seria imortal, lembrada enquanto
a sua cano fosse cantada. A mim pareceu que ela
teria uma chance melhor de testemunhar tal
acontecimento se tivesse ficado na costa onde a
guerra era travada, mas como que em resposta ao
meu pensamento inaudito, Esporana me assegurou
de que ia testemunhar algo que deixasse a sua
testemunha viva. E, alm disso, basta ver uma
batalha para ver todas. Ela no via nada de
especialmente musical no sangue. Ao ouvir aquilo,
concordei com um aceno mudo.
Ah. Achei que voc parecia mais um homem
de armas do que um pastor. As ovelhas no
quebram narizes, nem deixam no rosto uma cicatriz
como essa.
Deixam se voc rolar escarpa abaixo
enquanto procura algumas no meio do nevoeiro
disse-lhe eu com frieza e virei o rosto para o lado.
Durante muito tempo, isso foi o mais perto que
eu cheguei de ter uma conversa com algum.
Continuamos a viajar, deslocando-nos apenas
velocidade que um carro carregado e um rebanho
de ovelhas permitiam. Os dias eram notavelmente
semelhantes. As paisagens por onde passvamos
eram notavelmente semelhantes. Houve poucas
novidades. s vezes havia outras pessoas
acampadas junto aos poos a que chegvamos.
Junto a um deles havia uma espcie de taverna, e
ali a chefe da caravana entregou algumas pequenas
barricas de conhaque. Uma vez fomos seguidos
durante meio dia por pessoas a cavalo que podiam
ter sido bandidos. Mas mudaram de rumo e
abandonaram o nosso rastro tarde, ou dirigindo-
se a um destino seu, ou por terem decidido que
aquilo que possuamos no valia o esforo de um
ataque. s vezes outras pessoas nos
ultrapassavam, mensageiros e gente que viajava a
cavalo, sem andar devagar por causa de ovelhas
ou carros. Uma vez foi um destacamento de
soldados com as cores de Vara, instigando
duramente os cavalos enquanto nos ultrapassavam.
Senti um incmodo enquanto os observava
ultrapassar a nossa caravana, como se um animal
esgravatasse brevemente nas muralhas que
defendiam a minha mente. Cavalgaria com eles um
Talentoso, Emaranhado ou Cedoura, ou at
Vontade? Tentei me convencer de que era apenas a
viso de uma libr dourada e castanha que me
enervava.
Noutro dia fomos interceptados por trs dos
nmades em cujo territrio de pastagem nos
encontrvamos. Aproximaram-se de ns em pneis
resistentes e pequenos que usavam apenas uma
corda como arreio. As duas mulheres adultas e o
rapaz eram louros com rostos queimados pelo sol.
O rosto do rapaz estava tatuado com riscas como
um gato. A chegada dos nmades causou uma
parada completa da caravana, enquanto Guida
montava uma mesa, a cobria com uma toalha e
fazia um ch especial, que lhes serviu com fruta
cristalizada e bolos de acar de cevada. Nenhum
dinheiro trocou de mos, que eu tivesse visto,
apenas aquela hospitalidade cerimonial. Suspeitei
pelas maneiras dos nmades que Guida era uma
velha conhecida sua, e que o filho estava sendo
preparado para perpetuar este acordo de
passagem.
No entanto, a maioria dos dias era constituda
pela mesma rotina laboriosa. Levantvamo-nos,
comamos, caminhvamos. Parvamos, comamos,
dormamos. Um dia dei por mim curioso para
saber se Moli ensinaria nossa filha a fazer velas e
a cuidar de abelhas. O que eu poderia ensinar?
Venenos e tcnicas de estrangulamento, pensei
com amargura. No. As letras e os nmeros ela
aprenderia comigo. Ainda seria nova o suficiente
quando eu regressasse para lhe ensinar isso. E
tudo o que Bronco me ensinara sobre cavalos e
ces. Foi nesse dia que me peguei de novo olhando
em frente, planejando para uma vida depois de
encontrar Veracidade e de algum modo lev-lo a
salvo de volta a Cervo. A minha beb era agora
apenas uma criana pequena, disse a mim mesmo,
mamando no peito de Moli e olhando em volta
com olhos muito abertos, vendo tudo novo. Era
nova demais para saber que algo faltava, nova
demais para saber que o seu pai no se encontrava
presente. Eu estaria em breve com elas, antes que
ela aprendesse a dizer papai. Estaria l para ver
os seus primeiros passos.
Essa deciso mudou algo em mim. Nunca
esperara nada to ansiosamente. Aquilo no era
um assassinato que terminaria com a morte de
algum. No, eu tinha a expectativa de uma vida, e
imaginava lhe ensinar coisas, imaginava-a
crescendo inteligente, linda e amando o pai, sem
nada saber, jamais, sobre qualquer outra vida que
ele tivesse levado. No se recordaria de mim com
um rosto liso e um nariz reto. Iria me conhecer
apenas como eu era agora. Isso era estranhamente
importante para mim. Portanto, eu iria at
Veracidade porque tinha de faz-lo, porque ele era
meu rei e eu o amava, e porque precisava de mim.
Porm, encontr-lo j no marcava o fim da minha
viagem, mas sim o princpio. Depois de encontrar
Veracidade, eu podia dar meia-volta e ir para
casa, para elas. Durante algum tempo, esqueci
Majestoso.
Era nisto que eu pensava s vezes, e quando o
fazia caminhava atrs das ovelhas no meio da sua
poeira e fedor e sorria um sorriso de lbios
cerrados por trs do leno que me cobria o rosto.
Em outros momentos, quando me deitava sozinho
noite, s conseguia pensar no calor de uma mulher
e numa casa e filha minhas. Acho que sentia cada
milha que se estendia entre ns. Nessas ocasies, a
solido era algo que me corroa. Ansiava por
conhecer cada detalhe do que estava acontecendo.
Cada noite, cada momento de sossego era uma
tentao para sondar com o Talento. Mas agora eu
compreendia a repreenso de Veracidade. Se eu os
contactasse pelo Talento, ento o crculo de
Majestoso poderia encontr-los to bem como eu.
Majestoso no hesitaria em us-los contra mim de
qualquer forma que conseguisse imaginar. Logo, eu
tinha uma sede ardente por saber deles, mas no
me atrevia a satisfazer essa sede.
Chegamos a uma aldeia que quase merecia esse
nome. Brotara como cogumelos de um anel de
fadas em volta de uma nascente de guas
profundas. Possua uma estalagem, uma taverna e
at vrias lojas, tudo para servir os viajantes,
rodeadas por casas espalhadas. Chegamos l a
meio-dia, e Guida declarou que iramos descansar
e no partiramos at a manh seguinte. Ningum
faz objees. Depois de termos dado gua aos
animais, ns os levamos at os arredores da
aldeia. O titereiro decidiu aproveitar a situao e
anunciou na taverna e na estalagem que a sua trupe
iria dar um espetculo para toda a vila, aceitando
alegremente gratificaes. Esporana j descobrira
um canto da taverna para chamar de seu e estava
apresentando aquela aldeia de Vara a algumas
baladas de Cervo.
Eu me contentei em ficar com as ovelhas nos
arredores da aldeia. Rapidamente me transformei
no nico a permanecer no acampamento. No me
importei muito. A dona dos cavalos me oferecera
um cobre adicional para que eu ficasse de olho
neles. Quase nem valia a pena vigi-los. Estavam
amarrados, mas, mesmo que no estivessem, todos
os animais se sentiam gratos por parar durante
algum tempo e procurar o pasto que conseguissem
encontrar. O touro estava preso a uma estaca e
igualmente ocupado mordiscando ervas. Havia
uma espcie de paz em estar parado e sozinho. Eu
estava aprendendo a cultivar um vazio de esprito.
Agora era capaz de passar longos perodos sem
pensar em nada em particular. Isso tornava a minha
infindvel espera menos dolorosa. Sentei-me na
parte de trs da carroa de Damo e deixei meu
olhar vagar pelos animais e pelas suaves
ondulaes da plancie salpicada de arbustos que
se estendia para alm deles.
No durou muito tempo. Ao fim da tarde, o carro
dos titereiros entrou chocalhando no acampamento.
S o Mestre Vale e a mais nova das aprendizes
vinham nele. Os outros tinham ficado no povoado
para beber, conversar e, em suma, divertir-se. Mas
os gritos do mestre logo tornaram evidente que a
sua aprendiz mais nova se desgraara com falas
esquecidas e movimentos incorretos. A sua
punio era ficar no acampamento com o carro.
Acrescentou a isso vrios golpes dados com fora
com a correia. Tanto o estalar do couro como os
gritos da garota eram claramente audveis por todo
o acampamento. Estremeci ao segundo golpe e me
levantei ao terceiro. No fazia uma ideia clara das
minhas intenes, e na verdade fiquei aliviado por
ver o mestre afastar-se a passos largos do carro,
de volta aldeia.
A garota chorou ruidosamente enquanto
desempenhava a tarefa de desatrelar e amarrar os
cavalos. Eu reparara nela antes de um modo
casual. Era a mais jovem da trupe, no teria mais
de dezesseis anos, e parecia ser quem ficava mais
frequentemente sob o chicote do mestre. No que
isso fosse incomum. No era raro que um mestre
tivesse um aoite para manter os aprendizes
dedicados s suas tarefas. Nem Bronco, nem Breu
haviam alguma vez usado em mim uma correia,
mas eu apanhara a minha quota de bofetadas e
cascudos, e com uma bota ocasional de Bronco se
eu no estivesse me movendo to depressa como
lhe convinha. O titereiro no era pior do que
muitos mestres que eu vira, e era mais gentil do
que alguns. Todos os seus subalternos estavam
bem alimentados e vestidos. Suponho que o que
me irritava nele era que um golpe com a correia
nunca parecia content-lo. Eram sempre trs ou
cinco, ou at mais se estivesse maldisposto.
A paz da noite desaparecera. Muito depois de
acabar de amarrar os cavalos, os soluos
profundos da garota rasgavam a quietude. Aps
algum tempo, no consegui mais suportar aquilo.
Fui at a traseira do seu carro e bati na pequena
porta. O choro parou com uma fungada.
Quem ? perguntou ela com voz rouca.
Tom, o pastor. Voc est bem?
Esperara que ela dissesse que sim e que me
mandasse embora. Mas a porta abriu-se um
momento depois e ela apareceu e olhou para mim.
Pingava sangue do seu queixo. Vi num relance o
que acontecera. A ponta da correia ultrapassara o
ombro e a extremidade mordera cruelmente a sua
bochecha. No duvidava de que aquilo doa
bastante, mas eu suspeitava de que a quantidade de
sangue a estava assustando ainda mais. Vi um
espelho em cima de uma mesa atrs dela, com um
pano ensanguentado ao lado. Por um momento,
olhamos sem palavras um para o outro. Ento:
Ele arruinou o meu rosto soluou ela.
No consegui pensar em nada para dizer. Em vez
disso, entrei no carro e a agarrei pelos ombros.
Sentei-a. Ela estivera usando um trapo seco para
tocar no rosto. Ela no tinha juzo algum?
Fique quieta disse-lhe de forma brusca.
E tente ficar calma. Eu volto logo.
Levei o trapo e o umedeci com gua fria. Voltei
para dentro e lavei o sangue. Tal como suspeitava,
o corte no era grande, mas estava sangrando
profusamente, como era normal acontecer com os
cortes no rosto ou no couro cabeludo. Dobrei o
trapo em um quadrado e fiz presso com ele contra
o rosto.
Segure isso a. Aperte um pouco, mas no o
mova. Eu j volto. Ergui os olhos para
encontrar os seus fixos na cicatriz no meu rosto,
enquanto lgrimas transbordavam deles.
Acrescentei: Pele to clara como a sua no
forma cicatrizes assim to facilmente. Mesmo se
isso deixar marca, no ser grande.
A forma como ela arregalou os olhos ao ouvir as
minhas palavras me mostrou que eu dissera
precisamente a coisa errada. Sa do carro,
repreendendo-me por ter me envolvido naquilo.
Perdera todas as minhas ervas curativas e o pote
de unguento de Bronco quando abandonara as
minhas coisas em Vaudefeira. No entanto, reparara
numa flor que se parecia um pouco com uma
espiga-de-ouro atrofiada na rea onde as ovelhas
pastavam, e algumas suculentas que eram
parecidas com a sanguinria. Assim, colhi algumas
das suculentas, mas o cheiro era errado, e o sumo
das folhas era pegajoso em vez de gelatinoso.
Lavei as mos, e ento procurei pela espiga-de-
ouro atrofiada. Tinha o cheiro certo. Encolhi os
ombros. Comecei a colher apenas um punhado de
folhas, mas depois decidi que, j que estava com a
mo na massa, podia repor parte do que perdera.
Parecia ser a mesma erva, embora de tamanho
menor e mais esparsa naquele solo seco e rochoso.
Espalhei a minha colheita na traseira da carroa e
a ordenei. Deixei secando as folhas mais grossas.
Esmaguei as pontas menores entre duas pedras que
limpei, e ento levei a pasta resultante numa delas
at o carro dos titereiros. A garota a olhou com ar
de dvida, mas fez um aceno hesitante quando lhe
disse:
Isto vai parar o sangramento. Quanto mais
depressa a ferida fecha, menor a cicatriz.
Quando ela afastou o trapo do rosto, vi que o
ferimento j quase parara de sangrar. Mesmo
assim, espalhei sobre ela uma quantidade que
cabia na ponta do dedo de pasta de betnica. Ela
ficou quieta sob o meu toque, e me senti
subitamente desconcertado quando me lembrei de
que no tocava o rosto de uma mulher desde que
vira Moli pela ltima vez. A garota tinha olhos
azuis e eles estavam muito abertos, olhando para o
meu rosto. Afastei o olhar daqueles olhos
fervorosos.
Pronto. Agora no mexa nisso. No esfregue,
no toque com os dedos, no lave. Deixe que se
forme a casca, e ento faa o que puder para
deix-lo em paz.
Obrigada disse ela em voz baixa.
De nada disse-lhe, e me virei para ir
embora.
O meu nome Tassina disse ela s minhas
costas.
Eu sei. Ouvi ele gritando-o para voc
disse. Comecei a descer os degraus.
Ele um homem horrvel. Eu o odeio!
Fugiria, se pudesse.
No parecia ser uma boa hora para
simplesmente me afastar dela. Sa do carro e
parei.
Eu sei que difcil apanhar com uma correia
quando se est fazendo o melhor que se pode.
Mas assim que as coisas so. Se voc fugisse
e no tivesse comida, um lugar para dormir e a
roupa toda em farrapos, seria pior. Tente
melhorar, para que ele no use a correia. Eu
acreditava to pouco no que estava dizendo que
quase no conseguia articular as palavras. Mas
aquelas palavras pareciam melhores do que lhe
dizer para partir agora e fugir. Ela no
sobreviveria um dia na pradaria aberta.
Eu no quero melhorar. Ela encontrara
uma centelha de coragem, para se mostrar
desafiadora. No quero ser titereira nenhuma.
O Mestre Vale sabia disso quando comprou os
meus anos.
Afastei-me um pouco na direo das minhas
ovelhas, mas ela desceu os degraus e veio atrs de
mim.
Havia um homem de quem eu gostava na
minha aldeia. Ele tinha feito uma proposta para
que eu fosse sua mulher, mas no tinha dinheiro
naquele momento. Era um fazendeiro, veja bem, e
estvamos na primavera. No h fazendeiro que
tenha dinheiro na primavera. Ele disse minha
me que pagaria um dote por mim na poca das
colheitas. Mas a minha me disse: Se ele pobre
agora, s com uma boca para alimentar, s ser
mais pobre depois de ter duas. Ou mais. E ento
ela me vendeu ao titereiro, por metade do que ele
normalmente pagaria por um aprendiz, porque eu
no queria vir.
Na minha terra, as coisas so feitas de outra
forma disse, atrapalhado. No conseguia
compreender o que ela estava me contando. Os
pais pagam a um mestre para aceitar o seu filho
como aprendiz, na esperana de que possa ganhar
a vida melhor do que eles.
Ela alisou o cabelo para trs, afastando-o do
rosto. Era castanho claro, com muitos cachos.
Ouvi falar disso. H quem faa as coisas
assim, mas a maioria no faz. Compram um
aprendiz, normalmente um que esteja disposto, e se
no der certo, podem vend-lo como pau para toda
a obra. Ento no somos muito melhores do que
escravos durante seis anos. Fungou. H
quem diga que isso faz com que um aprendiz se
esforce mais, por saber que pode acabar fazendo
trabalhos menores numa cozinha ou manuseando
um fole numa forja durante seis anos, se o seu
mestre no ficar satisfeito.
Bem. Parece-me que seria melhor que voc
aprendesse a gostar de fantoches eu disse de um
modo pouco convincente. Sentei-me na traseira da
carroa do meu patro e olhei para o rebanho. Ela
sentou-se ao meu lado.
Ou ento ter esperana que algum me
compre do meu mestre disse ela com um ar
desapontado.
Voc faz parecer que uma escrava eu
disse com relutncia. No assim to ruim, ?
Fazer uma coisa que acha estpida, dia aps
dia? perguntou-me. E apanhar por no faz-
la com perfeio? Como isso melhor do que ser
uma escrava?
Bem, voc est alimentada, vestida e tem
abrigo. E ele est lhe dando uma chance de
aprender alguma coisa, um ofcio que permitiria
que voc viajasse por todos os Seis Ducados caso
se tornasse boa nele. Voc podia acabar
apresentando-se para a Corte Real, em Torre do
Cervo.
Ela me olhou estranhamente.
Vaudefeira, voc quer dizer. Soltou um
suspiro e aproximou-se mais de mim.
solitrio para mim. Todos os outros querem ser
titereiros. Zangam-se comigo quando eu cometo
erros e esto sempre me chamando de preguiosa e
no falam comigo quando dizem que eu estraguei
um espetculo. No h sequer um entre eles que
seja bondoso; nenhum deles teria se preocupado
com a possibilidade de eu ficar com uma cicatriz
no rosto como voc se preocupou.
Parecia no haver qualquer resposta a dar
quilo. Eu no conhecia os outros bem o suficiente
para concordar ou discordar. Ento eu no disse
nada e ficamos observando as ovelhas. O silncio
prolongou-se enquanto a noite se tornava mais
escura. Pensei que logo deveria acender uma
fogueira.
Ento comeou ela aps mais alguns
minutos do meu silncio. Como foi que voc se
tornou pastor?
Os meus pais morreram. A minha irm
herdou. Ela no gostava muito de mim, e aqui
estou.
Que vaca! disse ela com ferocidade.
Respirei fundo para defender a minha irm
fictcia, e ento percebi que s iria prolongar a
conversa. Tentei pensar em alguma coisa que
tivesse de fazer, mas as ovelhas e os outros
animais estavam ali mesmo nossa frente,
pastando pacificamente. Era intil esperar que os
outros voltassem logo. No o fariam com uma
taverna e novos rostos com quem conversar depois
dos dias que passramos na estrada.
Por fim, dei a desculpa de que estava com fome
e fui juntar pedras e depois bosta seca e gravetos
para uma fogueira. Tassina insistiu em cozinhar.
Eu no estava realmente com fome, mas ela comeu
com um apetite saudvel, e me alimentou bem com
as provises de viagem dos titereiros. Fez tambm
um bule de ch, e depois de comermos nos
sentamos junto fogueira bebericando o ch em
canecas pesadas de porcelana vermelha.
Sem que eu soubesse como, o silncio incmodo
tornara-se companheiro. Fora agradvel me sentar
e ver outra pessoa preparar a refeio. Ela a
princpio tagarelara, perguntando se eu gostava
daquele tipo de tempero e se fazia o meu ch forte,
mas sem realmente ouvir as minhas respostas.
Pensando encontrar algum tipo de aceitao no
meu silncio, pusera-se a falar mais intimamente
de si mesma. Com uma espcie de desespero,
falou de dias passados aprendendo e praticando
uma coisa que no tinha qualquer desejo de
aprender ou praticar. Falou com um assombro
ressentido da dedicao dos outros titereiros e do
seu entusiasmo, que ela no podia partilhar. Sua
voz desapareceu e ela olhou para mim com olhos
cheios de infelicidade. No precisava me explicar
a solido que sentia. Mudou a conversa para
coisas mais leves, as irritaes menores que
sentia, os alimentos que comiam e que lhe
desagradavam, o modo como um dos outros
titereiros cheirava sempre a suor velho, ou uma
mulher que a fazia lembrar de dizer as suas falas
beliscando-a.
Mesmo as queixas eram agradveis de uma
maneira estranha, enchendo-me a mente com as
suas trivialidades, para no me concentrar nos
meus problemas maiores. Estar com ela era de
certa forma como estar com o lobo. Tassina estava
concentrada no agora, naquela refeio e naquela
noite, dedicando poucos pensamentos a qualquer
outra coisa. Depois de refletir naquilo, os meus
pensamentos desviaram-se para Olhos-de-Noite.
Sondei suavemente na sua direo. Conseguia
senti-lo, em algum lugar, vivo, mas eu conseguia
distinguir pouco mais do que isso. Talvez uma
distncia grande demais nos separasse; ele talvez
estivesse concentrado demais na sua nova vida.
Qualquer que fosse o motivo, a sua mente no
estava to aberta a mim como estivera antes. Era
possvel que estivesse simplesmente ficando em
maior sintonia com os costumes da sua alcateia.
Tentei me sentir contente por ele ter achado tal
vida para si mesmo, com muitos companheiros e
talvez uma parceira.
No que est pensando? perguntou Tassina.
A sua voz era to suave que eu respondi sem
pensar, ainda fitando a fogueira. Que, s vezes,
saber que em outro lugar os nossos amigos e a
nossa famlia esto bem s faz nos sentirmos mais
solitrios.
Ela encolheu os ombros.
Eu tento no pensar neles. Suponho que o
meu fazendeiro arranjou outra garota, algum que
tivesse uns pais dispostos a esperar por um dote.
Quanto minha me, suspeito que as suas
perspectivas de futuro ficaram melhores sem mim.
No era to velha que no pudesse agarrar outro
homem. Espreguiou-se, um gesto
estranhamente felino, e ento virou a cabea para
olhar para o meu rosto e perguntar: No faz
sentido pensar no que est longe e no que no se
tem. Isso s lhe deixar infeliz. Contente-se com o
que pode ter agora.
Os nossos olhos cruzaram-se de sbito. No
podia haver dvida sobre o que ela queria dizer.
Por um instante, senti-me chocado. Ento ela
debruou-se sobre o pequeno espao que nos
separava. Envolveu-me o rosto com as mos. O
seu toque era suave. Tirou o leno do meu cabelo,
e ento usou ambas as mos para empurrar o meu
cabelo para trs. Olhou-me nos olhos enquanto a
ponta da sua lngua umedecia os meus lbios.
Deslizou as mos pelo meu rosto e pescoo at os
ombros. Eu estava to enfeitiado como um rato
olhando uma cobra. Ela debruou-se para frente e
me beijou, abrindo a boca contra a minha enquanto
o fazia. Ela cheirava a um doce incenso fumacento.
Desejei-a de uma forma repentina que me deixou
tonto. No como Tassina, mas como mulher,
suavidade e proximidade. Era um desejo que me
atravessava, e no entanto no era nada disso. Era
como a fome por Talento que corri um homem,
exigindo proximidade e uma completa comunho
com o mundo. Eu estava indescritivelmente farto
de estar s. Apertei-a contra mim to rapidamente
que a ouvi arquejar de surpresa. Beijei-a como se
pudesse devor-la e de algum modo ficar menos s
por faz-lo. Subitamente estvamos deitados e ela
fazia pequenos rudos de satisfao que se
transformaram de repente em empurres no meu
peito.
Pare um momento sibilou. Espere. H
uma pedra debaixo de mim. E no posso estragar a
roupa. D-me o seu manto para estender
Observei-a com cobia enquanto ela estendia o
meu manto no cho junto da fogueira. Deitou-se
nele e indicou com palmadinhas um lugar ao seu
lado:
Ento? No vem? perguntou-me com um
ar provocador. Ento acrescentou, de forma mais
lasciva: Deixe-me mostrar tudo o que posso
fazer por voc. Passou as mos pela frente da
sua camisa, convidando-me a pensar nas minhas
mos fazendo o mesmo.
Se ela no tivesse dito nada, se no tivssemos
feito uma pausa, se ela tivesse simplesmente me
olhado do manto Mas a pergunta e a sua atitude
de repente estavam completamente erradas. Toda a
iluso de suavidade e proximidade desapareceu,
substituda pelo mesmo tipo de desafio que outro
combatente poderia me fazer num ptio de treinos
com bastes. No sou melhor do que qualquer
outro homem. No queria pensar, no queria
considerar nada. Ansiava por ser capaz de
simplesmente me atirar para cima dela e me saciar
com ela, mas em vez disso me ouvi perguntando:
E se eu a engravidar?
Oh e Tassina soltou uma ligeira
gargalhada, como se nunca tivesse pensado em tal
coisa. Nesse caso, voc pode casar comigo e
comprar os meus anos de aprendiz do Mestre Vale.
Ou no acrescentou ao ver o meu rosto mudar.
No to difcil assim de se ver livre de um
beb como um homem pode pensar. Algumas
moedas de prata pelas ervas certas Mas no
temos de pensar nisso agora. Por que nos
preocuparmos com uma coisa que pode nunca
acontecer?
De fato, por qu? Olhei-a, desejando-a com toda
a luxria dos meses que passara sozinho e sem ser
tocado. Mas tambm sabia que ela no me oferecia
mais alvio para aquela fome mais profunda por
companheirismo e compreenso do que aquela que
qualquer homem pode encontrar na sua prpria
mo. Sacudi lentamente a cabea, mais para mim
do que para ela. Ela me deu um sorriso travesso e
estendeu uma mo na minha direo.
No. Eu disse a palavra em voz baixa. Ela
ergueu os olhos para mim, com um espanto to
coberto de incredulidade que eu quase ri. Isso
no uma boa ideia disse, e ao ouvir as
palavras em voz alta, soube que eram verdadeiras.
No havia nada de nobre naquilo, nenhum
pensamento de fidelidade imortal a Moli ou
vergonha por j ter deixado uma mulher com o
fardo de ter um filho sozinha. Eu conhecia esses
sentimentos, mas no foram eles que me ocorreram
naquele momento. O que senti foi um vazio em
mim que s se tornaria pior se me deitasse com
uma estranha. No voc disse, quando vi
as bochechas dela corarem de repente e o sorriso
desaparecer do seu rosto. Sou eu. A culpa
minha. Tentei tornar a voz reconfortante. Foi
perda de tempo.
Ela levantou-se abruptamente.
Eu sei disso, estpido disse de maneira
incisiva. Eu s queria ser gentil com voc, nada
mais. Afastou-se da fogueira a passos largos e
zangados, fundindo-se rapidamente com as
sombras. Ouvi o estrondo da porta do carro.
Abaixei-me lentamente para apanhar o manto do
cho e sacudir a poeira dele. Ento, aps a noite
se tornar subitamente mais fria com um vento que
comeava a soprar, coloquei-o em volta dos
ombros e me sentei de novo para olhar para o
fogo.
CAPTULO 12

Suspeitas

O uso do Talento viciante. Todos os estudantes


desta magia so avisados disso desde o
princpio. H um fascnio pelo seu poder que
atrai o utilizador, tentando-o a us-lo mais e com
maior frequncia. medida que a percia e o
poder do utilizador aumentam, o mesmo acontece
seduo do Talento. O fascnio do Talento
eclipsa outros interesses e relaes. E, no
entanto, a atrao difcil de descrever a
qualquer pessoa que no tenha experimentado o
Talento propriamente dito. O levantar voo de um
bando de faises numa manh fresca de outono,
ou apanhar com perfeio o vento nas velas de
um barco, ou a primeira garfada de ensopado
quente e saboroso aps um dia frio e faminto;
todas essas so sensaes que pairam durante
apenas um momento. O Talento sustm essa
sensao, enquanto as foras do utilizador
durarem.

Era muito tarde quando os outros voltaram ao


acampamento. O meu patro, Damo, estava
bbado e apoiava-se com camaradagem em Crice,
que estava bbado, irritvel e fedia a fumo.
Arrastaram os cobertores para fora da carroa e
enrolaram-se neles. Ningum se ofereceu para me
substituir na viglia. Suspirei, duvidando de que
conseguiria dormir alguma coisa at a noite
seguinte.
A alvorada chegou to cedo como sempre chega,
e a chefe da caravana foi implacvel em insistir
que nos levantssemos e preparssemos para a
estrada. Suponho que era sensato. Se permitisse
que dormissem tanto quanto quisessem, aqueles
que se levantassem mais cedo regressariam
povoao, e ela teria de passar o dia reunindo-os.
Mas isso tornou a manh deprimente. S os
condutores e a menestrel Esporana pareciam ter
sabido quando parar de beber. Cozinhamos e
dividimos o mingau de aveia enquanto os outros
comparavam dores de cabea e queixas.
Notei que beber em conjunto, especialmente em
excesso, forma uma ligao entre as pessoas.
Assim, quando o patro decidiu que a cabea lhe
doa demais para conduzir a carroa, entregou essa
tarefa a Crice. Damo dormiu na carroa enquanto
esta avanava balanando com Crice cochilando
com as rdeas na mo e o pnei seguindo os outros
carros. Haviam amarrado o carneiro lder do
rebanho traseira da carroa, e o rebanho o
seguiu. De certa forma. Sobre mim recaiu a tarefa
de trotar atrs, entre a poeira, mantendo o rebanho
to bem agrupado quanto possvel. O cu estava
azul, mas o dia mantinha-se glido, com ventos que
agitavam e levavam consigo a poeira que ns
levantvamos. A noite fora insone para mim, e
minha cabea logo comeou a latejar de dor.
Guida ordenou uma breve pausa ao meio-dia. A
maioria das pessoas da caravana j havia se
recuperado o suficiente para querer comer. Bebi
dos barris de gua que Guida trazia no seu carro,
ento molhei o leno e lavei um pouco da poeira
do meu rosto. Eu estava tentando lavar a areia dos
olhos quando Esporana apareceu ao meu lado.
Afastei-me, achando que ela queria gua. Mas em
vez disso, a menestrel falou em voz baixa.
Eu manteria o leno na cabea, se fosse voc.
Torci-o e voltei a amarr-lo em volta da cabea.
E mantenho. Mas no ajuda em nada a evitar
que a poeira entre nos meus olhos.
Esporana me olhou com franqueza.
No com os olhos que voc devia se
preocupar. com essa madeixa branca no cabelo.
Devia enegrec-la esta noite com gordura e cinza,
se conseguir arranjar um momento de privacidade.
Isso podia torn-la menos bvia.
Olhei-a interrogativamente, tentando manter a
expresso branda.
Ela deu um sorriso malicioso.
Os guardas do Rei Majestoso passaram por
aquela vila da nascente s alguns dias antes de
chegarmos. Eles disseram s pessoas de l que o
rei acreditava que o Homem Pustulento iria
atravessar Vara. E que voc ia com ele. Fez
uma pausa, esperando que eu dissesse alguma
coisa. Quando me limitei a olh-la, o seu sorriso
alargou-se. Ou talvez seja outro sujeito
qualquer com um nariz quebrado, uma cicatriz no
rosto, uma madeixa branca no cabelo e
Indicou o meu brao com um gesto um corte
de espada recente no brao.
Consegui encontrar a lngua e um pouco da
minha inteligncia. Arregacei a manga, oferecendo
o brao sua inspeo.
Um corte de espada? Isto s um arranho
que arranjei na cabea de um prego numa porta de
taverna. Quando sa, um pouco contra vontade.
Olhe voc mesma. Seja como for, est quase
curado.
Ela inclinou-se e fez o favor de olhar para o meu
brao.
Oh. Entendo. Bem. Enganei-me. Mesmo
assim e voltou a me olhar nos olhos , eu
manteria o leno na cabea. Para evitar que mais
algum cometa o mesmo erro. Fez uma pausa,
ento inclinou a cabea para mim. Eu sou uma
menestrel, veja bem. Prefiro testemunhar a histria
a cri-la. Ou a mud-la. Mas duvido de que todos
os outros nesta caravana pensem assim.
Fiquei mudo enquanto a via afastar-se
assobiando. Depois bebi de novo, com cuidado
para no ingerir demais, e voltei para as minhas
ovelhas.
Crice estava de p e passou o resto da tarde
ajudando, de certa forma. Ainda assim, o dia me
pareceu o mais longo e cansativo que tivera h
algum tempo. No houve nada de complicado na
minha tarefa para deix-lo assim. O problema,
decidi, estava em ter recomeado a pensar.
Deixara que o meu desespero por Moli e pela
nossa filha me abatesse. Baixara a guarda, no
tivera medo suficiente por mim mesmo. Agora me
ocorria que se a Guarda de Majestoso conseguisse
me encontrar, iria me matar. Ento eu jamais veria
Moli ou a nossa filha. De certo modo, isso parecia
pior do que a ameaa minha vida.
Durante a refeio daquela noite, sentei-me mais
longe do fogo do que de costume, mesmo que isso
significasse me enrolar no manto por causa do frio.
O meu silncio foi visto como normal. Os outros
conversaram, muito mais do que de costume, sobre
a noite anterior passada na povoao. Conclu que
a cerveja fora boa, o vinho fraco, enquanto o
menestrel residente mostrara pouca boa vontade
para com Esporana por atuar para a sua audincia
cativa. Os membros da nossa caravana pareceram
considerar uma vitria pessoal o fato de as
canes de Esporana terem sido bem recebidas
pelos aldees.
Cantou bem, apesar de s conhecer essas
baladas de Cervo admitiu at mesmo Crice,
magnnimo. Esporana respondeu com um aceno de
cabea a esse elogio dbio.
Tal como fazia todas as noites, Esporana
desenrolou a harpa depois da refeio. O Mestre
Vale estava concedendo sua trupe uma rara noite
de folga dos seus constantes ensaios, e conclu
com isso que ele ficara satisfeito com a atuao de
todos, menos de Tassina. Esta sequer me olhou de
relance naquela noite; empoleirou-se junto a um
dos carroceiros, sorrindo a cada uma de suas
palavras. Reparei que o ferimento pouco mais era
do que um arranho no rosto com algum hematoma
em volta. Iria sarar bem.
Crice afastou-se para ir vigiar o nosso rebanho.
Eu me estendi no manto imediatamente fora do
alcance da luz da fogueira, pensando em
adormecer de imediato. Esperava que os outros
tambm se deitassem em breve. O barulho das suas
conversas embalava, assim como o dedilhar
indolente dos dedos de Esporana nas cordas da
harpa. Gradualmente, o dedilhar ficou mais
ritmado, e a voz dela ergueu-se em canto.
Eu flutuava beira do sono quando as palavras
Torre da Ilha da Armao me fizeram acordar
com um sobressalto. Meus olhos se abriram de
repente quando percebi que ela estava cantando
sobre a batalha que ocorrera l no vero anterior,
o primeiro combate verdadeiro do Rurisk com os
Salteadores dos Navios Vermelhos. Eu me
recordava ao mesmo tempo de coisas demais e de
muito pouco sobre essa batalha. Como Veracidade
observara mais de uma vez, apesar de toda a
instruo sobre armas que Hode me dera, eu tinha
uma tendncia a reverter a um estado de briga em
qualquer tipo de luta, de modo que levei um
machado para essa batalha e o usei com uma
selvajaria que eu nunca esperara de mim. Mais
tarde disseram que eu havia matado o chefe do
bando de salteadores que havamos encurralado.
Nunca soube se isso era verdade ou no.
Na cano de Esporana, certamente que era. O
meu corao quase parou quando a ouvi cantar
sobre O filho de Cavalaria, com os olhos em
flama, que o leva no sangue, mas no em como se
chama. A cano prosseguiu com uma dzia de
embelezamentos improvveis sobre golpes que eu
dera e guerreiros que abatera. Era estranhamente
humilhante ouvir tais feitos serem cantados como
nobres e agora quase lendrios. Eu sabia que havia
muitos guerreiros que sonhavam em ouvir canes
cantadas sobre as suas proezas. Achei a
experincia desconfortvel. No me lembrava do
sol arrancando chamas da cabea do meu machado
ou de combater to corajosamente como o cervo
do meu braso. Lembrava-me, isso sim, do cheiro
persistente do sangue e de pisar nas entranhas de
um homem, um homem que ainda se debatia e
gemia. Nem toda a cerveja de Cervo teria sido
suficiente naquela noite para me trazer algum tipo
de paz.
Quando a cano finalmente chegou ao fim, um
dos carroceiros bufou.
Ento foi essa que voc no se atreveu a
cantar ontem noite na taverna, hein, Esporana?
Esporana deu uma gargalhada de desaprovao.
Por alguma razo, duvidei de que gostassem
dela. Canes sobre o Bastardo de Cavalaria no
seriam populares o suficiente para fazer com que
eu ganhasse um tosto por l.
uma cano estranha observou Vale.
Temos aqui o rei oferecendo ouro pela cabea
dele e a guarda dizendo a toda a gente, cuidado, o
Bastardo tem a Manha e a usou para enganar a
morte. Mas a sua cano faz com que ele parea
algum tipo de heri.
Bem, uma cano de Cervo, e ele era bem
visto em Cervo, pelo menos durante algum tempo
explicou Esporana.
Mas j no , aposto. Exceto que qualquer
homem veria com bons olhos uma centena de
moedas de ouro, se pudesse entreg-lo Guarda
Real observou um dos carroceiros.
Provavelmente concordou Esporana com
facilidade. Se bem que ainda h em Cervo
quem lhes diga que nem toda a sua histria foi
contada e que o Bastardo no to negro como
tem sido pintado nos ltimos tempos.
Continuo no a entendendo. Eu pensava que
ele tinha sido executado por usar a Manha para
matar o Rei Sagaz protestou Guida.
H quem diga que sim respondeu
Esporana. Mas a verdade que ele morreu na
cela antes de poder ser executado e foi enterrado
em vez de queimado. E segundo o que se conta
e aqui a voz de Esporana baixou at se transformar
quase num sussurro , quando chegou a
primavera nem uma folha sequer crescia na sua
sepultura. E uma velha sbia, ao ouvir isto, soube
que isso queria dizer que a magia da Manha ainda
dormia nos seus ossos e podia ser recuperada por
qualquer um que tivesse a coragem de lhe arrancar
um dente da boca. De modo que l foi ela, luz da
lua cheia, e levou consigo um criado com uma p.
Ela o colocou para cavar a sepultura. Mas ele no
tinha revirado mais do que uma pazada de terra
quando descobriu estilhaos de madeira do caixo
do Bastardo.
Esporana fez uma pausa teatral. No se ouvia um
som alm do crepitar do fogo.
O caixo estava vazio, claro. E aqueles que o
viram disseram que tinha sido estilhaado por
dentro, e no por fora. Um homem at me disse
que, presos borda lascada da tampa do caixo,
havia pelos cinzentos e rijos de lobo.
O silncio sustentou-se um momento mais.
Depois:
Est falando srio? perguntou Guida a
Esporana.
Os dedos dela percorreram levemente as cordas
da harpa. Foi o que ouvi contar em Cervo. Mas
tambm ouvi dizer que a Dama Pacincia, aquela
que o enterrou, disse que aquilo tudo era bobagem,
que o corpo dele estava frio e rgido quando o
lavou e enrolou numa mortalha. E a respeito do
Homem Pustulento, que o Rei Majestoso tanto
teme, ela declarou que no passa de um velho
conselheiro do Rei Sagaz, um velho recluso
qualquer de cara marcada por cicatrizes, que saiu
da sua eremitagem para manter viva a crena de
que Veracidade ainda est vivo e dar nimo
queles que tm de continuar a combater os
Navios Vermelhos. isso. Suponho que vocs
podem escolher acreditar na histria que quiserem.
Melodia, uma das titereiras, simulou um arrepio.
Brrr. Ento. Cante agora qualquer coisa
alegre para ns, para dormirmos com ela na
cabea. No tenho nenhum desejo de ouvir mais
das suas histrias de fantasmas antes de ir em
busca dos cobertores esta noite.
E assim Esporana comeou de bom grado uma
balada de amor, uma antiga balada com um refro
otimista, que Guida e Melodia cantaram com ela.
Eu permaneci deitado na escurido, refletindo
sobre tudo o que ouvira. Estava
desconfortavelmente consciente de que Esporana
puxara aquele assunto com a inteno de que eu o
ouvisse. Perguntei-me se ela achava que estava me
fazendo um favor, ou se apenas quis ver se algum
dos outros suspeitava de mim. Uma centena de
moedas de ouro pela minha cabea. Isso era
suficiente para deixar um duque ganancioso, o que
dir uma menestrel errante. Apesar do meu
cansao, passou-se muito tempo at que eu
adormecesse naquela noite.
A viagem do dia seguinte foi quase reconfortante
na sua monotonia. Caminhei atrs das minhas
ovelhas e tentei no pensar. No foi to fcil faz-
lo como fora antes. Parecia que cada vez que
esvaziava a mente de preocupaes eu ouvia o
Venha at mim de Veracidade ecoando dentro da
minha cabea. Quando acampamos naquela noite,
foi nas margens de um enorme escoadouro com
gua no centro. A conversa em volta da fogueira
foi irregular. Acho que estvamos todos mais do
que um pouco fartos do nosso ritmo lento e
ansivamos por ver as margens do Lago Azul. Eu
desejava apenas ir dormir, mas tinha o primeiro
turno de vigiar o rebanho.
Subi ligeiramente a encosta da colina at onde
podia me sentar para observar os animais lanosos
de que estava encarregado. A grande cavidade do
escoadouro envolvia toda a nossa caravana, com a
pequena fogueira perto da gua semelhante a uma
estrela no fundo de um poo. O vento que soprava
passava por ns, deixando-nos abrigados numa
grande quietude. Aquilo era quase pacfico.
Tassina provavelmente pensou que estava sendo
furtiva. Observei-a aproximar-se em silncio com
o manto bem puxado por sobre o cabelo e em volta
do rosto. Deu uma volta larga como se pretendesse
passar por mim. No a segui com os olhos, mas a
escutei subindo acima de mim na encosta da colina
e depois aproximando-se por trs. Detectei o seu
cheiro mesmo no ar parado e senti uma expectativa
involuntria. Perguntei-me se teria a fora de
vontade para recus-la uma segunda vez. Podia ser
um erro, mas o meu corpo estava completamente a
favor de comet-lo. Quando achei que ela estava a
cerca de uma dzia de passos de distncia, virei-
me para olh-la. Ela assustou-se e recuou diante
do meu olhar.
Tassina cumprimentei-a com suavidade, e
me virei para voltar a olhar para as ovelhas.
Passado um momento, ela desceu a encosta e parou
a alguns passos de mim. Virei-me ligeiramente e
olhei-a sem dizer nada. Ela afastou o capuz do
rosto e me confrontou, com desafio nos olhos e na
atitude.
Voc ele, no ? perguntou sem flego.
Havia uma ponta de medo muito leve na sua voz.
No era o que eu esperava que ela dissesse. No
tive de fingir surpresa.
Sou ele? Sou Tom, o pastor, se esse o ele
de quem voc fala.
No, voc ele, o Bastardo da Manha que a
Guarda Real est procurando. Puxado, o
carroceiro, contou-me o que estavam dizendo na
vila, depois de Esporana contar aquela histria
ontem noite.
Puxado lhe disse que eu era o Bastardo da
Manha? Perguntei com cautela, como que
confundido pelas palavras precipitadas dela. Um
terrvel medo frio aumentava dentro de mim.
No. Um trao de ira se misturou com o
seu medo. Puxado me contou o que a Guarda
Real disse dele. Um nariz partido e uma cicatriz no
rosto e uma madeixa branca no cabelo. E eu vi o
seu cabelo naquela noite. Voc tem uma madeixa
branca.
Qualquer homem que tenha sido acertado na
cabea pode ter uma madeixa branca no cabelo.
uma velha cicatriz. Inclinei a cabea e olhei-a
criticamente. Eu diria que o seu rosto est
sarando bem.
Voc ele, no ? Parecia ainda mais
zangada por eu ter tentado mudar de assunto.
Claro que no. Veja. Ele tem um corte de
espada no brao, no tem? Veja isto. Desnudei
a brao direito para que ela o inspecionasse. O
corte de faca que eu fizera a mim mesmo corria
pela parte de trs do meu brao esquerdo. Eu
estava apostando que ela soubesse que um
ferimento sofrido enquanto me defendia deveria
estar no brao da espada.
Ela quase nem olhou para o meu brao.
Voc tem algum dinheiro? perguntou-me
de sbito.
Se eu tivesse algum dinheiro, por que eu teria
ficado no acampamento quando os outros foram
aldeia? Alm do mais, por que se importa com
isso?
No me importo. Mas voc devia. Podia us-
lo para comprar o meu silncio. Seno eu poderia
ir contar as minhas suspeitas a Guida. Ou aos
carroceiros. Ergueu o queixo para mim, em
desafio.
Ento eles poderiam facilmente olhar para o
meu brao, assim como voc eu disse num tom
fatigado. Afastei os olhos dela e olhei para as
ovelhas. Est sendo uma garotinha tola,
Tassina, deixando que as histrias de fantasmas de
Esporana a deixem agitada dessa maneira. Volte
para a cama. Tentei parecer enojado com ela.
Voc tem um arranho no outro brao. Eu vi.
H quem possa consider-lo um corte de espada.
Provavelmente os mesmos que a
considerariam inteligente eu disse com ironia.
No zombe de mim advertiu-me ela numa
voz que ficara montona de to desagradvel.
No vou suportar chacotas.
Ento no diga idiotices. O que h com voc?
Isso algum tipo de vingana? Est zangada
porque no quis dormir com voc? Eu lhe disse
que isso no teve nada a ver com voc. bonita, e
no duvido de que haveria prazer em toc-la. Mas
no para mim.
Ela cuspiu de repente no cho ao meu lado.
Como se eu fosse deixar voc fazer isso. Eu
estava me divertindo, pastor. Nada mais do que
isso. Soltou um pequeno som gutural.
Homens. Como pode olhar para si mesmo e achar
que algum iria quer-lo por causa do que voc ?
Voc fede a ovelhas, magricela e tem um rosto
que parece mostrar que voc perdeu todas as lutas
em que esteve. Girou nos calcanhares, e ento
pareceu lembrar-se de repente do motivo por que
tinha vindo. No vou contar a nenhum deles.
Por enquanto. Mas quando chegarmos ao Lago
Azul, o seu chefe tem de lhe pagar qualquer coisa.
Certifique-se de me trazer o dinheiro, seno
coloco a vila inteira sua procura.
Suspirei.
Tenho certeza de que voc far o que quer
que a divirta. Crie toda a confuso que quiser.
Quando no der em nada e as pessoas rirem disso,
provavelmente dar a Vale mais um motivo para
lhe bater.
Ela me virou as costas e desceu a colina a
passos largos. Perdeu o equilbrio na incerteza do
luar e quase levou um tombo. Mas recuperou-se e
me olhou furiosa, como que me desafiasse a rir. Eu
no sentia tal inclinao. Apesar do desafio que
lhe fizera, tinha o estmago apertado logo abaixo
da garganta. Cem moedas de ouro. Bastava
espalhar um rumor, e tanto dinheiro era bastante
para dar incio a um tumulto. Depois de eu estar
morto, provavelmente decidiriam que tinham o
homem errado.
Perguntei a mim mesmo como me sairia
atravessando sozinho o resto das plancies de
Vara. Podia partir logo depois de Crice me
substituir. Podia ir at a carroa, recolher
silenciosamente as minhas coisas e escapulir na
noite. Quanto poderia faltar at o Lago Azul?
Estava ponderando aquilo enquanto via mais uma
silhueta esgueirando-se para fora do acampamento
e subindo a encosta na minha direo.
Esporana aproximou-se em silncio, mas no de
uma forma furtiva. Ergueu uma mo em saudao
antes de se sentar com companheirismo ao meu
lado.
Espero que voc no tenha dado nenhum
dinheiro a ela disse-me afavelmente.
Humf eu disse, deixando que ela
entendesse como quisesse.
que voc pelo menos o terceiro homem
que supostamente a engravidou nesta viagem. O
seu patro teve a honra de ser o primeiro acusado.
O filho de Guida foi o segundo. Pelo menos acho
que foi. No sei quantos pais ela escolheu para o
seu possvel filho.
Eu no estive com ela, ento dificilmente ela
pode me acusar disso eu disse num tom
defensivo.
Oh? Ento voc provavelmente o nico
homem na caravana que no esteve com ela.
Aquilo me abalou um pouco. Depois pensei
sobre o assunto e perguntei a mim mesmo se
alguma vez chegaria a algum lugar onde parasse de
descobrir como podia ser estpido.
Ento acha que ela est grvida e anda
procura de um homem que a tire do aprendizado?
Esporana bufou.
Duvido de que esteja grvida. No estava
pedindo que casassem com ela, s dinheiro para
comprar ervas que a livrassem do beb. Acho que
o filho de Guida pode ter chegado a lhe dar
alguma. No. No me parece que ela queira um
marido, s algum dinheiro. Ento ela anda
procurando maneiras de se virar durante algum
tempo e de um homem que possa pagar por ela
depois. Mudou de posio, atirou para o lado
uma pedra que a machucava. Bem, se voc no
a engravidou, o que foi que fez a ela?
J lhe disse. Nada.
Ah. Ento isso explica por que que ela fala
to mal de voc. Mas s no ltimo dia, de modo
que suponho que voc fez nada para ela na noite
em que o resto de ns foi povoao.
Esporana comecei eu num aviso, e ela
ergueu uma mo apaziguadora.
No direi uma palavra sobre o que quer que
voc no tenha feito a ela. Nem mais uma palavra.
Seja como for, no foi por isso que vim at aqui
em cima falar com voc.
Fez uma pausa, e quando me recusei a fazer a
pergunta, ela fez.
O que planeja fazer depois de chegarmos ao
Lago Azul?
Olhei para ela.
Receber o pagamento. Beber uma cerveja e
comer uma refeio decente, tomar um banho
quente e arranjar uma cama limpa pelo menos por
uma noite. Por qu? O que voc planeja?
Pensei que poderia ir para as Montanhas.
Ela me olhou de soslaio.
Vai procurar l o seu acontecimento
merecedor de uma cano? Tentei manter a
pergunta casual.
mais provvel encontrar canes me
agarrando a um homem do que a um lugar
sugeriu. Achei que talvez voc tambm fosse
para as Montanhas. Podamos viajar juntos.
Continua com aquela ideia idiota de que eu
sou o Bastardo acusei-a sem rodeios.
Ela sorriu.
O Bastardo. O Manhoso. Sim.
Est enganada eu disse, taxativo. E
mesmo que no estivesse, por que segui-lo at as
Montanhas? Eu arriscaria um lucro maior e o
venderia Guarda Real. Com cem peas de ouro,
quem precisaria fazer canes?
Esporana soltou um pequeno som de
repugnncia.
Voc tem mais experincia da Guarda Real
do que eu, certamente. Mas at eu tenho o
suficiente para saber que um menestrel que
tentasse obter essa recompensa iria provavelmente
ser descoberto boiando no rio alguns dias mais
tarde. Enquanto alguns guardas se tornariam de
sbito muito ricos. No. J lhe disse. No procuro
ouro, Bastardo. Procuro uma cano.
No me chame disso avisei-a com
rispidez. Ela encolheu os ombros e desviou o
rosto. Passado um momento, torceu-se como se eu
a tivesse cutucado e ento virou-se para mim com
um sorriso que se alargava no seu rosto.
Ah. Acho que j descobri. Era assim que
Tassina o estava extorquindo, no era? Pedindo
dinheiro para segurar a lngua.
No respondi.
Voc foi esperto por recus-la. Se lhe der
algum, ela achar que tem razo. Se acreditasse
mesmo que voc era o Bastardo, guardaria o
segredo para vend-lo Guarda Real. Porque no
teve nenhuma experincia com eles, e ia acreditar
que conseguiria mesmo ficar com o ouro.
Esporana levantou-se, espreguiando-se
calmamente. Bem. Vou voltar para a cama
enquanto posso. Mas mantenha a minha oferta em
mente. Duvido de que arranje outra melhor.
Rodopiou teatralmente o manto em volta de si
mesma, e ento fez uma mesura a mim como se eu
fosse o rei. Fiquei a observ-la afastar-se de mim
colina abaixo, com os passos seguros como os de
uma cabra, mesmo ao luar. Por um breve momento,
ela me lembrou Moli.
Considerei a ideia de escapulir do acampamento
e continuar sozinho at o Lago Azul. Decidi que,
se o fizesse, isso s faria com que Tassina e
Esporana tivessem certeza de que tinham
adivinhado corretamente. Esporana poderia tentar
me encontrar. Tassina tentaria arranjar uma
maneira de receber a recompensa. Eu no desejava
nenhuma dessas coisas. Era melhor continuar como
at ento, como Tom, o pastor.
Levantei os olhos para o cu noturno. Arqueava-
se sobre mim, limpo e frio. A calada da noite
trazia consigo um frio desagradvel nos ltimos
tempos. Quando eu chegasse s Montanhas, o
inverno seria mais do que uma simples ameaa. Se
ao menos no tivesse desperdiado aqueles meses
iniciais do vero sendo um lobo, eu j estaria nas
Montanhas a essa altura. Mas esse era outro
pensamento intil. As estrelas estavam prximas e
brilhantes naquela noite. Ter o cu to perto fazia
com que o mundo parecesse um lugar menor. Senti
de sbito que se me abrisse e procurasse chegar a
Veracidade, eu o sentiria ali, mesmo ao alcance
das pontas dos dedos. A solido ergueu-se to
repentinamente dentro de mim que senti que
rasgaria um caminho para fora. Moli e Bronco
estavam distncia de um fechar de olhos. Podia
ir at eles, podia trocar a fome de no saber pela
dor de no ser capaz de tocar. As muralhas de
Talento, to bem apertadas durante cada momento
de viglia desde que eu deixara Vaudefeira, agora
pareciam sufocantes em vez de defensivas.
Abaixei a cabea para os joelhos erguidos e me
abracei contra o vazio glido da noite.
Depois de algum tempo, a fome passou. Ergui a
cabea e olhei por cima das pacficas ovelhas e
das carroas, do acampamento imvel. Um olhar
para a lua me informou que o meu turno j devia
ter terminado h muito tempo. Crice nunca fora
bom em acordar para tomar o meu lugar. Ento
levantei, espreguicei e desci a colina para ir
arranc-lo dos cobertores quentes.
Os dois dias seguintes passaram sem que nada
de especial acontecesse, salvo o tempo que se
tornou mais frio e mais ventoso. Na noite do
terceiro dia, logo aps nos instalarmos para passar
a noite e eu ter iniciado o meu primeiro turno
noturno, vi uma nuvem de poeira no horizonte. A
princpio dei pouca ateno a ela. Estvamos numa
das mais movimentadas rotas de caravanas, e
tnhamos parado junto a um poo. Uma carroa
carregada com uma famlia de funileiros j se
encontrava ali. Supus que quem quer que estivesse
levantando aquela poeira tambm vinha em busca
de um poo junto ao qual descansar durante a
noite. Assim, fiquei vendo a poeira aproximar-se
medida que a noite escurecia. Lentamente, a poeira
separou-se em silhuetas a cavalo, avanando numa
formao ordenada. Quanto mais perto chegavam,
mais certeza eu tinha. Guardas do Rei. A luz
estava fraca demais para ver o dourado e marrom
das cores de Majestoso, mas eu sabia que eles
estavam l.
Foi com grande dificuldade que me forcei a no
dar um salto e fugir. Uma lgica fria me disse que,
se andassem especificamente minha procura,
levariam apenas alguns minutos para me apanhar.
Aquela vasta plancie no me oferecia
esconderijos prximos. E se no estivessem
minha procura, fugindo eu s conseguiria atrair a
sua ateno e deixar Tassina e Esporana certas das
suas suspeitas, de modo que cerrei os dentes e
fiquei onde estava, sentado com a vara apoiada
nos joelhos, vigiando as minhas ovelhas. Os
cavaleiros passaram por mim e pelas ovelhas e
dirigiram-se diretamente gua. Contei-os
enquanto passavam. Eram seis. Reconheci um dos
cavalos, um potro amarelo-acinzentado que
Bronco dissera que um dia seria um bom corcel.
V-lo me fez lembrar com muita intensidade do
modo como Majestoso saqueara todas as coisas de
valor de Torre do Cervo antes de abandonar o
castelo aos seus prprios meios. Uma minscula
centelha de fria acendeu-se em mim, uma centelha
que, de algum modo, tornou mais fcil ficar
sentado a dar tempo ao tempo.
Passados alguns minutos, decidi que eles
estavam simplesmente de passagem, assim como
ns, e haviam parado apenas para beber e
descansar durante a noite. Ento Crice veio
arrastando os ps at mim.
Esto chamando voc no acampamento
disse-me ele com uma irritao mal escondida.
Crice gostava de dormir logo depois a comer.
Perguntei-lhe o que mudara os nossos planos
enquanto ele se instalava no meu lugar.
Guardas do Rei resmungou, zangado.
Dando ordens a todo mundo, exigindo ver todos os
membros da caravana. Tambm revistaram todos
os carros.
O que eles esto procurando? perguntei-
lhe com indiferena.
Raios me partam se sei. E eu no estava com
vontade de levar um punho na cara por perguntar.
Mas fique vontade.
Levei o basto comigo de volta ao
acampamento. Eu ainda tinha a espada junto ao
flanco. Pensei em escond-la, mas decidi no faz-
lo. Qualquer um podia usar uma espada, e se
precisasse desembainh-la, eu no queria lutar
com as calas.
O acampamento era como um ninho de vespas
agitado. Guida e a sua gente tinham expresses que
eram simultaneamente de apreenso e de ira. Os
guardas estavam naquele momento incomodando o
funileiro. Uma guarda derrubou com um chute uma
pilha de vasilhas de lato, fazendo um belo
estardalhao, e depois gritou qualquer coisa sobre
revistar o que muito bem entendesse e do modo
que lhe agradasse. O funileiro estava de p ao lado
da carroa, de braos cruzados sobre o peito.
Parecia j ter sido atirado ao cho uma vez. Dois
dos guardas tinham a mulher e os filhos dele
encurralados contra a traseira da carroa. A
mulher tinha um fio de sangue escorrendo do nariz.
Ainda parecia pronta para lutar. Deslizei para o
acampamento silencioso como fumaa e ocupei um
lugar ao lado de Damo como se sempre tivesse
estado ali. Nenhum de ns falou.
O chefe dos guardas virou as costas ao seu
confronto com o funileiro, e um arrepio me
percorreu a espinha. Eu o conhecia. Era Dardo, um
favorito de Majestoso devido sua habilidade
com os punhos. Vira-o pela ltima vez na
masmorra. Fora ele que quebrara o meu nariz.
Senti as batidas do meu corao ganharem
velocidade, e ouvi o pulso nos ouvidos. A
escurido ameaou os limites do meu campo de
viso. Lutei para respirar com calma. Ele veio at
o centro do acampamento e nos lanou um olhar
desdenhoso.
Esses so todos? exigiu mais do que
perguntou.
Todos assentimos. Ele lanou o olhar sobre ns
e eu abaixei os olhos para evitar os dele. Forcei as
mos a ficarem quietas, a ficarem afastadas tanto
da faca como da espada. Tentei no deixar que a
tenso se mostrasse na minha atitude.
O mais lamentvel bando de vagabundos que
eu j vi. O seu tom anulava a nossa
importncia. Chefe da caravana! Passamos o
dia inteiro cavalgando. Mande o seu rapaz cuidar
dos nossos cavalos. Vamos querer comida e mais
combustvel para a fogueira. E nos aquea um
pouco de gua para nos lavarmos. Voltou a
passar os olhos por ns. No quero
incomodaes. Os homens que procurvamos no
esto aqui, e isso tudo o que precisvamos saber.
Faam o que pedirmos e no haver problemas.
Podem continuar com os seus assuntos normais.
Houve alguns murmrios de acordo, mas aquilo
foi recebido principalmente com silncio. Ele
bufou o seu desdm por ns, ento se virou para os
seus cavaleiros e falou com eles em voz baixa. As
ordens que estava dando no pareceram agrad-
los, mas os dois que tinham encurralado a funileira
acabaram por ceder s suas palavras. Ocuparam a
fogueira que Guida fizera antes de eles chegarem,
forando as pessoas da nossa caravana a se
afastarem. Guida falou em voz baixa com os seus
ajudantes, mandando dois cuidar dos cavalos dos
guardas e outro buscar gua e coloc-la para
aquecer. Ela mesma passou pesadamente pela
nossa carroa, dirigindo-se ao seu carro e s
provises que transportava ali.
Uma aparncia incmoda de ordem regressou ao
acampamento. Esporana acendeu uma segunda
fogueira menor. A trupe de titereiros, a menestrel e
os carroceiros voltaram a se sentar junto a ela. A
dona do cavalo e o marido foram discretamente
para a cama.
Bem, parece que as coisas se acalmaram
observou Damo, mas eu reparei que ele ainda
torcia nervosamente as mos. Vou para a cama.
Voc e Crice combinem os turnos entre vocs.
Comecei a andar de volta para as minhas
ovelhas. Ento fiz uma pausa e passei os olhos
pelo acampamento. Os guardas eram agora
silhuetas em volta da fogueira, descansando e
conversando, enquanto um nico deles estava um
pouco afastado do grupo, mantendo uma vigilncia
genrica. Estava olhando na direo da outra
fogueira. Segui o seu olhar. No consegui decidir
se Tassina estava lhe retribuindo o olhar, ou
apenas fitando os outros guardas em volta da sua
fogueira. De qualquer modo, eu suspeitava que
sabia o que ela tinha na cabea.
Virei-me para o lado e me dirigi traseira do
carro de Guida. Ela tirava feijes e ervilhas de
sacas e os media numa panela de sopa. Toquei-lhe
levemente no brao, e ela deu um salto.
Perdo. Quer ajuda com isso?
Ela levantou uma sobrancelha pra mim.
Por que eu iria querer?
Olhei para os meus ps e escolhi com cuidado a
mentira.
No gostei do modo como eles olharam para
a funileira, minha snhora.
Eu sei como me comportar com homens
brutos, pastor. No poderia ser chefe de caravana
se no soubesse. Ela mediu sal e colocou na
panela, e depois um punhado de condimentos.
Fiz um aceno com a cabea e nada disse. Era
uma verdade bvia demais para que eu
protestasse. Mas tambm no fui embora, e aps
alguns momentos ela me entregou um balde e me
disse para ir buscar um pouco de gua limpa.
Obedeci-lhe de boa vontade, e quando voltei
fiquei com o balde na mo at que ela o tirou de
mim. Vi-a encher a panela de sopa e fiquei ao seu
lado at que ela me disse com alguma aspereza
para sair de cima dela. Pedi desculpa e recuei,
derrubando o balde de gua quando o fiz. Portanto,
recolhi-o e fui buscar mais gua fresca para ela.
Depois disso, fui buscar um cobertor na carroa
de Damo e me enrolei nele durante algumas
horas. Fiquei debaixo da carroa como se
estivesse dormindo, e vigiei no os guardas, mas
Esporana e Tassina. Reparei que a menestrel no
pegou a harpa naquela noite, como se tambm no
desejasse atrair sobre si nenhuma ateno. Isso me
tranquilizou at certo ponto ao seu respeito. Teria
sido bastante simples para ela visitar a fogueira
deles com a sua harpa, para captar as boas graas
dos guardas com algumas canes, e depois
oferecer-se para me vender. Mas ela parecia to
decidida a vigiar Tassina quanto eu. Tassina
levantou-se uma vez para sair, com uma desculpa
qualquer. No ouvi o que Esporana disse em voz
baixa, mas Tassina a fitou furiosa e o Mestre Vale
lhe ordenou num tom irritado que voltasse para o
seu lugar. Certamente Vale no queria ter nada a
ver com os guardas, de modo algum. Porm,
mesmo depois de terem ido todos dormir, no
consegui relaxar. Quando chegou a hora de ir
render Crice, fui com relutncia, sem estar certo
de que Tassina no escolheria a madrugada para
procurar os guardas.
Encontrei Crice profundamente adormecido e
tive de acord-lo para mand-lo de volta para
junto da carroa. Sentei-me, com o cobertor em
volta dos ombros, e pensei nos seis homens que
estavam l embaixo, agora dormindo em volta da
sua fogueira. Eu tinha motivos para um dio
verdadeiro apenas por um deles. Recordei Dardo
como fora quando eu o conhecera, com um
sorrisinho no rosto enquanto calava as suas luvas
de couro para me espancar, amuando quando
Majestoso o repreendera por quebrar o meu nariz,
pois isso me deixaria menos apresentvel para o
caso de os duques desejarem me ver. Recordei o
modo desdenhoso como ele desempenhara a sua
tarefa para Majestoso, ultrapassando facilmente a
minha defesa simblica enquanto eu tentava manter
Vontade e o seu Talento fora da minha mente.
Dardo nem sequer me reconhecera. Passara os
olhos por mim e desdenhara-me sem sequer
reconhecer o fruto do seu trabalho. Fiquei
pensando nisso durante algum tempo. Supunha que
eu realmente tivesse mudado bastante. No eram
apenas as cicatrizes que ele me dera, no era
apenas a barba, o traje de trabalhador, a poeira da
estrada que me cobria e a minha magreza.
FitzCavalaria no teria baixado os olhos diante do
seu olhar, no teria permanecido em silncio
deixando que os funileiros se defendessem
sozinhos. FitzCavalaria no teria, talvez,
envenenado os seis guardas a fim de matar um
deles. Perguntei a mim mesmo se me teria tornado
mais sensato ou mais cauteloso. Talvez ambas as
coisas. Isso no me deixava orgulhoso.
O sentido da Manha me d uma percepo de
outras coisas vivas, de todas as outras coisas
vivas que me rodeiam. raro ser surpreendido por
algum, de modo que no me apanharam de
surpresa. A aurora tinha apenas comeado a
empalidecer o negrume do cu quando Dardo e os
seus guardas vieram me buscar. Eu fiquei imvel,
primeiro sentindo e depois ouvindo a sua
aproximao furtiva. Dardo acordara os seus cinco
soldados para aquela tarefa.
Com um desalento cada vez maior, perguntei-me
o que dera errado com o meu veneno. Teria
perdido a potncia por ter sido transportado
durante tanto tempo? Teria sido inutilizado por ser
cozinhado com a sopa? Juro que por um momento
o meu pensamento principal foi que Breu no teria
cometido aquele erro. Mas no tinha tempo para
pensar nisso. Olhei em volta, sobre a plancie que
ondulava suavemente e se mostrava quase
incaracterstica. Arbustos espessos e algumas
pedras. Nem mesmo um barranco ou um outeiro em
que pudesse me esconder.
Podia ter fugido, e talvez os tivesse despistado
durante algum tempo nas trevas. Mas, no fim, o
jogo era deles. Acabaria tendo de regressar em
busca de gua. Se eles no me localizassem no
terreno plano luz do dia e a cavalo, podiam
simplesmente ficar espera junto ao poo. Alm
do mais, fugir era admitir que eu era
FitzCavalaria. Tom, o pastor, no fugiria.
E assim ergui o olhar, surpreendido e ansioso
quando vieram me buscar, mas, esperava eu, sem
trair o medo de acelerar o corao que eu sentia.
Levantei-me, e quando um deles me agarrou por
um brao, no lutei e apenas o olhei com
incredulidade. Outro guarda veio pelo outro lado
para me tirar a faca e a espada.
Venha at a fogueira disse-me ele,
rspido. O capito quer dar uma olhada em
voc.
Fui em silncio, quase sem firmeza, e quando
voltaram a se reunir junto fogueira para me
apresentar a Dardo, olhei temerosamente um rosto
aps outro, tendo o cuidado de no destacar
Dardo. Eu no tinha certeza de ser capaz de olh-
lo diretamente e de perto sem nada trair. Dardo
levantou-se, chutou a fogueira para avivar as
chamas, e depois veio me inspecionar. Tive um
vislumbre do rosto plido e do cabelo de Tassina
espreitando-me de trs do carro do titereiro.
Durante algum tempo, Dardo apenas ficou parado
olhando para mim. Depois, franziu a boca e lanou
aos guardas um olhar de descontentamento. Com
uma pequena sacudida de cabea, informou-lhes
que eu no era quem ele queria. Atrevi-me a
respirar mais fundo.
Como se chama? perguntou-me Dardo de
repente, rspido.
Olhei-o de soslaio por cima da fogueira.
Tom, senhor. Tom, o pastor. No fiz nada de
errado.
Ah, no? Ento o nico homem no mundo
que no fez nada de errado. Fala como um cervs,
Tom. Tire o leno.
E sou, senhor. De Cervo, senhor. Mas os
tempos esto difceis por l. Arranquei o leno
s pressas, e depois fiquei apertando-o e torcendo-
o. No seguira o conselho de Esporana sobre
pintar o cabelo. Isso no me traria nenhuma
vantagem durante uma inspeo atenta. Mas usara
o espelho para arrancar uma boa poro dos
cabelos brancos. No todos, mas o que tinha agora
parecia-se mais com uma poro de cabelo
grisalho acima da testa do que com uma madeixa
branca. Dardo deu a volta na fogueira para poder
ver melhor. Retra-me quando ele me agarrou pelo
cabelo e me inclinou a cabea para trs a fim de
me fitar o rosto. Era to grande e musculoso
quanto me recordava. Todas as recordaes
malignas que eu tinha dele me inundaram
subitamente a cabea. Juro que at me lembrei do
seu cheiro. A miservel nusea do medo tomou
conta de mim.
No lhe ofereci resistncia enquanto ele me
trespassava com os olhos. Nem cruzei os olhos
com ele, apenas lhe lancei olhares assustados e
afastei os olhos, como que suplicando por ajuda.
Reparei que Guida surgira vinda de algum lugar e
estava de p, de braos cruzados sobre o peito,
olhando-nos.
Tem uma cicatriz na bochecha, no tem,
homem? perguntou-me Dardo.
Tenho, sim, senhor. Arranjei-a quando era
garoto, ca de uma rvore e um galho me cortou
Tambm quebrou o nariz nessa poca?
No, senhor, no, isso foi uma briga de
taverna, foi sim, h um ano
Tire a camisa! exigiu.
Atrapalhei-me com o colarinho, ento a tirei
pela cabea. Achara que ele iria olhar para os
meus braos e eu estava preparado para isso com
a histria do prego. Contudo, ele inclinou-se para
olhar para um lugar entre o ombro e o pescoo,
onde um Forjado me arrancara um pedao com
uma mordida numa luta h muito tempo. Senti um
frio na barriga. Ele olhou para a cicatriz nodosa
que havia ali, e ento atirou repentinamente a
cabea para trs e soltou uma gargalhada.
Maldio. No pensei que fosse voc,
Bastardo. Tinha certeza de que no era. Mas essa
a marca que me lembro de ver, da primeira vez
que o atirei no cho. Olhou para os homens que
me rodeavam, ainda com surpresa e deleite no
rosto. ele! Ns o pegamos. O rei espalhou os
seus feiticeiros do Talento das Montanhas at a
costa procura dele, e ele cai como fruta nas
nossas mos. Lambeu os lbios e me percorreu
com olhos maldosos. Detectei nele uma fome
estranha, uma fome que ele quase temia. Agarrou-
me de sbito pela garganta e me deixou nas pontas
dos ps. Aproximou o rosto do meu enquanto
sibilava: Veja se me entende. Verde era um
amigo meu. No so cem peas de ouro por voc
vivo que me impedem de mat-lo aqui. s a
minha f em que o meu rei arranjar maneiras mais
interessantes para voc morrer do que eu
conseguiria improvisar aqui. Voc mais uma vez
meu, Bastardo, na arena. Ou a parte de voc que o
meu rei me deixar.
Empurrou-me violentamente contra a fogueira.
Tropecei nela e fui imediatamente agarrado por
dois homens do outro lado. Olhei freneticamente
de um e para o outro.
um engano! gritei. Um terrvel
engano!
Coloquem os grilhes nele ordenou-lhes
Dardo em voz rouca.
Guida deu passo sbito para frente.
Tem certeza a respeito deste homem?
perguntou-lhe diretamente.
Ele encarou o olhar dela, de capito para
capito.
Tenho. Ele o Bastardo da Manha.
Uma expresso de completa repugnncia
atravessou o rosto de Guida.
Ento o levem e faam bom proveito.
Girou nos calcanhares e afastou-se.
Os meus guardas tinham estado observando a
conversa entre Guida e o seu capito em vez de
prestar ateno ao homem trmulo que estava entre
eles. Arrisquei tudo, atirando-me para a fogueira
enquanto me libertava das suas mos descuidadas.
Dei um encontro num sobressaltado Dardo e fugi
como um coelho. Ziguezagueei pelo acampamento,
passei pelo carro dos funileiros e vi apenas campo
aberto minha frente. A aurora acinzentara a
plancie at transform-la numa manta amarrotada
e incaracterstica. Nenhum esconderijo, nenhum
destino. Apenas corri.
Esperara ser perseguido por homens a p, ou a
cavalo. No esperara um homem com uma funda.
A primeira pedra me atingiu no ombro esquerdo,
adormecendo o meu brao. Continuei correndo. A
princpio pensei que tinha sido atingido por uma
flecha. Ento o raio me acertou.
Quando acordei, tinha os pulsos acorrentados. O
ombro esquerdo doa horrivelmente, mas no tanto
quanto o galo que tinha na cabea. Consegui me
contorcer at ficar sentado. Ningum prestou muita
ateno em mim. Um grilho em cada um dos meus
tornozelos estava preso a uma extenso de corrente
que subia at um lao forjado na corrente que me
prendia os pulsos e o atravessava. Uma segunda
corrente entre os tornozelos, muito mais curta, nem
sequer me permitia dar um passo completo. Se
conseguisse ficar de p.
Nada disse, nada fiz. Agrilhoado, no tinha
qualquer chance contra seis homens armados. No
queria lhes dar nenhuma desculpa para me tratarem
com brutalidade. Mesmo assim, precisei de cada
trao de vontade para ficar quieto e analisar a
minha situao. O puro peso da corrente era
assustador, e o frio do ferro que me mordia a pele
ao ar frio da noite tambm. Fiquei sentado, de
cabea baixa, olhando para os ps. Dardo notou
que eu estava acordado. Veio ficar na minha
frente. Mantive os olhos nos meus ps.
Diga alguma coisa, maldio! ordenou-me
Dardo de repente.
Pegou o homem errado, senhor eu disse
com timidez. Sabia que no havia maneira de
convenc-lo daquilo, mas talvez conseguisse
abalar a crena dos seus homens.
Dardo riu. Foi sentar-se junto fogueira. Depois
se deitou apoiado nos cotovelos.
Se peguei, um azar dos diabos para voc.
Mas sei que no peguei o homem errado. Olhe
para mim, Bastardo. Como foi que voc no ficou
morto?
Lancei-lhe um olhar temeroso.
No sei o que quer dizer, senhor.
Foi a resposta errada. Ele tinha uma velocidade
tigrina, saltando da posio reclinada para voar
sobre mim, por cima da fogueira. Levantei-me
desajeitado, mas no havia como escapar dele. Ele
me agarrou pelas correntes, puxou-me para cima e
me esbofeteou. Ento:
Olhe para mim ordenou.
Voltei a olh-lo no rosto.
Como foi que no morreu, Bastardo?
No fui eu. Pegou o homem errado.
Recebi o dorso da sua mo uma segunda vez.
Breu me dissera uma vez que, sob tortura, mais
fcil resistir ao interrogatrio se concentrarmos a
mente no que queremos dizer, e no no que no
podemos. Sabia que era estpido e intil dizer a
Dardo que no era FitzCavalaria. Ele sabia que
era. Porm, tendo adotado essa estratgia,
mantive-me fiel a ela. Da quinta vez que ele me
bateu, um dos seus homens falou de trs de mim.
Com todo o respeito, senhor?
Dardo olhou furioso para o homem.
O que ?
O homem umedeceu os lbios.
O cativo precisa estar vivo, senhor. Para que
o ouro seja pago.
Dardo voltou a virar os olhos para mim. Era
enervante ver nele a fome, uma nsia muito
semelhante que Veracidade tivera pelo Talento.
Aquele homem gostava de causar dor. Gostava de
matar lentamente. O fato de no poder faz-lo s o
fazia me odiar mais.
Eu sei disso disse bruscamente ao homem.
Vi o punho a vir na minha direo, mas no havia
maneira de evit-lo.
Quando acordei, a manh ia alta. Havia dor.
Durante algum tempo, isso foi tudo o que eu
realmente soube. Dor, uma dor forte no ombro e
nas costelas, do mesmo lado. Era provvel que ele
tivesse me chutado, decidi. No queria mover
nenhuma parte do meu rosto. Perguntei-me: por
que motivo a dor era sempre maior quando se est
com frio? Sentia-me curiosamente distanciado da
minha situao. Fiquei algum tempo escuta, sem
qualquer desejo de abrir os olhos. A caravana
estava preparando-se para prosseguir viagem.
Ouvia o Mestre Vale berrando a Tassina, a qual
gritava que tinha direito ao dinheiro, que se ao
menos ele a tivesse ajudado a arranj-lo, podia ter
obtido de volta o seu preo de aprendizado e que
fizesse bom proveito dele. Ele lhe ordenou que
entrasse no carro. Em vez disso, ouvi os passos
dela esmagando a terra seca enquanto se
aproximava apressadamente de mim. Mas foi com
Dardo que falou numa voz lamurienta.
Eu tinha razo. Voc no acreditou em mim,
mas eu tinha razo. Descobri-o para voc. Se no
fosse por mim, voc teria continuado viagem
depois de olh-lo no rosto. Esse ouro
legitimamente meu. Mas eu vou lhe dar metade e
ficarei mais do que feliz com isso. mais do que
justo para voc, sabe que sim.
Eu entraria naquele carro, se fosse voc
respondeu-lhe Dardo com frieza. Seno, depois
de ele partir e de ns partirmos, voc ficar sem
nada a no ser uma longa caminhada.
Ela teve o bom senso de no discutir com ele,
mas foi resmungando palavres para si mesma
enquanto se encaminhava para o carro. Ouvi Vale
lhe dizer que ela s causava problemas e que ia se
livrar dela em Lago Azul.
Coloque-o de p, Jofe ordenou Dardo a
algum.
Jogaram gua em mim e eu abri os olhos. Vi um
guarda pegar a minha corrente e dar um puxo.
Isso despertou uma hoste de dores menores.
Levante-se! ordenou o homem. Consegui
fazer um aceno. Tinha um dente solto. S
conseguia ver por um olho. Comecei a erguer as
mos para o rosto, para ver como ele estava, mas
um puxo na corrente me impediu. Ele vai a
cavalo ou a p? perguntou a Dardo aquele que
segurava na corrente enquanto eu me endireitava
de uma forma insegura.
Adoraria arrast-lo, mas isso iria nos atrasar
demais. Ele ir a cavalo. Monte com Arno e
coloque-o no seu cavalo. Amarre-o sela e
mantenha bem segura a arreata do seu cavalo. Ele
est se fazendo de idiota, mas cruel e cheio de
truques. No sei se capaz de fazer todas as
coisas de Manha que dizem que faz, mas no quero
descobrir. Ento segure bem essa arreata. Alis,
onde est Arno?
Est nos arbustos, senhor. Hoje no est com
as tripas muito boas. Passou a noite toda para cima
e para baixo, aliviando-se.
V busc-lo. O tom de Dardo deixou claro
que no estava interessado nos problemas do
homem. O meu guarda desapareceu correndo,
deixando-me balanando sobre as pernas. Levei as
mos ao rosto. S vira o primeiro golpe
aproximando-se, mas era evidente que tinha
havido outros. Aguente, disse severamente a mim
mesmo. Sobreviva, e veja que oportunidades lhe
so oferecidas. Deixei cair as mos e dei com
Dardo me observando.
gua? pedi numa voz arrastada.
No esperava realmente obter nenhuma, mas ele
virou-se para um dos outros guardas e fez um
pequeno movimento. Alguns momentos mais tarde
o homem me trouxe um balde de gua e dois
biscoitos secos. Bebi e molhei o rosto. Os
biscoitos eram duros e eu estava com a boca muito
dolorida, mas tentei empurrar para baixo o
mximo possvel. Duvidava que obtivesse muito
mais do que aquilo no dia que teria pela frente.
Reparei ento que a minha bolsa tinha
desaparecido. Supus que Dardo a havia pegado
enquanto eu estivera inconsciente. O meu corao
afundou-se quando pensei em ter perdido o brinco
de Bronco. Enquanto roa cuidadosamente o
biscoito, perguntei-me o que teria ele pensado dos
ps que eu trazia na bolsa.
Dardo nos fez montar e partir antes da caravana
seguir caminho. Tive um vislumbre do rosto de
Esporana, mas no consegui ler a sua expresso.
Crice e o meu patro evitaram cautelosamente at
me olhar, com medo de serem contaminados pela
minha mcula. Era como se nunca tivessem me
conhecido.
Tinham me colocado numa gua robusta. Meus
pulsos foram bem amarrados no cepilho da sela,
tornando impossvel montar confortavelmente ou
bem, mesmo se no me sentisse tanto como um
saco de ossos partidos. No haviam tirado os
grilhes, removeram apenas a corrente curta entre
os tornozelos. A corrente mais longa presa aos
pulsos estava enrolada por cima da sela. No
havia maneira de evitar que a corrente me
esfolasse. No fazia ideia do que acontecera
minha camisa, mas sentia amargamente a sua falta.
O cavalo e o movimento iriam me aquecer at
certo ponto, mas no de um modo confortvel.
Quando um muito plido Arno montou atrs do seu
camarada, partimos na direo de Vaudefeira. O
meu veneno, refleti com tristeza, nada mais fizera
do que afrouxar os intestinos de um homem. Que
belo assassino eu era.
Venha at mim.
Quem dera eu pudesse, disse a mim mesmo,
deprimido, enquanto era levado na direo
contrria. Quem dera eu pudesse. Cada passo que
a gua dava avivava as minhas dores. Perguntei-
me se o meu ombro estaria quebrado ou
deslocado. Ponderei sobre a estranha sensao de
afastamento de tudo que sentia. E me perguntei se
devia nutrir a esperana de chegar vivo a
Vaudefeira, ou se seria melhor tentar faz-los me
matar antes disso. Eu no conseguia imaginar um
modo de convenc-los a tirarem as correntes de
mim, quanto mais de fugir naquela regio plana.
Abaixei a cabea, que latejava, e observei as mos
enquanto avanvamos. Estremeci com o frio e o
vento. Tateei procura da mente da gua, mas s
tive sucesso em deix-la consciente da minha dor.
Ela no tinha qualquer interesse em puxar a
cabea, libertando-se, e galopar comigo para
longe. E tambm no gostava l muito do meu
cheiro de ovelhas.
Da segunda vez em que paramos para que Arno
esvaziasse as tripas, Dardo voltou para trs e
refreou o cavalo ao meu lado.
Bastardo!
Virei lentamente a cabea para olhar para ele.
Como foi que voc fez? Eu vi o seu corpo, e
estava morto. Reconheo um morto quando o vejo.
Como voc est andando outra vez por a?
A minha boca no me deixaria formar palavras
mesmo se eu tivesse palavras para formar.
Passado um momento, ele respondeu ao meu
silncio com uma bufada.
Bem, no conte que isso v acontecer de
novo. Desta vez, vou cort-lo pessoalmente. Tenho
um co em casa. Come qualquer coisa. Acho que
ele se livrar do seu fgado e do seu corao. Que
acha disso, Bastardo?
Senti pena do co, mas nada disse. Quando Arno
voltou cambaleando para o cavalo, Jofe ajudou-o a
montar. Dardo esporeou a sua montaria de volta
frente da coluna. Seguimos viagem.
A manh ainda nem chegara na metade quando
Arno disse ao amigo para parar pela terceira vez.
Deslizou de cima da garupa do cavalo e afastou-se
alguns passos cambaleantes para vomitar. Dobrou-
se sobre si mesmo, agarrando-se s tripas que o
enchiam de dores enquanto o fazia, e ento caiu de
sbito para frente, de rosto no cho. Um dos outros
guardas soltou uma gargalhada, mas quando Arno
apenas rolou de costas, gemendo, Dardo ordenou
que Jofe fosse ver o que havia com ele. Ficamos
todos vendo Jofe desmontar e levar gua a Arno.
Este no conseguiu pegar a garrafa de gua que lhe
era oferecida e quando Jofe a levou sua boca, a
gua apenas escorreu pelo queixo do homem.
Virou lentamente a cabea para o lado e fechou os
olhos. Passado um momento, Jofe levantou a
cabea, com os olhos arregalados de
incredulidade.
Ele est morto, senhor. A voz de Jofe
tornou-se um pouco esganiada naquelas palavras.
Cavaram uma cova rasa para o homem e
empilharam pedras em cima dela. Antes do enterro
acabar, dois outros guardas haviam vomitado. O
consenso era gua estragada, embora eu tenha
apanhado Dardo olhando para mim com olhos
apertados. No tinham se incomodado em me tirar
de cima do meu cavalo. Eu me dobrava sobre a
barriga como se me doesse e mantinha os olhos
baixos. No tinha qualquer dificuldade em parecer
doente.
Dardo ordenou aos seus homens que voltassem a
montar e prosseguiu viagem. Por volta do meio-dia
ficou claro que ningum estava em bom estado. Um
rapaz oscilava na sela enquanto avanvamos.
Dardo nos fez parar para um breve descanso, que
se transformou num longo. Assim que um homem
parava de vomitar, havia outro que comeava.
Dardo finalmente ordenou com secura que
voltassem a montar, apesar dos gemidos de
protesto. Prosseguimos, mas a um ritmo mais lento.
Eu conseguia sentir o fedor amargo do suor e do
vmito na mulher que levava a minha gua.
Enquanto subamos uma ladeira suave, Jofe caiu
da sela. Dei minha gua um forte incentivo com
os calcanhares, mas ela apenas caminhou de lado e
jogou as orelhas para trs, bem treinada demais
para partir a galope com as rdeas penduradas no
freio. Dardo fez os seus guardas pararem, e todos
os homens desmontaram de imediato, alguns para
vomitar, outros simplesmente para se afundarem
em angstia junto aos cavalos.
Montar acampamento ordenou Dardo,
apesar de ainda ser cedo. Depois afastou-se um
pouco, agachou-se e contorceu-se durante algum
tempo com vmitos secos. Jofe no se levantou.
Foi Dardo quem veio at mim e me soltou os
pulsos da sela. Deu um puxo na corrente e eu
quase ca em cima dele. Afastei-me alguns passos,
cambaleando, e ca, com as mos na barriga. Ele
veio agachar-se ao meu lado. Agarrou-me pela
nuca, apertou-a bem. Porm, eu sentia que ele j
no tinha a fora que tivera.
O que acha, Bastardo? perguntou-me num
rosnado rouco. Estava muito perto de mim, e o seu
hlito e corpo fediam a doena. Foi gua
estragada? Ou outra coisa?
Fiz sons de vmito e me inclinei para ele como
se fosse vomitar. Ele afastou-se de mim, cansado.
S dois dos guardas haviam conseguido tirar as
selas das montarias. Os outros estavam
miseravelmente cados no cho. Dardo andou entre
eles, xingando-os inutilmente, mas de forma
sentida. Um dos guardas mais fortes comeou por
fim a reunir o que era necessrio para uma
fogueira, enquanto outro percorria como um
caranguejo a fileira de cavalos, fazendo pouco
mais do que desprender selas e pux-las de cima
dos dorsos dos cavalos. Dardo veio prender a
corrente de mancar entre os meus tornozelos.
Mais dois guardas morreram naquela noite. Foi
o prprio Dardo quem arrastou os seus corpos
para fora do acampamento, mas no conseguiu
encontrar foras para fazer mais do que isso. A
fogueira que conseguiram acender depressa
morreu por falta de combustvel. A noite aberta na
regio plana pareceu mais escura do que qualquer
coisa que eu j tivesse experimentado, e o frio
seco era uma parte da escurido. Ouvi os gemidos
dos homens e um deles balbuciando qualquer coisa
sobre as suas tripas, as suas tripas. Ouvi os
movimentos inquietos dos cavalos a quem ningum
dera gua. Pensei com saudade em gua e em
calor. Uma variedade de dores me incomodava.
Tinha os pulsos em carne viva devido aos
grilhes. Doam menos do que o ombro, mas de
uma forma constante que eu no podia ignorar.
Supus que a escpula do meu ombro estava no
mnimo fraturada.
Ao amanhecer, Dardo veio cambaleando at
onde eu me encontrava deitado. Tinha os olhos
afundados nas rbitas, as faces encovadas na sua
agonia. Caiu de joelhos ao meu lado e me agarrou
pelo cabelo. Gemi.
Est morrendo, Bastardo? perguntou-me
com voz rouca. Voltei a gemer e fiz uma fraca
tentativa de me libertar dele. Aquilo pareceu
satisfaz-lo. timo. Ainda bem. Alguns
estavam dizendo que isto era a magia da Manha
que voc havia colocado em ns, Bastardo. Mas
eu acho que gua estragada pode matar um homem,
quer ele seja Manhoso, quer seja honesto. Enfim.
Vamos nos assegurar de que voc morre mesmo,
desta vez.
Foi a minha prpria faca que ele sacou. Quando
me puxou o cabelo para trs para expor a garganta,
eu ergui as mos agrilhoadas para lhe atirar a
corrente contra o rosto. Ao mesmo tempo, repeli-o
com toda a fora de Manha que consegui reunir.
Ele caiu para trs. Arrastou-se alguns passos para
longe de mim, ento caiu de lado na areia. Ouvi-o
respirando pesadamente. Passado algum tempo,
parou. Fechei os olhos, escutando aquele silncio,
sentindo a ausncia da sua vida como luz do sol
batendo no meu rosto.
Passado algum tempo, quando o dia ficou mais
forte, forcei-me a abrir o olho. Foi mais difcil me
arrastar at o cadver de Dardo. Todas as minhas
dores tinham endurecido e haviam se combinado
numa nica, que gritava sempre que eu me movia.
Revistei cautelosamente o corpo dele. Descobri o
brinco de Bronco na sua bolsa. estranho pensar
que parei naquele momento para coloc-lo de
volta na orelha, para que no o perdesse. Os meus
venenos tambm estavam l. O que no estava na
sua bolsa era a chave dos meus grilhes. Comecei
a separar os meus bens dos dele, mas o sol estava
atirando espiges contra a minha nuca.
Simplesmente pendurei a bolsa dele do meu cinto.
O que quer que ele tivesse ali, agora era meu.
Depois de se envenenar um homem, refleti, pode-
se muito bem tambm roub-lo. A honra j no
parecia ter muito a ver com a minha vida.
Conclu que o mais certo era que quem me
agrilhoara transportasse a chave. Arrastei-me at o
corpo seguinte, mas no encontrei nada na sua
bolsa alm de algumas ervas de fumo. Sentei-me e
tomei conscincia de passos pouco seguros que
vinham pela terra seca na minha direo. Levantei
os olhos, semicerrei-os contra a luz do sol. O
rapaz aproximou-se lentamente de mim, com
passos titubeantes. Numa mo trazia um odre. Na
outra exibia a chave onde eu pudesse v-la.
A uma dzia de passos de mim, parou.
A sua vida pela minha grasnou. Estava
cambaleando, mesmo parado. No lhe respondi.
Ele tentou de novo. gua e a chave das suas
correntes. Qualquer cavalo que queira levar. No
vou lutar com voc. Basta que tire a praga de
Manha de mim.
Ele parecia to novo e digno de d ali de p.
Por favor suplicou-me de repente.
Dei por mim sacudindo lentamente a cabea.
Foi veneno disse-lhe. No h nada que
eu possa fazer por voc.
Ele me fitou com amargura, incrdulo.
Ento tenho que morrer? Hoje? As suas
palavras saram como um sussurro seco. Os seus
olhos escuros prenderam-se nos meus. Dei por
mim confirmando com a cabea. Maldito!
Guinchou a palavra, queimando a fora vital que
lhe restava. Ento voc tambm morre. Morre
aqui mesmo! Arremessou a chave to longe
quanto pde, ento disparou numa corrida incerta,
grasnando e agitando os braos para os cavalos.
Os animais tinham passado o dia inteiro
desamarrados, tinham at esperado a manh inteira
na esperana de receber cereais e gua. Eram
animais bem treinados. Mas o cheiro da doena e
da morte e o comportamento incompreensvel
daquele rapaz foram demais para eles. Quando ele
soltou um grito sbito e caiu de rosto no cho
quase no meio dos cavalos, um grande castrado
cinzento atirou a cabea para cima, resfolegando.
Enviei pensamentos tranquilizadores na sua
direo, mas ele tinha pensamentos seus. Afastou-
se dando pinotes nervosamente, e depois resolveu
de sbito que aquela era uma boa deciso e
arrancou a meio galope. Os outros cavalos
seguiram o seu exemplo. Os seus cascos no
soaram como um trovo na plancie; foram antes o
tamborilar cada vez mais fraco de uma tempestade
que se afasta, levando consigo toda a esperana de
vida.
O rapaz no voltou a mexer-se, mas levou algum
tempo para morrer. Tive de ouvir o seu choro
suave enquanto procurava pela chave. Desejava
desesperadamente ir procura de odres, mas temia
que se voltasse as costas rea para onde ele a
atirara, jamais seria capaz de decidir qual das
extenses de areia sem nada de especial continha a
minha salvao. Assim, engatinhei em frente, com
os grilhes me cortando e esfolando os meus
pulsos e tornozelos, enquanto espreitava o cho
com o meu nico olho bom. Mesmo depois de o
som do choro do rapaz se tornar baixo demais para
que o ouvisse, mesmo depois de ele morrer, ainda
continuei a ouvi-lo na minha cabea. s vezes
ainda o ouo. Outra vida jovem interrompida sem
sentido, para nada, como resultado da vingana de
Majestoso contra mim. Ou talvez por causa da
minha contra ele.
Acabei encontrando a chave, quando eu j
estava certo de que o sol poente iria escond-la
para sempre. Fora feita de forma tosca e girava
muito rigidamente nas fechaduras, mas funcionava.
Abri os grilhes, forando-os a se separarem da
minha carne intumescida. O do tornozelo esquerdo
estava to apertado que eu estava com o p frio e
quase adormecido. Alguns minutos depois, a dor
inundou o p de vida. No lhe prestei muita
ateno. Estava ocupado demais procurando gua.
A maioria dos guardas esgotara os odres, assim
como o meu veneno esgotara os fluidos das suas
entranhas. Aquele que o rapaz me mostrara
continha apenas alguns goles. Bebi-os muito
lentamente, mantendo a gua na boca durante muito
tempo antes de engoli-la. Nos alforjes de Dardo
descobri um frasco de conhaque. Permiti-me
apenas um pequeno trago, ento tampei o frasco e
o deixei de lado. No era muito mais do que um
dia de caminhada at o poo. Podia faz-lo. Teria
de faz-lo.
Roubei dos mortos aquilo de que necessitava.
Vasculhei os alforjes e as trouxas na pilha de
selas. Quando terminei, vestia uma camisa azul
que me servia nos ombros, embora chegasse quase
aos joelhos. Tinha carne seca e cereais, lentilhas e
ervilhas, a minha velha espada que decidi ser a
que melhor me servia, a faca de Dardo, um
espelho, uma pequena panela, uma caneca e uma
colher. Estendi um cobertor resistente e coloquei
essas coisas sobre ele. Acrescentei uma muda de
roupa que estava grande demais em mim, mas seria
melhor do que nada. O manto de Dardo ficaria
longo em mim, mas era o de melhor fabricao, de
modo que fiquei com ele. Um dos homens levara
um pouco de linho para bandagens e alguns
unguentos. Fiquei com eles, com um odre vazio e
com o frasco de conhaque de Dardo.
Eu podia ter vasculhado os cadveres em busca
de dinheiro e joias. Podia ter me sobrecarregado
com uma dzia de outros bens de utilidade
eventual. Descobri que queria apenas substituir o
que tivera e me afastar do cheiro dos corpos que
inchavam. Fiz a trouxa to apertada e pequena
quanto consegui, cingindo-a com as correias de
couro dos arreios dos cavalos. Quando a levei ao
ombro bom ainda me pareceu muito mais pesada
do que devia estar.
Irmo?
A pergunta parecia hesitante, tnue devido a
mais do que distncia. Devido ao desuso. Como se
um homem falasse numa lngua que ficara muitos
anos sem usar.
Estou vivo, Olhos-de-Noite. Fique com a sua
alcateia e viva tambm.
No precisa de mim? Senti a sua pontada de
conscincia quando perguntou aquilo.
Preciso sempre de voc. Preciso saber que est
vivo e livre.
Senti o seu tnue assentimento, mas pouco mais
do que isso. Passado algum tempo perguntei a mim
mesmo se no teria imaginado o seu toque na
minha mente. Mas me senti estranhamente
fortalecido ao me afastar dos cadveres,
penetrando na noite que se aprofundava.
CAPTULO 13

Lago Azul

O Lago Azul onde desagua o Rio Frio. Tambm


esse o nome da maior vila que se ergue nas
suas margens. No incio do reinado do Rei Sagaz,
o territrio que rodeia o lado nordeste do lago
era famoso pelas suas searas e pomares. Uma
uva caracterstica do seu solo produzia um vinho
com um aroma sem rival. O vinho do Lago Azul
era conhecido por todos os Seis Ducados e era
exportado em caravanas at lugares to
longnquos quanto Vilamonte. Ento vieram as
longas secas e os incndios iniciados por
relmpagos que as seguiram. Os fazendeiros e
vinicultores da rea nunca se recuperaram.
Depois disso, Lago Azul passou a depender mais
do comrcio. A atual vila de Lago Azul uma vila
mercantil, onde as caravanas de Vara e dos
Estados de Calcede se encontram para negociar
pelos bens do povo da Montanha. Durante o
vero, enormes barcaas navegam pelas plcidas
guas do lago, mas no inverno as tempestades
que descem das Montanhas afastam do lago a
gente das barcaas e pem fim ao comrcio
aqutico.

O cu noturno estava limpo com uma imensa lua


cor de laranja pairando baixa. As estrelas eram
confiveis e segui a sua orientao, gastando
alguns momentos me maravilhando cansado por
aquelas serem as mesmas estrelas que antes
haviam brilhado sobre mim quando viajara para
casa, para Torre do Cervo. Agora me guiavam de
volta s Montanhas.
Passei a noite toda caminhando. No depressa,
no a um ritmo constante, mas sabia que quanto
antes chegasse gua, mais depressa poderia
aliviar as minhas dores. Quanto mais tempo
passasse sem gua, mais fraco ficaria. Enquanto
caminhava, umedeci uma das bandagens de linho
com o conhaque de Dardo e esfreguei levemente o
rosto. Verificara rapidamente os danos no espelho.
No havia dvida de que perdera outra luta. A
maior parte era hematomas e cortes menores. No
esperava ficar com novas cicatrizes. O conhaque
ardia nas mltiplas escoriaes, mas a umidade
suavizava um pouco as cascas, de modo a me
permitir abrir a boca com uma dor mnima. Estava
com fome, mas temia que a carne seca e salgada
fosse acentuar a minha sede.
Vi o sol erguer-se por cima da grande plancie
de Vara num maravilhoso conjunto de cores. O frio
da noite atenuou-se e eu afrouxei o manto de
Dardo. Continuei a andar. Com a luz que
aumentava, perscrutei com esperana o terreno.
Talvez algum dos cavalos tivesse voltado para o
poo. Mas no vi rastros frescos, s as marcas de
cascos de bordas esfareladas que tnhamos feito no
dia anterior, j sendo devoradas pelo vento.
Ainda era cedo quando cheguei ao escoadouro.
Aproximei-me dele com cautela, mas o nariz e os
olhos me disseram que estava abenoadamente
deserto. Sabia que no podia contar com a sorte de
ele ficar assim por muito tempo. Era um lugar de
paragem regular para as caravanas. A primeira
coisa que fiz foi beber at mais no poder. Depois,
houve um certo luxo em acender a minha pequena
fogueira, aquecer uma panela de gua e
acrescentar-lhe lentilhas, feijes, cereais e carne
seca. Coloquei em uma pedra perto da fogueira
para deix-la em fervura branda enquanto me
despia e lavava no escoadouro. Era raso em um
dos lados e o sol quase aquecera a gua. O meu
ombro esquerdo ainda estava bastante dolorido
quando o tocava ou movia, e o mesmo acontecia
aos lugares escoriados nos pulsos e tornozelos, ao
galo na nuca, ao rosto em geral Abandonei a
catalogao das minhas dores. No iria morrer de
nenhuma delas. Alm disso, o que importava?
O sol me secou enquanto eu tremia. Sacudi a
roupa dentro da gua e estendi-a em uns arbustos.
Enquanto o sol a secava, enrolei-me no manto de
Dardo, bebi conhaque e mexi a sopa. Tive de
acrescentar mais gua, e pareceu levar anos at
que os feijes e as lentilhas secas amolecessem.
Sentei-me junto fogueira, acrescentando-lhe
ocasionalmente mais galhos ou bosta seca.
Passado algum tempo, abri de novo os olhos e
tentei decidir se estava bbado, espancado ou
incrivelmente cansado. Decidi que isso valia tanto
a pena como catalogar as minhas dores. Comi a
sopa tal como estava, ainda com os feijes um
pouco duros. Bebi com ela mais conhaque. No
restava muito. Foi difcil me convencer a faz-lo,
mas limpei a panela e aqueci mais gua. Limpei o
pior dos meus cortes, tratei-os com o unguento,
enfaixei os que podiam ser enfaixados. Um
tornozelo tinha um aspecto ruim; eu no podia me
dar ao luxo de deix-lo infectar. Ergui os olhos e
vi que a luz do dia estava diminuindo. O dia
parecia ter passado depressa. Com a energia que
me restava, apaguei a fogueira, fiz uma trouxa com
os meus bens e me afastei do escoadouro.
Precisava dormir e no queria correr o risco de
ser descoberto por outros viajantes. Encontrei uma
pequena depresso que era ligeiramente abrigada
do vento por um arbusto qualquer com cheiro de
alcatro. Estendi o cobertor, cobri-me com o
manto de Dardo e me afundei no sono.
Sei que durante algum tempo dormi sem sonhos.
Depois tive um daqueles sonhos confusos em que
algum chama o meu nome, mas no consigo
descobrir quem. Um vento soprava e o tempo
estava chuvoso. Detestei o som do vento soprando,
to solitrio. Ento a porta abriu-se e Bronco
apareceu soleira. Estava bbado. Senti-me ao
mesmo tempo irritado e aliviado. J esperava o
seu regresso desde o dia anterior, e agora que ele
estava ali, estava bbado. Como se atrevia?
Fui percorrido por um arrepio, um quase
despertar. E compreendi que aqueles eram os
pensamentos de Moli, era com Moli que sonhava
atravs do Talento. No devia faz-lo, eu sabia
que no devia faz-lo, mas naquele estado onrico
sem limites eu no tinha a fora de vontade para
resistir. Moli levantou-se cuidadosamente. A
nossa filha dormia nos seus braos. Tive um
vislumbre de um pequeno rosto, rosado e
rechonchudo, no o rosto enrugado e vermelho do
recm-nascido que eu vira antes. Como era
possvel que j tivesse mudado tanto? Em silncio,
Moli levou-a para a cama e a colocou suavemente
nela. Virou um canto da manta para manter a beb
quente. Sem se virar, disse numa voz baixa e tensa:
Estava preocupada. Voc disse que voltaria
ontem.
Eu sei. Desculpe. Devia ter voltado, mas
A voz de Bronco estava rouca. No havia
nimo nela.
Mas ficou na vila e se embebedou
concluiu Moli com frieza.
Eu sim. Embebedei-me. Bronco fechou
a porta e entrou na sala. Foi at a lareira para
aquecer nela as mos vermelhas. O seu manto
pingava, e o cabelo tambm, como se no se
tivesse incomodado a puxar o capuz para cima
enquanto caminhava para casa. Largou um saco
perto da porta. Despiu o manto ensopado e sentou-
se rigidamente na cadeira junto da lareira.
Inclinou-se para frente para esfregar o joelho ruim.
No venha aqui quando estiver bbado
disse Moli, seca.
No virei. No estou bbado. Eu sei que
voc se sente assim. Ontem eu estava bbado.
Hoje bebi um pouco, mais cedo, mas no estou
bbado. Agora no. Agora estou s cansado.
Muito cansado. Inclinou-se para frente e botou
a cabea nas mos.
Nem consegue sentar-se direito. Eu podia
ouvir a ira crescendo na voz de Moli. Nem
sabe quando est bbado.
Bronco ergueu cansado os olhos para ela.
Talvez voc tenha razo admitiu,
chocando-me. Suspirou. Vou embora disse
ele. Levantou-se, estremecendo quando colocou o
peso na perna, e Moli sentiu uma pontada de culpa.
Ele ainda estava com frio, e o barraco onde
dormia noite era mido e cheio de correntes de
ar. Mas ele causara isso a si mesmo. Sabia como
ela se sentia a respeito de bbados. Que um
homem bebesse uma bebida ou duas, tudo bem, ela
mesma bebia um copo de vez em quando, mas
entrar em casa cambaleando daquela maneira e
tentar lhe dizer
Posso ver a beb por um momento?
perguntou Bronco em voz baixa. Parara porta. Vi
algo nos seus olhos, algo que Moli no reconheceu
por no conhec-lo bem o suficiente, e isso me
cortou o corao. Ele estava sofrendo.
Ela est bem ali, na cama. Acabei de faz-la
adormecer disse Moli, brusca.
Posso segur-la s por um minuto?
No. Voc est bbado e frio. Se tocar nela,
ela vai acordar. Sabe disso. Por que quer fazer
isso?
Algo no rosto de Bronco se enrugou. A sua voz
soou rouca quando ele disse:
Porque o Fitz est morto, e ela tudo o que
me resta dele ou do seu pai. E s vezes
Levantou uma mo endurecida pelo vento e
esfregou o rosto. s vezes parece que tudo
culpa minha. A sua voz soou muito baixa ao
dizer aquelas palavras. Nunca devia ter
deixado que o tirassem de mim. Quando ele era
garoto. Quando quiseram lev-lo para a torre, se
eu o tivesse colocado num cavalo atrs de mim e
ido at Cavalaria, talvez os dois ainda estivessem
vivos. Pensei nisso. Quase o fiz. Ele no queria me
deixar, sabe? E eu o obriguei. Quase o levei a
Cavalaria. Mas no o fiz. Deixei que ficassem com
ele, e eles o usaram.
Senti o tremor que percorreu de sbito Moli.
Lgrimas arderam de sbito nos seus olhos. Ela
defendeu-se com ira.
Maldito seja, ele j morreu h meses. No
tente me convencer com lgrimas de bbado.
Eu sei disse Bronco. Eu sei. Ele est
morto. Subitamente, respirou fundo e
endireitou-se, daquela velha maneira familiar. Vi-
o dobrar as suas dores e fraquezas e escond-las
bem no fundo de si mesmo. Desejei estender uma
mo calmante e coloc-la no seu ombro. Mas isso
era realmente eu, e no Moli. Ele voltou-se para a
porta, e depois fez uma pausa. Oh. Tenho uma
coisa. Remexeu dentro da camisa. Isto era
dele. Eu tirei-o do seu corpo, depois que ele
morreu. Voc devia guard-lo para ela, para que
tenha alguma coisa do pai. Ele recebeu isso do Rei
Sagaz.
O corao pulou no meu peito quando Bronco
estendeu a mo. Ali, na sua palma, estava o meu
alfinete, com o rubi aninhado na prata. Moli
limitou-se a olh-lo. Tinha os lbios apertados
numa linha horizontal. Ira, ou um controle firme
sobre aquilo que sentia. Um controle to duro que
nem mesmo ela sabia de que se escondia. Quando
Moli no se moveu na sua direo, Bronco
colocou cautelosamente o alfinete na mesa.
Tudo fez sentido para mim de repente. Ele fora
at a cabana do pastor, para tentar me encontrar de
novo, para me dizer que eu tinha uma filha. Mas o
que encontrara? Um corpo em decomposio,
provavelmente j pouco mais do que ossos, usando
a minha camisa com o alfinete ainda bem preso
lapela. O rapaz Forjado tinha cabelo escuro e tinha
mais ou menos a minha altura e idade.
Bronco acreditava que eu estava morto. Real e
verdadeiramente morto. E estava de luto por mim.
Bronco. Bronco, por favor, eu no estou morto.
Bronco, Bronco!
Agitei-me e me irritei ao redor dele, atingindo-
lhe com cada pedao do meu sentido de Talento,
mas, como sempre, no fui capaz de contact-lo.
Acordei de repente, tremendo e agarrado a mim
mesmo, sentindo-me um fantasma. Era provvel
que ele j tivesse ido at Breu. Ambos achavam
que eu estava morto. Fui tomado por um pavor
estranho com aquele pensamento. Parecia ser o
prenncio de grande azar que todos os amigos de
uma pessoa acreditassem que esse algum estava
morto.
Esfreguei suavemente as tmporas, sentindo o
incio de uma dor de cabea de Talento. Um
momento mais tarde percebi que minhas defesas
estavam abaixadas, que eu estivera usando o
Talento com toda a fora que pudera na direo de
Bronco. Ergui as muralhas e ento me enrolei,
tremendo, no crepsculo. Vontade no tropeara
daquela vez no meu Talento, mas eu no podia me
permitir tanto descuido. Mesmo que os meus
amigos achassem que eu estava morto, os meus
inimigos sabiam que eu no estava. Eu precisava
manter aquelas muralhas erguidas, tinha de jamais
correr o risco de deixar que Vontade penetrasse na
minha cabea. Fui assolado pela nova dor de
cabea, mas eu estava cansado demais para me
levantar e ir fazer ch. Alm do mais, eu no tinha
casco-de-elfo, apenas as sementes que ainda no
testara da mulher de Vaudefeira. Preferi beber o
resto do conhaque de Dardo, e voltei a tentar
dormir. No limite da conscincia, sonhei com
lobos correndo. Eu sei que voc est vivo. Irei at
voc se precisar de mim. Basta pedir. O contato
era hesitante, mas real. Agarrei-me quele
pensamento como se fosse uma mo amiga
enquanto o sono me reclamava.
Nos dias que se seguiram, caminhei at o Lago
Azul. Caminhei atravs de um vento carregado de
areia. O cenrio era composto por pedras e
cascalho, arbustos crepitantes com folhas
coriceas, plantas suculentas de crescimento lento
e folhas grossas e, muito adiante, o grande lago
propriamente dito. A princpio, a trilha no
passava de uma cicatriz na superfcie dura da
plancie, com os cortes dos cascos e os longos
sulcos dos caminhos dos carros desaparecendo no
sempre presente vento frio. Porm, medida que
me aproximava mais do lago, a terra foi se
tornando gradualmente mais verde e mais amena.
A trilha transformou-se em algo mais semelhante a
uma estrada. Comeou a cair chuva com o vento,
uma chuva dura e penetrante que me atravessava a
roupa. Nunca me sentia completamente seco.
Tentei evitar o contato com as pessoas que
viajavam pela estrada. No havia maneira de me
esconder delas naquela regio plana, mas fiz o
possvel para parecer pouco interessante e
desagradvel. Mensageiros a galope passaram por
mim nessa trilha, alguns na direo do Lago Azul,
outros na direo de Vaudefeira. No pararam por
minha causa, mas isso pouco me consolava. Cedo
ou tarde, algum encontraria cinco Guardas Reais
insepultos e ficaria curioso com o fato. E a histria
sobre o modo como o Bastardo fora capturado
bem no meio deles seria interessante demais para
que Crice ou Esporana deixassem de cont-la.
Quanto mais me aproximava do Lago Azul, mais
gente havia na estrada, e me atrevi a ter esperana.
Misturei-me com os outros viajantes, pois nas
ricas terras de pastagem cobertas de capim havia
propriedades e at pequenos povoados. Eram
visveis a uma grande distncia, a minscula
elevao de uma casa e o fio de fumaa que se
erguia de uma chamin. A terra comeou a ter mais
umidade e a vegetao rasteira deu lugar a
arbustos e rvores. Logo eu estava passando por
pomares e depois por pastos com vacas leiteiras, e
galinhas esgravatando a terra beira da estrada.
Por fim cheguei vila que partilhava o nome com
o prprio lago.
Do outro lado do Lago Azul havia outra extenso
de terra plana, e depois o sop das montanhas. E
mais alm, o Reino da Montanha. E em algum
lugar para alm do Reino da Montanha encontrava-
se Veracidade.
Foi um pouco perturbador quando pensei no
tempo que levara para chegar at ali a p e o
comparei com a primeira vez em que viajara com
uma caravana real para pedir Kettricken como
noiva em nome de Veracidade. No litoral, o vero
terminara e o vento das tempestades de inverno
comeara a aoitar a costa. Mesmo ali, no
demoraria at que o duro frio de um inverno do
interior capturasse as plancies no abrao das
tempestades de neve invernais. Supus que nas
Montanhas a neve j tivesse comeado a cair nas
regies de maior altitude. Seria profunda antes de
eu chegar s Montanhas, e eu no sabia que
condies enfrentaria ao penetrar nas grandes
altitudes para ir procura de Veracidade nas
terras que se estendiam mais alm. No sabia
realmente se ele ainda estaria vivo; gastara muita
fora para ajudar a me libertar de Majestoso. E, no
entanto, o Venha at mim, venha at mim parecia
ecoar com as batidas do meu corao, e dei por
mim marcando passo por esse ritmo. Encontraria
Veracidade ou os seus ossos. Mas sabia que no
voltaria a pertencer verdadeiramente a mim
mesmo at que o fizesse.
A vila de Lago Azul parece maior do que por
se estender tanto. Vi poucas habitaes de mais do
que um andar. A maioria eram casas baixas e
compridas, com mais alas adicionadas
construo medida que filhos e filhas se casavam
e traziam os consortes para casa. Havia
abundncia de madeira do outro lado do Lago
Azul, de modo que as casas mais pobres eram de
tijolos de lama, enquanto as dos comerciantes e
pescadores veteranos eram de tbuas de cedro
com telhados de ripas largas. A maior parte das
casas estava pintada de branco, cinza ou azul-
claro, o que fazia com que as estruturas
parecessem ainda maiores. Muitas tinham janelas
com grossos painis de vidro espiralado. Mas eu
passei por elas e me dirigi para onde me sentia
sempre mais em casa.
A zona ribeirinha era ao mesmo tempo parecida
e diferente da de um porto de mar. No havia
mars altas e baixas contra as quais lutar, s ondas
empurradas pelas tempestades, de modo que muito
mais casas e edifcios comerciais haviam sido
construdos sobre estacas bem dentro do lago
propriamente dito. Alguns pescadores podiam
amarrar as suas embarcaes, literalmente, aos
degraus de suas casas, e outros entregavam o
pescado a uma porta dos fundos para que o
mercador de peixe o pudesse vender pela frente.
Parecia estranho cheirar gua sem sal ou iodo
carregados pelo vento; o cheiro do ar do lago
parecia esverdeado e musgoso. As gaivotas eram
diferentes, com asas de pontas pretas, mas no resto
eram to gananciosas e ladras como quaisquer
gaivotas que eu j vira. Havia tambm muito mais
guardas do que eu gostaria de ter visto.
Perambulavam pelas ruas como gatos encurralados
na libr dourada e marrom de Vara. No os olhei
nos rostos, nem lhes dei motivo para repararem em
mim.
Eu tinha um total de quinze peas de prata e doze
de cobre, a soma dos meus fundos com aquilo que
Dardo levara na bolsa. Algumas das moedas eram
de um estilo que eu no reconhecia, mas o peso
parecia certo ao peg-las. Supus que seriam
aceitas. Eram tudo o que eu tinha para me levar at
as Montanhas, e tudo o que tinha para poder levar
para casa, para Moli, de modo que eram
duplamente valiosas para mim e eu no pretendia
me separar de mais do que o necessrio.
Tampouco eu era to tolo a ponto de sequer
considerar rumar para as Montanhas sem algumas
provises e roupas mais pesadas. Portanto, eu
precisava gastar algumas moedas, mas tambm
esperava arranjar uma maneira de ganhar com
trabalho a passagem atravs do Lago Azul, e talvez
para alm dele.
Em todas as povoaes havia sempre reas mais
pobres, e lojas ou carroas onde as pessoas
negociavam os bens que outros jogavam fora.
Andei por Lago Azul durante algum tempo,
permanecendo sempre na zona ribeirinha, onde o
comrcio parecia mais animado, e acabei por
chegar a ruas onde a maior parte das lojas era de
tijolos de barro, mesmo quando havia tetos de
ripas. Ali encontrei funileiros cautelosos que
vendiam vasilhas consertadas e trapeiros com as
suas carroas de artigos bem usados e lojas onde
era possvel comprar louas avulsas e coisas do
gnero.
Sabia que dali em diante a minha mochila seria
mais pesada, mas no era possvel evit-lo. Uma
das primeiras coisas que comprei foi um cesto
resistente entranado com juncos do lago, provido
de correias para o pr no ombro. Enfiei l dentro a
trouxa. Antes de o dia chegar ao fim, eu havia
acrescentado umas calas almofadadas, um casaco
acolchoado parecido com os que o povo da
Montanha usava e um par de botas largas, que
eram como suaves meias de couro. Este ltimo
artigo tinha cordes de couro para ser bem
amarrado s barrigas das minhas pernas. Tambm
comprei umas meias grossas de l, de cores
diferentes, mas muito grossas, para usar por dentro
das botas. Noutra carroa comprei um barrete
quente de l e um cachecol. Comprei um par de
luvas sem dedos que ficaram grandes demais e que
era evidente que tinham sido feitas por uma esposa
da Montanha para servir s mos do marido.
Consegui encontrar casco-de-elfo na minscula
barraca de um herbanrio, e assim arranjei para
mim uma pequena proviso. Num mercado
prximo comprei fatias de peixe seco e defumado,
mas secas e pes achatados de uma massa muito
dura que o vendedor me assegurou que no se
estragariam, por maior que fosse a durao da
minha viagem.
Em seguida me esforcei para marcar passagem
para mim numa barcaa que fosse atravessar o
Lago Azul. Na verdade, dirigi-me praa de
emprego do porto, na esperana de trabalhar em
troca da travessia. Rapidamente descobri que
ningum estava contratando.
Olhe, camarada disse-me com altivez um
garoto de treze anos. Todo mundo sabe que as
grandes barcaas no vo para o lago nesta poca
do ano, se no houver ouro na coisa. E este ano
no h. A bruxa da Montanha fechou todo o
comrcio com as Montanhas. Nada a levar
significa que no h dinheiro que valha o risco. E
assim que as coisas so, nem mais, nem menos.
Mas mesmo se o comrcio estivesse aberto, voc
no ia encontrar grande coisa indo de um lado para
o outro no inverno. no vero que as grandes
barcaas podem atravessar deste lado para o
outro. Mesmo nessa poca os ventos podem ser
chatos, mas uma boa tripulao pode manejar uma
barcaa, vela e a remo, at l e de l para c.
Mas nesta poca do ano uma perda de tempo. As
tempestades sopram todos os cinco dias, mais ou
menos, e durante o resto do tempo os ventos s
sopram numa direo; quando no esto
carregados de gua, levam gelo e neve. uma bela
poca para vir do lado da Montanha para a vila de
Lago Azul, se no se importar em ficar molhado e
com frio e de passar o tempo todo desprendendo
gelo do cordame. Mas voc no vai encontrar
nenhuma das grandes barcaas de transporte
fazendo a travessia daqui para l at a prxima
primavera. H barcos menores que podem levar
gente, mas a passagem neles cara e s para os
que tm coragem. Se embarcar num desses,
porque voc est disposto a pagar ouro pela
passagem e a pagar com a vida se o seu capito
cometer algum erro. Voc no parece ter dinheiro
para tal coisa, homem, muito menos para pagar a
tarifa do Rei pela viagem.
Ele podia ser um garoto, mas sabia do que
falava. Quanto mais escutava, mais ouvia a mesma
coisa. A bruxa da Montanha fechara os passos e
viajantes inocentes estavam sendo atacados e
roubados por salteadores da Montanha. Para o seu
prprio bem, os viajantes e os mercadores
estavam sendo mandados de volta na fronteira. A
guerra era iminente. Isso me enregelou o corao,
e me deixou ainda mais convencido de que tinha
de alcanar Veracidade. Mas quando insistia em
que tinha que chegar s Montanhas, e depressa, era
aconselhado a arranjar um modo de obter cinco
peas de ouro para a passagem atravs do lago, e
que tivesse boa sorte da em diante. Numa ocasio,
um homem sugeriu que sabia de um
empreendimento um tanto ilegal, no qual podia
ganhar esse valor num ms, ou menos, se estivesse
interessado. Eu no estava. J tinha dificuldades
suficientes com que batalhar.
Venha at mim.
Eu sabia que de algum modo o faria.
Descobri uma estalagem muito barata, em mau
estado e cheia de correntes de ar, mas ao menos
no cheirava muito a fumo. A clientela no podia
compr-lo. Paguei por uma cama e obtive um catre
numa gua-furtada aberta acima da sala comunal.
Pelo menos calor tambm se erguia junto com a
fumaa que vinha da lareira, l embaixo.
Pendurando o manto e a roupa numa cadeira ao
lado do catre, finalmente consegui sec-los por
completo pela primeira vez nos ltimos dias.
Canes e conversas, tanto barulhentas como
calmas, foram um coro constante na minha
primeira tentativa de dormir. No havia
privacidade, e eu consegui finalmente o banho
quente por que ansiava numa sauna cinco portas
mais abaixo. Mas havia um certo prazer fatigado
em saber onde iria dormir noite, mesmo que mal.
Eu no havia planejado, mas aquilo tambm era
uma forma excelente de escutar o que corria
boca pequena em Lago Azul. Na primeira noite
que passei ali, aprendi muito mais do que desejava
sobre um certo jovem nobre que engravidara no
uma, mas duas criadas, e sobre os detalhes ntimos
de uma briga de taverna a duas ruas de distncia,
que deixara Jac Nariz-Vermelho sem a poro
homnima da sua anatomia, que lhe fora arrancada
a dentadas por Braotorto, o Escriba.
Na segunda noite que passei na estalagem, ouvi
um boato sobre doze Guardas do Rei terem sido
encontrados massacrados por salteadores a meio
dia de viagem da Nascente de Jernigo. Na noite
seguinte, algum fizera a ligao e eram contadas
histrias sobre os corpos terem sido atacados e
comidos por uma fera. Achei bastante provvel
que carniceiros tivessem encontrado os cadveres
e tivessem se alimentado deles. No entanto,
segundo o modo como a histria era contada,
tratava-se claramente de obra do Bastardo da
Manha, o qual se transformara num lobo para
escapar dos seus grilhes de ferro frio e cara
sobre o destacamento inteiro luz de uma lua
cheia, para desencadear contra eles a sua
violncia selvagem. Pelo modo como o contador
de histrias me descrevia, tive pouco receio de ser
descoberto no meio daqueles homens. Os meus
olhos no luziam, vermelhos, luz da lareira, e as
minhas presas no se projetavam para fora da
minha boca. Sabia que seriam transmitidas outras
descries de mim, mais prosaicas. O tratamento
que Majestoso me dera me deixara com um
conjunto singular de cicatrizes que eram difceis
de esconder. Comecei a compreender a
dificuldade que Breu tivera em trabalhar com um
rosto marcado pela varola.
A barba que antes eu achara uma irritao agora
me parecia natural. Crescia em cachos crespos que
me faziam lembrar a de Veracidade e era
igualmente teimosa. Os hematomas e cortes que
Dardo deixara no rosto j quase haviam
desaparecido, embora o ombro ainda me doesse
sem descanso no tempo frio. O frio glido e mido
do ar invernal me enrubescia as bochechas por
cima da barba e, felizmente, tornava a ponta da
minha cicatriz menos evidente. O corte no brao j
sarara havia muito tempo, mas eu pouco podia
fazer quanto ao nariz quebrado. Ele tambm j no
me surpreendia quando o via num espelho. De
certa forma, pensava, eu era agora tanto criao de
Majestoso quanto de Breu. Breu s me ensinara
como matar; Majestoso me transformara num
verdadeiro assassino.
Na minha terceira noite na estalagem, ouvi a
fofoca que me deixou gelado.
Era o rei em pessoa, ora se era, e o chefe dos
feiticeiros do Talento. Mantos de boa l com tanta
pele no colarinho e no capuz que quase no se
conseguia ver as caras deles. Montados em
cavalos pretos com selas de ouro, finas como sei
l o qu, e com uma vintena de tipos de marrom e
dourado atrs deles. Os guardas limparam a praa
toda para que eles passassem. Ento eu disse ao
sujeito que estava ao meu lado: Ei, que isto tudo,
voc sabe? E ele me disse que o Rei Majestoso
veio at a vila para ouvir com os seus prprios
ouvidos o que a bruxa da Montanha tem andado
fazendo conosco, e para pr fim nisso. E mais. Diz
ele que o rei veio em pessoa procura do Homem
Pustulento e do Bastardo Manhoso, que bem
sabido que eles andam de mos dadas com a bruxa
da Montanha.
Ouvi aquilo da boca de um mendigo de olhos
ramelosos que ganhara dinheiro suficiente para
pagar uma caneca de cidra quente e para beb-la
junto lareira da estalagem. Aquela fofoca fez
com que ganhasse outra rodada, enquanto o seu
benfeitor lhe contava mais uma vez mais a histria
do Bastardo da Manha e de como ele massacrara
uma dzia de Guardas Reais e bebera o sangue
deles para alimentar a sua magia. Dei por mim
num torvelinho de emoes. Desapontamento por
ser evidente que os meus venenos nada tinham
feito a Majestoso. Medo de poder ser descoberto
por ele. E uma esperana selvagem de ter mais
uma chance contra ele antes de encontrar um modo
de chegar at Veracidade.
Quase no precisei fazer perguntas. A manh
seguinte foi encontrar Lago Azul numa grande
animao com a chegada do rei. Tinham-se
passado muitos anos desde que um rei coroado
visitara Lago Azul, e todos os mercadores e
nobres menores pretendiam aproveitar a visita.
Majestoso requisitara a maior e melhor das
estalagens da vila, ordenando despreocupadamente
que todos os quartos fossem esvaziados para si e
para a sua comitiva. Ouvi rumores que diziam que
o estalajadeiro estava ao mesmo tempo lisonjeado
e aterrorizado por ter sido escolhido, pois embora
o fato fosse certamente solidificar a reputao da
sua estalagem, no houvera meno de uma
recompensa, mas apenas uma longa lista de
mantimentos e safras de vinho que o Rei
Majestoso esperava que estivessem disponveis.
Vesti os meus novos trajes de inverno, enfiei o
barrete de l at as orelhas e sa. A estalagem foi
encontrada com facilidade. Nenhuma outra
estalagem em Lago Azul tinha trs andares de
altura, e nenhuma podia gabar-se de tantas
varandas e janelas. As ruas junto da estalagem
estavam apinhadas de nobres que tentavam
apresentar-se ao Rei Majestoso, muitos deles com
filhas atraentes a tiracolo. Acotovelavam-se com
menestris e malabaristas que ofereciam
entretenimento, mercadores que traziam amostras
dos seus melhores artigos como presentes, bem
como aqueles que faziam entregas de carne,
cerveja, vinho, po, queijo e todos os outros
alimentos que se pudesse imaginar. No tentei
entrar, mas fiquei principalmente escuta dos que
saam. O bar estava repleto de guardas, e eram um
grupo grosseiro, falando mal da cerveja e das
prostitutas locais como se tivessem melhor em
Vaudefeira. E o Rei Majestoso no ia conceder
audincias naquele dia, no, sentia-se mal depois
da viagem apressada e encomendara as melhores
reservas de rebentalegre para acalmar as suas
queixas. Sim, haveria um jantar naquela noite, uma
coisa muito suntuosa, meu caro, para o qual s as
mais finas pessoas seriam convidadas. E voc o
viu, com aquele olho que parecia o de um peixe
morto, honestamente me deu arrepios, se eu fosse o
rei teria um homem melhor para me aconselhar,
com Talento ou sem ele. Era isto o que era dito
por uma variedade de pessoas que saam pela
porta da frente ou pela de trs, e eu guardei tudo na
memria, tendo tambm tomado nota de quais
janelas da estalagem estavam protegidas com
cortinas contra a breve luz do dia. Descansando,
? Eu podia ajud-lo a fazer isso.
Mas a encontrei o meu dilema. Algumas
semanas antes, eu teria simplesmente entrado
sorrateiro na estalagem e teria feito o melhor que
pudesse para cravar uma faca no peito de
Majestoso, e que se danassem as consequncias.
Porm, eu agora no s tinha a ordem de Talento
de Veracidade me corroendo, mas tambm a noo
de que, se sobrevivesse, havia uma mulher e uma
filha minha espera. J no estava disposto a
trocar a minha vida pela de Majestoso. Daquela
vez, iria precisar de um plano.
O ocaso foi me encontrar no telhado da
estalagem. Era um telhado de ripas de cedro, muito
inclinado, e que ficara muito escorregadio pela
geada. A estalagem tinha vrias alas, e eu me
encontrava na interseo dos ngremes telhados de
duas delas, espera. Sentia-me grato a Majestoso
por ter escolhido a maior e melhor das estalagens.
Estava bem acima do nvel dos edifcios ao redor.
Ningum me veria com um olhar casual; teriam de
estar minha procura. Mesmo assim, esperei at
escurecer por completo antes de ir at o beiral,
meio escorregando, meio em descida controlada.
Fiquei ali durante algum tempo, acalmando o
corao. No havia nada a que me pudesse
agarrar. O telhado tinha um beiral generoso, a fim
de proteger a varanda que se abria por baixo. Eu
teria de deslizar, de me agarrar com as mos ao
beiral quando passasse por ele e me balanar para
dentro, caso quisesse aterrissar na varanda. A
alternativa era uma queda de trs andares para a
rua. Rezei para no aterrissar no parapeito da
varanda, coberto de espiges decorativos.
Planejara bem. Sabia quais das divises eram o
quarto de Majestoso e a sua sala de estar, sabia a
que horas ele estaria no jantar com os seus
convidados. Estudara as fechaduras das portas e
janelas em vrios edifcios de Lago Azul. Nada
encontrara que no me fosse familiar. Arranjara
algumas pequenas ferramentas, e uma extenso de
corda leve providenciaria a minha fuga. Entraria e
sairia sem deixar rastro. Os venenos esperavam na
bolsa que eu trazia ao cinto.
Duas sovelas obtidas na loja de um sapateiro
algumas horas antes me forneceram apoios para as
mos enquanto eu descia pelo telhado. Enfiava-as
no nas ripas duras, mas nos espaos entre elas,
para se prenderem nas ripas que estavam por
baixo. Fiquei mais nervoso nos momentos em que
parte do meu corpo pendeu do telhado, sem
conseguir ver o que estava acontecendo l
embaixo. No momento crucial, balancei algumas
vezes as pernas para ganhar impulso e me preparei
para soltar.
Armadilh-armadilha.
Imobilizei-me no local onde me encontrava, com
as pernas enroladas abaixo do telhado, enquanto
me agarrava s duas sovelas enfiadas entre as
ripas. Nem sequer respirei. No era Olhos-de-
Noite.
No. Furo Pequeno. Armadilh-armadilha. V
embora. Armadilh-armadilha.
uma armadilha?
Armadilh-armadilha para Fitz-Lobo. Sangue
Antigo sabe, disse Furo Grande, v com, v
com, avise Fitz-Lobo. Rolfe-Urso conhecia o seu
cheiro. Armadilh-armadilha. V embora.
Quase gritei quando um pequeno corpo quente
bateu subitamente na minha perna e correu pela
minha roupa acima. Um momento depois, um furo
empurrou a sua cara bigoduda contra a minha.
Armadilh-armadilha, insistiu. V embora, v
embora.
Puxar de novo o meu corpo para cima do telhado
foi mais difcil do que baix-lo. Passei por um
mau momento quando o cinto se prendeu na borda
das ripas. Aps algumas contores, consegui me
libertar e, lentamente, voltei a deslizar para o
telhado. Fiquei imvel por um momento,
recuperando o flego, enquanto o furo se sentava
entre os meus ombros, explicando repetidas vezes.
Armadilh-armadilha. Ele possua uma mente
minscula, ferozmente predatria, e detectei nele
uma grande ira. No teria escolhido para mim um
animal de vnculo como aquele, mas algum
escolhera. Algum que j no existia.
Furo grande ferido at morrer. Diz a Furo
Pequeno, v com, v com. Leve o cheiro. Avise
Fitz-Lobo. Armadilh-armadilha.
Havia tanto que eu queria perguntar. De algum
modo, Rolfe Negro intercedera por mim junto ao
Sangue Antigo. Desde que eu abandonara
Vaudefeira, temera que todos os Manhosos que
encontrasse estivessem contra mim. Mas algum
enviara aquela pequena criatura para me avisar. E
ela mantivera-se fiel ao seu propsito, apesar de
seu parceiro de vnculo estar morto. Tentei
descobrir mais com ele, mas no havia muito mais
naquela mente pequena. Uma grande dor e
indignao perante o falecimento do seu parceiro
de vnculo. Uma determinao de me avisar.
Nunca ficaria sabendo quem fora Furo Grande,
nem como ele descobrira aquele plano ou como o
seu animal de vnculo conseguira esconder-se
entre as coisas de Vontade. Pois foi esse que ele
me mostrou espera, em silncio, no quarto
abaixo. Um-Olho. O armadilh-armadilha.
Vem comigo?, propus. Apesar de feroz, ele
parecia pequeno e solitrio. Tocar a sua mente
com a minha era como ver o que restava de um
animal dividido em dois. A dor afastava tudo da
sua mente, menos a determinao. Agora havia
apenas lugar para mais uma coisa.
No. V com, v com. Esconda-se nas coisas de
Um-Olho. Avise Fitz-Lobo. V com, v com.
Descubra Odiador de Sangue Antigo. Escond-
esconde. Espera-espera. Odiador de Sangue
Antigo dorme, Furo Pequeno mata.
Era um animal pequeno, com uma mente
pequena. Mas uma imagem de Majestoso, o
Odiador de Sangue Antigo, estava fixa nessa mente
simples. Perguntei a mim mesmo quanto tempo
Furo Grande levara para implantar aquela ideia
com firmeza suficiente para que ele a transportasse
durante semanas. Ento compreendi. Um ltimo
desejo. A pequena criatura fora quase
enlouquecida pela morte do seu humano de
vnculo. Aquela fora a ltima mensagem que Furo
Grande lhe dirigira. Parecia uma incumbncia
intil para um animal to pequeno.
Venha comigo, sugeri eu com suavidade. Como
pode Furo Pequeno matar Odiador de Sangue
Antigo?
Num piscar de olhos, ele saltou sobre a minha
garganta. Cheguei de fato a sentir os dentes
aguados prendendo-se veia da garganta. Corta-
corta quando ele dorme. Beber sangue dele como
coelho. J no h Furo Grande, j no h
buracos, j no h coelhos. S Odiador de
Sangue Antigo. Corta-corta. Largou a minha
jugular e enfiou-se subitamente no interior da
minha camisa. Quente. Senti as suas pequenas
patas providas de garras geladas na minha pele.
Eu tinha uma fatia de carne seca no bolso.
Deitei-me no telhado e a dei ao meu colega
assassino. Eu o teria persuadido a vir comigo, se
pudesse, mas senti que ele era capaz de mudar de
ideias tanto quanto eu de conseguir me recusar a ir
at Veracidade. Era tudo o que lhe restava de
Furo Grande. Dor, e um sonho de vingana.
Esconde-esconde. V com, v com o Um-Olho.
Cheire Odiador de Sangue Antigo. Espere at ele
dormir. Depois, corta-corta. Beba o sangue dele
como o de um coelho.
Sim-sim. Minha caada. Armadilh-armadilha
Fitz-Lobo. V embora, v embora.
Segui o seu conselho. Algum dera muito para
me enviar aquele mensageiro. De qualquer forma,
eu no desejava confrontar Vontade. Por mais que
quisesse mat-lo, sabia agora que no era seu igual
no Talento. E tambm no queria estragar a
oportunidade de Furo Pequeno. H uma espcie
de honra entre assassinos. Reconfortava-me o
corao saber que no era o nico inimigo de
Majestoso. Silencioso como a escurido, percorri
o telhado da estalagem e depois desci para a rua
perto do estbulo.
Regressei minha estalagem arruinada, paguei o
meu cobre e ocupei um lugar numa mesa feita de
tbuas ao lado de outros dois homens. Comemos o
prato de batatas e cebolas que a estalagem servia.
Quando uma mo caiu sobre o meu ombro, no me
sobressaltei, antes estremeci. J sabia que havia
algum atrs de mim; no esperara que ele me
tocasse. A minha mo dirigiu-se furtivamente
faca que trazia ao cinto enquanto me virava no
banco para encar-lo. Os meus companheiros de
mesa continuaram a comer, um deles ruidosamente.
Ningum naquela estalagem mostrava interesse por
outra vida que no a sua.
Ergui os olhos para o rosto sorridente de
Esporana e meu estmago se revirou.
Tom! cumprimentou-me ela com
jovialidade, e ocupou um lugar mesa ao meu
lado. O homem que estava ali cedeu o lugar sem
palavra, raspando a tigela enquanto a arrastava ao
longo da tbua manchada da mesa. Passado um
momento, tirei a mo da faca e voltei a coloc-la
na borda da mesa. Esporana fez um pequeno aceno
ao ver esse gesto. Usava um manto preto de l boa
e grossa, ornamentado com bordados amarelos.
Pequenas argolas de prata agora pendiam de suas
orelhas. Estava muito mais contente consigo
mesmo do que seria do meu agrado. Eu nada disse,
apenas a olhei. Ela indicou a minha tigela com um
pequeno gesto.
Por favor, continue comendo. Eu no queria
perturbar a sua refeio. Voc parece precisar
dela. Raes curtas, nos ltimos tempos?
Um pouco respondi em voz baixa. Quando
ela nada mais disse, acabei a sopa, limpando a
tigela de madeira com os ltimos pedaos do po
de m qualidade que viera com ela. A essa altura
Esporana j atrara a ateno de uma criada, que
nos trouxe duas canecas de cerveja. Bebeu um
longo trago da sua, fez uma careta e voltou a
coloc-la na mesa. Beberiquei a minha e no a
achei pior ao paladar do que a gua do lago, que
era a alternativa.
Ento? disse por fim depois de ela
continuar sem falar. O que voc quer?
Ela deu um sorriso afvel, brincando com a asa
da caneca.
Voc sabe o que eu quero. Quero uma
cano, uma cano que viva mais do que eu.
Olhou em redor, demorando-se especialmente no
homem que continuava chupando ruidosamente a
sopa. Tem um quarto? perguntou-me.
Sacudi a cabea.
Tenho um catre no sto. E no tenho canes
para voc, Esporana.
Ela encolheu os ombros, um movimento
minsculo.
No tenho canes para voc no momento,
mas tenho notcias que iriam lhe interessar. E
tenho um quarto. Numa estalagem a alguma
distncia daqui. Venha comigo at l, e depois
falaremos. Havia um belo pedao de porco
assando no fogo da lareira quando sa. Quando
chegarmos l, provvel que j esteja pronta.
Todos os meus sentidos se avivaram com a
meno de carne. Consegui cheir-la, quase
consegui sentir seu gosto.
No tenho dinheiro para isso disse-lhe
sem rodeios.
Eu tenho ofereceu ela com suavidade.
V buscar as suas coisas. Tambm dividirei o
quarto.
E se eu recusar? perguntei em voz baixa.
De novo ela fez aquele minsculo movimento de
encolher ombros.
A opo sua. Devolveu-me o olhar sem
expresso. No consegui decidir se havia ameaa
no seu pequeno sorriso ou no.
Passado algum tempo, levantei-me e fui at o
sto. Quando regressei, trazia as minhas coisas.
Esporana me esperava no p da escada.
Belo manto observou, com ironia. No
o vi em algum lugar antes?
Talvez tenha visto respondi em voz baixa.
Gostaria de ver a faca que o acompanha?
Esporana apenas deu um sorriso mais largo e fez
um pequeno gesto de defesa com as mos. Virou-
se e afastou-se, sem olhar para trs para ver se eu
a seguia. Mais uma vez havia aquela curiosa
mistura de confiana em mim e desafio. Segui atrs
dela.
L fora era o incio da noite. O vento penetrante
que soprava pelas ruas estava cheio da umidade
do lago. Embora no estivesse chovendo, senti a
umidade condensando na minha roupa e na pele.
Meu ombro comeou imediatamente a doer. No
havia archotes de rua que ainda ardessem; a pouca
luz que havia escapava de folhas das janelas e
soleiras das portas. Mas Esporana caminhava com
segurana e confiana, e eu a segui, com os olhos
ajustando-se rapidamente escurido.
Ela me levou para longe da zona ribeirinha, para
longe dos bairros mais pobres da vila, at as ruas
comerciais e as estalagens que serviam os
negociantes da vila. No ficava muito longe da
estalagem onde o Rei Majestoso no estava
realmente alojado. Abriu a porta de uma estalagem
decorada com a cabea de um javali dotado de
presas, e me fez um aceno com a cabea para que a
precedesse. Foi o que fiz, mas com cautela,
olhando bem em volta antes de entrar. Mesmo
depois de no ver guardas, continuei sem saber se
estaria enfiando a cabea numa cilada ou no.
A estalagem era bem iluminada e quente, com
vidro e folhas nas janelas. As mesas eram limpas,
o junco no cho quase fresco, e o cheiro de porco
assando enchia o ar. Um criado passou por ns
com uma bandeja repleta de canecas cheias at a
borda, olhou para mim, ergueu uma sobrancelha
para Esporana, num bvio questionamento do
gosto dela para homens. Esporana respondeu com
uma larga mesura, e nisso tirou o manto mido.
Imitei-a mais lentamente, e ento a segui quando
ela me levou para uma mesa prxima da lareira.
Sentou-se, e depois olhou para mim. Estava
confiante de me ter na mo.
Vamos comer antes de conversarmos, sim?
convidou-me em tom cativante, e indicou a
cadeira sua frente. Ocupei o lugar que me era
oferecido, mas virei a cadeira de modo a ficar
com as costas viradas para a parede e poder ver
toda a sala. Um pequeno sorriso torceu-se na boca
de Esporana e os seus olhos escuros danaram.
No tem nada a temer de mim, garanto. Pelo
contrrio, sou eu que me arrisco ao procur-lo.
Olhou em volta, ento gritou a um rapaz
chamado Carvalho que queramos duas travessas
de porco assado, um pouco de po fresco e
manteiga, e vinho de mas para acompanhar. Ele
apressou-se a ir buscar o pedido, e colocou-o na
mesa com um encanto e graa que anunciava o seu
interesse por Esporana. Tagarelou um pouco com
ela; prestou muito pouca ateno em mim, exceto
para fazer uma cara de desagrado quando deu a
volta no meu cesto molhado. Outro fregus o
chamou, e Esporana atacou o prato com apetite.
Aps um momento, provei o meu. Eu no comia
carne fresca h vrios dias, e a gordura quente e
crepitante do porco quase me deixou tonto com o
sabor. O po era aromtico, a manteiga doce. No
saboreava comida to boa desde Torre do Cervo.
Durante um segundo, o meu apetite foi tudo em que
pensei. Mas ento o sabor do vinho de ma me
trouxe memria Rurisk e o modo como ele
morrera de vinho envenenado. Voltei a pr o
clice na mesa com cautela e me lembrei da
prudncia.
Bom. Voc disse que me procurou?
Esporana assentiu enquanto mastigava. Engoliu,
limpou a boca e acrescentou:
E voc no foi fcil de encontrar, pois no
andei perguntando por a se havia notcias suas.
Apenas procurei com os meus olhinhos. Espero
que estime isso.
Dei um meio aceno.
E agora que me encontrou? O que quer de
mim? Um suborno pelo seu silncio? Se for isso,
ter de se contentar com alguns cobres.
No. Bebeu um gole de vinho e inclinou a
cabea para olhar para mim. como lhe disse.
Quero uma cano. Parece-me que j perdi uma,
por no segui-lo quando foi afastado da nossa
companhia. Embora espere que me favorea com
os detalhes exatos sobre como sobreviveu.
Inclinou-se para frente, baixando o poder da sua
voz treinada para um murmrio confidencial.
No h maneira de lhe dizer a excitao que foi
para mim quando ouvi que haviam encontrado
aqueles seis guardas mortos. Eu pensei que havia
me enganado ao seu respeito, entende? Realmente
acreditei que eles tinham levado o pobre Tom, o
pastor, como bode expiatrio. O filho de
Cavalaria, eu disse a mim mesma, nunca seria
levado de forma to tranquila. Ento o deixei ir e
no o segui. Mas quando ouvi as novidades, um
arrepio me percorreu a espinha e fiquei com todos
os pelos do corpo eriados. Era ele, repreendi-
me. O Bastardo estava l e eu o vi ser levado sem
mexer um dedo. No pode imaginar como me
amaldioei por duvidar dos meus instintos. Mas
ento decidi: bem, se sobrevivesse, voc ainda
viria at aqui. Voc est a caminho das Montanhas,
no ?
Apenas olhei para ela, um olhar firme que teria
feito qualquer cavalario de Torre do Cervo
correr e tirado o sorriso do rosto de um guarda de
Cervo. Mas Esporana era uma menestrel. Cantores
de canes nunca se deixam desconcertar
facilmente. Ela prosseguiu com a refeio,
esperando minha resposta.
Por que eu iria para as Montanhas?
perguntei-lhe em voz baixa.
Ela engoliu, bebeu um gole de vinho e depois
sorriu.
No sei por qu. Para correr em auxlio de
Kettricken, talvez? Qualquer que seja o motivo,
suspeito que haver nele uma cano, no acha?
Um ano antes, o encanto e sorriso dela poderiam
ter me conquistado. Um ano antes, eu teria
desejado acreditar naquela mulher cativante, a
teria desejado como amiga. Agora, ela apenas me
cansava. Era um estorvo, uma ligao a evitar.
No respondi sua pergunta. Limitei-me a dizer:
uma poca insensata para sequer pensar em
ir para as Montanhas. Os ventos esto contra a
viagem; no haver travessias de barcaas at a
primavera; e o Rei Majestoso proibiu viagens e
comrcio entre os Seis Ducados e as Montanhas.
Ningum vai para as Montanhas.
Ela concordou com a cabea.
Ouvi dizer que os guardas do rei
pressionaram duas barcaas e as suas tripulaes
h uma semana, e as foraram a tentar a viagem.
Os corpos de pelo menos uma das barcaas vieram
dar costa. Homens e cavalos. Ningum sabe se
os outros soldados conseguiram atravessar ou no.
Mas sorriu com satisfao e aproximou-se mais
de mim enquanto abaixava a voz eu conheo um
grupo que mesmo assim vai para as Montanhas.
Quem? perguntei.
Ela me obrigou a esperar um momento.
Contrabandistas. Proferiu a palavra em
voz muito baixa.
Contrabandistas? perguntei eu com
cautela. Fazia sentido. Quanto mais apertadas eram
as restries ao comrcio, mais lucrativo ele se
tornava para quem conseguia faz-lo. Sempre
haveria homens dispostos a arriscar a vida pelo
lucro.
Sim. Mas no foi realmente por isso que o
procurei. Fitz, voc deve ter ouvido dizer que o
Rei Majestoso veio a Lago Azul. Mas tudo
mentira, uma armadilha para atrair voc. No deve
ir l.
J sabia disse-lhe calmamente.
Como? perguntou. Falou em voz baixa,
mas consegui perceber como estava aborrecida
por eu saber daquilo antes de ela me contar.
Talvez um passarinho tenha me contado
respondi com altivez. Sabe como , ns, os
Manhosos, falamos as lnguas de todos os animais.
verdade? perguntou ela, crdula como
uma criana.
Ergui uma sobrancelha a ela.
Seria mais interessante para mim saber como
foi que voc soube.
Eles nos procuraram para nos interrogar.
Todos os que conseguiram encontrar da caravana
de Guida.
E?
E contamos cada histria! De acordo com
Crice, vrias ovelhas foram perdidas ao longo do
caminho, levadas noite sem qualquer som. E
quando Tassina contou sobre a noite em que voc
tentou estupr-la, disse que foi s ento que
reparou que as suas unhas eram pretas como as
garras de um lobo, e que os seus olhos brilhavam
na escurido.
Eu nunca tentei estupr-la! exclamei, e
depois me calei quando o criado se virou para ns
com uma expresso inquisitiva.
Esporana recostou-se na cadeira.
Mas isso deu uma histria to boa que quase
me trouxe lgrimas aos olhos. Ela mostrou ao
feiticeiro de Talento a marca na bochecha onde
voc a arranhou com as garras, e disse que nunca
teria escapado de voc se no fosse o acnito que
por acaso crescia por ali.
Parece-me que voc devia andar atrs de
Tassina se est procura de uma cano
murmurei com repugnncia.
Oh, mas a histria que eu contei foi ainda
melhor comeou, e ento sacudiu a cabea ao
criado que se aproximava. Afastou o prato vazio e
olhou ao redor sala. Estava comeando a encher-
se com os clientes da noite. Tenho um quarto l
em cima convidou-me. Podemos conversar
l com mais privacidade.
Aquela segunda refeio finalmente me enchera
a barriga. E eu estava quente. Devia ter me sentido
cauteloso, mas a comida e o calor estavam me
deixando sonolento. Tentei concentrar os
pensamentos. Quem quer que fossem esses
contrabandistas, eles ofereciam a esperana de
chegar s Montanhas. A nica esperana que
obtivera nos ltimos tempos. Fiz um pequeno
aceno. Ela levantou-se e eu a segui com o meu
cesto.
O quarto era limpo e estava quente. Havia um
colcho de penas na cama, com cobertores limpos
de l por cima. Um jarro de gua de cermica e
uma bacia para lavagens repousavam numa
mesinha ao lado da cama. Esporana acendeu
vrias velas no quarto, empurrando as sombras
para os cantos. Depois me fez um gesto para
entrar. Enquanto trancava a porta atrs de ns,
sentei-me na cadeira. Era estranho como um quarto
simples e limpo podia agora me parecer tamanho
luxo. Esporana sentou-se na cama.
Pensei que voc havia dito que no tinha
mais dinheiro do que eu comentei.
E no tinha, naquele momento. Mas, desde
que cheguei a Lago Azul, tenho sido muito
requisitada. Ainda mais desde que os corpos dos
guardas foram encontrados.
Por qu? perguntei-lhe com frieza.
Sou uma menestrel retorquiu. E estava
presente quando o Bastardo da Manha foi
capturado. Acha que no consigo contar essa
histria bem o suficiente para valer uma moeda ou
duas?
Ah. Entendo. Ponderei o que me contara, e
ento perguntei: Ento, devo os meus brilhantes
olhos vermelhos e presas s suas histrias?
Ela bufou de desdm.
Claro que no. Foi um baladeiro de rua
qualquer que inventou isso. Depois parou, e
quase sorriu para si mesma. Mas admito alguns
adornos. Segundo o modo como eu conto a
histria, o Bastardo de Cavalaria era robustamente
musculoso e lutou como um cervo, um jovem no
melhor dos seus anos, apesar do fato de o seu
brao direito ainda ostentar as violentas marcas da
espada do Rei Majestoso. E por cima do olho
esquerdo tem uma madeixa branca to larga como
a mo de um homem. Foram precisos trs guardas
s para prend-lo, e ele no parou de lutar, mesmo
quando o lder dos guardas lhe bateu com tanta
fora que fez saltar da sua boca os dentes da
frente. Fez uma pausa e aguardou. Quando eu
nada disse, pigarreou. Podia me agradecer por
tornar um pouco menos provvel que as pessoas o
reconheam na rua.
Obrigado. Suponho. Como Crice e Tassina
reagiram a isso?
Concordaram o tempo todo com a cabea. A
minha histria s tornou as deles melhores,
entende?
Entendo. Mas voc ainda no me disse como
ficou sabendo que era uma armadilha.
Eles nos ofereceram dinheiro por voc.
Perguntaram se algum de ns tinha tido notcias de
voc. Crice quis saber quanto. Tnhamos sido
levados sala de estar do prprio rei para aquele
interrogatrio. Para fazer com que nos sentssemos
mais importantes, suponho. Eles nos disseram que
o rei se sentia doente aps a sua longa viagem, e
que estava descansando no quarto ao lado.
Enquanto estivemos l, um criado saiu, trazendo o
manto do rei e as suas botas para serem limpos de
lama. Esporana me deu um pequeno sorriso.
As botas eram gigantescas.
E voc conhece o tamanho dos ps do Rei
Majestoso? Eu sabia que ela tinha razo.
Majestoso tinha mos e ps pequenos, e tinha mais
vaidade deles do que muitas damas da corte.
Nunca fui corte. Mas alguns de melhor
nascimento no nosso castelo haviam estado em
Torre do Cervo em algumas ocasies. Falavam
muito do jovem prncipe bonito, das suas boas
maneiras e cabelo escuro e encaracolado. E dos
seus ps pequenos e de como ele danava to bem
com eles. Sacudiu a cabea. Compreendi
que no era o Rei Majestoso que estava naquele
quarto. O resto foi fcil de deduzir. Eles tinham
vindo a Lago Azul depressa demais aps a morte
dos guardas. Vinham sua procura.
Talvez concedi. Estava comeando a ter
boa opinio da inteligncia de Esporana. Fale-
me mais dos contrabandistas. Como foi que ouviu
falar deles?
Ela sacudiu a cabea, sorrindo.
Se voc fizer um acordo com eles, ser
atravs de mim. E eu farei parte desse acordo.
Como eles entram nas Montanhas?
perguntei.
Ela me olhou.
Se fosse um contrabandista, voc contaria s
outras pessoas o caminho que usaria? Ento
encolheu os ombros. Ouvi fofocas que diziam
que os contrabandistas tm um modo de atravessar
o rio. Um modo antigo. Eu sei que antigamente
havia uma rota comercial que subia o rio e depois
o atravessava. Deixou de ser apreciada quando o
rio se tornou to imprevisvel. Desde os grandes
incndios, anos atrs, o rio tem cheias todos os
anos. E quando enche, muda de curso, de modo
que os mercadores regulares passaram a depender
mais de barcos do que de uma ponte que pode
estar intacta ou no. Fez uma pausa para roer
brevemente uma unha. Acho que houve uma
poca em que havia uma ponte a alguma distncia
rio acima, mas depois de o rio lev-la pelo quarto
ano consecutivo, ningum teve nimo para
reconstru-la. Houve outra pessoa que me contou
que no vero h uma jangada movida por cordas, e
que costumavam atravessar sobre o gelo, no
inverno. Nos anos em que o rio congela. Talvez
tenham esperana de que o rio congele este ano. O
que eu penso que quando o comrcio
interrompido em um lugar, comea em outro.
Haver um modo de fazer a travessia.
Franzi o cenho.
No. Precisa haver outro modo de chegar s
Montanhas.
Esporana pareceu levemente insultada por eu
duvidar dela.
Pergunte por a, se preferir. Pode gostar de
esperar com a Guarda Real que anda se
pavoneando pela zona ribeirinha. Mas a maior
parte das pessoas vai lhe dizer para esperar pela
primavera. Alguns lhe diro que, se quiser chegar
l no inverno, no parta daqui. Poderia ir para sul,
contornando todo o Lago Azul. A partir da,
imagino que haja vrias rotas comerciais at as
Montanhas, mesmo no inverno.
Quando eu conseguisse fazer isso, j seria
primavera. Conseguiria chegar s Montanhas com
igual velocidade esperando aqui.
Isso foi outra coisa que me disseram
concordou Esporana, muito satisfeita consigo
mesma.
Inclinei-me para frente e coloquei a cabea nas
mos. Venha at mim.
No h maneiras prximas e fceis de
atravessar aquele maldito lago?
No. Se houvesse uma maneira fcil de
atravessar, no haveria guardas ainda infestando o
porto inteiro.
Parecia no haver alternativa para mim.
Onde encontrarei esses contrabandistas?
Esporana deu um largo sorriso.
Amanh eu o levo a eles prometeu.
Levantou-se e espreguiou-se. Mas esta noite
tenho de ir at o Alfinete Dourado. Ainda no
cantei l as minhas canes, mas ontem fui
convidada. Ouvi dizer que os clientes deles podem
ser bastante generosos com menestris de viagem.
Abaixou-se para apanhar a harpa bem enrolada.
Levantei-me enquanto ela pegava o seu manto
ainda mido.
Tambm preciso ir andando eu disse de
um modo educado.
Por que no dorme aqui? sugeriu ela.
H menos chances de ser reconhecido e muito
menos bichos neste quarto. Um sorriso lhe
torceu o canto da boca quando olhou para o meu
rosto hesitante. Se eu quisesse vend-lo
Guarda Real, eu j poderia ter feito isso. Sozinho
como est, FitzCavalaria, melhor decidir confiar
em algum.
Quando ela me chamou pelo meu nome, foi como
se algo se torcesse dentro de mim. E no entanto
Por qu? perguntei-lhe em voz baixa. Por
que me ajuda? E no me diga que a esperana de
uma cano que pode nunca existir.
Isso mostra como voc compreende mal os
menestris disse ela. No h atrao mais
poderosa para ns do que essa. Mas suponho que
haja mais do que isso. No. Sei que h.
Levantou o olhar para mim, olhando-me
diretamente nos olhos. Eu tinha um irmo mais
novo. Gaio. Era um guarda, estacionado na Torre
da Ilha da Armao. Viu voc lutar no dia em que
os Salteadores atacaram. Deu uma gargalhada
breve. Na verdade, voc passou por cima dele.
Voc enfiou o machado no homem que tinha
acabado de derrub-lo. E penetrou mais
profundamente na batalha sem sequer lanar um
olhar a ele. Ela me olhou pelo canto do olho.
por isso que canto O Ataque da Torre da
Armao de uma forma um pouco diferente da de
todos os outros menestris. Ele me contou a
batalha, e eu canto voc como ele o viu. Um heri.
Voc salvou a vida dele.
Afastou abruptamente os olhos de mim.
Pelo menos por algum tempo. Morreu mais
tarde, combatendo por Cervo. Porm, durante
algum tempo, ele viveu por causa do seu machado.
Parou de falar e colocou o manto sobre os
ombros. Fique aqui disse-me. Descanse.
S voltarei muito tarde. Pode ficar com a cama at
que eu volte, se quiser.
Saiu depressa porta afora sem esperar resposta.
Fiquei algum tempo imvel, fitando a porta
fechada. FitzCavalaria. Heri. Apenas palavras.
Mas era como se ela tivesse trespassado algo
dentro de mim com uma lana, como se tivesse me
esvaziado de um veneno qualquer, e agora eu
pudesse sarar. Foi a mais estranha das sensaes.
Durma um pouco, aconselhei a mim mesmo. Sentia
realmente que podia faz-lo.
CAPTULO 14

Contrabandistas

H poucos espritos to livres quanto os dos


menestris itinerantes, pelo menos no interior
dos Seis Ducados. Se um menestrel tiver talento
suficiente, pode esperar que quase todas as
regras de conduta sejam suspensas para ele. Eles
tm permisso para fazer as perguntas mais
indiscretas como parte normal do seu ofcio.
Quase sem exceo, um menestrel pode confiar
na hospitalidade em qualquer lugar, da mesa do
prprio rei ao casebre mais modesto. Raramente
se casam na juventude, embora no seja incomum
que tenham filhos. Esses filhos esto livres do
estigma dos outros bastardos, e frequente que
eles mesmos sejam educados em castelos para se
tornarem tambm menestris. Espera-se dos
menestris que se associem tanto a foras-da-lei e
rebeldes como a nobres e mercadores. Eles
transportam mensagens, trazem notcias e
guardam nas suas longas memrias muitos
acordos e promessas. Pelo menos assim em
tempos de paz e abundncia.

Esporana chegou to tarde que Bronco teria


encarado a hora como o incio da manh. Eu
acordei no instante em que ela tocou na fechadura.
Rolei rapidamente para fora da cama quando ela
entrou, ento me enrolei bem no manto e me deitei
no cho.
FitzCavalaria cumprimentou-me ela numa
voz pouco ntida, e senti o cheiro a vinho no seu
hlito. Despiu o manto mido, olhou-me de soslaio
e estendeu-o por cima de mim como mais uma
coberta. Fechei os olhos.
Ela deixou cair o resto da roupa no cho atrs de
mim com uma bela indiferena pela minha
presena. Ouvi a cama cedendo quando se atirou
em cima dela.
Hum. Ainda est quente murmurou,
aconchegando-se nos lenis e almofadas.
Sinto-me culpada por pegar o seu lugar quente.
A sua culpa no podia ser muito intensa, visto
que bastaram alguns momentos para a sua
respirao se tornar profunda e regular. Segui o
seu exemplo.
Acordei muito cedo e sa da estalagem.
Esporana no se moveu quando deixei o seu
quarto. Caminhei at encontrar uma casa de
banhos. Os banhos estavam quase desertos quela
hora; tive de esperar que a primeira gua do dia
fosse aquecida. Quando ficou pronta, despi-me e
me enfiei com cautela na banheira. Aliviei a dor
do ombro na profunda gua quente. Ento me
recostei na banheira, no silncio e no pensamento.
No me agradava abordar os contrabandistas.
No me agradava me ligar a Esporana. No via
nenhuma alternativa. No conseguia imaginar um
modo de suborn-los para me levarem. Tinha
muito pouco dinheiro. O brinco de Bronco?
Recusei-me a pensar em tal coisa. Durante muito
tempo permaneci submerso na gua at o queixo e
me recusei a pensar em tal coisa. Venha at mim.
Encontraria outra maneira, jurei a mim mesmo.
Encontraria. Pensei no que sentira em Vaudefeira
quando Veracidade interviera para me salvar. A
exploso de Talento deixara Veracidade sem
reservas. No conhecia a sua situao, sabia
apenas que ele no hesitara em gastar tudo o que
tinha por mim. E se tivesse de escolher entre me
separar do brinco de Bronco e ir at Veracidade,
escolheria Veracidade. No porque ele me
convocara atravs do Talento, nem mesmo pelo
juramento que fizera ao seu pai. Por Veracidade.
Levantei-me e deixei que a gua escorresse.
Sequei-me, passei alguns minutos tentando aparar
a barba, desisti, resignando-me ao trabalho mal
feito, e regressei Cabea do Javali. Tive um
momento ruim a caminho da estalagem. Um carro
passou por mim enquanto eu caminhava, o carro de
Vale, o titereiro, nem mais, nem menos. Continuei
caminhando a passo rpido e o jovem empregado
que conduzia o carro no deu sinal de ter reparado
em mim. Apesar disso, senti-me feliz quando
cheguei estalagem e entrei.
Encontrei uma mesa de canto perto da lareira e
pedi ao criado um bule de ch e um po matinal.
Este revelou-se uma confeco de Vara, cheia de
sementes, nozes e pedaos de fruta. Comi
lentamente, esperando que Esporana descesse.
Estava ao mesmo tempo impaciente por ir ao
encontro dos tais contrabandistas e relutante em
me colocar em poder de Esporana. Enquanto as
horas da manh se arrastavam, apanhei por duas
vezes o criado me olhando estranhamente. Da
terceira vez que o vi olhando, fitei-o tambm at
que ele corou de sbito e afastou os olhos.
Adivinhei ento a razo do seu interesse. Eu
passara a noite no quarto de Esporana, e ele
certamente se perguntava sobre o que a teria
possudo para partilhar aposentos com tal
vagabundo. Mas mesmo assim foi o suficiente para
me deixar desconfortvel. De qualquer forma, j
se passara metade da manh. Levantei-me e subi as
escadas at a porta de Esporana.
Bati com pouca fora e esperei. Mas foi preciso
bater uma segunda vez, mais fortemente, para ouvir
uma resposta sonolenta. Passado um momento, ela
veio at a porta, abriu uma fresta e ento bocejou
para mim e fez sinal para que eu entrasse. Ela
vestia apenas as perneiras e uma tnica grande
demais que acabara de colocar. Tinha o cabelo
cacheado todo desgrenhado em volta do rosto.
Sentou-se pesadamente na borda da cama,
piscando enquanto eu fechava e trancava a porta
atrs de mim.
Oh, voc tomou um banho cumprimentou-
me, e bocejou de novo.
Nota-se tanto assim? perguntei-lhe,
irritado.
Ela fez um aceno afvel.
Acordei uma vez e pensei que voc tinha
simplesmente me deixado aqui. Mas no me
preocupei. Sabia que no conseguiria encontr-los
sem mim. Esfregou os olhos, e ento me olhou
de uma forma mais crtica. O que aconteceu
sua barba?
Tentei apar-la. Sem muito sucesso.
Ela fez um aceno de concordncia.
Mas a ideia foi boa disse num tom
reconfortante. Poderia fazer com que parecesse
menos selvagem. E pode evitar que Crice, Tassina
ou qualquer outro dos membros da nossa caravana
o reconheam. Venha c. Eu vou ajudar. Sente-se
naquela cadeira. Oh, e abra a janela, deixe alguma
luz entrar aqui.
Fiz o que ela sugeriu, sem muito entusiasmo. Ela
levantou-se da cama, espreguiou-se e esfregou os
olhos. Ficou alguns momentos salpicando o rosto
de gua, ento arrumou o cabelo, forando-o a
ficar no lugar e o prendeu com um par de pentes
pequenos. Passou um cinto pela tnica para lhe dar
forma, ento calou as botas e as amarrou. Num
tempo notavelmente curto, estava apresentvel.
Ento veio at mim e, segurando o meu queixo,
virou minha cabea para a luz, de um lado para o
outro, sem sombra de timidez. No consegui ser
to descontrado como ela.
Voc sempre cora assim to facilmente?
perguntou-me com uma gargalhada. raro ver
um homem de Cervo capaz de ficar to vermelho.
Suponho que a sua me deve ter tido uma pele
clara.
No consegui imaginar resposta para aquilo, de
modo que fiquei em silncio enquanto ela
vasculhava a sua trouxa e tirava de l uma pequena
tesoura. Trabalhou rpida e habilmente.
Eu costumava cortar o cabelo do meu irmo
disse-me enquanto trabalhava. E o cabelo e
a barba do meu pai, depois que a minha me
morreu. O seu queixo tem uma bela forma debaixo
de todo este mato. Que tem feito com ele? Apenas
o deixa crescer como bem entende?
Suponho que sim murmurei, nervoso. A
tesoura reluzia logo debaixo do meu nariz. Ela fez
uma pausa e escovou vivamente meu rosto. Uma
quantidade substancial de pelos encaracolados
caiu no cho. No quero que a cicatriz fique
visvel adverti.
No ficar disse ela calmamente. Mas
voc ter lbios e uma boca em vez de uma fenda
no bigode. Levante o queixo. Isso. Tem alguma
lmina de barbear?
S a minha faca admiti, nervoso.
Vai ter de servir disse ela num tom
reconfortante. Caminhou at porta, abriu-a de
repente e usou o poderio dos pulmes de um
menestrel para berrar ao criado que lhe trouxesse
gua quente. E ch. E po e umas fatias de bacon.
Quando voltou a entrar no quarto, inclinou a
cabea e me olhou criticamente. Vamos cortar o
seu cabelo tambm props. Solte-o.
Movi-me com lentido para satisfaz-la.
Colocou-se atrs de mim, arrancou o leno da
minha cabea e libertou meu cabelo da tira de
couro. Solto, o cabelo caa at os ombros.
Esporana pegou o pente e penteou meu cabelo com
fora para a frente.
Vejamos murmurou, enquanto eu cerrava
os dentes com aquele pentear rude.
O que pretende? perguntei, mas madeixas
j estavam caindo no cho. O que quer que ela
tivesse decidido estava se transformando
rapidamente em realidade. Puxou o cabelo para
frente, sobre o meu rosto, e ento o cortou logo
acima das sobrancelhas, passou algumas vezes o
pente no que restou, ento o cortou na altura do
maxilar. Agora disse-me , voc parece um
pouco mais com um mercador de Vara. Antes, era
evidente que eras cervs. As cores ainda so de
Cervo, mas agora voc tem cabelo e roupas de
Vara. Desde que no fale, as pessoas no sabero
ao certo de onde voc . Pensou por um
momento, e em seguida voltou a trabalhar no
cabelo acima da minha testa. Passado um
momento, vasculhou o quarto e me entregou um
espelho. O branco agora ser muito menos
percetvel.
Ela tinha razo. Aparara a maior parte do cabelo
branco e puxara o cabelo negro para a frente, para
cair sobre ele. A barba agora me envolvia o rosto.
Fiz, de m vontade, um aceno de aprovao.
Ouviu-se uma batida na porta.
Deixe isso a fora! gritou Esporana
atravs da porta. Esperou uns momentos, e ento
foi buscar o seu desjejum e a gua quente. Lavou-
se e sugeriu que eu afiasse bem a minha faca
enquanto ela comia. Foi o que fiz, perguntando a
mim mesmo, enquanto amolava a lmina, se me
sentia lisonjeado ou irritado com a remodelao
que ela me fizera. Ela estava comeando a me
lembrar Pacincia. Ainda mastigava quando veio
me tirar a faca da mo. Engoliu, e falou.
Vou dar um pouco mais de forma sua barba.
Mas ter que mant-la, no vou barbe-lo todos os
dias avisou. Agora molhe bem o rosto.
Fiquei substancialmente mais nervoso enquanto
ela brandiu a faca, especialmente enquanto
trabalhou perto da minha garganta. Mas quando
terminou e eu peguei o espelho, fiquei espantado
com as mudanas que operara. Definira-me a
barba, confinando-a s bochechas e ao maxilar. O
cabelo cortado rente que pendia acima da minha
testa fazia com que os meus olhos parecessem
mais profundos. A cicatriz no rosto continuava
visvel, mas seguia a linha do bigode e notava-se
menos. Passei a mo levemente sobre a barba,
satisfeito com a quantidade que fora cortada.
uma mudana e tanto disse-lhe.
uma grande melhoria informou-me.
Duvido que Crice ou Vale o reconheam agora.
Vamos s nos livrar disto. Juntou os pelos
cortados e abriu a janela para atir-los ao vento.
Depois a fechou e limpou as mos.
Obrigado eu disse, acanhado.
De nada disse ela. Passou os olhos pelo
quarto e soltou um pequeno suspiro. Vou ter
saudades desta cama disse. Comeou a guardar
as suas coisas com uma rpida eficincia.
Apanhou-me olhando para ela e sorriu. Quando
se um menestrel itinerante, aprende-se a fazer
isso depressa e bem. Atirou as ltimas coisas
para o embrulho e o fechou com ns. Colocou-o no
ombro. Espere por mim no p das escadas dos
fundos ordenou. Enquanto eu vou pagar a
conta.
Fiz o que me pediu, mas esperei muito mais
tempo no frio e no vento do que imaginara. Ela
acabou aparecendo, de rosto rosado e pronta para
o dia. Espreguiou-se como uma gatinha.
Por aqui indicou-me.
Esperara ter de encurtar o passo para que ela me
acompanhasse, mas descobri que o fazia com
facilidade. Olhou-me de relance enquanto nos
afastvamos do setor mercantil da vila e nos
dirigamos aos arredores da zona norte.
Voc parece diferente hoje informou-me.
E no s o corte de cabelo. Voc se decidiu a
respeito de alguma coisa.
verdade concordei.
timo disse ela calorosamente, enquanto
me dava o brao com companheirismo. Espero
que seja confiar em mim.
Olhei-a de soslaio e nada disse. Ela riu, mas no
largou o meu brao.
Os passadios de madeira do setor mercantil de
Lago Azul desapareceram depressa e caminhamos
pela rua, passando por casas que se aninhavam
umas contra as outras, como que em busca de
abrigo contra o frio. O vento era um constante
empurro glido contra ns, enquanto
caminhvamos por ruas de paraleleppedos que
acabaram por dar lugar a estradas de terra batida
que passavam por pequenas fazendas. A estrada
estava sulcada e lamacenta devido chuva que
cara nos ltimos dias. Naquele, pelo menos, o
tempo estava descoberto, mesmo que o vento forte
soprasse frio.
Ainda temos de andar muito? perguntei-
lhe por fim.
No tenho certeza. Estou simplesmente
seguindo instrues. Preste ateno a trs pedras
empilhadas beira da estrada.
O que voc realmente sabe sobre esses
contrabandistas? perguntei.
Ela encolheu os ombros com uma indiferena um
pouco excessiva.
Sei que vo at as Montanhas quando
ningum mais o faz. E sei que levam com eles os
peregrinos.
Peregrinos?
Ou do que quer que prefira cham-los. Vo
venerar o santurio de Eda no Reino da Montanha.
Haviam comprado passagem numa barcaa, ainda
no vero. Mas ento a Guarda Real requisitou
todas as barcaas para uso prprio e fechou as
fronteiras com o Reino da Montanha. Os
peregrinos esto presos em Lago Azul desde ento,
tentando arranjar maneira de prosseguir viagem.
Chegamos s trs pedras empilhadas e a uma
trilha coberta de ervas daninhas que atravessava
um pasto pedregoso e cheio de espinheiros,
rodeado por uma cerca de pedras e estacas.
Alguns cavalos pastavam desconsoladamente.
Notei com interesse que eram animais da
Montanha, pequenos e com uma pelagem irregular
naquela poca do ano. Uma pequena casa erguia-
se bem longe da estrada. Fora construda com
pedras do rio e argamassa, com um telhado de
colmo. O pequeno anexo que se erguia atrs
combinava com ela. Um fino fio de fumaa
escapava da sua chamin, antes de ser rapidamente
dispersado pelo vento. Um homem estava sentado
na cerca, talhando alguma coisa. Ergueu os olhos
para nos examinar e ficou claro que decidiu que
no constituamos ameaa. No tentou nos
interceptar quando passamos por ele e nos
dirigimos porta da casa. Junto da porta, pombos
gordos arrulhavam e andavam de um lado para o
outro em um pombal. Esporana bateu na porta, mas
a resposta veio de um homem que apareceu vindo
de trs da casa. Tinha um spero cabelo castanho e
olhos azuis, e estava vestido como um fazendeiro.
Trazia um balde cheio at a borda de leite morno.
Quem vocs procuram? cumprimentou-
nos.
Nico respondeu Esporana.
No conheo nenhum Nico disse o
homem. Abriu a porta e entrou na casa. Esporana o
seguiu com ousadia, e eu fui atrs dela com menos
confiana. Trazia a espada junto ao flanco. Pus a
mo mais perto do cabo, mas no nele. No queria
provocar um desafio.
Dentro da cabana, um fogo de madeira trazida
pela corrente ardia na lareira. A maior parte da
fumaa subia pela chamin, mas no toda. Um
rapaz e um cabrito malhado dividiam uma pilha de
palha que estava num canto. O rapaz nos olhou
com uns olhos azuis muito abertos, mas no disse
nada. Havia presuntos e flancos fumados
pendurados nas vigas. O homem levou o leite para
uma mesa onde uma mulher cortava grossas razes
amarelas. Colocou o leite ao lado do trabalho dela
e virou-se calmamente para ns.
Acho que vieram casa errada. Tentem um
pouco mais adiante nesta estrada. No na prxima
casa. Essa onde mora a Rica. Mas mais adiante,
talvez.
Muito obrigado. Tentaremos. Esporana
deu um largo sorriso a todos e dirigiu-se para a
porta. Voc vem, Tom? perguntou-me. Fiz
um aceno agradvel s pessoas e a segui. Samos
da casa e seguimos pela alameda. Depois de nos
afastarmos bastante, perguntei-lhe:
E agora?
No tenho bem certeza. De acordo com o que
ouvi, acho que vamos casa de Rica e
perguntamos por Nico.
De acordo com o que ouviu?
Voc no acha que eu conheo pessoalmente
contrabandistas, acha? Eu estava nos banhos
pblicos. Duas mulheres conversavam enquanto
tomavam banho. Peregrinas a caminho das
Montanhas. Uma estava dizendo que podia ser a
ltima chance que tinha de tomar banho durante
algum tempo, e a outra dizia que no se importava,
desde que finalmente conseguissem sair de Lago
Azul. Depois uma disse a outra onde deviam
encontrar-se com os contrabandistas.
Eu nada disse. Suponho que a minha expresso
falasse por si s, pois Esporana me perguntou, num
tom indignado:
Tem alguma ideia melhor? Isso pode acabar
dando certo ou no.
Pode acabar com as nossas gargantas
cortadas.
Ento volte para a vila e veja se consegue
fazer melhor.
Acho que se fizermos isso, o homem que est
nos seguindo decidiria que certamente ramos
espies e faria mais do que apenas nos seguir.
Vamos at Rica, e ver no que d. No, no olhe
para trs.
Regressamos estrada e caminhamos at a
fazenda seguinte. O vento tornara-se mais forte e
senti nele o sabor da neve. Se no encontrssemos
Nico em breve, a caminhada de volta vila seria
longa e fria.
Algum se importara antigamente com a fazenda
seguinte. Outrora houve uma fileira de btulas
brancas em ambos os lados do caminho da entrada.
Agora, eram umas rvores quebradias que mais
pareciam espantalhos, com os ramos h muito
desfolhados e a casca soltando-se ao vento.
Extensos pastos e campos de cultivo haviam sido
cercados, mas os animais que havia neles j
tinham desaparecido h muito tempo. Os campos
cobertos de ervas daninhas estavam sem
plantaes, e os pastos sedentos cresciam sem
restries.
O que aconteceu a esta terra? perguntei
enquanto passvamos por aquela desolao.
Anos de seca. Depois, um vero de fogo.
Para alm destas fazendas, as margens do rio
costumam ser cobertas de carvalhais pouco densos
e de prados. Essas fazendas por aqui eram
produtoras de leite. Mas l, os pequenos
agricultores levavam as cabras para pastagens
livres, e os seus haragares fossavam debaixo dos
carvalhos, em busca de bolotas. Ouvi dizer que era
tambm um lugar magnfico para caar. Ento veio
o fogo. Dizem que ardeu durante mais de um ms,
de tal maneira que um homem tinha dificuldade de
respirar e o rio correu negro de cinzas. No foram
s as florestas e prados selvagens que foram
incendiados pelas fagulhas voadoras; campos de
feno e casas, tambm. Depois dos anos de seca, o
rio no passava de um fio de si mesmo. No havia
lugar para onde fugir do fogo. E aps o fogo,
vieram mais dias quentes e secos. Contudo, os
ventos que sopravam agora traziam tanto poeira
como cinzas. Riachos menores foram sufocados
por elas. O vento soprou at que as chuvas
finalmente chegaram naquele outono. Toda a gua
por que as pessoas tinham rezado durante anos
caiu numa estao. Inundaes inteiras. E quando a
gua escoou, bem, voc est vendo o que restou.
Solo esgotado e pedregoso.
Lembro-me de ouvir falar de algo assim.
Fora uma conversa h muito tempo. Algum
Breu? me dissera que as pessoas
responsabilizavam o rei por tudo, mesmo por
secas e incndios. Isso pouco significara para mim
naquela poca, mas para aqueles fazendeiros devia
ter parecido o fim do mundo.
A casa tambm dava indcios de uma mo
amorosa e de tempos melhores. Tinha dois
andares, era feita de madeira, mas a sua pintura h
muito desbotara. Folhas estavam bem fechadas nas
janelas do andar superior. Havia duas chamins
dos lados da casa, mas uma estava perdendo suas
pedras. Saa fumaa da outra. Uma garota estava
parada diante da porta da casa. Um gordo pombo
cinzento empoleirava-se na sua mo e ela o
afagava levemente.
Bom dia desejou-nos numa voz
agradavelmente grave quando nos aproximamos. A
sua tnica era de couro e tinha por baixo uma
camisa solta de l creme. Usava tambm calas de
couro, e botas. Dei-lhe cerca de doze anos, e
compreendi, atravs dos olhos e do cabelo, que
tinha um parentesco qualquer com as pessoas da
outra casa.
Bom dia respondeu Esporana. Estamos
procurando Nico.
A garota sacudiu a cabea.
Vieram casa errada. Aqui no h nenhum
Nico. Esta a casa de Rica. Talvez devessem
procurar mais adiante, ao longo da estrada.
Sorriu-nos, sem nada no rosto a no ser
perplexidade.
Esporana me lanou um olhar inseguro. Agarrei
o seu brao.
Recebemos indicaes erradas. Venha,
vamos voltar vila e tentar de novo. Naquela
altura, eu esperava apenas nos livrar daquela
situao.
Mas objetou ela, confusa.
Tive uma inspirao sbita.
Cale-se. Fomos avisados de que esta no
gente que deva ser subestimada. O pssaro deve
ter se perdido ou sido apanhado por um falco.
Hoje no h mais nada que possa ser feito aqui.
Um pssaro? guinchou de repente a garota.
s um pombo. Tenha um bom dia.
Coloquei o brao em volta de Esporana e a virei
com firmeza. No queramos incomod-la.
Um pombo de quem?
Deixei que os meus olhos se encontrassem com
os dela por um momento.
De um amigo de Nico. No se preocupe com
isso. Venha, Esporana.
Espere! disse de sbito a garota. O
meu irmo est l dentro. Ele talvez conhea esse
Nico.
No gostaria de incomod-lo assegurei-
lhe.
No incmodo nenhum. A ave que tinha
na mo estendeu as asas quando a garota fez um
gesto com ela ao indicar a porta. Saiam do frio
e entrem por um momento.
O dia est frio reconheci. Virei-me para
confrontar o entalhador quando ele emergiu da
fileira de btulas. Talvez todos ns devssemos
entrar.
Talvez. A garota sorriu com o embarao
do meu perseguidor.
Do lado de dentro havia um trio vazio. A boa
madeira do assoalho estava gasta e estava h
algum tempo sem ser oleada. Espaos mais claros
nas paredes mostravam os pontos onde quadros e
tapearias estiveram pendurados. Uma escada
despojada levava ao andar superior. No havia luz
alm da que entrava pelas grossas janelas. Dentro
da casa no havia vento, mas a temperatura no
estava muito mais alta.
Esperem aqui disse-nos a garota, e entrou
num aposento nossa direita, fechando firmemente
a porta atrs de si. Esporana ficou um pouco mais
perto de mim do que eu gostaria. O entalhador nos
observou sem expresso.
Esporana respirou fundo.
Shhh eu disse antes de ela ter tempo para
falar. Em vez de faz-lo, agarrou meu brao.
Arranjei a desculpa de me abaixar para ajustar a
bota. Quando me endireitei, virei-me e a coloquei
do meu lado esquerdo. Ela agarrou-se
imediatamente a esse brao. Pareceu passar-se
muito tempo at que a porta se abriu. Um homem
alto, de cabelo castanho e olhos azuis, saiu.
Vestia-se como a garota, em couro. Uma faca
muito comprida pendia do seu cinto. A garota veio
logo atrs, com um ar petulante. Ento ele a
repreendera. O homem franziu o cenho para ns e
perguntou:
Do que se trata isso?
Foi erro meu, senhor respondi de
imediato. Procurvamos um homem chamado
Nico e evidente que viemos casa errada.
Desculpe-nos, senhor.
Ele falou com relutncia.
Tenho um amigo que tem um primo chamado
Nico. Talvez eu pudesse lhe transmitir uma
mensagem sua.
Apertei a mo de Esporana para que ela
permanecesse em silncio.
No, no, ns no queremos incomod-lo. A
no ser que queira nos dizer onde podemos
encontrar o prprio Nico.
Eu podia levar uma mensagem sugeriu ele
de novo. Mas no era realmente uma sugesto.
Cocei a barba e ponderei.
Tenho um amigo cujo primo queria enviar
uma coisa para a outra margem do rio. Ele ouviu
dizer que Nico talvez conhecesse algum que
poderia lev-la. Prometeu ao primo do meu amigo
que mandaria um pssaro, para que Nico soubesse
que estvamos a caminho. Por um preo, claro. E
foi s isso, um assunto insignificante.
Ele fez um aceno lento.
Ouvi falar de gente desta regio que faz
coisas assim. trabalho perigoso, sim, e trabalho
traioeiro tambm. Pagariam com as cabeas se a
Guarda Real os apanhasse.
Isso certo concordei prontamente.
Mas duvido de que o primo do meu amigo fizesse
negcios com o tipo de gente que se deixa apanhar.
Era por isso que ele queria falar com Nico.
E quem os enviou at aqui procura desse
Nico?
Esqueci-me disse com frieza. Receio
que eu seja muito bom em esquecer nomes.
Voc ? perguntou o homem em tom de
ponderao. Olhou para a irm e deu um pequeno
aceno. Posso oferecer a vocs um pouco de
conhaque?
Isso seria muito agradvel disse-lhe.
Consegui libertar o brao da mo de Esporana
quando entramos no aposento. Quando a porta se
fechou atrs de ns, Esporana suspirou diante do
calor acolhedor. Aquela sala era to opulenta
quanto a outra era nua. Tapetes revestiam o cho,
tapearias cobriam as paredes. Havia uma pesada
mesa de carvalho com um castial de velas
brancas para ilumin-la. Um fogo ardia na enorme
lareira diante de um semicrculo de cadeiras
confortveis. Foi para essa rea que o nosso
anfitrio nos levou. Pegou uma garrafa de vidro
com conhaque ao passar pela mesa.
V buscar copos ordenou categoricamente
garota. Ela pareceu no se ofender com isso.
Calculei que ele tinha cerca de vinte e cinco anos.
Os irmos mais velhos no so os mais gentis dos
heris. Ela entregou o pombo ao entalhador e
gesticulou a ambos que sassem antes de ir buscar
os copos.
Bem. Voc estava dizendo? sugeriu ele
quando nos sentamos em frente da lareira.
Na verdade, quem dizia era voc retorqui.
Ele ficou em silncio quando a irm voltou com
os copos. Entregou-nos enquanto os enchia e
erguemos os quatro os copos juntos.
Ao Rei Majestoso sugeriu ele.
Ao meu rei eu disse num tom afvel, e
bebi. Era conhaque bom, um conhaque de que
Bronco teria gostado.
O Rei Majestoso gostaria de ver gente como
o nosso amigo Nico pendurada em uma corda
sugeriu o homem.
Ou na sua arena, o que talvez seja mais
provvel sugeri. Soltei um pequeno suspiro.
um dilema. Por um lado, o Rei Majestoso
ameaa a vida dele. Por outro, sem o embargo do
Rei Majestoso contra a Montanha, como Nico
ganharia a vida? Ouvi dizer que tudo o que cresce
na propriedade da famlia ultimamente so pedras.
O homem assentiu em comiserao.
Pobre Nico. Um homem tem de fazer
qualquer coisa para sobreviver.
Isso bem verdade concordei. E s
vezes, para sobreviver, um homem precisa
atravessar um rio, mesmo se o seu rei o probe.
Precisa? perguntou o homem. Ora, isso
um pouco diferente de enviar alguma coisa para
a outra margem.
No assim to diferente disse-lhe. Se
Nico for bom no seu ofcio, uma coisa no dever
ser um fardo muito maior do que a outra. E eu ouvi
dizer que Nico bom.
O melhor disse a garota com um orgulho
discreto.
O irmo lhe lanou um olhar de aviso.
O que ofereceria esse homem pela travessia?
perguntou ele em voz baixa.
Ele faria a oferta ao prprio Nico
respondi, igualmente baixo.
Durante alguns segundos, o homem olhou para o
fogo. Ento levantou-se e estendeu uma mo.
Nico Grampo. A minha irm, Rica.
Tom eu disse.
Esporana acrescentou a menestrel.
Nico voltou a erguer o copo.
A um acordo em negociao sugeriu, e
bebemos de novo. Sentou-se e perguntou de
imediato: Devemos falamos claramente?
Assenti.
Com a maior clareza possvel. Ouvimos dizer
que voc iria levar um grupo de peregrinos para o
outro lado do rio e da fronteira, para o Reino da
Montanha. Procuramos o mesmo servio.
Ao mesmo preo interveio suavemente
Esporana.
Nico, no gosto disto interrompeu Rica de
repente. A lngua de algum tem dado nos
dentes com liberdade demais. Eu sabia que nunca
devamos ter concordado com o primeiro grupo.
Como que sabemos
Cale-se. Sou eu quem corro os riscos,
portanto sou eu que digo o que quero ou no fazer.
Voc no tem de fazer nada a no ser ficar aqui
esperando e cuidar das coisas enquanto eu no
voltar. E veja se no d com a sua lngua nos
dentes. Voltou a virar-se para mim. Ser
uma moeda de ouro por cada um, adiantado. E
outra do outro lado do rio. Uma terceira na
fronteira da Montanha.
Ah! O preo era chocante. Ns no
podemos Esporana enterrou subitamente as
unhas no meu pulso. Calei a boca.
Voc nunca me convencer de que os
peregrinos pagaram tanto disse Esporana em
voz baixa.
Eles tm os seus prprios cavalos e carroas.
E provises tambm. Inclinou a cabea para
ns. Mas vocs parecem ser gente que viaja
com o que tem s costas e nada mais.
E somos muito mais fceis de esconder do
que uma carroa e uma parelha de animais. Vamos
lhe dar uma pea de ouro agora e outra na fronteira
da Montanha. Por ns dois ofereceu Esporana.
Ele recostou-se na cadeira e refletiu por um
momento. Ento nos serviu mais conhaque.
No o bastante disse em tom de lstima.
Mas suspeito de que seja tudo o que vocs tm.
Era mais do que eu tinha. Esperei que talvez
fosse o que Esporana tivesse.
Leve-nos para a outra margem do rio por
esse valor sugeri. A partir de l, ficamos
por nossa conta.
Esporana me deu um chute por baixo da mesa.
Parecia estar falando s comigo quando disse:
Ele vai levar os outros at a fronteira da
Montanha e atravess-la. Podemos muito bem nos
beneficiar da companhia at l. Voltou a virar-
se para Nico. O ouro ter de servir para
chegarmos s Montanhas.
Nico bebericou do conhaque. Soltou um suspiro
pesado.
Quero ver o seu dinheiro, com sua licena,
antes de dizer que o acordo est feito.
Esporana e eu trocamos olhares.
Precisamos de um momento de privacidade
disse ela suavemente. Com licena.
Levantou-se e, pegando a mo, levou-me at o
canto da sala. Chegando l, sussurrou:
Nunca pechinchou na vida? Voc d demais,
depressa demais. Bem. Quanto dinheiro voc
realmente tem?
Em resposta, virei a bolsa de cabea para baixo
na minha mo. Ela vasculhou o contedo com a
rapidez de uma gralha roubando sementes. Pesou
as moedas na mo com um ar experiente.
No basta. Pensei que voc tinha mais do que
isto. O que isso? O dedo dela bateu no brinco
de Bronco. Fechei a mo em volta dele antes que
ela pudesse peg-lo.
Uma coisa muito importante para mim.
Mais importante do que a sua vida?
No exatamente admiti. Mas quase. O
meu pai o usou durante algum tempo. Foi um amigo
ntimo dele que me deu.
Bem, se tiver que se desfazer dele, cuidarei
para que seja por um bom preo. Afastou-se de
mim sem mais uma palavra e voltou para junto de
Nico. Ocupou a sua cadeira, emborcou o resto do
conhaque e esperou por mim. Depois de eu me
sentar, ela disse a Nico: Vamos lhe dar o
dinheiro que temos agora. No tanto quanto voc
est pedindo. Mas na fronteira da Montanha, vou
lhe dar tambm todas as minhas joias. Anis,
brincos, tudo. O que me diz?
Ele sacudiu lentamente a cabea.
No o suficiente para que eu arrisque a
forca.
Qual o risco? perguntou Esporana. Se
eles o descobrirem com os peregrinos, voc ser
enforcado. Voc j foi pago por esse risco por
aquilo que eles lhe deram. Ns no aumentamos o
risco, s o fardo com as provises. Certamente
suficiente para isso.
Ele sacudiu a cabea, quase com relutncia.
Esporana virou-se e estendeu a mo para mim.
Mostre a ele disse em voz baixa. Senti-me
quase enjoado quando abri a bolsa e tirei de l o
brinco.
O que eu tenho pode no parecer grande
coisa primeira vista disse-lhe. A menos
que se seja conhecedor destas coisas. Eu sou. Sei
o que tenho, e sei o que vale. Vale qualquer
problema pelo qual voc tenha de passar conosco.
Apresentei-a na palma da minha mo, a fina rede
de prata que encurralava a safira. Ento peguei o
brinco pela haste e o ergui luz tremeluzente da
lareira.
No s a prata ou a safira. a execuo.
Veja como a rede de prata flexvel, como os elos
so bem feitos.
Esporana estendeu um dedo para tocar no
brinco.
J pertenceu ao Prncipe Herdeiro Cavalaria
acrescentou num tom respeitoso.
mais fcil gastar moedas observou
Nico.
Encolhi os ombros.
Se tudo o que um homem quer moedas para
gastar, isso verdade. s vezes h prazer em
possuir algo, um prazer maior do que as moedas
que se tem no bolso. Mas quando isto for seu, voc
poder troc-lo por moedas, se quiser. Se eu
tentasse faz-lo agora, com pressa, no obteria
mais do que uma frao do seu valor. Porm, um
homem com os seus contatos, e o tempo para
negociar bem, poder obter bem mais do que
quatro peas de ouro por ele. Mas, se preferir,
posso voltar vila com ele e
A ganncia cintilara em seus olhos.
Fico com o brinco aceitou ele.
Do outro lado do rio disse-lhe. Ergui a
joia e a devolvi orelha. Que ele olhasse para o
brinco cada vez que olhasse para mim. Formalizei
o negcio. Leve-nos em segurana at a outra
margem do rio. E quando chegarmos l, o brinco
ser seu.
Como nico pagamento acrescentou
Esporana em voz baixa. Mas permitiremos que
voc guarde todas as nossas moedas at l. Como
depsito.
De acordo, e aqui est a minha mo para
sel-lo reconheceu. Apertamos as mos.
Quando partimos? perguntei.
Quando fizer o tempo certo respondeu ele.
Amanh seria melhor disse-lhe eu.
Ele levantou-se lentamente.
Amanh, ? Bem, se amanh fizer o tempo
certo, ento partiremos amanh. E agora tenho
algumas coisas a fazer. Peo licena, mas a Rica
pode cuidar de vocs aqui.
Eu esperara caminhar de volta vila para passar
a noite, mas Esporana combinou com Rica trocar
canes por uma refeio e ento nos preparar um
quarto para passarmos a noite. Fiquei um pouco
desconfortvel por dormir entre estranhos, mas
pensei que isso podia ser mais seguro do que
voltar vila. Embora a comida que Rica nos fez
no fosse to boa quanto a que tnhamos provado
na estalagem de Esporana na noite anterior, era
bem melhor do que sopa de cebola e batata. Havia
grossas fatias de presunto frito, compota de ma e
um bolo feito de frutas, sementes e especiarias.
Rica nos trouxe cerveja para acompanhar e juntou-
se a ns na mesa, conversando em tom casual
sobre tpicos genricos. Depois de comermos,
Esporana tocou algumas canes para a garota,
mas eu descobri que quase no conseguia manter
os olhos abertos. Pedi para ser levado para um
quarto, e Esporana disse que tambm estava
fatigada.
Rica nos levou para um aposento situado acima
da elaborada sala de Nico. Havia sido um quarto
muito bom, mas duvidei de que tivesse sido
regularmente usado nos ltimos anos. Ela acendera
um fogo na lareira que havia ali, mas o longo frio
do desuso e da negligncia ainda enchia o quarto.
Havia uma imensa cama com um colcho de penas
e cortinados que estavam se tornando cinzentos.
Esporana sentiu o cheiro do quarto com um ar
crtico, e assim que Rica saiu ocupou-se tirando os
cobertores da cama e colocando-os num banco
diante da lareira.
Assim ficam ao mesmo tempo arejados e
quentes disse-me com um ar sabedor.
Eu estivera trancando a porta e verificando os
trincos das janelas e folhas. Todos pareciam bons.
Fiquei de repente cansado demais para responder.
Disse a mim mesmo que era o conhaque seguido
pela cerveja. Arrastei uma cadeira para encostar
contra porta enquanto Esporana me observava
divertida. Depois voltei para perto da lareira,
deixei-me cair no banco envolto em cobertores e
estendi as pernas para o calor. Descalcei as botas
com os ps. Bem. Amanh eu estaria a caminho
das Montanhas.
Esporana veio sentar-se ao meu lado. Durante
algum tempo no falou. Ento ergueu um dedo e
bateu com ele no meu brinco.
Isto foi mesmo de Cavalaria? perguntou.
Durante algum tempo.
E voc est disposto a abrir mo dele para ir
at as Montanhas. O que ele diria?
No sei. Nunca conheci o homem.
Suspirei de sbito. Segundo todos os relatos,
ele gostava do irmo. No creio que acharia que
eu trocasse o brinco para ir at Veracidade.
Ento vai mesmo procura do seu rei.
Claro. Tentei em vo abafar um bocejo.
Por algum motivo parecia uma tolice neg-lo
agora. No tenho certeza de ter sido sensato
mencionar Cavalaria a Nico. Ele pode fazer a
ligao. Virei-me para olhar para ela. Seu rosto
estava prximo demais. Eu no conseguia deixar
as suas feies em foco. Mas estou com sono
demais para me importar acrescentei.
Voc no tem cabea para rebentalegre riu
ela.
No houve fumo nenhum esta noite.
No bolo. Ela lhe disse que estava temperado.
Era isso que ela queria dizer?
Sim. isso o que temperado quer dizer em
toda Vara.
Oh. Em Cervo quer dizer que tem gengibre.
Ou lima.
Eu sei. Ela encostou-se a mim e suspirou.
Voc no confia nessa gente, no ?
Claro que no. Eles no confiam em ns. Se
confissemos neles, no teriam respeito por ns.
Pensariam que ramos tolos ingnuos, o tipo de
gente que mete contrabandistas em enrascadas por
falar demais.
Mas voc apertou a mo de Nico.
Apertei. E acho que ele vai ser fiel sua
palavra. Valha ela o que valer.
Ficamos os dois em silncio, pensando naquilo.
Passado algum tempo, voltei a acordar com um
sobressalto. Esporana endireitou-se ao meu lado.
Vou para a cama anunciou.
Eu tambm respondi. Peguei um cobertor
e comecei a me enrolar nele junto ao fogo.
No seja ridculo disse-me ela. Aquela
cama grande o suficiente para quatro pessoas.
Durma em uma cama enquanto puder, pois aposto
que no vamos ver outra to cedo.
Precisei de muito pouca persuaso. O colcho
de penas era fundo, embora tivesse um certo
cheiro de umidade. Cada um de ns teve a sua
parte de cobertores. Eu sabia que devia manter
alguma cautela, mas o conhaque e o rebentalegre
tinham desatado o n da minha vontade. Ca num
sono muito profundo.
Perto da manh, acordei uma vez quando
Esporana ps um brao em volta de mim. O fogo
apagara-se e o quarto estava frio. Durante o sono,
ela migrara na cama e estava encostada s minhas
costas. Comecei a me afastar dela, mas aquilo era
por demais caloroso e camaradesco. Eu sentia sua
respirao na minha nuca. Havia nela um cheiro de
mulher que no era perfume, mas parte dela.
Fechei os olhos e fiquei muito imvel. Moli. A
sbita saudade desesperada que senti dela foi
como uma dor. Cerrei os dentes contra a nostalgia.
Obriguei-me pela pura fora de vontade a voltar a
adormecer.
Foi um erro.
A beb estava chorando. Chorando e chorando.
Moli estava de camisola, com um cobertor sobre
os ombros. Tinha um ar descomposto e cansado,
sentada junto lareira e embalando a criana sem
descanso. Moli lhe cantava uma canozinha,
repetidas vezes, mas a melodia h muito havia
sido esquecida. Virou lentamente a cabea para a
porta quando Bronco a abriu.
Posso entrar? perguntou ele em voz baixa.
Ela lhe fez sinal que podia.
O que est fazendo acordado a esta hora?
perguntou-lhe com voz cansada.
Dava para ouvi-la chorando l fora. Est
doente? Foi at o fogo e atiou-o um pouco.
Acrescentou outro pedao de lenha, ento se
inclinou para olhar para o rosto pequeno do beb.
No sei. S chora, e chora, e chora. Nem
sequer quer mamar. No sei o que h de errado
com ela. Havia uma infelicidade na voz de
Moli que ultrapassava em muito o recurso das
lgrimas.
Bronco virou-se para ela.
Deixe-me segur-la por um momento. V-se
deitar e tente descansar um pouco, seno vocs
duas ficaro doentes. No pode fazer isso todas as
noites.
Moli ergueu os olhos para ele sem compreender.
Quer cuidar dela? Faria mesmo isso?
Posso bem fazer isso disse-lhe ele com
ironia. No consigo dormir com ela chorando.
Moli levantou-se como se lhe doessem as
costas.
Aquea-se primeiro. Eu vou fazer ch.
Como resposta, ele lhe tirou a beb dos braos.
No, volte para a cama um pouco. No faz
sentido que nenhum de ns durma.
Moli pareceu incapaz de compreender aquilo.
No se importa mesmo que eu volte para a
cama?
No, v l, ns ficaremos bem. Vamos, v.
Ajeitou o cobertor em volta dela e levou a
criana ao ombro. A beb parecia muito diminuta
com as mos escuras de Bronco em cima dela.
Moli atravessou o quarto lentamente. Olhou para
Bronco, mas ele estava olhando para o rosto da
beb. Vamos, shhh disse-lhe. Shhh.
Moli deitou na cama e cobriu-se com os
cobertores. Bronco no se sentou. Ficou em p
diante da lareira, balanando ligeiramente de um
lado para o outro enquanto dava lentas
palmadinhas nas costas da beb.
Bronco chamou-o Moli em voz baixa.
Sim? Ele no se virou para a olhar.
No faz sentido voc dormir naquela barraca
com este tempo. Devia se mudar aqui para dentro
durante o inverno e dormir junto lareira.
Oh. Bem. No faz assim tanto frio l fora.
Tudo depende do hbito, sabe?
Fez-se um curto silncio.
Bronco. Eu me sentiria mais segura se voc
estivesse mais prximo. A voz de Moli quase
no se ouvia.
Oh. Bem. Ento suponho que estarei. Mas no
h nada a temer esta noite. V dormir, v. Vocs
duas. Abaixou a cabea, e eu vi os seus lbios
tocarem o topo da cabea da beb. Comeou a lhe
cantar, muito baixinho. Tentei distinguir as
palavras, mas a sua voz era grave demais. E
tambm no reconheci a lngua. Os lamentos da
beb tornaram-se menos determinados. Bronco
comeou a andar lentamente pela sala com a
criana. De um lado para o outro diante da lareira.
Fiquei com Moli enquanto o observava, at que
ela tambm adormeceu com a voz calmante de
Bronco. O nico sonho que tive depois disso foi
com um lobo solitrio, que corria, corria sem
cessar. Estava to s quanto eu.
CAPTULO 15

Panela

A Rainha Kettricken esperava o filho de


Veracidade quando fugiu ao Prncipe Herdeiro
Majestoso para regressar s suas Montanhas.
Houve quem a criticasse, dizendo que se tivesse
permanecido em Cervo e forado a mo de
Majestoso, a criana teria nascido ali em
segurana. Se o tivesse feito, o Castelo de Torre
do Cervo talvez a tivesse apoiado, todo o Ducado
de Cervo talvez tivesse apresentado uma
resistncia mais unificada aos Salteadores
Ilhus. Os Ducados Costeiros talvez tivessem
lutado mais duramente se tivessem tido uma
rainha em Cervo. o que algumas pessoas
dizem.
A crena genrica de quem vivia no Castelo de
Torre do Cervo nesse tempo e estava bem
informado sobre a poltica interna da Regncia
Visionrio muito diferente. Acreditavam sem
exceo que tanto Kettricken como o seu filho
por nascer teriam sido confrontados com
atividades desleais. Pode ser evidenciado que,
mesmo depois de a Rainha Kettricken ter se
afastado de Torre do Cervo, aqueles que
apoiavam Majestoso como rei fizeram tudo o que
puderam para desacredit-la, chegando mesmo
ao ponto de dizer que o filho que ela esperava
no era de Veracidade, mas que fora gerado pelo
seu sobrinho bastardo, FitzCavalaria.
Quaisquer que sejam as suposies que podem
ter sido feitas a respeito do que teria acontecido
se Kettricken tivesse permanecido em Torre do
Cervo no passam agora de especulaes
praticamente inteis. O fato histrico que ela
acreditou que o filho teria a melhor chance de
sobrevivncia se nascesse no seu amado Reino da
Montanha. E tambm regressou s Montanhas na
esperana de ser capaz de encontrar Veracidade
e recolocar o marido no poder. Os esforos que
empreendeu para encontr-lo, contudo, s lhe
causaram desgostos. Ela descobriu o local em
que os companheiros de Veracidade lutaram
contra atacantes no identificados. Os restos
insepultos eram pouco mais do que ossos
espalhados e pedaos rasgados de roupa depois
de os carniceiros terem acabado com eles. Entre
esses restos, no entanto, encontrou o manto azul
que Veracidade usava quando o vira pela ltima
vez, e a sua faca. Regressou residncia real em
Jhaampe e chorou a morte do marido.
Mais perturbador para ela foi ter passado os
meses seguintes recebendo relatrios sobre
avistamentos de gente com o traje da Guarda de
Veracidade, nas montanhas alm de Jhaampe.
Esses guardas individuais eram vistos vagando
sozinhos por aldees da Montanha. Pareciam
relutantes em falar com os aldees e, apesar da
sua condio andrajosa, era frequente rejeitarem
ofertas de ajuda ou alimento. Eram descritos sem
exceo pelos que os viam como patticos e
dignos de pena. Alguns desses homens foram
chegando a Jhaampe de tempos em tempos.
Pareciam incapazes de responder coerentemente
s perguntas de Kettricken sobre Veracidade e o
que lhe acontecera. Nem sequer conseguiam
lembrar-se de quando ou sob que circunstncias
se separaram dele. Sem exceo, pareciam quase
obcecados com o regresso a Torre do Cervo.
Com o tempo, ela acabou por acreditar que
Veracidade e a sua Guarda haviam sido
atacados, no s fisicamente, mas atravs de
magia. Os homens que o emboscaram com
flechas e espadas e o crculo traioeiro que
desencorajou e confundiu a sua guarda estavam,
concluiu a rainha, a soldo do irmo mais novo de
Veracidade, o Prncipe Majestoso. Foi isso que
precipitou a sua incessante m vontade contra o
cunhado.

Acordei com batidas fortes na porta. Gritei uma


resposta qualquer enquanto me sentava,
desorientado e frio, na escurido.
Partimos dentro de uma hora! foi a resposta.
Lutei para me libertar dos cobertores enrolados
e do abrao sonolento de Esporana. Encontrei as
botas e as calcei, e em seguida vesti o manto.
Aconcheguei-o em mim contra o frio do quarto. O
nico movimento de Esporana foi enfiar-se de
imediato no local quente onde eu estivera deitado.
Debrucei-me sobre a cama.
Esporana? Quando no houve resposta,
estendi a mo e a sacudi de leve. Esporana!
Partimos em menos de uma hora. Levante-se!
Ela soltou um tremendo suspiro.
V na frente. Eu estarei pronta. Enfiou-se
mais nos cobertores. Encolhi os ombros e deixei-a
ali.
L embaixo, na cozinha, Rica mantinha quentes
pilhas de bolos torrados junto lareira. Ofereceu-
me um prato deles, com manteiga e mel, e eu o
aceitei de bom grado. A casa, que no dia anterior
fora um lugar to sossegado, estava agora
apinhada de gente. A julgar pelas fortes
semelhanas, aquilo era um negcio familiar. O
menino com o cabrito malhado estava sentado num
banco junto da mesa, alimentando o cabrito com
pedaos de bolo torrado. De vez em quando, eu o
apanhava me encarando. Quando sorri para ele, os
olhos do menino se arregalaram. Levantou-se com
uma expresso sria e foi embora com o prato,
seguido pelo arrastar de patas do cabrito.
Nico atravessou a cozinha a passos largos, com
o manto negro de l rodopiando em volta das
barrigas das pernas. Estava pontilhado de flocos
de neve acabados de cair. Cruzou os olhos com os
meus de passagem.
Pronto para partir?
Assenti com a cabea.
timo. Olhou-me um relance antes de sair.
Vista roupas quentes. A tempestade est s
comeando. Sorriu. Tempo perfeito para
viajar, para voc e para mim.
Disse a mim mesmo que no esperara gostar da
viagem. J terminara o desjejum quando Esporana
desceu a escada. Quando chegou cozinha,
surpreendeu-me. Esperara v-la sonolenta. Em vez
disso, estava vivamente alerta, com as bochechas
coradas e a boca risonha. Ao entrar na cozinha
vinha trocando gracejos com um dos homens, e
ganhando. No hesitou quando chegou mesa e
serviu-se de uma dose generosa de tudo. Quando
ergueu os olhos do prato vazio, deve ter visto a
surpresa no meu rosto.
Os menestris aprendem a comer bem quando
oferecida comida disse, e me estendeu o
copo. Estava bebendo cerveja com o desjejum.
Enchi-lhe o copo com o jarro que estava em cima
da mesa. Ela acabara de pousar o copo com um
suspiro quando Nico atravessou a cozinha com o
aspecto de uma nuvem de tempestade. Viu-me e
parou no meio de um passo. Ah. Tom. Sabe
conduzir um cavalo?
Com certeza.
Bem?
Bem o suficiente respondi num tom calmo.
Ento timo, estamos prontos para partir. O
meu primo Novelo ia conduzir, mas hoje est
respirando como um fole, apanhou uma tosse
durante a noite. A mulher no quer deix-lo ir.
Mas se voc sabe conduzir uma carroa
Ele vai contar com um ajuste no preo
interrompeu Esporana de repente. Ao conduzir
um cavalo para voc, ele lhe poupou o custo de um
cavalo para si. E o que o seu primo teria comido.
Nico foi apanhado de surpresa por um momento.
Olhou de relance para Esporana e para mim.
O que justo, justo observei. Tentei no
sorrir.
Eu endireito as coisas concedeu, e
apressou-se a sair da cozinha. Pouco tempo
depois, estava de volta. A velha diz que ir
test-lo. O cavalo e a carroa so dela, entende?
L fora ainda estava escuro. Archotes
crepitavam ao vento e neve. Pessoas
apressavam-se por todos os lados, de capuzes
erguidos e mantos bem apertados. Havia quatro
carroas e parelhas. Uma estava cheia de gente,
cerca de quinze pessoas. Aninhavam-se uns aos
outros, com as malas ao colo, as cabeas baixas
contra o frio. Uma mulher olhou na minha direo.
Tinha o rosto cheio de apreenso. Ao seu lado,
uma criana encostava-se nela. Perguntei-me de
onde teriam vindo todos. Dois homens carregaram
um barril na ltima carroa e ento estenderam
uma lona sobre toda a carga.
Atrs da carroa carregada de passageiros havia
outra menor com duas rodas. Uma pequena velha
toda enfaixada de negro estava sentada muito ereta
no assento. Estava bem entrouxada em manto,
capuz e xale, e tinha tambm uma manta de viagem
atirada sobre os joelhos. Os seus penetrantes olhos
negros me observaram cuidadosamente quando me
aproximei do seu veculo. O cavalo era uma gua
sarapintada. No gostava do tempo, e os arreios
estavam lhe limitando os movimentos. Ajustei-os o
melhor que pude, convencendo-a a confiar em
mim. Quando terminei, ergui os olhos e dei com a
velha me observando de perto. Seu cabelo era de
um negro reluzente, onde espreitava de debaixo do
capuz, mas nem todo o branco que nele havia era
neve. Ela apertou os lbios na minha direo, mas
nada disse, mesmo quando arrumei o meu
embrulho debaixo do assento. Dei-lhe bom-dia
enquanto subia para o assento ao seu lado e peguei
as rdeas.
Acho que esperam que eu a conduza eu
disse com bom humor.
Acha. No sabe? E me lanou um olhar
penetrante.
Novelo adoeceu. Nico me pediu para
conduzir a sua gua. Chamo-me Tom.
No gosto de mudanas disse-me ela.
Especialmente de ltima hora. As mudanas dizem
que no se estava realmente pronto para comear,
e agora se est ainda menos pronto.
Suspeitei que eu sabia o motivo por que Novelo
estava se sentindo subitamente mal.
O meu nome Tom voltei a me
apresentar.
Voc j tinha dito isso informou-me a
mulher. Fitou a neve que caa. Toda esta
viagem foi m ideia disse em voz alta, mas sem
se dirigir a mim. E dela no vir bem algum.
Consigo ver isso desde j. Massageou as mos
enluvadas sobre o colo. Malditos ossos velhos
disse neve que caa. Se no fossem os
meus ossos velhos, no precisaria de nenhum de
vocs. Nem de um.
No consegui pensar em nenhuma resposta para
dar quilo, mas fui salvo por Esporana. Refreou o
cavalo ao meu lado.
Olhe s o que me deram para montar!
disse-me. A sua montaria sacudiu a crina negra e
rolou os olhos na minha direo como quem exige
que eu olhe bem para o que era obrigada a
transportar.
Parece-me tima. da raa da Montanha.
So todos assim. Mas andar o dia inteiro, e a
maior parte deles tem bom temperamento.
Esporana franziu o cenho.
Eu disse a Nico que, pelo que vamos pagar,
esperava um cavalo adequado.
Nico passou por ns nesse momento. A sua
montaria no era maior do que a de Esporana.
Olhou para ela, e ento afastou o olhar, como se
estivesse farto da sua lngua.
Vamos embora disse ele numa voz baixa,
mas dominante. melhor no conversar, e
melhor ficar perto da carroa que estiver na sua
frente. mais fcil se perderem de vista nesta
tempestade do que possa imaginar.
Apesar da voz baixa, a ordem foi obedecida de
imediato. No houve ordens gritadas, nem
despedidas. Em vez disso, as carroas que
estavam na nossa frente afastaram-se em silncio.
Sacudi as rdeas e estalei a lngua ao cavalo. A
gua soltou um resfolego de desaprovao, mas
avanou ao ritmo dos outros. Avanamos quase em
silncio atravs de uma cortina perptua de neve
que caa. O pnei de Esporana no parou de puxar
o freio at que ela lhe deu liberdade para fazer o
que entendesse. Ento o animal ps-se a trote
rpido para ir se juntar aos outros cavalos frente
do grupo. Fui deixado sozinho, sentado ao lado da
silenciosa velha.
Rapidamente descobri que o aviso de Nico era
verdadeiro. O sol nasceu, mas a neve continuou a
cair em tal quantidade que a luz parecia leitosa.
Havia uma qualidade de madreprola na neve
turbilhonante que deslumbrava ao mesmo tempo
que cansava os olhos. Parecamos estar viajando
por um tnel infinito de alvura, com a retaguarda
da outra carroa para nos guiar.
Nico no nos levou pela estrada. Fomos
rangendo atravs dos campos gelados. A neve
densa enchia rapidamente os rastros que
deixvamos. Num instante deixaria de haver o
mnimo sinal da nossa passagem. Viajamos atravs
da vegetao at depois do meio-dia, e sempre que
se nos deparvamos com cercas, os cavaleiros
saltavam dos cavalos para desmont-las e
voltavam a mont-las quando passvamos. Uma
vez, vislumbrei outra fazenda atravs da neve
turbilhonante, mas as suas janelas estavam escuras.
Pouco depois do meio-dia, foi-nos aberta uma
ltima cerca. Com um rangido e uma sacudidela,
samos dos campos e penetramos naquilo que
antigamente fora uma estrada, mas agora pouco
passava de uma trilha. Os nicos rastros que havia
nela eram os que ns mesmos fazamos, e esses
eram rapidamente apagados pela neve.
E ao longo de todo esse trajeto, a minha
companheira fora to glida e silenciosa como a
prpria neve. De tempos em tempos eu a
observava pelo canto do olho. Ela mantinha os
olhos fixos adiante, com o corpo oscilando com os
movimentos da carroa. Massageava
incessantemente as mos no colo, como se lhe
doessem. Com pouco mais que me divertisse,
fiquei espiando-a. Originria de Cervo,
obviamente. Ainda trazia na lngua o sotaque do
meu lar, apesar de suavizado por muitos anos de
viagens por outros lugares. O seu leno era obra
de teceles de Calcede, mas os bordados ao longo
da orla do seu manto, trabalhados em negro sobre
negro, eram-me completamente estranhos.
Est muito longe de Cervo, rapaz
observou ela de repente. Estava com os olhos
fixos adiante enquanto falava. Algo no seu tom me
fez endireitar as costas.
Assim como voc, velha retorqui.
Ela virou o rosto inteiro para me olhar. No tive
certeza se vislumbrei divertimento ou
aborrecimento nos seus brilhantes olhos de corvo.
Isso verdade. Tanto em anos como em
distncia, muito longe. Fez uma pausa, ento
perguntou de repente: Por que est indo para as
Montanhas?
Vou procura do meu tio respondi com
honestidade.
Ela soltou uma bufada de desdm.
Um rapaz de Cervo tem um tio nas
Montanhas? E o desejo de v-lo forte o
suficiente para arriscar a cabea?
Olhei para ela.
o meu tio preferido. Creio que voc est
indo ao santurio de Eda?
Os outros vo corrigiu-me a mulher. Eu
sou velha demais para rezar por fertilidade. Vou
em busca de um profeta. Antes de eu ter tempo
de falar, acrescentou: o meu profeta
preferido. E quase me sorriu.
Por que no viaja com os outros no carro?
perguntei.
Ela lanou-me um olhar gelado.
Eles fazem perguntas demais replicou.
Ah! eu disse, e lhe sorri, aceitando a
censura.
Alguns momentos depois, ela voltou a falar.
Passei muito tempo sozinha, Tom. Gosto de
seguir o meu prprio caminho, aconselhar-me
comigo mesma e decidir por mim o que vou comer
no jantar. Aqueles so gente razoavelmente boa,
mas esgravatam e se bicam como um bando de
galinhas. Entregues a si mesmos, nem um s faria
esta viagem sozinho. Todos precisam que os
outros digam: Sim, sim, isto o que devemos
fazer, vale a pena o risco. E agora que decidiram,
a deciso maior do que todos eles. Nenhum seria
capaz de voltar para trs sozinho.
Sacudiu a cabea diante daquilo e eu assenti,
pensativo. Ela no disse mais nada durante muito
tempo. O nosso caminho encontrara o rio. Ns o
seguimos correnteza acima, atravs de um parco
coberto de arbustos e rvores muito jovens. Quase
no conseguia v-lo por entre a neve que caa
constantemente, mas conseguia cheir-lo e ouvir o
rumor da sua passagem. Perguntei-me quanto
andaramos ainda antes de tentarmos atravess-lo.
Ento sorri para mim mesmo. Tinha certeza de que
Esporana saberia quando voltasse a v-la naquela
noite. Perguntei-me se Nico estava apreciando a
sua companhia.
Est com esse sorrisinho por qu?
perguntou a velha de sbito.
Estava pensando na minha amiga menestrel.
Esporana.
E ela o faz sorrir assim?
s vezes.
uma menestrel, voc diz. E voc? um
menestrel?
No. S um pastor. Na maior parte do tempo.
Estou vendo.
A nossa conversa voltou a morrer. Ento,
quando a noite comeava a cair, ela me disse:
Pode me chamar de Panela.
Meu nome Tom respondi.
E essa a terceira vez que me disse
lembrou-me ela.
Achei que acamparamos ao cair da noite, mas
Nico nos manteve em movimento. Fizemos uma
breve pausa enquanto ele ia buscar duas lanternas
e as pendurava em dois carros.
Apenas siga a luz disse-me ele num tom
tenso quando passou por ns. Foi isso mesmo o
que a nossa gua fez.
A luz j desaparecera e o frio estava tornando-
se intenso quando a carroa que seguia nossa
frente virou para fora da estrada e penetrou
sacolejando numa abertura no arvoredo prximo
do rio. Obedientemente, virei a gua para segui-la,
e samos da estrada com uma pancada e um
estrondo que fizeram Panela praguejar. Sorri.
Havia poucos guardas em Torre do Cervo capazes
de fazer melhor.
Pouco tempo depois paramos. Mantive-me
sentado, perguntando a mim mesmo o que estaria
acontecendo, pois no conseguia ver coisa alguma.
O rio era uma fora negra e arrastadora em algum
lugar nossa esquerda. O vento que dele vinha
somava uma nova nota de umidade ao frio. Os
peregrinos da carroa nossa frente estavam se
mexendo, inquietos, e conversando em sussurros.
Ouvi a voz de Nico falando e vi um homem passar
por ns conduzindo o cavalo. Tirou a lanterna da
traseira do carro ao passar. Segui o seu trajeto.
Um momento mais tarde, homem e cavalo tinham
penetrado numa construo longa e baixa que
estivera invisvel na escurido.
Desam, entrem, vamos passar a noite aqui
instruiu-nos Nico quando voltou a passar por
ns. Desmontei e esperei para ajudar Panela a
descer. Quando lhe ofereci a mo, ela pareceu
quase surpreendida.
Obrigada, meu bom senhor disse em voz
baixa enquanto a ajudava a descer.
De nada, minha senhora respondi. Ela
tomou meu brao quando a guiei na direo do
edifcio.
Para um pastor, voc tem umas belas de umas
boas maneiras, Tom observou ela numa voz
completamente diferente. Soltou uma gargalhada
curta porta e entrou, deixando-me voltar para
desatrelar a gua. Sacudi a cabea para mim
mesmo, mas fui obrigado a sorrir. Gostava daquela
velha. Botei a trouxa no ombro e levei a gua para
dentro da construo, para onde os outros tinham
ido. Enquanto lhe tirava o arreio, olhei em volta.
Era uma longa sala aberta. Fora acendido um fogo
numa lareira numa das extremidades. A construo
de teto baixo era feita de pedras do rio e de barro,
com cho de terra batida. Os cavalos estavam
numa das extremidades, aglomerando-se em volta
de uma manjedoura cheia de feno. Quando levei a
nossa gua para onde estavam os outros animais,
um dos homens de Nico apareceu trazendo baldes
de gua para encher um bebedouro. A
profundidade de estrume que se encontrava nessa
ponta da sala me disse que aquela construo era
usada com frequncia pelos contrabandistas.
Para que servia originalmente este lugar?
perguntei a Nico quando me juntei aos outros em
volta da lareira.
Criao de ovelhas respondeu ele. O
abrigo servia para o incio da poca de partos.
Depois, tosquivamos aqui, aps lavarmos as
ovelhas no rio. Os seus olhos azuis ficaram
distantes durante algum tempo. Ento soltou uma
gargalhada spera. Isso foi h muito tempo.
Agora no h rao que chegue para uma cabra,
quanto mais para ovelhas como as que tnhamos.
Indicou o fogo com um gesto. melhor
comer e dormir enquanto pode, Tom. A manh
chega cedo para ns.
Seu olhar pareceu demorar-se no meu brinco
quando passou por mim.
A comida era simples. Po e peixe defumado.
Mingau de aveia. Ch quente. A maior parte vinha
das provises dos peregrinos, mas Nico contribuiu
com quantidade suficiente para eles no
levantarem objees por estarem alimentando os
homens dele, Esporana e a mim. Panela comeu
sozinha, das suas prprias provises, e fez o seu
prprio bule de ch. Os outros peregrinos a
tratavam com educao, e ela lhes respondia com
cortesia, mas era claro que no havia qualquer
ligao entre eles, exceto o fato de irmos todos
para o mesmo lugar. S as trs crianas do grupo
pareciam no ter medo dela, pedindo mas secas
e histrias at que ela as avisou de que iriam todas
ficar doentes.
O abrigo aqueceu depressa, tanto devido aos
cavalos e pessoas que continha, como por causa da
lareira. A porta e as folhas das janelas estavam
bem fechadas, para manter no interior a luz e o
som, assim como o calor. Apesar da tempestade e
da ausncia de outros viajantes no caminho, Nico
no corria riscos. Aprovei aquela atitude num
contrabandista. A refeio me proporcionou o
primeiro bom exame do grupo. Quinze peregrinos,
de vrias idades e sexos, sem contar Panela. Cerca
de uma dzia de contrabandistas, seis dos quais
possuam semelhanas suficientes com Nico e
Rica para serem pelo menos primos. Os outros
pareciam um conjunto variado, profissionalmente
duros e vigilantes. Pelo menos trs estavam
sempre de vigia. Conversavam pouco e conheciam
bem suficiente o que tinham de fazer que Nico lhes
dava poucas orientaes. Dei por mim sentindo-
me confiante de que chegaria pelo menos a ver o
outro lado do rio, e provavelmente a fronteira da
Montanha. H muito tempo que no me sentia to
otimista.
Esporana tirou o melhor proveito de tal
companhia. Assim que acabamos de comer, pegou
a harpa e, apesar das frequentes advertncias de
Nico para falarmos em voz baixa, ele no proibiu
a msica e canes suaves que ela nos ofereceu.
Aos contrabandistas cantou uma balada sobre
Peso, o Salteador, talvez o mais arrojado
assaltante que Cervo j conheceu. A cano
provocou um sorriso at em Nico, e os olhos de
Esporana flertaram com ele enquanto cantava. Aos
peregrinos cantou sobre uma estrada sinuosa de rio
que levava as pessoas para casa e terminou com
uma cano de embalar para as trs crianas que
tnhamos entre ns. A essa altura j no eram s as
crianas que estavam estendidas nos cobertores.
Panela me mandara categoricamente ir buscar o
seu na carroa. Perguntei-me quando havia sido
promovido de condutor a criado, mas nada disse e
fui busc-lo. Supunha que havia alguma coisa em
mim que levava todas as pessoas idosas a partir
do princpio de que o meu tempo estava sua
disposio.
Desenrolei os meus cobertores ao lado dos de
Panela e me deitei em busca do sono. minha
volta, a maior parte dos outros j ressonava.
Panela enrolou-se nos cobertores como um esquilo
no seu ninho. Conseguia imaginar como os seus
ossos deviam doer com o frio, mas havia pouco
que eu pudesse fazer por ela. Perto da lareira,
Esporana conversava com Nico. De vez em
quando, os seus dedos vagavam levemente sobre
as cordas da harpa, fazendo com as notas
prateadas do instrumento um contraponto sua
voz. Vrias foram as vezes em que fez Nico rir.
Estava quase adormecido.
Irmo?
Todo o meu corpo saltou com o choque. Ele
estava prximo.
Olhos-de-Noite?
Claro! Divertimento. Ou ser que agora tem
outro irmo?
Nunca! S voc, meu amigo. Onde est?
Onde estou? Do lado de fora. Venha aqui.
Levantei-me depressa e voltei a vestir o manto.
O homem que guardava a porta franziu o cenho
para mim, mas no me fez perguntas. Penetrei na
escurido, passando pelos carros estacionados. A
neve parara de cair e o vento forte limpara uma
extenso de cu iluminado pelas estrelas. Neve
prateava os galhos de todos os arbustos e rvores.
Procurava a sua presena ao meu redor quando um
peso slido me atingiu nas costas. Fui atirado de
cabea contra a neve e teria soltado um grito, se a
minha boca no estivesse cheia de neve. Consegui
rolar sobre mim mesmo e fui pisoteado vrias
vezes por um lobo jubiloso.
Como soube onde me encontrar?
Como voc sabe onde coar quando tem um
comicho?
De sbito soube o que ele queria dizer. Eu nem
sempre estava consciente do nosso vnculo. Mas
pensar nele agora e encontr-lo era subitamente
to fcil quanto juntar as mos na escurido. Claro
que eu sabia onde ele estava. Ele era uma parte de
mim.
Voc cheira a fmea. Tem uma nova parceira?
No. Claro que no.
Mas divide um covil?
Viajamos juntos, como alcateia. mais seguro
dessa forma.
Eu sei.
Durante algum tempo permanecemos quietos de
corpo e mente, simplesmente nos ajustando de
novo presena fsica um do outro. Senti-o outra
vez inteiro. Tinha paz. No sabia que me
preocupara tanto com ele at que v-lo deixou
minha mente descansada. Senti-o concordar
relutante com isso. Ele sabia que eu enfrentara
sozinho dificuldades e perigos. No achara que eu
conseguisse sobreviver a eles. Mas tambm sentira
a minha falta. Sentira a falta da minha maneira de
pensar, dos tipos de ideias e discusses que os
lobos nunca partilhavam entre si. Foi por isso que
voc voltou para mim?, perguntei-lhe.
Ele levantou-se de repente e sacudiu-se todo.
Era hora de voltar, respondeu, de um modo
evasivo. Depois acrescentou: Corri com eles. Eles
por fim me aceitaram como membro da alcateia.
Caamos juntos, matamos juntos, partilhamos
carne. Foi muito bom.
Mas?
Eu queria ser o lder. Virou-se e me olhou por
sobre o ombro, com a lngua pendente. Estou
acostumado a ser o lder, sabia?
Est? E eles no quiseram aceit-lo?
Lobo Negro muito grande. E rpido. Eu sou
mais forte do que ele, acho, mas ele conhece mais
truques. Foi muito parecido como quando voc
lutou com Corao da Matilha.
Soltei uma gargalhada abafada e ele saltou sobre
mim, erguendo os lbios num rosnado fingido.
Acalme-se eu disse em voz baixa,
mantendo-o afastado com as mos abertas.
Ento. O que aconteceu?
Ele atirou-se no cho a meu lado. Ele continua
sendo o lder. Ainda tem a companheira e o covil.
Refletiu e eu o senti lutando com o conceito de
futuro. Pode ser diferente, em outro momento.
Pode ser concordei. Cocei-o suavemente
por trs da orelha e ele quase rolou na neve.
Voltar para eles, um dia?
Ele estava tendo dificuldade em se concentrar
nas minhas palavras enquanto eu lhe coava as
orelhas. Parei e voltei a lhe fazer a pergunta. Ele
inclinou a cabea para um lado e me observou
divertido. Pergunte-me nesse dia, e eu serei
capaz de responder.
Um dia de cada vez, concordei. Estou contente
por voc estar aqui. Mas ainda no compreendo
por que voc voltou para mim. Podia ter ficado
com a alcateia.
Os seus olhos cruzaram-se com os meus, e,
mesmo na escurido, agarraram-me. Voc foi
chamado, no foi? No verdade que o seu rei
lhe uivou Venha at mim?
Assenti relutante. Fui chamado.
Ele levantou-se subitamente, sacudindo-se todo.
Deixou o olhar vagar pela noite. Se voc
chamado, eu tambm sou. Ele no admitia de boa
vontade.
No precisa vir comigo. Este chamamento do
meu rei prende a mim, no a voc.
Nisso voc est enganado. Aquilo que o prende,
prende a mim.
No compreendo como isso pode ser, eu disse
com cautela.
Nem eu. Mas assim. Ele nos gritou: Venha
at mim. E durante algum tempo, consegui
ignor-lo. Mas j no consigo.
Lamento. Tateei procura de um modo de
express-lo. Ele no tem direito sobre voc. Eu
sei disso. No acho que ele pretendesse cham-
lo. No acho que pretendesse me prender. Mas
aconteceu, e tenho de ir at ele.
Levantei-me e sacudi a neve que comeava a
derreter em cima de mim. Senti-me envergonhado.
Veracidade, um homem em quem eu confiava,
fizera-me aquilo. Isso era ruim o suficiente. Mas,
atravs de mim, impusera-o ao lobo. Veracidade
no tinha o direito de fazer exigncias a Olhos-de-
Noite. Alis, nem eu tinha o direito de lhe fazer
exigncias. O que existira entre ns sempre fora
aceito de livre vontade, uma ddiva mtua de
ambos os lados, sem depender de obrigaes.
Agora, atravs de mim, ele estava to encurralado
como se eu o tivesse enjaulado.
Ento dividimos uma jaula.
Gostaria que no fosse assim. Gostaria de ter
alguma maneira de libert-lo disso. Mas nem
sequer sei como libertar a mim mesmo. Sem
saber como voc est preso, no sei como
libert-lo. Voc e eu partilhamos a Manha.
Veracidade e eu partilhamos o Talento. Como
possvel que a transmisso de Talento dele tenha
me atravessado para apanh-lo? Voc nem
sequer estava comigo quando ele me chamou.
Olhos-de-Noite ficou muito imvel na neve. O
vento comeara a soprar, e tnue luz das estrelas
pude v-lo agitando o pelo. Eu estou sempre com
voc, irmo. Voc nem sempre pode estar
consciente de mim, mas eu estou sempre com
voc. Ns somos um s.
Partilhamos muitas coisas, concordei. Um mal-
estar me atormentava.
No. Ele virou-se para me encarar de frente,
encontrar os meus olhos como nenhum lobo
selvagem teria feito. Ns no partilhamos. Ns
somos um s. Eu j no sou um lobo, voc j no
um homem. No tenho um nome para aquilo que
somos juntos. Aquele que nos falou do Sangue
Antigo talvez tenha uma palavra para explic-lo.
Fez uma pausa. V at que ponto sou homem, que
at falo em haver uma palavra para uma ideia?
No so necessrias palavras. Ns existimos, e
somos o que formos.
Eu o libertaria se pudesse.
Libertaria? Eu no me separaria de voc.
No foi isso o que eu quis dizer. Quis dizer que
gostaria que voc tivesse uma vida prpria.
Ele bocejou, ento se espreguiou. Eu gostaria
que tivssemos uma vida prpria. Vamos
conquist-la juntos. Bem. Viajamos de dia ou de
noite?
Viajamos de dia.
Ele detectou o que eu queria dizer. Vai
continuar viajando com esta alcateia enorme?
Por que no se separa dela e corre comigo?
Iremos mais depressa.
Sacudi a cabea. No assim to simples. Para
viajar para onde temos de ir, vou precisar de
abrigo, e no tenho nenhum que seja s meu.
Preciso da ajuda desta alcateia para sobreviver
com um tempo como este.
Seguiu-se uma meia hora difcil, enquanto eu
tentava lhe explicar que precisaria do apoio dos
outros membros da caravana para chegar s
Montanhas. Se tivesse um cavalo e provises
minhas, no teria hesitado em confiar na sorte e
partir com o lobo. Mas a p, e apenas com aquilo
que eu mesmo conseguia transportar, enfrentando
as neves profundas e o frio ainda mais profundo
das Montanhas, sem falar da travessia de um rio?
Eu no seria um tolo to grande assim.
Caaramos, insistia Olhos-de-Noite. Iramos
nos enrolar na neve noite. Ele podia cuidar de
mim, como sempre fizera. Com persistncia,
consegui convenc-lo de que tinha de continuar a
viajar como vinha fazendo. Ento terei de
continuar me esgueirando como um co vadio,
atrs de toda essa gente?
Tom? Tom, est a fora? Havia
aborrecimento irritado e preocupao na voz de
Nico.
Estou bem aqui! Sa do meio dos arbustos.
O que estava fazendo? perguntou ele com
desconfiana.
Mijando respondi. Tomei uma deciso
sbita. E o meu co me seguiu desde a vila e
nos encontrou aqui. Deixei-o com amigos, mas ele
deve ter rodo a corda. Aqui, garoto, venha com o
seu dono.
Eu vou arrancar teu calcanhar dentada,
sugeriu Olhos-de-Noite num tom selvagem, mas
veio, seguindo-me at o ptio.
Tremendo de um co grande observou
Nico. Inclinou-se para frente. A mim parece
mais do que meio lobo.
Alguns em Vara j me disseram isso. uma
raa de Cervo. Ns os usamos para guardar
ovelhas.
Voc vai pagar por isso. Eu prometo.
Em resposta, abaixei-me para lhe acariciar o
ombro e em seguida lhe coar as orelhas. Abane o
rabo, Olhos-de-Noite.
um velho co fiel. Eu devia saber que no
ficaria para trs.
As coisas que eu aguento por voc. Ele abanou
o rabo. Uma vez.
Estou vendo. Bem. melhor que entre e
durma um pouco. E da prxima vez no saia
sozinho. Para nada. Pelo menos sem que me
informe primeiro. Quando os meus homens esto
de vigia, ficam nervosos. Podem cortar a sua
garganta antes de o reconhecerem.
Compreendo.
Eu passei bem pelo meio de dois deles.
Nico, voc no se importa, no ? Com o
co, quero dizer. Tentei parecer afavelmente
embaraado. Ele pode ficar aqui fora. Na
verdade, um co de guarda muito bom.
S no espere que eu o alimente por voc
resmungou Nico. E no deixe que ele nos cause
problemas.
Oh, tenho certeza de que no causar. No ,
garoto?
Esporana escolheu esse momento para vir
porta.
Nico? F Tom?
Estamos aqui. Voc tinha razo, ele estava s
mijando disse Nico em voz baixa. Tomou o
brao de Esporana e comeou a gui-la de volta ao
barraco.
O que aquilo? perguntou ela, parecendo
quase alarmada.
De repente, tive de apostar tudo na esperteza
rpida dela e na nossa amizade.
s o co disse rapidamente. Olhos-
de-Noite deve ter rodo a corda. Eu avisei Crice
para vigi-lo quando o deixei l, que ele ia querer
me seguir. Mas Crice no me deu ouvidos, e aqui
est ele. Parece que vou ter de lev-lo conosco
para as Montanhas, afinal.
Esporana estava fitando o lobo. Tinha os olhos
to abertos e negros quanto o cu noturno acima de
ns. Nico a puxou pelo brao e ela virou-se por
fim para a porta.
Suponho que sim disse com uma voz
fraca.
Agradeci silenciosamente a Eda e a qualquer
outro deus que pudesse estar escutando. A Olhos-
de-Noite, eu disse:
Fique de guarda, bom garoto.
Aproveite enquanto pode, irmozinho. Jogou-se
no cho ao lado da carroa. Eu duvidava de que
ficasse l durante mais do que alguns segundos.
Segui Esporana e Nico para dentro. Nico fechou
firmemente a porta atrs de ns e colocou a tranca
no lugar. Eu descalcei as botas e sacudi o manto
carregado de neve antes de me enrolar nos
cobertores. O sono ficou de repente muito prximo
quando compreendi toda a amplitude do alvio que
sentia. Olhos-de-Noite estava de volta. Sentia-me
completo. Em segurana, com o lobo porta.
Olhos-de-Noite. Estou contente por voc estar
aqui.
Voc tem uma maneira estranha de
demonstrar, respondeu o lobo, mas eu consegui
sentir que ele estava mais achando graa do que
aborrecido.
Rolfe Negro me enviou uma mensagem.
Majestoso est tentando virar os do Sangue
Antigo contra ns. Oferece-lhes ouro para nos
perseguirem em seu nome. No devamos
conversar muito.
Ouro. O que o ouro para ns ou para aqueles
que so como ns? No tema, irmozinho. Eu
estou aqui para cuidar de voc outra vez.
Fechei os olhos e me afundei no sono, esperando
que ele tivesse razo. Por um instante, enquanto
hesitava beira da viglia, reparei que Esporana
no estendera os cobertores perto dos meus.
Estava sentada nos seus do outro lado da sala. Ao
lado de Nico. De cabeas juntas, conversavam em
voz baixa sobre qualquer coisa. Ela riu. No
consegui ouvir as palavras que disse em seguida,
mas o tom era o de um desafio provocador.
Quase senti uma pontada de cime. Censurei-me
por isso. Ela era uma companheira, nada mais.
Que me importava o modo como ela passava as
noites? Na noite anterior dormira encostada s
minhas costas. Nesta, no o faria. Decidi que era o
lobo. Ela no podia aceit-lo. No era a primeira.
Saber que eu era Manhoso no era a mesma coisa
que ser confrontada pelo meu animal de vnculo.
Bem. Assim eram as coisas.
Adormeci.
Em algum momento durante a noite, senti um
suave apalpar. Era o mais leve raspar de Talento
contra os meus sentidos. Fiquei alerta, mas imvel,
espera. Nada senti. Teria imaginado, teria
sonhado? Um pensamento mais sinistro me
ocorreu. Talvez fosse Veracidade, enfraquecido
demais para fazer mais do que tentar me alcanar.
Talvez fosse Vontade. Fiquei imvel, ansiando por
sondar e temendo faz-lo. Desejava tanto saber
que Veracidade estava bem; desde que ele
explodira contra o crculo de Majestoso naquela
noite, nada sentira vindo dele. Venha at mim,
dissera. E se isso tivesse sido o seu ltimo
desejo? E se de toda a minha busca eu nada
obtivesse a no ser ossos? Afastei o medo e tentei
ficar aberto.
A mente que senti roando a minha era a de
Majestoso.
Eu nunca entrara em contato com Majestoso pelo
Talento, apenas suspeitara de que ele era capaz de
us-lo. Mesmo agora, duvidei do que sentia. A
fora do Talento parecia a de Vontade, mas a
sensao que emanava dos pensamentos era a de
Majestoso. E tambm no encontrou a mulher? A
transmisso por Talento no se destinava a mim.
Ele contactava outra pessoa. Tornei-me mais
ousado, aventurando-me a chegar mais perto.
Tentei me abrir aos seus pensamentos sem
procurar alcan-los.
Por enquanto no, meu rei. Emaranhado.
Escondendo o seu tremor por trs de formalidade e
cortesia. Sabia que Majestoso conseguia detect-
lo to facilmente quanto eu. At sabia que ele
gostava de senti-lo. Majestoso nunca fora capaz de
compreender a diferena entre medo e respeito.
No conseguia acreditar no respeito de um homem
por ele, a menos que fosse manchado de medo. Eu
no achara que ele podia estender isso ao seu
crculo. Perguntei-me qual seria a ameaa que ele
deixava pairando sobre eles.
E nada do Bastardo?, perguntou Majestoso.
Agora no havia dvida. Majestoso usava o
Talento, usando a fora de Vontade. Isso
significava que ele no era capaz de us-lo
sozinho?
Emaranhado endureceu-se. Meu rei, no
encontrei sinal dele. Creio que est morto.
Realmente morto, desta vez. Ele cortou-se com
uma lmina envenenada; o desespero que sentiu
nesse momento de deciso foi absoluto. Nenhum
homem poderia t-lo fingido.
Nesse caso devia haver um corpo, no devia?
Em algum lugar, meu rei, tenho certeza de que
h. Os seus guardas simplesmente no o
encontraram ainda. Isto vinha de Cedoura, que
no tremia de medo. Escondia o medo at de si
mesmo, fingindo que era ira. Compreendia como
ele poderia precisar fazer isso, mas duvidava de
que fosse sensato. Isso o forava a fazer frente a
Majestoso. Majestoso no gostava de homens que
dissessem o que tinham em mente.
Talvez eu devesse encarregar voc de
percorrer as estradas, procura dele , sugeriu
Majestoso num tom agradvel. Ao mesmo tempo,
voc poderia descobrir o homem que matou
Dardo e a sua patrulha.
Senhor meu rei comeou Cedoura, mas
Majestoso se sobreps a ele com um SILNCIO!
Recorreu liberalmente s foras de Vontade para
faz-lo. O esforo no lhe custou nada.
J acreditei que ele estava morto antes, e a
minha confiana na palavra alheia quase me
matou. Desta vez quero v-lo, quero v-lo feito
em pedaos antes de descansar. A dbil tentativa
de Vontade de levar o Bastardo a trair-se falhou
miseravelmente.
Talvez porque ele j esteja morto , aventou
estupidamente Cedoura.
Ento testemunhei uma coisa que desejaria no
ter testemunhado. Uma agulha de dor, quente e
penetrante, foi enviada por Majestoso a Cedoura
com o Talento de Vontade. Nesse envio,
vislumbrei finalmente por completo aquilo em que
eles haviam se transformado. Majestoso montava
Vontade, no como um homem monta um cavalo,
sujeito a ser derrubado pelo cavalo em fria, mas
como um carrapato ou uma sanguessuga morde a
vtima e se agarra e suga dela a vida. Acordado ou
dormindo, Majestoso estava sempre com ele, tinha
sempre acesso s suas foras. E agora gastava-as
rancorosamente, sem se importar nem um pouco
com o que isso custaria a Vontade. Eu no sabia
que a dor podia ser infligida apenas com o
Talento. Conhecia uma exploso atordoante de
fora como aquela que Veracidade atirara contra
eles. Mas isto era diferente. Isto no era exibio
de fora ou temperamento. Era uma exibio do
mais puro esprito vingativo. Soube que, em algum
lugar, Cedoura caiu no cho e esperneou numa
agonia sem palavras. Ligados como estavam,
Emaranhado e Vontade devem ter partilhado uma
sombra dessa dor. Surpreendeu-me que um
membro de um crculo fosse sequer capaz de fazer
aquilo a outro. Porm, no era Vontade quem
enviava a dor. Era Majestoso.
Passou, algum tempo mais tarde. Era possvel
que na realidade no tivesse durado mais do que
um instante. Para Cedoura, certamente durou
bastante tempo. Detectei uma tnue lamria mental
vindo dele. Naquele momento ele no era capaz de
mais do que aquilo.
No acredito que o Bastardo tenha morrido.
No me atrevo a acreditar nisso at ver o seu
corpo. Algum matou Dardo e os seus homens.
Portanto, encontrem o seu corpo e tragam-no a
mim, esteja ele vivo ou morto. Emaranhado.
Fique onde est e redobre os esforos. Tenho
certeza de que ele se dirige para a. No deixe
que nenhum viajante passe por voc sem
oposio. Cedoura, acho que voc talvez deva se
juntar a Emaranhado. Uma vida de indolncia
no parece de acordo com o seu temperamento.
Parta amanh. E, enquanto viaja, no seja
preguioso. Mantenham as mentes nas suas
tarefas. Sabemos que Veracidade est vivo; ele
provou isso a todos vocs com toda a eficcia. O
Bastardo ir tentar juntar-se a ele. Deve ser
parado antes que o faa, e ento o meu irmo
deve ser eliminado enquanto ameaa. Essas so
as nicas tarefas que lhes dei; por que no
conseguem conclu-las? No pensam no que vai
nos acontecer se Veracidade tiver sucesso?
Procurem-no, com o Talento e com homens. No
deixem que as pessoas se esqueam do que eu
ofereci pela sua captura. No deixem que se
esqueam da punio por ajud-lo. Entendido?
Claro, senhor meu rei. No pouparei esforos .
Emaranhado foi rpido para responder.
Cedoura? No ouo nada vindo de voc,
Cedoura. A ameaa de punio pairou sobre
todos.
Por favor, senhor meu rei. Eu farei tudo, seja o
que for. Vivo ou morto, irei encontr-lo para o
senhor. Irei encontr-lo.
Sem um agradecimento sequer, a presena de
Vontade e Majestoso desapareceu. Senti Cedoura
desmaiar. Emaranhado permaneceu por mais um
momento. Teria estado escuta, teria tentado
alcanar tateando a minha presena? Deixei que os
meus pensamentos voassem, livres, deixei que a
minha concentrao se dissipasse. Ento abri os
olhos e fiquei olhando para o teto, pensando. O
uso do Talento me deixara nauseado e tremendo.
Estou com voc, irmo, assegurou-me Olhos-de-
Noite.
E eu estou contente por voc estar. Virei para o
lado e tentei encontrar o sono.
CAPTULO 16

Esconderijo

Em muitas das velhas lendas e histrias sobre a


Manha, insiste-se que o utilizador da Manha
acaba por adotar muitas caractersticas do seu
animal de vnculo. Algumas das histrias mais
assustadoras dizem que um Manhoso acaba por
obter a capacidade de assumir a aparncia desse
animal. Os que conhecem intimamente essa
magia me asseguraram de que no assim.
verdade que um Manhoso pode, sem que perceba,
assumir alguns dos maneirismos fsicos do seu
animal de vnculo, mas no nascem asas a
algum que esteja vinculado a uma guia, e
algum vinculado a um cavalo no comea a
relinchar. Com o passar do tempo, um Manhoso
aumenta a sua compreenso do animal de
vnculo, e quanto mais tempo um ser humano e
um animal permanecerem vinculados, maior ser
a semelhana nos seus maneirismos. to
provvel que o animal de vnculo assuma as
caractersticas e maneirismos do ser humano
como que o ser humano adote os do animal. Mas
isso s acontece aps um longo perodo de
intenso contato.

Nico concordava com a ideia que Bronco tinha


sobre o momento em que as manhs comeavam.
Acordei ao som dos seus homens levando os
cavalos para fora. Um vento frio soprava pela
porta aberta. minha volta, na escurido, os
outros moviam-se. Uma das crianas chorava por
ter sido acordada to cedo. A me mandou-a se
calar. Moli, pensei com sbita saudade. Em algum
lugar, mandando a minha filha se calar.
O que isso?
A minha parceira pariu uma cria. Muito longe.
Preocupao imediata. Mas quem caar carne
para aliment-las? No devamos voltar para
junto dela?
Corao da Matilha est cuidando dela.
Claro. Eu devia ter percebido logo. Esse sabe o
que quer dizer alcateia, por mais que o negue.
Ento est tudo bem.
Enquanto me levantava e entrouxava os meus
cobertores, desejei poder aceitar aquilo to
jovialmente quanto ele. Sabia que Bronco cuidaria
delas. Era essa a sua natureza. Lembrei todos os
anos em que cuidara de mim enquanto eu crescia.
Naquela poca, eu o odiara com frequncia; agora
no conseguia pensar em mais ningum que
preferisse que tomasse conta de Moli e da minha
beb. Exceto eu. Preferiria, de longe, que fosse eu
que estivesse cuidando delas, at mesmo
embalando uma beb chorona no meio da noite.
Embora, naquele momento, eu gostaria muito que a
peregrina arranjasse uma maneira de aquietar a sua
criana. Eu estava pagando pela espionagem de
Talento da noite anterior com uma violenta dor de
cabea.
A comida pareceu ser a resposta, pois quando a
menina comeu uma fatia de po e um pedao de
favo de mel, acalmou-se rapidamente. Partilhamos
uma refeio apressada, com o ch como nico
item quente. Reparei que Panela estava mexendo-
se de uma forma muito rgida e me apiedei dela.
Fui buscar um copo de ch quente para que ela
enrolasse nele os dedos retorcidos enquanto eu
enrolava os seus cobertores. Nunca vi mos to
contorcidas pelo reumatismo; lembravam-me as
garras de uma ave.
Um velho amigo meu dizia que s vezes a
ardncia das urtigas lhe aliviava as mos quando
doam sugeri enquanto amarrava a sua trouxa.
Encontre-me urtigas crescendo debaixo da
neve e eu experimento, garoto respondeu ela
num tom rabugento. Mas alguns momentos mais
tarde estava me oferecendo uma ma seca
proveniente das suas pequenas reservas. Aceitei-a
com agradecimentos. Carreguei as nossas coisas
na carroa e arreei a gua enquanto ela acabava de
beber o ch. Olhei ao redor, mas no vi sinal de
Olhos-de-Noite.
Caando, foi a resposta.
Gostaria de estar com voc. Boa sorte.
No devamos conversar pouco, para que
Majestoso no nos escute?
No respondi. Estava uma manh fria de cu
limpo, brilhante de uma forma que era quase
chocante depois da neve da vspera. Estava mais
frio do que estivera no dia anterior; o vento que
vinha do rio parecia atravessar os meus trajes,
descobrindo os buracos nos punhos e colarinhos
por onde enfiar os seus dedos frios. Ajudei Panela
a subir na carroa, e ento aconcheguei um de seus
cobertores ao seu redor, somando-o aos seus
agasalhos.
A sua me o treinou bem, Tom disse ela
com genuna gentileza.
Mesmo assim estremeci com o comentrio.
Esporana e Nico ficaram juntos conversando at
todos os outros estarem prontos para partir. Ento
ela montou o seu pnei de montanha e ocupou um
lugar ao lado de Nico cabea da nossa
procisso. Disse a mim mesmo que de qualquer
modo era provvel que Nico Grampo desse uma
balada melhor do que FitzCavalaria. Se ele
conseguisse persuadi-la a regressar consigo na
fronteira da Montanha, a minha vida s ficaria
mais simples.
Concentrei-me na minha tarefa. Na verdade, ela
pouco exigia de mim alm de evitar que a gua se
afastasse demais do carro dos peregrinos. Tive
tempo para ver a regio que atravessvamos.
Voltamos para a estrada pouco usada por onde
seguramos no dia anterior, e continuamos a seguir
o rio correnteza acima. Ao longo do rio havia
algumas rvores, mas, a curta distncia da
margem, o terreno transformava-se numa extenso
ondulada de arbustos e vegetao rasteira.
Barrancos e ravinas cortavam a nossa estrada ao
descerem para o rio. Parecia que em alguma poca
houve gua em abundncia por ali, talvez na
primavera. Mas agora a terra estava seca, exceto
pela neve cristalina que era soprada como se fosse
areia no leito do rio.
Ontem a menestrel fez voc sorrir para si
mesmo. Por quem a cara amarrada de hoje?
perguntou Panela em voz baixa.
Estava pensando que uma pena ver no que
esta rica terra se transformou.
Estava, ? perguntou a velha com secura.
Fale-me desse seu vidente eu disse,
principalmente para mudar de assunto.
Ele no meu disse ela com aspereza.
Ento se suavizou. provvel que eu esteja em
uma demanda idiota. Aquele que procuro pode
nem estar l. E, no entanto, que melhor uso tenho
eu para estes anos do que perseguir uma quimera?
Permaneci em silncio. Estava comeando a
descobrir que era essa a pergunta que ela melhor
respondia.
Sabe o que h nesta carroa, Tom? Livros.
Pergaminhos e escritos. Coisas que levei anos
para juntar. Reuni-os em muitas terras, aprendi a
ler em muitas lnguas e alfabetos. Em tantos
lugares encontrei referncias, repetidas vrias
vezes, aos Profetas Brancos. Eles surgem nos
pontos de confluncia da histria e a moldam. H
quem diga que vm colocar a histria no seu rumo
certo. Existem aqueles que acreditam, Tom, que
todo o tempo um crculo. Toda a histria uma
grande roda, que gira inexoravelmente. Tal como
as estaes vo e vm, tal como a lua se desloca
sem cessar pelo seu ciclo, assim acontece com o
tempo. Travamos as mesmas guerras, caem as
mesmas pragas, as mesmas pessoas, boas ou ms,
ascendem ao poder. A humanidade est presa
nessa roda, eternamente condenada a repetir os
erros que j cometera. A no ser que algum surja
para alter-los. Longe daqui, ao sul, existe uma
terra onde se acredita que em cada gerao existe
um Profeta Branco em algum lugar no mundo. Ele
ou ela vem e, se se der ouvidos quilo que
ensinado, o ciclo do tempo desloca-se para um
rumo melhor. Se isso for ignorado, todo o tempo
empurrado para um caminho mais sombrio.
Fez uma pausa, como se esperasse que eu
dissesse alguma coisa.
Nada sei sobre tais ensinamentos admiti.
No esperava que voc soubesse. Foi num
lugar distante que comecei a estudar essas coisas.
L se defendia que, se esses profetas falhassem,
continuamente, a histria repetida do mundo se
tornaria cada vez mais maligna, at que todo o
ciclo do tempo, centenas de milhares de anos, se
transforme numa histria de infelicidade e
maldade.
E se o profeta for escutado?
Cada vez que um deles tem sucesso, as coisas
tornam-se mais fceis para o seguinte. E quando
passar um ciclo inteiro no qual todos os profetas
tiverem xito, o prprio tempo parar por fim.
Ento eles trabalham pelo fim do mundo
futuro?
No pelo fim do mundo, Tom. Pelo fim do
tempo. Para libertar a humanidade do tempo. Pois
o tempo o maior escravizador de todos ns. O
tempo que nos envelhece, o tempo que nos limita.
Pense em quantas vezes voc desejou ter mais
tempo para qualquer coisa, ou desejou poder
voltar um dia para trs e fazer algo de forma
diferente. Quando a humanidade se libertar do
tempo, as velhas injustias podem ser corrigidas
antes de serem cometidas. Suspirou. Creio
que este o momento para a vinda de tal profeta. E
as minhas leituras me levaram a crer que o Profeta
Branco desta gerao surgir nas Montanhas.
Mas voc est s na sua demanda. Ningum
mais concorda com voc?
Muitos outros concordam. Porm poucos,
muito poucos, vo em busca de um Profeta Branco.
o povo ao qual o profeta enviado que tem de
lhe dar ouvidos. Os outros no devem interferir,
para no se correr o risco de afetarem o tempo de
forma negativa para sempre.
Eu ainda tentava entender o que ela dissera
sobre o tempo. Parecia dar um n no meu
raciocnio. A sua voz silenciou-se. Olhei para a
frente, por entre as orelhas da gua, e ponderei.
Tempo para voltar atrs e ser honesto com Moli.
Tempo para seguir Penacarrio, o escriba, em vez
de ser aprendiz de assassino. Ela me dera muito
em que pensar.
A nossa conversa parou durante algum tempo.
Olhos-de-Noite reapareceu pouco depois do
meio-dia. Saiu das rvores com ar decidido, a
trote, para se colocar ao lado da nossa carroa. A
gua lhe lanou vrios olhares nervosos enquanto
tentava fazer sentido do cheiro a lobo e do
comportamento de co. Sondei na sua direo e a
tranquilizei. Ele j estava ao meu lado havia algum
tempo quando Panela o viu. Inclinou-se para
frente, a fim de olhar para alm de mim, e depois
voltou a recostar-se.
H um lobo ao lado da nossa carroa
observou.
o meu co. Embora tenha algum sangue de
lobo admiti com indiferena.
Panela inclinou-se para frente, para olh-lo de
novo. Olhou de relance para a minha expresso
plcida. Ento se recostou.
Ento atualmente guardam ovelhas com lobos
em Cervo assentiu, e nada mais disse sobre ele.
Continuamos avanando a um ritmo constante
durante o resto do dia. No vimos ningum alm
de ns, e s vislumbramos uma pequena cabana
deixando um rastro de fumaa distncia. O frio e
o vento forte eram constantes, e essa permanncia
no era do tipo que se tornava mais fcil de
ignorar medida que o dia se estendia. Os rostos
dos peregrinos, no carro que seguia nossa frente,
tornaram-se mais plidos, os narizes mais
vermelhos, os lbios quase azuis numa das
mulheres. Aglomeravam-se como peixes em
salmoura, mas nem toda a sua proximidade parecia
lhes fornecer proteo contra o frio.
Mexi os ps dentro das botas para manter os
dedos despertos, e passei as rdeas de uma mo
para a outra enquanto estas faziam turnos para
aquecer os dedos debaixo do brao. Meu ombro
doa, e a dor corria pelo meu brao abaixo at que
mesmo os dedos j latejavam com ela. Tinha os
lbios secos, mas no me atrevia a umedec-los
com medo que estalassem. Poucas coisas so mais
penosas de enfrentar do que um frio constante.
Quanto a Panela, eu no duvidava de que o frio a
torturava. Ela no se queixava, mas conforme o dia
passava, parecia ficar cada vez menor dentro do
seu cobertor medida que se enrolava mais sobre
si mesma. O seu silncio parecia no ser mais do
que uma indicao suplementar do seu infortnio.
Ainda estvamos a algum tempo do cair da noite
quando Nico desviou as nossas carroas da
estrada e seguiu uma longa trilha quase coberta
pela neve soprada pelo vento. O nico sinal do
caminho que eu consegui distinguir era uma
quantidade menor de ervas espetadas acima da
neve, mas Nico parecia conhec-lo bem. Os
contrabandistas a cavalo abriram a trilha para os
carros. Mesmo assim, o caminho foi penoso para a
pequena gua de Panela. Olhei uma vez para trs
de ns e vi a vasta mo do vento alisando o nosso
rastro at ele no ser mais do que uma ondulao
na paisagem nevada.
A regio que atravessvamos parecia
incaracterstica, mas ondulava suavemente.
Acabamos por ultrapassar o ponto mais alto da
longa elevao que vnhamos subindo, e avistamos
um amontoado de edifcios que pareciam
invisveis da estrada. A noite aproximava-se. Uma
nica luz brilhava numa janela. Quando nos
dirigimos na sua direo, outras velas foram
acesas e Olhos-de-Noite detectou um vestgio de
fumaa de madeira no vento. ramos esperados.
As construes no eram antigas. Pareciam ter
sido recentemente concludas. Havia um amplo
celeiro. Com carros e tudo, levamos os cavalos l
para baixo, pois a terra fora escavada para que o
celeiro fosse parcialmente subterrneo. Era essa
silhueta baixa que fazia com que o lugar no fosse
visvel da estrada, e eu no duvidava de que era
esse o motivo que lhe dera origem. A menos que
um homem soubesse que aquele lugar estava ali,
nunca o encontraria. A terra proveniente da
escavao encontrava-se empilhada em volta do
celeiro e das outras construes. No interior das
espessas paredes, com as portas fechadas, nem
sequer conseguamos ouvir o vento. Uma vaca
leiteira movimentou-se na sua cocheira enquanto
desatrelvamos os cavalos e os colocvamos nas
outras. Havia palha e feno e um bebedouro com
gua fresca.
Os peregrinos j tinham descido da sua carroa
e eu estava ajudando Panela a descer da sua
quando a porta do celeiro voltou a se abrir. Uma
jovem gil com uma massa de cabelos vermelhos
empilhada sobre a cabea entrou num rompante.
De punhos no quadril, confrontou-se com Nico.
Quem so todas essas pessoas, e por que as
trouxe para c? Para que serve um esconderijo se
metade da regio o conhece?
Nico entregou o cavalo a um dos seus homens e
virou-se para ela. Sem uma palavra, tomou-a nos
braos e beijou-a. Porm, um momento mais tarde,
ela o afastou com um empurro.
O que voc est
Pagaram bem. Tm a sua prpria comida, e
podem se arranjar aqui dentro durante a noite.
Depois partiro, amanh, a caminho das
Montanhas. L em cima ningum se importa com o
que fazemos. No h perigo, Tel, voc se preocupa
demais.
Tenho de me preocupar por dois, j que voc
no tem juzo para se preocupar. Tenho comida
pronta, mas no suficiente para todo este grupo.
Por que no enviou uma ave para me avisar?
Enviei. No chegou aqui? Talvez a
tempestade a tenha atrasado.
Isso o que voc diz sempre que no se
lembra de envi-la.
Deixe para l, mulher. Tenho boas notcias
para voc. Vamos para sua casa conversar. O
brao de Nico repousava confortavelmente em
volta da cintura da mulher quando saram. Coube
aos homens dele nos acomodar. Havia palha onde
dormir, e muito espao por onde espalh-la. Havia
um poo com um balde ao lado para obter gua.
Havia uma pequena lareira numa das extremidades
do celeiro. A chamin permitia que muita fumaa
se espalhasse pelo celeiro, mas era o suficiente
para cozinhar. O celeiro no estava quente, a
menos que o comparssemos com o tempo que
fazia l fora. Mas ningum se queixou. Olhos-de-
Noite ficara do lado de fora.
H um galinheiro cheio de galinhas, disse-me
ele. E um pombal tambm.
Deixe-os em paz, adverti-o.
Esporana fez meno de sair com os homens de
Nico quando eles subiram para a casa, mas eles a
pararam na porta.
Nico disse que todos vocs devem passar
esta noite aqui dentro, em um s lugar. O
homem me lanou um olhar significativo. Numa
voz mais alta, disse: Peguem a sua gua agora,
porque vamos trancar a porta quando sairmos.
melhor para manter o vento afastado.
Ningum se deixou enganar por aquele
comentrio, mas ningum discutiu. Era evidente
que o contrabandista sentia que quanto menos
soubssemos sobre aquele esconderijo, melhor.
Era compreensvel. Em vez de nos queixarmos,
fomos buscar gua. Por hbito, voltei a encher o
bebedouro dos animais. Enquanto carregava o
quinto balde, perguntei a mim mesmo se alguma
vez perderia o reflexo de tratar primeiro dos
animais. Os peregrinos haviam se dedicado a
cuidar do seu prprio conforto. Logo comecei a
sentir o cheiro de comida sendo cozinhada na
lareira. Bem, eu tinha carne seca e po duro.
Bastaria.
Podia estar caando comigo. Aqui h caa.
Este vero tiveram um jardim, e os coelhos ainda
vm procura dos talos.
Ele estava deitado, protegido do vento pelo
galinheiro, com os restos de um coelho entre as
patas da frente. Mesmo enquanto comia, mantinha
um olho no jardim coberto de neve, espreita de
mais caa. Mastiguei sombriamente um pedao de
carne seca enquanto empilhava palha para a cama
de Panela na cocheira adjacente da sua gua.
Estava estendendo a manta por cima da palha
quando ela regressou de junto da lareira com o
bule na mo.
Quem foi que o encarregou de fazer a minha
cama? perguntou ela. Enquanto eu enchia os
pulmes para responder, acrescentou: Tenho
ch aqui, se voc tiver um copo. O meu est no
saco que ficou na carroa. L h tambm um pouco
de queijo e mas secas. Seja um bom garoto e v
busc-los para ns.
Enquanto o fazia, ouvi a voz e a harpa de
Esporana dar incio a uma melodia. Cantando em
troca do jantar, sem dvida. Bem, era o que os
menestris faziam, e eu duvidava de que ela
passasse fome. Trouxe o saco de Panela dona e
ela me arranjou uma poro generosa enquanto
comia apenas uma refeio ligeira. Sentamo-nos
nos cobertores e comemos. Durante a refeio, ela
no parou de me lanar olhares, e por fim
declarou:
Voc tem um ar familiar nas suas feies,
Tom. De que parte de Cervo voc disse que vinha?
Da Cidade de Torre do Cervo respondi
sem pensar.
Ah. E quem era a sua me?
Hesitei, e ento declarei:
Sal Linguado. Havia tantos filhos dela
correndo pela Cidade de Torre do Cervo que era
provvel que houvesse um chamado Tom.
Pescadores? Como foi que o filho de uma
peixeira acabou como pastor?
O meu pai cuidava de rebanhos
improvisei. Entre os dois ofcios, ns nos
arranjvamos bem o bastante.
Estou vendo. E lhe ensinaram a mostrar
cortesias de corte a mulheres idosas. E voc tem
um tio nas Montanhas. Que famlia.
Ele passou a viajar quando era novo e
acabou por se assentar por l. O interrogatrio
estava comeando a me fazer suar um pouco. E
tambm percebi que ela sabia disso. De que
parte de Cervo voc disse que a sua famlia vinha?
perguntei de repente.
No disse respondeu ela com um pequeno
sorriso.
Esporana apareceu de sbito porta da
cocheira. Empoleirou-se nela e debruou-se para
dentro.
Nico disse que vamos atravessar o rio dentro
de dois dias informou. Eu acenei com a cabea,
mas nada disse. Ela contornou a cocheira e atirou
com despreocupao a trouxa no cho, ao meu
lado. Seguiu-a e sentou-se apoiada nela, com a
harpa no colo. H dois casais l no fundo junto
lareira, brigando e discutindo. Parece que entrou
gua no po de viajante deles, e s conseguem
pensar em discutir de quem a culpa. E uma das
crianas est doente e vomitando. Pobrezinha. O
homem que est todo zangado por causa do po
mido no para de resmungar que um
desperdcio de comida alimentar o menino at que
ele pare com o vmito.
Esse deve ser o Convivo. Nunca conheci
homem mais conivente e avarento observou
Panela com cordialidade. E o menino, Selque.
Tem andado mais ou menos doente desde que
partimos de Calcede. E antes disso,
provavelmente. Acho que a me pensa que o
santurio de Eda pode cur-lo. Est se agarrando a
quimeras, mas tem ouro para isso. Ou tinha.
Aquilo deu incio a uma srie de fofocas entre as
duas. Eu me encostei no canto e ouvi com meio
ouvido e dormitei. Dois dias at o rio, prometi a
mim mesmo. E quanto mais at as Montanhas?
Interrompi para perguntar a Esporana se ela sabia.
Nico diz que no h maneira de saber, tudo
depende do tempo. Mas ele disse para no me
preocupar com isso. Os dedos percorreram
ociosamente as cordas da harpa. Quase
instantaneamente, duas crianas apareceram
porta da cocheira.
Vai cantar outra vez? perguntou a garota.
Era uma menininha magricela com cerca de seis
anos, com um vestido muito gasto. Havia pedaos
de palha no seu cabelo.
Gostariam que eu cantasse?
Como resposta, as crianas entraram aos saltos e
foram sentar-se de ambos os lados dela. Eu
esperava que Panela se queixasse daquela invaso,
mas ela nada disse, mesmo quando a menina se
instalou confortavelmente contra o seu corpo.
Panela comeou a lhe tirar a palha do cabelo com
os seus velhos dedos retorcidos. A menininha tinha
olhos escuros e trazia consigo uma boneca de cara
bordada. Quando sorriu para Panela, pude ver que
as duas no eram desconhecidas.
Cante aquela sobre a velha e o porco
implorou o menino a Esporana.
Eu me levantei e peguei a trouxa.
Preciso dormir um pouco desculpei-me.
De repente no conseguia suportar estar perto das
crianas.
Encontrei uma cocheira vazia mais perto da
porta do celeiro, e me deitei ali. Ouvia o
murmrio das vozes dos peregrinos perto da
lareira. Uma discusso ainda parecia estar em
andamento. Esporana cantava a cano sobre a
mulher, a escada e o porco, e depois cantou sobre
uma macieira. Ouvi os passos de alguns dos outros
vindo ouvir a msica. Disse a mim mesmo que
fariam melhor se dormissem, e fechei os olhos.
Tudo estava escuro e silencioso quando ela veio
minha procura na noite. Pisou na minha mo no
escuro, e depois quase deixou cair a trouxa em
cima da minha cabea. Eu nada disse, mesmo
quando ela se esticou ao meu lado. Estendeu os
cobertores para tambm me cobrir e ento se
enfiou por baixo da borda da minha. No me mexi.
De sbito senti a sua mo tocando meu rosto numa
interrogao.
Fitz? perguntou-me suavemente na
escurido.
O que ?
At que ponto confia em Nico?
J lhe disse. No confio nele. Mas acho que
vai nos levar para as Montanhas. Ao menos pelo
seu orgulho. Sorri nas trevas. A reputao
de um contrabandista tem de ser perfeita, entre
aqueles que a conhecem. Ele nos levar at l.
Voc estava zangado comigo mais cedo hoje?
Quando eu nada disse, acrescentou: Voc
me olhou to srio hoje de manh
O lobo a incomoda? perguntei com igual
franqueza.
Ela falou com suavidade.
Ento verdade?
Antes voc duvidava?
Da parte sobre voc ser Manhoso sim.
Pensava que era uma mentira perversa que eles
tinham contado ao seu respeito. Que o filho de um
prncipe pudesse ser Manhoso No parecia ser
um homem que pudesse partilhar a vida com um
animal. O tom da sua voz no me deixou
dvidas quanto ao modo como ela via tal hbito.
Bem. Mas sou. Uma minscula centelha de
ira me levou a falar com franqueza. Ele tudo
para mim. Tudo. Nunca tive amigo mais fiel,
disposto a abrir mo da vida pela minha sem
questionar. E mais do que a vida. Estar disposto a
morrer por outro ser uma coisa. Sacrificar o
nosso modo de vida por outro ser outra. isso o
que ele me d. O mesmo tipo de lealdade que eu
ofereo ao meu rei.
Pusera-me a pensar. At ento, nunca colocara a
nossa relao naqueles termos.
Um rei e um lobo disse Esporana em voz
baixa. Mais suavemente, acrescentou: No
gosta de mais ningum?
Moli.
Moli?
Est em casa. Em Cervo. a minha esposa.
Um pequeno e estranho tremor de orgulho
tremeluziu em mim enquanto dizia aquelas
palavras. A minha esposa.
Esporana sentou-se entre os cobertores,
deixando entrar uma corrente de ar frio. Puxei-os
em vo enquanto ela perguntava:
Uma esposa? Voc tem uma esposa?
E um beb. Uma menina. Apesar do frio e
da escurido, sorri com aquelas palavras. A
minha filha eu disse com suavidade, apenas
para ouvir o som das palavras. Tenho uma
esposa e uma filha em casa.
Ela se jogou nas trevas ao meu lado.
No, voc no tem! negou ela com um
sussurro enftico. Sou uma menestrel, Fitz. Se o
Bastardo tivesse casado, a notcia teria corrido o
ducado. Na verdade, havia rumores de que voc
estava destinado a Celeridade, a filha do Duque
Fortes.
Foi feito com discrio disse-lhe.
Ah. Entendo. No est realmente casado. O
que voc est tentando dizer que tem uma mulher.
Aquelas palavras me feriram.
Moli minha esposa eu disse com
firmeza. De todas as maneiras que me
importam, ela minha esposa.
E das maneiras que possam importar a ela? E
criana? perguntou Esporana com uma voz
calma.
Respirei fundo.
Quando eu regressar, isso ser a primeira
coisa que remediaremos. Foi-me prometido, pelo
prprio Veracidade, que quando ele for rei eu
poderei casar com quem desejar. Uma parte de
mim estava horrorizada com a forma livre como eu
estava falando com ela. Outra parte perguntava:
que mal pode fazer que ela saiba? E havia alvio
em poder falar do assunto.
Ento vai mesmo procura de Veracidade?
Vou servir o meu rei. Dar toda a ajuda que
possa a Kettricken e criana que herdeira de
Veracidade. E depois vou prosseguir viagem, para
alm das Montanhas, para encontrar o meu rei e
lhe devolver o poder. Para que ele possa expulsar
os Navios Vermelhos da costa dos Seis Ducados e
possamos conhecer de novo a paz.
Por um momento, tudo foi silncio, salvo o vento
cortante que soprava fora do celeiro. Ento ela
soltou uma bufada suave.
Se voc fizer nem que seja metade disso, eu
terei a minha cano heroica
No tenho qualquer desejo de ser um heri.
S de fazer o que tenho de fazer para ser livre para
viver a minha prpria vida.
Pobre Fitz. Nenhum de ns realmente livre
para fazer isso.
Voc me parece muito livre.
Pareo? A mim parece que cada passo que
dou me leva mais para o fundo de um atoleiro, e
que quanto mais luto, mais firmemente fico presa.
Como assim?
Ela soltou uma gargalhada estrangulada.
Olhe em volta. Aqui estou eu, dormindo em
cima de palha e cantando em troca do jantar,
apostando que acabar havendo uma maneira de
atravessar aquele rio e prosseguir at as
Montanhas. E se fizer tudo isso, terei atingido o
meu objetivo? No. Ainda tenho de andar atrs de
voc at que voc faa alguma coisa que valha
uma cano.
Na verdade, no tem eu disse, um tanto
consternado pela ideia. Podia seguir o seu
caminho, e construindo uma carreira como
menestrel. Voc parece se sair bastante bem nesse
ofcio.
Bem o suficiente. Bem o suficiente para um
menestrel itinerante. Voc j me ouviu cantar, Fitz.
Tenho uma voz bastante boa, e dedos bastante
geis. Mas no sou extraordinria, e isso o que
preciso para ganhar uma posio como menestrel
de castelo. E isso supondo que ainda haver
castelos dentro de uns cinco anos. No me agrada
em nada cantar para um pblico dos Navios
Vermelhos.
Durante um momento, permanecemos calados,
pensando.
Veja bem prosseguiu ela passado um
tempo , eu j no tenho ningum. Meus pais e
irmo morreram. O meu velho mestre morreu;
Lorde Bronze, que gostava de mim principalmente
pelo meu mestre, morreu. Todos mortos quando o
castelo ardeu. Os Salteadores acharam que eu
estava morta, entende? Do contrrio, eu estaria
mesmo morta. Pela primeira vez, ouvi indcios
de um antigo medo na sua voz. Ficou em silncio
durante algum tempo, pensando em tudo o que no
mencionaria. Rolei sobre mim mesmo para olh-
la. S posso contar comigo. Por ora, para
sempre. S comigo. E h um limite no tempo que
um menestrel pode passar vagando por a,
cantando em estalagens em troca de moedas. Se
quiser ter conforto quando envelhecer, precisa
conquistar um lugar num castelo. S uma cano
realmente boa pode fazer isso por mim, Fitz. E
tenho uma quantidade limitada de tempo para
encontr-la. Sua voz se tornou mais suave e o
hlito quente quando disse: E por isso o
seguirei. Porque grandes acontecimentos parecem
ocorrer por onde voc passa.
Grandes acontecimentos? escarneci.
Ela aproximou-se mais de mim.
Grandes acontecimentos. A abdicao do
Prncipe Cavalaria. O triunfo contra os Navios
Vermelhos na Ilha da Armao. No foi voc quem
salvou a Rainha Kettricken dos Forjados na noite
em que ela foi atacada, logo antes da Caada da
Rainha Raposa? Ora, a est uma cano que eu
gostaria de ter escrito. Para no falar de precipitar
os tumultos na noite da coroao do Prncipe
Majestoso. Vejamos. Voltar dos mortos, tentar
matar o Prncipe Majestoso no interior do Palcio
de Vaudefeira e escapar inclume. Matar sozinho
meia dzia dos seus guardas enquanto estava
agrilhoado Tive a sensao de que devia ter
seguido voc nesse dia. Mas eu diria que tenho
uma boa chance de testemunhar algo digno de nota
se me mantiver agarrada barra da sua camisa de
agora em diante.
Nunca pensara naqueles acontecimentos como
uma lista de coisas que causara. Quis protestar,
dizer que no causara nenhuma delas, que fora
simplesmente apanhado pelas rodas de amolar da
histria. Porm, apenas suspirei.
Tudo o que quero fazer ir para casa para
Moli e a nossa filhinha.
Ela provavelmente anseia pela mesma coisa.
No pode ser fcil para ela passar a vida
perguntando-se quando voc regressar, e se o
far.
Ela no se pergunta. Acredita que j estou
morto.
Passado algum tempo, Esporana disse de um
modo hesitante:
Fitz. Ela acha que voc est morto. Como
voc pode acreditar que ela estar l sua espera
quando voc regressar, que no encontrar outra
pessoa?
Eu compusera uma dzia de cenas na cabea.
Que poderia morrer antes de voltar para casa, ou
que quando regressasse Moli me veria como
mentiroso e Manhoso, que se sentiria repelida
pelas minhas cicatrizes. Estava completamente
preparado para v-la zangada comigo por no
deixar que soubesse que eu estava vivo. Mas
explicaria que eu achava que ela tinha encontrado
outro homem e que era feliz com ele. E ento ela
compreenderia e me perdoaria. Afinal, fora ela
quem me deixara. Sem que soubesse por qu, eu
nunca imaginara voltar para casa e descobrir que
ela me substitura por outra pessoa. Estpido.
Como poderia no ter previsto que isso podia
acontecer, simplesmente porque era a pior coisa
que eu era capaz de imaginar? Falei mais para
mim do que para Esporana.
Suponho que melhor entrar em contato com
ela. Enviar-lhe uma mensagem, de algum modo.
Mas no sei exatamente onde ela est. Nem a quem
confiaria tal mensagem.
H quanto tempo voc est afastado?
perguntou ela.
De Moli? Quase um ano.
Um ano! Homens Esporana murmurou
baixinho para si mesma. Partem para combater
e viajar e esperam que as suas vidas estejam
espera deles quando regressam. Vocs esperam
que as mulheres fiquem para trs para cuidar dos
campos, educar as crianas e remendar o telhado e
criar a vaca, para que quando entrarem de novo
pela porta possam encontrar a cadeira ainda junto
lareira e po quente na mesa. Sim, e um corpo
quente e solcito na cama, ainda sua espera.
Ela estava comeando a parecer zangada. H
quantos dias voc saiu de perto dela? Bem, foram
os mesmos dias que ela teve de enfrentar sem
voc. O tempo no para para ela s porque voc
foi embora. Como voc pensa nela? Embalando a
beb ao lado de uma lareira quente? Que tal isto?
A beb est na casa, chorando e sem ningum que
cuide dela, deitada na cama, enquanto ela est na
chuva e no vento tentando cortar lenha porque o
fogo se apagou enquanto ela andava da casa para o
moinho e do moinho para a casa, tentando arranjar
um pouco de farinha.
Afastei aquela imagem. No. Bronco no
deixaria que isso acontecesse.
Na minha cabea, eu a vejo em muitas
situaes. No s nas boas defendi-me. E
ela no est completamente sozinha. Um amigo
meu est cuidando dela.
Ah, um amigo concordou Esporana num
tom suave. E ele bonito, espirituoso e ousado
o suficiente para roubar o corao de qualquer
mulher?
Bufei.
No. Ele mais velho. teimoso e
rabugento. Mas tambm firme, digno de
confiana e ponderado. Sempre trata as mulheres
bem. Com educao e gentileza. Ele cuidar bem
tanto dela como da criana. Sorri para mim
mesmo, e soube que era verdade o que dizia
quando acrescentei: Matar qualquer homem
que parea ser uma ameaa para elas.
Firme, gentil e ponderado? Trata bem as
mulheres? A voz de Esporana tornou-se mais
aguda com um interesse fingido. Sabe como um
homem assim raro? Diga-me quem ele , quero-o
para mim. Se a sua Moli o largar.
Confesso que passei por um momento de
constrangimento. Lembrei-me de um dia em que
Moli me provocara, dizendo que eu era a melhor
coisa a sair dos estbulos desde Bronco. Quando
me mostrara ctico quanto quilo ter sido um
elogio, ela me dissera que ele era bem visto entre
as damas, apesar dos seus silncios e modos
reservados. Teria ela alguma vez olhado para
Bronco com interesse? No. Fora comigo que ela
fizera amor nesse dia, agarrando-se a mim, apesar
de no podermos nos casar.
No. Ela me ama. S a mim.
No pretendia dizer as palavras em voz alta.
Alguma nota na minha voz deve ter tocado um
lugar mais bondoso na natureza de Esporana.
Desistiu de me atormentar.
Oh. Ento est bem. Mas ainda acho que
devia mandar uma mensagem a ela. Para que ela
tenha uma esperana que a mantenha forte.
Mandarei prometi a mim mesmo. Assim
que chegasse a Jhaampe. Kettricken conheceria
alguma maneira de eu enviar uma mensagem a
Bronco. Podia enviar apenas uma breve mensagem
escrita, elaborada de uma forma que no fosse
clara demais para o caso de ser interceptada.
Podia pedir a Bronco para lhe dizer que estava
vivo e voltaria para ela. Mas como eu faria a
mensagem chegar at ele?
Fiquei em silncio, ponderando na escurido.
No sabia onde Moli estava vivendo. Renda talvez
soubesse. Mas no podia enviar uma mensagem
atravs de Renda sem que Pacincia descobrisse.
No. Nenhuma delas podia saber. Tinha de haver
algum que ambos conhecssemos, algum em
quem pudesse confiar. Breu, no. Podia confiar
nele, mas ningum saberia como encontrar Breu,
mesmo que o conhecessem por esse nome.
Em algum lugar no celeiro, um cavalo bateu com
um casco na parede de uma cocheira.
Est muito calado sussurrou Esporana.
Estou pensando.
No queria aborrec-lo.
No aborreceu. S me fez pensar.
Oh. Uma pausa. Estou com tanto frio.
Eu tambm. Mas l fora est mais frio.
Isso no me deixa nem um pouquinho mais
quente. Abrae-me.
No era um pedido. Aninhou-se ao meu peito,
enfiando a cabea sob o meu queixo. Cheirava
bem. Como as mulheres conseguiam cheirar
sempre bem? De uma forma desajeitada, coloquei
os braos em volta dela, grato pelo calor a mais,
mas desconfortvel pela proximidade.
Assim melhor suspirou ela. Senti o seu
corpo descontraindo-se contra o meu.
Acrescentou: Espero que tenhamos em breve
uma oportunidade para tomar banho.
Eu tambm.
No que voc cheire to mal assim.
Obrigado eu disse, um pouco irritado.
Importa-se se eu for dormir agora?
V em frente. Colocou uma mo no meu
quadril e acrescentou: Se tudo o que consegue
pensar em fazer.
Consegui respirar fundo. Moli, disse a mim
mesmo. Esporana estava to quente e prxima,
cheirava to bem. Os seus modos de menestrel
faziam pouco do que sugeria. Para ela. Mas o que
era Moli, realmente, para mim?
J lhe disse. Sou casado. Era difcil falar.
Hum. E ela o ama, e evidente que voc a
ama. Mas somos ns que estamos aqui, e com frio.
Se ela ama voc tanto assim, ela acharia ruim que
voc arranjasse um pouco mais de calor e conforto
numa noite to fria?
Foi difcil, mas me forcei a pensar um pouco
sobre aquilo, e ento sorri para mim mesmo na
escurido.
Ela no acharia apenas ruim. Iria arrancar a
cabea de cima dos ombros.
Ah. Esporana soltou uma gargalhada
suave no meu peito. Entendo. Afastou o
corpo do meu, gentilmente. Desejei estender a mo
e pux-la para mim. Ento talvez seja melhor
apenas irmos dormir. Durma bem, Fitz.
E foi o que fiz, mas no de imediato e no sem
arrependimento.
A noite nos trouxe ventos mais fortes, e quando
as portas do celeiro foram destrancadas de manh,
fomos saudados por uma camada fresca de neve. A
possibilidade de termos problemas srios com as
carroas caso a neve se tornasse mais funda me
preocupou. Contudo, Nico parecia confiante e
jovial enquanto nos fazia subir nos veculos.
Despediu-se com carinho da sua senhora e
voltamos a seguir caminho. Levou-nos para fora
do lugar por um caminho diferente daquele que
tnhamos seguido para chegar l. Este era mais
irregular, e em alguns lugares a neve havia se
amontoado com profundidade suficiente para que
os corpos das carroas escavassem um caminho
atravs dela. Esporana seguiu ao nosso lado
durante parte da manh, at que Nico mandou um
homem para trs, para lhe perguntar se ela queria
lhe fazer companhia. Ela agradeceu o convite com
alegria, e foi prontamente juntar-se a ele.
No incio da tarde, voltamos para a estrada.
Pareceu-me que havamos ganhado pouco por
termos evitado a estrada durante tanto tempo, mas
sem dvida Nico tivera os seus motivos. Talvez
quisesse simplesmente evitar criar um caminho
batido at o seu esconderijo. Naquela noite o
nosso abrigo foi rudimentar, algumas cabanas em
runas perto da margem do rio. Os telhados de
colmo estavam cedendo, de modo que havia dedos
de neve no cho em certos lugares, e uma grande
pluma de neve que entrara por baixo da porta. Os
cavalos no tinham nenhum abrigo alm da
proteo que as paredes das cabanas forneciam
contra o vento. Levamos os animais para beber no
rio e cada um obteve uma poro de gros, mas
no havia ali feno sua espera.
Olhos-de-Noite foi comigo recolher lenha, pois
embora houvesse suficiente junto s lareiras para
acender um fogo para cozinhar, no bastava para a
noite. Enquanto descamos margem do rio para
procurar madeira trazida pela corrente, ponderei
sobre como as coisas haviam mudado entre ns.
Conversvamos menos do que antes, mas eu sentia
que estava mais consciente dele do que j estivera.
Talvez houvesse menos necessidade de conversar.
Mas ns dois tambm havamos mudado durante o
tempo que passamos longe um do outro. Quando eu
o olhava agora, s vezes via primeiro o lobo e s
depois o meu companheiro.
Acho que voc finalmente comeou a me
respeitar como mereo. Havia provocao, mas
tambm verdade naquela afirmao. Ele apareceu
de sbito num macio de arbustos na margem do
rio minha esquerda, saltou com facilidade por
cima da trilha varrida pelo vento e, sem que eu
soubesse como, conseguiu desaparecer em pouco
mais do que dunas de neve e arbustos sem folhas e
rasteiros.
Voc no mais um filhote, isso certo.
Nenhum de ns mais filhote. Ambos
descobrimos isso nesta viagem. Voc j no
pensa em si mesmo como garoto.
Avancei com dificuldade pela neve, sem uma
palavra, e refleti sobre aquilo. No sabia ao certo
quando decidira por fim que era um homem e no
mais um garoto, mas Olhos-de-Noite tinha razo.
Estranhamente, senti um momento de perda por
esse rapaz desaparecido com o rosto liso e
coragem fcil.
Acho que eu era melhor como garoto do que
sou como homem, admiti ao lobo, com tristeza.
Por que no espera at passar um pouco mais
tempo como homem antes de tomar essa
deciso?, sugeriu ele.
O caminho que seguamos quase no possua a
largura de uma carroa e era visvel apenas como
uma faixa onde nenhuma vegetao rasteira
espreitava acima da neve. O vento estava
atarefado esculpindo a neve em dunas e montes. Eu
caminhava na direo do vento, e a minha testa e
nariz logo comearam a arder com o seu rude
beijo. O terreno era pouco diferente daquele por
que passramos nos ltimos dias, mas a
experincia de me deslocar atravs dele apenas
com o lobo, em silncio, fazia-o parecer um
mundo diferente. E ento chegamos ao rio.
Parei no talude que descia para o rio e olhei
para o outro lado. Gelo cobria as bordas em
alguns lugares, e ocasionais aglomerados de
madeira trazida rio abaixo pela corrente
transportavam s vezes uma carga de gelo sujo e
neve grudada. A corrente era forte, como o
balanar rpido da madeira mostrava. Tentei
imaginar o rio coberto de gelo, e no consegui. Do
outro lado daquela inundao apressada havia
contrafortes cobertos de densas sempre-vivas que
se abriam para uma plancie de carvalhos e
salgueiros que chegavam at a borda de gua.
Suponho que a gua parara o alastrar do incndio
todos aqueles anos antes. Perguntei-me se o lado
do rio em que me encontrava teria sido alguma vez
to arborizado assim.
Veja, rosnou Olhos-de-Noite com desejo.
Consegui sentir a intensidade da sua fome quando
ele olhou para um grande cervo que viera at o rio
para beber. O animal levantou a cabea ornada
pela galhada, detectando-nos, mas nos olhou
calmamente, sabendo que estava em segurana.
Fiquei com a boca cheia de gua com os
pensamentos de Olhos-de-Noite sobre carne
fresca. A caa vai ser muito melhor do outro
lado.
Espero que sim. Saltou do talude para os
cascalhos e pedras envoltas em neve da beira do
rio, e saiu andando rio acima. Eu o segui com
menos graa, encontrando gravetos secos pelo
caminho. A caminhada era mais difcil ali embaixo
e o vento mais cruel, carregado como estava com o
frio do rio. Mas tambm era uma caminhada mais
interessante, trazendo de algum modo mais
possibilidades. Observei Olhos-de-Noite que
patrulhava minha frente. Ele agora movia-se de
um modo diferente. Perdera muita da sua
curiosidade de filhote. O crnio de veado que
antes teria exigido uma farejada cuidadosa, agora
no foi mais do que rapidamente virado ao
contrrio, para Olhos-de-Noite ter certeza de que
no passava mesmo de ossos limpos, antes de
prosseguir no seu caminho. Mostrava
premeditao quando examinava emaranhados de
madeira trazida pelo rio para verificar se haveria
caa abrigada embaixo. Examinava tambm os
taludes erodidos do rio, farejando em busca de
sinais de caa. Saltou sobre um pequeno roedor de
uma espcie qualquer que se aventurou a sair da
toca sombra do talude e o devorou. Escavou
rapidamente a entrada da toca, e ento enfiou nela
o focinho, a fim de farejar com ateno.
Convencido de que no havia mais habitantes para
desenterrar, prosseguiu a trote.
Dei por mim observando o rio enquanto o
seguia. Quanto mais o via, mais intimidante se
tornava, no menos. A profundidade que tinha e a
fora da sua corrente eram comprovadas pelos
imensos troncos de razes salientes que
balanavam e se viravam enquanto as guas os
empurravam. Perguntei-me se a tempestade de
vento teria sido pior rio acima, para tais gigantes
terem sido arrancados da terra, ou se o rio teria
corrodo lentamente as suas fundaes at que as
rvores tombaram na gua.
Olhos-de-Noite continuou patrulhando minha
frente. Foram mais duas as vezes que o vi saltar e
prender um roedor contra a terra com os dentes e
as patas. Eu no tinha certeza do que eram; no se
pareciam exatamente com ratazanas, e o aspecto
lustroso das suas pelagens parecia indicar que
estavam em casa dentro de gua.
A carne no precisa realmente de um nome ,
observou Olhos-de-Noite com ironia, e fui forado
a concordar com ele. O lobo atirou alegremente a
presa para o ar e voltou a apanh-la quando
desceu rodopiando. Sacudiu violentamente o
cadver do animal, e ento voltou a atir-lo para o
ar, danando atrs dele, apoiado nas patas
traseiras. Por um momento o seu prazer simples foi
contagioso. Ele tinha a satisfao de uma caada
bem-sucedida, carne para lhe encher a barriga e
tempo para com-la sem ser molestado. Dessa vez,
o corpo mole passou voando por cima da minha
cabea e eu saltei para apanh-lo e ento atir-lo
ainda mais alto. O lobo saltou bem alto atrs dele,
abandonando o cho com as quatro patas.
Apanhou-o com habilidade, e ento se agachou,
mostrando-o a mim, desafiando-me a persegui-lo.
Larguei a braada de lenha e saltei atrs dele. Ele
esquivou-se de mim com facilidade, e ento
voltou-se para mim, desafiando-me, passando
correndo por mim, fora do alcance do meu brao,
enquanto eu me atirava sobre ele.
Ei!
Ambos paramos com a brincadeira. Levantei-me
lentamente do cho. Era um dos homens de Nico,
l longe em cima do talude, observando-nos.
Trazia o arco.
Apanhe alguma lenha e venha agora
ordenou-me. Olhei em volta, mas no consegui
encontrar motivo para o tom irritado da sua voz.
Apesar disso, apanhei a minha braada de lenha,
que se espalhara ao cair no cho, e voltei para as
cabanas.
Encontrei Panela apertando os olhos para um
pergaminho luz da lareira, ignorando os que
tentavam cozinhar volta dela.
O que est lendo? perguntei-lhe.
Os escritos de Conluio, o Branco. Um profeta
e vidente dos tempos de Kimoala.
Encolhi os ombros. Os nomes nada significavam
para mim.
Atravs da sua orientao, foi negociado um
tratado que ps fim a cem anos de guerra. Isso
permitiu que trs povos se transformassem num s.
O conhecimento foi partilhado. Muitos tipos de
alimentos que antes cresciam apenas nos vales
meridionais de Kimoala entraram no uso comum.
O gengibre, por exemplo. E a quimaveia.
Um s homem fez isso?
Um homem. Ou talvez dois, se contar o
general que ele persuadiu a conquistar sem
destruir. Aqui, ele fala dele. DarAles foi um
catalisador para o seu tempo, um alterador de
coraes e vidas. No surgiu para ser heri, mas
para dar espao ao heri que existia em outros.
Surgiu, no para cumprir profecias, mas para abrir
as portas a novos futuros. sempre essa a tarefa
do catalisador. Mais acima, ele escrevia que a
possibilidade de ser um catalisador no nosso
tempo existe em todos ns. O que acha disso,
Tom?
Preferiria ser um pastor respondi com
honestidade. Catalisador no era uma palavra
que me agradava.
Naquela noite dormi com Olhos-de-Noite ao
meu lado. Panela ressonava suavemente no muito
longe de mim, enquanto os peregrinos se
aglomeravam numa das extremidades da cabana.
Esporana decidira dormir na outra cabana com
Nico e alguns dos seus homens. Durante algum
tempo, o som da sua harpa e voz foram
ocasionalmente trazidos at mim por rajadas de
vento.
Fechei os olhos e tentei sonhar com Moli. Em
vez disso, vi uma aldeia ardendo em Cervo,
enquanto os Navios Vermelhos voltavam a se
lanar ao mar. Juntei-me a um rapaz novo que
desfraldava a vela nas trevas, para abalroar o
flanco de um Navio Vermelho com o seu dri.
Atirou para dentro do Navio Vermelho uma
lanterna acesa, e ento atirou tambm um balde de
leo de peixe barato, como o que os pobres
queimavam nas suas lamparinas. A vela incendiou-
se enquanto o rapaz afastava o seu barco do navio
em chamas. Atrs dele, as pragas e gritos dos
homens queimando elevaram-se com as chamas.
Passei essa noite montado nele, e senti o seu
triunfo amargo. Nada lhe restava, nem famlia, nem
casa, mas derramara um pouco do sangue que
derramara o seu. Compreendi bem demais as
lgrimas que lhe umedeceram o rosto sorridente.
CAPTULO 17

Travessia do Rio

Os Ilhus sempre falaram com zombaria do povo


dos Seis Ducados, declarando-nos escravos da
terra, agricultores aptos apenas a fossar no solo.
Eda, a deusa me a quem so dadas graas por
colheitas abundantes e rebanhos que se
multiplicam, desdenhada pelos Ilhus como
uma deusa para gente sedentria que perdeu
toda a coragem. Os Ilhus adoram apenas El, o
deus do mar. No uma divindade qual se d
graas, mas um deus em quem ter confiana. As
nicas bnos que ele envia aos seus
adoradores so tempestades e dificuldades para
lhes dar fora.
Nisso avaliaram mal o povo dos Seis Ducados.
Acreditaram que as pessoas que cultivavam a
terra e criavam ovelhas acabariam logo por no
ter mais coragem do que ovelhas. Surgiram entre
ns, massacrando e destruindo, e confundiram a
nossa preocupao pela nossa gente com
fraqueza. Nesse inverno, o povo de Cervo e
Vigas, Rasgo e Razos, os pescadores e pastores,
as criadoras de gansos e os criadores de porcos,
deram continuao guerra que os nossos
nobres belicosos e exrcitos dispersos tinham
travado to mal, e tornaram-na sua. O povo de
uma terra s pode ser oprimido durante um
tempo limitado at que se erga em autodefesa,
seja contra forasteiros, seja contra um senhor
injusto.

Os outros resmungaram na manh seguinte contra o


frio e a necessidade de pressa. Conversavam com
nostalgia sobre mingaus e bolos quentes. Havia
gua quente, mas pouco mais do que isso para nos
aquecer as barrigas. Enchi o bule de Panela e
depois fui encher tambm a minha caneca com
gua quente. Apertei os olhos contra a dor
enquanto vasculhava a trouxa em busca do casco-
de-elfo. O sonho de Talento que tivera na noite
anterior me deixara trmulo e me sentindo doente.
A simples ideia de comida me deixava enjoado.
Panela bebericou o seu ch e me observou
enquanto eu usava a faca para raspar lascas de um
pedao de casca para dentro da caneca. Foi difcil
me forar a esperar que o lquido fervesse. A sua
extrema amargura inundou minha boca, mas senti
quase de imediato a dor de cabea se atenuar.
Panela estendeu abruptamente uma mo em forma
de garra para me arrancar o pedao de casca dos
dedos. Olhou-o, cheirou-o e exclamou:
Casco-de-elfo! Lanou-me um olhar de
horror. Isto uma erva perigosa para um jovem
usar.
Ela acalma as minhas dores de cabea
disse-lhe. Respirei fundo para me fortalecer, e
ento esvaziei o resto da caneca. Os restos
granulados de casca grudavam em minha lngua.
Forcei-me a engoli-los, ento limpei a caneca e
voltei a enfi-la na trouxa. Estendi a mo, e ela
devolveu o pedao de casca, embora com
relutncia. O olhar que ela me lanava era muito
estranho.
Nunca tinha visto ningum beb-lo
simplesmente dessa maneira. Sabe para o que isso
usado em Calcede?
Disseram-me que do aos escravos das gals,
para lhes manter as foras.
Para lhes manter as foras e a falta de
esperana. Um homem sob o efeito de casco-de-
elfo facilmente desencorajado. Mais fcil de
controlar. Pode amortecer uma dor de cabea, mas
tambm amortece a mente. Eu teria cuidado com
ele, se fosse voc.
Encolhi os ombros.
J o uso h anos disse-lhe enquanto
devolvia a casca minha trouxa.
Mais motivo para parar agora retorquiu
ela num tom azedo. Entregou-me a sua trouxa para
que a guardasse na carroa.
Estvamos no meio da tarde quando Nico ordenou
uma parada. Ele e dois dos seus homens seguiram
adiante, enquanto os outros nos asseguravam de
que tudo estava bem. Nico adiantava-se para
preparar o lugar da travessia antes de chegarmos
l. Nem sequer precisei olhar de relance para
Olhos-de-Noite. Ele escapuliu para seguir Nico e
os seus homens. Recostei-me no assento e me
abracei, tentando permanecer quente.
Ei, voc. Chame o co de volta! ordenou-
me de sbito um dos homens de Nico.
Endireitei-me no banco e fiz um grande
espetculo de olhar em volta sua procura.
provvel que s tenha sentido o cheiro de
um coelho. Ele voltar. Ele me segue para todo o
lado, segue sim.
Chame-o de volta agora! disse-me o
homem num tom de ameaa.
Ento me levantei na carroa e chamei Olhos-
de-Noite. Ele no veio. Encolhi os ombros numa
desculpa e voltei a me sentar. Um dos homens
continuou a me olhar furioso, mas eu o ignorei.
O dia tinha estado limpo e frio, o vento cortante.
Panela passara-o todo num silncio infeliz. Dormir
no cho despertara a velha dor no meu ombro,
transformando-a numa pontada constante. Nem
queria imaginar o que ela estaria sentindo. Tentei
pensar apenas que em breve estaramos do outro
lado do rio, e que depois disso as Montanhas no
ficavam longe. Nas Montanhas talvez me sentisse
finalmente a salvo do crculo de Majestoso.
H uns homens puxando cordas junto ao rio.
Fechei os olhos e tentei ver o que Olhos-de-Noite
via. Era difcil, pois ele dirigia os olhos para os
homens propriamente ditos, enquanto eu queria
estudar a tarefa que eles desempenhavam. Porm,
na mesma hora em que distingui que estavam
usando uma linha mestra para voltar a passar uma
corda mais pesada atravs do rio, outros dois
homens na outra margem comearam a escavar
energicamente uma pilha de madeira trazida pela
corrente na curva de um talude. A barcaa oculta
foi rapidamente revelada, e os homens passaram a
quebrar o gelo que se formara sobre ela.
Acorda! disse-me Panela num tom
irritado, e me cutucou nas costelas com um dedo.
Endireitei-me e vi o outro carro j em movimento.
Sacudi as rdeas da gua e segui os outros.
Viajamos um pouco pela estrada do rio antes de
virarmos para uma seo aberta de margem. Havia
algumas cabanas queimadas junto ao rio que
aparentemente haviam perecido nos incndios de
anos antes. Tambm havia uma rampa rudimentar
feita de troncos e argamassa, muito apodrecida.
Do outro lado do rio, vi os restos da velha
barcaa, meio afundados. Partes dela estavam
cobertas de gelo, mas tambm dela se erguia
capim morto. Tinham-se passado muitas estaes
desde que flutuara. As cabanas do outro lado
estavam em to mau estado quanto as deste, pois
os seus telhados de colmo haviam rudo por
completo. Por trs delas erguiam-se suaves colinas
cobertas de sempre-vivas. Por trs destas,
erguendo-se distncia, viam-se os picos do
Reino da Montanha.
Um grupo de homens j prendera a barcaa e
atravessava o rio nela para o nosso lado. A proa
apontava para a corrente. A barcaa estava
fortemente amarrada corda da polia; mesmo
assim, o rio furioso esforava-se para solt-la e
lev-la correnteza abaixo. A embarcao no era
grande. Uma carroa e uma parelha caberiam
apertadas. Havia amuradas ao longo dos lados da
barcaa, mas, fora isso, ela no passava de um
convs liso e aberto. Do nosso lado, os pneis que
Nico e os seus homens montavam haviam sido
atrelados para puxar o cabo de reboque da
barcaa, enquanto do outro lado uma parelha de
pacientes mulas recuava lentamente para a gua.
Enquanto a barcaa vinha lentamente na nossa
direo, a sua proa erguia-se e caa sob os
empurres do rio. A corrente espumava e agitava-
se contra os seus costados, enquanto um mergulho
ocasional da proa permitia que uma onda de gua
se erguesse e a cobrisse. No seria uma travessia
seca.
Os peregrinos murmuravam ansiosamente entre
si, mas uma voz de homem ergueu-se de sbito
para acalm-los.
Que alternativa temos? observou ele. Da
em diante, fez-se silncio. Ficaram observando,
aterrorizados, a barcaa vindo na nossa direo.
O carro e parelha de Nico foram a primeira
carga a fazer a travessia. Nico talvez tenha
organizado as coisas assim para dar coragem aos
peregrinos. Vi a barcaa ser encostada rampa e
presa pela popa. Senti o desprazer dos cavalos,
mas tambm que eles estavam familiarizados com
aquilo. Foi o prprio Nico que os levou para a
barcaa e lhes segurou as cabeas enquanto dois
dos seus homens corriam para prender a carroa
aos ganchos. Ento Nico desembarcou, e fez um
sinal acenando com a mo. Os dois homens
levantaram-se, cada um junto da cabea do seu
cavalo, enquanto a parelha de mulas da outra
margem se dedicava corda. A barcaa largou e
entrou no rio. Carregada, afundava-se mais na
gua, mas no balanava to livremente como
antes. Por duas vezes, a proa ergueu-se bem alto e
mergulhou o suficiente para que uma vaga de gua
saltasse sobre ela. O silncio era total do nosso
lado do rio enquanto observvamos a travessia da
barcaa. Do outro lado, ela foi puxada para terra e
presa pela proa, a carroa foi desatada e os
homens a conduziram para fora da embarcao e
colina acima.
Pronto. Esto vendo? Nada com o que se
preocupar. Nico falou com um sorriso fcil,
mas eu duvidava de que ele acreditasse nas suas
prprias palavras.
Dois homens vieram na barcaa na travessia de
volta. No pareciam felizes com isso. Agarravam-
se s amuradas e retraam-se diante dos borrifos
que voavam do rio. Apesar disso, estavam
ensopados quando a barcaa chegou ao nosso lado
e eles desembarcaram. Um dos homens puxou
Nico parte e comeou a conversar com ele com
um ar zangado, mas aquele lhe deu uma palmada
no ombro e soltou uma sonora gargalhada como se
tudo no passasse de uma bela piada. Estendeu a
mo e lhe entregaram uma pequena bolsa. Nico a
pesou com ar de aprovao antes de pendur-la do
cinto.
Eu cumpri a minha palavra lembrou-lhes,
ento regressou para perto do nosso grupo.
Os peregrinos atravessaram em seguida. Alguns
deles queriam atravessar na carroa, mas Nico
observou pacientemente que quanto mais pesada
fosse a carga, mais a barcaa se afundaria no rio.
Conduziu-os para dentro da barcaa e assegurou-
se de que cada pessoa tinha um lugar para se
agarrar bem amurada.
Vocs tambm gritou, fazendo um gesto
para Panela e Esporana.
Eu atravesso na minha carroa declarou
Panela, mas Nico saudiu a cabea.
A sua gua no vai gostar disto. Se perder a
calma no rio, voc no vai querer estar na barcaa.
Confie no que digo. Eu sei o que estou fazendo.
Olhou-me de relance. Tom? Importa-se de fazer
a travessia com a gua? Voc parece lidar bem
com ela.
Assenti, e Nico disse:
Pronto, Tom vai cuidar da sua gua. Agora
v.
Panela franziu o cenho, mas teve de aceitar que
aquilo fazia sentido. Ajudei-a a descer e Esporana
lhe agarrou o brao e a levou para a barcaa. Nico
entrou na barcaa e disse rapidamente aos
peregrinos para se segurarem e no terem medo.
Trs dos seus homens embarcaram na barcaa com
eles. Um insistiu em segurar ele mesmo a criana
menor.
Eu sei o que esperar disse ele me
ansiosa. Vou me assegurar de que ela chegue ao
lado de l. Voc precisa apenas cuidar de si
mesma. A menininha desatou a chorar ao ouvir
aquilo, e os seus lamentos esganiados podiam ser
ouvidos por sobre o rumor da corrente enquanto a
barcaa era puxada para o rio. Nico ficou ao meu
lado observando a partida.
Eles ficaro bem disse, tanto para si como
a mim. Virou-se para mim com um sorriso.
Bem, Tom, mais algumas viagens e esse seu lindo
brinco ser meu.
Assenti em silncio. Dera a minha palavra a
respeito do acordo, mas no estava satisfeito com
ele.
Apesar das palavras de Nico, ouvi-o suspirar de
alvio quando a barcaa chegou outra margem.
Os encharcados peregrinos saltaram
apressadamente da embarcao quando ela ainda
estava sendo amarrada. Vi Esporana ajudar Panela
a desembarcar, e depois alguns dos homens de
Nico os apressaram a subir a margem e a penetrar
no abrigo das rvores. Ento a barcaa regressou
mais uma vez para o nosso lado, trazendo outros
dois homens. A carroa vazia dos peregrinos foi
em seguida, bem como dois pneis. Os cavalos
dos peregrinos no estavam nada contentes. Foram
precisas vendas e trs homens puxando para
coloc-los na barcaa. Depois de serem
amarrados, os cavalos continuaram a mover-se o
mximo possvel, resfolegando e sacudindo as
cabeas. Observei a sua travessia. Do outro lado,
a parelha no precisou de incentivo para tirar
rapidamente a carroa da barcaa. Um homem
pegou as rdeas e a carroa sacudiu colina acima
para fora de vista.
Os dois homens que voltaram daquela vez
tiveram a pior das travessias at ento. Estavam no
meio do rio quando um imenso tronco surgiu
vista, avanando diretamente contra a barcaa. As
razes contorcidas assemelhavam-se a uma mo
monstruosa, enquanto o tronco oscilava na violenta
corrente. Nico gritou aos nossos pneis e todos
saltamos para ajud-los a puxar a corda, mas
mesmo assim o tronco atingiu de raspo a barcaa.
Os homens a bordo gritaram quando o impacto os
fez largar a amurada. Um deles quase foi atirado
borda afora, mas conseguiu apanhar um segundo
poste e agarrou-se vida. Esses dois
desembarcaram com olhares furiosos e pragas,
como se suspeitassem de que o acidente fora
deliberado. Nico mandou prender a barcaa e
verificou pessoalmente todas as cordas que a
prendiam corda da polia. O impacto fizera com
que uma das amuradas se soltasse. Sacudiu a
cabea por causa disso e avisou os seus homens a
respeito enquanto eles levavam a ltima carroa
para bordo.
A sua travessia no foi pior do que qualquer
uma das outras. Observei com alguma ansiedade,
sabendo que a minha vez chegaria em seguida. O
que acha de um banho, Olhos-de-Noite?
Valer a pena, se houver boa caa do outro
lado, respondeu ele, mas percebi que o lobo
partilhava o meu nervosismo.
Tentei me acalmar e a gua de Panela enquanto
os via prender a barcaa ao desembarcadouro.
Falei-lhe num tom calmante enquanto a levava
para baixo, fazendo tudo o que podia para lhe
assegurar que ficaria bem. Ela pareceu aceit-lo,
pisando calmamente a madeira cheia de marcas do
convs. Eu a conduzi lentamente, explicando tudo
enquanto avanava. Ela permaneceu calma
enquanto eu a atava a uma argola montada no
convs. Dois dos homens de Nico prenderam
rapidamente a carroa barcaa. Olhos-de-Noite
saltou para dentro, e ento se agachou de barriga
baixa, enterrando as garras na madeira. No
gostava do modo como o rio puxava avidamente
pela barcaa. Na verdade, eu tambm no. Ele
ousou aproximar-se, para vir se agachar ao meu
lado, de patas bem abertas.
Vo para o outro lado com Tom e a carroa
disse Nico aos homens ensopados que j tinham
feito uma viagem. Eu e os meus rapazes
traremos os pneis na ltima viagem. Mas fiquem
longe daquela gua, para o caso de ela decidir dar
coices.
Os homens subiram a bordo com cautela,
olhando Olhos-de-Noite quase com o mesmo
desagrado com que observavam a gua.
Aglomeraram-se atrs da carroa e agarraram-se
ali. Olhos-de-Noite e eu permanecemos na proa.
Esperava que ali estivssemos fora de alcance dos
cascos da gua. No ltimo momento, Nico
declarou:
Acho que vou fazer esta travessia com vocs.
Ele mesmo soltou a barcaa com um sorriso e
um aceno aos seus homens. A parelha de mulas do
outro lado do rio comeou a se mover e, com uma
guinada, entramos no rio.
Ver uma coisa nunca o mesmo que faz-la.
Arquejei quando o primeiro borrifo de gua do rio
me atingiu. De repente havamos nos transformado
num brinquedo nas garras de uma criana
imprevisvel. O rio corria por ns, puxando a
barcaa e rugindo a sua frustrao por no
conseguir nos arrancar das cordas. A gua furiosa
quase me ensurdecia. A barcaa deu um mergulho
sbito e dei por mim me agarrando amurada
quando uma onda escorreu pelo convs e me puxou
de passagem pelos tornozelos. Da segunda vez que
uma vaga de gua se ergueu ruidosamente da proa
e ensopou todos ns, a gua soltou um berro. Eu
larguei a amurada, pretendendo agarrar a sua
testeira. Dois dos homens pareceram ter a mesma
ideia. Estavam abrindo caminho para a frente,
agarrando-se carroa. Fiz sinal a eles para se
afastarem e me virei para a gua.
Nunca saberei o que o homem pretendia fazer.
Talvez me golpear com o boto do punho da faca.
Vi o movimento pelo canto do olho e me virei para
enfrent-lo precisamente no momento em que a
barcaa deu outro solavanco. Ele no me acertou e
foi aos tropees de encontro gua. O animal,
que j estava ansioso, entrou em pnico e num
frenesi de coices. Atirou a cabea violentamente,
batendo-a em mim e fazendo com que me
afastasse, desequilibrado. Eu j quase o
recuperara quando o homem fez outra tentativa
para me atingir, brandindo os braos. Na parte de
trs da carroa, Nico lutava com outro homem.
Gritou alguma coisa furiosa sobre a sua palavra e
a sua honra. Eu me esquivei do golpe do meu
atacante precisamente na hora em que uma onda
saltou sobre a proa. A fora dela me levou para o
centro da barcaa. As minhas mos deram com
uma das rodas da carroa e me agarrei a ela,
arquejando. J conseguira desembainhar meia
espada quando outra pessoa me agarrou por trs. O
meu primeiro atacante saltou sobre mim, sorrindo,
daquela vez com a lmina da faca para frente. De
repente um corpo molhado e peludo passou por
mim como um raio. Olhos-de-Noite atingiu-o em
cheio no peito, atirando-o contra a amurada.
Ouvi o estalar do poste enfraquecido.
Lentamente, to lentamente, lobo, homem e
amurada inclinaram-se para a gua. Saltei atrs
deles, arrastando o meu agressor comigo. Quando
mergulharam, consegui agarrar tanto os restos
estilhaados do poste como a cauda de Olhos-de-
Noite. Sacrifiquei a espada para isso. S consegui
agarrar a extremidade da cauda dele, mas aguentei.
A cabea do lobo veio tona, enquanto as patas da
frente raspavam freneticamente contra a beirada da
barcaa. Ele comeou a subir para dentro da
embarcao.
Foi ento que uma bota me atingiu com violncia
no ombro. A dor surda que havia nele explodiu. A
bota seguinte me atingiu no lado da cabea. Vi os
meus dedos se abrirem, vi Olhos-de-Noite
rodopiando para longe de mim, capturado pelo rio
e sendo carregado.
Irmo! gritei. O rio engoliu as minhas
palavras e a onda seguinte que cobriu o convs me
ensopou e me encheu a boca e o nariz. Quando a
gua passou, tentei me apoiar nas mos e nos
joelhos. O homem que me chutara ajoelhou ao meu
lado. Senti a presso da sua faca no meu pescoo.
Fique onde est e segure-se sugeriu ele em
tom de ameaa. Virou-se e gritou a Nico. Vou
fazer isto minha maneira!
No respondi. Estava sondando freneticamente,
pondo todas as minhas foras na tentativa de
chegar ao lobo. A barcaa ergueu-se debaixo de
mim, o rio passou rugindo e eu fiquei ensopado
por borrifos e ondas. Frio. Molhado. gua na boca
e focinho, sufocando-me. No sabia onde eu
acabava e Olhos-de-Noite comeava. Se que ele
ainda existia.
A barcaa roou subitamente contra a rampa.
Eles foram desajeitados ao me colocarem de p
na outra margem. O primeiro tirou a faca do meu
pescoo antes do segundo homem ter me agarrado
bem pelo cabelo. Levantei-me lutando, sem me
importar com nada que ele pudesse me fazer agora.
Irradiei dio e fria, e os cavalos em pnico
seguiram o meu exemplo. Um homem caiu perto o
suficiente da gua para que um dos seus cascos lhe
atingisse nas costelas. Restavam dois, ou era o que
eu supunha. Atirei um ao rio com um encontro.
Ele conseguiu agarrar-se barcaa e ficou seguro
ali enquanto eu estrangulava o companheiro. Nico
gritou o que soou como um aviso. Eu estava
apertando a garganta do homem e batendo a cabea
dele no convs quando os outros caram sobre
mim. Esses usavam abertamente o marrom e o
dourado. Tentei obrig-los a me matar, mas eles
no o fizeram. Ouvi outros gritos vindos do alto da
encosta da colina, e pensei ter reconhecido a voz
de Esporana erguida em fria.
Passado algum tempo, dei por mim deitado e
amarrado na margem coberta de neve. Um homem
me vigiava, de espada desembainhada. No
percebi se ele me ameaava, ou se estava
encarregado de impedir os outros de me baterem.
Estavam em crculo, olhando-me avidamente,
como uma alcateia de lobos que tivesse acabado
de derrubar um veado. No me importei. Comecei
a sondar freneticamente, sem me importar nem um
pouco com o que eles pudessem me fazer.
Consegui sentir que ele lutava em algum lugar pela
vida. A sensao que tinha dele tornou-se cada vez
mais tnue enquanto ele dedicava todas as suas
energias simplesmente sobrevivncia.
Nico foi subitamente atirado ao cho a meu lado.
Um dos seus olhos estava comeando a se fechar
devido ao inchao, e quando ele me sorriu, sangue
manchava-lhe os dentes.
Bem, aqui estamos ns, Tom, do outro lado
do rio. Disse que o traria at aqui, e aqui estamos.
Agora quero esse brinco, tal como combinamos.
O meu guarda lhe deu um chute nas costelas.
Cale a boca rosnou.
O acordo no foi esse insistiu Nico
quando conseguiu respirar.
Ergueu os olhos para todos, tentando escolher
um com quem falar. Eu tinha um acordo com o
seu capito. Disse a ele que lhe traria este homem,
e em troca ele me ofereceu ouro e livre-trnsito.
Para mim e para os outros.
O sargento soltou uma gargalhada amarga.
Bem, no seria o primeiro acordo que o
Capito Marco fez com um contrabandista.
Estranho. No houve nenhum que nos desse algum
lucro, hein, rapazes? E o Capito Marco j desceu
uma boa parte do rio a essa altura, de modo que
difcil saber exatamente o que foi que ele prometeu
a voc. Sempre gostou das suas exibies de
glria, o Marco. Bem, agora se foi. Mas eu sei
quais so as minhas ordens: prender todos os
contrabandistas e lev-los para Olho de Lua. Sou
um bom soldado, sou sim.
O sargento inclinou-se e soltou a bolsa de ouro
de Nico e tambm a sua prpria bolsa. Nico
debateu-se, e perdeu algum sangue ao faz-lo. No
me incomodei em ver muito daquilo. Ele me
vendera aos guardas de Majestoso. E como
soubera quem eu era? Conversa de travesseiro
com Esporana, disse a mim mesmo com amargura.
Confiara, e isso me causara o que causava sempre.
Nem sequer me virei para olhar quando o
arrastaram para longe.
Eu tinha apenas um amigo verdadeiro, e a minha
tolice lhe custara. Outra vez. Fitei o cu, e sondei
para fora do meu corpo, escancarei os sentidos o
mais que pude, sondando, sondando. Descobri-o.
Em algum lugar, as suas garras raspavam e
arranhavam um talude ngreme e gelado. A sua
densa pelagem estava carregada de gua, que a
deixava de tal modo pesada que ele quase no
conseguia manter a cabea tona. Perdeu o apoio,
o rio voltou a captur-lo, e foi mais uma vez
rodopiando rio abaixo. O rio o puxou para baixo e
manteve-o l, ento o atirou subitamente para a
superfcie. O ar com que ele encheu os pulmes
estava carregado de espuma. No lhe restavam
foras.
Tente!, ordenei-lhe. Continue tentando!
E a caprichosa corrente voltou a atir-lo contra
uma margem, mas esta era um emaranhado de
razes pendentes. As suas garras prenderam-se
nelas, e ele iou-se bem alto, esgravatando as
razes enquanto cuspia gua e ofegava em busca de
ar. Os seus pulmes trabalhavam como foles.
Saia da gua! Sacuda-a!
Ele no me deu qualquer resposta, mas o senti
iando-se para fora da gua. Pouco a pouco, ele
subiu para a margem coberta de vegetao.
Rastejou para fora como um cachorro, apoiado na
barriga. gua escorreu do seu corpo, formando
uma poa em volta dele no local onde se aninhou.
Estava com tanto frio. Gelo j estava se formando
nas suas orelhas e focinho. Levantou-se e tentou
sacudir-se. Caiu. Voltou a ficar de p,
cambaleando, e foi a cambalear que se afastou
mais alguns passos do rio. Sacudiu-se outra vez,
fazendo voar gua por todo o lado. O ato o deixou
mais leve ao mesmo tempo que lhe deixava os
pelos em p. Parou, de cabea baixa, e vomitou
uma golfada de gua do rio. Encontre abrigo.
Enrole-se e se aquea, disse-lhe. Ele no estava
pensando muito bem. A centelha que era Olhos-de-
Noite quase se apagara. Espirrou violentamente
vrias vezes e depois olhou em volta. Ali, instei.
Debaixo daquela rvore. A neve dobrara as
frondas da sempre-viva quase at o cho. Debaixo
da rvore havia uma pequena cova, coberta com
um espesso tapete de agulhas cadas. Se ele
rastejasse para l e se enrolasse, talvez voltasse a
se aquecer. Continue, disse-lhe. Voc consegue.
Continue.
Acho que voc o chutou com fora demais.
Est s olhando para o cu.
Viu o que aquela mulher fez ao Esquefe? Est
sangrando como um porco. Mas lhe deu um bom
troco.
Para onde foi a velha? Algum a encontrou?
No ir longe com esta neve, no se
preocupe. Acorde-o e coloque-o de p.
Ele nem sequer pisca. Quase nem respira.
No me interessa. Apenas leve-o ao
feiticeiro do Talento. Depois disso, j no ser
problema nosso.
Soube que guardas me arrastaram pelos ps,
soube que me levaram colina acima. No prestei
qualquer ateno a esse corpo. Em vez disso,
voltei a me sacudir, e depois me enfiei debaixo da
rvore. S havia espao para me enrolar sobre
mim mesmo. Botei a cauda sobre o focinho. Sacudi
as orelhas algumas vezes para afastar delas o que
restava da gua. Agora v dormir. Est tudo bem.
Durma. Fechei os olhos dele. Ele ainda tremia,
mas eu senti que um calor hesitante o percorria de
novo. Suavemente, afastei-me.
Ergui a cabea e olhei atravs dos meus
prprios olhos. Estava caminhando por uma trilha,
com um grande guarda de Vara de cada lado. No
precisei olhar para trs para saber que outros nos
seguiam. nossa frente, vi as carroas de Nico,
estacionadas sob o abrigo das rvores. Vi os seus
homens sentados no cho com as mos atadas atrs
das costas. Os peregrinos, ainda pingando gua,
aglomeravam-se em volta de uma fogueira. Havia
tambm vrios guardas em volta desse grupo. No
vi Esporana, nem Panela. Uma mulher apertava o
filho contra si e chorava ruidosamente por cima do
seu ombro. O garoto no parecia estar se mexendo.
Um homem cruzou o olhar com o meu, e virou-se
para cuspir para o cho.
A culpa de ter acontecido isto conosco do
Bastardo Manhoso ouvi-o dizer em voz alta.
Eda no gosta dele! Ele maculou a nossa
peregrinao!
Levaram-me para uma tenda confortvel erguida
onde um conjunto de grandes rvores a abrigava
do vento. Fui atirado atravs das abas da tenda e
um empurro me colocou de joelhos sobre um
grosso tapete de pele de carneiro, estendido num
cho elevado de madeira. Um guarda continuou a
agarrar firmemente o meu cabelo enquanto o
sargento anunciava.
Aqui est ele, senhor. O lobo apanhou o
Capito Marco, mas ns o apanhamos.
Um largo braseiro de carvo soltava um calor
agradvel. O interior da tenda era o lugar mais
quente em que eu estivera nos ltimos dias. O
sbito calor quase me entorpeceu. Contudo,
Emaranhado no partilhava da minha opinio.
Estava sentado numa cadeira de madeira do outro
lado do braseiro, com os ps estendidos na
direo do calor. Trajava um manto e um capuz, e
estava coberto de peles, como se nada mais
houvesse entre ele e o frio da noite. Sempre fora
um homem de constituio robusta; agora tambm
estava pesado. O seu cabelo escuro fora enrolado
numa imitao do de Majestoso. O desagrado
brilhava nos seus olhos escuros.
Como voc no est morto? perguntou-me.
No havia uma boa resposta para essa pergunta.
Limitei-me a olhar para ele, com a expresso
vazia, de muralhas retesadas. O seu rosto
enrubesceu de repente e as bochechas pareceram
inchar de ira. Quando falou, tinha a voz tensa.
Olhou furioso para o sargento.
Faa um relatrio apropriado. Ento,
antes que o homem tivesse tempo de comear,
perguntou: Deixaram o lobo escapar?
No o deixamos, no, senhor. Ele atacou o
capito. Ele e o Capito Marco caram no rio
juntos, senhor, e foram levados. Com uma gua to
fria e rpida, nenhum tinha chance de sobreviver.
Mas mandei mais alguns homens rio abaixo para
procurar na margem o corpo do capito.
Tambm vou querer o corpo do lobo, se ele
encalhar na margem. Assegure-se de que os seus
homens saibam disso.
Sim, senhor.
Apanhou o contrabandista, Nico? Ou ser que
ele tambm escapou? O sarcasmo de
Emaranhado era pesado.
No, senhor. Temos o contrabandista e os
seus homens. Tambm temos os que viajavam com
eles, embora tenham resistido mais do que
espervamos. Alguns fugiram para a floresta, mas
ns os apanhamos. Dizem ser peregrinos a
caminho do santurio de Eda nas Montanhas.
Isso no me interessa em nada. Que importa o
motivo por que um homem quebrou a lei do Rei,
depois de quebr-la? Recuperou o ouro que o
capito pagou ao contrabandista?
O sargento fez uma expresso de surpresa.
No, senhor. Ouro pago a um contrabandista?
No havia sinal de tal coisa. Fico pensando se no
ter ido rio abaixo com o Capito Marco. Talvez
ele no tenha dado ao homem
Eu no sou idiota. Sei muito mais daquilo que
se passa do que voc pensa que sei. Encontre-o.
Todo ele, e traga-o aqui. Capturaram todos os
contrabandistas?
O sargento respirou fundo e decidiu-se pela
verdade.
Alguns estavam com a parelha de pneis do
outro lado quando derrubamos Nico. Esses foram
embora antes de
Esquea-os. Onde est a cmplice do
Bastardo?
O sargento mostrou uma expresso vazia. Creio
que ele no conhecia a palavra.
No capturou uma menestrel? Esporana?
voltou a perguntar Emaranhado.
O sargento parecia desconfortvel.
Ela ficou um pouco fora de controle, senhor.
Quando os homens estavam dominando o Bastardo
na rampa. Atirou-se no homem que a segurava e
lhe quebrou o nariz. Foi um pouco difcil
control-la.
Ela est viva? O tom de Emaranhado no
deixou dvidas quanto ao desprezo que sentia pela
competncia dos homens.
O sargento corou.
Sim, senhor. Mas
Emaranhado silenciou-o com um olhar.
Se o seu capito ainda estivesse vivo, iria
desejar estar morto. No fazem qualquer ideia de
como se apresentam relatrios, ou de como se
deve manter o controle sobre uma situao. Um
homem devia ter sido enviado a mim de imediato,
para me informar sobre estes acontecimentos
enquanto ocorriam. Em vez de ter sido permitido
que a menestrel visse o que estava acontecendo,
ela devia ter sido presa de imediato. E s um
idiota teria tentado subjugar um homem numa
barcaa no meio de uma correnteza forte quando
tudo o que tinha que fazer era esperar que a
barcaa acostasse. Ali teria havido uma dzia de
espadas ao seu comando. E quanto ao suborno do
contrabandista, ele me ser devolvido, caso
contrrio todos vocs ficaro sem pagamento at
que a soma esteja completa. Eu no sou um idiota.
Lanou um olhar furioso por todos os que se
encontravam na tenda. Isso foi mal executado.
No vou desculp-lo. Apertou bem os lbios.
Quando voltou a falar, cuspiu as palavras.
Todos vocs. Saiam.
Sim, senhor. Senhor? O prisioneiro?
Deixem-no aqui. Deixem dois homens l fora,
de espadas desembainhadas. Mas quero falar com
ele a ss. O sargento fez uma mesura e
apressou-se a sair da tenda. Os seus homens
seguiram-no prontamente.
Ergui os olhos para Emaranhado e enfrentei os
seus. Tinha as mos bem atadas atrs das costas,
mas ningum mais me forava a me manter de
joelhos. Levantei-me e baixei os olhos para
Emaranhado. Ele enfrentou o meu olhar sem
vacilar. Quando falou, tinha a voz calma. Isso
tornou as suas palavras ainda mais ameaadoras.
Repito aquilo que disse ao sargento. No sou
um idiota. No duvido de que voc j tem um
plano para escapar. provvel que ele inclua me
matar. Eu tambm tenho um plano, que inclui a
minha sobrevivncia. Vou lhe contar. um plano
simples, Bastardo. Sempre preferi a simplicidade.
assim. Se voc me causar o menor problema,
mando mat-lo. Como sem dvida deduziu, o Rei
Majestoso quer que voc seja levado vivo at ele.
Se possvel. No pense que isso evitar que eu o
mate se voc se tornar inconveniente. Se est
pensando no seu Talento, devo avis-lo de que
tenho a mente bem protegida. Se eu chegar a
suspeitar de que est tentando test-la, ir testar o
seu Talento contra a espada do meu guarda. E
quanto sua Manha, bem, parece que os meus
problemas tambm esto resolvidos nesse sentido.
Mas se o seu lobo se materializar, ele tambm no
prova de espada.
Eu nada disse.
Compreende-me?
Assenti uma nica vez.
Ainda bem. Agora. Se no me causar
problemas, ser tratado com justia. Assim como
os outros. Se voc se mostrar de algum modo
difcil, eles tambm partilharo das suas
privaes. Tambm compreende isso?
Enfrentou o meu olhar, exigindo uma resposta.
Igualei o seu tom calmo.
Acha mesmo que me importo se voc
derramar o sangue de Nico, agora que ele me
vendeu?
Ele sorriu. Isso me deixou gelado, pois aquele
sorriso j pertencera ao simptico aprendiz de
carpinteiro. Era um Emaranhado diferente que
agora usava a sua pele.
Voc astuto, Bastardo, e o desde que o
conheo. Mas tem a mesma fraqueza do seu pai e
do Pretendente; acredita que uma vida destes
camponeses vale o mesmo que a sua. Cause-me
algum problema e todos pagaro, at a ltima gota
de sangue. Compreende? At Nico.
Ele tinha razo. Eu no suportaria ver os
peregrinos pagando pelo meu atrevimento.
Perguntei em voz baixa:
E se cooperar? O que acontece a eles nesse
caso?
Ele sacudiu a cabea por causa da minha tolice
em me preocupar.
Trs anos de servido. Se eu fosse um
homem menos amvel, cortaria uma mo de cada
um, porque desobedeceram s ordens do rei por
tentarem atravessar a fronteira e merecem ser
punidos como traidores. Dez anos para os
contrabandistas.
Sabia que poucos dos contrabandistas
sobreviveriam.
E a menestrel?
No sei por que motivo ele respondeu minha
pergunta, mas respondeu.
A menestrel ter de morrer. Voc j sabe
disso. Ela sabia quem voc era, pois Vontade a
interrogou em Lago Azul. Escolheu ajud-lo,
quando em vez disso podia ter servido o seu rei.
uma traidora.
As suas palavras acenderam a centelha da minha
fria. Ajudando-me, ela serve o verdadeiro rei.
E quando Veracidade regressar, vocs sentiro a
sua ira. No haver ningum para o proteger nem
ao resto do seu crculo traioeiro.
Durante um momento, Emaranhado apenas olhou
para mim. Controlei-me. Soara como uma criana,
ameaando outra com a fria do irmo mais velho.
As minhas palavras eram inteis, ou pior que
inteis.
Guardas! Emaranhado no gritou. Quase
nem ergueu a voz, mas os dois entraram na tenda
num instante, de espadas desembainhadas e
apontadas para o meu rosto. Emaranhado
comportou-se como se no reparasse nas armas.
Tragam-nos a menestrel. E assegurem-se de que
ela desta vez no fique fora de controle.
Quando os homens hesitaram, ele sacudiu a cabea
e suspirou. Vo, andem, vocs dois. Mandem
tambm o seu sargento vir aqui. Depois de irem
embora, olhou-me nos olhos e fez uma careta de
descontentamento. Est vendo o que me do
para trabalhar. Olho de Lua sempre foi a pilha de
refugo para a soldadesca dos Seis Ducados. Tenho
os covardes, os idiotas, os descontentes, os
conspiradores. E depois tenho de enfrentar o
descontentamento do meu rei por cada tarefa que
me atribuda e mal executada.
Acho que ele realmente esperava que eu me
compadecesse das suas dificuldades.
Ento, Majestoso o mandou para c para que
se juntasse a eles preferi observar.
Emaranhado me lanou um sorriso estranho.
Tal como o Rei Sagaz enviou para c o seu
pai e Veracidade antes de mim.
Aquilo era verdade. Baixei os olhos para a
grossa pele de carneiro que cobria o cho. Eu
estava pingando sobre ela. O calor vindo do
braseiro estava penetrando em mim, levando-me a
tremer, como se o meu corpo estivesse abrindo
mo do frio que acumulara. Por um instante sondei
para longe de mim. O meu lobo dormia, mais
quente do que eu. Emaranhado estendeu a mo
para uma pequena mesa que estava ao lado da sua
cadeira e pegou uma panela. Serviu-se de um copo
fumegante de caldo de carne e o bebericou. Pude
sentir o cheiro do seu sabor. Ento ele suspirou e
recostou-se na cadeira.
Estamos muito longe de onde comeamos,
no estamos? ele soou pesaroso.
Balancei a cabea. Era um homem cauteloso,
aquele Emaranhado, e eu no duvidava de que
levaria a cabo as suas ameaas. Vira a forma do
seu Talento e tambm vira o modo como Galeno o
dobrara e torcera para criar uma ferramenta que
Majestoso pudesse usar. Era leal a um prncipe
arrivista. Isso fora forjado nele por Galeno; j no
podia separ-lo do seu Talento. Ambicionava
poder, e adorava a vida indolente que o seu
Talento lhe conquistara. Os seus braos j no
inchavam com os msculos criados pelo trabalho.
Em vez disso, era a barriga que lhe esticava as
tnicas e as bochechas que pendiam, pesadas.
Parecia uma dcada mais velho do que eu. Mas
defenderia a sua posio contra qualquer coisa que
a ameaasse. Iria defend-la com violncia.
O sargento foi o primeiro a chegar tenda, mas
os seus homens chegaram pouco depois com
Esporana. Ela caminhava entre eles e entrou na
tenda com dignidade, apesar do rosto machucado e
do lbio inchado. Havia uma calma glida nela
quando se empertigou diante de Emaranhado e no
lhe fez nenhum tipo de cumprimento. Talvez s eu
detectasse a fria que havia nela. De medo no
mostrava qualquer sinal.
Quando ela parou ao meu lado, Emaranhado
ergueu os olhos para nos avaliar. Apontou um
dedo para ela.
Menestrel. Voc estava consciente de que
este homem era FitzCavalaria, o Bastardo
Manhoso.
Esporana no respondeu. No era uma pergunta.
Em Lago Azul, Vontade, do Crculo de
Galeno, servo do Rei Majestoso, ofereceu a voc
ouro, dinheiro bom e honesto, se pudesse nos
ajudar a encontrar este homem. Voc negou
qualquer conhecimento sobre onde ele se
encontrava. Fez uma pausa, como que para lhe
dar uma chance de falar. Ela nada disse. E, no
entanto, aqui a encontramos, viajando de novo na
companhia dele. Respirou fundo. E agora
ele me diz que voc, ao servi-lo, serve
Veracidade, o Pretendente. E me ameaa com a
fria de Veracidade. Diga-me. Antes de eu
responder a isso, voc concorda? Ou ser que ele
no falou corretamente por voc?
Ambos sabamos que ele lhe estava oferecendo
uma oportunidade. Esperei que ela tivesse o bom
senso de aproveit-la. Vi Esporana engolir em
seco. No olhou para mim. Quando falou, a sua
voz saiu baixa e controlada.
No preciso de ningum que fale por mim,
senhor. E no sou criada de ningum. No sirvo
FitzCavalaria. Fez uma pausa e senti um alvio
de estonteante. Mas ento ela respirou fundo e
prosseguiu: Mas se Veracidade Visionrio est
vivo, ento ele o verdadeiro Rei dos Seis
Ducados. E eu no duvido de que todos os que
afirmam o contrrio sentiro a sua fria. Se ele
regressar.
Emaranhado suspirou pelo nariz. Sacudiu a
cabea com ar de pena. Fez um gesto para um dos
homens que esperavam.
Voc. Quebre um dos dedos dela. No
importa qual.
Eu sou uma menestrel! objetou Esporana,
horrorizada. Fitou-o, incrdula. Todos o fizemos.
No era inaudito que um menestrel fosse executado
por traio. Matar um menestrel era uma coisa.
Ferir um era outra completamente diferente.
No me ouviu? perguntou Emaranhado ao
homem quando ele hesitou.
Senhor, ela uma menestrel. O homem
parecia chocado. D azar ferir um menestrel.
Emaranhado virou os olhos para o sargento.
Voc vai se assegurar de que ele receba
cinco chicotadas antes de eu me retirar esta noite.
Cinco, veja bem, e quero conseguir contar os
verges nas suas costas.
Sim, senhor disse o sargento em voz
baixa.
Emaranhado virou-se para o homem.
Quebre um dos dedos dela. No importa
qual. Deu a ordem como se nunca tivesse
proferido aquelas palavras.
O homem aproximou-se dela como se estivesse
mergulhado num sonho. Obedeceria, e Emaranhado
no ia voltar atrs com a ordem.
Vou matar voc prometi a Emaranhado
com sinceridade.
Emaranhado me deu um sorriso sereno.
Guarda. Os dedos passam a ser dois. No
importa quais. O sargento moveu-se
rapidamente, puxando a faca e colocando-se atrs
de mim. Encostou a arma na minha garganta e me
obrigou a ajoelhar. Ergui os olhos para Esporana.
Ela me olhou uma vez de relance, com os olhos
vazios e sem expresso, e ento virou o rosto. As
suas mos, tal como as minhas, estavam amarradas
atrs das costas. Olhou para frente para o peito de
Emaranhado. Ficou imvel e silenciosa, tornando-
se cada vez mais branca at que o homem lhe
tocou. Soltou um grito, um som rouco e gutural,
quando ele lhe agarrou os pulsos. Depois berrou,
mas o berro no conseguiu abafar os dois
pequenos estalidos que os dedos fizeram quando o
homem os dobrou para trs, pelas articulaes.
Mostre-me ordenou Emaranhado.
Como se estivesse zangado com Esporana por
ter sido obrigado a fazer aquilo, o homem a atirou
de cara no cho. Ela ficou deitada sobre a pele de
carneiro diante dos ps de Emaranhado. Depois do
grito, no soltara um som. Os dois dedos menores
da sua mo esquerda projetavam-se de forma
bizarra de entre os outros. Emaranhado olhou-os e
fez um aceno satisfeito.
Leve-a. Assegure-se de que fique bem
vigiada. Depois volte e apresente-se ao seu
sargento. Quando ele acabar, venha at mim. A
voz de Emaranhado era montona.
O guarda agarrou Esporana pelo colarinho e
colocou-a de p. Parecia ao mesmo tempo doente
e furioso quando a empurrou para fora da tenda.
Emaranhado dirigiu um aceno ao sargento.
Deixe-o se levantar agora.
Levantei-me, olhando-o do alto, e ele ergueu o
olhar para mim. Porm, j no havia a menor
dvida sobre quem possua o controle da situao.
A sua voz soou muito calma quando ele observou:
H pouco voc disse que havia me
compreendido. Agora sei que compreende. A
viagem at Olho de Lua pode ser rpida e fcil
para voc, FitzCavalaria. E para os outros. Ou
pode ser de outra forma. A escolha inteiramente
sua.
No respondi. No era necessrio. Emaranhado
fez um aceno ao outro guarda. Ele me levou da
tenda de Emaranhado para outra. Era habitada por
mais quatro guardas. O guarda me deu po, carne e
um copo de gua. Mostrei-me dcil enquanto ele
voltava a amarrar as minhas mos frente, para
que eu pudesse comer. Depois, apontou para um
cobertor num canto, e eu fui para l como um co
obediente. Amarraram de novo minhas mos atrs
das costas e ataram os meus ps. Mantiveram o
braseiro ardendo a noite inteira, e havia sempre
dois me vigiando.
No me importei. Dei-lhes as costas e encarei a
parede da tenda. Fechei os olhos e fui no dormir,
mas at o meu lobo. A sua pelagem estava quase
seca, mas ele continuava dormindo, exausto. Tanto
o frio quanto as pancadas que levara do rio haviam
cobrado o seu preo. Aceitei o pequeno conforto
que me restava. Olhos-de-Noite estava vivo, e
agora dormia. Perguntei-me de que lado do rio ele
estaria.
CAPTULO 18

Olho de Lua

Olho de Lua uma vila pequena, mas fortificada


na fronteira entre os Seis Ducados e o Reino da
Montanha. uma vila de abastecimento e ponto
tradicional de parada para as caravanas
comerciais que usam o caminho de Chelika at o
passo do Vale Largo e as terras alm do Reino da
Montanha. Foi a partir de Olho de Lua que o
Prncipe Cavalaria negociou o seu ltimo grande
tratado com o Prncipe Rurisk do Reino da
Montanha. Na sequncia da finalizao desse
tratado, veio a descoberta de que Cavalaria fora
pai de um filho ilegtimo, concebido com uma
mulher dessa rea e j com cerca de seis anos de
idade. O Prncipe Herdeiro Cavalaria concluiu
as suas negociaes e imediatamente partiu para
Torre do Cervo, onde pediu sua rainha, pai e
sditos as mais profundas desculpas por aquela
falha da sua juventude, e abdicou do trono, a fim
de evitar criar a mnima confuso quanto linha
de sucesso.

Emaranhado manteve a palavra. De dia, eu


caminhava, flanqueado por guardas, de mos
amarradas atrs das costas. Era colocado numa
tenda durante a noite e as mos eram desamarradas
para que eu pudesse me alimentar. Ningum era
desnecessariamente cruel comigo. No sei se
Emaranhado ordenara que eu fosse rigorosamente
deixado em paz, se j se teriam espalhado tantas
histrias sobre o Bastardo Manhoso e envenenador
para que ningum ousasse me incomodar. De
qualquer modo, a minha viagem at Olho de Lua
no foi mais desagradvel do que era inevitvel,
dado o mau tempo e as provises militares. Eu
estava isolado dos peregrinos, e portanto nada
sabia de como estavam Panela, Esporana e os
outros. Os meus guardas no conversavam uns com
os outros na minha presena, de modo que nem
sequer me restava o falatrio do acampamento
para ficar sabendo dos boatos. No me atrevia a
perguntar nada a nenhum deles. Bastava-me pensar
em Esporana e no que haviam lhe feito para me
deixar enjoado. Perguntei-me se algum se
apiedaria dela o suficiente para lhe endireitar e
enfaixar os dedos. Fiquei pensando se Emaranhado
o permitiria. A frequncia com que eu pensava em
Panela e nos filhos dos peregrinos me surpreendia.
Eu tinha Olhos-de-Noite. Na segunda noite
passada sob a custdia de Emaranhado, aps uma
apressada refeio de po e queijo fui deixado
sozinho num canto da tenda que abrigava tambm
seis homens de armas. Tinha os pulsos e
tornozelos bem atados, mas no cruelmente
apertados, e jogaram um cobertor sobre mim. Os
meus guardas logo ficaram absortos num jogo de
dados junto da vela que iluminava a tenda. Era
uma tenda de couro bom de cabra, e eles haviam
coberto o cho com galhos de cedro para o seu
prprio conforto, de modo que eu no sofria muito
com o frio. Estava com dores e cansado, e a
comida que tinha na barriga me deixara sonolento.
Mas lutei para me manter acordado. Sondei na
direo de Olhos-de-Noite, quase com medo do
que poderia encontrar. Tivera apenas os mais
leves vestgios da sua presena na minha mente
desde que lhe pedira para dormir. Agora o
procurei e dei um salto ao senti-lo bastante
prximo. Revelou-se como quem atravessa uma
cortina e pareceu se divertir com o meu choque.
H quanto tempo consegue fazer isso?
Algum. Tenho pensado no que o homem-urso
nos disse. E enquanto estivemos afastados
compreendi que eu tinha uma vida prpria.
Descobri um lugar s meu na minha mente.
Detectei uma hesitao nos seus pensamentos,
como se ele esperasse que eu o censurasse. Porm,
em vez disso abracei-o, envolvendo-o no calor
que sentia por ele. Temi que voc morresse.
Tenho o mesmo medo por voc agora. Quase
com humildade, acrescentou: Mas sobrevivi. E
agora, pelo menos um de ns est livre para
salvar o outro.
Estou contente por voc estar em segurana.
Mas receio que haja pouco que possa fazer por
mim. E se o virem, no descansaro at que o
matem.
Ento no me vero, prometeu ele com presteza.
Naquela noite, levou-me para caar com ele.
No dia seguinte precisei de toda a minha
concentrao para permanecer de p e me mexer.
Uma tempestade rebentou. Tentamos adotar um
ritmo militar apesar dos caminhos cobertos de
neve que seguamos e dos ventos uivantes que nos
esbofeteavam constantemente com ameaas de
neve. medida que nos afastvamos do rio e
subamos pelos contrafortes das montanhas, as
rvores e a vegetao rasteira foram se tornando
mais densas. Ouvamos o vento nas rvores acima
de ns, mas o sentamos cada vez menos. Quanto
mais subamos, mais seco e severo se tornava o
frio durante a noite. A comida que me era dada era
suficiente para me manter em p e vivo, mas pouco
mais. Emaranhado encabeava a sua procisso,
seguido pela guarda montada. Eu caminhava atrs,
no meio dos meus guardas. Atrs de ns seguiam
os peregrinos, flanqueados por soldados regulares.
Atrs de todo o resto, vinha a coluna de
suprimentos.
Ao fim de cada dia de marcha, eu era confinado
a uma tenda rapidamente montada, alimentado e
depois ignorado at chegar a hora de levantar no
dia seguinte. As minhas conversas estavam
limitadas a aceitar as refeies e partilha noturna
de pensamentos com Olhos-de-Noite. A caa deste
lado do rio era abundante quando comparada com
o lugar de onde viramos. Ele encontrava caa
quase sem esforo e ia avanando no
restabelecimento das suas antigas foras. No
tinha nenhuma dificuldade em conseguir nos
acompanhar e ao mesmo tempo arranjar tempo
para caar. Olhos-de-Noite acabara de rasgar as
entranhas de um coelho na minha quarta noite
como prisioneiro quando ergueu subitamente a
cabea e farejou o vento.
O que h?
Caadores. Perseguidores. Abandonou a carne
e ficou de p. Estava na encosta de uma colina
acima do acampamento de Emaranhado.
Deslocando-se na sua direo, deslizando de
rvore em rvore, viam-se duas dzias de
silhuetas sombrias. Uma dzia trazia arcos.
Enquanto Olhos-de-Noite observava, duas
agacharam-se ao abrigo de um denso matagal.
Aps alguns momentos, o seu focinho aguado
detectou o odor de fumaa. Uma minscula
fogueira surgiu como um brilho apagado a seus
ps. Fizeram sinal aos outros, que se espalharam,
silenciosos como sombras. Arqueiros procuraram
posies estratgicas enquanto os outros
deslizaram na direo do acampamento, l
embaixo. Alguns se dirigiram ao local onde os
animais estavam presos. Com os meus prprios
ouvidos, ouvi passos furtivos fora da tenda onde
me encontrava amarrado. No pararam. Olhos-de-
Noite sentiu o fedor do piche queimando. Um
instante depois, duas flechas em chamas cruzaram
voando a noite. Atingiram a tenda de Emaranhado.
Uma grande gritaria ergueu-se num momento.
Enquanto os soldados sonolentos saam das tendas
aos tropees e se dirigiam para o incndio, os
arqueiros na encosta da colina faziam chover
flechas sobre eles.
Emaranhado saiu da tenda em chamas aos
tropees, enrolando os cobertores em volta de si
enquanto se movia e berrava ordens.
Eles querem o Bastardo, idiotas! Guardem-no
a qualquer custo! Ento uma flecha passou por
ele, deslizando pelo solo gelado. Ele soltou um
grito e jogou-se ao abrigo de uma carroa de
provises. Um segundo mais tarde, duas flechas se
cravaram nela com um baque.
Os homens da minha tenda haviam se levantado
de um salto assim que o tumulto teve incio. Eu os
tinha basicamente ignorado, preferindo o ponto de
vista de Olhos-de-Noite sobre o que estava
acontecendo. Mas quando o sargento entrou de
rompante na tenda, a sua primeira ordem foi:
Arrastem-no l para fora antes que
incendeiem a tenda. Mante-nham-no abaixado. Se
vierem busc-lo, cortem a sua garganta!
As ordens do sargento foram seguidas muito
literalmente. Um homem ajoelhou-se atrs de mim,
com a faca encostada na minha garganta. Outros
seis nos rodearam. A toda a nossa volta, na
escurido, outros homens corriam e gritavam.
Houve um segundo alarido quando outra tenda
entrou em chamas, juntando-se de Emaranhado, a
qual agora ardia alegremente e iluminava bem a
extremidade do acampamento em que se
encontrava. Na primeira vez que tentei erguer a
cabea para ver o que estava acontecendo, o
jovem soldado que estava atrs de mim voltou a
bater energicamente o meu rosto contra o cho
gelado. Resignei-me ao gelo e ao cascalho e
preferi olhar pelos olhos do lobo.
Se a guarda de Emaranhado no tivesse estado
to concentrada em me manter preso, e em
proteger Emaranhado, poderia ter percebido que
nenhum de ns era o alvo daquele ataque.
Enquanto flechas voavam em volta de Emaranhado
e da sua tenda em chamas, na ponta escura do
acampamento os invasores silenciosos estavam
libertando contrabandistas, peregrinos e pneis.
Olhos-de-Noite me mostrara que o arqueiro que
incendiara a tenda de Emaranhado ostentava os
traos Grampo to claramente quanto Nico. Os
contrabandistas tinham vindo buscar os seus. Os
cativos escaparam do acampamento como farinha
de uma saca cheia de buracos enquanto os homens
de Emaranhado protegiam a ele e a mim.
A avaliao que Emaranhado fizera dos seus
homens fora correta. Mais de um homem de armas
esperou que aquele ataque terminasse sombra de
uma carroa ou de uma tenda. No duvidava de
que lutariam bem se fossem pessoalmente
atacados, mas nenhum ousou liderar uma surtida
contra os arqueiros da colina. Suspeitei nesse
momento de que o Capito Marco no fora o nico
homem a ter um acordo com os contrabandistas.
Os disparos que fizeram em resposta foram
ineficazes, visto que as tendas em chamas no
acampamento haviam arruinado a sua viso
noturna, enquanto o fogo transformava os arqueiros
que se levantavam para responder aos disparos
dos contrabandistas em silhuetas e alvos.
Tudo acabou com uma rapidez notvel. Os
arqueiros na colina continuaram a disparar flechas
contra ns enquanto os outros fugiam, e esse fogo
manteve a ateno dos homens de Emaranhado.
Quando a chuva de projteis parou de sbito,
Emaranhado rugiu imediatamente pelo seu
sargento, exigindo saber se eu escapara. O
sargento lanou um olhar de aviso aos seus
homens, ento gritou em resposta que tinham
conseguido mant-los afastados de mim.
O resto daquela noite foi uma misria. Passei
uma boa parte dela de rosto para baixo contra a
neve enquanto um Emaranhado meio vestido
bufava e batia violentamente com os ps no cho
minha volta. O incndio da sua tenda consumira a
maior parte das suas provises pessoais. Quando a
fuga dos peregrinos e contrabandistas foi
descoberta, isso pareceu tomar uma importncia
secundria diante do fato de ningum mais no
acampamento ter roupa de um tamanho que
servisse a Emaranhado.
Mais trs tendas haviam sido incendiadas. O
cavalo de Emaranhado fora levado com os pneis
dos contrabandistas. Apesar de todos os berros
que Emaranhado soltou prometendo terrveis
vinganas, no fez qualquer esforo para organizar
uma perseguio. Em vez disso, ele se contentou
em me chutar vrias vezes. J era quase alvorada
quando ele se lembrou de perguntar se a menestrel
tambm havia sido levada. Havia. E isso,
declarou, provava que eu fora o verdadeiro alvo
do ataque. Triplicou a guarda minha volta
durante o resto dessa noite e ao longo dos dois
dias seguintes de viagem at Olho de Lua. Sem
surpresa, no vimos mais sinal dos nossos
atacantes. Obtiveram tudo o que desejavam e
desapareceram nas colinas. Eu no tinha qualquer
dvida de que Nico tambm possua esconderijos
deste lado do rio. No conseguia sentir nenhuma
simpatia pelo homem que me vendera, mas
confessei a mim mesmo uma admirao relutante
por ele ter levado consigo os peregrinos quando
fugiu. Esporana talvez pudesse fazer disso uma
cano.
Olho de Lua parecia uma pequena vila
escondida numa dobra dos contrafortes das
montanhas. Havia poucas fazendas ao redor, e as
ruas de paraleleppedos comeavam abruptamente
logo depois da paliada de madeira que cercava a
vila. Uma sentinela nos dirigiu uma interrogao
formal de uma torre que se erguia acima da
paliada. Foi s depois de entrarmos que percebi
a cidadezinha agitada que era aquela povoao. Eu
sabia pelas aulas com Penacarrio que Olho de
Lua fora um posto militar avanado com
importncia para os Seis Ducados antes de se
transformar em local de parada para as caravanas
que se dirigiam para o outro lado das Montanhas.
Agora, mercadores de mbar, peles e marfim
esculpido atravessavam regularmente Olho de Lua
e a enriqueciam sua passagem. Pelo menos assim
fora nos anos desde que o meu pai obtivera
sucesso em negociar um tratado de livre-trnsito
com o Reino da Montanha.
As novas hostilidades de Majestoso haviam
alterado tudo. Olho de Lua revertera posio de
domnio militar que fora nos tempos do meu av.
Os soldados que andavam pelas ruas usavam o
dourado e marrom de Majestoso em vez do azul de
Cervo, mas soldados eram soldados. Os
mercadores tinham o ar desconfiado e fatigado de
homens que eram ricos apenas nas cdulas do seu
soberano e que se perguntavam quo amortizveis
elas se revelariam a longo prazo. A nossa
procisso atraiu a ateno dos habitantes, mas o
que nos mostraram foi uma curiosidade furtiva.
Perguntei-me quando havia tornado azar ter muita
curiosidade sobre os assuntos do rei.
Apesar do meu cansao, observei a vila com
interesse. Fora para ali que o meu av me trouxera
para me abandonar ao cuidado de Veracidade, e
onde Veracidade me entregara a Bronco. Sempre
me perguntei se a gente da minha me vivera perto
de Olho de Lua, ou se teramos viajado para longe
em busca do meu pai. Contudo, procurei em vo
qualquer ponto de referncia ou sinal que
despertasse em mim alguma recordao da
infncia perdida. Olho de Lua parecia ao mesmo
tempo to estranha e to familiar como qualquer
vila que eu j visitara.
A vila estava repleta de soldados. Havia tendas
e puxados encostados a todas as paredes. Parecia
que a populao aumentara bastante havia pouco
tempo. Acabamos chegando a um ptio que os
animais da coluna de suprimentos reconheceram
como um lar. Fomos alinhados e ento
dispensados com preciso militar. Os meus
guardas me levaram para um edifcio atarracado
de madeira. Era desprovido de janelas e sinistro.
L dentro havia uma nica sala, onde um velho se
sentava num banco baixo junto a uma grande
lareira onde ardia um fogo agradvel. Menos
agradveis eram as trs portas com pequenas
janelas barradas que davam para essa sala. Fui
empurrado para uma delas, as cordas que me
prendiam foram cortadas de pronto e ento fui
deixado s.
No tocante a prises, aquela era a mais
agradvel em que eu estivera. Apanhei-me com
aquele pensamento e arreganhei os dentes em algo
que no era bem um sorriso. Havia uma armao
de cama presa por cordas, com um saco de palha
em cima servindo de colcho. Havia um penico no
canto. Entrava alguma luz pela janela na porta, e
tambm algum calor. No muito de uma coisa, nem
de outra, mas mesmo assim fazia muito mais calor
do que l fora. No possua a severidade de uma
priso sria. Decidi que se tratava de uma zona de
conteno para soldados bbados ou
perturbadores. Parecia estranho tirar o manto e as
luvas e coloc-los de lado. Sentei-me na beira da
cama e esperei.
A nica coisa digna de nota que aconteceu nessa
noite foi que a refeio inclua carne, po e at
uma caneca de cerveja. O velho abriu a porta para
me entregar a bandeja. Quando voltou para
recolh-la, deixou-me dois cobertores. Agradeci-
lhe, e ele pareceu sobressaltado. Depois me
chocou ao observar:
Voc tem a voz e os olhos do seu pai.
Ento fechou a porta na minha cara, um tanto
apressado. Ningum mais falou comigo, e a nica
conversa que ouvi foram as pregas e gracejos de
um jogo de dados. Pelas vozes, deduzi que havia
trs homens mais novos na antecmara, alm do
velho carcereiro.
Quando a noite chegou, trocaram os dados por
uma conversa em voz baixa. Pouco consegui
distinguir do que foi dito em meio estridncia do
vento l fora. Levantei-me sem rudo da cama e fui
como um fantasma at a porta. Quando espreitei
pela sua janela barrada, vi nada menos do que trs
sentinelas de servio. O velho estava dormindo na
sua cama, no canto, mas os trs que vestiam o
dourado e marrom de Majestoso levavam os seus
deveres a srio. Um era um rapaz imberbe, que
provavelmente no passava dos catorze anos. Os
outros dois moviam-se como soldados. Um tinha
um rosto com mais cicatrizes do que o meu; decidi
que era um arruaceiro. O outro tinha uma barba
bem aparada e era evidente que estava no
comando dos outros dois. Todos estavam
acordados, ainda que no propriamente alertas. O
arruaceiro estava importunando o garoto com
alguma coisa. Este mostrava uma expresso
carrancuda. Aqueles dois, pelo menos, no se
davam bem. Quando parou de incomodar o garoto,
o arruaceiro passou a reclamar sem cessar sobre
Olho de Lua. A bebida era ruim, havia poucas
mulheres e as que havia eram to frias quanto o
prprio inverno. Ele gostaria que o rei os
liberasse para carem sobre os brbaros gatunos
da rameira da Montanha. Sabia que podiam abrir
caminho at Jhaampe e tomar a cidade arbrea
numa questo de dias. Onde estava o sentido em
esperar? E continuou arengando sem parar. Os
outros acenavam com as cabeas como se aquela
fosse uma litania que conheciam bem. Afastei-me
em silncio da janela e regressei cama, para
pensar.
Bela jaula.
Pelo menos me alimentam bem.
No to bem como eu me alimento. Voc
precisa de um pouco de sangue quente na
carne. Vai fugir logo?
Assim que conseguir imaginar como.
Passei algum tempo explorando cuidadosamente
os limites da minha cela. Paredes e assoalho de
tbuas cinzeladas, velhas e duras como ferro para
os meus dedos. Um teto de tbuas bem juntas em
que quase nem conseguia roar com as pontas dos
dedos. E a porta de madeira, com a janela coberta
com barras.
Se ia sair, teria de ser pela porta. Voltei
janela.
Posso beber um pouco de gua? chamei
em voz baixa.
O jovem sobressaltou-se bastante e o arruaceiro
riu dele. O terceiro guarda olhou para mim, e ento
foi tirar em silncio uma concha de gua do barril
que havia no canto. Trouxe-a at a janela e passou
apenas a taa por entre as barras. Deixou-me
beber por ela, ento a retirou e se afastou.
Quanto tempo eles vo me manter aqui?
gritei-lhe.
At estar morto disse o arruaceiro com
confiana.
No devemos falar com ele lembrou o
rapaz, e Calem-se!, ordenou o sargento. A
ordem me inclua. Fiquei porta, observando-os,
agarrado s barras. Isso deixava o garoto nervoso,
mas o arruaceiro me olhava com a ateno vida
de um tubaro movendo-se em crculos. Seria
preciso muito pouca isca para levar aquele a me
bater. Perguntei-me se isso seria til. Estava muito
cansado de apanhar, mas parecia ser a nica coisa
que eu fazia bem nos ltimos tempos. Decidi
pressionar um pouco, para ver o aconteceria.
Por que vocs no devem falar comigo?
perguntei com curiosidade.
Os guardas trocaram olhares.
Afaste-se da janela e cale-se ordenou-me
o sargento.
S fiz uma pergunta objetei em tom
brando. O que pode haver de errado em falar
comigo?
O sargento levantou-se e eu recuei de imediato,
obediente.
Estou aqui trancado e vocs so trs. Estou
entediado, nada mais. No podem ao menos me
dizer o que sabem sobre o que me vai acontecer?
Faro com voc o que devia ter sido feito da
primeira vez que o mataram. Enforcado acima da
gua, cortado em pedaos e queimado, Bastardo
disse-me o arruaceiro.
O sargento virou-se para ele.
Cale-se. Ele est provocando, idiota.
Ningum diga nem mais uma palavra para ele.
Nenhuma. assim que um Manhoso os coloca sob
o seu poder. Atraindo vocs para conversas. Foi
assim que ele matou Dardo e o seu destacamento.
O sargento me lanou um olhar selvagem, e
ento o virou tambm para os seus homens.
Regressaram aos seus postos. O arruaceiro me deu
um sorriso escarnecedor.
No sei o que disseram a vocs sobre mim,
mas no verdade eu disse. Ningum
respondeu. Olhem, no sou diferente de vocs.
Se tivesse algum grande poder mgico, acham que
eu estaria trancafiado assim? No. Sou s um bode
expiatrio, nada mais. Todos vocs sabem como
se faz. Se alguma coisa d errado, algum tem de
receber a culpa. E fui eu que aterrissei na merda.
Bem, olhem para mim e pensem nas histrias que
ouviram. Eu conheci Dardo quando ele estava com
Majestoso em Torre do Cervo. Pareo com um
homem capaz de derrubar Dardo? E continuei
naquilo durante a maior parte do turno deles. No
pensava mesmo que seria capaz de convenc-los
de que era um homem inocente. Mas podia
convenc-los de que no fato de eu falar ou eles
responderem no havia nada a se temer. Contei
histrias da minha vida passada e seus infortnios,
certo de que seriam repetidas por todo o
acampamento. Se bem que no soubesse que
vantagem poderia obter da. No entando, mantive-
me em p, porta, agarrado s barras da janela, e
com movimentos muito minsculos fui tentando
torcer as barras que agarrava. Forcei-as de um
lado para o outro nos seus encaixes. Se se
moveram, no consegui perceber.
O dia seguinte arrastou-se. Senti que cada hora
que passava era uma hora que trazia o perigo para
mais perto de mim. Emaranhado no viera me ver.
Tive certeza de que estava me mantendo preso,
esperando que algum viesse me tirar de suas
mos. Temi que fosse Vontade. No parecia que
Majestoso confiasse em qualquer outra pessoa
para me transportar. No desejava outro encontro
com Vontade. Eu no sentia que tivesse foras
para lhe resistir. O meu trabalho naquele dia
consistiu em empurrar as barras e observar os
meus captores. Ao fim do dia, senti-me pronto a
arriscar. Depois da refeio da noite, constituda
de queijo e mingau de aveia, deitei-me na cama e
me preparei para usar o Talento.
Baixei cautelosamente as muralhas, temendo
encontrar Emaranhado minha espera. Sondei
para fora de mim e nada senti. Preparei-me outra
vez e tentei de novo, com os mesmos resultados.
Abri os olhos e fitei a escurido. A injustia
daquilo me deixou nauseado. Os sonhos de Talento
apareciam e me arrebatavam ao seu bel-prazer,
mas agora que eu procurava aquele rio de Talento,
ele fugia de mim por completo. Fiz mais duas
tentativas antes que uma latejante dor de cabea
me forasse a desistir. O Talento no ia me ajudar
a sair dali.
Resta a Manha, observou Olhos-de-Noite.
Parecia muito prximo.
Tambm no sei realmente como que isso me
vai ajudar, confidenciei-lhe.
Eu tambm no. Mas fiz um buraco por baixo
da paliada, para o caso de voc conseguir sair
da sua jaula. No foi fcil, pois o cho est
congelado e os troncos da paliada estavam
enterrados fundo. Mas se conseguir sair da
jaula, eu consigo tir-lo da cidade.
Foi um plano sensato, elogiei-o. Pelo menos um
de ns estava fazendo alguma coisa.
Sabe onde estou abrigado esta noite? Havia um
divertimento suprimido no pensamento.
Onde voc est abrigado?, perguntei, obediente.
Bem debaixo dos seus ps. Havia espao
suficiente para eu rastejar aqui para baixo.
Olhos-de-Noite, isso uma ousadia tola. Voc
pode ser visto, ou os sinais da sua escavao
podem ser descobertos.
Uma dzia de ces esteve aqui antes de mim.
Ningum reparar nas minhas idas e vindas. Usei
a noite para ver muito deste aglomerado de
homens. Todas as construes tm espaos por
baixo. muito fcil me esgueirar de uns para os
outros.
Tenha cuidado, adverti-o, mas no podia negar
que havia conforto em saber que ele estava to
perto. Passei uma noite inquieta. Os trs guardas
tiveram sempre o cuidado de manter uma porta
entre ns. Experimentei os meus encantos com o
velho na manh seguinte, quando ele me passou
uma caneca de ch e dois pedaos de po duro.
Ento voc conheceu o meu pai observei
enquanto ele enfiava a comida por entre as barras.
Sabe, eu no tenho nenhuma lembrana dele.
Nunca passou nenhum tempo comigo.
Ento pode se considerar abenoado
retorquiu o velho, seco. Conhecer o prncipe
no era o mesmo que gostar dele. Era rgido como
um basto. Regras e ordens para ns, enquanto ele
andava por a fazendo bastardos. Sim, eu conheci
o seu pai. Conheci-o bem demais para o meu
conforto. E deu as costas s barras, reduzindo a
nada a esperana que eu tivera de transform-lo
num aliado. Retirei-me para me sentar na cama
com o po e o ch e fitar desesperanado as
paredes. Outro dia infinito passara. Tinha certeza
de que isso trazia Vontade para um dia de viagem
mais perto de mim. Outro dia mais perto de ser
arrastado de volta para Vaudefeira. Um dia mais
perto da morte.
No frio e escurido da noite, Olhos-de-Noite me
acordou. Fumaa. Muita.
Sentei-me na cama. Fui at a janela e olhei para
fora. O velho estava dormindo no seu catre. O
garoto e o arruaceiro estavam jogando dados,
enquanto o outro homem mexia nas unhas com a
faca. Tudo estava calmo.
De onde est vindo a fumaa?
Devo ir ver?
Se puder. Mas tenha cuidado.
Quando que no tenho?
Passou-se algum tempo, durante o qual eu fiquei
de p de um lado da porta da minha cela e
observei os meus guardas. Ento Olhos-de-Noite
voltou a me contactar. uma construo grande,
que cheira a cereais. Est queimando em dois
lugares.
Ningum est soando um alarme?
Ningum. As ruas esto vazias e escuras. Esta
ponta da vila est adormecida.
Fechei os olhos e partilhei a sua viso. A
construo era um celeiro. Algum acendera duas
fogueiras junto a ela. Uma estava apenas em brasa,
mas a outra lambia at bem alto a parede de
madeira da construo.
Volte para mim. Talvez possamos tirar
vantagem disso.
Espere.
Olhos-de-Noite subiu decidido a rua,
esgueirando-se de construo em construo. Atrs
de ns, o incndio do celeiro comeou a crepitar
medida que ia ganhando fora. Ele fez uma pausa,
farejou o ar e mudou de direo. Logo estava
olhando para outro incndio. Aquele estava
devorando avidamente uma pilha coberta de feno
no fundo de outro celeiro. Fumaa brotava
indolentemente, subindo em fiapos para a noite. De
repente, uma labareda saltou e, com um imenso
sopro, a pilha inteira ficou subitamente incendiada.
Fagulhas cavalgaram o calor at o cu noturno.
Algumas ainda cintilavam quando se instalaram em
telhados prximos.
Algum est comeando estes incndios. Volte
para mim agora!
Olhos-de-Noite veio com rapidez. No caminho
de volta, viu outro fogo mordiscando uma pilha de
trapos cobertos de leo enfiados por baixo do
canto de uma caserna. Uma brisa errante encorajou
o fogo a explorar. As chamas lamberam um dos
pilares que suportavam a construo e enrolaram-
se avidamente ao longo da parte de baixo do
assoalho.
O inverno secara to completamente a vila de
madeira com o seu frio severo como qualquer
calor de vero. Puxados e tendas ocupavam os
espaos entre as construes. Se os incndios
ardessem sem serem detectados por muito mais
tempo, toda Olho de Lua podia estar em cinzas
antes da manh. E eu tambm, se ainda estivesse
trancado na cela.
Quantos homens o guardam?
Quatro. E uma porta trancada.
Um deles deve estar com a chave.
Espere. Vejamos se as nossas chances
melhoram. Ou se eles abrem a porta para me
levar para outro lugar.
Em algum lugar na vila fria, um homem ergueu a
voz num grito. O primeiro incndio fora detectado.
Fiquei dentro da minha cela, escutando com os
ouvidos de Olhos-de-Noite. Os gritos foram
aumentando gradualmente, at que at os guardas
que estavam do outro lado da minha porta se
levantaram, perguntando uns aos outros:
O que aquilo?
Um deles foi at a porta e a abriu. Um vento frio
e o cheiro de fumaa entraram na sala aos
turbilhes. O arruaceiro colocou a cabea para
dentro e anunciou:
Parece que h um grande incndio do outro
lado da vila. Num instante, os outros dois
homens se inclinaram para fora da porta. A
conversa tensa entre eles acordou o velho, que
tambm foi ver o que se passava. L fora, algum
correu pela rua, gritando:
Fogo! Fogo junto do celeiro! Tragam baldes!
O garoto olhou para o oficial.
Devo ir ver?
Por um momento, o homem hesitou, mas a
tentao foi demais.
No. Voc fica aqui enquanto eu vou. Fiquem
alerta. Pegou o manto e saiu para a noite. O
garoto ficou vendo-o partir, desapontado.
Permaneceu de p, porta, fitando a noite. Ento:
Vejam, h mais chamas! Ali! exclamou. O
arruaceiro praguejou, e ento pegou o manto.
Vou dar uma olhada.
Mas nos disseram para ficarmos aqui para
guardar o Bastardo!
Fique voc! Eu volto logo, s quero ver o
que est acontecendo! Gritou as ltimas
palavras por cima do ombro enquanto se afastava
apressadamente. O garoto e o velho trocaram
olhares. O velho voltou para a cama e deitou-se,
mas o garoto ficou na porta. Atravs da porta da
minha cela eu conseguia ver um pedao da rua. Um
punhado de homens passou correndo; depois
algum passou conduzindo uma parelha e uma
carroa a grande velocidade. Todos pareciam
estar indo na direo do incndio.
Parece muito ruim? perguntei.
No consigo ver muita coisa daqui. S
chamas depois dos estbulos. Um monte de
fagulhas voando. O garoto parecia desapontado
por estar to longe da excitao. De repente
lembrou-se de quem era a pessoa com quem
falava. Recolheu a cabea de forma abrupta para
dentro e fechou a porta. No fale comigo!
advertiu-me, e ento foi se sentar.
O celeiro fica a que distncia daqui?
perguntei. Ele recusou-se at a me olhar de
relance, e ficou com olhos vidrados fitando a
parede. que prossegui em tom de conversa
eu s estava curioso para saber o que voc vai
fazer se os incndios chegarem at aqui. No
gostaria de ser queimado vivo. Eles deixaram as
chaves com voc, no deixaram? O garoto
imediatamente olhou para o velho. A mo deste
deu um toro involuntrio na direo da bolsa,
como que para se assegurar de que ainda as tinha,
mas nenhum me deu resposta. Fiquei de p junto da
porta da cela e o observei. Passado algum tempo,
o garoto foi at a porta e voltou a olhar para fora.
Vi a sua mandbula contrair-se. O velho foi olhar
por cima do ombro dele.
Est se espalhando, no est? Um vento de
inverno uma coisa terrvel. Tudo seco como
ossos.
O garoto no quis responder, mas virou-se para
mim. A mo do velho estendeu-se para a chave
que tinha na bolsa.
Venham agora amarrar as minhas mos e me
tirar daqui. Nenhum de ns quer estar neste
edifcio se as chamas chegarem at aqui.
Um olhar vindo do garoto.
No sou estpido disse-me ele. No
serei eu a morrer por deixar voc fugir.
Por mim, voc pode arder a mesmo,
Bastardo acrescentou o velho. Voltou a esticar
o pescoo para fora da porta. Mesmo de longe,
consegui ouvir o sbito sopro quando uma
construo qualquer desapareceu numa erupo de
fogo. O vento trazia agora um forte cheiro de
fumaa, e eu vi a tenso acumulando-se na postura
do garoto. Vi um homem passar correndo pela
porta aberta, gritando qualquer coisa ao garoto
sobre combates na praa do mercado. Mais
homens passaram correndo pela rua, e ouvi o
tilintar de espadas e de armadura ligeira que
faziam ao correr. Cinzas cavalgavam agora o
vento, e o rugido das chamas era mais ruidoso do
que as rajadas de vento. A fumaa que pairava
acinzentava o ar l fora.
Ento, de repente, homem e garoto entraram de
novo na sala aos tropees. Olhos-de-Noite os
seguiu, mostrando todos os dentes que possua.
Preencheu a porta e bloqueou a fuga dos homens.
O rosnado que soltou soou mais alto do que o
crepitar das chamas l fora.
Destranquem a porta da minha cela e ele no
lhes far mal sugeri.
Porm, o garoto desembainhou a espada. Ele era
bom. No esperou que o lobo entrasse e investiu
contra ele, com a arma apontada, forando Olhos-
de-Noite a recuar atravs da porta. O lobo evitou a
lmina com facilidade, mas j no os tinha
encurralados. O garoto aproveitou a vantagem e
saiu para as trevas, a fim de seguir o lobo. No
segundo em que a porta deixou de estar bloqueada,
o velho a fechou com violncia.
Vai ficar aqui e ser queimado vivo comigo?
perguntei-lhe em tom de conversa.
Num instante, ele decidira.
Queime sozinho! cuspiu-me. Voltou a
escancarar a porta e correu para fora.
Olhos-de-Noite! ele que tem a chave, o velho
que est fugindo.
Vou peg-la.
Agora eu estava sozinho na minha priso. Quase
esperava que o garoto regressasse, mas ele no o
fez. Agarrei as barras da janela e sacudi a porta
contra a sua tranca. Quase no se mexeu. Uma
barra pareceu ligeiramente solta. Fiz fora contra
ela, encostando os ps na porta para pux-la com
todo o meu peso. Uma enormidade de tempo mais
tarde, uma extremidade se soltou. Dobrei-a para
baixo e a sacudi de um lado para o outro at sair
por completo. Mas mesmo se todas as barras se
soltassem, a abertura ainda seria pequena demais
para eu atravessar. Tentei, mas a barra solta que
eu agarrava era grossa demais para penetrar nas
fendas em volta da porta e servir de alavanca. J
sentia o cheiro da fumaa por todo o lado, pesado
no ar. O incndio estava prximo. Atirei-me de
ombro contra a porta, mas ela nem sequer
estremeceu. Enfiei o brao na janela e estiquei-o
para baixo, tateando. Os meus dedos tensos
descobriram uma pesada barra metlica. Percorri-
a com as pontas dos dedos at chegar tranca que
a mantinha no lugar. Conseguia raspar nela com os
dedos, mas nada mais. No conseguia decidir se a
sala estava realmente ficando mais quente, ou se
era a minha imaginao.
Estava batendo cegamente com a minha barra de
ferro contra a tranca e as braadeiras que a
mantinham no lugar quando a porta exterior se
abriu. Uma guarda vestida de marrom e dourado
entrou a passos largos na sala, gritando:
Vim buscar o Bastardo. Ento o seu olhar
percebeu a sala vazia.
Num momento, jogou o capuz para trs e
transformou-se em Esporana. Fitei-a, incrdulo.
Mais fcil do que eu esperava disse-me
ela com um sorriso resoluto. Dava-lhe um ar
sinistro ao rosto ferido, mais parecido com um
rosnado.
Talvez no eu disse debilmente. A cela
est trancada.
O sorriso dela transformou-se numa expresso
de consternao.
Os fundos deste edifcio esto em brasa.
Agarrou a minha barra com a mo boa. No
momento preciso em que a erguia para bater na
tranca, Olhos-de-Noite surgiu porta. Entrou na
sala e largou a bolsa do velho no cho. Sangue
escurecera o couro.
Olhei-o, horrorizado de sbito.
Voc o matou?
Tirei dele aquilo de que voc precisava.
Depressa. Os fundos desta jaula esto
queimando.
Por um momento, no me consegui mexer. Olhei
para Olhos-de-Noite e perguntei-me em que eu o
estava transformando. Ele perdera algo de sua
selvajeria limpa. Os olhos de Esporana saltaram
dele para mim, para a bolsa no cho. No se
mexeu.
E parte do que faz de voc um homem
desapareceu. No temos tempo para isso, irmo.
Voc no mataria um lobo se isso me salvasse a
vida?
No precisei responder quilo.
A chave est nessa bolsa eu disse a
Esporana.
Durante um momento, ela apenas a encarou.
Ento abaixou-se e tirou com dificuldade a pesada
chave de ferro de dentro da bolsa de couro. Vi-a
enfi-la no buraco da fechadura, rezando agora
para no ter amassado demais o mecanismo. Ela
girou a chave, soltou o ferrolho com um puxo e
levantou a barra da porta. Quando eu sa, ordenou-
me:
Traga os cobertores. Vai precisar deles. O
frio l fora intenso.
Quando fui apanh-los, senti o calor que
irradiava da parede do fundo da minha cela.
Peguei o manto e as luvas. Fumaa comeava a
penetrar furtivamente por entre as tbuas. Fugimos
seguidos de perto pelo lobo.
Na rua, ningum reparou em ns. O incndio
estava impossvel de combater. Tinha o controle
da vila e corria para onde quer que lhe apetecesse.
As pessoas que vi estavam ocupadas com os
assuntos egostas do salvamento dos seus bens e
da sobrevivncia. Um homem passou por ns
arrastando um carrinho de mo carregado de
coisas sem nos lanar mais do que um olhar de
aviso. Perguntei-me se as coisas seriam dele. No
fim da rua vi um estbulo em chamas. Cavalarios
frenticos arrastavam cavalos para fora, mas os
gritos dos animais em pnico que ainda estavam no
interior eram mais estridentes do que o vento. Com
um estrondo tremendo, um edifcio do outro lado
da rua ruiu, soprando ar quente e cinzas na nossa
direo num terrvel suspiro. O vento espalhara o
incndio por toda Olho de Lua. O fogo corria de
construo em construo, e o vento transportava
fagulhas em chamas e cinzas quentes para a
floresta alm da paliada. Indaguei-me se at as
neves profundas seriam suficientes para det-lo.
Vamos! gritou Esporana irritada, e
percebi que eu estivera parado de boca aberta.
Agarrando cobertores, segui-a sem uma palavra.
Corremos pelas ruas sinuosas da vila em chamas.
Ela parecia conhecer o caminho.
Chegamos a uma encruzilhada. Alguma espcie
de luta ocorrera ali. Quatro corpos estavam
estendidos na rua, todos com as cores de Vara.
Parei para me debruar sobre um soldado e tirar
da mulher a faca e a bolsa que levava no cinto.
Ns nos aproximamos dos portes da vila. De
repente, uma carroa chacoalhou a nosso lado. Os
dois cavalos que a puxavam eram dspares e
estavam cobertos de espuma.
Subam! algum nos gritou. Esporana
saltou para a carroa sem hesitar.
Panela? perguntei, e a sua resposta foi:
Depressa! Subi e o lobo saltou facilmente
para o meu lado. Ela no esperou que nos
instalssemos e sacudiu as rdeas contra os
cavalos. A carroa saltou para frente com um
solavanco.
nossa frente encontravam-se os portes.
Estavam abertos e desguarnecidos, balanando nas
dobradias, empurrados pelo vento proveniente do
incndio. A um lado, vi de relance um corpo
estatelado. Panela nem sequer diminuiu a
velocidade da parelha. Atravessamos o porto sem
olhar para trs e seguimos chacoalhando pela
estrada escura, para irmos nos juntar s outras
pessoas que fugiam da destruio com carroas e
carrinhos de mo. A maioria parecia dirigir-se
para as poucas fazendas dos arredores, procurando
abrigo para a noite, mas Panela manteve os nossos
cavalos em movimento. Enquanto a noite nossa
volta se tornava mais escura e as pessoas
escasseavam, Panela instigou os cavalos a uma
velocidade maior. Perscrutei a escurido que se
estendia adiante.
Notei que Esporana estava olhando para trs.
Devia ser apenas uma distrao disse ela
numa voz horrorizada. Virei-me para olhar para
trs.
Um imenso claro cor de laranja delineava em
negro a silhueta da paliada de Olho de Lua.
Acima, fagulhas erguiam-se no cu noturno, densas
como um enxame de abelhas. O rugido das chamas
era como ventos de tempestade. Enquanto
observvamos, uma construo ruiu, e outra onda
de fagulhas ergueu-se no ar.
Uma distrao? Olhei para ela atravs da
escurido. Vocs fizeram tudo aquilo? Para me
libertar?
Esporana me lanou um olhar divertido.
Lamento desapont-lo. No. Panela e eu
viemos por voc, mas no foi a razo de isto
acontecer. A maior parte daquilo obra da famlia
de Nico. Vingana contra aqueles que os traram.
Entraram na vila para encontr-los e mat-los.
Depois foram embora. Sacudiu a cabea.
complicado demais para explicar tudo agora,
mesmo se eu compreendesse. evidente que a
Guarda Real de Olho de Lua corrupta h anos.
Eles tm sido bem pagos para no ver nada do que
diz respeito aos contrabandistas Grampo. E os
contrabandistas tm se assegurado de que os
homens ali estacionados experimentem algumas
das melhores coisas da vida. Suponho que o
Capito Marco se beneficiava da maior parte dos
lucros. No estava sozinho, mas tampouco se
mostrava generoso com a partilha.
Depois Emaranhado foi enviado para c. Ele
nada sabia sobre o acordo. Trouxe consigo um
enorme afluxo de soldados e tentou impor aqui
uma disciplina militar. Nico vendeu voc a Marco.
Mas enquanto Nico o vendia a Marco, algum viu
uma oportunidade de vender Marco e o seu acordo
a Emaranhado. Emaranhado viu uma oportunidade
para apanhar vocs e acabar com um bando de
contrabandistas. Porm, Nico Grampo e o seu cl
tinham pago bem por livre-trnsito para os
peregrinos. Ento os soldados nos traram e a
promessa que os Grampo fizeram aos peregrinos
foi quebrada.
Sacudiu a cabea. Sua voz ficou tensa.
Algumas das mulheres foram estupradas.
Uma criana morreu de frio. Um homem nunca
mais voltar a andar porque tentou proteger a
mulher. Durante algum tempo, os nicos sons
que se ouviram foram os da carroa e o rugido
distante dos incndios. Os olhos dela estavam
muito negros quando olhou de novo para a vila em
chamas. J ouviu falar em honra entre ladres?
Bem, Nico e os seus homens vingaram a deles.
Eu ainda fitava a destruio de Olho de Lua.
No me importava nem um pouco com
Emaranhado e os seus vareses. Mas houvera
mercadores ali e comerciantes, famlias e lares.
As chamas estavam devorando a todos. E soldados
dos Seis Ducados haviam estuprado as suas
cativas como se fossem salteadores sem lei em vez
de guardas do rei. Soldados dos Seis Ducados, a
servio de um rei dos Seis Ducados. Sacudi a
cabea.
Sagaz teria enforcado todos eles.
Esporana pigarreou.
No se culpe disse-me. Aprendi h
muito tempo a no me culpar pelo mal que me era
feito. A culpa no foi minha. Nem sequer foi sua.
Voc s foi o catalisador que deu incio
sequncia de acontecimentos.
No me chame disso supliquei-lhe. A
carroa continuou a estrondear, levando-nos para
as profundezas da noite.
CAPTULO 19

Perseguio

A paz entre os Seis Ducados e o Reino da


Montanha era relativamente recente poca do
reinado do Rei Majestoso. Durante dcadas, o
Reino da Montanha controlara todo o comrcio
atravs dos passos com um pulso to firme
quanto o que os Seis Ducados aplicavam ao
comrcio nos rios Frio e Cervo. O comrcio e o
trfego entre as duas regies haviam sido
geridos caprichosamente pelas duas potncias,
para detrimento de ambas. Porm, durante o
reinado do Rei Sagaz foram negociados entre o
Prncipe Herdeiro Cavalaria dos Seis Ducados e
o Prncipe Rurisk das Montanhas acordos
comerciais mutuamente benficos. A paz e
prosperidade que este acordo trouxe tornaram-se
mais slidas quando, mais de uma dcada mais
tarde, a princesa da Montanha, Kettricken,
tornou-se a noiva do Prncipe Herdeiro
Veracidade. Aps a morte prematura do irmo
mais velho, Rurisk, precisamente na vspera do
seu casamento, Kettricken tornou-se a nica
herdeira da coroa da Montanha. E, assim,
pareceu durante algum tempo que os Seis
Ducados e o Reino da Montanha poderiam vir a
dividir um monarca e acabar por se transformar
num s pas.
Entretanto, as circunstncias arruinaram todas
essas esperanas. Os Seis Ducados foram
ameaados do exterior pelos Salteadores, e
despedaados do interior pelos conflitos entre
prncipes. O Rei Sagaz foi assassinado, o
Prncipe Herdeiro Veracidade desapareceu
durante uma demanda, e quando o Prncipe
Majestoso reivindicou o trono para si, o seu dio
por Kettricken era tal que ela se sentiu obrigada
a fugir para as suas Montanhas natais, pelo bem
do filho que aguardava. O autoproclamado
Rei Majestoso viu isto, de certa maneira, como
a renegao de uma prometida entrega de
territrio. As suas diligncias para introduzir
tropas no Reino da Montanha, sob a aparncia
de guardas para as caravanas comerciais,
foram repelidas pelo povo das Montanhas. Os
seus protestos e ameaas levaram ao fechamento
das fronteiras da Montanha ao comrcio dos Seis
Ducados. Contrariado, embarcou numa vigorosa
campanha destinada a desacreditar a Rainha
Kettricken e a construir uma hostilidade
patritica contra o Reino da Montanha. O seu
objetivo final parecia bvio: tomar, pela fora se
necessrio, as terras do Reino da Montanha
como provncia dos Seis Ducados. Parecia um
mau momento para tal guerra e tal estratgia. As
terras que ele possua legitimamente j estavam
sob cerco de um inimigo externo, inimigo esse
que ele parecia ser incapaz ou no ter vontade de
derrotar. Nunca nenhuma fora militar havia
conquistado o Reino da Montanha, e no entanto
era isso que ele parecia decidido a fazer. O
motivo por que to desesperadamente desejava
possuir aquele territrio foi uma questo que, a
princpio, confundiu todos.

A noite estava lmpida e fria. O luar brilhante era


suficiente para nos mostrar por onde corria a
estrada, mas no para mais do que isso. Durante
algum tempo, apenas fiquei sentado na carroa,
escutando os rudos de esmagamento que os cascos
dos cavalos faziam na estrada e tentando absorver
tudo o que acontecera. Esporana pegou os
cobertores que tnhamos trazido da minha cela e os
sacudiu. Entregou-me um e enrolou outro em volta
dos seus ombros. Sentou-se aconchegada e
afastada de mim, olhando para trs da carroa.
Compreendi que ela queria ser deixada em paz. Vi
o claro cor de laranja que fora Olho de Lua
minguar distncia. Passado algum tempo, a minha
cabea comeou de novo a trabalhar.
Panela? chamei por cima do ombro.
Para onde vamos?
Para longe de Olho de Lua disse ela.
Consegui ouvir o cansao na sua voz.
Esporana mexeu-se e me deitou um olhar.
Pensvamos que voc soubesse.
Para onde foram os contrabandistas?
perguntei.
Senti, mais do que vi, Esporana encolhendo os
ombros.
No quiseram nos dizer. Disseram que se ns
amos busc-lo, tnhamos de nos separar deles.
Pareciam acreditar que Emaranhado mandaria
soldados atrs de voc, por mais fortemente que
Olho de Lua fosse atingida.
Assenti com a cabea, mais para mim do que
para ela.
Vai mandar. Vai me culpar por todo o ataque.
E se dir que os atacantes eram na verdade
oriundos do Reino da Montanha, soldados
enviados para me libertar. Endireitei-me,
afastando-me de Esporana. E quando nos
apanharem, mataro vocs duas.
No pretendemos deixar que eles nos
apanhem observou Panela.
E no apanharo prometi. Pelo menos
se agirmos com sensatez. Pare os cavalos.
Panela quase no precisou mand-los parar.
Haviam diminudo a um passo cansado h muito
tempo. Joguei meu cobertor para Esporana e dei a
volta na parelha. Olhos-de-Noite pulou de cima da
carroa e me seguiu curioso.
O que voc est fazendo? perguntou
Panela enquanto eu desprendia um arreio e largava
no terreno coberto de neve.
Estou mudando isto para que eles possam ser
montados. Sabem cavalgar sem sela? Eu estava
usando a faca do guarda para cortar as rdeas
enquanto falava. Ela teria de montar sem sela,
sabendo ou no. No tnhamos selas.
Suponho que terei de cavalgar observou
ela num tom rabugento enquanto descia da carroa.
Mas no vamos chegar muito longe muito
depressa, montados em dupla nestes cavalos.
Voc e Esporana ficaro bem prometi-lhe.
Basta que no parem.
Esporana estava de p em cima da carroa,
olhando para mim. No precisava do luar para
saber que havia incredulidade em seu rosto.
Vai nos deixar aqui? Depois de termos
voltado por voc?
No era assim que eu via as coisas.
Vocs que vo me deixar aqui disse- lhe
com firmeza. Jhaampe a nica povoao
grande, depois de darem as costas a Olho de Lua e
seguirem na direo do Reino da Montanha.
Cavalguem em ritmo constante. No vo
diretamente para Jhaampe. isso o que eles
esperaro que faamos. Procurem uma das aldeias
menores e se escondam l durante algum tempo. A
maioria das pessoas da Montanha hospitaleira.
Se no ouvirem rumores sobre uma perseguio,
prossigam para Jhaampe. Mas se afastem o
mximo possvel e o mais depressa possvel antes
de pararem para pedir abrigo ou comida.
O que voc vai fazer? perguntou Esporana
em voz baixa.
Olhos-de-Noite e eu seguimos o nosso
caminho. Como devamos ter feito h muito tempo.
Viajamos mais depressa sozinhos.
Eu voltei por voc disse Esporana. A sua
voz estava prestes a vacilar diante da minha
traio. Apesar de tudo o que tinha acontecido
comigo. Apesar da minha mo e de todo o
resto
Ele os est afastando do nosso rastro
disse de sbito Panela.
Precisa de ajuda para montar? perguntei-
lhe calmamente.
No precisamos de nenhuma ajuda sua!
declarou de sbito Esporana, com uma voz
zangada. Sacudiu a cabea. Quando penso em
tudo por que passei seguindo voc. E em tudo o
que fizemos para libert-lo Teria sido queimado
vivo naquela cela l atrs, se no fosse por mim!
Eu sei. No havia tempo para lhe explicar
tudo. Adeus disse em voz baixa. E as deixei
ali, afastando-me delas para o interior da floresta.
Olhos-de-Noite caminhava ao meu lado. As
rvores fecharam-se nossa volta, e elas ficaram
rapidamente fora de vista.
Panela compreendera rapidamente o objetivo do
meu plano. Assim que Emaranhado tivesse os
incndios controlados, ou talvez mesmo antes, ele
pensaria em mim. Encontrariam o velho morto por
um lobo e nunca acreditariam que eu perecera na
cela. Haveria uma perseguio. Enviariam
cavaleiros para todas as estradas que levavam s
montanhas, e em breve alcanariam Panela e
Esporana. A menos que os caadores tivessem
outro rastro mais difcil para seguir. Um rastro que
seguisse em meio vegetao e se dirigisse
diretamente para Jhaampe. Para oeste.
No seria fcil. Eu no possua nenhum
conhecimento especfico sobre o que se estendia
entre mim e a capital do Reino da Montanha.
Nenhuma vila, provavelmente, pois o Reino da
Montanha era pouco povoado. O povo vivia
principalmente das armadilhas, da caa e do
pastoreio nmade de ovelhas e cabras, e tendia a
viver em cabanas isoladas ou minsculas aldeias
rodeadas por amplos terrenos de caa. Eu teria
poucas possibilidades de mendigar ou roubar
comida ou provises. O que mais me preocupava
era poder acabar beira de uma cordilheira
impossvel de escalar ou ter de cruzar a vau um
dos muitos rios rpidos e frios que desciam
velozmente as ravinas e os vales estreitos.
intil nos preocuparmos at nos
encontrarmos bloqueados, observou Olhos-de-
Noite. Se acontecer, ento teremos simplesmente
de arranjar uma maneira de dar a volta no
obstculo. Pode ser que isso nos atrase. Mas
nunca chegaremos l se ficarmos parados nos
preocupando.
Assim, passamos a noite caminhando, Olhos-de-
Noite e eu. Quando chegvamos a clareiras, eu
estudava as estrelas e tentava viajar o mximo que
podia para oeste. O terreno revelou-se to
problemtico quanto eu esperava que fosse.
Deliberadamente, escolhi caminhos que fossem
mais gentis com um homem e um lobo a p do que
para homens a cavalo. Deixamos o nosso rastro ao
longo de encostas cobertas de arbustos e por
densos matagais em estreitos desfiladeiros.
Consolei-me enquanto progredia por tais lugares
imaginando Esporana e Panela avanando a bom
ritmo pelas estradas. Tentei no pensar que
Emaranhado poderia enviar batedores em
quantidade suficiente para seguir mais do que um
rastro. No. Primeiro eu precisava ganhar uma boa
dianteira sobre eles para depois atrair
Emaranhado a ponto de envi-los em fora atrs
de mim.
A nica maneira de fazer isso que consegui
imaginar foi me apresentar como uma ameaa para
Majestoso. Uma ameaa com que ele teria que
lidar de imediato.
Ergui os olhos para o topo de um espinhao.
Trs imensos cedros se juntavam num macio.
Pararia ali, faria uma minscula fogueira e tentaria
usar o Talento. Lembrei a mim mesmo que no
tinha casco-de-elfo, o que significava que teria de
preparar as coisas de modo a descansar bem
depois.
Eu fico de vigia, assegurou-me Olhos-de-Noite.
Os cedros eram enormes, com galhos largos que
se entrelaavam no alto de uma forma to apertada
que o cho estava limpo de neve. O solo
encontrava-se espessamente atapetado com
odorferos pedaos de frondes de cedro que foram
caindo com o decorrer do tempo. Juntei-os para
fazer para mim um assento, a fim de manter o
corpo longe da terra fria, e ento recolhi uma boa
reserva de lenha. Pela primeira vez, examinei o
interior da bolsa que roubara. Continha uma
pederneira. E tambm cinco ou seis moedas,
alguns dados, uma pulseira partida e, enrolada num
pedao de pano, uma madeixa de cabelo fino.
Aquilo resumia bem demais a vida de um soldado.
Raspei um pouco de terra e enterrei o cabelo, os
dados e a pulseira. No tentei imaginar se ela teria
deixado para trs um filho ou um amante. Lembrei
a mim mesmo que a sua morte no era obra minha.
Mas, mesmo assim, uma voz gelada murmurou a
palavra catalisador no fundo da minha mente. Se
no fosse por mim, ela ainda estaria viva. Por um
momento, senti-me velho, cansado e doente. Ento
me forcei a deixar de lado tanto a soldado como a
minha prpria vida. Acendi a fogueira e a
alimentei bem. Empilhei o resto da lenha ao
alcance da mo. Enrolei-me no manto e me deitei
na cama de frondes de cedro. Respirei fundo,
fechei os olhos e usei o Talento.
Foi como se tivesse cado num rio rpido. No
estava preparado para ter sucesso com tanta
facilidade, e quase fui levado para longe. O rio de
Talento parecia ali, de algum modo, mais
profundo, mais largo e mais forte. No sabia se
isso se deveria a um crescimento das minhas
capacidades, se a outra coisa qualquer. Descobri-
me e me centrei, e fortaleci resolutamente a minha
vontade contra as tentaes do Talento. Recusei-
me a pensar que dali poderia conseguir lanar os
pensamentos at Moli e nossa filha, poderia ver,
como se com os meus prprios olhos, como ela
estava crescendo e como passavam as duas. E
tambm no tentaria alcanar Veracidade, por
mais que desejasse faz-lo. A fora daquele
Talento era tanta que no duvidava de que seria
capaz de encontr-lo. Mas no era para isso que eu
estava ali. Estava ali para provocar um inimigo e
tinha de estar em guarda. Ergui todas as defesas
que pude erguer sem que me selassem contra o
Talento, e virei a vontade na direo de
Emaranhado.
Estendi-me, tentando encontr-lo com cautela.
Estava pronto para erguer as muralhas num
instante, se fosse atacado. Descobri-o facilmente e
fiquei quase sobressaltado ao ver como ele no
estava ciente do meu toque.
Ento a sua dor me trespassou.
Afastei-me, mais depressa do que uma anmona
assustada numa poa dgua. Senti-me chocado ao
abrir os olhos e fitar galhos de cedro carregados
de neve. Suor me umedecia o rosto e as costas.
O que foi aquilo?, perguntou Olhos-de-Noite.
Voc sabe tanto quando eu, respondi.
Fora a mais pura das dores. Uma dor
independente de qualquer ferimento no corpo, uma
dor que no era nem pesar, nem medo. Uma dor
total, como se cada parte do corpo, por dentro e
por fora, estivessem submersas em fogo.
Majestoso e Vontade a estavam causando.
Fiquei tremendo como consequncia, no de
usar o Talento, mas da dor de Emaranhado. Era
uma monstruosidade maior do que a minha mente
conseguia compreender. Tentei organizar tudo o
que detectara naquele breve momento. Vontade, e
talvez alguma sombra do Talento de Cedoura,
imobilizando Emaranhado para aquela punio.
Com origem em Cedoura, houve um horror e
desagrado mal mascarados por aquela tarefa.
Talvez temesse que algum dia pudesse ser virada
contra ele mais uma vez. A emoo mais forte de
Vontade fora a ira por Emaranhado ter me tido em
seu poder e ter deixado que eu escapasse. No
entanto, sob a ira havia uma espcie de fascnio
com o que Majestoso estava fazendo a
Emaranhado. Vontade no obtinha daquilo nenhum
prazer. Ainda no.
Mas Majestoso, sim.
Houve uma poca em que eu conhecera
Majestoso. Nunca bem, era verdade. Outrora ele
fora simplesmente o mais novo dos meus tios,
aquele que no gostava nem um pouco de mim.
Manifestara esse desagrado de uma forma infantil,
com empurres e belisces clandestinos, com
provocaes e fofocas. Eu no gostara disso, no
gostara dele, mas tudo fora quase compreensvel.
Fora o cime de um garoto que o filho mais velho
e favorito havia criado, ainda que um outro rival
para tempo e a ateno do Rei Sagaz. Antigamente
ele fora apenas um jovem prncipe mimado,
invejoso por os irmos mais velhos estarem sua
frente na linha de sucesso. Fora mimado,
malcriado e egosta.
Mas fora humano.
O que eu sentira vindo dele h pouco estava to
alm do que eu podia compreender em termos de
crueldade que era quase impossvel de apreender.
Os forjados haviam perdido a sua humanidade,
mas no seu vazio encontrava-se a sombra do que
haviam sido. Se Majestoso tivesse aberto o peito e
tivesse me mostrado um ninho de vboras, eu no
poderia ter ficado mais chocado. Majestoso
deixara a humanidade de lado para se entregar a
algo mais sombrio. E era aquele o homem a que os
Seis Ducados chamavam agora rei.
Era aquele o homem que iria enviar tropas atrs
de Esporana e de Panela.
Vou voltar avisei Olhos-de-Noite, e no
lhe dei tempo para fazer objees. Fechei os olhos
e me atirei ao rio de Talento. Escancarei-me a ele,
atraindo a mim a sua fora fria, sem pensar que se
ela fosse demasiada me devoraria. No instante em
que Vontade tomou conscincia de mim, falei-lhes.
Voc morrer pelas minhas mos, Majestoso.
To certo como Veracidade voltar a reinar como
rei. E ento atirei contra eles esse poder que
reunira.
Foi quase to instintivo quanto um punho
cerrado. No planejei, mas de sbito compreendi
que fora aquilo que Veracidade lhes fizera em
Vaudefeira. No havia mensagem, nada alm de
uma furiosa libertao de energia contra eles.
Escancarei-me a eles e me mostrei; ento, quando
eles se viraram para mim, obriguei-me a golpe-
los com cada poro de Talento que reunira.
Assim como Veracidade, no contive nenhuma das
minhas foras. Creio que, se fosse apenas um, eu
poderia ter conseguido lhe cauterizar o Talento.
Contudo, em vez disso, eles partilharam o choque.
Nunca saberei que efeito ele teve em Emaranhado.
possvel que tenha se sentido grato pela minha
violncia, pois ela estilhaou a concentrao de
Vontade e o libertou da sofisticada tortura de
Majestoso. Senti o guincho de terror de Cedoura
quando ele interrompeu a sua ligao de Talento.
Creio que Vontade poderia ter resistido e talvez
tivesse me desafiado se Majestoso no lhe
ordenasse debilmente Corte a ligao, tolo, no
me coloque em risco com a sua vingana! Num
piscar de olhos, eles desapareceram.
O dia j avanava quando voltei a mim. Olhos-
de-Noite estava deitado quase em cima de mim e
havia sangue no seu pelo. Empurrei-o debilmente e
ele se moveu de imediato. Levantou-se e cheirou o
meu rosto. Senti nele o cheiro do meu prprio
sangue; era repugnante. Sentei-me de repente e o
mundo rodopiou minha volta. Tomei lentamente
conscincia do clamor dos seus pensamentos.
Est bem? Voc estava tremendo e depois
comeou a sangrar pelo nariz. Voc no estava
aqui, no conseguia ouvi-lo de modo algum!
Estou bem acalmei-o em voz rouca.
Obrigado por me manter quente.
A fogueira se reduzira a algumas brasas. Estendi
cautelosamente a mo para a lenha e acrescentei
fogueira alguns gravetos. As minhas mos
pareciam estar a uma grande distncia de mim.
Quando consegui avivar o fogo, sentei-me e me
aqueci. Depois me levantei e dei alguns passos
cambaleantes at onde comeava a neve. Esfreguei
um punhado no rosto para limp-lo do sabor e
cheiro do sangue. Botei um pouco de neve limpa
na boca, pois sentia a lngua inchada e coagulada.
Precisa descansar? Precisa de comida?,
perguntou-me Olhos-de-Noite com ansiedade.
Sim e sim. Mas, acima de tudo, precisvamos
fugir. Eu no tinha dvida de que o que fizera os
levaria a me perseguir. Fizera o que quisera, e fora
real, alm de todas as minhas expetativas. Dera-
lhes um motivo para me temer. Agora nunca
descansariam at me destrurem. Tambm lhes
mostrara claramente onde eu me encontrava; eles
teriam uma noo do local para onde deviam
enviar os seus homens. No podia estar ali quando
eles chegassem. Voltei para junto da fogueira e
chutei terra sobre ela. Pisei-a para me assegurar
de que estava apagada. Ento fugimos.
Viajamos to depressa quanto eu podia. No
havia qualquer dvida de que eu atrasava Olhos-
de-Noite. Ele me olhava com piedade enquanto eu
subia laboriosamente uma encosta, enterrado at o
quadril na neve, enquanto a ele bastava abrir os
dedos das patas para conseguir ultrapassar com
rapidez. No era raro que quando eu suplicava por
um descanso e parava para me encostar a uma
rvore ele explorasse o terreno adiante em busca
do melhor caminho. Quando tanto a luz como as
minhas foras estavam prximas da exausto e eu
parava para acender uma fogueira para a noite, ele
desaparecia e regressava com carne para ambos.
Eram normalmente lebres brancas das neves, mas
uma vez foi um castor gordo que se aventurara
longe demais da sua lagoa coberta de gelo. Fingia
a mim mesmo que cozinhava a carne que comia,
mas era uma passada muito breve sobre uma
fogueira. Estava cansado e esfomeado demais para
mais do que isso. A dieta de carne no me
acrescentava gordura ao corpo, mas me ajudava a
me manter vivo e em movimento. Pouco era o
verdadeiro sono que eu conseguia, pois tinha de
alimentar constantemente a fogueira para evitar
congelar e me levantar vrias vezes por noite para
bater com os ps no cho, a fim de lhes devolver a
sensibilidade. Resistncia. Era disso do que se
tratava. No a rapidez, nem uma grande fora, mas
um miservel aumento na minha capacidade de me
obrigar a continuar em movimento todos os dias.
Mantive as muralhas de Talento bem erguidas,
mas mesmo assim estava consciente da batalha de
Vontade contra elas. No me parecia que ele
pudesse seguir o meu rastro enquanto eu me
protegesse, mas no tinha certeza. A constante
cautela mental era mais um dreno nas minhas
foras. Havia noites em que eu ansiava por
simplesmente deixar cair todas as minhas defesas
e deix-lo entrar, para que acabasse comigo de
uma vez por todas. Porm, nessas horas me
bastava recordar o que Majestoso era agora capaz
de fazer. Isso sem falta me trespassava com um
dardo de terror e me inspirava a me esforar ainda
mais para aumentar a distncia entre ns.
Quando me levantei na quarta madrugada da
nossa viagem, soube que estvamos bem dentro do
Reino da Montanha. No vira sinais de
perseguio desde que havamos abandonado Olho
de Lua. Certamente que to para o interior da terra
de Kettricken estaramos a salvo.
A que distncia fica essa Jhaampe, e o que
faremos quando chegarmos l?
No sei a que distncia fica. E no sei o que
faremos.
Pela primeira vez, refleti sobre isso. Forcei-me
a pensar em tudo aquilo em que no me permitira
considerar at ento. Eu nada sabia realmente
sobre o que acontecera a Kettricken desde o
momento em que a afastara do rei para fugir noite
adentro. Ela no tivera notcias minhas, nem sobre
mim. A essa altura, Kettricken j teria dado luz o
filho. Pelas minhas contas, o beb teria uma idade
semelhante da minha filha. De repente, dei por
mim muito curioso. Podia segurar esse beb e
dizer a mim mesmo: Ter a minha filha no colo
deve ser assim.
Exceto que Kettricken achava que eu estava
morto. O que teria ouvido dizer seria que eu fora
executado por Majestoso e estaria enterrado havia
muito tempo. Era a minha rainha e a esposa de
Veracidade. Decerto que eu podia lhe revelar
como sobrevivera. Contudo, contar-lhe a verdade
era como atirar uma pedra em um lago. Ao
contrrio de Esporana, Panela ou qualquer outra
pessoa que tivesse deduzido quem eu era,
Kettricken me conhecera anteriormente. No seria
um boato ou uma lenda, nem uma histria
fantasiosa de algum que me vislumbrara por um
momento, mas um fato. Ela podia dizer aos outros
que haviam me conhecido: Sim, eu o vi, e
verdade que est vivo. Como? Ora, atravs da
Manha, claro.
Continuei a avanar com dificuldade atrs de
Olhos-de-Noite, atravs da neve e do frio, e
pensei no que a notcia significaria para Pacincia
quando a recebesse. Vergonha ou alegria? Dor por
eu no ter me revelado? Atravs de Kettricken,
notcias podiam ser enviadas, para se espalharem
at aqueles que eu conhecera. Acabariam
chegando a Moli e a Bronco. O que faria Moli
saber distncia, dessa forma, no s que eu
estava vivo e no regressara para ela, como estava
maculado pela Manha? Trespassara o meu corao
saber que ela escondera de mim o fato de que
esperava um filho meu. Esse foi o meu primeiro
verdadeiro vislumbre de como devia ter se sentido
trada e magoada por todos os segredos que eu
mantivera escondidos dela durante os anos. Ter
mais um de tamanha magnitude jogado em seu
rosto podia pr fim a quaisquer sentimentos que
ainda pudesse nutrir por mim. As minhas chances
de reconstruir uma vida com ela eram bastante
pequenas; eu no podia suportar que se reduzissem
ainda mais.
E todos os outros, o pessoal dos estbulos que
eu conhecera, os homens ao lado de quem remara e
lutara, os soldados comuns de Torre do Cervo,
tambm descobririam. Independentemente de como
me sentisse a respeito da Manha, eu j vira a
repugnncia nos olhos de um amigo. Vira como
isso mudara at a atitude de Esporana comigo. O
que as pessoas pensariam de Bronco por ele ter
tido e tolerado um Manhoso nos estbulos? Ele
tambm seria descoberto? Rangi os dentes. Teria
de permanecer morto. Talvez fosse melhor evitar
Jhaampe por completo e prosseguir viagem para ir
at Veracidade. Exceto que, sem provises, eu
tinha tanta chance de conseguir isso como Olhos-
de-Noite teria de se passar por um co de colo.
E havia outra pequena questo. O mapa.
Quando Veracidade partira de Torre do Cervo,
partira apoiado na fora de um mapa. Era um mapa
antigo que Kettricken desencavara nas bibliotecas
de Torre do Cervo. Estava desbotado e era antigo,
feito nos tempos do Rei Sabedoria, que visitara
pela primeira vez os Antigos e os trouxera para
auxiliar os Seis Ducados. Os detalhes do mapa
haviam desvanecido, mas tanto Kettricken como
Veracidade tinham estado convencidos de que um
dos caminhos nele marcados levava ao local onde
o Rei Sabedoria se encontrara pela primeira vez
com esses esquivos seres. Veracidade abandonara
Torre do Cervo determinado a seguir o mapa at
regies situadas para alm do Reino da Montanha.
Levara consigo a cpia nova do mapa que fizera.
Eu no fazia ideia do que acontecera ao mapa mais
velho; era provvel que tivesse sido levado para
Vaudefeira quando Majestoso saqueara as
bibliotecas de Torre do Cervo. Mas o estilo do
mapa e as caractersticas incomuns da bordadura
h muito me fizeram suspeitar de que era uma
cpia de outro mapa ainda mais antigo. A
bordadura era em estilo da Montanha; se fosse
possvel encontrar o original em algum lugar, seria
nas bibliotecas de Jhaampe. Eu tivera algum
acesso a elas durante os meses da minha
convalescena nas Montanhas. Sabia que a sua
biblioteca era simultaneamente extensa e bem
cuidada. Mesmo se no encontrasse o original
desse mapa em particular, poderia talvez encontrar
outros que cobrissem a mesma rea.
Durante o tempo que passara nas Montanhas, eu
tambm ficara impressionado pelo povo confiante
que eles eram. Vira poucas trancas e nenhum dos
guardas que tnhamos em Torre do Cervo. No
seria necessrio qualquer truque para entrar na
residncia real. Mesmo se tivessem estabelecido a
prtica de pr guardas, as paredes eram feitas
apenas de pano de casca de rvore estucado com
argila e pintado. Senti-me confiante de que seria
capaz de entrar, de uma forma ou de outra. Depois
de me encontrar no interior, no demoraria muito
tempo para pilhar a biblioteca e roubar aquilo de
que necessitasse. Podia me reabastecer ao mesmo
tempo.
Tive a elegncia de me sentir envergonhado por
aquele pensamento. Tambm soube que a vergonha
no evitaria que o colocasse em prtica. Mais uma
vez eu no tinha escolha. Subi com dificuldade
mais uma encosta atravs da neve e me pareceu
que o meu corao batia essa frase repetidas
vezes. Sem escolha, sem escolha, sem escolha.
Nunca tinha escolha a respeito de nada. O destino
me transformara num assassino, num mentiroso e
num ladro. E quanto mais tentava evitar esses
papis, mais firmemente era empurrado para eles.
Olhos-de-Noite me seguia de perto e afligia-se
com o meu humor sombrio.
Estvamos to distrados que chegamos ao topo
da colina e ambos paramos, tolamente delineados
contra o cu, plenamente vista do grupo de
cavaleiros na estrada abaixo de ns. O amarelo e
marrom dos seus casacos destacava-se contra a
neve. Estaquei como um veado assustado. Mesmo
assim, podamos no ter sido notados se no fosse
a matilha de ces de caa que traziam consigo.
Avaliei-a com um olhar. Seis ces de caa, no
lobeiros, graas a Eda, mas lebreiros de patas
curtas, inadequados para aquele tempo e terreno.
Havia um co de patas longas, um vira-lata
desengonado de dorso ondulado. Ele e o seu
tratador deslocavam-se separadamente da matilha.
A perseguio estava usando tudo o que tinha para
nos encontrar. Mas havia uma dzia de homens a
cavalo. Quase instantaneamente, o vira-lata jogou
a cabea para cima e latiu. Num instante, os ces
de caa juntaram-se a ele, andando em crculos, de
cabeas erguidas para farejar o ar e dando o alerta
quando descobriram os nossos odores. O caador
que controlava os ces de caa ergueu uma mo e
apontou para ns no momento em que se lanou na
perseguio. O vira-lata e o seu tratador j
corriam na nossa direo.
Eu nem sabia que havia uma estrada aqui
arquejei a Olhos-de-Noite como um pedido de
desculpa, enquanto fugamos pela encosta abaixo.
Tnhamos uma vantagem muito curta. Descemos ao
longo do nosso prprio rastro, enquanto os ces e
os cavaleiros que nos perseguiam tinham de subir
um monte de neve intacta. Tive esperana de que
quando eles chegassem ao topo que havamos
acabado de abandonar ns j estivssemos fora de
vista, na ravina coberta de mato abaixo. Olhos-de-
Noite estava indo mais devagar, relutante em me
deixar para trs. Os ces ladravam e ouvi as vozes
de homens erguidas em excitao quando se
lanaram na perseguio.
CORRA!, ordenei a Olhos-de-Noite.
No vou abandon-lo.
Teria poucas chances se abandonasse, admiti.
Minha cabea trabalhava freneticamente. V at o
fundo da ravina. Crie tantos rastros falsos
quanto puder, d a volta, siga rio abaixo ao
longo da ravina. Quando eu chegar l, fugimos
colina acima. Isso pode atras-los durante algum
tempo.
Truques de raposa!, bufou ele, ento passou
correndo por mim num borro cinzento e
desapareceu no denso mato da ravina. Tentei
avanar mais depressa pela neve. Logo antes de
atingir a borda da ravina coberta de mato, olhei
para trs. Ces e cavaleiros estavam nesse exato
momento ultrapassando o cume. Penetrei no abrigo
do mato encoberto pela neve e desci escorregando
pelas encosta ngreme. Olhos-de-Noite deixara
rastros suficientes ali para uma alcateia inteira. No
momento em que fiz uma pausa para recuperar o
flego, ele passou por mim correndo numa nova
direo.
Vamos sair daqui!
No esperei pela sua resposta e comecei a subir
a ravina o mais depressa que minhas pernas
podiam me levar. A neve estava mais rasa no
fundo, pois as rvores e o mato haviam apanhado e
segurado a maior parte. Avancei meio dobrado
sobre mim mesmo, sabendo que se me prendesse
nos galhos eles descarregariam as suas cargas
frias em cima de mim. Os latidos dos ces
ressoavam no ar glido. Escutei-os enquanto
avanava. Quando ouvi a sua excitao dar lugar a
uma frustrada gritaria canina, soube que tinham
chegado ao rastro confuso no fundo da ravina.
Cedo demais; tinham chegado l cedo demais, e
viriam depressa demais.
Olhos-de-Noite!
Silncio, tolo! Os ces vo ouvi-lo! E aquele
outro tambm.
Meu corao quase parou no peito. No
conseguia acreditar na minha estupidez. Continuei
avanando com dificuldade atravs do mato
coberto de neve, forando os ouvidos para captar
o que estava acontecendo atrs de ns. Os
caadores tinham gostado do rastro falso que
Olhos-de-Noite deixara e estavam praticamente
forando os ces a segui-lo. Havia homens demais
a cavalo para a estreiteza da ravina. Estavam
ficando no caminho uns dos outros, e talvez
estragando o nosso verdadeiro rastro. Tempo
ganho, mas s um pouco. Ento ouvi de sbito
gritos de alarme e uma desenfreada profuso de
latidos vindos dos ces. Captei um confuso alarido
de pensamentos caninos. Um lobo tinha saltado
sobre eles e correra pelo meio da sua matilha,
mordendo medida que avanava e precipitando-
se por entre as patas dos cavalos que os homens
montavam atrs deles. Um homem estava no cho e
tendo problemas para apanhar a sua montaria de
olhos aterrorizados. Um co perdera a maior parte
de uma orelha cada e estava em agonia por causa
dela. Tentei fechar minha mente sua dor. Pobre
animal, e tudo para nada que o levasse a lucrar
alguma coisa. Minhas pernas eram como chumbo e
minha boca estava seca, mas tentei arrancar de
mim velocidade. Desejei gritar a Olhos-de-Noite
para que abandonasse as provocaes, para que
fugisse comigo, mas no me atrevi a trair matilha
a verdadeira direo da nossa retirada. Em vez
disso, forcei-me a avanar.
A ravina estava se tornando mais estreita e mais
profunda. Trepadeiras, saras e arbustos nasciam
nas encostas cada vez mais ngremes e caam
emaranhadas. Suspeitei de que caminhava em cima
de um riacho congelado pelo inverno. Comecei a
procurar uma maneira de sair dele. Atrs de mim,
os ces estavam de novo ladrando, latindo uns
para os outros que agora haviam encontrado o
verdadeiro rastro, sigam o lobo, o lobo, o lobo.
Soube ento com certeza que Olhos-de-Noite
voltara a se mostrar a eles e estava
deliberadamente afastando-os de mim. Fuja,
garoto, fuja! Atirou-me o pensamento sem se
preocupar com a possibilidade de ser ouvido
pelos ces. Havia nele um divertimento selvagem,
uma tolice histrica no seu pensamento. Lembrou-
me da noite em que eu perseguira Justino pelos
corredores de Torre do Cervo, para mat-lo no
Grande Salo diante de todos os convidados da
cerimnia de coroao de Majestoso como
Prncipe Herdeiro. Olhos-de-Noite estava num
frenesi que o levara a deixar de se preocupar com
a sua prpria sobrevivncia. Precipitei-me
adiante, com o corao na garganta por ele,
segurando as lgrimas que brotavam nos cantos
dos meus olhos.
A ravina terminou. minha frente havia uma
cintilante cascata de gelo, um memorial ao riacho
de montanha que cortava aquele desfiladeiro
durante os meses de vero. O gelo pendia em
longos pingentes ondulados da face rochosa de
uma fenda na montanha, brilhando ainda com um
tnue reflexo de gua corrente. A neve na sua base
era cristalina. Parei, suspeitando de uma lagoa
profunda, de uma lagoa que poderia descobrir
involuntariamente debaixo de uma camada de gelo
fino demais. Levantei os olhos. As paredes de
rocha ali estavam escavadas na base e cobertas de
vegetao. Em outros lugares, lajes nuas de rocha
apareciam atravs das cortinas de neve. Pequenas
rvores jovens e arbustos de ar frgil cresciam
aqui e ali, inclinando-se para capturar a luz do sol
que vinha de cima. Nenhum desses locais parecia
promissor para uma escalada. Virei-me para
regressar por onde viera e ouvi um nico uivo
erguer-se e diminuir. Nem co de caa, nem lobo,
s podia ser o vira-lata. Algo na certeza daquele
grito me convenceu de que ele seguia o meu rastro.
Ouvi um homem gritar um encorajamento e o co
voltou a latir, mais perto. Virei-me para a parede
da ravina e comecei a escalar. Ouvi o homem
gritar pelos outros, chamando e assobiando para
que o seguissem, que tinha ali um rastro de homem,
que deixassem o lobo, era s um truque de Manha.
distncia, os ces comearam de sbito a latir
de uma maneira diferente. Nesse momento, soube
que Majestoso encontrara por fim o que procurara.
Um Manhoso para me caar. Sangue Antigo fora
comprado.
Saltei e me agarrei a uma pequena rvore que se
projetava da parede da ravina. Icei-me, consegui
apoiar nela os ps, balancei-me e estendi a mo
para outra acima de mim. Quando coloquei nela o
meu peso, as suas razes se soltaram do solo
rochoso. Ca, mas consegui me agarrar de novo
primeira rvore. Outra vez para cima, disse a mim
mesmo com ferocidade. Fiquei de p sobre a
rvore e a ouvi rachando sob o meu peso. Ergui as
mos para me agarrar a punhados de arbustos
frgeis que pendiam da margem escavada. Tentei
subir rapidamente, no deixar que o meu peso
pendesse de qualquer das pequenas rvores ou
arbustos durante mais do que alguns momentos.
Punhados de galhos se quebraram nas minhas
mos, tufos de capim velho soltaram-se, e dei por
mim esgravatando ao longo da borda da ravina,
sem conseguir subir. Ouvi um grito abaixo de mim
e, contra a minha vontade, olhei para trs e para
baixo. Um homem e um co encontravam-se na
clareira, l embaixo. Enquanto o vira-lata latia
para mim, o homem estava encaixando uma flecha
no arco que trazia. Eu estava pendurado, impotente
acima deles, um alvo to fcil como qualquer
homem podia desejar.
Por favor ouvi-me arquejar, e depois ouvi
o minsculo rudo inconfundvel de uma corda de
arco sendo largada. Senti a flecha me atingir, um
punho nas costas, um dos velhos truques de
Majestoso na minha infncia, e depois uma dor
mais profunda e mais quente dentro de mim. Uma
das minhas mos largara o que agarrava. No lhe
ordenara que o fizesse, ela simplesmente se
soltara. Balancei, preso pela mo direita.
Consegui ouvir, to claramente, o latido do co
quando ele farejou o meu sangue. Consegui ouvir o
sussurro da vestimenta do homem quando ele tirou
outra flecha da aljava.
A dor voltou a me causar uma pontada profunda
no punho direito. Gritei quando os dedos se
soltaram. Num reflexo de terror, minhas pernas
esgravataram freneticamente contra a vegetao
rasteira que pendia sobre a margem escavada e
cedia. E de alguma forma eu estava subindo, com o
rosto raspando em uma crosta de neve. Encontrei o
brao esquerdo e fiz com ele vagos movimentos
natatrios. Erga as pernas!, ordenou-me Olhos-
de-Noite. No emitiu som algum, pois os seus
dentes estavam firmemente presos na manga e na
carne do meu brao direito enquanto me arrastava
para cima. A chance de sobreviver me revitalizou.
Esperneei violentamente e depois senti solo firme
sob a barriga. Avancei me arrastando, tentando
ignorar a dor que se concentrava nas minhas
costas, mas que se espalhava a partir dali em
ondas rubras. Se no tivesse visto o homem
disparar uma flecha, teria acreditado que um poste
to grosso quanto o eixo de uma carroa havia se
cravado nas minhas costas.
Levante-se, levante-se! Temos de fugir.
No me lembro de como fiquei de p. Ouvi ces
esgravatando o penhasco atrs de mim. Olhos-de-
Noite afastou-se da borda e os foi enfrentando
medida que eles subiam. As suas maxilas lhes
rasgaram a carne e ele atirou os seus corpos
penhasco abaixo sobre o resto da matilha. Quando
o vira-lata de dorso ondulado caiu, houve uma
sbita diminuio nos latidos que vinham de
baixo. Ns dois tomamos conhecimento de sua
agonia e ouvimos os gritos do homem l embaixo
enquanto o seu animal de vnculo sangrava at a
morte sobre a neve. O outro caador estava
chamando os ces, dizendo furioso aos outros que
no serviria de nada mand-los para cima para
serem massacrados. Pude ouvir os homens
berrando e praguejando enquanto faziam os
cavalos cansados darem meia-volta e descerem a
ravina para tentar encontrar um local onde
pudessem subir e vir atrs de ns, a fim de
tentarem retomar o nosso rastro.
Corra!, disse-me Olhos-de-Noite. No
queramos falar do que acabramos de fazer.
Havia uma sensao de terrvel calor correndo
pelas minhas costas abaixo, que tambm era um
frio em expanso. Levei uma mo ao peito, quase
esperando descobrir a ponta e a haste da flechas
saindo dali. Mas no, a flecha estava
profundamente cravada. Cambaleei atrs de
Olhos-de-Noite, com a conscincia inundada por
sensaes demais, por muitos tipos de dor. A
camisa e o manto repuxavam a haste da flecha
enquanto me movia, um minsculo agitar da
madeira que era ecoado pela ponta da flecha bem
dentro de mim. Perguntei-me quantos danos
adicionais ela estaria causando. Pensei nas vezes
em que esquartejara veados mortos por flechas, na
carne semelhante morcela, cheia de sangue, que
se encontrava em volta de tal ferida. Perguntei-me
se teria sido atingido no pulmo. Um veado
atingido num pulmo no ia longe. Era gosto de
sangue que eu sentia no fundo da garganta?
No pense nisso!, ordenou-me Olhos-de-Noite
com violncia. Est enfraquecendo ns dois.
Apenas ande. Ande e continue andando.
Ento ele sabia to bem quanto eu que eu no
podia correr. Caminhei e ele caminhou ao meu
lado. Durante algum tempo. Ento dei por mim
caminhando cegamente em frente, na escurido,
sem sequer me preocupar com a direo em que
seguia, e ele no estava l. Tateei procura dele,
mas no consegui encontr-lo. Em algum lugar, ao
longe, voltei a ouvir os latidos de ces. Continuei
caminhando. Cambaleei de encontro s rvores.
Galhos arranharam o meu rosto, mas no havia
problema porque meu rosto estava dormente. A
camisa, nas minhas costas, era uma pelcula
escorregadia de sangue congelado que se movia
asperamente contra a pele. Tentei me aconchegar
melhor ao manto, mas a dor sbita quase me fez
cair de joelhos. Tolo. Esquecera que o manto se
arrastaria pela haste da flecha. Tolo. Continue
andando, rapaz. Continuei andando.
Esbarrei em outra rvore. Ela soltou uma
cascata de neve em cima de mim. Afastei-me
cambaleando e continuei caminhando. Durante
muito tempo. De repente, eu estava sentado na
neve, ficando cada vez mais gelado. Tinha de me
levantar. Tinha de me manter em movimento.
Voltei a caminhar. No por muito tempo, ao que
parece. Ao abrigo de um grupo de grandes sempre-
vivas onde a neve era menos profunda, ca de
joelhos.
Por favor disse. No tinha foras
suficientes para chorar por misericrdia. Por
favor. No conseguia imaginar a quem estaria
suplicando.
Vi uma abertura entre duas grossas razes.
Agulhas de pinheiro estavam espalhadas ali sobre
o cho numa camada espessa. Aninhei-me no
pequeno espao. No podia me deitar por causa da
flecha que saa das minhas costas. Mas conseguia
apoiar a testa na rvore amigvel e cruzar os
braos no peito. Tornei-me pequeno, dobrando as
pernas debaixo de mim e me afundando no espao
entre as razes. Teria sentido frio se no estivesse
cansado demais. Afundei-me no sono. Quando
acordasse, faria uma fogueira e me aqueceria.
Conseguia imaginar como ficaria quente,
conseguia quase senti-lo.
Irmo!
Estou aqui, disse-lhe calmamente. Bem aqui.
Sondei para o exterior a fim de tranquiliz-lo com
um toque. Ele estava vindo. O tufo de pelos em
volta da garganta estava espetado de saliva
congelada, mas nenhum dente o atravessara. Tinha
um corte de um lado do focinho, mas no era srio.
Fizera-os andar em crculos e depois atormentara
os seus cavalos pela retaguarda antes de deixar
que mergulhassem na escurido atravs de uma
campina de capim alto coberta de neve. S dois
dos ces foram deixados vivos, e um dos cavalos
coxeava tanto que o cavaleiro montara em outro
com um companheiro.
Agora vinha minha procura, ondulando com
facilidade pelas encostas cobertas de neve. Estava
cansado, sim, mas a energia do triunfo jorrava
atravs dele. A noite estava fresca e limpa sua
volta. Detectou o odor, e ento a minscula
centelha no olho da lebre que se agachava por
baixo de um arbusto, na esperana de que ele
passasse. No passou. Um nico salto sbito para
o lado e a lebre estava entre a sua mandbula.
Agarrou-a pela cabea ossuda e lhe quebrou a
espinha com uma sacudida. Prosseguiu a trote, com
a carne transformada num peso bem-vindo na
boca. Comeramos bem. A floresta noturna era
prateada e negra nossa volta.
Pare. Irmo, no faa isto.
No fazer o qu?
Eu o amo. Mas no desejo ser voc.
Pairei onde me encontrava. Os seus pulmes
trabalhando to fortemente, puxando o ar frio da
noite, passando pela cabea de lebre na sua boca.
A ligeira pontada do corte no focinho, as patas
poderosas que carregavam o seu corpo to bem.
Voc tambm no quer ser eu, Alterador. Na
realidade, no quer.
No tinha certeza se ele tinha razo. Com os
seus olhos, eu me vi e me cheirei. Eu havia me
enfiado no espao entre as razes da grande rvore
e estava enrolado at ficar to pequeno como um
filhote abandonado. O cheiro do meu sangue
pairava forte no ar. Ento pisquei, e dei por mim
olhando para a escurido do meu cotovelo
dobrado por cima do meu rosto. Levantei a cabea
lenta e dolorosamente. Tudo doa, e toda a dor se
ligava quela flecha centrada nas minhas costas.
Farejei tripas de coelho e sangue. Olhos-de-
Noite estava de p ao meu lado, com as patas
apoiadas na carcaa enquanto a rasgava. Coma,
enquanto est quente.
No sei se consigo.
Quer que eu a mastigue para voc?
No estava brincando. Porm, a nica coisa
mais repugnante do que comer era a ideia de
comer carne regurgitada. Consegui dar uma
minscula sacudida com a cabea. Tinha os dedos
quase adormecidos, mas vi a minha mo agarrar o
pequeno fgado e lev-lo boca. Estava quente e
repleto de sangue. De repente, soube que Olhos-
de-Noite tinha razo. Eu tinha de comer. Porque
tinha de sobreviver. Ele despedaara a lebre.
Peguei um pedao e mordi a carne quente. Era
dura, mas eu estava determinado. Sem pensar,
quase abandonara o meu corpo pelo dele, quase
subira para aquele corpo de lobo perfeitamente
saudvel, ao seu lado. J o fizera antes uma vez,
com o seu consentimento. Mas agora ambos
sabamos que a ideia era ruim. Partilharamos, mas
no podamos nos transformar um no outro. No
podamos faz-lo sem que ambos perdssemos.
Sentei-me lentamente. Senti os msculos das
costas movendo-se contra a flecha, protestando
contra o modo como ela os prendia. Conseguia
sentir o peso da haste. Quando a imaginei se
projetando para fora de mim, quase perdi a comida
que comera. Forcei-me a uma calma que no
sentia. De sbito, estranhamente, uma imagem de
Bronco me veio mente. Aquela imobilidade
mortal no seu rosto quando ele flexionara o joelho
e observara o antigo ferimento abrindo-se.
Lentamente, levei a mo s costas. Passei os dedos
pela espinha acima. Isso fez os msculos puxarem
contra a seta. Por fim, os dedos tocaram na
madeira grudenta da haste da flecha. At esse
toque ligeiro era um novo tipo de dor.
Desajeitadamente, fechei os dedos em volta da
haste, fechei os olhos e tentei pux-la. Mesmo se
no houvesse a dor, teria sido difcil. Mas a
agonia fez o mundo minha volta girar, e quando
ele se estabilizou dei por mim apoiado nas mos e
nos joelhos, com a cabea pendente.
Quer que eu tente?
Sacudi a cabea, permanecendo na mesma
posio. Ainda estava com medo de desmaiar.
Tentei pensar. Se ele arrancasse a flecha, eu sabia
que desmaiaria. Se a hemorragia fosse forte, eu
no teria como estanc-la. No. Era melhor deixar
a flecha l. Reuni toda a minha coragem. Consegue
quebr-la?
Ele se aproximou de mim. Senti a sua cabea
encostar-se s minhas costas. Virou-a, manobrou
as maxilas de modo que os seus dentes de trs se
fechassem sobre a haste. Ento fechou as maxilas.
Ouviu-se um estalido, como o de um jardineiro
podando uma rvore jovem, e um estremecimento
de dor renovada. Uma onda de vertigem tomou
conta de mim. Contudo, sem saber como, levei a
mo s costas e soltei do toco de flecha o manto
empapado de sangue. Aconcheguei-me melhor a
ele, tremendo. Fechei os olhos.
No. Primeiro faa uma fogueira.
Voltei a descolar as plpebras. Era tudo difcil
demais. Juntei todos os gravetos e galhos que
conseguia alcanar de onde estava. Olhos-de-
Noite tentou ajudar, indo buscar galhos para mim,
mas mesmo assim passou-se uma eternidade at eu
ter uma minscula chama danando. Lentamente,
fui acrescentando gravetos. Quando consegui
avivar a fogueira, percebi que o dia estava
raiando. Era hora de voltar a seguir caminho.
Ficamos apenas tempo suficiente para acabarmos
de comer o coelho e para permitir que eu
aquecesse bem as mos e os ps. Ento partimos
de novo, com Olhos-de-Noite me fazendo avanar
sem misericrdia.
CAPTULO 20

Jhaampe

Jhaampe, a capital do Reino da Montanha,


mais antiga do que Torre do Cervo, da mesma
forma que a linhagem governante do Reino da
Montanha mais antiga do que a casa de
Visionrio. Enquanto cidade, Jhaampe est to
distante do estilo da cidade-fortaleza de Torre do
Cervo quanto os monarcas Visionrio so
diferentes dos guias filsofos da linhagem de
Sacrifcio que governa as Montanhas.
No existe nenhuma cidade permanente como
as que conhecemos. H poucas construes
permanentes. Em vez disso, ao longo das ruas
cuidadosamente planejadas e delimitadas por
jardins, h espaos por onde o povo nmade das
Montanhas pode ir e vir. Existe um espao
destinado ao mercado, mas os mercadores
migram num desfile que tem paralelo com o das
estaes. Uma vintena de tendas pode brotar da
noite para o dia e os seus habitantes aumentaro
a populao de Jhaampe durante uma semana ou
um ms, para desaparecerem sem deixar rastro
quando a visita e os negcios terminarem.
Jhaampe uma cidade de tendas em permanente
mudana, povoada pelo vigoroso povo que habita
os espaos abertos das montanhas.
As casas da famlia real e dos companheiros
que decidem permanecer com ela ao longo de
todo o ano no se parecem em nada como os
nossos castelos e palcios. As habitaes deles
centram-se em grandes rvores, ainda vivas, com
troncos e ramos pacientemente puxados ao longo
de dcadas para fornecer uma estrutura
construo. Esta estrutura viva depois
envolvida num tecido feito com fibras de casca
de rvore e reforada com uma trelia. Assim, as
paredes podem tomar as formas suavemente
curvas de um boto de tulipa ou da cpula de um
ovo. Um revestimento de argila espalhado
sobre a camada de tecido e , por sua vez,
pintado com uma tinta brilhante e resinosa nos
tons brilhantes que o povo da montanha aprecia.
Algumas paredes so decoradas com criaturas
imaginrias ou com padres, mas a maioria
deixada simples. Predominam os prpuras e
amarelos, de modo que chegar cidade que
cresce sombra das grandes rvores da
montanha como chegar a uma plantao de
aafro na primavera.
Em volta dessas casas e na interseo das
estradas daquela cidade nmade ficam os
jardins. So todos nicos. Podem se centrar num
toco com uma forma invulgar, num arranjo de
pedras ou num pedao gracioso de madeira.
Podem conter ervas odorferas, flores de cores
vivas ou qualquer combinao de plantas. Um
jardim digno de nota tem no corao uma fonte
borbulhante de gua fumegante. Ali crescem
plantas com folhas carnudas e flores de odores
exticos, indgenas de algum clima mais quente,
para ali trazidas a fim de deleitar os habitantes
das Montanhas com o seu mistrio. frequente
que os visitantes deixem presentes nos jardins
quando partem: uma escultura de madeira, uma
graciosa vasilha, ou talvez apenas um arranjo de
pedrinhas brilhantes. Os jardins no pertencem a
ningum, e todos cuidam deles.
Em Jhaampe tambm possvel se encontrar
fontes termais, algumas com gua capaz de
escaldar um homem, outras com um mero calor
borbulhante. Essas fontes foram confinadas,
tanto como banhos pblicos como para servirem
de fonte de calor em algumas das habitaes
menores. Em cada construo, em cada jardim,
ao virar cada esquina, o visitante encontra as
austeras beleza e simplicidade de cor e forma
que so o ideal da Montanha. A impresso geral
com que se parte de tranquilidade e alegria no
mundo natural. A simplicidade que ali
escolhida para a vida pode levar o visitante a
questionar a vida que escolheu.
Era noite. Pouco me recordo alm de que essa
noite se seguira a dias de dor. Movi o basto e dei
mais um passo. Movi de novo o basto. No
estvamos avanando depressa. Um turbilho de
flocos de neve no ar cegava mais do que a
escurido. No conseguia me afastar do vento
rodopiante que os transportava. Olhos-de-Noite
tecia um caminho lento minha volta, guiando os
meus passos hesitantes como se isso pudesse me
apressar. De tempos em tempos ele gania ansioso.
Tinha o corpo tenso de medo e cansao. Cheirava
a fumaa de madeira e a cabras. no para trai-
lo, irmo. Mas para ajud-lo. Lembre-se disso.
Precisa de algum com mos. Mas se eles
tentarem lhe tratar mal, basta que me chame e eu
virei. No estarei longe
No conseguia obrigar a minha mente a focar-se
nos seus pensamentos. Senti a sua amargura por
no poder me ajudar e o medo de estar me levando
para uma armadilha. Pensei que tivssemos
discutido, mas no conseguia me lembrar no que
eu estivera insistindo. Seja o que fosse, Olhos-de-
Noite ganhara, simplesmente em virtude de saber o
que queria. Os meus ps escorregaram na neve
endurecida da estrada e ca de joelhos. Olhos-de-
Noite sentou-se ao meu lado e esperou. Tentei me
deitar e ele pegou o meu pulso com a boca. Puxou
com suavidade, mas a coisa nas minhas costas
rebentou em chamas sbitas. Fiz um barulho.
Por favor, irmo. H cabanas adiante e luzes
dentro delas. Fogos e calor. E algum com mos,
algum que possa limpar o ferimento
malcheiroso que voc tem nas costas. Por favor.
Levante-se. S mais uma vez.
Ergui a cabea pendente e tentei ver. Havia
alguma coisa na estrada nossa frente, algo que
fazia a estrada bifurcar-se e rode-la de ambos os
lados. O luar prateado cintilava nessa coisa, mas
no me deixava distinguir o que era. Pisquei com
fora e a coisa transformou-se numa pedra
esculpida, mais alta do que um homem. No fora
esculpida para ser um objeto, fora apenas alisada
at tomar uma forma graciosa. Na sua base,
ramificaes ramosas e nuas lembravam matagais
estivais. Um muro irregular de pedras menores a
rodeava. Neve ornamentava tudo. Sem que eu
soubesse por qu, aquilo me lembrava Kettricken.
Tentei me levantar, mas no consegui. Ao meu
lado, Olhos-de-Noite ganiu em agonia. No
consegui dar forma a um pensamento para acalm-
lo. Precisei de todas as minhas foras para me
manter de joelhos.
No ouvi passos, mas senti um sbito aumento
na tenso que vibrava no interior de Olhos-de-
Noite. Voltei a erguer a cabea. Muito minha
frente, depois do jardim, algum se aproximava a
p atravs da noite. Algum alto e esguio, envolto
em pesados tecidos, com o capuz to puxado para
a frente que quase se transformava numa mscara.
Observei a pessoa que se aproximava. A morte,
pensei. S a morte podia aproximar-se to
silenciosamente, deslizando to suavemente por
aquela noite gelada.
Fuja sussurrei a Olhos-de-Noite. No
faz sentido deixar que ela leve ns dois. Fuja
depressa.
Surpreendentemente, ele me obedeceu,
afastando-se em silncio de mim. Quando virei a
cabea, no consegui v-lo, mas senti que no
estava longe. Senti a sua fora me deixando como
se tivesse despido um casaco quente. Parte de mim
tentou ir com ele, agarrar-se ao lobo e ser o lobo.
Ansiei por deixar aquele corpo exaurido para trs.
Se precisar, irmo. Se precisar, no o
afastarei.
Desejei que ele no tivesse dito aquilo. No
tornava mais fcil resistir tentao. Prometera a
mim mesmo que no lhe faria aquilo, que, se
tivesse de morrer, morreria e o deixaria livre e
limpo de mim para esculpir a sua prpria vida.
Porm, medida que o momento de morrer se
aproximava, pareciam surgir tantas boas razes
para quebrar essa promessa. O corpo saudvel e
selvagem, aquela vida simples no agora chamavam
por mim.
A silhueta aproximou-se lentamente. Um grande
arrepio de frio e dor me abalou. Eu podia ir at o
lobo. Reuni o que restava das minhas foras para
me desafiar.
Aqui! coaxei Morte. Estou aqui. Vem
me levar, e que isto enfim termine.
Ela me ouviu. Vi-a parar e permanecer rgida,
como que com medo. Ento se aproximou com uma
pressa sbita, fazendo rodopiar o manto branco no
vento noturno. Parou ao meu lado, alta, esguia e
silenciosa.
Vim at voc sussurrei. De repente,
ajoelhou ao meu lado, e eu vislumbrei o marfim
esculpido do seu rosto ossudo. Passou os braos
em volta de mim e me ergueu para me levar
embora. A presso do seu brao nas minhas costas
era uma agonia de dor. Desmaiei.
O calor estava penetrando de novo em mim,
trazendo consigo dor. Eu estava deitado de lado,
rodeado por paredes, pois o vento batia no
exterior como o oceano. Senti o cheiro de ch e de
incenso, de tinta e de aparas de madeira e do
tapete de l sobre o qual jazia. Meu rosto ardia.
No conseguia parar com o tremor que me
percorria, apesar de cada uma das suas ondas
despertar a dor aguda nas minhas costas. Sentia as
mos e os ps latejando.
Os ns dos cordes do seu manto esto
congelados. Vou cort-los. Fique quieto agora.
A voz era curiosamente gentil, como se no
estivesse habituada a esse tom.
Consegui abrir um olho. Eu estava deitado no
cho. Meu rosto estava virado para uma lareira de
pedra onde ardia um fogo. Algum se debruava
sobre mim. Vi o brilho de uma lmina
aproximando-se da minha garganta, mas no
consegui me mover. Senti-a movimentando-se para
trs e para frente, e honestamente no soube dizer
se me mordera a carne. Ento senti o manto sendo
levantado para trs.
Est congelado sua camisa murmurou
algum. Quase pensei reconhecer a voz. Uma
arfada. sangue. Tudo isto sangue congelado.
O manto produziu um estranho som de rasgar
quando se soltou. Ento algum se sentou no cho
ao meu lado.
Virei lentamente os olhos para cima, mas no
consegui erguer a cabea para ver um rosto. Em
vez disso, vi um corpo esguio, trajando um manto
macio de l branca. Mos da cor de marfim antigo
empurram os punhos das mangas para cima. Os
dedos eram longos e magros, os pulsos ossudos.
Ento ele se levantou abruptamente para ir buscar
alguma coisa. Durante algum tempo fiquei s.
Fechei os olhos. Quando os abri, havia uma larga
vasilha de cermica branca ao lado da cabea.
Vapor erguia-se dela e senti cheiro de salgueiro e
a sorveira.
Quieto disse a voz, e por um momento
uma daquelas mos repousou reconfortantemente
no meu ombro. Ento senti um calor que se
espalhava nas minhas costas.
Estou sangrando de novo sussurrei a mim
mesmo.
No. Sou eu que estou molhando a camisa
para solt-la. Mais uma vez, a voz era quase
familiar. Fechei os olhos. Uma porta se abriu e
fechou e uma rajada de ar frio passou flutuando
por mim. O homem ao meu lado fez uma pausa.
Senti-o a erguer os olhos. Voc podia ter batido
disse ele com uma severidade fingida. Voltei a
sentir a gua quente escorrendo pelas minhas
costas. At algum como eu ocasionalmente tem
outros convidados.
Ps atravessaram a sala depressa at mim.
Algum se abaixou num movimento fluido at o
cho ao meu lado. Vi as saias dobrando-se quando
ela se sentou. Uma mo afastou o meu cabelo do
rosto.
Quem ele, sagrado?
Furado? Havia um humor amargo na voz
dele. Se quer falar de furos, devia falar dele,
no de mim. Aqui, veja as costas dele. Ento
falou mais baixo. Quanto a quem ele , no fao
ideia.
Ouvi-a prender a respirao.
Tudo isso sangue? Como ele ainda est
vivo? Vamos aquec-lo e limpar o sangue.
Ento puxou as minhas luvas e as tirou das minhas
mos. Oh, pobres mos, com os dedos todos
pretos nas pontas! exclamou, horrorizada.
Isso era algo que eu no queria ver, nem saber.
Abri mo de tudo.
Durante algum tempo, pareceu que eu era de
novo um lobo. Percorria uma aldeia que no me
era familiar, alerta por causa de ces ou de algum
que andasse por perto, mas tudo era silncio
branco e neve caindo na noite. Descobri a cabana
que procurava e caminhei em volta dela, mas no
me atrevi a entrar. Passado algum tempo, pareceu
que eu fizera tudo o que podia a respeito de
alguma coisa. Ento fui caar. Matei, comi, dormi.
Quando abri os olhos de novo, a sala estava
tomada pela luz plida do dia. As paredes
curvavam-se. A princpio pensei que os meus
olhos no queriam entrar em foco, e ento
reconheci a forma de uma habitao da Montanha.
Lentamente, fui percebendo os detalhes. Tapetes
de l grossos no cho, moblia simples de
madeira, uma janela feita de pele oleada. Numa
prateleira, duas bonecas juntavam as cabeas ao
lado de um cavalo de madeira e de uma minscula
carroa. A marionete de um caador estava
pendurada a um canto. Em uma mesa havia
pedaos de madeira pintada em cores brilhantes.
Senti o cheiro de aparas recentes e de tinta fresca.
Marionetes, pensei. Algum estava fazendo
marionetes. Eu estava deitado de barriga para
baixo numa cama, com um cobertor por cima.
Sentia-me quente. A pele do meu rosto e das mos
e ps ardia de forma desagradvel, mas isso podia
ser ignorado, pois a grande dor que me furava as
costas tinha precedncia. Minha boca no estava
to seca. Teria bebido alguma coisa? Parecia me
lembrar de ch quente sendo derramado para
dentro da minha boca, mas no era uma recordao
slida. Ps enfiados em chinelos de feltro
aproximaram-se da minha cama. Algum se
debruou e levantou o cobertor de cima de mim.
Ar frio fluiu pela minha pele. Mos hbeis
moveram-se por mim, testando a rea em torno do
ferimento.
To magro. Se ele tivesse mais carne, diria
que tinha mais chances disse uma voz de velha
com tristeza.
Ele vai ficar com os dedos dos ps e das
mos? Uma voz de mulher, prxima. Uma
mulher jovem. No conseguia v-la, mas ela
estava perto. A outra mulher debruou-se sobre
mim. Manuseou-me as mos, dobrando os dedos e
beliscando as pontas. Estremeci e tentei
debilmente afast-los dela. Se sobreviver,
ficar com os dedos disse ela, de uma forma
que no era dura, mas factual. Ficaro
doloridos, pois ele tem de se livrar de toda a pele
e carne que estavam congeladas. No esto muito
ruins por si s. O que pode mat-lo a infeco
nas costas. H alguma coisa dentro daquela ferida.
Uma ponta de flecha e parte da haste, ao que
parece.
No pode tir-la? Mos-de-Marfim falou
de algum ponto da sala.
Facilmente respondeu a mulher. Percebi
que ela estava falando a lngua de Cervo com um
sotaque da Montanha. Mas ele com certeza
sangrar e no lhe resta muito sangue de que possa
se separar. E a podrido que tem na ferida pode
espalhar-se pelo sangue fresco fluindo para lhe
envenenar o corpo todo. Suspirou. Gostaria
que Jonqui ainda estivesse viva. Ela conhecia
muito bem este tipo de coisa. Foi ela quem
arrancou do Prncipe Rurisk a flecha que lhe tinha
perfurado o peito. O ferimento borbulhou com o
prprio sopro da vida do prncipe, e mesmo assim
ela no deixou que ele morresse. No sou to boa
curandeira como ela era, mas tentarei. Mandarei a
minha aprendiz com um unguento para as mos,
ps e rosto. Esfreguem bem a pele dele com o
unguento todos os dias, e no tenham receio por
causa da queda de pele. Quanto s costas, temos
de manter ali uma cataplasma de extrao, para
sugar os venenos o melhor que pudermos.
Precisam lhe dar tanto de comer e beber quanto ele
conseguir ingerir. Deixem-no repousar. E daqui a
uma semana puxaremos aquela flecha para fora,
esperando que ele tenha reunido as foras para
sobreviver. Jofron. Conhece alguma boa
cataplasma de extrao?
Uma ou duas. Farelo e erva-coalheira uma
boa sugeriu ela.
Servir bem. Gostaria de poder ficar e cuidar
dele, mas tenho muitos outros para tratar. Cume de
Cedros foi atacada ontem noite. Chegou uma ave
com notcias dizendo que muitos foram feridos
antes de os soldados serem repelidos. No posso
cuidar de um e abandonar muitos. Tenho que
deix-lo nas suas mos.
E na minha cama disse Mos-de-Marfim
em tom de lamento. Ouvi a porta fechando-se atrs
da curandeira.
Inspirei mais profundamente, mas no encontrei
foras para falar.
Atrs de mim, ouvi o homem andando pela
cabana, os pequenos rudos da gua sendo
despejada e da loua sendo movida. Passos se
aproximaram. Parece que ele est acordado
disse Jofron em voz baixa.
Fiz um pequeno aceno contra o travesseiro.
Ento tente lhe enfiar isto no estmago
sugeriu Mos-de-Marfim. Depois deixe-o
descansar. Eu volto com farelo e erva-coalheira
para sua cataplasma. E roupa de cama para mim,
j que suponho que ele ter de ficar aqui. Uma
bandeja foi passada por cima do meu corpo e
surgiu no meu campo de viso. Havia nela uma
tigela e uma taa. Uma mulher sentou-se ao meu
lado. No consegui virar a cabea para ver o seu
rosto, mas os tecidos da sua saia eram de
produo montanhesa. A sua mo tirou um pouco
do contedo da tigela e o levou minha boca.
Bebi o lquido com cautela. Algum tipo de caldo.
Vindos da tigela, os cheiros de camomila e
valeriana pairaram no ar. Ouvi uma porta abrindo-
se e depois fechando-se. Senti uma lufada de ar
frio que atravessou o quarto. Outra colherada de
caldo. Uma terceira.
Onde? consegui dizer.
O qu? perguntou ela, inclinando-se mais.
Virou a cabea e olhou para baixo, para o meu
rosto. Olhos azuis. Prximos demais dos meus.
Disse alguma coisa?
Recusei a colher. De repente, comer era esforo
demais, embora o que eu comera tivesse me dado
nimo. A sala pareceu mais escura. Da vez
seguinte que acordei, a noite estava cerrada
minha volta. Tudo era silncio, fora o velado
crepitar de um fogo na lareira. A luz que ele
lanava era vacilante, mas suficiente para me
mostrar o quarto. Senti-me febril, muito fraco e
terrivelmente sedento. Havia um copo de gua
numa mesa baixa prxima da minha cama. Tentei
alcan-lo, mas a dor nas costas me parou o
movimento do brao. Sentia as costas retesadas
com a ferida inchada. Qualquer movimento
despertava a dor.
gua proferi, mas a secura na minha boca
transformou o pedido num sussurro. Ningum se
aproximou.
Perto da lareira, o meu anfitrio preparara para
si um catre. Dormia como um gato, relaxado, mas
com a aura de constante prudncia que eles
apresentam. A cabea apoiava-se no brao
estendido e o fogo lhe dava silhueta. Olhei-o, e o
corao deu uma cambalhota no peito.
Ele tinha o cabelo alisado para trs e lambido
contra o crnio, confinado a uma trana nica,
descobrindo-lhe os limpos traos do rosto. Sem
expresso e imvel, parecia uma mscara
cinzelada. O ltimo vestgio de juventude fora
destrudo a fogo, deixando apenas os planos
limpos das faces magras, testa alta e longo nariz
reto. Tinha os lbios mais estreitos e o queixo
mais firme do que eu recordava. A dana da luz da
lareira lhe emprestava cor ao rosto, manchando-
lhe a pele branca com o seu mbar. O Bobo
crescera durante o tempo que passramos
separados. Parecia mudana demais para doze
meses, e no entanto aquele ano fora mais longo do
que qualquer outro da minha vida. Durante algum
tempo, limitei-me a ficar olhando para ele.
Os seus olhos se abriram lentamente, como se eu
tivesse falado com ele. Durante algum tempo me
encarou de volta sem uma palavra. Ento franziu a
testa. Sentou-se lentamente e eu vi que ele era
realmente de marfim, com o cabelo da cor de
farinha acabada de ser moda. Foram os olhos que
pararam o meu corao e a lngua. Capturaram a
luz da lareira, amarelos como os de um gato. Por
fim, encontrei o flego.
Bobo suspirei com tristeza. O que lhe
fizeram? A minha boca ressequida quase no
conseguiu dar forma s palavras. Estendi a mo
para ele, mas o movimento repuxou os msculos
das costas e senti o ferimento se abrir de novo. O
mundo inclinou-se e deslizou para longe.
Segurana. Essa foi a minha primeira sensao
clara. Veio da suave tepidez da roupa de cama
lavada, da fragrncia herbcea da almofada por
baixo da minha cabea. Algo morno e ligeiramente
mido pressionava gentilmente o meu ferimento e
abafava a sua pontada. A segurana me agarrava
to suavemente como as mos frias que envolviam
as minhas mos queimadas pelo frio. Abri os olhos
e a sala iluminada pela lareira entrou lentamente
em foco.
Ele estava sentado junto da minha cama. Havia
nele uma imobilidade que no era repouso
enquanto fitava a sala escurecida para alm de
mim. Usava um manto simples de l branca com
um colarinho redondo. A roupa simples era um
choque depois dos anos em que o vira vestido de
retalhos. Era como ver uma marionete
espalhafatosa despida da sua tinta. Ento uma
nica lgrima prateada escorreu por uma das
bochechas ao lado do nariz estreito. Fiquei
espantado.
Bobo? Desta vez a minha voz soou como
um coaxo.
Os seus olhos saltaram instantaneamente para os
meus e ele caiu de joelhos ao meu lado. A
respirao ia e vinha, irregular na sua garganta.
Pegou o copo de gua e o levou minha boca
enquanto eu bebia. Ento o colocou de lado para
pegar a minha mo pendente. Falou suavemente
enquanto o fazia, mais consigo do que comigo.
O que eles me fizeram, Fitz? Deuses, o que
fizeram a voc, para o deixarem to marcado? O
que me aconteceu, para nem sequer reconhec-lo
apesar de eu ter carregado voc nos braos? Os
seus dedos frios desceram hesitantemente ao longo
do meu rosto, percorrendo a cicatriz e o nariz
quebrado. Debruou-se de repente para encostar a
testa minha. Quando me lembro de como voc
era belo suspirou, entre soluos, e ento ficou
em silncio. Senti-me escaldado pela sua lgrima
tpida quando caiu no meu rosto.
Endireitou-se de sbito, pigarreando. Enxugou
os olhos com a manga, um gesto de criana que me
comoveu ainda mais. Respirei mais fundo e me
controlei.
Voc mudou consegui dizer.
Mudei? Imagino que sim. Como poderia no
ter mudado? Pensei que voc estava morto e que
toda a minha vida havia sido em vo. E ento
agora, neste momento, receber de volta tanto voc
quanto o propsito da minha vida Abri os olhos
para voc e pensei que o meu corao pararia, que
a loucura tinha finalmente tomado conta de mim.
Ento voc disse o meu nome. Mudado, voc diz?
Mais do que capaz de imaginar, tanto quanto
bvio que voc mesmo mudou. Esta noite, quase
nem me conheo. Aquilo foi o mais prximo
que estivera de ouvir o Bobo balbuciar. Ele
respirou fundo, e a sua voz vacilou nas palavras
seguintes. Por um ano acreditei que voc estava
morto, Fitz. Um ano inteiro.
No me largara a mo. Senti o tremor que o
percorreu. Levantou-se de repente, dizendo:
Ns dois precisamos de uma bebida.
Afastou-se de mim, atravessando a sala
escurecida. Crescera, mas em forma e no em
tamanho. Duvidava de que fosse muito mais alto,
mas o seu corpo j no era o de uma criana. Era
to magro e leve como sempre fora, musculoso
maneira dos acrobatas. Trouxe uma garrafa tirada
de um armrio, dois copos simples. Tirou a rolha
da garrafa e senti o cheiro do calor do conhaque
antes de ele o servir. Voltou para se sentar na
minha cama e me oferecer um copo. Consegui
envolv-lo com a mo, apesar das pontas
enegrecidas dos meus dedos. Ele pareceu ter
recuperado parte da sua autoconfiana. Olhou-me
por cima da borda do copo enquanto bebia.
Levantei a cabea e inclinei o meu ligeiramente
para a boca. Metade do lquido foi derramada na
minha barba e me engasguei como se nunca tivesse
bebido conhaque antes. Ento o senti correr quente
pela minha barriga. O Bobo sacudiu a cabea
enquanto me limpava suavemente o rosto.
Eu devia ter dado ouvidos aos meus sonhos.
Sonhei vrias vezes que voc estava a caminho.
Era s isso que voc dizia, no sonho. Estou a
caminho. Mas, em vez disso, acreditei to
firmemente que de algum modo falhara, que o
Catalisador estava morto. Nem sequer consegui
ver quem voc era quando o levantei do cho.
Bobo eu disse em voz baixa. Queria que
ele parasse de falar. Queria simplesmente estar em
segurana durante algum tempo e no pensar em
nada. Ele no compreendeu.
Olhou-me e deu o seu velho sorriso astuto de
Bobo.
Ainda no compreende, no ? Quando
recebemos a notcia de que voc estava morto, de
que Majestoso havia matado voc a minha vida
terminou. Foi pior, de algum modo, quando os
peregrinos comearam a chegar, para me aclamar
como o Profeta Branco. Eu sabia que era o Profeta
Branco. Sei desde criana, tal como sabiam
aqueles que me criaram. Cresci sabendo que um
dia viria para norte ao seu encontro e que ns dois
colocaramos o tempo no seu curso apropriado.
Soube a vida inteira que faria isso. No era muito
mais do que uma criana quando parti. Sozinho,
abri caminho at Torre do Cervo, em busca do
Catalisador que s eu reconheceria. E encontrei
voc, e o conheci, embora voc no conhecesse a
si mesmo. Observei o lento desenrolar dos
acontecimentos e reparei no modo como voc era
sempre a pedrinha que desviava essa grande roda
do seu antigo curso. Tentei lhe falar sobre isso,
mas voc no queria saber. Catalisador? No
voc, oh, no! Riu, quase com amizade. Bebeu
o resto do conhaque de um trago, ento me levou o
copo aos lbios. Beberiquei.
Ele ento se levantou, para andar pela sala, e
depois parou para encher de novo o seu copo.
Voltou para junto de mim.
Vi tudo chegar beira instvel da runa. Mas
voc estava sempre l, a carta nunca antes usada, o
lado do dado que nunca antes cara para cima.
Quando o meu rei morreu, como eu sabia que tinha
de morrer, havia um herdeiro para a linhagem
Visionrio, e FitzCavalaria, o Catalisador que
mudaria todas as coisas de modo que um herdeiro
ascendesse ao trono, ainda estava vivo. Engoliu
de novo o conhaque e, quando falou, o odor da
bebida dominava o seu hlito. Fugi. Fugi com
Kettricken e a criana por nascer, de luto, mas
confiante que tudo aconteceria como devia. Porque
voc era o Catalisador. Porm, quando recebemos
a notcia de que estava morto Parou de
repente. Quando tentou falar de novo, a sua voz se
tornara espessa e perdera a sua msica. Isso fez
de mim uma mentira. Como eu poderia ser o
Profeta Branco se o Catalisador estava morto? O
que eu poderia predizer? As mudanas que podiam
ter acontecido, se voc tivesse sobrevivido? O que
eu seria alm de uma testemunha enquanto o mundo
se afundava mais e mais profundamente na runa?
Eu j no tinha um objetivo. A sua vida era mais
de metade da minha, compreende? Era no
entrelaar dos nossos atos que eu existia. Pior,
acabei por duvidar se alguma parte do mundo era
realmente como eu achava que fosse. Seria eu
realmente um Profeta Branco, ou seria tudo apenas
uma loucura peculiar, um autoengano para
consolar uma aberrao? Durante um ano, Fitz. Um
ano. Chorei o amigo que perdera, e chorei pelo
mundo que, sem saber como, condenara. Fracasso
meu, tudo fracasso meu. E quando o filho de
Kettricken, a minha ltima esperana, chegou ao
mundo imvel e azul, o que poderia ser isso seno
obra minha de alguma forma?
No! A palavra saltou de mim com uma
fora que eu no sabia que tinha. O Bobo vacilou
como se eu houvesse lhe batido.
Sim disse com simplicidade, voltando a
pegar com cautela a minha mo. Lamento.
Devia ter compreendido que voc no sabia. A
rainha ficou devastada pela perda. E eu tambm. O
herdeiro Visionrio. A minha ltima esperana
desfeita. Eu me mantivera de p, dizendo a mim
mesmo: bem, se a criana sobreviver e ascender
ao trono, isso talvez seja o suficiente. Mas quando
ela caiu de cama sem nada alm de um beb morto
por todas as suas dores de parto senti que toda a
minha vida tinha sido uma farsa, uma fraude, uma
pea maligna que me fora pregada pelo tempo.
Mas agora Fechou os olhos por um momento.
Agora eu o encontro realmente vivo. De modo
que eu vivo. E de novo, de sbito, acredito. Mais
uma vez sei quem sou. E quem o meu
Catalisador. Soltou uma gargalhada, sem sonhar
com o modo como as suas palavras me
congelavam o sangue. No tive f. Eu, o Profeta
Branco, no acreditei nas minhas prprias
profecias! E, no entanto, aqui estamos, Fitz, e tudo
ainda ir acontecer como estava destinado.
De novo inclinou a garrafa para encher o seu
copo. A bebida, quando a serviu, era da cor dos
seus olhos. Ele viu que eu o fitava e sorriu com
satisfao.
Ah, voc diz, mas o Profeta Branco j no
branco? Suspeito que assim que as coisas
ocorrem com a minha espcie. Posso ganhar mais
cor agora, medida que os anos passam. Fez
um movimento de indiferena. Mas isso pouca
importncia tem. J falei demais. Conte-me, Fitz.
Conte-me tudo. Como sobreviveu? Por que est
aqui?
Veracidade me chama. Tenho de ir at ele.
O Bobo inspirou ao ouvir as minhas palavras,
no um arquejo, mas uma lenta inalao, como se
absorvesse a vida de volta ao seu corpo. Quase
brilhou de prazer com as minhas palavras.
Ento ele est vivo! Ah! Antes de eu
conseguir falar mais, ele ergueu as mos.
Devagar. Conte-me tudo, em ordem. Estas so
palavras que eu muito ansiei ouvir. Preciso saber
de tudo.
Tentei faz-lo. As minhas foras eram poucas, e
por vezes me sentia sendo levado pela febre, de
modo que as palavras vagueavam e eu no
conseguia me lembrar de onde abandonara a
histria do ano anterior. Cheguei parte sobre a
masmorra de Majestoso, e depois consegui apenas
dizer:
Ele mandou me espancar e me deixar
passando fome. O rpido olhar que o Bobo
lanou ao meu rosto marcado e o modo como
afastou os olhos me disseram que compreendera.
Ele tambm conhecera Majestoso bem demais.
Quando esperou para ouvir mais, sacudi
lentamente a cabea.
Ele assentiu, e ento colocou um sorriso no
rosto.
Est bem, Fitz. Voc est cansado. J me
disse o que eu mais ansiava ouvir. O resto pode
esperar. Por ora, vou lhe contar sobre o meu ano.
Tentei escutar, agarrando-me s palavras
importantes, guardando-as no corao. Havia
tantas coisas que eu queria saber h tanto tempo.
Majestoso suspeitara da fuga. Kettricken
regressara aos seus aposentos e descobrira que as
suas provises cuidadosamente escolhidas e
embaladas haviam desaparecido, surrupiadas
pelos espies de Majestoso. Partira com pouco
mais do que a roupa que vestia e um manto
apanhado s pressas. Ouvi sobre o mau tempo que
o Bobo e Kettricken enfrentaram na noite em que
fugiram de Torre do Cervo.
Ela montara a minha Fuligem e o Bobo batalhara
com o teimoso Ruivo ao longo de todos os Seis
Ducados, no inverno. Tinham chegado a Lago Azul
no fim das tempestades de inverno. O Bobo os
sustentara e ganhara a sua passagem num navio
pintando o rosto e o cabelo e fazendo malabarismo
pelas ruas. De que cor ele pintara a pele? De
branco, claro, para melhor esconder a perfeita
pele branca que os espies de Majestoso
procurariam.
Atravessaram o lago com poucos incidentes,
passaram por Olho de Lua e penetraram nas
Montanhas. Kettricken procurara imediatamente a
ajuda do pai para descobrir o que acontecera a
Veracidade. Ele passara realmente por Jhaampe,
mas nada se soubera dele desde ento. Kettricken
pusera batedores no seu rastro e at se juntara
pessoalmente s buscas. Contudo, todas as suas
esperanas haviam terminado em desgosto. A
grande altitude, nas montanhas, ela descobrira o
local de uma batalha. O vento e os carniceiros
haviam feito o seu trabalho. Nenhum homem podia
ser identificado, mas o estandarte do cervo de
Veracidade encontrava-se l. As flechas
espalhadas e as costelas cortadas de um dos
corpos mostravam que haviam sido homens e no
feras ou os elementos que os atacaram. No havia
crnios suficientes para o nmero de corpos, e os
ossos espalhados tornavam o nmero de mortos
incerto. Kettricken agarrara-se esperana at que
fora encontrado um manto que ela se lembrava de
ter embalado para Veracidade. Foram as suas
mos que bordaram o cervo no emblema de peito.
Por baixo encontrava-se uma pilha de ossos
fragmentados em cima de vestes esfarrapadas.
Kettricken chorara a morte do marido.
Regressara a Jhaampe para oscilar entre um
pesar devastado e uma raiva fervente contra as
tramas de Majestoso. A sua fria se solidificara
numa determinao em ver o filho de Veracidade
no trono dos Seis Ducados e um reinado justo
devolvido ao povo. Esses planos a haviam
sustentado at que o filho nascera morto. O Bobo
quase no a vira desde ento, exceto para obter
vislumbres dos passeios que dava pelos seus
jardins gelados, com o rosto to imvel como a
neve que cobria os canteiros.
Havia notcias maiores e menores para mim,
misturadas no meio do relato do Bobo. Fuligem e
Ruivo estavam ambos vivos e saudveis. Fuligem
estava prenha do jovem garanho, apesar da idade.
Isso me fez sacudir a cabea. Majestoso andara
fazendo o possvel para provocar uma guerra.
Pensava-se que os bandos errantes de bandidos
que agora atormentavam o povo das Montanhas
estavam a seu soldo. Carregamentos de cereais
que tinham sido pagos na primavera nunca foram
entregues, e os comerciantes da Montanha no
obtiveram autorizao para atravessar a fronteira
com os seus artigos. Vrias aldeias pequenas
prximas da fronteira dos Seis Ducados haviam
sido encontradas saqueadas e queimadas, sem
sobreviventes. A fria do Rei Eyod, lenta para
despertar, encontrava-se agora em uma brasa
branca. Embora o povo das Montanhas no tivesse
um exrcito regular propriamente dito, no havia
um habitante que no pegasse em armas a uma
palavra do seu Sacrifcio. A guerra era iminente.
E ele ouvira histrias sobre Pacincia, a
Senhora de Torre do Cervo, trazidas de forma
errtica pelo boca a boca transmitido entre
mercadores e por estes a contrabandistas. Ela fazia
o possvel para defender a costa de Cervo. O
dinheiro minguava, mas o povo da terra lhe dava
aquilo a que chamava de Cobrana da Senhora, e
ela dispunha dela o melhor que podia, entre os
seus soldados e marinheiros. Torre do Cervo
ainda no cara, embora os Salteadores tivessem
agora acampamentos ao longo de toda a costa dos
Seis Ducados. O inverno acalmara a guerra, mas a
primavera iria banhar a costa em sangue mais uma
vez. Algumas das fortalezas menores falavam de
tratados com os Navios Vermelhos. Alguns
pagavam abertamente tributo, na esperana de
evitar forjamentos.
Os Ducados Costeiros no sobreviveriam outro
vero. Era o que Breu dizia. A minha lngua
manteve-se silenciosa enquanto o Bobo falou dele.
Viera a Jhaampe por meios secretos no auge do
vero, disfarado como um velho vendedor
ambulante, mas se apresentara rainha quando
chegara. O Bobo o vira nessa ocasio.
A guerra combina com ele observou o
Bobo. Anda por a como um homem de vinte
anos. Usa uma espada na cintura e h fogo nos seus
olhos. Ficou feliz por ver a barriga dela inchada
com o herdeiro Visionrio, e conversaram
ousadamente sobre o filho de Veracidade no trono.
Mas isso foi no auge do vero. Suspirou.
Agora ouvi dizer que regressou. Creio que foi
porque a rainha lhe enviou notcias sobre o seu
natimorto. Ainda no consegui v-lo. No sei que
esperana pode nos oferecer agora. Sacudiu a
cabea. Tem de haver um herdeiro para o trono
Visionrio insistiu. Veracidade tem de
arranjar um herdeiro. Do contrrio Fez um
gesto de impotncia.
Por que no Majestoso? Um filho do seu
ventre no seria suficiente?
No. Os olhos do Bobo perderam-se ao
longe. No. Posso lhe dizer isso com bastante
clareza, mas no posso dizer por qu. Apenas que,
em todos os futuros que vi, ele no produz filhos.
Nem sequer um bastardo. Em todos os tempos,
reina como o ltimo Visionrio, e anuncia as
trevas.
Um arrepio passou sobre mim. Ele ficava muito
estranho quando falava de tais coisas. E as suas
palavras estranhas haviam me trazido mente
outra preocupao.
Havia duas mulheres. Uma menestrel,
Esporana, e uma velha peregrina, Panela. Vinham
para c. Panela disse que procurava o Profeta
Branco. No me passou pela cabea que pudesse
ser voc. Ouviu alguma coisa sobre elas? Tero
chegado cidade de Jhaampe?
Ele sacudiu lentamente a cabea.
Ningum veio em busca do Profeta Branco
desde que o inverno se fechou sobre ns.
Interrompeu-se, lendo a preocupao no meu rosto.
Claro, no fico sabendo de todos que vm at
aqui. Elas podem estar em Jhaampe. Mas nada
ouvi dizer sobre duas mulheres como essas.
Acrescentou com relutncia: Os bandidos caem
agora sobre quem viaja pelas estradas. Talvez
tenham sido atrasadas.
Talvez estivessem mortas. Tinham voltado por
mim, e eu as mandara continuarem sozinhas.
Fitz?
Eu estou bem. Bobo, um favor?
J no estou gostando desse tom. O que ?
No diga a ningum que estou aqui. No diga
a ningum que estou vivo, por enquanto.
Ele suspirou.
Nem mesmo a Kettricken? Para lhe dizer que
Veracidade ainda vive?
Bobo, aquilo que eu vim fazer, pretendo fazer
sozinho. No quero criar nela falsas esperanas. J
suportou uma vez a notcia da morte dele. Se
conseguir traz-lo de volta para ela, ento haver
tempo suficiente para verdadeiro regozijo. Sei que
estou pedindo muito. Mas deixe que eu seja um
estranho que voc est ajudando. Mais tarde,
posso precisar da sua ajuda para a obteno de um
velho mapa nas bibliotecas de Jhaampe. Mas
quando partir daqui, quero ir sozinho. Acho que
esta demanda ser levada a cabo discretamente.
Afastei os olhos dele e acrescentei: Deixe que
FitzCavalaria permanea morto. No geral,
melhor assim.
Certamente voc pelo menos ver Breu?
Ele estava incrdulo.
Nem mesmo Breu deve saber que estou vivo.
Fiz uma pausa, perguntando a mim mesmo o que
enfureceria mais o velho: que eu tivesse tentado
matar Majestoso quando ele sempre o proibira, ou
que tivesse transformado o empreendimento numa
trapalhada to grande. Esta demanda deve ser
s minha. Observei-o e vi uma aceitao
relutante no seu rosto.
Voltou a suspirar.
No irei dizer que concordo completamente
com voc. Mas no direi a ningum quem voc .
Soltou uma pequena gargalhada. A conversa
esmoreceu entre ns. A garrafa de conhaque estava
vazia. Ficamos reduzidos ao silncio, fitando-nos
ebriamente. A febre e o conhaque ardiam em mim.
Eu tinha coisas demais em que pensar e era
pouqussimo o que eu podia fazer quanto a todas
elas. Se permanecesse muito imvel, a dor nas
minhas costas se reduzia a um latejar rubro.
Mantinha o mesmo ritmo do bater do meu corao.
uma pena que voc no tenha conseguido
matar Majestoso observou de sbito o Bobo.
Eu sei. Tentei. Como conspirador e
assassino, sou um fracasso.
Ele encolheu os ombros.
Nunca foi realmente bom nisso, sabia? Havia
em voc uma ingenuidade que no se deixava
manchar por fealdade alguma, como se nunca
tivesse realmente acreditado no mal. Era isso o
que mais me agradava em voc. O Bobo
oscilava ligeiramente na cadeira, mas endireitou-
se. Foi disso de que tive mais saudades, quando
voc morreu.
Sorri tolamente.
H pouco, achei que tivesse sido a minha
grande beleza.
Durante algum tempo, o Bobo apenas olhou para
mim. Ento afastou o olhar e falou em voz baixa.
Injusto. Se eu no estivesse fora de mim,
nunca teria proferido essas palavras em voz alta.
Enfim. Ah, Fitz. Olhou-me e sacudiu a cabea
com amizade. Falou sem zombaria, transformando-
se quase num estranho. Metade da beleza talvez
viesse do fato de voc estar to inconsciente dela.
Ao contrrio de Majestoso. Ora, eis a um homem
bonito, mas ele sabe bem demais que o . Voc
nunca o v com o cabelo desgrenhado ou o
vermelho do vento nas bochechas.
Durante um momento, senti-me estranhamente
desconfortvel. Ento disse:
Nem com uma flecha nas costas, o que uma
pena e nos entregamos ao riso tolo que s
bbados compreendem. Mas o riso despertou a dor
nas minhas costas e a levou a uma intensidade
penetrante, e um momento depois eu arquejava, em
busca de flego. O Bobo levantou-se, mais firme
sobre as pernas do que eu esperaria, para me tirar
das costas um saco de alguma coisa que pingava e
substitu-lo por outro quase desconfortavelmente
quente, vindo de uma vasilha que se encontrava
sobre a lareira. Feito isso, agachou-se de novo ao
meu lado. Olhou-me diretamente nos olhos, com os
seus olhos amarelos to difceis de ler como o
foram os que no possuam cor. Colocou uma
longa mo fria no meu rosto, e ento afastou
gentilmente o meu cabelo dos olhos.
Amanh disse-me ele com gravidade.
Seremos de novo ns. O Bobo e o Bastardo. Ou o
Profeta Branco e o Catalisador, se preferir.
Teremos de reassumir essas vidas, por menos que
gostemos delas, e cumprir tudo aquilo que o
destino decretou para ns. Mas, por enquanto, por
ora, s entre ns, e por nenhuma outra razo a no
ser a de eu ser eu e voc ser voc, digo-lhe isto.
Estou satisfeito, satisfeito por voc estar vivo. V-
lo respirando me devolve o ar aos pulmes. Se
tem de haver outra pessoa a quem o meu destino se
entrelaa, estou contente que seja voc.
Ento se inclinou para frente e por um instante
encostou a testa na minha. Depois soltou um
pesado suspiro e afastou-se de mim.
V dormir, rapaz disse, numa imitao
razovel da voz de Breu. O amanh chega cedo.
E temos trabalho a fazer. Soltou uma
gargalhada irregular. Temos o mundo a salvar,
voc e eu.
CAPTULO 21

Confrontos

A diplomacia pode muito bem ser a arte de


manipular segredos. Ao que chegaria qualquer
negociao se no existissem segredos para
compartilhar ou conservar? E isso to
verdadeiro para um pacto nupcial como para um
acordo comercial entre reinos. Cada lado sabe
verdadeiramente quanto est disposto a entregar
ao outro para obter o que deseja; da
manipulao desse conhecimento secreto que se
alimenta a negociao mais difcil. No existe
nenhum ato que tenha lugar entre seres humanos
em que os segredos no desempenhem o seu
papel, quer seja um jogo de cartas, quer a venda
de uma vaca. A vantagem pertence sempre quele
que for mais sagaz na deciso de qual segredo
revelar, e quando. O Rei Sagaz gostava de dizer
que no havia maior vantagem do que conhecer o
segredo do inimigo quando ele nos julgava
ignorantes desse segredo. Entre todos, esse
talvez seja o segredo cuja posse mais poder
confira.

Os dias que se seguiram para mim no foram dias,


mas perodos incoerentes de viglia entremeados
por sonhos febris e bruxuleantes. Ou a minha breve
conversa com o Bobo esgotara as minhas ltimas
reservas, ou me senti enfim suficientemente seguro
para me entregar ao ferimento. Talvez as duas
coisas. Eu estava deitado numa cama perto da
lareira do Bobo e me sentia desgraadamente
entorpecido, quando sentia alguma coisa. O rudo
de conversas matraqueava contra mim. Eu
deslizava para dentro e para fora da conscincia
da minha penria, mas nunca longe, como um
tambor marcando o ritmo da minha dor, estava o
venha at mim, venha at mim de Veracidade.
Outras vozes iam e vinham atravs da bruma da
minha febre, mas a dele era uma constante.
Ela acredita que voc aquele que ela procura.
Eu tambm acredito nisso. Acho que voc devia
receb-la. Ela percorreu um caminho longo e
cansativo em busca do Profeta Branco. A voz
de Jofron era baixa e razovel.
Ouvi o Bobo largar a raspadeira com um
estalido.
Ento diga a ela que est enganada. Diga-lhe
que eu sou o Fabricante de Brinquedos Branco.
Diga-lhe que o Profeta Branco vive mais para o
fim da rua, a cinco portas do lado esquerdo.
No zombarei dela disse Joffron com ar
srio. Ela viajou uma distncia imensa sua
procura e durante a viagem perdeu tudo, exceto a
vida. Vamos, sagrado. Ela espera l fora. No
quer falar com ela, s por um momento?
Sagrado bufou o Bobo com desdm.
Voc tem lido muitos pergaminhos velhos. E ela
tambm. No, Jofron. Ento suspirou, e cedeu.
Diga-lhe que falarei com ela daqui a dois dias.
Mas hoje no.
Muito bem. Era claro que Joffron no
aprovava. Mas h outra pessoa com ela. Uma
menestrel. No me parece que ela ser dissuadida
to facilmente. Acho que ela est procura dele.
Ah, mas ningum sabe que ele est aqui.
Exceto voc, eu e a curandeira. Ele quer ser
deixado em paz durante algum tempo, enquanto
sara.
Movi a boca. Tentei dizer que receberia
Esporana, que no queria mandar Esporana
embora.
Eu sei disso. E a curandeira continua em
Cume de Cedros. Mas essa menestrel esperta.
Perguntou s crianas se havia notcias de um
estranho. E as crianas, como de costume, sabem
de tudo.
E contam tudo retorquiu o Bobo num tom
sombrio. Ouvi-o largando outra ferramenta,
aborrecido. Nesse caso, vejo que s tenho uma
escolha.
Vai receb-las?
Uma gargalhada estrangulada vinda do Bobo.
Claro que no. Quero dizer que mentirei para
elas.
O sol da tarde caindo em diagonal sobre os meus
olhos fechados. Acordei com o som de vozes que
discutiam.
S quero v-lo. Uma voz de mulher,
aborrecida. Eu sei que ele est aqui.
Ah, suponho que admitirei que voc tem
razo. Mas ele est dormindo. O Bobo, com a
sua calma de enlouquecer.
Continuo querendo v-lo. Esporana, sem
rodeios.
O Bobo deu um grande suspiro.
Eu poderia deix-la entrar para v-lo. Mas
depois iria querer toc-lo. E depois de toc-lo,
iria querer esperar at que acordasse. E depois de
ele acordar, iria querer conversar com ele. No
haveria fim. E eu tenho muito que fazer hoje. O
tempo de um fabricante de brinquedos no lhe
pertence.
Voc no um fabricante de brinquedos. Eu
sei quem voc . E sei quem ele realmente. O
frio estava entrando pela porta aberta. Enfiei-me
debaixo dos cobertores, apertei a carne e puxei a
minha dor. Desejei que a fechassem.
Ah, sim, voc e Panela conhecem o nosso
grande segredo. Eu sou o Profeta Branco, e ele
Tom, o pastor. Mas hoje estou ocupado,
profetizando marionetes acabadas amanh, e ele
est dormindo. Contando carneirinhos, em sonhos.
No a isso a que me refiro. Esporana
abaixou a voz, mas ela mesmo assim chegou at
mim. Ele FitzCavalaria, filho de Cavalaria, o
Abdicante. E voc o Bobo.
Antigamente talvez eu tenha sido o Bobo.
Isso do conhecimento geral aqui em Jhaampe.
Mas agora sou o Fabricante de Brinquedos. J no
uso o outro ttulo, pode ficar com ele para voc, se
quiser. E quanto a Tom, acho que ele atualmente
usa o ttulo de Travesseiro.
Vou falar com a rainha a este respeito.
Uma deciso sensata. Se quiser se tornar a
Boba dela, certamente com ela que voc tem de
falar. Mas, por ora, deixe-me lhe mostrar outra
coisa. No, recue, por favor, para que veja tudo.
A vai. Ouvi a porta batendo e o rudo do
trinco. O lado de fora da minha porta
anunciou o Bobo com ar satisfeito. Fui eu
mesmo que o pintei. Gosta?
Ouvi um baque, como que provocado por um
chute abafado, seguido por mais alguns. O Bobo
voltou para a mesa de trabalho cantarolando.
Pegou a cabea de madeira de uma boneca e um
pincel. Lanou-me um olhar.
Volte a dormir. Ela no conseguir falar com
Kettricken to cedo. A rainha recebe poucas
pessoas hoje em dia. E, quando a receber, no
provvel que acredite nela. E isso o melhor que
podemos fazer por ora. Portanto, durma enquanto
pode. E ganhe foras, porque receio que voc
precisar delas.

A luz do dia em neve branca. De barriga para


baixo na neve, entre as rvores, observando uma
clareira. Jovens humanos brincando,
perseguindo uns aos outros, saltando e
arrastando uns aos outros para o cho, onde
rolam e rolam na neve. No so assim to
diferentes de filhotes. Invejosos. Nunca tivemos
outros filhotes com quem brincar enquanto
crescamos. como uma coceira, o desejo de
correr at l embaixo e nos juntarmos
brincadeira. Eles se assustariam, ns nos
advertimos. Apenas observemos. Os seus latidos
estridentes enchem o ar. A nossa filhote crescer
at ser como aqueles?, perguntamos a ns
mesmos. Cabelo tranado esvoaa atrs deles
enquanto correm pela neve, perseguindo uns aos
outros.

Fitz. Acorde. Preciso falar com voc.


Algo no tom do Bobo atravessou tanto a neblina
quanto a dor. Abri os olhos, e ento os apertei
dolorosamente. A sala estava escurecida, mas ele
colocara um castial no cho, ao lado da cama.
Sentou-se junto das velas, olhando-me no rosto,
muito srio. No consegui ler as suas feies;
parecia que a esperana danava nos seus olhos e
nos cantos da boca, mas ele tambm parecia
endurecido, como se me trouxesse ms notcias.
Est escutando? Consegue me ouvir?
pressionou.
Consegui assentir com a cabea.
Sim. Minha voz estava to rouca que
quase nem a reconheci. Em vez de ficar mais forte
para a curandeira puxar a flecha para fora, eu me
sentia como se fosse o ferimento que estivesse
ficando mais forte. A rea dolorosa se alastrava
todos os dias. Estava sempre pulsando nos limites
da minha mente, fazendo com que fosse difcil
pensar.
Estive jantando com Breu e Kettricken. Ele
tinha notcias para ns. Inclinou a cabea para
o lado e observou cuidadosamente o meu rosto
enquanto dizia: Breu diz que h uma criana
Visionrio em Cervo. Por enquanto s um beb, e
um bastardo. Mas da mesma linhagem Visionrio
de Veracidade e Cavalaria. Ele jura que
verdade.
Fechei os olhos.
Fitz. Fitz! Acorde e me escute. Ele est
tentando persuadir Kettricken a reclamar a criana.
A dizer que filha legtima, sua e de Veracidade,
escondida por um falso natimorto para proteg-la
de assassinos. Ou a dizer que a criana bastarda
de Veracidade, mas que a Rainha Kettricken
decide legitim-la e reclam-la como herdeira.
No conseguia me mexer. No conseguia
respirar. Sabia que era a minha filha. Mantida em
segurana e escondida, protegida por Bronco. Para
ser sacrificada ao trono. Tirada de Moli e entregue
rainha. A minha menininha, cujo nome eu nem
sequer conhecia. Levada para ser uma princesa e,
com o tempo, uma rainha. Colocada para sempre
fora do meu alcance.
Fitz! O Bobo colocou a mo no ombro e o
apertou gentilmente. Sabia que ele ansiava por me
sacudir. Abri os olhos.
Ele me olhou no rosto.
No tem nada a me dizer? perguntou com
cautela.
Posso beber um pouco de gua?
Enquanto ele ia busc-la, eu me recompus. Ele
me ajudou a beber. Quando levou o copo, eu j
decidira que pergunta seria mais convincente.
O que Kettricken disse quando soube a
notcia de que Veracidade era pai de um bastardo?
Isso dificilmente lhe traria alegria.
A incerteza que eu tivera esperana de ver
espalhou-se pelo rosto do Bobo.
A criana nasceu no fim das colheitas. Tarde
demais para ter sido gerada por Veracidade antes
de partir na sua demanda. Kettricken compreendeu
isso mais depressa do que eu. Falou quase com
gentileza. Voc deve ser o pai. Quando
Kettricken perguntou diretamente a Breu, foi o que
ele disse. Inclinou a cabea para me examinar.
No sabia?
Sacudi lentamente a cabea. O que era a honra
para algum como eu? Bastardo e assassino, que
direito podia ter nobreza de alma? Proferi a
mentira que desprezaria para sempre.
No podia ter gerado uma criana nascida
nas colheitas. Moli tinha me expulsado de sua
cama meses antes de deixar Cervo. Tentei
manter a voz firme enquanto falava. Se a me
Moli, e ela diz que a criana minha, mente.
Procurei ser sincero enquanto acrescentava:
Lamento, Bobo. No gerei nenhum herdeiro
Visionrio para voc, e no pretendo faz-lo.
No foi nenhum esforo fazer com que minha voz
sasse sufocada e lgrimas brotassem dos meus
olhos. estranho. Sacudi a cabea contra o
travesseiro. Que uma coisa dessas possa me
trazer tanta dor. Que ela possa tentar fazer passar o
beb como meu. Fechei os olhos.
O Bobo falou com gentileza.
Segundo entendi, ela no fez nenhuma
afirmao a respeito da criana. Por enquanto,
creio que ela nada sabe do plano de Breu.
Suponho que eu devia falar tanto com Breu
como com Kettricken. Para lhes dizer que estou
vivo e revelar a verdade. Mas quando estiver mais
forte. Por enquanto, Bobo, quero ficar sozinho
supliquei-lhe. No queria ver nem comiserao,
nem confuso em seu rosto. Rezei para que
acreditasse na minha mentira, ao mesmo tempo que
me desprezava pela coisa nojenta que dissera
sobre Moli. De modo que mantive os olhos
fechados, e ele pegou as velas e foi embora.
Durante algum tempo fiquei deitado na
escurido, odiando-me. Era melhor assim, disse a
mim mesmo. Se um dia eu regressasse para junto
dela, podia remediar tudo. E se no regressasse,
pelo menos no lhe tirariam a nossa filha. Disse a
mim mesmo inmeras vezes que fizera a coisa
mais sensata. Porm, no me senti sensato. Senti-
me um traidor.
Tive um sonho ao mesmo tempo ntido e absurdo.
Eu lascava pedra negra. O sonho era s isso, mas
no tinha fim na sua monotonia. Estava usando o
punhal como cinzel e uma pedra como martelo.
Tinha os dedos cheios de cascas de feridas e
inchados das muitas vezes que a mo escorregara e
os atingira em vez do cabo do punhal. Mas isso
no me impedia de continuar. Lascava pedra
negra. E esperava que algum viesse me ajudar.
Acordei uma noite e encontrei Panela sentada ao
lado da minha cama. Parecia ainda mais velha do
que eu me lembrava. Uma luz brumosa de inverno
infiltrava-se por uma janela de pergaminho para
lhe tocar o rosto. Observei-a durante algum tempo
antes de ela perceber que eu estava acordado.
Quando o fez, sacudiu a cabea para mim.
Devia ter adivinhado, por toda a sua
estranheza. Voc mesmo estava indo at o Profeta
Branco. Aproximou-se mais e falou num
sussurro. Ele no deixa que Esporana veja
voc. Diz que voc est fraco demais para uma
visita to animada. E que voc no quer que
ningum mais saiba que est aqui, por enquanto.
Mas posso levar uma mensagem sua at ela, quer?
Fechei os olhos.
Um momento de manh luminosa e uma batida na
porta. No conseguia dormir, tampouco conseguia
permanecer acordado devido febre que me
atormentava. E bebera ch de casca de salgueiro
at ficar de barriga cheia. Mesmo assim, minha
cabea ainda latejava e eu estava sempre tremendo
ou a suando. A batida regressou, mais alta, e
Panela largou a taa com que estivera me
atormentando. O Bobo estava na sua mesa de
trabalho. Colocou o entalhador de lado, mas
Panela gritou:
Eu atendo! e abriu a porta, no momento em
que ele dizia:
No, deixe que eu vou.
Esporana abriu caminho para o interior, de uma
forma to abrupta que Panela exclamou de
surpresa. Esporana passou por ela, entrou na sala,
sacudindo neve do gorro e do manto. Lanou ao
Bobo um olhar de triunfo. O Bobo apenas assentiu
cordialmente como se a esperasse. Regressou ao
seu trabalho sem uma palavra. As brilhantes
centelhas de ira nos olhos dela tornaram-se mais
quentes, e notei sua satisfao com alguma coisa.
Fechou ruidosamente a porta s suas costas e
entrou no quarto como se fosse o prprio vento
norte. Sentou-se de pernas cruzadas no cho, ao
lado da minha cama.
Ento, Fitz. Estou contente por finalmente v-
lo de novo. Panela me disse que voc estava
ferido. Teria vindo v-lo antes, mas fui mandada
embora. Como est hoje?
Tentei focar a mente. Desejei que ela se
movesse mais devagar e falasse mais baixo.
Est frio demais aqui protestei com
irritao. E perdi o meu brinco. S
descobrira a perda naquela manh. Aquilo me
incomodava. No conseguia me lembrar do motivo
por que era to importante, mas a minha mente no
deixava o assunto de lado. Bastava pensar nisso
para a dor de cabea piorar.
Ela tirou as luvas. Uma mo ainda estava
enfaixada. Tocou a minha testa com a outra. A sua
mo estava abenoadamente fria.
Ele est ardendo! disse ao Bobo em tom
de acusao. No teve o bom senso de lhe dar
ch de casca de salgueiro?
O Bobo raspou mais uma espiral de madeira.
H um bule disso a junto ao seu joelho, se
no o derrubou. Se conseguir faz-lo beber mais,
voc um homem melhor do que eu. Outra
espiral de madeira.
Isso no dever ser difcil disse Esporana
numa vozinha feia. Ento, em um tom mais
bondoso, dirigido a mim: O seu brinco no est
perdido. Veja, estou com ele bem aqui. Tirou-o
da bolsa que trazia ao cinto. Uma pequena parte de
mim estava funcionando bem o suficiente para
reparar que ela agora estava vestida com roupas
quentes ao estilo da Montanha. Suas mos estavam
frias e um pouco speras quando colocou de volta
o brinco na minha orelha. Encontrei uma pergunta
para fazer.
Por que estava com ele?
Pedi a Panela que me trouxesse disse-me
sem rodeios. Quando ele no quis me deixar
ver voc. Eu precisava ter um sinal, alguma coisa
que provasse a Kettricken que tudo o que lhe disse
era verdade. Fui hoje mesmo at ela, e falei com
ela e com o seu conselheiro.
O nome da rainha atravessou os meus
pensamentos vagos e me deu um momento de
concentrao.
Kettricken! O que voc fez? gritei,
consternado. Que disse a ela?
Esporana pareceu surpresa.
Ora, tudo o que ela tinha de saber para poder
ajud-lo na sua demanda. Que voc est realmente
vivo. Que Veracidade no est morto e que voc
ir procura dele. Que uma mensagem precisa ser
enviada a Moli dizendo que voc est vivo e bem,
para que ela no perca o nimo e mantenha a sua
filha a salvo at o seu regresso. Que
Eu confiei em voc! gritei. Confiei os
meus segredos a voc e voc me traiu. Que grande
bobo fui! gritei em desespero. Estava tudo
perdido, tudo perdido.
No, o Bobo sou eu. Ele se intrometeu na
nossa conversa. Atravessou lentamente a sala e
parou para me olhar. E sou ainda mais por
acreditar que voc confiava em mim, ao que
parece prosseguiu, e eu nunca o vira to plido.
A sua filha disse para si mesmo. Uma
verdadeira criana da linhagem Visionrio. Os
seus olhos amarelos tremeluziram como um fogo
quase extinto ao saltarem de Esporana e para mim.
Sabe o que tais notcias significam para mim.
Por qu? Por que mentir para mim?
No soube o que era pior, se a dor nos olhos do
Bobo, ou o triunfo no olhar que Esporana lhe
lanou.
Tive de mentir, para que ela continuasse a ser
minha! A filha minha, no uma herdeira
Visionrio! gritei em desespero. Minha e de
Moli. Uma criana para ser educada e amada, no
uma ferramenta para um fazedor de reis. E Moli
no pode saber que estou vivo por ningum alm
de mim! Esporana, como pde fazer isso comigo?
Por que fui um idiota to grande, por que falei
dessas coisas com algum?
Agora Esporana parecia to ferida quanto o
Bobo. Empertigou-se rigidamente e a sua voz soou
frgil.
Eu apenas procurei ajudar. Ajud-lo a fazer o
que tem de fazer. Por trs de Esporana, uma
rajada de vento abriu a porta. Aquela mulher
tem o direito de saber que o marido est vivo.
A que mulher voc se refere? perguntou
outra voz glida. Para minha consternao,
Kettricken entrou de rompante na sala com Breu
logo atrs. Olhou-me com um rosto terrvel. O
pesar a devastara, esculpira profundas rugas nos
cantos da boca e lhe comera a carne das
bochechas. Agora, a ira tambm lhe enfurecia os
olhos. A exploso de vento frio que chegou com
eles me gelou por um instante. Ento a porta foi
fechada e os meus olhos se moveram de rosto
familiar em rosto familiar. A pequena sala pareceu
repleta de rostos que encaravam, de olhos frios
que olhavam para mim. Pisquei. Eles eram tantos,
e estavam to prximos, e todos me encaravam.
Ningum sorria. No havia boas-vindas, no havia
alegria. S as violentas emoes que eu despertara
com todas as mudanas que causara. Assim era o
Catalisador recebido. Ningum tinha nenhuma
expresso que eu esperava ver.
Ningum a no ser Breu. Ele atravessou a sala
at junto de mim a passos largos, tirando as luvas
de montar enquanto se aproximava. Quando jogou
para trs o capuz do manto de inverno, vi que o
seu cabelo branco estava amarrado em um rabo de
cavalo de guerreiro. Usava uma faixa de couro na
testa e, centrado nela, trazia um medalho de prata.
Um cervo com a galhada abaixada para atacar. O
smbolo que Veracidade me dera. Esporana saiu
depressa do seu caminho. Ele sequer olhou para
ela enquanto se dobrava com facilidade para se
sentar no cho ao lado da minha cama. Tomou a
minha mo nas suas, apertou os olhos ao ver a
queimadura do frio. Segurou-a suavemente.
Oh, meu garoto, meu garoto, eu achava que
voc estava morto. Quando Bronco me mandou
uma mensagem dizendo que tinha achado o seu
corpo, achei que o meu corao se partiria. As
palavras que trocamos quando nos separamos
Mas aqui est voc, vivo, ainda que no bem.
Curvou-se e me beijou. A mo que colocou no
meu rosto estava agora calejada, e quase no se
viam as cicatrizes na pele curtida. Ergui os olhos
para os seus e vi acolhimento e alegria. Lgrimas
me anuviaram a viso quando no pude evitar
perguntar:
Voc realmente levaria a minha filha para o
trono? Outra bastarda para a linhagem
Visionrio Gostaria que ela fosse usada como
ns fomos?
Algo se imobilizou no rosto dele. A posio da
boca endureceu com determinao.
Eu farei tudo o que tiver de fazer para ver de
novo um verdadeiro Visionrio no trono dos Seis
Ducados. Assim como jurei fazer. Assim como
voc tambm jurou. Seus olhos cruzaram-se
com os meus.
Olhei-o desalentado. Ele me amava. Pior, ele
acreditava em mim. Acreditava que eu tinha em
mim essa fora e devoo ao dever que haviam
sido a espinha dorsal da sua vida. Assim, podia
me impor coisas mais duras e mais frias do que o
dio de Majestoso por mim era capaz de imaginar.
A sua crena em mim era tal que ele no hesitaria
em me lanar em qualquer batalha, que esperaria
de mim qualquer sacrifcio. Fui sacudido de
repente por um soluo seco que puxou a flecha nas
minhas costas.
No h fim! gritei. Esse dever ir me
perseguir at a morte. Seria melhor se eu estivesse
morto! Deixe-me ficar morto! Arranquei a
minha mo de Breu, sem prestar ateno dor que
esse movimento causava. Deixe-me!
Breu nem sequer vacilou.
Ele est ardendo de febre disse
acusadoramente ao Bobo. No sabe o que est
dizendo. Devia ter lhe dado ch de casca de
salgueiro.
Um terrvel sorriso torceu os lbios do Bobo.
Antes de ele ter tempo de falar, ouviu-se um som
agudo de algo rasgando. Uma cabea cinzenta foi
forada atravs da janela de couro oleado,
mostrando um focinho cheio de dentes brancos. O
resto do lobo apareceu logo, derrubando uma
prateleira de potes de ervas em cima de uns
pergaminhos que se encontravam abaixo. Olhos-
de-Noite saltou, com as unhas derrapando no
assoalho de madeira, e parou de escorregar entre
mim e um Breu que se levantara depressa. Rosnou
para todos. Matarei todos por voc, se me disser
para faz-lo. Deixei a minha cabea cair nas
almofadas. O meu lobo limpo e selvagem. Foi isto
que eu fizera dele. Isso era melhor do que o que
Breu fizera de mim?
Olhei de novo em volta. Breu estava de p, com
o rosto imvel. Cada um dos rostos continha algum
choque, alguma tristeza, algum desapontamento
que eram da minha responsabilidade. O desespero
e a febre me abalaram.
Lamento disse debilmente. Nunca fui o
que pensaram que eu era confessei. Nunca.
O silncio encheu a sala. O fogo crepitou por um
momento.
Deixei meu rosto cair no travesseiro e fechei os
olhos. Proferi as palavras que me sentia
compelido a dizer.
Mas irei em busca de Veracidade. De algum
modo, irei traz-lo de volta para vocs. No
porque eu seja o que acham que sou
acrescentei, erguendo lentamente a cabea. Vi a
esperana se acender no rosto de Breu. Mas
porque no tenho alternativa. Nunca tive nenhuma
alternativa.
Acredita mesmo que Veracidade est vivo!
A esperana na voz de Kettricken estava
imbuda de uma nsia violenta. Aproximou-se de
mim como uma tempestade ocenica.
Assenti com a cabea.
Sim consegui dizer. Sim, acredito que
ele est vivo. Senti-o fortemente comigo. O seu
rosto estava to prximo, enorme no meu campo
de viso. Pisquei os olhos, e depois no consegui
foc-los.
Ento por que ele no regressou? Est
perdido? Ferido? No se importa com aqueles que
deixou para trs? As suas perguntas
matraquearam contra mim como pedras
arremessadas, uma atrs da outra.
Acho comecei, mas depois no consegui.
No consegui pensar, no consegui falar. Fechei os
olhos. Escutei um longo silncio. Olhos-de-Noite
ganiu, e depois soltou um profundo rosnado.
Talvez todos ns devssemos sair durante
algum tempo sugeriu Esporana numa voz
insegura. Fitz no est em estado de aguentar
isto agora.
Vocs podem sair disse-lhe o Bobo com
um ar imponente. Infelizmente, eu ainda moro
aqui.

Ir caar. hora de ir caar. Olho para o local


por onde entramos, mas o Sem Cheiro bloqueou
esse caminho, cobrindo-o com outro pedao de
pele de veado. Porta, parte de ns sabe que a
porta e nos dirigimos para l, para ganir
baixinho e empurr-la com o focinho. Ela
chacoalha contra a fechadura como uma
armadilha prestes a se fechar. O Sem Cheiro
aproxima-se, andando a passo ligeiro e
cauteloso. Estica o corpo para alm de mim, para
colocar uma pata plida na porta e abri-la para
mim. Deslizo para fora, de volta a um mundo de
noite fria. bom voltar a esticar os msculos, e
eu fujo da dor, da cabana abafada e do corpo que
no funciona para dentro daquele santurio
selvagem de carne e pelagem. A noite nos engole
e caamos.

Foi em outra noite, outro tempo, antes, depois, no


sei, os meus dias haviam se desligado uns dos
outros. Algum tirou uma compressa quente da
minha testa e a substituiu por outra mais fria.
Lamento, Bobo disse.
Trinta e dois disse uma foz cansada.
Beba acrescentou mais suavemente. Mos frias
ergueram meu rosto. Um copo fez um lquido bater
contra a minha boca. Tentei beber. Ch de casca
de salgueiro. Afastei o rosto, enojado. O Bobo
limpou minha boca e sentou-se no cho ao lado da
cama. Encostou-se nela com camaradagem. Ergueu
o pergaminho para a luz da lmpada e continuou a
ler. Era noite cerrada. Fechei os olhos e tentei
reencontrar o sono. Consegui encontrar apenas
coisas que fizera errado, confianas que trara.
Lamento tanto disse.
Trinta e trs disse o Bobo sem erguer o
olhar.
Trinta e trs qu? perguntei.
Ele me lanou um olhar surpreso.
Oh. Est mesmo acordado e falando?
Claro. Trinta e trs qu?
Trinta e trs lamento. Dirigidos a vrias
pessoas, mas em maior quantidade a mim.
Dezessete chamamentos por Bronco. Receio ter
perdido a conta dos chamamentos por Moli. E um
total de sessenta e dois Estou indo, Veracidade.
Devo estar deixando voc louco. Lamento.
Trinta e quatro. No. Voc s tem delirado,
de uma forma bastante montona. a febre,
suponho.
Suponho que sim.
O Bobo voltou a ler.
Estou to cansado de ficar deitado de bruos
eu disse.
H sempre as suas costas sugeriu o Bobo
para me ver estremecer. Quer que o ajude a se
virar para o lado?
No. Isso s faz doer mais.
Se mudar de ideias, avise. Os seus olhos
regressaram ao pergaminho.
Breu no voltou para me ver observei.
O Bobo suspirou e deixou o pergaminho de lado.
Ningum voltou. A curandeira apareceu e
repreendeu a todos ns por incomodarmos voc.
Eles devero deix-lo em paz at que ela tire a
flecha. Isso ser amanh. Alm disso, Breu e a
rainha tm tido muito que discutir. Descobrir que
tanto voc como Veracidade continuam vivos
mudou tudo para eles.
Em outra poca, ele teria me includo na
discusso. Fiz uma pausa, sabendo que estava
me entregando autopiedade, mas incapaz de
evitar. Suponho que sintam que j no podem
confiar em mim. No que eu os culpe. Agora todos
me odeiam. Pelos segredos que guardei. Por todas
as maneiras em que lhes falhei.
Oh, nem todos o odeiam ralhou o Bobo
com gentileza. Na verdade, s eu que odeio
voc.
Os meus olhos saltaram para o seu rosto. O seu
sorriso cnico me reconfortou.
Segredos disse ele, e suspirou. Um dia
ainda escreverei um longo tratado filosfico sobre
o poder dos segredos, quando so guardados ou
contados.
Tem mais conhaque?
Outra vez com sede? Tenho mais um pouco
de ch de casca de salgueiro. Havia agora na
sua voz uma cortesia cida, coberta com mel.
H bastante, sabia? Baldes dele. Todos para voc.
Acho que a febre baixou um pouco
mencionei humildemente.
Ele colocou uma mo na minha testa.
Baixou, sim. Por ora. Mas no acho que a
curandeira aprovaria que voc voltasse a se
embebedar.
A curandeira no est aqui observei.
Ele ergueu uma sobrancelha plida para mim.
Bronco ficaria to orgulhoso de voc.
Mas se levantou com graciosidade e foi at o
armrio de carvalho. Deu cautelosamente a volta
em Olhos-de-Noite, que estava deitado junto
lareira num sono empapado de calor. Os meus
olhos viajaram at a janela remendada, e depois
de volta ao Bobo. Supus que eles tivessem
chegado a algum tipo de acordo. Olhos-de-Noite
estava mergulhado num sono to profundo que nem
sequer sonhava. E, alm disso, estava de barriga
cheia. As suas patas mexeram-se quando sondei na
sua direo, ento me retirei. O Bobo estava
colocando a garrafa e dois copos numa bandeja.
Parecia contido demais.
Eu lamento mesmo, sabia?
Foi o que me disse. Trinta e cinco vezes.
Mas verdade. Devia ter confiado em voc e
lhe contado sobre a minha filha. Nada, nem uma
febre, nem uma flecha cravada nas costas seria
capaz de evitar que sorrisse quando dissesse
aquela frase. A minha filha. Tentei contar a
simples verdade. Embaraou-me o fato de isso
parecer uma experincia nova. Nunca a vi,
sabia? S com o Talento, pelo menos. No a
mesma coisa. E quero que seja minha. Minha e de
Moli. No uma criana que pertence a um reino,
com alguma vasta responsabilidade para a qual
crescer. S uma menininha, colhendo flores,
fazendo velas com a me, fazendo hesitei, e
conclu: o que quer que se permita s
crianas comuns fazer. Breu daria um fim nisso.
No momento em que algum aponte para ela e
diga, Vejam, ela podia ser a herdeira
Visionrio, estar correndo risco. Precisaria ser
guardada e ensinada a ter medo, a pesar cada
palavra e refletir sobre cada ato. Por que haveria
de faz-lo? No verdadeiramente uma herdeira
real. S a bastarda de um bastardo. Disse
aquelas palavras duras com dificuldade, e jurei
que nunca permitiria que algum as dissesse na
cara dela. Por que ela deveria ser posta em tal
perigo? Seria diferente se ela tivesse nascido num
palcio e contasse com uma centena de soldados
para proteg-la. Mas ela s tem Moli e Bronco.
Bronco est com elas? Se Breu escolheu
Bronco, porque o julga igual a cem guardas. Mas
muito mais discreto observou o Bobo. Ele
sabia como aquilo me partiria o corao? Trouxe
os copos e o conhaque e me serviu. Consegui
pegar o meu copo. A uma filha. Sua e de Moli
sugeriu, e bebeu. O conhaque ardeu de forma
limpa na minha garganta.
Ento consegui dizer , Breu sempre
soube e ps Bronco para guard-la. Mesmo antes
de eu saber, ele j sabia. Por que me sentia
como se tivessem me roubado alguma coisa?
Suspeito que sim, mas no tenho certeza.
O Bobo fez uma pausa, como se se perguntasse
sobre a sensatez de me contar. Ento o vi deixar de
lado a reserva. Tenho juntado as peas,
contando o tempo que passou. Acho que Pacincia
suspeitava. Acho que foi por isso que ela comeou
a mandar Moli cuidar de Bronco quando sua perna
foi ferida. Ele no precisava de tantos cuidados, e
sabia disso to bem como Pacincia. Mas Bronco
um bom ouvinte, principalmente por falar to
pouco. Moli precisaria de algum com quem falar,
talvez algum que j tivesse criado um bastardo.
Naquele dia em que todos ns estvamos no quarto
dele voc tinha me mandado l, para ele ver o
que podia fazer pelo meu ombro? No dia em que
voc trancou Majestoso fora dos aposentos de
Sagaz para proteg-lo Por um momento
pareceu capturado naquela recordao. Ento se
recuperou. Quando eu subi a escada que levava
ao sto de Bronco, ouvi-os discutindo. Bem, ouvi
Moli discutindo, e Bronco se calando, que a sua
maneira mais forte de discutir. Assim, fiquei
escuta admitiu com franqueza. Mas no ouvi
grande coisa. Ela estava insistindo para que ele
lhe arranjasse uma erva especial qualquer. Ele no
queria. Por fim, ele prometeu que no diria a
ningum, e pediu que ela pensasse bem e fizesse o
que quisesse fazer, no o que pensasse que era
mais sensato. Depois no disseram mais nada,
ento entrei. Ela pediu licena e foi embora. Mais
tarde, voc chegou e disse que ela o havia
deixado. Fez uma pausa. Na verdade,
pensando bem, eu demonstrei um raciocnio to
lento como voc, por no ter deduzido tudo s com
base nisso.
Obrigado disse-lhe com secura.
De nada. Embora eu admita que naquele dia
tnhamos muito na cabea.
Eu daria qualquer coisa para ser capaz de
voltar atrs no tempo e dizer a ela que a nossa
filha seria a coisa mais importante do mundo para
mim. Mais importante do que o rei ou o pas.
Ah. Ento voc teria deixado Torre do Cervo
nesse dia, para segui-la e proteg-la. O Bobo
ergueu uma sobrancelha sarcstica para mim.
Passado um momento, eu disse:
No podia. As palavras me sufocaram e
as empurrei para baixo com conhaque.
Eu sei que no podia. Eu compreendo. Veja
bem, ningum pode evitar o destino. Pelo menos
enquanto se est encurralado nos arreios do tempo.
E disse num tom mais suave nenhuma
criana pode evitar o futuro que o destino decreta.
Nem um bobo, nem um bastardo. Nem a filha de
um bastardo.
Um arrepio percorreu a minha espinha. Apesar
de toda a minha descrena, tive medo.
Est dizendo que sabe alguma coisa sobre o
futuro dela?
Ele suspirou e assentiu. Depois sorriu e sacudiu
a cabea.
assim que as coisas so, para mim. Sei
algo sobre um herdeiro Visionrio. Se esse
herdeiro for ela, ento no h dvida de que, daqui
a anos, lerei alguma antiga profecia e direi: Ah,
sim, aqui est, foi previsto como as coisas
aconteceriam. Ningum compreende realmente
uma profecia at que ela se concretize. bastante
semelhante a uma ferradura. O ferreiro lhe mostra
um pedao de ferro e voc diz que nunca servir.
Porm, depois de passar pelo fogo e ser martelada
e limada, ali est, ajustando-se perfeitamente ao
casco do seu cavalo como nunca se ajustaria a
nenhum outro.
Parece que voc est dizendo que os profetas
moldam as suas profecias verdade depois de os
fatos acontecerem.
Ele inclinou a cabea.
E um bom profeta, como um bom ferreiro,
mostra a voc que ela se ajusta perfeitamente.
Tirou o copo vazio da minha mo. Voc devia
estar dormindo, sabia? Amanh a curandeira vai
tirar a ponta de flecha das suas costas. Voc
precisar das suas foras.
Assenti, e de repente percebi que os meus olhos
estavam pesados.
Breu agarrou meus pulsos e os puxou firmemente
para baixo. Meu peito e meu rosto se comprimiram
contra o duro banco de madeira. O Bobo sentou-se
em cima das minhas pernas e prendeu o meu
quadril com o seu peso inclinado. At Panela
estava com as mos nos meus ombros nus,
empurrando-me para baixo contra o banco slido.
Senti-me como um porco amarrado para o abate.
Esporana estava de p, com bandagens de linho e
uma bacia de gua quente. Quando Breu puxou
com fora as minhas mos para baixo, senti como
se o meu corpo inteiro pudesse se rasgar pelo
ferimento apodrecido que tinha nas costas. A
curandeira agachou-se ao meu lado. Vi de relance
as tenazes que ela tinha na mo. Ferro negro.
Provavelmente trazido do barraco do ferreiro.
Prontos? perguntou ela.
No resmunguei. Ignoraram-me. No era
comigo que ela estava falando. Passara a manh
inteira trabalhando em mim como se eu fosse um
brinquedo quebrado, cutucando e fazendo os
fluidos nauseabundos de infeco sarem das
minhas costas enquanto eu me contorcia e
murmurava pragas. Todos haviam ignorado as
minhas imprecaes, exceto o Bobo, que sugerira
melhoramentos para elas. Ele j era o mesmo de
novo. Persuadira Olhos-de-Noite a sair. Eu podia
sentir o lobo andando de um lado para o outro
perto da porta. Tentei lhe transmitir uma ideia do
que seria feito. Eu lhe arrancara espinhos
suficientes durante o tempo que passamos juntos
para que ele tivesse alguma noo sobre dor
necessria. Mesmo assim, ele partilhava do meu
terror.
V em frente disse Breu curandeira. A
cabea dele estava junto minha, e a sua barba
arranhava a minha bochecha barbeada. Aguente
firme, meu garoto suspirou para dentro do meu
ouvido. As mandbulas frias da tenaz fizeram
presso contra a minha carne inflamada.
No arqueje. Fique parado disse-me a
curandeira com severidade. Tentei. Parecia que
ela mergulhava a tenaz nas minhas costas em busca
de algo para agarrar. Depois de uma eternidade de
sondagem, a curandeira disse: Segurem-no.
Senti as mandbulas da tenaz se fechando. Ela
puxou, rasgando a minha espinha e a arrancando
do corpo.
Pelo menos foi o que pareceu. Lembro-me
daquela primeira raspagem de ponta de metal
contra osso, e toda a minha determinao de no
gritar foi esquecida. Expulsei num rugido, juntas, a
dor e a conscincia. Ca mais uma vez naquele
lugar vago que nem o sono, nem a viglia eram
capazes de alcanar. Os meus dias febris o tinham
tornado completamente familiar para mim.
Rio de Talento. Eu estava nele e ele estava em
mim. Apenas a um passo de distncia, eu sempre
estivera a um passo de distncia. Um fim para a
dor e a solido. Rpido e doce. Estava me
esfarrapando nele, desfazendo-me como uma pea
de malha se desfia quando o fio certo puxado.
Toda a minha dor tambm estava se desfazendo.
No. Veracidade o proibiu com firmeza. J para
trs, Fitz. Como se mandasse uma criana pequena
afastar-se do fogo. E eu fui.
Como um mergulhador voltando superfcie,
regressei ao banco duro e s vozes que se
cruzavam por cima de mim. A luz parecia pouco
intensa. Algum exclamou alguma coisa sobre
sangue e gritou por um pano cheio de neve. Senti-o
sendo empurrado contra as minhas costas,
enquanto um trapo vermelho encharcado era
atirado sobre o tapete do Bobo. A mancha
espalhou-se pela l e eu flu com ela. Eu flutuava,
e a sala estava cheia de manchas negras. A
curandeira encontrava-se ocupada junto da lareira.
Tirou outra ferramenta de ferreiro de entre as
chamas. Brilhava, e ela virou-se para olhar para
mim.
Espere! gritei, horrorizado, e me ergui
parcialmente no banco, at que Breu me agarrou
pelos ombros.
Tem de ser feito disse-me ele com dureza
e me segurou com uma fora frrea enquanto a
curandeira se aproximava. A princpio senti
apenas presso quando ela colocou um ferro em
brasa nas minhas costas. Senti o cheiro da minha
prpria carne se queimando e pensei que no me
importava, at que um espasmo de dor me sacudiu
mais violentamente do que o n corredio de um
carrasco. As trevas se ergueram para me arrastar
para baixo.
Enforcado sobre gua e queimado! gritei
em desespero. Um lobo ganiu.
Erguendo-me. Subindo, cada vez mais prximo da
luz. O mergulho fora profundo, as guas mornas e
cheias de sonhos. Saboreei a borda da
conscincia, enchi os pulmes de viglia.
Breu.
mas certamente voc poderia pelo menos
ter me contado que ele estava vivo e tinha vindo
at voc. Eda e El num n, Bobo, quantas vezes
confiei a voc as minhas mais privadas intenes?
Quase tantas quanto as que no confiou
retorquiu o Bobo, spero. Fitz me pediu para
manter em segredo a sua presena aqui. E o
segredo foi mantido, at que a menestrel interferiu.
Que mal podia ter feito se ele tivesse sido deixado
em paz para repousar por completo at que aquela
flecha sasse? Ouviu os delrios dele. Soam para
voc como os de um homem em paz consigo
mesmo?
Breu suspirou.
Mesmo assim. Podia ter me contado. Sabe o
que significaria para mim saber que ele estava
vivo.
Sabe o que significaria para mim saber que
havia uma herdeira Visionrio.
Contei a voc assim que contei rainha!
Sim, mas h quanto tempo voc sabia que ela
existia? Desde que enviou Bronco para vigiar
Moli? Voc sabia que Moli esperava um filho dele
da ltima vez que voc veio nos visitar, e no
entanto nada disse.
Breu respirou fundo com fora, e ento advertiu.
H nomes que preferia que voc no
proferisse, nem mesmo aqui. Nem mesmo rainha
eu entreguei esses nomes. Voc precisa
compreender, Bobo. Quanto mais gente souber,
maior o risco para a criana. Eu nunca teria
revelado a sua existncia se o filho da rainha no
tivesse morrido e no pensssemos que
Veracidade estivesse morto.
Poupe a esperana de manter segredos. Uma
menestrel conhece o nome de Moli; os menestris
no guardam segredos. A sua antipatia por
Esporana transpareceu na voz. Num tom mais frio,
acrescentou: Ento, o que voc realmente
planejava fazer, Breu? Fazer a filha de Fitz se
passar por filha de Veracidade? Roub-la de Moli
e entreg-la rainha, para que a criasse como sua?
A voz do Bobo tomara uma suavidade mortal.
Eu os tempos so difceis e a necessidade
to grande mas roub-la no. Bronco
compreenderia, e acho que ele poderia fazer a
garota compreender. Alm disso, o que ela poder
oferecer criana? Uma fabricante de velas sem
dinheiro, privada do seu ofcio Como poder
cuidar dela? A criana merece algo melhor. Tal
como a me, na verdade, e eu faria o meu melhor
para me assegurar de que ela tambm tivesse as
suas necessidades supridas. Mas o beb no pode
ser deixado com ela. Pense, Bobo. Assim que
outros souberem que o beb da linhagem
Visionrio, ela s poder ficar a salvo no trono, ou
na linha de sucesso ao trono. A mulher d
ouvidos a Bronco. Ele poderia faz-la ver isso.
No tenho assim tanta certeza de que voc
conseguiria fazer com que Bronco visse isso. Ele
entregou uma criana ao dever do rei. Pode no
sentir que fazer isso pela segunda vez seja uma
opo sensata.
s vezes todas as opes so ruins, Bobo, e
mesmo assim um homem tem de optar.
Acho que soltei algum som fraco, pois ambos
vieram rapidamente at mim.
Garoto? chamou Breu com ansiedade.
Garoto, est acordado?
Decidi que estava. Abri uma fenda num olho.
Noite. Luz da lareira e de algumas velas. Breu, o
Bobo e uma garrafa de conhaque. E eu. No sentia
melhoras nas costas. No sentia que tivesse menos
febre. Antes de ter sequer tempo de tentar pedir, o
Bobo levou um copo aos meus lbios. Maldito ch
de casca de salgueiro. Tinha tanta sede que o bebi
todo. O copo que ele ofereceu em seguida era de
caldo de carne, maravilhosamente salgado.
Estou com tanta sede consegui dizer
depois de beber o caldo. Sentia a boca pegajosa
de sede, inchada de sede.
Voc perdeu muito sangue explicou Breu
sem necessidade.
Quer mais caldo? perguntou o Bobo.
Consegui fazer o menor dos acenos. O Bobo
pegou o copo e foi at a lareira. Breu aproximou-
se mais e sussurrou, com uma estranha urgncia.
Fitz. Diga-me uma coisa. Voc me odeia,
garoto?
Por um momento, eu no soube. Mas a ideia de
odiar Breu significava uma perda grande demais
para mim. Pouqussimas pessoas no mundo se
importavam comigo. No podia odiar nenhuma.
Sacudi a cabea, um pouco de nada.
Mas disse lentamente, formando com
cuidado as palavras densas no leve a minha
filha.
No tema disse-me ele com suavidade. A
sua velha mo alisou o meu cabelo para longe do
rosto. Se Veracidade est vivo, no haver
necessidade de fazer isso. Por enquanto, ela est
mais segura onde est. E se o Rei Veracidade
regressar e assumir o trono, ele e Kettricken
arranjaro filhos seus.
Promete? supliquei.
Os seus olhos olharam os meus. O Bobo me
trouxe o caldo e Breu afastou-se para lhe dar
espao. O copo estava mais quente. Foi como a
prpria vida fluindo de novo para dentro de mim.
Quando acabei, consegui falar com mais fora.
Breu disse. Ele andara at a lareira e a
estava fitando. Virou-se para mim quando eu falei.
No prometeu lembrei-lhe.
No concordou ele com gravidade.
No prometi. Os tempos so incertos demais para
essa promessa.
Durante muito tempo, apenas olhei para ele.
Depois de algum tempo, ele deu uma sacudida
minscula com a cabea e afastou o olhar. No
conseguia me olhar nos olhos. Mas no me disse
mentiras. Ento competia a mim.
Voc pode me usar disse-lhe em voz
baixa. E eu vou fazer o melhor que puder para
trazer Veracidade de volta, e tudo o que possa
para lhe devolver o trono. Pode ter a minha morte,
se isso for preciso. Mais do que a morte, pode ter
a minha vida, Breu. Mas no a da minha filha. No
a da minha filha.
Ele me olhou nos olhos e assentiu lentamente.
A recuperao foi coisa lenta e dolorosa. Parecia
que eu devia ter saboreado cada dia passado numa
cama macia, cada garfada de comida, cada
momento de sono em segurana. Mas no foi
assim. A pele queimada pelo frio dos meus dedos
das mos e dos ps se soltava e se prendia em
tudo, e a nova pele que tinha por baixo estava
horrivelmente sensvel. A curandeira vinha todos
os dias cutucar a ferida. Insistia que o ferimento
nas minhas costas tinha de ser mantido aberto e
drenado. Cansei-me das bandagens nauseabundas
que ela levava, e ainda mais dela mexendo no
ferimento para se assegurar de que no fecharia
cedo demais. A mulher me lembrava um corvo em
volta de um animal moribundo, e quando lhe disse
isso um dia, sem tato, ela riu de mim.
Passados uns dias, eu j me movia de novo, mas
no de forma descuidada. Cada passo, cada
estender de mo era coisa cautelosa. Aprendi a
manter os cotovelos junto aos flancos para
diminuir o repuxar dos msculos das costas,
aprendi a caminhar como se equilibrasse um cesto
de ovos na cabea. Mesmo assim eu me cansava
rapidamente, e um passeio enrgico demais podia
trazer a febre de volta durante a noite. Ia
diariamente aos banhos e, embora me ensopar de
gua quente aliviasse o meu corpo, eu no podia
ficar l sequer por um momento sem que me
lembrasse de que fora ali que Majestoso tentara
me afogar, e acol onde vira Bronco ser abatido a
porretadas. Venha at mim, venha at mim,
comeava ento o chamado sedutor na minha
cabea, e a minha mente logo se enchia de
pensamentos e perguntas a respeito de Veracidade.
Isso no conduzia a um estado de esprito pacfico.
Em vez disso, eu me encontrava planejando todos
os detalhes da minha viagem seguinte. Fazia uma
lista mental do equipamento que teria de pedir a
Kettricken e debatia, longa e duramente, a ideia de
levar uma montaria. Por fim, decidi-me contra essa
ideia. No haveria pasto; a minha capacidade para
a crueldade inconsciente desaparecera. No
levaria um cavalo ou um pnei apenas para lhe
causar a morte. Tambm sabia que em breve teria
de pedir autorizao para vasculhar as bibliotecas,
para ver se seria possvel encontrar um precursor
do mapa de Veracidade. Aterrorizava-me procurar
Kettricken, pois ela no me convocara nem uma
vez.
Todos os dias me lembrava dessas coisas, e
todos os dias eu as adiava mais um dia. Por
enquanto, continuava no sendo capaz de
atravessar Jhaampe sem ter de parar para
descansar. Conscientemente, comecei a me forar
a comer mais e a testar os limites das minhas
foras. Era frequente que o Bobo se juntasse a mim
nas minhas caminhadas de fortalecimento. Eu sabia
que ele odiava o frio, mas o seu companheirismo
silencioso me agradava demais para lhe sugerir
que permanecesse aquecido dentro de casa. Ele me
levou uma vez para ver Fuligem, e esse plcido
animal me deu as boas-vindas com tamanho prazer
que dali em diante regressei todos os dias. A sua
barriga estava inchando com o potro de Ruivo;
pariria no incio da primavera. Parecia bastante
saudvel, mas a sua idade me preocupava. Obtive
uma quantidade espantosa de bem-estar com a
suave presena da gua. Erguer os braos para
cuidar dela repuxava o meu ferimento, mas eu o
fazia mesmo assim, e com Ruivo tambm. O
cavalo jovem e espirituoso precisava ser mais
trabalhado do que estava sendo. Fiz o que pude
com ele, e passei cada momento em que o fazia
com saudades de Bronco.
O lobo ia e vinha conforme lhe apetecia.
Juntava-se ao Bobo e a mim nos nossos passeios e
depois entrava na cabana atrs de ns. Era quase
doloroso ver a rapidez com que se adaptava. O
Bobo resmungava sobre as marcas de garras na
porta e os pelos cados nos tapetes, mas eles
gostavam bastante um do outro. Uma marionete de
lobo comeou a aparecer aos poucos de pedaos
de madeira espalhados sobre a mesa de trabalho
do Bobo. Olhos-de-Noite desenvolveu um gosto
por um certo bolo com sementes que tambm era o
preferido do Bobo. O lobo o fitava fixamente
sempre que o Bobo estava comendo, babando
grandes poas de saliva no cho at que o Bobo
cedia e lhe dava um pedao. Eu repreendia os dois
por causa do que os doces podiam fazer aos dentes
e pelagem do lobo e era ignorado por ambos.
Suponho que senti um pouco de cime por causa
da rapidez com que Olhos-de-Noite passara a
confiar no Bobo, at que ele me perguntou um dia
sem rodeios: Por que eu no confiaria em quem
voc confia? Eu no tinha resposta para aquilo.
Ento. Quando foi que voc se tornou
fabricante de brinquedos? perguntei
ociosamente ao Bobo um dia. Eu estava encostado
na sua mesa, observando o modo como os seus
dedos amarravam os membros e o torso de uma
marionete sua armao de pau. O lobo estava
estendido debaixo da mesa, profundamente
adormecido.
Ele encolheu um ombro.
Tornou-se evidente depois que eu cheguei
aqui que a corte do Rei Eyod no era lugar para
um bobo. Soltou um suspiro curto. E eu
tambm no tinha realmente desejo de ser bobo de
algum, exceto do Rei Sagaz. Sendo assim,
procurei alguma outra maneira de ganhar o po.
Uma noite, bastante bbado, perguntei-me o que
sabia fazer melhor. Ora, ser uma marionete,
respondi para mim mesmo. Sacudido pelos fios do
destino e depois atirado para o lado para me
amarrotar em uma pilha. Assim, decidi que no
voltaria a danar s ordens dos fios, mas passaria
a pux-los. No dia seguinte, testei a minha
determinao. Rapidamente descobri um gosto por
isto. Os brinquedos simples com que cresci e
aqueles que vi em Cervo parecem
maravilhosamente estranhos s crianas das
Montanhas. Descobri que precisava lidar pouco
com os adultos, o que me convinha perfeitamente.
As crianas aqui aprendem a caar, pescar, tecer e
colher muito novas, e aquilo que ganham seu. De
modo que fao trocas por aquilo de que preciso.
Descobri que as crianas so muito mais rpidas
para aceitar o que fora do comum. Assumem a
curiosidade, veja bem, em vez de desdenharem do
objeto que a desperta. Seus dedos plidos
deram um n cuidadoso. Ento pegou a sua criao
e a fez danar para mim.
Observei aqueles saltos alegres com um desejo
retroativo de ter possudo uma coisa de madeira
brilhantemente pintada e de arestas bem lixadas
como aquela.
Quero que a minha filha tenha coisas como
essa ouvi-me dizendo em voz alta.
Brinquedos bem feitos e camisas macias de cores
vivas, lindas fitas para o cabelo e bonecas que
possa agarrar.
Ela ter prometeu-me ele com gravidade.
Ela ter.
Os dias lentos passaram. As minhas mos
comearam a ter um aspecto normal de novo e at
conseguiram alguns calos. A curandeira disse que
eu podia ficar sem bandagens nas costas. Comecei
a me sentir irrequieto, mas sabia que ainda no
tinha foras para partir. A minha agitao por sua
vez agitava o Bobo. S percebi o quanto andava
de um lado para o outro quando ele se levantou
uma noite da sua cadeira e empurrou a mesa no
meu caminho, para me obrigar a desviar do rumo
que seguia. Ambos nos rimos, mas isso no
dissipou a tenso subjacente. Comecei a acreditar
que eu destrua a paz onde quer que estivesse.
Panela nos visitava com frequncia e me distraa
com os seus conhecimentos sobre os pergaminhos
que diziam respeito ao Profeta Branco.
Mencionavam um Catalisador com muita
frequncia. s vezes o Bobo era atrado para as
suas discusses. Contudo, era mais frequente que
simplesmente fizesse rudos evasivos enquanto ela
procurava me explicar tudo. Quase sentia saudades
da sua severa taciturnidade. Confesso tambm que,
quanto mais conversvamos, mais me interrogava
sobre o modo como uma mulher de Cervo viera a
vagar to longe da sua terra, para se tornar devota
de uma doutrina distante que um dia a levaria de
volta sua ptria. Porm, a velha Panela revelava-
se quando se esquivava das perguntas astuciosas
que eu lhe fazia.
Esporana tambm aparecia, embora no tantas
vezes quanto Panela, e normalmente o fazia quando
o Bobo estava ausente tratando de suas tarefas.
Eles pareciam no poder ficar na mesma sala sem
arrancarem fascas um do outro. Assim que
consegui andar, comeou a me persuadir a
caminhar com ela l fora, provavelmente para
evitar o Bobo. Suponho que os passeios me faziam
bem, mas no obtinha deles qualquer prazer. J
tivera a minha cota do frio do inverno, e as
conversas dela geralmente faziam com que eu me
sentisse agitado e impelido. Falava com
frequncia da guerra em Cervo, de fragmentos de
notcias escutados de Breu e Kettricken, pois
estava frequentemente com eles. Tocava para eles
noite, o melhor que podia com a mo danificada
e uma harpa emprestada. Vivia no salo principal
da residncia real. Aquele gosto por uma vida de
corte parecia combinar com ela. Estava com
frequncia entusiasmada e animada. A roupa
brilhante do povo da Montanha realava o seu
cabelo e os olhos escuros, enquanto o frio lhe
trazia cor ao rosto. Parecia ter se recuperado de
todos os infortnios, para mais uma vez se mostrar
cheia de vida. At a mo estava sarando bem, e
Breu a ajudara a negociar madeira para fazer uma
nova harpa. Envergonhava-me que o seu otimismo
s me fizesse sentir mais velho, mais fraco e mais
cansado. Uma ou duas horas com ela me
desgastavam como se eu tivesse estado
exercitando uma potra obstinada. Sentia uma
presso constante de sua parte para que
concordasse com ela. Com frequncia eu no
conseguia faz-lo.
Ele me deixa nervosa disse-me ela uma
vez, em uma das suas frequentes crticas ao Bobo.
No a cor; o comportamento. Nunca diz uma
palavra simples ou gentil a ningum, nem sequer s
crianas que vm trocar coisas pelos brinquedos
que faz. J reparou como as provoca e zomba
delas?
Ele gosta delas, e elas gostam dele eu
disse, cansado. No as provoca para ser cruel.
Provoca-as como provoca todo mundo. As
crianas se divertem. No h criana que goste de
ser tratada com paternalismo. A breve
caminhada me cansara mais do que eu queria
admitir. E era entediante constantemente defender
o Bobo de Esporana.
Ela no respondeu. Fiquei ciente de que Olhos-
de-Noite nos seguia. Deslizava do abrigo de um
grupo de rvores para os arbustos carregados de
neve de um jardim. Eu duvidava de que a sua
presena fosse um grande segredo, e ainda assim a
ideia de caminhar abertamente pelas ruas o
deixava inquieto. Era estranhamente reconfortante
saber que ele se encontrava por perto.
Tentei encontrar outro assunto.
No vejo Breu j h alguns dias arrisquei.
Detestava pescar novidades sobre ele. Mas ele
no viera at mim e eu no iria at ele. No o
odiava, mas no conseguia perdo-lo pelos planos
que fizera com a minha filha.
Cantei para ele na noite passada. Ela
sorriu com a recordao. Estava muito
espirituoso. At consegue colocar um sorriso no
rosto de Kettricken. difcil acreditar que viveu
naquele isolamento durante anos. Atrai as pessoas
para si como uma flor atrai abelhas. Tem uma
maneira muito cavalheiresca de deixar que uma
mulher saiba que admirada. E
Breu? A palavra saltou de mim com
incredulidade. Cavalheiresco?
Claro disse ela, com divertimento. Ele
pode ser bastante encantador, quando tem tempo.
Cantei para ele e Kettricken outra noite e ele foi
bastante gracioso nos agradecimentos. Tem uma
lngua de corteso. Sorriu para si mesma, e
pude ver que, o que quer que Breu lhe dissera,
afetara agradavelmente a menestrel. Tentar
imaginar Breu como um encantador de mulheres
exigia que a minha mente se dobrasse numa
direo fora do comum. No consegui imaginar
nada para dizer, e assim a deixei no seu devaneio
agradvel. Passado algum tempo, acrescentou
inesperadamente: Ele no vai conosco, sabia?
Quem? Para onde? No consegui decidir
se a minha febre recente havia me deixado com o
raciocnio lento, ou se a mente da menestrel
saltitava como uma pulga.
Ela deu uma palmadinha reconfortante no meu
brao.
Voc est ficando cansado. melhor
voltarmos. Sempre sei quando voc fica esgotado,
faz as perguntas mais imbecis. Respirou fundo e
regressou ao seu assunto. Breu no ir conosco
em busca de Veracidade. Tem de voltar para
Cervo, para transmitir a mensagem sobre a sua
demanda e encorajar o povo de l. Claro, ir
respeitar os seus desejos e no far qualquer
meno de voc. Dir apenas que a rainha partiu
em busca do rei para lhe restituir o trono.
Fez uma pausa, e tentou dizer com indiferena:
Ele me pediu para providenciar umas
cantigas simples, baseadas nas canes antigas
para que possam ser facilmente aprendidas e
cantadas. Sorriu para mim e vi como estava
satisfeita por Breu ter lhe pedido aquilo. Ele
ir espalh-las pelas tavernas e estalagens da
estrada, e elas desabrocharo como sementes e se
espalharo a partir dali. Canes simples que
digam que Veracidade regressar para pr as
coisas nos eixos e que um herdeiro Visionrio
subir ao trono para unir os Seis Ducados tanto em
vitria como em paz. Ele diz que manter o nimo
do povo, e manter nele a imagem do regresso de
Veracidade, muito importante.
Voltei para trs, abrindo caminho atravs
daquela tagarelice sobre canes e profecias.
Ns, voc disse. Ns quem? E a caminho de
onde?
Ela tirou a luva e colocou rapidamente a mo na
minha testa.
Est febril de novo? Talvez um pouco.
Vamos voltar agora. Enquanto comevamos a
regressar pelo caminho que seguramos atravs
das ruas silenciosas, ela acrescentou
pacientemente. Ns, voc, eu e Kettricken,
vamos em busca de Veracidade. Esqueceu que foi
por isso que voc veio at as Montanhas?
Kettricken diz que o caminho ser rduo. No
assim muito difcil viajar at a cena da batalha.
Mas se Veracidade prosseguiu a partir dali, ento
est em um dos caminhos marcados no velho mapa
que ela tem, que podem j no ser caminhos coisa
nenhuma. evidente que o pai no est
entusiasmado com o projeto dela. Tem a cabea
fixa s em travar a guerra contra Majestoso.
Enquanto voc procura o rei seu esposo, o seu
irmo desleal procura transformar a nossa gente
em seus escravos!, disse-lhe Eyod. Portanto,
temos de juntar as provises que lhe forem dadas
de boa vontade e levar apenas as pessoas que
preferirem acompanh-la em vez de ficar para
enfrentar Majestoso. No h muitas, sem dvida,
e
Quero voltar para a casa do Bobo eu disse
debilmente. Minha cabea girava e meu estmago
estava embrulhado. Esquecera-me de que fora
assim na corte do Rei Sagaz. Por que esperara que
fosse diferente ali? Os planos seriam feitos, as
coisas preparadas e depois me diriam o que
queriam que eu fizesse e eu o faria. No foi
sempre essa a minha funo? Ir a tal e tal lugar e
matar aquele certo homem, um homem que nunca
vira antes, tudo s ordens de outra pessoa? No
sabia por que motivo me chocou tanto de repente
descobrir que todos os seus planos de suma
importncia haviam avanado sem qualquer
contribuio minha, como se eu no passasse de
um cavalo numa cocheira, esperando ser selado,
montado e dirigido para a caada.
Bem, e no era essa a troca que eu oferecera a
Breu?, lembrei a mim mesmo. Que podiam ficar
com a minha vida, se quisessem, mas que
deixassem a minha filha em paz? Por que ficar
surpreso? Por que sequer ficar preocupado? Devia
simplesmente voltar para a casa do Bobo, para
dormir, comer e me fortalecer at ser chamado.
Est bem? perguntou-me de sbito
Esporana com ansiedade. Acho que nunca o
tinha visto to plido.
Estou timo assegurei-lhe num tom seco.
S estava pensando que seria agradvel passar
algum tempo ajudando o Bobo a fazer as
marionetes.
Ela franziu o cenho de novo.
Ainda no compreendo o que voc v nele.
Por que voc no vem viver num quarto perto de
Kettricken e de mim? J no precisa de muitos
cuidados; est na hora de recuperar o lugar que lhe
pertence ao lado da rainha.
Quando a rainha me chamar, irei at ela
respondi, atencioso. Essa ser a hora adequada.
CAPTULO 22

Partida

Breu Tombastrela ocupa uma posio nica na


histria dos Seis Ducados. Embora nunca tenha
sido reconhecido, a sua forte semelhana fsica
com os Visionrio faz com que seja quase certo
que tenha tido uma relao de sangue com a
linhagem real. Seja como for, o fato de ser quem
era no importa tanto quanto aquilo que era.
Houve quem dissesse que foi um espio do Rei
Sagaz durante as dcadas que antecederam as
Guerras dos Navios Vermelhos. Outros ligaram o
seu nome ao da Dama Timo, que era quase com
certeza uma envenenadora e ladra ao servio da
famlia real. Essas crenas nunca podero ser
substanciadas.
O que pde se saber, sem dvida, foi que ele
emergiu para a vida pblica aps a desero de
Torre do Cervo pelo Pretendente, Majestoso
Visionrio. Colocou-se s ordens da Dama
Pacincia. Ela foi capaz de se valer da rede de
pessoas que ele estabelecera por todos os Seis
Ducados, tanto para reunir informaes como
para distribuir recursos para a defesa da linha
costeira. H muitos sinais que sugerem que ele a
princpio procurou permanecer como uma figura
privada e secreta. A sua aparncia nica fez com
que isso se tornasse difcil, e ele acabou
abandonando essa tentativa. Apesar da idade,
tornou-se uma espcie de heri, um velho
arrojado, se preferirem, entrando e saindo de
estalagens e tavernas a qualquer hora, fugindo
dos guardas de Majestoso e provocando-os,
trazendo notcias e transmitindo fundos para a
defesa dos Ducados Costeiros. As suas faanhas
fizeram com que fosse admirado. Pedia sempre
s pessoas dos Seis Ducados para terem nimo e
lhes predizia que o Rei Veracidade e a Rainha
Kettricken regressariam, para erguer de cima
das suas costas o jugo dos impostos e da guerra
sob o qual sofriam. Embora tivessem sido
compostas algumas canes sobre os seus feitos,
as mais precisas pertencem ao ciclo de canes
Contas de Breu Tombastrela, atribudo
menestrel da Rainha Kettricken, Esporana
Cantodave.

A minha memria rebela-se contra recordar


aqueles ltimos dias em Jhaampe. Um desnimo
tomou conta de mim, um desnimo que permanecia
inalterado pela amizade ou pelo conhaque. No
conseguia encontrar energia nem vontade para me
mexer.
Se o destino alguma grande onda que vai me
arrastar e me atirar contra uma parede,
independentemente das escolhas que eu faa, ento
escolho no fazer nada. Que ele faa de mim o que
quiser declarei ao Bobo com pompa certa
noite, ainda que de uma forma um pouco bria. Ele
nada respondeu a isto. Continuou simplesmente a
fixar os feixes de pelos na pelagem da marionete
de lobo. Olhos-de-Noite, acordado, mas
silencioso, estava deitado aos ps do Bobo.
Quando eu bebia, ele protegia a sua mente de mim
e expressava a sua repugnncia me ignorando.
Panela sentava-se ao canto da lareira, costurando e
alternando entre expresses de desapontamento e
desaprovao. Breu encontrava-se sentado numa
cadeira de encosto reto do outro lado da mesa,
minha frente. Tinha diante de si uma xcara de ch
e os seus olhos estavam frios como jade.
Desnecessrio dizer que eu bebia sozinho, pela
terceira noite consecutiva. Estava testando os
limites da teoria de Bronco que dizia que embora
beber nada resolvesse, podia tornar tolervel o
insuportvel. No parecia estar funcionando
comigo. Quanto mais bebia, menos tolervel
parecia a minha situao. E mais intolervel eu me
tornava para os meus amigos.
O dia me trouxera mais do que eu era capaz de
suportar. Breu viera finalmente me visitar, para
dizer que Kettricken queria me ver na manh
seguinte. Afirmei que iria. Com um pouco de
incitamento por parte de Breu, concordei que
estaria apresentvel lavado, barbeado, vestido
com roupa limpa e sbrio. No estava nada dessas
coisas naquele momento. Era uma hora ruim para
eu tentar competir em esprito ou palavras com
Breu, mas o meu discernimento se encontrava em
tal estado que tentei faz-lo. Fiz perguntas
belicosas e acusadoras. Ele as respondeu
calmamente. Sim, suspeitara que Moli esperava
um filho meu, e sim, incentivara Bronco a tornar-
se seu protetor. Bronco j providenciava para que
ela tivesse dinheiro e abrigo; mostrara-se relutante
em dividir a sua morada, mas quando Breu
apontou os perigos que ela e a criana correriam
se mais algum deduzisse as circunstncias do seu
nascimento, Bronco concordara. No, no me
dissera. Por qu? Porque Moli coagira Bronco a
lhe prometer que no me falaria da sua gravidez. A
condio que pusera para proteg-la, como Breu
pedira, fora que Breu tambm respeitasse essa
promessa. A princpio Bronco esperara que eu
desvendasse sozinho o motivo por que Moli
desaparecera. Tambm confidenciara a Breu que
assim que a criana nascesse ele se consideraria
livre da promessa e me contaria, no que ela
estava grvida, mas que eu tinha um filho. Mesmo
no estado em que me encontrava, consegui ver que
aquilo era o mais sorrateiro que Bronco j
conseguira ser. Uma parte de mim gostou de ver
que a amizade que nutria por mim era profunda ao
ponto de lev-lo a distorcer daquela maneira a
promessa feita. Mas quando ele fora me revelar o
nascimento da minha filha, descobrira sinais da
minha morte.
Dirigira-se logo para Cervo, a fim de deixar
uma mensagem com um pedreiro de l, o qual a
passou a outro e assim por diante at que Breu
viera ao encontro de Bronco, nas docas. Ambos
haviam ficado incrdulos.
Bronco no conseguia acreditar que voc
tivesse morrido. Eu no conseguia compreender
por que motivo voc ainda estaria l. Avisei os
meus vigilantes, ao longo de toda a estrada do rio,
pois tinha certeza de que voc no fugiria para
Vilamonte, mas que iria imediatamente para as
Montanhas. Tinha completa certeza de que, apesar
de tudo o que voc havia suportado, o seu corao
era fiel. Foi o que eu disse a Bronco naquela noite:
que devamos deix-lo em paz, para descobrir por
si mesmo onde residia a sua lealdade. Apostara
com Bronco que, deixado entregue a si mesmo,
voc seria como uma flecha disparada de um arco,
voando diretamente para Veracidade. Creio que
foi isso que nos chocou mais. Que voc tivesse
morrido ali, e no na estrada que levava ao seu
rei.
Bem declarei, com a satisfao elaborada
de um bbado , vocs dois estavam errados.
Ambos achavam que me conheciam to bem,
ambos pensavam que haviam fabricado uma
ferramenta to boa que no poderia desafiar as
suas intenes. Mas eu NO morri ali! Nem fui em
busca do meu rei. Fui matar Majestoso. Por mim.
Recostei-me na cadeira e cruzei os braos
sobre o peito. Depois me endireitei de repente por
causa da presso desconfortvel no ferimento em
processo de cura. Por mim! repeti. No
pelo meu rei, por Cervo ou por qualquer um dos
Seis Ducados. Foi por mim que fui mat-lo. Por
mim.
Breu apenas olhou para mim. Porm, vinda do
canto da lareira, onde Panela se balanava na
cadeira, a sua velha voz ergueu-se numa satisfao
complacente.
As Escrituras Brancas dizem: Ele estar
sedento do sangue da sua prpria famlia, e a sua
sede no ser saciada. O Catalisador ansiar em
vo por filhos e por um lar, pois os seus filhos
sero de outros, e os de outros sero seus
Ningum pode me obrigar a cumprir nenhuma
dessas profecias! jurei num urro. Quem as
fez, alis?
Panela continuou a se balanar. Foi o Bobo
quem me respondeu. Falou com brandura, sem
erguer os olhos do seu trabalho.
Fui eu. Na minha infncia, na poca em que
sonhava. Antes de conhec-lo de qualquer lugar,
exceto dos meus sonhos.
Voc est condenado a cumpri-las disse-
me Panela com suavidade.
Bati com o copo na mesa.
Uma ova que cumprirei! gritei. Ningum
gritou ou respondeu. Num terrvel instante de
recordao cristalina, ouvi a voz do pai de Moli,
gritando do seu canto da lareira. Maldita seja,
garota! Moli estremecera, mas o ignorara. Sabia
que no valia a pena discutir com um bbado.
Moli gemi de sbito e botei a cabea nos
braos para chorar.
Passado algum tempo, senti as mos de Breu nos
meus ombros.
Vamos, garoto, isso no leva a nada. V para
a cama. Amanh voc tem de enfrentar a sua
rainha. Havia muito mais pacincia na voz dele
do que eu merecia, e de repente compreendi at
que ponto chegava a minha grosseria.
Esfreguei o rosto na manga e consegui erguer a
cabea. No resisti quando ele me ajudou a ficar
de p e me levou para o catre no canto. Quando me
sentei na beira do catre, disse em voz baixa:
Voc sabia. Sempre soube.
Sabia o qu? perguntou ele num tom
fatigado.
Sabia tudo isso sobre o Catalisador e o
Profeta Branco.
Ele soprou pelo nariz.
Eu no sei nada disso. Sei algumas coisas
sobre o que se escreveu a respeito deles. Lembre-
se de que as coisas estavam relativamente
tranquilas antes do seu pai abdicar. Eu passei
muitos e longos anos, depois de me instalar na
minha torre, em que o meu rei raramente solicitava
meus servios. Tinha muito tempo para ler, e
muitas fontes de pergaminhos. De modo que
encontrei algumas das lendas e escritos
estrangeiros que se referem a um Catalisador e a
um Profeta Branco. Sua voz tornou-se mais
branda, como se ele tivesse se esquecido da ira
contida na minha pergunta.
Foi apenas depois de o Bobo chegar a Torre
do Cervo, e de eu ter descoberto discretamente
que ele nutria um forte interesse por esses escritos,
que o meu interesse foi aguado. Voc mesmo me
disse uma vez que ele havia se referido a voc
como o Catalisador. Ento comecei me
perguntar Mas, na verdade, dou pouco crdito a
todas as profecias.
Deitei-me com cuidado. Eu quase conseguia
dormir de costas de novo. Deitei-me de lado,
descalcei as botas com os ps e puxei um cobertor
sobre mim.
Fitz?
O que ? perguntei a Breu de m vontade.
Kettricken est zangada com voc. No
espere pacincia dela amanh. Mas se lembre de
que ela no s a nossa rainha. uma mulher que
perdeu um filho e foi mantida em suspense a
respeito da morte do marido durante mais de um
ano, que foi corrida do seu pas adotivo, s para
ver os problemas seguirem os seus passos at a
sua terra natal. O pai est compreensivelmente
amargo. Lana um olhar de guerreiro sobre os Seis
Ducados e Majestoso, e no tem tempo para
demandas para encontrar o irmo do seu inimigo,
mesmo se acreditasse que ele estivesse vivo.
Kettricken est s, mais dolorosamente s do que
voc ou eu podemos imaginar. Encontre tolerncia
pela mulher. E respeito pela sua rainha. Fez
uma pausa desconfortvel. Vai precisar de
ambos amanh. No posso ajud-lo muito com ela.
Acho que ele continuou falando depois daquilo,
mas eu tinha deixado de ouvi-lo. O sono me
arrastou depressa para baixo das suas ondas.
Havia se passado algum tempo desde que sonhos
de Talento me incomodaram. No sei se a minha
fraqueza fsica havia finalmente banido os sonhos
de batalha, ou se teria sido a minha guarda
constante contra o crculo de Majestoso que
bloqueara a sua entrada na minha mente. Nessa
noite, a minha breve folga terminou. A fora do
sonho de Talento que me arrancou do meu corpo
era como se uma grande mo tivesse entrado em
mim, tivesse me agarrado pelo corao e arrastado
para fora de mim mesmo. De repente me vi em
outro lugar.
Era uma cidade, no sentido em que as pessoas
viviam l em grande nmero. Mas as pessoas eram
diferentes de quaisquer outras que eu j vira,
tampouco vira tais habitaes. As construes se
erguiam e espiralavam at alturas estonteantes. A
pedra das paredes parecia ter fluido at adotar
aquelas formas. Havia pontes de trao delicado e
jardins que caam em cascata e subiam em
gavinhas pelos lados das estruturas. Havia fontes
que danavam e outras que formavam silenciosas
lagoas. Por toda a parte, pessoas vestidas de cores
brilhantes deslocavam-se pela cidade, numerosas
como formigas.
E, no entanto, tudo estava silencioso e imvel.
Eu sentia o fluxo de gente, o jogo das fontes, o
perfume das flores que se desdobravam nos
jardins. Tudo estava l, mas quando eu virava a
cabea para contemplar, desaparecia. A mente
conseguia detectar o trao delicado da ponte, mas
o olho via apenas os detritos cados, entregues
ferrugem e putrefao. Paredes cobertas de
afrescos haviam sido polidas pelo vento at se
transformarem em tijolos toscamente estucados.
Um virar de cabea transformava uma fonte
saltitante em poeira cheia de ervas daninhas numa
bacia rachada. A multido apressada no mercado
falava apenas com a voz de um vento rpido
carregado de areia que ferroava. Desloquei-me
atravs daquele fantasma de cidade, incorpreo e
perscrutador, incapaz de decifrar a razo de estar
ali ou o que me atraa. No estava claro nem
escuro, no era vero nem inverno. Estou fora do
tempo, pensei, e perguntei a mim mesmo se aquele
seria o derradeiro inferno da filosofia do Bobo, ou
a derradeira liberdade.
Por fim vi, muito minha frente, uma pequena
silhueta que se arrastava por uma das vastas ruas.
A sua cabea estava inclinada contra o vento e
mantinha a barra do manto sobre a boca e o nariz
enquanto caminhava, para se proteger do vento
carregado de areia. No fazia parte da multido
fantasmagrica, mas se deslocava atravs dos
detritos, circundando os locais onde alguma
agitao na terra afundara ou erguera a rua
pavimentada. Soube no instante em que o avistei
que aquele era Veracidade. Soube pela sacudida
de vida que senti no peito, e soube ento que o que
me puxara para ali fora a minscula pedrinha de
Talento de Veracidade que se escondera no
interior da minha conscincia. Tambm senti que o
perigo em que ele estava era extremo. Mas nada vi
que o ameaasse. Ele estava a grande distncia de
mim, visto atravs das sombras brumosas de
edifcios que outrora existiram, velado pelos
fantasmas da multido de um dia de mercado.
Avanava pesadamente e com dificuldade, sozinho
e imune cidade fantasma, e no entanto estava
entrelaado nela. Eu nada vi, mas o perigo erguia-
se sobre ele como a sombra de um gigante.
Corri atrs dele e num piscar de olhos estava ao
seu lado.
Ah cumprimentou-me. Ento finalmente
veio, Fitz. Bem-vindo. No fez uma pausa na
caminhada, nem virou a cabea. No entanto, senti
uma tepidez que foi como se ele tivesse agarrado a
minha mo num cumprimento, e no senti
necessidade de responder. Em vez disso, vi com
os olhos dele a atrao e o perigo.
Um rio flua nossa frente. No era gua. No
era pedra brilhante. Tinha algo de ambas as
coisas, mas no era nenhuma delas. Cortava a
cidade como uma lmina cintilante, deslizando da
montanha fendida atrs de ns e continuando at
desaparecer num rio de gua, mais antigo. Como
uma camada de carvo desnudada por uma mar
cortante, ou um veio de ouro em quartzo, jazia,
exposto, no corpo da terra. Era magia. A mais pura
das magias antigas, inexorvel e inconsciente dos
homens, flua ali. O rio de Talento em que to
tediosamente aprendera a navegar estava para
aquela magia como o aroma do vinho est para o
vinho. Aquilo que eu vislumbrava com os olhos de
Veracidade tinha uma existncia fsica to
concreta quanto a minha. Fui imediatamente
atrado para l como uma mariposa atrada para
a chama de uma vela.
No era apenas a beleza daquela corrente
brilhante. A magia enchia cada um dos sentidos de
Veracidade. O som do seu fluxo era musical, uma
corrente de notas que nos mantinha espera e
escuta, na certeza de que o som estava edificando
alguma coisa. O vento transportava o seu odor,
fugidio e mutvel, um momento um toque de flores
de limoeiro, no seguinte uma espiral fumegante de
especiarias. Eu sentia o seu sabor a cada
inspirao e ansiava por mergulhar nela. Tive
subitamente a certeza de que ela saciaria cada
apetite de que eu j sofrera, no apenas os do
corpo, mas tambm os vagos anseios da alma.
Desejei com ardor que o meu corpo tambm
estivesse l, para poder experiment-la to
completamente como Veracidade.
Veracidade parou, erguendo o rosto. Respirou
fundo o ar carregado de Talento como o nevoeiro
est carregado de umidade. De repente, senti, no
fundo da garganta de Veracidade, o forte sabor
quente e metlico. O anseio que ele sentira pelo
Talento transformou-se de sbito num desejo que
tudo consumia. Estava sedento dele. Quando o
alcanasse, cairia de joelhos e beberia at no
mais poder. Ficaria cheio com toda a conscincia
do mundo, faria parte do todo e se transformaria
no todo. Por fim, conheceria a completude.
Mas o prprio Veracidade deixaria de existir.
Recuei num horror fascinado. No creio que
haja alguma coisa mais assustadora do que
encontrar a verdadeira vontade de autodestruio.
Apesar da atrao que eu mesmo sentia pelo rio, o
encontro desencadeou em mim uma ira. Aquilo no
era digno de Veracidade. Nem o homem, nem o
prncipe que eu conhecera seriam capazes de ato
to covarde. Olhei-o como se nunca o tivesse
visto.
E compreendi quo longo fora o tempo que
passara desde que o vira.
O brilhante negrume dos seus olhos tinha se
transformado em uma escurido baa. O manto que
o vento fazia esvoaar sua volta era um farrapo
rasgado. O couro das suas botas rachara havia
muito tempo, e os pontos das costuras cediam e se
abriam. Os passos que ele dava eram incertos e
irregulares. Mesmo se o vento no o esbofeteasse,
eu duvidava de que o seu andar seria firme. Os
seus lbios estavam plidos e rachados, e a pele
possua um tom acinzentado, como se o prprio
sangue daquele corpo tivesse renunciado a ele.
Houve veres em que ele usara o Talento contra os
Navios Vermelhos a tal ponto que a carne e o
msculo haviam cado do seu corpo, deixando-o
transformado num esqueleto descarnado sem
qualquer energia fsica. Agora era um homem
apenas de energia, de msculos filamentosos
esticados numa estrutura de ossos quase
completamente desprovida de carne. Era a
personificao da determinao fatigada. Apenas a
vontade o mantinha de p e em movimento. Na
direo da corrente mgica.
No sei onde encontrei vontade para resistir a
ela. Talvez fosse por ter feito uma pausa e focado
a minha ateno em Veracidade por um instante e
visto tudo o que o mundo perderia se ele deixasse
de existir como indivduo. Qualquer que fosse a
fonte da minha fora, eu a contrapus dele. Atirei-
me na sua frente, mas ele avanou atravs de mim.
Nada havia ali para mim.
Veracidade, por favor, pare, espere! gritei
e me atirei a ele, uma pena furiosa ao vento. No
tive qualquer efeito nele. Nem sequer fez uma
pausa.
Algum tem de faz-lo disse em voz
baixa. Trs passos depois, acrescentou:
Durante algum tempo, esperei que no fosse eu.
Porm, perguntei-me repetidas vezes: Ento quem
ser? Virou-se para olhar para mim com
aqueles olhos reduzidos a cinzas. Nunca
apareceu nenhuma outra resposta. Tem de ser eu.
Veracidade, pare supliquei, mas ele
continuou caminhando. Sem se apressar, sem se
demorar, mas simplesmente avanando
laboriosamente, da maneira que adota um homem
que mediu a distncia que tem de percorrer e fez
com que as suas foras correspondessem a ela. Ele
tinha a resistncia para chegar l, se caminhasse.
Recuei um pouco, sentindo as minhas foras
diminuindo. Por um momento temi que o perderia
ao ser atrado de volta ao meu corpo adormecido.
Depois percebi um medo igualmente potente.
Ligados durante tanto tempo, e mesmo agora sendo
puxado atrs dele, eu podia me encontrar afogado
ao seu lado naquele veio de magia. Se eu tivesse
um corpo naquele mundo, provavelmente teria me
agarrado a alguma coisa e segurado com fora.
Enquanto suplicava a Veracidade que parasse e me
escutasse, ancorei-me da nica outra forma que
consegui imaginar. Estendi o meu Talento,
agarrando-me s outras pessoas cujas vidas
tocavam na minha: Moli, a minha filha, Breu e o
Bobo, Bronco e Kettricken. No tinha verdadeiras
ligaes de Talento com nenhum deles, de modo
que me agarrei de uma forma tnue, na melhor das
hipteses, diminuda pelo medo frentico de que a
qualquer momento Vontade, Cedoura ou mesmo
Emaranhado pudessem de algum modo tomar
conscincia de mim. Pareceu-me que isso fez
Veracidade diminuir o passo.
Por favor, espere voltei a dizer.
No disse ele calmamente. No
procure me dissuadir, Fitz. o que eu tenho de
fazer.
Nunca pensara em medir a fora do meu Talento
contra a do de Veracidade. Nunca imaginara que
poderamos nos opor um ao outro. Porm, quando
tratei de me bater contra ele, senti-me muito como
uma criana esperneando e gritando enquanto o pai
a levava calmamente para a cama. Veracidade no
apenas ignorou o meu ataque, senti que a sua
vontade e concentrao estavam em outro lugar.
Continuou a avanar implacavelmente para o fluxo
negro, e a minha conscincia foi levada com ele. A
autopreservao deu uma nova fora frentica aos
meus esforos. Procurei empurr-lo para longe,
arrast-lo para trs, mas nada consegui com isso.
No entanto, havia uma terrvel dualidade na
minha luta. Ansiava que ele ganhasse. Se ele se
sobrepusesse a mim e me arrastasse consigo, ento
eu no teria de assumir qualquer responsabilidade.
Podia me abrir quele fluxo de poder e me
extinguir nele. Seria um fim para todos os
tormentos, enfim o trmino. Estava to cansado de
dvidas e culpas, to farto de deveres e dvidas.
Se Veracidade me levasse consigo para dentro
daquele fluxo de Talento, eu podia finalmente
capitular sem vergonha.
Chegou um momento em que paramos na borda
do iridescente fluxo de poder. Eu o fitei com os
olhos de Veracidade. No havia uma margem
gradual. Pelo contrrio, existia uma borda como o
gume de uma faca, onde a terra slida dava lugar a
uma corrente de alteridade. Fitei-a, vendo-a como
uma coisa estranha ao nosso mundo, uma distoro
da sua prpria natureza. Veracidade apoiou-se
pesadamente em um joelho. Fitou aquela
luminescncia negra. No sei se ele hesitava em
dizer adeus ao nosso mundo, ou se fazia uma pausa
para reunir fora de vontade para se destruir. A
minha vontade de resistir estava suspensa. Aquilo
era uma porta para uma diferena que eu no
conseguia sequer imaginar. A fome e a curiosidade
nos puxaram para mais perto da borda.
No momento seguinte, ele mergulhou as mos e
antebraos na magia.
Partilhei com ele daquele sbito conhecimento.
E por isso gritei com ele quando a corrente quente
comeu a carne e o msculo dos seus braos. Juro
que senti a sua lambida cida nos ossos nus dos
dedos, do pulso e do antebrao de Veracidade.
Conheci a sua dor. Mas a dor foi expulsa das suas
feies pelo sorriso extasiado que tomou conta de
seu rosto. A ligao que eu tinha com ele tornou-se
de sbito algo tosco que impedia que eu sentisse
por inteiro o que ele sentia. Ansiei por estar ao seu
lado, por entregar a minha prpria carne quele rio
mgico. Partilhei da sua convico de que podia
pr fim a toda a dor se cedesse e mergulhasse o
resto de si na corrente. To fcil. Tudo o que tinha
de fazer era debruar-se um pouco para frente e
deixar-se ir. Inclinou-se sobre a corrente, apoiado
nos joelhos, com o suor pingando do seu rosto
para ir desaparecer em minsculas baforadas de
vapor quando caa naquele fluxo. Tinha a cabea
baixa, e os ombros moviam-se para cima e para
baixo com a fora dos seus arquejos. Ento me
pediu de repente, numa voz muito baixa:
Puxe-me para trs.
No tive fora suficiente para me opor sua
determinao. Mas quando juntei a minha vontade
sua e juntos combatemos a terrvel atrao do
poder, foi suficiente. Ele conseguiu libertar os
antebraos e as mos daquela coisa, embora
parecesse que os estava arrancando de pedra
slida. Aquilo abriu mo dele com relutncia, e
enquanto ele recuava cambaleando, eu senti
completamente por um momento aquilo que ele
partilhara. Havia a unicidade do mundo fluindo
por ali, como uma nica nota doce ressoando em
pureza para todo o sempre. No era a cano da
humanidade, mas uma cano mais antiga e maior,
de vastos equilbrios e pura essncia. Se
Veracidade tivesse se rendido, ela teria posto fim
a todos os seus tormentos.
No entanto, ele levantou-se com dificuldade e
lhe deu as costas. Levou os antebraos estendidos
sua frente, com as palmas das mos viradas para
cima, os dedos dobrados em taas como se
pedisse alguma coisa. Em forma, no haviam
mudado. Mas agora braos e dedos cintilavam,
prateados, com o poder que penetrara e se fundira
com a sua carne. Quando comeou a afastar-se da
corrente com o mesmo propsito premeditado com
que a abordara, senti como os seus braos e mos
ardiam, como se estivessem queimados pelo frio.
No compreendo disse-lhe.
No quero que compreenda. Ainda no.
Senti nele uma dualidade. O Talento ardia em si
como um fogo de forja de um calor incrvel, mas a
fora que tinha no corpo era apenas suficiente para
mant-lo caminhando. Agora no lhe exigia
qualquer esforo proteger a minha mente da
atrao daquele rio. Contudo, mover o corpo ao
longo do caminho colocava prova tanto a sua
carne como a sua fora de vontade. Fitz. Venha
at mim. Por favor. Daquela vez no era
nenhuma ordem de Talento, nem sequer a ordem de
um prncipe, s a splica que um homem fazia a
outro. No tenho crculo, Fitz. S tenho voc.
Se o crculo que Galeno criou para mim tivesse se
mostrado leal, eu teria mais f em que aquilo que
tenho de fazer possvel. Mas eles no s so
desleais a mim, como procuram me derrotar.
Bicam-me como pssaros em um cervo moribundo.
No creio que os seus ataques possam me destruir,
mas temo que consigam me enfraquecer o
suficiente para que eu no tenha sucesso. Ou, pior
ainda, que consigam me distrair e serem bem-
sucedidos no meu lugar. No podemos permitir
que isso acontea, rapaz. Voc e eu somos tudo o
que se interpe entre eles e o seu triunfo. Voc e
eu. Os Visionrio.
Eu no estava l em qualquer sentido fsico. Mas
ele sorriu para mim e ergueu uma terrvel mo
cintilante para envolver o meu rosto com ela.
Teria a inteno de fazer o que fez? No sei. A
sacudida foi to poderosa como se um guerreiro
tivesse atirado o escudo contra o meu rosto. Mas
no era dor. Era conhecimento. Como a luz do sol
atravessando as nuvens para iluminar uma clareira
na floresta. Tudo se destacou com clareza de
sbito, e eu vi todos os motivos e propsitos
escondidos para o que fazamos, e compreendi
com uma dolorosa pureza de esclarecimento por
que era necessrio que eu seguisse o caminho
diante de mim.
Ento tudo desapareceu, e eu me encolhi para o
interior do negrume. Veracidade desaparecera e
levara consigo a minha compreenso. Mas, por um
breve instante, eu vislumbrara a plenitude. Agora
s eu restava, mas o meu ser era to minsculo que
s podia existir se me segurasse com todo o meu
poder. Portanto, foi o que fiz.
De um mundo de distncia, ouvi Esporana gritar
de medo.
O que h com ele?
E Breu respondeu, brusco:
s um ataque, como os que tem de vez em
quando. A cabea, Bobo, segure a cabea dele,
seno ele vai transformar o crebro em pur.
distncia, senti mos me agarrando e restringindo
meus movimentos. Entreguei-me aos seus cuidados
e me afundei na escurido. Voltei a mim, por um
momento, algum tempo depois. Pouco me lembro
disso. O Bobo ergueu os meus ombros e equilibrou
a minha cabea para que eu pudesse beber de um
copo que um Breu preocupado me levava aos
lbios. A amargura familiar do casco-de-elfo fez
com que eu franzisse a boca. Obtive um vislumbre
de Panela de p por cima de mim, com os lbios
dispostos numa apertada linha de desaprovao.
Esporana estava mais afastada, com os olhos
enormes como os de um animal encurralado, sem
se dignar a me tocar. Isto deve traz-lo de volta
ouvi Breu dizer enquanto me afundava num
sono mais profundo.
Na manh seguinte, acordei cedo apesar da
cabea latejante e fui para os banhos. Esgueirei-
me para o exterior to silenciosamente que o Bobo
no acordou, mas Olhos-de-Noite levantou-se e
escapuliu comigo.
Para onde foi ontem noite?, perguntou, mas eu
no tinha resposta para lhe dar. Ele percebeu
minha relutncia em pensar nisso. Agora vou
caar, informou-me, seco. Aconselho voc a s
beber gua depois disso. Eu assenti humildemente
e ele me deixou porta da casa de banhos.
L dentro encontrei o fedor mineral da gua
quente que saa borbulhando do interior da terra. O
povo da Montanha a armazenava em grandes
tanques e a canalizava at outras banheiras para
que as pessoas pudessem escolher o calor e a
profundidade que desejassem. Esfreguei-me em
uma banheira, ento submergi na gua mais quente
que consegui aguentar e tentei no me lembrar da
queimadura de Talento nos antebraos de
Veracidade. Emergi vermelho como um caranguejo
fervido. Na extremidade fria da cabana de banhos
havia vrios espelhos pendurados da parede.
Tentei no ver o meu prprio rosto enquanto me
barbeava. Lembrava-me com muita nitidez o de
Veracidade. Um pouco da magreza havia partido
na ltima semana, mas a madeixa branca sobre a
testa estava de volta e via-se ainda com mais
clareza quando prendi o cabelo num rabo de
cavalo de guerreiro. No teria me surpreendido
ver o sinal da mo de Veracidade no meu rosto, ou
encontrar a cicatriz erradicada e o nariz
endireitado, tamanho fora o poder daquele toque.
Mas a cicatriz que Majestoso criara no meu rosto
destacava-se, plida, contra a pele avermelhada
pelo vapor. Nada melhorara o nariz quebrado. No
havia absolutamente nenhum sinal exterior do meu
encontro da noite anterior. Minha mente regressou
diversas vezes quele momento, quele toque do
mais puro poder. Esforcei-me para record-lo e
quase consegui. Porm, a absoluta experincia que
nele havia, como a dor ou o prazer, no podia ser
recordada por completo, mas apenas como uma
memria plida. Sabia que experimentara algo de
extraordinrio. Os prazeres do uso do Talento,
contra os quais todos os utilizadores so
advertidos, eram como uma minscula brasa em
comparao com a grande fogueira do saber, do
sentir e do ser que partilhara brevemente na noite
anterior.
Aquilo me mudara. A ira que eu andara nutrindo
contra Kettricken e Breu foi esvicerada. Ainda
conseguia encontrar a emoo, mas no era capaz
de recuper-la com fora. Por um breve momento,
vira no s a minha filha, mas a situao inteira de
todos os pontos de vista possveis. No havia
malcia naquela inteno, nem sequer egosmo.
Eles acreditavam na moralidade daquilo que
faziam. Eu no. Mas eu j no podia negar por
inteiro o sentido do que procuravam. Isso me
deixou me sentindo sem alma. Eles queriam tirar a
filha de Moli e de mim. Eu era capaz de odiar o
que faziam, mas no conseguia focar neles essa
ira.
Sacudi a cabea, trazendo-me de volta ao
presente. Olhei para mim no espelho, perguntando-
me como Kettricken me veria. Veria ainda o jovem
que seguira os passos de Veracidade e to
frequentemente a servira na corte? Ou olharia para
o meu rosto marcado e pensaria que no me
conhecia, que o Fitz que conhecera desaparecera?
Bem, quela altura ela j sabia como eu ganhara as
cicatrizes. A minha rainha no devia ficar
surpresa. Eu iria deix-la julgar quem estava por
trs daquelas marcas.
Controlei os nervos, e ento virei as costas ao
espelho. Olhei por cima do ombro. O centro do
ferimento que tinha nas costas lembrava-me uma
estrela-do-mar vermelha e afundada na minha
carne. Em volta dela, a pele estava apertada e
brilhante. Flexionei os ombros e vi a pele repuxar
a cicatriz. Estendi o brao da espada e senti um
minsculo puxo de resistncia que havia ali.
Bem, no adiantava me preocupar com isso. Vesti
a camisa.
Regressei cabana do Bobo para vestir roupas
limpas e descobri, para minha surpresa, que ele
estava vestido e pronto para me acompanhar.
Havia roupas estendidas no meu catre: uma camisa
branca de mangas largas, de uma l quente e suave,
e umas calas escuras de um tecido mais pesado
de l. Havia um casaco curto e escuro que
combinava com as calas. O Bobo me disse que as
roupas foram deixadas por Breu. Era tudo muito
simples e despretensioso.
Isso lhe cai bem observou o Bobo. Ele
estava vestido de uma forma muito semelhante
que usava todos os dias, com um manto de l, mas
este era azul-escuro com bordados nas mangas e
na bainha. Assemelhava-se mais ao que eu vira a
gente da Montanha usar. Acentuava muito mais a
sua palidez do que a branca, e tornava mais
evidente aos meus olhos o tom ligeiramente
amarelado que a sua pele, olhos e cabelo estavam
comeando a mostrar. O seu cabelo era to fino
como sempre fora. Deixado a si mesmo, ainda
parecia flutuar livremente em volta do seu rosto,
mas hoje ele o amarrara atrs da cabea.
No sabia que Kettricken havia convocado
voc observei, ao que ele respondeu
sombriamente: Mais uma razo para que me
apresente. Breu veio ver como voc estava hoje de
manh e ficou preocupado por no encontr-lo
aqui. Acho que ele tem um certo receio de que
voc tenha fugido de novo com o lobo. Mas caso
no o tivesse feito, deixou uma mensagem para
voc. Com exceo daqueles que estiveram nesta
cabana, no foi dito a ningum em Jhaampe o seu
nome verdadeiro. Por mais que lhe surpreenda que
a menestrel teve discrio suficiente para isso.
Nem mesmo a curandeira sabe quem curou.
Lembre-se, voc Tom, o pastor, at que a Rainha
Kettricken sinta que possa lhe falar com mais
clareza. Compreende?
Suspirei. Compreendia bem demais.
Nunca soube que Jhaampe era palco de
intrigas.
Ele deu uma gargalhada.
Voc s fez uma breve visita cidade antes
disto. Acredite, Jhaampe gera intrigas to
rebuscadas quanto as de Torre do Cervo. Como
estrangeiros aqui, seremos sensatos se evitarmos o
mximo que pudermos sermos enredados nelas.
Exceto naquelas que trazemos conosco
disse-lhe, e ele sorriu amargamente enquanto
assentia.
O dia estava luminoso e fresco. O cu que
espreitava por cima das nossas cabeas, atravs
dos galhos escuros das sempre-vivas, era de um
azul infinito. Uma pequena brisa soprava ao nosso
lado, sacudindo cristais secos de neve ao longo
dos topos congelados dos montes de neve. A neve
seca guinchava sob as nossas botas e o frio
beijava rudemente as minhas bochechas recm-
barbeadas. Ouvi os gritos de crianas brincando,
vindos de mais adiante, na cidade. Olhos-de-Noite
empinou as orelhas ao ouvi-los, mas continuou a
nos seguir. As vozes fracas distncia me
lembravam os gritos de aves marinhas, e de
repente senti uma saudade intensa das costas de
Cervo.
Ontem noite voc teve um ataque disse o
Bobo em voz baixa. No era bem uma pergunta.
Eu sei eu disse com brevidade.
Panela pareceu muito aflita com ele.
Interrogou Breu com grande intensidade sobre as
ervas que ele preparou para voc. E quando elas
no o despertaram como ele dissera que
despertariam, ela foi-se enfiar no seu canto. Ficou
sentada l a maior parte da noite, costurando com
rudo e o olhando com desaprovao. Foi um
alvio para mim quando finalmente todos foram
embora.
Tive curiosidade de saber se Esporana teria
ficado, mas no perguntei. Nem sequer queria
saber por que motivo isso me importava.
Quem Panela? perguntou o Bobo de
repente.
Quem Panela? perguntei, surpreso.
Creio que acabei de dizer isso.
Panela De repente me pareceu
estranho que eu soubesse to pouco sobre algum
com quem viajara durante tanto tempo. Acho
que ela cresceu em Cervo. E depois viajou, e
estudou pergaminhos e profecias, e regressou em
busca do Profeta Branco. Encolhi os ombros
diante da escassez do meu conhecimento.
Diga-me. Voc a acha portentosa?
O qu?
No sente que h alguma coisa nela, alguma
coisa que Sacudiu a cabea, zangado. Era a
primeira vez que eu via o Bobo em busca de
palavras. s vezes, sinto que ela
significativa. Que est entrelaada conosco. Outras
vezes, parece no passar de uma velha abelhuda
com uma infeliz falta de gosto na escolha de
companhias.
Refere-se a mim ri.
No. Refiro-me quela menestrel intrometida.
Por que voc e Esporana antipatizam tanto
um com o outro? perguntei num tom cansado.
No antipatia, meu caro Fitzy. De minha
parte, desinteresse. Infelizmente, ela no
consegue conceber um homem que a olha sem
interesse de se deitar com ela. Toma a minha
simples rejeio como um insulto, e procura
transform-la em alguma carncia ou falha em
mim. Entretanto, eu me ofendo com a atitude
proprietria que ela tem com relao a voc. Ela
no tem nenhum afeto real por voc, voc sabe,
apenas por poder dizer que conhece FitzCavalaria.
Fiquei em silncio, temendo que o que ele
dissera fosse verdade. E assim chegamos ao
palcio de Jhaampe. Era to diferente de Torre do
Cervo quanto eu podia imaginar. Ouvi dizer que as
habitaes de Jhaampe devem as suas origens s
tendas em forma de cpula que algumas das tribos
nmades ainda usam. As habitaes menores ainda
eram suficientemente semelhantes a tendas para
que no me surpreendessem como o palcio
continuava a surpreender. A rvore-viva que era o
seu mastro central erguia-se imensa acima de ns.
Outras rvores secundrias tinham sido
pacientemente contorcidas ao longo de anos para
fornecer suporte s paredes. Quando aquela
estrutura viva fora estabelecida, entranados de
pano de casca de rvore haviam sido
pacientemente dispostos com graciosidade sobre
ela para formar a base das paredes suavemente
curvas. Estucadas com uma espcie de argila, e
depois pintadas de cores brilhantes, as casas
sempre me lembrariam de botes de tulipa ou
chapus de cogumelos. Apesar do seu grande
tamanho, o palcio parecia orgnico, como se
tivesse brotado do rico solo da floresta antiga que
o abrigava.
O tamanho transformava-o em um palcio. No
havia mais sinais exteriores, no havia bandeiras,
no havia guardas reais flanqueando as portas.
Ningum procurou barrar a nossa entrada. O Bobo
abriu as portas esculpidas e com armao de
madeira de uma entrada lateral, e entramos. Segui-
o enquanto ele avanava por um labirinto de
aposentos independentes. Outras salas situavam-se
em plataformas acima de ns, s quais se chegava
por meio de escadas ou, para as mais grandiosas,
escadarias de madeira. As paredes dos aposentos
eram pouco consistentes, com algumas salas
temporrias que no passavam de entranados de
pano de casca de rvore estendidos sobre
armaes. O interior do palcio era apenas
ligeiramente mais quente do que a floresta que se
estendia no exterior. Os aposentos individuais
eram aquecidos no inverno por braseiros
independentes.
Segui o Bobo at um aposento, cujas paredes
exteriores estavam decoradas com delicadas
ilustraes de aves aquticas. Aquela era uma sala
mais permanente, com portas deslizantes de
madeira tambm esculpidas com pssaros.
Consegui ouvir as notas da harpa de Esporana
vindas l de dentro e o murmrio de vozes baixas.
O Bobo bateu na porta, esperou um momento e
depois a abriu para nos deixar entrar. Kettricken
encontrava-se l dentro com a amiga do Bobo,
Joffron, e vrias outras pessoas que eu no
reconheci. Esporana encontrava-se sentada num
banco a um lado, tocando suavemente enquanto
Kettricken e os outros bordavam uma colcha numa
moldura que quase enchia a sala. Um brilhante
jardim de flores estava sendo criado em cima da
colcha. Breu estava sentado no muito longe de
Esporana. Vestia uma camisa branca e calas
escuras com um longo colete de l, elegantemente
bordado, por cima da camisa. Tinha o cabelo
puxado para trs num rabo de cavalo grisalho de
guerreiro, e ostentava o smbolo do cervo na faixa
de couro que cingia a testa. Parecia dcadas mais
novo do que parecera em Torre do Cervo. Eles
conversavam em vozes mais baixas do que a
msica.
Kettricken ergueu os olhos, de agulha na mo, e
nos saudou calmamente. Apresentou-me aos outros
como Tom e perguntou educadamente se eu estava
me recuperando bem do meu ferimento. Disse-lhe
que sim, e ela pediu que eu me sentasse e
descansasse por um momento. O Bobo deu a volta
na colcha, elogiou Joffron pela qualidade dos seus
pontos e, quando ela o convidou, ocupou um lugar
ao seu lado. Pegou uma agulha e linha, enfiou a
linha pelo buraco da agulha e comeou a
acrescentar borboletas de sua inveno em um
canto da colcha, enquanto ele e Joffron
conversavam em voz baixa sobre jardins que havia
conhecido. Parecia muito vontade. Eu me senti
perdido, ali sentado sem ter nada para fazer numa
sala cheia de gente calmamente ocupada. Esperei
que Kettricken falasse comigo, mas ela prosseguiu
com o seu trabalho. Os olhos de Esporana
encontraram-se com os meus e ela sorriu, mas
rigidamente. Breu evitou o meu olhar, olhando
para alm de mim como se no nos
conhecssemos.
Havia conversas na sala, mas eram baixas e
intermitentes, normalmente pedidos para que uma
meada de linha fosse passada a algum, ou
comentrios sobre o trabalho uns dos outros.
Esporana tocava as velhas e familiares baladas de
Cervo, mas sem letra. Ningum falou comigo ou
prestou a mnima ateno em mim. Esperei.
Passado algum tempo, comecei a me perguntar
se aquilo seria uma forma sutil de punio. Tentei
permanecer relaxado, mas a tenso aumentava
repetidamente em mim. Com intervalos de alguns
minutos, ocorria-me descerrar os maxilares e
descontrair os ombros. Precisei de algum tempo
para ver uma ansiedade semelhante em Kettricken.
Eu passara muitas horas servindo a minha senhora
em Torre do Cervo quando ela chegara corte.
Vira-a letrgica na costura, ou cheia de vida no
jardim, mas agora costurava furiosamente, como se
o destino dos Seis Ducados dependesse de ela
completar aquela colcha. Estava mais magra do
que eu me lembrava, com os ossos e planos do
rosto mais claramente visveis. O cabelo, um ano
depois de t-lo cortado em luto por Veracidade,
ainda estava curto demais para ser bem preso. As
suas plidas madeixas caam constantemente para
frente. Havia rugas no seu rosto, em volta dos
olhos e da boca, e era frequente morder os lbios,
algo que eu nunca a vira fazer antes.
A manh pareceu arrastar-se, mas por fim um
dos jovens endireitou-se, ento se espreguiou e
declarou que os seus olhos estavam ficando
cansados demais para trabalhar mais hoje.
Perguntou mulher sentada ao seu lado se gostaria
de ir caar com ele naquele dia, e ela prontamente
concordou. Como se aquilo fosse algum tipo de
sinal, os outros comearam a se levantar e
espreguiar e a despedirem-se de Kettricken.
Fiquei espantado pela familiaridade que
mostravam com ela, at me lembrar de que ali ela
no era vista como rainha, mas como eventual
Sacrifcio pelas Montanhas. O seu papel entre a
sua gente nunca seria visto como o de uma
governante, mas como guia e coordenadora. O pai,
o Rei Eyod, era conhecido entre o seu povo como
o Sacrifcio, e esperava-se dele que estivesse
sempre altruisticamente disponvel para ajudar a
sua gente de qualquer modo que ela pudesse
requerer. Era uma posio ao mesmo tempo menos
rgia e mais amada do que a da realeza de Cervo.
Perguntei-me indolentemente se no poderia ter
sido melhor para Veracidade se tivesse vindo at
ali e sido o consorte de Kettricken.
FitzCavalaria.
Ergui o olhar diante da ordem de Kettricken. S
ela, Esporana, Breu e o Bobo permaneciam na
sala. Quase olhei para Breu em busca de
orientao. Mas os seus olhos haviam me excludo
antes. Senti que estava por conta prpria ali. O
tom de voz de Kettricken transformava aquilo
numa entrevista formal. Empertiguei-me, e ento
consegui fazer uma mesura bastante rgida.
Minha rainha, a senhora me convocou.
Explique-se.
O vento que soprava l fora era mais quente do
que a voz dela. Olhei de relance para os seus
olhos. Gelo azul. Abaixei o olhar e respirei fundo.
Devo apresentar um relatrio, minha rainha?
Se isso explicar os seus fracassos, sim.
Aquilo me sobressaltou. Os meus olhos voaram
para os dela, mas embora os nossos olhares
tivessem se cruzado, no houve um encontro. Toda
a menina em Kettricken fora queimada, da mesma
forma que as impurezas so expulsas do minrio
de ferro em uma fundio, atravs do fogo e de
marteladas. Com ela parecia terem desaparecido
tambm quaisquer sentimentos que ela tivesse
nutrido pelo sobrinho bastardo do marido.
Sentava-se na minha frente como governante, no
como amiga. Eu no esperara sentir to
agudamente essa perda.
Apesar do meu discernimento, permiti que o
gelo penetrasse na minha voz.
Irei me submeter opinio da minha rainha
quanto a isso afirmei.
Ela no teve misericrdia. Obrigou-me a
comear, no com a minha morte, mas dias antes,
quando comeramos a planejar tirar secretamente
o Rei Sagaz de Torre do Cervo e do alcance de
Majestoso. De p, na sua frente, tive de admitir
que os Duques Costeiros haviam me abordado com
a proposta de me reconhecerem como Prncipe
Herdeiro no lugar de Majestoso. Pior, tive de lhe
dizer que, embora tivesse recusado essa proposta,
prometera me aliar a eles, assumindo o comando
do Castelo de Torre do Cervo e a proteo da
costa de Cervo. Breu me avisara uma vez que
aquilo se aproximava tanto de traio que no
fazia diferena. Mas eu estava mortalmente
cansado de todos os meus segredos, e desvendei-
os implacavelmente. Desejei mais de uma vez que
Esporana no estivesse na sala, pois eu temia
ouvir as minhas prprias palavras transformadas
numa cano denunciadora. Contudo, se a minha
rainha a considerava digna de confiana, no me
cabia question-lo.
De modo que l continuei, ao longo do fatigado
rastro dos dias. Pela primeira vez, ela me ouviu
contar o modo como o Rei Sagaz morrera nos
meus braos, e como eu localizara e matara Serena
e Justino no Grande Salo, diante de todos.
Quando cheguei aos dias passados na masmorra de
Majestoso, ela no teve piedade de mim.
Ele mandou me espancar e me deixar
passando fome, e eu teria perecido l se no
tivesse simulado minha morte disse. No foi o
suficiente para ela.
Ningum, nem mesmo Bronco, conhecera um
relato completo desses dias. Preparei-me e me
lancei a ele. Passado algum tempo, a minha voz
comeou a tremer. Vacilei na narrao. Ento
olhei para alm dela, para a parede, respirei fundo
e prossegui. Olhei-a de relance uma vez e a vi
branca como gelo. Parei de pensar nos
acontecimentos que estavam por trs das minhas
palavras. Ouvi a minha prpria voz relatando
desapaixonadamente tudo o que acontecera. Ouvi
Kettricken prender a respirao quando falei sobre
contactar Veracidade pelo Talento a partir da
minha cela. Fora isso, na sala no havia som
algum. Os meus olhos voltaram-se uma vez para
Breu. Encontrei-o sentado, mortalmente imvel,
com maxilar cerrado como se estivesse suportando
algum tormento prprio.
Forjei o meu caminho atravs da histria,
narrando sem julgamentos a minha prpria
ressurreio por Bronco e Breu, a magia da Manha
que a tornara possvel e os dias que haviam se
seguido. Falei da nossa separao irritada, contei
em detalhes as minhas viagens, os momentos em
que conseguira sentir Veracidade e as breves
unies de que partilhramos, o meu atentado contra
a vida de Majestoso e at o modo como
Veracidade implantara involuntariamente na minha
alma a sua ordem de ir at ele. E prossegui,
prossegui, com minha voz ficando mais rouca
medida que a garganta e a boca secavam com o
relato. No fiz pausas, nem descansei at ter
terminado de lhe contar a cambaleante viagem
final at Jhaampe. E quando a histria completa
dos meus dias lhe foi finalmente contada, continuei
de p, esvaziado e cansado. H quem diga que
existe alvio na partilha de preocupaes e dores.
Para mim, no houve catarse, apenas um
desenterrar de cadveres apodrecidos de
memrias, um desnudar de ferimentos ainda em
supurao. Aps um perodo de silncio, encontrei
a crueldade para perguntar:
O meu relato desculpa os meus fracassos,
minha rainha?
Porm, se pensara dilacer-la, tambm nisso
fracassei.
No mencionou a sua filha, FitzCavalaria.
Era verdade. No mencionara Moli e a criana.
O medo me atravessou como uma lmina fria.
No pensara nela como relevante ao
relatrio.
evidente que ela disse a Rainha
Kettricken, implacvel. Forcei-me a olh-la. Ela
estava com as mos apertadas na sua frente.
Tremeram, ela sentiu algum remorso por aquilo
que disse em seguida? No sei dizer. Dada a
sua linhagem, ela muito mais do que relevante
a esta discusso. Idealmente, ela devia estar aqui,
onde poderamos garantir um certo grau de
segurana herdeira Visionrio.
Impus calma minha voz.
Minha rainha, a senhora est enganada
cham-la assim. Nem eu, nem ela, temos alguma
pretenso legtima ao trono. Ambos somos
ilegtimos.
Kettricken estava sacudindo a cabea.
No consideramos o que existe ou deixa de
existir entre voc e a me dela. Consideramos
apenas a sua linhagem de sangue.
Independentemente do que voc possa pretender
para ela, a sua linhagem ir reclam-la. Eu no
tenho filhos. At ouvi-la dizer aquilo em voz
alta, eu no tinha percebido a profundidade da sua
dor. Alguns momentos antes, julgara-a desprovida
de corao. Agora perguntava a mim mesmo se
ainda estaria completamente s. Tal era a dor e o
desespero que aquela frase transmitia. Ela forou-
se a prosseguir. Precisa haver um herdeiro para
o trono Visionrio. Breu me avisou de que eu,
sozinha, no poderei juntar o povo para que se
protejam. Ainda sou estrangeira demais aos seus
olhos. Mas independentemente de como me vejam,
continuo sendo sua rainha. Tenho um dever a
cumprir. Preciso encontrar uma maneira de unir os
Seis Ducados e repelir os invasores das nossas
costas. Para faz-lo, eles precisam ter um lder. Eu
pensara em oferecer voc, mas Breu disse que eles
tambm no o aceitaro. Aquela questo da sua
suposta morte e uso da magia dos animais um
obstculo grande demais. Assim sendo, resta
apenas a sua filha na linhagem Visionrio.
Majestoso mostrou-se desleal com o seu prprio
sangue. Isso quer dizer que ela tem de ser
Sacrifcio pelo nosso povo. Por ela, ele se
juntaro.
Atrevi-me a falar.
Ela no passa de uma beb, minha rainha.
Como poder
Ela um smbolo. Tudo o que as pessoas
exigiro dela, por ora, que exista. Mais tarde,
ser verdadeiramente sua rainha.
Senti-me como se ela tivesse me roubado o ar.
Continuou falando.
Vou enviar Breu para que a traga para c,
onde pode ser mantida a salvo e educada como
deve ser enquanto cresce. Suspirou.
Gostaria que a me estivesse com ela.
Infelizmente, temos de arranjar uma maneira de
apresentar a criana como minha. Como odeio
estes logros. Mas Breu me convenceu da sua
necessidade. Espero que tambm consiga
convencer a me da sua filha. Mais para si
mesma, acrescentou: Teremos de dizer que
afirmamos que o meu filho nasceu morto para fazer
Majestoso crer que no havia um herdeiro que o
ameaasse. Meu pobre filhinho. O seu povo nunca
chegar a saber que ele nasceu. E isso, suponho,
como ele Sacrifcio por eles.
Dei por mim olhando Kettricken com ateno, e
achando que restava muito pouco da rainha que
conhecera em Torre do Cervo. Detestava o que ela
estava dizendo; aquilo me indignava. Mas a minha
voz soou suave quando perguntei:
Qual a necessidade de tudo isso, minha
rainha? O Rei Veracidade est vivo. Eu irei
encontr-lo e farei todo o possvel para que ele
volte para a senhora. Juntos, governaro em Torre
do Cervo, e os seus filhos governaro depois de
vocs.
Voltar? Governaremos? Governaro?
Ela quase sacudiu a cabea numa negao.
Pode ser que sim, FitzCavalaria. Mas durante
tempo demais depositei a minha f na crena de
que as coisas acabariam como deviam acabar. No
voltarei a ficar presa dessas expectativas. H
coisas de que temos de nos assegurar antes de
corrermos mais riscos. Tem de ser garantido um
herdeiro para o trono Visionrio. Enfrentou
calmamente o meu olhar. Eu redigi a
declarao e entreguei uma cpia a Breu, devendo
a outra ser mantida aqui em segurana. A sua filha
herdeira do trono, FitzCavalaria.
H tanto tempo que eu mantinha a alma intacta
com uma minscula esperana. Durante tantos
meses me seduzira com a ideia de que, quando
tudo estivesse terminado, poderia de algum modo
regressar para junto de Moli e reconquistar o seu
amor, de que poderia reclamar a minha filha como
minha. Outros homens podiam sonhar com
honrarias, riquezas ou feitos de valor cantados por
menestris. Eu queria chegar a uma pequena
choupana ao cair do dia, sentar-me em uma
cadeira junto lareira, com as costas doendo por
causa do trabalho, as mos speras pela labuta, e
segurar uma menininha no colo enquanto uma
mulher que me amava me contava o seu dia. De
todas as coisas de que tivera de desistir em
simples virtude do sangue que possua, aquela era
a mais importante. Agora teria de abrir mo dela?
Teria de ser para sempre para Moli o homem que
lhe mentira, que a abandonara grvida e nunca
regressara, e depois tambm fizera com que essa
criana lhe fosse roubada?
No quisera falar em voz alta. No percebi que
o fizera at que a rainha respondeu.
isso o que significa ser Sacrifcio, Fitz-
Cavalaria. Nada pode ficar guardado para ns.
Nada.
Ento no a reconhecerei. As palavras
queimaram a minha lngua por proferi-las. No
a reclamarei como minha.
No precisa faz-lo, pois eu irei reclam-la
como minha. Sem dvida ela ter as feies
Visionrio. O seu sangue forte. Para os nossos
propsitos, basta que eu saiba que a criana sua.
Voc j admitiu a Esporana, a menestrel. Disse a
ela que gerou uma filha com Moli, uma fabricante
de velas da Cidade de Torre do Cervo. Por todos
os Seis Ducados, o testemunho de um menestrel
reconhecido por lei. Ela j colocou a sua mo no
documento, com o juramento de que sabe que a
criana uma verdadeira Visionrio.
FitzCavalaria prosseguiu, e a sua voz soou
quase gentil, embora os meus ouvidos ressoassem
por ouvir as suas palavras e eu quase cambaleei.
Ningum pode escapar ao destino. Nem voc,
nem a sua filha. Afaste-se e ver que foi para isto
que ela veio a existir. Quando todas as
circunstncias conspiraram para negar um herdeiro
linhagem Visionrio, de algum modo um foi
criado mesmo assim. Por voc. Aceite, e aguente.
Foram as palavras erradas. Ela podia ter sido
educada nelas, mas a mim fora dito que A luta s
acaba quando a ganhar. Ergui os olhos e olhei
para todos. No sei o que eles viram no meu rosto,
mas os seus se imobilizaram.
Eu posso encontrar Veracidade eu disse
em voz baixa. E o farei.
Eles permaneceram em silncio.
Voc quer o seu rei eu disse a Kettricken.
Esperei at ver assentimento no rosto dela. Eu
quero a minha filha eu disse em voz baixa.
O que est dizendo? perguntou friamente
Kettricken.
Estou dizendo que quero as mesmas coisas
que voc. Quero estar com aquela que amo, para
criar com ela a nossa filha. Enfrentei o seu
olhar. Diga que posso ter isso. tudo o que
sempre quis.
Ela me olhou diretamente nos olhos.
No posso lhe fazer essa promessa,
FitzCavalaria. Ela importante demais para que
um simples amor a reclame.
Aquelas palavras me pareceram ao mesmo
tempo absolutamente absurdas e completamente
verdadeiras. Abaixei a cabea em algo que no era
assentimento. Perfurei com o olhar um buraco no
cho, tentando descobrir outras alternativas, outros
caminhos.
Eu sei o que voc dir a seguir disse
Kettricken com amargura. Que se eu reclamar a
sua filha para o trono, no me ajudar a encontrar
Veracidade. Refleti longa e profundamente,
sabendo que isto iria me privar da sua ajuda. Estou
preparada para procur-lo sozinha. Tenho o mapa.
De algum modo irei
Kettricken. Interrompi o seu discurso
dizendo o seu nome em voz baixa, despojado do
ttulo. No pretendera faz-lo. Vi que isso a
surpreendeu. Dei por mim sacudindo lentamente a
cabea. No compreende. Se Moli estivesse
aqui na minha frente com a nossa filha, mesmo
assim eu teria de ir em busca do meu rei. No
importa o que me seja feito, no importa o quo
injustamente me tratem. Ainda assim preciso ir em
busca de Veracidade.
As minhas palavras alteraram os rostos na sala.
Breu ergueu a cabea e me olhou com um orgulho
feroz brilhando nos seus olhos. Kettricken virou a
cabea, piscando os olhos para reprimir lgrimas.
Creio que talvez tenha se sentido ligeiramente
envergonhada. Para o Bobo, voltei a ser o seu
Catalisador. Em Esporana desabrochou a
esperana de que eu ainda pudesse ser merecedor
de uma lenda.
Mas em mim havia a nsia primordial pelo
absoluto. Veracidade o mostrara a mim na sua
forma mais fsica. Eu obedeceria ordem de
Talento do meu rei e o serviria como jurara fazer.
Porm, agora outro chamamento tambm me atraa.
O Talento.
CAPTULO 23

As Montanhas

Seria possvel supor que o Reino da Montanha,


com os seus vilarejos distantes uns dos outros e
povo disperso, um novo reino, recentemente
constitudo. Na verdade, a sua histria antecede
em muito qualquer registro escrito dos Seis
Ducados. Chamar aquele pas de reino na
realidade imprprio. Antigamente, os
diversificados caadores, criadores de gado e
agricultores, tanto nmades como assentados,
foram gradualmente concedendo a sua lealdade a
uma Juza, uma mulher de grande sabedoria, que
residia em Jhaampe. Embora esta pessoa tenha
acabado por ser conhecida pelos forasteiros
como o Rei ou a Rainha das Montanhas, para os
residentes do Reino da Montanha ele ou ela
ainda o Sacrifcio, aquele que est disposto a
dar tudo, at mesmo a vida, para o bem daqueles
que so governados. A primeira Juza que vivia
em Jhaampe agora uma figura envolta em
lendas, sendo os seus feitos conhecidos apenas
atravs das canes que o povo da Montanha
ainda canta sobre ela.
Contudo, por mais velhas que essas canes
sejam, existe um boato ainda mais velho sobre
um governante e uma capital mais antigos. O
Reino da Montanha, tal como o conhecemos hoje,
composto quase inteiramente pelo povo nmade
e povoados das encostas orientais das
Montanhas. Para alm das Montanhas estendem-
se as costas geladas que rodeiam o Mar Branco.
Algumas poucas rotas comerciais ainda
meandram atravs dos dentes aguados das
Montanhas para chegar aos caadores que vivem
nesse lugar coberto de neve. Ao sul das
Montanhas estendem-se as florestas despovoadas
dos Ermos Chuvosos, e em algum lugar situa-se a
nascente do Rio da Chuva que constitui a
fronteira comercial com os Estados de Calcede.
Essas so as nicas terras e povos que foram
realmente mapeadas para alm das Montanhas.
Mas sempre houve lendas sobre outra terra, uma
terra fechada e perdida entre os picos alm do
Reino da Montanha. Quando se viaja mais para o
interior das Montanhas, para alm das fronteiras
do povo que deve lealdade a Jhaampe, a terra
torna-se ainda mais acidentada e dura. A neve
nunca abandona os picos mais elevados, e alguns
vales abrigam apenas gelo glacial. Diz-se que,
em certas reas, grandes vapores e fumaas se
elevam de fendas nas montanhas e que a terra
pode estremecer calmamente ou dilacerar-se em
violentos tremores. H poucos motivos para que
algum se aventure nessa regio de pedra solta e
penhascos. A caa mais fcil e mais lucrativa
nas encostas mais verdes das montanhas. O pasto
que existe l insuficiente para os rebanhos dos
pastores.
A respeito dessa terra, temos as histrias a que
terras distantes costumam dar origem. Drages e
gigantes, antigas cidades arruinadas, unicrnios
selvagens, tesouros escondidos e mapas secretos,
ruas empoeiradas pavimentadas de ouro, vales
de eterna primavera onde a gua se ergue
fumegando do cho, perigosos feiticeiros
trancados por feitios em cavernas de pedras
preciosas e antigos males adormecidos
encravados na terra. Dizem que todos residem na
terra antiga e sem nome para alm das fronteiras
do Reino da Montanha.

Kettricken realmente esperara que eu me recusasse


a ajud-la a procurar Veracidade. Durante os dias
da minha convalescena, ela decidira que iria
procur-lo sozinha, e para esse fim reunira
provises e animais. Nos Seis Ducados, uma
rainha teria o tesouro real a que recorrer, bem
como a generosidade forada dos seus nobres.
No era o caso no Reino da Montanha. Ali,
enquanto o Rei Eyod permanecesse vivo, ela no
passava de uma parente mais nova do Sacrifcio.
Embora se esperasse que um dia ela o sucedesse,
isso no lhe dava o direito de dispor da riqueza do
seu povo. Na verdade, mesmo se ela fosse
Sacrifcio no teria acesso a riquezas e recursos.
O Sacrifcio e a sua famlia imediata viviam
simplesmente na sua bela habitao. Toda a
Jhaampe, o palcio, os jardins, as fontes, tudo
pertencia ao povo do Reino da Montanha. Ao
Sacrifcio nada faltava, mas tambm nada possua
em excesso.
Assim, Kettricken no se voltou para os cofres
reais e para os nobres ansiosos por captar as suas
boas graas, mas para velhos amigos e primos, a
fim de obter aquilo de que necessitava. Abordara
o pai, mas ele lhe dissera, com firmeza, porm
triste, que encontrar o Rei dos Seis Ducados era
problema seu, no do Reino da Montanha. Por
mais que sofresse com a filha devido ao
desaparecimento do homem que ela amava, ele no
podia desviar reservas da defesa do Reino da
Montanha contra Majestoso dos Seis Ducados. Era
tal o vnculo entre eles que ela pde aceitar a
recusa com compreenso. Envergonhava-me
pensar que a legtima Rainha dos Seis Ducados
tinha de recorrer caridade de parentes e amigos.
Mas apenas quando eu no estava acalentando o
meu ressentimento contra ela.
Ela concebera a expedio para sua
convenincia, no para a minha. Pouco havia nela
que eu aprovasse. Ao longo dos poucos dias que
antecederam a nossa partida, ela dignou-se a me
consultar acerca de alguns aspectos, mas as minhas
opinies foram to frequentemente postas de lado
quanto eram ouvidas. Falvamos um com o outro
educadamente, sem o calor da ira ou da amizade.
Havia muitas coisas de que discordvamos, e
quando isso acontecia ela fazia o que achava mais
sensato. No verbalizada, mas implcita, havia a
ideia de que o meu discernimento no passado fora
falho e imprevidente.
Eu no queria bestas de carga que pudessem
passar fome e congelar. Por mais que a
bloqueasse, a Manha me deixava vulnervel sua
dor. Kettricken, no entanto, obtivera meia dzia de
criaturas que afirmava no se importarem com a
neve e o frio, e que comiam folhas e brotos em vez
de capim. Eram jepas, criaturas nativas de algumas
das partes mais remotas do Reino da Montanha.
Lembravam-me cabras de pescoo longo, dotadas
de patas em vez de cascos. Eu tinha pouca
confiana de que fossem capazes de transportar o
suficiente para fazer com que compensassem o
incmodo de cuidar delas. Kettricken me disse
calmamente que em breve me habituaria aos
animais.
Tudo depende de como o gosto delas, sugeriu
filosoficamente Olhos-de-Noite. Senti-me disposto
a concordar com ele.
As escolhas dela no que dizia respeito a
companheiros para a expedio me irritavam ainda
mais. Eu no via sentido em ela se arriscar, mas eu
sabia bem que no valia a pena discutir essa
questo. A ida de Esporana me causou
ressentimento, depois de descobrir o que ela
negociara para ter permisso de ir. O motivo era
ainda encontrar uma cano que estabelecesse a
sua reputao. Comprara o lugar no nosso grupo
com a ameaa no verbalizada de que apenas se
fosse autorizada a ir faria um registro escrito de
que a filha de Moli tambm era minha. Ela sabia
que eu sentia que me trara, e depois disso passou
sensatamente a evitar a minha companhia. Conosco
iriam trs primos de Kettricken, todos gente
grande, solidamente musculosa, com muita prtica
em viajar pelas Montanhas. No seria um grupo
grande. Kettricken me assegurou de que se seis no
bastassem para encontrar Veracidade, seiscentos
no seriam suficientes. Concordei que era mais
fcil abastecer um grupo pequeno, e que era
frequente que viajasse mais depressa do que
grupos grandes.
Breu no faria parte do nosso grupo. Ia regressar
a Torre do Cervo, para levar a Pacincia a notcia
de que Kettricken ia em busca de Veracidade e
para plantar as sementes do rumor de que havia, de
fato, um herdeiro para o trono dos Seis Ducados.
Tambm iria encontrar-se com Bronco, Moli e a
beb. Oferecera-se para informar Moli, Pacincia
e Bronco de que eu ainda estava vivo. A oferta
fora feita de forma acanhada, pois sabia
perfeitamente que eu odiava o papel que ele
desempenhara em reclamar a minha filha para o
trono. Contudo, engoli a ira, falei-lhe com
educao e fui recompensado com a sua promessa
solene de que nada diria de mim a nenhum deles.
Nessa altura, parecia o rumo mais sensato. Sentia
que s eu podia explicar completamente a Moli o
motivo que me levara a agir como agira. E ela j
chorara uma vez a minha morte. Se eu no
sobrevivesse quela demanda, no iria sofrer mais
do que j sofrera.
Breu veio me dizer adeus na noite em que partiu
para Cervo. A princpio ambos tentamos fingir que
tudo estava bem entre ns. Conversamos sobre
pequenas coisas a que outrora ambos tnhamos
dado importncia. Senti uma perda genuna quando
ele me falou da morte de Sorrateiro. Tentei
convenc-lo a levar Ruivo e Fuligem consigo, para
deix-los de novo aos cuidados de Bronco. Ruivo
precisava de uma mo mais firme do que a que
estava tendo, e o garanho podia dar a Bronco
muito mais do que transporte. Os seus servios
como reprodutor podiam ser vendidos ou
negociados, e o potro de Fuligem representava
mais riqueza para o futuro. Mas Breu sacudiu a
cabea e disse que tinha de viajar rapidamente
sem atrair ateno. Um homem com trs cavalos
era no mnimo um alvo para os bandidos. Eu vira o
pequeno castrado indcil que Breu tinha como
montaria. Apesar do mau temperamento do animal,
era resistente e gil e, assegurou-me Breu, muito
rpido numa perseguio por terreno acidentado.
Sorriu ao dizer aquilo, e eu compreendi que aquela
caracterstica do cavalo tinha sido bem posta
prova. O Bobo tinha razo, pensei ento com
amargura. A guerra e a intriga realmente
combinavam bem com ele. Olhei-o, com as suas
botas de cano alto e manto rodopiante, olhei para o
cervo rampante que usava to abertamente na testa
por cima dos olhos verdes e tentei compar-lo
com o velho de mos suaves que me ensinara
como matar pessoas. Os anos ainda se
encontravam l, mas ele os carregava de outra
maneira. Em particular, perguntei-me que drogas
ele usava para prolongar a sua energia.
Ainda assim, por mais diferente que estivesse,
continuava a ser Breu. Desejei me aproximar dele
e saber que ainda existia algum tipo de ligao
entre ns, mas no consegui. No conseguia
compreender a mim mesmo. Como a opinio dele
ainda podia importar tanto para mim, quando eu
sabia que ele estava disposto a roubar a minha
filha e a felicidade para o bem do trono
Visionrio? Senti que o fato de no conseguir
encontrar a fora de vontade para odi-lo era uma
fraqueza em mim. Procurei alcanar esse dio, e
obtive apenas um amuo juvenil que me levou a no
lhe apertar a mo quando partiu, nem a lhe desejar
felicidades. Ele ignorou o meu mau humor, o que
me fez sentir ainda mais infantil.
Depois de Breu ir embora, o Bobo me entregou
o alforje de couro que ele deixara para mim. L
dentro havia uma faca com bainha muito
aproveitvel, uma pequena bolsa com moedas e
uma seleo de venenos e de ervas curativas,
incluindo um fornecimento generoso de casco-de-
elfo. Um pequeno fornecimento de sementes de
caris encontrava-se enrolado em um papelote e
cuidadosamente etiquetado com a nota de que era
para ser usado apenas com a maior das cautelas e
quando a necessidade fosse maior. Dentro de uma
bainha cheia de marcas havia uma espada curta,
simples, mas aproveitvel. Senti contra ele uma
sbita ira que no consegui explicar.
to tpico dele exclamei, e larguei o
saco na mesa para que o Bobo testemunhasse.
Veneno e facas. isso o que pensa de mim. Ainda
assim que me v. Para mim, s consegue
imaginar a morte.
Duvido que ele espere que use isso em voc
observou calmamente o Bobo. Afastou a faca
da marionete que estava amarrando. Talvez
tenha pensado que voc podia usar essas coisas
para se proteger.
No compreende? perguntei-lhe. Estes
so presentes para o garoto que Breu ensinou a ser
um assassino. Ele no consegue ver que j no sou
essa pessoa. No consegue me perdoar por querer
ter vida prpria.
Assim como voc no consegue perdo-lo
por j no ser o seu tutor benevolente e indulgente
observou o Bobo num tom seco. Estava
amarrando os barbantes que ligavam os membros
da marionete cruzeta. um bocado
ameaador v-lo andando por a como um
guerreiro, pondo-se alegremente em risco por algo
em que acredita, flertando com mulheres e em
geral agindo como se tivesse reclamado para si
uma vida prpria, no ?
Foi como se tivesse atirado um balde de gua
fria no meu rosto. Quase tive de admitir a inveja
que sentia por ver que Breu obtivera ousadamente
aquilo que ainda me fugia.
No nada disso! rosnei ao Bobo.
A marionete em que ele estava trabalhando
brandiu um dedo repreensivo na minha direo
enquanto o Bobo me sorria afetadamente por cima
da cabea do boneco. Este mostrava uma
perturbadora semelhana com Ratita.
O que eu vejo observou, sem se dirigir a
ningum em particular que no a cabea de
cervo de Veracidade que ele usa na testa. No, o
smbolo que escolheu parece-se mais com, oh,
deixe-me ver, com um que o Prncipe Veracidade
escolheu para o sobrinho bastardo. No v alguma
semelhana?
Fiquei em silncio durante algum tempo.
E o que tem? perguntei a contragosto.
O Bobo largou a sua marionete no cho, onde a
ossuda criatura encolheu os ombros de forma
sinistra.
Nem a morte do Rei Sagaz nem a suposta
morte de Veracidade conseguiram fazer aquela
doninha sair da toca. Foi s quando achou que
voc havia sido assassinado que a ira o incendiou
o suficiente para que deixasse de lado todas as
ocultaes e fingimentos e declarasse que ainda
veria um verdadeiro Visionrio no trono. A
marionete sacudiu um dedo na minha direo.
Est tentando dizer que ele faz isto por mim,
por minha causa? Quando a ltima coisa que eu
desejaria era ver o trono reclamar a minha filha?
A marionete cruzou os braos e sacudiu
pensativamente a cabea.
Parece-me que Breu sempre fez o que achou
que era o melhor para voc. Quer voc
concordasse, quer no. Talvez estenda isso sua
filha. Afinal, ela seria sua sobrinha-neta e a ltima
remanescente viva da sua linhagem. Excluindo
voc e Majestoso, claro. A marionete deu um
alguns passos de dana. De que outro modo
voc esperaria que um homem to velho cuidasse
de uma criana to nova? Ele no espera viver
para sempre. Talvez pense que ela est mais
segura montada num trono do que sendo atropelada
por outra pessoa que deseje reclam-lo.
Dei as costas ao Bobo e fiz de conta que juntava
roupa para lavar. Precisaria de muito tempo para
pensar bem no que ele me dissera.
Foi de bom grado que aceitei as escolhas de
Kettricken sobre as tendas e roupas para a
expedio, e fui suficientemente honesto para ficar
grato por ela achar por bem fornecer tambm a
minha roupa e abrigo. Se me tivesse excludo por
completo da sua comitiva, no a poderia censurar
totalmente. Em vez disso, Joffron apareceu um dia
trazendo um saco de roupa de corpo e de cama
para me dar, e para me medir os ps, a fim de
arranjar as botas semelhantes a sacos que o povo
das Montanhas preferia. Ela provou ser uma
companhia alegre, pois passou o tempo todo
trocando farpas brincalhonas com o Bobo. A
fluncia dele em chyurda excedia a minha, e de vez
em quando eu sentia grande dificuldade em
acompanhar a conversa, enquanto metade dos
trocadilhos do Bobo passava batida por mim.
Perguntei-me brevemente o que se passaria
exatamente entre aqueles dois. Logo quando
chegara, eu pensara que ela era uma espcie de
discpula dele. Agora perguntava a mim mesmo se
ela no teria fingido esse interesse apenas como
desculpa para estar perto dele. Antes de partir,
mediu tambm os ps do Bobo e lhe fez perguntas
sobre as cores e adornos que queria que fossem
includas nas botas.
Botas novas? perguntei-lhe depois de ela
partir. Com o pouco que voc se aventura l
fora, eu no achava que precisasse delas.
Ele me lanou um olhar vazio. A recente alegria
desapareceu do seu rosto.
Sabe que tenho de ir com voc observou
calmamente. Deu um sorriso estranho. Por qual
outro motivo voc acha que fomos reunidos neste
lugar distante? pela interao do Catalisador e
do Profeta Branco que os acontecimentos deste
tempo sero devolvidos ao seu rumo adequado.
Creio que, se tivermos sucesso, os Navios
Vermelhos sero expulsos da costa dos Seis
Ducados e um Visionrio herdar um trono.
Isso parece se ajustar maioria das profecias
concordou Panela do seu canto junto da lareira.
Estava colocando a ltima fileira de pontos numa
grossa luva. Se a praga da fome acfala for o
forjamento, e os seus atos derem um fim a ela, isso
tambm iria cumprir outra profecia.
O jeito de Panela para fornecer uma profecia
para cada ocasio estava comeando a me cansar.
Respirei fundo, e ento perguntei ao Bobo:
E o que diz a Rainha Kettricken sobre voc
se juntar ao seu grupo?
No discuti isso com ela respondeu ele
com indiferena. No vou me juntar a ela, Fitz.
Vou seguir voc. Uma espcie de perplexidade
apareceu no seu rosto. Sei desde criana que
temos de cumprir juntos esta tarefa. Nem me
ocorreu questionar se eu devia ir com voc. Tenho
feito preparativos desde o dia em que voc chegou
aqui.
Assim como eu observou Panela em voz
baixa.
Ambos nos viramos para fit-la. Ela fingiu no
reparar enquanto provava a luva e admirava o
modo como lhe servia.
No. Falei sem rodeios. J era ruim o
suficiente ter a expectativa da morte de animais de
carga. No ia testemunhar a morte de outra amiga.
Era to bvio que nem valia a pena dizer que ela
era velha demais para uma viagem assim.
Pensei que voc podia ficar aqui, na minha
casa ofereceu o Bobo, com mais gentileza.
H lenha em abundncia para o resto do inverno e
algumas provises alimentares, e
Eu espero morrer durante a viagem, se isso
for de algum consolo para vocs. Tirou a luva e
a juntou ao seu par. Despreocupadamente,
examinou o que restava da sua meada de l.
Comeou a dar pontos, fazendo fluir sem esforo o
fio por entre os dedos. E no precisam se
preocupar comigo antes disso. J fiz os
preparativos necessrios para mim. Fiz umas
trocas e tenho a comida e do que mais irei
precisar. Tirou os olhos das agulhas, lanou-me
um olhar e acrescentou em voz baixa: Tenho os
meios para prosseguir esta viagem at o fim.
Tive de admirar o modo calmo com que ela
presumia que a sua vida ainda era sua, para fazer
com ela o que desejasse. Perguntei-me quando
teria comeado a pensar nela como uma velha
impotente de que algum teria agora de cuidar. Ela
voltou a baixar os olhos para a sua malha. Sem
necessidade, pois os seus dedos continuavam a
trabalhar, quer os observasse, quer no.
Vejo que me compreendem disse ela
calmamente. E foi tudo.
Nunca soube de nenhuma expedio que partisse
exatamente conforme planejado. Em geral, quanto
maior uma , mais dificuldades tem. A nossa no
foi exceo. Na manh anterior data marcada
para a partida, fui rudemente arrancado do sono
com uma sacudida.
Levante-se, Fitz, temos de partir agora
disse Kettricken com uma voz tensa.
Sentei-me lentamente. Fiquei instantaneamente
bem acordado, mas as minhas costas
convalescentes ainda no me encorajavam a me
mover com rapidez. O Bobo estava sentado na
beira da sua cama, parecendo mais ansioso do que
eu jamais o vira.
O que h? perguntei.
Majestoso. Nunca ouvira tanto veneno
numa palavra. Seu rosto estava muito branco e ela
cerrava e descerrava os punhos aos lados do
corpo. Enviou ao meu pai um mensageiro sob
uma bandeira de trgua, dizendo que abrigamos um
conhecido traidor dos Seis Ducados. Diz que se
entregarmos voc, ele ver tal coisa como sinal de
boa f para com os Seis Ducados e no nos
considerar um inimigo. Mas, se no o fizermos,
soltar as tropas que mantm junto s nossas
fronteiras, pois saber que conspiramos com os
seus inimigos contra ele. Fez uma pausa. O
meu pai est pensando no que fazer.
Kettricken, eu no passo da desculpa
protestei. O corao martelava no meu peito.
Olhos-de-Noite soltou um ganido ansioso. Voc
deve saber que ele levou meses para reunir essas
tropas. Elas no esto l porque eu estou aqui.
Esto prontas porque ele planeja mover-se contra
o Reino da Montanha, acontea o que acontecer.
Conhece Majestoso. Isso no passa de uma
artimanha para ver se consegue que voc me
entregue. Depois que o fizer, ele arranjar algum
outro pretexto para atacar.
No sou uma simplria disse ela com
frieza. Os nossos vigias j sabem das tropas h
semanas. Temos feito o possvel para nos
prepararmos. As nossas montanhas sempre tm
sido a nossa defesa mais forte. Mas nunca antes
enfrentamos um inimigo organizado em tal nmero.
O meu pai Sacrifcio, Fitz. Ele tem de fazer o
que melhor servir o Reino da Montanha. Portanto,
ele agora precisa analisar se ter uma chance de
lidar com Majestoso entregando voc. No pense
que o meu pai estpido o suficiente para confiar
nele. Mas por quanto mais tempo conseguir adiar
um ataque contra o seu povo, melhor preparado
estar esse povo.
Parece que pouco resta para decidir eu
disse com amargura.
No havia motivo para que o meu pai me
informasse da mensagem do mensageiro
observou Kettricken. A deciso dele. Os
seus olhos cruzaram-se com os meus, contendo
uma sombra da nossa antiga amizade. Creio que
ele talvez esteja me oferecendo uma oportunidade
para fazer voc desaparecer. Antes que eu desafie
as suas ordens para entregar voc a Majestoso.
Talvez pense dizer a Majestoso que voc fugiu,
mas que pretende persegui-lo.
Atrs de Kettricken, o Bobo estava vestindo uma
cala por baixo da camisola.
Vai ser mais difcil do que eu havia
planejado confidenciou-me Kettricken. No
posso envolver nisto mais ningum da Montanha.
Teremos de ser voc, eu e Esporana. Sozinhos. E
temos de partir j, dentro de menos de uma hora.
Estarei pronto prometi-lhe.
Encontre-me atrs da barraca de lenha de
Joss disse ela, e saiu.
Olhei para o Bobo.
Bem. Contamos para Panela?
Por que est me perguntando?
Encolhi ligeiramente os ombros. Ento me
levantei e comecei a me vestir depressa. Pensei
em todas as pequenas maneiras de que no estava
preparado e depois desisti dessa reflexo por ser
intil. Muito pouco tempo depois, o Bobo e eu
colocamos no ombro as nossas trouxas. Olhos-de-
Noite levantou-se, espreguiou-se
meticulosamente e dirigiu-se porta para nos
anteceder. Vou sentir saudades da lareira. Mas a
caa ser melhor. Aceitou tudo com toda a calma.
O Bobo examinou a cabana com cuidado, e
ento fechou a porta atrs de ns.
Este foi o primeiro lugar em que vivi que era
apenas meu observou enquanto se afastava.
Voc deixa para trs tantas coisas para fazer
isso eu disse, sem graa, pensando nas suas
ferramentas, nas marionetes por acabar, at nas
plantas que cresciam l dentro, junto janela.
Contra vontade, senti-me responsvel. Talvez por
estar to contente por no seguir viagem sozinho.
Ele me olhou e encolheu os ombros.
Levo-me comigo. tudo de que realmente
preciso, ou que possuo. Olhou para a porta que
pintara. Jofron cuidar bem da cabana. E de
Panela tambm.
Perguntei a mim mesmo se ele deixaria para trs
mais do que eu sabia.
Estvamos quase chegando barraca de lenha
quando vi umas crianas que corriam pelo
caminho na nossa direo.
L est ele! gritou uma, apontando. Olhei
sobressaltado para o Bobo, e ento me preparei,
perguntando-me o que estava por vir. Como era
possvel nos defendermos contra crianas?
Desorientado, esperei o ataque. Mas o lobo no
esperou. Afundou a barriga na neve, baixando at a
cauda. Quando as crianas se aproximaram, ele
atirou-se de sbito diretamente contra o lder.
NO! gritei alto, horrorizado, mas
nenhum deles prestou qualquer ateno em mim.
As patas da frente do lobo atingiram o peito do
garoto, atirando-o com fora contra a neve. Num
piscar de olhos, Olhos-de-Noite estava de p e
perseguia os outros, que fugiam, guinchando de
riso, enquanto um aps o outro eram apanhados e
derrubados. Quando deitou o ltimo no cho, o
primeiro garoto j estava de p e o perseguia,
tentando em vo acompanhar o lobo e procurando
agarrar a sua cauda quando Olhos-de-Noite
passava por ele como um raio, de lngua
pendurada.
Derrubou todos de novo, mais duas vezes, antes
de parar numa das suas voltas corridas. Viu as
crianas levantando-se, e ento olhou para mim
por sobre o ombro. Abaixou as orelhas,
embaraado, ento olhou de novo para as crianas,
sacudindo a cauda, junto ao cho. Uma garota j
estava tirando do bolso um pedao de po,
enquanto outra o provocava com uma tira de
couro, sacudindo-a acima da neve e tentando
envolv-lo num jogo de puxes. Fingi no reparar.
Eu alcano vocs mais tarde, sugeriu ele.
Sem dvida, disse-lhe secamente. O Bobo e eu
continuamos a caminhar. Olhei para trs para ver o
lobo, de dentes presos no couro e as quatro patas
retesadas enquanto dois garotos puxavam pela
outra ponta. Deduzi que sabia agora como ele
passara as tardes. Acho que senti uma pontada de
inveja.
Kettricken j nos esperava. Seis jepas
carregadas estavam atadas umas s outras, em fila.
Naquele momento desejei ter passado algum tempo
aprendendo mais sobre elas, mas assumira que os
outros cuidariam dos animais.
Ainda vamos levar todas elas? perguntei,
desalentado.
Demoraria tempo demais para desfazer os
fardos e refaz-los s com aquilo de que
precisamos. Talvez mais tarde abandonemos as
provises e animais em excesso. Mas, por ora,
quero simplesmente partir o mais depressa
possvel.
Ento vamos embora sugeri.
Kettricken olhou severamente para o Bobo.
O que voc est fazendo aqui? Veio se
despedir de Fitz?
Eu vou para onde ele vai disse
calmamente o Bobo.
A rainha o olhou e algo no seu rosto quase se
suavizou.
Far frio, Bobo. Eu no me esqueci de como
voc sofreu com o frio a caminho daqui. No lugar
para onde vamos agora, o frio permanecer muito
depois de a primavera ter chegado a Jhaampe.
Eu vou para onde ele vai repetiu
calmamente o Bobo.
Kettricken sacudiu a cabea para si mesmo.
Ento encolheu os ombros. Caminhou a passos
largos para a frente da fila de jepas e estalou os
dedos. O animal da frente abanou as orelhas
peludas e a seguiu. Os outros o seguiram. A sua
obedincia me impressionou. Sondei brevemente
na direo deles e descobri em funcionamento um
instinto to forte de manada que quase nem
pensavam em si mesmos como animais separados.
Desde que o animal da frente seguisse Kettricken,
no haveria problemas com os outros.
Kettricken nos conduziu por um caminho que
pouco mais era do que uma vereda. Serpenteava
quase sempre por trs das casas dispersas que
abrigavam os residentes de inverno de Jhaampe.
Muito pouco tempo depois deixamos a ltima das
cabanas para trs e comeamos a viajar atravs de
floresta antiga. O Bobo e eu caminhvamos atrs
da cadeia de animais. Observei aquele que seguia
nossa frente, reparando no modo como as suas
patas largas e achatadas se abriam na neve, muito
semelhantes s do lobo. Marcavam um ritmo
ligeiramente mais rpido do que uma caminhada
confortvel.
No tnhamos andado muito quando ouvi um
grito atrs de ns. Estremeci e lancei um olhar
apressado por cima do ombro. Era Esporana,
aproximando-se correndo, com a trouxa aos saltos
sobre os ombros. Quando nos alcanou, disse
acusadoramente:
Partiram sem mim!
O Bobo deu um sorriso. Eu encolhi os ombros.
Parti quando a minha rainha ordenou
observei.
Ela nos olhou, furiosa, e ento passou
apressadamente por ns, tropeando na neve solta
ao lado do caminho para passar pelas jepas e
alcanar Kettricken. As suas vozes chegaram at
ns com clareza pelo ar frio.
Eu disse a voc que ia partir imediatamente
disse a rainha num tom tenso. E ento parti.
Para meu espanto, Esporana teve o bom senso de
ficar calada. Durante algum tempo lutou para
avanar pela neve solta ao lado de Kettricken.
Depois foi gradualmente desistindo, deixando-se
ultrapassar primeiro pelas jepas e depois pelo
Bobo e por mim. Ficou atrs de mim. Sabia que
seria difcil para ela acompanhar o nosso ritmo.
Senti pena dela. Mas ento pensei na minha filha e
nem sequer olhei para trs para ver se ela estava
nos acompanhando.
Foi o princpio de um longo dia sem incidentes.
O caminho era sempre ascendente, nunca de uma
forma ngreme, mas a inclinao constante era
rdua. Kettricken no diminuiu o passo e nos
manteve em um ritmo constante. Nenhum de ns
falou muito. Eu estava ocupado demais respirando
e tentando ignorar a dor nas costas, que ia
gradualmente aumentando. O ferimento da flecha
estava agora coberto por carne saudvel, mas os
msculos, por baixo, ainda protestavam por causa
da sua cura recente.
Grandes rvores erguiam-se nossa volta. A
maior parte era de sempre-vivas, algumas de
espcies que eu nunca vira antes. Transformavam
o cinza do breve dia de inverno numa eterna
penumbra. Havia pouca vegetao rasteira contra a
qual lutar; a maior parte da paisagem era composta
pelas fileiras irregulares de imensos troncos e
alguns galhos baixos. A maior parte dos galhos
vivos das rvores comeava muito acima das
nossas cabeas. De tempos em tempos,
passvamos por aglomerados de rvores menores
de folha caduca que tinham brotado em reas de
floresta aberta criada pela morte de uma grande
rvore. O caminho estava bem batido, tornando
evidente que era usado com frequncia por
animais e por pessoas com esquis. Era estreito, e
se no prestssemos ateno, era fcil darmos um
passo para fora do caminho e afundarmos
surpreendentemente fundo na neve no
compactada. Tentei prestar ateno.
O dia estava ameno, pelos padres das
montanhas, e logo descobri que a roupa que
Kettricken obtivera para mim era muito eficaz para
me manter quente. Afrouxei o casaco na garganta e
depois o colarinho da camisa, para deixar escapar
o calor corporal. O Bobo jogou para trs o capuz
do casaco, forrado de pele, para revelar que usava
por baixo um vistoso barrete de l. Observei a
borla na ponta do barrete balanar enquanto ele
caminhava. Se o ritmo o incomodava, ele nada
disse a respeito. Talvez, como a mim, no lhe
restasse flego para reclamar.
Pouco depois do meio dia, Olhos-de-Noite
juntou-se a ns.
Cozinho lindo! observei em voz alta.
Isso no nada em comparao com o que
Panela o est chamando, observou ele, cheio de
si. Tenho pena de todos vocs quando a velha
cadela alcanar a alcateia. Ela tem um pau.
Ela est nos seguindo?
Ela segue rastros muito bem, para um ser
humano sem nariz. Olhos-de-Noite passou por ns
a trote, movendo-se com surpreendente facilidade,
mesmo na neve no comprimida ao lado do
caminho. Notei que ele estava gostando da onda de
desconforto que o seu odor trazia fila de jepas.
Observei-o quando passou por todos os animais e
depois por Kettricken. Uma vez na dianteira,
comeou a percorrer confiante o terreno em frente,
como se soubesse para onde estava indo. Logo o
perdi de vista, mas no me preocupei. Sabia que
ele voltaria com frequncia para nos dar uma
olhada.
Panela est nos seguindo eu disse ao
Bobo.
Ele me lanou um olhar interrogador.
Olhos-de-Noite diz que ela est muito
irritada conosco.
Os ombros dele subiram e caram num suspiro
rpido.
Enfim. Ela tem direito s suas prprias
decises observou para si mesmo. Ento,
dirigindo-se a mim, acrescentou: Ainda me
enerva um pouco quando voc e o lobo fazem isso.
Isso o incomoda? Que eu seja Manhoso?
Incomoda-o me olhar nos olhos?
retorquiu.
Era o bastante. Continuamos andando.
Kettricken nos manteve em um ritmo constante
enquanto durou a luz do dia. Uma rea pisoteada
ao abrigo de algumas das grandes rvores foi o
local onde paramos. Embora no parecesse ser
usado com frequncia, ns nos encontrvamos em
alguma espcie de caminho de mercadores com
destino a Jhaampe. Kettricken mostrou-se prosaica
no completo comando que tinha sobre ns. Indicou
com um gesto a Esporana uma pequena pilha de
lenha seca protegida da neve por lona.
Use algumas para acender uma fogueira, e
depois se certifique de substituir pelo menos a que
usarmos. H muita gente que para aqui e, em tempo
ruim, uma vida pode depender do fato de essa
lenha estar a. Esporana obedeceu docilmente.
Ela instruiu o Bobo e a mim enquanto a
ajudvamos a montar um abrigo. Quando
terminamos, tnhamos uma tenda com uma forma
bastante semelhante do chapu de um cogumelo.
Feito isso, ela distribuiu as tarefas de
descarregamento do material para dormir e seu
transporte para dentro da tenda, de
descarregamento dos animais e amarrao do lder
da manada, e do derretimento de neve para obter
gua. Ela mesma participou ativamente das tarefas.
Observei a eficincia com que estabeleceu o nosso
acampamento e tratou das nossas necessidades.
Ela teria dado um bom soldado.
Depois de o acampamento bsico estar
estabelecido, o Bobo e eu trocamos olhares.
Dirigi-me at onde Kettricken verificava o estado
das nossas jepas. Esses resistentes animais j
estavam ocupados mordiscando pontas de brotos e
casca das rvores menores que cresciam junto a
um dos lados do acampamento.
Acho que Panela pode estar nos seguindo
disse-lhe. Acha que devo voltar para procur-
la?
Com que propsito? perguntou-me
Kettricken. A pergunta pareceu insensvel, mas ela
prosseguiu. Se ela conseguir nos alcanar,
dividiremos o que temos. Voc sabe disso. Mas
suspeito que ela se cansar antes de chegar aqui e
voltar para Jhaampe. Talvez j tenha voltado.
E talvez tenha ficado exausta e cado na beira do
caminho, pensei. Mas no voltei. Reconheci nas
palavras de Kettricken a dura natureza prtica do
povo da Montanha. Ela respeitaria a deciso de
Panela de nos seguir. Mesmo se a tentativa de
faz-lo a matasse, Kettricken no interferiria com a
vontade dela. Eu sabia que entre o povo da
Montanha no era incomum que uma pessoa idosa
escolhesse aquilo a que se dava o nome de retiro,
um exlio autoimposto onde o frio poderia pr fim
a todas as enfermidades. Eu tambm respeitava o
direito de Panela de escolher o caminho da sua
vida ou morrer na tentativa. Mas isso no me
impediu de enviar Olhos-de-Noite ao longo do
nosso caminho para ver se ela ainda estava vindo.
Preferi acreditar que se tratava apenas de
curiosidade da minha parte. Ele acabara de
regressar ao acampamento com uma lebre branca e
ensanguentada na boca. A meu pedido, levantou-
se, espreguiou-se e me ordenou, entristecido:
Ento guarde a minha carne. Desapareceu no
crepsculo que se aprofundava.
A refeio da noite de mingau de aveia e
bolinhos tinha acabado de ficar pronta quando
Panela entrou no acampamento com Olhos-de-
Noite logo atrs. Caminhou a passos largos at a
fogueira e parou para aquecer nela as mos
enquanto trespassava a mim e ao Bobo com os
olhos. O Bobo e eu trocamos um olhar. Foi um
olhar culpado. Ofereci apressadamente a Panela o
copo de ch que tinha servido para mim. Ela o
pegou e bebeu antes de dizer acusadoramente:
Partiram sem mim.
Sim admiti. Partimos. Kettricken veio
at ns e disse que tnhamos de partir
imediatamente, ento o Bobo e eu
Eu vim mesmo assim anunciou ela
triunfante, interrompendo. E pretendo continuar
com vocs.
Estamos fugindo disse Kettricken em voz
baixa. No podemos diminuir o ritmo por voc.
Quase saltaram fascas dos olhos de Panela.
E eu pedi que fizessem isso? perguntou
rainha, seca.
Kettricken encolheu os ombros.
s para que voc compreenda disse,
calmamente.
Compreendo respondeu Panela com igual
calma. E as coisas ficaram assim resolvidas.
Eu observara aquela troca de palavras com uma
espcie de reverncia. Senti depois um aumento no
respeito que nutria por ambas as mulheres. Acho
que foi ento que compreendi por inteiro o modo
como Kettricken via a si mesma. Era a Rainha dos
Seis Ducados e no duvidava disso. Mas, ao
contrrio de muitos, no se escondera atrs de um
ttulo, nem se ofendera com a resposta rpida que
Panela lhe dera. Pelo contrrio, respondera-lhe, de
mulher para mulher, com respeito, mas tambm
com autoridade. Mais uma vez eu vislumbrara o
seu temperamento e descobrira que no podia
apontar defeitos nele.
Todos dividimos a tenda naquela noite.
Kettricken encheu um pequeno braseiro com
brasas retiradas da fogueira e levou-o para dentro.
O braseiro tornou o abrigo surpreendentemente
confortvel. Estabeleceu turnos de vigia e incluiu
tanto Panela quanto a si mesma nessa tarefa. Os
outros dormiram bem. Eu fiquei acordado durante
algum tempo. Estava de novo a caminho de
Veracidade. Isso trouxe uma minscula poro de
libertao da incessante ordem de Talento. Mas
tambm estava a caminho do rio onde ele lavara as
mos em puro Talento. Essa imagem sedutora
estava agora sempre espreita nos limites da
minha mente. Resoluto, afastei da cabea a
tentao, mas nessa noite os meus sonhos
estiveram cheios dela. Levantamos o acampamento
cedo e estvamos a caminho antes de o dia nascer
por completo. Kettricken nos disse para descartar
uma segunda tenda menor, que fora trazida para
acomodar o nosso grupo maior original. Deixou-a
cuidadosamente arrumada no lugar de parada,
onde outra pessoa poderia encontr-la e utiliz-la.
O animal aliviado desse peso foi carregado com a
maior parte dos fardos que as pessoas
transportavam. Senti-me grato, pois as minhas
costas latejavam agora incessantemente.
Kettricken nos manteve naquele ritmo durante
quatro dias. No disse se esperava realmente ser
perseguida. No perguntei. No havia nenhuma
verdadeira oportunidade para conversas privadas
com ningum. Kettricken seguia sempre na
dianteira, seguida pelos animais, pelo Bobo e por
mim, por Esporana e, seguindo-nos frequentemente
a bastante distncia, por Panela. Ambas as
mulheres cumpriram as suas promessas. Kettricken
no diminuiu o ritmo por causa da velha e Panela
nunca se queixou disso. Chegava tarde todas as
noites ao acampamento, geralmente acompanhada
por Olhos-de-Noite. Era frequente aparecer bem a
tempo de partilhar a nossa comida e abrigo para a
noite. Mas no dia seguinte levantava-se no
momento em que Kettricken o fazia, e nunca se
queixava.
Na quarta noite, depois de estarmos todos dentro
da tenda nos preparando para dormir, Kettricken
dirigiu-se a mim de repente.
FitzCavalaria, quero saber o que pensa a
respeito de uma coisa declarou.
Endireitei-me, intrigado pela formalidade do
pedido.
Estou a vosso servio, minha rainha.
Ao meu lado, o Bobo abafou um riso. Suponho
que ambos parecamos um pouco estranhos,
sentados numa confuso de mantas e peles e nos
dirigindo um ao outro to formalmente. Mas eu
mantive o meu comportamento.
Kettricken acrescentou mais alguns pedaos de
lenha seca ao braseiro para avivar uma chama e a
luz. Pegou um cilindro esmaltado, removeu a
tampa e tirou de l um pedao de velino. Enquanto
o desenrolava com suavidade, reconheci o mapa
que inspirara Veracidade sua demanda. Parecia
estranho olhar para o mapa desbotado naquele
cenrio. Pertencia a uma poca muito mais segura
da minha vida, quando pensava ter garantidas
refeies quentes de boa comida, quando a minha
roupa era feita para me servir e eu sabia onde
dormiria todas as noites. Parecia injusto que todo
o meu mundo tivesse mudado tanto desde a ltima
vez que vira o mapa, mas que ele permanecesse
imutvel, uma dobra envelhecida de velino, com
um rendilhado desgastado de linhas traadas nele.
Kettricken o alisou no colo e indicou com batidas
do dedo um ponto vazio no mapa.
mais ou menos aqui que ns estamos
disse-me. Respirou fundo, como que para se
preparar. Bateu em outro local, igualmente sem
marcas. Foi mais ou menos aqui que
encontramos os sinais de uma batalha. Quando
descobrimos o manto de Veracidade e os ossos.
Sua voz estremeceu um pouco naquelas
palavras. Ergueu subitamente os olhos e os
prendeu nos meus como no fizera desde Torre do
Cervo. Sabe, Fitz, isso difcil para mim. Eu
juntei aqueles ossos e pensei que eram dele.
Acreditei que ele estava morto por muitos meses.
E agora, baseando-me apenas na sua palavra sobre
alguma magia que no possuo, nem compreendo,
tento acreditar que ele est vivo. Que ainda existe
esperana. Mas Eu tive aqueles ossos nas mos.
E as minhas mos no conseguem esquecer o seu
peso e a sua frieza, tampouco meu nariz capaz de
esquecer aquele cheiro.
Ele vive, minha senhora assegurei-lhe em
voz baixa.
Ela suspirou de novo.
Eis o que quero lhe perguntar. Vamos
diretamente para onde os caminhos esto marcados
neste mapa, aqueles que Veracidade disse que iria
seguir? Ou voc quer ser levado primeiro ao local
da batalha?
Refleti durante algum tempo.
Tenho certeza de que obteve desse lugar tudo
o que havia para se obter, minha rainha. Passou-se
tempo, parte de um vero e mais de metade de um
inverno desde que a senhora esteve l. No. No
consigo imaginar nada que eu pudesse encontrar l
que os seus batedores no encontraram quando o
cho estava limpo de neve. Veracidade vive,
minha rainha, e no est l. Portanto, no o
procuremos l, mas no local para onde ele disse
que iria.
Ela assentiu lentamente, mas, se ganhou nimo
com as minhas palavras, no demonstrou. Em vez
disso, voltou a bater no mapa.
Esta estrada mostrada aqui nos conhecida.
J foi uma estrada comercial e, embora ningum
sequer se lembre de qual era o seu destino, ainda
usada. As aldeias mais remotas e os caadores
solitrios dirigem os seus caminhos para l e
depois a seguem at Jhaampe. Podamos ter
viajado por ela desde o incio, mas eu no quis.
usada demais. Viemos pela rota mais rpida, ainda
que no seja a mais larga. Amanh, no entanto,
vamos atravess-la. E quando o fizermos, daremos
as costas a Jhaampe e a seguiremos na direo das
Montanhas. Seu dedo a seguiu no mapa.
Nunca estive nessa parte das Montanhas disse
ela simplesmente. Poucos estiveram, alm dos
caadores ou de aventureiros ocasionais que vo
ver se as velhas histrias so verdadeiras.
Normalmente trazem histrias suas que so ainda
mais estranhas do que aquelas que os levaram a
partir em aventura.
Observei os seus dedos plidos andando
lentamente pelo mapa. Os tnues traos da antiga
estrada divergiam em trs caminhos separados
com diferentes destinos. Essa estrada comeava e
terminava sem destino ou origem aparentes. O que
quer que antigamente estivesse marcado na ponta
dessas linhas desvanecera em fantasmas de tinta.
Nenhum de ns tinha qualquer maneira de saber
que destino Veracidade escolhera. Embora eles
no parecessem muito separados no mapa, o
terreno das Montanhas podia querer dizer que
estavam a dias ou at semanas de distncia. E eu
tinha pouca confiana que um mapa to antigo
possusse uma escala digna de confiana.
Para onde vamos primeiro? perguntei-lhe.
Ela hesitou brevemente, ento o seu dedo bateu
na extremidade de um dos caminhos.
Aqui. Acho que este lugar deve ser o mais
prximo.
Ento essa uma escolha sensata.
Ela voltou a me olhar nos olhos.
Fitz. Voc no podia simplesmente contact-
lo pelo Talento e lhe perguntar onde est? Ou
pedir para que ele venha at ns? Ou pelo menos
lhe perguntar por que no voltou para mim?
A cada pequena sacudida da minha cabea, os
seus olhos foram ficando mais furiosos.
Por que no? perguntou numa voz trmula.
Esta grande e secreta magia dos Visionrio nem
sequer pode cham-lo para junto de ns em tal
momento de necessidade?
Mantive os olhos no rosto dela, mas desejei que
houvesse menos ouvidos escuta. Apesar de tudo
o que Kettricken sabia sobre mim, ainda me sentia
muito desconfortvel falando do Talento com
qualquer pessoa que no fosse Veracidade.
Escolhi cuidadosamente as palavras.
Ao contact-lo pelo Talento, eu poderia
coloc-lo em grande perigo, minha senhora. Ou
atrair problemas para ns.
Como? perguntou.
Pensei rapidamente no Bobo, em Panela e em
Esporana. Era difcil explicar a mim mesmo o
incmodo que sentia em falar sem rodeios sobre
uma magia que fora guardada em segredo durante
tantas geraes. Mas aquela era a minha rainha, e
ela me fizera uma pergunta. Baixei os olhos e falei.
O crculo que Galeno criou nunca foi leal ao
rei. Nem ao Rei Sagaz, nem ao Rei Veracidade.
Sempre foram a ferramenta de um traidor, utilizada
para lanar dvida sobre as capacidades do rei e
minar a sua capacidade para defender o seu reino.
Panela soltou um pequeno som quando prendeu a
respirao, enquanto os olhos azuis de Kettricken
se tornaram de um cinza de ao de to frios.
Continuei:
Mesmo agora, se eu contactasse abertamente
Veracidade pelo Talento, eles poderiam encontrar
um modo de escutar. Atravs de tal contacto,
poderiam encontr-lo. Ou a ns. Tornaram-se
fortes no Talento e descobriram modos de us-lo
que eu nunca aprendi. Espionam outros
utilizadores do Talento. Podem, usando apenas o
Talento, infligir dor ou criar iluses. Temo
contactar o meu rei pelo Talento, Rainha
Kettricken. O fato de ele ter decidido no me
contactar por essa via me leva a crer que a minha
cautela idntica sua.
Kettricken ficara plida como a neve enquanto
ponderava as minhas palavras. Em voz baixa,
perguntou:
Sempre desleais a ele, Fitz? Fale com
clareza. Eles no ajudaram em nada na defesa dos
Seis Ducados?
Pesei as palavras como se estivesse
apresentando um relatrio ao prprio Veracidade.
No tenho provas, minha senhora. Mas
imagino que as mensagens de Talento sobre
Navios Vermelhos algumas vezes nunca foram
transmitidas, ou foram deliberadamente atrasadas.
Acho que as ordens que Veracidade enviou pelo
Talento aos membros do crculo nas torres de
vigia no foram transmitidas s fortalezas que elas
supostamente defendiam. Obedeciam-lhe o
suficiente para que Veracidade no soubesse que
as suas mensagens e ordens tinham sido entregues
horas depois de envi-las. Aos olhos dos duques,
os seus esforos pareceriam ineptos e as
estratgias tardias ou insensatas. A minha voz
sumiu diante da ira que brotou no rosto de
Kettricken. A cor lhe subiu s bochechas, rosas
furiosas.
Quantas vidas? perguntou com voz rouca.
Quantas vilas? Quantos mortos ou, pior,
forjados? Tudo por causa do despeito de um
prncipe, tudo devido ambio pelo trono de um
garoto mimado? Como possvel que ele o tenha
feito, Fitz? Como pode ter suportado deixar
pessoas morrerem simplesmente para fazer com
que o irmo parecesse tolo e incompetente?
No tinha nenhuma verdadeira resposta a dar
quilo.
Talvez no achasse que eram pessoas e vilas
ouvi-me dizendo em voz baixa. Talvez para
ele fossem apenas peas de um jogo. Posses de
Veracidade a serem destrudas se no pudesse
conquist-las para si.
Kettricken fechou os olhos.
Isso no tem perdo disse em voz baixa
para si mesma. Parecia doente. De um modo
definitivo, mas estranhamente gentil, acrescentou:
Ter de mat-lo, FitzCavalaria.
To estranho, receber por fim aquela ordem
rgia.
Eu sei disso, minha senhora. J sabia da
ltima vez que tentei.
No corrigiu-me ela. Da ltima vez
que tentou, foi por voc. No sabia que isso havia
me enfurecido? Desta vez, estou lhe dizendo que
voc tem de mat-lo pelo bem dos Seis Ducados.
Sacudiu a cabea, quase surpresa. o nico
modo que ele tem de ser Sacrifcio pelo seu povo.
Ser morto para o bem dele antes que possa
machuc-lo mais.
Olhou abruptamente ao redor, para o crculo de
pessoas silenciosas aconchegadas em mantas que a
fitavam.
Vo dormir disse a todos, como se
fssemos crianas teimosas. Amanh temos de
levantar cedo de novo e mais uma vez viajar
rapidamente. Durmam enquanto podem.
Esporana saiu para o primeiro turno de vigia da
noite. Os outros deitaram-se e, medida que as
chamas do braseiro se extinguiam e a luz diminua,
tenho certeza de que foram adormecendo. Porm,
apesar da minha fadiga, eu fiquei deitado fitando a
escurido. minha volta havia apenas os sons de
pessoas respirando, do vento da noite que quase
no se movia atravs das rvores. Se sondasse
para fora, conseguia detectar Olhos-de-Noite
espreita, sempre alerta em busca do rato
descuidado. A paz e quietude da floresta presa
pelo inverno encontravam-se ao nosso redor.
Todos dormiam profundamente, exceto Esporana,
de vigia.
Mais ningum ouvia o impetuoso impulso do
anseio por Talento que crescia em mim a cada dia
da nossa viagem. No falara rainha sobre o meu
outro medo: que, se procurasse contactar
Veracidade com o Talento, eu nunca regressasse,
que submergisse naquele rio de Talento que
vislumbrara e fosse levado por ele para sempre.
At pensar nessa tentao me levava, trmulo,
beira da aquiescncia. Ferozmente, ergui as
minhas muralhas e limites, pondo todas as defesas
que aprendera entre mim e o Talento. Contudo,
naquela noite, coloquei-as no lugar no apenas
para manter Majestoso e o seu crculo fora da
minha mente, mas para me manter dentro dela.
CAPTULO 24

A Estrada do Talento

Qual a verdadeira fonte da magia? Nascer com


ela no sangue, como certos ces nascem para
seguir um odor, enquanto outros so melhores
guardando ovelhas? Ou ser algo que qualquer
um pode conquistar com a determinao de
aprender? Ou sero as magias inerentes s
pedras, guas e terras do mundo, de tal modo que
uma criana se embeba de habilidades com a
gua que bebe ou o ar que respira? Fao estas
perguntas sem qualquer noo de como descobrir
as respostas. Se conhecssemos a fonte, poderia
um feiticeiro de grande poder ser
deliberadamente criado por algum que
desejasse faz-lo? Seria possvel criar uma
criana para a magia como se cria um cavalo
para a fora ou a velocidade? Ou selecionar um
beb e comear a instruo antes mesmo de a
criana comear a falar? Ou construir a casa
onde fosse possvel usar magia em um local em
que a terra fosse mais rica nela? Essas perguntas
me assustam de tal maneira que quase no tenho
desejo de procurar as respostas, exceto pelo fato
de se eu no procurar, algum mais poder faz-
lo.

Era o incio da tarde quando chegamos trilha


larga marcada no mapa. O nosso estreito caminho
fundiu-se nela como um riacho se junta a um rio.
Deveramos segui-la durante alguns dias. s vezes
nos levava a passar por pequenas aldeias
aconchegadas em contrafortes abrigados das
Montanhas, mas Kettricken nos fez passar por elas
apressadamente, sem parar. Passamos por outros
viajantes na estrada, e esses ela saudava com
cortesia, mas afastava firmemente todas as
tentativas de conversa. Se algum a reconheceu
como filha de Eyod, no demonstrou. Chegou um
dia, no entanto, em que passamos o dia inteiro sem
obtermos sequer um vislumbre de outro viajante,
quanto mais de uma aldeia ou de uma cabana. A
trilha se estreitou, e os nicos rastros que havia
nela eram antigos, tornados indistintos pela neve
fresca. Quando nos levantamos no dia seguinte e
seguimos trilha afora, ela rapidamente minguou at
no ser mais do que um caminho vago por entre as
rvores. Kettricken parou vrias vezes e olhou em
volta, e uma vez nos fez voltar e depois prosseguir
em outra direo. Quaisquer que fossem os sinais
que ela seguia, eram sutis demais para mim.
Nessa noite, quando acampamos, ela pegou de
novo o mapa e o examinou. Notei a sua incerteza e
fui me sentar ao seu lado. No fiz perguntas, nem
ofereci conselhos, apenas fitei com ela as marcas
gastas no mapa. Por fim, ela olhou para mim.
Acho que estamos aqui disse. O dedo me
mostrou a extremidade do caminho comercial que
havamos seguido. Em algum lugar, ao norte de
ns, devemos encontrar esta outra estrada. Eu
esperava que houvesse alguma trilha antiga de
ligao entre as duas. Era uma ideia que fazia
sentido para mim, que esta velha estrada se ligasse
de algum modo a outra ainda mais esquecida. Mas
agora Suspirou. Amanh, suponho que
continuamos s cegas na esperana de que a sorte
nos ajude.
As suas palavras no deram nimo a nenhum de
ns.
Apesar de tudo, no dia seguinte prosseguimos
viagem. Viajamos firmemente para o norte, atravs
de uma floresta que parecia nunca ter sido tocada
por um machado. Galhos de rvores entrelaavam-
se muito acima de ns, enquanto geraes de
folhas e agulhas jaziam profundamente enterradas
no irregular manto de neve que se infiltrara at o
cho da floresta. Para o meu sentido da Manha,
aquelas rvores possuam uma vida
fantasmagrica que era quase animal, como se
tivessem adquirido alguma conscincia,
simplesmente em virtude da sua idade. Mas era
uma conscincia de um mundo mais vasto de luz e
umidade, de solo e de ar. No prestavam nenhuma
ateno nossa passagem, e tarde eu j me sentia
to insignificante quanto uma formiga. Nunca
pensara que seria desdenhado por uma rvore.
Enquanto continuvamos viajando, hora aps
hora, tenho certeza de que eu no era eu o nico a
perguntar a si mesmo se teramos nos perdido por
completo. Uma floresta to antiga teria engolido
uma estrada numa gerao. Razes teriam erguido
as suas pedras, folhas e agulhas a teriam coberto.
O que procurvamos podia j no existir, exceto
como uma linha em um mapa velho.
Foi o lobo, que como sempre seguia muito
nossa frente, que se deparou com ela primeiro.
No gosto nada disto, anunciou.
A estrada fica por ali gritei a Kettricken,
que seguia minha frente. A minha dbil voz
humana soou como o zumbido de uma mosca num
grande salo. Fiquei quase surpreso quando ela me
ouviu e olhou para trs. Notou a minha mo que
apontava, ento, com uma encolhida de ombros,
dirigiu os seus animais de carga em uma direo
mais voltada para oeste. Mesmo assim,
caminhamos durante algum tempo antes de eu
avistar entre as rvores que se aglomeravam na
nossa frente uma abertura reta como uma flecha.
Uma faixa de luz penetrava ali na floresta.
Kettricken levou os animais de carga para aquela
superfcie larga.
Qual o problema?
Ele sacudiu-se todo, como que para livrar a
pelagem de gua. demais de homem. Como uma
fogueira para cozinhar carne.
No compreendo.
Ele achatou as orelhas para trs. como uma
grande fora que foi diminuda e vergada
vontade de um homem. O fogo sempre procura
uma maneira para escapar do confinamento. Esta
estrada tambm.
A resposta dele no fazia sentido para mim.
Ento chegamos estrada. Observei Kettricken e
as jepas que me precediam. A estrada larga era um
corte reto atravs das rvores, com a superfcie
mais baixa do que a do solo da floresta, como
quando uma criana arrasta um graveto pela areia
e deixa para trs uma depresso. As rvores da
floresta cresciam ao longo da estrada e
debruavam-se sobre ela, mas nenhuma projetara
razes para a estrada, tampouco algum broto
brotara de l. Nem sequer a neve que cobria a sua
superfcie fora desfigurada, nem mesmo por um
rastro de ave. No havia sequer sinais atenuados
de velhos rastros cobertos pela neve. Ningum
percorrera aquela estrada desde que as neves de
inverno haviam comeado. At onde eu conseguia
ver, nem mesmo havia trilhas de caa que a
atravessassem.
Desci para a superfcie da estrada.
Foi como penetrar de rosto em teias de aranha.
Um pedao de gelo pelas costas abaixo. Entrar em
uma cozinha quente depois de ficar sob um vento
gelado. Foi uma sensao fsica que me capturou,
to penetrante como aquelas, e ainda assim to
indescritvel quanto a umidade ou a secura. Parei,
petrificado. Mas nenhum dos outros mostrou
qualquer conscincia daquilo quando saltaram da
borda da floresta para a superfcie da estrada. O
nico comentrio de Esporana, para si mesma, foi
que pelo menos ali a neve era menos profunda e se
caminhava melhor. Nem sequer indagou por que a
neve seria menos profunda na estrada, apenas
apressou-se atrs da fila de jepas. Eu continuava
parado na estrada, olhando em volta, alguns
minutos mais tarde quando Panela saiu das rvores
para a superfcie da estrada. Ela tambm parou.
Por um instante, pareceu surpreendida e resmungou
alguma coisa.
Voc disse feita de Talento? perguntei-
lhe.
Os seus olhos saltaram para mim como se no
tivesse reparado que eu estava de p ali bem na
sua frente. Fitou-me, furiosa. Por um momento, no
falou.
Eu disse eita, que tormento! declarou.
Quase torci o tornozelo quando saltei. Estas
botas da montanha no so mais rgidas do que
meias. Virou-me as costas e avanou com
dificuldade atrs dos outros. Segui-a. Por algum
motivo me sentia como se estivesse caminhando
atravs de gua, s que sem a resistncia da gua.
uma sensao difcil de descrever. Como se
alguma coisa flusse pela encosta acima minha
volta e me arrastasse com a sua corrente.
Procure uma maneira de escapar do
confinamento, observou de novo o lobo,
aborrecido. Ergui o olhar e o encontrei trotando ao
meu lado, mas na borda da floresta, no na
superfcie lisa da estrada. Seria mais sensato se
voc viajasse aqui por cima, comigo.
Pensei no assunto. Pareo estar bem. mais
fcil caminhar por aqui. mais liso.
Sim, e o fogo o aquece, at o momento em que o
queima.
Eu no tinha resposta a dar quilo. Em vez de
responder, caminhei durante algum tempo com
Panela. Aps dias andando em fila pelo caminho
estreito, aquilo parecia mais fcil e mais socivel.
Passamos o resto da tarde caminhando pela
estrada antiga. Ela se dirigia sempre para cima,
mas seguia sempre em ngulo pelas encostas dos
montes, de modo que o avano nunca era ngreme
demais. As nicas coisas que perturbavam o manto
liso de neve que cobria a estrada eram ocasionais
galhos mortos, cados das rvores, e a maior parte
deles estava se desfazendo em serragem. Nem uma
vez sequer vi rastros de animais, ao longo da
estrada ou a atravessando.
No h nem cheiro de caa, confirmou Olhos-
de-Noite num tom tristonho. Esta noite vou ter de
ir longe para arranjar carne fresca para mim.
Podia ir agora, sugeri.
No confio em voc sozinho nesta estrada,
informou-me ele com severidade.
O que poderia me fazer mal? Panela est bem
aqui ao meu lado, ento eu no ficaria sozinho.
Ela to m quanto voc, insistiu teimosamente
Olhos-de-Noite. Mas apesar das minhas perguntas,
no conseguiu me explicar o que queria dizer.
Apesar disso, medida que a tarde se
aprofundava e se transformava em noite, fui
comeando a ter ideias prprias. De vez em
quando apanhava a minha mente em intensos
devaneios, meditaes to absorventes que sair
delas era como acordar sobressaltado. E, como
acontece com muitos sonhos, estouravam como
bolhas, deixando-me quase sem qualquer
recordao sobre aquilo em que pensara.
Pacincia dando ordens militares, como se fosse
Rainha dos Seis Ducados. Bronco dando banho em
uma beb e cantarolando enquanto o fazia. Duas
pessoas que eu no conhecia colocando pedras
chamuscadas umas sobre as outras, enquanto
reconstruam uma casa. Pareciam imagens tolas e
vivamente coloridas, mas to intensamente ntidas
que eu quase acreditava nos meus prprios
devaneios. A caminhada fcil pela estrada que a
princpio parecera to agradvel comeou a se
assemelhar a uma precipitao involuntria, como
se uma corrente me empurrasse,
independentemente da minha vontade. No entanto,
eu no podia estar me apressando muito, pois
Panela me acompanhou a tarde inteira. Panela
interrompia frequentemente os meus pensamentos
para me fazer perguntas triviais, ou para chamar a
minha ateno para uma ave que nos sobrevoava,
ou para perguntar se as minhas costas me
incomodavam. Eu procurava responder, mas
momentos depois j no conseguia me lembrar do
que estvamos falando. No podia censur-la por
me olhar de cenho franzido, de tanto que me
mostrava desnorteado, mas tambm no conseguia
encontrar uma soluo para a minha mente ausente.
Passamos por um tronco cado atravessado na
estrada. Achei que havia algo de estranho nele e
pretendi mencionar isso a Panela, mas o
pensamento fugiu antes de conseguir domin-lo.
Estava to absorvido por coisa nenhuma que
quando o Bobo me chamou eu me sobressaltei.
Olhei em volta, mas j nem sequer consegui ver as
jepas.
FitzCavalaria! gritou ele de novo, e eu me
virei e descobri que havia passado no s por ele,
mas por toda a expedio. Panela, ao meu lado,
resmungou para si mesma enquanto voltava.
Os outros haviam parado e j estavam
descarregando as jepas.
Com certeza no pretendem montar a tenda no
meio da estrada? perguntou Panela, alarmada.
Esporana e o Bobo ergueram os olhos de onde
estendiam a forma da tenda de couro de cabra.
Teme as multides apressadas e as carroas?
perguntou o Bobo com sarcasmo.
plano e liso. Na noite passada, eu tinha
uma raiz ou uma pedra debaixo do colcho
acrescentou Esporana.
Panela ignorou-os e dirigiu-se a Kettricken.
E estaramos plena vista de qualquer um
que entrasse nesta estrada ao longo de uma grande
extenso em ambas as direes. Acho que
devamos sair da estrada e acampar debaixo das
rvores.
Kettricken olhou em volta.
Est quase escuro, Panela. E no creio que
temos muito a temer de perseguidores. Acho que
Estremeci quando o Bobo pegou o meu brao e
me levou at a borda da estrada.
Suba disse-me bruscamente quando
chegamos beira da floresta. Subi, apoiando-me
nas mos at me endireitar de novo sobre o musgo
da floresta. Uma vez l, bocejei, sentindo os
ouvidos desentupirem. Senti-me quase
imediatamente mais alerta. Olhei para trs, para a
estrada, onde Esporana e Kettricken estavam
juntando as peles da tenda para mov-las. Panela
j estava arrastando os postes para fora da estrada.
Ento decidimos acampar fora da estrada
observei, estupidamente.
Voc est bem? perguntou-me o Bobo,
ansioso.
Claro que sim. Minhas costas no doem mais
do que de costume acrescentei, achando que ele
se referia a isso.
Voc estava ali de p, fitando a estrada, sem
prestar ateno em ningum. Panela disse que voc
tem estado assim a maior parte da tarde.
Tenho andado um bocado desnorteado
admiti. Tirei a luva para tocar o meu rosto.
Acho que no estou ficando com febre. Mas foi
como pensamentos febris de arestas vivas.
Panela disse que acha que a estrada. Disse
que voc disse que ela havia sido feita de Talento.
Disse que eu disse? No. Eu pensei que foi
isso que ela disse quando chegamos estrada. Que
tinha sido feita de Talento.
O que ser feito de Talento? perguntou-
me o Bobo.
Moldado pelo Talento respondi, ento
acrescentei: Suponho. Nunca ouvi falar do
Talento sendo usado para fazer ou dar forma a
alguma coisa. Olhei para a estrada, curioso.
Flua to suavemente atravs da floresta, uma fita
de um branco puro, que desaparecia por entre as
rvores. Atraa o olhar, e eu quase conseguia ver o
que se encontrava para alm da elevao seguinte
da encosta arborizada.
Fitz!
Com um sobressalto, voltei a ateno ao Bobo,
aborrecido.
O qu? perguntei.
Ele estava tremendo.
Voc estava parado a, fitando a estrada
desde que o deixei. Achei que voc tinha ido
buscar lenha, at levantar os olhos e v-lo ainda
parado no mesmo lugar. Qual o problema?
Pisquei lentamente. Estivera caminhando por
uma cidade, olhando para as frutas de uns
amarelos e vermelhos vivos, amontoadas em
grandes pilhas nas barracas do mercado. Porm,
mesmo enquanto tentava alcanar esse sonho, ele
desapareceu, deixando-me na mente apenas uma
confuso de cores e odores.
No sei. Talvez esteja febril. Ou s muito
cansado. Eu vou buscar a lenha.
Eu vou com voc anunciou o Bobo.
Junto ao meu joelho, Olhos-de-Noite soltou um
ganido ansioso. Olhei-o.
Qual o problema? perguntei-lhe em voz
alta.
Ele ergueu o olhar para mim, com o pelo entre
os olhos eriado de preocupao. Voc no
parece estar me ouvindo. E os seus pensamentos
no so pensamentos.
Vou ficar bem. O Bobo est comigo. V caar.
Consigo sentir a sua fome.
E eu sinto a sua, respondeu ele num tom
ominoso.
Ento partiu, ainda que com relutncia. Eu segui
o Bobo para o interior da floresta, mas pouco mais
fiz do que transportar a lenha que ele apanhava e
me entregava. Sentia-me como se no conseguisse
acordar por completo.
Alguma vez j ficou estudando alguma coisa
tremendamente interessante, at levantar os olhos
de repente e descobrir que se passaram horas?
assim que me sinto neste momento.
O Bobo entregou-me outro pedao de madeira.
Voc est me assustando informou-me em
voz baixa. Est falando de uma maneira muito
parecida com a do Rei Sagaz na poca em que
estava enfraquecendo.
Mas naquela poca ele estava drogado contra
as dores observei. E eu no estou.
isso que assustador disse-me ele.
Voltamos juntos para o acampamento. Tnhamos
levado tanto tempo que Panela e Esporana j
haviam acendido uma pequena fogueira depois de
juntarem algum combustvel. A luz que ela lanava
iluminava a tenda em forma de cpula e as pessoas
que se moviam sua volta. As jepas eram sombras
que perambulavam por perto enquanto se
alimentavam. Quando empilhamos a lenha perto da
fogueira para ser usada mais tarde, Panela tirou os
olhos do que estava cozinhando.
Como voc est se sentindo? perguntou.
Um pouco melhor respondi.
Olhei em volta, em busca de alguma tarefa que
fosse preciso desempenhar, mas o acampamento
fora montado sem mim. Kettricken estava dentro
da tenda, absorta pelo mapa, luz de uma vela.
Panela mexia mingau de aveia junto da fogueira
enquanto, estranhamente, o Bobo e Esporana
conversavam em voz baixa. Fiquei imvel,
tentando me lembrar de algo que pretendera fazer,
algo que estivera fazendo. A estrada. Queria dar
outra olhada na estrada. Virei-me e caminhei na
sua direo.
FitzCavalaria!
Virei-me, surpreendido pelo tom penetrante do
chamado de Panela.
O que ?
Onde vai? perguntou. Fez uma pausa,
como que surpresa pela sua prpria pergunta.
Quero dizer, Olhos-de-Noite anda por a? No o
vejo h algum tempo.
Foi caar. Vai voltar. Recomecei a me
encaminhar para a estrada.
Normalmente, a esta hora j caou e
regressou prosseguiu ela.
Parei.
Ele disse que no h muita caa perto da
estrada. Ento teve de ir mais longe. Virei-me
de novo.
Ora, a est uma coisa que parece estranha
prosseguiu ela. No h sinal de trfego humano
pela estrada. E, no entanto, os animais ainda a
evitam. A caa normalmente no segue o caminho
que for mais fcil?
Eu lhe gritei:
Alguns animais seguem. Outros preferem
manter-se ocultos.
V busc-lo, garota! ouvi Panela dizer a
algum num tom penetrante.
Fitz! ouvi Esporana chamar, mas foi o
Bobo que me alcanou e me pegou pelo brao.
Volte para a tenda pediu, puxando-me
pelo brao.
S quero dar outra olhada na estrada.
Est escuro. No vai ver nada agora. Espere
at amanh, quando estivermos outra vez viajando
por ela. Por ora, volte para a tenda.
Fui com ele, mas lhe disse, irritado: Quem
est agindo de um modo estranho voc, Bobo.
No diria isso se tivesse visto a expresso no
seu rosto h pouco.
As raes nessa noite foram muito semelhantes
ao que vinham sendo desde que havamos deixado
Jhaampe: mingau de cereais espesso com algumas
mas secas cortadas, um pouco de carne seca e
ch. Enchia, mas no era empolgante. Nada fez
para me distrair do modo atento com que os outros
me observavam. Por fim larguei a caneca de ch e
perguntei:
O qu?
A princpio ningum disse nada. Ento
Kettricken disse, sem rodeios:
Fitz, esta noite voc no fica de vigia. Quero
que fique na tenda e durma.
Estou bem, posso aguentar um turno
comecei a protestar, mas foi a minha rainha que
ordenou: Estou lhe dizendo para ficar dentro da
tenda esta noite.
Por um momento, lutei contra a minha lngua.
Depois abaixei a cabea.
Como queira. Talvez eu esteja cansado
demais.
No. mais do que isso, FitzCavalaria. Esta
noite voc quase no comeu e, a menos que um de
ns o force a falar, no faz nada a no ser perder
os olhos ao longe. O que o distrai?
Tentei encontrar uma resposta para a pergunta
franca de Kettricken.
No sei. Exatamente. Pelo menos, uma
coisa difcil de explicar. O nico som era o
minsculo crepitar da fogueira. Todos os olhos
estavam postos em mim. Quando somos
treinados no Talento prossegui, mais devagar ,
ns nos tornamos mais conscientes de que a
prpria magia possui em si um perigo. Ela atrai a
ateno do utilizador. Quando estamos usando o
Talento para fazer uma coisa, temos de focar com
firmeza a ateno naquilo que pretendemos,
recusando-nos a sermos distrados pela atrao do
Talento. Se o utilizador do Talento perder esse
foco, se ceder ao Talento propriamente dito, pode
se perder nele. Pode ser absorvido por ele.
Ergui os olhos do fogo e olhei em volta, para os
rostos deles. Estavam todos imveis, exceto
Panela, que balanava a cabea muito
ligeiramente.
Hoje, desde que encontramos a estrada, senti
algo que quase como a atrao do Talento. No
tentei us-lo; na verdade, j faz alguns dias que
bloqueio o Talento em mim tanto quanto possvel,
por temer que o crculo de Majestoso possa tentar
penetrar na minha mente e me fazer mal. Contudo,
apesar disso, senti-me como se o Talento estivesse
me tentando. Como uma msica que quase consigo
ouvir, ou um odor muito tnue de caa. Eu me
apanho me esforando para segui-la, tentando
descobrir o que me chama
O meu olhar saltou para Panela, vi a nsia
distante nos seus olhos.
Ser pelo fato de a estrada ser feita de
Talento?
Um claro de ira atravessou o rosto dela. Baixou
os olhos para as mos velhas enroladas no colo.
Soltou um suspiro de exasperao.
Pode ser. As velhas lendas que ouvi dizem
que quando uma coisa feita de Talento, pode ser
perigosa para algumas pessoas. No para pessoas
comuns, mas para aqueles que tm aptido para o
Talento, mas no foram treinados nele. Ou para
aqueles cujo treino no est suficientemente
avanado para saberem como ter cuidado.
Nunca ouvi falar de nenhuma lenda sobre
coisas feitas de Talento. Virei-me para o Bobo
e para Esporana. Vocs ouviram?
Ambos sacudiram lentamente as cabeas.
Parece-me eu disse com cautela a Panela
que algum que leu tanto como o Bobo deveria
ter se deparado com essas lendas. E certamente
que uma menestrel treinada devia ter ouvido
alguma coisa sobre elas. Continuei a olh-la
firmemente.
Ela cruzou os braos sobre o peito.
O que eles no leram ou ouviram no culpa
minha disse, com rigidez. S lhes digo o que
me foi dito, h muito tempo.
H quanto tempo? pressionei. minha
frente, Kettricken franziu o cenho, mas no
interferiu.
H muito, muito tempo respondeu
friamente Panela. Na poca em que os jovens
respeitavam os mais velhos.
O rosto do Bobo iluminou-se com um sorriso
deliciado. Panela pareceu sentir que ganhara
alguma coisa, pois largou com estrondo a caneca
de ch na tigela de mingau e as entregou a mim.
a sua vez de lavar a loua disse-me com
severidade. Levantou-se, afastou-se da fogueira e
entrou na tenda, batendo com fora com os ps no
cho.
Enquanto juntava lentamente a loua para limp-
la com neve limpa, Kettricken veio ficar ao meu
lado.
Do que voc suspeita? perguntou-me do
seu modo franco. Acha que ela uma espi,
uma inimiga entre ns?
No. No acho que seja inimiga. Mas acho
que alguma coisa. No s uma velha com um
interesse religioso no Bobo. Algo mais do que
isso.
Mas voc no sabe o qu?
No. No sei. S sei que reparei que ela
parece saber muito mais sobre o Talento do que eu
esperaria que soubesse. Em todo o caso, uma
pessoa idosa acumula muitos conhecimentos
estranhos ao longo de uma vida. Pode no passar
disso. Levantei os olhos para onde o vento
agitava as copas das rvores. Acha que teremos
neve esta noite? perguntei a Kettricken.
Quase com certeza. E teremos sorte se parar
antes da manh. Devamos recolher mais lenha e
empilh-la perto da porta da tenda. No, voc no.
Voc deve entrar na tenda. Se comeasse a vagar
agora, nesta escurido e com neve a caminho,
jamais o encontraramos.
Comecei a protestar, mas ela me deteve com
uma pergunta.
O meu Veracidade. Ele mais treinado no
Talento do que voc?
Sim, minha senhora.
Acha que esta estrada chamaria por ele,
como chama por voc?
Quase com certeza. Mas ele sempre foi muito
mais forte do que eu no que diz respeito ao Talento
ou teimosia.
Um sorriso triste torceu os seus lbios.
Sim, aquele teimoso. Soltou de repente
um suspiro pesado. Quem dera fssemos
apenas um homem e uma mulher, vivendo longe
tanto do mar como das montanhas. Quem dera as
coisas fossem simples para ns.
Eu tambm tenho esse desejo disse em voz
baixa. Desejo bolhas nas mos de um trabalho
simples e as velas de Moli iluminando o nosso lar.
Espero que consiga isso, Fitz disse
Kettricken em voz baixa. Espero mesmo. Mas
temos um longo caminho a percorrer daqui at l.
Isso verdade concordei. E uma espcie
de paz desabrochou entre ns. No duvidava de
que, se as circunstncias o exigissem, ela levaria a
minha filha para o trono. Mas ela no teria sido
mais capaz de mudar a sua atitude diante do dever
e do sacrifcio do que de mudar o sangue e os
ossos do seu corpo. Era quem ela era. No era
como se ela quisesse me roubar a beb.
Tudo o que eu tinha de fazer para ficar com a
minha filha era lhe devolver o marido so e salvo.
Nessa noite fomos para a cama mais tarde do
que havia se tornado nosso costume. Todos
estvamos mais cansados do que o normal. O
Bobo ficou com o primeiro turno de vigia, apesar
das rugas de tenso que o rosto mostrava. O novo
tom marfim que a sua pele tomara lhe dava um
aspecto terrvel quando sentia frio, como se fosse
uma esttua de infelicidade esculpida em osso
antigo. O resto de ns no reparava muito no frio
quando nos mexamos durante o dia, mas no acho
que o Bobo alguma vez se sentiu completamente
aquecido. E, no entanto, agasalhou-se bem e foi l
para fora, para o vento que aumentava de
intensidade, sem um murmrio de queixa. O resto
de ns deitou-se para dormir.
A tempestade foi, a princpio, uma coisa que
estava acontecendo acima de ns, nas copas das
rvores. Agulhas soltas caam com rudo contra a
pele da tenda e, medida que a tempestade se
tornava mais intensa, o mesmo acontecia com
pequenos galhos e descargas ocasionais de neve
gelada. O frio aumentou e transformou-se em algo
que penetrava por cada abertura em cobertores ou
vestimentas. No meio do turno de Esporana,
Kettricken a chamou para dentro, dizendo que a
tempestade agora ficaria de vigia por ns. Quando
Esporana entrou, o lobo deslizou para dentro logo
atrs. Para meu alvio, ningum fez grandes
objees. Quando Esporana comentou que ele
trazia neve consigo, o Bobo respondeu que o lobo
tinha menos neve em cima do que ela. Olhos-de-
Noite veio imediatamente para a nossa parte da
tenda e deitou-se entre o Bobo e a parede exterior.
Pousou a sua grande cabea no peito do Bobo e
soltou um suspiro antes de fechar os olhos. Quase
senti cime.
Ele tem mais frio do que voc. Muito mais. E,
na cidade, onde a caa era to ruim, com
frequncia dividiu comida comigo.
Bem. Ento ele alcateia?, perguntei, com um
vestgio de divertimento.
Diga-me voc, desafiou-me Olhos-de-Noite. Ele
salvou a sua vida, alimentou-o com as suas
presas e dividiu com voc o seu covil. alcateia
conosco ou no?
Suponho que seja, respondi aps refletir um
momento. Nunca tinha visto as coisas
propriamente daquela forma. Discretamente,
desloquei os cobertores um pouco para mais perto
do Bobo.
Est com frio? perguntei em voz alta.
Desde que eu continue tremendo, no
respondeu ele com uma voz infeliz. Ento
acrescentou: Na verdade, estou mais quente
com o lobo entre mim e a parede. Ele solta muito
calor.
Ele est grato por todas as vezes que voc o
alimentou em Jhaampe.
O Bobo me olhou de soslaio atravs da
escurido que reinava na tenda.
mesmo? Achava que os animais no
carregassem consigo recordaes durante tanto
tempo.
Aquilo me surpreendeu o suficiente para me
fazer pensar no assunto.
Normalmente no carregam. Mas, esta noite,
ele se lembra de que voc o alimentou e est grato.
O Bobo ergueu uma mo para coar
cuidadosamente em volta das orelhas de Olhos-de-
Noite. Este soltou um grunhido de prazer, como um
filhote, e aconchegou-se mais, feliz. Pensei de
novo em todas as mudanas que eu estava vendo
nele. Cada vez com mais frequncia, as suas
reaes e pensamentos eram uma mistura de
humano e de lobo.
Estava cansado demais para me entregar durante
muito tempo a esses pensamentos. Fechei os olhos
e comecei a me afundar no sono. Passado algum
tempo, percebi que tinha os olhos bem fechados, a
boca cerrada e no estava mais prximo de
adormecer. Desejei simplesmente abrir mo da
conscincia, de to cansado que me sentia, mas o
Talento me ameaava e chamava com tal
insistncia que eu no conseguia relaxar o
suficiente para dormir. No parava de me mexer,
tentando encontrar uma posio fsica que fosse
mais relaxante, at que Panela, ao meu outro lado,
perguntou mordazmente se eu tinha pulgas. Tentei
me manter quieto.
Fitei a escurido do teto da tenda, escutando o
vento que soprava l fora e a calma respirao dos
meus companheiros. Fechei os olhos e relaxei os
msculos, tentando pelo menos descansar o corpo.
Desejava to desesperadamente adormecer. Mas
sonhos de Talento me puxaram como minsculos
ganchos farpados espetados na minha mente at eu
achar que devia gritar. A maior parte era horrvel.
Algum tipo de cerimnia de forjamento numa
aldeia costeira, um enorme fogo ardendo num
fosso e cativos, empurrados por ilhus
escarnecedores, a quem era oferecida a alternativa
de serem forjados ou de se atirarem no fosso.
Crianas assistiam. Afastei com uma sacudida a
mente das chamas.
Recuperei o flego e acalmei os olhos. Dormir.
Em um quarto do Castelo de Torre do Cervo,
Renda estava retirando com cuidado a renda de um
velho vestido de noiva. Tinha a boca firmemente
apertada em desaprovao enquanto puxava as
minsculas linhas que prendiam o trabalho
ornamentado.
Dar um bom preo disse-lhe Pacincia.
Talvez o suficiente para abastecer as nossas
torres de vigia durante mais um ms. Ele
compreenderia o que temos de fazer por Cervo.
Mantinha a cabea muito ereta e havia mais cinza
no negro do seu cabelo do que eu recordava,
enquanto os seus dedos desatavam as cordas de
minsculas prolas que cintilavam na gola
rendilhada do vestido. O tempo envelhecera o
branco do vestido at torn-lo cor de marfim, e a
exuberante amplitude das saias caa em cascata
sobre os colos. Pacincia inclinou subitamente a
cabea como quem escuta, com um franzido
intrigado no rosto. Fugi.
Usei toda a minha fora de vontade para abrir os
olhos. O fogo no pequeno braseiro ardia com
pouca intensidade, lanando uma luz avermelhada.
Examinei os postes que sustentavam as peles
retesadas. Acalmei a respirao com a fora de
vontade. No me atrevi a pensar em nada que
pudesse me atrair para fora da minha vida, nem em
Moli, nem em Bronco, nem em Veracidade. Tentei
descobrir alguma imagem neutra na qual repousar
a mente, algo sem conotaes especiais na minha
vida. Evoquei uma paisagem incaracterstica. Uma
plancie lisa e vazia de terra envolta em neve
branca, encimada por um pacfico cu noturno.
Abenoada quietude Afundei-me nela como
quem se afunda em um suave colcho de penas.
Um cavaleiro aproximava-se rapidamente, muito
inclinado, agarrado ao pescoo do cavalo,
incentivando-o a avanar. Havia uma beleza
simples e segura na dupla, o cavalo em corrida, o
manto esvoaante do homem imitado pela cauda
fluida do cavalo. Durante algum tempo, nada mais
houve do que aquilo, o cavalo e cavaleiro escuros
abrindo caminho pela plancie nevada sob um cu
aberto iluminado pelo luar. O cavalo corria bem,
um fcil estender e contrair de msculos, e o
homem o cavalgava com leveza, quase parecendo
montar acima dele e no s suas costas. A lua
cintilou prateada na testa do homem, reluzindo no
emblema do cervo rampante que ele usava. Breu.
Apareceram trs cavaleiros. Dois vieram por
trs, mas esses cavalos corriam fatigada e
pesadamente. O cavaleiro solitrio se afastaria
deles se a perseguio durasse muito mais tempo.
O terceiro perseguidor cortava a plancie fazendo
um ngulo com os demais. O cavalo malhado
corria com vontade, sem prestar ateno neve
mais funda que atravessava. O seu pequeno
cavaleiro o montava alto e bem, uma mulher ou um
jovem. O luar danava com leveza ao longo de
uma lmina desembainhada. Durante algum tempo
pareceu que o jovem cavaleiro intersectaria o
caminho de fuga de Breu, mas o velho assassino o
viu. Falou ao cavalo, e o castrado irrompeu em
velocidade, incrvel de se ver. Deixou os dois
pesados perseguidores muito para trs, mas o
malhado chegava agora ao rastro de neve
compactada e as suas patas estenderam-se, longas,
enquanto ele procurava aproximar-se. Durante
algum tempo, pareceu que Breu escaparia sem
problemas, mas o cavalo malhado estava mais
descansado. O castrado no conseguiu manter a
sua exploso de velocidade, e o ritmo regular do
malhado foi lentamente lhe devorando a vantagem.
A distncia foi se reduzindo, gradual, mas
inexoravelmente. Ento o cavalo malhado surgiu
correndo logo atrs do castrado negro. O castrado
diminuiu a velocidade e Breu virou-se na sela e
ergueu um brao em saudao. O outro cavaleiro
lhe gritou, com uma voz fina no ar frio.
Por Veracidade, o verdadeiro rei! Atirou-
lhe um saco, e ele atirou um embrulho mulher.
De repente, separaram-se, os dois cavalos
afastando-se do caminho compactado para se
distanciarem um do outro. O rudo dos cascos foi
sumindo na noite.
As esforadas montarias dos perseguidores
estavam cobertas de espuma e midas, soltando
vapor no ar frio. Os seus cavaleiros as fizeram
parar, praguejando, quando chegaram ao local
onde Breu e a companheira haviam se separado.
Fragmentos de conversas misturadas com
palavres pairaram no ar. Malditos militantes
Visionrio! e No h como saber qual deles est
com ele agora! e por fim No vou voltar para
enfrentar chicotadas por causa dessa porcaria.
Pareceram chegar a um acordo, pois deixaram os
cavalos respirar, ento continuaram mais
lentamente, ao longo do caminho compactado,
afastando-se do local de onde tinham vindo.
Encontrei-me por um instante. Foi estranho
descobrir que estava sorrindo, apesar do suor me
enevoar o rosto. O Talento flua forte e fiel. Estava
respirando fundo devido tenso que ele me
causava. Tentei me afastar dele, mas a doce
trepidao do conhecimento era penetrante demais.
Senti-me eufrico pela fuga de Breu, eufrico por
saber que havia militantes que trabalhavam por
Veracidade. O mundo estendeu-se vasto minha
frente, tentador como uma bandeja de bolos doces.
O meu corao escolheu num instante.
Uma beb chorava, daquela maneira infindvel e
impotente das crianas. A minha filha. Estava
deitada em uma cama, ainda envolta em um
cobertor molhado de chuva. Tinha o rosto
vermelho com o fervor dos gritos. A frustrao
enclausurada na voz de Moli era assustadora
quando ela disse:
Fique quieta. No pode ficar quieta?
A voz de Bronco, severa e cansada.
No se zangue com ela. s uma beb.
Provavelmente est apenas com fome.
Moli levantou-se, de lbios muito cerrados,
braos bem apertados em volta do peito. Tinha as
bochechas rubras e o cabelo transformado em
madeixas molhadas. Bronco pendurou o manto
encharcado. Haviam estado todos em algum lugar,
juntos, e acabavam de regressar. As cinzas
estavam mortas na lareira, a cabana encontrava-se
fria. Bronco foi at a lareira, ajoelhou-se junto
dela desajeitadamente, poupando o joelho, e
comeou a escolher gravetos para acender um
fogo. Consegui sentir a tenso que havia nele e
percebi como procurava conter a irritao.
Cuide da beb sugeriu em voz baixa.
Eu acendo o fogo e ponho um pouco de gua para
ferver.
Moli tirou o manto e moveu-se com inteno de
pendur-lo ao lado do dele. Eu sabia como ela
odiava que lhe dissessem o que fazer. A beb
continuava a berrar, numa exigncia to despida de
remorso como o vento de inverno que soprava l
fora.
Estou com frio, cansada, com fome e estou
molhada. Ela vai ter de aprender que s vezes tem
simplesmente de esperar.
Bronco debruou-se para frente para soprar uma
centelha, e praguejou em voz baixa quando ela no
pegou.
Ela tambm est com frio e fome e est
cansada e molhada observou. A sua voz estava
ficando mais dura. Continuou obstinadamente
tentando acender o fogo. E pequena demais
para fazer alguma coisa a esse respeito. Logo,
chora. No para atormentar voc, mas para lhe
dizer que precisa de ajuda. como um cachorro
ganindo, mulher, ou um pinto piando. Ela no faz
isto para aborrecer. A voz dele aumentava a
cada frase.
Bem, mas aborrece! declarou Moli, e
virou-se para o fogo. Vai ter simplesmente de
chorar tudo o que tem para chorar. Estou cansada
demais para lidar com ela. E est ficando mimada.
No faz nada a no ser chorar para que lhe peguem
no colo. J no tenho um momento para mim. Nem
sequer consigo dormir uma noite do incio ao fim.
Dar de comer beb, lavar a beb, trocar a roupa
da beb, pegar a beb no colo. A minha vida agora
isso. Listou os seus agravos de um modo
agressivo. Tinha nos olhos aquela cintilao, a
mesma que eu via quando desafiava o pai, e eu
sabia que ela esperava que Bronco ficasse de p e
avanasse contra ela. Mas ele soprou um
minsculo claro e grunhiu de satisfao quando
uma estreita lngua de chama se estendeu e
incendiou uma espiral de casca de btula. Nem
sequer se virou para olhar para Moli ou para a
criana chorosa. Acrescentou ao minsculo fogo
graveto atrs de graveto, e eu me maravilhei por
ele conseguir no estar consciente da fria de Moli
atrs de si. Eu no teria ficado to composto se ela
estivesse atrs de mim com aquela expresso no
rosto.
S se ergueu depois de o fogo se mostrar bem
firme, e ento se virou, no para Moli, mas para a
criana. Passou por Moli como se ela no
estivesse ali. No sei se viu o modo como ela se
fortaleceu para no estremecer diante do golpe que
esperava que ele lhe desse. Partiu o meu corao
ver aquela cicatriz que o pai deixara nela. Bronco
debruou-se sobre a beb, falando na sua voz
calmante enquanto a despia. Assisti em uma
espcie de reverncia a forma competente como
lhe trocou a fralda. Bronco olhou em volta, e ento
pegou uma das suas camisas de l, que estava
pendurada no encosto de uma cadeira, e enrolou a
beb nela. A criana continuou a berrar, mas numa
nota diferente. Bronco a apoiou no ombro e usou a
mo livre para encher a panela e coloc-la no
fogo. Foi como se Moli no estivesse l. O rosto
dela ficou branco e os seus olhos se arregalaram
quando ele comeou a medir cereais. Quando
descobriu que a gua ainda no estava fervendo,
sentou-se com a beb e lhe deu palmadinhas
rtmicas nas costas. O choro tornou-se menos
determinado, como se a beb estivesse se
cansando dele.
Moli foi at eles a passos largos.
D-me a beb. Vou lhe dar de mamar agora.
Bronco virou lentamente os olhos para ela.
Tinha o rosto impassvel.
Quando estiver calma e quiser peg-la no
colo, eu a darei a voc.
Vai me d-la agora! Ela minha filha!
gritou Moli, e estendeu as mos para a beb.
Bronco a parou com um olhar. Ela deu um passo
para trs. Est tentando me deixar
envergonhada? perguntou. Sua voz estava se
tornando estridente. Ela minha filha. Tenho o
direito de cri-la como bem entender. No precisa
ficar no colo o tempo todo.
Isso verdade concordou ele com
brandura, mas no fez qualquer movimento para
lhe entregar a criana.
Voc acha que eu sou uma me ruim. Mas o
que voc sabe sobre crianas, para dizer que estou
errada?
Bronco levantou-se, cambaleou meio passo com
a perna ruim e recuperou o equilbrio. Pegou a
medida de cereais. Espalhou-a na gua fervendo,
ento a mexeu para molhar uniformemente os
gros. Em seguida colocou uma tampa justa sobre
a panela e a puxou ligeiramente para mais longe do
alcance do fogo. Enquanto o fazia, no parou de
embalar a beb na dobra de um brao. Notei que
ele estivera pensando quando respondeu:
Bebs, talvez no. Mas sei sobre coisas
novas. Potros, cachorros, bezerros, leites. At
gatos caadores. Sei que se quiser que confiem em
voc, preciso tocar com frequncia quando so
pequenos. Com gentileza, mas firme, para que
tambm acreditem na sua fora.
Deixou-se levar pelo tema da conversa. Eu
ouvira aquela aula uma centena de vezes,
normalmente dada a cavalarios impacientes.
No se grita a eles, nem se faz movimentos
sbitos que paream ameaadores. Damos boa
alimentao e gua limpa, e os mantemos limpos e
lhes damos abrigo contra o mau tempo. A sua
voz baixou acusadoramente quando acrescentou:
No se leva at eles a sua irritao, nem
confunde punio com disciplina.
Moli pareceu chocada com as palavras dele.
A disciplina vem da punio. Uma criana
aprende a disciplina quando punida por fazer
algo de errado.
Bronco sacudiu a cabea.
Eu gostaria de punir o homem que lhe
enfiou isso na cabea a pancada disse, e uma
ponta do seu antigo temperamento apareceu na sua
voz. O que foi que voc aprendeu realmente
com o seu pai descontando em voc as irritaes
dele? perguntou. Que mostrar ternura sua
beb uma fraqueza? Que ceder e pegar sua filha
ao colo quando ela chora porque quer voc deixa
de alguma forma de ser a coisa adulta a se fazer?
No quero falar do meu pai declarou Moli
de sbito, mas havia incerteza na sua voz.
Estendeu a mo para a beb como uma criana
tentaria alcanar o brinquedo preferido, e Bronco
a deixou pegar a filha. Moli sentou-se nas pedras
da lareira e abriu a blusa. A beb procurou o seio
com avidez e calou-se num instante. Durante algum
tempo, os nicos sons que se ouviram foram o
vento sussurrando l fora, o borbulhar da panela
de mingau e os pequenos rudos que Bronco fazia
com os gravetos com que alimentava o fogo.
Nem sempre voc manteve a pacincia com Fitz
quando ele era pequeno resmungou Moli em
tom de censura.
Bronco soltou uma breve gargalhada.
No acho que algum pudesse ser
eternamente paciente com aquele l. Quando o
recebi, tinha cinco ou seis anos e eu no sabia
nada sobre ele. E eu era jovem, com muitos outros
interesses. Voc pode colocar um potro num
curral, ou prender um co durante algum tempo.
Com uma criana no assim. No pode nunca
esquecer que tem um filho, nem por um instante.
Encolheu os ombros em um gesto de impotncia.
Antes que eu percebesse, ele havia se
transformado no centro da minha vida. Uma
pequena pausa estranha. Depois o tiraram de
mim, e eu deixei E agora est morto.
Um silncio. Desejei desesperadamente alcan-
los para lhes dizer que estava vivo. Mas no
podia. Podia ouvi-los, podia v-los, mas no
podia alcan-los. Como o vento fora da casa,
urrei e bati nas paredes, inutilmente.
O que vou fazer? O que ser de ns?
perguntou, de repente, Moli a ningum. O
desespero na sua voz dilacerava. Aqui estou.
Sem marido, com uma criana e sem maneira de
estabelecer o meu caminho no mundo. Tudo o que
poupei desapareceu. Olhou para Bronco. Fui
to estpida. Sempre acreditei que ele viria
minha procura, que casaria comigo. Mas ele nunca
o fez. E agora nunca far. Comeou a balanar
enquanto apertava a beb contra si. Lgrimas
escorreram pelo seu rosto sem que prestasse
ateno nela. No pense que no ouvi aquele
velho hoje, aquele que disse que tinha me visto na
Cidade de Torre do Cervo e que eu era a vadia do
Bastardo da Manha. Essa histria demorar quanto
tempo at chegar Praia do Capelim? No me
atrevo mais a ir vila, no posso erguer a cabea.
Algo saiu de Bronco diante daquelas palavras.
Afundou-se, com o cotovelo no joelho, de cabea
na mo. Murmurou:
Pensei que voc no o tinha ouvido. Se ele
no tivesse metade da idade de deus, eu o teria
feito responder pelas suas palavras.
No pode desafiar um homem por dizer a
verdade disse Moli com desnimo.
Aquilo fez com que a cabea de Bronco se
erguesse.
Voc no uma vadia! declarou com
fervor. Era a esposa de Fitz. No sua culpa
que nem todos soubessem.
Esposa dele disse Moli para si mesma,
num tom de escrnio. No era, Bronco. Ele
nunca chegou a casar comigo.
Era assim que ele me falava de voc.
Acredite, eu sei. Se ele no tivesse morrido, teria
vindo sua procura. verdade. Ele sempre teve a
inteno de fazer de voc sua esposa.
Oh, sim, ele tinha muitas intenes. E disse
muitas mentiras. Intenes no so atos, Bronco.
Se cada mulher que tivesse ouvido um homem
prometer casamento fosse uma esposa, bem,
haveria uma enchente a menos de bastardos no
mundo. Endireitou-se e enxugou as lgrimas do
rosto com uma finalidade cansada. Bronco no
respondeu s suas palavras. Ela baixou os olhos
para o pequeno rosto que estava finalmente em
paz. A beb adormecera. Moli introduziu o
mindinho na boca da criana para soltar o mamilo
da boca adormecida da beb, que o segurava.
Enquanto abotoava a blusa, deu um leve sorriso.
Acho que sinto um dente nascendo. Talvez ela
esteja birrenta por causa do nascimento dos
dentes.
Um dente? Deixe-me ver! exclamou
Bronco, e veio debruar-se sobre a beb enquanto
Moli puxava cuidadosamente o rosado lbio
inferior da filha para revelar uma minscula meia-
lua branca que aparecia na sua gengiva. A minha
filha afastou-se do toque, franzindo a testa sem
acordar. Bronco tirou-a gentilmente das mos de
Moli e a levou para a cama. Deitou-a l, ainda
envolta na camisa. Junto ao fogo, Moli tirou a
tampa da panela e mexeu o mingau.
Eu vou tomar conta de vocs duas
ofereceu-se Bronco de um modo atrapalhado.
Olhou para a criana enquanto falava. No sou
to velho que no possa arranjar trabalho, sabe?
Enquanto puder brandir um machado, poderemos
trocar ou vender lenha na vila. Daremos um jeito
de nos arranjar.
Voc no nada velho disse Moli num
tom distrado enquanto salpicava o mingau com um
pouco de sal. Foi at a cadeira e sentou-se. Tirou
uma pea de roupa que precisava ser remendada
de um cesto ao lado da cadeira e a revirou nas
mos, decidindo por onde comear. Voc
parece acordar novo todos os dias. Veja esta
camisa. Descosturada no ombro, como se um
garoto em crescimento tivesse feito isso. Acho que
voc fica mais novo a cada dia. Mas eu sinto que
envelheo a cada hora que passa. E no posso
viver para sempre da sua bondade, Bronco.
Preciso prosseguir com a minha vida. De algum
modo. s que no consigo imaginar por onde
comear, neste momento.
Ento no se preocupe com isso, neste
momento disse ele num tom reconfortante. Foi
se colocar atrs da cadeira dela. As suas mos se
ergueram como se desejasse coloc-las nos
ombros dela. Mas, em vez disso, cruzou os braos
sobre o peito. Logo ser primavera.
Arranjaremos um jardim e as migraes de peixes
recomearo. Podem estar contratando l em Praia
do Capelim. Voc ver, vamos dar um jeito.
O otimismo dele tocou em algo nela.
Eu devia comear agora a fazer algumas
colmeias de palha. Com muita sorte, eu poderia
encontrar um enxame de abelhas.
Eu conheo um campo florido nas colinas
onde as abelhas trabalham em grande nmero no
vero. Se pusermos l as nossas colmeias, as
abelhas se mudariam para elas?
Moli sorriu para si mesma.
Elas no so como pssaros, pateta. S saem
em enxame quando a antiga tem abelhas demais.
Podamos arranjar um enxame dessa maneira, mas
s quando o vero j estivesse no auge, ou no
outono. No. Ao chegar a primavera, quando as
abelhas comeam a acordar, tentaremos encontrar
uma rvore de abelhas. Eu costumava ajudar o meu
pai a caar abelhas quando era menor, antes de me
tornar esperta o suficiente para tratar das colmeias
durante o inverno. Voc coloca um prato de mel
aquecido l fora para atra-las. Primeiro vir uma,
depois outras. Se voc for bom, e eu sou, pode
encontrar a fila de abelhas e segui-la at a rvore
de abelhas. Isso s o incio, claro. Depois
precisa forar o enxame a sair da rvore e a entrar
na colmeia que preparou. s vezes, se a rvore for
pequena, pode simplesmente cort-la e levar a
abelheira para casa com voc.
Abelheira?
o ninho selvagem que cresce na rvore.
E elas no nos picam? perguntou Bronco,
incrdulo.
Se fizermos as coisas direito, no disse
ela calmamente.
Voc ter que me ensinar como se faz
disse ele com humildade.
Moli torceu-se na cadeira para olh-lo. Sorriu,
mas no foi um sorriso como o antigo. Era um
sorriso que reconhecia que estavam fingindo que
tudo aconteceria como planejavam. Ela agora
sabia bem demais que no era possvel confiar
completamente em nenhuma esperana.
Se me ensinar a escrever as minhas letras.
Renda e Pacincia comearam, e eu sei ler um
pouco, mas a escrita mais difcil para mim.
Eu vou lhe ensinar, e depois voc pode
ensinar Urtiga prometeu-lhe Bronco.
Urtiga. Ela deu o nome de Urtiga minha filha, o
nome da erva que ela ama, embora lhe deixe
grandes irritaes nas mos e nos braos se for
descuidada quando a colhe. Era assim que ela
pensava na nossa filha, que trazia dor ao mesmo
tempo que trazia satisfao? Doa-me pensar que
fosse assim. Algo puxou a minha ateno, mas me
agarrei ferozmente ao local em que me encontrava.
Se aquilo era o mais prximo que eu podia estar
de Moli naquele momento, ento recolheria o que
pudesse e me agarraria a isso.
No. Veracidade falou com firmeza. Afaste-se
agora. Voc os est colocando em perigo. Acha
que hesitaro em destru-los, se pensarem que
fazendo isso o machucariam e enfraqueceriam?
De repente, eu estava com Veracidade. Ele
estava em algum lugar frio, ventoso e escuro.
Tentei ver mais do que havia nossa volta, mas
ele bloqueou os meus olhos. Trouxera-me para ali
to facilmente contra a minha vontade, fora to
fcil me bloquear a viso. A fora do Talento nele
era assustadora. Mas eu conseguia sentir que ele
estava cansado, exausto quase at a morte apesar
do seu vasto poder. O Talento era como um forte
garanho e Veracidade era como a corda
esgarada que o prendia. O Talento o puxava a
cada minuto, e a cada minuto ele resistia.
Estamos indo at voc, disse-lhe sem
necessidade.
Eu sei. Depressa. E no faa mais isto, no
volte a pensar neles e no conceda nenhum
pensamento aos nomes daqueles que gostariam
de nos fazer mal. Aqui, cada suspiro um grito.
Eles tm poderes que voc no imagina, em
foras que no pode desafiar. Onde quer que
voc v, os seus inimigos podem segui-lo.
Portanto, no deixe rastros.
Mas onde voc est?, perguntei enquanto ele me
empurrava para longe.
Encontre-me!, ordenou-me e me atirou de volta
ao meu corpo e minha vida.
Sentei-me nos cobertores, arquejando
convulsivamente em busca de ar. Aquilo me
lembrou uma luta e de ser golpeado nas costas. Por
um momento, soltei uns sons minsculos enquanto
procurava encher os pulmes. Por fim, consegui
fazer uma inspirao completa. Olhei minha
volta na escurido. Fora da tenda, a tempestade
uivava. O braseiro era um pequeno claro
vermelho no centro, que iluminava pouco mais do
que a silhueta aconchegada de Panela que dormia
ao meu lado.
Est bem? perguntou-me o Bobo em voz
baixa.
No respondi calmamente. Deitei-me de
novo ao seu lado. De repente eu estava cansado
demais para pensar, cansado demais para dizer
outra palavra. O suor no meu corpo esfriou e
comecei a tremer. O Bobo me surpreendeu
passando um brao minha volta. Aproximei-me
dele, sentindo-me grato, partilhando do calor. A
compreenso do meu lobo me envolveu. Esperei
que o Bobo dissesse algo reconfortante. Ele teve a
sensatez de no tentar. Adormeci ansiando por
palavras que no existiam.
CAPTULO 25

Estratgia

Seis Eruditos a Jhaampe vieram


Subiram um monte e nunca desceram
A pele perderam e a carne acharam
Em asas de pedra para longe voaram.

Cinco Eruditos a Jhaampe vieram


Uma estrada lisa e plana percorreram
Rasgaram-se em muitos, em um se tornaram
E uma tarefa por acabar abandonaram.

Quatro Eruditos a Jhaampe vieram


Nem um som se ouviu naquilo que disseram
Que pudessem partir foi rainha o pleito
E no mais se soube o que deles foi feito.

Trs Eruditos a Jhaampe vieram


Ajudando a defender uma coroa estiveram
Mas quando tentaram o monte escalar
De l se despencaram, em queda de espantar.

Dois Eruditos a Jhaampe vieram


Gentis e boas mulheres conheceram
A demanda deixaram, viveram em paixo
Talvez devido a uma maior erudio.

Um Erudito a Jhaampe veio ento.


Da rainha e da coroa abriu mo
Sua tarefa cumpriu e logo adormeceu
Os ossos guarda das pedras prometeu.

No h eruditos que a Jhaampe vo


Para subir o monte e descer j no.
De sensatez e coragem dada mais prova
Em casa ficando e enfrentando a cova.

Fitz? Est acordado? O Bobo debruava-se


sobre mim, com o rosto muito junto ao meu.
Parecia ansioso.
Acho que sim. Fechei os olhos. Imagens e
pensamentos tremeluziram na minha mente. No
era capaz de decidir quais deles eram meus. Tentei
me lembrar se era importante saber isso.
Fitz! Agora era Kettricken que me
sacudia.
Faa-o se sentar sugeriu Esporana.
Kettricken me agarrou prontamente pela frente da
camisa e me puxou para uma posio sentada. A
sbita mudana me deixou tonto. No conseguia
compreender por que motivo eles queriam que eu
estivesse acordado no meio da noite. Disse-lhes
isso.
meio-dia disse Kettricken, seca. A
tempestade no amainou desde ontem noite.
Observou-me de perto. Est com fome? Quer
uma xcara de ch?
Enquanto eu tentava decidir, esqueci do que ela
me perguntara. Havia tantas pessoas falando em
voz baixa que eu no conseguia separar os meus
pensamentos dos delas.
Perdo disse educadamente mulher.
O que me perguntou?
Fitz! sibilou exasperado o homem plido.
Estendeu a mo atrs de mim e puxou uma trouxa
para si. Ele tem casco-de-elfo aqui, para fazer
ch. Breu o deixou com ele. Deve traz-lo de volta
a si.
Ele no precisa disso disse uma velha,
seca. Arrastou-se para mais perto de mim,
estendeu a mo e agarrou a minha orelha. Deu um
forte belisco nela.
Ai! Panela! repreendi-a e tentei me
libertar. Ela manteve o doloroso aperto.
Acorde! disse-me com severidade.
Agora mesmo!
Estou acordado! garanti-lhe, e ela, depois
de franzir o cenho para mim, largou a minha
orelha. Enquanto eu olhava em volta um tanto
confuso, ela resmungou, zangada. Estamos perto
demais daquela maldita estrada.
O tempo l fora continua tempestuoso?
perguntei, desconcertado.
S lhe dissemos isso seis vezes retorquiu
Esporana, mas eu consegui ouvir a preocupao
por trs de suas palavras.
Eu tive pesadelos ontem noite. No
dormi bem. Passei os olhos pelo crculo de
gente aglomerada em volta do pequeno braseiro.
Algum enfrentara o vento para arranjar uma nova
proviso de lenha. Uma panela estava pendurada
em um trip acima do braseiro, cheia at a borda
de neve derretendo. Onde est Olhos-de-Noite?
perguntei assim que senti a sua falta.
Caando disse Kettricken e, Com muito
pouca sorte, soou o eco, proveniente da encosta
acima de ns. Consegui sentir o vento passando
pelos seus olhos. Ele baixara as orelhas para trs,
contra o vento. No h nada que se mexa nesta
tempestade. Nem sei por que me dou ao trabalho.
Volte e mantenha-se quente, sugeri. Nesse
momento, Panela inclinou-se para frente e beliscou
violentamente o meu brao. Afastei-me dela de um
salto, com um grito.
Preste ateno em ns! exclamou a velha.
O que estamos fazendo? perguntei
enquanto me sentava esfregando o brao. Naquele
dia, no havia ningum cujo comportamento
fizesse algum sentido para mim.
Estamos esperando que a tempestade passe
respondeu Esporana. Aproximou-se de mim,
observando o meu rosto. Fitz, qual o problema
com voc? Sinto como se voc no estivesse
realmente aqui.
No sei admiti. Sinto-me preso num
sonho. E se no me concentro para ficar acordado,
comeo a adormecer.
Ento concentre-se aconselhou-me Panela
com rispidez. No conseguia compreender que
motivo ela teria para parecer estar to zangada
comigo.
Talvez ele devesse simplesmente dormir
sugeriu o Bobo. Parece cansado e, com todos
os saltos que deu e ganidos que soltou durante o
sono na noite passada, dificilmente ter tido
sonhos repousantes.
Ento vai descansar mais ficando acordado
agora do que voltando a sonhos como esses
insistiu Panela sem misericrdia. Cutucou
subitamente as minhas costelas. Fale conosco,
Fitz.
Sobre o qu? esquivei-me.
Kettricken passou rapidamente ao ataque.
Sonhou com Veracidade ontem noite?
perguntou. por ter usado o Talento ontem
noite que voc est to aturdido hoje?
Suspirei. No se responde a uma pergunta direta
da nossa rainha com uma mentira.
Sim disse-lhe, mas quando os seus olhos
se iluminaram, tive de acrescentar: Mas foi um
sonho que pouco conforto lhe trar. Ele est vivo,
em um lugar frio e ventoso. No quis me deixar
ver mais do que isso, e quando lhe perguntei onde
estava, disse-me simplesmente para procur-lo.
Por que ele se comportaria assim?
perguntou Kettricken. No seu rosto transparecia
tanta mgoa como se Veracidade em pessoa a
tivesse afastado.
Ele me preveniu severamente contra todo o
uso do Talento. Eu estava observando Moli e
Bronco. Foi to difcil admitir aquilo, pois no
queria dizer nada sobre o que vira ali.
Veracidade veio e me levou para longe de l, e me
avisou de que os nossos inimigos poderiam
encontr-los atravs de mim e lhes fazer mal.
Creio que foi por isso que escondeu de mim o
lugar onde se encontrava. Por temer que, se eu
soubesse, Majestoso e o seu crculo tambm
pudessem de algum modo tomar conhecimento
dele.
Ele teme que ele o procurem tambm?
perguntou Kettricken em tom de dvida.
Parece que sim. Apesar de eu no ter sentido
nenhuma vibrao da presena deles, Veracidade
parece acreditar que iro procur-lo, ou atravs do
Talento, ou em carne e osso.
Por que Majestoso se incomodaria com isso,
quando todos acreditam que Veracidade est
morto? perguntou-me Kettricken.
Encolhi os ombros.
Talvez para se assegurar de que ele nunca
regresse para provar a todos que esto enganados.
Na verdade, no sei, minha rainha. Sinto que o
meu rei esconde muito de mim. Ele me advertiu
que os poderes do crculo so muitos e fortes.
Mas decerto Veracidade igualmente forte?
perguntou Kettricken com a f de uma criana.
Ele domina uma tempestade de poder como
eu nunca tinha visto, minha senhora. Mas precisa
de toda a sua fora de vontade para control-la.
Todo esse controle uma iluso
resmungou Panela para si mesma. Uma
armadilha, para enganar os incautos.
O Rei Veracidade dificilmente um incauto,
Dama Panela! retorquiu Kettricken, irritada.
No, no concordei eu num tom
conciliatrio. E as palavras foram minhas, no
de Ver do Rei Veracidade, minha senhora. S
procuro fazer com que compreenda que o que ele
est fazendo agora est alm da minha
compreenso. Tudo o que posso fazer confiar
que ele saiba o que pretende. E fazer aquilo que
ele me ordenou.
Procur-lo concordou Kettricken.
Suspirou. Gostaria que pudssemos partir
agora, neste exato minuto. Mas s um tolo desafia
uma tempestade como esta.
Enquanto esperarmos aqui, FitzCavalaria
estar em constante perigo informou-nos
Panela. Todos os olhos se viraram para ela.
Por que diz isso, Panela? perguntou
Kettricken.
Ela hesitou.
Qualquer um pode ver que assim. A menos
que o mantenham falando, os seus pensamentos se
dispersam, os seus olhos ficam vazios. Ele no
pode dormir noite sem que o Talento o assalte.
bvio que a culpa da estrada.
Embora os fatos de que fale sejam
verdadeiros, no to bvio para mim que o
problema est na estrada. Um resqucio de febre
do ferimento pode ser responsvel, ou
No. Arrisquei-me a interromper a minha
rainha. a estrada. No tenho febre. E no me
sentia assim antes de viajarmos por ela.
Explique-me ordenou Kettricken.
Eu mesmo no compreendo. Posso apenas
supor que o Talento foi de alguma forma usado
para construir aquela estrada. Ela mais reta e
plana do que qualquer estrada que eu j vi.
Nenhuma rvore interfere nela, apesar de ser to
pouco usada. No h rastros de animais. E
repararam na nica rvore pela qual passamos
ontem, o tronco cado na estrada? O toco e os
galhos superiores ainda estavam quase inteiros
Mas todo o tronco que caiu na estrada
propriamente dita havia apodrecido at quase
desaparecer. H alguma fora que continua se
movendo por aquela estrada, para mant-la to
limpa e nivelada. E eu acho que, seja o que for,
est relacionado com o Talento.
Kettricken ficou imvel por um momento,
refletindo sobre aquilo.
O que sugere que faamos? perguntou-me.
Encolhi os ombros.
Nada. Por ora. A tenda est bem segura aqui.
Seramos insensatos se tentssemos mov-la com
este vento. Eu simplesmente preciso ficar
consciente do perigo que corro e tratar de evit-lo.
E amanh, ou quando o vento diminuir, devo
caminhar ao lado da estrada e no sobre ela.
Isso ser pouco melhor para voc
resmungou Panela.
Talvez. Mas como a estrada o nosso guia
at Veracidade, seria insensato abandon-la.
Veracidade sobreviveu a este caminho, e o
percorreu sozinho. Fiz uma pausa, pensando
que agora compreendia melhor alguns dos sonhos
fragmentrios de Talento que tivera com ele.
Darei um jeito, de alguma forma.
O crculo de rostos cheios de dvidas que me
observava no era reconfortante.
Ter de faz-lo, suponho concluiu
Kettricken num tom sombrio. Se houver alguma
maneira de podermos ajud-lo, FitzCavalaria
No consigo imaginar nenhuma admiti.
Exceto mantendo a sua mente ocupada o
melhor que pudermos sugeriu Panela. No o
deixem ficar parado sem fazer nada, nem dormir
demais. Esporana, est com a sua harpa, no? No
podia tocar e cantar para ns?
Estou com uma harpa corrigiu-a Esporana
em um tom amargo. coisa inferior comparada
com a antiga que me foi roubada em Olho de Lua.
Por um momento, seu rosto se esvaziou e os
olhos viraram-se para dentro. Perguntei-me se
seria aquele o meu aspecto quando o Talento me
puxava. Panela estendeu a mo para lhe dar
palmadinhas suaves num joelho, mas Esporana
retraiu-se diante do toque. Ainda assim, o que
tenho, e irei toc-la, se acham que ajudar.
Estendeu o brao para trs, para pegar a trouxa, e
tirou de l uma harpa enrolada. Enquanto tirava a
harpa do seu embrulho, vi que pouco mais era do
que uma armao tosca de madeira com cordas
esticadas entre um lado e o outro. Tinha a forma
essencial da sua antiga harpa, mas sem nada da sua
graa e lustro. Estava para a antiga harpa de
Esporana como uma das lminas de treino de Hode
estava para uma boa espada; um objeto de
utilidade e funo, nada mais do que isso. Mas ela
a apoiou no colo e comeou a afin-la. Deu incio
s notas de abertura de uma velha balada de Cervo
quando foi interrompida por um focinho coberto de
neve que se enfiava pela porta da tenda.
Olhos-de-Noite! O Bobo lhe deu as boas-
vindas.
Tenho carne para dividir . Isto surgiu como um
anncio orgulhoso. Mais do que suficiente para
nos empanturrarmos bem com ela.
No era um exagero. Quando me arrastei para
fora da tenda para ver o que ele matara, era uma
espcie de javali. As presas e o pelo spero eram
muito semelhantes aos dos javalis que eu caara
antes, mas aquela criatura tinha orelhas maiores e
o pelo spero era malhado de branco e preto.
Quando Kettricken juntou-se a mim, soltou uma
exclamao, dizendo que vira poucos daqueles
animais, mas que se sabia que vagavam pelas
florestas e tinham reputao de serem caa de
temperamento ruim, que era melhor deixar em paz.
Coou o lobo atrs da orelha com uma mo
enluvada e o elogiou exageradamente pela sua
coragem e habilidade, at que ele caiu sobre a
neve, cheio de orgulho de si mesmo. Olhei-o,
quase de barriga para cima na neve e no vento, e
no consegui evitar um sorriso. Num instante, ele
se levantou de um salto para me dar um forte
belisco na perna e exigir que eu abrisse a barriga
do javali para ele comer.
A carne era gorda e abundante. Kettricken e eu
fizemos a maior parte do trabalho, pois o frio
atacava sem misericrdia o Bobo e Panela, e
Esporana pediu dispensa pelo bem das mos de
uma harpista. O frio e a umidade no eram as
melhores coisas para os seus dedos ainda em
recuperao. No me importei muito. Tanto a
tarefa como as condies duras impediam que a
minha mente vagasse enquanto eu trabalhava, e
havia um estranho prazer em estar sozinho com
Kettricken, mesmo sob tais circunstncias, pois na
partilha daquele trabalho humilde ambos nos
esquecemos de posio e passado e nos
transformamos apenas em duas pessoas no frio,
regozijando-se com a abundncia de carne.
Cortamos bifes longos e finos que cozinhariam
depressa sobre o pequeno braseiro, numa
quantidade suficiente para todos nos
empanturrarmos. Olhos-de-Noite reivindicou para
si as entranhas, deliciando-se com o corao, o
fgado e as tripas, e depois com uma pata da frente
que trazia a satisfao de ter ossos para quebrar.
Levou o prmio cartilaginoso para dentro da tenda,
mas ningum fez comentrios sobre o lobo coberto
de neve e de sangue que estava deitado ao longo
de um dos lados da tenda e que mastigava
ruidosamente a sua carne, exceto para elogi-lo.
Achei-o insuportavelmente satisfeito consigo
mesmo e lhe disse isso; ele apenas me informou
que eu nunca fizera sozinho um abate to difcil,
quanto mais arrast-lo de volta, intacto, para
dividir. E o Bobo passou o tempo todo coando as
suas orelhas.
Logo o cheiro saboroso da carne cozida encheu
a tenda. Haviam se passado alguns dias desde que
havamos comido carne fresca de algum tipo, e o
frio que havamos suportado fazia com que a
gordura nos fosse duplamente suculenta. A
refeio nos animou e quase conseguimos esquecer
o uivo do vento l fora e o frio que empurrava to
violentamente o nosso pequeno abrigo. Depois de
ficarmos todos saciados com carne, Panela
preparou ch para ns. No conheo nada que
aquea mais do que carne e ch quentes e boa
camaradagem.
Isto alcateia, observou Olhos-de-Noite,
contente no seu canto. E eu nada pude fazer a no
ser concordar.
Esporana limpou os dedos de gordura e tirou a
harpa das mos do Bobo, que pedira para v-la.
Para minha surpresa, ele se debruou sobre o
instrumento com ela e percorreu a armao com
uma unha plida, dizendo:
Se eu tivesse as minhas ferramentas aqui,
poderia aparar a madeira aqui e aqui e criar uma
curva assim ao longo deste lado. Acho que talvez
se encaixasse melhor nas suas mos.
Esporana lhe lanou um olhar penetrante, pega
entre a suspeita e a hesitao. Examinou o rosto
dele em busca de uma zombaria, mas no
encontrou nenhuma. Com cautela, observou, como
se falasse com todos ns:
O meu mestre, que me ensinou a tocar harpa,
tambm era bom em faz-las. Talvez bom demais.
Tentou me ensinar, e eu aprendi o bsico, mas ele
no suportava me ver fazer trapalhadas e
arranhando uma madeira boa, como ele dizia.
Ento nunca aprendi os detalhes mais minuciosos
sobre como dar forma a uma armao. E com esta
mo ainda rgida
Se estivssemos em Jhaampe, eu podia
deixar voc fazer todas as trapalhadas e arranhes
que quisesse. Fazer realmente a nica maneira de
aprender. Mas aqui, por ora, mesmo com as facas
que temos, acho que posso dar a esta madeira uma
forma mais graciosa. O Bobo falava
abertamente.
Se voc quiser aceitou ela em voz baixa.
Perguntei-me quando eles teriam deixado de lado a
hostilidade e percebi que havia alguns dias que eu
no prestava muita ateno a ningum alm de
mim. Aceitara que Esporana queria pouco mais ter
a ver comigo do que estar presente se eu fizesse
alguma coisa de grande importncia. Eu no lhe
fizera nenhuma das exigncias da amizade. Tanto a
posio de Kettricken como o seu pesar haviam
imposto uma barreira entre ns que eu no me
aventurara a quebrar. As reticncias de Panela em
falar sobre si tornavam difceis quaisquer
conversas verdadeiras. Mas eu no conseguia
pensar em qualquer desculpa para o modo como
ultimamente exclura o Bobo e o lobo dos meus
pensamentos.
Quando ergue muralhas contra aqueles que
usariam o Talento contra voc, tranca l dentro
mais do que o seu sentido do Talento, observou
Olhos-de-Noite.
Refleti sobre aquilo. Parecia que a Manha e os
sentimentos que eu nutria pelas pessoas haviam se
atenuado um pouco nos ltimos tempos. Era
possvel que o meu companheiro tivesse razo.
Panela me cutucou de repente, com fora.
No divague! repreendeu-me.
Estava s pensando eu disse num tom
defensivo.
Bem, ento pense em voz alta.
No tenho pensamentos que valham a pena
dividir neste momento.
Panela me fitou furiosa por eu no cooperar.
Ento recite ordenou o Bobo. Ou cante
alguma coisa. Qualquer coisa para mant-lo
concentrado aqui.
Essa uma boa ideia concordou Panela, e
foi a minha vez de fitar furioso com o Bobo.
Porm, todos os olhos estavam virados para mim.
Respirei fundo e tentei pensar em algo para
recitar. Quase todo mundo possua uma histria
preferida ou um pouco de poesia memorizada.
Contudo, a maior parte do que eu possura tinha a
ver com as ervas de envenenar ou de outros tipos,
ou com as artes do assassino. Conheo uma
cano admiti por fim. O Sacrifcio de
Fogocruzado.
Panela franziu o cenho, mas Esporana dedilhou
as notas de abertura com um sorriso divertido no
rosto. Aps um falso comeo, lancei-me na cano
e a apresentei razoavelmente bem, embora tenha
visto Esporana estremecer uma ou duas vezes por
causa de notas desafinadas. Por algum motivo, a
cano que escolhi desagradou Panela, que se
manteve sombria e me fitando, em desafio. Quando
terminei, foi a vez de Kettricken, que cantou uma
balada de caa das Montanhas. Depois foi a vez
do Bobo, e ele nos entreteu com uma indecente
cano popular sobre a corte a uma leiteira. Creio
que vi em Esporana uma admirao relutante por
esse desempenho. Restava Panela, e eu esperara
que ela se esquivasse. Mas, em vez disso, cantou a
velha cantiga infantil sobre Seis Eruditos a
Jhaampe vieram, subiram um monte e nunca
desceram, o tempo todo me olhando como se
cada palavra da sua velha voz estridente fosse uma
farpa dirigida apenas a mim. Mas se havia ali um
insulto velado, escapou-me, tal como me escapou
o motivo para a sua m vontade.
Os lobos cantam juntos, observou Olhos-de-
Noite, precisamente no momento em que Panela
sugeria:
Toque alguma coisa que todos conheamos,
Esporana. Algo que nos anime. Ento Esporana
tocou uma antiga cano sobre colher flores para a
nossa amada, e todos cantamos com ela, alguns
com mais empenho do que outros.
Quando a ltima nota se silenciou, Panela
observou:
O vento est diminuindo.
Todos nos pusemos escuta, e ento Kettricken
arrastou-se para fora da tenda. Segui-a, e ficamos
parados durante algum tempo em um vento que
enfraquecera. O crepsculo roubara as cores do
mundo. Na esteira do vento, comeara a cair uma
neve pesada.
A tempestade quase j se esgotou
observou ela. Poderemos seguir caminho
amanh.
Mais do que na hora para mim eu disse.
Venha at mim, venha at mim ainda ecoava com
as batidas do meu corao. Em algum lugar
naquelas Montanhas, ou para alm delas,
encontrava-se Veracidade.
E o rio do Talento.
E para mim disse Kettricken em voz
baixa. Gostaria de ter seguido os meus instintos
h um ano e ido at o fim do mapa. Mas pensei que
no poderia fazer melhor do que Veracidade
fizera. E temi pr em risco o seu filho. Um filho
que perdi mesmo assim, desapontando-o assim das
duas maneiras.
Desapontando-o? exclamei, horrorizado.
Por perder o seu filho?
O seu filho, a sua coroa, o seu reino. O seu
pai. Daquilo que ele me confiou, o que foi que no
perdi, FitzCavalaria? Mesmo correndo para voltar
a estar com ele, pergunto a mim mesma como serei
capaz de olh-lo nos olhos.
Oh, minha rainha, asseguro-lhe que a senhora
est enganada quanto a isso. Ele no pensa que a
senhora o desapontou, mas teme apenas que a
tenha abandonado no maior dos perigos.
Ele apenas foi fazer o que sabia que tinha de
fazer disse Kettricken em voz baixa. E depois
acrescentou num lamento: Oh, Fitz, como pode
falar do que ele sente, quando voc nem sequer
pode me dizer onde ele est?
Onde ele est, minha rainha, no passa de um
pedao de informao, um ponto naquele mapa.
Mas o que ele sente, e o que sente pela senhora
Isso o que ele respira, e quando estamos juntos
no Talento, ligados mente com mente, eu sei essas
coisas, querendo ou no. Lembrei-me das
outras alturas em que eu estive a par, a
contragosto, dos sentimentos de Veracidade pela
sua rainha, e me senti feliz por a noite esconder
dela o meu rosto.
Gostaria que esse Talento fosse algo que eu
pudesse aprender Sabe quantas vezes e quo
zangada me senti com voc, s porque podia
alcanar aquele por quem eu ansiava e conhecer
to facilmente a sua mente e o seu corao? O
cime uma coisa feia e sempre tentei afast-lo de
mim. Mas s vezes parece to monstruosamente
injusto que voc esteja ligado a ele dessa forma e
eu no.
Nunca me ocorrera que ela pudesse sentir algo
assim. Constrangido, observei:
O Talento tanto praga quanto bno. Pelo
menos tem sido para mim. Mesmo se fosse algo
que eu pudesse lhe oferecer, minha senhora, no
sei se isso algo que se faa a um amigo.
Para sentir a sua presena e amor mesmo que
por um momento, Fitz Por isso eu aceitaria
qualquer praga que viesse como consequncia.
Para conhecer de novo o seu toque, sob qualquer
forma Pode imaginar como sinto falta dele?
Acho que sim, minha senhora respondi em
voz baixa. Moli. Como uma mo me agarrando o
corao. Cortando nabos de inverno duros sobre
a mesa. A faca estava cega, ela iria pedir a
Bronco que a afiasse, se ele voltasse da chuva.
Ele estava cortando lenha para levar para a
aldeia e vender amanh. O homem trabalhava
demais, naquela noite a sua perna r doeria.
Fitz? FitzCavalaria!
Regressei abruptamente para encontrar
Kettricken me sacudindo pelos ombros.
Sinto muito eu disse em voz baixa.
Esfreguei os olhos e ri. Ironia. Durante toda a
vida foi to difcil usar o Talento. Ia e vinha como
o vento nas velas de um navio. Agora estou aqui, e
de repente us-lo to fcil quanto respirar. E
anseio por us-lo, por descobrir o que est
acontecendo com aqueles que mais amo. Mas
Veracidade me adverte que no devo faz-lo, e
tenho de acreditar que ele sabe o que melhor.
Assim como eu concordou ela com ar de
fadiga.
Ficamos mais um momento nas sombras, e eu
combati um sbito impulso de lhe passar o brao
em volta dos ombros e dizer que tudo ficaria bem,
que encontraramos o seu marido e rei. Durante um
breve momento, ela se pareceu com aquela garota
alta e esguia que viera das Montanhas para ser a
noiva de Veracidade. Mas agora era a Rainha dos
Seis Ducados, e eu j vira a sua fora. Certamente
ela no precisava de conforto vindo de algum
como eu.
Cortamos mais fatias de carne do javali, que j
congelava, e ento nos juntamos de novo aos
nossos companheiros na tenda. Olhos-de-Noite
estava dormindo, satisfeito. O Bobo tinha a harpa
de Esporana presa entre os joelhos e estava
usando uma faca de esfolar como raspador
improvisado para suavizar algumas das linhas da
armao. Esporana estava sentada ao seu lado,
observando e tentando no parecer ansiosa. Panela
tirara uma pequena bolsa que usava em volta do
pescoo e a abrira, e estava arrumando um
punhado de pedras polidas. Enquanto Kettricken e
eu avivvamos o pequeno fogo no braseiro e nos
preparvamos para cozinhar a carne, Panela
insistia em me explicar as regras de um jogo. Ou
tentava faz-lo. Por fim desistiu, exclamando:
Compreender depois de perder algumas
vezes.
Perdi mais do que algumas vezes. Ela me
manteve preso quilo durante longas horas depois
de comermos. O Bobo continuou a desbastar
madeira da harpa de Esporana, com muitas pausas
para dar novo fio faca. Kettricken manteve-se em
silncio, quase melanclica, at que o Bobo
reparou no seu estado de esprito e comeou a
contar histrias sobre a vida em Torre do Cervo
dos tempos anteriores sua chegada. Escutei-as
com um ouvido s, mas at eu fui levado de volta a
esses dias em que os Navios Vermelhos no
passavam de uma histria e a minha vida fora
quase segura, se no feliz. De algum modo, a
conversa foi parar nos vrios menestris que
haviam tocado em Torre do Cervo, tanto os
famosos quanto os menores, e Esporana
importunou o Bobo com perguntas sobre eles.
Logo eu me encontrava envolvido pelo jogo das
pedras. Era estranhamente calmante: as pedras
propriamente ditas eram vermelhas, negras e
brancas, polidas at ficarem lisas e agradveis ao
tato. O jogo abria com cada jogador tirando
aleatoriamente pedras da bolsa e depois as
colocando nas intersees de linhas em um pano.
Era um jogo simultaneamente simples e complexo.
Cada vez que eu ganhava um jogo, Panela
imediatamente me apresentava a estratgias mais
complicadas. Aquilo me cativava e libertava a
minha mente de memrias ou reflexes. Quando
todos os outros j adormeciam nas suas peles para
dormir, ela disps um jogo no tabuleiro e me pediu
para estud-lo.
Pode ser ganho decisivamente em uma jogada
de uma pedra preta disse-me. Mas a soluo
no fcil de ver.
Fitei a disposio do jogo e sacudi a cabea.
Quanto tempo voc levou para aprender a
jogar?
Ela sorriu para si mesma.
Eu aprendia depressa quando era criana.
Mas admito que voc aprende mais depressa.
Achava que este jogo viera de alguma terra
distante.
No, um velho jogo de Cervo.
Nunca o vi sendo jogado.
No era incomum quando eu era garota, mas
no era ensinado a todo mundo. Mas isso agora
no importa. Estude a disposio das peas. De
manh, diga-me qual a soluo.
Deixou as peas dispostas no pano junto ao
braseiro. O longo treino que Breu dera minha
memria me serviu bem. Quando me deitei,
visualizei o tabuleiro e dei a mim mesmo uma
pedra preta com a qual ganhar. Havia uma
variedade bastante grande de jogadas possveis,
visto que uma pedra preta tambm podia ocupar o
lugar de uma vermelha e for-la a se deslocar
para outra interseo, e uma pedra vermelha tinha
poderes semelhantes sobre uma branca. Fechei os
olhos, mas me agarrei ao jogo, jogando a pedra de
vrias maneiras at finalmente adormecer. Ou
sonhei com o jogo, ou no sonhei com nada.
Mantive os sonhos de Talento bem afastados, mas
quando acordei, de manh, continuava a no ter
soluo para o quebra-cabeas que ela dispusera
para mim.
Fui o primeiro a acordar. Arrastei-me para fora
da tenda e regressei com uma panela cheia at a
borda de neve recente e mida para o ch da
manh. L fora, estava substancialmente menos
frio do que estivera nos ltimos dias. Isso me
alegrou, ao mesmo tempo que me deixava curioso
para saber se a primavera j seria uma realidade
nas terras baixas. Antes que a minha mente
pudesse comear a vagar, regressei s reflexes
sobre o jogo. Olhos-de-Noite veio deitar a cabea
sobre o meu ombro.
Estou cansao de sonhar com pedras. Erga os
olhos e veja a coisa toda, irmozinho. uma
alcateia na caa, e no caadores isolados.
Repare. Aquela. Ponha l a preta, e no use a
vermelha para deslocar uma branca, mas a
coloque ali para fechar a armadilha. s isso.
Ainda estava pasmado pela maravilhosa
simplicidade da soluo de Olhos-de-Noite
quando Panela acordou. Com um sorriso,
perguntou-me se j havia resolvido o problema.
Como resposta, tirei uma pedra preta da bolsa e fiz
as jogadas que o lobo sugerira. O espanto estava
estampado no rosto de Panela. Ento ergueu os
olhos para mim, maravilhada.
Nunca ningum a descobriu to depressa
disse-me.
Eu tive ajuda admiti, acanhado. A
jogada do lobo, no minha.
Os olhos de Panela ficaram arregalados.
Est zombando de uma velha repreendeu-
me cuidadosamente.
No. No estou disse-lhe, pois parecia
que eu havia ferido os seus sentimentos. Passei
a maior parte da noite pensando nela. Acho que at
sonhei com estratgias do jogo. Mas, quando
acordei, quem tinha a soluo era Olhos-de-Noite.
Ela ficou em silncio durante algum tempo.
Eu pensava que Olhos-de-Noite era um
animal de estimao inteligente. Um animal de
estimao capaz de ouvir as suas ordens mesmo
que voc no as dissesse em voz alta. Mas agora
voc diz que ele consegue compreender um jogo.
Vai me dizer que ele compreende as palavras que
eu falo?
Do outro lado da tenda, Esporana estava
apoiada em um cotovelo, escutando a conversa.
Tentei pensar em uma maneira de dissimular, ento
a rejeitei com violncia. Endireitei os ombros
como se estivesse apresentando um relatrio ao
prprio Veracidade, e falei com clareza.
Ns estamos vinculados pela Manha. Aquilo
que eu ouo e compreendo, ele entende, tal como
eu. O que lhe interessa, aprende. No digo que
fosse capaz de ler um pergaminho, ou de se
lembrar de uma cano. Mas se h uma coisa que o
intriga, ele pensa nela, sua maneira. Como lobo,
normalmente, mas s vezes quase como qualquer
um poderia Lutei para tentar pr em palavras
algo que eu mesmo no compreendia
perfeitamente. Ele viu o jogo como uma
alcateia de lobos perseguindo a caa. No como
marcadores pretos, vermelhos e brancos. E viu o
local para onde iria, se estivesse caando com
essa alcateia, para tornar o abate mais provvel.
Suponho que s vezes vejo as coisas como ele
como um lobo. No est errado, creio. s uma
maneira diferente de perceber o mundo.
Havia ainda um vestgio de medo supersticioso
nos olhos de Panela quando ela os desviou de mim
para o lobo adormecido. Olhos-de-Noite escolheu
esse momento para deixar que a cauda subisse e
descesse em uma sacudida sonolenta para indicar
que estava plenamente consciente de que
falvamos dele. Panela estremeceu.
O que voc faz com ele como usar o
Talento entre seres humanos, s que com um lobo?
Comecei a sacudir a cabea, mas ento tive de
encolher os ombros.
A Manha comea mais como uma partilha de
sensaes. Especialmente quando eu era criana.
Seguir cheiros, perseguir uma galinha porque ela
fugia, saborear juntos a comida. Mas quando se
est junto h tanto tempo como eu e Olhos-de-
Noite estamos, comea a ser algo diferente.
Ultrapassa as sensaes, e nunca realmente por
meio de palavras. Eu estou mais consciente do
animal dentro do qual a minha mente vive. Ele est
mais consciente de
Pensar. Daquilo que vem antes e depois da
deciso de fazer alguma coisa. Ns nos tornamos
conscientes de que estamos sempre fazendo
escolhas, e pensamos em quais sero as
melhores.
Exatamente. Repeti a Panela as suas palavras
em voz alta. A essa altura, Olhos-de-Noite estava
a se sentando. Deu um elaborado espetculo ao se
espreguiar, ento se sentou para olhar para ela,
com a cabea inclinada para um lado.
Compreendo disse ela em uma voz dbil.
Compreendo. Ento se levantou e saiu da
tenda.
Esporana sentou-se e espreguiou-se.
Isso nos d uma perspetiva completamente
diferente de lhe coar as orelhas observou. O
Bobo lhe respondeu com uma gargalhada, sentou-
se nos cobertores e imediatamente estendeu a mo
para coar Olhos-de-Noite atrs das orelhas. O
lobo caiu sobre ele, agradecido. Eu rosnei aos
dois e voltei preparao do ch.
No fomos to rpidos para guardar as coisas e
seguir caminho. Uma espessa camada de neve
mida cobria tudo, tornando bem mais difcil
levantar acampamento. Cortamos o que restava do
javali e levamos a carne conosco. As jepas foram
reunidas. Apesar da tempestade, no tinham se
afastado muito. O segredo parecia estar no saco de
cereais adoados que Kettricken usava para atrair
a lder. Quando empacotamos tudo e ficamos
finalmente prontos para partir, Panela anunciou
que no deviam permitir que eu caminhasse pela
estrada e que algum precisava estar sempre
comigo. Irritei-me um pouco com aquilo, mas eles
me ignoraram. O Bobo rapidamente se voluntariou
para ser o meu primeiro parceiro. Esporana lhe
deu um sorriso estranho e sacudiu a cabea a esse
respeito. Aceitei o modo como me ridicularizavam
zangando-me corajosamente. Ignoraram isso
tambm.
Pouco tempo depois, as mulheres e as jepas
moviam-se com facilidade pela estrada acima,
enquanto o Bobo e eu seguamos com dificuldade
pela beira que definia o seu limite. Panela virou-se
para sacudir a sua bengala.
Afaste-o mais do que isso! disse ao Bobo,
repreendendo-o. Vo at onde consigam nos
ver apenas o suficiente para nos seguirem. Vamos.
Vamos.
Logo, adentramos obedientemente a floresta
mais uma vez. Assim que perdemos os outros de
vista, o Bobo virou-se para mim e perguntou,
excitado:
Quem Panela?
Voc sabe tanto quanto eu observei,
sucinto. E acrescentei uma pergunta prpria: O
que h agora entre voc e Esporana?
Ele me olhou de sobrancelhas erguidas e piscou
com dissimulao.
Duvido muito disso retorqui.
Ah, nem todos so to imunes aos meus ardis
quanto voc, Fitz. O que posso lhe dizer? Ela se
consome por mim, ela anseia por mim no fundo da
sua alma, mas no sabe como exprimi-lo,
pobrezinha.
Desisti da pergunta, convencido da sua
inutilidade.
O que voc quis dizer quando me perguntou
quem Panela?
Ele me lanou um olhar de pena.
No uma pergunta assim to complexa,
principezinho. Quem esta mulher que sabe tanto
sobre o que o perturba, que de repente tira de
dentro do bolso um jogo que eu s vi ser
mencionado uma vez em um pergaminho muito
antigo, que nos canta Seis Eruditos a Jhaampe
vieram com dois versos adicionais que nunca
ouvi em lugar nenhum. Quem, oh luz da minha
vida, Panela, e por que uma mulher to velha
decide passar os seus ltimos dias subindo uma
montanha conosco?
Voc est com uma bela disposio esta
manh observei, azedo.
Estou, no mesmo? concordou. E
voc est quase igualmente competente em evitar a
minha pergunta. Certamente deve ter algumas
reflexes sobre este mistrio que possa
compartilhar com um pobre Bobo?
Ela no me d informaes suficientes sobre
si mesma para basear nelas alguma reflexo
retorqui.
Ento. O que podemos deduzir sobre algum
que vigia a lngua assim to bem? Sobre algum
que parece saber tambm algo sobre o Talento? E
sobre os antigos jogos de Cervo, e sobre poesia
antiga? Que idade acha que ela tem?
Encolhi os ombros.
Ela no gostou da minha cano sobre o
crculo de Fogocruzado eu disse de sbito.
Ah, mas isso pode facilmente ter sido s por
causa da sua voz. No nos agarremos a ninharias.
A contragosto, sorri.
Passou-se tanto tempo desde que a sua lngua
teve algum fio, que quase um alvio ouvi-lo
zombando de mim.
Se eu soubesse que voc tinha saudade, teria
sido rude com voc muito mais cedo. Sorriu.
Ento ficou mais srio. FitzCavalaria, o
mistrio paira sobre aquela mulher como moscas
em cima de cerveja derramada. Ela fede
completamente a pressgios, portentos e profecias
entrando em foco. Acho que hora de um de ns
lhe fazer algumas perguntas diretas. Sorriu para
mim. A sua melhor oportunidade ser quando
ela o pastorear hoje tarde. Seja sutil, claro.
Pergunte quem era rei quando ela era nova. E por
qual motivo foi exilada.
Exilada? Soltei uma gargalhada alta.
Bela imaginao essa.
Voc acha? Eu no. Pergunte a ela. E no se
esquea de me contar o que ela no disser.
E em troca de tudo isso vai me dizer o que se
passa realmente entre voc e Esporana?
Ele me olhou de soslaio.
Tem certeza de que quer saber? Da ltima
vez que fez uma troca destas, quando lhe contei o
segredo que negociou, voc descobriu que no o
queria.
um segredo desse tipo?
Ele ergueu uma sobrancelha para mim.
Sabe, eu mesmo no tenho muita certeza de
que resposta dar a isso. s vezes voc me
surpreende, Fitz. mais frequente que no, claro.
O mais comum eu surpreender a mim mesmo.
Como quando me voluntariei para um estiro
atravs de neve solta me desviando de rvores
com um bastardo qualquer, quando podia estar
desfilando por uma avenida perfeitamente reta
acompanhado de uma fileira de encantadoras
jepas.
Durante o resto da manh, a quantidade de
informao que obtive dele foi to pouca como
aquilo. Quando chegou a tarde, no foi Panela, mas
Esporana quem se tornou a minha companheira de
caminhada. Esperara que isso fosse
desconfortvel. Ainda no me esquecera de que
ela negociara o reconhecimento da minha filha
para fazer parte daquela expedio. Contudo, de
algum modo, nos dias desde que comeramos a
viagem, a minha ira havia se transformado em uma
cautela fatigada a respeito dela. Agora sabia que
no havia qualquer vestgio de informao que ela
tivesse escrpulos de usar contra mim, e assim
controlei a lngua, decidido a no dizer
absolutamente nada sobre Moli ou sobre a minha
filha. No que isso agora servisse de grande coisa.
Mas, para minha surpresa, Esporana mostrou-se
afvel e conversadora. Encheu-me de perguntas,
no sobre Moli, mas sobre o Bobo, ao ponto de eu
comear a me perguntar se ela teria mesmo
arranjado uma sbita afeio por ele. Houve
algumas ocasies na corte em que mulheres
haviam se interessado por ele e andado atrs dele.
Com aquelas que eram atradas pela novidade da
sua aparncia, ele se mostrara impiedosamente
cruel ao expor a superficialidade do interesse
delas. Houve uma jardineira que se deixara
impressionar pelo seu esprito a ponto de ficar de
lngua atada na sua presena. Eu ouvira fofocas de
cozinha sobre ela deixar buqus de flores para ele
no p das escadas da sua torre, e houve quem
pensasse que ela tivesse sido ocasionalmente
convidada para subir esses degraus. A garota
tivera de abandonar o Castelo de Torre do Cervo
para cuidar da sua me idosa em uma vila distante,
e fora a que a coisa terminara, at onde eu sabia.
Ainda assim, por mais tnue que fosse este
conhecimento sobre o Bobo, escondi-o de
Esporana, afastando as suas perguntas com
banalidades sobre termos sido amigos de infncia
cujos deveres nos deixara muito pouco tempo para
conviver. Na realidade, isso estava muito prximo
da verdade, mas percebi que tanto a frustrava
como divertia. As suas outras perguntas foram
igualmente estranhas. Perguntou se eu alguma vez
sentira curiosidade em saber qual era o nome
verdadeiro dele. Disse-lhe que no ser capaz de
recordar o nome que a minha prpria me me dera
me deixara prudente quanto a fazer a outros tais
perguntas. Isso a aquietou durante algum tempo,
mas depois exigiu saber como ele se vestira
quando criana. As minhas descries dos trajes
sazonais de retalhos do Bobo no lhe agradaram,
mas lhe disse honestamente que at Jhaampe eu
nunca o vira vestido com roupas que no fossem
os seus trajes de bobo. Pelo fim da tarde, as
perguntas dela e as minhas respostas traziam em si
mais desafio do que conversa. Fiquei contente por
me juntar aos outros em um acampamento, erguido
a uma distncia considervel da estrada do
Talento.
Mesmo assim, Panela me manteve ocupado,
permitindo-me desempenhar, alm das minhas
tarefas, tambm as suas, a fim de manter a minha
mente ocupada. O Bobo preparou um cozido
respeitvel com as nossas provises e o javali. O
lobo contentou-se com outra perna do animal.
Quando as coisas usadas na refeio foram
finalmente arrumadas, Panela imediatamente puxou
o pano do jogo e a bolsa de pedras.
Agora veremos o que voc aprendeu
prometeu-me.
Mas meia dzia de jogos mais tarde apertou os
olhos para mim e franziu a testa.
Voc no estava mentindo! acusou-me.
Sobre o qu?
Sobre ter sido o lobo quem descobriu a
soluo. Se tivesse sido voc quem tivesse
dominado a estratgia, teria agora uma maneira
diferente de jogar. Como algum lhe deu a
resposta em vez de t-la descoberto sozinho, voc
no a compreende por completo.
Nesse momento, o lobo ergueu-se e espreguiou-
se. Estou cansado de pedras e panos, informou-
me. As minhas caadas so mais divertidas, e me
do carne verdadeira no fim.
Ento est com fome?
No. Entediado. Abriu a aba da tenda com o
focinho e saiu para a noite.
Panela o viu partir com lbios franzidos.
Eu ia perguntar agora mesmo se vocs no
podiam se juntar para jogar este jogo. Seria
interessante para mim ver como jogariam.
Acho que ele suspeitou disso murmurei,
um pouco ressentido por o lobo no ter me
convidado para me juntar a ele.
Cinco jogos mais tarde, compreendi a brilhante
simplicidade da ttica do lao de Olhos-de-Noite.
Estivera o tempo todo na minha frente, mas de
repente foi como se visse as pedras em movimento
em vez de em repouso nos vrtices do padro do
pano. Na minha jogada seguinte, usei-a para
ganhar com facilidade. Ganhei prontamente os trs
jogos seguintes, pois vi como ela podia ser
empregada tambm na situao inversa.
Com a terceira vitria, Panela limpou o pano de
pedras. nossa volta, os outros j haviam
mergulhado no sono. Panela acrescentou ao
braseiro um punhado de gravetos para nos dar uma
ltima erupo de luz. Rapidamente, os seus
velhos dedos nodosos arrumaram as pedras no
pano.
Mais uma vez, o jogo seu e a jogada sua
informou-me. Mas, desta vez, voc tem
apenas uma pedra branca para colocar. Uma
pedrinha branca fraca, mas que pode faz-lo
ganhar. Pense bem nesta. E nada de trapacear.
Deixe o lobo fora disso.
Fitei a posio para fixar o jogo na cabea e
depois me deitei para dormir. O jogo que ela
preparara para mim parecia no ter soluo. No
conseguia ver como podia ser ganho com uma
pedra preta, quanto mais com uma branca. No sei
se foi o jogo das pedras ou a minha distncia da
estrada, mas mergulhei rapidamente em um sono
que se manteve sem sonhos quase at a alvorada.
Ento me juntei ao lobo na sua correria selvagem.
Olhos-de-Noite deixara a estrada muito para trs e
estava explorando alegremente as encostas ao
redor. Ns nos deparamos com dois gatos das
neves que se alimentavam de uma carcaa, e
durante algum tempo os atormentamos, rodeando-
os fora do seu alcance para faz-los sibilar e
bufar. Nenhum se deixou atrair para longe da carne
e, passado algum tempo, desistimos do jogo e
voltamos para a tenda. Ao nos aproximarmos dela,
circundamos furtivamente as jepas, assustando-as
e fazendo com que se juntassem em um aglomerado
defensivo e ento as encorajando a correr em
crculos ao redor da tenda. Quando o lobo
arrastou-se para dentro da tenda, eu continuava
com ele quando empurrou rudemente o Bobo com
um focinho gelado.
bom ver que voc no perdeu todo o nimo
para a brincadeira, disse-me ele enquanto eu
desprendia a minha mente da sua e acordava no
meu prprio corpo.
Muito bom, concordei. E me levantei para
enfrentar o dia.
CAPTULO 26

Sinalizadores

Uma coisa eu aprendi bem nas minhas viagens.


As riquezas de uma regio so corriqueiras em
outra. Peixe que no daramos a um gato em
Torre do Cervo apreciado como uma iguaria
nas cidades do interior. Em alguns locais, a gua
riqueza, em outros as cheias constantes do rio
so ao mesmo tempo um aborrecimento e um
perigo. Bom couro, cermica de formas
graciosas, vidro transparente como o ar, flores
exticas Vi todas estas coisas em quantidades
to abundantes que as pessoas que as possuem j
no as veem como riquezas.
De modo que, talvez, em quantidade suficiente,
a magia se torne comum. Em vez de ser uma
coisa de maravilha e espanto, transforma-se em
algo para pavimentos de estradas e
sinalizadores, usado com uma prodigalidade que
espanta aqueles que no a possuem.

Naquele dia viajei, como antes, pela encosta de


um monte arborizado. A princpio o flanco do
monte mostrou-se largo e pouco escarpado.
Conseguia caminhar vista da estrada e s
ligeiramente abaixo dela. As enormes sempre-
vivas mantinham acima de mim a maior parte da
carga de neve de inverno. O terreno era irregular e
havia de vez em quando extenses de neve
profunda, mas no era muito difcil caminhar. Ao
fim desse dia, no entanto, o tamanho das rvores
comeou a se reduzir e a encosta do monte tornou-
se distintamente mais ngreme. A estrada abraava
a face do monte e eu caminhava abaixo dela.
Quando chegou o momento de acampar nessa
noite, os meus companheiros e eu tivemos muita
dificuldade para encontrar um lugar plano onde
erguer a tenda. Descemos um bom pedao do
monte at encontrarmos um lugar onde ele se
aplanasse. Quando conseguimos montar a tenda,
Kettricken comeou a olhar para a estrada e a
franzir o cenho para si mesma. Pegou o mapa e o
estava consultando nos ltimos restos de luz do dia
quando lhe perguntei qual era o problema.
Ela bateu no mapa com um dedo enluvado e
depois indicou a encosta acima de ns com um
gesto.
Amanh, se a estrada continuar a subir e as
encostas se tornarem mais ngremes, voc no
conseguir nos acompanhar. Ao entardecer
deixaremos as rvores para trs. O terreno vai ser
nu, ngreme e pedregoso. Devamos levar lenha
conosco agora, tanta quanto as jepas consigam
carregar com facilidade. Franziu o cenho.
Podemos ter de diminuir o passo para deixar que
voc nos acompanhe.
Eu vou conseguir prometi-lhe.
Os seus olhos azuis encontraram-se com os
meus.
Depois de amanh, voc pode ter de se juntar
a ns na estrada. Olhou-me com firmeza.
Se tiver de fazer isso, ento terei de aguentar.
Encolhi os ombros e tentei sorrir, apesar da
minha inquietao. O que mais posso fazer?
O que mais pode qualquer de ns fazer?
murmurou ela em resposta para si mesma.
Naquela noite, depois de acabar de limpar a
loua, Panela mais uma vez me apresentou o pano
e as pedras. Olhei para a disposio das peas e
sacudi a cabea.
No descobri disse-lhe.
Bem, isso um alvio disse-me ela. Se
voc, ou mesmo voc e o seu lobo, tivesse
descoberto a soluo para isto, eu ficaria sem
palavras de to espantada. um problema difcil.
Mas esta noite jogaremos alguns jogos, e se
mantiver os olhos abertos e a cabea atenta, pode
ser que veja a soluo para o seu problema.
Mas no vi, e me deitei para dormir com pano e
peas espalhados pelo meu crebro.
A caminhada do dia seguinte desenrolou-se
como Kettricken previra. Por volta do meio-dia,
eu j me arrastava por reas cobertas de arbustos e
por cima de pilhas de pedra nua, com Esporana
atrs. Apesar do sufocante esforo que o terreno
exigia, ela estava cheia de perguntas e todas a
respeito do Bobo. O que eu sabia dos pais dele?
Quem fizera a sua roupa? Ele alguma vez esteve
seriamente doente? Tornara-se rotina para mim
responder lhe dando pouca ou nenhuma
informao. Esperara que ela se cansasse desse
jogo, mas era tenaz como um buldogue. Por fim,
virei-me para ela, exasperado, e exigi saber
exatamente o que havia nele que a fascinava
daquela forma.
Uma estranha expresso lhe subiu ao rosto,
como a de algum que se prepara para um desafio.
Comeou a falar, fez uma pausa, e ento no
conseguiu resistir. Os seus olhos estavam
avidamente postos no meu rosto quando anunciou:
O Bobo uma mulher, e est apaixonada por
voc.
Por um momento, foi como se ela tivesse falado
numa lngua estrangeira. Fiquei olhando para ela e
tentando compreender o que ela quisera dizer. Se
ela no tivesse desatado a rir, eu podia ter
pensado numa resposta. Mas algo no seu riso me
ofendeu to profundamente que lhe dei as costas e
continuei a abrir caminho pela encosta ngreme.
Est corando! gritou ela atrs de mim. O
divertimento sufocava a sua voz. Consigo ver
pela sua nuca! Todos esses anos, e voc nunca
soube? Nunca sequer suspeitou?
Acho que uma ideia ridcula disse-lhe
sem mesmo olhar para trs.
Mesmo? Qual a parte que ridcula?
Toda ela respondi com frieza.
Diga-me que voc sabe com absoluta certeza
que estou enganada.
No dignifiquei aquela provocao com uma
resposta. O que fiz foi abrir caminho atravs de
arbustos densos sem parar para segurar os galhos
para ela passar. Sei que ela compreendeu que eu
estava ficando irritado, porque a ouvia rindo.
Passei pela ltima das rvores e parei para olhar
para uma extenso de rocha quase a pique. No
havia quase nenhuma vegetao rasteira, e rocha
cinzenta e fendida erguia-se em arestas geladas
acima da neve.
Para trs! avisei Esporana quando ela
subiu para o meu lado. Ela olhou em volta e
prendeu a respirao.
Segui com os olhos a encosta ngreme at onde a
estrada cortava a face da montanha como uma
ranhura em um pedao de madeira. Era o nico
caminho seguro por aquela face escarpada. Acima
de ns, estendia-se a ngreme encosta da montanha,
repleta de pedregulhos. No chegava bem a ser
suficientemente escarpada para ser chamado de
penhasco. Havia rvores e arbustos retorcidos
pelo vento espalhados por ela, alguns com razes
que se estendiam tanto por cima do solo rochoso
como por dentro dele. A neve a cobria
irregularmente. Subir at a estrada seria um
desafio. A encosta por onde viajramos fora se
tornando mais ngreme ao longo de toda a manh.
No devia ter ficado surpreso, mas eu estivera to
concentrado em escolher o melhor caminho que se
passara algum tempo desde que erguera os olhos
para a estrada.
Vamos ter de voltar para a estrada disse a
Esporana, e ela concordou com um aceno mudo.
Era mais fcil dizer do que fazer. Em vrios
lugares, senti pedras e cascalhos soltos deslizando
de repente debaixo dos meus ps, e por mais de
uma vez ca de quatro. Conseguia ouvir Esporana
arquejando atrs de mim.
s um pouco mais! gritei-lhe quando
Olhos-de-Noite apareceu ao nosso lado, subindo
laboriosamente a encosta. Passou por ns sem
esforo, subindo a encosta aos saltos at chegar
beira da estrada. Desapareceu por cima do seu
rebordo, e depois voltou, parando na borda e
olhando para ns. Um momento depois, o Bobo
apareceu ao seu lado, fitando-nos com ansiedade.
Precisam de ajuda? gritou para baixo.
No. Ns conseguimos! gritei-lhe. Fiz uma
pausa, agachado e agarrado ao tronco de uma
rvore mirrada para recuperar o flego e limpar o
suor dos olhos. Esporana parou ao meu lado. E de
sbito senti a estrada acima de mim. Tinha uma
corrente que era como um rio e, tal como a
corrente de um rio agita o ar que a cobre,
transformando-o em vento, o mesmo fazia a
estrada. Era um vento no de frio invernal, mas de
vidas, tanto distantes quanto prximas. A estranha
essncia do Bobo flutuava nele, bem como o medo
de poucas palavras de Panela e a triste
determinao de Kettricken. Eram to separados e
reconhecveis como os odores de diferentes
vinhos.
FitzCavalaria! Esporana deu nfase ao
meu nome batendo entre os meus ombros.
O que ? perguntei-lhe, distrado.
Continue andando! No consigo ficar aqui
agarrada muito mais tempo, estou com cibras nas
barrigas das pernas!
Oh. Encontrei o meu corpo e subi a
distncia que faltava at a beira da estrada. O
fluxo de Talento me deu sem esforo uma
conscincia de Esporana atrs de mim. Consegui
senti-la apoiando os ps e agarrando-se ao
retorcido salgueiro de montanha que crescia na
borda do penhasco. Parei por um instante na beira
da estrada. Depois dei um passo para baixo, para a
sua superfcie lisa, escorregando para o interior da
sua influncia como uma criana escorrega para
um rio.
O Bobo esperara por ns. Kettricken estava
frente da fila de jepas, olhando ansiosamente para
trs espera que nos juntssemos a ela. Respirei
fundo e me senti como se estivesse me
reconstituindo. Ao meu lado, Olhos-de-Noite me
deu uma pancada sbita na mo com o focinho.
Fique comigo, sugeriu. Senti-o procurando um
apoio mais firme para o nosso vnculo. Alarmou-
me no conseguir ajud-lo. Baixei o olhar para os
seus olhos profundos e de repente encontrei uma
pergunta.
Voc est na estrada. Achava que os animais
no podiam vir para a estrada.
Ele deu um espirro de repugnncia. H uma
diferena entre pensar que um ato sensato e
faz-lo. E talvez voc tenha reparado que as
jepas tm viajado pela estrada h alguns dias.
Era bvio demais. Ento por que os animais
selvagens a evitam?
Porque ainda dependemos de ns mesmos para
a sobrevivncia. As jepas dependem de humanos
e iro segui-los para qualquer perigo, por mais
tolo que isso lhes parea. Assim, elas tambm
no tm o bom senso de fugir de um lobo.
Quando as assusto, em vez de fugirem para
longe, fogem para perto de vocs humanos.
muito parecido com o que acontece com os
cavalos ou o gado e os rios. Deixados por conta
prpria, s nadam se a morte os perseguir de
perto, seja a morte devida a predadores ou
fome. Mas os humanos os convencem a nadar em
rios sempre que o humano quer ir para o outro
lado. Acho que eles so bastante estpidos.
Ento por que voc est nesta estrada?,
perguntei-lhe com um sorriso.
No questione a amizade, disse-me ele, srio.
Fitz!
Assustei-me e me virei para Panela.
Estou bem disse-lhe, enquanto
compreendia que no estava. O meu sentido da
Manha me tornava normalmente muito consciente
dos outros que me rodeavam. Mas Panela
aproximara-se de mim por trs e eu nada notara at
que ela falara comigo. Havia algo na estrada de
Talento que estava amortecendo a minha Manha.
Quando no pensava especificamente em Olhos-
de-Noite, ele desaparecia at se transformar numa
vaga sombra na minha mente.
Seria menos do que isso, se eu no estivesse me
esforando para permanecer com voc, observou
ele, preocupado.
Eu vou ficar bem. S tenho de prestar ateno
disse-lhe.
Panela achou que eu estava falando com ela.
Sim, voc tem. Agarrou o meu brao com
severidade e me fez comear a andar. Os outros j
haviam avanado. Esporana caminhava com o
Bobo, e cantava uma cantiga de amor qualquer
enquanto andava, mas ele me olhava com um ar
preocupado por cima do ombro. Acenei-lhe e ele
respondeu com outro, inquieto. Ao meu lado,
Panela beliscou o meu brao. Preste ateno em
mim. Fale comigo. Diga-me. Resolveu o problema
que lhe dei?
Ainda no admiti. Os dias estavam mais
quentes, mas o vento que soprava agora por ns
ainda trazia a ameaa de gelo dos picos mais altos
da montanha. Se pensasse nisso, conseguia sentir o
frio nas bochechas, mas a estrada do Talento pedia
que eu o ignorasse. A estrada ia agora subindo
com regularidade. Mesmo assim, eu parecia
caminhar sem esforo pela sua superfcie. Os meus
olhos me diziam que estvamos subindo, mas eu
caminhava to facilmente como se estivssemos
descendo.
Outro belisco de Panela.
Pense no problema pediu-me com secura.
E no se deixe enganar. O seu corpo se esfora
e sente frio. S por no estar constantemente
consciente disso no quer dizer que voc possa
ignor-lo. No desperdice energia.
As suas palavras pareciam ao mesmo tempo
tolas e sensatas. Notei que, ao se agarrar ao meu
brao, ela no estava apenas se apoiando, mas me
forando a caminhar mais devagar. Encurtei e
diminu os passos para acompanhar os dela.
Os outros parecem no ser prejudicados por
ela observei.
verdade. Mas eles no so nem velhos,
nem sensveis ao Talento. Esta noite tero dores, e
amanh diminuiro o ritmo. Esta estrada foi
construda partindo do princpio de que aqueles
que a usassem estariam inconscientes das suas
influncias mais sutis ou treinados no modo de
como administr-las.
Como sabe tanto sobre ela? perguntei.
Quer saber sobre mim, ou sobre esta estrada?
retorquiu ela, zangada.
Na verdade, sobre ambas disse-lhe.
Ela no respondeu quilo. Passado algum tempo,
perguntou-me:
Lembra-se das suas rimas infantis?
No sei por que motivo aquilo me zangou tanto.
No as conheo! retorqui. No me
lembro do incio da infncia, quando a maior parte
das crianas as aprendem. Suponho que voc
poderia dizer que em vez delas aprendi rimas de
estbulo. Quer que eu recite para voc os quinze
pontos de um bom cavalo?
Em vez disso, recite para mim Seis Eruditos
a Jhaampe vieram! rosnou ela. No meu
tempo, no s se ensinava s crianas as suas
rimas de aprender, mas se fazia com que elas
soubessem o que queriam dizer. O monte do
poema este, seu filhote ignorante! Aquele que
no h erudito que suba esperando voltar a descer!
Um arrepio me percorreu a espinha. Houve
alguns momentos na minha vida em que eu
reconhecera alguma verdade simblica de uma
maneira que a despia at aos mais assustadores
dos seus ossos. Aquele era um desses momentos.
Panela trouxera para o primeiro plano da mente
uma coisa que eu j sabia h dias.
Os Eruditos eram Talentosos, no eram?
perguntei em voz baixa. Seis, e cinco, e
quatro crculos, e os restos de crculos A
minha mente subiu aos saltos a escada da lgica,
substituindo por intuio a maior parte dos
degraus. Ento foi isso que aconteceu aos
Talentosos, os velhos que no conseguimos
encontrar. Quando o crculo de Galeno no
funcionou bem, e Veracidade precisou de mais
ajuda para defender Cervo, Veracidade e eu
procuramos os Talentosos mais velhos, pessoas
que haviam sido treinadas por Solicitude antes de
Galeno se tornar Mestre do Talento expliquei-
lhe. Conseguimos encontrar poucos registros
dos nomes. E todos eles haviam morrido ou
desaparecido. Suspeitamos de traio.
Panela bufou.
A traio no seria nada de novo nos
crculos. Mas o que acontecia mais frequentemente
era que quanto mais as pessoas cresciam no
Talento, mais sintonizadas se tornavam com ele.
Com o tempo, o Talento as chamava. Se a pessoa
fosse suficientemente forte no Talento, podia
sobreviver viagem por esta estrada. Mas se no
fosse, pereceria.
E caso tivesse sucesso? perguntei.
Panela me olhou de soslaio, mas nada disse.
O que h no fim desta estrada? Quem a
construiu, e onde leva?
Veracidade disse ela por fim, em voz
baixa. Ela leva a Veracidade. Voc e eu no
precisamos saber mais do que isso.
Mas voc sabe mais do que isso! acusei-a.
Assim como eu. Ela tambm leva fonte de
todo o Talento.
Os olhos dela ficaram preocupados, e depois
opacos.
Eu no sei nada disse-me, spera. Ento,
quando a conscincia a atingiu: H muitas
coisas de que suspeito, e ouvi muitas meias
verdades. Lendas, profecias, rumores. isso que
eu sei.
E como ficou sabendo? pressionei.
Ela virou-se para me observar com firmeza.
Porque o meu destino sab-las. Assim
como o seu.
E no quis dizer nem mais uma palavra sobre o
assunto. Em vez disso, arranjou disposies
hipotticas do jogo e exigiu saber que jogadas eu
faria, se me fosse dada uma pedra preta, vermelha
ou branca. Tentei me concentrar nas tarefas,
sabendo que ela as dava a mim para que a minha
mente se mantivesse minha. Contudo, ignorar a
fora de Talento daquela estrada era bastante
semelhante a ignorar um vento forte ou uma
corrente de gua gelada. Eu podia escolher no
prestar ateno a ela, mas isso no a fazia parar.
No meio da reflexo sobre a estratgia do jogo, eu
comeava a me interrogar sobre os padres dos
meus pensamentos e conclua que no me
pertenciam, que eram os pensamentos de outra
pessoa a quem eu de algum modo tivera acesso.
Embora conseguisse manter o quebra-cabeas do
jogo na minha frente, ele no fazia parar a galeria
de vozes que sussurravam no fundo da minha
mente.
A estrada serpenteava, cada vez mais para cima.
A prpria montanha erguia-se quase perpendicular
nossa esquerda e caa de um modo igualmente
abrupto direita. Aquela estrada passava por onde
nenhum construtor so a teria colocado. A maior
parte das rotas comerciais meandravam entre os
montes e atravs de passos. Aquela cruzava a face
da montanha, levando-nos cada vez mais para
cima. tardinha, j havamos ficado muito atrs
dos outros. Olhos-de-Noite correu nossa frente, e
ento regressou a trote para relatar que eles
haviam chegado a um local de descanso, largo e
plano, onde estavam montando a tenda. Com a
chegada da noite, os ventos de montanha
aoitavam com mais ferocidade. Senti-me contente
por pensar em calor e repouso e persuadi Panela a
tentar se apressar.
Apressar-me? perguntou. voc quem
no para de diminuir o passo. Veja se agora me
acompanha.
A ltima marcha antes do descanso parece
sempre a mais longa. Foi o que os soldados de
Torre do Cervo sempre me disseram. Mas naquela
noite senti que estvamos caminhando atravs de
xarope frio, de pesados que os meus ps pareciam.
Acho que parei constantemente. Sei que Panela
puxou meu brao vrias vezes e me disse para
andar. Mesmo quando demos a volta em uma
dobra no flanco da montanha e vimos a tenda
iluminada nossa frente, eu parecia no ser capaz
de mover os ps mais depressa. Como em um
sonho febril, os meus olhos trouxeram a tenda para
mais perto de mim, e ento a levaram para longe.
Continuei a me arrastar. Multides murmuravam
minha volta. A noite me turvou a viso. Tive de
semicerrar os olhos para enxergar no vento frio.
Uma multido passou por ns na estrada. Burros
carregados, garotas que riam carregando cestos de
fio brilhante. Virei-me para ver um mercador de
sinos passar por ns. Levava uma grande armao
no ombro, e dzias de sinos de lato de todas as
formas e tons tiniam e ressoavam enquanto ele
avanava. Puxei o brao de Panela para lhe pedir
que se virasse e o visse, mas ela apenas pegou a
minha mo com um aperto de ferro e me apressou.
Um garoto passou por ns a passos largos,
dirigindo-se aldeia com um cesto cheio de flores
da montanha de cores vivas. A sua fragrncia era
inebriante. Soltei-me de Panela. Apressei-me a
segui-lo, a fim de comprar algumas flores para
Moli perfumar as suas velas.
Ajudem-me! gritou Panela. Olhei para ver
o que se passava, mas ela no estava ao meu lado.
No consegui encontr-la na multido.
Panela! chamei. Olhei para trs, mas ento
percebi que estava perdendo o vendedor de flores.
Espere! gritei-lhe.
Ele est se afastando! gritou ela, e havia
medo e desespero na sua voz.
Olhos-de-Noite me atingiu de repente por trs,
acertando os meus ombros com as patas da frente.
O seu peso e velocidade me fizeram cair de rosto
na fina camada de neve que cobria a superfcie
lisa da estrada. Apesar das luvas, esfolei as
palmas das mos e a dor nos joelhos foi como
fogo.
Idiota! rosnei-lhe e tentei me levantar, mas
ele mordeu meu tornozelo e me atirou de novo
para a estrada. Desta vez consegui olhar por cima
da beira, para o abismo l embaixo. A minha dor e
estupefao haviam silenciado a noite, todas as
pessoas haviam desaparecido, deixando-me
sozinho com o lobo.
Olhos-de-Noite! protestei. Deixe-me
levantar!
Em vez disso, ele prendeu o meu pulso entre as
mandbulas e comeou a me arrastar de joelhos
para longe da beira da estrada. No sabia que ele
tinha tanta fora, ou antes, nunca supusera que ela
poderia ser voltada contra mim. Dei pancadas
ineficazes nele com a mo livre, sem deixar de
berrar e de tentar me levantar. Conseguia sentir o
sangue escorrendo no meu brao onde um dente o
penetrara.
Kettricken e o Bobo me flanquearam de sbito,
agarrando-me pelos braos e me colocando de p.
Ele enlouqueceu! exclamei enquanto
Esporana aparecia correndo atrs deles. Seu rosto
estava branco, os olhos enormes.
Oh, lobo exclamou, e caiu sobre um
joelho para lhe dar um abrao. Olhos-de-Noite
ficou parado, arquejando, obviamente gostando do
abrao dela.
O que h com voc? perguntei-lhe. Ele
ergueu os olhos para mim, mas no respondeu.
A minha primeira reao foi estpida. Levei as
mos s orelhas. Mas nunca fora assim que eu
ouvira Olhos-de-Noite. Ele ganiu quando eu o fiz,
e ouvi isso com clareza. Foi s um lamento de co.
Olhos-de-Noite! gritei. Ele empinou,
apoiando-se nas patas traseiras, com as dianteiras
no meu peito. Era to grande que quase conseguiu
me olhar nos olhos. Captei um eco da sua
preocupao e desespero, mas no mais do que
isso. Sondei na sua direo com o sentido da
Manha. No consegui encontr-lo. No conseguia
detectar nenhum deles. Era como se tivessem sido
todos forjados.
Olhei em volta, para os rostos assustados que
me rodeavam e percebi que estavam falando, no,
quase gritando, alguma coisa sobre a beira da
estrada e a coluna negra e o que se passava, o que
se passava? Pela primeira vez fui assaltado por
uma noo de como a fala era desajeitada. Todas
aquelas palavras separadas, unidas umas s outras,
proferidas de maneira diferente por cada voz, e
era assim que nos comunicvamos uns com os
outros.
Fitz, Fitz, Fitz gritavam, o meu nome,
referindo-se a mim, suponho, mas cada voz
pronunciava a palavra de uma forma diferente, e
cada uma tinha uma imagem diferente de quem era
aquele com quem falavam e do motivo por que
tinham de falar comigo. As palavras eram coisas
to desajeitadas, que eu no conseguia me
concentrar naquilo que eles estavam tentando
transmitir atravs delas. Era como lidar com
mercadores estrangeiros, apontando e erguendo
dedos no ar, sorrindo ou franzindo testas, e
adivinhando, adivinhando sempre, o que o outro
realmente queria dizer.
Por favor eu disse. Calma. Por favor!
S queria que se calassem, que parassem com
os rudos, articulados ou no. Mas o som das
minhas prprias palavras prendeu a minha ateno.
Por favor disse de novo, maravilhando-me
com todas as maneiras pelas quais a minha boca
tinha de se mover para produzir aquele som
impreciso. Calma! voltei a dizer, e notei que
a palavra significava coisas demais para ter algum
significado real.
Um dia, quando ainda estava com Bronco h
muito pouco tempo, ele me dissera para tirar os
arreios de uma parelha. Foi quando ainda
estvamos avaliando um ao outro, e aquela no era
tarefa que um homem razovel desse a uma
criana. Mas eu consegui, subindo por todos os
lados dos dceis animais e desapertando todas as
fivelas e fechos brilhantes at deixar os arreios em
pedaos no cho. Quando fora ver por que eu
estava demorando tanto, Bronco ficara mudo de
estupefao, mas fora incapaz de me censurar por
ter feito o que ele me dissera para fazer. Quanto a
mim, ficara espantado com o nmero de peas que
havia em algo que parecera ser uma coisa s
quando eu comeara.
Era assim tambm para mim naquele momento.
Todos aqueles sons para formar uma palavra,
todas aquelas palavras para elaborar um
pensamento. A linguagem desmontou-se nas
minhas mos. Nunca antes parara para pensar
nisso. Estava diante deles, de tal modo ensopado
em essncia de Talento naquela estrada que a fala
parecia to infantilmente inadequada quanto comer
mingau de aveia com os dedos. As palavras eram
lentas e inexatas, escondendo tanto significado
quanto revelavam.
Fitz, por favor, voc precisa comeou
Kettricken, e eu fiquei to absorto analisando
todos os possveis significados que essas cinco
palavras podiam ter que no cheguei a ouvir o
resto do que ela disse.
O Bobo pegou a minha mo e me levou para a
tenda. Empurrou-me at que eu me sentei, e tirou o
meu chapu, minhas luvas e o meu sobrecasaco.
Sem dizer uma palavra, colocou uma caneca
quente nas minhas mos. Isso eu consegui
compreender, mas a conversa rpida e preocupada
dos outros era como o cacarejar assustado de um
galinheiro cheio de galinhas. O lobo apareceu e
deitou-se ao meu lado, pousando a sua grande
cabea em uma das minhas coxas. Estendi a mo
para afagar o largo crnio e mexer nas orelhas
moles. Ele encostou-se mais em mim, como que
suplicando. Cocei-o atrs das orelhas, pensando
que poderia ser isso que ele queria. Era terrvel
no saber.
No tive grande utilidade para ningum nessa
noite. Tentei fazer a minha parte das tarefas, mas
os outros no paravam de tir-las das minhas
mos. Vrias vezes fui beliscado ou cutucado por
Panela, que me pedia acorda!. Numa dessas
vezes, fiquei to fascinado pelo movimento da sua
boca enquanto ela me repreendia que no me dei
conta quando se afastou de mim. No me lembro
do que estava fazendo quando a parte de trs do
meu pescoo foi agarrada pelas suas mos
semelhantes a garras. Ela empurrou a minha
cabea para a frente e a manteve agarrada
enquanto batia com o dedo em cada uma das
pedras dispostas no seu pano de jogar. Colocou
uma pedra preta na minha mo. Durante algum
tempo apenas fitei as peas. Ento, de sbito, senti
uma mudana de percepo. No havia espao
entre mim e o jogo. Durante algum tempo testei a
colocao da minha pedrinha em vrias posies.
Por fim encontrei a jogada perfeita, e quando pus a
pedra no lugar, foi como se os meus ouvidos
ficassem limpos de repente, ou como tivesse
afastado o sono dos olhos piscando. Ergui o olhar
para avaliar aqueles que me rodeavam.
Lamento murmurei, de forma inadequada.
Lamento.
Est melhor agora? perguntou-me Panela
com suavidade. Falava como se eu fosse um beb.
J sou mais eu mesmo agora respondi.
Ergui os olhos para ela, subitamente desesperado.
O que me aconteceu?
O Talento disse ela, simplesmente.
Voc no forte o suficiente nele. Quase seguiu a
estrada at onde ela j no passa. H ali alguma
espcie de sinalizador, e outrora a estrada
divergia ali, com um caminho descendo ao vale e
o outro prosseguindo ao longo do flanco da
montanha. O caminho que descia est cortado, foi
levado h anos por um cataclismo. Nada resta, a
no ser pedras cadas l no fundo, mas possvel
ver o local onde a estrada emerge da runa e
continua. Desaparece em outro amontoado de
pedras distncia. Veracidade no pode ter ido
por ali. Mas voc quase seguiu a memria da
estrada at a sua morte. Fez uma pausa e me
olhou com severidade. No meu tempo Voc
no recebeu treino suficiente para fazer o que tem
feito, quanto mais para enfrentar este desafio. Se
isto o melhor que lhe ensinaram Tem certeza
de que Veracidade est vivo? perguntou-me de
sbito. Que sobreviveu sozinho a esta
provao?
Decidi que um de ns tinha de parar de manter
segredos.
Eu o vi, em um sonho de Talento. Em uma
cidade, com gente como aquela pelas quais
passamos hoje. Lavou as mos e os braos num rio
mgico, e afastou-se carregado de poder.
Deus dos peixes! praguejou Panela. Um
pouco de horror e um pouco de reverncia lhe
iluminou o rosto.
No passamos por ningum hoje objetou
Esporana. No notei que ela se sentara ao meu
lado at que falou. Dei um salto, sobressaltado por
algum poder se aproximar tanto de mim sem que
eu o sentisse.
Todos aqueles que caminharam por esta
estrada deixaram nela algo de si. Os seus sentidos
esto amortecidos para esses fantasmas, mas Fitz
caminha por aqui nu como uma criana recm-
nascida. E igualmente ingnuo. Panela
encostou-se de sbito nos seus cobertores e as
rugas no seu rosto se aprofundaram. Como pode
uma criana dessas ser o Catalisador?
perguntou, a ningum em particular. Voc no
sabe como se salvar de voc mesmo. Como vai
salvar o mundo?
O Bobo debruou-se de sbito do seu leito para
pegar a minha mo. Algo semelhante a fora fluiu
para dentro de mim com esse toque tranquilizador.
O seu tom de voz era leve, mas as palavras
calaram fundo em mim.
A competncia nunca foi garantida nas
profecias. S a persistncia. O que diz o seu
Colume, o Branco? Eles vm como gotas de
chuva contra as torres de pedra do tempo. Mas
com o tempo sempre a chuva que prevalece, no
a torre. Deu um aperto na minha mo.
Os seus dedos parecem gelo disse-lhe
quando me largou.
Estou com um frio inacreditvel
concordou. Encostou os joelhos no peito e os
envolveu com os braos. Frio e cansao. Mas
sou persistente.
Ergui dele o olhar para ir encontrar Esporana
com um sorriso astuto no rosto. Deuses, como
aquilo me irritou.
Tenho casco-de-elfo na trouxa sugeri ao
Bobo. D tanto calor como fora.
Casco-de-elfo Panela franziu o cenho,
como se aquilo fosse repugnante. Mas, aps um
momento de reflexo, disse, excitada: Na
verdade, isso pode ser uma boa ideia. Sim. Ch de
casco-de-elfo.
Quando tirei a droga da trouxa, Panela a tirou de
minhas mos como se eu pudesse me cortar com
ela. Resmungou para si mesma enquanto despejava
minsculas pores dela em canecas para nos dar.
Eu vi o tipo de doses a que voc se expe
repreendeu-me, e ela mesma preparou o ch. No
colocou nenhum casco-de-elfo no ch que
preparou para Kettricken, para Esporana e para si.
Beberiquei o ch quente, saboreando primeiro o
toque acre do casco-de-elfo e ento a tepidez do
ch na minha barriga. O seu calor enervante
espalhou-se por mim. Observei o Bobo e o vi
relaxar ao ser envolvido pelo ch. At os seus
olhos comearam a cintilar por causa dele.
Kettricken pegara o mapa e estava franzindo o
cenho sobre ele.
FitzCavalaria, examine isto comigo
ordenou de sbito a rainha. Dei a volta no braseiro
para ir me sentar ao lado dela. Ainda quase nem
me instalara quando ela comeou. Creio que
estamos aqui disse-me. O seu dedo bateu na
primeira confluncia do caminho que estava
marcado no mapa. Veracidade disse que
visitaria todos os trs locais que estavam
marcados no mapa. Creio que quando este mapa
foi feito, a estrada que voc quase seguiu esta
noite estava intacta. Agora no est mais l. E no
est h algum tempo. Seus olhos azuis
cruzaram-se com os meus. O que acha que
Veracidade fez quando chegou a este ponto?
Refleti por um momento.
Ele um homem pragmtico. Este outro
destino, o segundo, no parece estar a mais do que
trs ou quatro dias daqui. Acho que ele poderia ir
l primeiro, para procurar l os Antigos. E este
terceiro destino fica, ah, apenas a sete dias daqui.
Creio que pensaria que seria mais rpido visitar
aqueles dois lugares primeiro. Depois, se no
tivesse sucesso l, poderia regressar aqui para
tentar descobrir um caminho at o que quer que
exista l embaixo.
Ela enrugou a testa. De repente me lembrei como
a testa era lisa quando ela se tornara noiva de
Veracidade. Agora raramente a via sem rugas de
preocupao e cuidado no rosto.
O meu marido est ausente h muito tempo.
E, no entanto, no demoramos muito para chegar
aqui. Ele talvez ainda no tenha regressado porque
est l embaixo. Porque precisou de muito tempo
para descobrir um caminho at l para continuar a
viagem.
Talvez concordei, inquieto. Lembre-se
de que ns estamos bem abastecidos e viajamos
juntos. Quando Veracidade chegou aqui, estaria
viajando sozinho e com poucos recursos.
Abstive-me de dizer a Kettricken que suspeitava
de que ele fora ferido naquela ltima batalha. No
fazia sentido lhe causar mais ansiedade. Contra a
minha vontade, senti uma parte de mim tentando
alcanar Veracidade. Fechei os olhos e voltei a me
selar resolutamente em mim. Teria imaginado uma
mancha na corrente de Talento, uma sensao
muito familiar de poder insidioso? Ergui de novo
as muralhas.
dividir o grupo?
Perdo, minha rainha eu disse com
humildade.
No sei se a expresso nos seus olhos era de
exasperao ou de medo. Pegou a minha mo e a
segurou com firmeza.
Preste ateno em mim ordenou. Eu
disse que amanh procuraremos um caminho para
descer. Se virmos alguma coisa que parea
promissora, vamos tent-la. Mas acho que no
devamos empregar a essa busca mais do que trs
dias. Se no encontrarmos nada, devemos
prosseguir. Porm, uma alternativa dividir o
grupo. Mandar
No acho que devemos dividir o grupo eu
disse, apressado.
O mais provvel voc ter razo
concedeu ela. Mas leva tanto tempo, tanto, tanto
tempo, e eu estou sozinha com as minhas perguntas
h tempo demais.
No consegui arranjar nada para responder
quilo, ento fingi estar ocupado esfregando as
orelhas de Olhos-de-Noite.
Irmo. Era um sussurro, nada mais, mas eu
baixei os olhos para Olhos-de-Noite. Botei uma
mo na pelagem do pescoo, fortalecendo o
vnculo com um toque. Voc estava to vazio
quanto um humano comum. Nem sequer
conseguia faz-lo me sentir.
Eu sei. No sei o que aconteceu comigo.
Eu sei. Est cada vez mais deixando o meu lado
e indo para o outro lado. Temo que voc v longe
demais e no consiga regressar. Temi que isso j
tivesse acontecido hoje.
O que quer dizer com o meu lado e o outro
lado?
Consegue ouvir o lobo outra vez?
perguntou-me Kettricken, preocupada. Fiquei
surpreso, ao olhar para cima, por ver o modo
ansioso como ela me olhava.
Sim. Estamos juntos de novo respondi.
Ocorreu-me uma ideia. Como sabia que no
conseguamos nos comunicar?
Ela encolheu os ombros.
Imagino que supus isso. Ele parecia to
ansioso, e voc parecia to distante de todos.
Ela tem a Manha. No tem, minha rainha?
No posso dizer com certeza que algo foi
transmitido entre os dois. Uma vez, muito antes,
em Torre do Cervo, eu pensara que havia
detectado Kettricken usando a Manha. Suponho
que ela podia perfeitamente a estar usando naquele
momento, pois o meu sentido estava to diminudo
que quase no conseguia detectar o meu prprio
animal de vnculo. Em todo o caso, Olhos-de-
Noite ergueu a cabea para olh-la, e ela lhe
devolveu o olhar com firmeza. Com uma pequena
franzida de cenho, Kettricken acrescentou:
s vezes gostaria de conseguir falar com ele
como voc fala. Se tivesse a sua velocidade e
furtividade minha disposio, podia ter mais
certeza da segurana da estrada, tanto nossa
frente como atrs de ns. Podamos conseguir
achar um caminho para baixo, um caminho que no
esteja claro aos nossos olhos.
Se voc conseguir se manter Manhoso o
suficiente para dizer a ela o que eu vejo, no me
importo de desempenhar essa tarefa.
Olhos-de-Noite ficaria muito feliz em ajudar
a senhora dessa forma, minha rainha disse.
Ela deu um sorriso cansado.
Ento, suponho, se conseguir ficar consciente
de ns dois, voc pode servir de intermedirio.
O seu eco arrepiante do pensamento do lobo me
perturbou, mas s manifestei assentimento com um
aceno. Cada aspecto da conversa exigia agora a
minha completa ateno, caso contrrio me
escapava. Era como estar horrivelmente cansado e
ter de lutar constantemente contra o sono.
Perguntei-me se seria assim to difcil para
Veracidade.
H uma maneira de cavalgar isso, mas com
leveza, com leveza, como quem domina um
garanho com mau temperamento que se rebela
contra qualquer toque de rdea ou calcanhar.
Mas voc ainda no est pronto para faz-lo.
Portanto, enfrente-o, garoto, e mantenha a
cabea fora dgua. Gostaria que houvesse outro
modo de vir at mim. Mas s existe a estrada, e
voc precisa segui-la. No, no me responda.
Saiba que h outros que escutam com tanta
avidez quanto eu, embora no com tanta
intensidade. Tenha cautela.
Um dia, ao descrever o meu pai, Cavalaria,
Veracidade dissera que quando ele usava o
Talento era como ser atropelado por um cavalo,
que Cavalaria lhe invadia a mente, despejava as
suas mensagens e fugia. Eu agora tinha uma
compreenso melhor do que o meu tio quisera
dizer. Senti-me bastante como um peixe
abandonado de sbito por uma onda. Houve aquela
sensao imensa de algo que faltava no instante
seguinte partida de Veracidade. Precisei de um
momento para me lembrar de que era uma pessoa.
Se j no estivesse fortalecido com casco-de-elfo,
creio que talvez tivesse desmaiado. Mas, na
verdade, a droga estava aumentando o seu controle
sobre mim. Tinha a sensao de estar sendo
envolvido em um cobertor quente e macio. O
cansao desaparecera, mas me sentia abafado.
Bebi o pouco que me restava na caneca e esperei
pela torrente de energia que o casco-de-elfo
costumava me dar. No veio.
Acho que voc no usou o suficiente disse
a Panela.
Voc tomou o bastante disse ela com
aspereza. Soou como Moli quando pensava que eu
estava bebendo demais. Preparei-me, esperando
que imagens de Moli me inundassem a mente. No
entanto, fiquei dentro da minha vida. No sei se me
senti aliviado ou desapontado. Ansiava por v-la e
a Urtiga. Mas Veracidade me avisara
Tardiamente, anunciei a Kettricken:
Veracidade me contactou pelo Talento.
Agora h pouco. Depois me amaldioei como
cruel e idiota quando vi a esperana lhe inundar o
rosto. No foi realmente uma mensagem
emendei depressa. S um aviso para me
lembrar de que devo evitar usar o Talento. Ele
ainda acha que pode haver outros me procurando
por essa via.
O seu rosto ruiu. Sacudiu a cabea para si
mesma. Ento ergueu os olhos para perguntar:
Ele no tinha mesmo nenhuma mensagem para
mim?
No sei se ele compreende que a senhora est
comigo esquivei-me apressadamente da
pergunta.
Nem uma palavra disse ela numa voz
montona como se no tivesse me ouvido. Tinha
os olhos opacos quando perguntou: Ele sabe
como o desapontei? Ele sabe do nosso filho?
No creio que saiba, minha senhora. No
sinto nele esse pesar, e sei bem que isso o
entristeceria.
Kettricken engoliu em seco. Amaldioei as
minhas palavras desastradas e, no entanto, cabia a
mim proferir palavras de conforto e amor esposa
dele? Ela endireitou-se de repente, e ento se
levantou.
Acho que vou buscar um pouco mais de lenha
para esta noite anunciou. E dar rao s
jepas. Aqui quase nem h um graveto para elas
comerem.
Observei-a enquanto abandonava a tenda e
penetrava na escurido e frio que fazia l fora.
Ningum disse uma palavra. Aps respirar por
uma ou duas vezes, levantei-me e a segui.
No demore avisou-me Panela de forma
enigmtica. O lobo me seguiu como uma sombra.
L fora, a noite estava lmpida e fria. O vento
no se mostrava pior do que era hbito.
Desconfortos familiares que podiam quase ser
ignorados. Kettricken no estava nem recolhendo
lenha, nem alimentando as jepas. Eu tinha certeza
de que ambas as tarefas j haviam sido feitas
antes. Estava de p na beira da estrada fendida,
fitando a escurido do penhasco aos seus ps.
Estava empertigada e rgida como um soldado que
apresentava um relatrio ao sargento e no fazia
um som. Compreendi que ela estava chorando.
H um momento para maneiras corteses, um
momento para o protocolo formal e um momento
para a humanidade. Fui at ela, peguei pelos
ombros e a virei para me encarar. Ela irradiava
infelicidade, e o lobo ao meu lado soltou um
ganido sonoro.
Kettricken eu disse simplesmente. Ele
a ama. Ele no ir culp-la. Ir sofrer, sim, mas
que tipo de homem no sofreria? E quanto aos atos
de Majestoso, so os atos de Majestoso. No
assuma a culpa por eles. Voc no poderia t-lo
detido.
Ela passou uma mo pelo rosto e no falou.
Olhou para alm de mim, com o rosto
transformado em uma mscara plida luz das
estrelas. Soltou um pesado suspiro, mas eu a sentia
estrangulada na sua tristeza. Passei os braos em
volta da minha rainha e a puxei para mim,
apertando-lhe o rosto contra o meu ombro.
Afaguei-lhe as costas, sentindo a terrvel tenso
que havia ali.
Est tudo bem menti-lhe. Vai ficar tudo
bem. Com o tempo, voc ver. Ficaro juntos de
novo, faro outro filho, ambos se sentaro no
Grande Salo de Torre do Cervo e ouviro os
menestris cantar. De algum modo, voltar a haver
paz. Voc nunca viu Torre do Cervo em paz.
Haver tempo para Veracidade ir caar e pescar, e
voc cavalgar ao seu lado. Veracidade voltar a
rir, gritar e rugir pelos corredores como o vento
do norte. A Cozinheira costumava correr com ele
da cozinha por cortar a carne do assado antes de
estar bem cozinhada, tal era a fome com que
chegava da caa. Simplesmente entrava e a cortava
uma coxa de uma galinha que estava assando e
andava pela sala da guarda com ela na mo,
contando histrias, brandindo-a como uma
espada
Dei-lhe palmadinhas nas costas como se ela
fosse uma criana e lhe contei histrias sobre o
homem franco e caloroso de que me lembrava dos
tempos de infncia. Durante algum tempo, a sua
testa repousou no meu ombro e ela ficou
completamente imvel. Depois tossiu uma vez,
como quem comea a sufocar, mas em vez disso
foram terrveis soluos que a dominaram. Chorou
de sbito e sem vergonha como uma criana que
tivesse cado com fora e estivesse to machucada
como assustada. Senti que aquelas eram lgrimas
que estavam para serem derramadas havia muito
tempo, e no tentei ajud-la a parar. Em vez disso,
continuei a falar e acarici-la, quase sem ouvir o
que estava dizendo, at que os seus soluos
comearam a se acalmar e o seu tremor a diminuir.
Por fim, afastou-se um pouco de mim para
procurar um leno no bolso. Limpou o rosto e os
olhos e assoou o nariz antes de tentar falar.
Eu vou ficar bem disse. Ouvir a fora da
sua crena naquelas palavras fez doer o meu
corao. s difcil neste momento.
Esperar para lhe dizer todas essas coisas terrveis.
Saber como o machucaro. Ensinaram-me tantas
coisas sobre ser Sacrifcio, Fitz. Desde o
princpio, eu soube que podia ter terrveis tristezas
para suportar. Sou forte o bastante para suportar
essas coisas. Mas ningum me avisou de que
poderia acabar amando o homem que escolheriam
para mim. Aguentar a minha dor uma coisa.
Levar dor a ele outra. Sua garganta fechou-se
nas palavras e ela abaixou a cabea. Temi que
pudesse recomear a chorar. Mas, quando ergueu a
cabea, ela sorriu para mim. O luar tocou a
umidade prateada nas suas bochechas e clios.
s vezes penso que s voc e eu vemos o homem
que h por baixo da coroa. Quero que ele ria, e
que grite por a, e que deixe os frascos de tinta
abertos e os mapas espalhados por todo o lado.
Quero que ponha os braos minha volta e me
abrace. s vezes desejo tanto estas coisas, que me
esqueo dos Navios Vermelhos, de Majestoso e
de tudo o mais. s vezes acho que se ao menos
pudssemos estar de novo juntos, todo o resto
tambm ficaria bem. No um pensamento muito
digno para se ter. Supe-se que um Sacrifcio seja
mais
Um reflexo de prata atrs dela capturou meu
olhar. Vi a coluna negra por cima do seu ombro.
Inclinava-se por cima da borda quebrada da
estrada, com metade do seu suporte de pedra
desaparecido. No ouvi o resto do que ela disse.
Perguntei-me como no a vira antes. Reluzia com
um brilho mais forte que o da lua na neve
cintilante. Fora cinzelada em pedra negra coberta
com uma rede de resplandecentes cristais. Como o
luar em um rio ondulado de Talento. No
conseguia decifrar nenhum dos escritos na sua
superfcie. O vento gritava atrs de mim quando
estendi a mo e a passei pela superfcie daquela
pedra lisa. Ela me deu as boas-vindas.
CAPTULO 27

A Cidade

Atravs do Reino da Montanha corre um velho


caminho comercial que no serve nenhuma das
vilas atuais do Reino da Montanha. Partes desta
antiga estrada surgem em locais to distantes,
para o sul e para leste, quanto a costa do Lago
Azul. O caminho no tem nome, ningum se
lembra de quem o construiu e poucos o usam,
mesmo nos trechos que se mantm intactos. Em
alguns lugares, a estrada tem sido gradualmente
destruda pelas elevaes de terreno gelado que
so comuns nas Montanhas. Em outros locais,
cheias e deslizamentos de terras a reduziram a
escombros. Ocasionalmente, um jovem
aventureiro da Montanha toma a iniciativa de
seguir a estrada at a sua origem. Aqueles que
regressam tm a contar histrias mirabolantes
sobre cidades arruinadas e vales vaporosos onde
lagoas sulfreas exalam fumos, e falam tambm
da natureza desagradvel do territrio que a
estrada atravessa. No h caa suficiente, dizem,
e no est registrado em parte alguma que
algum tivesse ficado impressionado o suficiente
para fazer uma viagem de volta at o fim da
estrada.

Ca de joelhos na rua coberta de neve. Levantei-


me lentamente, tentando alcanar uma lembrana.
Eu ficara bbado? As nuseas, as tonturas
condiziam bem com isso. Mas aquela cidade
sombriamente cintilante e silenciosa, no. Olhei
em volta. Estava em alguma espcie de praa que
se abria sombra de algum tipo de grande
memorial de pedra. Pisquei, fechei os olhos com
fora, entos os abri de novo. A luz nebulosa ainda
me confundia. Quase no conseguia ver a mais do
que um brao de distncia em todas as direes.
Esperei em vo que os meus olhos se ajustassem
luz vaga das estrelas. Porm, logo comecei a
tremer, de modo que me pus a caminhar em
silncio atravs das ruas vazias. A minha cautela
natural regressou primeiro, seguida por uma tnue
recordao dos meus companheiros, da tenda, da
estrada cortada. Contudo, entre essa memria
brumosa e eu estar naquela rua, nada existia.
Olhei para trs, para o lugar de onde viera. A
escurido engolira a estrada atrs de mim. At as
minhas pegadas estavam sendo enchidas pelos
flocos de neve mida que caam lentamente.
Pisquei para sacudir flocos de neve dos clios e
olhei em volta. Vi as paredes de edifcios de pedra
de ambos os lados da rua, cintilando de umidade.
Os meus olhos no conseguiam compreender a luz.
No tinha fonte e era uniformemente insuficiente.
No havia grandes sombras, nem vielas
particularmente escuras. Mas tampouco eu
conseguia distinguir o lugar para onde me dirigia.
As alturas e estilos dos edifcios, os destinos das
ruas permaneciam um mistrio.
Senti o pnico erguer-se em mim e lutei para
control-lo. As sensaes que tinha me lembravam
bem demais o modo como fora enganado atravs
do Talento no feudo de Majestoso. A ideia de
apalpar com o Talento me aterrorizava por poder
encontrar a mancha de Vontade naquela cidade.
Mas se continuasse a avanar cegamente,
confiando em no estar sendo enganado, eu podia
cair em uma armadilha. Ao abrigo de uma parede,
parei e me forcei compostura. Tentei de novo me
lembrar de como havia chegado ali, h quanto
tempo deixara os meus companheiros e por qu.
Nada me ocorreu. Sondei com o sentido da Manha,
tentando encontrar Olhos-de-Noite, mas nada mais
detectei que estivesse vivo. Perguntei-me se no
haveria mesmo criaturas vivas por perto, ou se o
meu sentido da Manha teria voltado a falhar.
Tambm no tinha resposta para essa dvida.
Quando me pus escuta, ouvi apenas vento. Senti
cheiro apenas de pedra mida, neve fresca e em
algum lugar talvez, gua de rio. O pnico ergueu-
se mais uma vez em mim e eu me encostei contra a
parede.
A cidade desabrochou subitamente para a vida
ao meu redor. Notei que estava encostado na
parede de uma estalagem. Vindos l de dentro,
ouvi os sons de um estridente instrumento de sopro
e vozes erguidas numa cano que no me era
familiar. Uma carroa passou ruidosamente por
mim pela rua, e ento um casal jovem passou
rapidamente pela desembocadura da viela, de
mos dadas, rindo enquanto corria. Era noite
naquela estranha cidade, mas no se dormia. Ergui
os olhos para as alturas impossveis dos seus
edifcios de estranhos coruchus e vi luzes
ardendo nos andares superiores. distncia, um
homem chamou ruidosamente por algum.
O meu corao saltava no peito. O que havia de
errado comigo? Tomei coragem e encontrei a
determinao para avanar e descobrir o que
pudesse sobre aquela estranha cidade. Esperei at
que outra carroa de cerveja carregada de barris
passasse com estrondo pela viela onde eu me
encontrava. Ento dei um passo para longe da
parede.
E nesse instante, tudo se transformou mais uma
vez em escurido silenciosa e cintilante. As
canes e os risos haviam desaparecido da
taverna; ningum passava pelas ruas. Aventurei-me
a ir at a desembocadura da viela e espreitei
cautelosamente para ambas as direes. Nada. S
neve mida que caa suavemente. Ao menos, disse
a mim mesmo, o tempo ali estava melhor do que
estivera na estrada, l em cima. Mesmo se tivesse
de passar a noite inteira ao ar livre, no sofreria
demais.
Vaguei pela cidade durante algum tempo. Em
cada esquina, escolhia seguir a estrada mais larga,
e logo descobri um padro de descidas constantes
e suaves. O cheiro de rio tornou-se mais forte.
Parei uma vez para descansar na borda de uma
grande bacia circular que poderia ter rodeado uma
fonte ou sido um local de lavagens. De imediato, a
cidade voltou a rebentar em vida minha volta.
Um viajante veio dar de beber ao cavalo na bacia
seca to perto de mim que poderia ter estendido a
mo para toc-lo. Ele no reparou em mim, mas eu
observei bem a estranheza das suas vestimentas e a
forma incomum da sela que o cavalo usava. Um
grupo de mulheres passou a p por mim,
conversando e rindo em voz baixa. Usavam trajes
longos e retos que pendiam suavemente dos seus
ombros e esvoaavam em volta das barrigas das
pernas enquanto caminhavam. Todas usavam os
longos cabelos claros soltos at os quadris, e as
botas ressoavam na rua de paraleleppedos.
Quando me levantei para falar com elas,
desapareceram, e com elas desapareceu tambm a
luz.
Acordei a cidade por mais duas vezes at
compreender que bastava o toque da minha mo
em uma parede com veios de cristal. Foi
necessria uma quantidade descabida de coragem,
mas comecei a caminhar roando apenas com as
pontas dos dedos pelas construes. Quando o
fazia, a cidade rebentava em vida minha volta
enquanto eu caminhava. Era noite, e a neve
silenciosa continuava a cair. As carroas que
passavam no deixavam rastros nela. Ouvi o bater
de portas que h muito haviam apodrecido e vi
pessoas caminhando com leveza por cima de uma
profunda ravina que uma tempestade violenta
criara ao longo de uma rua. Era difcil ignor-los
como fantasmas quando gritavam saudaes uns
aos outros. Eu que era ignorado e invisvel
enquanto continuava a avanar.
Por fim, cheguei a um rio largo e negro que flua
suavemente luz das estrelas. Vrios
desembarcadouros fantasmagricos se projetavam
nele e dois imensos navios estavam ancorados no
rio. Luzes brilhavam nos seus conveses. Tonis e
fardos esperavam nas docas para serem
embarcados. Um aglomerado de gente entregava-
se a algum jogo de azar e a honestidade de algum
estava sendo ruidosamente posta em dvida.
Vestiam-se de um modo diferente dos ratos de rio
que vinham a Cervo e a lngua era diferente, mas
em tudo mais que eu visse eram o mesmo tipo de
gente. Enquanto eu observava, teve incio uma luta
que se espalhou at se transformar em uma briga
generalizada. Dispersou-se rapidamente quando
soou o assobio da patrulha noturna, com os
combatentes fugindo em todas as direes antes
que a Guarda da Cidade chegasse.
Tirei a mo da parede. Permaneci um momento
na escurido tomada de neve, deixando que os
olhos se ajustassem. Navios, desembarcadouros,
gente do rio, todos desapareceram. Mas a calma
gua negra ainda flua, soltando vapor para o ar
mais frio. Caminhei na sua direo, sentindo que a
estrada se tornava spera e quebrada sob os meus
ps enquanto ia avanando. As guas daquele rio
haviam se erguido e baixado por cima daquela rua,
causando os seus danos sem ningum para se opor
a eles. Quando virei as costas ao rio e examinei o
horizonte da cidade, consegui ver as tnues
silhuetas de coruchus cados e paredes
derrubadas. Uma vez mais sondei em volta, uma
vez mais no encontrei qualquer vida.
Virei-me de novo para o rio. Havia algo na
configurao geral do terreno que me puxava pela
memria. No era precisamente ali, eu sabia, mas
senti a certeza de que aquele era o rio onde vira
Veracidade lavar as mos e braos e tir-los de l
brilhando de magia. Cautelosamente, caminhei
sobre pedras quebradas de pavimento at a beira
do rio. Parecia gua, cheirava a gua. Agachei-me
ao seu lado e pensei. Ouvira histrias sobre lagoas
de lama de alcatro cobertas por uma camada de
gua; bem sabia como o leo flutuava na gua. Era
possvel que por baixo da gua negra flusse outro
rio, um rio de um poder prateado. Mais para
montante ou para jusante, talvez se encontrasse o
afluente de puro Talento que eu vira na minha
viso.
Tirei a luva e arregacei a manga. Coloquei a
mo na corrente de gua, sentindo o seu beijo
gelado contra a minha palma nua. De sentidos
tensos, tentei perceber se haveria Talento por
baixo daquela superfcie; nada senti. Mas se
mergulhasse o brao e a mo, eles talvez sassem
da gua brilhando com fora. Ousei estend-los
para descobrir.
A minha coragem no foi alm disso. Eu no era
um Veracidade. Conhecia a fora do seu Talento e
vira como a imerso na magia pusera prova a sua
fora de vontade. Eu no estava altura. Ele
marchara sozinho pela estrada de Talento afora,
enquanto eu Minha mente regressou de um salto
a esse problema. Quando eu teria abandonado a
estrada de Talento e os meus companheiros?
Talvez nunca o tivesse feito. Tudo aquilo talvez
fosse um sonho. Ergui a mo e molhei o rosto com
gua fria. No me senti diferente. Finquei as unhas
no rosto e arranhei a pele at me doer. Isso nada
provou, apenas me deixou curioso para saber se eu
podia sonhar dor. No descobrira respostas
naquela estranha cidade morta, s mais perguntas.
Com grande determinao, virei os passos para
o caminho por onde viera. A visibilidade era ruim
e a neve pegajosa estava enchendo rapidamente as
minhas pegadas. Com relutncia, encostei os dedos
na pedra de uma parede. Era mais fcil encontrar o
caminho de volta dessa forma, pois a cidade viva
tivera mais pontos de referncia do que as cinzas
frias que dela restavam. Porm, enquanto me
apressava atravs das ruas cobertas de neve,
perguntei-me quando toda aquela gente havia
estado ali. Eu estaria vendo os acontecimentos de
uma noite de cem anos antes? Se viesse at ali em
outra noite veria os mesmos acontecimentos se
desenrolando, ou veria uma noite diferente da
histria da cidade? Ou aquelas sombras de
pessoas se viam agora como vivas? Eu era a
estranha sombra fria que atravessava as suas
vidas? Forcei-me a parar de indagar sobre coisas
para as quais no tinha qualquer resposta.
Precisava regressar pelo caminho por onde viera.
Ou cheguei ao fim dos locais de que me
lembrava, ou me enganei no caminho. O resultado
foi o mesmo. Dei por mim vagando por uma
estrada que eu tinha certeza de que no me era
familiar. Raspei os dedos pela superfcie de uma
fila de lojas, todas bem trancadas para a noite.
Passei por dois amantes envoltos em um abrao na
soleira de uma porta. O fantasma de um co passou
por mim sem sequer me dar uma farejada curiosa.
Apesar do tempo menos rigoroso, eu estava
ficando com frio. E cansado. Olhei de relance para
o cu. Em breve seria manh. luz do dia, talvez
eu pudesse subir em uma das construes e ter uma
ideia da disposio do terreno. Quando acordasse
talvez conseguisse me recordar de como chegara
at ali. De um modo insensato, olhei ao redor em
busca de um beiral ou de um barraco onde
pudesse me abrigar antes de me ocorrer que no
havia motivo para no entrar em uma das
construes. Mesmo assim, senti-me estranho
quando escolhi uma porta e a atravessei. Enquanto
tocava uma parede, vi um interior obscurecido.
Mesas e prateleiras estavam repletas de cermica
e vidros finos. Um gato dormia perto de uma
lareira de bordos elevados. Quando tirei a mo da
parede, tudo estava frio e negro como breu. Ento
percorri a parede com os dedos, quase tropeando
nos restos desfeitos de uma das mesas. Agachei-
me, reuni tateando os pedaos e os levei para a
lareira. Com grande perseverana, consegui fazer
com eles um fogo verdadeiro onde o fantasma
ardia.
Depois de o fogo comear a arder bem e de eu
me erguer sobre ele para me aquecer, a sua luz
tremeluzente me mostrou um aspecto diferente da
sala. Paredes nuas e cho coberto de detritos. No
havia sinal da olaria e vidraria finas, embora
houvesse mais alguns pedaos de madeira de
prateleiras h muito cadas. Agradeci sorte por
elas terem sido feitas de bom carvalho, pois
decerto teriam h muito apodrecido por completo
se no fosse assim. Decidi estender o manto no
cho para me proteger do frio da pedra e confiar
no fogo para me manter suficientemente quente.
Deitei-me, fechei os olhos e tentei no pensar em
gatos fantasmagricos ou nos fantasmas de pessoas
que estariam dormindo nas suas camas no andar
acima de mim.
Tentei erguer as minhas muralhas de Talento
antes de dormir, mas foi como secar os ps
enquanto se est com eles mergulhados em um rio.
Quanto mais prximo chegava do sono, mais
difcil se tornava me lembrar de onde se
encontravam tais barreiras. Quanto do meu mundo
era eu, e quanto era as pessoas com quem me
importava? Sonhei primeiro com Kettricken,
Esporana, Panela e o Bobo vagando de um lado
para o outro com archotes enquanto Olhos-de-
Noite corria de um lado para o outro ganindo. No
era um sonho confortvel e eu lhe dei as costas e
pairei mais para dentro de mim. Pelo menos foi o
que supus.
Descobri a cabana que me era familiar.
Conhecia a sala simples, a mesa rstica, a lareira
bem arranjada, a cama estreita, to bem feita. Moli
estava sentada de roupo junto lareira,
embalando Urtiga e cantando em voz baixa uma
cano sobre estrelas e estrelas-do-mar. Eu no
me recordava de canes de ninar e fiquei to
encantado com aquela quanto Urtiga. Os grandes
olhos da beb estavam fixos no rosto de Moli
enquanto a me cantava. Agarrava um dos
indicadores de Moli com o seu pequeno punho.
Moli cantava a cano repetidas vezes, mas no
notei ali nenhum aborrecimento. Era uma cena que
eu podia ficar observando durante um ms, durante
um ano, e nunca conhecer o tdio. Mas as
plpebras da beb se fecharam, uma vez, para
voltarem a se abrir rapidamente. Fecharam-se
mais devagar uma segunda vez e permaneceram
fechadas. A sua minscula boca franzida moveu-se
como se estivesse mamando dormindo. O cabelo
negro comeara a se encaracolar. Moli abaixou o
rosto para roar os lbios pela testa de Urtiga.
Moli levantou-se cansada e levou a beb para a
cama. Abriu o cobertor, aconchegou a criana l
dentro e depois voltou para a mesa para apagar
com um sopro a nica vela que havia ali. luz que
vinha da lareira, vi-a deitar-se com cuidado na
cama ao lado da criana e puxar os cobertores
sobre ambas. Fechou os olhos, soltou um suspiro e
no voltou a se mexer. Vigiei o seu sono pesado,
reconhecendo-o como o sono da exausto. Senti
uma sbita vergonha. Aquela vida dura e
despojada no era algo que eu tivesse planejado
para ela, quanto mais para a nossa filha. Se no
fosse Bronco, a vida seria ainda mais dura para
elas. Fugi de v-las daquele modo, prometendo a
mim mesmo que as coisas melhorariam, que de
algum modo eu tornaria as coisas melhores para
elas. Quando eu regressasse.
Eu esperava que quando regressasse as coisas
estivessem melhores. Mas isto, de certa forma,
bom demais para acreditar.
Era a voz de Breu. Debruava-se sobre uma
mesa em uma sala escurecida, estudando um
pergaminho. Um castial lhe iluminava o rosto e o
mapa desenrolado na sua frente. Parecia cansado,
mas de bom humor. O seu cabelo grisalho estava
desgrenhado. A camisa branca estava meio aberta
e solta das calas, de modo que lhe pendia em
volta do quadril como uma saia. O velho estava
esguio e musculoso onde antes estivera emaciado.
Bebeu longamente de uma caneca fumegante e
sacudiu a cabea por causa de alguma coisa.
Majestoso parece no ganhar qualquer
terreno nesta guerra contra as Montanhas. Em cada
ataque contra as vilas fronteirias, as tropas do
Usurpador simulam atacar e depois retiram-se.
No existe um esforo concentrado para conquistar
o territrio que assolaram, no h uma
aglomerao de tropas para abrir caminho fora
at Jhaampe. Qual o jogo dele?
Venha aqui e eu lhe mostro.
Breu ergueu o olhar do pergaminho, meio
divertido e meio aborrecido.
Preciso refletir sobre uma questo sria. No
vou encontrar na sua cama a resposta para isso.
A mulher atirou para trs os cobertores e
levantou-se para caminhar suavemente at a mesa.
Movia-se como um gato sorrateiro. A sua nudez
no era vulnerabilidade, mas armadura. O seu
longo cabelo castanho havia sido solto do rabo de
cavalo de guerreira e lhe passava dos ombros.
No era nova, e muito tempo antes uma espada
deixara o seu rastro pelas costelas. Apesar disso,
era deslumbrante sua maneira formidvel e
feminina. Debruou-se sobre o mapa ao lado dele
e apontou para alguma coisa.
Olhe aqui. E aqui. E aqui. Se fosse
Majestoso, por que atacaria todos estes lugares ao
mesmo tempo, com foras pequenas demais para
manter qualquer deles sob seu controle?
Quando Breu no respondeu, ela moveu o dedo
para bat-lo em outro ponto do mapa.
Nenhum desses ataques foi uma grande
surpresa. Tropas da Montanha que haviam sido
reunidas aqui foram desviadas para estas duas
aldeias. Uma segunda fora deste local foi para a
terceira aldeia. Agora, v onde as tropas da
Montanha no esto?
No h nada a que valha a pena ter.
Nada concordou ela. Mas antigamente
havia uma rota comercial que atravessava os
passos mais baixos, aqui, e dali seguia para o
corao das Montanhas. No passa por Jhaampe, e
por esse motivo pouco usada hoje em dia. A
maior parte dos mercadores quer uma estrada que
lhes permita vender e fazer negcios em Jhaampe,
bem como nas vilas menores.
Que valor tem a estrada para Majestoso? Ele
procura tom-la e control-la?
No. Nenhuma tropa foi avistada por l.
Para onde leva o caminho?
Hoje em dia? A lugar nenhum, a no ser
algumas aldeias dispersas. Mas fornece uma boa
viagem a uma fora pequena deslocando-se
rapidamente.
Para onde se dirige?
Desaparece em Chichu. Bateu com o dedo
em outro ponto do mapa. Mas levaria esse
bando hipottico de guerreiros bem para dentro do
territrio da Montanha. Bem atrs de todas as
foras que vigiam e defendem a fronteira. Para
oeste de Jhaampe, e sem levantar suspeitas.
Mas qual seria o seu objetivo?
A mulher encolheu os ombros com indiferena, e
sorriu ao ver os olhos de Breu abandonarem o
mapa.
Talvez uma tentativa de assassinato contra o
Rei Eyod? Talvez uma tentativa de recapturar
aquele bastardo que supostamente est refugiado
nas Montanhas. Diga-me voc. Isso mais do seu
ofcio do que do meu. Envenenar os poos em
Jhaampe?
Breu empalideceu de sbito.
Passou-se uma semana. Eles j devero estar
posicionados e o seu plano j estar em
movimento. Sacudiu a cabea. O que posso
fazer?
Se eu fosse voc, mandaria um mensageiro
veloz ao Rei Eyod. Uma garota a cavalo. Alerte-o
de que pode haver espies na sua retaguarda.
Suponho que seja o melhor concordou
Breu. Surgiu uma sbita fadiga na sua voz.
Onde esto as minhas botas?
Relaxe. O mensageiro foi enviado ontem. A
essa altura, os batedores do Rei Eyod devero
estar seguindo o rastro deles. Ele tem batedores
muito bons. Posso atest-lo.
Breu a olhou com um ar pensativo, de um modo
que nada tinha a ver com a sua nudez.
Voc conhece a qualidade dos batedores
dele. E, no entanto, mandou uma das suas garotas
at a soleira da porta dele com uma missiva
escrita pela sua prpria mo, para avis-lo.
No vi nenhuma vantagem em fazer com que
tais notcias esperassem.
Breu alisou a barba curta sobre o queixo.
Quando lhe pedi ajuda, voc me disse que
trabalharia por dinheiro, no por patriotismo.
Disse que, para um ladro de cavalos, um lado da
fronteira era to bom quanto o outro.
Ela se espreguiou, rolando os ombros. Virou-se
para encar-lo, colocando as mos no quadril
dele, numa calma presuno de que tinha esse
direito. Eram quase da mesma altura.
Talvez voc tenha me conquistado para o seu
lado.
Os olhos verdes de Breu cintilaram como os de
um gato na caa.
Terei? disse, com um ar distante, enquanto
a puxava para mais perto.
Voltei a mim com um pequeno sobressalto e
mudei desconfortavelmente de posio. Senti-me
envergonhado por ter espionado Breu, e tambm
com inveja dele. Avivei um pouco a fogueira e me
deitei de novo, lembrando-me de que Moli tambm
dormia sozinha, exceto pelo pequeno calor da
nossa filha. Isso pouco me reconfortou e o meu
sono foi agitado durante o que restava da noite.
Quando abri os olhos de novo, um quadrado de
uma luz do sol aqutica me cobria, vindo da janela
aberta. A minha fogueira reduzira-se a um punhado
de brasas, mas eu no estava com muito frio. luz
do dia, o aposento em que me encontrava era
sombrio. Fui olhar uma segunda sala, em busca de
uma escada para os andares superiores que me
pudesse providenciar uma vista melhor da cidade.
Mas vi apenas os restos bambos de degraus de
madeira em que no me atrevi a confiar, nem
mesmo para uma breve subida. A umidade tambm
era mais pesada ali. As paredes e o cho de pedra
mida e fria me lembraram as masmorras de Torre
do Cervo. Deixei a loja, saindo para um dia que
parecia quase tpido. A neve da noite anterior
estava se retirando para dentro de poas dgua.
Tirei o chapu e deixei que o vento mais suave se
movesse contra o meu cabelo. Primavera,
sussurrou uma parte de mim. Sentia-se no ar o
vigor da primavera.
Eu esperara que a luz do dia vencesse os
habitantes fantasmagricos da cidade. Em vez
disso, a luz pareceu torn-los mais fortes. Pedra
negra com veios semelhantes a quartzo fora usada
em grande quantidade na construo da cidade, e
bastava que eu tocasse qualquer pedao dela para
ver a vida da cidade despertar minha volta.
Contudo, mesmo quando no tocava nada, eu ainda
parecia obter vislumbres das pessoas, ou ouvir o
murmrio das suas conversas e sentir o tumulto da
sua passagem. Caminhei durante algum tempo, em
busca de um edifcio alto e razoavelmente intacto
que me oferecesse a vista que procurava. luz do
dia, a cidade estava muito mais arruinada do que
eu suspeitara. Telhados em cpula haviam rudo, e
algumas das construes possuam grandes
rachaduras verdes de musgo percorrendo as suas
paredes. Em outras, paredes exteriores haviam
cado por completo, expondo os aposentos
interiores e enchendo a rua que por eles passava
de escombros que eu tinha de escalar. Poucas das
construes mais altas se encontravam totalmente
intactas, e algumas encostavam-se ebriamente
umas nas outras. Por fim vi um edifcio promissor
com um grande coruchu espreitando por cima dos
vizinhos, e abri caminho na sua direo.
Quando l cheguei, passei algum tempo parado
olhando para ele. Perguntei-me se teria sido um
palcio. Grandes lees de pedra guardavam os
degraus da entrada. As paredes exteriores eram da
mesma pedra preta brilhante que eu passara a
considerar como o material de construo comum
da cidade, mas, presas a essa pedra, havia
silhuetas de pessoas e animais, todas esculpidas
em alguma cintilante pedra branca. O forte
contraste do branco sobre negro e a escala
grandiosa dessas imagens as tornavam quase
esmagadoras. Uma mulher gigantesca segurava um
imenso arado atrs de uma parelha de monstruosos
bois. Uma criatura alada, talvez um drago,
ocupava uma parede inteira. Subi lentamente os
largos degraus de pedra que levavam entrada.
Parecia que, enquanto o fazia, os murmrios da
cidade se tornavam mais sonoros e mais
insistentemente reais. Um jovem sorridente desceu
apressado os degraus, com um pergaminho em uma
mo. Dei um passo para o lado para evitar colidir
com ele, mas, quando ele passou rapidamente por
mim, no senti a mnima sensao proveniente do
seu ser. Os seus olhos eram amarelos como mbar.
As grandes portas de madeira estavam fechadas
e haviam sido trancadas, mas se encontravam to
apodrecidas que um empurro cauteloso soltou a
fechadura. Uma porta se abriu, enquanto a outra
balanou, grata, e desmoronou no cho. Olhei para
dentro antes de entrar. Janelas riscadas e
empoeiradas de um vidro espesso deixavam entrar
o sol do inverno. Gros de poeira levantados pela
queda da porta danavam no ar. Quase esperei ver
morcegos, pombos ou um ou outro rato furtivo.
Mas nada havia, nem sequer um odor de habitao
animal. Tal como a estrada, a cidade era evitada
por animais selvagens. Entrei, arrastando
levemente as botas pelo assoalho poeirento.
Havia farrapos de antigas tapearias, um banco
de madeira quebrado. Levantei os olhos para um
teto que se erguia muito acima da minha cabea.
S aquela sala poderia ter contido todos os
terrenos de exerccios em Torre do Cervo. Senti-
me minsculo. Mas do outro lado da sala, na
minha frente, havia degraus de pedra que
marchavam pelas sombras acima. Enquanto
atravessava a sala na sua direo, ouvi os
murmrios de conversas comerciais, e de repente
as escadas foram povoadas por pessoas altas
vestidas com mantos, que iam e vinham. A maioria
trazia nas mos pergaminhos ou papis, e o tom
das suas conversas era o de pessoas que discutiam
assuntos importantes. Eram sutilmente diferentes
de quaisquer pessoas entre as quais eu j tivesse
estado. As cores dos seus olhos eram brilhantes
demais; os ossos dos seus corpos eram alongados.
Porm, apesar de tudo isso, a maior parte das suas
outras caractersticas era comum. Cheguei
concluso de que aquilo devia ter sido alguma
cmara de justia ou de governo. S tais assuntos
colocavam rugas em tantas testas e caretas em
tantos rostos. Havia algumas pessoas de mantos
amarelos e calas pretas, que traziam uma espcie
de placas de insgnias nos ombros, e esses julguei
serem funcionrios. Ao subir primeiro uma
escadaria e depois outra que partia do segundo
andar, o nmero desses mantos amarelos
aumentou.
As escadas estavam um tanto iluminadas pelas
largas janelas que havia em cada patamar. A
primeira me mostrou apenas o primeiro andar do
edifcio contguo. No segundo patamar, obtive uma
vista de alguns telhados. Tive de atravessar o
terceiro andar para chegar a outra escadaria. A
julgar pelos generosos farrapos nas paredes,
aquele piso fora ainda mais opulento. Comecei a
notar uma moblia fantasmagrica assim como
pessoas, como se a magia fosse mais forte ali.
Mantive-me prximo das bordas das zonas de
passagem, relutante em sentir o no toque das
pessoas que caminhassem atravs de mim. Havia
muitos bancos almofadados para esperar, outro
sinal seguro de que o edifcio era oficial, e vi
muitos escribas menores sentados a mesas, que
registravam informaes a partir dos pergaminhos
que lhes eram apresentados.
Subi outro lance de escadas, mas fui frustrado na
minha busca por uma vista desimpedida da cidade
por uma imensa janela de vitral. A imagem ali
representada era de uma mulher e um drago. No
pareciam estar se enfrentando, encontravam-se de
p como se conversassem um com o outro. A
mulher naquela janela tinha cabelo e olhos negros
e usava uma faixa de um vermelho vivo na testa.
Levava algo na mo esquerda, mas no soube dizer
se seria uma arma ou o basto de um cargo. O
imenso drago usava uma coleira cravejada de
joias, mas nada mais na sua pose ou atitude sugeria
domesticao. Fitei a janela, com vento e luz
cintilando nas suas cores poeirentas, durante
vrios longos minutos antes de conseguir
prosseguir. Senti que ela possua algum
significado que eu no conseguia realmente
compreender. Por fim, dei-lhe as costas para
inspecionar aquele aposento superior.
Aquele piso estava melhor iluminado do que os
outros. Era todo ocupado por uma enorme sala
aberta, mas substancialmente menor do que o
andar principal. Janelas altas e estreitas de vidro
translcido se alternavam com extenses de
parede ricamente decorada com frisos de batalhas
e cenas agrrias. Senti-me atrado para as obras de
arte, mas dirigi resolutamente os passos para outra
escadaria. Esta no era larga, mas sim uma escada
em espiral que eu esperava que levasse torre que
eu vislumbrara do lado de fora do edifcio. Os
espritos da cidade pareciam ser menos numerosos
ali.
A subida foi mais ngreme e mais longa do que
eu esperara. Abri tanto o casaco como a camisa
antes de chegar ao topo. Os degraus espiralados
eram iluminados a intervalos por janelas pouco
mais largas do que seteiras. Em uma delas, uma
mulher jovem fitava a cidade, com uma expresso
de impotncia nos seus olhos cor de alfazema.
Parecia to real que dei por mim lhe pedindo
perdo quando a circundei. Ela no prestou
ateno, claro. Mais uma vez tive a sensao
sinistra de que eu era o fantasma ali. Havia alguns
patamares naquela escada e portas que levavam a
quartos, mas estas estavam trancadas e o tempo
parecia ter sido mais misericordioso ali. O ar seco
dos andares superiores preservara a madeira e o
metal. Perguntei-me o que haveria atrs da sua
solidez imperturbada. Tesouros reluzentes? O
conhecimento das eras? Ossos bolorentos?
Nenhuma cedeu aos meus empurres e, enquanto
prosseguia a minha ascenso, esperei no
encontrar no topo da torre uma porta trancada
como recompensa.
A cidade inteira era um mistrio para mim. A
vida fantasmagrica que nela fervilhava criava um
contraste total com o seu completo abandono atual.
No vira sinais de batalha; as nicas convulses
que vira na cidade pareciam ser resultado da
profunda inquietude da terra. Aqui passo por mais
portas trancadas; pergunto-me se a prpria Eda
saberia o que est atrs delas. Ningum tranca uma
porta, a menos que espere regressar. Imaginei para
onde elas teriam ido, as pessoas daquela cidade
que ainda se moviam por ali como fantasmas. Por
que aquela cidade fluvial fora abandonada, e
quando? Teria sido aquele o lar dos Antigos?
Seriam eles os drages que eu vira nos edifcios e
na janela de vitral? H pessoas que gostam de
quebra-cabeas; aquele me deu uma dor de cabea
latejante para complementar a fome importuna que
vinha crescendo em mim desde o nascer do dia.
Cheguei por fim sala do topo da torre. Abria-
se, a toda a minha volta, um aposento redondo com
um teto em cpula. Dezesseis painis compunham
as paredes da sala, e oito eram feitos de um vidro
espesso, riscado e imundo. Diminuam o sol
invernal que inundava a sala depois de passar por
eles, deixando-a ao mesmo tempo iluminada e
sombria. Uma das janelas estava quebrada e jazia
em estilhaos tanto dentro como fora do aposento,
pois um estreito parapeito rodeava o exterior da
torre. Uma grande mesa redonda estava
parcialmente cada no centro da sala. Dois homens
e trs mulheres, todos armados com ponteiros,
gesticulavam na direo de onde a mesa dominara
antigamente o aposento, discutindo alguma coisa.
Um dos homens parecia bastante irritado. Dei a
volta na mesa e nos burocratas fantasmagricos.
Uma porta estreita abriu-se facilmente para a
sacada.
Havia um corrimo de madeira que rodeava a
borda do parapeito, mas no confiei nele. Dei uma
lenta volta na torre, dividido entre o espanto e o
medo de cair. Do lado sul, um largo vale fluvial
estendia-se minha frente. Ao longe se via uma
orla de colinas azul-escuras que sustentavam o
plido cu de inverno. O rio corria sinuoso tal
como uma serpente gorda e preguiosa atravs da
parte mais prxima do vale. distncia, eu
conseguia ver outras vilas fluviais. Para alm do
rio estendia-se um largo vale verde, densamente
arborizado ou salpicado de fazendas bem
organizadas que tremeluziam, existindo ou
deixando de existir quando eu sacudia a cabea
para livrar os olhos de fantasmas. Vi uma ponte
larga e negra atravessando o rio e a estrada que
prosseguia para alm dela. Perguntei-me para onde
levaria essa estrada. Por um breve momento, vi
torres brilhantes reluzindo ao longe. Afastei os
fantasmas da mente e vi um lago distante com
vapor erguendo-se luz aquosa do sol. Estaria
Veracidade em algum lugar ali?
Os meus olhos vagaram at o sudeste e se
arregalaram com o que vi ali. Talvez l estivesse a
resposta para algumas das minhas perguntas. Uma
seo inteira da cidade havia desaparecido.
Simplesmente desaparecido. No havia ali
quaisquer detritos de runas, nenhum escombro
enegrecido pelo fogo. S uma grande e sbita
fratura se escancarava na terra, como se algum
gigante imenso tivesse enterrado nela uma
gigantesca cunha e a tivesse rasgado. O rio a
enchera, transformando-a em uma brilhante lngua
de gua que penetrava na cidade. Os restos de
edifcios ainda se equilibravam precariamente na
sua beira, ruas terminavam abruptamente junto
gua. Os meus olhos seguiram esta enorme ferida
na terra. Mesmo quela distncia, era possvel ver
que a grande fenda se prolongava para alm da
outra margem do rio. A destruio mergulhara
profundamente no corao da cidade, como uma
lana. A gua plcida brilhava, prateada, sob o
cu de inverno. Indaguei-me se algum sbito
tremor de terra teria dado o golpe de misericrdia
naquela cidade. Sacudi a cabea. Muito da cidade
permanecia de p. No havia dvida de que aquilo
fora um grande desastre, mas no me explicava a
morte da cidade.
Dei lentamente a volta at o lado norte da torre.
A cidade estendia-se aos meus ps e, para alm
dela, avistei vinhedos e searas. E, mais adiante,
uma extenso arborizada atravessada pela estrada.
A vrios dias de cavalgada encontravam-se as
montanhas. Sacudi a cabea para mim mesmo. De
acordo com todo o meu sentido de orientao, eu
devia ter vindo dali. Mas eu no tinha qualquer
recordao da viagem entre um ponto e outro.
Encostei-me na parede e pensei no que fazer. Se
Veracidade estava em algum lugar naquela cidade,
eu no estava sentindo qualquer vestgio da sua
presena. Desejei conseguir me lembrar do motivo
por que abandonara os meus companheiros e
quando o fizera. O venha at mim, venha at mim
murmurava atravs dos meus ossos. Uma tristeza
opressiva tomou conta de mim e desejei
simplesmente me deitar ali mesmo e morrer.
Tentei dizer a mim mesmo que era o casco-de-
elfo. Pareciam mais os efeitos secundrios de um
fracasso quase constante. Voltei para o aposento
central para sair do vento gelado de inverno.
Quando entrei de novo pela janela estilhaada,
um graveto rolou debaixo do meu p e eu quase
ca. Quando me recuperei, olhei para baixo e me
perguntei por que no o teria visto antes. Na base
da pequena janela encontravam-se os restos de
uma pequena fogueira. A fuligem sujara um pouco
do vidro que ainda se projetava do caixilho lateral
da janela. Agachei-me para toc-la com cautela; o
meu dedo ficou negro. No era muito fresca, mas
tambm no era mais velha do que alguns meses;
do contrrio, as tempestades de inverno teriam
levado mais das cinzas. Afastei-me e tentei obrigar
a minha mente fatigada a trabalhar. A fogueira fora
feita com madeira, mas inclura gravetos, como
que arrancados de rvores ou arbustos. Algum
transportara deliberadamente pequenos gravetos
at ali para acender aquela fogueira. Por qu? Por
que no usar o que restava da mesa? E por que
subir to alto para acender uma fogueira? Por
causa da vista?
Sentei-me ao lado dos restos da fogueira e tentei
pensar. Quando encostei as costas na parede de
madeira, isso deu mais substncia aos fantasmas
que discutiam em volta da mesa. Um deles gritou
alguma coisa a outro, e ento desenhou uma linha
imaginria com o ponteiro por cima da mesa
cada. Uma das mulheres cruzou os braos sobre o
peito e parecia obstinada, enquanto outra sorria
friamente e batia com a sua prpria vara na mesa.
Amaldioando a minha idiotice, levantei-me de um
salto e olhei para as antigas runas da mesa.
No segundo em que percebi que se tratava de um
mapa, tive certeza de que fora Veracidade que
fizera a fogueira. Um sorriso tolo se espalhou pelo
meu rosto. Claro. Uma torre de janelas altas que
dava para a cidade e o territrio circundante, e no
centro da sala uma grande mesa que continha o
mapa mais peculiar que eu j vira. No estava
desenhado em papel, mas era feito de argila para
imitar o terreno ondulado. Fendera-se quando a
mesa cara, mas eu conseguia agora ver o modo
como o rio fora feito com lascas brilhantes de
vidro negro. Havia minsculos modelos das
construes da cidade ao lado das ruas retas como
flechas, minsculas fontes cheias de lascas azuis
de vidro, at galhinhos com folhas de l verde
para representar as maiores rvores da cidade. A
intervalos ao longo da cidade, pequenos cristais
de pedra estavam fixos no mapa. Suspeitei que
representassem pontos cardeais. Tudo estava l,
at minsculos quadrados para representar as
bancas do mercado. Apesar da runa, o mapa
deliciava o olhar com os seus detalhes. Sorri,
muito certo de que meses depois do regresso de
Veracidade a Torre do Cervo haveria uma mesa e
mapa semelhantes na sua torre do Talento.
Debrucei-me sobre ela, ignorando os fantasmas,
para reconstituir os meus passos. Localizei com
facilidade a torre no mapa. Por azar, essa seo do
mapa estava muito rachada, mas mesmo assim tive
uma certeza razovel do caminho que seguira
enquanto os meus dedos caminhavam por onde os
ps haviam feito o mesmo na noite anterior. Mais
uma vez me maravilhei com a retido das estradas
e a preciso das intersees onde elas se
encontravam. No tinha certeza sobre onde
exatamente despertara na noite anterior, mas
consegui selecionar uma seo da cidade que no
era grande demais e dizer com certeza que isso
acontecera no interior desse quadrado. Os meus
olhos regressaram torre e tomei cuidadosamente
nota do nmero de cruzamentos e de curvas que
tinha de fazer para regressar ao meu ponto de
partida. Chegando l, se olhasse ao redor, talvez
conseguisse encontrar algo que despertasse as
minhas recordaes dos dias faltantes. Desejei de
sbito ter um pedao de papel e uma pena para
fazer um esboo da rea circundante. Quando o fiz,
o significado da fogueira tornou-se imediatamente
claro.
Veracidade usara um graveto queimado para
fazer o seu mapa. Mas em qu? Examinei a sala,
mas no havia tapearias naquelas paredes. Em
vez disso, as paredes entre as janelas eram lajes
de pedra branca esculpidas com Levantei-me
para ir ver mais de perto. Fui tomado por um
espanto maravilhado. Coloquei a mo na pedra
branca e fria, e ento olhei pela janela suja ao seu
lado. Os meus dedos seguiram o rio que eu
conseguia ver ao longe, depois encontraram o
rastro liso da estrada que o atravessava. A vista de
cada uma das janelas era representada pelo painel
que se encontrava ao seu lado. Glifos e smbolos
minsculos poderiam ter sido os nomes de vilas ou
propriedades. Raspei a janela, mas a maior parte
da sujeira encontrava-se do lado de fora.
O significado da janela quebrada ficou
subitamente claro. Veracidade quebrara essa
vidraa para obter uma vista melhor do que se
encontrava alm dela. E depois acendera aquela
fogueira e usara um graveto queimado para copiar
alguma coisa, provavelmente para o mapa que
transportava desde Torre do Cervo. Mas o qu?
Fui at a janela quebrada e estudei os painis de
ambos os lados. Uma mo manchara o da
esquerda, limpando dele a poeira. Pus a minha
prpria mo em cima da impresso da palma que a
mo de Veracidade deixara na poeira. Ele limpara
aquele painel e olhara pela janela, e depois
copiara alguma coisa. No podia duvidar de que
esse era o seu destino. Perguntei-me se o que
estava marcado no painel poderia de algum modo
combinar com os sinais no mapa que ele
transportara. Desejei em vo ter comigo a cpia de
Kettricken para comparar as duas coisas.
Fora da janela, eu conseguia ver as montanhas
ao norte de mim. Eu viera dali. Estudei a vista e
depois tentei relacion-la com o painel gravado ao
meu lado. Os fantasmas tremeluzentes do passado
no ajudavam. Em um momento estava olhando um
territrio arborizado; no seguinte observava
vinhedos e searas. A nica coisa comum a ambas
as paisagens era a fita negra de estrada que subia
at as montanhas, reta como uma flecha. Os meus
dedos seguiram a estrada pelo painel. Ali,
distncia, cheguei s montanhas. Havia alguns
glifos marcados ali, no local onde a estrada
divergia. E uma minscula centelha de cristal fora
engastada ali no painel.
Encostei o rosto no painel e tentei estudar os
minsculos glifos. Eram iguais aos sinais no mapa
de Veracidade? Eram smbolos que Kettricken
reconheceria? Sa da sala da torre e desci
depressa os degraus, passando por fantasmas que
pareciam ir ficando cada vez mais fortes. Agora
ouvia claramente as suas palavras e tinha
vislumbres das tapearias que antigamente haviam
decorado as paredes. Havia muitos drages nelas
desenhados. Antigos?, perguntei s paredes de
pedra cheias de ecos, e ouvi as minhas palavras
tremeluzindo para cima e para baixo ao longo das
escadas.
Procurei alguma coisa em que escrever. As
tapearias esfarrapadas eram trapos midos que se
desfaziam com um toque. A madeira que havia era
velha e estava apodrecida. Quebrei a porta de um
aposento interior, na esperana de encontrar o seu
contedo bem preservado. L dentro, encontrei as
paredes interiores cobertas com fileiras de
buracos redondos abertos na madeira, cada um
deles ocupado por um pergaminho. Estes pareciam
substanciais, tal como os instrumentos de escrita
que se encontravam em cima da mesa situada no
meio da sala. Mas os meus dedos pouco mais
encontraram do que fantasmas de papel,
quebradios e frgeis como cinzas. Os meus olhos
me mostraram uma pilha de velinos frescos em
uma prateleira de canto. Os meus dedos
empurraram detritos apodrecidos, at encontrarem
por fim um fragmento utilizvel que no era maior
do que as minhas duas mos. Estava rgido e
amarelado, mas talvez servisse. Um pesado pote
rolhado de vidro continha os restos secos de uma
tinta. As hastes de madeira dos instrumentos de
escrita haviam desaparecido, mas as pontas de
metal tinham sobrevivido e eram suficientemente
longas para que eu as agarrasse com firmeza.
Armado com essas provises, regressei sala do
mapa.
Cuspe devolveu a vida tinta, e eu afiei o bico
de metal no cho at brilhar de novo, limpo. Voltei
a acender os restos da fogueira de Veracidade,
pois a tarde estava ficando encoberta e a luz que
entrava pelas janelas empoeiradas diminua.
Ajoelhei-me diante do painel que a mo de
Veracidade limpara e copiei o mximo que
consegui da estrada, das montanhas e de outros
detalhes para o pedao de couro enrijecido. Com
todo o esmero, semicerrei os olhos para os
minsculos glifos e transferi o mximo que
consegui deles para o velino. Kettricken talvez
conseguisse decifr-los. Quando comparssemos
aquele meu mapa desajeitado com o mapa que ela
trazia, alguma caracterstica comum talvez fizesse
sentido. Era tudo o que eu tinha em que me apoiar.
O sol estava se pondo l fora e a minha fogueira
no passava de brasas quando finalmente terminei.
Olhei pesarosamente os meus rabiscos. Nem
Veracidade, nem Penacarrio teriam ficado
impressionados com o meu trabalho. Porm, teria
de servir. Quando tive certeza de que a tinta secara
e no borraria, coloquei o velino dentro da camisa
para transport-lo. No correria o risco de que
chuva ou neve que casse nele borrasse os
desenhos.
Deixei a torre quando a noite caa. Meus
companheiros fantasmagricos h muito j haviam
ido para casa para se aquecerem com a lareira e o
jantar. Percorri as ruas por entre dezenas de
pessoas que buscavam as suas casas ou se
aventuravam a sair para uma noite de prazer.
Passei por estalagens e tavernas que pareciam
arder de luz e ouvi vozes alegres vindas l de
dentro. Estava ficando cada vez mais difcil ver a
verdade das ruas vazias e edifcios abandonados.
Era uma infelicidade especial passar com a
barriga roncando e a garganta seca por estalagens
onde fantasmas se saciavam com uma boa
disposio fantasmagrica e gritavam ruidosas
saudaes uns aos outros.
Os meus planos eram simples. Iria at o rio e
beberia. Ento faria o que pudesse para regressar
ao primeiro lugar de que me lembrava na cidade.
Encontraria algum tipo de abrigo nessas
redondezas para passar a noite, e luz da manh
voltaria para as montanhas. Esperava que, se
percorresse o caminho que provavelmente usara
para chegar ali, algo me estimularia a memria.
Estava ajoelhado beira do rio, com uma mo
apoiada na pedra do pavimento e bebendo gua
fria quando o drago surgiu. Num momento, o cu
acima de mim estava vazio. Ento havia uma luz
dourada sobre tudo e o rudo de grandes asas
batendo, como o adejar das asas de um faiso em
voo. minha volta as pessoas gritaram, algumas
sobressaltadas, outras encantadas. A criatura
mergulhou sobre ns e deu uma volta a baixa
altitude. O rastro de vento que ela gerou deixou os
navios balanando e o rio ondulando. Deu a volta
mais uma vez e ento, sem aviso, mergulhou por
completo no rio, at sumir de vista. A luz dourada
que emitira foi extinta e a noite pareceu mais
escura em comparao.
Atirei-me para trs, em um reflexo, para me
afastar da onda de sonho que saltou contra a
margem quando o rio absorveu o impacto do
drago. Ao meu redor, as pessoas fitavam a gua
em expectativa. Segui os seus olhares. A princpio
nada vi. Ento a gua se abriu e uma grande
cabea emergiu do rio. A gua pingava dela e
escorria cintilante pelo dourado pescoo
serpentino que surgiu em seguida. Todas as
histrias que j ouvira aludiam a drages como
vermes, lagartos ou serpentes. Mas quando aquele
emergiu do rio, estendendo asas que pingavam, dei
por mim pensando em aves. Graciosos cormores
erguendo-se do mar aps um mergulho para
capturar peixe, ou faises vivamente emplumados
me vieram mente quando a enorme criatura
emergiu. Era to grande quanto um dos navios e a
envergadura das suas asas envergonhava as velas
de tela. Ele parou na margem do rio e sacudiu a
gua das suas asas escamosas. A palavra
escama no faz justia s placas ornamentadas
que lhe cobriam as asas, mas pena uma
palavra area demais para descrev-las. Se uma
pena pudesse ser feita de ouro finamente batido,
talvez pudesse chegar perto da plumagem do
drago.
Eu estava paralisado de deleite e fascinao. A
criatura me ignorou, emergindo do rio to perto de
mim que, se fosse real, eu teria ficado encharcado
pela gua que pingava das suas asas estendidas.
Cada gota que voltava a cair no rio levava consigo
o inconfundvel reflexo da pura magia. O drago
parou na margem do rio, afundando profundamente
as suas quatro grandes patas providas de garras na
terra molhada enquanto dobrava cautelosamente as
asas e ento estendia a sua longa cauda bifurcada.
Uma luz dourada me banhou e iluminou a multido
ali reunida. Dei as costas ao drago para olh-los.
As boas-vindas brilhavam em seus rostos, assim
como uma grande deferncia. O drago tinha os
olhos brilhantes de um falco-gerifalte e o porte de
um garanho quando caminhou at eles. As
pessoas lhe abriram caminho, murmurando
saudaes respeitosas.
Antigo eu disse para mim mesmo, em voz
alta. Segui-o, mantendo os dedos colados s
fachadas dos edifcios, uno com a multido em
transe, enquanto ele desfilava pela rua afora. As
pessoas jorravam de tavernas para acrescentar as
suas saudaes e aumentar a multido que o
seguia. Era evidente que aquilo no era um
acontecimento comum. No sei o que eu esperava
descobrir ao segui-lo. No creio que eu realmente
pensasse em alguma coisa naquele momento,
exceto que devia seguir aquela imensa e
carismtica criatura. Agora compreendia o motivo
por que as ruas principais daquela cidade haviam
sido construdas to largas. No era para permitir
a passagem de carroas, mas para que nada
constitusse obstculo para aqueles grandes
visitantes.
Ele parou uma vez diante de uma grande bacia
de pedra. As pessoas correram em frente para
competir pela honra de manejar uma espcie de
molinete. Baldes atrs de baldes ergueram-se em
uma volta de corrente, despejando todos eles a sua
carga de magia lquida na bacia. Quando a bacia
ficou cheia at a borda com aquela coisa reluzente,
o Antigo baixou graciosamente o pescoo e bebeu.
Podia ser um Talento fantasmagrico, mas bastou
v-lo para despertar aquela insidiosa nsia em
mim. Por mais duas vezes a bacia foi enchida e
por mais duas vezes o Antigo a esvaziou antes de
seguir caminho. Eu o segui, maravilhado com o
que vira.
nossa frente surgiu de sbito aquela grande
fenda de destruio que desfigurava a forma
simtrica da cidade. Segui o desfile
fantasmagrico at a sua borda, s para ver toda a
gente, homens, mulheres e Antigo, desaparecer por
completo quando penetraram despreocupadamente
no espao vazio. Pouco tempo depois eu estava
sozinho na borda daquela fissura escancarada,
ouvindo apenas o vento sussurrando sobre as
profundas guas paradas. Algumas manchas de
estrelas surgiram no cu nublado e foram refletidas
na gua negra. Quaisquer outros segredos sobre os
Antigos que eu pudesse ter aprendido haviam sido
engolidos muito tempo antes naquele grande
cataclismo.
Virei-me e me afastei lentamente, perguntando-
me para onde se dirigiria o Antigo e para que fim.
Estremeci de novo ao me recordar do modo como
ele bebera at o fim o poder reluzente de prata.
Precisei de algum tempo para voltar pelo mesmo
caminho, primeiro at o rio. Uma vez chegado ali,
foquei a mente para recordar o que vira na sala do
mapa algumas horas antes. A minha fome era agora
uma coisa oca que chocalhava contra as minhas
costelas, mas a ignorei resoluto enquanto seguia o
meu caminho pelas ruas. A minha fora de vontade
me fez atravessar um aglomerado de sombras
brigando, mas a determinao me faltou quando a
Guarda da Cidade apareceu correndo pelas ruas,
montada nos seus macios cavalos. Saltei para um
lado para deix-los passar e estremeci quando
ouvi o som dos porretes ao serem brandidos. Por
mais irreal que fosse aquilo, senti-me feliz por
deixar a ruidosa discrdia para trs. Virei direita
em uma rua ligeiramente mais estreita e continuei
andando, passando por mais trs cruzamentos.
Parei. Ali. Era aquela a praa onde estivera
ajoelhado na neve na noite anterior. Ali, aquele
pilar que se erguia no seu centro lembrava-me um
tipo de monumento ou escultura que se erguia
sobre mim. Caminhei na sua direo. Era feita da
mesma ubqua pedra negra com veios de reluzentes
cristais. Aos meus olhos cansados, parecia reluzir
mais, com a mesma misteriosa no luz que as
outras estruturas lanavam. O tnue brilho
realava de cada lado glifos profundamente
cortados na sua superfcie. Caminhei lentamente
em volta. Eu tinha certeza de que alguns me eram
familiares e talvez fossem idnticos queles que
copiara algum tempo antes. Seria ento aquilo
algum tipo de sinal indicativo, marcado com
destinos de acordo com os pontos cardeais?
Estendi uma mo para percorrer com ela um dos
glifos familiares.
A noite dobrou-se minha volta. Uma onda de
vertigem tomou conta de mim. Agarrei-me coluna
para obter apoio, mas de algum modo errei-a e ca
aos tropees para frente. As minhas mos
estendidas no encontraram nada e eu bati com o
rosto em neve endurecida e gelo. Durante algum
tempo, apenas fiquei deitado ali, com a bochecha
apoiada na estrada gelada, piscando os meus olhos
inteis para a escurido da noite. Ento um peso
quente e slido me atingiu. Irmo!, cumprimentou-
me jubiloso Olhos-de-Noite. Enfiou o focinho frio
no meu rosto e bateu com as patas na minha cabea
para me obrigar a levantar. Eu sabia que voc
voltaria. Eu sabia!
CAPTULO 28

O Crculo

Parte do grande mistrio que envolve os Antigos


o fato de as poucas imagens que temos deles
possurem poucas semelhanas umas com as
outras. Isto verdade no s a respeito de
tapearias e pergaminhos que so cpias de
trabalhos antigos e, portanto, podero conter
erros, mas tambm no tocante s poucas imagens
de Antigos que restaram desde os tempos do Rei
Sabedoria. Algumas das imagens mostram
semelhanas superficiais com as lendas sobre
drages, ostentando asas, garras, pele escamosa
e grande tamanho. Mas outras, no. Em pelo
menos uma tapearia, o Antigo mostrado como
semelhante a um ser humano, mas com pele
dourada e de grande tamanho. As imagens nem
sequer concordam no nmero de membros que
essa raa benevolente possua. Podem chegar a
ter quatro pernas e tambm duas asas, ou no ter
quaisquer asas e caminhar sobre duas pernas
como um homem.
Teorizou-se que foi escrito to pouco acerca
deles porque o conhecimento sobre os Antigos
nessa poca era tido como conhecimento geral.
Assim como ningum acha por bem criar um
pergaminho que trate dos mais bsicos atributos
daquilo que um cavalo , pois ele no serviria a
nenhum propsito til, do mesmo modo ningum
pensou que um dia os Antigos seriam material
para lendas. At certo ponto, isso faz sentido.
Mas basta olhar para todos os pergaminhos e
tapearias em que surgem cavalos como algo
pertencente vida diria para encontrar uma
falha. Se os Antigos fossem to aceitos como uma
parte da vida, decerto que teriam sido retratatos
com mais frequncia.

Aps uma ou duas horas muito confusas, encontrei-


me de volta tenda com os outros. A noite parecia
ainda mais fria por eu ter passado um dia quase
tpido na cidade. Ns nos aconchegamos na tenda
sob os nossos cobertores. Eles haviam me dito que
eu desaparecera da borda do penhasco apenas na
noite anterior; eu lhes contara tudo o que
encontrara na cidade. Houve um certo grau de
descrena por parte de todos. Eu me senti ao
mesmo tempo comovido e culpado ao ver quanta
angstia o meu desaparecimento lhes causara. Era
bvio que Esporana estivera chorando, enquanto
tanto Panela como Kettricken tinham a aparncia
de coruja de quem no dormiu. O Bobo fora o
pior, plido e silencioso com um ligeiro tremor
nas mos. Fora preciso algum tempo para que
todos ns nos recuperssemos. Panela cozinhara
uma refeio duas vezes maior do que o que
comamos normalmente e todos, menos o Bobo,
comemos com apetite. Ele no parecera ter energia
para tal. Enquanto os outros se sentavam em
crculo em volta do braseiro ouvindo a minha
histria, ele j estava enrolado nos cobertores,
com o lobo aninhado ao seu lado. Parecia
completamente exausto.
Depois de eu relatar pela terceira vez os
acontecimentos da minha aventura, Panela
comentou de forma crptica:
Bem, graas a Eda por voc estar medicado
com casco-de-elfo antes de ser levado; seno,
nunca teria mantido a cabea no lugar.
Voc disse levado? pressionei de
imediato.
Ela franziu o cenho.
Sabe o que quero dizer. Olhou em volta
vendo que todos ns a fitvamos. Atravs do
poste indicador, ou o que quer que seja aquilo.
Eles devem ter alguma coisa a ver com isso.
Um silncio respondeu s suas palavras.
Parece-me bvio, nada mais. Ele nos deixou junto
a um, e chegou l junto a um. E regressou da
mesma forma.
Mas por que no levaram mais ningum?
protestei.
Porque voc o nico sensvel ao Talento
entre ns observou ela.
Os postes tambm so feitos de Talento?
perguntei-lhe sem rodeios.
Ela me olhou nos olhos.
Eu olhei para o poste indicador luz do dia.
feito de pedra preta com fios brancos de cristais
brilhantes no interior. Como as paredes da cidade
que voc descreve. Tocou em ambos os postes?
Fiquei um momento em silncio, pensando.
Creio que sim.
Ela encolheu os ombros.
Pronto, a est. Um objeto impregnado de
Talento pode reter as intenes do seu fabricante.
Estes postes foram erigidos para tornar as viagens
mais fceis para os que eram capazes de domin-
los.
Nunca tinha ouvido falar de tais coisas.
Como voc as conhece?
Estou s especulando sobre aquilo que me
parece bvio respondeu ela com teimosia. E
isso tudo o que eu vou dizer. Vou dormir. Estou
exausta. Passamos a noite inteira e a maior parte
do dia sua procura e preocupados com voc. E
durante as horas que podamos ter descansado, o
lobo no parou de uivar.
Uivar?
Eu o chamei. Voc no respondeu.
No o ouvi, seno teria tentado.
Comeo a ter medo, irmozinho. H foras que
puxam voc, levando-o para lugares onde no
posso segui-lo, fechando a sua mente minha.
Isto, agora mesmo, o mais prximo que j
estive de ser aceito em uma alcateia. Mas se eu
perdesse voc, at isso estaria perdido para mim.
Voc no me perder , prometi-lhe, mas
perguntei a mim mesmo se era uma promessa que
eu podia manter.
Fitz? perguntou Kettricken, em uma voz
preocupada.
Estou aqui assegurei-lhe.
Vejamos o mapa que voc copiou.
Tirei-o de dentro das minhas roupas e ela pegou
o seu. Comparamos os dois. Era difcil encontrar
algumas semelhanas, mas as escalas dos mapas
eram diferentes. Por fim chegamos concluso de
que o pedao que eu copiara na cidade possua
uma semelhana superficial com a poro do
caminho que estava desenhada no mapa de
Kettricken.
Este lugar indiquei com um gesto um
destino marcado no mapa dela parece ser a
cidade. Se for, ento isto corresponde a isto, e isto
a isto.
O mapa com o qual Veracidade partira fora uma
cpia deste mapa mais antigo e desbotado. Nesse,
a trilha em que eu agora pensava como a estrada
do Talento estivera marcada, mas de uma forma
estranha, como um caminho que comeava
subitamente nas Montanhas e terminava
abruptamente em trs destinos separados. O
significado desses pontos terminais j esteve
marcado no mapa, mas esses sinais haviam
desbotado at se transformarem em manchas de
tinta. Agora tnhamos o mapa que eu copiara na
cidade, tambm com esses trs pontos terminais.
Um fora a cidade propriamente dita. Os outros
dois eram os que agora nos interessavam.
Kettricken estudou os glifos que eu copiara do
mapa da cidade.
Vejo sinais assim de vez em quando
admitiu, inquieta. Ningum mais realmente os
l. Um punhado deles ainda conhecido. So
encontrados principalmente em lugares estranhos.
Em alguns lugares nas Montanhas h pedras
erguidas que possuem marcas assim. Existem
algumas na extremidade ocidental da Ponte do
Grande Abismo. Ningum sabe quando foram
esculpidos, ou por qu. Acredita-se que alguns
assinalam sepulturas, mas h quem diga que
assinalavam fronteiras terrestres.
Sabe ler algum deles? perguntei.
Alguns. So usados em um jogo de desafio.
H uns que so mais fortes do que outros A
sua voz foi sumindo enquanto estudava os meus
rabiscos. Nenhum exatamente igual aos que eu
conheo disse por fim, com um pesado
desapontamento na voz. Este quase como o
que quer dizer pedra. Mas nunca tinha visto os
outros.
Bem, esse um dos que esto desenhados
aqui. Tentei deixar a minha voz alegre. Pedra
no me transmitia absolutamente nada. Parece
ser o local mais prximo de onde estamos. Vamos
at l a seguir?
Eu gostaria de ter visto a cidade disse o
Bobo em voz baixa. E tambm gostaria de ter
visto o drago.
Assenti, lentamente.
um lugar e uma coisa que valem a pena ser
vistos. H muito conhecimento l, se ao menos
tivssemos tempo para desencav-lo. Se eu no
tivesse Veracidade sempre na minha cabea com o
seu venha at mim, venha at mim, acho que
teria tido mais curiosidade de explorar. Nada
lhes dissera sobre os meus sonhos com Moli e
Breu. Essas eram coisas privadas, tal como o era a
minha nsia por estar de novo em casa com ela.
Sem dvida que sim concordou Panela.
E sem dvida de que voc teria se metido em mais
problemas dessa forma. Imagino que ele o prendeu
dessa maneira para manter voc na estrada e
proteg-lo de distraes.
Eu a teria questionado de novo a respeito dos
seus conhecimentos se o Bobo no tivesse repetido
em voz baixa:
Eu gostaria de ter visto a cidade.
Devamos todos ir dormir agora. Vamos nos
levantar primeira luz da aurora para percorrer
uma boa distncia amanh. Encoraja-me pensar
que Veracidade esteve l antes de FitzCavalaria,
ao mesmo tempo que me enche de maus
pressentimentos. Temos de ir at ele depressa. J
no posso ficar me perguntando todas as noites por
que ele nunca regressou.
Chega o Catalisador para fazer da carne
pedra e da pedra carne. Ao seu toque sero
despertados os drages da terra. A cidade
adormecida tremer e despertar por ele. Chega o
Catalisador. A voz do Bobo era sonhadora.
O texto de Damir, o Branco acrescentou
Panela, com reverncia. Olhou para mim, e por um
momento ficou aborrecida. Centenas de anos de
escritos e profecias e todos terminam em voc?
A culpa no minha eu disse,
estupidamente. Eu j estava abrindo caminho para
os meus cobertores. Lembrei-me com saudade do
dia quase quente que passara. O vento soprava, e
eu me senti enregelado at os ossos.
Estava adormecendo quando o Bobo estendeu
uma mo quente para me dar palmadinhas no rosto.
Que bom que voc est vivo murmurou.
Obrigado disse. Estava evocando o
tabuleiro e as peas do jogo de Panela, num
esforo para manter a mente comigo durante a
noite. Tinha acabado de comear a contemplar o
problema. De repente me sentei, exclamando: A
sua mo est quente! Bobo! A sua mo est quente!
V dormir repreendeu-me Esporana num
tom ofendido.
Ignorei-a. Afastei o cobertor do rosto do Bobo e
lhe toquei na bochecha. Seus olhos se abriram
lentamente.
Voc est quente disse-lhe. Est bem?
No me sinto quente informou-me ele num
tom infeliz. Sinto-me frio. E muito, muito
cansado.
Comecei a avivar depressa o fogo no braseiro.
minha volta, os outros estavam se mexendo.
Esporana, do outro lado da tenda, sentara-se e me
olhava atravs das sombras.
O Bobo nunca est quente disse-lhes,
tentando fazer com que compreendessem a minha
urgncia. Quando lhe tocamos na pele, ele est
sempre frio. Agora est quente.
mesmo? perguntou Esporana numa voz
estranhamente sarcstica.
Ele est doente? perguntou Panela,
cansada.
No sei. Nunca na minha vida o vi doente.
Eu raramente adoeo corrigiu-me o Bobo
em voz baixa. Mas isto uma febre que j tive
antes. Deite-se e durma, Fitz. Vou ficar bem.
Imagino que a febre j ter passado de manh.
Quer tenha passado ou no, temos de viajar
amanh de manh disse Kettricken, implacvel.
J perdemos um dia parados aqui.
Perdemos um dia? exclamei, quase
irritado. Ganhamos um mapa, ou mais detalhes
para um, e o conhecimento de que Veracidade
esteve na cidade. Quanto a mim, no duvido de
que ele foi at l como eu, e talvez tenha
regressado a este exato local. No perdemos um
dia, Kettricken, ganhamos todos os dias que
levaramos para encontrar um modo de descer o
que resta da estrada l embaixo e ento para
caminhar at a cidade. E depois voltar. Se bem me
lembro, a senhora havia proposto gastarmos
apenas um dia para procurar uma maneira de
descer aquele deslizamento. Bem, gastamos, e
encontramos essa maneira. Fiz uma pausa.
Respirei fundo e impus calma minha voz. No
pretendo forar nenhum de vocs minha vontade.
Mas se o Bobo no estiver em condies para
viajar amanh, eu tambm no viajarei.
Uma brilho surgiu nos olhos de Kettricken, e eu
me preparei para uma batalha. Mas o Bobo a
evitou.
Eu viajarei amanh, esteja bem ou no
assegurou a ns dois.
Ento est decidido disse rapidamente
Kettricken. Ento, em uma voz mais humana,
perguntou: Bobo, h alguma coisa que eu possa
fazer por voc? No o usaria com tanta severidade
se a necessidade no fosse to grande. No
esqueci, e nunca esquecerei, que sem voc eu
jamais teria chegado viva a Jhaampe.
Detectei uma histria que no era do meu
conhecimento, mas guardei as perguntas para mim.
Ficarei bem. S estou Fitz? Posso lhe
pedir um pouco de casco-de-elfo? Isso me aqueceu
ontem noite como nada mais foi capaz.
Com certeza. Eu estava vasculhando a
minha trouxa procura da erva quando Panela
interveio com um aviso.
Bobo, aconselho-o a no tomar. uma erva
perigosa, e quase sempre faz mais mal do que bem.
Quem sabe se voc no est doente esta noite
porque tomou um pouco na noite de anteontem?
No uma erva assim to potente eu disse
com desdm. J a uso h muitos anos e no me
causou nenhum problema duradouro.
Panela bufou.
Pelo menos nenhum que voc seja sensato o
suficiente para ver disse com sarcasmo. Mas
uma erva reconfortante que d energia carne,
mesmo insensibilizando o esprito.
Sempre achei que me revigorava em vez de
me insensibilizar contrapus ao mesmo tempo
que encontrava o pequeno pacote e o abria. Sem
que eu lhe pedisse, Panela levantou-se e colocou
gua para ferver. Nunca reparei que me
entorpecesse a mente acrescentei.
Aquele que a toma raramente repara
retorquiu ela. E embora ela possa aumentar
durante algum tempo a sua energia fsica, voc
sempre tem de pagar por isso mais tarde. O seu
corpo no se deixa enganar, jovem. Saber disso
melhor quando for to velho quanto eu.
Fiquei em silncio. Quando pensei nas ocasies
em que usara casco-de-elfo para me revigorar, tive
a desconfortvel suspeita de que ela tinha pelo
menos uma razo parcial. Porm, a suspeita no
foi forte o suficiente para me impedir de fazer dois
copos em vez de um s. Panela sacudiu a cabea
para mim, mas voltou a se deitar e nada mais
disse. Eu me sentei ao lado do Bobo enquanto ele
bebia o nosso ch. Quando me devolveu a caneca
vazia, a sua mo parecia mais quente, no mais
fria.
A sua febre est aumentando avisei-o.
No. s o calor da caneca na minha pele
sugeriu ele.
Ignorei-o.
Est tremendo todo.
Um pouco admitiu. Ento a sua angstia
veio tona e ele disse: Estou com tanto frio
como nunca estive. Minhas costas e os maxilares
doem de tremer de frio.
Flanqueie-o, sugeriu Olhos-de-Noite. O grande
lobo mexeu-se para se encostar mais nele. Eu
acrescentei os meus cobertores aos que cobriam o
Bobo, e depois me enfiei l dentro ao seu lado.
Ele no disse uma palavra, mas os tremores
diminuram um pouco.
No me lembro de t-lo visto doente em
Torre do Cervo disse em voz baixa.
Estive. Mas foi muito raro, e guardei a
doena para mim. Como voc se lembra, o
curandeiro tinha pouca tolerncia por mim, e eu
por ele. No teria confiado a minha sade aos seus
purgantes e tnicos. Alm disso, o que funciona
com a sua espcie s vezes nada faz minha.
A sua espcie assim to diferente da
minha? perguntei passado algum tempo. Ele nos
trouxera para perto de um tema que raramente
mencionvamos.
Em certos aspectos suspirou. Levou uma
mo testa. Mas s vezes surpreendo at a mim
mesmo. Respirou fundo, ento soltou o ar num
suspiro, como se tivesse suportado alguma dor por
um instante. Posso nem estar realmente doente.
Tenho passado por algumas mudanas no ltimo
ano. Como voc pode ter reparado.
Acrescentou a ltima frase num sussurro.
Voc cresceu e ganhou cor concordei em
voz baixa.
Isso parte das mudanas. Um sorriso lhe
contraiu o rosto, ento desapareceu. Acho que
agora sou quase um adulto.
Respirei fundo.
J o conto como homem h muitos anos,
Bobo. Acho que voc descobriu a masculinidade
antes de eu descobrir a minha.
Descobri? Que engraado! exclamou ele
em voz baixa, e por um momento soou quase como
ele prprio. Os olhos se fecharam lentamente.
Agora vou dormir disse-me.
No respondi. Aninhei-me melhor nos
cobertores ao lado dele, e ergui de novo as
muralhas. Mergulhei em um descanso sem sonhos
que no era um sono sem cuidados.
Acordei antes da primeira luz da aurora com um
pressentimento de perigo. Ao meu lado, o Bobo
dormia pesadamente. Toquei o seu rosto e vi que
ele estava ainda quente e mido de suor. Afastei-
me dele, aconchegando bem as mantas ao seu
redor. Acrescentei um ou dois pedaos de
precioso combustvel ao braseiro e comecei a me
vestir em silncio. Olhos-de-Noite ficou
imediatamente alerta.
Vai sair?
Apenas para farejar por a.
Quer que v tambm?
Mantenha o Bobo quente. Eu no demoro.
Tem certeza de que vai ficar bem?
Vou ter muito cuidado. Prometo.
O frio foi como uma bofetada. A escurido,
absoluta. Aps um momento ou dois, os meus
olhos se ajustaram, mas mesmo assim pouco mais
eu conseguia ver do que a tenda. Um cu encoberto
absorvera at as estrelas. Fiquei imvel no vento
gelado, forando os sentidos para descobrir o que
me perturbara. No foi o Talento, mas sim a
Manha, que sondou a escurido por mim. Detectei
o nosso grupo e a fome das jepas que se
encostavam umas s outras. Uma dieta simples de
cereais no as alimentaria durante muito tempo.
Outra preocupao. Resolutamente, deixei-a de
lado e empurrei os meus sentidos para mais longe.
Empertiguei-me. Cavalos? Sim. E cavaleiros?
Achei que sim. Olhos-de-Noite surgiu de sbito ao
meu lado.
Consegue farej-los?
O vento est forte. Quer que v ver?
Sim. Mas no seja visto.
Claro. Cuide do Bobo. Ele choramingou
quando o deixei.
Na tenda, acordei silenciosamente Kettricken.
Acho que pode haver perigo disse-lhe em
voz baixa. Cavalos e cavaleiros, possivelmente
na estrada atrs de ns. Ainda no tenho certeza.
Quando tivermos certeza, eles estaro aqui
disse ela friamente. Acorde todos. Quero
que estejamos de p e prontos para partir
primeira luz.
O Bobo continua febril eu disse, enquanto
me abaixava e sacudia o ombro de Esporana.
Se ele ficar aqui, no ficar febril, ficar
morto. E voc tambm. O lobo foi espionar para
ns?
Sim. Eu sabia que ela tinha razo, mas no
deixou de ser difcil me forar a sacudir o Bobo
de volta conscincia. Ele moveu-se como um
homem aturdido. Enquanto os outros empacotavam
as nossas coisas, apressei-o para vestir o casaco e
consegui com insistncia faz-lo vestir um par
adicional de calas. Enrolei-o em todos os nossos
cobertores e o coloquei de p l fora enquanto o
resto de ns desmontava a tenda e a carregava. A
Kettricken, perguntei em voz baixa: Quanto
peso uma jepa carrega?
Mais do que o do Bobo. Mas elas so
estreitas demais para uma montaria confortvel, e
ficam nervosas com cargas vivas. Podamos
coloc-lo em uma durante algum tempo, mas ser
desconfortvel para ele e a jepa ser difcil de
controlar.
Era a resposta que eu esperava, mas no me
deixou contente.
Que novidades h do lobo? perguntou-me.
Sondei na direo de Olhos-de-Noite e fiquei
consternado ao descobrir o esforo que era
necessrio para tocar na sua mente com a minha.
Seis cavaleiros disse-lhe.
Amigos ou inimigos? perguntou ela.
Ele no tem como saber observei. Ao
lobo, perguntei: Que aspecto tm os cavalos?
Delicioso.
So grandes, como Fuligem? Ou pequenos,
como cavalos da Montanha?
Medianos. Uma mula de carga.
Vm a cavalo, no montados nos pneis da
Montanha eu disse a Kettricken.
Ela sacudiu a cabea para si mesma.
A maior parte do meu povo no usa cavalos a
esta altitude nas Montanhas. Usariam pneis ou
jepas. Decidamos que so inimigos e vamos agir
de acordo.
Fugimos, ou lutamos?
Ambos, claro.
Ela j tirara o seu arco do fardo de uma das
jepas. Agora estava prendendo a corda para deix-
lo pronto.
Primeiro procuramos um lugar melhor para
preparar uma emboscada. Depois esperamos.
Vamos.
Era mais fcil falar do que fazer. S a
regularidade da estrada fazia com que no se
tornasse impossvel. A luz era apenas um boato
quando seguimos caminho nesse dia. Esporana
levava as jepas frente. Eu trazia o Bobo atrs
delas, enquanto Panela, com o seu basto, e
Kettricken, com o seu arco, nos seguiam. A
princpio deixei que o Bobo tentasse caminhar
sozinho. Ele foi cambaleando lentamente e, quando
vi as jepas afastando-se inexoravelmente de ns,
compreendi que no adiantaria. Passei o seu brao
esquerdo em volta dos meus ombros e o meu brao
direito em torno da sua cintura e o apressei. Pouco
tempo depois, ele j arquejava e lutava para no
arrastar os ps. O calor anormal do seu corpo era
assustador. Cruelmente, forcei-o a avanar,
rezando para que encontrssemos alguma espcie
de cobertura.
Quando a encontramos, no foi a benevolncia
de rvores, mas a crueldade de pedras afiadas.
Uma grande poro da montanha acima da estrada
cedera e cara em cascata. Levara consigo mais de
metade da estrada e deixara a que restara coberta
com uma grande pilha de pedras e terra. Esporana
e as jepas a estavam olhando com um ar incerto
quando o Bobo e eu chegamos mancando.
Coloquei-o em uma pedra, onde ele se sentou, de
olhos fechados e cabea baixa. Aconcheguei
melhor os cobertores sua volta e ento fui para o
lado de Esporana.
um deslizamento antigo observou ela.
Talvez no seja to difcil assim atravess-lo.
Talvez concordei, com os olhos j em
busca de um local onde tentar. A neve cobria as
pedras como um manto. Se eu for primeiro, com
as jepas, voc consegue me seguir com o Bobo?
Suponho que sim. Olhou para ele.
Como que ela est?
Havia apenas preocupao na voz de Esporana,
de modo que engoli o aborrecimento.
Ele pode ir avanando, se tiver um brao em
que se apoiar. No comece a nos seguir antes que
o ltimo animal esteja l em cima e em
movimento. Ento siga os nossos rastros.
Esporana concordou com a cabea, mas no
pareceu contente.
No devamos esperar por Kettricken e
Panela?
Pensei.
No. Se esses cavaleiros nos apanharem, no
quero estar aqui encostado nas pedras.
Atravessamos o deslizamento.
Desejei que o lobo estivesse ali conosco, pois
tinha o dobro da minha segurana nas pernas e
reflexos muito mais rpidos.
No posso ir at voc sem que eles me vejam.
Aqui rocha escarpada acima e abaixo da
estrada, e eles esto entre voc e eu.
No se preocupe com isso. Apenas os observe e
me mantenha alerta. Eles viajam depressa?
Levam os cavalos a p e discutem muito entre
si. Um gordo e est farto de andar a cavalo.
Pouco diz, mas no se apressa. Tome cuidado,
irmo.
Respirei fundo e, como no havia lugar que
parecesse melhor do que qualquer outro,
simplesmente segui o meu nariz. A princpio havia
s algumas pedras espalhadas pela estrada, mas
depois disso erguia-se uma muralha de grandes
pedregulhos, solo rochoso e pedra solta de arestas
afiadas. Escolhi onde colocar os ps por entre
aquele terreno traioeiro. A lder das jepas me
seguiu e as outras vieram atrs dela sem
questionar. Logo descobri que a neve soprada pelo
vento congelara em cima das pedras em pelculas
pouco espessas, escondendo frequentemente
buracos e fendas entre elas. Coloquei
descuidadamente o p em uma, e enfiei a perna at
o joelho em uma fenda. Soltei-me com cuidado e
prossegui.
Quando parei um momento e olhei em volta,
quase perdi a coragem. Acima havia uma grande
ladeira de detritos do deslizamento que subia at
uma parede de pedra escarpada. Olhando adiante,
no consegui ver onde a ladeira terminava. Se
cedesse, eu rolaria e deslizaria com ela at a beira
da estrada e cairia no profundo vale que se
estendia mais abaixo. Nada haveria, nem um
pedao de vegetao, nem um pedregulho de
qualquer tamanho a que eu pudesse me agarrar.
Pequenas coisas tornaram-se de sbito
assustadoras. Os puxes nervosos que a jepa dava
na corda que eu segurava, uma sbita mudana na
presso da brisa, at o cabelo caindo sobre os
meus olhos eram de repente coisas que colocavam
a minha vida em perigo. Por duas vezes ca de
quatro e engatinhei. O resto do caminho foi feito
agachado, olhando antes de colocar um p no cho
e confiando lentamente o meu peso a ele.
Atrs de mim vinha a fila de jepas, todas elas
seguindo a lder da manada. No eram to
cautelosas como eu. Ouvi pedras escorregarem
debaixo delas, e pequenos grupos de rochas que
elas soltavam caam rolando e saltando ladeira
abaixo e ento eram disparadas pelo espao vazio.
Cada vez que isso acontecia, eu temia que outras
pedras fossem despertadas e comeassem a
deslizar. As jepas no estavam amarradas umas s
outras com cordas, exceto aquela que eu trazia
presa ao primeiro animal. Eu temia ver a qualquer
momento uma deslizando pela encosta abaixo.
Estendiam-se atrs de mim como boias numa rede,
e mais atrs vinham Esporana e o Bobo. Parei uma
vez para observ-los e me amaldioei quando
compreendi a dificuldade da tarefa que atribura
menestrel. Eles vinham na metade da minha
velocidade rastejante, com Esporana segurando o
Bobo e procurando apoios para os ps de ambos.
O corao me subiu boca quando ela tropeou e
o Bobo se estatelou ao seu lado. Ela ergueu ento
o olhar e me viu encarando-a. Com um gesto
irritado, ergueu um brao e fez sinal para que eu
prosseguisse. Foi o que fiz. Nada mais podia fazer.
A queda de pedras e rochedos terminava to
abruptamente como comeara. Desci para a
superfcie plana da estrada com gratido. Atrs de
mim veio a lder das jepas, e depois os outros
animais, saltando de escarpa para rochedo para a
estrada como cabras enquanto desciam. Assim que
todas desceram, espalhei um pouco de cereais pela
estrada para mant-las bem juntas e subi de volta
para a borda do deslizamento.
No consegui ver nem Esporana, nem o Bobo.
Tive vontade de correr de volta pela face do
deslizamento. Mas, em vez disso, obriguei-me a ir
devagar, escolhendo os lugares onde colocava os
ps entre os rastros que eu e as jepas havamos
deixado. Disse a mim mesmo que deveria
conseguir ver os seus trajes de cores vibrantes
naquela paisagem mortia de cinzas, pretos e
brancos. E finalmente vi. Esporana estava sentada
muito imvel em um trecho de cascalho com o
Bobo estendido ao seu lado nas pedras.
Esporana! chamei-a suavemente.
Ela ergueu o olhar. Tinha os olhos enormes.
Tudo comeou a se mexer nossa volta.
Pedras pequenas, e depois maiores. Ento fiquei
quieta para deix-las se assentarem. Agora no
consigo fazer a Boba se levantar, nem sou capaz
de lev-la no colo. Estava lutando contra o
pnico que tinha na voz.
Fique parada. Estou indo.
Eu conseguia ver claramente o local onde uma
seo da superfcie da rocha se soltara e comeara
a cair. Pedrinhas que rolaram haviam deixado os
seus rastros na superfcie coberta de neve. Avaliei
o que conseguia ver e desejei saber mais sobre
avalanches. O movimento das pedras parecia ter
comeado muito acima e passado por eles. Ainda
estvamos bem acima da borda, mas depois de o
cascalho comear a se mover, rapidamente nos
faria passar por ela. Obriguei o corao a esfriar e
confiei na minha cabea.
Esporana! Chamei de novo em voz baixa.
No era necessrio, a sua ateno estava
inteiramente focada em mim. Venha at mim.
Muito devagar e com muito cuidado.
E a Boba?
Deixe-o. Assim que voc estiver a salvo, eu
volto para busc-lo. Se for at voc, ns trs
ficaremos em perigo.
Uma coisa ver a lgica de algo. Outra se
obrigar a manter uma deciso com sabor de
covardia. No sei o que Esporana estava pensando
quando se levantou lentamente. No chegou a
endireitar-se por completo, mas se arriscou a vir
at mim um passo de cada vez, agachada. Mordi o
lbio e me mantive em silncio, embora tivesse
vontade de incentiv-la a se apressar. Por duas
vezes, pequenas manadas de pedrinhas foram
libertadas pelos passos dela. Caram em cascata
ladeira abaixo, levando outras a se juntarem a elas
enquanto fluam pela encosta e ento saltavam por
cima da borda. Em ambas as vezes, ela
imobilizou-se, agachada, com os olhos
desesperadamente fixos em mim. Fiquei imvel,
perguntando estupidamente a mim mesmo o que
faria se ela comeasse a deslizar com as pedras.
Iria me atirar inutilmente atrs dela, ou ficaria
vendo-a ir e guardaria para sempre a memria
daqueles olhos escuros suplicantes?
Porm, ela enfim chegou relativa estabilidade
das rochas maiores onde eu me encontrava.
Agarrou-se a mim e a abracei, sentindo o tremor
que a sacudia. Aps um longo momento, agarrei
com firmeza os seus braos e a afastei um pouco
de mim.
Agora voc precisa continuar. No longe.
Quando chegar, fique l e mantenha as jepas
agrupadas. Entendeu?
Ela fez um aceno rpido e depois respirou
fundo. Soltou-se de mim e comeou a seguir
cautelosamente o rastro que as jepas e eu
havamos deixado. Deixei-a se afastar at uma
distncia segura antes de dar os primeiros passos
cautelosos na direo do Bobo.
As pedras moveram-se e rangeram de um modo
mais evidente sob o meu peso maior. Perguntei-me
se seria mais sensato avanar por uma rea mais
elevada ou mais baixa na encosta do que a que ela
percorrera. Pensei em voltar at as jepas para
trazer uma corda, mas no consegui pensar em
nada em que a pudesse prender. E enquanto assim
refletia, no parei de avanar, um passo cauteloso
de cada vez. O Bobo no se mexia.
Pedras comearam a se mexer em volta dos
meus ps, batendo nos meus tornozelos quando
passavam rolando por mim, deslizando debaixo
dos meus ps. Parei onde me encontrava, gelado
pelo cascalho que passava rapidamente por mim.
Senti que um dos meus ps comeava a escorregar
e, antes de conseguir me controlar, dei um passo
desequilibrado adiante. O xodo de pedrinhas
tornou-se mais rpido e mais determinado. No
soube o que fazer. Pensei em me atirar no cho e
espalhar o meu peso, mas decidi rapidamente que
isso s faria com que fosse mais fcil que as
pedras que caam me levassem com elas. Nenhuma
das pedras em movimento era maior do que o meu
punho, mas eram muitas. Fiquei imvel ali mesmo
e contei dez inspiraes e expiraes antes que o
rudo voltasse a abrandar.
Precisei de todas as migalhas de coragem que
consegui reunir para dar o passo seguinte.
Examinei o cho durante algum tempo e escolhi um
lugar que parecia menos instvel. Transferi o peso
para esse p e escolhi um lugar para o passo
seguinte. Quando cheguei ao corpo prostrado do
Bobo, tinha a camisa colada s costas com o suor
e o meu maxilar doa de apert-lo. abaixei-me ao
lado dele.
Esporana erguera o canto do cobertor para lhe
proteger o rosto, e ele continuava deitado, coberto
como um morto. Eu ergui o cobertor para olhar
para os olhos fechados. Ele estava com uma
tonalidade que eu nunca vira antes. O branco
mortal da pele que tinha em Torre do Cervo
adquirira um matiz amarelado nas Montanhas, mas
agora exibia uma terrvel cor morta. Os seus
lbios estavam secos e rachados, os clios repletos
de crostas amarelas. E continuava quente ao toque.
Bobo? perguntei-lhe em voz baixa, mas
ele no respondeu. Continuei falando, na
esperana de que alguma parte dele me ouvisse.
Vou ter de levant-lo e carreg-lo. O apoio para
os ps ruim, e se escorregarmos camos l
embaixo. Ento, assim que eu estiver com voc
nos braos, voc precisa ficar muito, muito quieto.
Compreende?
Ele respirou um pouco mais fundo. Tomei aquilo
como um assentimento. Ajoelhei abaixo dele e
passei as minhas mos e braos por baixo do seu
corpo. Quando me endireitei, a cicatriz da flecha
nas minhas costas gritou. Senti o suor surgir no
meu rosto. Fiquei um momento empertigado, mas
ajoelhado, com o Bobo nos braos, dominando a
dor e conquistando o equilbrio. Movi uma perna
para pr um p debaixo de mim. Tentei me
levantar lentamente, mas, quando o fiz, uma
cascata de pedras comeou a passar por mim.
Lutei contra uma terrvel vontade de encostar o
Bobo em mim e fugir. O chocalhar de cascalho
solto que se espalhava prosseguiu, e prosseguiu, e
prosseguiu. Quando finalmente cessou, eu estava
tremendo com o esforo de ficar perfeitamente
imvel. Estava enterrado em seixos at os
tornozelos.
FitzCavalaria?
Virei lentamente a cabea. Kettricken e Panela
haviam nos alcanado. Estavam de p, acima de
mim, bem afastadas da rea de pedra solta. Ambas
pareciam chocadas pela situao em que eu me
encontrava. Kettricken foi a primeira a se
recuperar.
Panela e eu vamos atravessar acima de voc.
Fique onde est e mantenha-se o mais imvel
possvel. Esporana e as jepas conseguiram
atravessar? Consegui fazer um pequeno aceno
com a cabea. No tinha saliva para falar.
Vou buscar uma corda e volto j. Irei to
rpido quanto for seguro.
Outro aceno meu. Tinha de torcer o corpo para
observ-las, portanto no o fiz. E tambm no
olhei para baixo. O vento soprava por mim, a
pedra tiquetaqueava debaixo dos meus ps e eu
olhava o rosto do Bobo. Ele no pesava muito,
para um homem crescido. Sempre fora leve e
dotado de ossos de pssaro, confiando na lngua
para se defender em vez dos punhos e dos
msculos. Mas enquanto o segurava, ele foi se
tornando cada vez mais pesado nos meus braos.
O crculo de dor nas minhas costas expandiu-se
lentamente, e de algum modo conseguiu fazer com
que os meus braos tambm doessem.
Senti-o torcendo-se ligeiramente nos meus
braos.
Fique quieto sussurrei.
Ele forou os olhos a se abrirem e olhou para
mim. A lngua procurou umedecer os lbios.
O que estamos fazendo? resmungou.
Estamos parados, muito quietos, no meio de
uma avalanche murmurei em resposta. Tinha a
garganta to seca que era difcil falar.
Acho que poderia ficar de p disse ele
debilmente.
No se mexa! ordenei-lhe.
Ele respirou ligeiramente mais fundo.
Por que voc est sempre por perto quando
me meto neste tipo de situao? perguntou com
voz rouca.
Eu podia lhe fazer a mesma pergunta
retorqui, injustamente.
Fitz?
Torci as costas, que gritavam para erguer os
olhos para Kettricken. Ela era uma silhueta contra
o cu. Tinha consigo uma jepa, a lder. Trazia um
rolo de corda enrolado em volta de um ombro. A
outra ponta estava presa ao arreio de carga vazio
da jepa.
Vou lhe atirar a corda. No tente agarr-la,
deixe-a passar por voc e depois a apanhe e a
enrole em volta de voc. Entendeu?
Sim.
Ela no podia ter ouvido a minha resposta, mas
me fez um aceno encorajador. Um momento
depois, a corda passou por mim desenrolando-se e
oscilando. Perturbou uma pequena quantidade de
pedrinhas, mas os seus movimentos precipitados
foram o suficiente para me deixar enjoado. A
corda estendeu-se por completo sobre a rocha, a
menos de um brao de distncia do meu p. Olhei-
a e senti o gosto do desespero. Fortaleci a minha
vontade.
Bobo, pode se agarrar a mim? Preciso tentar
apanhar a corda.
Acho que consigo ficar de p sugeriu de
novo.
Pode ser que precise fazer isso admiti, a
contragosto. Prepare-se para qualquer coisa.
Mas, acontea o que acontecer, agarre-se em mim.
S se voc prometer se agarrar corda.
Farei o melhor que puder prometi
sombriamente.
Irmo, eles pararam onde acampamos ontem
noite. Dos seis homens
Agora no, Olhos-de-Noite!
Trs desceram como voc, e trs ficaram com
os cavalos.
Agora no!
O Bobo mudou a posio dos braos para se
agarrar desajeitadamente aos meus ombros. Os
malditos cobertores que o haviam envolvido
estavam em todos os lugares onde eu no os
queria. Agarrei-me ao Bobo com o brao esquerdo
e consegui soltar at certo ponto o brao e a mo
direitos, apesar de ainda ter o brao por baixo
dele. Lutei contra um impulso ridculo de rir.
Aquilo era tudo to estupidamente desajeitado e
perigoso. Apesar de todas as maneiras que eu
imaginara poder morrer, aquela nunca me
ocorrera. Cruzei um olhar com o Bobo e vi o
mesmo riso tomado de pnico nos seus olhos.
Pronto disse-lhe, e me abaixei na direo
da corda. Cada um dos msculos retesados do meu
corpo guinchou e entrou em cibra.
Os meus dedos no conseguiram chegar corda
por um palmo. Levantei os olhos para onde
Kettricken e a jepa estavam ansiosamente
equilibradas. Ocorreu-me que eu no fazia ideia
alguma sobre o que devia acontecer depois de eu
ter a corda nas mos. Contudo, os meus msculos
j estavam estendidos demais para eu parar e fazer
perguntas. Forcei a mo a se aproximar da corda,
no mesmo instante em que senti o p direito
deslizar debaixo de mim.
Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Os braos do
Bobo ao redor de mim apertaram-se
convulsivamente quando toda a encosta nossa
volta pareceu entrar em movimento. Eu agarrei a
corda, mas apesar disso me senti deslizando
encosta abaixo. Imediatamente antes de ela se
retesar, consegui dar uma volta ao redor do pulso.
Por cima e a leste de ns, Kettricken fazia a jepa
avanar. Vi o animal cambalear quando absorveu
parte do nosso peso. Apoiou-se bem nas patas e
continuou a se mover ao longo da rea de
deslizamento. A corda se retesou, ferindo o meu
pulso e a minha mo. Aguentei.
No sei como consegui pr os ps debaixo de
mim, mas foi o que fiz, e me desloquei em algo
semelhante a uma caminhada enquanto a colina
continuava a ruir com estrondo debaixo de mim.
Dei por mim balanando como um pndulo lento,
com a corda retesada me fornecendo apenas
resistncia suficiente para me manter em cima das
ruidosas pedras que deslizavam colina abaixo
junto de mim. De repente, senti um apoio mais
firme para os ps. As minhas botas estavam cheias
de minsculas pedrinhas, mas as ignorei enquanto
me mantinha agarrado corda e me deslocava
firmemente ao longo da rea de deslizamento.
quela altura estvamos muito abaixo do caminho
original que eu escolhera. Recusei-me a olhar para
baixo e ver quo perto estvamos da borda.
Concentrei-me em me manter desajeitadamente
agarrado ao Bobo e corda e em manter os ps em
movimento.
De repente, ficamos fora de perigo. Dei por mim
em uma rea de pedras maiores, livre do cascalho
solto que quase acabara com as nossas vidas.
Acima de ns, Kettricken continuava a se mover
firmemente, e ns fizemos o mesmo, e ento
estvamos descendo para a estrada
abenoadamente plana. Alguns minutos mais tarde
estvamos todos em terreno plano e coberto de
neve. Larguei a corda e me deixei cair lentamente
com o Bobo. Fechei os olhos.
Tome. Beba um pouco de gua. Era a voz
de Panela, e ela estava me oferecendo um odre
enquanto Kettricken e Esporana arrancavam o
Bobo dos meus braos. Bebi um pouco de gua e
tremi durante um tempo. Cada parte de mim doa
como se estivesse machucada. Enquanto me
recuperava sentado, algo abriu caminho para o
primeiro plano na minha mente. De repente me
levantei, cambaleando.
So seis, e trs desceram como eu disse
ele.
Todos os olhos se viraram para mim quando
proferi aquelas palavras precipitadas. Panela
estava dando gua ao Bobo, mas ele no parecia
muito melhor. Sua boca estava apertada de
preocupao e contrariedade. Eu sabia o que ela
temia. Mas o medo que o lobo me transmitira tinha
mais peso.
O que voc disse? perguntou-me
Kettricken com suavidade, e compreendi que eles
pensavam que a minha mente estava divagando de
novo.
Olhos-de-Noite vem seguindo os homens.
Seis a cavalo, um animal de carga. Pararam no
local do nosso acampamento. E ele disse que trs
deles desceram como eu.
Desceram para a cidade? perguntou
lentamente Kettricken.
Para a cidade, ecoou Olhos-de-Noite. Senti um
arrepio ao ver Kettricken assentir como que para
si mesma.
Como pode ser? perguntou Esporana em
voz baixa. Panela nos disse que o sinalizador
s funcionava com voc porque voc tinha treino
de Talento. No afetou nenhum de ns.
Eles devem ser Talentosos disse Panela
em voz baixa e me olhou interrogativamente.
S havia uma resposta.
O crculo de Majestoso eu disse, e
estremeci. A nusea do terror ergueu-se em mim.
Eles estavam to horrivelmente prximos e sabiam
como me fazer tanto mal. Um medo avassalador da
dor inundou a minha mente. Lutei contra o pnico.
Kettricken me deu palmadinhas embaraadas no
brao.
Fitz. Eles no passaro facilmente por aquele
deslizamento. Com o meu arco, posso abat-los
durante a travessia. Foi Kettricken quem
pronunciou estas palavras. Havia ironia em ver a
minha rainha oferecendo-se para proteger o
assassino real. De algum modo, aquilo me deu
firmeza, embora eu soubesse que o arco dela no
daria proteo contra o crculo.
Eles no precisam vir at aqui para me
atacar. Ou a Veracidade. Respirei fundo, e de
repente ouvi um fato adicional nas minhas
palavras. Eles no precisam nos seguir
fisicamente at aqui para nos atacar. Ento por que
fizeram esta viagem?
O Bobo apoiou-se num cotovelo. Esfregou o
rosto macilento.
Talvez no tenham vindo at aqui atrs de
voc sugeriu lentamente. Talvez queiram
alguma outra coisa.
O qu? perguntei.
O que foi que Veracidade veio buscar aqui?
perguntou ele. A sua voz estava fraca, mas ele
parecia estar pensando com muito cuidado.
A ajuda dos Antigos? Majestoso nunca
acreditou neles. S os via como uma maneira de
afastar Veracidade do seu caminho.
Talvez. Mas ele sabia que a histria que
espalhou sobre a morte de Veracidade era uma
inveno dele. Voc mesmo diz que o seu crculo
esperou e o espionou. Na esperana de qu, se no
de descobrir o paradeiro de Veracidade? A esta
altura, ele deve sentir tanta curiosidade quanto a
rainha de saber por que motivo Veracidade no
regressou. E Majestoso deve se perguntar que
misso seria importante ao ponto de levar o
Bastardo a dar as costas tentativa de mat-lo
para se entregar a ela. Olhe para trs, Fitz. Voc
deixou um rastro de sangue e desordem. Majestoso
deve querer saber onde tudo isso leva.
Por que desceriam at a cidade?
perguntei, e depois surgiu uma pergunta pior:
Como eles sabiam como descer at cidade? Eu
tropecei na resposta, como foi que eles souberam?
Talvez sejam muito mais fortes no Talento do
que voc. Talvez o sinalizador tenha falado com
eles, ou talvez tenham vindo at aqui j sabendo
muito mais do que voc. Panela falou com
cuidado, mas no havia nenhum talvez na sua
voz.
Tudo ficou subitamente claro para mim.
No sei por que eles esto aqui. Mas sei que
vou mat-los antes que consigam chegar at
Veracidade ou me causar mais problemas.
Levantei-me com dificuldade.
Esporana estava sentada me encarando. Acho
que ela compreendeu nesse momento exatamente o
que eu era. No algum principezinho romantizado
no exlio, que acabaria, talvez, por realizar alguma
tarefa heroica, mas um assassino. E nem sequer um
assassino particularmente competente.
Descanse um pouco primeiro aconselhou-
me Kettricken. A sua voz estava firme e
concordante.
Sacudi a cabea.
Gostaria de poder. Mas a oportunidade que
me deram agora. Nem sequer sei quanto tempo
ficaro na cidade. Espero que passem algum tempo
l. No vou descer ao encontro deles,
compreendem? No estou altura deles no
Talento. No posso lutar com as suas mentes. Mas
posso matar os seus corpos. Se deixaram os
cavalos, os guardas e as provises para trs, posso
lhes roubar essas coisas. Ento, quando
regressarem, ficaro encurralados. Sem comida,
nem abrigo. Sem que haja caa nesta rea, mesmo
que se lembrem de como se caa. No voltarei a
ter uma oportunidade to boa como esta.
Kettricken estava assentindo relutantemente.
Esporana parecia nauseada. O Bobo deixara-se
cair novamente nos cobertores.
Eu devia ir com voc disse ele em voz
baixa.
Olhei-o e tentei manter o divertimento fora da
minha voz.
Voc?
s uma sensao que tenho de que devia
ir com voc. De que voc no devia ir sozinho.
No estarei sozinho. Olhos-de-Noite est me
esperando. Sondei rapidamente e encontrei o
meu companheiro. Estava deitado de barriga na
neve, com os guardas e os cavalos entre ns. Eles
haviam feito uma pequena fogueira e estavam
cozinhando nela. A comida estava deixando o lobo
com fome.
Esta noite comemos cavalo?
Veremos, disse-lhe. Virei-me para Kettricken.
Posso levar o seu arco?
Ela o entregou com relutncia.
Sabe atirar com ele? perguntou.
Era uma arma muito boa.
No bem, mas o suficiente. Eles no tm
cobertura adequada e no esto esperando um
ataque. Se tiver sorte, conseguirei matar um antes
mesmo que saibam que estou por perto.
Vai disparar contra um deles sem sequer
lanar um desafio? perguntou Esporana numa
voz dbil.
Olhei para a sbita desiluso nos olhos dela.
Fechei os olhos e me concentrei na minha tarefa.
Olhos-de-Noite?
Quer que eu espante os cavalos para o
penhasco ou s pela estrada afora? Eles j
sentiram o meu cheiro e esto ficando ansiosos.
Mas os homens no reparam.
Gostaria de ficar com as provises que eles
trazem, se houver como. Por que matar um cavalo
me incomodava mais do que matar um homem?
Veremos, respondeu Olhos-de-Noite
sensatamente. Carne carne, acrescentou.
Pus a aljava de Kettricken nas costas. O vento
estava aumentando de novo, prometendo mais
neve. A ideia de atravessar mais uma vez a rea de
deslizamento gelou minhas entranhas.
No h alternativa lembrei a mim mesmo.
Ergui o olhar para ver Esporana me dando as
costas. Era evidente que tomara o meu comentrio
como resposta. Bem, servia igualmente bem para
isso. Se eu falhar, eles viro atrs de vocs
eu disse com cuidado. Vocs devem se afastar
o mximo possvel daqui; viajem at no
conseguirem mais ver. Se tudo correr bem,
alcanaremos vocs em pouco tempo. Agachei-
me ao lado do Bobo. Consegue andar?
perguntei-lhe.
Durante algum tempo respondeu ele numa
voz seca.
Se for preciso, eu posso carreg-lo.
Kettricken falou com uma calma certeza. Olhei
para a alta mulher e acreditei nela. Fiz um curto
aceno com a cabea.
Desejem-me sorte disse-lhes, e me virei
para a rea de deslizamento.
Eu vou com voc anunciou de sbito
Panela. Levantou-se depois de voltar a amarrar as
botas. D-me o arco. E siga por onde eu andar.
Fiquei atnito um momento.
Por qu? perguntei por fim.
Porque sei o que estou fazendo ao atravessar
aquelas pedras. E sou mais do que boa o
suficiente com um arco. Aposto que consigo
abater dois deles antes de saberem que estamos l.
Mas
Ela muito boa no deslizamento observou
calmamente Kettricken. Esporana, leve as
jepas. Eu levo o Bobo. Lanou-nos um olhar
ilegvel. Alcancem-nos assim que puderem.
Lembrei-me de que eu j tentara deixar Panela
para trs uma vez. Se ela iria comigo, queria que
estivesse comigo, no que aparecesse atrs de mim
quando eu no o esperava. Encarei-a com
irritao, mas assenti.
O arco lembrou-me ela.
Sabe mesmo atirar bem? perguntei-lhe
enquanto lhe entregava o arco a contragosto.
Um sorriso curioso lhe torceu o rosto. Baixou os
olhos para os dedos deformados.
No lhe diria que sou capaz de fazer uma
coisa se no fosse. Alguns dos meus antigos
talentos ainda me pertencem.
E comeamos a escalar as rochas cadas. Panela
foi frente, com um basto na mo que era usado
para sondar o terreno, e eu segui atrs, a um basto
de distncia, conforme ela me pedira. No me
disse uma palavra enquanto olhava alternadamente
para o terreno junto aos ps e o lugar para onde
desejava nos levar. No consegui distinguir o que
era que a levava a decidir o caminho, mas as
pedras soltas e a neve cristalina mantinham-se
imveis sob os seus passos curtos. Ela fazia aquilo
parecer to fcil que eu comecei a me sentir tolo.
Eles esto comendo agora. E no h ningum
de vigia.
Transmiti a informao a Panela, que assentiu
sombriamente. No meu ntimo, preocupei-me e me
perguntei se ela seria capaz de fazer o que
precisava ser feito. Ser bom com um arco uma
coisa. Abater um homem enquanto ele est
jantando pacificamente outra. Pensei na objeo
de Esporana, e imaginei que tipo de homem se
mostraria e lanaria um desafio antes de tentar
matar os trs homens. Toquei no cabo da minha
espada. Bem, era o que Breu me prometera havia
tanto tempo. Matar pelo meu rei, sem nenhuma da
honra ou glria do soldado no campo de batalha.
No que alguma das minhas recordaes de
batalha contivesse muito de honra ou de glria.
De repente, estvamos descendo das pedras
soltas da rea de deslizamento, avanando com
muito cuidado e silenciosamente. Panela falou
muito baixo:
Ainda temos algum caminho a percorrer. Mas
quando chegarmos l, deixe-me escolher a minha
posio e fazer o primeiro disparo. Assim que o
homem estiver no cho, mostre-se e atraia a
ateno deles. Eles talvez no me procurem e pode
ser que eu consiga outro disparo limpo.
J tinha feito este tipo de coisa? perguntei
eu em voz baixa.
No assim to diferente do nosso jogo, Fitz.
Daqui em diante, vamos em silncio.
Compreendi que ela nunca antes havia matado
daquela forma, se que alguma vez j havia
matado um ser humano. Comecei a duvidar da
sensatez de lhe dar o arco. Ao mesmo tempo,
estava grato de uma forma egosta pela sua
companhia. Perguntei-me se estaria perdendo a
coragem.
Talvez esteja aprendendo que uma alcateia
melhor para coisas assim.
Talvez.
Havia pouca cobertura na estrada. Acima e
abaixo de ns, o flanco da montanha erguia-se
escarpado. A estrada era plana e nua. Rodeamos
um contraforte da montanha e o acampamento
deles ficou vista. Os trs guardas continuavam
sentados despreocupados em volta da fogueira,
comendo e conversando. Os cavalos sentiram o
nosso cheiro e se mexeram com pequenos
resflegos. Contudo, como o lobo os mantinha
inquietos havia algum tempo, os homens no
prestaram ateno neles. Panela encaixara uma
flecha no arco enquanto caminhvamos e o levava
pronto. No fim, foi simples. Um massacre feio e
gratuito, mas simples. Ela largou a flecha quando
um dos homens reparou em ns. A seta o atingiu no
peito. Os outros dois levantaram-se de um salto,
viraram-se para nos ver e mergulharam para as
armas. Porm, nesse curto espao de tempo,
Panela encaixara outra flecha e a disparara
enquanto o impotente desgraado desembainhava
uma espada. Olhos-de-Noite surgiu de sbito por
trs para atirar o ltimo homem ao cho e mant-lo
ali at que eu tivesse tempo de correr at o
acampamento e dar cabo dele com uma espada.
Acontecera depressa, quase calmamente. Trs
homens mortos estatelados na neve. Seis cavalos
suados e inquietos, uma mula impassvel.
Panela. Veja que comida eles tm nos
cavalos disse-lhe, para parar com o modo
horrvel como ela mantinha os olhos fixos. Voltou-
os para mim, e ento assentiu devagar.
Fui at os corpos, para ver o que poderiam me
dizer. No usavam as cores de Majestoso, mas a
origem de dois estava clara nos traos dos seus
rostos e no corte das suas roupas. Vareses. O
terceiro, quando o virei, quase me fez parar o
corao. Conhecera-o em Torre do Cervo. No
bem, mas o suficiente para saber que o seu nome
era Sebo. Agachei-me, olhando para o seu rosto
morto, envergonhado por no conseguir recordar
dele mais do que isso. Supunha que ele fora para
Vaudefeira quando Majestoso mudara a corte para
l; fora o que acontecera com muitos dos criados.
Tentei dizer a mim mesmo que no importava onde
ele comeara; tivera fim ali. Fechei o corao e fiz
o que tinha de fazer.
Atirei os corpos pela borda do penhasco.
Enquanto Panela revistava as suas provises e
separava o que achava que ns dois
conseguiramos levar conosco, eu despi
completamente os cavalos de todos os pedaos de
arreios e rdeas. Isso seguiu os cadveres
penhasco abaixo. Revistei os sacos deles, pouco
encontrando alm de roupas quentes. O animal de
carga transportava apenas a tenda e coisas do
gnero. Nenhum documento. Que necessidade os
membros de um crculo teriam de instrues
escritas?
Empurre bem os cavalos pela estrada afora.
Duvido de que regressem at aqui sozinhos.
Toda aquela carne e voc quer que eu
simplesmente a afaste?
Se matarmos um deles aqui, ser mais do que
conseguiremos comer e carregar. Aquilo que
deixssemos alimentaria aqueles trs quando
regressassem. Eles traziam carne seca e queijo.
Eu cuidarei para que a sua barriga se encha esta
noite.
Olhos-de-Noite no ficou satisfeito, mas me deu
ouvidos. Acho que ele perseguiu os cavalos at
mais longe e mais depressa do que realmente
precisaria fazer, mas pelo menos os deixou vivos.
Eu no fazia ideia de quais seriam as chances dos
animais nas montanhas. Provavelmente
terminariam na barriga de um gato das neves, ou
como festim para os corvos. Senti-me de sbito
horrivelmente cansado de tudo aquilo.
Vamos embora? perguntei inutilmente a
Panela, e ela assentiu. Foi uma boa quantidade de
comida que ela empacotou para ns levarmos mas,
pessoalmente, perguntei a mim mesmo se
conseguiria engolir alguma. O pouco que no
pudemos transportar, nem o lobo devorar,
chutamos pela borda do penhasco. Olhei em volta.
Se eu me atrevesse a toc-lo, tambm tentaria
empurrar o pilar pela borda disse a Panela.
Ela me lanou um olhar que era como se
pensasse que lhe pedira.
Eu tambm tenho medo de tocar nele disse
por fim, e ns dois lhe demos as costas.
O crepsculo cobriu as montanhas enquanto nos
afastvamos pela estrada, e a noite chegou rpida
em seu encalo. Segui Panela e o lobo pelo
deslizamento em uma quase escurido. Nenhum
deles parecia ter medo, e de repente fiquei
cansado demais para me importar se sobreviveria
ao caminho ou no.
No deixe a mente divagar repreendeu-me
Panela quando finalmente voltou a descer das
pedras cadas para a estrada. Pegou o meu brao e
o apertou bem. Caminhamos durante algum tempo
em um negrume quase completo, seguindo apenas a
estrada reta e plana adiante enquanto esta cortava
a face da montanha. O lobo ia nossa frente,
voltando com frequncia para ver como
estvamos. O acampamento no est muito longe,
encorajou-me ele aps uma dessas voltas.
H quanto tempo faz isto? perguntou-me
Panela passado algum tempo.
No fingi entender mal a pergunta.
Desde que eu tinha uns doze anos
respondi.
Quantos homens matou?
No era a pergunta fria que parecia ser.
Respondi-lhe com seriedade.
No sei. O meu professor me aconselhou a
no cont-los. Disse que no era boa ideia. No
haviam sido precisamente aquelas as suas
palavras. Lembrava-me bem delas. No importa
quantos depois do primeiro, dissera Breu.
Sabemos o que ns somos. A quantidade no
torna voc nem melhor, nem pior.
Agora refleti no que ele teria querido dizer com
aquilo enquanto Panela dizia escurido:
Eu matei uma vez antes.
No respondi. Deixaria que ela me contasse se o
desejasse, mas no queria realmente saber.
O seu brao no meu comeou a tremer
ligeiramente.
Matei-a, em um ataque de irritao. No
achava que pudesse faz-lo, ela sempre fora mais
forte. Mas sobrevivi e ela morreu. De modo que
me queimaram e me expulsaram. Mandaram-me
para o exlio para sempre. A sua mo encontrou
a minha e a agarrou com fora. Continuamos a
caminhar. nossa frente, vislumbrei um minsculo
claro. O mais provvel era que fosse o braseiro
ardendo dentro da tenda.
Era to impensvel fazer o que eu fiz
disse Panela numa voz cansada. Nunca havia
acontecido antes. Oh, entre crculos, com certeza,
muito de vez em quando, por rivalidades pelo
favor do rei. Mas eu tive um duelo de Talento com
um membro do meu prprio crculo, e a matei. E
isso era imperdovel.
CAPTULO 29

A Coroa dos Galos

H um jogo que se joga entre o povo da


Montanha. um jogo complicado de se aprender
e difcil de dominar. Inclui uma combinao de
cartas e fichas com runas. H dezessete cartas,
normalmente com um tamanho semelhante ao de
uma mo de homem, feitas de qualquer madeira
de cor clara. Cada uma destas cartas apresenta
um emblema do folclore das Montanhas, como o
Velho Tecelo ou Aquela Que Segue Pistas. Os
desenhos dessas imagens altamente estilizadas
so geralmente feitos com tinta por cima de um
contorno queimado. As trinta e uma fichas com
runas so feitas com uma pedra cinzenta
caracterstica das Montanhas e nelas so
esculpidos glifos que significam Pedra, gua,
Pasto e coisas do gnero. As cartas e pedras so
distribudas pelos jogadores, normalmente trs,
at no restarem mais. Tanto as cartas como as
runas tm pesos tradicionais que variam quando
so jogadas em combinao. Tem a reputao de
ser um jogo muito antigo.

Passamos o resto do trajeto caminhando em


silncio at a tenda. O que ela me dissera era to
imenso que no consegui pensar em nada para
dizer. Teria sido estpido dar voz s centenas de
perguntas que brotaram em mim. Ela tinha as
respostas, e decidiria quando me d-las. Agora eu
sabia disso. Olhos-de-Noite regressou em silncio
e com rapidez para junto de mim. Avanou
furtivamente perto dos meus calcanhares.
Ela matou dentro da sua alcateia?
o que parece.
Acontece. No bom, mas acontece. Diga-lhe
isso.
Agora no.
Ningum falou muito quando entramos na tenda.
Ningum quis perguntar. Ento eu disse em voz
baixa:
Matamos os guardas, afastamos os cavalos e
atiramos as suas provises pelo penhasco abaixo.
Esporana apenas nos encarou, sem compreenso.
Os seus olhos estavam dilatados e escuros,
semelhantes aos de pssaros. Kettricken nos serviu
canecas de ch e acrescentou em silncio a comida
que trouxramos s nossas provises j bastante
reduzidas.
O Bobo est um pouco melhor disse em
jeito de conversa.
Olhei para ele, dormindo nos seus cobertores, e
duvidei de que estivesse. Os seus olhos pareciam
afundados. Suor colara o seu cabelo fino ao crnio
e o seu sono inquieto o deixara arrepiado, aos
tufos. Porm, quando coloquei a mo no seu rosto,
estava quase frio ao toque. Aconcheguei melhor o
cobertor sua volta.
Ele comeu alguma coisa? perguntei a
Kettricken.
Bebeu um pouco de sopa. Acho que vai ficar
bem, Fitz. Ele j havia ficado doente uma vez,
durante cerca de um dia em Lago Azul. Foi a
mesma coisa, febre e fraqueza. Ele disse que
aquilo podia no ser uma doena, mas s uma
mudana pela qual a sua espcie passa.
Ele me disse mais ou menos a mesma coisa
ontem concordei. Ela colocou uma tigela de
sopa quente nas minhas mos. Durante um instante,
cheirou bem. Ento cheirou ao resto da sopa que
os guardas em pnico haviam derramado na
estrada coberta de neve. Cerrei os maxilares.
Chegou a ver os membros do crculo?
perguntou-me Kettricken.
Sacudi a cabea, ento me forcei a falar.
No. Mas havia um grande cavalo l, e a
roupa que trazia nos alforjes teria servido em
Emaranhado. Em outro havia trajes azuis como
aqueles de que Cedoura gosta. E coisas austeras
para Vontade.
Disse os seus nomes de uma forma embaraada,
de certa forma com medo de nome-los, como se
eu fosse invoc-los. Por outro lado, estava
nomeando aqueles que matara. Talentosos ou no,
as Montanhas dariam cabo deles. Contudo, no
senti orgulho daquilo que fizera, nem acreditaria
por completo at ver os seus ossos. Tudo o que
sabia por ora era que no era provvel que me
atacassem naquela noite. Por um instante os
imaginei voltando ao pilar, contando encontrar
comida, fogo e abrigo sua espera. Encontrariam
frio e escurido. No veriam o sangue na neve.
Notei que a sopa estava esfriando. Forcei-me a
tom-la, colheradas que simplesmente engolia,
sem querer sabore-las. Sebo tocara flauta. Tive
uma sbita recordao de v-lo sentado nos
degraus dos fundos da copa, tocando para duas
criadas de cozinha. Fechei os olhos, desejando em
vo conseguir me lembrar de algo de maligno
sobre ele. Suspeitei de que o seu nico crime fora
servir o patro errado.
Fitz. Panela me cutucou de imediato.
No estava divagando protestei.
Logo teria comeado. Hoje, o medo foi seu
aliado. Manteve-o concentrado. Mas precisa
dormir algum tempo esta noite, e quando o fizer,
precisa estar com a mente bem protegida. Quando
eles regressarem ao pilar, reconhecero o seu
trabalho e viro atrs de voc. No acha?
Eu sabia que era verdade, mas isso no tornava
menos perturbador ouvir aquilo ser dito em voz
alta. Desejei que Kettricken e Esporana no
estivessem nos escutando e observando.
Bom. Vamos jogar um pouco do nosso jogo
de novo, sim? sugeriu Panela.
Jogamos quatro jogos casuais. Ganhei duas
vezes. Ento ela preparou um jogo quase
exclusivamente composto por peas brancas e me
deu uma pedra preta com a qual eu devia ganhar.
Tentei focar a mente no jogo, sabendo que isso
funcionara antes, mas estava simplesmente
cansado demais. Dei por mim pensando que se
passara mais de um ano desde que abandonara
Torre do Cervo como cadver. Mais de um ano
desde que dormira em uma cama verdadeira que
pudesse chamar de minha. Mais de um ano desde
que as refeies foram certas. Mais de um ano
desde que tivera Moli nos braos, mais de um ano
desde que ela me pedira para deix-la em paz para
sempre.
Fitz. Pare com isso.
Ergui os olhos do pano de jogo para encontrar
Panela me observando atentamente.
Voc no pode ceder a isso. Precisa ser
forte.
Estou cansado demais para ser forte.
Hoje os seus inimigos foram descuidados.
No esperavam que voc os descobrisse. No
sero descuidados de novo.
Espero que estejam mortos eu disse com
uma alegria que no sentia.
No ser assim to fcil retorquiu Panela,
sem saber como as suas palavras me arrepiavam.
Voc disse que estava mais quente l embaixo
na cidade. Depois de verem que no h provises,
voltaro para a cidade. Eles tm gua l, e estou
certa de que levaram pelo menos algumas
provises para o dia. No acho que possamos
desconsider-los ainda. Acha?
Suponho que no.
Olhos-de-Noite sentou-se ao meu lado com um
ganido ansioso. Reprimi o meu desespero e depois
o acalmei com um toque.
S gostaria disse em voz baixa de
simplesmente poder dormir durante algum tempo.
Sozinho na minha mente, sonhando os meus
prprios sonhos, sem temer o lugar para onde vou
ou quem poder me atacar. Sem temer que a minha
fome de Talento me domine. S um sono simples.
Falei diretamente para ela, sabendo agora que
compreendia bem o que eu queria dizer.
No posso lhe dar isso disse-me Panela
em um tom calmo. Tudo o que posso lhe dar o
jogo. Confie nele. Tem sido usado por geraes de
utilizadores do Talento, para manter tais perigos
distncia.
E assim me curvei uma vez mais sobre o
tabuleiro e fixei o jogo na cabea, e quando me
deitei junto ao Bobo naquela noite, mantive-o
diante dos meus olhos.
Nessa noite pairei, como um beija-flor, em
algum lugar entre o sono e a viglia. Consegui
chegar a um lugar mesmo antes do sono, e me
mantive ali atravs da contemplao do jogo de
Panela. Mais de uma vez vaguei de volta viglia.
Tornava-me consciente da fraca luz proveniente do
braseiro e das silhuetas adormecidas ao meu lado.
Por vrias vezes estendi a mo para verificar o
estado do Bobo; cada vez a sua pele parecia mais
fria e o seu sono mais profundo. Kettricken,
Esporana e Panela alternaram-se nos turnos de
vigia nessa noite. Reparei que o lobo dividiu o de
Kettricken. Ainda no confiavam que eu me
mantivesse cauteloso ao longo de um turno, e me
senti egoisticamente grato por isso.
Logo antes da alvorada, acordei de novo para
encontrar tudo ainda em silncio. Verifiquei o
estado do Bobo, e ento me recostei e fechei os
olhos, esperando encontrar mais alguns momentos
de descanso. Em vez disso, com detalhes
horrveis, contemplei um grande olho, como se o
ato de fechar os meus tivesse aberto aquele. Lutei
para abrir os olhos mais uma vez, debati-me
desesperadamente para alcanar a viglia, mas fui
detido. Houve um terrvel puxo na minha mente,
como o puxo da ressaca sobre um nadador.
Resisti com toda a minha fora de vontade.
Conseguia sentir a viglia logo acima de mim,
como uma bolha em que eu poderia penetrar se ao
menos conseguisse toc-la. Mas no conseguia.
Debati-me, contorcendo a cara em caretas,
tentando obrigar os meus olhos desobedientes a se
abrirem.
O olho me observou. Um nico e imenso olho
escuro. No o de Vontade. O de Majestoso. Fitou-
me e eu soube que ele se deliciava com a minha
luta. Parecia no lhe exigir qualquer esforo me
manter ali, como uma mosca sob uma tigela de
vidro. No entanto, mesmo no meu pnico
compreendi que se ele conseguisse fazer mais do
que me segurar j o teria feito. Ultrapassara as
minhas muralhas, mas no tinha poder para fazer
mais do que me ameaar. Isso ainda era o
suficiente para deixar o corao aos saltos de
terror.
Bastardo disse ele afetuosamente. A
palavra se quebrou sobre a minha mente como uma
fria onda ocenica. Fiquei ensopado com a ameaa
que trazia. Bastardo, eu sei sobre a criana. E
sobre a sua mulher. Moli. Olho por olho,
Bastardo, na mesma moeda. Fez uma pausa e o
seu divertimento cresceu enquanto o meu terror se
expandia. Ora, eis a uma ideia. Ela tem tetas
bonitas, Bastardo? Eu a acharia divertida?
NO!
Soltei-me dele, detectando tambm por um
instante Cedoura, Emaranhado e Vontade.
Consegui me libertar.
Acordei de repente. Sa precipitadamente dos
cobertores e fugi para fora da tenda, sem botas e
sem manto. Olhos-de-Noite seguiu no meu encalo,
rosnando em todas as direes. O cu estava negro
e semeado de estrelas. O ar estava frio. Inspirei-o
vrias vezes, trmulo, tentando aquietar o medo
doentio que me dominava.
O que h? perguntou Esporana num tom
temeroso. Estava de vigia fora da tenda.
Apenas sacudi a cabea, incapaz de dar voz ao
horror de tudo aquilo. Passado algum tempo, virei-
me e voltei para dentro. O suor escorria ao longo
do meu corpo como se tivesse sido envenenado.
Sentei-me no meu emaranhado de cobertores. No
conseguia parar de arquejar. Quanto mais tentava
aquietar o meu pnico, maior ele se tornava. Eu
sei sobre a criana. E sobre a sua mulher.
Aquelas palavras ecoavam e ecoavam dentro de
mim. Panela mexeu-se nos seus cobertores, ento
se levantou e atravessou a tenda para se sentar ao
meu lado. Colocou as mos nos meus ombros.
Eles o alcanaram, no?
Assenti, e tentei engolir com uma garganta seca.
Ela estendeu a mo para um odre e o entregou a
mim. Bebi um gole, quase me engasguei, e depois
consegui beber mais um gole.
Pense no jogo insistiu ela. Limpe a
mente de tudo, menos do jogo.
O jogo! gritei com violncia, acordando
sobressaltados tanto o Bobo como Kettricken.
O jogo? Majestoso sabe sobre Moli e Urtiga.
Ameaa-as. E eu estou impotente! De mos atadas.
Senti de novo o pnico aumentando em mim, a
fria sem fogo. O lobo ganiu, ento rosnou no
fundo da garganta.
No pode contact-los pelo Talento, avis-
los de alguma forma? perguntou Kettricken.
No! interrompeu Panela. Ele nem
sequer devia pensar nelas.
Kettricken me lanou um olhar em que se
misturava a integridade e um pedido de desculpas.
Temo que Breu e eu tnhamos razo. A
princesa estar mais segura no Reino da Montanha.
No se esquea de que a sua tarefa era ir busc-la.
Anime-se. possvel que neste exato momento
Urtiga esteja com ele, a caminho da segurana,
fora do alcance de Majestoso.
Panela atraiu o meu olhar, afastando-o da rainha.
Fitz. Concentre-se no jogo. Apenas no jogo.
As ameaas dele podem ser um estratagema, para
fazer voc trai-los. No fale sobre eles. No pense
neles. Aqui. Olhe aqui. Suas velhas mos
trmulas afastaram o meu cobertor e estenderam o
pano de jogo. Despejou pedras na mo e escolheu
brancas para recriar o problema. Resolva isto.
Concentre-se nisto, e apenas nisto.
Era praticamente impossvel. Olhei para as
pedras brancas e pensei que tudo aquilo no
passava de uma tarefa estpida. Que jogadores
seriam desastrados e imprevidentes a ponto de
deixar que o jogo se degradasse at tal aglomerado
de pedras brancas? No era um problema que
valesse a pena resolver. Mas eu tambm no podia
me deitar e dormir. Quase nem me atrevia a piscar,
para no voltar a ver aquele olho. Se tivesse sido
todo o semblante de Majestoso ou ambos os seus
olhos, talvez no tivesse parecido to horrendo.
Porm, o olho incorpreo parecia ver tudo e ser
constante, inescapvel. Fitei as peas do jogo at
que as pedras brancas pareceram flutuar por cima
das unies das linhas. Uma pedra preta, para
arrancar um padro vencedor daquele caos. Uma
pedra preta. Eu a tinha na mo, afagando-a com o
polegar.
Ao longo de todo o dia seguinte, enquanto
seguamos a estrada pelo flanco da montanha,
mantive a pedra na minha mo nua. O outro brao
encontrava-se em volta da cintura do Bobo, e o
brao dele envolvia o meu pescoo. Essas duas
coisas mantiveram a minha mente concentrada.
O Bobo parecia um pouco melhor. O seu corpo
j no estava febril, mas ele parecia incapaz de
manter comida no estmago, ou mesmo ch. Panela
o forou a beber gua, at que ele simplesmente se
sentou e a recusou, sacudindo a cabea sem uma
palavra. Parecia to indisposto para as conversas
quanto eu estava. Esporana e Panela com o seu
basto lideravam a nossa pequena procisso
cansada. O Bobo e eu seguamos as jepas enquanto
Kettricken, com o arco pronto, mantinha defendida
a retaguarda. O lobo caminhava inquieto de um
lado para o outro ao longo da fila, ora patrulhando
adiante, ora dando a volta at o rastro que
deixramos.
Olhos-de-Noite e eu havamos regressado a uma
espcie de vnculo sem palavras. Ele compreendia
que eu no desejava pensar em nada e fazia o
melhor que podia para no me distrair. Mesmo
assim me enervava senti-lo tentando usar a Manha
para se comunicar com Kettricken. No h sinal
de ningum atrs de ns, dizia-lhe enquanto
passava por ela em uma das suas infindveis
voltas. Depois avanava at muito longe frente
das jepas e de Esporana, e regressava para perto
de Kettricken assegurando-lhe de passagem que o
caminho estava livre adiante. Tentei dizer a mim
mesmo que ela se limitava a ter confiana em que
Olhos-de-Noite me informaria se encontrasse algo
de errado no terreno em que fazia reconhecimento.
Contudo, eu suspeitava de que ela estava se
tornando cada vez mais sintonizada com ele.
A estrada nos levou muito depressa para baixo.
medida que descamos, o terreno ia mudando.
Ao fim da tarde, o declive acima da estrada estava
se suavizando e comeamos a passar por rvores
retorcidas e pedregulhos cobertos de musgo. A
neve desaparecia e tornava-se irregular no flanco
da montanha, enquanto a estrada se mostrava seca
e negra. Tufos secos de capim apareciam verdes
nas suas bases logo aps a beira da estrada. Era
difcil obrigar as famintas jepas a continuar
andando. Fiz um vago esforo de Manha para
inform-las de que haveria pasto melhor mais
adiante, mas duvido de que tivesse suficiente
familiaridade com elas para ter deixado alguma
impresso duradoura nos animais. Tentei limitar
os pensamentos ao fato de que a lenha seria mais
abundante naquela noite e gratido por o dia ir se
tornando mais quente medida que a estrada nos
levava para altitudes mais baixas.
A certa altura, o Bobo indicou com um gesto
uma planta rasteira que tinha minsculos botes
brancos.
J deve ser primavera em Torre do Cervo
disse em voz baixa, e depois acrescentou
rapidamente: Desculpe. No ligue para mim.
Desculpe.
Est se sentindo melhor? perguntei-lhe,
empurrando resolutamente flores primaveris,
abelhas e as velas de Moli para fora da minha
mente.
Um pouco. A sua voz tremeu e ele encheu
rapidamente os pulmes de ar. Gostaria que
pudssemos andar mais devagar.
Vamos acampar em breve disse-lhe,
sabendo que agora no diminuiramos o ritmo. Eu
sentia uma urgncia crescente e passara a acreditar
que ela tinha origem em Veracidade. Empurrei
tambm esse nome para fora da cabea. Mesmo
caminhando pela estrada larga luz do dia, eu
temia que o olho de Majestoso estivesse apenas
distncia de um piscar de olhos e que se o
vislumbrasse eles me teriam uma vez mais em seu
poder. Por um instante, nutri a esperana de que
Cedoura, Vontade e Emaranhado estivessem com
frio e fome, mas ento percebi que tambm no
podia pensar neles sem correr riscos.
Voc j esteve doente assim antes
observei, dirigindo-me ao Bobo, principalmente
para pensar em alguma outra coisa.
Sim. Em Lago Azul. A senhora minha rainha
gastou o dinheiro para a comida em um quarto para
que eu pudesse sair da chuva. Virou a cabea
para me olhar. Acha que pode ter sido por
isso?
Pode ter sido por isso o qu?
Que o filho dela nasceu morto
Sua voz desapareceu. Tentei pensar em
palavras.
No acho que tenha sido apenas uma coisa,
Bobo. Ela sofreu infortnios demais enquanto
esperava o beb, s isso.
Bronco devia ter ido com ela e me deixado
para trs. Teria cuidado melhor dela. Eu no
estava pensando com clareza na ocasio
Nesse caso, eu estaria morto observei.
Entre outras coisas. Bobo, tentar jogar esse jogo
com o passado no faz sentido. aqui que estamos
hoje, e s podemos fazer as nossas jogadas a partir
daqui.
E, naquele instante, percebi de sbito a soluo
para o problema que Panela me dera. Ficou claro
de uma forma to instantnea que me perguntei
como era possvel que no o tivesse visto. Ento
compreendi. Cada vez que estudava o tabuleiro,
perguntava a mim mesmo como ele poderia ter
chegado a um estado to lamentvel. Tudo o que
vira haviam sido as jogadas sem sentido que
precederam a minha. Mas essas jogadas j no
importavam, uma vez que eu tinha a pedra preta na
mo. Um meio sorriso curvou meus lbios. O
polegar afagou a pedra preta.
Onde estamos hoje ecoou o Bobo e eu
senti o seu estado de esprito seguir de perto o
meu.
Kettricken disse que voc talvez no
estivesse realmente doente. Que aquilo poderia
ser caracterstico da sua espcie. Sentia-me
desconfortvel por chegar to perto assim de uma
pergunta a respeito daquilo.
Poderia ser. Suponho. Veja. Ele tirou as
luvas, ento ergueu as mos e raspou as unhas pelo
rosto. Trilhas secas e brancas as seguiram. Ele
esfregou o rosto e a pele se desfez em p sob as
suas mos. Nos dorsos das mos, a pele tambm
estava caindo, como se tivesse criado bolhas.
como uma queimadura de sol descascando.
Acha que por causa do clima em que estamos?
Isso tambm possvel. Exceto que se for
como da ltima vez, vou ter coceiras e cada
centmetro do meu corpo ir descascar. E ganharei
um pouco mais de cor no processo. Os meus olhos
esto mudando?
Fiz sua vontade o olhando nos olhos. Por mais
familiarizado que eu estivesse com ele, continuava
no sendo tarefa fcil. Teriam aqueles globos
incolores escurecido um pouco mais? Talvez
estejam um pouco mais escuros. No mais do que
cerveja erguida contra a luz. O que vai acontecer a
voc? Vai continuar tendo febres e ganhando cor?
Talvez. No sei admitiu ele depois de
terem se passado alguns momentos.
Como possvel voc no saber?
perguntei. Como eram os seus pais?
Como voc, rapazinho tonto. Humanos. Em
algum lugar na minha linhagem havia um Branco.
Em mim, como raramente acontece, esse sangue
antigo assume de novo uma forma. Mas eu no sou
mais Branco do que sou humano. Achou que
algum como eu era comum no meu povo? Eu j
lhe disse. Sou uma anomalia, mesmo entre aqueles
que partilham da minha linhagem mista. Acha que
nascem Profetas Brancos em todas as geraes?
No seramos levamos to a srio se nascssemos.
No. Durante a minha vida, eu sou o nico Profeta
Branco.
Mas os seus professores, com todos os
registros que voc disse que eles mantinham, no
podiam lhe ter dito alguma coisa sobre o que
esperar?
Ele sorriu, mas havia amargura na sua voz.
Os meus professores estavam seguros demais
que sabiam o que esperar. Planejaram espaar a
minha aprendizagem, revelar o que achavam que
eu devia saber quando achavam que eu devia
saber. Quando as minhas profecias se mostraram
diferentes do que eles haviam planejado, no
ficaram satisfeitos comigo. Tentaram interpretar
por mim as minhas prprias palavras! Tinha
havido outros Profetas Brancos, veja bem. Mas
quando eu tentei faz-los ver que eu era o Profeta
Branco, no foram capazes de aceitar. Mostraram-
me escritos e mais escritos para tentar me
convencer de que era uma afronta que eu insistisse
em tal coisa. Contudo, quanto mais eu lia, mais
crescia a minha certeza. Tentei lhes dizer que o
meu momento estava quase chegando. Tudo o que
conseguiram fazer foi me aconselhar a esperar e
estudar mais para ter certeza. No tnhamos as
melhores relaes quando eu parti. Imagino que
tenham ficado bastante surpresos ao descobrirem
que eu me afastara deles to novo, mesmo apesar
de eu ter levado anos a profetiz-lo.
Lanou-me um sorriso estranhamente
apologtico. Se eu tivesse ficado para
completar a minha educao, talvez soubssemos
melhor como salvar o mundo.
Senti um sbito afundamento na boca do meu
estmago. Acabara por confiar tanto em que o
Bobo, pelo menos, soubesse o que estvamos
fazendo.
O quanto voc realmente sabe sobre o que
faremos no futuro?
Ele respirou fundo, e ento soltou o ar num
suspiro.
S que o faremos juntos, Fitzy-fitz. S que o
faremos juntos.
Achava que voc havia estudado todos esses
textos e profecias
Estudei. E quando era mais novo, sonhei
muitos sonhos, e at tive vises. Mas como lhe
disse antes; nada se encaixa com preciso. Veja,
Fitz. Se lhe mostrasse l, um tear e uma tesoura,
voc olharia para isso e diria Oh, esse o casaco
que um dia usarei? Mas depois de ter vestido o
casaco, fcil olhar para trs e dizer Oh, aquelas
coisas predisseram este casaco.
Que bem isso faz, ento? perguntei,
desgostoso.
O bem disso? ecoou ele. Ah. Nunca
havia pensado na coisa exatamente nesses termos.
O bem disso.
Caminhamos durante algum tempo em silncio.
Eu via o esforo que lhe causava acompanhar o
ritmo e desejei em vo que tivesse havido uma
maneira de ficar com um dos cavalos e faz-lo
passar pela rea de deslizamento.
Sabe ler o tempo, Fitz? Ou rastros de
animais?
Um pouco, o tempo. Sou melhor com os
rastros de animais.
Mas tanto em um como no outro, tem sempre
certeza de estar certo?
Nunca. No se sabe mesmo at que o dia
seguinte amanhece, ou se encurrala o animal.
a mesma coisa com a minha leitura do
futuro. Eu nunca sei Por favor, vamos parar,
mesmo que s por um instante. Preciso recuperar o
flego e beber um gole de gua.
Fiz com relutncia a sua vontade. Havia um
pedregulho coberto de musgo bem ao lado da
estrada e ele se sentou nele. No muito longe da
estrada havia sempre-vivas de um tipo que eu no
conhecia. Descansei os olhos olhando outra vez
para as rvores. Sa da estrada para me sentar ao
seu lado e fiquei instantaneamente consciente de
uma diferena. O funcionamento da estrada era
sutil como o zumbido de abelhas, mas quando
cessou de sbito, eu o senti. Bocejei para
desentupir os ouvidos e subitamente senti a cabea
mais clara.
Anos trs tive uma viso observou o
Bobo. Bebeu um pouco mais de gua, ento me
passou o odre. Vi um cervo negro erguendo-se
de um cho de pedra preta e brilhante. Quando vi
pela primeira vez as muralhas negras de Torre do
Cervo erguendo-se das guas, disse a mim mesmo:
Ah, era isso o que a viso queria dizer! Agora
vejo um jovem bastardo cujo smbolo um cervo
caminhando por uma estrada feita de pedra preta.
Talvez fosse esse o significado do sonho. No sei.
Mas o meu sonho foi devidamente registrado e um
dia, nos anos que viro, os eruditos concordaro
sobre o que significou. Provavelmente depois de
voc e eu estarmos mortos h muito tempo.
Fiz uma pergunta que h muito me incomodava.
Panela diz que existe uma profecia sobre a
minha filha a filha do Catalisador
De fato existe confirmou calmamente o
Bobo.
Ento acha que Moli e eu estamos
condenados a perder Urtiga para o trono dos Seis
Ducados?
Urtiga. Sabe, gosto do nome dela. Muito,
mesmo.
No respondeu minha pergunta, Bobo.
Pergunte-me de novo daqui a vinte anos.
Essas coisas so to mais fceis quando se olha
para trs. O olhar de soslaio que ele me deu me
disse que no diria mais nada sobre esse assunto.
Tentei uma nova ttica.
Ento voc veio, de to longe, para que os
Seis Ducados no cassem diante dos Navios
Vermelhos.
Ele me lanou um olhar estranho, ento sorriu
como se estivesse espantado.
assim que voc v as coisas? Que fazemos
tudo isso para salvar os seus Seis Ducados?
Quando assenti, ele sacudiu a cabea. Fitz, Fitz.
Eu vim salvar o mundo. A queda dos Seis Ducados
diante dos Navios Vermelhos no passa da
primeira pedrinha da avalanche. Voltou a
respirar fundo. Sei que os Navios Vermelhos
parecem um desastre suficiente para voc, mas a
dor que trazem ao seu povo no passa de uma
espinha nas ndegas do mundo. Se isso fosse tudo,
se no passasse de um grupo de brbaros
capturando terra de outros, no seria mais do que o
funcionamento normal do mundo. No. Eles so a
primeira mancha de veneno que se dissemina por
um riacho. Fitz, ser que me atrevo a lhe dizer
isto? Se falharmos, a disseminao ser rpida. O
forjamento ganhar razes como um costume, no,
como um divertimento para as classes altas. Veja
Majestoso e a sua Justia do Rei. Ele j
sucumbiu. D prazer ao seu corpo com drogas e
insensibiliza a alma com os seus divertimentos
selvagens. Sim, e espalha a doena pelos que o
rodeiam, at que eles deixam de obter satisfao
de uma competio de habilidades que no faa
correr sangue, at que os jogos s sejam divertidos
se houver vidas dependendo do resultado. O
prprio valor da vida corrompido. A escravido
se espalha, pois se se aceita tirar a vida de um
homem por divertimento, quo mais sensato tir-
la por lucro?
A sua voz crescera em fora e paixo enquanto
falava. Agora ficou de repente sem flego e
inclinou-se para frente sobre os joelhos. Coloquei
uma mo no seu ombro, mas ele apenas sacudiu a
cabea. Passado um momento, endireitou-se.
Declaro que conversar com voc mais
cansativo do que caminhar. Acredite na minha
palavra, Fitz. Por piores que sejam os Navios
Vermelhos, eles so amadores e experimentadores.
Tive vises daquilo em que o mundo se torna no
ciclo em que eles prosperam. Juro que no ser
neste ciclo.
Levantou-se com um suspiro e me ofereceu o
cotovelo. Dei-lhe o brao e continuamos a
caminhada. Ele me dera muito em que pensar, e
pouco falei. Aproveitei a paisagem que se
suavizava para caminhar ao lado da estrada e no
nela. O Bobo no protestou contra o terreno
irregular.
medida que a estrada mergulhava cada vez
mais profundamente no vale, o dia ficava mais
quente e a folhagem aumentava. Ao fim da tarde, o
terreno tornara-se de tal forma brando que
conseguimos erguer a tenda no s fora da estrada,
mas a boa distncia dela. Antes da hora de deitar,
mostrei a Panela a minha soluo para o seu jogo,
e ela acenou como se estivesse bastante satisfeita.
Comeou imediatamente a preparar um novo
quebra-cabeas. Eu a detive.
Acho que no vou precisar disso esta noite.
Estou ansioso para dormir de verdade.
Est? Ento no deve estar ansioso para
acordar de novo.
Fiz uma expresso chocada.
Ela continuou a arrumar as peas.
Voc um contra trs, e esses trs so um
crculo observou com mais suavidade. E
possvel que esses trs sejam quatro. Se os irmos
de Majestoso so capazes de usar o Talento, o
mais provvel que ele tenha alguma capacidade.
Com a ajuda dos outros, ele poderia aprender a
lhes emprestar a sua fora. Aproximou-se mais
de mim e abaixou a voz, embora os outros
estivessem todos ocupados com tarefas do
acampamento. Voc sabe que possvel matar
com o Talento. Ele desejaria fazer menos do que
isso a voc?
Mas se eu dormir fora da estrada
comecei.
A fora da estrada como o vento que sopra
da mesma forma sobre todos. Os maus desejos de
um crculo so como uma flecha que tem apenas
voc como alvo. Alm disso, no h maneira de
voc poder dormir e no se preocupar com a
mulher e a criana. E cada vez que voc pensa
nelas, possvel que o crculo as veja atravs dos
seus olhos. Precisa encher a mente de forma a
expuls-las.
Inclinei a cabea sobre o pano de jogo.
Acordei na manh seguinte com o rudo da chuva
nas peles da tenda. Fiquei algum tempo deitado
ouvindo-o, grato por no ser neve, mas com receio
de um dia de caminhada na chuva. Senti os outros
acordando minha volta com uma intensidade que
no sentia h dias. Senti-me quase como se tivesse
descansado. Do outro lado da tenda, Esporana
observou com uma voz sonolenta:
Ontem caminhamos do inverno para a
primavera.
Ao meu lado, o Bobo mexeu-se, coou-se e
resmungou:
Tpica menestrel. Exagera tudo.
Vejo que voc est se sentindo melhor
retorquiu Esporana.
Olhos-de-Noite enfiou a cabea na tenda, com
um coelho ensanguentado balanando na boca. E a
caa tambm melhor.
O Bobo sentou-se enrolado nos cobertores.
Ele est se oferecendo para dividir aquilo?
O que eu mato seu, irmozinho.
De algum modo, doa ouvi-lo chamar o Bobo de
irmo. Especialmente quando voc j comeu
dois esta manh?, perguntei-lhe com sarcasmo.
Ningum o obrigou a ficar na cama toda a
madrugada.
Permaneci em silncio por um momento. No
tenho sido grande companheiro para voc
ultimamente, desculpei-me.
Eu compreendo. J no somos s ns dois.
Agora somos alcateia.
Tem razo, disse-lhe com humildade. Mas esta
noite pretendo caar com voc.
O Sem Cheiro tambm pode vir, se quiser. Ele
podia ser um bom caador, se tentasse, pois o
cheiro nunca o denunciaria.
Ele no s est se oferecendo para dividir a
caa como est convidando voc para caar
conosco esta noite.
Eu esperara que o Bobo recusasse. Mesmo em
Cervo, ele nunca mostrara qualquer inclinao
pela caa. Em vez disso, inclinou gravemente a
cabea na direo de Olhos-de-Noite e lhe disse:
Ficaria honrado.
Levantamos acampamento depressa e logo
seguamos caminho. Tal como antes, caminhei ao
lado da estrada e no nela, e por esse motivo senti
a cabea desanuviada. O Bobo comera vorazmente
no desjejum e agora parecia quase ele mesmo
outra vez. Caminhou pela estrada, mas ao alcance
da voz, e manteve uma alegre tagarelice comigo o
dia inteiro. Olhos-de-Noite foi percorrendo o
caminho adiante e ento retornando para atrs de
ns, como sempre, frequentemente a galope. Todos
parecamos infectados pelo alvio do tempo mais
quente. A chuva ligeira logo deu lugar a um sol
que espreitava por entre as nuvens, e a terra
exalava vapores odorferos. S a minha ansiedade
constante com a segurana de Moli e um medo
incmodo de que a qualquer momento Vontade e o
seu bando pudessem atacar a minha mente
evitaram que fosse um dia encantador. Panela me
advertira contra deixar que minha mente se
prendesse em ambos os problemas, por poder
assim atrair a ateno do crculo, de modo que
carreguei o medo dentro de mim como uma pedra
fria e negra, dizendo resolutamente a mim mesmo
que no havia absolutamente nada que eu pudesse
fazer.
Estranhos pensamentos me vieram mente o dia
inteiro. No conseguia ver o boto de uma flor sem
me perguntar se Moli a teria usado para dar cheiro
ou colorir o seu trabalho. Dei por mim querendo
saber se Bronco seria to bom com um machado
de cortar lenha como era com um machado de
batalha, e se isso seria o suficiente para salv-los.
Se Majestoso sabia sobre eles, enviaria soldados
sua procura. Poderia saber sobre eles sem saber
exatamente onde se encontravam?
Pare com isso! repreendeu-me Panela
rispidamente, com uma pequena pancada do seu
basto. Regressei de um salto conscincia
completa. O Bobo nos lanou um olhar curioso.
Parar com o qu? perguntei.
Pare de pensar esses pensamentos. Sabe o
que quero dizer. Se estivesse pensando em alguma
outra coisa, eu no teria conseguido me aproximar
de voc por trs. Encontre a disciplina.
Foi o que fiz, e, relutantemente, desenterrei o
problema da noite anterior para me concentrar
nele.
Assim melhor disse-me Panela com uma
calma aprovao.
O que voc estava fazendo l atrs?
perguntei de sbito. Achei que voc e Esporana
estavam levando as jepas.
Chegamos a uma bifurcao na estrada. E a
outro pilar. Antes de continuarmos, queremos que
a rainha o veja.
O Bobo e eu nos apressamos adiante, deixando
Panela regressar para falar do entroncamento a
Kettricken. Descobrimos Esporana sentada em
alguns baixos-relevos ornamentais na beira da
estrada enquanto as jepas pastavam com apetite. O
entroncamento da estrada estava assinalado por um
grande crculo pavimentado, rodeado por um
prado aberto, com outro monlito no seu centro.
Eu esperaria que ele estivesse coroado com musgo
ou marcado com lquens. Contudo, a pedra negra
estava lisa e limpa, exceto pela poeira depositada
pelo vento e pela chuva. Fiquei fitando a pedra,
estudando os glifos, enquanto o Bobo andava por
perto. Estava me perguntando se alguns dos sinais
naquela pedra seriam iguais aos sinais que eu
copiara para o mapa quando o Bobo exclamou:
Havia uma aldeia aqui antigamente! Fazia
grandes gestos com as mos.
Eu ergui o olhar e vi aquilo a que ele se referia.
Havia aberturas no prado onde o capim mirrado
escondia antigas passagens pavimentadas. Uma via
larga e reta, que antigamente podia ter sido uma
rua, corria pelo prado e desaparecia sob as
rvores. Projees cobertas de musgo e
trepadeiras eram tudo o que restava das paredes
de chals e lojas que existiram ao longo dela.
rvores cresciam onde antes haviam ardido
lareiras e jantado pessoas. O Bobo encontrou um
grande bloco de pedra e subiu nele para olhar em
todas as direes.
Pode ter sido uma vila de bom tamanho, a
certa poca.
Fazia sentido. Se aquela estrada tivesse sido a
estrada comercial que eu vira nas minhas vises
de Talento, ento era natural que uma vila ou um
mercado brotasse em cada entroncamento.
Conseguia imagin-la em um brilhante dia de
primavera, quando os agricultores traziam ovos
frescos e verduras primaveris para a vila e os
teceles penduravam no exterior os seus novos
artigos para tentar os compradores, e
Durante meio instante, o crculo em volta do
pilar encheu-se de gente. A viso comeava e
terminava nas pedras do pavimento. Somente
dentro do poder da pedra negra as pessoas riam,
gesticulavam e negociavam umas com as outras.
Uma garota coroada com um tranado de
trepadeira verde atravessou a multido, olhando
para trs por cima do ombro, para algum. Juro
que ela cruzou o olhar comigo e piscou para mim.
Pensei ouvir o meu nome ser chamado e virei a
cabea. Num estrado encontrava-se uma figura
vestida com um traje leve que reluzia com o brilho
do fio de ouro. Ela usava uma coroa de madeira
dourada decorada com cabeas de galo e penas de
cauda astuciosamente esculpidas e pintadas. O seu
cetro no passava de um espanador, mas ela
gesticulava com ele de um modo rgio, como se
estivesse proclamando algum decreto. No crculo
minha volta, as pessoas irromperam em
gargalhadas. S consegui ficar olhando para a sua
pele de um branco de gelo e olhos sem cor. Ela
olhou diretamente para mim.
Esporana me deu um tapa com fora. A minha
cabea estalou o pescoo com a fora do seu
golpe. Olhei-a, espantado, com sangue
acumulando-se na minha boca onde os dentes
haviam cortado a bochecha. Ela voltou a erguer o
punho cerrado e percebi que ela no me
esbofeteara. Afastei-me depressa, agarrando-lhe
no pulso enquanto o punho passava por mim.
Pare com isso! gritei, zangado.
Pare voc com isso! arquejou. E
faa com que ela tambm pare! Fez um gesto
furioso para onde o Bobo continuava empoleirado
na sua pedra, congelado na representao artificial
de uma esttua. No respirava, nem piscava. Mas
enquanto eu observava, ele inclinou-se lentamente,
tombando como uma pedra.
Esperei que ele transformasse a queda em um
salto mortal, para aparecer subitamente em p,
como to frequentemente fizera quando divertia a
corte do Rei Sagaz. Porm, ele se estatelou no
capim do prado e ficou imvel.
Fiquei atordoado por um momento. Ento corri
at ele. Peguei o Bobo por baixo dos braos e o
arrastei para longe do crculo negro e da pedra
preta onde subira. Algum instinto me fez lev-lo
para uma sombra e encost-lo no tronco de um
carvalho vivo.
V buscar gua! ordenei a Esporana, e as
suas censuras e agitao cessaram. Correu para as
jepas carregadas e trouxe um odre.
Coloquei os dedos ao longo da garganta do
Bobo e senti a sua vida pulsando ali com um ritmo
regular. Os seus olhos estavam apenas meio
fechados e ele parecia estar atordoado. Chamei
pelo seu nome e lhe dei tapinhas no rosto at que
Esporana regressou com a gua. Destampei o odre
e deixei que um jato de gua fria escorresse pelo
rosto do Bobo. Durante algum tempo, no houve
resposta. Ento ele arquejou, expeliu gua pelo
nariz e endireitou-se de repente. Os seus olhos
estavam vazios. Ento o seu olhar cruzou-se com o
meu e ele deu um grande sorriso.
Que gente, e que dia! Foi o anncio do
drago de Realder, e ele havia prometido que me
levaria De repente, franziu o cenho e olhou
em volta, confuso. Desvanece, desvanece como
um sonho, deixando para trs menos do que a sua
sombra
Panela e Kettricken subitamente tambm estavam
conosco. Esporana falou tudo o que se passara
enquanto eu ajudava o Bobo a beber um pouco de
gua. Quando ela terminou, Kettricken fez uma
expresso grave, mas foi Panela quem nos
desancou.
O Profeta Branco e o Catalisador! gritou,
descontente. melhor cham-los como so, o
Parvo e o Idiota. De todas as coisas descuidadas e
tolas que podiam fazer! Ele no tem treino nenhum,
como se proteger do crculo?
Sabe o que aconteceu? perguntei,
interrompendo o sermo.
Eu bem, claro que no. Mas posso
suspeitar. A pedra onde ele subiu deve ser uma
pedra de Talento, o mesmo material da estrada e
dos pilares. E desta vez capturou vocs dois de
algum modo com o seu poder em vez de apenas
voc.
Sabia que isso podia acontecer? No
esperei pela resposta. Por que no nos avisou?
Eu no sabia! retorquiu ela, e ento
acrescentou em tom de culpa. S suspeitava, e
nunca pensei que qualquer um de vocs fosse tolo
o suficiente para
No importa! o Bobo interrompeu. De
repente riu e levantou-se, afastando o meu brao.
Oh, isto! Isto algo que eu no sinto h anos,
desde que era criana. A certeza, o poder. Panela!
Gostaria de ouvir um Profeta Branco falar? Ento
escutem isto com ateno, e fiquem contentes como
eu estou. No s estamos onde devemos estar,
estamos quando devemos estar. Todas as
confluncias coincidem, aproximamo-nos cada vez
mais do centro da teia. Voc e eu. Agarrou
subitamente a minha cabea e encostou a testa
minha. At somos quem devemos ser!
Soltou-me de sbito e afastou-se rodopiando. Deu
o salto mortal que eu esperara h pouco, caiu de
p, fez uma profunda mesura e voltou a soltar uma
sonora gargalhada exultante. Todos ficamos
olhando-o boquiabertos.
Voc corre grande perigo! disse-lhe
Panela com severidade.
Eu sei replicou ele, quase com
sinceridade, e ento acrescentou: Tal como eu
disse. Exatamente onde precisamos estar. Fez
uma pausa, ento me perguntou, de sbito: Viu
a minha coroa? No era magnfica? Pergunto-me
se serei capaz de esculpi-la de memria.
Eu vi a coroa dos galos eu disse
lentamente. Mas no sei o que pensar de nada
disso.
No sabe? Ele inclinou a cabea na minha
direo, ento deu um sorriso de piedade. Oh,
Fitzy-Fitz, eu explicaria se pudesse. No que
queira guardar segredos, mas estes segredos
desafiam a possibilidade de serem contados em
meras palavras. So mais do que meia sensao,
um agarrar do que est certo. Pode confiar em mim
quanto a isto?
Voc est vivo de novo eu disse com
espanto. No via tal luz nos seus olhos desde os
dias em que ele fazia o Rei Sagaz berrar de riso.
Sim disse ele com suavidade. E
quando terminarmos, prometo que voc tambm
estar.
As trs mulheres estavam paradas, trespassando-
nos com os olhos e excludas. Quando olhei para a
indignao no rosto de Esporana, para a censura
no de Panela e para a exasperao no de
Kettricken, de sbito fui obrigado a sorrir. Atrs
de mim, o Bobo soltou um risinho abafado. E por
mais que tentssemos, no conseguimos explicar
exatamente o que acontecera de uma forma que
fosse satisfatria para elas. Apesar disso,
perdemos bastante tempo tentando.
Kettricken pegou os dois mapas e os consultou.
Panela insistiu em me acompanhar quando eu levei
o meu mapa at o pilar central para comparar os
glifos que havia nele com os do mapa. Partilhavam
alguns sinais, mas o nico que Kettricken
reconheceu foi aquele ao qual j dera nome antes.
Pedra. Quando me ofereci relutantemente para ver
se aquele pilar poderia me transportar como o
outro, Kettricken recusou de forma enftica. Tenho
vergonha de admitir que senti um grande alvio.
Comeamos juntos, e pretendo que
terminemos juntos disse ela num tom sombrio.
Compreendi que suspeitava de que o Bobo e eu
estivssemos lhe ocultando alguma coisa.
Ento o que prope? perguntei-lhe com
humildade.
O que sugeri primeiro. Vamos seguir a velha
estrada que avana por entre as rvores. Parece
bater com o que est marcado aqui. No podemos
levar mais do que dois dias de marcha para chegar
ao fim da estrada. Especialmente se partirmos
agora.
E sem mais anncio do que aquele, levantou-se e
estalou a lngua para as jepas. A lder veio
imediatamente at ela e o resto dos animais entrou
obedientemente em fila atrs dela. Fiquei vendo os
seus longos passos ritmados enquanto ela os
conduzia ao longo da estrada sombreada.
Bem, andem, vocs dois! ordenou Panela
ao Bobo e a mim. Sacudiu o basto e eu quase
suspeitei de que desejava poder ir nos aoitando
com ele, como se fssemos ovelhas desgarradas.
Mas o Bobo e eu entramos obedientes em fila atrs
das jepas, deixando Esporana e Panela nos seguir.
Naquela noite, o Bobo e eu deixamos o abrigo
da tenda e fomos com Olhos-de-Noite. Tanto
Panela como Kettricken tiveram dvidas quanto
sensatez disso, mas eu lhes assegurara de que
agiria com toda a cautela. O Bobo prometera no
me perder de vista. Panela rolara os olhos ao
ouvir isto, mas nada dissera. Era claro que ainda
suspeitavam que ambos fssemos idiotas, mas nos
deixaram partir mesmo assim. Esporana
permaneceu num silncio amuado mas, como no
havamos discutido, supus que o seu rancor tinha
outra fonte. Ao nos afastarmos da fogueira,
Kettricken disse em voz baixa:
Vigie-os, lobo e Olhos-de-Noite
respondeu com uma sacudida de cauda.
Olhos-de-Noite nos levou rapidamente para
longe da estrada coberta de capim e para os
montes arborizados. A estrada andara nos
conduzindo firmemente para baixo em direo a
uma regio mais abrigada. As matas atravs das
quais nos movamos eram compostas por bosques
abertos de carvalho com largos prados entre eles.
Vi sinais de javalis selvagens, mas me senti
aliviado quando no encontramos nenhum. Em vez
de javalis, o lobo encontrou e abateu dois coelhos
que, benevolentemente, permitiu que eu
carregasse. Voltando ao acampamento por um
caminho indireto, chegamos a um riacho. A gua
estava gelada e doce e agrio crescia denso ao
longo de uma margem. O Bobo e eu apanhamos
peixe at ficarmos com as mos e os braos
entorpecidos pela gua fria. No momento em que
eu tirava da gua um ltimo peixe, a cauda que ele
sacudia salpicou o entusistico lobo. Este afastou-
se dos salpicos com um salto e tentou me morder,
em reprimenda. O Bobo encheu outra mo de gua,
brincando, e a atirou no lobo. Olhos-de-Noite
saltou, de mandbulas escancaradas para
abocanh-la. Momentos depois, estvamos os trs
envolvidos em uma batalha de gua, mas eu fui o
nico a cair no riacho quando o lobo saltou sobre
mim. Tanto o Bobo como o lobo estavam rindo
com gosto quando eu sa cambaleando de dentro
dgua, ensopado e enregelado. Dei por mim rindo
tambm. No conseguia me lembrar da ltima vez
que simplesmente rira alto de algo to simples.
Voltamos tarde ao acampamento, mas com carne
fresca, peixe e agrio para partilhar.
Havia uma pequena e bem-vinda fogueira
ardendo fora da tenda. Panela e Esporana j
haviam feito mingaus para a nossa refeio, mas
Panela ofereceu-se para cozinhar de novo para
aproveitar a comida fresca. Enquanto ela a
preparava, Esporana me encarou at eu perguntar:
O que ?
Como foi que vocs ficaram to molhados?
perguntou.
Oh. No riacho onde pegamos os peixes.
Olhos-de-Noite me empurrou para a gua. Dei-
lhe um empurro de passagem com o joelho
enquanto me dirigia para a tenda. Ele fingiu
morder a minha perna.
E a Boba tambm caiu?
Estvamos jogando gua um no outro
admiti com um ar irnico. Sorri-lhe, mas ela no
respondeu. Em vez de sorrir, soltou uma pequena
bufada, como se fosse desdenhosa. Encolhi os
ombros e entrei na tenda. Kettricken ergueu os
olhos do mapa para me olhar de relance, mas nada
disse. Vasculhei a minha trouxa e encontrei roupas
que estavam secas, embora no limpas. Ela tinha
as costas viradas para mim, de modo que mudei de
roupa depressa. Ns havamos nos acostumado a
conceder uns aos outros a privacidade de ignorar
essas coisas.
FitzCavalaria disse ela de sbito em uma
voz que exigia a minha ateno.
Enfiei a camisa pela cabea abaixo e a abotoei.
Sim, minha rainha? Fui me ajoelhar ao seu
lado, pensando que ela queria me consultar a
respeito do mapa. Porm, em vez disso colocou-o
de lado e virou-se para mim. Os seus olhos azuis
prenderam-se nos meus com firmeza.
Somos uma pequena companhia e estamos
todos dependentes uns dos outros disse-me de
repente. Qualquer tipo de contenda dentro do
nosso grupo serve os objetivos do nosso inimigo.
Esperei, mas ela nada mais disse.
No compreendo por que a senhora est me
dizendo isso disse humildemente, por fim.
Ela suspirou e sacudiu a cabea.
Temi que no compreendesse. E eu talvez
faa mais mal do que bem ao falar do assunto.
Esporana sente-se atormentada pelas atenes que
voc concede ao Bobo.
Fiquei sem fala. Kettricken me encarou com um
olhar azul, ento voltou a afastar os olhos de mim.
Ela acredita que o Bobo uma mulher e que
esta noite voc teve um encontro com ela. um
desgosto para ela que voc a desdenhe to
completamente.
Encontrei a lngua.
Senhora minha rainha, eu no desdenho de
Dona Esporana. A minha indignao me tornara
formal. Na verdade, ela quem tem evitado a
minha companhia e mantido uma distncia entre
ns desde que descobriu que eu sou Manhoso e
mantenho um vnculo com o lobo. Respeitando os
seus desejos, no lhe impus a minha amizade. E
quanto ao que ela diz do Bobo, decerto que a
senhora deve achar isso to ridculo quanto eu.
Devo? perguntou-me Kettricken com
suavidade. Tudo o que posso dizer com
verdade que sei sobre isso que ele no um
homem como os outros.
No posso discordar disso eu disse em
voz baixa. Ele nico entre todas as pessoas
que eu conheci.
No pode mostrar alguma gentileza a
Esporana, FitzCavalaria? perguntou Kettricken
em um sbito tom exasperado. No peo que a
corteje, s que no permita que ela seja dilacerada
pelo cime.
Apertei os lbios, forcei os sentimentos a
descobrir uma resposta corts.
Minha rainha, eu oferecerei a ela, como
sempre fiz, a minha amizade. Ela nos ltimos
tempos poucos sinais me deu de querer mesmo
isso, o que dir de mais. Porm, no tocante a esse
assunto, eu no desdenho nem dela, nem de
nenhuma outra mulher. O meu corao j est
entregue. No mais certo dizer que eu desdenho
Esporana do que dizer que a senhora me desdenha
porque o seu corao est cheio com Lorde
Veracidade.
Kettricken me lanou um olhar estranhamente
sobressaltado. Por um momento, pareceu
perturbada. Ento baixou os olhos para o mapa que
ainda segurava.
como eu temia. S tornei as coisas piores
por falar com voc. Estou to cansada, Fitz. O
desespero no me larga o corao. Ter Esporana
de mau humor para mim como areia raspando em
carne viva. Apenas procurei endireitar as coisas
entre vocs. Peo-lhe perdo se me intrometi. Mas
voc ainda um jovem formoso, e no ser a
ltima vez que ter preocupaes deste tipo.
Formoso? Soltei uma sonora gargalhada,
ao mesmo tempo incrdula e amarga. Com esta
cara marcada e corpo cheio de cicatrizes?
Assombra os meus pesadelos a ideia de que
quando Moli me veja de novo ela se afaste de mim
horrorizada. Formoso. Desviei o olhar dela,
com a garganta de repente apertada demais para
falar. No era tanto que me doesse a minha
aparncia, mas o temor que sentia de que Moli
tivesse um dia de olhar para as minhas cicatrizes.
Fitz disse Kettricken em voz baixa. Essa
voz era de repente a de uma amiga, no da rainha.
Falo a voc como mulher, para lhe dizer que,
embora tenha cicatrizes, voc est longe de ser a
criatura grotesca que parece acreditar que . Voc
ainda um jovem formoso, em coisas que nada
tm a ver com o seu rosto. E se o meu corao no
estivesse cheio com Lorde Veracidade, eu no
desdenharia voc. Estendeu uma mo e
percorreu com dedos frios o velho corte na minha
bochecha, como se o seu toque pudesse apag-lo.
Meu corao se virou no meu peito, um eco da
paixo por ela que Veracidade deixara incrustada
em mim, amplificado pela gratido por ela me
dizer tal coisa.
A senhora bem merecedora do amor do meu
senhor disse-lhe com sinceridade e um corao
cheio.
Oh, no olhe para mim com os olhos dele
disse ela dolorosamente. Levantou-se de sbito,
apertando o mapa ao peito como se fosse um
escudo, e saiu da tenda.
CAPTULO 30

Jardim de Pedra

Torre de Metim, uma fortaleza muito pequena na


costa de Cervo, caiu pouco antes de Majestoso se
coroar Rei dos Seis Ducados. Muitas aldeias
foram destrudas naquela poca de terror, e
nunca foi feita uma verdadeira contagem de
todas as vidas perdidas. Pequenas fortalezas
como Metim eram alvos frequentes para os
Navios Vermelhos. A sua estratgia era atacar
aldeias simples e as fortalezas menores para
enfraquecer de forma geral as linhas defensivas.
Lorde Bronze, a cargo de quem estava a Torre de
Metim, era um velho, mas apesar disso saiu
frente dos seus homens na defesa do seu pequeno
castelo. Infelizmente, os pesados impostos
destinados proteo geral da linha costeira
haviam lhe exaurido os recursos j h algum
tempo, e as defesas de Torre de Metim
encontravam-se em mau estado. Lorde Bronze foi
um dos primeiros a cair. Os Navios Vermelhos
tomaram a fortaleza quase com facilidade e a
reduziram com fogo e espada ao monte de
detritos que hoje.

Ao contrrio da estrada do Talento, a estrada por


onde viajamos no dia seguinte sofrera a completa
devastao do tempo. Tendo sido sem dvida
antigamente uma larga via pblica, fora estreitada
pelas incurses da floresta at se transformar em
pouco mais do que uma trilha. Embora me
parecesse quase uma descontrao marchar por
uma estrada que no ameaasse roubar a minha
mente a todo o momento, os outros resmungaram
contra os montculos, razes elevadas, galhos
cados e outros obstculos que tivemos de transpor
o dia inteiro. Guardei para mim os meus
pensamentos e apreciei o espesso musgo que
cobria a superfcie outrora empedrada, a sombra
cheia de galhos das rvores de folhas em boto
que se estendiam em arcadas sobre a estrada, e a
corrida ocasional de animais em fuga atravs da
vegetao rasteira.
Olhos-de-Noite estava no seu elemento,
correndo frente e depois galopando de volta para
junto de ns, para ento seguir a trote com ar
importante ao lado de Kettricken durante algum
tempo. Ento partia de novo para fazer
reconhecimento do terreno. A certa altura, veio at
mim e o Bobo a grande velocidade, de lngua
pendurada, para anunciar que naquela noite
iramos caar porco selvagem, pois havia
abundncia de rastros desses animais. Eu transmiti
isso ao Bobo.
No perdi nenhum porco selvagem. Portanto,
no irei procura deles respondeu ele com
altivez. Eu estava bastante de acordo com os seus
sentimentos. A cicatriz na perna de Bronco me
deixara mais do que desconfiado dos grandes
animais providos de presas.
Coelhos, sugeri a Olhos-de-Noite. Vamos caar
coelhos.
Coelhos para coelhos, fungou ele com desdm,
e saiu correndo de novo.
Ignorei o insulto. O dia estava mesmo com a
frescura agradvel para caminhar e os cheiros da
floresta verdejante eram para mim como voltar
para casa. Kettricken avanava nossa frente,
perdida nos seus pensamentos, enquanto Panela e
Esporana nos seguiam, envolvidas em conversa.
Panela ainda tendia a caminhar mais devagar,
embora a velha parecesse ter ganhado resistncia e
fora desde que a nossa viagem comeara. Mas
elas estavam a uma distncia confortvel de ns
quando perguntei ao Bobo em voz baixa:
Por que deixa Esporana pensar que voc
uma mulher?
Ele virou-se para mim, mexeu as sobrancelhas e
me soprou um beijo.
E no sou, belo principezinho?
Estou falando srio censurei-o. Ela
pensa que voc uma mulher e que est
apaixonado por mim. Acha que tivemos um
encontro ontem noite.
E no tivemos, meu acanhadinho? Lanou-
me um olhar ultrajantemente lbrico.
Bobo eu disse, num aviso.
Ah. Ele suspirou de sbito. A verdade
talvez seja que eu temo mostrar a ela a minha
prova, para que da em diante ela no ache todos
os homens uma desiluso. Indicou a si mesmo
com um gesto significativo.
Olhei-o firmemente, at que ele ficou srio.
O que importa o que ela pensa? Deixe-a
pensar o que quer se lhe seja mais fcil de
acreditar.
O que quer dizer?
Ela precisava de algum a quem fazer
confidncias e, durante algum tempo, escolheu a
mim. Talvez lhe fosse mais fcil fazer isso se
acreditasse que eu tambm sou uma mulher.
Voltou a suspirar. Essa uma coisa com a qual,
em todos os anos que passei entre a sua gente,
nunca consegui me habituar. A grande importncia
que vocs do ao sexo das pessoas.
Bem, importante comecei.
Besteira! exclamou. Mera especulao,
no fim das contas. Por que importante?
Encarei-o, sem conseguir encontrar palavras.
Tudo me parecia to bvio que nem precisava ser
dito. Aps algum tempo, disse:
No podia simplesmente dizer a ela que voc
um homem e deixar que o assunto morra?
Isso dificilmente faria com que ele morresse,
Fitz respondeu ele judiciosamente. Passou por
cima de uma rvore cada e esperou que eu o
seguisse. Porque ento ela teria de saber por
que motivo, se sou um homem, no a desejo. Teria
de ser uma falha em mim, ou algo que eu veria
como uma falha nela. No. No acho que alguma
coisa precise ser dita a esse respeito. Esporana, no
entanto, tem a fraqueza do menestrel. Ela pensa
que tudo no mundo, por mais privado que seja,
deve ser tema de discusso. Ou, melhor ainda, ser
transformado em uma cano. Ah, sim!
Fez uma sbita pose no meio do caminho
florestal. A postura lembrava to habilmente
Esporana quando se preparava para cantar que eu
fiquei horrorizado. Olhei para trs, para onde ela
se encontrava, ao mesmo tempo que o Bobo se
lanava numa sbita e vigorosa cano:

Oh, quando o Bobo mija


Que carta tira do baralho?
Se lhe tirarmos as calas
Ter furo ou penduricalho?

Os meus olhos saltaram de Esporana para o


Bobo. Ele fez uma mesura, um embelezamento da
elaborada mesura que com frequncia indicava o
fim das atuaes da menestrel. Eu queria ao
mesmo tempo gargalhar e me enfiar em um buraco.
Vi Esporana enrubescer e comear a avanar, mas
Panela agarrou sua manga e disse algo com
severidade. Ento ambas me fitaram, furiosas. No
era a primeira vez que uma das brincadeiras do
Bobo havia me embaraado, mas aquela foi uma
das que mostraram um fio mais cortante. Fiz um
gesto impotente a elas, ento me virei para o
Bobo. Ele seguia s cambalhotas pelo caminho
adiante. Apressei-me para alcan-lo.
Nunca para para pensar que pode ferir os
sentimentos dela? perguntei-lhe, zangado.
Pensei tanto nisso quanto ela pensou na
possibilidade de tal alegao poder ferir os meus.
Ele virou-se subitamente para mim, sacudindo
um longo dedo. Admita. Voc fez aquela
pergunta sem um pensamento sequer para a
possibilidade de poder ferir a minha vaidade.
Como voc se sentiria se eu exigisse provas de
que um homem? Ah! Seus ombros caram de
sbito e ele pareceu perder toda a energia. Que
coisa em que desperdiar palavras, com tudo o
mais que temos de enfrentar. Deixe isso, Fitz, que
eu tambm deixo. Deixe que ela se refira a mim
como ela tanto quanto queira. Eu farei o melhor
que puder para ignorar.
Eu devia ter abandonado o assunto. No o fiz.
s que ela pensa que voc me ama tentei
explicar.
Ele me lanou um olhar estranho.
E amo.
Estou falando do amor entre um homem e uma
mulher.
Ele respirou fundo.
E como isso?
Refiro-me Fiquei quase furioso por ele
fingir no me compreender. A nos deitarmos
juntos. A
E assim que um homem ama uma mulher?
interrompeu-me ele de repente. Deitando-se
com ela?
uma parte! Senti-me defensivo de
sbito, mas no poderia explicar por qu.
Ele ergueu uma sobrancelha para mim e disse
calmamente:
Est confundindo de novo especulao com
amor.
mais do que especulao! gritei-lhe.
Uma ave levantou voo de sbito, grasnando. Olhei
para Panela e Esporana, que trocavam olhares
confusos.
Entendo disse ele. Pensou durante algum
tempo enquanto eu avanava a passos largos sua
frente pelo caminho. Depois gritou de trs de mim:
Diga-me, Fitz, voc amava Moli ou aquilo que
ela tinha debaixo da saia?
Agora foi a minha vez de me sentir insultado.
Mas no ia permitir que ele me desorientasse at
me reduzir ao silncio.
Eu amo Moli e tudo o que faz parte dela
declarei. Odiei o calor que me subiu s bochechas.
Pronto, j disse retorquiu o Bobo como se
eu tivesse comprovado aquilo que ele pretendia
dizer. E eu o amo e tudo o que faz parte de
voc. Inclinou a cabea, e as palavras seguintes
continham um desafio. E voc no me
corresponde?
Esperei. Desejei desesperadamente nunca ter
comeado aquela discusso.
Voc sabe que eu o amo disse por fim, a
contragosto. Depois de tudo o que aconteceu
entre ns, como voc pode perguntar? Mas eu o
amo como um homem ama outro homem Aqui
o Bobo me lanou um olhar zombeteiro. Ento um
brilho sbito surgiu nos seus olhos, e eu
compreendi que ele estava prestes a me fazer
alguma coisa de horrvel.
Saltou para cima de um tronco cado. Desse
ponto elevado, lanou a Esporana um olhar
triunfante e gritou, dramaticamente:
Ele diz que me ama! E eu o amo! Ento
saltou para o cho com uma ruidosa gargalhada e
correu minha frente pela trilha afora.
Passei a mo pelo cabelo e ento passei
lentamente por cima do tronco. Ouvi Panela rindo
e os comentrios zangados de Esporana. Caminhei
em silncio pela floresta, desejando ter tido o bom
senso de manter a boca fechada. Tinha certeza de
que Esporana estava fervendo de fria. J era ruim
o suficiente que nos ltimos tempos no tivesse
quase nada para me dizer. Eu aceitara que ela
considerava a minha Manha como algo prximo de
uma abominao. No era a primeira a ficar
consternada com ela; pelo menos mostrava alguma
tolerncia por mim. Mas agora, a ira que trazia em
si teria uma conotao mais pessoal. Mais uma
pequena perda do pouco que me restava. Uma
parte de mim sentia muitas saudades da
proximidade que tnhamos partilhado durante
algum tempo. Eu sentia falta do conforto humano
de t-la dormindo encostada s minhas costas, ou
de repente pegar o meu brao enquanto
caminhvamos. Achava que tinha fechado o
corao a tais necessidades, mas de sbito senti
falta desse calor simples.
Como se esse pensamento tivesse aberto uma
brecha nas minhas muralhas, de repente pensei em
Moli. E em Urtiga, ambas em perigo por minha
causa. Sem aviso, meu corao subiu garganta.
No posso pensar nelas, avisei-me, e lembrei a
mim mesmo que no havia nada que eu pudesse
fazer. No havia maneira de avis-las sem tra-las.
No havia nenhum modo de poder chegar at elas
antes que os capangas de Majestoso o fizessem.
Tudo o que eu podia fazer era confiar no forte
brao direito de Bronco e me agarrar esperana
de que Majestoso no sabia realmente onde elas
estavam.
Saltei por cima de um crrego gotejante e
encontrei o Bobo minha espera do outro lado.
Ele nada disse quando se ps a caminhar ao meu
lado. A alegria parecia t-lo abandonado.
Lembrei a mim mesmo que quase no sabia onde
Moli e Bronco se encontravam. Oh, conhecia o
nome de uma aldeia prxima mas, enquanto
guardasse isso para mim, elas estavam em
segurana.
O que voc sabe, eu posso saber.
O que foi que voc disse? perguntei ao
Bobo com inquietao. As suas palavras haviam
respondido to precisamente aos meus
pensamentos que senti um arrepio na espinha.
Eu disse que o que voc sabe, eu posso saber
repetiu ele, distrado.
Por qu?
Precisamente o que eu penso. Por que eu
gostaria de saber o que voc sabe?
No. O que eu quis dizer foi por que voc
disse isso?
Na verdade, Fitz, no fao ideia. As palavras
apareceram na minha cabea e eu as disse.
comum que eu diga coisas em que no pensei bem.
Isto foi dito quase como um pedido de
desculpa.
Assim como eu concordei. Nada mais lhe
disse, mas aquilo me incomodou. Desde o
incidente junto ao pilar, ele parecia ser muito mais
o Bobo de que me recordava dos tempos de Torre
do Cervo. Eu achava este sbito crescimento da
confiana e do nimo bem-vindo, mas tambm me
preocupava que ele pudesse ter confiana demais
em que os acontecimentos flussem como deviam.
Tambm me lembrava de que a sua lngua afiada
estava sempre mais disposta a revelar conflitos do
que a resolv-los. Eu mesmo sentira o seu gume
mais de uma vez, mas no contexto da corte do Rei
Sagaz, fora algo que eu esperava. Ali, num grupo
to pequeno, parecia cortar mais profundamente.
Perguntei-me se haveria alguma maneira de eu
conseguir suavizar o seu humor de navalha. Sacudi
a cabea para mim mesmo, ento desenterrei
resoluto o ltimo problema do jogo de Panela e o
mantive diante da minha mente mesmo enquanto
ultrapassava com dificuldade detritos da floresta e
evitava galhos pendentes.
Enquanto o fim da tarde se passava, o nosso
caminho nos levou cada vez mais para o interior
de um vale. Em certo ponto, o antigo caminho nos
forneceu uma vista daquilo que se estendia abaixo
de ns. Vislumbrei os galhos pendentes,
carregados de contas verdes, de salgueiros cheios
de folhas recm-nascidas e os troncos tingidos de
rosa das btulas-brancas presidindo um prado de
capim alto. Mais adiante, vi as espigas castanhas e
verticais das taboas do ano anterior, mais abaixo
no vale. O exuberante cheiro dos capins e das
samambaias predizia um pntano com tanta certeza
quanto o cheiro verde da gua estagnada. Quando
o lobo regressou da patrulha molhado at o flanco,
soube que tinha razo.
No demoramos muito para chegar a um local
onde um enrgico riacho levara havia muito tempo
uma ponte e devorara a estrada de ambos os lados
da ponte. Agora corria brilhante e prateado por um
leito pedregoso; mas as rvores cadas em ambas
as margens atestavam a sua fria em tempos de
cheia. Um coro de rs silenciou-se de sbito
quando nos aproximamos. Saltei de pedra em
pedra para ultrapass-lo com os ps secos. No
tnhamos avanado muito quando um segundo
curso dgua cruzou o nosso caminho. Dada a
opo entre ps molhados ou botas molhadas,
preferi os primeiros. A gua estava glida. A
nica coisa boa foi ela ter adormecido os meus
ps, fazendo com que eu no sentisse as pedras no
leito do riacho. Calcei as botas de novo na outra
margem. O nosso pequeno grupo tornara-se mais
compacto quando o caminho ficara mais difcil.
Agora continuamos a marchar em silncio e juntos.
Melros cantavam e os primeiros insetos zumbiam.
H tanta vida aqui disse Kettricken em
voz baixa. As suas palavras pareceram pairar no
ar doce e parado. Dei por mim concordando com a
cabea. Tanta vida nossa volta, quer verde, quer
animal. Enchia-me o sentido da Manha e parecia
pairar no ar como uma nvoa. Aps as rochas
estreis das montanhas e a deserta estrada do
Talento, aquela abundncia de vida era
estonteante.
Ento vi o drago.
Estaquei e ergui os braos em um gesto sbito
de quietude e silncio que todos pareceram
reconhecer. Todos os olhares dos meus
companheiros seguiram o meu. Esporana arquejou
e os pelos do dorso do lobo se eriaram. Ficamos
encarando a criatura, to imveis quanto ela.
Dourado e verde, o drago encontrava-se
estendido sob as rvores, sua sombra salpicada.
Estava afastado o suficiente da trilha para eu s
conseguir ver manchas do seu corpo por entre as
rvores, mas essas j eram bastante
impressionantes. A sua imensa cabea, to longa
quanto o corpo de um cavalo, repousava
profundamente afundada no musgo. O nico olho
que eu conseguia ver estava fechado. Uma grande
crista de escamas-penas, com as cores do arco-
ris, caa frouxa em volta da sua garganta. Tufos
semelhantes acima de cada olho pareceriam quase
cmicos, exceto que no podia haver nada cmico
em uma criatura to imensa e estranha. Vi um
ombro coberto de escamas e, serpenteando entre
duas rvores, um pedao de cauda. Folhas antigas
estavam empilhadas sua volta como uma espcie
de ninho.
Aps um longo momento de respirao presa,
trocamos olhares. Kettricken levantou as
sobrancelhas na minha direo, mas eu lhe
respondi com um minsculo encolher de ombros.
Eu no fazia a mnima ideia de que perigos aquilo
poderia representar, nem de como enfrent-los.
Muito lenta e silenciosamente, desembainhei a
espada. De sbito, pareceu uma arma muito
estpida. Mais valia enfrentar um urso com uma
faca de mesa. No sei quanto tempo o nosso
tabuleiro se manteve inalterado. Pareceu um tempo
infinito. Os meus msculos estavam comeando a
doer com a tenso de permanecer imvel. As jepas
mexiam-se impacientemente, mas mantinham os
seus lugares na fila desde que Kettricken
mantivesse o lder parado. Por fim, Kettricken fez
um pequeno movimento silencioso e o avano do
nosso grupo recomeou, lentamente.
Quando j no conseguia ver o animal
adormecido, comecei a respirar de um modo um
pouco mais fcil. A reao veio com igual rapidez.
Minha mo doeu de agarrar o cabo da espada, e
todos os meus msculos se transformaram de
repente em borracha. Afastei o cabelo suado do
rosto. Virei-me para trocar um olhar aliviado com
o Bobo, mas o encontrei olhando para alm de
mim com olhos incrdulos. Virei-me depressa e,
como um bando de pssaros, os outros imitaram o
meu gesto. De novo paramos, silenciosamente
petrificados, para fitar um drago adormecido.
Aquele estava estendido sombra intensa de
sempre-vivas. Assim como o primeiro,
encontrava-se bem aninhado em musgo e detritos
da floresta. Mas a semelhana terminava a. A sua
longa cauda sinuosa estava enrolada e o envolvia
como uma grinalda e o flanco suavemente
escamoso brilhava com um marrom rico e
acobreado. Vi asas bem dobradas contra o seu
corpo estreito. O longo pescoo estava dobrado
por cima do seu dorso como o de um ganso
adormecido, e a forma da cabea tambm a
assemelhava de uma ave, at mesmo a um bico
de um falco. Um chifre brilhante espiralava a
partir da testa da criatura, malignamente afiado na
ponta. Os quatro membros dobrados debaixo dele
mais lembravam uma cora do que um lagarto.
Chamar as duas criaturas de drages parecia uma
contradio, mas eu no tinha outra palavra para
seres como aqueles.
Mais uma vez ficamos em silncio e fitando-o,
enquanto as jepas se mexiam inquietas. De repente,
Kettricken falou.
No acho que sejam seres vivos. Acho que
so esculturas habilidosas em pedra.
O meu sentido da Manha me dizia o contrrio.
Eles esto vivos! preveni-a num sussurro.
Comecei a sondar na direo de um deles, mas
Olhos-de-Noite quase entrou em pnico. Puxei de
volta o toque mental. Dormem muito
profundamente, como se ainda estivessem
hibernando por causa do tempo frio. Mas eu sei
que esto vivos.
Enquanto Kettricken e eu conversvamos, Panela
foi decidir por si prpria. Vi os olhos de
Kettricken se arregalarem e me virei para olhar
para o drago, temendo que estivesse acordando.
Mas o que vi foi Panela pousando a sua mo seca
na testa imvel da criatura. A mo pareceu tremer
quando ela o tocou, mas depois sorriu, quase com
tristeza, e afagou com a mo o chifre em espiral.
To belo refletiu. To habilidosamente
feito.
Virou-se para todos ns.
Reparem como as trepadeiras do ano passado
se enroscam em volta da ponta da cauda. Vejam
como est soterrada pelas folhas cadas de uma
vintena de anos. Ou talvez de uma vintena de
vintenas. E, no entanto, cada uma das minsculas
escamas ainda brilha, to perfeitamente
esculpida! Esporana e Kettricken avanaram
com exclamaes de espanto e deleite, e logo se
agacharam junto da escultura, chamando a ateno
uma da outra para detalhes atrs de detalhes. As
escamas individuais de cada asa, as voltas
graciosamente fluidas das espirais da cauda e
todas as outras maravilhas da concepo do artista
foram admiradas. Contudo, enquanto elas
apontavam e tocavam to avidamente o drago, o
lobo e eu nos mantivemos afastados. Pelos
eriaram-se ao longo de todo o dorso de Olhos-
de-Noite. Ele no rosnou; em vez disso, soltou um
ganido to agudo que foi quase um assobio. Aps
um momento, percebi que o Bobo no se juntara s
mulheres. Virei-me para encontr-lo olhando o
drago de longe, com a expresso que um avarento
teria ao olhar uma pilha de ouro maior ainda do
que os seus sonhos. Havia nos seus olhos o mesmo
tipo de dilatao. At as suas bochechas plidas
pareciam conter um rubor rosado.
Fitz, venha ver! s pedra fria, to bem
esculpida que parece viva. E olhe! Ali est outro,
com a galhada de um veado e o rosto de um
homem! Kettricken ergueu uma mo para
apontar e eu vislumbrei mais uma figura deitada
dormindo no cho da floresta. Todas abandonaram
a primeira efgie para ir examinar a nova, soltando
de novo exclamaes sobre a sua beleza e
detalhes.
Avancei com ps de chumbo, o lobo encostado
em mim. Quando parei junto do drago chifrudo,
consegui ver com os meus prprios olhos o
indistinto saco de teias de aranha preso cova de
um p com casco. As costelas da criatura no se
moviam com o bombear de quaisquer pulmes e eu
no sentia absolutamente nenhum calor corporal.
Por fim, forcei-me a colocar uma mo na pedra
fria e esculpida.
uma esttua disse em voz alta, como que
para me obrigar a acreditar no que o meu sentido
da Manha negava. Olhei em volta, para alm do
homem-veado que Esporana ainda admirava, para
onde Panela e Kettricken estavam sorrindo junto a
ainda outra escultura. O seu corpo de javali estava
deitado de lado e as presas que se projetavam do
seu focinho tinham o comprimento da minha altura.
Em todos os aspectos, assemelhava-se ao porco da
floresta que Olhos-de-Noite matara, exceto pelo
seu imenso tamanho e as asas bem aconchegadas
ao seu flanco.
Vejo pelo menos uma dzia dessas coisas
anunciou o Bobo. E, atrs daquelas rvores,
descobri outra escultura esculpida como a que
vimos antes. Levou uma mo curiosa pele da
escultura, depois quase se retraiu diante do contato
frio.
No consigo acreditar que so pedra sem
vida disse-lhe.
Eu tambm nunca tinha visto detalhes to
realistas em uma escultura concordou ele.
No tentei lhe dizer que ele tinha me entendido
mal. Em vez disso, fiquei refletindo sobre uma
coisa. Ali, eu sentia vida, mas havia apenas pedra
fria sob a minha mo. Fora o oposto com os
Forjados; era bvio que uma vida selvagem lhes
motivava os corpos, mas o meu sentido da Manha
os via como nada mais do que pedra fria. Tentei
achar algum tipo de ligao, mas encontrei apenas
essa estranha comparao.
Olhei em torno de mim, mas encontrei os meus
companheiros espalhados pela floresta, indo de
escultura em escultura e chamando-se uns aos
outros, deleitados, quando descobriam novos
drages sob hera trepadeira ou submersos em
folhas cadas. Fui lentamente atrs deles. Parecia
que aquele podia ser o destino assinalado no
mapa. Era quase certo que sim, se o antigo
cartgrafo acertara na escala. E no entanto, por
qu? O que havia de importante naquelas esttuas?
Vira de imediato o significado da cidade; podia ter
sido o lar original dos Antigos. Mas aquilo?
Apressei-me em seguir Kettricken. Encontrei-a
perto de um touro alado. Ele dormia, com as
pernas dobradas sob o corpo, os poderosos
ombros apertados, o focinho pesado cado sobre
os joelhos. Era uma rplica perfeita de um touro
em todos os detalhes, da vasta extenso dos chifres
cauda terminada num tufo de pelos. Os cascos
fendidos estavam enterrados sob a terra da
floresta, mas eu no duvidava de que se achariam
l. Kettricken esticara os braos para abarcar a
largura dos chifres da escultura. Tal como todas as
outras, possua asas, dobradas em repouso sobre o
seu largo dorso negro.
Posso ver o mapa? perguntei-lhe, e ela
saiu do devaneio com um sobressalto.
J verifiquei disse-me ela em voz baixa.
Estou convencida de que esta a rea marcada.
Passamos pelos restos de duas pontes de pedra.
Isso corresponde ao que se v no mapa. E o sinal
na coluna que o Bobo encontrou corresponde ao
que voc copiou na cidade para este destino. Acho
que estamos naquilo que antigamente foi a margem
de um lago. Pelo menos assim que tenho lido o
mapa.
A margem de um lago. Assenti para mim
mesmo enquanto refletia sobre o que o mapa de
Veracidade me mostrara. Talvez. Talvez tenha
se assoreado e transformado em pntano. Se for
assim, o que significam todas estas esttuas?
Ela indicou a floresta com um gesto vago.
Algum tipo de jardim ou parque, talvez?
Olhei em volta e sacudi a cabea.
No como nenhum jardim que eu j tenha
visto. As esttuas parecem aleatrias. Um jardim
no deveria possuir unidade e um tema? Pelo
menos foi o que Pacincia me ensinou. Aqui s
vejo esttuas deitadas, sem sinais de caminhos,
canteiros, ou Kettricken? As esttuas
representam todas criaturas adormecidas?
Ela franziu o cenho para si mesma por um
momento.
Creio que sim. E acho que so todas aladas.
Talvez seja um cemitrio sugeri.
Talvez haja sepulturas por baixo destas
criaturas. Talvez isto seja algum tipo estranho de
herldica, que assinala os locais de enterro de
diferentes famlias.
Kettricken olhou em volta, ponderando.
Talvez assim seja. Mas por que isso estaria
assinalado no mapa?
Por que um jardim estaria? contrapus.
Passamos o resto da tarde explorando a rea.
Encontramos muitos outros animais. Eram de todos
os tipos e em uma variedade de estilos, mas todos
eram alados e estavam dormindo. E estavam ali
havia muito, muito tempo. Um exame mais atento
me mostrou que aquelas grandes rvores haviam
crescido em volta das esttuas, e no as esttuas
que foram colocadas em volta das rvores.
Algumas estavam quase capturadas pelo musgo
invasor e pelo bolor das folhas. De uma, pouco
restava vista, com exceo de um grande focinho
cheio de dentes que se projetava de um pedao de
terreno pantanoso. Os dentes descobertos
brilhavam, prateados, e as pontas eram aguadas.
Ainda assim, no descobri um nico sequer
que estivesse lascado ou fendido. Todos parecem
to perfeitos como no dia em que foram criados. E
tambm no consigo compreender como as cores
foram introduzidas na pedra. No parece tinta ou
manchas, tampouco parece desbotada pelos anos.
Estava expondo lentamente os meus pensamentos
aos outros, que se sentavam ao redor da fogueira
naquela noite. Tentava passar o pente de
Kettricken pelo meu cabelo molhado. No fim da
tarde, eu me afastara dos outros para me lavar por
completo pela primeira vez desde que deixramos
Jhaampe. Tambm tentei lavar a roupa, at certo
ponto. Quando voltei ao acampamento, descobri
que todos os outros haviam tido ideias muito
semelhantes. Panela estava estendendo roupas
molhadas em um drago para secar, com um ar
mal-humorado. As bochechas de Kettricken
estavam mais rosadas do que de costume e ela
voltara a prender o cabelo molhado em uma trana
apertada. Esporana parecia ter esquecido a ira que
sentira contra mim. Na verdade, parecia ter se
esquecido por completo do resto de ns. Fitava as
chamas da fogueira, com uma expresso meditativa
no rosto, e eu quase conseguia ver a cascata de
palavras e notas que ela conjugava. Perguntei-me
como seria, se era como resolver os quebra-
cabeas do jogo que Panela preparava para mim.
Parecia estranho observar o seu rosto, sabendo
que uma cano se desenrolava na sua mente.
Olhos-de-Noite veio encostar a cabea no meu
joelho. No gosto de me encovilar no meio destas
pedras vivas, confidenciou-me.
Realmente parece que a qualquer momento
vo acordar observei.
Panela sentara-se com um suspiro na terra ao
meu lado. Sacudiu lentamente a velha cabea.
Acho que no disse em voz baixa. Soou
quase como se sofresse por isso.
Bem, uma vez que no conseguimos
desvendar o seu mistrio, e o que resta da estrada
terminou aqui, vamos deix-las amanh e
continuaremos a nossa viagem anunciou
Kettricken.
O que voc far perguntou o Bobo em voz
baixa se Veracidade no estiver no ltimo
destino do mapa?
No sei confidenciou-nos Kettricken,
tambm em voz baixa. E no me preocuparei
com isso at que acontea. Ainda me resta uma
ao a tomar; at que a esgote, no me
desesperarei.
Ocorreu-me ento que ela falava como se
estivesse pensando em um jogo, com uma ltima
jogada que ainda podia levar vitria. Ento
decidi que eu passara tempo demais concentrado
nos problemas do jogo de Panela. Soltei um ltimo
n do cabelo e o puxei para trs em um rabo de
cavalo.
Venha caar comigo antes que a ltima luz
desaparea, sugeriu o lobo.
Acho que esta noite vou caar com Olhos-de-
Noite anunciei enquanto me levantava e
espreguiava. Ergui uma sobrancelha para o Bobo,
mas ele parecia perdido em pensamentos e no
respondeu. Enquanto me afastava da fogueira,
Kettricken me perguntou:
Est seguro, sozinho?
Estamos longe da estrada do Talento. Este foi
o dia mais pacfico que eu passei em algum tempo.
Sob certos aspectos.
Podemos estar longe da estrada do Talento,
mas ainda estamos no corao de uma terra outrora
ocupada por utilizadores do Talento. Eles
deixaram o seu toque por todo lado. No pode
dizer, enquanto caminhar por estas colinas, que
est a salvo. No devia ir sozinho.
Olhos-de-Noite soltou um ganido do fundo da
garganta, ansioso para ir embora. Eu ansiava por ir
caar com ele, por emboscar e perseguir, por me
mover pela noite sem quaisquer pensamentos
humanos. Mas no faria pouco caso do aviso de
Panela.
Eu vou com ele ofereceu-se de sbito
Esporana. Levantou-se, limpando as mos nos
quadris. Se algum alm de mim pensou que aquilo
era estranho, ningum demonstrou. Esperava pelo
menos uma despedida zombadora do Bobo, mas
ele continuava fitando a escurido. Esperava que
ele no estivesse adoecendo outra vez.
Importa-se que ela v conosco?, perguntei a
Olhos-de-Noite.
Em resposta, ele soltou um pequeno suspiro de
resignao e afastou-se da fogueira a trote. Segui-o
mais devagar e Esporana me seguiu.
No devamos alcan-lo? perguntou-me
ela vrios momentos mais tarde. A floresta e a
penumbra que se adensava estavam se fechando
nossa volta. Olhos-de-Noite no estava vista em
lado algum, mas a verdade que eu no precisava
v-lo.
Falei, no em um sussurro, mas muito baixo.
Quando caamos, ns nos movemos
independentemente um do outro. Quando um de ns
espanta alguma caa, o outro aproxima-se
depressa, ou para intercept-la, ou para se juntar
perseguio.
Os meus olhos haviam se ajustado escurido.
A busca nos levou para longe das esttuas, para
uma noite de floresta inocente dos trabalhos do
homem. Os cheiros primaveris eram fortes e as
canes das rs e insetos estavam a toda a nossa
volta. Logo cheguei a uma trilha de caa e comecei
a segui-la. Esporana veio atrs de mim, no em
silncio, mas tambm no de um modo
desajeitado. Quando nos movemos pela floresta,
seja de dia, seja de noite, podemos nos mover com
ela ou contra ela. H pessoas que sabem como
faz-lo por instinto; outras nunca aprendem.
Esporana movia-se com a floresta, abaixando-se
sob galhos pendentes e rodeando outros enquanto
abramos caminho pela noite. No tentava abrir
caminho fora atravs dos matagais que
encontrvamos e dobrava o corpo para evitar que
ele se prendesse nos galhos cheios de brotos.
Voc est to consciente dela que no veria um
coelho se pisasse nele!, repreendeu-me Olhos-de-
Noite.
Nesse momento, uma lebre saltou de um arbusto
bem ao lado do caminho que eu seguia. Saltei atrs
dela, curvando-me para segui-la pela trilha afora.
Ela era mais rpida do que eu, mas eu sabia que o
mais provvel era que descrevesse um crculo. E
sabia que Olhos-de-Noite tambm estava se
deslocando rapidamente para intercept-la. Ouvi
Esporana correndo atrs de mim, mas no tinha
tempo para pensar nela, concentrado como estava
em manter a lebre ao alcance da vista, enquanto
ela se esquivava em torno de rvores e por baixo
de razes pontudas. Por duas vezes quase a
apanhei, e por duas vezes a lebre se afastou de
mim. Porm, da segunda vez que o fez, correu
direto para as mandbulas do lobo. Ele saltou,
prendeu-a ao solo com as patas da frente e ento
agarrou o seu pequeno crnio com as mandbulas.
Quando se levantou, deu uma forte sacudida,
quebrando o pescoo dela.
Eu estava abrindo a barriga da lebre e
derramando as entranhas para o lobo quando
Esporana nos alcanou. Olhos-de-Noite abocanhou
as tripas com satisfao. Vamos procurar outra,
sugeriu, e desapareceu rapidamente na noite.
Ele larga a carne para voc dessa maneira?
perguntou Esporana.
Ele no a larga. Deixa que eu a carregue.
Sabe que agora a melhor hora para caar, ento
espera matar de novo depressa. Se no matar, sabe
que eu manterei a carne em segurana para ele e
que a dividiremos mais tarde. Prendi a lebre
morta no cinto. Sa noite adentro, com o corpo
quente batendo de leve na minha coxa enquanto
caminhava.
Oh. Esporana me seguiu. Pouco depois,
como que em resposta a algo que eu tivesse dito,
observou: Eu no acho ofensivo o seu vnculo
de Manha com o lobo.
Nem eu retorqui em voz baixa. Havia algo
na sua escolha de palavras que me irritava.
Continuei espreita na trilha, de olhos e ouvidos
alertas. Conseguia ouvir o suave pat, pat, pat das
patas de Olhos-de-Noite esquerda e minha
frente. Esperei que ele assustasse caa na minha
direo.
Pouco tempo depois, Esporana acrescentou:
E vou parar de chamar o Bobo de ela. Seja
do que for que eu suspeite.
Isso bom disse-lhe sem me
comprometer. No abrandei o passo.
Tenho grandes dvidas de que voc ser
grande coisa como caador esta noite.
Isso no por opo minha.
Eu sei.
Tambm quer que eu pea desculpa?
perguntou Esporana em uma voz baixa e tensa.
Eu h gaguejei, e me calei, sem saber
muito bem do que se tratava isso.
Ento muito bem disse ela, com uma voz
repleta de uma determinao glida. Peo
desculpas, Lorde FitzCavalaria.
Virei-me para ela.
Por que est fazendo isso? perguntei.
Falei com voz normal. Conseguia sentir Olhos-de-
Noite. Ele j estava no alto da colina, agora
caando sozinho.
A senhora minha rainha me pediu para parar
de semear a discrdia no grupo. Disse que Lorde
FitzCavalaria tinha muitos fardos que eu no podia
conhecer e no merecia tambm ser
sobrecarregado com a minha desaprovao
informou-me com cautela.
Perguntei-me quando tudo aquilo teria
acontecido, mas no me atrevi a perguntar.
Nada disso necessrio disse em voz
baixa. Senti-me estranhamente envergonhado,
como uma criana mimada que tivesse ficado
emburrada at as outras crianas cederem.
Respirei fundo, determinado a falar apenas com
honestidade e ver no que isso daria. No sei o
que pode ter feito voc retirar a sua amizade,
exceto ter lhe revelado a minha Manha. E tambm
no compreendo as suspeitas que voc tem sobre o
Bobo, ou o motivo pelo qual elas parecem
enfurec-la. Detesto estas dificuldades entre ns.
Gostaria que pudssemos ser amigos, como
ramos antes.
Ento voc no me despreza? Por ter dado
testemunho de que voc reconheceu a filha de Moli
como sua descendente?
Tateei dentro de mim procura dos sentimentos
perdidos. Passara-se muito tempo sem que sequer
pensasse nisso.
Breu j sabia sobre elas falei em voz
baixa. Ele teria encontrado um modo, mesmo se
voc no existisse. muito engenhoso. E eu
acabei compreendendo que voc no vive pelas
mesmas regras que eu.
Costumava viver disse ela em voz baixa.
H muito tempo. Antes da fortaleza ser
saqueada e eu ser abandonada como morta. Depois
disso, tornou-se difcil acreditar nas regras. Tudo
me foi roubado. Tudo o que era bom, e bonito, e
verdadeiro foi destrudo pelo mal, pela luxria e
pela ganncia. No. Por algo ainda mais ignbil do
que a luxria e a ganncia, por um impulso que eu
nem sequer conseguia entender. Os Salteadores,
mesmo enquanto me estupravam, pareciam no
obter qualquer prazer do ato. Pelo menos no o
tipo de prazer Eles zombavam da minha dor e
do modo como me debati. Os que observavam
riam enquanto esperavam sua vez. Ela estava
olhando para alm de mim, para a escurido do
passado. Creio que falava tanto consigo mesma
como comigo, procurando compreender algo que
desafiava o significado. Era como se fossem
empurrados, mas no por alguma luxria ou
ganncia que pudesse ser saciada. Era algo que
podiam fazer a mim, de modo que faziam. Eu
sempre acreditara, talvez infantilmente, que se
segussemos as regras estaramos protegidos, que
coisas como aquela no poderiam acontecer
conosco. Depois, eu me senti enganada. Tola.
Ingnua, por ter pensado que ideais podiam me
proteger. Honra, cortesia e justia Elas no so
reais, Fitz. Todos ns as fingimos e as erguemos
como escudos. Mas elas s defendem contra
pessoas que trazem os mesmos escudos. Contra
aqueles que as jogaram fora, no so escudo
algum, mas apenas armas adicionais para usar
contra as suas vtimas.
Senti-me tonto por um instante. Nunca ouvira
uma mulher falar de algo assim de uma forma to
impassvel. Geralmente, aquilo nem era
mencionado. Os estupros que ocorriam durante um
ataque, as gravidezes que podiam ocorrer, at as
crianas que mulheres dos Seis Ducados tinham de
Salteadores dos Navios Vermelhos eram
raramente mencionadas dessa forma. De repente
percebi que estvamos parados havia muito tempo.
O frio da noite de primavera estava chegando at
mim. Vamos voltar ao acampamento sugeri
de repente.
No disse ela, seca. Ainda no. Tenho
medo de chorar. E se chorar, prefiro que seja no
escuro.
A escurido j era quase total. Mas eu a levei
at uma trilha de caa mais larga e encontramos
um tronco onde pudemos nos sentar. nossa volta,
as rs e insetos enchiam a noite com canes de
acasalamento.
Voc est bem? perguntei depois de
estarmos h algum tempo sentados em silncio.
No. No estou disse ela de forma sucinta.
Preciso fazer voc compreender. Eu no vendi
barato a sua filha, Fitz. No o tra casualmente. A
princpio, nem pensei nisso dessa forma. Quem
no gostaria que a filha se tornasse uma princesa e,
a seu tempo, uma rainha? Quem no desejaria
roupas encantadoras e uma boa casa para a sua
filha? No pensei que voc ou a sua mulher vissem
isso como um infortnio que se abateria sobre ela.
Moli minha esposa eu disse em voz
baixa, mas creio realmente que ela no me ouviu.
Ento, mesmo depois de saber que no lhe
agradaria, fiz mesmo assim. Sabendo que com isso
ganharia um lugar aqui, ao seu lado, para
testemunhar seja o que for que voc vai fazer.
Vendo coisas estranhas sobre as quais nenhum
menestrel jamais cantou, como estas esttuas hoje.
Porque a minha nica chance de ter um futuro.
Preciso ter uma cano, preciso testemunhar algo
que me assegure para sempre um lugar de honra
entre os menestris. Algo que me garanta a sopa e
o vinho quando for velha demais para viajar de
castelo em castelo.
Voc no podia ter se contentado com um
homem com quem dividisse a vida e os filhos?
perguntei em voz baixa. Parece que voc no
tem problemas para atrair o olhar de um homem.
Certamente deve haver algum que
No h homem que queira casar com uma
mulher estril disse ela. A sua voz tornou-se
montona, perdendo a sua msica. Na queda de
Torre de Metim, Fitz, eles me deixaram como
morta. E eu fiquei ali entre os mortos, certa de que
morreria em breve, pois no conseguia imaginar
continuar a viver. minha volta ardiam edifcios,
pessoas feridas gritavam e eu sentia o cheiro de
carne se queimando Parou de falar. Quando
recomeou, a sua voz estava um pouco mais firme.
Mas no morri. O meu corpo era mais forte do
que a minha vontade. No segundo dia, arrastei-me
at a gua. Outros sobreviventes me encontraram.
Sobrevivi, e fiquei melhor do que muitos outros.
At dois meses mais tarde. Naquela altura, eu tinha
certeza de que o que me fora feito era pior do que
me matar. Sabia que esperava uma criana gerada
por uma daquelas criaturas.
Ento fui at uma curandeira, que me deu ervas
que no surtiram efeito. Fui at ela outra vez, e ela
me avisou, dizendo que, se as ervas no haviam
funcionado, era melhor que eu deixasse acontecer.
Mas eu fui at outra curandeira, que me deu uma
poo diferente. A poo me fez sangrar. Tirei a
criana de mim, mas a hemorragia no parou.
Voltei s curandeiras, a ambas, mas nenhuma pde
me ajudar. Disseram que pararia sozinha, com o
tempo. Porm, uma me disse que era provvel que
eu nunca mais tivesse outros filhos. A sua voz se
contraiu, ento tornou-se mais densa.
Eu sei que voc acha que promscuo o
modo como me deito com os homens. Mas depois
de se ter sido forada diferente. Para sempre.
Eu digo a mim mesma bem, sei que pode me
acontecer a qualquer momento. Assim, dessa
forma, pelo menos decido com quem e quando.
Nunca haver filhos para mim, logo nunca haver
um homem permanente. Ento por que eu no
poderia escolher o que posso ter? Voc me fez
questionar isso durante algum tempo, sabia? At
Olho de Lua. Olho de Lua demonstrou de novo que
eu tinha razo. E, de Olho de Lua, fui para
Jhaampe, sabendo que estava livre para fazer o
que quer que tivesse de fazer para assegurar a
minha sobrevivncia. Pois no haver homem e
filhos para cuidarem de mim quando eu estiver
velha. Sua voz tornou-se quebradia e irregular
quando disse: s vezes penso que teria sido
melhor se eles tivessem me forjado
No. Nunca diga isso. Nunca. Temia toc-
la, mas ela virou-se de repente e enterrou o rosto
contra mim. Passei um brao sua volta e percebi
que ela tremia. Senti-me obrigado a confessar
minha estupidez. Eu no havia compreendido.
Quando voc disse que os soldados de
Emaranhado haviam estuprado algumas das
mulheres No sabia que voc tinha sofrido isso.
Oh. Sua voz soava muito baixa. Pensei
que voc no tinha dado importncia. Ouvi dizer
em Vara que o estupro s incomoda as virgens e as
esposas. Pensei que voc talvez sentisse que, para
algum como eu, no era mais do que o merecido.
Esporana! Senti um acesso irracional de
fria por ela poder ter me julgado to desumano.
Depois pensei melhor. Eu vira as ndoas negras no
seu rosto. Por que no adivinhara? Nem sequer lhe
falara do modo como Emaranhado lhe quebrara os
dedos. Eu havia suposto que ela sabia como isso
me chocara, que sabia que fora a ameaa que
Emaranhado fizera de lhe causar mais dano que me
mantivera dominado. Eu achara que ela retirara a
sua amizade por causa do lobo. O que ela pensara
da minha distncia?
Eu trouxe muita dor sua vida confessei.
No pense que no conheo o valor das mos
de um menestrel. Ou que no me importo com a
violao do seu corpo. Se quiser falar disso, estou
pronto para escutar. s vezes, falar ajuda.
s vezes no ajuda contraps. A fora
com que me abraava aumentou de repente. No
dia em que voc se apresentou a todos ns e falou
com detalhes do que Majestoso lhe havia feito.
Sangrei por voc naquele dia. Isso no desfez nada
do que lhe foi feito. No. No quero falar nisso,
nem pensar nisso.
Levantei a sua mo e beijei suavemente os dedos
que haviam sido quebrados por minha causa.
No confundo o que lhe foi feito com o que
voc disse. Quando olho para voc, vejo
Esporana Cantodave, a menestrel.
Ela acenou com a cabea contra mim, e
compreendi que era como eu supusera. Ela e eu
partilhvamos desse medo. No queramos viver
como vtimas.
Eu nada mais disse depois disso, apenas fiquei
sentado ali. Ocorreu-me de novo que mesmo se
encontrssemos Veracidade, mesmo se por algum
milagre o seu regresso mudasse as mars da guerra
e nos transformasse em vencedores, para alguns a
vitria chegaria tarde demais. A minha estrada
fora longa e cansativa, mas eu ainda ousava
acreditar que no seu fim poderia haver uma vida
que fosse de minha escolha. Esporana nem isso
tinha. Por mais que fugisse para o interior, nunca
fugiria da guerra. Apertei-a mais e senti a sua dor
sendo drenada para dentro de mim. Depois de
algum tempo, o seu tremor parou.
J noite cerrada eu disse por fim.
melhor voltarmos para o acampamento.
Ela suspirou, mas se endireitou. Pegou a minha
mo. Comecei a lev-la de volta ao acampamento,
mas ela puxou a minha mo para trs.
Fique comigo disse ela simplesmente.
S por aqui, e s por agora. Com gentileza e
amizade. Para levar o o outro embora. D-me
isso de voc.
Eu a desejava. Desejava com um desespero que
nada tinha a ver com amor e at, creio, pouco tinha
a ver com luxria. Ela estava morna e viva, e teria
sido doce e simples conforto humano. Se eu
pudesse ter me deitado com ela, e de algum modo
pudesse me reerguer sem alteraes no modo
como pensava em mim mesmo e naquilo que sentia
por Moli, eu teria feito. Mas o que eu sentia por
Moli no era algo que s se aplicasse quando
estvamos juntos. Eu entregara a Moli esse direito
a mim; no podia rescindi-lo simplesmente porque
estvamos separados durante algum tempo. No
acho que houvesse palavras capazes de fazer
Esporana compreender que, ao escolher Moli, eu
no a estava rejeitando. Por isso, eu disse:
Olhos-de-Noite est vindo. Traz um coelho.
Esporana aproximou-se de mim. Passou uma
mo pelo meu peito, erguendo-a at o lado do meu
pescoo. Os seus dedos percorreram a linha do
meu maxilar e acariciaram a minha boca.
Mande-o embora disse ela em voz baixa.
No poderia mand-lo para to longe que ele
no soubesse de tudo o que ns partilhssemos
disse-lhe com sinceridade.
A sua mo no meu rosto ficou subitamente
imvel.
Tudo? perguntou. A sua voz estava cheia
de consternao.
Tudo. Ele aproximou-se e sentou-se ao nosso
lado. Outro coelho pendia da sua boca.
Estamos vinculados pela Manha. Partilhamos
tudo.
Ela tirou a mo do meu rosto e afastou-se de
mim. Fitou a silhueta escura do lobo.
Ento tudo aquilo que acabei de lhe dizer
Ele compreende sua maneira. No como
outro ser humano compreenderia, mas
Como Moli se sentia a esse respeito?
perguntou ela de sbito.
Respirei bem fundo. No esperara que a nossa
conversa desse aquela volta.
Ela nunca soube disse-lhe. Olhos-de-
Noite voltou para o acampamento. Segui-o mais
devagar. Atrs de mim veio Esporana.
E quando souber? pressionou ela. Vai
simplesmente aceitar esta partilha?
Provavelmente no resmunguei a
contragosto. Por que Esporana sempre me fazia
pensar em coisas que eu evitara considerar?
E se ela for-lo a escolher entre ela e o
lobo?
Estaquei por um instante. Depois recomecei a
andar, um pouco mais depressa. A pergunta
pairava minha volta, mas eu me recusava a
pensar nela. No podia ser, nunca poderia chegar a
isso. Mas uma voz murmurava dentro de mim: Se
contar a verdade a Moli, chegar a esse ponto.
Tem de ser.
Voc vai contar a ela, no vai?
Implacvel, Esporana me fez a pergunta da qual eu
me escondia.
No sei eu disse, sombrio.
Oh disse ela. Ento, passado algum tempo,
acrescentou: Quando um homem diz isso,
normalmente quer dizer No, no o farei, mas de
vez em quando brincarei com a ideia, para poder
fingir que um dia pretendo faz-lo.
Daria para voc se calar? No havia fora
nas minhas palavras.
Esporana me seguiu em silncio. Passado algum
tempo, observou:
No sei de quem sentir pena. Se de voc, ou
se dela.
De ambos, talvez sugeri eu com frieza.
No queria mais conversas sobre o assunto.
O Bobo estava de vigia quando regressamos ao
acampamento. Panela e Kettricken dormiam.
A caa foi boa? perguntou ele em tom de
camaradagem quando nos aproximamos.
Encolhi os ombros. Olhos-de-Noite j roa o
coelho que trouxera. Estava estendido, com ar
contente, aos ps do Bobo.
Boa o bastante. Ergui a lebre. O Bobo a
pegou de mim e a pendurou com indiferena na
estaca da tenda.
Desjejum disse-me calmamente. Os seus
olhos saltaram para o rosto de Esporana, mas se
viu que ela estivera chorando, no fez nenhum
gracejo sobre isso. No sei o que leu no meu rosto,
pois no fez qualquer comentrio. Ela me seguiu
para dentro da tenda. Descalcei as botas e me
afundei agradavelmente nos cobertores. Quando a
senti se ajeitar contra as minhas costas alguns
momentos mais tarde, no fiquei muito surpreso.
Decidi que isso queria dizer que me perdoara. No
tornou mais fcil adormecer.
No entanto, acabei adormecendo. Tinha erguido
as muralhas, mas de algum modo consegui arranjar
um sonho meu. Sonhei que estava sentado junto
cama de Moli e a vigiava enquanto ela e Urtiga
dormiam. O lobo estava aos meus ps, enquanto no
canto da chamin o Bobo se encontrava sentado
em um banco e balanava a cabea para si mesmo,
muito satisfeito. O pano do jogo de Panela estava
estendido na mesa, mas, em vez de pedras, havia
minsculas esttuas de drages variados, em preto
e branco. As pedras vermelhas eram navios e era a
minha vez de jogar. Tinha na mo a pea que podia
ganhar o jogo, mas s queria ver Moli dormir. Foi
quase um sonho pacfico.
CAPTULO 31

Casco-de-elfo

Existem algumas antigas Profecias Brancas


que tratam da traio do Catalisador. Colume, o
Branco, diz sobre este acontecimento: Pelo
amor ele trado, e o seu amor trado tambm.
Um escriba e profeta menos conhecido, Gant, o
Branco, fornece mais detalhes. O corao do
Catalisador desnudo a algum em quem ele
confia. Toda a confiana dada, e toda a
confiana trada. O filho do Catalisador
posto nas mos dos seus inimigos por algum
cujo amor e lealdade esto acima de todas as
dvidas. As outras profecias so mais evasivas,
mas em cada caso se infere que o Catalisador
trado por algum em quem confia
implicitamente.
No incio da manh seguinte, enquanto comamos
pedaos tostados de carne de coelho, Kettricken e
eu consultamos de novo o seu mapa. Quase j no
precisvamos faz-lo, de to bem que o
conhecamos. No entanto, era algo que podamos
estender nossa frente e para onde podamos
apontar enquanto discutamos as coisas. Kettricken
seguiu uma linha desbotada no pergaminho gasto.
Teremos de regressar coluna no crculo de
pedra, e ento seguir a estrada do Talento um
pouco mais. At o nosso destino final, creio.
No tenho grande vontade de caminhar de
novo por essa estrada disse-lhe com
honestidade. At caminhar ao lado dela me
desgasta. Mas suponho que no h como evit-lo.
Que eu saiba, no.
Ela estava preocupada demais para oferecer
muita compreenso. Olhei para a mulher. O cabelo
louro, que reluzira em outros tempos, era uma
curta trana desarrumada. O frio e o vento lhe
haviam marcado o rosto, rachando os seus lbios e
gravando finas rugas nos cantos dos seus olhos e
da boca, sem falar nas profundas rugas de
preocupao que trazia na testa e entre os olhos. A
sua roupa estava manchada pela viagem e puda. A
Rainha dos Seis Ducados nem como criada de
quarto seria achada satisfatria em Vaudefeira. De
sbito desejei ajud-la. No consegui pensar em
nenhuma maneira de faz-lo. Por isso, disse
apenas:
Chegaremos l, e encontraremos Veracidade.
Ela ergueu os olhos para encontrar os meus.
Tentou colocar f no olhar e na voz quando disse:
Sim, encontraremos. Ouvi apenas
coragem.
Havamos desmontado e movido tantas vezes o
acampamento que isso j no exigia quaisquer
pensamentos. Ns nos movamos como uma
unidade, quase como uma nica criatura. Como um
crculo, pensei comigo mesmo.
Como uma alcateia, corrigiu-me Olhos-de-
Noite. Veio empurrar a cabea contra a minha
mo. Fiz uma pausa e cocei longamente as suas
orelhas e a garganta. Ele fechou os olhos e jogou
as orelhas para trs, de prazer. Se a sua fmea
obrig-lo a me mandar embora, vou sentir muita
saudade disso.
Eu no vou deixar que isso acontea.
Acha que ela vai obrig-lo a escolher.
Eu me recuso a pensar nisso agora.
Ah! Deitou-se de lado, e ento rolou, ficando de
costas para que eu pudesse lhe coar a barriga.
Descobriu os dentes em um sorriso lupino. Voc
vive no agora e se recusa a pensar no que pode
vir a acontecer. Mas eu me vejo sem conseguir
pensar em muito mais alm do que pode vir a
acontecer. Esses tempos tm sido bons para mim,
irmo. Viver com outros, caar juntos, partilhar
comida. Mas a cadela uivadora tinha razo
ontem noite. preciso filhotes para fazer uma
alcateia. E o seu filhote
No posso pensar nisso neste momento.
Preciso pensar s no que tenho de fazer hoje
para sobreviver, e em tudo o que tenho de fazer
antes de poder ter esperana de ir para casa.
Fitz? Est bem?
Era Esporana, que viera me pegar pelo cotovelo
e dar uma pequena sacudida. Olhei para ela,
acordando do meu devaneio. A cadela uivadora.
Tentei no sorrir.
Estou timo. Estava com Olhos-de-Noite.
Oh. Ela olhou para o lobo, e a vi lutando
de novo para compreender o que ns
partilhvamos. Ento deixou o assunto de lado
com uma encolhida de ombros. Pronto para
partir?
Se todos os outros estiverem.
Parecem estar.
Foi ajudar Kettricken a carregar a ltima jepa.
Olhei em volta em busca do Bobo e o vi sentado
em silncio em cima da sua trouxa. A sua mo
estava levemente pousada em um dos drages de
pedra e ele tinha uma expresso distante no rosto.
Aproximei-me dele por trs, em silncio.
Voc est bem? perguntei em voz baixa.
Ele no saltou. Nunca se sobressaltava. Apenas
virou o seu olhar plido para se encontrar com o
meu. A expresso no seu rosto era um anseio
perdido, sem ter nela nenhum do seu habitual
esprito penetrante.
Fitz. Alguma vez j sentiu que estava se
lembrando de uma coisa, mas quando tentou
alcan-la no havia nada l?
s vezes respondi. Acho que isso
acontece com todo mundo.
No. Isto diferente insistiu ele em voz
baixa. Desde que eu fiquei de p naquela pedra
anteontem e vislumbrei de repente o antigo mundo
que existia aqui No paro de ter estranhas
meias-recordaes. Como ele. Afagou
gentilmente a cabea do drago, uma carcia de
amante na cabea reptiliana em forma de cunha.
Quase consigo me lembrar de conhec-lo.
Fitou-me de sbito com um olhar suplicante. O
que foi que voc viu, naquela poca?
Encolhi ligeiramente os ombros.
Era como uma praa de mercado, com lojas
em volta e gente exercendo os seus ofcios. Um dia
movimentado.
Voc me viu? perguntou ele num sussurro.
No tenho certeza. De repente me senti
muito desconfortvel falando sobre aquilo.
Onde voc estava, encontrava-se outra pessoa. Ela
era como voc, de certo modo. No tinha cor e
acho que se comportava como um bobo. Voc
falou sobre a coroa dela, com cabeas e caudas de
galo esculpidas.
Falei? Fitz, pouco me lembro do que disse
logo depois. S me lembro da sensao, e de quo
depressa ela desapareceu. Durante um breve
instante, estive ligado a tudo. Fui parte de tudo.
Foi maravilhoso, como sentir uma onda de amor
ou vislumbrar uma coisa perfeitamente bela, ou
Ficou sem palavras.
O Talento assim disse-lhe eu em voz
baixa. O que voc sentiu a atrao do
Talento. contra isso que um utilizador do
Talento precisa resistir constantemente, para no
ser levado por ele.
Ento aquilo era usar o Talento observou
para si mesmo.
Quando saiu daquele estado, voc estava
extasiado. Disse alguma coisa sobre o drago de
algum que voc devia apresentar. Aquilo fez
pouco sentido. Deixe-me pensar. O drago de
Realder. E ele havia prometido lev-lo para voar.
Ah. O meu sonho da noite passada. Realder.
Esse era o seu nome. Acariciou a cabea da
esttua enquanto falava. Quando o fez, aconteceu
uma coisa estranhssima. A minha noo de Manha
da esttua aumentou em uma onda e Olhos-de-
Noite veio de um salto se colocar ao meu lado,
com todos os pelos do dorso eriados. Sei que os
pelos no meu pescoo tambm se eriaram e
recuei, esperando que a esttua voltasse
subitamente vida. O Bobo nos lanou um olhar
confuso. O que h?
As esttuas parecem vivas para ns. Tanto a
Olhos-de-Noite quanto a mim. E quando voc
disse esse nome, ela quase pareceu despertar.
Realder repetiu o Bobo, experimentando.
Prendi a respirao quando ele pronunciou o
nome, mas no senti qualquer resposta. Ele me
olhou e sacudi a cabea. s pedra, Fitz. Pedra
fria e bela. Acho que os seus nervos talvez estejam
ficando flor da pele. Pegou o meu brao em
um gesto de camaradagem e nos afastamos das
esttuas, de volta trilha pouco ntida. Os outros
j estavam fora de vista, com exceo de Panela.
Ela estava parada, apoiada no basto e nos
encarando. Apertei o passo instintivamente.
Quando chegamos ao lugar onde ela esperava, ela
agarrou o meu outro brao, e ento fez um sinal
imperioso ao Bobo para avanar nossa frente.
Ns o seguimos, mas mais devagar. Quando ele j
estava a uma distncia considervel de ns, ela me
apertou o brao com uma mo de ao e perguntou:
Ento?
Por um instante, olhei-a sem expresso.
Ainda no descobri disse, num tom
apologtico.
Isso bvio disse ela com severidade.
Chupou os dentes por um momento, franziu o cenho
para mim, quase falou e ento sacudiu bruscamente
a cabea para si mesma. No largou o meu brao.
Durante a maior parte do resto do dia, enquanto
caminhava em silncio ao seu lado, ponderei sobre
o problema do jogo.
No acho que haja algo to entediante quanto
voltar atrs por um caminho j seguido quando se
est desesperado para chegar a algum lugar. Agora
que j no seguamos uma estrada antiga quase
invisvel por baixo da vegetao, seguamos o
caminho que ns mesmos j havamos pisado
atravs da floresta pantanosa e para cima, na
direo das colinas, e a velocidade ao partir era
maior do que fora a da chegada. Com a mudana
das estaes, a luz do dia se demorava por mais
tempo, e Kettricken nos manteve em marcha at o
limite do crepsculo. Foi assim que nos achamos a
apenas uma colina de distncia da praa de pedra
negra quando montamos o acampamento naquela
noite. Creio que foi por mim que Kettricken
decidiu acampar mais uma noite na estrada antiga.
Eu no tinha qualquer desejo de dormir mais perto
daquele entroncamento do que o necessrio.
Vamos caar?, perguntou Olhos-de-Noite assim
que o nosso abrigo ficou pronto.
Vou caar anunciei aos outros. Panela
ergueu um olhar desaprovador.
Fique bem longe da estrada do Talento
advertiu-me.
O Bobo me surpreendeu ao se levantar. Eu
vou com eles. Se o lobo no se importar.
O Sem Cheiro bem-vindo.
Pode vir conosco. Mas tem certeza de que se
sente forte o suficiente?
Se me cansar, posso voltar observou o
Bobo.
Quando nos afastamos para o interior do
crepsculo que se adensava, Kettricken estava
absorta no seu mapa e Panela encontrava-se de
vigia.
No demore, seno vou procur-lo
avisou-me ela enquanto eu me afastava. E fique
longe da estrada do Talento repetiu.
Em algum lugar acima das rvores navegava
uma lua cheia. A luz que vinha dela infiltrava-se e
serpenteava em cascatas prateadas atravs dos
galhos cobertos de folhas novas para iluminar o
nosso caminho. Durante algum tempo,
simplesmente viajamos juntos pelos bosques
agradavelmente abertos. Os sentidos do lobo
suplementavam os meus. A noite estava viva com
os cheiros de coisas em crescimento e os
chamados de minsculas rs e insetos noturnos. O
ar noturno possua um toque mais tonificante do
que o diurno. Descobrimos uma trilha de caa e a
seguimos. O Bobo acompanhou o nosso ritmo, sem
dizer uma palavra. Enchi os pulmes de ar e
depois suspirei. Apesar de todo o resto, ouvi-me
dizendo: isto bom.
Sim. . Vou ter saudades.
Sabia que ele estava pensando no que Esporana
dissera na noite anterior. No pensemos em
amanhs que podem nunca chegar. Vamos
apenas caar, sugeri, e foi o que fizemos. O Bobo
e eu nos mantivemos na trilha e o lobo penetrou na
floresta, para espantar caa na nossa direo.
Avanamos pela floresta, deslizando quase sem
rudo pela noite, com todos os sentidos alertas.
Deparei-me com um porco-espinho que rolava
pela noite, mas no tinha vontade de mat-lo a
pancadas, muito menos de esfol-lo com cuidado
antes de podermos comer. Naquela noite, queria
carne simples. Com grande dificuldade, convenci
Olhos-de-Noite a procurar comigo outras presas.
Se no encontrarmos mais nada, podemos sempre
vir busc-lo. Os porcos-espinhos no so
exatamente rpidos sobre as patas, observei.
Ele concordou a contragosto e nos colocamos
em movimento de novo. Na encosta aberta de uma
colina, ainda quente do sol, Olhos-de-Noite
detectou a sacudida de uma orelha e a cintilao
de um olho brilhante. Em dois pulos, estava em
cima do coelho. O salto espantou outro coelho que
fugiu na direo do topo da colina. Eu o persegui,
mas o Bobo gritou que ia voltar agora. No meio da
encosta, percebi que no ia apanhar o coelho.
Estava cansado do longo dia de caminhada e o
coelho temia pela sua vida. Quando cheguei ao
topo da colina, ele no estava vista. Parei,
ofegando. O vento da noite movia-se depressa por
entre as rvores. Senti um odor nele, ao mesmo
tempo estranho e peculiarmente familiar. No
consegui identific-lo, mas todas as conotaes
que ele trazia eram desagradveis. Enquanto eu
estava parado ali, de narinas abertas, tentando
situ-lo, Olhos-de-Noite correu em silncio at
mim. Fique pequeno!, ordenou-me.
No parei para pensar, mas obedeci, agachando-
me onde me encontrava e espreitando ao redor em
busca de perigo.
No! Fique pequeno na mente.
Desta vez compreendi instantaneamente o que
ele queria dizer, e ergui as muralhas de Talento,
em pnico. O seu olfato mais aguado associara de
pronto o leve odor no ar com o odor da roupa de
Emaranhado nos seus alforjes. Agachei-me,
encolhendo-me o mximo que conseguia, e ergui e
reergui os limites em volta da minha mente, ao
mesmo tempo que argumentava com a realidade
que era praticamente impossvel que ele estivesse
ali.
O medo pode ser um estmulo poderoso para a
mente. De repente compreendi o que devia ter sido
bvio desde o incio. No estvamos to longe
assim da praa do entroncamento e do sinalizador
negro que havia ali. Os smbolos esculpidos nas
colunas sinalizadoras no indicavam apenas para
onde levavam as estradas adjacentes; tambm
indicavam para onde os sinalizadores podiam nos
transportar. Onde quer que houvesse uma coluna,
era possvel para algum ser transportado para a
coluna seguinte. Da antiga cidade at qualquer uma
das localizaes marcadas, a distncia no era
mais do que um passo. Os trs podiam estar a
poucos passos de distncia de mim naquele
momento.
No. H s um, e ele nem sequer est perto de
ns. Use o nariz, se no conseguir usar a cabea,
tranquilizou-me Olhos-de-Noite com sarcasmo.
Quer que o mate?, ofereceu, casual.
Sim, por favor. Mas tenha cuidado.
Olhos-de-Noite deu uma pequena bufada de
desdm. Ele muito mais gordo do que aquele
porco selvagem que matei. Ofega e sua s por
caminhar pela trilha. Fique quieto, irmozinho,
enquanto eu me livro dele. Silencioso como a
morte, o lobo partiu atravs da floresta.
Fiquei uma eternidade agachado, esperando
ouvir alguma coisa, um rosnado, um grito, os
rudos de algum correndo atravs da vegetao
rasteira. No houve nada. Dilatei as narinas, mas
no consegui captar sinal do odor evasivo. De
repente, no pude mais aguentar ficar agachado e
esperar. Levantei-me de um pulo e segui o lobo,
to silenciosamente letal quanto ele. Antes, quando
estvamos caando, eu no prestara muita ateno
ao local para onde nos dirigramos. Agora notei
que havamos nos aproximado mais da estrada do
Talento do que eu suspeitara; que o local do nosso
acampamento no ficava nada longe dela.
Como a melodia de uma msica distante, fiquei
subitamente consciente das comunicaes de
Talento entre eles. Parei onde me encontrava e
fiquei imvel. Obriguei a mente imobilidade e
deixei que o Talento deles roasse pelos meus
sentidos enquanto eu no dava qualquer resposta.
Estou perto. Emaranhado, sem flego, tanto de
ansiedade como de medo. Senti-o a postos e
espera. Eu o sinto, ele se aproxima. Uma pausa.
Oh, eu no gosto deste lugar. No gosto nem um
pouco.
Fique calmo. No preciso mais do que um
toque. Toque-o como lhe mostrei e as muralhas
dele cairo. Vontade falou, de mestre para
aprendiz.
E se ele tiver uma faca?
No ter tempo de us-la. Acredite em mim.
No h homem que tenha muralhas que resistam
a esse toque, eu lhe asseguro. Tudo o que voc
precisa fazer toc-lo. Eu virei atravs de voc e
farei o resto.
Por que eu? Por que no voc ou Cedoura?
Preferia mesmo ter a tarefa de Cedoura? Alm
disso, foi voc quem teve o Bastardo em seu
poder e foi estpido o suficiente para tentar
mant-lo em uma gaiola. V l completar a
tarefa que devia ter terminado h muito tempo.
Ou ser que voc quer sentir de novo a ira do
nosso rei?
Senti Emaranhado estremecer. E eu tambm
tremi, pois o senti. Majestoso. Os pensamentos
eram de Vontade, mas de algum modo, em algum
lugar, Majestoso tambm os ouvia. Perguntei-me
se Emaranhado saberia to claramente quanto eu
que no importava se ele matasse o Bastardo ou
no, Majestoso teria prazer em lhe causar dor
novamente. Que a recordao de tortur-lo era to
agradvel que Majestoso j no conseguia pensar
nele sem lhe vir memria o quo completamente
aquilo o saciara. Por um breve momento.
Fiquei contente por no ser Emaranhado.
Ali! Esse foi o Bastardo! Encontre-o!
Nesse momento, eu devia ter morrido. Vontade
me descobrira, encontrara o meu pensamento
descuidado flutuando no ar. A minha breve
compreenso por Emaranhado fora o suficiente.
Ele ladrou no meu rastro como um co de caa.
Apanhei-o!
Houve um momento de tenso suspensa. Meu
corao saltava contra as minhas costelas quando
enviei a Manha para sondar tudo minha volta.
Nada maior do que um rato se encontrava por
perto. Encontrei Olhos-de-Noite abaixo de mim,
na colina, movendo-se rpida e furtivamente.
Contudo, Emaranhado dissera que se aproximava
de mim. Teria encontrado um modo de se proteger
contra o meu sentido da Manha? A ideia me
enfraqueceu os joelhos.
Em algum lugar colina abaixo, ouvi o choque de
um corpo atravs de vegetao rasteira e o grito de
um homem. O lobo cara sobre ele, pensei.
No, irmo, eu no.
Quase no consegui compreender o pensamento
do lobo. Cambaleei com um impacto de Talento,
mas no consegui detectar a sua fonte. Os meus
sentidos se contradiziam, como se eu estivesse
mergulhado em gua e a sentisse como areia. Sem
uma ideia clara do que fazia, sa em uma disparada
trpega colina abaixo.
Este no ele! Vontade, em grande fria e
agitao. O que isso? Quem esse?
Uma pausa de consternao. aquela coisa
bizarra, o Bobo! Ento uma vasta ira. Onde est o
Bastardo? Emaranhado, seu cretino desastrado!
Entregou ns todos para ele.
Mas no fui eu, e sim Olhos-de-Noite, quem
investiu sobre Emaranhado. Mesmo distncia a
que me encontrava, consegui ouvir os seus
rosnados. Na floresta escura l embaixo, um lobo
lanou-se sobre Emaranhado, e o guincho de
Talento que ele soltou ao ver aquelas mandbulas
vorazes que se aproximavam do seu rosto foi tal
que Vontade se distraiu. Nesse instante, eu ergui as
muralhas e corri para ir me juntar ao meu lobo no
ataque fsico a Emaranhado.
Estava destinado ao desapontamento. Eles
estavam muito mais longe do que eu pensara. Nem
sequer tive um vislumbre de Emaranhado, exceto
atravs dos olhos do lobo. Por mais gordo e
desajeitado que Olhos-de-Noite julgasse
Emaranhado, ele mostrou ser um excelente
corredor quando o lobo estava em seus
calcanhares. Mesmo assim, Olhos-de-Noite o teria
derrubado se ele tivesse tido de correr um pouco
mais. Com o primeiro salto, Olhos-de-Noite
apanhou apenas o seu manto quando Emaranhado
rodopiou. O segundo ataque rasgou cala e carne,
mas Emaranhado fugiu como se no estivesse
ferido. Olhos-de-Noite o viu chegar ao limite da
praa de pavimento negro e correr para a coluna,
com uma mo estendida em uma splica. A palma
bateu na pedra brilhante e Emaranhado
desapareceu de repente no interior da coluna. O
lobo fez fora com as patas para parar, fazendo-as
deslizar pela pedra escorregadia. Encolheu-se com
receio da pedra vertical como se Emaranhado
tivesse saltado para dentro das chamas de uma
grande fogueira. Parou a um palmo da pedra,
rosnando furiosamente, no s de raiva, mas com
um medo selvagem. Eu soube de tudo isso, embora
estivesse a uma encosta de distncia, correndo e
tropeando na escurido.
De repente, surgiu uma onda de Talento. No
teve qualquer manifestao fsica, mas o seu
impacto me atirou no cho e me tirou o flego.
Deixou-me tonto, com os ouvidos zunindo,
impotentemente aberto a todos os que desejassem
me possuir. Fiquei deitado ali, nauseado e
atordoado. Talvez tenha sido isso o que me salvou,
o fato de que nesse momento no senti
absolutamente nenhum vestgio de Talento dentro
de mim.
Mas ouvi os outros. No havia sentido no seu
uso do Talento, s um medo aterrorizado. Ento
desapareceram distncia, como se o prprio rio
de Talento os arrastasse para longe. Quase fui em
busca deles, no meu espanto com o que sentia.
Eles pareciam ter sido despedaados em
fragmentos. A sua desorientao minguante
rebentou contra mim. Fechei os olhos.
Ento ouvi a voz de Panela, chamando
freneticamente pelo meu nome. O pnico tingia a
sua voz.
Olhos-de-Noite!
J estou a caminho. Alcance-me!, disse o lobo
com severidade. Fiz o que me foi ordenado.
Eu estava arranhado e sujo, e tinha uma perna
das calas rasgada no joelho quando cheguei
tenda. Panela estava de p do lado de fora,
minha espera. A fogueira fora alimentada para
servir de farol. Ao v-la, as batidas do meu
corao diminuram um pouco. Quase acreditara
que eles estivessem sendo atacados.
O que h de errado? perguntei enquanto
corria at junto dela.
O Bobo disse ela, e acrescentou:
Ouvimos um alarido e corremos para fora. Ento
ouvi o lobo rosnando. Fomos na direo do som e
encontramos o Bobo. Sacudiu a cabea. No
tenho certeza do que lhe aconteceu.
Comecei a passar por ela na direo da tenda,
mas ela agarrou o meu brao. Era
surpreendentemente forte para uma velha. Parou-
me para que eu a encarasse.
Voc foi atacado? perguntou.
De certo modo. Contei-lhe rapidamente o
que acontecera. Os seus olhos se arregalaram
quando falei daquela onda de Talento.
Quando terminei, ela assentiu para si mesma,
confirmando sombriamente as suas suspeitas.
Eles tentaram alcanar voc e no lugar
apanharam o Bobo. Ele no faz a menor ideia de
como se proteger. Pelo que sei, eles ainda o tm
em seu poder.
O qu? Como? perguntei, entorpecido.
L atrs, na praa. Vocs dois estiveram
ligados pelo Talento, ainda que brevemente,
atravs da fora da pedra e da fora de quem
vocs so. Isso deixa uma espcie de caminho.
Quanto mais frequentemente duas pessoas se
ligam, mais forte ele se torna. Com frequncia
transforma-se num vnculo, como um vnculo de
crculo. Outros possuidores de Talento conseguem
ver esses vnculos, se os procurarem. frequente
que sejam como portas dos fundos, entradas
desprotegidas para a mente de um Talentoso.
Desta vez, no entanto, eu diria que encontraram o
Bobo em vez de voc.
A expresso no meu rosto a fez largar o meu
brao. Entrei na tenda. Havia um minsculo fogo
ardendo no braseiro. Kettricken estava ajoelhada
ao lado do Bobo, falando-lhe numa voz baixa e
determinada. Esporana estava sentada imvel nos
seus cobertores, plida e fitando-o, enquanto o
lobo percorria incansavelmente o interior
apinhado da tenda. Ainda tinha os pelos bem
eriados.
Fui rapidamente me ajoelhar junto ao Bobo. Ao
primeiro vislumbre que tive dele, recuei. Esperara
v-lo deitado em uma inconscincia flcida. Mas,
em vez disso, ele estava rgido, com os olhos
abertos e aos saltos, como se estivesse observando
algum terrvel combate que ns no podamos
testemunhar. Toquei no seu brao. A rigidez dos
seus msculos e a frieza do seu corpo me
lembraram um cadver.
Bobo? perguntei. Ele no deu qualquer
sinal de ter me ouvido. Bobo! gritei mais
alto, e me debrucei sobre ele. Sacudi-o, a
princpio ligeiramente, e ento com mais
violncia. No fez efeito.
Toque-o e contacte-o pelo Talento
instruiu-me bruscamente Panela. Mas tenha
cuidado. Se ainda o tiverem, voc tambm estar
se colocando em risco.
Envergonha-me dizer que congelei por um
momento. Por mais que gostasse do Bobo, ainda
temia Vontade. Por fim, estendi a mo, um segundo
e uma eternidade mais tarde, para coloc-la na sua
testa.
No tenha medo disse-me Panela
inutilmente. E depois acrescentou algo que quase
me paralisou. Se eles ainda o tm e o
controlam, s questo de tempo at usarem a
ligao entre vocs para tambm o levarem. A sua
nica chance enfrent-los de dentro da mente
dele. V em frente.
Ela colocou a mo no meu ombro e, por um
momento arrepiante, foi a mo de Sagaz no meu
ombro, sugando de mim fora de Talento. Ento
ela me deu uma palmadinha reconfortante. Fechei
os olhos, senti a testa do Bobo sob a minha mo.
Abaixei as muralhas de Talento.
O rio de Talento corria, em cheia, e eu ca nele.
Um momento para obter orientao. Passei por um
instante de terror quando detectei Vontade e
Emaranhado nos limites da minha percepo.
Estavam em uma grande agitao a respeito de
alguma coisa. Afastei-me deles como se tivesse
roado em um forno quente e estreitei o meu foco.
O Bobo, o Bobo, s o Bobo. Procurei-o, quase o
encontrei. Oh, ele era mais que estranho,
ultrapassava a estranheza. Fugia e se esquivava de
mim, como uma carpa dourada cheia de vida em
uma lagoa cheia de plantas, como os gros de p
que danam diante dos nossos olhos antes de
serem ofuscados pelo sol. Mais valia tentar
agarrar o reflexo da lua em um charco parado
meia-noite do que tentar pegar aquela mente viva.
Percebi sua beleza e seu poder nos mais breves
clares de discernimento. Em um momento
compreendia e me maravilhava com tudo o que ele
era, e no seguinte esquecera todo esse
entendimento.
Ento, com um discernimento digno do jogo das
pedras, soube o que fazer. Em vez de tentar
apanh-lo, cerquei-o. No fiz qualquer esforo
para invadir ou capturar, mas apenas para abarcar
tudo o que via dele e mant-lo separado do mal.
Aquilo me lembrava a poca em que aprendera a
usar o Talento. Veracidade fizera aquilo comigo
com frequncia, ajudando-me a me conter quando
a corrente de Talento ameaava me espalhar pelo
mundo. Equilibrei o Bobo, enquanto ele se
recompunha e voltava a ser ele mesmo.
De repente, senti uma mo fria no pulso.
Pare suplicou ele com suavidade. Por
favor acrescentou, e o fato de ele achar que
precisava daquela palavra me afetou. Retirei-me
da minha busca e abri os olhos. Pisquei algumas
vezes, e ento fiquei surpreso por me ver tremendo
com o suor frio que me envolvia. Era impossvel
ao Bobo parecer mais plido do que era sempre,
mas havia uma expresso indecisa nos seus olhos e
na boca, como se no tivesse certeza de estar
acordado. Os meus olhos cruzaram-se com os seus
e senti quase um solavanco de conscincia dele.
Um vnculo de Talento, fino como um fio, mas
presente. Se os meus nervos no estivessem to
expostos por tentar alcan-lo, provavelmente no
o teria sentido.
No gostei daquilo disse ele em voz
baixa.
Lamento disse-lhe com suavidade.
Pensei que eles o tinham agarrado, ento fui sua
procura.
Ele fez um gesto dbil com a mo.
Oh, no voc. Eu me referia aos outros.
Engoliu em seco, como se sentisse nuseas.
Estavam dentro de mim. Na minha mente, nas
minhas recordaes. Quebrando e sujando tudo
como crianas malvadas e desobedientes. Eles
Seus olhos ficaram apticos.
Foi Emaranhado? sugeri com brandura.
Ah. Sim. esse o seu nome, embora ele
quase no se lembre de si mesmo atualmente.
Vontade e Majestoso o capturaram para obedecer
aos seus prprios fins. Entraram em mim atravs
dele, pensando que haviam encontrado voc
Sua voz foi desaparecendo. Pelo menos o que
parece. Como eu poderia saber de uma coisa
dessas?
O Talento traz estranhas revelaes. Eles no
podem dominar a sua mente sem mostrarem muito
das suas informou Panela a contragosto. Tirou
uma pequena vasilha de gua fumegante do
braseiro. Dirigindo-se a mim, acrescentou: D-
me o seu casco-de-elfo.
Estendi imediatamente a mo para a minha
trouxa para peg-lo, mas no consegui resistir e
lhe perguntei, em tom de censura:
Achei que voc havia dito que essa erva no
era benfica.
E no disse ela secamente. Para
utilizadores do Talento. Mas a ele pode dar a
proteo que no pode obter por si prprio. No
tenho dvida de que eles iro fazer outra tentativa
como esta. Se conseguirem invadi-lo, ainda que
por um momento, iro us-lo para encontrar voc.
um velho truque.
Um truque de que eu nunca havia ouvido falar
observei enquanto lhe entregava o meu saco de
casco-de-elfo. Ela colocou um pouco em um copo
e acrescentou gua fervente. Ento enfiou
calmamente o meu saco de ervas na sua trouxa. Era
evidente que no se tratava de distrao, e achei
intil pedi-lo de volta.
Como voc sabe tanto sobre assuntos de
Talento? perguntou-lhe o Bobo sem rodeios.
Estava recuperando um pouco do seu vigor.
Talvez tenha aprendido escutando em vez de
passar o tempo todo fazendo perguntas pessoais
respondeu ela com dureza. E agora, voc vai
beber isto acrescentou, como se considerasse o
assunto encerrado. Se eu no estivesse to ansioso,
teria sido divertido ver o Bobo sendo subjugado
de uma forma to hbil.
O Bobo pegou o copo, mas olhou para mim.
O que foi aquilo que aconteceu no fim? Eles
haviam me agarrado, e ento, de repente, foi tudo
terremoto, inundao e incndio ao mesmo tempo.
Uniu as sobrancelhas. E depois desapareci,
espalhado. No conseguia me encontrar. Ento
voc chegou
Algum se importa de me explicar o que
aconteceu esta noite? perguntou Kettricken, um
pouco impaciente.
Eu estava meio convencido de que Panela
responderia, mas ela manteve-se em silncio.
O Bobo abaixou a sua caneca de ch.
algo difcil de explicar, minha rainha. Foi
como dois rufies entrando no seu quarto,
arrastando-me para fora da cama e sacudindo-me
enquanto no paravam de me chamar pelo nome de
outra pessoa. E quando descobriram que eu no
era Fitz, ficaram muito irritados comigo. Depois
veio o terremoto e fui largado. Ao longo de vrios
lances de escadas. Falando metaforicamente,
claro.
Eles o largaram? perguntei, deleitado.
Virei-me no mesmo instante para Panela. Ento
no so to espertos quanto voc temia!
Panela franziu o cenho para mim.
Nem voc to esperto quanto eu esperava
resmungou sombriamente. Eles o largaram? Ou
ter sido uma exploso de Talento que os fez
solt-lo? E se foi, de quem era esse poder?
De Veracidade eu disse, com sbita
certeza. A compreenso tomou conta de mim.
Eles tambm atacaram Veracidade esta noite! E
ele os derrotou!
De que voc est falando? perguntou
Kettricken com a sua voz de rainha. Quem
atacou o meu rei? Que conhecimento sobre esses
outros que atacam o Bobo tem Panela?
Nenhum conhecimento pessoal, minha
senhora, posso garantir! declarei
apressadamente.
Oh, cale a boca! vociferou Panela.
Minha rainha, eu tenho um conhecimento de
erudito, por assim dizer, de algum que estudou,
mas nada pode fazer. Desde que Profeta e
Catalisador se juntaram naquele momento, na
praa, temi que pudessem partilhar de um vnculo
que os utilizadores do Talento podiam usar contra
eles. Mas ou o crculo no sabe disso, ou ento
houve alguma coisa que os distraiu esta noite.
Talvez a onda de Talento de que Fitz falou.
Esta onda de Talento Acredita que foi obra
de Veracidade? A respirao de Kettricken
tornou-se rpida de sbito, as suas cores ficaram
mais vivas.
Somente dele senti uma fora assim disse-
lhe.
Ento ele est vivo disse ela em voz
baixa. Est vivo.
Talvez disse Panela com amargura.
Criar uma exploso de Talento como aquela pode
matar um homem. E pode no ter sido Veracidade.
Pode ter sido um esforo fracassado por parte de
Vontade e Majestoso para apanhar Fitz.
No. Eu lhe disse. A exploso os espalhou
como palha ao vento.
E eu lhe disse. Eles podem ter se destrudo
ao tentarem mat-lo.
Achei que Kettricken a repreenderia, mas tanto
ela como Esporana a fitavam de olhos arregalados,
atnitas com a sbita afirmao de conhecimentos
sobre o Talento que Panela possua.
Que gentil da parte de vocs terem me
prevenido to bem disse o Bobo com uma
cortesia mordaz.
Eu no sabia comecei a protestar, mas
uma vez mais Panela passou por cima de mim.
De nada teria servido avis-lo, exceto para
deixar a sua mente concentrada no assunto.
Podemos fazer esta comparao. Foram
necessrios os esforos de todos ns para manter
Fitz concentrado e so na estrada do Talento. Ele
nunca teria sobrevivido sua viagem at a cidade
se os seus sentidos no tivessem sido primeiro
entorpecidos com casco-de-elfo. Mas estes outros
viajam pela estrada e usam os sinalizadores de
Talento vontade. bvio que a sua fora se
sobrepe em muito de Fitz. Ah, o que fazer, o
que fazer?
Ningum respondeu quele questionamento. Ela
ergueu repentinamente olhos acusadores para o
Bobo e para mim.
Isso no pode estar certo. Simplesmente no
pode estar certo. O Profeta e o Catalisador, e
vocs so pouco mais do que garotos. Ainda de
virilidade imatura, sem treino no Talento, cheios
de travessuras e angstias de amor. E so estes os
que foram enviados para salvar o mundo?
O Bobo e eu trocamos olhares, e o vi respirando
fundo para responder a ela. Porm, nesse
momento, Esporana estalou os dedos.
E isso o que faz a cano! exclamou de
repente, com o rosto transfigurado de jbilo.
No ser uma cano de fora heroica e guerreiros
de msculos poderosos. No. Uma cano sobre
duas pessoas, agraciadas apenas com a fora da
amizade. Cada um possudo de uma lealdade a um
rei que no podia ser negada. E isso no refro
Ainda de virilidade imatura, alguma coisa, ah
O Bobo apanhou o meu olhar, olhou de forma
significativa para baixo.
Virilidade imatura? Eu realmente devia ter
lhe mostrado disse em voz baixa. E, apesar de
tudo, apesar at do olhar carrancudo da minha
rainha, ca na gargalhada.
Oh, parem com isso repreendeu-nos
Panela, com tamanho desnimo na voz que fiquei
srio de imediato. No hora nem para
canes, nem para velhacarias. Ser que vocs
dois so tolos demais para verem o perigo em que
se encontram? O perigo em que colocam todos ns
com a sua vulnerabilidade? Observei enquanto
ela tirava com relutncia o meu casco-de-elfo da
trouxa de novo e o colocava na chaleira para
ferver. a nica coisa que consigo pensar em
fazer desculpou-se a Kettricken.
Que coisa essa? perguntou esta.
Drogar pelo menos o Bobo com casco-de-
elfo. Isso ir deix-lo surdo a eles e esconder
deles os seus pensamentos.
O casco-de-elfo no funciona assim!
objetei com indignao.
Ah, no? Panela virou-se ferozmente
contra mim. Ento por que tradicionalmente
usado h anos precisamente para esse fim? Dado a
um bastardo real jovem o bastante, podia destruir
qualquer potencial que ele pudesse ter para usar o
Talento. Isso era feito com bastante frequncia.
Sacudi a cabea em um desafio.
Eu o uso h anos, para restaurar as minhas
foras depois de usar o Talento. Veracidade
tambm. E nunca
Por amor da doce Eda! exclamou Panela.
Diga-me que est mentindo, por favor!
Por que eu mentiria sobre isso? O casco-de-
elfo reanima as foras de um homem, embora
depois de ser usado possa causar um estado de
esprito melanclico. Eu levava com frequncia
ch de casco-de-elfo a Veracidade na sua torre do
Talento, para sustent-lo. Minha narrao
vacilou. A consternao no rosto de Panela era
sincera demais. O qu? perguntei em voz
baixa.
O casco-de-elfo bem conhecido entre os
Talentosos como algo a ser evitado disse ela
numa voz suave. Ouvi cada palavra, pois ningum
na tenda parecia sequer estar respirando. Ele
insensibiliza quem o toma para o Talento, de modo
que nem ele possa utilizar o Talento pessoalmente,
nem outros consigam atravessar o nevoeiro que
causa para contact-lo por essa via. Dizem que a
erva tolhe ou destri o Talento nos jovens, e que
impede o seu desenvolvimento em utilizadores
mais velhos. Olhou-me com piedade nos olhos.
Voc j deve ter sido fortemente talentoso, para
manter mesmo a aparncia de usar o Talento.
No pode ser eu disse debilmente.
Pense pediu-me ela. Alguma vez sentiu
a sua fora de Talento aumentar depois de tomar
casco-de-elfo?
Ento e o meu senhor, Veracidade?
perguntou de sbito Kettricken.
Panela encolheu relutantemente os ombros.
Virou-se para mim.
Quando ele comeou a us-lo?
Foi difcil concentrar a minha mente nas suas
palavras. Tantas coisas se encontravam de repente
sob uma luz diferente. O casco-de-elfo sempre me
limpara a cabea da dor que um uso pesado do
Talento trazia. Mas eu nunca tentara us-lo
imediatamente depois de ter ingerido casco-de-
elfo. Sabia que Veracidade tentara. Mas no sabia
com que sucesso. A minha capacidade errtica
para o Talento poderia ter sido devido ao uso
de casco-de-elfo? A imensa conscincia de que
Breu cometera um erro ao d-lo a Veracidade e a
mim foi como um raio. Breu cometera um erro. De
algum modo, nunca me ocorrera que Breu pudesse
estar errado ou enganado. Breu era o meu mestre,
Breu lia e estudava e conhecia todos as antigas
tradies. Contudo, nunca fora ensinado a usar o
Talento. Bastardo como eu, nunca fora ensinado a
usar o Talento.
FitzCavalaria! a ordem de Kettricken me
sobressaltou de volta a mim.
Hum, pelo que sei, Veracidade comeou a
us-lo nos primeiros anos da guerra. Quando era o
nico utilizador do Talento a se interpor entre ns
e os Navios Vermelhos. Creio que ele nunca usara
o Talento to intensamente como naquela poca,
nem ficara to exausto por isso. Ento Breu
comeou a lhe dar casco-de-elfo. Para que
mantivesse as suas foras.
Panela piscou algumas vezes.
Sem ser usado, o Talento no se desenvolve
disse, quase para si mesma. Usado, cresce, e
comea a se afirmar, e aprendemos, quase por
instinto, os muitos usos em que podemos empreg-
lo. Dei por mim respondendo s suas palavras
brandas com um leve aceno de cabea. Seus olhos
idosos ergueram-se de sbito ao encontro dos
meus. Falou sem reservas. O mais provvel
que vocs dois estejam atrofiados. Pelo casco-de-
elfo. Veracidade, como homem feito, pode ter se
recuperado. Pode ter visto o seu Talento crescer
no tempo que passou longe da erva. Assim como
parece ter acontecido com voc. Ele certamente
parece ter dominado a estrada sozinho.
Suspirou. Mas eu suspeito de que estes outros
no a usaram, e as suas capacidades e uso do
Talento cresceram e deixaram as suas para trs.
De modo que agora tem uma escolha,
FitzCavalaria, e s voc pode faz-la. O Bobo
nada tem a perder com o uso da droga. Ele no
capaz de usar o Talento, e ao ingeri-la pode evitar
que o crculo volte a encontr-lo. Mas voc Eu
posso lhe dar isto, e isto ir insensibiliz-lo para o
Talento. Ser mais difcil para eles o alcanarem,
e muito mais difcil para voc alcanar algum.
Pode ficar mais seguro dessa forma. Mas estar
mais uma vez contrariando as suas capacidades.
Uma quantidade suficiente de casco-de-elfo pode
mat-las por completo. E s voc pode escolher.
Baixei os olhos para as mos. Ento os ergui
para o Bobo. Mais uma vez, os nossos olhos se
encontraram. Tateei hesitante na direo dele com
o meu Talento. Nada senti. Talvez fossem apenas
as minhas aptides errticas me iludindo outra vez.
Contudo, parecia provvel que Panela tivesse
razo; o casco-de-elfo que o Bobo acabara de
beber o insensibilizara para mim.
Enquanto Panela falara, ela estivera ocupada
tirando a chaleira do fogo. O Bobo lhe estendeu o
copo sem uma palavra. Ela lhe deu mais uma
pitada da casca amarga e voltou a encher o copo
de gua. Depois olhou para mim, numa espera
silenciosa. Eu olhei para os rostos que me
observavam, mas no encontrei ajuda ali. Tirei
uma caneca da pilha de loua. Vi a velha face de
Panela escurecer e os seus lbios se apertarem,
mas ela no me disse nada. Apenas estendeu a mo
para a bolsa de casco-de-elfo, mexendo os dedos
para chegar ao fundo, onde a casca se esmagara
at se transformar em p. Olhei para a caneca
vazia, espera. Lancei de novo um olhar a Panela.
Voc disse que a exploso de Talento pode
t-los destrudo?
Panela sacudiu lentamente a cabea.
No algo com que se possa contar.
No havia nada com que eu pudesse contar.
Nada que fosse certo.
Ento larguei a caneca e me arrastei at os meus
cobertores. Fiquei tremendamente cansado de
repente. E assustado. Sabia que Vontade estava l
fora em algum lugar, minha procura. Eu podia me
esconder no casco-de-elfo, mas isso poderia no
ser suficiente para afast-lo. Poderia apenas
enfraquecer contra ele as minhas defesas j
prejudicadas. Abruptamente, soube que no iria
dormir nada naquela noite.
Eu fico de vigia disse, e me levantei de
novo.
Ele no devia ficar sozinho disse Panela
num tom rabugento.
O lobo ficar de vigia com ele disse-lhe
Kettricken com confiana. Ele pode ajudar Fitz
contra este crculo desleal como ningum mais
pode.
Perguntei-me como ela sabia aquilo, mas no me
atrevi a perguntar. Em vez disso, peguei o manto e
fui para fora, para junto da fogueira que se
apagava, de vigia e espera como um homem
condenado.
CAPTULO 32

Praia do Capelim

A Manha encarada com grande desdm. Em


certas reas, vista como uma perverso, sendo
contadas histrias sobre Manhosos que acasalam
com animais para conquistar a sua magia, ou que
oferecem sacrifcios de sangue de crianas
humanas para obter a ddiva das lnguas de
animais e aves. Alguns contadores de histrias
falam de acordos celebrados com antigos
demnios da terra. Na verdade, creio que a
Manha a magia mais natural que algum pode
reclamar para si. a Manha que permite que um
bando de pssaros em voo vire de repente como
um s, ou um cardume de jovens salmes se
mantenha junto num riacho de correnteza rpida.
tambm a Manha que envia uma me para
junto da cama do seu filho precisamente na hora
em que o beb acorda. Creio que ela se encontra
no mago de toda a comunicao desprovida de
palavras, e que todos os seres humanos possuem
uma pequena aptido para ela, quer seja
reconhecida, quer no.

No dia seguinte, alcanamos mais uma vez a


estrada do Talento. Enquanto passvamos com
dificuldade pelo sinistro pilar de pedra, senti-me
sendo atrado para ele.
Veracidade pode estar s a um passo de mim.
Panela bufou.
Ou a sua morte. Ser que perdeu
completamente o juzo? Acha que h algum
utilizador do Talento que seja capaz de resistir a
um crculo treinado?
Veracidade resistiu respondi, pensando
em Vaudefeira e em como ele me salvara. Durante
o resto dessa manh, ela caminhou com uma
expresso pensativa no rosto.
No me esforcei para faz-la falar, pois eu
carregava o meu prprio fardo. Senti em mim uma
enervante sensao de perda. Era como a sensao
irritante de saber que me esquecera de alguma
coisa, mas ser incapaz de me lembrar do qu.
Deixara algo para trs. Ou ento me esquecera de
fazer algo importante, algo que pretendia fazer.
Pelo fim da tarde, com uma sensao de desnimo,
percebi o que me faltava.
Veracidade.
Quando ele estivera comigo, eu raramente tivera
certeza da sua presena. Pensara nele como uma
semente escondida esperando se abrir. As muitas
vezes que o procurara dentro de mim e falhara em
encontr-lo de repente perderam todo o
significado. Aquela no era uma dvida ou uma
interrogao. Era uma certeza crescente.
Veracidade estivera comigo durante mais de um
ano. E agora desaparecera.
Isso significava que ele estava morto? No
podia ter certeza. Aquela imensa onda de Talento
que eu sentira poderia ter sido ele. Ou algo mais,
algo que o forara a recolher-se para dentro de si
mesmo. Provavelmente no passava disso. Era um
milagre que o seu toque de Talento tivesse durado
tanto tempo em mim como durara. Por vrias vezes
comecei a falar sobre isso com Panela ou
Kettricken. Em todas as vezes, no consegui
justific-lo. O que diria? Que antes disso eu no
sabia dizer se Veracidade estava comigo e agora
no conseguia senti-lo? noite, junto s fogueiras,
estudei as rugas no rosto de Kettricken e perguntei
a mim mesmo de que serviria lhe aumentar as
preocupaes, de modo que empurrei as minhas
para dentro e me mantive em silncio.
Dificuldades contnuas geram monotonia e dias
que se emendam na histria. O tempo estava
chuvoso, de uma maneira vacilante e ventosa. As
nossas provises estavam precariamente
reduzidas, de modo que os legumes que
conseguamos colher enquanto caminhvamos e a
carne que Olhos-de-Noite e eu consegussemos
abater noite tornaram-se importantes para ns.
Eu caminhava ao lado da estrada e no nela, mas
me mantinha constantemente consciente do seu
murmrio de Talento, como o sussurro de um rio
de gua ao meu lado. O Bobo foi mantido bem
medicado com ch de casco-de-elfo. Ele logo
comeou a exibir tanto a energia sem limites como
o humor sombrio que eram propriedades do casco-
de-elfo. No caso do Bobo, isso queria dizer pulos
e acrobacias interminveis enquanto abramos
caminho ao longo da estrada do Talento, e um
toque cruelmente amargo no seu humor e lngua.
Gracejava com muita frequncia sobre a futilidade
da nossa demanda e respondia com violento
sarcasmo a qualquer comentrio encorajador. Ao
final do segundo dia, ele me lembrava apenas uma
criana malcriada. No dava ouvidos s censuras
de ningum, nem mesmo s de Kettricken, e no se
lembrava de que o silncio podia ser uma virtude.
No era tanto que eu temesse que a sua incessante
tagarelice e canes picantes pudessem fazer o
crculo cair sobre ns, mas me preocupava com a
possibilidade de que o seu rudo constante pudesse
esconder de ns a sua aproximao. Suplicar para
que falasse baixo teve to pouco sucesso como
berrar para que se calasse. Deu-me de tal modo
nos nervos que sonhei em estrangul-lo, e no acho
que eu estivesse sozinho nesse impulso.
O tempo mais suave foi a nica melhora que o
nosso grupo teve nesses longos dias em que
seguimos a estrada do Talento. A chuva tornou-se
mais ligeira e mais intermitente. As folhas
abriram-se nas rvores de folha caduca que
flanqueavam a estrada e as colinas nossa volta
enverdeceram quase que da noite para o dia. A
sade das jepas melhorou com o pasto e Olhos-de-
Noite encontrou caa pequena em abundncia. As
horas mais curtas de sono comearam a pesar em
mim, mas deixar o lobo caar sozinho no teria
solucionado esse problema. Pior, Panela temia me
deixar dormir.
Por iniciativa prpria, a velha tomou a minha
mente ao seu cargo. Eu me ressentia disso, mas
no era estpido o suficiente para resistir. Tanto
Kettricken como Esporana haviam aceitado os
seus conhecimentos sobre o Talento. J no me era
permitido sair sozinho, ou s na companhia do
Bobo. Quando o lobo e eu cavamos noite,
Kettricken ia conosco. Esporana e eu dividamos
um turno de vigia, durante o qual, por insistncia
de Panela, ela mantinha a minha mente ocupada
com o aprendizado tanto de canes como de
histrias do seu repertrio. Durante as minhas
breves horas de sono, Panela me vigiava, com um
escura infuso de casco-de-elfo junto ao cotovelo
que, se necessrio, podia despejar pela minha
goela abaixo e apagar o Talento. Tudo isto era
irritante, mas era pior durante o dia, quando
caminhvamos juntos. No me era permitido falar
de Veracidade ou do crculo, ou de qualquer coisa
que pudesse tocar neles. Em vez disso,
trabalhvamos juntos em problemas do jogo, ou
colhamos ervas beira da estrada para a refeio
da noite, ou ento eu recitava as histrias de
Esporana. A qualquer momento em que suspeitasse
que a minha mente no estava completamente
concentrada nela, Panela podia me dar uma forte
pancada com o basto. Nas poucas vezes que
tentei conduzir a conversa com perguntas sobre o
seu passado, ela me informou altivamente que isso
podia levar precisamente aos temas que tnhamos
de evitar.
No h tarefa mais complicada do que evitar
pensar em qualquer coisa. No meio das minhas
tarefas, a fragrncia de uma flor me trazia Moli
mente, e dali ia para Veracidade, que me chamara
para longe dela, era s um passo. Ou uma
tagarelice casual do Bobo trazia aos meus
pensamentos a tolerncia do Rei Sagaz pela sua
zombaria, e me fazia lembrar do modo como o meu
rei morrera e nas mos de quem. O pior de tudo
era o silncio de Kettricken. Ela j no podia me
falar sobre a sua ansiedade por Veracidade. No
conseguia olh-la sem sentir como ansiava por
encontr-lo, e ento me censurava por pensar nele.
E foi assim que os longos dias da nossa viagem
passaram para mim.
A paisagem nossa volta mudou gradualmente.
Demos por ns descendo cada vez mais para o
interior de vales sinuosos atrs de vales sinuosos.
Durante algum tempo, a estrada que percorramos
seguiu paralela a um rio de um cinza leitoso. Em
certos locais, as suas subidas e descidas haviam
devorado a estrada que o ladeava at esta j no
ser mais do que um caminho. Por fim chegamos a
uma imensa ponte. Quando a vislumbramos a
distncia pela primeira vez, a delicadeza de teia
de aranha do seu vo me lembrou ossos, e eu temi
que a encontraramos reduzida a fragmentos
lascados de madeiramentos erguidos para o cu.
Mas, em vez disso, cruzamos uma obra que
arqueava desnecessariamente alto sobre o rio,
como que em jbilo por poder faz-lo. A estrada
sobre a qual atravessamos brilhava, negra e
cintilante, enquanto as arcadas que a adornavam
por cima e por baixo da extenso eram de um cinza
pulverolento. No consegui identificar o material
de que fora feita, se seria um metal verdadeiro ou
uma pedra estranha, pois tinha mais o aspecto de
um fio tecido do que de metal batido ou rocha
cinzelada. A elegncia e graa da ponte conseguiu
at silenciar o Bobo durante algum tempo.
Depois da ponte, subimos uma srie de pequenas
colinas, apenas para comear outra descida. Desta
vez, o vale era estreito e profundo, uma fenda na
terra de lados ngremes, como se algum gigante a
tivesse aberto h muito com um machado de
guerra. A estrada agarrava-se a um dos lados e o
seguia inexoravelmente para baixo. Pouco
conseguamos ver do local para onde amos, pois
o prprio vale parecia cheio de nuvens e
vegetao. Isso me confundiu at que o primeiro
regato de gua quente cortou o nosso caminho.
Borbulhava vaporoso de uma nascente que se
abria bem ao lado da estrada, mas h muito
desdenhara as paredes ornamentadas do canal de
drenagem que algum engenheiro desaparecido
elaborara para cont-lo. O Bobo fez um grande
espetculo com o seu cheiro, indagado se deveria
ser atribudo a ovos podres ou a alguma flatulncia
da prpria terra. Dessa vez, nem mesmo a sua
grosseria me fez sorrir. Para mim era como se as
suas patifarias tivessem se prolongado demais, a
alegria tivesse desaparecido, restando apenas a
rudeza e a crueldade.
No incio da tarde chegamos a uma regio de
lagoas fumegantes. A atrao da gua quente era
grande demais para se resistir e Kettricken nos
deixou montar o acampamento cedo. Tivemos o
conforto da gua quente, de que h muito tnhamos
saudades, para nela encharcarmos os nossos
corpos cansados, embora o Bobo tivesse
desdenhado dela devido ao cheiro. A mim no
cheirava pior do que as guas fumegantes que se
erguiam da terra para alimentar os banhos em
Jhaampe, mas dessa vez fiquei contente por me
privar da sua companhia. Ele partiu em busca de
alguma gua potvel, enquanto as mulheres
ocuparam a lagoa maior e eu procurei a relativa
privacidade de uma menor a alguma distncia.
Fiquei de molho durante algum tempo, e ento
decidi sacudir um pouco da sujeira das minhas
roupas. O fedor mineral da gua era muito menor
do que o odor que o meu corpo deixara nelas.
Feito isso, estendi os meus trajes na relva para
secar e fui me deitar de novo na gua. Olhos-de-
Noite veio sentar-se na margem para me observar,
confuso, com a cauda bem aconchegada em torno
das patas.
bom, disse-lhe sem necessidade, pois sabia
que ele conseguia captar o meu prazer.
Deve ter alguma coisa a ver com a sua falta de
pelo, concluiu ele por fim.
Entre que eu o esfrego. Vai ajud-lo a soltar a
pelagem de inverno, sugeri.
Ele deu uma fungada de desdm. Acho que
prefiro solt-la um pouco de cada vez enquanto
me coo.
Bem, voc no precisa ficar a sentado me
vendo e ficando entediado. V caar, se quiser.
Eu ia, mas a fmea alta me pediu para vigi-lo.
Portanto, vigiarei.
Kettricken?
assim que voc a chama.
Como ela lhe pediu?
Ele me lanou um olhar confuso. Como voc
pediria. Olhou para mim, e eu soube o que ela
tinha em mente. Estava preocupada por voc
estar sozinho.
Ela sabe que voc a ouve? Ela o ouve?
Quase, s vezes. Deitou-se de repente na relva e
se espreguiou, enrolando a sua lngua rosa.
Quando a sua parceira lhe pedir para me deixar
de lado, talvez me vincule a ela.
Isso no tem graa.
Ele no me respondeu, mas se deitou de costas e
comeou a rolar por ali, coando o dorso. O
assunto de Moli era agora uma ponta de mal-estar
entre ns, uma brecha que eu no me atrevia a
abordar e que ele espreitava obsessivamente. De
repente desejei que fssemos como antes, juntos e
inteiros, vivendo apenas no agora. Recostei-me,
pousando a cabea na margem, meio dentro da
gua e meio fora. Fechei os olhos e no pensei em
nada.
Quando os abri de novo, o Bobo estava de p
me olhando. Sobressaltei-me de forma visvel.
Olhos-de-Noite tambm, levantando-se de um
salto com um rosnado.
Grande guardio observei, dirigindo-me
ao Bobo.
Ele no tem cheiro e caminha com mais leveza
do que a neve caindo!, protestou o lobo.
Ele est sempre com voc, no est?
observou o Bobo.
De uma forma ou de outra concordei, e me
recostei na gua. Teria de sair em breve. O fim da
tarde estava se transformado em noite. O frio
adicional no ar tornava a gua quente mais
calmante. Passado um momento, olhei o Bobo de
relance. Continuava simplesmente de p me
encarando. H algo de errado? perguntei-
lhe.
Ele fez um gesto inconclusivo, e ento se sentou
desajeitadamente na margem.
Tenho pensado na sua garota veleira disse
de sbito.
Tem, ? perguntei em voz baixa. Tenho
feito o possvel para no pensar nela.
Ele pensou naquilo por um momento.
Se voc morrer, o que ser dela?
Rolei sobre mim mesmo, virando-me de bruos
e me apoiando nos braos para fitar o Bobo. Eu
mais ou menos esperava que aquilo fosse o incio
de algum novo gracejo seu, mas o seu rosto estava
grave.
Bronco tomar conta dela respondi em
voz baixa. Enquanto ela precisar de ajuda.
uma mulher capaz, Bobo. Aps um momento de
reflexo, acrescentei: Ela tomou conta de si
mesma durante anos antes Bobo, eu nunca tomei
realmente conta dela. Estava perto dela, mas ela
sempre se valeu de si mesma. Senti-me ao
mesmo tempo envergonhado e orgulhoso por tal
mulher ter gostado de mim.
Mas voc ia pelo menos querer que eu lhe
enviasse a notcia, no?
Sacudi lentamente a cabea.
Ela acredita que estou morto. Os dois
acreditam. Se eu realmente morrer, preferiria
deix-la acreditar que morri nas masmorras de
Majestoso. Pois saber do contrrio s faria com
que ela me visse com olhos ainda piores. Como
voc poderia lhe explicar o fato de eu no ter ido
imediatamente at ela? No. Se alguma coisa me
acontecer, no quero que nenhuma histria lhe seja
contada. A tristeza tomou conta de mim mais
uma vez. E se sobrevivesse e voltasse para ela?
Pensar nisso era quase pior. Tentei imaginar me
apresentando e lhe explicando que mais uma vez
colocora o meu rei sua frente. Fechei os olhos
com fora ao pensar nisso.
Mesmo assim, quando tudo isso terminar, eu
gostaria de v-la de novo observou o Bobo.
Abri os olhos.
Voc? No sabia sequer que vocs haviam
falado um com o outro.
O Bobo pareceu um pouco apanhado de surpresa
com isso.
Mas, quer dizer, seria por voc. Para ver
com meus prprios olhos que ela est bem
cuidada.
Senti-me estranhamente comovido.
No sei o que dizer falei.
Ento no diga nada. Apenas me diga onde
posso encontr-la sugeriu ele com um sorriso.
Eu mesmo no sei ao certo admiti.
Breu sabe. Se se eu no sobreviver quilo que
temos de fazer, pergunte a ele. Parecia de mau
agouro falar da minha prpria morte, de modo que
acrescentei: Claro, ambos sabemos que
sobreviveremos. Est profetizado, no est?
Ele me lanou um olhar estranho.
Por quem?
O meu corao afundou.
Por algum dos Profetas Brancos, eu esperava
resmunguei. Ocorreu-me que nunca perguntara
ao Bobo se a minha sobrevivncia fora
profetizada. Nem todos os homens sobrevivem
vitria em uma batalha. Encontrei a minha
coragem. Est previsto que o Catalisador
sobrevive?
Ele pareceu pensar com afinco. De repente,
observou:
Breu leva uma vida perigosa. Tambm no h
certeza de que ele sobreviva. E se no sobreviver,
bem, certamente voc deve fazer alguma ideia de
onde a garota est. No quer me dizer?
Que ele no tivesse respondido minha pergunta
de sbito pareceu ser resposta suficiente. O
Catalisador no sobrevivia. Era como ser atingido
por uma onda fria de gua salgada. Senti que caa
naquele frio conhecimento, que me afogava nele.
Nunca pegaria a minha filha ao colo, nunca mais
sentiria o calor de Moli. Foi quase uma dor fsica,
e isso me deixou tonto.
FitzCavalaria? pressionou o Bobo. Ergueu
uma mo de repente para cobrir bem a boca, como
se no pudesse falar mais. A outra mo ergueu-se
de sbito para agarrar o seu pulso. Pareceu
nauseado.
Est tudo bem eu disse debilmente.
Talvez seja melhor que eu saiba o que est por vir.
Suspirei e fiz um esforo para pensar. Ouvi-
os falar de uma aldeia. Bronco vai l para comprar
coisas. No pode ser longe. Podia comear por
ali.
O Bobo me deu um minsculo aceno de
encorajamento. Tinha lgrimas nos olhos.
Praia do Capelim eu disse em voz baixa.
Ele ficou me fitando por mais um momento.
Ento, de repente, caiu para o lado.
Bobo?
No houve resposta. Levantei-me, com a gua
quente escorrendo de mim, e o observei. Estava
deitado de lado como se dormisse.
Bobo! chamei, irritado. Quando continuou
a no haver resposta, sa da lagoa e me aproximei
dele. Estava deitado na margem relvada, imitando
a respirao profunda e regular do sono. Bobo?
perguntei de novo, meio espera de que ele
saltasse para cima de mim. Mas ele fez um gesto
vago, como se eu estivesse perturbando os seus
sonhos. No h palavras para exprimir o quanto
me irritou que ele pudesse passar de modo to
abrupto de uma conversa sria para algum tipo de
patifaria. Porm, era tpico do comportamento que
tivera nos ltimos dias. De repente deixou de
haver qualquer descontrao ou paz na gua
quente. Ainda pingando, comecei a recolher a
minha roupa. Recusei-me a olhar para ele enquanto
me esfregava e sacudia a maior parte da gua do
meu corpo. A roupa que vesti estava ligeiramente
mida, de qualquer forma. O Bobo continuava
dormindo quando lhe dei as costas e caminhei de
volta ao acampamento. Olhos-de-Noite me seguiu
de perto.
um jogo?, perguntou enquanto caminhvamos.
Uma espcie, suponho, respondi em poucas
palavras. No um jogo que eu aprecie.
As mulheres j haviam regressado ao
acampamento. Kettricken estava absorta no seu
mapa enquanto Panela dava s jepas minsculas
raes dos cereais que restavam. Esporana estava
sentada junto fogueira, passando um pente pelo
cabelo, mas ergueu os olhos quando me aproximei.
O Bobo encontrou gua limpa? perguntou-
me.
Encolhi os ombros.
Da ltima vez que o vi, no. Pelo menos, se
encontrou, no a estava carregando com ele.
Seja como for, temos suficiente nos odres
para nos arranjarmos. s que prefiro gua fresca
para o ch.
Eu tambm. Sentei-me junto da fogueira e
a observei. Parecia no dedicar nenhum
pensamento aos dedos enquanto eles danavam
pelo seu cabelo, enrolando em suaves tranas o
cabelo brilhante de umidade. Enrolou-as em volta
da cabea e as prendeu bem.
Detesto cabelo molhado batendo no meu
rosto observou, e percebi que eu a estivera
olhando fixamente. Afastei o olhar, embaraado.
Ah, ele ainda consegue corar ela riu.
Depois acrescentou, sem rodeios: Quer o pente
emprestado?
Levei a mo ao meu cabelo mido.
Acho que devia aceitar murmurei.
Devia mesmo concordou ela, mas no o
entregou. Em vez disso, veio ajoelhar-se atrs de
mim. Como voc fez tudo isso? indagou-se
em voz alta quando comeou a empurrar o pente
atravs do meu cabelo.
Ele simplesmente fica assim balbuciei. Os
seus toques gentis, os suaves puxes pelo meu
couro cabeludo, davam uma sensao
incrivelmente boa.
O problema ser to fino. Nunca conheci um
homem de Cervo com um cabelo to fino.
O meu corao moveu-se para o lado no peito.
Uma praia de Cervo num dia ventoso, e Moli em
uma manta vermelha ao meu lado, com a blusa
meio desamarrada. Ela me dissera que eu era
considerado a melhor coisa a sair dos estbulos
desde Bronco. Acho que o seu cabelo. No
to spero como o da maioria dos homens de
Cervo. Um breve interldio, feito de elogios de
flerte e conversa fiada e do seu doce toque sob o
cu aberto. Quase sorri. Mas no conseguia me
lembrar desse dia sem me lembrar tambm de que,
como em tantos dos momentos que passramos
juntos, terminara em discusso e em lgrimas. A
minha garganta se fechou e sacudi a cabea,
tentando mandar as memrias para longe.
Fique quieto repreendeu-me Esporana
com um puxo mais forte no meu cabelo. J
quase o deixei liso. Prepare-se, este o ltimo n.
Ela agarrou o meu cabelo por cima e rompeu o
n com um puxo rpido que quase no senti.
D-me a tira disse, e a pegou de mim para
amarrar de novo o meu cabelo.
Panela regressou depois de tratar das jepas.
Alguma carne? perguntou-me diretamente.
Suspirei.
Ainda no. Logo prometi. Levantei-me
cansado.
Vigie-o, lobo pediu Panela a Olhos-de-
Noite. Ele abanou a cauda ligeiramente e ento me
levou para fora do acampamento.
J havia escurecido quando voltamos ao
acampamento. Estvamos bastante satisfeitos
conosco, pois trazamos no coelho, mas uma
criatura de cascos fendidos bastante semelhante a
um pequeno cabrito, s que com uma pelagem mais
sedosa. Eu havia aberto a sua barriga no local
onde o abatemos, tanto para permitir que Olhos-
de-Noite comesse as entranhas, como para torn-lo
mais leve para carregar. Coloquei a carne no
ombro, mas me arrependi pouco depois. Qualquer
que fosse a bicharada picadora que o animal
tivesse transportado, ela ficara mais do que feliz
em se transferir para o meu pescoo. Teria de me
lavar de novo naquela noite.
Sorri para Panela quando ela veio ao meu
encontro e lhe apresentei o cabrito para que o
inspecionasse. Porm, em vez de parabns, ela
apenas perguntou:
Tem mais casco-de-elfo?
Eu lhe dei tudo o que tinha disse-lhe.
Por qu? Acabou? Aquilo faz o Bobo se comportar
de tal forma que a notcia quase me agrada.
Ela me lanou um olhar estranho.
Vocs discutiram? perguntou. Voc
bateu nele?
O qu? Claro que no!
Ns o encontramos na beira da lagoa onde
voc tomou banho disse ela em voz baixa.
Retorcendo-se no sono como um co sonhando.
Acordei-o, mas mesmo acordado ele parecia vago.
Ns o trouxemos de volta, mas ele apenas foi atrs
dos seus cobertores. Tem dormido como um morto
desde ento.
Havamos chegado fogueira e eu larguei o
cabrito ao seu lado e corri para a tenda, com
Olhos-de-Noite abrindo caminho minha frente.
Ele voltou vida, mas s por um momento
prosseguiu Panela. Depois caiu outra vez no
sono. Comporta-se como um homem que se
recupera de uma exausto, ou de uma enfermidade
muito longa. Temo por ele.
Quase no a ouvi. Dentro da tenda, ca de
joelhos ao lado dele. Estava deitado de lado,
enrolado como uma bola. Kettricken encontrava-se
ajoelhada ao seu lado, com o rosto enevoado de
preocupao. Ele parecia simplesmente um homem
adormecido. O alvio lutou em mim com a
irritao.
Dei-lhe quase todo o casco-de-elfo
prosseguia Panela. Se lhe der agora o que resta,
no teremos reservas no caso de o crculo tentar
atac-lo.
No h nenhuma outra erva comeou
Kettricken, mas eu a interrompi.
Por que no o deixamos simplesmente
dormir? Isso talvez seja apenas o fim da sua outra
doena. Ou talvez um efeito do prprio casco-de-
elfo. Mesmo com drogas potentes, s se pode
enganar o corpo durante algum tempo, depois ele
deixa claras as suas exigncias.
Isso verdade concordou Panela com
relutncia. Mas isso to incaracterstico
dele
Ele tem andado incaracterstico desde o
terceiro dia de uso de casco-de-elfo observei.
Com a lngua afiada demais, os gracejos
cortantes demais. Se quiser saber, eu diria que
atualmente o prefiro dormindo a acordado.
Bem. Talvez haja alguma razo no que diz.
Ento vamos deix-lo dormir concedeu Panela.
Respirou fundo, como que preparando-se para
dizer mais alguma coisa, mas no o fez. Sa de
novo para preparar o cabrito para ser cozinhado.
Esporana me seguiu.
Durante algum tempo, ela apenas ficou em
silncio me vendo esfol-lo. No era um animal l
muito grande.
Ajude-me a avivar a fogueira, e vamos assar
o animal inteiro. A carne cozida durar mais com
este tempo.
O animal inteiro?
Exceto uma poro generosa para voc.
Manuseei a faca em volta de uma articulao,
soltei a canela e cortei o que restava da
cartilagem.
Eu vou querer mais do que ossos, lembrou-me
Olhos-de-Noite.
Confie em mim, disse-lhe. Quando terminei, ele
tinha para si a cabea, a pele, as quatro canelas e
um quarto traseiro. Ficou complicado prender a
carne em um espeto, mas consegui. O animal era
jovem, e embora no tivesse muita gordura, eu
esperava que a carne fosse tenra. A parte mais
difcil seria esperar at que estivesse cozinhada.
As chamas a lambiam com as pontas, queimando-
a, e o cheiro saboroso da carne assando me
atormentava.
Est to zangado assim com o Bobo?
perguntou-me Esporana em voz baixa.
O qu? Olhei para ela por cima do ombro.
Durante o tempo em que viajamos juntos,
acabei notando o modo como vocs agem um com
o outro. So mais prximos do que irmos. Eu
teria esperado que voc se sentasse ao lado dele,
preocupado, como fez quando ele esteve doente.
Mas voc est se comportando como se no
houvesse nada de errado com ele.
Os menestris talvez vejam as coisas com
clareza demais. Afastei o cabelo do rosto e pensei.
Hoje mais cedo, ele veio at mim e
conversamos. Sobre o que ele faria, por Moli, se
eu no sobrevivesse para voltar para ela. Olhei
para Esporana e sacudi a cabea. Quando senti a
garganta apertar, fiquei surpreso. Ele no
espera que eu sobreviva. E quando um profeta diz
uma coisa dessas, difcil no acreditar.
A expresso de consternao no rosto dela no
era reconfortante. Revelou a mentira das suas
palavras quando insistiu:
Os profetas nem sempre tm razo. Ele disse,
com certeza, que viu a sua morte?
Quando lhe perguntei, no quis responder
respondi.
Ele no devia ter mencionado um assunto
como esse exclamou de repente Esporana num
tom zangado. Como pode esperar que voc
tenha coragem para o que quer que tenha de fazer,
se voc acredita que isso causar a sua morte?
Encolhi os ombros para ela em silncio. Passara
todo o tempo em que estivramos caando me
recusando a pensar nisso. Em vez de
desaparecerem, os sentimentos apenas haviam se
acumulado. A infelicidade que senti de repente foi
esmagadora. Sim, e a ira tambm. Fiquei furioso
com o Bobo por ter me contado. Forcei-me a
refletir sobre o assunto.
As notcias dificilmente so obra sua. E no
posso criticar as suas intenes. Ainda assim,
difcil encarar a nossa morte, no como algo que
acontecer um dia, em algum lugar, mas como algo
que provvel que ocorra antes de este vero
perder o seu vio. Ergui a cabea e olhei em
volta, para o verdejante prado silvestre que nos
rodeava.
espantoso como uma coisa parece diferente
quando se sabe que a ltima que se ter. Cada
folha em cada galho se sobressaiu, em incontveis
verdes. Aves cantavam desafios umas s outras, ou
passavam voando feito raios de cor. Os cheiros da
carne assando, da prpria terra, at o som de
Olhos-de-Noite partindo um osso entre as
mandbulas transformaram-se todos subitamente
em coisas nicas e preciosas. Quantos dias como
aquele eu havia atravessado cegamente,
concentrado apenas em beber uma caneca de
cerveja quando chegasse cidade ou em qual dos
cavalos devia ser levado naquele dia ao ferreiro?
H muito tempo, em Torre do Cervo, o Bobo me
avisara de que eu devia viver todos os dias como
se fossem importantes, como se todos os dias o
destino do mundo dependesse dos meus atos.
Agora, de repente eu compreendi o que ele
estivera tentando me dizer. Agora, quando os dias
que me restavam haviam se reduzido at eu poder
cont-los.
Esporana colocou as mos nos meus ombros.
Inclinou-se para baixo e encostou o rosto no meu.
Fitz, lamento tanto disse em voz baixa.
Quase no ouvi as palavras, apenas a sua crena
na minha morte. Fitei a carne assando sobre as
chamas. A carne fora um cabrito vivo.
A morte est sempre no limite do agora. O
pensamento de Olhos-de-Noite era gentil. A morte
nos espreita e tem sempre certeza de que matar.
No algo que se deva remoer, mas algo que
todos sabemos, nas entranhas e nos ossos. Todos
menos os seres humanos.
Com um choque, contemplei o que o Bobo viera
tentando me ensinar sobre o tempo. De repente
desejei voltar, ter de novo cada dia separado para
gastar. Tempo. Estava encurralado nele, vedado no
interior de um pedao minsculo de agora que era
o nico tempo que eu podia influenciar. Todos os
logos e amanhs que eu podia planejar eram coisas
fantasmagricas que podiam ser arrancadas de
mim a qualquer momento. As intenes no eram
nada. O agora era tudo o que eu possua. Levantei-
me de sbito.
Compreendo disse em voz alta. Ele
tinha de me dizer, para me instigar. Tenho de parar
de agir como se existisse um amanh em que eu
possa consertar as coisas. Tudo precisa ser feito
agora, imediatamente, sem preocupaes com o
amanh. Sem crena no amanh. Sem medos pelo
amanh.
Fitz? Esporana afastou-se um pouco de
mim. Voc est soando como quem vai fazer
alguma coisa insensata. Os seus olhos escuros
estavam cheios de preocupao.
Insensata disse para mim mesmo.
Insensata como o Bobo insensato. Sim. Pode
vigiar a carne, por favor? perguntei
humildemente a Esporana.
No esperei pela sua resposta. Fiquei de p
enquanto ela se afastava de mim e entrei na tenda.
Panela estava sentada junto do Bobo,
simplesmente observando-o dormir. Kettricken
consertava uma costura na bota. Ambas ergueram
os olhos quando eu entrei.
Preciso falar com ele disse simplesmente.
Sozinho, se no se importarem.
Ignorei os seus olhares intrigados. J desejava
no ter dito a Esporana o que o Bobo me dissera.
No havia dvida de que ela contaria s outras,
mas naquele momento eu no queria dividir aquilo
com elas. Tinha algo de importante a dizer ao
Bobo, e queria faz-lo agora. No esperei para v-
las sair da tenda. Sentei-me ao lado do Bobo.
Toquei suavemente o seu rosto, sentindo a frieza
da sua bochecha.
Bobo disse em voz baixa. Preciso falar
com voc. Eu compreendo. Acho que finalmente
compreendo o que voc tem tentado me ensinar
esse tempo todo.
Precisei tentar vrias vezes at que ele acordou.
Por fim partilhei um pouco da preocupao de
Panela. Aquilo no era o sono simples de um
homem ao fim do dia. Mas ele finalmente abriu os
olhos e me olhou atravs das sombras.
Fitz? J de manh? perguntou.
Incio da noite. E h carne fresca assando, e
logo estar pronta. Acho que uma boa refeio vai
ajudar a coloc-lo nos eixos. Comecei a
hesitar, e ento me lembrei da minha recente
deciso. Agora. Eu fiquei irritado com voc
mais cedo por causa do que me disse. Mas agora
acho que compreendo por qu. Voc tem razo,
tenho me escondido no futuro e desperdiado os
meus dias. Respirei fundo. Quero lhe dar o
brinco de Bronco para que o guarde por mim.
De depois, gostaria que voc o levasse at ele.
E que lhe diga que no morri porta da cabana de
um pastor qualquer, mas cumprindo o juramento
prestado ao meu rei. Isso ter algum significado
para ele, pode lhe pagar um pouco por tudo o que
fez por mim. Ele me ensinou a ser um homem. No
quero que isso fique sem ser dito.
Desprendi o brinco e o tirei da orelha. Enfiei-o
na mo sem fora do Bobo. Ele estava deitado de
lado, escutando em silncio. Seu rosto estava
muito grave. Sacudi a cabea.
No tenho nada para enviar a Moli, nada para
a nossa filha. Ela deve ter o alfinete que Sagaz me
deu h tanto tempo, mas pouco mais do que isso.
Eu estava tentando manter a voz firme, mas a
importncia das minhas palavras estava me
engasgando. Pode ser mais sensato no dizer a
Moli que eu sobrevivi s masmorras de
Majestoso. Se for possvel. Bronco compreender
o motivo para tal segredo. Ela chorou uma vez a
minha morte, no faz sentido lhe dizer que eu no
estava morto. Estou contente por voc ir procur-
la. Faa brinquedos para Urtiga. Contra a minha
vontade, lgrimas me vieram aos olhos.
O Bobo sentou-se, com o rosto cheio de
preocupao. Agarrou suavemente o meu ombro.
Se voc quer que eu procure Moli, sabe que
o farei, caso chegue a esse ponto. Mas por que
temos de pensar agora nessas coisas? O que teme?
Temo a minha morte. Admiti. Mas
tem-la no a impedir. De modo que estou
fazendo os preparativos que posso. Como j devia
ter feito, h muito tempo. Olhei-o firmemente
nos olhos enevoados. Prometa-me.
Ele baixou os olhos para o brinco que tinha na
mo.
Prometo. Embora no saiba por que voc
pensa que as minhas chances so melhores do que
as suas. E tambm no sei como os encontrarei,
mas irei encontr-los.
Senti um grande alvio.
Eu j havia lhe dito. S sei que a cabana em
que vivem fica perto de uma aldeia chamada Praia
do Capelim. H mais de uma Praia do Capelim em
Cervo, verdade. Mas se voc me diz que a
encontrar, eu acredito que encontrar.
Praia do Capelim? Os seus olhos estavam
distantes. Acho que me lembro Pensei que
havia sonhado isso. Sacudiu a cabea e quase
sorriu. Ento agora conheo um dos segredos
mais bem guardados de Cervo. Breu me disse que
nem ele sabia ao certo onde Bronco escondera
Moli. Tinha s um lugar onde deixar uma
mensagem para Bronco, para que Bronco pudesse
ir at ele. Quanto menos pessoas conhecerem um
segredo, menos pessoas podero cont-lo, disse-
me. E, no entanto, parece que eu j tinha ouvido
esse nome antes. Praia do Capelim. Ou talvez o
tenha sonhado.
O meu corao gelou.
O que quer dizer? Voc teve uma viso de
Praia do Capelim?
Ele sacudiu a cabea.
Uma viso, no. No. Mas um pesadelo com
mais dentes do que a maioria, de modo que quando
Panela me encontrou e acordou, eu me senti como
se no houvesse dormido nada, mas tivesse
passado horas fugindo por minha vida. Sacudiu
mais uma vez a cabea, lentamente, e esfregou os
olhos, bocejando. Nem sequer me lembro de
me deitar para dormir l fora. Mas foi onde me
encontraram.
Eu devia ter entendido que havia algo de
errado com voc lamentei. Voc estava na
beira da nascente quente, falando-me de Moli e
de coisas. E depois voc se deitou de repente e
adormeceu. Pensei que estava zombando de mim
admiti, com um ar envergonhado.
Ele deu um tremendo bocejo.
Nem mesmo me lembro de ter ido sua
procura admitiu. De repente, fungou. Voc
disse que havia carne assando?
Assenti.
O lobo e eu apanhamos um cabrito. novo e
deve estar tenro.
Estou com fome suficiente para comer
sapatos velhos declarou ele. Atirou os
cobertores para trs e saiu da tenda. Segui-o.
Aquela refeio foi o melhor momento que
tivemos em dias. O Bobo parecia cansado e
pensativo, mas abandonara o seu humor afiado. A
carne, embora no fosse to tenra como teria sido
a de um carneiro gordo, era melhor do que
qualquer coisa que tivssemos comido nas ltimas
semanas. Por volta do fim da refeio, partilhei da
saciedade sonolenta de Olhos-de-Noite. Ele
enrolou-se l fora, junto a Kettricken, para
compartilhar a sua vigia, enquanto fui para os
meus cobertores na tenda.
Quase esperara que o Bobo no tivesse sono
depois de ter passado boa parte da tarde
dormindo. Contudo, ele foi o primeiro a ir para os
cobertores e estava profundamente adormecido
antes mesmo de eu ter descalado as botas. Panela
desembrulhou o seu pano de jogo e me deu um
problema para resolver. Deitei-me para obter o
descanso que conseguisse enquanto Panela vigiava
o meu sono.
No entanto, pouco descanso obtive naquela
noite. Assim que adormeci, o Bobo comeou a se
mexer e a soltar ganidos agudos no sono. At
Olhos-de-Noite enfiou a cabea na porta da tenda
para ver o que se passava. Panela precisou de
vrias tentativas para despert-lo, e quando ele
voltou a adormecer, regressou aos seus sonhos
ruidosos. Dessa vez, eu estendi o brao para
sacudi-lo. Mas quando lhe toquei no ombro, a
conscincia dele me envolveu. Por um instante,
partilhei do seu terror noturno.
Bobo, acorde! gritei-lhe, e, como que em
resposta a essa ordem, ele se sentou.
Largue, largue! gritou, desesperado.
Ento, olhando em volta e vendo que ningum o
estava agarrando, voltou a cair entre os seus
cobertores. Virou os olhos para cruz-los com os
meus.
Estava sonhando com o qu? perguntei-
lhe.
Ele tentou se lembrar, e ento sacudiu a cabea.
J no me lembro. Respirou fundo,
trmulo. Mas temo que esteja minha espera,
se fechar os olhos. Acho que vou ver se Kettricken
quer alguma companhia. Mais vale ficar acordado
do que enfrentar o que quer que estivesse
enfrentando nos meus sonhos.
Observei-o enquanto saa da tenda. Ento me
deitei nos meus cobertores. Fechei os olhos.
Encontrei-o, tnue como um fio brilhante e
prateado. Havia um vnculo de Talento entre ns.
Ah. isso que isso ?, maravilhou-se o lobo.
Tambm consegue senti-lo?
S s vezes. parecido com o que voc tinha
com Veracidade.
S que mais fraco.
Mais fraco? Acho que no. Olhos-de-Noite
refletiu um pouco. No mais fraco, irmo. Mas
diferente. Moldado mais como um vnculo de
Manha do que como uma unio de Talento.
Ergueu os olhos para o Bobo quando este saiu
da tenda. Passado algum tempo, o Bobo franziu o
cenho para si mesmo e baixou os olhos para
Olhos-de-Noite.
Est vendo?, disse o lobo. Ele me sente. No
com clareza, mas sente. Ol, Bobo. Minhas
orelhas coam.
Fora da tenda, o Bobo abaixou repentinamente a
mo para coar as orelhas do lobo.
CAPTULO 33

A Pedreira

Existem lendas, entre o povo da Montanha, sobre


uma antiga raa, muito dotada de magia e que
sabia muitas coisas agora perdidas dos homens
para sempre. Essas histrias so, sob muitos
aspectos, semelhantes s histrias sobre elfos e
Antigos que so contadas nos Seis Ducados. Em
certos casos, as histrias so to semelhantes
que bvio tratarem-se da mesma histria
adaptada por povos diferentes. O exemplo mais
evidente disso seria a histria da Cadeira
Voadora do Filho da Viva. Entre o povo da
Montanha, essa histria de Cervo transforma-se
no Tren Voador do rfo. Quem poder dizer
qual dos contos foi o primeiro?
O povo do Reino da Montanha lhe dir que
essa raa antiga responsvel por alguns dos
monumentos mais peculiares que se podem
encontrar nas suas florestas. Tambm lhes so
atribudos feitos menores, tais como alguns dos
jogos de estratgia que as crianas da Montanha
ainda jogam, e um instrumento de sopro muito
peculiar, acionado no por pulmes humanos,
mas pelo sopro preso em uma bexiga inflada.
Tambm se contam histrias sobre antigas
cidades situadas bem no interior das montanhas
que outrora foram habitadas por esses seres.
Porm, em nenhum lugar da sua literatura,
falada ou escrita, encontrei algum relato sobre
como essas pessoas deixaram de existir.

Trs dias mais tarde, chegamos pedreira.


Havamos passado trs dias caminhando com um
tempo que subitamente se tornara quente. O ar
estivera cheio com os odores das folhas e flores
que se abriam e com os assobios de aves e os
zumbidos dos insetos. A vida brotava de ambos os
lados da estrada do Talento. Caminhei por ela com
os sentidos aguados, mais consciente de estar
vivo do que jamais estivera. O Bobo no falou
mais sobre o que quer que tivesse profetizado para
mim. Sentia-me grato por isso. Descobrira que
Olhos-de-Noite tinha razo. Saber j era difcil o
suficiente. Eu no iria remoer o assunto.
Ento chegamos pedreira. A princpio pareceu
que havamos simplesmente chegado a um beco
sem sada. A estrada desceu para dentro de um
desfiladeiro esculpido na rocha nua, uma rea com
duas vezes o tamanho do Castelo de Torre do
Cervo. As paredes do vale eram verticalmente
retas e nuas, com cicatrizes nos locais em que
imensos blocos de pedra negra haviam sido
cortados. Em alguns locais, plantas que caam em
cascata da terra da borda da pedreira cobriam os
lados da rocha cortada. Na extremidade mais
baixa da escavao, a gua da chuva acumulara-se
e estagnara, verde. Havia pouco mais vegetao
do que aquilo, pois o solo era muito escasso.
Debaixo dos nossos ps, depois do fim da estrada
do Talento, estendia-se a pedra negra bruta de que
a estrada fora feita. Quando erguemos os olhos
para o grande penhasco que se elevava nossa
frente, ns nos deparamos com pedra negra com
veios de prata. Alguns blocos imensos haviam
sido abandonados no cho da pedreira por entre
pilhas de detritos e poeira. Os enormes blocos
eram maiores do que edifcios. No consegui
imaginar como eles teriam sido cortados, muito
menos como poderiam ter sido levados dali. Ao
lado deles encontravam-se os restos de grandes
mquinas, que me lembravam um pouco mquinas
de cerco. A sua madeira estava apodrecida, o
metal enferrujado. Os restos das mquinas
apoiavam-se uns nos outros, como ossos se
deteriorando. O silncio era total na pedreira.
Houve duas coisas naquele lugar que me
chamaram imediatamente a ateno. A primeira foi
o pilar negro que se erguia no nosso caminho, com
as mesmas antigas runas que encontrramos antes
gravadas nele. A segunda foi a ausncia absoluta
de vida animal.
Parei ao lado do pilar. Sondei em volta e o lobo
partilhou da minha busca. Pedra fria.
Talvez agora vamos aprender a comer pedras?,
sugeriu o lobo.
Esta noite teremos de ir caar em outro lugar
concordei.
E encontrar gua limpa acrescentou o
Bobo.
Kettricken parara ao lado do pilar. As jepas j
estavam se afastando, buscando desconsoladas
alguma vegetao. A posse da Manha e do Talento
aguava a minha percepo de outras pessoas.
Porm, de momento, eu no detectava nada vindo
dela. Seu rosto estava imvel e vazio. Uma falta
de energia tomou conta dele, como se Kettricken
envelhecesse diante dos meus olhos. Os seus olhos
vagavam pela pedra sem vida, e por acaso se
viraram para mim. Um leve sorriso espalhou-se
pela boca.
Ele no est aqui disse. Percorremos
todo este caminho, e ele no est aqui.
No consegui pensar em nada para lhe dizer. De
todas as coisas que eu poderia ter esperado no fim
da nossa demanda, uma pedreira abandonada
parecia a mais improvvel. Tentei pensar em algo
otimista para dizer. Nada havia. Aquela era a
ltima localizao marcada no nosso mapa, e
evidentemente tambm era o destino final da
estrada do Talento. Ela foi ao cho lentamente
para se sentar na pedra na base do pilar. Apenas
ficou sentada ali, cansada e desencorajada demais
para chorar. Quando olhei para Panela e Esporana,
vi-as olhando para mim como se eu tivesse
obrigao de ter alguma resposta. No tinha. O
calor do dia quente fazia presso sobre mim. Fora
para aquilo que tnhamos vindo to longe.
Sinto cheiro de carnia.
Eu no. Era a ltima coisa em que eu queria
pensar naquele momento.
No esperava que voc sentisse, com o seu
focinho. Mas h algo muito morto aqui perto.
Ento v rolar sobre ela e acabe com isso
disse-lhe, com certa aspereza.
Fitz censurou-me Panela enquanto Olhos-
de-Noite se afastava com um trote determinado.
Estava falando com o lobo disse-lhe, de
um modo pouco convincente. O Bobo assentiu,
quase vago. Ele andava muito diferente. Panela
insistira que continuasse tomando casco-de-elfo,
embora as nossas reservas escassas o limitassem a
uma dose muito fraca da mesma casca fervida
vrias vezes. De vez em quando, eu achava que
captava um breve sinal do vnculo de Talento entre
ns. Se olhasse para ele, s vezes se virava e me
devolvia o olhar, mesmo que estivesse do outro
lado do acampamento. No ia alm disso. Quando
lhe falei do assunto, ele disse que s vezes sentia
algo, mas no tinha certeza do que era. Nada
mencionara sobre aquilo que o lobo me dissera.
Com ch de casco-de-elfo ou sem ele, mantinha-se
solene e letrgico. O sono noite no parecia
descans-lo; gemia ou murmurava enquanto
sonhava. Lembrava-me um homem recuperando-se
de uma longa enfermidade. Guardava as suas
foras de muitas pequenas maneiras. Pouco falava;
at mesmo a sua alegria amarga desaparecera. No
passava de mais uma preocupao que eu tinha de
aguentar.
um homem!
O fedor do cadver era denso nas narinas de
Olhos-de-Noite. Quase vomitei com ele.
Veracidade sussurrei para mim mesmo,
horrorizado. Sa correndo na direo que o lobo
tomara. O Bobo seguiu mais devagar no meu
encalo, deriva, como uma pena ao vento. As
mulheres nos viram partir sem compreender.
O corpo estava enfiado entre dois imensos
blocos de pedra. Estava enrolado sobre si mesmo
como se, mesmo na morte, tivesse procurado se
esconder. O lobo andava incessantemente em volta
dele, de pelos eriados. Parei a alguma distncia,
ento puxei o punho da camisa para tapar a minha
mo. Ergui-a para cobrir a boca e o nariz. Ajudou
um pouco, mas nada seria capaz de abafar por
completo aquele fedor. Aproximei-me mais,
preparando-me para aquilo que sabia que teria de
fazer. Quando cheguei perto do corpo, estendi a
mo, agarrei o seu fino manto e o puxei para o ar
livre.
No h moscas observou o Bobo quase
em um tom sonhador.
Tinha razo. No havia moscas, nem larvas.
Somente a silenciosa podrido da morte estivera
trabalhando nas feies do homem. Estavam
escuras, como o bronzeado de um agricultor, s
que mais escuras. O medo as contorcera, mas eu
sabia que no era Veracidade. Ainda assim, fitei-o
durante algum tempo antes de reconhec-lo.
Cedoura disse em voz baixa.
Um membro do crculo de Majestoso?
perguntou o Bobo, como se pudesse haver outro
Cedoura por a.
Assenti com a cabea. Mantive o punho da
camisa sobre o nariz e a boca enquanto me
ajoelhava ao seu lado.
Como foi que ele morreu? perguntou o
Bobo. O cheiro no parecia incomod-lo, mas no
acho que eu seria capaz de falar sem ficar com
nsias de vmito. Encolhi os ombros. A resposta
teria de esperar. Estendi cautelosamente a mo
para puxar sua roupa. O corpo estava tanto rgido
quanto amolecendo. Era difcil examin-lo, mas
no consegui encontrar nele qualquer sinal de
violncia. Respirei um pouco e prendi a
respirao, ento usei ambas as mos para
desafivelar o seu cinto. Soltei-o do corpo com a
bolsa e a faca ainda presas, e me afastei depressa
com ele na mo.
Kettricken, Panela e Esporana surgiram nossa
frente quando eu estava abrindo a bolsa de
Cedoura. No sabia o que esperava encontrar, mas
fiquei desapontado. Tudo o que ele trazia era um
punhado de moedas, uma pederneira e uma
pequena pedra de amolar. Joguei a bolsa no cho e
esfreguei a mo na perna da cala. O fedor da
morte a havia impregnado.
Era Cedoura disse o Bobo s outras.
Deve ter vindo atravs do pilar.
O que o matou? perguntou Panela.
Enfrentei o seu olhar.
No sei. Acho que foi o Talento. O que quer
que tenha sido, ele tentou se esconder. Entre
aquelas pedras. Vamos nos afastar deste cheiro
sugeri. Retornamos ao pilar. Olhos-de-Noite e eu
viemos atrs dos outros e mais devagar. Eu estava
confuso. Percebi que estava usando tudo o que
podia para manter fortes as minhas muralhas de
Talento. Ver Cedoura morto me chocou. Um
membro do crculo a menos, disse a mim mesmo.
Mas ele estava aqui, bem aqui na pedreira quando
morreu. Se Veracidade o tivesse matado com o
Talento, isso talvez significasse que Veracidade
tambm estivera ali. Perguntei-me se iramos dar
com Emaranhado e Vontade em algum lugar na
pedreira, se eles tambm tivessem ido at ali para
atacar Veracidade. Mais fria era a minha suspeita
de que era mais provvel encontrarmos o corpo de
Veracidade. Contudo, nada disse a Kettricken
sobre esses pensamentos.
Acho que o lobo e eu o sentimos ao mesmo
tempo.
H algo vivo l atrs eu disse em voz
baixa. Mais para o interior da pedreira.
O que ? perguntou-me o Bobo.
No sei. Um arrepio percorreu todo o meu
corpo. O meu sentido da Manha do que quer que se
encontrava l atrs flua e reflua. Quanto mais
tentava sentir o que era, mais se esquivava de
mim.
Veracidade? perguntou Kettricken. Partiu
o meu corao ver a esperana despertar de novo
nos seus olhos.
No disse-lhe com brandura. Acho que
no. No se parece com um ser humano. No se
parece com nada que eu tenha detectado antes.
Fiz uma pausa e acrescentei: Acho que vocs
deviam esperar aqui enquanto o lobo e eu vamos
ver o que .
No. falou Panela, no Kettricken, mas
quando olhei para a minha rainha, vi o seu
completo acordo.
Seria melhor deixar voc e o Bobo para trs
enquanto ns investigamos disse-me ela com
severidade. So vocs que esto em perigo
aqui. Se Cedoura esteve aqui, Emaranhado e
Vontade podem estar l atrs.
Por fim, ficou decidido que todos ns nos
aproximaramos, mas com muita cautela. Ns nos
espalhamos e avanamos pelo cho da pedreira.
Eu no podia lhes dizer especificamente onde
sentia a criatura, ento estvamos todos nervosos.
A pedreira era como o cho de um berrio com
os blocos e brinquedos de uma imensa criana
espalhados por toda a parte. Passamos por um
bloco de pedra parcialmente esculpido. No
possua nada da delicadeza das esculturas que
vramos no jardim de pedra. Era grosseira e
rudimentar, e de certo modo obscena. Lembrou-me
o feto de um potro abortado. Causou-me repulsa e
me afastei dela o mais depressa que pude, para a
prxima posio de observao.
Os outros estavam fazendo o mesmo,
deslocando-se de abrigo em abrigo, todos se
esforando para manter pelo menos um membro do
nosso grupo no campo de viso. Pensei que no
seria possvel ver alguma coisa mais perturbadora
do que aquela escultura rudimentar de pedra, mas
passamos em seguida por outra que me abalou.
Algum esculpira, com detalhes de partir o
corao, um drago atolado. As asas da criatura
estavam meio estendidas e os seus olhos
semicerrados encontravam-se rolados para cima
em agonia. Uma cavaleira humana, uma jovem,
montava-o. Ela se agarrava ao pescoo ondulante
e encostava a face nele. O rosto da garota era uma
mscara de agonia, com a boca aberta e as feies
retesadas, os msculos da garganta salientes como
cordes. Tanto a garota quanto o drago haviam
sido trabalhados em cores e linhas delicadas. Eu
conseguia ver os clios da mulher, os fios de
cabelos individuais na sua cabea dourada, as
delicadas escamas verdes em volta dos olhos do
drago, at as gotculas de saliva que se
agarravam aos lbios contorcidos do animal.
Contudo, onde os poderosos ps e cauda em
chicote deviam ter estado, havia apenas uma massa
de pedra negra, como se os dois tivessem
aterrissado em um charco de alcatro e sido
incapazes de escapar dele.
Somente como uma esttua, era de partir o
corao. Vi Panela virar o rosto para o lado, com
lgrimas comeando a surgir em seus olhos. Mas o
que me enervava e a Olhos-de-Noite era o
estremecimento de Manha que ela emitia. Era mais
tnue do que o que sentramos nas esttuas do
jardim, mas isso s a tornava mais comovente. Era
como os ltimos suspiros de uma criatura presa em
uma armadilha. Perguntei-me que Talento teria
sido usado para infundir tal nuance de vida em
uma esttua. Apesar de valorizar a mestria do que
fora feito, eu no tinha muita certeza se a
aprovava. Porm, o mesmo valia para muito do
que aquela antiga raa Talentosa fizera. Enquanto
me esgueirava para alm da esttua, perguntei-me
se seria aquilo que o lobo e eu havamos
detectado. Senti minha pele se arrepiar ao ver o
Bobo virar-se e fitar de novo a esttua, com a testa
franzida de desconforto. Era evidente que ele a
sentia, embora no to bem como ns. Talvez
tenha sido isso que sentimos, Olhos-de-Noite.
Talvez no haja nenhuma criatura viva na
pedreira, afinal, s este monumento morte
lenta.
No. Sinto o cheiro de alguma coisa.
Dilatei as narinas, limpei-as com uma fungada
silenciosa e ento respirei fundo e devagar. O meu
nariz no era to aguado quanto o de Olhos-de-
Noite, mas os sentidos do lobo ampliavam os
meus. Senti o cheiro de suor e senti um leve odor
acre de sangue. Ambos eram frescos. De repente, o
lobo encostou-se em mim e, como um s, ns nos
esgueiramos em volta da extremidade de um bloco
de pedra do tamanho de duas cabanas.
Olhei em volta do canto e ento avancei com
cautela. Olhos-de-Noite passou por mim correndo.
Vi o Bobo dando a volta na outra extremidade da
pedra e senti tambm os outros se aproximarem.
Ningum falou.
Era outro drago. Aquele era do tamanho de um
navio. Era todo feito de pedra negra e estava
deitado, dormindo, sobre o bloco de pedra de
onde emergia. Lascas, pedaos de pedra e poeira
jaziam no cho em volta do bloco. Mesmo
distncia, fiquei impressionado. Apesar do sono,
cada trao da criatura indicava fora e nobreza. As
asas dobradas ao longo do seu corpo eram como
velas arriadas, enquanto o arco do poderoso
pescoo lembrava-me o cavalo de batalha de um
oficial. Olhei-o durante alguns momentos antes de
ver a pequena figura cinzenta cada ao seu lado.
Fitei-a e tentei decidir se a vida tremeluzente que
detectava viria do homem ou do drago de pedra.
Os fragmentos descartados de pedra formavam
quase uma rampa at o bloco de onde o drago
emergia. Pensei que a figura humana se mexeria ao
ouvir o rudo de esmagamento dos meus passos,
mas no o fez. E tambm no consegui detectar
nenhum dos pequenos movimentos da respirao.
Os outros ficaram para trs, observando a minha
subida. Apenas Olhos-de-Noite me acompanhou, e
ele veio de pelos eriados. Eu estava a um brao
de distncia do homem quando ele se ergueu de um
salto e me encarou.
Era velho e magro, grisalho tanto no cabelo
como na barba. Os seus trajes esfarrapados
estavam cinzentos com a poeira da pedra, e uma
mancha cinzenta cobria uma das suas bochechas.
Os joelhos que se viam atravs das pernas da
cala estavam arranhados e ensanguentados de se
ajoelhar em pedra quebrada. Os ps estavam
enrolados em farrapos. Agarrava uma espada
muito denteada com uma mo coberta por uma
manopla cinzenta, mas no a ps em posio. Senti
que segurar a espada era um fardo para as suas
foras. Algum instinto me levou a erguer os braos
afastados do corpo, para lhe mostrar que no trazia
qualquer arma. Ele me olhou apaticamente por um
momento; ento ergueu devagar os olhos at o meu
rosto. Durante algum tempo nos encaramos. O seu
olhar perscrutador e quase cego me lembrou o
Harpista Gracejo. Ento sua boca se escancarou
no interior da barba, descobrindo dentes
surpreendentemente brancos.
Fitz? disse, hesitante.
Reconheci a voz, apesar de enferrujada. Tinha
de ser Veracidade. Mas tudo o que eu era gritou de
horror por ele poder ter chegado quele estado,
por poder ter se transformado naquele farrapo de
homem. Atrs de mim, ouvi o rpido esmagar de
passos e me virei a tempo de ver Kettricken subir
correndo a rampa de pedra que rua. Esperana e
consternao lutavam em seu rosto.
Veracidade! gritou, e havia apenas amor
na palavra. Precipitou-se, estendendo os braos
para ele, e quase no consegui agarr-la quando
ela passou por mim correndo.
No! gritei-lhe. No, no toque nele!
Veracidade! gritou de novo, e ento lutou
contra as minhas mos, gritando: Solte-me,
deixe-me ir at ele. Foi apenas com grande
dificuldade que a detive.
No disse-lhe em voz baixa. Como s
vezes acontece, a suavidade da minha ordem a fez
parar de lutar. Virou para mim a pergunta dos
olhos.
As mos e braos dele esto cobertos de
magia. No sei o que poderia lhe acontecer se ele
a tocasse.
Ela virou a cabea no meu rude abrao para fitar
o marido. Ele nos observava, com um sorriso
amvel e bastante confuso no rosto. Inclinou a
cabea para um lado como se nos examinasse,
ento se abaixou cuidadosamente para largar a
espada. Kettricken viu ento aquilo em que eu
reparara antes. A cintilao reveladora da prata
rastejava pelos seus dedos e antebraos.
Veracidade no usava manoplas; a carne dos seus
braos e mos estava impregnada de poder em
estado puro. A mancha no seu rosto no era poeira,
mas uma mancha de poder onde ele se tocara.
Ouvi os outros se aproximarem atrs de ns,
com passos que esmagavam lentamente a pedra.
No precisei me virar para senti-los olhando
fixamente. Por fim, o Bobo disse em voz baixa:
Veracidade, meu prncipe, viemos.
Ouvi um som que estava entre um arquejo e um
soluo. Isso me fez virar a cabea, e vi Panela cair
lentamente, afundando-se como um navio
arrombado. Apertava o peito com uma mo e a
boca com a outra enquanto caa de joelhos. Os
seus olhos arregalaram-se quando olhou para as
mos de Veracidade. Esporana parou
imediatamente ao seu lado. Nos meus braos, senti
Kettricken me empurrar calmamente. Olhei para o
seu rosto aflito, e ento a larguei. Ela avanou
para Veracidade um passo lento de cada vez e ele
a observou se aproximar. O rosto dele no estava
impassvel, mas tambm no mostrou qualquer
sinal de um reconhecimento especial. A um brao
de distncia dele, ela parou. Tudo era silncio.
Kettricken o fitou durante algum tempo, ento
sacudiu lentamente a cabea, como que para
responder pergunta a que deu voz.
Senhor meu esposo, no me reconhece?
Esposo disse ele, debilmente. A testa
ficou mais franzida, em uma atitude que era a de
um homem que se lembra de algo que outrora
soubera de cor. Princesa Kettricken, do Reino
da Montanha. Ela me foi dada como esposa. S
uma garotinha, uma gatinha selvagem de montanha,
de cabelo amarelo. Era tudo o que eu conseguia
me lembrar dela at a trazerem para mim. Um
leve sorriso lhe suavizou o rosto. Naquela
noite, desprendi um cabelo dourado que era como
um riacho, mais fino do que seda. To fino que no
me atrevi a toc-lo, para que no se partisse nas
minhas mos calejadas.
As mos de Kettricken subiram at o cabelo.
Quando lhe chegara a notcia da morte de
Veracidade, ela o cortara at deix-lo rente ao
crnio. Agora lhe chegava quase aos ombros, mas
a seda fina de outrora desaparecera, tornada
spera pelo sol, pela chuva e pela poeira da
estrada. Contudo, ela o soltou da espessa trana
que o confinava e o sacudiu para deix-lo solto em
volta do rosto.
Senhor disse em voz baixa. Olhou de mim
para Veracidade. No posso toc-lo?
suplicou.
Oh Ele pareceu considerar o pedido.
Olhou para os braos e as mos, flexionando os
dedos prateados. Oh, receio que no, creio eu.
No. No, melhor no. Falava com pena, mas
me pareceu que era s por ter de recusar o pedido
dela, no por ter pena de no ser capaz de toc-la.
Kettricken respirou fundo, entrecortadamente.
Senhor comeou, e ento sua voz vacilou.
Veracidade, eu perdi o nosso beb. O nosso
filho morreu.
Eu no compreendera at ento o fardo que fora
para ela ir em busca do marido sabendo que tinha
de lhe dar aquela notcia. Abaixou a orgulhosa
cabea, como se esperasse a fria dele. O que
recebeu foi pior.
Oh disse ele. Tivemos um filho? No
me lembro
Acho que foi isso que acabou com ela, descobrir
que a notcia arrasadora no o enfurecia nem
entristecia, mas apenas o confundia. Tinha de se
sentir trada. A sua fuga desesperada do Castelo
de Torre do Cervo e todas as dificuldades que
suportara para proteger o filho por nascer, os
longos meses solitrios da gravidez, culminados
pelo dilacerante nascimento do beb morto, e o
terror por ter de contar ao seu senhor como lhe
falhara: fora essa a sua realidade ao longo do ano
anterior. E agora estava diante do seu marido e rei,
e ele tinha dificuldade em lembrar-se dela e sobre
a criana morta dizia apenas Oh. Senti-me
envergonhado por aquele velho trmulo que olhava
a rainha e sorria de forma to cansada.
Kettricken no gritou, nem chorou. Simplesmente
se virou e afastou-se lentamente. Senti um grande
controle naquela passagem, e uma grande ira.
Esporana, agachada ao lado de Panela, ergueu os
olhos para a rainha quando ela passou. Fez meno
de se levantar e de segui-la, mas Kettricken fez um
minsculo movimento com a mo proibindo.
Sozinha, desceu do grande estrado de pedra e
afastou-se a passos largos.
Vou com ela?
Por favor. Mas no a incomode.
No sou estpido.
Olhos-de-Noite me deixou, para seguir
Kettricken. Apesar do meu aviso, soube que ele foi
diretamente at ela, aproximando-se por trs e lhe
empurrando a perna com a sua grande cabea. Ela
caiu subitamente sobre um joelho e o abraou,
mergulhando o rosto na sua pelagem, deixando cair
as lgrimas nos seus pelos speros. Ele se virou e
lambeu a sua mo. V embora, repreendeu-me o
lobo, e eu afastei deles a minha conscincia.
Pisquei, percebendo que durante todo aquele
tempo estivera fitando Veracidade. Os seus olhos
cruzaram-se com os meus.
Ele pigarreou.
FitzCavalaria disse, e respirou fundo para
falar. Ento soltou metade do ar que inspirara.
Estou to cansado disse, com tristeza. E
ainda h tanto a se fazer. Indicou com um gesto
o drago atrs de si. Foi ao cho pesadamente, at
se sentar ao lado da esttua. Tentei tanto
disse, a ningum em particular.
O Bobo recuperou o senso antes de eu recuperar
o meu.
Meu senhor, Prncipe Veracidade
comeou, ento fez uma pausa. Meu rei. Sou eu,
o Bobo. Posso servir ao senhor?
Veracidade ergueu os olhos para o homem
plido e esguio que estava de p na sua frente.
Eu ficaria honrado respondeu, passado um
momento. A cabea oscilava sobre o pescoo.
Por aceitar a lealdade e servio de algum que
serviu to bem o meu pai e a minha rainha. Por
um instante vislumbrei algo do antigo Veracidade.
Ento a certeza apagou-se de novo do seu rosto.
O Bobo avanou, ento ajoelhou de repente ao
seu lado. Deu tapinhas no ombro de Veracidade,
levantando uma pequena nuvem de p de pedra.
Eu tomarei conta do senhor disse. Tal
como fiz com o seu pai. Levantou-se de sbito
e virou-se para mim. Vou recolher lenha e
arranjar gua limpa anunciou. Olhou para alm
de mim, na direo das mulheres. Panela est
bem? perguntou a Esporana.
Ela quase desmaiou comeou Esporana.
Mas Panela a interrompeu abruptamente:
Fiquei chocada at o meu mago, Bobo. E
no tenho pressa nenhuma de me levantar. Mas
Esporana livre para ir fazer tudo o que tem de
ser feito.
Ah. timo. O Bobo parecia ter tomado
completo controle da situao. Soava como quem
organiza um ch. Ento, se fizer a bondade,
Dona Esporana, poderia tratar de montar a tenda?
Ou duas tendas, se tal coisa puder ser arranjada.
Veja que comida nos resta, e planeje uma refeio.
Uma refeio generosa, pois creio que todos
precisamos. Regressarei em breve com lenha e
gua. E legumes, se tiver sorte. Lanou-me um
rpido olhar. Cuide do rei disse em voz
baixa. Ento se afastou a passos largos. Esporana
foi deixada boquiaberta. Depois se levantou e foi
em busca das jepas extraviadas. Panela a seguiu
mais devagar.
E assim, aps todo aquele tempo e viagens, eu
fui deixado sozinho diante do meu rei. Venha at
mim, dissera-me ele, e eu viera. Houve um
instante de paz quando percebi que aquela voz
insistente finalmente se calara.
Bem, aqui estou, meu rei disse,
calmamente, tanto a mim quanto a ele.
Veracidade no respondeu. Dera-me as costas e
estava ocupado escavando a esttua com a espada.
Estava ajoelhado, agarrando a espada pelo cabo e
pela lmina e raspava na pedra com a ponta, ao
longo da extremidade da pata dianteira do drago.
Aproximei-me para v-lo raspar a pedra preta do
estrado. O seu rosto estava to concentrado, os
seus movimentos eram to precisos que eu no
soube o que pensar.
Veracidade, o que est fazendo? perguntei
em voz baixa.
Ele nem sequer ergueu os olhos para mim.
Estou esculpindo um drago respondeu.
Vrias horas mais tarde, continuava labutando na
mesma tarefa. O montono raspa, raspa, raspa da
lmina na pedra deixara os meus dentes a ponto de
estourarem e despedaara cada nervo do meu
corpo. Eu havia permanecido no estrado com ele.
Esporana e o Bobo haviam erguido a nossa tenda,
bem como uma segunda tenda mais pequena,
montada com os cobertores de inverno, que agora
tnhamos em excesso. Havia uma fogueira ardendo.
Panela cuidava de um caldeiro borbulhante. O
Bobo estava organizando os legumes e razes que
apanhara, enquanto Esporana arrumava cobertores
pelas tendas. Kettricken juntara-se a ns durante
algum tempo, apenas para tirar o arco e a aljava
dos embrulhos que as jepas transportavam.
Anunciara que ia caar com Olhos-de-Noite. Ele
me lanou um olhar suave com os seus olhos
escuros, e eu fiquei calado.
Eu sabia pouco mais do que quando
encontrramos Veracidade. As suas muralhas de
Talento estavam erguidas e bem firmes. No
recebi dele quase nenhum sentido de Talento. O
que descobri quando sondei na sua direo foi
ainda mais enervante. Notei o sentido flutuante de
Manha que obtinha dele, mas no consegui
compreend-lo. Era como se a sua vida e
conscincia flutuassem entre o seu corpo e a
grande esttua do drago. Lembrei-me da ltima
vez que encontrara uma coisa assim. Fora entre o
Manhoso e o seu urso. Eles partilhavam do mesmo
fluxo de vida. Suspeitei de que, se algum
sondasse na direo do lobo e de mim, descobriria
o mesmo tipo de padro. J partilhvamos as
mentes h tanto tempo que, de certos pontos de
vista, ramos uma nica criatura. Mas isso no me
explicava como Veracidade poderia ter se
vinculado a uma esttua, nem por que persistia em
rasp-la com uma espada. Desejei agarrar a
espada e arranc-la das suas mos, mas me
contive. Na verdade, ele parecia to obcecado
com o que fazia que eu quase temia interromp-lo.
Algum tempo antes, eu tentara lhe fazer
perguntas. Quando lhe perguntara o que acontecera
queles que haviam partido com ele, Veracidade
sacudiu lentamente a cabea.
Atormentaram-nos da mesma forma que um
bando de corvos caa uma guia. Aproximando-se,
crocitando e bicando, e fugindo quando nos
virvamos para atac-los.
Corvos? perguntei-lhe, inexpressivo.
Ele sacudiu a cabea diante da minha estupidez.
Soldados contratados. Disparavam sobre ns
de esconderijos. Caam sobre ns noite, s
vezes. E alguns dos meus homens foram
confundidos pelo Talento do crculo. No consegui
proteger as mentes dos que eram suscetveis.
Enviaram medos noturnos para persegui-los e
suspeitas uns dos outros. Ento lhes pedi para
regressarem, imprimi em suas mentes a minha
ordem de Talento, para salv-los uns dos outros.
Foi quase a nica pergunta que ele realmente
respondeu. Das outras que fiz, ele decidiu no
responder a muitas, e as respostas que deu s
outras foram inapropriadas ou evasivas. De modo
que desisti. Em vez de fazer perguntas, dei por
mim lhe apresentando um relatrio. Foi um longo
relato, pois comecei com o dia em que o vira
partir. Tinha certeza de que ele j conhecia muito
do que lhe disse, mas mesmo assim o repeti. Se a
sua mente vagava, como eu temia, refrescar-lhe a
memria talvez a ancorasse. E se a mente do meu
rei estivesse to penetrante como sempre debaixo
daquele comportamento empoeirado, ento no
faria mal nenhum se todos os acontecimentos
fossem colocados em perspectiva e em ordem.
No consegui imaginar outra maneira de chegar at
ele.
Eu comeara o relatrio, creio, para faz-lo
compreender tudo aquilo por que passramos para
estarmos ali. E tambm por desejar acord-lo para
aquilo que estava acontecendo no seu reino
enquanto ele se demorava ali com o drago.
Talvez esperasse despertar de novo nele algum
sentido de responsabilidade pelo seu povo.
Enquanto falava, ele pareceu desapaixonado, mas
ocasionalmente fazia um aceno grave, como se eu
tivesse confirmado algum medo secreto seu. E a
ponta da espada nunca parou de se mover contra a
pedra negra, raspando, raspando, raspando.
Era quase noite cerrada quando ouvi o arrastar
dos ps de Panela atrs de mim. Fiz uma pausa no
relato das minhas aventuras na cidade arruinada e
me virei para olh-la.
Trouxe um pouco de ch quente para vocs
anunciou.
Obrigado eu disse, e peguei a caneca que
ela me estendia, mas Veracidade apenas ergueu os
olhos da sua perptua raspagem.
Durante algum tempo, Panela manteve-se
parada, apresentando o copo a Veracidade.
Quando falou, no foi para lembr-lo do ch.
O que est fazendo? perguntou em uma
voz suave.
A raspagem parou de repente. Ele virou-se para
fit-la, ento me olhou de relance como que para
ver se eu tambm ouvira aquela pergunta ridcula.
O olhar interrogador que eu ostentava pareceu
espant-lo. Pigarreou.
Estou esculpindo um drago.
Com a lmina da sua espada? perguntou
ela. No seu tom de voz havia curiosidade, nada
mais.
S as partes mais grosseiras disse-lhe ele.
Para o trabalho mais delicado, uso a faca. E
ento, para o mais delicado de todos, os dedos e
as unhas. Virou lentamente a cabea,
inspecionando a imensa esttua. Gostaria de
dizer que est quase pronto balbuciou. Mas
como posso dizer isso quando ainda h tanto a se
fazer? Tanto, tanto a se fazer E temo que acabe
por ser tarde demais. Se no for j tarde demais.
Tarde demais para o qu? perguntei, com
a voz to suave como a de Panela.
Ora tarde demais para salvar o povo dos
Seis Ducados. Ele me olhou como se eu fosse
um simplrio. Por que outro motivo eu estaria
fazendo isso? Por que outro motivo eu teria
abandonado a minha terra e a minha rainha, para
vir at aqui?
Tentei compreender o que ele estava me
dizendo, mas houve uma pergunta dominadora que
me saltou da boca.
Acha que esculpiu este drago inteiro?
Veracidade refletiu.
No. Claro que no. Mas precisamente no
momento em que eu sentia alvio por ele no estar
completamente louco, acrescentou: Ainda no
est acabado. Voltou a examinar o seu drago
com o olhar amigavelmente orgulhoso que
antigamente reservara para os seus melhores
mapas. Mas at esta parte levei muito tempo.
Muito, muito tempo.
No quer beber o seu ch enquanto est
quente, senhor? perguntou Panela, oferecendo-
lhe de novo o copo.
Veracidade olhou-o como se fosse um objeto
estranho. Ento o tirou gravemente da sua mo.
Ch. Quase havia me esquecido do ch. No
de casco-de-elfo, ? Eda me salve, como eu
odiava aquela infuso amarga!
Panela quase estremeceu ao ouvi-lo falar de
casco-de-elfo.
No, senhor, no h nenhum casco-de-elfo,
garanto-lhe. Receio que tenha sido feito com ervas
colhidas beira da estrada. Principalmente urtiga,
e um pouco de hortel.
Ch de urtiga. A minha me costumava nos
dar ch de urtiga como tnico de primavera.
Sorriu para si mesmo. Vou pr isso no meu
drago. O ch de urtiga da minha me. Bebeu
um gole, e ento pareceu surpreso. Est
quente J se passou tanto tempo desde que tive
tempo para comer alguma coisa quente.
Quanto tempo? perguntou Panela em tom
de conversa.
Muito muito tempo respondeu
Veracidade. Bebeu mais um gole de ch. H
peixe em um riacho, fora da pedreira. Mas j
difcil o suficiente arranjar tempo para apanh-los,
quanto mais para cozinh-los. Na verdade, eu me
esqueo. Coloquei tantas coisas no drago
talvez essa tenha sido uma delas.
E h quanto tempo no dorme? insistiu
Panela.
No posso trabalhar e dormir ao mesmo
tempo observou ele. E o trabalho tem de ser
feito.
E o trabalho ser feito prometeu-lhe a
velha. Mas esta noite o senhor far uma pausa,
s por algum tempo, para comer e beber. E depois
para dormir. V? Olhe para l. Esporana montou
uma tenda para o senhor, e l dentro h cobertores
quentes e macios. E gua quente, para se lavar. E a
roupa limpa que conseguirmos arranjar.
Ele baixou os olhos para as mos prateadas.
No sei se posso me lavar confidenciou.
Nesse caso, FitzCavalaria e o Bobo iro
ajud-lo prometeu-lhe ela alegremente.
Obrigado. Isso seria bom. Mas Os seus
olhos partiram para longe, por algum tempo.
Kettricken. Ela no esteve aqui, h pouco? Ou ser
que a sonhei? Foi dela tanto o que eu tinha de mais
forte, de modo que o coloquei no drago. Acho
que disso que tenho sentido mais saudades, entre
tudo o que coloquei ali. Fez uma pausa, e ento
acrescentou: Nas ocasies em que consigo me
lembrar daquilo que de que sinto saudade.
Kettricken est aqui assegurei-lhe. Foi
caar, mas regressar em breve. Gostaria de estar
lavado e vestido com roupas limpas quando ela
voltar? Eu decidira responder s partes da sua
conversa que faziam sentido e no perturb-lo
questionando-o sobre as outras partes.
Essa mulher v alm desse tipo de coisa
disse-me ele, com uma sombra de orgulho na voz.
Ainda assim, seria agradvel Mas h tanto
trabalho a se fazer.
Mas est ficando escuro demais para
trabalhar mais hoje. Espere at de manh. O
trabalho ser feito garantiu-lhe Panela.
Amanh, irei ajudar o senhor.
Veracidade sacudiu lentamente a cabea. Bebeu
mais um pouco de ch. Mesmo aquela bebida rala
parecia fortalec-lo.
No disse em voz baixa. Temo que
voc no possa. Tenho de faz-lo sozinho,
compreende?
Amanh, o senhor ver. Acho que, se tiver
foras suficientes ento, poder ser possvel que
eu o ajude. Mas no nos preocupemos com isso at
l.
Ele suspirou e lhe ofereceu de volta a caneca
vazia. Em vez de pegar a caneca, ela o agarrou
rapidamente pela parte superior do brao e
colocou de p. Era forte, para uma mulher to
velha. No procurou lhe tirar a espada da mo,
mas ele a largou. Eu me abaixei para recolh-la.
Ele seguiu Panela docilmente, como se o simples
ato de lhe pegar no brao o tivesse privado de
toda a vontade. Enquanto os seguia, passei os
olhos pela lmina que fora o orgulho de Hode.
Perguntei a mim mesmo o que possura Veracidade
para pegar uma arma to rgia e transform-la em
uma ferramenta para esculpir a pedra. Os gumes
estavam cheios de amassados e entalhes devido ao
mau uso, a ponta no era mais pontuda do que uma
colher. A espada era to parecida com o homem,
refleti, e os segui at o acampamento.
Quando chegamos fogueira, fiquei quase
chocado por ver que Kettricken regressara. Estava
sentada junto ao fogo, fitando-o
desapaixonadamente. Olhos-de-Noite estava
deitado quase em cima dos seus ps. As orelhas se
empinaram na minha direo quando me aproximei
da fogueira, mas ele no fez qualquer movimento
para abandonar a rainha.
Panela guiou Veracidade diretamente para a
tenda improvisada que fora erguida para ele. Fez
um aceno ao Bobo e, sem uma palavra, ele pegou
uma bacia fumegante de gua que estava ao lado
da fogueira e a seguiu. Quando me atrevi a tambm
entrar na minscula tenda, o Bobo me enxotou e
tambm a Panela.
Ele no ser o primeiro rei de quem cuidarei
lembrou-nos. Confiem-no a mim.
No toque nas mos ou nos antebraos dele!
advertiu severamente Panela. O Bobo pareceu
um pouco surpreso com aquilo, mas passado um
momento balanou a cabea em concordncia.
Quando eu sa, ele estava desamarrando a tira de
couro cheia de ns que prendia o gasto justilho de
Veracidade, no parando de falar de coisas
inconsequentes. Ouvi Veracidade observar:
Sinto tanta falta de Carimo. Nunca devia ter
permitido que viesse comigo, mas ele me servia h
tanto tempo Morreu lentamente, com muita dor.
Isso foi difcil para mim, v-lo morrer. Mas
tambm ele foi para o drago. Foi necessrio.
Senti-me embaraado quando regressei para a
fogueira. Esporana estava mexendo a panela de
cozido que borbulhava alegremente. Um grande
pedao de carne num espeto pingava gordura na
fogueira, fazendo as chamas saltarem e sibilarem.
O cheiro que lanava me lembrou com tamanha
intensidade a fome que eu sentia que a minha
barriga roncou. Panela estava de p, de costas
voltadas para a fogueira, com os olhos perdidos na
escurido. Os de Kettricken se voltaram para mim.
Ento eu disse, de repente. Como foi a
caa?
Como v disse Kettricken em voz baixa.
Indicou a panela com um gesto, e ento atirou uma
mo indiferente para indicar uma fmea esvicerada
de porco da floresta. Aproximei-me dela para
admir-la. No era um animal pequeno.
Presa perigosa observei, tentando parecer
descontrado em vez de horrorizado pelo fato de
minha rainha enfrentar sozinha um animal como
aquele.
Era o que eu precisava caar disse ela,
ainda em voz baixa. Compreendi-a bem demais.
Foi uma caada muito boa. Nunca tinha
capturado tanta carne com to pouco esforo,
disse-me Olhos-de-Noite. Roou o lado da cabea
na perna dela com uma verdadeira afeio. Ela
deixou cair uma mo para lhe puxar suavemente
pelas orelhas. Ele gemeu de prazer e encostou-se
pesadamente nela.
Assim acabar mimando ele fingi adverti-
la. Ele me disse que nunca capturou tanta carne
com to pouco esforo.
Ele to inteligente. Juro que empurrou a
caa na minha direo. E corajoso. Quando a
minha primeira flecha no a abateu, ele a manteve
a distncia enquanto eu encaixava outra no arco.
Falava como se no tivesse mais nada em
mente alm daquilo. Respondi s suas palavras
com um aceno, satisfeito por deixar que a nossa
conversa se desenrolasse assim. Porm, ela me
perguntou de sbito: O que h com ele?
Eu sabia que ela no falava do lobo.
No tenho certeza disse suavemente.
Ele passou por grandes privaes. Talvez
suficientes para lhe enfraquecer a mente. E
No. A voz de Panela soou brusca.
No nada disso. Embora eu admita que ele est
cansado. Qualquer homem estaria, depois de fazer
o que ele fez sozinho. Mas
No pode acreditar que foi ele quem esculpiu
todo aquele drago! interrompi.
Acredito retorquiu a velha com certeza na
voz. como ele lhe disse. Precisa faz-lo
pessoalmente, e por isso o fez. Sacudiu
lentamente a cabea. Eu nunca tinha ouvido
falar de uma coisa dessas. At o Rei Sabedoria
teve a ajuda do seu crculo, ou daquilo que restava
dele quando chegou aqui.
Ningum poderia ter esculpido aquela esttua
com uma espada eu disse, teimosamente. O que
ela estava dizendo era um absurdo.
Como resposta, ela levantou-se e penetrou a
passos largos na escurido. Quando regressou,
largou dois objetos aos meus ps. Um j fora um
cinzel. A cabea fora dobrada at se transformar
numa massa irregular, a lmina transformara-se em
coisa nenhuma. O outro era uma antiga cabea de
marreta de ferro, com um cabo de madeira
relativamente novo encaixado nela.
H outros, espalhados por a. Provavelmente
os encontrou na cidade. Ou jogados fora por aqui
observou antes de eu ter tempo de fazer a
pergunta.
Fitei as maltratadas ferramentas, e pensei em
todos os meses que haviam se passado desde que
Veracidade partira. Para aquilo? Para esculpir um
drago de pedra?
No compreendo eu disse debilmente.
Panela falou com clareza como se eu fosse lento
de raciocnio.
Ele tem esculpido um drago e armazenado
nele todas as suas recordaes. Isso parte do
motivo por que parece to vago. Mas h mais.
Creio que usou o Talento para matar Cedoura, e
foi gravemente ferido ao faz-lo. Sacudiu
tristemente a cabea. Chegar to perto de
acabar, para ento ser derrotado. Pergunto-me
quo astuto o crculo de Majestoso. Enviaram um
dos seus contra ele, sabendo que se Veracidade
matasse com o Talento poderia derrotar a si
mesmo?
No acho que algum dos membros desse
crculo se sacrificaria voluntariamente.
Panela deu um sorriso amargo.
No disse que ele veio voluntariamente. E
tambm no disse que sabia o que os colegas
pretendiam fazer. como o jogo das pedras,
FitzCavalaria. Joga-se cada pedra para ganhar o
mximo de vantagem no jogo. O objetivo ganhar,
no colecionar as pedras.
CAPTULO 34

Garota em um Drago

No incio da nossa resistncia contra os Navios


Vermelhos, antes de algum nos Seis Ducados ter
comeado a cham-la de guerra, o Rei Sagaz e o
Prncipe Veracidade perceberam que a tarefa
que enfrentavam era descomunal. Nenhum
indivduo, por mais Talentoso que fosse, poderia
resistir sozinho para afastar os Navios
Vermelhos das nossas costas. O Rei Sagaz
convocou Galeno, o Mestre do Talento, e
ordenou-lhe que criasse um crculo para
Veracidade a fim de auxiliar os esforos do
prncipe. Galeno resistiu a esta ideia,
especialmente quando descobriu que um dos que
teria de treinar era um bastardo real. O Mestre
do Talento declarou que nenhum dos estudantes
que lhe foram apresentados era digno de ser
treinado. Mas o Rei Sagaz insistiu, dizendo-lhe
para fazer com eles o melhor que pudesse.
Quando Galeno cedeu, a contragosto, criou o
crculo que leva o seu nome.
Rapidamente ficou evidente ao Prncipe
Veracidade que o crculo, embora internamente
fosse coeso, no trabalhava nada bem com o
prncipe. A essa altura, Galeno morrera,
deixando Torre do Cervo sem sucessor para o
posto de Mestre do Talento. Em desespero,
Veracidade procurou outras pessoas treinadas
no Talento que pudessem vir em seu auxlio.
Embora no tivessem sido criados quaisquer
crculos durante os anos pacficos do reinado do
Rei Sagaz, Veracidade pensou que poderia ainda
haver homens e mulheres vivos treinados para
crculos antes dessa poca. No havia sido
sempre lendria a longevidade dos membros dos
crculos? Talvez conseguisse encontrar algum
que o ajudasse, ou que fosse capaz de treinar
outros no Talento.
Contudo, os esforos do Prncipe Veracidade
nessa rea resultaram em nada. Aqueles que
conseguiu identificar como utilizadores de
Talento a partir de registros e do boca a boca
estavam todos mortos ou misteriosamente
desaparecidos. E, assim, o Prncipe Veracidade
foi forado a travar sozinho a sua guerra.

Antes de eu ter tempo de pressionar Panela a


esclarecer as suas respostas, ouviu-se um grito
vindo da tenda de Veracidade. Todos saltamos,
mas Panela foi a primeira a chegar aba da tenda.
O Bobo emergiu, agarrando o pulso esquerdo com
a mo direita. Dirigiu-se diretamente ao balde de
gua e mergulhou nele a mo. Tinha o rosto
contorcido de dor ou medo, talvez por ambas as
coisas. Panela o seguiu a passos largos para
examinar a mo que ele agarrava.
Sacudiu a cabea, desgostosa.
Eu lhe avisei! Vamos, tire-a da gua, que ela
no melhora isso em nada. Nada melhorar isso de
jeito nenhum. Pare. Pense. No realmente dor,
uma sensao que voc nunca sentiu antes.
Respire. Relaxe. Aceite-a. Aceite-a. Respire
fundo, respire fundo.
Enquanto falava, puxava o brao do Bobo, at
que ele tirou relutantemente a mo da gua. Panela
virou imediatamente o balde com o p. Chutou p
de pedra e cascalhos sobre a gua derramada, sem
soltar o brao do Bobo. Eu estiquei o pescoo
para olhar atrs dela. As pontas dos primeiros trs
dedos da mo esquerda do Bobo estavam agora
cobertos de prata. Ele os olhou com um
estremecimento. Nunca vira o Bobo to enervado.
Panela falou com firmeza.
Isso no sair lavando. No sair esfregando.
Agora est com voc, ento aceite-o. Aceite-o.
Di? perguntei, ansioso.
No lhe faa essa pergunta! exclamou
Panela. No lhe pergunte nada agora. V
cuidadr do rei, FitzCavalaria, e deixe o Bobo
comigo.
Na minha preocupao com o Bobo, quase
esquecera o meu rei. Abaixei-me para entrar na
tenda. Veracidade estava sentado em dois
cobertores dobrados. Lutava para amarrar uma das
minhas camisas. Deduzi que Esporana
esquadrinhara todos os embrulhos para lhe
arranjar roupa limpa. Afetou-me v-lo to magro
que uma das minhas camisas lhe servia.
Permita-me, meu rei sugeri.
Ele no s abaixou as mos, como as ps atrs
das costas.
O Bobo est muito ferido? perguntou
enquanto eu lutava com os cordes cheios de ns.
Soava quase como o meu velho Veracidade.
S tem trs pontas de dedos prateadas
respondi. Vi que o Bobo preparara uma escova e
uma tira de couro. Posicionei-me atrs de
Veracidade e comecei a escovar o seu cabelo para
trs. Ele puxou apressadamente as mos para
frente. Um pouco do cinza no seu cabelo fora
poeira de pedra, mas no todo. O seu rabo de
cavalo de guerreiro era agora grisalho com
madeixas negras e spero como a cauda de um
cavalo. Esforcei-me por alis-lo. Enquanto
amarrava a tira, perguntei-lhe: Como a
sensao?
Disto? perguntou, erguendo as mos e
mexendo os dedos. Oh. como o Talento. S
que mais, e nas minhas mos e braos.
Percebi que ele achava ter respondido
pergunta.
Por que fez isso? perguntei.
Bem, para trabalhar a pedra, voc sabe.
Quando tenho este poder nas mos, a pedra tem de
obedecer ao Talento. A pedra extraordinria.
Como as Pedras Testemunha em Cervo, sabia
disso? S que elas no se aproximam sequer da
pureza do que se encontra aqui. Claro, as mos so
ferramentas pobres para trabalhar a pedra. Mas
depois de cortar todo o excesso de pedra e de
chegar aonde o drago espera, ele pode ento ser
despertado com o seu toque. Eu passo as mos
pela pedra e me recordo do drago que existe nela.
E tudo aquilo que no drago se desprende,
estremecendo, em lascas e cacos. Muito
lentamente, claro. Precisei de um dia inteiro s
para revelar os olhos dele.
Compreendo murmurei, perdido. No
sabia se ele estava louco ou se acreditava nele.
Veracidade levantou-se o mximo que pde na
tenda baixa.
Kettricken est zangada comigo?
perguntou de repente.
Senhor meu rei, no cabe a mim dizer
Veracidade interrompeu ele num tom
fatigado. Chame-me de Veracidade e, pelo
amor de Eda, responda pergunta, Fitz.
Soou tanto como o seu antigo eu que quis
abra-lo. Em vez disso, disse:
No sei se est zangada. Est certamente
magoada. Percorreu um caminho longo e cansativo
para encontr-lo, trazendo notcias terrveis. E o
senhor no parece se importar.
Eu me importo, quando penso nisso disse
ele com gravidade. Quando penso nisso, sofro.
Mas h tantas coisas em que tenho de pensar, e no
posso pensar em todas ao mesmo tempo. Eu soube
quando a criana morreu, Fitz. Como poderia no
saber? Tambm ele, e tudo o que senti, foi posto
no drago.
Afastou-se lentamente de mim, e eu o segui para
fora da tenda. L fora, endireitou-se, mas no
perdeu a inclinao dos ombros. Veracidade era
agora um velho, de alguma forma muito mais velho
do que Breu. No compreendi isso, mas soube que
era verdade. Kettricken ergueu o olhar quando ele
se aproximou. Voltou a olhar para a fogueira, e
ento, quase contra vontade, levantou-se,
afastando-se do lobo adormecido. Panela e
Esporana estavam amarrando os dedos do Bobo
com tiras de pano. Veracidade dirigiu-se
diretamente a Kettricken e parou na sua frente.
Minha rainha disse num tom grave. Se
pudesse, eu a abraaria. Mas viu que o meu
toque Indicou o Bobo com um gesto e deixou
que as palavras ficassem suspensas no ar.
Eu vira a expresso no rosto dela quando
contara a Veracidade a morte do beb. Esperara
que ela lhe virasse costas, para mago-lo como ele
a magoara. Porm, o corao de Kettricken era
maior do que isso.
Oh, meu esposo disse, e a voz vacilou nas
palavras. Ele abriu os braos prateados e ela foi
at ele, envolvendo-o no seu abrao. Ele abaixou a
cabea grisalha para o spero dourado do cabelo
dela, mas no pde deixar que a mo lhe tocasse.
Afastou dela a bochecha prateada. Sua voz soou
rouca e vacilante quando lhe perguntou:
Deu um nome a ele? Ao nosso filho?
Dei-lhe um nome de acordo com os costumes
da sua terra. Respirou fundo. A palavra soou
to baixa que quase no ouvi. Sacrifcio
suspirou. Apertou-se bem a ele, e eu vi os seus
ombros magros serem abalados por um soluo.
Fitz! sibilou Panela com severidade.
Virei-me para v-la me olhando de cenho franzido.
Deixe-os em paz murmurou. Faa algo de
til. V buscar um prato para o Bobo.
Eu estivera olhando fixamente para eles. Virei-
me, envergonhado por ter ficado ali de boca
aberta, mas contente por t-los visto se abraando,
mesmo que na dor. Fiz o que Panela ordenara, indo
ao mesmo tempo buscar comida para mim. Levei o
prato ao Bobo. Ele estava sentado, apoiando no
colo a mo ferida.
Ergueu os olhos quando me sentei ao seu lado.
No sai nem esfregando reclamou. Por
que grudou nos meus dedos?
No sei.
Porque voc est vivo disse Panela,
sucinta. Sentou-se nossa frente como se
precisssemos de superviso.
Veracidade me disse que consegue dar forma
pedra com os dedos por causa do Talento que h
neles disse-lhe.
A sua lngua tem uma dobradia no meio para
sacudir nas duas pontas? Voc fala demais!
censurou-me Panela.
Talvez eu no falasse demais se voc falasse
um pouco mais retorqui. A pedra no est
viva.
Ela olhou para mim.
Voc sabe disso, ? Bem, de que adianta eu
falar se voc j sabe tudo? Atacou a sua
comida como se ela lhe tivesse feito uma desfeita
pessoal.
Esporana juntou-se a ns. Sentou-se ao meu
lado, com o prato apoiado nos joelhos, e disse:
No compreendo aquela coisa prateada nas
mos dele. O que ?
O Bobo soltou um risinho para dentro do seu
prato como uma criana travessa quando Panela a
olhou, furiosa. Mas eu estava ficando farto das
evasivas de Panela.
Como a sensao? perguntei ao Bobo.
Ele olhou para os dedos enfaixados.
No dor. Muita sensibilidade. Consigo
sentir o entranado dos fios das bandagens. Os
seus olhos comearam a ficar distantes. Sorriu.
Consigo ver o homem que o teceu, e conheo a
mulher que o fiou. As ovelhas na encosta da
colina, a chuva caindo na sua l espessa e o capim
que comeram A l vem do capim, Fitz. Uma
camisa tecida de capim. No, h mais. O solo,
negro, rico, e
Pare com isso! disse Panela com rispidez.
E virou-se, zangada, para mim. E voc pare de
lhe fazer perguntas, Fitz. A menos que queira que
ele o siga at longe demais e se perca para
sempre. Cutucou com fora o Bobo. Coma a
sua comida.
Como voc sabe tanto sobre o Talento?
perguntou-lhe de repente Esporana.
Voc tambm, no! declarou Panela,
furiosa. Ser que j no h nada privado?
Entre ns? No muito respondeu o Bobo,
mas no estava olhando para ela. Estava
observando Kettricken, cujo rosto ainda se
mostrava inchado de chorar, enquanto servia
comida em pratos, para si mesma e para
Veracidade. A sua roupa gasta e manchada, o seu
cabelo spero e mos rachadas e a tarefa simples e
domstica que desempenhava pelo marido deviam
t-la feito se parecer com qualquer mulher. Mas
olhei para ela e vi talvez a mais forte rainha que
Torre do Cervo j conhecera.
Vi Veracidade estremecer ligeiramente quando
tirou da mo da mulher o prato simples de madeira
e a colher. Fechou os olhos por um momento,
lutando contra a atrao da histria dos utenslios.
Recomps o rosto e levou boca uma colherada
de comida. Mesmo estando no lado oposto do
acampamento, senti o sbito despertar de uma
fome pura. Ele no apenas passara muito tempo
sem comida quente, passara sem sustento slido de
qualquer espcie. Respirou fundo, trmulo, e
comeou a comer como um lobo faminto.
Panela o estava observando. Uma expresso de
piedade lhe atravessou o rosto.
No. Resta muito pouca privacidade a
qualquer um de ns disse com tristeza.
Quanto mais depressa o levarmos de volta a
Jhaampe, mais depressa ele melhorar disse
Esporana num tom calmante. Acha que devemos
seguir caminho amanh? Ou ser melhor lhe dar
alguns dias de alimento e descanso para recuperar
as foras?
No vamos lev-lo de volta a Jhaampe
disse Panela, com um fundo de tristeza na voz.
Ele comeou um drago. No pode abandon-lo.
Olhou-nos sem expresso. A nica coisa que
podemos fazer agora por ele ficar aqui e ajud-
lo a termin-lo.
Com Navios Vermelhos incendiando toda a
costa dos Seis Ducados e Vara atacando as
Montanhas, devemos ficar aqui e ajudar o rei a
esculpir um drago? Esporana estava incrdula.
Sim. Se quisermos salvar os Seis Ducados e
as Montanhas, isso exatamente o que devemos
fazer. E agora, com licena. Acho que vou pr
mais um pouco de carne para cozinhar. O nosso rei
tem ar de quem precisa.
Deixei de lado o meu prato vazio.
Provavelmente devamos cozinh-la toda.
Com este tempo, a carne estraga-se depressa eu
disse, de forma insensata.
Passei a hora seguinte cortando o porco em
pores que pudessem ficar toda a noite sendo
cozinhadas a seco sobre a fogueira. Olhos-de-
Noite acordou e ajudou a nos livrarmos dos restos
at ficar com a barriga inchada. Kettricken e
Veracidade permaneceram sentados, conversando
em voz baixa. Tentei no os observar, mas mesmo
assim notei que era frequente que o olhar dele
fosse dela at o estrado onde o seu drago se
agachava sobre ns. O baixo ribombar da sua voz
era hesitante, e muitas vezes desaparecia por
completo at ser instigado por outra pergunta de
Kettricken.
O Bobo estava se divertindo tocando em coisas
com os seus dedos de Talento: uma tigela, uma
faca, o tecido da sua camisa. Enfrentava o cenho
franzido de Panela com um sorriso benigno.
Estou sendo cuidadoso disse-lhe uma vez.
Voc no faz a mnima ideia de como ter
cuidado protestou ela. No saber que se
perdeu at desaparecer. Com um resmungo,
levantou-se de onde estvamos cortando o porco e
insistiu em voltar a lhe enfaixar os dedos. Depois
disso, ela e Esporana foram juntas recolher mais
lenha. O lobo levantou-se com um gemido e as
seguiu.
Kettricken ajudou Veracidade a entrar na tenda.
Passado um momento, surgiu de novo para entrar
na tenda principal. Emergiu, carregando os seus
cobertores. Captou o meu olhar rpido e me
desconcertou ao me encarar.
Peguei as luvas compridas na sua trouxa, Fitz
disse-me calmamente. Ento se juntou a
Veracidade na tenda menor. O Bobo e eu olhamos
para todo o lado, menos um para o outro.
Retornei tarefa de cortar a carne. Estava farto
dela. O cheiro do porco de repente se transformou
no cheiro de uma coisa morta, em vez do cheiro de
carne fresca, e eu tinha manchas de sangue
pegajoso at os cotovelos. Os punhos pudos da
minha camisa estavam ensopados de sangue.
Continuei obstinadamente com a minha tarefa. O
Bobo veio agachar-se ao meu lado.
Quando os meus dedos roaram no brao de
Veracidade, eu o conheci disse de repente.
Soube que era um rei com valor para que eu o
siga, com tanto valor como o pai teve antes dele.
Sei o que ele pretende fazer acrescentou numa
voz mais baixa. Foi demais para compreender
de imediato, mas estive sentado e pensando. E
tudo se encaixa com o meu sonho sobre Realder.
Senti um arrepio que nada tinha a ver com o frio.
O qu? perguntei.
Os drages so os Antigos disse o Bobo
em voz baixa. Mas Veracidade no conseguiu
acord-los. De modo que esculpe o seu prprio
drago, e quando ele estiver terminado, ir
despert-lo, e ento partir para enfrentar os
Navios Vermelhos. Sozinho.
Sozinho. Essa palavra me atingiu. Mais uma vez,
Veracidade pretendia enfrentar sozinho os Navios
Vermelhos. Mas havia muito que eu no
compreendia bem.
Todos os Antigos eram drages?
perguntei. Minha mente voltou a todos os desenhos
e padres de Antigos que eu j vira. Alguns
haviam sido semelhantes a drages, mas
No. Os Antigos so drages. Aquelas
criaturas esculpidas no jardim de pedra. Aqueles
so os Antigos. O Rei Sabedoria conseguiu
despert-los na sua poca, para recrut-los sua
causa. Voltaram vida por ele. Contudo, agora, ou
dormem muito profundamente, ou esto mortos.
Veracidade gastou muitas das suas foras tentando
despert-los de todas as maneiras que conseguiu
imaginar. E quando no foi capaz, decidiu que
teria de fazer o seu prprio Antigo, e lhe dar vida,
e us-lo para enfrentar os Navios Vermelhos.
Fiquei aturdido. Pensei na vida de Manha que o
lobo e eu havamos detectado espreitando por
aquelas pedras. Com um sbito choque, lembrei-
me da angstia encurralada da garota montada em
uma esttua de drago naquela mesma pedreira.
Pedra viva, para sempre presa e sem poder voar.
Estremeci. Era um tipo diferente de masmorra.
Como isso feito?
O Bobo sacudiu a cabea.
No sei. No acho que o prprio Veracidade
saiba. Ele vai por tentativas, cego e tateando. D
forma pedra, e lhe d as suas memrias. E
quando estiver terminado, criar vida. Suponho.
Est ouvindo o que est dizendo?
perguntei-lhe. Pedra se erguer e defender os
Seis Ducados contra os Navios Vermelhos. E
quanto s tropas de Majestoso e s escaramuas
fronteirias com o Reino da Montanha? Esse
drago tambm ir repeli-las? Uma ira lenta
estava se acumulando em mim. Foi para isso
que percorremos toda esta distncia? Para uma
histria em que eu no esperaria que uma criana
acreditasse?
O Bobo pareceu levemente afrontado.
Acredite ou no, como queira. Sei apenas que
Veracidade acredita. A no ser que eu esteja muito
enganado, Panela tambm acredita. Por que outro
motivo ela insistiria que temos de ficar aqui e
ajudar Veracidade a completar o drago?
Durante algum tempo refleti sobre aquilo. Ento
lhe perguntei:
O seu sonho sobre o drago de Realder. O
que lembra dele?
Ele encolheu os ombros com um ar de
impotncia.
Os sentimentos que me trouxe,
principalmente. Estava exuberante e eufrico, pois
no s ia anunciar o drago de Realder, como ele
ia me levar para voar nele. Senti que estava um
pouco apaixonado por ele, sabe? Esse tipo de
elevao no corao. Mas Hesitou. No
consigo me lembrar se amava Realder ou o seu
drago. No meu sonho, estavam misturados
acho. Lembrar os sonhos to difcil. preciso
captur-los assim que se acorda, e repeti-los
rapidamente para si mesmo, a fim de solidificar os
detalhes. Do contrrio, desaparecem depressa
demais.
Mas no seu sonho algum drago de pedra
voou?
Eu estava anunciando o drago no meu sonho,
e sabia que ia voar nele. Ainda no o tinha visto,
no meu sonho.
Ento talvez isso no tenha absolutamente
nada a ver com o que Veracidade faz. No tempo de
onde veio o seu sonho, talvez houvesse drages
verdadeiros, de carne e osso.
Ele me lanou um olhar curioso.
No acredita que existam drages reais hoje?
Nunca vi nenhum.
Na cidade observou ele, em voz baixa.
Isso foi uma viso de uma poca diferente.
Voc disse hoje.
Ele ergueu uma das suas mos plidas luz da
fogueira.
Acho que eles so como a minha espcie.
Raros, mas no mticos. Alm do mais, se no
existissem drages de carne, osso e fogo, de onde
teria vindo a ideia para estas esculturas de pedra?
Sacudi cansado a cabea.
Esta conversa est andando em crculos.
Estou farto de quebra-cabeas, adivinhas e
crenas. Quero saber o que real. Quero saber por
que percorremos toda essa distncia e o que
devemos fazer.
Mas o Bobo no tinha respostas para aquilo.
Quando Panela e Esporana regressaram com a
lenha, ele me ajudou a organizar a fogueira em
camadas e a arrumar a carne onde o calor lhe
tirasse a gordura. A carne que no conseguimos
colocar para cozinhar embrulhamos na pele do
porco. Havia uma pilha de ossos e restos de bom
tamanho. Apesar do modo como se empanturrara
horas antes, Olhos-de-Noite pegou um osso de
perna para roer. Deduzi que tivesse regurgitado em
algum lugar parte da sua barriga cheia.
No existe isso de muita reserva de carne,
disse-me ele com um ar satisfeito.
Fiz algumas tentativas para fazer Panela falar
comigo, mas sem que eu saiba como elas
evoluram at se transformarem em um sermo
sobre como eu agora devia estar mais atento ao
Bobo. Ele devia ser protegido, no s do crculo
de Majestoso, mas tambm contra a atrao de
Talento de objetos que poderiam fazer a sua mente
a vagar. Por esse motivo, queria que
cumprssemos juntos os nossos turnos de vigia.
Insistiu que o Bobo precisava dormir de barriga
para cima, com os dedos nus virados para cima
para no tocarem em nada. Como o Bobo
normalmente dormia enrolado como uma bola, no
ficou particularmente contente. Mas pelo menos se
acomodou para a noite.
Eu no devia ficar de vigia at as horas que
antecedem a alvorada. Mas foi antes disso que o
lobo veio enfiar o focinho debaixo do meu rosto e
sacudir a minha cabea at que eu abri os olhos.
O que ? perguntei, cansado.
Kettricken caminha sozinha, chorando.
Eu duvidava de que ela quisesse a minha
companhia. Tambm duvidava de que devesse
estar sozinha. Levantei-me sem rudo e segui o
lobo para fora da tenda. L fora, Panela estava
sentada junto da fogueira, cutucando desconsolada
a carne. Percebi que ela devia ter visto a rainha
partir, portanto no dissimulei.
Vou procura de Kettricken.
Provavelmente uma boa ideia disse ela
em voz baixa. Ela me disse que ia ver o drago
dele, mas j partiu h tempo demais para isso.
No foi preciso dizermos mais nada. Segui
Olhos-de-Noite quando ele se afastou da fogueira
a um trote determinado. Porm, ele no me levou
na direo do drago de Veracidade, mas de volta,
atravs da pedreira. Havia pouco luar, e o que
havia parecia ser bebido pelos grandes blocos de
pedra. As sombras pareciam cair em todas as
direes, alterando a perspetiva. A necessidade de
ter cuidado tornou a pedreira vasta enquanto eu
avanava no encalo do lobo.
Minha pele ficou arrepiada quando percebi que
seguamos na direo do pilar. Contudo, a
encontramos antes de chegarmos l. Estava de p,
to imvel quanto a prpria rocha, junto garota
montada no drago. Ela subira no bloco de pedra
que atolava o drago e erguera uma mo para a
perna da garota. Um truque do luar fazia com que
os olhos de pedra da garota parecessem olhar para
baixo, para Kettricken. A luz cintilava prateada em
uma lgrima de pedra, e reluzia nas lgrimas que
Kettricken tinha no rosto. Olhos-de-Noite
aproximou-se com leveza, saltou para o estrado
como se no tivesse peso e encostou a cabea na
perna de Kettricken com um minsculo ganido.
Shhh disse-lhe ela, suavemente. Escute.
Consegue ouvi-la chorando? Eu consigo.
No duvidei, pois conseguia senti-la sondando
com a Manha, com mais fora do que j sentira
nela.
Minha senhora eu disse em voz baixa.
Ela se sobressaltou, fazendo a mo voar para a
boca quando se virou para mim.
Peo que me perdoe. No pretendia assust-
la. Mas a senhora no devia estar sozinha aqui.
Panela teme que o crculo ainda possa causar
perigo, e no estamos muito longe do pilar.
Ela deu um sorriso amargo.
Onde quer que eu esteja, estou sozinha. E no
consigo imaginar que eles possam me fazer algo de
pior do que o que fiz a mim mesma.
Isso s porque no os conhece to bem
como eu. Por favor, minha rainha, volte ao
acampamento comigo.
Ela se moveu, e achei que ia descer na minha
direo. Porm, sentou-se e encostou-se no
drago. A infelicidade da garota do drago que a
minha Manha sentia teve eco na de Kettricken.
S queria me deitar ao lado dele disse em
voz baixa. Abra-lo. E ser abraada. Ser
abraada, Fitz. Sentir-me segura, no. Eu sei
que nenhum de ns est em segurana. Mas me
sentir valorizada. Amada. No esperava mais do
que isso. Mas ele no quis. Disse que no podia
me tocar. Que no se atrevia a tocar em nada de
vivo, exceto em seu drago. Virou a cabea
para o lado. Mesmo com as mos e os braos
enluvados, no quis me tocar.
Dei por mim subindo no estrado. Peguei-a pelos
ombros e a coloquei de p.
Ele tocaria se pudesse disse-lhe. Isso
eu sei. Ele tocaria se pudesse.
Ela ergueu as mos para cobrir o rosto, e as
lgrimas silenciosas e deslizantes transformaram-
se de sbito em soluos. Falou atravs deles.
Voc e o seu Talento. E ele. Fala to
facilmente de saber o que ele sente. De amor. Mas
eu eu no tenho isso. Eu s preciso senti-lo,
Fitz. Preciso sentir os braos dele minha volta,
estar perto dele. Acreditar que ele me ama. Como
eu o amo. Depois de lhe ter desapontado de tantas
maneiras. Como posso acreditar quando ele
recusa at Passei os braos em volta dela e
puxei a sua cabea para o meu ombro, enquanto
Olhos-de-Noite se encostava em ns e
choramingava baixinho.
Ele a ama disse-lhe. Ama mesmo. Mas
o destino colocou este fardo sobre vocs dois. Ele
precisa ser suportado.
Sacrifcio sussurrou ela, e eu no percebi
se estava chamando pelo filho ou definindo a sua
vida. Continuou a chorar e eu a abracei, alisando o
seu cabelo e lhe dizendo que as coisas
melhorariam, que um dia as coisas teriam de
melhorar, que haveria uma vida para ambos
quando tudo aquilo terminasse, e crianas,
crianas crescendo a salvo dos Navios Vermelhos
e das malignas ambies de Majestoso. Passado
algum tempo, senti-a se acalmar e percebi que o
que estivera lhe dando era tanto Manha como
palavras. Aquilo que eu sentia por ela se misturara
com os sentimentos do lobo e nos unira. Mais
suave do que um vnculo de Talento, mais quente e
natural, abracei-a tanto com o corao como com
os braos. Olhos-de-Noite encostou-se mais nela,
dizendo-lhe que a defenderia, que a sua carne seria
sempre a carne dela, que no teria de temer nada
que possusse dentes, pois ramos alcateia, e
sempre o seramos.
Foi ela quem finalmente rompeu o abrao.
Soltou um ltimo suspiro trmulo, e ento se
afastou de mim. A sua mo ergueu-se para limpar a
umidade do rosto.
Oh, Fitz disse apenas, com tristeza. E foi
tudo. Eu fiquei imvel, sentindo a gelada
separao onde por algum tempo estivramos
juntos. Um sbito espasmo de perda tomou conta
de mim. E ento um estremecimento de medo
quando percebi a sua fonte. A garota no drago
partilhara do nosso abrao, e a sua infelicidade de
Manha fora brevemente consolada pela nossa
proximidade. Agora que nos afastvamos, o
gemido distante e glido da pedra voltou a se
erguer, mais sonoro e mais forte. Tentei saltar com
leveza do estrado, mas, quando aterrissei,
cambaleei e quase ca. De algum modo aquela
unio drenara fora de mim. Era assustador, mas
eu disfarcei a inquietao quando acompanhei
Kettricken de volta ao acampamento, em silncio.
Cheguei bem a tempo de render Panela na vigia.
Ela e Kettricken foram dormir, prometendo mandar
o Bobo para ficar de vigia comigo. O lobo me
lanou um olhar que pedia desculpa, e depois
seguiu Kettricken para a tenda. Assegurei-lhe que
aprovava. Um momento mais tarde, o Bobo saiu,
esfregando os olhos com a mo esquerda e
trazendo a direita delicadamente enrolada contra o
peito. Sentou-se numa pedra na minha frente
enquanto eu verificava a carne para ver que peas
precisavam ser viradas. Durante algum tempo,
observou-me em silncio. Depois se abaixou e,
com a mo direita, pegou um pedao de lenha.
Sabia que devia repreend-lo, mas em vez disso o
observei, to curioso como ele. Aps um
momento, ele enfiou a lenha na fogueira e
endireitou-se.
Calma e adorvel disse-me. Uns
quarenta anos de crescimento, inverno e vero,
tempestade e bom tempo. E antes disso, foi
carregada como noz por outra rvore. E assim
que o fio recua, mais e mais. No acho que eu
precise temer muito as coisas da natureza, s
aquelas que foram trabalhadas pelo homem.
Nessas, os fios se desfiam. Mas nas rvores, creio,
ser agradvel tocar.
Panela disse que voc no devia tocar em
nada vivo lembrei-lhe como se fosse uma
criana bisbilhoteira.
Panela no tem de viver com isto. Eu tenho.
Preciso descobrir os limites que me impe. Quanto
mais depressa descobrir o que posso e no posso
fazer com a mo direita, melhor. Deu um
sorriso malicioso e indicou-se com um gesto
sugestivo.
Eu sacudi a cabea, mas no consegui evitar o
riso.
Ele juntou o seu riso ao meu.
Ah, Fitz disse em voz baixa, um momento
mais tarde. No sabe o que significa para mim
ainda conseguir faz-lo rir. Se posso faz-lo rir, eu
mesmo conseguirei rir.
Surpreende-me que voc ainda seja capaz de
gracejar retorqui.
Quando se tem a opo de rir ou chorar, mais
vale que se ria disse. De repente, perguntou:
Ouvi voc deixar a tenda h pouco. Ento,
enquanto esteve fora Consegui sentir um pouco
do que aconteceu. Onde voc foi? Houve muito
que no consegui compreender.
Fiquei em silncio, pensando.
O vnculo de Talento entre ns pode estar se
fortalecendo em vez de enfraquecer. No acho que
isso seja bom.
J no h casco-de-elfo. Tomei o resto h
dois dias. Bom ou ruim, como . E agora me
explique o que aconteceu.
Vi pouca vantagem em recusar. De modo que
tentei explicar. Ele interrompeu com algumas
perguntas, para poucas das quais eu tinha resposta.
Quando decidiu que compreendia os fatos to bem
quanto as palavras eram capazes de transmiti-los,
lanou-me um sorriso sarcstico.
Vamos l ver essa garota no drago
sugeriu.
Por qu? perguntei, cauteloso.
Ele ergueu a mo direita e sacudiu as pontas
prateadas dos dedos na minha direo enquanto
erguia uma sobrancelha.
No eu disse com firmeza.
Com medo? alfinetou-me.
Estamos aqui de vigia disse-lhe
severamente.
Ento ir comigo amanh sugeriu.
No sensato, Bobo. Quem sabe que efeito
isso poder ter em voc?
Eu no. E precisamente por isso que quero
faz-lo. Alm disso, que vocao tem um Bobo
para ser sensato?
No.
Ento terei de ir sozinho disse ele com um
suspiro fingido.
Recusei-me a morder a isca. Passado um
momento, perguntou-me:
O que voc sabe sobre Panela que eu no
sei?
Olhei-o, desconfortvel.
Quase tanto quanto o que sei de voc que ela
no sabe.
Ah. Isso foi bem dito. Essas palavras
poderiam ter sido roubadas de mim concedeu.
Voc no se pergunta por que o crculo no
tentou nos atacar de novo? perguntou em
seguida.
Hoje a sua noite para fazer perguntas
infelizes? perguntei.
Ultimamente, no tenho tido outras.
No mnimo, atrevo-me a esperar que a morte
de Cedoura os tenha enfraquecido. Deve ser um
grande choque perder um membro do crculo ao
qual se pertence. Quase to ruim quanto perder um
companheiro de Manha.
E de que voc tem medo? pressionou o
Bobo.
Era uma pergunta que eu andara afastando de
mim mesmo.
De que tenho medo? Do pior, claro. O que
temo que eles estejam de alguma forma reunindo
mais foras contra ns, para equilibrar o poder de
Veracidade. Ou talvez estejam nos preparando
uma armadilha. Temo que estejam concentrando o
seu Talento para procurar Moli. Acrescentei a
ltima frase com grande relutncia. Parecia dar o
maior dos azares pensar nisso, quanto mais
exprimi-lo em voz alta.
No pode arranjar alguma forma de lhe
enviar um aviso pelo Talento?
Como se aquilo nunca me tivesse ocorrido.
Sem tra-la, no. Nunca consegui contactar
Bronco com o Talento. s vezes consigo v-los,
mas no consigo torn-los conscientes de mim.
Temo que fazer o esforo baste para exp-los ao
crculo. Ele pode saber da sua existncia, mas no
saber onde ela est. Voc me disse que nem o
prprio Breu sabia onde ela estava. E Majestoso
tem muitos lugares para onde enviar as tropas e a
ateno. Cervo fica longe de Vara, e os Navios
Vermelhos mantiveram o ducado em desordem.
Certamente que no enviar tropas para uma
confuso daquelas para tentar encontrar uma
garota.
Uma garota e uma criana Visionrio
lembrou-me o Bobo com gravidade. Fitz, eu
no falo para o entristecer, mas s para avis-lo.
Eu contive a fria dele contra voc. Naquela noite,
quando eles me tiveram em seu poder
Engoliu em seco, e os seus olhos perderam-se na
distncia. Fiz um esforo to grande para
esquecer. Se tocar nessas memrias, elas fervem e
ardem dentro de mim como um veneno de que no
consigo me ver livre. Senti o prprio ser de
Majestoso dentro do meu. O dio por voc
contorce-se dentro dele como vermes em carne
apodrecida. Sacudiu a cabea, nauseado ao
recordar daquilo. O homem louco. Atribui a
voc todas as ambies malignas que consegue
imaginar. V a sua Manha com repugnncia e
terror. No consegue conceber que aquilo que
voc faz, faz por Veracidade. Na sua mente, voc
devotou a sua vida a lhe fazer mal, desde que voc
chegou a Torre do Cervo. Acredita que tanto voc
como Veracidade vieram para estas Montanhas
no para despertar os Antigos a fim de defender
Cervo, mas para encontrar um algum tesouro de
Talento ou poder para usar contra ele. Acredita
que no tem alternativa a no ser agir primeiro,
encontrar o que quer que voc procure e us-lo
contra voc. Para conseguir isso, aplica todos os
seus recursos e a sua determinao.
Escutei o Bobo em uma espcie de terror
petrificado. Os olhos dele tinham assumido a
expresso fixa de um homem que recorda a tortura.
Por que no me falou disso antes?
perguntei com suavidade quando ele parou para
recuperar o flego. Ele estava com a pele dos
braos arrepiada.
Afastou os olhos de mim.
No algo que eu goste de me lembrar.
Estava tremendo muito levemente. Eles
estiveram na minha mente como crianas malignas
e ociosas, quebrando tudo aquilo que no
conseguiam compreender. No consegui manter
nada oculto deles. Contudo, no estavam nem um
pouco interessados em mim. Consideravam-me
algo inferior a um co. Furiosos, naquele momento
em que descobriram que eu no era voc. Quase
me destruram porque eu no era voc. Ento
pensaram em como podiam me usar contra voc.
Tossiu. Se aquela onda de Talento no
tivesse chegado
Senti-me como o prprio Breu quando eu disse
em voz baixa:
Agora usarei isso contra eles. Eles no
poderiam t-lo mantido em servido dessa maneira
sem lhe revelarem muito de si mesmos. Peo para
que volte a esse momento, o mximo que puder, e
me diga tudo o que conseguir recordar.
No pediria isso se soubesse o que est
pedindo.
Eu pensava que sabia, mas me abstive de diz-
lo. Em vez disso, deixei que o silncio lhe pedisse
para pensar bem. A aurora acinzentava o cu, e eu
acabara de regressar de uma volta ao
acampamento quando ele falou de novo.
Havia livros sobre o Talento sobre os quais
voc nada sabe. Livros e pergaminhos que Galeno
tirou dos aposentos de Solicitude quando ela
estava moribunda. As informaes que eles
continham destinavam-se apenas a um Mestre de
Talento, e alguns estavam at trancados com
fechaduras engenhosas. Galeno teve muitos anos
para arrombar essas fechaduras. Uma fechadura
apenas mantm honesto um homem honesto, sabia?
Galeno encontrou ali muitas coisas que no
compreendia. Mas havia tambm pergaminhos que
listavam aqueles que haviam sido treinados no
Talento. Galeno procurou todos os que conseguiu
encontrar e os interrogou. Ento se livrou deles,
para impedir que outros lhes fizessem as mesmas
perguntas que ele fizera. Galeno encontrou muitas
coisas nesses pergaminhos. Como um homem pode
viver longamente e gozar de boa sade. Como
causar dor com o Talento, sem chegar a tocar em
uma pessoa. Contudo, nos pergaminhos mais
antigos, descobriu sugestes de um grande poder
que aguardava um homem fortemente Talentoso
nas Montanhas. Se Majestoso conseguisse pr as
Montanhas sob o seu domnio, poderia alcanar
um poder ao qual ningum seria capaz de resistir.
Foi para esse fim que procurou a mo de
Kettricken para Veracidade, sem ter nenhuma
inteno de que ela chegasse a ser sua noiva.
Pretendia, quando Veracidade estivesse morto,
tom-la para si em vez do irmo. E a herana dela.
No compreendo eu disse com suavidade.
As Montanhas tm mbar, peles, e
No. No. O Bobo sacudiu a cabea.
No era nada do gnero. Galeno no quis divulgar
a totalidade do seu segredo a Majestoso, pois
deixaria de ter domnio sobre o meio-irmo. Mas
pode ter certeza de que, quando Galeno morreu,
Majestoso imediatamente tomou posse desses
pergaminhos e livros e comeou a estud-los. Ele
no nenhum mestre das lnguas antigas, mas
temia procurar a ajuda de outros, com receio de
que descobrissem o segredo primeiro. Por fim,
resolveu o quebra-cabeas, e quando o fez ficou
horrorizado. Pois a essa altura j despachara
entusiasticamente Veracidade para as Montanhas
para morrer em uma demanda tola qualquer.
Finalmente deduziu que o poder que Galeno
procurara para si era o poder sobre os Antigos.
Chegou de imediato concluso de que
Veracidade conspirara com voc para procurar
esse mesmo poder para ele mesmo. Como ele se
atrevia a tentar roubar o mesmo tesouro que
Majestoso trabalhara to longamente para
conquistar? Como ele se atrevia a tentar fazer de
Majestoso um idiota dessa maneira? O Bobo
deu um leve sorriso. Na mente dele, o domnio
sobre os Antigos seu direito de nascena. Vocs
tentam roub-lo dele. Ele acredita que defende o
que est certo e justo ao tentar matar vocs.
Fiquei assentindo para mim mesmo. Todas as
peas se encaixavam, cada uma delas. Lacunas na
minha compreenso dos motivos de Majestoso
estavam sendo preenchidas para me apresentar
uma imagem assustadora. Eu sabia que o homem
era ambicioso. Tambm sabia que ele tinha medo e
suspeitava de qualquer um ou qualquer coisa que
no pudesse controlar. Eu fora para ele um perigo
duplo, um rival pelo afeto do pai e possuidor de
um estranho talento para a Manha que ele no era
capaz nem de compreender, nem de destruir. Para
Majestoso, todas as outras pessoas do mundo eram
ou uma ferramenta, ou uma ameaa. Todas as
ameaas tinham de ser destrudas.
Ele provavelmente nunca pensara que tudo o que
eu queria dele era ser deixado em paz.
CAPTULO 35

Segredos de Panela

No existe em nenhum lugar meno sobre quem


ergueu as Pedras Testemunha que se encontram
na colina prxima de Torre do Cervo.
perfeitamente possvel que precedam a
construo do prprio Castelo de Torre do
Cervo. O seu suposto poder parece ter pouco a
ver com a adorao a Eda ou El, mas o povo
acredita nele com o mesmo feroz fervor religioso.
At aqueles que afirmam duvidar da existncia de
deuses hesitam em prestar um juramento falso
diante das Pedras Testemunha. Essas pedras
altas erguem-se negras e marcadas pelas
intempries. Se alguma vez tiveram inscries de
alguma espcie, o vento e a gua as apagaram.
Veracidade foi o primeiro dos outros a se levantar
naquela manh. Saiu da tenda cambaleando no
momento em que a primeira verdadeira luz do dia
devolveu a cor ao mundo.
O meu drago! gritou enquanto piscava
luz. O meu drago! Era como se esperasse
que ele tivesse desaparecido.
Mesmo depois de eu lhe garantir que o drago
estava bem, continuou a se portar como uma
criana mimada. Queria continuar imediatamente o
trabalho na esttua. Com a maior das dificuldades,
persuadi-o a beber uma caneca de ch de urtiga e
hortel e a comer um pouco da carne cozida
lentamente que tirei dos espetos. Ele no quis
esperar pela fervura do mingau e afastou-se da
fogueira com a carne e a espada na mo. No fez
qualquer meno a Kettricken. Pouco depois, o
raspa, raspa, raspa da ponta da espada contra a
pedra negra recomeou. A sombra que vira de
Veracidade na noite anterior fugira com a chegada
da manh.
Parecia estranho saudar um novo dia e no
empacotar imediatamente todos os nossos
pertences. Ningum estava de bom humor.
Kettricken tinha os olhos inchados e estava
silenciosa, Panela mostrava-se amarga e
reservada. O lobo ainda estava digerindo toda a
carne que consumira no dia anterior e s queria
dormir. Esporana parecia aborrecida com todos,
como se fosse nossa culpa que a demanda
terminara em um desapontamento to confuso.
Depois de comermos, Esporana declarou que ia
ver como estavam as jepas e lavar-se um pouco no
riacho que o Bobo descobrira. Panela concordou
de mau humor em ir com ela por segurana,
embora os seus olhos se desviassem com
frequncia para o drago de Veracidade.
Kettricken tambm se encontrava l, observando
sombriamente o marido e rei enquanto este
trabalhava a pedra negra. Eu me ocupei com a
remoo da carne seca pelo fogo, enrolando-a e
adicionando mais combustvel fogueira, e
colocando o resto da carne para secar sobre ela.
Vamos convidou-me o Bobo assim que
terminei.
Onde? perguntei, pensando com anseio em
um cochilo.
At a garota no drago lembrou-me. Partiu
ansioso, sem sequer olhar para trs para ver se eu
o seguia. Ele sabia que tinha de faz-lo.
Acho que isto uma ideia tola gritei s
suas costas.
Exatamente respondeu ele com um sorriso,
e no quis dizer mais at que nos aproximamos da
grande esttua.
A garota no drago parecia mais tranquila
naquela manh, mas talvez fosse eu que estivesse
me habituando mais ao desassossego aprisionado
de Manha que sentia ali. O Bobo no hesitou e
subiu de imediato no estrado, ao lado da esttua.
Segui-o mais devagar.
Ela me parece diferente hoje eu disse em
voz baixa.
Como?
No sei dizer. Estudei a sua cabea
curvada, as lgrimas de pedra congeladas no seu
rosto. No lhe parece diferente?
Ontem no a olhei l com muita ateno.
Agora que estvamos ali, os gracejos do Bobo
pareciam amortecidos. Com grande cautela,
coloquei uma mo no dorso do drago. As
escamas individuais estavam trabalhadas com tal
destreza, a curva do corpo do animal era to
natural, que eu quase esperei v-lo oscilar com a
respirao. Era pedra, fria e dura. Prendi a
respirao, desafiando-me, e ento sondei na
direo da pedra. A sensao foi diferente de
qualquer sondagem que eu j havia feito. No
havia um corao batendo, no havia o ar entrando
e saindo, nem outro sinal fsico de vida para me
servir de guia. Havia apenas o meu sentido de
Manha de uma vida, aprisionada e desesperada.
Por um momento, ela me fugiu; ento rocei nela, e
ela sondou na minha direo. Procurava a
sensao do vento na pele, o tpido bombear do
sangue, oh, ansiava pelos odores do dia de vero,
pela sensao da minha roupa contra a pele e por
tudo aquilo que fazia parte da experincia de
viver. Recolhi a mo de repente, assustado pela
intensidade da sondagem da esttua. Quase pensei
que seria capaz de me atrair para ir me juntar a
ela.
Estranho murmurou o Bobo, pois, ligado a
mim como estava, sentiu as ondulaes da minha
experincia. Os seus olhos encontraram-se com os
meus e ficaram ali durante algum tempo. Ento
estendeu um nico dedo nu e prateado para a
garota.
No devamos fazer isso eu disse, mas
no havia fora nas minhas palavras. A esbelta
figura montada no drago estava vestida com um
justilho sem mangas, calas e sandlias. O Bobo
tocou com o dedo em seu brao.
Um grito de Talento, de dor e ultraje, encheu a
pedreira. O Bobo foi atirado para trs, para fora
do pedestal, e caiu de costas com fora sobre a
pedra mais abaixo. Ficou estendido ali,
desacordado. Os meus joelhos cederam debaixo
de mim e ca ao lado do drago. Pela torrente de
fria de Manha que senti, esperei que a criatura me
atropelasse como um cavalo enlouquecido.
Instintivamente, encolhi-me, protegendo a cabea
com os braos.
Tudo acabou num instante, mas os ecos daquele
grito pareceram ressoar interminavelmente nas
paredes e blocos de pedra lisa e negra nossa
volta. Estava descendo do estrado, trmulo, para
ver o estado em que o Bobo se encontrava quando
Olhos-de-Noite veio at ns a toda a velocidade.
O que foi aquilo? O que que nos ameaa?
Ajoelhei-me junto ao Bobo. Ele batera com a
cabea, e sangue espalhava-se pela pedra negra,
mas no me pareceu que era por isso que estava
inconsciente.
Eu sabia que no devamos ter feito aquilo.
Por que deixei que o fizesse? perguntei a mim
mesmo enquanto o erguia nos braos para lev-lo
de volta ao acampamento.
Porque voc um idiota maior do que ele. E
eu sou a maior de todas, por ter deixado vocs
sozinhos e confiado que agiriam com bom senso. O
que ele fez? Panela ainda ofegava da pressa.
Tocou a garota no drago. Com o Talento que
tem no dedo.
Olhei para esttua enquanto falava. Para o meu
horror, havia uma brilhante impresso digital
prateada no brao da moa, delineada em escarlate
na sua pele brnzea. Panela seguiu o meu olhar e a
ouvi prender a respirao. Virou-se para mim e
ergueu a mo nodosa, como se quisesse me bater.
Ento cerrou a mo num punho contorcido que
tremia e forou-o a abaixar.
No basta que ela esteja ali miseravelmente
aprisionada para sempre, sozinha e afastada de
tudo o que j amou? Vocs ainda por cima tinham
de vir lhe causar dor! Como puderam ser to
cruis?
No queramos fazer mal. No sabamos
A ignorncia sempre a desculpa usada
pelos cruelmente curiosos! rosnou Panela.
A minha prpria irritao ergueu-se de sbito
para igualar a dela.
No me censure pela minha ignorncia,
mulher, quando tudo o que voc tem feito
recusar-se a reduzi-la. Sugere e avisa, e nos
concede palavras agourentas, mas se recusa a
dizer qualquer coisa que possa nos ajudar. E
quando cometemos erros, repreende-nos, dizendo
que devamos ter mais discernimento. Como?
Como podemos saber que certas coisas so
erradas, se a pessoa que sabe se recusa a
compartilhar conosco os seus conhecimentos?
Nos meus braos, o Bobo agitou-se debilmente.
O lobo estivera caminhando incessantemente em
volta dos meus ps. Agora voltara com um ganido,
para farejar a mo pendente do Bobo.
Cuidado! No deixe que os dedos dele o
toquem!
O que o mordeu?
No sei.
Eu no sei nada disse em voz alta, com
amargura. Ando tropeando no escuro, ferindo
no processo todos com quem me importo.
No me atrevo a interferir gritou-me
Panela. E se alguma palavra minha o colocar no
caminho errado? O que acontecer ento a todas as
profecias? Voc precisa encontrar o seu prprio
caminho, Catalisador.
O Bobo abriu os olhos para me olhar sem
expresso. Ento voltou a fech-los e encostou a
cabea no meu ombro. Estava comeando a ficar
pesado e eu precisava descobrir o que havia de
errado com ele. Puxei-o para cima, dando mais
firmeza aos meus braos. Vi Esporana aparecer
por trs de Panela, com os braos carregados de
roupa molhada. Virei-me e me afastei de ambas.
Enquanto voltava ao acampamento com o Bobo,
disse por cima do ombro:
Talvez seja por isso que voc est aqui.
Talvez tenha sido chamada aqui, com um papel a
desempenhar. Talvez esse papel seja acabar com a
minha ignorncia para que possamos cumprir esta
sua maldita profecia. E talvez ficar em silncio
seja o modo como voc ir frustr-la. Mas e
parei para atirar violentamente as palavras por
sobre o ombro acho que voc permanece em
silncio por motivos prprios. Porque tem
vergonha!
Dei as costas expresso magoada no seu rosto.
Cobri com ira a vergonha que sentia por ter lhe
falado daquela maneira. Isso me deu uma nova
fora determinao. Fiquei subitamente decidido
a comear a obrigar todos a se comportarem como
deviam. Era o tipo de resoluo infantil que havia
me metido com frequncia em problemas, mas
depois que o meu corao foi tomado por ela, a
minha ira a agarrou bem.
Levei o Bobo para a tenda grande e o deitei nos
seus cobertores. Arranquei uma manga esfarrapada
do que restava de uma camisa, umedeci-a em gua
fria e a apliquei firmemente sua nuca. Quando o
sangramento diminuiu, examinei o ferimento. O
corte no era grande, mas estava no topo de um
respeitvel galo. Ainda sentia que no tinha sido
por isso que ele desmaiara.
Bobo? disse-lhe em voz baixa, e depois
com mais insistncia: Bobo? Dei-lhe
tapinhas no rosto com as mos molhadas. Ele
acordou com um simples abrir de olhos. Bobo?
Vou ficar bem, Fitz disse ele com uma voz
abatida. Voc tinha razo. No devia t-la
tocado. Mas toquei. E nunca mais serei capaz de
esquec-lo.
O que aconteceu? perguntei.
Ele sacudiu a cabea.
No posso falar nisso por enquanto disse
em voz baixa.
Levantei-me de um salto, batendo com a cabea
no teto da tenda e quase derrubando toda a
estrutura minha volta.
Ningum em todo este grupo pode falar sobre
qualquer coisa! declarei, furioso. Exceto eu.
E pretendo falar sobre tudo.
Deixei o Bobo apoiado em um brao e me
fitando. No sei se a sua expresso estava
divertida ou horrorizada. No me importei. Sa da
tenda a passos largos, subi a pilha de escrias at
o pedestal onde Veracidade esculpia o seu drago.
O raspa, raspa, raspa contnuo da ponta da sua
espada contra a pedra era como uma lima me
limando a alma. Kettricken estava sentada ao seu
lado, de olhos vazios e silenciosa. Nenhum dos
dois prestou a mnima ateno em mim.
Parei por um momento e controlei a respirao.
Afastei o cabelo do rosto e prendi de novo o rabo
de cavalo de guerreiro, espanei a cala e
endireitei os restos manchados da minha camisa.
Dei trs passos em frente. A minha mesura formal
incluiu Kettricken.
Senhor, Rei Veracidade. Senhora, Rainha
Kettricken. Vim concluir o meu relatrio ao rei. Se
me permitirem.
Esperara honestamente que ambos me
ignorassem. Mas a espada do Rei Veracidade
raspou mais duas vezes e depois se calou. Ele me
olhou por sobre o ombro.
Continue, FitzCavalaria. No pararei o meu
trabalho, mas escutarei.
Havia uma cortesia grave na sua voz. Deu-me
alento. Kettricken sentou-se mais direita de
repente. Afastou dos olhos o cabelo desarrumado e
ento me deu permisso com um aceno. Respirei
fundo e comecei, relatando, como me fora
ensinado, tudo o que vira ou fizera desde a minha
visita cidade arruinada. A certa altura, durante
aquele longo relato, o raspar da espada diminuiu, e
ento cessou. Veracidade moveu-se pesadamente
para se ir sentar ao lado de Kettricken. Quase
comeou a tomar a mo dela nas suas, mas logo se
impediu de faz-lo e fechou as mos sua frente.
Contudo, Kettricken viu esse pequeno gesto e
aproximou-se dele um pouco mais. Ficaram
sentados lado a lado, os meus pudos monarcas,
entronizados em rocha fria, com um drago de
pedra s suas costas, e me escutaram.
Uma a um, dois a dois, os outros vieram se
juntar a ns. Primeiro o lobo, depois o Bobo e
Esporana, e finalmente a velha Panela alinharam-
se em um meio crculo atrs de mim. Quando
minha garganta comeou a ficar seca e minha voz a
enrouquecer, Kettricken ergueu uma mo e mandou
Esporana ir buscar gua. Esta regressou com ch e
carne para todos. No bebi mais do que um gole
de ch e prossegui enquanto eles faziam um
piquenique minha volta.
Mantive-me fiel deciso tomada e falei
francamente de tudo, mesmo daquilo que me
envergonhava. No deixei de fora os meus medos,
nem as minhas tolices. Contei-lhes como matara os
guardas de Majestoso sem aviso, revelando at o
nome do homem que reconhecera. Tampouco me
esquivei de contar experincias de Manha, coisa
que outrora teria feito. Falei to honestamente
como se apenas eu e Veracidade estivssemos ali,
mencionando os meus medos por Moli e pelo
nosso beb, incluindo o medo que tinha de que, se
Majestoso no os encontrasse e matasse, Breu
levaria a criana para o trono. Enquanto falava,
procurei alcanar Veracidade de todas as maneiras
que podia, no s com a voz, mas tambm com a
Manha e o Talento. Tentei toc-lo e despert-lo
mais uma vez para quem era. Sabia que ele sentia
essa abertura mas, por mais que tentasse, no
consegui arrancar dele uma resposta.
Terminei contando o que o Bobo e eu fizramos
com a garota no drago. Observei o rosto de
Veracidade, em busca de alguma mudana de
expresso, mas no houve nenhuma que eu
conseguisse ver. Quando terminei de lhe contar
tudo, fiquei em silncio sua frente, na esperana
de que ele me interrogasse. O velho Veracidade
teria feito eu recontar a histria inteira, fazendo
perguntas sobre cada acontecimento, perguntando
o que eu pensara ou suspeitara, sobre qualquer
coisa que observara. Porm, aquele velho grisalho
apenas assentiu por vrias vezes. Fez meno de
se levantar.
Meu rei! supliquei-lhe, desesperado.
O que , rapaz?
No tem nada para me perguntar? Nada para
me dizer?
Ele olhou para mim, mas no tive certeza de que
estivesse realmente me vendo. Pigarreou.
Eu matei Cedoura com o Talento. Isso
verdade. No senti os outros desde ento, mas no
creio que estejam mortos, s que perdi o Talento
para detect-los. Voc precisa ter cuidado.
Olhei-o boquiaberto.
E isso tudo? Preciso ter cuidado? Suas
palavras haviam me gelado at os ossos.
No. H coisa pior. Olhou para o Bobo.
Temo que quando voc fala com o Bobo, ele
escute com os ouvidos de Majestoso. Temo que
tenha sido Majestoso quem foi at voc naquele
dia, falando com a lngua do Bobo, para perguntar
onde estava Moli.
Fiquei com a boca seca. Virei-me para olhar
para o Bobo. Ele parecia abalado.
Eu no me lembro Nunca disse
Encheu metade dos pulmes de ar, e ento, de
sbito, caiu para o lado, desmaiado.
Panela correu at ele.
Est respirando disse-nos.
Veracidade assentiu.
Ento suspeito que o abandonaram. Talvez.
No confie que seja verdade. Os seus olhos
voltaram para mim. Eu estava tentando me manter
de p. Sentira-os abandonando o Bobo. Sentira-o
como um fio de Talento que fosse arrebentado de
repente. Eles no haviam tido um controle forte
sobre ele, mas fora o suficiente. O suficiente para
me levar a revelar tudo aquilo de que
necessitavam para matar a minha esposa e a minha
filha. O suficiente para esquadrinhar os sonhos
dele todas as noites desde ento, roubando o que
quer que lhes fosse til.
Fui at o Bobo. Peguei a sua mo no Talentosa
e sondei na sua direo. Lentamente, os seus olhos
se abriram e ele sentou-se. Durante algum tempo,
fitou-nos sem compreender. Os seus olhos
regressaram aos meus, com a vergonha
percorrendo as suas profundezas enevoadas.
E aquele que mais o ama ser quem o trair
da forma mais abominvel. A minha prpria
profecia. Conheo-a desde os onze anos. Breu,
disse a mim mesmo quando ele queria lhe tirar a
sua filha. Era Breu o seu traidor. Sacudiu
tristemente a cabea. Mas era eu. Era eu.
Levantou-se lentamente. Desculpe-me. Lamento
tanto.
Vi o incio de lgrimas no seu rosto. Depois se
virou e afastou-se lentamente de ns. No consegui
ir atrs dele, mas Olhos-de-Noite levantou-se sem
rudo e o seguiu.
FitzCavalaria. Veracidade respirou fundo
e falou em voz baixa. Fitz, eu vou tentar
terminar o meu drago. Na verdade, tudo o que
posso fazer. S espero que seja o suficiente.
O desespero me deu coragem.
Meu rei, no far isto por mim? No enviar
pelo Talento um aviso a Bronco e a Moli, para que
fujam de Praia do Capelim antes de serem
encontrados?
Oh, meu rapaz disse ele, com pena. Deu
um passo na minha direo. Mesmo que me
atrevesse a faz-lo, temo que eu j no tenha a
fora necessria. Levantou os olhos e olhou
cada um de ns. O seu olhar demorou-se por mais
tempo em Kettricken. Tudo me falha. O corpo,
a mente e o Talento. Estou to cansado, e resta to
pouco de mim. Quando matei Cedoura, o meu
Talento me escapou. O meu trabalho diminuiu
muito de ritmo desde ento. At o poder puro que
tenho nas mos enfraquece, e o pilar est fechado
para mim; no posso viajar por ele para ir renovar
a magia. Temo que possa ter derrotado a mim
mesmo. Temo que no seja capaz de completar a
minha tarefa. No fim, posso desapontar todos
vocs. Todos vocs e os Seis Ducados inteiros.
Kettricken abaixou o rosto para as mos. Pensei
que fosse chorar. Mas quando ergueu de novo os
olhos, vi a fora do seu amor pelo homem
brilhando atravs dos outros sentimentos que teria.
Se isso o que acredita que precisa fazer,
ento me deixe ajud-lo. Indicou o drago com
um gesto. Tem de haver alguma coisa que eu
possa fazer para lhe ajudar a complet-lo. Mostre-
me onde cortar pedra, e ento voc poder
trabalhar nos detalhes.
Ele sacudiu tristemente a cabea.
Bem gostaria que voc pudesse. Mas tenho
de ser eu a faz-lo. Tem de ser tudo feito por mim.
Panela levantou-se de repente. Veio ficar ao meu
lado, lanando-me um olhar furioso, como se tudo
fosse culpa minha.
Meu Senhor, Rei Veracidade comeou.
Pareceu perder a coragem por um momento, mas
depois voltou a falar, mais alto. Meu rei, o
senhor est enganado. Poucos drages foram
criados por uma nica pessoa. Pelo menos, poucos
dos drages dos Seis Ducados. Se os outros, os
verdadeiros Antigos, eram capazes de fazer
sozinhos, no sei. Mas sei que os drages que
foram feitos por mos dos Seis Ducados eram
mais frequentemente feitos por um crculo inteiro
trabalhando junto, no por uma nica pessoa.
Veracidade a fitou, mudo.
O que est dizendo? perguntou em uma
voz trmula.
Estou dizendo o que sei. Independentemente
do que os outros possam pensar de mim.
Lanou-nos um olhar, como que nos dizendo
adeus. Ento nos deu as costas e dirigiu-se apenas
ao rei. Senhor meu rei. O meu nome
Francelha de Cervo, outrora pertencente ao
Crculo de Espeque. Porm, atravs do Talento
matei um membro do meu prprio crculo, por
cime de um homem. Faz-lo era alta traio, pois
ns ramos a fora da prpria rainha. E eu destru
isso. Por esse motivo, fui punida como a Justia da
Rainha considerou apropriado. O meu Talento foi
queimado de mim, deixando-me como o senhor me
v: selada em mim mesma, incapaz de me estender
para alm das muralhas do meu prprio corpo,
incapaz de receber o toque daqueles que me eram
queridos. Isso foi feito pelo meu prprio crculo.
Pelo assassinato em si, a rainha me baniu dos Seis
Ducados, para todo o sempre. Mandou-me embora
para que nenhum Talentoso pudesse sentir-se
tentado a se apiedar de mim e tentasse me libertar.
Ela disse que no conseguia imaginar pior
punio, que eu um dia, no meu isolamento,
ansiaria longamente pela morte. Panela caiu
lentamente com os seus velhos joelhos sobre a
pedra dura. Meu rei, minha rainha, ela tinha
razo. Agora lhes peo misericrdia. Mandem me
matar. Ou Muito lentamente ergueu a cabea.
Ou usem as suas foras para me reabrir para o
Talento. E eu lhes servirei como crculo na
escultura deste drago.
O silncio foi total durante algum tempo.
Quando Veracidade falou, mostrou-se confuso.
No conheo nenhum Crculo de Espeque.
A voz de Panela tremeu quando ela admitiu.
Eu o destru, senhor. ramos apenas cinco. O
meu ato deixou s trs vivos para o Talento, e eles
tinham experimentado a morte fsica de um
membro e a minha queima. Ficaram muito
enfraquecidos. Ouvi dizer que foram demitidos do
servio da rainha e procuraram a estrada que
antigamente comeava na cidade de Jhaampe.
Nunca regressaram, mas no creio que tenham
sobrevivido aos rigores dessa estrada. No creio
que tenham feito um drago como com o que
costumvamos sonhar.
Quando Veracidade falou, no pareceu estar
respondendo s palavras dela.
Nem o meu pai, nem nenhuma das suas
esposas tiveram crculos ajuramentados a ele.
Nem a minha av. Sua testa se enrugou. Que
rainha voc serviu, mulher?
A Rainha Diligncia, meu rei disse Panela
em voz baixa. Continuava ajoelhada na pedra dura.
A Rainha Diligncia reinou h mais de
duzentos anos observou Veracidade.
Morreu h duzentos e vinte e trs anos
interps Esporana.
Obrigado, menestrel disse secamente
Veracidade. H duzentos e vinte e trs anos. E
quer que eu acredite que voc pertencia ao crculo
dela.
Pertencia, meu senhor. Eu havia virado o
Talento para mim, pois queria manter a juventude
e a beleza. Isso no era visto como algo de
admirvel, mas a maior parte dos Talentosos o
fazia at certo ponto. Precisei de mais de um ano
para dominar o meu corpo. Porm, o que fiz, fiz
bem. At hoje, eu me curo rapidamente. A maioria
das doenas no me afeta. No conseguiu
manter uma nota de orgulho afastada da voz.
A lendria longevidade dos membros dos
crculos observou o Rei Veracidade para si
mesmo, em voz baixa. Suspirou. Deve ter
havido muitas coisas nos livros de Solicitude que
nunca foram transmitidas a Cavalaria e a mim.
Uma quantidade considervel. Panela
falava agora com mais confiana. Espanta-me
que, com to pouco treino como o senhor e
FitzCavalaria possuem, tenha conseguido chegar
at aqui sozinho. E esculpir um drago sozinho?
uma proeza digna de uma cano.
Veracidade a olhou de novo.
Oh, vamos, mulher, sente-se. Di-me v-la
ajoelhada. evidente que h muito que voc pode
e deve me contar. Mudou impacientemente de
posio e olhou para o seu drago. Mas
enquanto conversamos, no estou trabalhando.
Ento lhe direi apenas aquilo que mais
precisa de ser dito sugeriu Panela. Levantou-se
dolorosamente. Eu era poderosa no Talento.
Forte o suficiente para matar com ele, coisa que
poucos so. A voz se interrompeu, ficando mais
grossa. Respirou fundo e recomeou a falar.
Esse poder ainda est dentro de mim. Algum que
seja suficientemente forte no Talento poderia me
abrir de novo a ele. Creio que o senhor possui
essa fora. Embora neste momento possa no ser
capaz de reuni-la. O senhor matou com o Talento,
e isso uma coisa hedionda. Embora o membro do
crculo no fosse fiel ao senhor, mesmo assim
vocs haviam trabalhado juntos. Ao mat-lo, o
senhor matou uma parte de si mesmo. E essa a
razo por que sente que no lhe resta qualquer
Talento. Se eu tivesse o meu, poderia ajud-lo a se
curar.
Veracidade soltou uma pequena gargalhada.
Eu no tenho Talento, voc no tem Talento,
mas se tivssemos, poderamos curar um ao outro.
Mulher, isto como um emaranhado de corda sem
pontas. Como se desfaz o n, se no com uma
espada?
Ns temos uma espada, meu rei.
FitzCavalaria. O Catalisador.
Ah. Essa velha lenda. O meu pai gostava
dela. Olhou para mim, pensativo. Acha que
ele forte o suficiente? O meu sobrinho Augusto
teve o Talento queimado e nunca o recuperou. s
vezes acho que isso foi uma bno para ele. O
Talento o estava conduzindo por um caminho que
no lhe era adequado. Acho que foi ento que
suspeitei de que Galeno fizera alguma coisa ao
crculo. Mas eu tinha tanto que fazer. Sempre tanto
que fazer.
Senti a mente do meu rei titubeando. Dei um
passo resoluto em frente.
Meu senhor, o que deseja que eu tente fazer?
No desejo que tente fazer nada. Desejo que
faa. A est. isso o que Breu me dizia com
frequncia. Breu. A maior parte dele est agora no
drago, mas esse um pedao que deixei de fora.
Devia pr isso no drago.
Panela aproximou-se mais dele.
Meu senhor, ajude-me a libertar o meu
Talento. E eu lhe ajudarei a encher o drago.
Houve algo no modo como ela disse aquelas
palavras. Disse-as em voz alta diante de todos ns,
mas eu senti que s Veracidade realmente
compreendeu o que ela estava dizendo. Por fim,
com grande relutncia, ele assentiu.
No vejo outra maneira disse para si
mesmo. Nenhuma outra maneira.
Como posso fazer uma coisa que nem mesmo
sei o que ? protestei. Meu rei
acrescentei, aps um olhar de censura vindo de
Kettricken.
Sabe tanto quanto ns repreendeu-me
calmamente Veracidade. A mente de Francelha
foi queimada com o Talento, pelo seu prprio
crculo, para conden-la ao isolamento para o
resto da vida. Voc precisa usar todo o Talento
que possui, de todas as maneiras que puder, para
tentar penetrar na cicatriz.
No fao a mnima ideia de como comear
eu disse. Mas ento Panela virou-se e olhou
para mim. Havia splica nos seus velhos olhos.
Perda e solido. E uma fome de Talento que se
acumulara ao ponto de a devorar por dentro.
Duzentos e vinte e trs anos, pensei comigo
mesmo. Era muito tempo para se passar exilado da
ptria. Um tempo impossvel para se ficar
confinado ao prprio corpo. Mas tentarei
emendei. Estendi-lhe a mo.
Panela hesitou, mas ento colocou a sua mo na
minha. Ficamos de p, de mos dadas, olhando um
para o outro. Eu sondei na sua direo com o
Talento, mas no senti resposta. Olhei para ela e
tentei dizer a mim mesmo que a conhecia, que
devia ser fcil chegar at Panela. Ordenei a mente
e recordei tudo o que sabia sobre a velha
irascvel. Pensei na sua perseverana sem queixas,
na sua lngua afiada e nas suas mos hbeis.
Lembrei-me dela me ensinando o jogo do Talento,
e me lembrei da frequncia com que o havamos
jogado, com as cabeas juntas sobre o pano de
jogo. Panela, disse a mim mesmo com severidade.
Procure alcanar Panela. No entanto, o meu
Talento nada encontrou ali.
No sabia quanto tempo se passara. Sabia
apenas que estava com muita sede.
Preciso de uma xcara de ch disse-lhe, e
larguei a sua mo. Ela fez um aceno com a cabea,
mantendo o desapontamento bem escondido. Foi
s quando larguei a sua mo que tomei conscincia
de como o sol se movera por cima dos picos das
montanhas. Voltei a ouvir o raspa, raspa, raspa da
espada de Veracidade. Kettricken continuava
sentada, observando-o em silncio. No sabia
onde os outros tinham ido. Deixamos juntos o
drago e caminhamos at onde a fogueira
continuava em brasas. Parti a lenha em pedaos
enquanto ela enchia a panela. Pouco dissemos
enquanto a gua aquecia. Ainda havia ervas das
que Esporana colhera algum tempo antes para
fazer ch. Estavam murchas, mas as usamos, e
ento nos sentamos juntos para beber o ch. O
raspar da espada de Veracidade na pedra era um
rudo de fundo, no muito diferente do som de um
inseto. Examinei a velha que se encontrava na
minha frente.
O meu sentido da Manha me falou de uma vida
forte e animada dentro dela. Sentira a mo da
velha na minha, a carne macia nos dedos ossudos e
inchados, exceto onde o trabalho lhe pusera calos
na pele. Via as rugas no seu rosto, em volta dos
olhos e nos cantos da boca. Velha, o corpo dela
me dizia. Velha. Mas o sentido da Manha me dizia
que ali estava sentada uma mulher da minha idade,
cheia de vida e de corao arrebatado, ansiando
por amor e aventura e por tudo o que a vida podia
oferecer. Ansiando, mas aprisionada. Obriguei-me
a ver no Panela, mas Francelha. Quem fora ela
antes de ser enterrada viva? Os meus olhos
encontraram-se com os seus.
Francelha? perguntei-lhe de sbito.
Era eu disse ela em voz baixa, e o pesar
ainda estava fresco. Mas ela j no existe, e
no existe h anos.
Quando dissera o seu nome, eu quase a
detectara. Senti que tinha a chave na mo, mas no
sabia onde ficava a fechadura. Houve um
empurro nos limites da minha Manha. Ergui os
olhos, aborrecido pela interrupo. Eram Olhos-
de-Noite e o Bobo. O Bobo parecia atormentado e
me condo por ele. Mas ele no podia ter
escolhido pior momento para vir falar comigo.
Acho que ele o sabia.
Tentei me manter afastado disse em voz
baixa. Esporana me disse o que voc estava
fazendo. Contou-me tudo o que foi dito enquanto
eu estive desacordado. Eu sei que devia esperar,
que o que est fazendo vital. Mas no posso.
De repente, no conseguia me olhar nos olhos.
Eu o tra sussurrou suavemente. Sou eu o
Traidor.
Ligados como estvamos, eu conhecia a
profundidade dos seus sentimentos. Tentei
alcan-lo por essa via, para faz-lo sentir o que
eu sentia. Ele fora usado contra mim, sim, mas isso
no era obra sua. Contudo, no consegui chegar at
ele. A sua vergonha, culpa e remorso erguiam-se
entre ns e o impediam de chegar ao meu perdo.
Tambm o impediam de perdoar a si mesmo.
Bobo! exclamei de repente. Sorri-lhe. Ele
pareceu horrorizado por eu conseguir sorrir,
quanto mais para ele. No, est tudo bem. Voc
me deu a resposta. Voc a resposta. Respirei
fundo e tentei pensar cuidadosamente. Avance
lentamente, seja cuidadoso, adverti-me. No,
pensei. Agora. Agora a nica hora em que
possvel fazer isto. Descobri o pulso esquerdo.
Estendi-o para ele, com a palma virada para cima.
Toque-me ordenei-lhe. Toque-me com o
Talento que tem nos dedos, e veja se eu sinto que
voc me traiu.
No! gritou Panela, horrorizada, mas o
Bobo j estava estendendo a mo para mim como
se estivesse em um sonho. Pegou a minha mo com
a mo direita. Encostou trs pontas de dedos
prateadas no meu pulso virado para cima. Quando
senti a queimadura fria dos seus dedos no meu
pulso, estendi a outra mo e agarrei a de Panela.
FRANCELHA! gritei. Senti o despertar
nela, e a puxei para dentro de ns.
Eu era o Bobo e o Bobo era eu. Ele era o
Catalisador e eu tambm. ramos duas metades de
um todo, separadas e depois reunidas. Por um
instante, conheci-o em sua totalidade, completo e
mgico, e ento o senti separando-se de mim,
rindo, uma bolha dentro de mim, separada e
incompreensvel, e no entanto ligada a mim. Voc
realmente me ama! Fiquei incrdulo. Ele antes
nunca acreditara realmente nisso. Antes, eram
palavras. Sempre temi que tivessem origem na
piedade. Mas voc realmente meu amigo. Isto
saber. Isto sentir o que voc sente por mim.
Ento isto o Talento. Por um momento, ele
deliciou-se com o simples reconhecimento.
De repente, outro se juntou a ns. Ah,
irmozinho, finalmente encontrou as orelhas! A
minha presa sempre a sua presa, e seremos
alcateia para sempre!
O Bobo retraiu-se diante da investida amigvel
do lobo. Pensei que ele fosse quebrar o crculo.
Ento, de sbito, debruou-se para o seu interior.
Este? Este Olhos-de-Noite? Este poderoso
guerreiro, este grande corao?
Como descrever aquele momento? Eu conhecia
Olhos-de-Noite to completamente e havia tanto
tempo que me chocou ver quo o Bobo conhecia
sobre ele.
Peludo? Era assim que voc me via? Peludo e
baboso?
Peo perdo. Isso vinha do Bobo, com grande
sinceridade. Sinto-me honrado por conhec-lo tal
como voc . Nunca suspeitei de que houvesse tal
nobreza dentro de voc. A aprovao mtua entre
os dois era quase esmagadora.
Ento o mundo se assentou nossa volta. Temos
uma tarefa, lembrei-lhes. O Bobo ergueu o toque
do meu pulso, deixando para trs trs pontos de
prata na minha pele. At o ar fazia uma presso
excessiva contra essa marca. Durante algum
tempo, eu estivera em outro lugar. Agora estava de
novo dentro do meu prprio corpo. Tudo
acontecera apenas em alguns momentos.
Voltei-me para Panela. Era um esforo olhar
apenas atravs dos meus olhos. Ainda tinha a mo
dela na minha.
Francelha? disse em voz baixa. Ela ergueu
o olhar para o meu. Olhei-a e tentei v-la como
fora antigamente. No acho que ela tivesse sequer
conscincia naquele momento daquele minsculo
fiapo de Talento entre ns. No momento em que
ficara chocada por ver o Bobo me tocar, eu
ultrapassara as suas defesas. Era uma linha fina
demais para ser chamada de fio. Mas eu agora
sabia o que a estrangulava. Toda essa culpa,
vergonha e remorso que voc carrega, Francelha.
No v? Foi com isso que a queimaram. E voc
acrescentou novas camadas, ao longo de todos
estes anos. A muralha obra sua. Derrube-a.
Perdoe-se. Saia.
Agarrei o pulso do Bobo e o segurei ao meu
lado. Em algum lugar, senti tambm Olhos-de-
Noite. Estavam de novo no interior das suas
prprias mentes, mas eu conseguia alcan-los
com facilidade. Obtive fora deles, com cuidado,
lentamente. Drenei-lhes a fora e o amor e os virei
contra Panela, tentando introduzi-los nela atravs
daquela minscula fenda na sua armadura.
Lgrimas comearam a escorrer pelas faces
enrugadas.
No posso. Essa a parte mais difcil. No
posso. Eles me queimaram para me punir. Mas
isso no foi o suficiente. Nunca seria o suficiente.
Eu nunca poderei perdoar a mim mesma.
O Talento estava comeando a escorrer de
dentro dela enquanto tentava chegar at mim,
tentando me fazer compreender. Estendeu ambas as
mos, para apertar a minha nelas. A sua dor fluiu
at mim atravs dessa unio.
Ento quem poderia perdo-la? dei por
mim perguntando.
Gaivota. A minha irm Gaivota! O nome
lhe foi arrancado e percebi de que se recusara a
pensar nele, quanto mais proferi-lo, durante anos.
Irm, no s colega de crculo, mas sua irm. E ela
a matara em uma fria quando a encontrara com
Espeque. O lder do crculo?
Sim murmurou ela, embora agora no
fossem necessrias palavras entre ns. Eu estava
alm da muralha queimada. O forte, o belo
Espeque. Fazer amor com ele, de corpo e Talento,
uma experincia de unidade sem par. Mas ento
ela os encontrara, a ele e a Gaivota, juntos, e
Ele devia saber que isso era errado gritei,
indignado. Vocs eram irms e membros do seu
prprio crculo. Como ele pde fazer isso com
vocs? Como?
Gaivota! gritou ela, e por um instante eu a
vi. Estava por trs de uma segunda muralha.
Estavam ambas. Francelha e Gaivota. Duas
menininhas, correndo descalas por uma costa
arenosa, quase ao alcance das ondas geladas que
lambiam a areia. Duas menininhas, to parecidas
como caroos de ma, a alegria do pai, gmeas,
correndo ao encontro do pequeno barco que
chegava terra, apressando-se para ver o que
papai apanhara hoje nas suas redes. Senti o cheiro
do vento salgado, do iodo das algas emaranhadas e
moles, enquanto elas se precipitavam sobre elas,
aos guinchos. Duas menininhas, Gaivota e
Francelha, trancadas e escondidas por trs de uma
muralha dentro dela. Mas eu conseguia v-las,
ainda que ela no conseguisse.
Eu a vejo, eu a conheo. E ela conhecia voc,
por completo. Relmpago e trovo, a sua me
chamava vocs, pois enquanto a sua irritao
brilhava e desaparecia, Gaivota era capaz de
nutrir um rancor durante semanas. Mas no
contra voc, Francelha. Nunca contra voc, e
nunca durante anos. Ela a amava, mais do que
qualquer uma de vocs amava Espeque. Assim
como voc a amava. E ela a teria perdoado.
Nunca teria desejado isto para voc.
Eu no sei.
Sabe, sim. Olhe para ela. Olhe para voc.
Perdoe-se. E deixe que a parte dela que est
dentro de voc viva de novo. Deixe que voc
mesma viva de novo.
Ela est dentro de mim?
Com toda certeza. Eu a estou vendo, sinto-a.
Tem de ser verdade.
O que voc sente? Cautelosamente.
Apenas amor. Veja por voc mesma. Levei-a
mais para o interior da sua mente, at os locais e
memrias que negara a si mesma. No eram as
muralhas queimadas que o crculo lhe impusera
que a magoavam mais. Eram aquelas que erguera
entre si e a memria daquilo que perdera em um
momento de fria. Duas garotas, agora mais
velhas, caminhando pela gua para pegar a corda
que o pai lhes atirara, e ajudando a puxar o seu
barco carregado para a praia. Duas garotas de
Cervo, ainda to parecidas como caroos de ma,
desejando ser as primeiras a contar ao papai que
haviam sido escolhidas para serem treinadas no
Talento.
Papai dizia que ramos uma s alma em dois
corpos.
Ento se abra e deixe-a sair. Deixe que ambas
saiam para viver.
Fiquei em silncio, esperando. Francelha estava
em uma parte das suas recordaes que negava h
mais tempo do que as outras pessoas viviam. Um
lugar de vento fresco e riso juvenil, e uma irm to
parecida com ela que quase no precisavam falar
uma com a outra. O Talento existira entre elas
desde o momento em que nasceram.
Vejo agora o que tenho de fazer. Senti a sua
irresistvel onda de alegria e determinao. Tenho
de deix-la sair, tenho de coloc-la no drago.
Ela viver para sempre no drago, assim como
havamos planejado. Ns duas, juntas novamente.
Panela levantou-se, largando as minhas mos to
repentinamente que gritei com o choque. Dei por
mim de volta ao meu corpo. Senti que cara at ali,
vindo de uma grande distncia. O Bobo e Olhos-
de-Noite ainda se encontravam perto de mim, mas
j no faziam parte de uma roda. Quase no
conseguia senti-los com todo o resto que sentia.
Talento. Correndo atravs de mim como guas
revoltas. Talento. Emanando de Panela como o
calor de uma fornalha de ferreiro. Ela brilhava de
Talento. Apertou as mos, sorriu ao ver os dedos
endireitados.
Voc devia ir descansar agora, Fitz disse-
me ela com suavidade. Vamos. V dormir.
Uma sugesto gentil. Ela no conhecia a fora do
seu prprio Talento. Deitei-me e nada mais vi.
Quando acordei era noite cerrada. O peso e calor
do corpo do lobo eram um conforto encostado em
mim. O Bobo me enrolara em um cobertor e estava
sentado ao meu lado, fitando extasiado o fogo.
Quando me mexi, ele apertou o meu ombro com
uma inspirao sbita.
O que foi? perguntei. No conseguia
compreender nada do que ouvia ou via. Fogueiras
haviam sido acesas no estrado de pedra ao lado do
drago. Ouvi o estrondo de metal batendo em
pedra e vozes erguidas em conversas. Na tenda,
atrs de mim, ouvi Esporana experimentando notas
na sua harpa.
Da ltima vez que o vi dormir assim,
tnhamos acabado de arrancar uma flecha das suas
costas, e eu pensava que voc estava morrendo de
infeco.
Eu devia estar muito cansado sorri-lhe,
capaz de confiar que ele compreenderia. No
se sente esgotado? Eu tirei foras de voc e de
Olhos-de-Noite.
Esgotado? No. Sinto-me curado. No
hesitou, e acrescentou: Acho que tanto pelo
fato de o crculo infiel ter fugido do meu corpo,
como por saber que voc no me odeia. E pelo
lobo. Ora, ele uma maravilha. E quase o sinto,
ainda por cima. Um sorriso muito estranho
surgiu no seu rosto. Senti-o tateando em busca
Olhos-de-Noite. Ele no tinha fora suficiente para
usar de fato o Talento ou a Manha sozinho. Mas
era perturbador senti-lo tentando. Olhos-de-Noite
deixou que a cauda subisse e descesse em um lento
abano.
Estou com sono.
Ento descanse, irmo. Coloquei a mo no pelo
espesso do seu ombro. Ele era vida, fora e
amizade em que eu podia confiar. Deu mais um
lento abano na cauda e abaixou de novo a cabea.
Olhei para o Bobo e indiquei o drago de
Veracidade com a cabea.
O que est acontecendo l em cima?
Loucura. E jbilo. Acho. Menos para
Kettricken. Acho que o seu corao se devora de
cime, mas ela no quer sair de l.
O que est acontecendo l em cima?
repeti, paciente.
Sabe mais sobre aquilo do que eu
retorquiu ele. Voc fez algo a Panela. Eu
entendi parte do que aconteceu, mas no tudo.
Depois voc adormeceu. E Panela foi at l em
cima e fez algo a Veracidade. No sei o qu, mas
Kettricken diz que deixou os dois chorando e
tremendo. Ento Veracidade fez alguma coisa a
Panela. E ambos desataram a rir, a chorar e a
gritar que ia funcionar. Eu fiquei o tempo
suficiente para ver os dois comearem a atacar a
pedra em volta do drago com cinzis, marretas e
espadas e tudo o mais que estivesse mo.
Entretanto, Kettricken fica sentada, silenciosa
como uma sombra, e os observa lugubremente.
Eles no querem deix-la ajudar. Ento desci at
aqui e encontrei voc inconsciente. Ou dormindo.
O que preferir. E j estou sentado aqui h muito
tempo, vigiando-o e fazendo ch ou levando carne
a qualquer um que me pea um pedao. E agora
voc est acordado.
Reconheci a sua pardia de mim apresentando
um relatrio a Veracidade e tive de sorrir. Cheguei
concluso de que Panela ajudara Veracidade a
liberar o seu Talento e que o trabalho prosseguia
no drago. Mas Kettricken.
O que entristece Kettricken? perguntei.
Ela deseja ser Panela o Bobo explicou,
em um tom que dizia que qualquer idiota saberia
disso. Entregou-me um prato de carne e uma
caneca de ch. Como voc se sentiria, se
tivesse percorrido todo este longo e cansativo
caminho, s para ver o seu esposo escolher outra
para ajud-lo no seu trabalho? Ele e Panela
tagarelam como gralhas. Todos os tipos de
conversas inconsequentes. Trabalham e fazem
saltar lascas de pedra ou, s vezes, Veracidade
apenas fica imvel, com as mos encostadas no
drago. E conta a ela sobre o gato da me, Sibila,
e do tomilho que crescia no jardim da torre. E
Panela vai lhe contando, sem interrupes, sobre a
Gaivota que fez isto, Gaivota que fez aquilo e tudo
o que ela e Gaivota fizeram juntas. Pensei que
parariam ao pr do sol, mas esse foi o nico
momento em que Veracidade pareceu lembrar-se
de que Kettricken estava viva. Pediu-lhe para
trazer lenha e fazer fogueiras para dar luz. Oh, e
acho que deixou que ela lhe afiasse um ou dois
cinzis.
E Esporana eu disse, estupidamente. No
gostava de pensar no que Kettricken devia estar
sentindo. Dirigi os pensamentos para longe disso.
Trabalha em uma cano sobre o drago de
Veracidade. Acho que desistiu de esperar que
voc e eu faamos alguma coisa digna de nota.
Sorri para mim mesmo.
Ela nunca est por perto quando eu fao algo
de significativo. O que fizemos hoje, Bobo, foi
melhor do que qualquer batalha em que eu tenha
combatido. Mas ela nunca compreender isso por
completo. Inclinei a cabea na direo da
tenda. A harpa dela tem um som mais suave do
que eu me lembrava disse para mim mesmo.
Em resposta, ele ergueu as sobrancelhas e
sacudiu os dedos na minha frente.
Os meus olhos se arregalaram.
O que voc andou fazendo? perguntei.
Experincias. Acho que, se sobreviver a tudo
isto, as minhas marionetes vo se tornar lendrias.
Sempre consegui olhar para a madeira e ver o que
queria trazer para primeiro plano. Estes meninos
e voltou a sacudir os dedos na minha frente
fazem com que isso se torne muito mais fcil.
Tenha cautela supliquei.
Eu? Eu no tenho qualquer cautela em mim.
No posso ser o que no sou. Onde voc vai?
Ver o drago respondi. Se Panela pode
trabalhar nele, eu tambm posso. Talvez eu no
seja to fortemente Talentoso, mas estive ligado a
Veracidade por muito mais tempo.
CAPTULO 36

A Manha e a Espada

Os Ilhus sempre assolaram a linha costeira dos


Seis Ducados. O fundador da monarquia
Visionrio, na realidade, no passava de um
salteador que se fartara da vida do mar. A
tripulao de Tomador esmagou os construtores
originais do forte de madeira na foz do Rio
Cervo e tornou-o seu. Ao longo de vrias
geraes, ele foi sendo substitudo pelas
muralhas de pedra negra do Castelo de Torre do
Cervo, e os salteadores Ilhus transformaram-se
em residentes e monarca.
O comrcio, os ataques e a pirataria sempre
existiram ao mesmo tempo entre os Seis Ducados
e as Ilhas Externas. Contudo, o incio dos
ataques dos Navios Vermelhos marcou uma
mudana neste intercmbio abrasivo e lucrativo.
Tanto a selvageria como a destruio provocada
pelos ataques no tinham precedentes. Houve
quem as atribusse subida ao poder, nas Ilhas
Externas, de um feroz chefe que aderiu a uma
sangrenta religio de vingana. Os mais
selvagens dos seus seguidores transformaram-se
em Salteadores e nas tripulaes dos Navios
Vermelhos. Outros Ilhus, nunca antes unidos
sob um nico lder, foram coagidos a lhe jurar
lealdade, sob ameaa de forjamento para aqueles
que recusassem e para as suas famlias. Ele e os
seus salteadores trouxeram o seu violento dio
s costas dos Seis Ducados. Se alguma vez teve
alguma inteno alm de matar, violar e destruir,
nunca a tornou pblica. O seu nome era Quebal
Pancru.

No entendo por que o senhor me recusa eu


disse, com severidade.
Veracidade interrompeu o seu incessante entalhe
do drago. Esperara que ele se virasse e me
encarasse, mas apenas se inclinou mais, para
espanar lascas de pedra e poeira. Quase no
conseguia acreditar no progresso que ele fizera. O
p direito do drago, completo com garras e tudo,
repousava agora na pedra. Era verdade que lhe
faltavam os detalhes minuciosos do resto do
drago, mas a perna propriamente dita estava
agora completa. Veracidade ps uma mo
cautelosa em cima de um dos dedos da esttua.
Ficou sem se mexer ao lado da sua criao,
paciente e imvel. No consegui ver qualquer
movimento na sua mo, mas conseguia detectar o
Talento em ao. Se sondasse nem que fosse um
pouco na sua direo, eu podia sentir as
minsculas fissuras da pedra enquanto ia lascando.
Realmente parecia que o drago estivera
escondido na pedra e que a tarefa de Veracidade
era revel-lo, uma escama cintilante de cada vez.
Fitz. Pare com isso. Pude ouvir
aborrecimento na sua voz. Aborrecimento por eu
estar partilhando Talento com ele, e aborrecimento
por estar distraindo-o do seu trabalho.
Deixe-me ajud-lo supliquei de novo. Havia
algo no trabalho que me atraa. Antes, quando
Veracidade raspava a pedra com a espada, o
drago parecera um trabalho de escultura
admirvel. Mas agora havia um tremeluzir de
Talento nele quando tanto Veracidade como
Panela aplicavam os seus poderes. Era
imensamente atraente, da mesma maneira que um
riacho cintilante vislumbrado entre rvores atrai o
olhar, ou o cheiro de po recm-assado desperta a
fome. Eu ansiava por colocar as mos naquela
poderosa criatura e ajudar a mold-la. V-los
trabalhar despertava em mim uma nsia de Talento
superior a qualquer outra que j experimentara.
Eu estou ligado ao senhor pelo Talento h mais
tempo do que qualquer outra pessoa. Na poca em
que eu puxava um remo no Rurisk, o senhor me
disse que eu era o seu crculo. Por que me afasta
agora, quando eu poderia ajudar e o senhor precisa
tanto de ajuda?
Veracidade suspirou e balanou para trs sobre
os calcanhares. O dedo no estava concludo, mas
eu via agora nele o leve contorno de escamas e o
incio do revestimento da garra cruelmente
recurva. Conseguia sentir como a garra seria,
estriada como a garra de um falco. Desejei
estender a mo e arrancar da pedra esses traos.
Pare de pensar nisso pediu-me firmemente
Veracidade. Fitz. Fitz, olhe para mim. Escute-
me. Lembra-se da primeira vez que drenei fora de
voc?
Eu me lembrava. Desmaiara.
Eu agora conheo melhor a minha fora
respondi.
Ele me ignorou.
Voc no sabia o que estava oferecendo
quando me disse que era um Homem do Rei. Eu
acreditei na sua palavra de que voc sabia o que
estava fazendo. Voc no sabia. Agora lhe digo
claramente que voc no sabe o que est me
pedindo. Mas eu sei o que estou lhe recusando. E
tudo.
Mas Veracidade
O Rei Veracidade no ouvir nenhum mas
sobre isso, FitzCavalaria. Traou aquele limite
comigo como poucas vezes fizera antes.
Respirei fundo e me recusei a deixar que a
frustrao se transformasse em ira. Ele tornou a
colocar com cuidado a mo no dedo do drago.
Fiquei um momento escutando o tac, tac, tac do
cinzel de Panela soltando da pedra a cauda do
drago. Ela cantava enquanto trabalhava, alguma
antiga balada de amor.
Meu senhor, Rei Veracidade, se me disser o
que no sei a respeito de ajud-lo, ento eu talvez
possa decidir por mim mesmo se
A deciso no sua, rapaz. Se quer
realmente ajudar, vai arranjar uns galhos e faa
uma vassoura. Varra daqui as lascas de pedra e a
poeira. terrvel de nos ajoelharmos nela.
Preferiria ajud-lo de fato resmunguei,
desconsolado, enquanto me virava.
FitzCavalaria! Havia uma nota penetrante
na voz de Veracidade, uma nota que no ouvia
desde os meus tempos de garoto. Virei-me para
ele, atemorizado.
Est se excedendo disse ele sem rodeios.
A minha rainha mantm estas fogueiras acesas e
afia os meus cinzis para mim. Voc est se
colocando acima de tal trabalho?
Em momentos como aquele, uma resposta breve
a melhor possvel.
No, senhor.
Ento v me fazer uma vassoura. Amanh.
Por ora, por mais que odeie diz-lo, devamos
todos descansar, pelo menos por algum tempo.
Levantou-se lentamente, oscilou, e ento se
endireitou. Colocou afetuosamente uma mo
prateada no ombro imenso do drago. Ao
amanhecer prometeu-lhe.
Eu esperara que ele chamasse Panela, mas ela j
estava se levantando e se espreguiando. Ligados
pelo Talento, pensei comigo mesmo. As palavras
j no eram necessrias. Mas eram para a sua
rainha. Deu a volta ao drago at onde Kettricken
se encontrava sentada perto de uma das fogueiras.
Estava amolando o gume de um cinzel. O spero
raspar do seu trabalho escondeu dela os passos
leves de Veracidade. Durante algum tempo, ele
observou a sua rainha enquanto esta se debruava
sobre a sua tarefa.
Senhora, vamos dormir por algum tempo?
perguntou-lhe em voz baixa.
Ela se virou. Afastou o cabelo rebelde dos olhos
com uma mo empoeirada e cinzenta.
Como quiser, meu senhor respondeu.
Conseguiu manter quase toda a dor afastada da
voz.
No estou assim to cansada, senhor meu rei.
Gostaria de continuar trabalhando, se assim
desejar. A voz alegre de Panela era quase
chocante. Eu reparei que Kettricken no se virou
para olh-la. Veracidade disse apenas:
s vezes melhor descansar antes de
estarmos cansados. Se dormirmos enquanto est
escuro, trabalharemos melhor luz do dia.
Kettricken retraiu-se como se tivesse sido
criticada.
Eu poderia fazer as fogueiras maiores, meu
senhor, se for isso o que deseja disse com
cuidado.
No. Desejo descansar, com voc ao meu
lado. Se quiser, minha rainha.
No passava do mnimo do seu afeto, mas ela se
agarrou a isso.
Quero, meu senhor. Doeu-me v-la
satisfeita com to pouco.
Ela no est satisfeita, Fitz, e a sua dor no me
passa despercebida. Dou-lhe o que posso. O que
seguro para eu dar a ela.
O meu rei ainda me lia com toda aquela
facilidade. Repreendido, dei boa noite a eles e fui
para a tenda. Enquanto nos aproximvamos,
Olhos-de-Noite levantou-se, espreguiando-se e
bocejando.
Caou?
Com toda essa carne que ainda temos, por que
eu caaria? Reparei ento no monte de ossos de
porco ao redor dele. Deitou-se de novo entre os
ossos, de focinho encostado cauda, rico como
qualquer lobo poderia ser. Tive um momento de
inveja pela sua satisfao.
Esporana estava de vigia fora da tenda junto
fogueira, com a harpa aninhada no colo. Comecei a
passar por ela com um aceno de cabea, mas ento
parei para olhar para a harpa. Com um sorriso
deliciado, ela a ergueu para a minha inspeo.
O Bobo se superara. No havia dourados ou
arabescos, no havia embutidos de marfim ou de
bano como os que, diriam alguns, distinguiam
uma harpa das demais. Havia apenas o brilho
sedoso da madeira curva e aquele trabalho sutil
que realava o melhor do veio da madeira. Eu no
conseguia olh-la sem desejar toc-la e segur-la.
A madeira atraa a mo. A luz da fogueira danava
nela.
Panela tambm parou para ver. Apertou bem os
lbios.
No tem cuidado nenhum. Um dia ser a
morte dele disse, agourenta. Ento me precedeu
para entrar na tenda.
Apesar do longo cochilo que dormira horas
antes, mergulhei no sono quase assim que me
deitei. No creio que tenha dormido muito antes de
me tornar consciente de um rudo furtivo l fora.
Sondei com a Manha na sua direo. Homens.
Quatro. No, cinco, deslocando-se sem rudo
colina acima, na direo da cabana. Pouco
consegui saber sobre eles alm de avanarem
furtivos, como caadores. Em algum lugar, em uma
sala pouco iluminada, Bronco endireitou-se sem
um som. Levantou-se, descalo, e atravessou a
cabana at a cama de Moli. Ajoelhou-se ao seu
lado, ento lhe tocou suavemente no brao.
Bronco? Ela prendeu a respirao no seu
nome, e ento esperou, espantada.
No faa nenhum som sussurrou ele.
Levante-se. Calce os sapatos e enrole bem Urtiga,
mas tente no acord-la. H algum l fora, e no
acho que queiram nos fazer bem.
Fiquei orgulhoso dela. No fez perguntas e
sentou-se imediatamente. Colocou o vestido por
cima da camisola e enfiou os ps nos sapatos.
Enrolou o cobertor em volta de Urtiga at ela
parecer pouco mais do que um trouxa de
cobertores. A beb no acordou.
Enquanto isso, Bronco calara as suas botas e
pegara uma espada curta. Fez sinal a Moli para se
dirigir at a janela fechada.
Se eu lhe disser, saia por essa janela com
Urtiga. Mas apenas se eu disser. Acho que eles so
cinco.
Moli assentiu luz do fogo. Puxou a faca de
cinto e colocou-se entre a filha e o perigo.
Bronco foi se posicionar a um lado da porta. A
noite inteira pareceu passar enquanto esperavam
em silncio pela chegada dos seus atacantes.
A tranca estava no lugar, mas pouco significado
tinha em um caixilho de porta to velho. Bronco os
deixou bater na porta duas vezes e ento, quando a
tranca comeou a ceder, ele a fez saltar dos
suportes com um chute, de modo que na vez
seguinte que eles se atiraram contra a porta, ela se
escancarou. Dois homens entraram aos tropees,
surpreendidos pela sbita falta de resistncia. Um
caiu, o outro caiu sobre o primeiro e Bronco j
havia enfiado a espada em ambos antes que o
terceiro chegasse porta.
O terceiro homem era grande, de cabelo e barba
ruivos. Chegou porta com um rugido, passando
por cima dos dois homens cados, que se
contorceram sob as suas botas. Trazia uma espada
longa, uma arma magnfica. O seu tamanho e
espada lhe davam quase o dobro do alcance de
Bronco. Atrs dele, um homem robusto berrou:
Em nome do rei, viemos buscar a vadia do
Bastardo da Manha! Largue a arma e afaste-se.
Ele teria sido sensato em no alimentar ainda
mais a ira de Bronco. Quase com indiferena,
Bronco baixou a sua lmina para acabar com um
dos homens que estavam no cho, e depois ergueu
a espada para dentro da guarda do Barba-ruiva. O
Barba-ruiva recuou, tentando encontrar espao
para a vantagem que a espada lhe dava. Bronco
no teve alternativa a no ser segui-lo, pois se o
homem conseguisse chegar a um local em que
pudesse brandir livremente a espada, Bronco teria
poucas chances. O homem robusto e uma mulher
saltaram imediatamente para a porta. Bronco olhou
para eles.
Moli! Como eu lhe disse!
Moli j estava junto da janela, agarrada a Urtiga,
que comeara a berrar de medo. Saltou para uma
cadeira, abriu as folhas e passou uma perna pela
janela. Bronco estava mantendo o Barba-ruiva
ocupado quando a mulher se precipitou por trs
dele e lhe enfiou a faca na base das costas. Bronco
soltou um grito rouco e aparou frentico a espada
mais longa. Quando Moli passou a outra perna por
cima do parapeito da janela e comeou saltar para
fora, o homem robusto atravessou a sala de um
salto e lhe arrancou Urtiga dos braos. Ouvi Moli
guinchar de terror e fria.
Ento ela correu para a escurido.
Descrena. Senti a descrena de Bronco to
claramente quanto a minha. A mulher tirou a faca
das suas costas e a ergueu para atacar de novo. Ele
baniu a dor com ira, girou para lhe fazer um corte
no peito, e voltou a se virar para o Barba-ruiva.
Mas o Barba-ruiva dera um passo para trs. A
espada ainda estava a postos, mas ele estava
imvel enquanto o homem robusto dizia:
Temos a criana. Largue a espada, seno a
beb morre aqui e agora. Lanou um olhar
mulher que estava agarrada ao peito. V atrs
da mulher. Agora!
Ela o olhou furiosa, mas foi sem um murmrio.
Bronco nem sequer a viu partir. S tinha olhos
para a beb que chorava nos braos do homem
robusto. O Barba-ruiva sorriu quando a ponta da
espada de Bronco se virou lentamente para o cho.
Por qu? perguntou Bronco, consternado.
O que fizemos para nos atacarem e ameaarem
matar a minha filha?
O homem robusto abaixou os olhos para o rosto
vermelho da beb que gritava nos seus braos.
Ela no sua escarneceu. a bastarda
do Bastardo da Manha. Obtivemos a informao
da melhor das fontes. Ergueu Urtiga bem alto
como se quisesse atir-la no cho. Fitou Bronco.
Bronco soltou um som incoerente, parte fria,
parte splica. Largou a espada. Junto porta, o
ferido gemeu e tentou se sentar.
Ela s uma beb muito pequena disse
Bronco numa voz rouca. Como se fosse meu, senti
o calor do sangue que lhe escorria pelas costas e
pelo quadril. Deixe-nos ir. Est enganado. Ela
do meu sangue, estou lhe dizendo, e no ameaa
o seu rei. Por favor. Tenho ouro. Eu o levo at ele.
Mas nos deixe ir.
Bronco, que teria resistido, cuspido e lutado at
a morte, deixara cair a espada e suplicava pela
minha filha. O Barba-ruiva soltou uma gargalhada
estrondosa, mas Bronco nem sequer se virou para
ele. Ainda rindo, o homem aproximou-se da mesa
e acendeu com indiferena o castial que havia ali.
Ergueu a luz para examinar a sala desordenada.
Bronco no conseguia tirar os olhos de Urtiga.
Ela minha disse em voz baixa, quase em
desespero.
Pare com as mentiras disse o homem
robusto com desdm. Ela descendente do
Bastardo da Manha. to maculada quanto ele
era.
Exatamente. mesmo.
Todos os olhos se viraram para a porta. Moli
estava l, muito plida, respirando com fora. A
sua mo direita estava vermelha de sangue.
Apertava ao peito uma grande caixa de madeira.
Um zumbido ominoso saa l de dentro.
A cadela que voc mandou atrs de mim est
morta disse Moli com dureza. Assim como
vocs estaro em breve, se no largarem as armas
e soltarem a minha filha e o meu homem. O
homem robusto sorriu, incrdulo. O Barba-ruiva
ergueu a espada.
A voz dela tremeu s ligeiramente quando
acrescentou:
A criana Manhosa, claro. Assim como eu.
As minhas abelhas no nos faro mal. Mas firam
um de ns e elas sairo, iro segui-los e no tero
piedade. Vocs morrero de um milho de
ferroadas dolorosas. Acham que as suas espadas
sero muito teis contra as minhas abelhas de
Manha? Olhou de rosto em rosto, com os olhos
brilhando de fria e ameaa enquanto apertava
contra si a pesada caixa de madeira da colmeia.
Uma abelha escapou e comeou a zumbir
furiosamente pela sala. Os olhos do Barba-ruiva a
seguiram, apesar de ele exclamar:
No acredito!
Os olhos de Bronco estavam medindo a
distncia que o separava da espada quando Moli
perguntou em voz baixa, quase timidamente:
No? Deu um sorriso estranho enquanto
baixava a colmeia para o cho. Os seus olhos
encontraram-se com os do Barba-ruiva ao erguer a
tampa da caixa. Enfiou a mo l dentro, e no
momento em que o homem robusto arfava
ruidosamente, tirou-a da colmeia, enluvada em
abelhas vivas. Fechou a tampa da colmeia e
levantou-se. Olhou para as abelhas que lhe
revestiam a mo e disse em voz baixa: O da
barba vermelha, pequeninas. Ento estendeu a
mo como se estivesse oferecendo um presente a
eles.
Foi preciso um momento mas, quando cada uma
das abelhas levantou voo, dirigiu-se sem errar
para o Barba-ruiva. Ele vacilou quando a
primeira, e logo outra, zumbiu por perto, e ento
regressou, descrevendo um crculo.
Chame-as de volta ou matamos a criana!
gritou de sbito. Tentou acert-las sem sucesso
com o castial que tinha na mo.
Em vez disso, Moli abaixou-se de repente e
ergueu a colmeia inteira o mais alto que pde.
Vocs vo mat-la de qualquer forma!
gritou, com a voz vacilando naquelas palavras.
Sacudiu a colmeia, e o zumbido agitado das
abelhas transformou-se em um rugido.
Pequeninas, eles querem matar a minha filha!
Quando eu as libertar, vinguem-nos! Ergueu a
colmeia ainda mais alto, preparando-se para
arrebent-la no cho. O homem ferido aos seus ps
gemeu ruidosamente.
Pare! gritou o homem robusto. Eu lhe
dou a criana!
Moli estacou. Todos podiam ver que ela no era
capaz de suportar o peso da colmeia durante muito
mais tempo. Havia tenso na sua voz, mas ordenou
calmamente:
D a beb ao meu homem. Deixe que venham
at mim. Seno vocs todos morrero, com toda
certeza e muito horrivelmente. O homem
robusto olhou com incerteza para o Barba-ruiva.
De velas numa mo e espada na outra, o Barba-
ruiva recuara para longe da mesa, mas as abelhas
continuavam a zumbir, confusas, sua volta. O
esforo que fazia para enxot-las s parecia deix-
las mais determinadas.
O Rei Majestoso nos matar se falharmos!
Ento morram com as minhas abelhas
sugeriu Moli. H centenas de abelhas aqui
acrescentou em uma voz grave. O seu tom era
quase sedutor quando disse: Elas vo entrar na
sua camisa e nas pernas das calas. Vo se agarrar
nos seus pelos enquanto picam. Vo rastejar para
dentro das suas orelhas e narinas para picar. E,
quando gritarem, vo se aglomerar na sua boca,
dezenas de corpos zumbidores e penugentos, para
picar as suas lnguas at que elas no caibam mais
nas bocas. Morrero sufocados por elas!
Aquela descrio pareceu convenc-los. O
homem robusto atravessou a sala at Bronco,
empurrou a beb que ainda gritava nos seus
braos. O Barba-ruiva o olhou furioso, mas nada
disse. Bronco levou Urtiga, mas no deixou de se
abaixar e tambm pegar a espada. Moli trespassou
o Barba-ruiva com os olhos.
Voc. V ali para junto dele. Bronco. Leve
Urtiga l para fora. Leve-a para onde colhemos
hortel ontem. Se eles me forarem a agir, no
quero que ela veja. Pode deix-la com medo das
abelhas que so suas criadas.
Bronco obedeceu. De todas as coisas que
testemunhara naquela noite, aquela me pareceu a
mais espantosa. Depois de ele sair, Moli recuou
lentamente para a porta.
No nos sigam avisou-os. As minhas
abelhas de Manha vo ficar de vigia por mim, do
lado de fora da porta. Deu uma ltima sacudida
na colmeia. O ribombante zunido aumentou e
foram vrias as abelhas que escaparam para a
sala, zumbindo furiosamente. O homem robusto
imobilizou-se, mas o Barba-ruiva ergueu a espada
como se ela pudesse defend-lo. O homem que
estava no cho soltou um grito incoerente e
arrastou-se para longe dela quando Moli saiu
andando de costas. Ela fechou a porta atrs de si,
ento encostou a colmeia nela. Tirou a tampa da
colmeia e a chutou antes de se virar e fugir para a
noite. Bronco! chamou em voz baixa.
Estou indo. No seguiu na direo da estrada,
mas na dos bosques. No olhou para trs.
Volte, Fitz. No era o Talento, mas a voz
baixa de Veracidade perto de mim. Voc os viu
em segurana. No os observe mais, para evitar
que outros vejam atravs dos seus olhos e saibam
para onde eles vo. melhor se voc mesmo no
souber. Volte.
Abri os olhos para a pouca luz que havia na
tenda. No era s Veracidade que estava sentado
ao meu lado, Panela tambm se encontrava ali. Sua
boca estava apertada numa linha plana de
desaprovao. O rosto de Veracidade estava
severo, mas tambm havia compreenso nele. Ele
falou antes de eu ter tempo de faz-lo.
Se eu acreditasse que voc havia procurado
isso, ficaria muito zangado com voc. Mas agora
lhe digo com clareza: melhor que no saiba nada
deles. Nada de nada. Se tivesse me dado ouvidos
assim que lhe dei esse conselho, nenhum dos trs
teria sido ameaado como foi esta noite.
Vocs dois estavam vendo? perguntei em
voz baixa. Por um instante, senti-me comovido.
Ambos se preocupavam com a minha filha o
suficiente para isso.
Ela tambm minha herdeira observou
Veracidade, inflexvel. Acha que eu poderia
ficar de lado sem fazer nada se eles a tivessem
ferido? Sacudiu a cabea. Fique longe deles,
Fitz. Para o bem de todos ns. Compreende?
Assenti com a cabea. As suas palavras no
podiam me afligir. Eu j decidira que escolheria
no saber para onde Moli e Bronco iriam levar
Urtiga. Mas no porque ela era herdeira de
Veracidade. Panela e Veracidade levantaram-se e
saram da tenda. Eu me atirei de novo nos meus
cobertores. O Bobo, que estivera apoiado em um
cotovelo, tambm se deitou.
Amanh lhe conto disse-lhe. Ele fez um
aceno mudo, com os olhos enormes no rosto
plido. Ento deitou-se de novo. Acho que
adormeceu. Eu fiquei fitando a escurido. Olhos-
de-Noite veio deitar-se ao meu lado.
Ele protegeria o seu filhote como se fosse dele,
observou calmamente. Isso alcateia.
Ele queria me consolar com aquelas palavras.
Eu no precisava delas. Estendi uma mo para
coloc-la no seu pescoo. Viu como ela resistiu e
os enfrentou?, perguntei com orgulho.
Uma loba por demais excelente, concordou
Olhos-de-Noite.
Senti-me como se no tivesse dormido nada
quando Esporana me acordou e ao Bobo para o
nosso turno de vigia. Sa da tenda me
espreguiando e bocejando, e suspeitando de que
manter uma vigia no era realmente uma
necessidade. Porm, o ltimo fragmento de noite
estava agradavelmente suave, e Esporana deixara
caldo de carne fervendo em fogo brando na borda
da fogueira. Eu j havia bebido meia caneca
quando o Bobo finalmente me seguiu at ali fora.
Esporana me mostrou a harpa ontem noite
eu disse em jeito de saudao.
Ele deu um sorrisinho satisfeito.
Um trabalho grosseiro. Ah, isto no passa
de uma das suas primeiras tentativas, diro algum
dia acrescentou com modstia forada.
Panela disse que voc no tem nenhum
cuidado.
No, no tenho, Fitz. O que estamos fazendo
aqui?
Eu? Fao o que me dizem. Quando acabar o
meu turno, vou at as colinas para recolher
gravetos para uma vassoura. Para poder varrer as
lascas de rocha para fora do caminho de
Veracidade.
Ah. Ora, eis a um trabalho grandioso para
um Catalisador. E o que supe que um profeta
possa fazer?
Voc podia profetizar quando que aquele
drago ficar pronto. Temo que no iremos pensar
em mais nada at que ele esteja concludo.
O Bobo estava sacudindo muito levemente a
cabea.
O que foi? perguntei.
No sinto que fomos chamados aqui para
fazer vassouras e harpas. Isto me parece uma
bonana, meu amigo. A bonana antes da
tempestade.
Ora, eis a um pensamento alegre disse-
lhe, sombrio. Mas perguntei a mim mesmo se ele
no poderia ter razo.
Vai me contar o que houve ontem noite?
Quando o meu relato terminou, o Bobo estava
sorrindo.
Aquela uma garota cheia de recursos
observou, orgulhoso. Ento inclinou a cabea e
olhou para mim. Acha que a beb ser
Manhosa? Ou capaz de usar o Talento?
Nunca parara para refletir sobre aquilo.
Espero que no disse de imediato. E
depois fiquei pensando nas minhas palavras.
A aurora quase ainda nem rompera quando
Veracidade e Panela se levantaram. Beberam uma
caneca de caldo cada um, de p, e levaram carne
seca quando se encaminharam para o drago.
Kettricken tambm sara da tenda de Veracidade.
Os seus olhos estavam encovados e havia derrota
na posio da boca. No bebeu mais de meia
caneca de caldo antes de coloc-la de lado. Voltou
para a tenda e regressou com um cobertor
transformado em um saco.
Lenha respondeu, seca, minha
sobrancelha erguida.
Ento Olhos-de-Noite e eu bem podemos ir
com a senhora. Preciso recolher gravetos e um pau
para fazer uma vassoura. E ele precisa fazer
alguma coisa alm de dormir e engordar.
E voc tem medo de ir floresta sem mim.
Se porcas como aquela abundam nestes
bosques, voc tem toda a razo.
Talvez Kettricken queira trazer o arco?
Mas quando me virei para fazer a sugesto, ela
estava se enfiando na tenda para ir busc-lo.
Para o caso de encontrarmos outro porco
disse-me ao sair.
No entanto, foi uma expedio sem incidentes.
Fora da pedreira, a paisagem era acidentada e
agradvel. Paramos na beira do riacho para beber
e nos lavarmos. Vi o reflexo de um minsculo
alevino na gua e o lobo quis imediatamente
pescar. Disse-lhe que pescaria depois de acabar
de apanhar a minha vassoura. De modo que ele
veio atrs de mim, embora com relutncia. Juntei
os gravetos para a vassoura e encontrei um galho
comprido e estreito para o cabo. Depois enchemos
de lenha o saco de Kettricken, que eu insisti em
carregar, para que as mos dela ficassem livres
para o arco. No caminho de volta ao
acampamento, paramos no riacho. Procurei um
lugar onde as plantas pendessem sobre a margem,
e no demoramos muito tempo para encontrar um.
Ento passamos muito mais tempo do que eu
pretendia apanhando peixes com as mos.
Kettricken nunca vira aquilo ser feito antes, mas
aps alguma impacincia pegou o jeito. Os peixes
eram de uma espcie de truta que eu nunca havia
visto, tingida de rosa ao longo da barriga.
Apanhamos dez, e eu os limpei ali mesmo, com
Olhos-de-Noite abocanhando as entranhas assim
que eu estripava os peixes. Kettricken os enfiou
em um galho de salgueiro e regressamos ao
acampamento.
S percebi como o calmo interldio me
acalmara quando chegamos vista do pilar negro
que guardava a entrada da pedreira. Parecia mais
sinistro do que nunca, como uma espcie de dedo
negro e severo erguido para me prevenir de que,
realmente, aquilo podia ser a bonana, mas a
tempestade estava a caminho. Estremeci
ligeiramente quando passei por ele. A minha
sensibilidade para o Talento parecia estar
crescendo de novo. O pilar irradiava poder
controlado de uma forma sedutora. Quase contra a
minha vontade, parei para estudar os caracteres
esculpidos nele.
Fitz? Voc vem? chamou Kettricken, e s
ento percebi o tempo que ficara olhando
boquiaberto o pilar. Apressei-me para alcan-los
e me juntei a eles no momento em que passavam
pela garota no drago.
Eu evitara deliberadamente aquele local desde
que o Bobo tocara nela. Agora ergui um olhar
culpado para onde a marca prateada do dedo ainda
brilhava contra a pele perfeita da garota.
Quem era voc, e por que fez uma escultura
to triste? perguntei-lhe. Mas os seus olhos de
pedra apenas me olharam, suplicantes, de cima das
faces manchadas de lgrimas.
Talvez no tivesse conseguido terminar o
drago especulou Kettricken. V como as
patas traseiras e a cauda dele ainda esto presas
na pedra? Talvez seja por isso que est to triste.
Mas ela deve t-la esculpido triste desde o
incio, no acha? Terminando ou no, a parte de
cima seria a mesma.
Kettricken me olhou, divertida.
Voc ainda no acredita que o drago de
Veracidade voar quando estiver terminado? Eu
acredito. Claro, j me resta pouco mais em que
acreditar. Muito pouco.
Ia lhe dizer que achava a ideia uma histria de
menestrel para crianas, mas as suas ltimas
palavras me calaram.
De volta ao drago, amarrei a vassoura e
comecei a varrer com todo o afinco. O sol ia alto
num brilhante cu azul, com uma brisa ligeira e
agradvel. O dia estava adorvel, e durante algum
tempo esqueci de todo o resto na minha tarefa
simples. Kettricken descarregou a lenha que trazia
e logo partiu para ir buscar mais. Olhos-de-Noite
a seguiu de perto, e eu notei com aprovao que
Esporana e o Bobo se apressaram a segui-la,
tambm transportando sacos. Com as lascas de
pedra e a poeira afastadas do drago, eu podia ver
mais do progresso que Veracidade e Panela
haviam feito. A pedra negra do dorso do drago
estava to brilhante que quase refletia o azul do
cu. Fiz essa observao a Veracidade, sem
realmente esperar uma resposta. A sua mente e
corao estavam inteiramente concentrados no
drago. Em todos os outros tpicos de conversa, a
sua mente parecia vaga e errante, mas quando me
falava do drago e da sua escultura era muito o
Rei Veracidade.
Alguns momentos mais tarde, ele se apoiou nos
calcanhares, afastando-se do p do drago junto ao
qual se encontrava agachado. Levantou-se e
percorreu experimentalmente o dorso do drago
com uma mo prateada. Prendi a respirao, pois
na esteira da mo surgiu de sbito cor. Um rico
tom de turquesa, com cada escama debruada de
prata, seguiu-se passagem do dedo de
Veracidade. A cor cintilou por um instante, ento
desapareceu. Veracidade soltou um ligeiro som de
satisfao.
Quando o drago ficar cheio, a cor
permanecer disse-me. Sem pensar, eu estendi
uma mo para o drago, mas Veracidade me
afastou abruptamente com um encontro. No
toque nele advertiu-me, quase com cime. Deve
ter visto o choque no meu rosto, pois fez uma
expresso pesarosa. J no seguro para voc
toc-lo, Fitz. Ele est muito Sua voz foi
sumindo, e os olhos partiram para longe em busca
de uma palavra. Ento aparentou esquecer tudo a
meu respeito, pois voltou a agachar-se para
trabalhar no p da criatura.
No h nada como ser tratado como uma criana
para ser levado a agir como uma. Terminei de
varrer, deixei vassoura de lado e me afastei. No
fiquei muito surpreso quando dei por mim fitando
de novo a garota no drago. Acabara pensando na
esttua como Garota-em-um-Drago, pois eles
no me pareciam entidades separadas. Uma vez
mais subi no estrado ao seu lado, uma vez mais
senti o turbilho da sua vida de Manha. Erguia-se
como nevoeiro e estendia-se para mim vido.
Tanta infelicidade aprisionada.
No h nada que eu possa fazer por voc
disse-lhe, tristemente, e quase senti que ela
respondia s minhas palavras. Era entristecedor
demais ficar perto dela por muito tempo. Porm,
enquanto descia, reparei em algo que me alarmou.
Em volta de uma das patas dianteiras do drago,
algum andara cinzelando a pedra que o atolava.
Abaixei-me para inspecionar o local mais de
perto. As lascas e a poeira haviam sido afastadas
do corte, mas as suas bordas eram novas e
aguadas. O Bobo, disse a mim mesmo, era de fato
desprovido de cautela. Endireitei-me com a
inteno de ir imediatamente procur-lo.
FitzCavalaria. Volte at mim imediatamente,
por favor.
Suspirei comigo mesmo. Provavelmente mais
lascas de pedra para varrer. Era para aquilo que
eu precisava me manter afastado de Moli,
enquanto ela se defendia sozinha. Enquanto
caminhava de volta ao drago, cedi a pensamentos
proibidos sobre ela. Perguntei-me se eles teriam
encontrado um lugar onde se abrigar, e se Bronco
estaria muito ferido. Eles haviam fugido com
pouco mais do que a roupa que traziam no corpo.
Como sobreviveriam? Ou teriam sido atacados de
novo pelos homens de Majestoso? Teriam
arrastado ela e a beb para Vaudefeira? Estaria
Bronco morto na poeira em algum lugar?
Acha mesmo que isso poderia acontecer sem
que voc soubesse? Alm disso, ela pareceu mais
do que capaz de cuidar de si mesma e da criana.
E de Bronco, alis. Pare de pensar neles. E pare
de ceder pena por voc mesmo. Tenho uma
tarefa para voc.
Regressei ao drago e peguei a vassoura. J
varria h alguns minutos quando Veracidade
pareceu reparar em mim.
Ah, Fitz, a est voc. Levantou-se,
espreguiou-se, arqueando as costas para afastar
delas a dor. Venha comigo.
Segui-o at a fogueira do acampamento onde ele
se ocupou por um momento em pr gua para
aquecer. Pegou um pedao da carne seca, olhou-o
e disse em um tom triste:
O que eu no daria por um pedao do po
fresco de Sara. Enfim. Virou-se para mim.
Sente-se, Fitz, quero falar com voc. Tenho
pensado muito em tudo o que me disse, e tenho
uma incumbncia para voc.
Sentei-me lentamente em uma pedra junto da
fogueira, sacudindo a cabea para mim mesmo.
Num momento, ele no fazia qualquer sentido; no
seguinte soava como o homem que fora meu
mentor durante tanto tempo. No me deu tempo
para refletir sobre os meus pensamentos.
Fitz, voc visitou o lugar dos drages, a
caminho daqui. Disse-me que tanto voc quanto o
lobo sentiram vida neles. Chamou de vida de
Manha. E que um, o drago de Realder, pareceu
quase acordar quando voc o chamou pelo nome.
Percebo a mesma sensao de vida vinda da
garota no drago, na pedreira concordei.
Veracidade sacudiu tristemente a cabea.
Pobrezinha, temo que nada possa ser feito
por ela. Persistiu em tentar manter a forma humana,
e por isso resistiu a encher o seu drago. E ali
est, e provavelmente ali permanecer para todo o
sempre. Eu levei a srio o seu aviso; pelo menos o
seu erro teve isso de bom. Quando encher o
drago, no omitirei nada. Seria um pobre fim
chegar to longe e sacrificar tanto para acabar s
com um drago atolado, no seria? Esse erro, pelo
menos, no cometerei. Arrancou com os dentes
um pedao da carne seca e a mastigou, pensativo.
Permaneci em silncio. Ele me deixara confuso
de novo. s vezes tudo o que eu podia fazer era
esperar at que os seus pensamentos o trouxessem
de volta a algum assunto em que fizesse sentido.
Reparei que ele tinha uma nova mancha de prata na
parte de cima da testa, como se tivesse limpado
distraidamente o suor. Engoliu.
Ainda h ervas para o ch? perguntou, e
ento acrescentou: Quero que voc volte aos
drages. Quero que veja se consegue usar a Manha
com o Talento para despert-los. Quando estive l,
por mais que tentasse no consegui detectar
qualquer vida em nenhum deles. Temi que
tivessem dormido durante tempo demais e que
tivessem morrido de fome, alimentando-se s dos
seus prprios sonhos at nada restar.
Esporana havia deixado um punhado de urtigas e
hortel murchas. Enfiei-as cuidadosamente em um
bule e despejei a gua quente sobre as ervas.
Enquanto a infuso tomava forma, ordenei os
pensamentos.
Quer que eu use a Manha e o Talento para
despertar as esttuas de drages. Como?
Veracidade encolheu os ombros.
No sei. Apesar de tudo o que Francelha me
disse, ainda h grandes lacunas no meu
conhecimento do Talento. Quando Galeno roubou
os livros de Solicitude e interrompeu por completo
o meu treino e o de Cavalaria, foi um grande golpe
que nos foi dado. Ainda continuo voltando quele
momento. Ele j estava ento conspirando para
conquistar o trono para o seu meio-irmo, ou
estava meramente sedento de poder? Nunca
saberemos.
Falei ento de algo a que nunca antes dera voz.
H uma coisa que no compreendo. Panela
diz que quando matou Cedoura com o Talento, o
senhor feriu a si mesmo. Mas o senhor drenou
Galeno e no pareceu sofrer nada com isso. E
Serena e Justino tambm no pareceram sofrer
consequncias por drenarem o rei.
Drenar o Talento de outra pessoa no o
mesmo que mat-la com uma exploso de Talento.
Soltou uma breve e amarga gargalhada.
Tendo feito ambas as coisas, conheo bem a
diferena. No fim, Galeno preferiu morrer a me
entregar todo o seu poder. Suspeito que o meu pai
fez a mesma escolha. Tambm suspeito que o fez
para esconder deles o local onde eu me
encontrava. Temos agora leves indcios dos
segredos que Galeno morreu para proteger.
Olhou para a carne que tinha na mo, deixou de
lado. Mas o que nos importa agora despertar
os Antigos. Voc olha nossa volta e v um belo
dia, Fitz. Eu vejo mares calmos e um vento limpo
para trazer os Navios Vermelhos s nossas costas.
Enquanto corto, raspo e trabalho, h gente dos Seis
Ducados morrendo ou sendo forjada. Sem falar nas
tropas de Majestoso que assolam e incendeiam as
aldeias da Montanha ao longo da fronteira. O pai
da minha rainha cavalga para a batalha para
proteger o seu povo dos exrcitos do meu irmo.
Como isso me amargura! Se voc conseguisse
fazer os drages se erguerem em sua defesa, eles
poderiam levantar voo agora.
Sinto-me relutante em me entregar a uma
tarefa quando no sei exatamente o que ela exige
comecei, mas Veracidade me fez parar com um
sorriso.
Parece-me que ainda ontem era precisamente
isso que voc suplicava para fazer, FitzCavalaria.
Ele havia me apanhado.
Olhos-de-Noite e eu partiremos amanh de
manh disse.
Ele franziu o cenho.
No vejo motivo para atrasos. Para voc, a
viagem no longa, apenas um passo atravs do
pilar. Mas o lobo no pode passar pela pedra.
Ter de ficar aqui. E eu gostaria que voc fosse
agora.
Ele me dizia com toda aquela calma para ir sem
o meu lobo. Era mais fcil eu ir nu.
Agora? Quer dizer, imediatamente?
E por que no? Voc pode chegar l em
questo de minutos. Veja o que pode fazer. Se
tiver sucesso, eu saberei. Se no, volte para ns
esta noite, atravs do pilar. No teremos perdido
nada por tentar.
Acha que o crculo no mais um perigo?
No so mais perigosos para voc l do que
aqui. E agora v.
No devia esperar pelo regresso dos outros
para lhes dizer para onde fui?
Eu mesmo lhes direi, FitzCavalaria. Far isso
por mim?
S podia haver uma resposta a tal pergunta.
Farei. Irei agora. Hesitei uma ltima vez.
No tenho certeza de como usar o pilar.
No mais complicado do que uma porta,
Fitz. Ponha a mo nele, e ele recorre ao Talento
que voc possui. Veja este smbolo. Fez um
esboo com o dedo na poeira. Este representa o
lugar dos drages. Simplesmente coloque a mo
nele e atravesse. Este outro esboo na poeira
o smbolo da pedreira. Ir traz-lo de volta.
Ergueu os olhos escuros para me olhar com
firmeza. Haveria um teste naqueles olhos?
Volto esta noite prometi-lhe.
timo. Que a sorte o acompanhe.
E foi tudo. Levantei-me e deixei a fogueira para
trs, caminhando na direo do pilar. Passei pela
Garota-em-um-Drago e tentei no ser distrado
por ela. Em algum lugar, na floresta, os outros
estavam recolhendo lenha enquanto Olhos-de-
Noite patrulhava em volta.
Vai mesmo sem mim?
No demorarei, irmo.
Quer que eu volte e espere por voc junto do
pilar?
No, vigie a rainha por mim, por favor.
Com prazer. Ela hoje abateu uma ave para
mim.
Senti a sua admirao e sinceridade. O que h
de melhor do que uma loba que mata com
eficincia?
Uma loba que partilha bem.
Veja se guarda algumas aves para mim
tambm.
Voc pode ficar com os peixes, garantiu-me ele,
magnnimo.
Ergui os olhos para o pilar negro que agora se
erguia na minha frente. L estava o smbolo. To
simples como uma porta, dissera Veracidade.
Tocar o smbolo e atravessar. Talvez. Mas eu
sentia um frio na barriga e foi com grande
dificuldade que ergui a mo e a encostei na
brilhante pedra negra. A palma encontrou-se com o
smbolo e senti um puxo frio de Talento. Deslizei
atravs do pilar.
Passei da brilhante luz do sol para uma sombra
fresca e salpicada. Afastei-me do grande pilar
negro e penetrei em um terreno coberto de capim
alto. O ar estava pesado de umidade e de cheiros
de plantas. Ramos que haviam estado enfeitados
com botes de folhas da ltima vez que eu estivera
ali encontravam-se agora cobertos de uma
folhagem viosa. Um coro de insetos e rs me deu
as boas-vindas. A floresta minha volta formigava
de vida. Depois do silncio vazio da pedreira, era
quase avassalador. Fiquei algum tempo parado,
apenas me ajustando quilo.
Cautelosamente, abaixei as minhas muralhas de
Talento e sondei com prudncia ao redor. Fora o
pilar atrs de mim, no consegui detectar nenhum
Talento em uso. Relaxei um pouco. Era possvel
que a destruio de Cedoura por Veracidade
tivesse tido mais efeitos do que ele pensava.
Talvez agora temessem desafi-lo diretamente.
Reconfortei-me com essa ideia quando me afastei
atravs da vegetao viosa.
Logo fiquei ensopado at o joelho. No que
houvesse gua no cho, mas o crescimento
desenfreado de capins e juncos que eu atravessava
estavam carregados de umidade. Acima da minha
cabea, trepadeiras e folhas penduradas pingavam.
No me importei. Aquilo parecia refrescante aps
a rocha nua e a poeira da pedreira. O que fora um
caminho rudimentar da ltima vez que estivramos
ali era agora um estreito corredor atravs da vida
vegetal que o invadia. Cheguei a um riacho estreito
e gorgolejante, e colhi do seu leito um punhado de
agrio apimentado para ir mordiscando enquanto
caminhava. Prometi a mim mesmo levar um pouco
de volta ao acampamento ao cair da noite, e ento
me lembrei da minha misso. Drages. Onde
estavam os drages?
No haviam se movido, embora as plantas
estivessem maiores sua volta do que estavam
antes. Vislumbrei um cepo atingido por um raio de
que me lembrava e, usando-o como referncia,
descobri o drago de Realder. J decidira que
seria aquele o mais promissor para comear, pois
eu tinha certeza de ter sentido nele uma forte vida
de Manha. Como se pudesse fazer alguma
diferena, gastei alguns minutos para limp-lo de
trepadeiras e ervas midas e aderentes. Enquanto
o fazia, reparei em uma coisa. O modo como a
criatura adormecida estava estendida na terra
seguia o contorno do terreno que havia por baixo.
No parecia uma esttua esculpida e colocada ali.
Parecia uma criatura viva que se deitara para
descansar e no voltara a se mexer.
Tentei me forar a acreditar. Aqueles eram os
mesmos Antigos que haviam respondido ao
chamado do Rei Sabedoria. Haviam voado como
grandes aves at a costa e ali derrotaram os
salteadores e os afastaram das nossas costas.
Caram dos cus sobre os navios, enlouquecendo
as tripulaes de terror ou fazendo virar os navios
com o grande vento vindo das suas asas. E fariam
de novo, se ao menos consegussemos acord-los.
Tentarei disse em voz alta, e ento repeti:
Irei acord-los e procurei no ter qualquer
dvida na voz. Caminhei lentamente em volta do
drago de Realder, tentando decidir como
comear. Da cabea reptiliana em forma de cunha
at a cauda farpada, aquele era um drago de
pedra digno de todas as lendas. Estendi uma mo
admiradora para pass-la sobre as escamas
cintilantes. Consegui sentir a Manha rodopiando
lentamente no seu interior como fumaa. Obriguei-
me a acreditar na vida que ele continha. Seria
algum artista capaz de conceber uma representao
to perfeita? Havia salincias de osso nas
extremidades das suas asas, semelhantes s de um
ganso. No duvidava de que ele poderia abater um
homem atingindo-o com elas. As farpas que tinha
na cauda ainda estavam afiadas e perigosas.
Consegui imagin-lo chicoteando o cordame ou os
remadores, rasgando, cortando, repuxando.
Realder gritei-lhe. Realder!
No senti resposta. Nenhuma agitao de
Talento, nem sequer muita diferena na Manha.
Bem, disse a mim mesmo que no esperara que
fosse assim to fcil. Ao longo das horas
seguintes, tentei todas as maneiras que consegui
imaginar para acordar aquele animal. Encostei o
rosto na sua bochecha escamosa, e sondei aquela
pedra o mais profundamente que consegui. Obtive
menos resposta dela do que uma minhoca me
daria. Estendi o corpo ao lado daquele frio lagarto
de pedra e me forcei a obter uma unidade com ele.
Procurei me vincular quela preguiosa agitao
de Manha que havia l dentro. Irradiei-o de
afeio. Dei-lhe vigorosas ordens. Que Eda me
ajude, at tentei amea-lo com terrveis
consequncias se no se erguesse para obedecer s
minhas ordens. De nada adiantou. Comecei a me
agarrar a qualquer coisa. Lembrei-o do Bobo.
Nada. Tentei me lembrar do sonho de Talento que
o Bobo e eu partilhramos. Trouxe mente todos
os detalhes da mulher com a coroa de galos que
consegui recordar. Ofereci-a ao drago. No
houve resposta. Tentei coisas bsicas. Veracidade
dissera que eles talvez tivessem passado fome.
Visualizei lagoas de gua doce e fresca, com
gordos peixes prateados prontos para serem
devorados. Visualizei atravs do Talento o drago
de Realder sendo devorado por outro maior e lhe
sugeri essa imagem. Nenhuma resposta.
Arrisquei-me a tentar contactar o meu rei. Se h
vida nestas pedras, pequena demais e est
muito funda para que eu a alcance.
Perturbou-me um pouco que Veracidade nem
tenha se incomodado em responder. Mas era
possvel que ele tambm tivesse visto aquilo como
uma medida desesperada, com poucas chances de
sucesso. Abandonei o drago de Realder e
perambulei durante algum tempo, de animal de
pedra em animal de pedra. Sondei entre eles, em
busca de algum que pudesse ter em si um
tremeluzir mais forte de vida de Manha. Uma vez,
pensei ter descoberto um, mas uma inspeo mais
atenta me revelou que um rato do campo fizera a
toca debaixo do peito do drago.
Escolhi um drago com galhada de cervo e
voltei a tentar todas as tticas que experimentara
no drago de Realder, com o mesmo resultado. A
essa altura, a luz do dia j minguava. Enquanto
escolhia o meu caminho por entre as rvores de
volta ao pilar, perguntei-me se Veracidade teria
realmente esperado algum tipo de sucesso.
Persistentemente, fui de drago em drago a
caminho do pilar, dedicando a todos eles um
ltimo esforo. Foi provavelmente o que me
salvou. Endireitei-me junto a um deles, achando
que sentia uma forte vida de Manha proveniente do
prximo. Porm, quando cheguei ali, ao pesado
javali alado com as suas presas curvas e afiadas,
percebi que a Manha vinha de trs dele. Ergui os
olhos e espiei por entre as rvores, esperando
descobrir um veado ou um porco selvagem.
Contudo, o que vi foi um homem com uma espada
desembainhada e com as costas voltadas para
mim.
Dobrei-me sobre mim mesmo atrs do javali.
Fiquei de repente com a boca seca e com o
corao aos saltos. No era nem Veracidade, nem
o Bobo. Pelo menos isso percebi no instante em
que o vi. Era algum mais baixo do que eu, com
um cabelo cor de areia, e que segurava uma
espada como se soubesse como brandi-la. Um
homem vestido de dourado e marrom. No era o
corpulento Emaranhado, nem o magro e escuro
Vontade. Era outra pessoa, mas pertencia a
Majestoso.
Num momento, tudo ficou claro para mim. Como
eu podia ter sido to estpido? Destrura os
homens de Vontade e de Emaranhado, os cavalos e
as provises. O que podiam fazer, a no ser
contactar Majestoso pelo Talento, dizendo-lhe que
precisavam de mais? Com as constantes
escaramuas ao longo das fronteiras da Montanha
no seria difcil que outro grupo de assalto
penetrasse sem ser visto, contornasse Jhaampe e
viajasse pela estrada do Talento. A rea de
deslizamento que atravessramos era uma barreira
terrvel, mas no intransponvel. Arriscar as vidas
dos seus homens era algo em que Majestoso era
versado. Perguntei-me quantos teriam tentado a
travessia e quantos teriam sobrevivido. Agora eu
tinha certeza de que Vontade e Emaranhado
estavam de novo confortavelmente
aprovisionados.
Ento me ocorreu um pensamento mais
arrepiante. Ele podia ser Talentoso. Nada havia
que impedisse Vontade de treinar outros. Ele tinha
todos os livros e pergaminhos de Solicitude nos
quais se basear e, embora o potencial para o
Talento no fosse comum, no era excessivamente
raro. Logo a minha imaginao multiplicara o
homem at o transformar em um exrcito, todos
pelo menos marginalmente Talentosos, todos
fanaticamente leais a Majestoso. Encostei-me no
javali de pedra, tentando respirar lentamente
apesar do medo que corria por mim. Por um
momento, fui dominado pelo desespero.
Compreendera finalmente a imensido dos
recursos que Majestoso usaria contra ns. Aquilo
no era nenhuma vingana privada entre ns; era
um rei, com os exrcitos e poderes de um rei,
determinado em exterminar aqueles que marcara
como traidores. A nica coisa que atara antes as
mos de Majestoso era o possvel embarao caso
se descobrisse que Veracidade no morrera.
Agora, naquela rea remota, nada tinha a temer.
Podia usar os seus soldados para se ver livre do
irmo e do sobrinho, da cunhada, de todas as
testemunhas. Ento o crculo poderia se livrar dos
soldados.
Estes pensamentos passaram pela minha mente
como um relmpago ilumina a mais negra das
noites. Com um claro, vi de sbito todos os
detalhes. No momento seguinte, soube que tinha de
chegar ao pilar e regressar pedreira para
prevenir Veracidade. Se j no fosse tarde demais.
Senti-me acalmar assim que tive um objetivo em
mente. Pensei em contactar Veracidade pelo
Talento, e logo rejeitei a ideia. At conhecer
melhor o meu inimigo, no me arriscaria me expor
diante dele. Dei por mim vendo a situao como se
fosse o jogo de Panela. Pedras para capturar ou
destruir. O homem encontrava-se entre mim e o
pilar. Isso era de se esperar. O que eu tinha de
descobrir agora era se tambm haveria outros.
Puxei a faca de cinto; uma espada no era arma
para se usar no meio de vegetao densa. Respirei
fundo, acalmando-me, e me esgueirei para longe
do javali.
Eu tinha uma familiaridade rudimentar com a
rea. Isso me serviu bem quando fui me movendo
de drago para tronco de rvore, de tronco de
rvore para cepo antigo. Antes de a noite cair por
completo, eu sabia que havia trs homens e que
pareciam estar guardando o pilar. No pensei que
tivessem vindo at ali para me caar, mas para
evitar que algum, alm do crculo de Majestoso,
usasse o pilar. Descobrira os rastros da sua
passagem, vindos da estrada do Talento; eram
frescos, os homens haviam acabado de chegar.
Nesse caso, podia ter confiana de que eu
conhecia a disposio do terreno melhor do que
eles. Decidi que assumiria que no seriam
Talentosos, uma vez que haviam vindo pela trilha
e no pelo pilar. Mas era provvel que fossem
soldados muito capazes. Tambm decidi acreditar
que Vontade e Emaranhado poderiam estar muito
perto. Que seriam capazes de atravessar o pilar de
um momento para o outro. Por esse motivo,
mantive as muralhas de Talento bem erguidas e
firmes. E esperei. Quando no regressasse,
Veracidade saberia que havia algo de errado. No
creio que ele fosse suficientemente descuidado
para atravessar o pilar minha procura. Na
verdade, no creio que ele quisesse abandonar o
drago durante todo esse tempo. Aquela enrascada
era minha, e era eu quem tinha de sair dela.
Quando a escurido caiu, os insetos saram dos
seus esconderijos. Insetos que picavam, mordiam,
formigavam s centenas, e havia sempre um que
insistia em zumbir junto ao meu ouvido. Nvoas da
terra comearam a se erguer, umedecendo a minha
roupa e a colando ao meu corpo. Os guardas
haviam acendido uma pequena fogueira. Senti o
cheiro de bolos caseiros cozinhando e me vi com
curiosidade para saber se conseguiria mat-los
antes de terem comido todos. Sorri duramente para
mim mesmo e me esgueirei para mais perto.
noite, uma fogueira e comida queriam geralmente
dizer conversa. Aqueles homens conversavam
pouco, e a maioria das conversas era em voz
baixa. No gostavam daquela incumbncia. A
longa estrada negra enlouquecera alguns homens.
Porm, naquela noite, o que os incomodava no
era o longo caminho que haviam percorrido, mas
sim os prprios drages de pedra. Quase ouvi o
suficiente para confirmar o que adivinhara. Havia
trs homens de guarda naquele pilar. Havia uma
dzia inteira guardando o da praa onde o Bobo
tivera a sua viso. O corpo principal de soldados
fora enviado para a pedreira. O crculo procurava
cortar as rotas de fuga de Veracidade.
Senti um pouco de alvio por eles levarem o
mesmo tempo a chegar l que o nosso grupo
levara. Por aquela noite, pelo menos, Veracidade e
os outros no corriam risco de ser atacados. Mas
era s questo de tempo. A minha determinao de
regressar atravs do pilar o mais depressa
possvel solidificou-se. No tinha qualquer
inteno de lutar contra eles. Restava, portanto,
mat-los por emboscadas, um a um, um feito que
duvidava que at Breu conseguisse realizar. Ou
ento criar uma distrao grande o bastante para
afast-los do pilar durante tempo suficiente para
que eu corresse para l.
Esgueirei-me para bem longe dos homens, at
onde achei estar fora de alcance dos seus ouvidos,
e comecei a recolher lenha seca. No foi tarefa
fcil em um local to vioso e verdejante, mas por
fim consegui uma braada digna de respeito. O
meu plano era simples. Disse a mim mesmo que ou
funcionaria, ou no. Duvidei de que teria uma
segunda oportunidade; eles ficariam cautelosos
demais para tal.
Lembrei-me do lugar onde o smbolo da
pedreira se encontrava no pilar e abri caminho em
volta at aos drages que se encontravam do lado
oposto. Entre os drages, escolhi o sujeito de
aspecto feroz com tufos nas orelhas em que eu
reparara na primeira visita ali. Ele lanaria uma
bela sombra. Limpei de ervas e folhas midas um
espao atrs dele e montei ali a minha fogueira. S
tinha combustvel para uma fogueira pequena, mas
no esperava precisar de mais. Queria luz e
fumaa em quantidade suficiente para ser
misterioso sem ser esclarecedor. Avivei bem o
fogo, ento me afastei, penetrando nas trevas. De
barriga no capim, abri caminho at o mais perto
que me atrevia do pilar. Agora s teria de esperar
que os guardas reparassem na minha fogueira.
Esperei que pelo menos um homem fosse
investig-la e que os outros dois ficassem
observando o local para onde ele fora. Ento, uma
corrida sem rudo, uma pancada no pilar e eu
desapareceria.
S que os guardas no repararam na minha
fogueira. Do ponto onde eu me encontrava, ela
parecia bastante bvia. Havia fumaa erguendo-se
no ar e um claro rosado por entre as rvores, que
delineava parcialmente a silhueta do drago. Eu
esperara que esta lhes atiasse o interesse. Em vez
disso, estava escondendo a fogueira bem demais.
Decidi que algumas pedras bem apontadas
atrairiam a ateno deles para a minha fogueira.
Esgravatei com as mos, mas encontrei apenas
vegetao viosa crescendo em barro grosso.
Aps uma espera interminvel, percebi que a
fogueira estava apagando e os guardas no a
tinham visto. Esgueirei-me mais uma vez at fora
de alcance dos seus ouvidos. Mais uma vez
apanhei gravetos secos na escurido. Ento tanto o
meu nariz como os meus olhos me guiaram de
volta fogueira, reduzida a brasas.
Irmo, est fora h muito tempo. Est tudo
bem? Havia ansiedade no tnue pensamento de
Olhos-de-Noite.
Estou sendo caado. Fique quieto. Eu voltarei
assim que puder. Afastei suavemente o lobo dos
meus pensamentos e me esgueirei atravs da
escurido na direo da minha fogueira quase
apagada.
Dei-lhe novo combustvel e esperei que pegasse.
Estava me afastando dela quando ouvi as vozes
deles erguidas em especulao. No creio que
tenha sido descuidado. No passou de um golpe de
m sorte que, quando me deslocava da cobertura
de um drago para a de uma rvore, um guarda
tenha erguido bem alto o seu archote, pondo a
minha sombra em grande contraste.
Ali! Um homem! gritou um deles, e dois
correram na minha direo. Afastei-me
serpenteando atravs da mida vegetao rasteira.
Ouvi um deles tropear e cair praguejando em
um aglomerado de trepadeiras, mas o segundo era
um tipo rpido e gil. Num instante estava nos
meus calcanhares, e juro que senti o vento do
primeiro golpe da sua espada. Afastei-me dela
com um salto, e dei por mim meio saltando, meio
caindo por cima do javali de pedra. Bati
dolorosamente com um joelho no seu dorso
rochoso e ca na terra do outro lado. No mesmo
instante, tentei me levantar depressa. O meu
perseguidor deu um salto em frente, desferindo um
poderoso golpe com a espada que certamente teria
me fendido em dois, se ele no tivesse ficado
preso por uma perna em uma presa curva e afiada
como uma navalha. Tropeou e estatelou-se,
empalando-se na segunda presa, onde esta se
projetava como uma cimitarra da goela vermelha
do javali. O som que o homem fez no foi forte.
Vi-o comear a lutar para se erguer, mas a curva
da presa estava enganchada dentro dele. Levantei-
me de um salto, atento ao segundo homem que
estivera me perseguindo, e fugi para a escurido.
Atrs de mim soou um longo grito de dor.
Mantive perspiccia suficiente para descrever
um crculo. J quase chegara ao pilar quando senti
uma toro perscrutadora de Talento. Lembrei-me
da ltima vez que sentira uma coisa assim. O
prprio Veracidade estaria sendo atacado na
pedreira? Um homem ainda defendia o pilar, mas
decidi me arriscar sua espada para regressar
para junto do meu rei. Emergi de entre as rvores,
correndo para o pilar enquanto o guarda olhava na
direo da minha fogueira e dos gritos do homem
cado. Outra gavinha de Talento roou por mim.
No gritei , no se arrisque! quando
meu rei surgiu vindo do pilar, de espada amassada
e cinzenta na cintilante mo de prata. Emergiu por
trs do guarda que havia permanecido no seu
posto. O meu grito insensato o fizera se virar para
o pilar e ele caiu sobre o meu rei, de espada
erguida, muito embora o rosto trasse o seu terror.
Veracidade, luz da fogueira deles, parecia um
demnio sado de uma histria. O seu rosto estava
manchado de prata devido a toques descuidados
com as mos, enquanto as mos e os braos
cintilavam como se fossem feitos de prata polida.
O rosto descarnado e as roupas esfarrapadas, o
completo negrume dos seus olhos teriam
aterrorizado qualquer homem. Tenho de conceder
ao guarda de Majestoso o seguinte: ele defendeu o
seu posto, aparou a primeira estocada do rei e
ripostou. Ou pelo menos pensou que o fazia. Era
um velho truque de Veracidade. Na realidade, a
sua espada envolveu a outra. O seu golpe devia ter
separado a mo do brao, mas a lmina cega parou
no osso. De qualquer forma, o homem largou a
espada. Quando caiu de joelhos, agarrado ao
ferimento que pingava, a espada de Veracidade o
golpeou de novo, agora na garganta. Senti um
segundo tremor de Talento. O nico guarda que
restava surgiu correndo na nossa direo, vindo
das rvores. Os seus olhos fixaram-se em
Veracidade e ele gritou de terror. Parou onde
estava. Veracidade deu um passo na direo dele.
Meu rei, basta! Partamos! gritei. No
queria que ele se arriscasse de novo por mim.
Porm, em vez de me dar ouvidos, Veracidade
olhou para a sua espada. Franziu o cenho. De
repente, agarrou a lmina com a mo esquerda,
logo abaixo do cabo, e a passou pela mo
brilhante. Prendi a respirao com o que vi. A
espada que brandia estava agora brilhando e
terminava em uma ponta perfeita. Mesmo luz do
archote, consegui ver as ondulaes oscilantes do
metal muitas vezes dobrado da lmina. O rei olhou
para mim.
Eu devia saber que podia fazer isso.
Quase sorriu. Ento Veracidade a ergueu diante
dos olhos do outro homem. Quando estiver
pronto disse calmamente.
O que aconteceu a seguir me deixou aturdido.
O soldado caiu de joelhos, atirando a espada
para a relva sua frente.
Meu rei. Eu o conheo, mesmo que o senhor
no me conhea. O sotaque de Cervo soava
claro nas suas palavras precipitadas. Meu
senhor, foi-nos dito que estava morto. Morto
porque a sua rainha e o Bastardo haviam
conspirado contra o senhor. Foram esses que nos
foi dito que talvez encontrssemos aqui. Em parte
foi por essa vingana que eu vim. Servi-o bem em
Cervo, meu senhor e, se est vivo, ainda sirvo o
meu rei.
Veracidade o olhou tremeluzente luz do
archote.
Voc Rmulo, no ? O filho de Salteador?
Os olhos do soldado se arregalaram por
Veracidade se lembrar dele.
Rtulo, senhor. Ao servio do meu rei como
o meu pai antes de mim. A sua voz tremeu um
pouco. Os seus olhos escuros no abandonaram a
ponta da espada que Veracidade apontara para ele.
Veracidade abaixou a arma.
Fala a verdade, rapaz? Ou procura apenas
salvar a pele?
O jovem soldado ergueu os olhos para
Veracidade e atreveu-se a sorrir.
No preciso ter medo. O prncipe que eu
servi no abateria um homem ajoelhado e
desarmado. Atrevo-me a dizer que o rei tambm
no o far.
Talvez nenhuma palavra alm daquelas teriam
convencido Veracidade. Apesar da cautela, sorriu.
Ento v, Rtulo. V o mais depressa que
puder e o mais silencioso possvel, pois aqueles
que o usaram o mataro se souberem que fiel a
mim. Regresse a Cervo. E, ao longo do caminho, e
quando l chegar, diga a todos que eu vou
regressar. Que trarei a minha boa e leal rainha
comigo, para ocupar o trono, e que o meu herdeiro
o reivindicar depois de mim. E quando chegar ao
Castelo de Torre do Cervo, apresente-se esposa
do meu irmo. Diga Dama Pacincia que eu o
recomendo para o seu servio.
Sim, meu rei. Rei Veracidade?
O que ?
H mais tropas a caminho. Ns no passamos
da vanguarda Fez uma pausa. Engoliu em
seco. No acuso ningum de traio, muito
menos o seu prprio irmo. Mas
No se preocupe com isso, Rtulo. O que lhe
pedi para fazer importante para mim. V
depressa e no desafie ningum ao longo do
caminho. Mas leve estas notcias como lhe pedi.
Sim, meu rei.
Agora sugeriu Veracidade.
E Rtulo ergueu-se, pegou a espada e a
embainhou, e penetrou a passos largos na
escurido.
Veracidade virou-se e os seus olhos brilharam
de triunfo.
Podemos faz-lo! disse-me em voz baixa.
Indicou-me o pilar com um gesto feroz. Estendi a
palma da mo para o smbolo e o atravessei aos
tropees quando o Talento me agarrou.
Veracidade veio logo atrs.
CAPTULO 37

Alimentando o Drago

Por volta do meio do vero daquele ltimo ano, a


situao dos Seis Ducados havia se tornado
desesperadora. O Castelo de Torre do Cervo,
durante tanto tempo evitado pelos Salteadores,
foi subitamente cercado por eles. Haviam se
apossado da Ilha da Armao e das suas torres
de vigia desde o meio do inverno. Forja, a
primeira aldeia a ser vitimada pelo flagelo que
tomou o seu nome, transformara-se h muito em
uma aguada para os Navios Vermelhos. Havia h
algum tempo rumores sobre veleiros das Ilhas
Externas ancorados ao largo da Ilha do Linho,
incluindo vrios avistamentos do fugidio Navio
Branco. Durante a maior parte da primavera,
nenhum navio conseguiu entrar ou sair do Porto
de Cervo. Esse estrangulamento do comrcio foi
sentido no s em Cervo, mas em todas as
aldeias mercantis nos rios Cervo, Urso e Vim. Os
Navios Vermelhos haviam se transformado em
uma sbita realidade para os mercadores e
nobres de Lavra e Vara.
Porm, no auge do vero, os Navios Vermelhos
chegaram Cidade de Torre do Cervo. Os
Navios Vermelhos chegaram na calada da noite,
aps vrias semanas de uma calma enganadora.
O combate foi a selvagem defesa de um povo
encurralado, mas esse povo tambm estava
faminto e empobrecido. Quase todas as
estruturas de madeira da cidade arderam at
nada restar. Estima-se que s um quarto dos
residentes da cidade tenha conseguido fugir
pelas ngremes colinas acima at o Castelo de
Torre do Cervo. Apesar de Dom Brilhante ter
procurado fortificar de novo e abastecer o
castelo, as semanas de estrangulamento tiveram
as suas consequncias. Os profundos poos do
Castelo de Torre do Cervo asseguravam-lhe um
bom abastecimento de gua doce, mas todas as
outras coisas escasseavam.
Catapultas e outras mquinas de guerra
estavam havia dcadas instaladas para defender
a foz do Rio Cervo, mas Dom Brilhante as moveu
para defender o prprio Castelo de Torre do
Cervo. Sem oposio, os Navios Vermelhos
abriram caminho pelo Rio Cervo acima, levando
a sua guerra e forjamentos bem para o interior
dos Seis Ducados como um veneno que se
espalhasse ao longo de uma veia at o corao.
Quando os Navios Vermelhos ameaavam a
prpria Vaudefeira, os senhores de Vara e Lavra
descobriram que grande parte dos exrcitos dos
Seis Ducados havia sido enviada muito para o
interior, para Lago Azul e alm, at as fronteiras
do Reino da Montanha. Os nobres desses
ducados descobriram de sbito que os seus
prprios guardas eram tudo o que se interpunha
entre eles e a morte e runa.

Emergi do pilar para o interior de um crculo de


pessoas frenticas. A primeira coisa a acontecer
foi um lobo que me atingiu com toda fora no
peito, empurrando-me para trs, de modo que
quando Veracidade emergiu quase caiu em cima de
mim.
Eu a fiz me compreender, fiz com que soubesse
que voc estava em perigo e ela o fez ir sua
procura. Eu a fiz me compreender, eu fiz me
compreender! Olhos-de-Noite estava em um
frenesi de filhote. Enfiou o focinho no meu rosto,
mordiscou o meu nariz e depois atirou-se no cho
ao meu lado e meio no meu colo.
Ele agitou um drago! No chegou
propriamente a despert-lo, mas eu senti um se
agitando! Talvez ainda acordemos todos! Este
era Veracidade, rindo e gritando aos outros essas
boas-novas enquanto passava calmamente por
cima de ns. Fez floreados com a sua espada
brilhante por cima da cabea, como que para
desafiar a lua. Eu no fazia a mnima ideia do que
ele estava falando. Fiquei sentado na terra,
olhando-os minha volta. O Bobo parecia
macilento e fatigado; Kettricken, sempre um
espelho do seu rei, sorria diante da sua exultao.
Esporana olhava a todos com olhos cobiosos de
menestrel, memorizando cada detalhe. E Panela,
de mos e braos prateados at o cotovelo,
ajoelhava-se cuidadosamente ao meu lado para
perguntar:
Est bem, FitzCavalaria?
Olhei para as suas mos e braos revestidos de
magia.
O que voc fez? perguntei.
Apenas o que era necessrio. Veracidade me
levou at o rio, na cidade. Agora o nosso trabalho
avanar mais depressa. O que aconteceu a voc?
No lhe respondi. Em vez disso, trespassei
Veracidade com o olhar.
Voc me mandou embora para que eu no
seguisse vocs! Sabia que eu no conseguiria
despertar os drages, mas me queria fora do seu
caminho! No consegui esconder a indignao e
traio que sentia.
Veracidade me ofereceu um dos seus antigos
sorrisos, negando todos os remorsos.
Ns nos conhecemos muito bem, no
mesmo? foi tudo o que disse em jeito de
desculpa. Ento o sorriso alargou-se. Sim, eu
lhe enviei em uma misso impossvel. Mas o tolo
fui eu, porque voc conseguiu. Voc despertou um,
ou pelo menos o agitou.
Sacudi a cabea na sua direo.
Agitou-o, sim. Deve t-la sentido, aquela
ondulao de Talento, mesmo antes de eu chegar
aonde voc estava. O que voc fez, como o agitou?
Um homem morreu nas presas do javali de
pedra eu disse sem expresso. Talvez seja
assim que se desperta esses drages. Com a morte.
No posso explicar a mgoa que sentia. Ele
pegara o que devia ter sido meu e dera a Panela.
Era a mim, e a mais ningum, que ele devia essa
proximidade de Talento. Que outra pessoa viera
at to longe, abrira mo de tantas coisas por ele?
Como podia me negar a escultura do drago?
Era fome de Talento, pura e simples, mas eu no
o sabia na ocasio. Naquele momento, tudo o que
conseguia sentir era como ele estava perfeitamente
ligado a Panela, e quo firmemente me afastava de
me juntar a essa ligao. Murava-me do lado de
fora com tanta firmeza como se eu fosse
Majestoso. Eu abandonara a minha esposa e a
minha filha e atravessara todos os Seis Ducados
para servi-lo, e agora ele me rejeitava. Devia ter
me levado at o rio, devia ter estado ao meu lado
enquanto eu passava por essa experincia. Nunca
achei que eu fosse capaz de tanto cime. Olhos-de-
Noite voltou de saltitar em volta de Kettricken
para enfiar a cabea debaixo do meu brao.
Esfreguei a sua garganta e o abracei. Ele, pelo
menos, era meu.
Ela me compreendeu, repetiu, jubiloso. Eu a fiz
me compreender, e ela disse a ele que ele tinha
de ir.
Kettricken, aproximando-se para parar ao meu
lado, disse:
Tive a mais forte das sensaes de que voc
precisava de ajuda. Foi preciso pedir muito, mas
por fim Veracidade largou o drago e foi sua
procura. Est muito ferido?
Levantei-me lentamente, espanando a poeira de
mim.
S no meu orgulho, por meu rei me tratar
como uma criana. Ele devia ter me informado de
que preferia a companhia de Panela.
Um claro de alguma coisa nos olhos de
Kettricken fez com que eu me lembrasse com quem
estava falando. Mas ela escondeu bem a sua mgoa
gmea da minha, dizendo apenas:
Voc disse que um homem foi morto?
No por mim. Caiu em cima das presas do
javali de pedra, na escurido, e se esvicerou. Mas
eu no vi nenhum movimento de drages.
No a morte, mas a vida derramada disse
Panela a Veracidade. Pode ser isso. Como o
cheiro de carne fresca desperta um co quase
morto de fome. Eles tm fome, meu rei, mas no
impossvel despert-los. No impossvel se
encontrar um modo de aliment-los.
No gosto do modo como isso soa!
exclamei.
No cabe a ns gostar ou no disse
pesadamente Veracidade. a natureza dos
drages. Eles tm de ser cheios, e o que os enche
a vida. Deve ser dada voluntariamente para se
criar um. Mas os drages tomaro o que lhes fizer
falta para se sustentarem, depois de se erguerem
em voo. O que voc supunha que o Rei Sabedoria
lhes ofereceu em troca por derrotarem os Navios
Vermelhos?
Panela apontou um dedo ao Bobo, em censura.
Preste ateno a isto, Bobo, e compreenda
agora por que est to cansado. Quando a tocou
com o Talento, voc se ligou a ela. Ela agora o
atrai para si, e voc pensa que vai por piedade.
Mas ela tirar de voc tudo de que precisar para
se erguer. Mesmo se for toda a sua vida.
Ningum est fazendo qualquer sentido
declarei. Ento, quando o meu senso disperso
regressou, exclamei: Majestoso enviou
soldados. Esto em marcha para c. No esto a
mais de alguns dias de distncia, quanto muito.
Suspeito que se apressam e viajam depressa. Os
homens de guarda nos pilares esto posicionados
l para evitar a fuga de Veracidade.
Foi s muito mais tarde naquela noite que
consegui pr tudo em ordem. Panela e Veracidade
tinham realmente ido at o rio, quase assim que eu
partira. Haviam usado o pilar para descer at a
cidade, e l haviam lavado os braos de Panela na
substncia e renovado o poder nos de Veracidade.
Cada vislumbre daquela prata nos braos deles
despertava em mim uma fome de Talento que era
quase uma avidez. Era uma coisa que eu
mascarava de mim mesmo e tentava esconder de
Veracidade. No creio que ele se deixasse
enganar, mas no me forou a confrontar a
verdade. Eu mascarava o cime com outras
desculpas. Disse aos dois, acaloradamente, que
tinha sido s pela mais pura das sortes que eles
no haviam encontrado o crculo l. Veracidade
respondera calmamente que ele conhecia o risco e
o correra. De algum modo, magoou-me ainda mais
que at a minha fria o deixasse to indiferente.
Fora no regresso que haviam descoberto o Bobo
cortando a pedra que atolava a Garota-em-um-
Drago. Ele limpara uma rea ao redor de uma
pata e comeara a trabalhar na outra. A pata
propriamente dita continuava sendo um pedao
informe de pedra, mas o Bobo insistia que
conseguia sentir a pata, intacta dentro da pedra.
Sentia a certeza de que tudo o que ela desejava
dele era que libertasse o drago daquilo que o
atolava. Estava tremendo de exausto quando o
encontraram. Panela insistira em que fosse
imediatamente para a cama. Pegara o ltimo
pedao frequentemente fervido de casco-de-elfo e
o moera at transform-lo em um p fino, para lhe
fazer uma ltima dose de ch. Apesar da droga, ele
se mantinha distante e cansado, quase sem sequer
me fazer perguntas a respeito do que me
acontecera. Senti uma profunda inquietao por
ele.
As novidades que trouxera a respeito dos
homens de Majestoso fizeram todos se mexerem.
Depois de comer, Veracidade mandou Esporana, o
Bobo e o lobo at a entrada da pedreira, para
ficarem de guarda ali. Eu me sentei junto da
fogueira durante algum tempo, com um trapo frio e
mido enrolado em volta do meu joelho inchado e
plido. No estrado do drago, Kettricken mantinha
as fogueiras acesas e Veracidade e Panela
trabalhavam a pedra. Esporana, enquanto ajudava
Panela a procurar mais casco-de-elfo, descobrira
as sementes de caris que Breu me dera. Panela se
apropriara delas e fizera uma bebida estimulante
que dividia com Veracidade. O rudo do seu
trabalho ganhara um ritmo assustador.
Haviam descoberto tambm as sementes de
fraldassol que eu comprara h tempo como
possvel substituto para o casco-de-elfo. Com um
sorriso matreiro, Esporana me perguntou por que
motivo eu as tinha. Quando expliquei, bufou de
riso, e por fim conseguiu explicar que essas
sementes eram vistas como um afrodisaco.
Lembrei-me daquilo que a vendedora de ervas me
dissera e sacudi a cabea para mim mesmo. Parte
de mim via o humor, mas no consegui encontrar
um sorriso.
Algum tempo depois de ter sido deixado sozinho
junto da fogueira, sondei na direo de Olhos-de-
Noite. Como vai isso?
Um suspiro. A menestrel preferia estar tocando
a harpa. O Sem Cheiro preferia estar lascando
aquela esttua. E eu preferia estar caando. Se
h perigo a caminho, est muito distante.
Esperemos que fique por l. Fique de vigia,
meu amigo.
Deixei o acampamento e manquei pela ladeira
de pedra solta acima at o estrado do drago. Trs
das patas estavam livres agora, e Veracidade
trabalhava na ltima pata da frente. Fiquei durante
algum tempo ao seu lado, mas ele no se dignou a
reparar em mim. Continuou lascando e raspando,
sem parar de murmurar para si mesmo velhas
cantigas infantis ou canes de beber. Passei
mancando por uma Kettricken que cuidava
apaticamente das suas fogueiras, e fui at onde
Panela encostava as mos na cauda do drago.
Tinha os olhos distantes enquanto chamava pelas
escamas, e ento aprofundava os seus detalhes e
lhes acrescentava textura. Parte da cauda tambm
se mantinha escondida na pedra. Comecei a me
encostar na poro grossa da cauda, para tirar o
peso do joelho machucado, mas ela se endireitou
de imediato e sibilou na minha direo.
No faa isso! No toque nele!
Endireitei-me, afastando-me do drago.
J o toquei antes disse, indignado. E
no fez mal algum.
Isso foi antes. Ele agora est muito mais
perto de ficar completo. Ergueu os olhos para
os meus. Mesmo luz da fogueira, consegui notar
como era espessa a camada de poeira que lhe
cobria as feies e se grudava aos clios. Parecia
terrivelmente cansada, mas apesar disso animada
por alguma energia violenta. Prximo como
est de Veracidade, o drago tentaria alcan-lo. E
voc no forte o suficiente para dizer no. Ele o
puxaria completamente para si. essa a fora que
ele tem, a magnfica fora que tem. Quase
cantarolou as ltimas palavras enquanto voltava a
percorrer a cauda com as mos. Por um instante, vi
um brilho de cor percorr-la logo atrs das mos.
Ser que algum um dia vai me explicar
alguma dessas coisas? perguntei, com
petulncia.
Ela me lanou um olhar perplexo.
Eu tento. Veracidade tenta. Mas voc, entre
todas as pessoas, devia saber como as palavras
so cansativas. Ns tentamos, e tentamos, e
tentamos lhe explicar, e mesmo assim a sua mente
no compreende. No culpa sua. As palavras no
so grandes o suficiente. E agora perigoso
demais inclu-lo nas nossas comunicaes de
Talento.
Vocs conseguiro fazer com que eu
compreenda depois de o drago estar terminado?
Ela me olhou com algo semelhante a piedade em
seu rosto.
FitzCavalaria. Meu querido amigo. Quando o
drago estiver terminado? melhor que diga que
quando Veracidade e eu estivermos terminados, o
drago ter comeado.
No compreendo! rosnei, frustrado.
Mas ele lhe disse. Eu disse mais uma vez
quando avisei o Bobo. Os drages alimentam-se
de vida. De uma vida inteira, dada
voluntariamente. isso o que preciso para fazer
um drago se erguer. E normalmente no s uma.
Antigamente, quando os eruditos buscavam a
cidade de Jhaampe, iam como um crculo, como
um todo que era mais do que a soma das suas
partes, e entregavam tudo isso a um drago. O
drago tem de ser enchido. Veracidade e eu temos
de colocar nele tudo o que nos constitui, todas as
partes das nossas vidas. Para mim mais fcil.
Eda sabe que j vivi mais do que o meu quinho
de anos e no tenho qualquer desejo de continuar a
viver neste corpo. Para Veracidade mais difcil,
muito mais difcil. Ele deixa para trs o seu trono,
a sua bela e amada esposa, o seu amor por fazer
coisas com as mos. Deixa para trs cavalgar um
belo cavalo, a caa ao veado, caminhar entre o seu
povo. Oh, eu j sinto tudo isso dentro do drago. A
cuidadosa aplicao de cor a um mapa, a sensao
de um pedao limpo de velino sob as suas mos.
At j conheo os cheiros das suas tintas. Ele
colocou todas elas no drago. difcil para ele.
Mas o far, e a dor que lhe custa mais uma coisa
que pe no drago. Isso alimentar a sua fria
contra os Navios Vermelhos quando se erguer. Na
verdade, s houve uma coisa que ele reteve. S h
uma coisa que pode lev-lo a no alcanar o seu
objetivo.
Que coisa essa? perguntei-lhe a
contragosto.
Os seus velhos olhos encontraram-se com os
meus.
Voc. Recusou-se a deixar que voc fosse
colocado no drago. Ele podia faz-lo, sabia?
Querendo voc ou no. Podia simplesmente
estender-se e pux-lo para dentro de si. Mas se
recusa. Diz que voc ama demais a sua vida e que
no quer tir-la de voc. Que voc j abriu mo de
muita coisa por um rei que s lhe compensou com
dor e dificuldades.
Ela sabia que com as suas palavras estava me
devolvendo Veracidade? Suspeito que sim. Vira
muito do seu passado durante a nossa partilha de
Talento. Eu sabia que a experincia tinha de ter
fludo nos dois sentidos. Ela sabia como eu o
amara, e como me magoara encontr-lo to
distante quando chegara ali. Levantei-me
imediatamente para ir falar com ele.
Fitz! chamou-me ela. Virei-me. H
duas coisas que eu quero que voc saiba, por mais
dolorosas que as considere.
Preparei-me.
Sua me o amava disse-me em voz baixa.
Voc diz que no consegue se lembrar dela. Na
verdade, no consegue perdo-la. Mas ela est a,
com voc, nas suas memrias. Era alta e de
compleio clara, uma mulher da Montanha. E o
amava. No foi por deciso dela que se separou de
voc.
As suas palavras me enfureceram e me deixaram
tonto. Afastei o conhecimento que me oferecia.
Sabia que eu no tinha memrias da mulher que me
dera luz. Inmeras vezes eu me perscrutara e no
encontrara quaisquer vestgios dela.
Absolutamente nenhum.
E a segunda coisa? perguntei-lhe
friamente.
Ela s reagiu minha ira com piedade.
igualmente ruim, ou talvez pior. Mais uma
vez, algo que j sabe. triste que as nicas
coisas que posso lhe dar, ao Catalisador que
transformou a minha morte em vida em uma vida
moribunda, sejam coisas que j possui. Mas as
coisas so como so, e eu vou dizer. Viver para
amar de novo. Sabe que perdeu a sua garota
primaveril, a sua Moli da praia, com o vento no
seu cabelo castanho e manto vermelho. Voc est
longe dela h tempo demais, e foram muitas as
coisas que aconteceram a ambos. E o que voc
amou, aquilo que ambos amaram verdadeiramente,
no foi um ao outro. Foi a poca das suas vidas.
Foi a primavera dos seus anos e a vida correndo
forte em vocs, e a guerra sua porta e os seus
corpos fortes e perfeitos. Olhe para trs,
verdadeiramente. Descobrir que se lembra de
tantas brigas e lgrimas quanto do amor feito e de
beijos. Fitz. Seja sensato. Deixe-a partir, e
mantenha essas recordaes intactas. Salve dela o
que puder e deixe-a guardar o que puder do garoto
bravio e ousado que amou. Porque tanto ele como
aquela alegre menininha j no passam de
memrias. Sacudiu a cabea. No passam de
memrias.
Voc est enganada! gritei, furioso.
Est enganada!
A fora dos meus gritos ps Kettricken de p.
Ela me fitou, com medo e aflio. No consegui
olhar para ela. Alta e de tez clara. A minha me
fora alta e de tez clara. No. No me lembrava de
nada dela. Passei por Kettricken a passos largos,
sem prestar ateno pontada de dor que o joelho
me dava a cada passo. Dei a volta no drago,
amaldioando-o a cada passo que dava e o
desafiando a perceber o que eu sentia. Quando me
aproximei de Veracidade, que trabalhava na pata
dianteira esquerda, agachei-me ao p dele e falei
num violento sussurro.
Panela diz que vocs morrero quando este
drago estiver pronto. Que colocaro tudo o que
so a dentro. Ou foi o que, com o meu parco
entendimento das suas palavras, compreendi.
Diga-me que estou errado.
Ele afastou-se da esttua, apoiando-se nos
calcanhares, e sacudiu as lascas que soltara.
Est errado disse com brandura. V
buscar a vassoura, sim? E limpe isto.
Fui buscar a vassoura e vim me colocar ao seu
lado, quase mais decidido a quebr-la em sua
cabea do que a us-la. Sabia que ele detectava a
minha fria fervente, mas mesmo assim me indicou
com um gesto para que limpasse o espao onde
trabalhava. Fiz isso com uma varrida furiosa.
Ora disse ele com suavidade. Isso que
voc tem uma bela ira. Potente e forte. Isso,
acho, vou tirar para ele.
Suave como o roar de uma asa de borboleta,
senti o beijo do seu Talento. A fria foi arrancada
de mim, uma pele tirada inteira da minha alma e
enviada para
No. No a siga. Um suave empurro de
Talento vindo de Veracidade, e eu regressei ao
meu corpo, de uma forma to repentina como a
libertao de um elstico. Um momento depois,
dei por mim sentado na pedra enquanto o universo
inteiro rodopiava vertiginosamente em torno da
minha cabea. Enrolei-me lentamente para frente,
erguendo os joelhos para encostar a cabea neles.
Senti-me miseravelmente nauseado. A ira
desaparecera, substituda por um entorpecimento
fatigado.
Pronto prosseguiu Veracidade. Como
pediu, assim o fiz. Acho que agora voc
compreende melhor o que significa pr uma coisa
no drago. Gostaria de aliment-lo mais?
Sacudi a cabea, mudo. Temia abrir a boca.
No morrerei quando o drago estiver
terminado, Fitz. Serei consumido, verdade.
Muito literalmente. Mas continuarei a existir.
Como o drago.
Encontrei a minha voz.
E Panela?
Francelha ser uma parte de mim. Assim
como a sua irm Gaivota. Mas o drago serei eu.
Voltara ao seu maldito lascar de pedra.
Como pode fazer isso? Minha voz estava
cheia de acusao. Como pode fazer isso a
Kettricken? Ela abriu mo de tudo para vir at
aqui, para junto do senhor. E o senhor quer
simplesmente abandon-la, sozinha e sem filhos?
Ele inclinou-se para a frente, para repousar a
testa contra o drago. O seu infindvel lascar
parou. Algum tempo depois, falou com uma voz
carregada.
Devia t-lo a falando comigo enquanto
trabalho, Fitz. Bem quando penso que j estou
alm dos grandes sentimentos, voc os desperta
em mim. Ergueu o rosto para me olhar. As
lgrimas haviam aberto dois sulcos na poeira
cinzenta de pedra. Que escolha tenho?
Simplesmente deixe o drago. Voltemos para
os Seis Ducados, levantemos o povo e enfrentemos
os Navios Vermelhos com espada e Talento, como
fizemos antes. Talvez
Talvez estejamos todos mortos antes mesmo
de chegarmos a Jhaampe. Ser esse um fim melhor
para a minha rainha? No. Eu vou lev-la de volta
a Torre do Cervo, e limpar os litorais, e ela
reinar longamente e bem como rainha. Pronto.
isso o que escolho lhe dar.
E um herdeiro? perguntei, amargamente.
Ele encolheu fatigadamente os ombros e pegou
de novo o cinzel.
Voc sabe o que precisa acontecer. A sua
filha ser criada como herdeira.
NO! Ameace-me com isso outra vez e,
independentemente do risco, eu contacto Bronco
pelo Talento, para que ele fuja com ela.
Voc no consegue contactar Bronco pelo
Talento observou Veracidade com brandura.
Pareceu medir o dedo do drago. Cavalaria
fechou a mente dele ao Talento anos atrs, para
evitar que fosse usado contra ele. Como o Bobo
foi usado contra voc.
Outro pequeno mistrio revelado. No que me
valesse de grande coisa.
Veracidade, por favor. Eu lhe suplico. No
faa uma coisa dessas comigo. Seria muito melhor
se eu tambm fosse consumido pelo drago. Eu lhe
ofereo isso. Tome a minha vida e alimente com
ela o drago. Darei tudo o que me pedir. Mas me
prometa que a minha filha no ser sacrificada ao
trono Visionrio.
No posso lhe fazer essa promessa disse
ele num tom pesado.
Se ainda tivesse algum sentimento por mim
comecei, mas ele me interrompeu.
Ser que voc no compreende, por mais que
lhe seja explicado? Eu tenho sentimentos. Mas os
coloquei no drago.
Consegui me levantar. Afastei-me mancando.
Nada mais havia a lhe dizer. Rei ou homem, tio ou
amigo, eu parecia ter perdido todo o conhecimento
de quem ele era. Quando tentava contact-lo pelo
Talento, encontrava apenas as suas muralhas.
Quando sondava na sua direo com a Manha,
descobria a sua vida tremeluzindo entre ele e o
drago de pedra. E, nos ltimos tempos, parecia
arder mais forte dentro do drago, no em
Veracidade.
No havia mais ningum no acampamento e a
fogueira quase se apagara. Joguei mais lenha nela
e me sentei junto ao fogo, para comer carne seca.
O porco j quase acabara. Teramos de caar de
novo em breve. Ou melhor, Olhos-de-Noite e
Kettricken teriam de caar de novo. Ela parecia
abater caa facilmente para ele. A minha pena de
mim mesmo estava perdendo o sabor, mas no
conseguia pensar em uma soluo melhor do que
desejar que tivesse um pouco de conhaque onde
afog-la. Por fim, com poucas alternativas
interessantes, fui para a cama.
Dormi, de certa forma. Drages atormentaram os
meus sonhos e o jogo de Panela tomou estranhos
significados quando tentei decidir se uma pedra
vermelha seria suficientemente forte para capturar
Moli. Os meus sonhos eram desconexos e
incoerentes, e vim frequentemente superfcie do
sono, para ficar fitando o interior escuro da tenda.
Sondei uma vez at onde Olhos-de-Noite
patrulhava por perto de uma pequena fogueira
enquanto Esporana e o Bobo dormiam por turnos.
Haviam movido o seu posto de sentinela para o
topo de uma colina, de onde tinham uma boa vista
da sinuosa estrada de Talento mais abaixo. Devia
ter sado e ido me juntar a eles. Mas me virei para
o outro lado e mergulhei de novo nos meus sonhos.
Sonhei com as tropas de Majestoso a caminho, no
s dzias ou vintenas, mas s centenas de soldados
dourados e marrons que jorravam para dentro da
pedreira, para nos encurralarem contra as negras
paredes verticais e matar todos ns.
Acordei de manh, com o empurro frio de um
focinho de lobo. Precisa caar, disse-me ele,
srio, e eu concordei. Quando sa da tenda, vi
Kettricken descendo do estrado. Rompia a aurora,
as suas fogueiras j no eram necessrias. Podia
dormir, mas l em cima, junto ao drago, o
infindvel martelar e raspar prosseguia. Os nossos
olhos se encontraram quando me endireitei. Ela
olhou para Olhos-de-Noite.
Vo caar? perguntou-nos. O lobo deu um
lento abano com a cauda. Vou buscar o meu
arco anunciou, e desapareceu na sua tenda.
Esperamos. Ela saiu usando um justilho mais
limpo e trazendo o arco. Recusei-me a olhar para a
Garota-em-um-Drago quando passamos por ela.
Ao passarmos pelo pilar, observei:
Se tivssemos gente suficiente, podamos pr
dois homens aqui de guarda e outros dois
observando a estrada.
Kettricken concordou com a cabea.
estranho. Eu sei que eles esto vindo para
nos matar, e vejo poucas maneiras de escaparmos
desse destino. E, no entanto, ainda vamos caar,
em busca de carne, como se comer fosse a mais
importante das coisas.
E . Comer viver.
Mesmo assim, para viver temos de comer
disse Kettricken, em um eco dos pensamentos de
Olhos-de-Noite.
No vimos caa que realmente merecesse o seu
arco. O lobo matou um coelho, e ela abateu uma
ave brilhantemente colorida. Acabamos apanhando
trutas com as mos, e por volta do meio-dia
tnhamos peixe mais do que suficiente para nos
alimentar, pelo menos para aquele dia. Limpei-os
na margem do riacho, e ento perguntei a
Kettricken se ela se importava que eu ficasse para
me lavar.
Na verdade, isso pode ser uma gentileza que
faz a todos ns respondeu, e eu sorri, no da
sua troa, mas por ainda ser capaz de troar.
Pouco tempo depois, ouvi-a chapinhando na gua,
correnteza acima, enquanto Olhos-de-Noite
cochilava na margem do riacho, de barriga cheia
de tripas de peixe.
Quando passamos pela Garota-em-um-Drago
no caminho de volta ao acampamento, encontramos
o Bobo enrolado no estrado ao seu lado,
profundamente adormecido. Kettricken o acordou
e o repreendeu pelas marcas frescas de cinzel que
rodeavam a cauda do drago. Ele no mostrou
arrependimento, limitando-se a afirmar que
Esporana dissera que ficaria de guarda at a noite,
e que realmente preferia dormir ali. Insistimos que
voltasse conosco ao acampamento.
Estvamos conversando entre ns enquanto
regressvamos tenda. Foi Kettricken quem nos
parou de sbito.
Shhh! gritou. Escutem!
Estacamos ali mesmo. Quase esperei ouvir
Esporana nos gritando um aviso. Esforcei os
ouvidos, mas no ouvi nada alm do vento na
pedreira e sons de aves distantes. Precisei de um
momento para perceber a importncia que isso
tinha.
Veracidade! exclamei. Enfiei os peixes
nas mos do Bobo e sa correndo. Kettricken me
ultrapassou.
Temera encontrar os dois mortos, atacados pelo
crculo de Majestoso na nossa ausncia. O que
descobri foi quase igualmente estranho.
Veracidade e Panela estavam de p, lado a lado,
fitando o seu drago. Este brilhava, negro e
reluzente como boa pederneira ao sol da tarde. O
grande animal estava completo. Cada escama,
cada ruga, cada garra estava impecvel em seus
detalhes.
Ele supera todos os drages que vi no jardim
de pedra declarei. Caminhara por duas vezes
ao seu redor, e a cada passo que dava, o
maravilhamento que me causava aumentava.
Agora, a vida de Manha ardia poderosamente nele,
mais forte do que ardera tanto em Veracidade
como em Panela. Era quase chocante que os seus
flancos no oscilassem com a respirao, que ele
no se retorcesse no sono. Olhei para Veracidade
e, apesar da ira que ainda nutria, tive de sorrir.
Ele perfeito eu disse em voz baixa.
Fracassei disse ele sem esperana. Ao seu
lado, Panela anuiu, infeliz. As rugas no seu rosto
haviam se aprofundado. Aparentava por completo
os seus duzentos anos. Veracidade tambm.
Mas ele est terminado, meu senhor disse
Kettricken em voz baixa. No era isso que dizia
que precisava fazer? Terminar o drago?
Veracidade sacudiu lentamente a cabea.
A escultura est terminada. Mas o drago no
est completo. Olhou em volta, para ns, que o
observvamos, e percebi como ele lutava para
fazer com que as palavras transmitissem o que
queria dizer. Coloquei nele tudo o que sou.
Tudo menos o necessrio para manter o meu
corao batendo e a respirao fluindo no meu
corpo. Assim como Panela. Tambm poderamos
dar isso. Mas continuaria no sendo o suficiente.
Avanou lentamente, para se encostar no seu
drago. Usou os braos magros como almofadas.
A cada volta do local em que o seu corpo
repousava contra a pedra, uma aura de cor ondulou
na pele do drago. Turquesas, debruadas a prata,
as escamas reluziram hesitantemente luz do sol.
Eu conseguia sentir o seu Talento fluindo para
dentro do drago. Derramava-se de Veracidade
para o interior da pedra como a tinta embebida
por uma pgina.
Rei Veracidade eu disse em voz baixa,
num aviso.
Com um gemido, ele afastou-se da sua criao.
No tema, Fitz. Eu no deixarei que ele leve
demais. No lhe darei a minha vida sem motivo.
Ergueu a cabea e olhou para todos ns.
estranho disse em voz baixa. Imagino se ser
forjado se parece com isso. Ser capaz de se
recordar do que se sentiu outrora, mas ser incapaz
de senti-lo. Os meus amores, os meus medos, as
minhas tristezas. Foi tudo para o drago. No
retive nada. E, no entanto, no suficiente. No
suficiente.
Meu senhor Veracidade. A velha voz de
Panela estava rachada. Toda a esperana
desaparecera dela. Teremos de usar
FitzCavalaria. No h outra maneira. Os seus
olhos, outrora to brilhantes, pareciam pedrinhas
negras e secas quando olhou para mim. Voc a
ofereceu lembrou-me. Toda a sua vida.
Confirmei com a cabea.
Se no tomassem a minha filha acrescentei
em voz baixa. Respirei fundo, enchendo os
pulmes de ar. Vida. Agora. O agora era toda a
vida que eu tinha, todo o tempo de que podia
realmente abrir mo. Meu rei. J no procuro
nenhum tipo de acordo. Se tiver de tomar a minha
vida para que o drago voe, eu a ofereo.
Veracidade oscilou ligeiramente. Fitou-me.
Quase me faz voltar a sentir. Mas
Ergueu um dedo prateado e o apontou
acusadoramente. No para mim, mas para Panela.
A ordem foi to slida como a pedra do seu
drago quando disse: No. Eu j havia lhe dito.
No. No falar sobre isso com ele novamente. Eu
probo. Lentamente, caiu de joelhos, e ento se
sentou ao lado do drago. Maldita seja esta
semente de caris disse em voz baixa.
Abandona-nos sempre precisamente quando mais
necessitamos da sua fora. Maldita coisa.
Deveria descansar agora eu disse,
estupidamente. Na realidade, pouco mais havia
que ele pudesse fazer. Era assim que a semente de
caris deixava as pessoas. Vazias e exaustas. Eu o
sabia bem demais.
Descansar disse ele, amargo, com a voz
fraquejando na palavra. Sim. Descansar.
Ficarei bem descansado quando os soldados do
meu irmo me descobrirem e cortarem a minha
garganta. Bem descansado quando o seu crculo
vier e tentar reivindicar o meu drago como seu.
No se engane, Fitz. isso que eles procuram.
No funcionar, claro. Pelo menos, eu acho que
no A sua mente estava agora divagando.
Se bem que talvez funcione disse, no mais leve
dos murmrios. Eles estiveram ligados a mim
pelo Talento durante algum tempo. Pode ser o
suficiente para me matarem e o levarem. Deu
um sorriso sinistro. Majestoso como drago.
Acha que ele ir deixar duas pedras do Castelo de
Torre do Cervo em cima uma da outra?
Atrs dele, Panela dobrara-se toda, encostara o
rosto nos joelhos. Pensei que chorava, mas quando
ela caiu lentamente de lado, tinha o rosto relaxado
e imvel, os olhos fechados. Morta, ou dormindo o
sono exausto da semente de caris. Depois do que
Veracidade me dissera, pouca importncia parecia
ter. O meu rei estendeu-se no pedestal nu e
pedregoso. Adormeceu ao lado do seu drago.
Kettricken foi se sentar ao seu lado. Deixou cair
a cabea nos joelhos, e chorou. No em silncio.
Os soluos dilacerantes que a sacudiram deviam
ter despertado at o drago de pedra. No
despertaram. Eu olhei para ela. No fui at ela.
No a toquei. Sabia que no serviria de nada. Em
vez disso, olhei para o Bobo.
Devamos trazer cobertores e deix-los mais
confortveis disse, impotente.
Ah. Claro. Que melhor tarefa existe para o
Profeta Branco e para o seu Catalisador? Deu-
me o brao. O seu toque renovou o fio da ligao
de Talento que havia entre ns. Amargura. A
amargura flua atravs dele como sangue. Os Seis
Ducados cairiam. O mundo terminaria.
Fomos buscar cobertores.
CAPTULO 38

A Troca de Veracidade

Quando todos os registros so comparados,


torna-se evidente que no foram mais de vinte os
Navios Vermelhos que se aventuraram a seguir
para o interior at Lago Bode e que s doze
seguiram para alm de Lago Bode para ameaar
as aldeias contguas a Vaudefeira. Os menestris
querem nos fazer crer que havia vintenas de
navios e literalmente centenas de Salteadores
nos seus conveses. Nas canes, as margens dos
rios Cervo e Vim ficaram rubras de chamas e
sangue naquele vero. No se deve censur-los
por isto. O tormento e terror desses dias no
devem nunca ser esquecidos. Se um menestrel
tem de romancear a verdade para nos ajudar a
record-la por completo, ento que o faa, e que
ningum diga que mentiu. A verdade , com
frequncia, muito maior do que os fatos.

Esporana voltou com o Bobo naquela noite.


Ningum lhe perguntou por que motivo j no se
mantinha de vigia. Ningum sequer sugeriu que
talvez devssemos fugir da pedreira antes que as
tropas de Majestoso nos encurralassem ali.
Ficaramos e resistiramos, e lutaramos. Para
defender um drago de pedra.
E morreramos. Isso nem era preciso dizer.
Muito literalmente, era um conhecimento que
nenhum de ns verbalizava.
Depois de Kettricken adormecer, exausta, levei-
a para a tenda que dividira com Veracidade.
Deitei-a nos seus cobertores e a cobri bem.
Abaixei-me e beijei a sua testa enrugada como se
estivesse beijando a minha filha adormecida. Era
uma despedida, de certa forma. Eu decidira que
era melhor fazer as coisas agora. O agora era tudo
o que tinha de certo.
Quando caiu o crepsculo, Esporana e o Bobo
sentaram-se junto da fogueira. Ela tocou a sua
harpa baixinho, sem palavras, e olhou as chamas.
Uma faca desembainhada estava no cho ao seu
lado. Fiquei algum tempo em p, observando o
modo como a luz do fogo lhe tocava o rosto.
Esporana Cantodave, a ltima menestrel dos
ltimos verdadeiros rei e rainha Visionrio. No
escreveria nenhuma cano que algum
recordasse.
O Bobo estava imvel e escutava. Haviam
descoberto uma espcie de amizade. Pensei
comigo mesmo que, se aquela era a ltima noite
em que ela podia tocar, ele no podia lhe dar
melhor coisa do que aquilo. Escutar bem, e deixar
que a msica o embalasse com o talento da
tocadora.
Deixei-os sentados ali e peguei um odre cheio.
Lentamente, subi a rampa que levava ao drago.
Olhos-de-Noite me seguiu. Horas antes, eu fizera
uma fogueira no estrado. Agora a alimentei com o
que restava da lenha de Kettricken e depois me
sentei ao seu lado. Veracidade e Panela
continuavam dormindo. Certa vez, Breu usara
semente de caris durante dois dias, sem parar.
Quando desmaiou, levou a maior parte da semana
se recuperando. Tudo o que quisera fazer fora
dormir e beber gua. Duvidava de que qualquer
um dos dois acordasse em breve. No fazia mal.
De qualquer forma, no restava nada para lhes
dizer. De modo que apenas fiquei sentado ao lado
de Veracidade, e me mantive de guarda sobre o
meu rei.
Era um guarda ruim. Acordei ao ouvi-lo
sussurrar o meu nome. Endireitei-me de imediato e
estendi a mo para o odre de gua que trouxera
comigo.
Meu rei disse, em voz baixa.
Mas Veracidade no estava deitado na pedra,
fraco e impotente. Estava de p, por cima de mim.
Fez um sinal para que me levantasse e o seguisse.
Foi o que fiz, movendo-me to silenciosamente
quanto ele. Na base do estrado do drago, ele se
virou para mim. Sem palavra, ofereci-lhe o odre.
Ele bebeu metade do contedo, fez uma pausa por
um momento e ento bebeu o restante. Quando
terminou, devolveu-me o odre. Pigarreou.
H uma maneira, FitzCavalaria. Seus
olhos escuros, to parecidos com os meus, fitaram-
me fixamente. A maneira voc. To cheio de
vida e de nsias. To dilacerado por paixes.
Eu sei disse. As palavras soaram com
valentia. Estava mais assustado do que alguma vez
estivera na vida inteira. Majestoso me assustara
bastante na sua masmorra. Mas aquilo fora dor.
Isto era morte. De repente compreendi a diferena.
As minhas mos traioeiras torceram a bainha da
frente da minha tnica.
Voc no vai gostar avisou-me. Eu no
gosto. Mas no vejo outra maneira.
Estou pronto menti. S que gostaria
de ver Moli mais uma vez. Para saber que ela e
Urtiga esto em segurana. E Bronco.
Ele semicerrou os olhos na minha direo.
Lembro-me da troca que voc sugeriu. Que
eu no tomasse Urtiga para o trono. Afastou os
olhos de mim. O que lhe peo ser pior. A sua
vida propriamente dita. Toda a vida e energia do
seu corpo. Eu gastei todas as minhas paixes,
compreende? No me resta nada. Se pudesse ao
menos acender em mim uma ltima noite de
sentimentos se conseguisse me lembrar de como
era desejar uma mulher, ter a mulher que amei nos
braos Sua voz afastou-se de mim.
Envergonha-me lhe pedir isso. Envergonha-me
mais do que quando obtinha fora de voc, quando
voc no era mais do que um garoto confiante.
Voltou a me olhar nos olhos e eu compreendi como
lutava para usar palavras. Palavras imperfeitas.
Mas, compreende? At isso. A vergonha que sinto.
A dor por lhe fazer isso at isso o que voc
me d. At isso posso colocar no drago.
Afastou os olhos de mim. O drago tem de
voar, Fitz. Ele tem de voar.
Veracidade. Meu rei. Ele desviou os
olhos de mim. Meu amigo. Os seus olhos
voltaram a se fixar nos meus. Est bem. Mas
eu gostaria de ver Moli de novo. Ainda que
brevemente.
perigoso. Acho que o que eu fiz a Cedoura
despertou neles um medo verdadeiro. No
experimentaram as suas foras contra ns desde
ento, s a astcia. Mas
Por favor. Disse as pequenas palavras em
voz baixa.
Veracidade suspirou.
Muito bem, rapaz. Mas o meu corao est
cheio de pressentimentos.
Nem um toque. Ele nem sequer respirou fundo.
Mesmo reduzido como estava, era esse o poder do
Talento de Veracidade. Estvamos l, com eles.
Senti Veracidade se retirando, dando-me a iluso
de que estava l sozinho.
Era um quarto de estalagem. Limpo e bem
mobiliado. Um castial ardia ao lado de um po e
de uma tigela de mas em cima de uma mesa.
Bronco estava deitado sem camisa de lado na
cama. O sangue formara um espesso cogulo em
volta do ferimento de faca e lhe ensopara a cintura
da cala. O peito movia-se no lento e profundo
ritmo do sono. Estava enrolado em volta de Urtiga.
Ela encontrava-se aninhada contra ele,
profundamente adormecida, com o brao dele
posto de forma protetora sobre ela. Enquanto eu
observava, Moli debruou-se sobre eles e tirou
habilmente a beb de baixo do brao de Bronco.
Urtiga no acordou quando foi levada para um
cesto colocado em um canto e aconchegada s
mantas que o forravam. A sua pequena boca
rosada moveu-se com recordaes de leite quente.
A testa estava lisa sob o seu lustroso cabelo negro.
Nada parecia ter sofrido com tudo aquilo por que
passara.
Moli moveu-se com eficincia pelo quarto.
Despejou gua em uma bacia e pegou um pano
dobrado. Voltou para se agachar junto da cama de
Bronco. Ps a bacia de gua no cho ao lado da
cama e mergulhou nela o trapo. Torceu-o bem.
Quando o colocou nas costas dele, ele acordou
sobressaltado, prendendo a respirao. Rpido
como uma serpente dando bote, agarrara o pulso
dela.
Bronco! Largue-me, isso precisa ser limpo.
Moli estava aborrecida com ele.
Oh. voc. A sua voz estava espessa de
alvio. Soltou-a.
Claro que sou eu. Quem esperava que fosse?
Limpou suavemente o ferimento de faca, ento
mergulhou de novo o trapo na gua. Tanto o trapo
como a mo e a bacia de gua ao seu lado ficaram
tingidos de sangue.
A mo dele tateou cuidadosamente a cama ao
seu lado.
O que voc fez com a minha beb?
perguntou.
A sua beb est tima. Est dormindo no
cesto. Bem ali. Voltou a limpar as suas costas,
e assentiu para si mesma. O sangramento parou.
E a ferida parece limpa. Acho que o couro da sua
tnica parou a maior parte da facada. Se voc se
sentar, posso enfaix-la.
Lentamente, Bronco se mexeu para se sentar.
Soltou uma minscula arfada, mas depois de se
sentar sorriu para Moli. Afastou uma madeixa do
rosto.
Abelhas de Manha disse com admirao.
Sacudiu a cabea. Percebi que no era a primeira
vez que o dizia.
No consegui me lembrar de mais nada
observou Moli. No conseguiu deixar de lhe
responder com um sorriso. Funcionou, no
funcionou?
Maravilhosamente admitiu ele. Mas
como sabia que elas iriam atrs do da barba ruiva?
Foi isso que os convenceu. E quase me convenceu
tambm!
Ela sacudiu a cabea para si mesma.
Foi sorte. E a luz. Ele tinha as velas e estava
diante da lareira. A cabana estava mal iluminada.
As abelhas so atradas para a luz. Quase como as
mariposas.
Fico pensando se ainda estaro dentro da
cabana. Ele sorriu enquanto a observou
levantar-se para levar dali o trapo e a gua
ensanguentados.
Perdi as minhas abelhas lembrou-lhe num
tom triste.
Arranjaremos mais consolou-a Bronco.
Ela sacudiu a cabea com tristeza.
Uma colmeia que trabalhou o vero inteiro
a que faz mais mel. De uma mesa, no canto,
pegou um rolo de bandagens limpas de linho e um
pote de unguento. Cheirou-o com um ar pensativo.
No tem o cheiro do que voc faz observou.
Provavelmente ir funcionar igualmente bem
disse ele. Um franzido lhe enrugou a testa
quando olhou lentamente o quarto em volta.
Moli. Como vamos ns pagar por tudo isso?
Eu cuidei disso. Manteve as costas
viradas para ele.
Como? perguntou ele com suspeita.
Quando ela voltou a olh-lo, tinha a boca reta.
Eu sabia que no era boa ideia discutir com aquele
rosto.
O alfinete de Fitz. Mostrei-o ao estalajadeiro
para ficar com este quarto. E enquanto vocs
dormiam esta tarde, levei-o ao joalheiro e o vendi.
Ele abrira a boca, mas ela no lhe deu chance
de falar. Eu sei como negociar e consegui todo
o seu valor.
O seu valor maior do que moedas. Urtiga
devia ter ficado com esse alfinete disse
Bronco. Tinha a boca to reta quanto a dela.
Urtiga precisava muito mais de uma cama
quente e de mingau do que de um alfinete de prata
com um rubi. At Fitz teria tido o bom senso de
saber isso.
Por estranho que parecesse, tinha mesmo. Mas
Bronco apenas disse:
Vou ter de trabalhar muitos dias para ganh-
lo de volta.
Moli pegou as bandagens. No o olhou nos
olhos.
Voc um homem teimoso, e tenho certeza de
que far o que quiser a esse respeito disse.
Bronco ficou em silncio. Quase conseguia v-
lo tentando decidir se isso significava que ganhara
a discusso. Ela voltou para junto da cama.
Sentou-se ao seu lado na cama para lhe espalhar
unguento pelas costas. Ele apertou os maxilares,
mas no soltou um som. Ento ela se abaixou na
frente dele.
Levante os braos para eu poder enrolar isto
ordenou-lhe. Ele respirou fundo e levantou os
braos para longe do corpo. Ela trabalhou com
eficincia, desenrolando a bandagem enquanto a
enrolava em volta dele. Amarrou-a sobre a
barriga. Melhor? perguntou.
Muito. Ele comeou a se espreguiar, mas
ento pensou duas vezes.
H comida sugeriu ela quando regressou
para junto da mesa.
Um momento. Vi sua expresso ficar
sombria. Moli tambm. Virou-se para ele, com a
boca pequena. Moli. Suspirou. Tentou de
novo. Urtiga bisneta do Rei Sagaz. Uma
Visionrio. Majestoso a v como ameaa. Pode
tentar mat-las de novo. Vocs duas. Na verdade,
tenho certeza de que o far. Coou a barba. Em
resposta ao silncio dela, sugeriu: A nica
forma de proteger vocs talvez seja coloc-las sob
a proteo do verdadeiro rei. H um homem que
eu conheo Fitz talvez tenha lhe falado dele.
Breu?
Ela sacudiu a cabea sem uma palavra. Os seus
olhos estavam ficando cada vez mais negros.
Ele podia levar Urtiga para um lugar seguro.
E se certificar de que voc no passaria
necessidade. As palavras saram dele lenta e
relutantemente.
A resposta de Moli foi rpida.
No. Ela no uma Visionrio. minha. E eu
no a venderei, nem por dinheiro, nem por
segurana. Fitou-o, furiosa, e praticamente
cuspiu as palavras. Como pde pensar que o
faria?
Ele sorriu diante da ira dela. Vi um alvio
culpado no seu rosto.
No pensei que o faria. Mas me senti
obrigado a fazer a oferta. As palavras que
proferiu em seguida surgiram de uma forma ainda
mais hesitante. Tinha pensado em outra
maneira. No sei o que voc vai pensar dela.
Ainda teremos de viajar para longe daqui,
encontrar uma vila onde no sejamos conhecidos.
Olhou abruptamente para o cho. Se nos
casarmos antes de chegarmos l, as pessoas nunca
questionaro se ela minha
Moli ficou to imvel como se tivesse se
transformado em pedra. O silncio prolongou-se.
Bronco ergueu os olhos e os cruzou com os dela,
em uma splica.
No encare isso da forma errada. No espero
nada de voc desse modo. Mas mesmo assim,
voc no precisa se casar comigo. H Pedras
Testemunha em Quevedor. Podamos ir at l, com
um menestrel. Eu podia ficar diante das pedras e
jurar que ela minha. Nunca ningum questionaria
isso.
Mentiria diante de uma Pedra Testemunha?
perguntou Moli, incrdula. Faria isso? Para
manter Urtiga a salvo?
Ele assentiu lentamente. Os seus olhos nunca
deixaram o rosto dela.
Moli sacudiu a cabea.
No, Bronco, no quero que faa isso. D o
maior dos azares fazer uma coisa dessas. Todos
conhecem as histrias sobre o que acontece aos
que profanam as Pedras Testemunha com uma
mentira.
Eu me arriscarei. Ele falava
sombriamente. Nunca ouvira falar de mentiras
ditas pelo homem antes de Urtiga aparecer na sua
vida. Agora se oferecia para prestar um falso
juramento. Perguntei-me se Moli saberia o que ele
estava lhe oferecendo.
Sabia.
No. Voc no vai mentir. Falava com
certeza.
Moli. Por favor.
Cale-se! disse ela, com grande
determinao. Inclinou a cabea e olhou para ele,
decifrando alguma coisa. Bronco? perguntou
com uma nota de hesitao na voz. Eu ouvi
dizer Renda dizia que voc j amou Pacincia.
Respirou fundo. Ainda a ama? perguntou.
Bronco pareceu quase irritado. Moli enfrentou o
seu olhar com uma expresso de splica, at que
Bronco afastou os olhos dela. A garota quase no
conseguiu ouvir as suas palavras.
Amo as recordaes que tenho dela. Como
ela era naquela poca, como eu era naquela poca.
provavelmente muito parecido com o modo
como voc ainda ama Fitz.
Foi a vez de Moli se retrair.
Algumas das coisas de que me lembro sim.
Fez um aceno como quem recorda algo a si
mesma. Ento ergueu os olhos e os cruzou com os
de Bronco. Mas ele est morto. To
estranhamente definitivas, aquelas palavras ditas
por ela. Ento, com uma splica na voz,
acrescentou: Escute-me. Apenas escute. Toda a
minha vida foi Primeiro o meu pai. Ele sempre
me disse que me amava. Mas quando me batia e
xingava, isso nunca me pareceu amor. Depois Fitz.
Ele jurou que me amava e me tocou com
suavidade. Mas as suas mentiras nunca me
pareceram amor. Agora voc Bronco, voc
nunca me fala de amor. Nunca me tocou, nem em
fria, nem em desejo. Mas tanto o seu silncio
como os seus olhares me falam mais de amor do
que as palavras e toques deles alguma vez falaram.
Esperou. Ele no falou. Bronco?
perguntou com desespero.
Voc nova disse ele em voz baixa. E
adorvel. To cheia de vitalidade. Merece algo
melhor.
Bronco. Voc me ama? Uma pergunta
simples, feita com timidez.
Ele fechou as mos marcadas pelo trabalho
sobre as pernas.
Sim. Apertou as mos. Para impedi-las de
tremer?
O sorriso de Moli surgiu como o sol de trs de
uma nuvem.
Ento se casar comigo. E depois, se quiser,
eu me apresentarei s Pedras Testemunha. E
admitirei diante de todos que estive com voc
antes de nos casarmos. E lhes mostrarei a criana.
Ele finalmente ergueu os olhos para ela. A
expresso que mostrava era incrdula.
Voc casaria comigo? Como sou? Velho?
Pobre? Marcado?
Para mim, voc no nenhuma dessas coisas.
Para mim, o homem que amo.
Ele sacudiu a cabea. A resposta dela s o tinha
confundido mais.
E depois do que acabou de dizer sobre o
azar? Ficaria diante de uma Pedra Testemunha e
mentiria?
Ela lhe deu um tipo diferente de sorriso. Um
sorriso que eu no via h muito tempo. Um sorriso
que me partiu o corao.
No tem de ser mentira disse em voz
baixa.
As narinas dele se dilataram como as de um
garanho quando se levantou. A sua inspirao fez
o seu peito inchar.
Espere ordenou ela em voz baixa, e ele
esperou. Ela lambeu o polegar e o indicador.
Apagou rapidamente todas as velas, menos uma.
Ento atravessou o quarto escurecido para se
entregar aos seus braos.
Fugi.
Oh, meu rapaz. Sinto muito.
Sacudi a cabea, em silncio. Tinha os olhos
bem fechados, mas as lgrimas transbordaram
deles mesmo assim. Encontrei a voz.
Ele ser bom para ela. E para Urtiga. o tipo
de homem que ela merece. No, Veracidade. Eu
devia me sentir reconfortado por aquilo. Por saber
que ele estar com ela, cuidando de ambas.
Conforto. No conseguia encontrar naquilo
qualquer conforto. S dor.
Parece que fiz com voc uma troca muito
ruim. Veracidade parecia genuinamente
angustiado por mim.
No. Est tudo bem. Respirei fundo.
Agora, Veracidade. Quero que seja feito depressa.
Tem certeza?
Como quiser.
E ele me tirou a vida.
Era um sonho que eu j havia tido antes. Conhecia
a sensao que um corpo de velho dava. Da outra
vez, fora o Rei Sagaz, vestido com uma camisola
macia, em uma cama limpa. Desta vez era mais
rude. Doa-me cada articulao do meu corpo. As
tripas ardiam dentro de mim. E eu me queimara, no
rosto e nas mos. Restava mais dor do que vida
naquele corpo. Como uma vela queimada quase at
o toco. Abri olhos pegajosos. Estava deitado em
rocha fria e pedregosa. Um lobo estava sentado,
vigiando-me.
Isto errado, disse-me ele.
No consegui pensar em nenhuma resposta para
lhe dar. Certamente no o sentia como certo.
Passado algum tempo, ergui-me, apoiado nas mos
e nos joelhos. Minhas mos doam. Meus joelhos
doam. Todas as articulaes do meu corpo
rangeram e protestaram quando fiquei de p e
olhei em volta. A noite estava quente, mas mesmo
assim eu tremia. Acima de mim, num estrado, um
drago incompleto dormia.
No compreendo. Olhos-de-Noite suplicava por
uma explicao.
Eu no desejo compreender. No quero saber.
Mas, querendo ou no, eu sabia. Caminhei
lentamente e o lobo veio atrs de mim. Passamos
por uma fogueira moribunda entre duas tendas.
Ningum estava de vigia. Soavam pequenos rudos
vindos da tenda de Kettricken. O que ela via na
escurido era o rosto de Veracidade. Os olhos
escuros de Veracidade olhando os seus. Ela
acreditava que o marido viera finalmente at ela.
E na verdade, viera.
Eu no queria ouvir, no queria saber. Continuei
caminhando com os meus passos cautelosos de
velho. Grandes blocos negros de pedra erguiam-se
acima de ns. nossa frente, algo estalava e
retinia baixinho. Atravessei as sombras das pedras
afiadas e voltei a sair para o luar.
Voc j partilhou do meu corpo. Isto
parecido?
No. Proferi a palavra em voz alta e, na
esteira da minha voz, ouvi um pequeno esgravatar.
Que foi aquilo?
Vou ver. O lobo fundiu-se com as sombras.
Regressou no instante seguinte. s o Sem Cheiro.
Esconde-se de voc. No o reconhece.
Eu sabia onde o encontraria. Levei o meu tempo.
Aquele corpo s com dificuldade se movia, o que
dir mover-se rapidamente. Quando cheguei
Garota-em-um-Drago, foi horrivelmente difcil
subir no seu estrado. Uma vez l em cima, vi
lascas recentes de pedra por todo o lado. Sentei-
me ao lado das patas do drago, um baixar
cuidadoso do corpo para a pedra fria. Olhei para o
trabalho dele. J quase a libertara.
Bobo? chamei em voz baixa para a noite.
Ele aproximou-se lentamente, vindo das
sombras, para parar de olhos baixos diante de
mim.
Meu rei disse em voz baixa. Eu tentei.
Mas no consigo evitar. No posso simplesmente
deix-la aqui
Assenti lentamente, sem palavras. Na base do
estrado, Olhos-de-Noite ganiu. O Bobo o olhou de
relance, ento voltou a olhar para mim. A confuso
cruzou o seu rosto.
Senhor? perguntou.
Procurei o fio de vnculo de Talento que havia
entre ns e o encontrei. O rosto do Bobo ficou
muito quieto enquanto ele lutava para
compreender. Veio sentar-se ao meu lado. Fitou-
me, como se conseguisse ver atravs da pele de
Veracidade.
No gosto disso disse ele por fim.
Eu tambm no concordei.
Por que voc
melhor no saber disse, conciso.
Durante algum tempo, ficamos sentados em
silncio. Ento o Bobo estendeu uma mo para
afastar de junto da pata do drago um punhado de
lascas recentes de pedra. Cruzou o olhar com o
meu, mas ainda se mostrava furtivo quando tirou
um cinzel de dentro da camisa. O martelo que
usava era uma pedra.
Esse o cinzel de Veracidade.
Eu sei. Ele j no precisa dele, e a minha
faca quebrou. Encostou cuidadosamente a ponta
na pedra. De qualquer forma, funciona muito
melhor. Observei-o soltar mais uma pequena
lasca. Alinhei os meus pensamentos com os dele.
Ela obtm foras de voc observei em voz
baixa.
Eu sei. Outra lasca se soltou. Eu estava
curioso. E o meu toque a feriu. Voltou a pr o
cinzel em posio. Sinto que lhe devo alguma
coisa.
Bobo. Ela podia ficar com tudo o que voc
lhe oferece e continuaria no sendo suficiente.
Como sabe?
Encolhi os ombros.
Este corpo sabe.
Ento fiquei olhando fixamente quando ele ps
os seus dedos de Talento no local que cinzelara.
Retra-me, mas no senti qualquer dor vinda dela.
Ela tirou alguma coisa do Bobo. Mas ele no tinha
o Talento para lhe dar forma com as mos. O que
lhe dava era s suficiente para atorment-la.
Ela me lembra a minha irm mais velha
disse ele para a noite. Ela tinha cabelo
dourado.
Fiquei sentado em um silncio atordoado. Ele
no olhou para mim quando acrescentou:
Gostaria de t-la visto de novo. Ela me
mimava de uma forma escandalosa. Gostaria de ter
visto de novo toda a minha famlia. Seu tom no
era mais do que nostlgico enquanto movia
indolentemente os dedos contra a pedra cinzelada.
Bobo? Deixe-me tentar?
Ele me lanou um olhar que era quase ciumento.
Ela pode no lhe aceitar avisou-me.
Sorri-lhe. O sorriso de Veracidade, atravs da
sua barba.
H uma ligao entre ns. Fina como um fio e
nem o casco-de-elfo, nem o seu cansao a ajudam.
Mas est l. Ponha a mo no meu ombro.
No sei por que o fiz. Talvez porque ele nunca
antes tivesse me falado de uma irm ou de um lar
de que sentia a falta. Recusei-me a parar e refletir.
No pensar era muito mais fcil, e no sentir mais
fcil ainda. Ele colocou a mo no Talentosa, no
no ombro, mas na parte lateral do pescoo.
Instintivamente, ele estava certo. Com a pele
tocando em pele, conheci-o melhor. Ergui as mos
prateadas de Veracidade para diante dos meus
olhos e me maravilhei com elas. Prateadas para os
olhos, escaldadas e doloridas para os sentidos.
Ento, antes de ter tempo de mudar de ideia,
estendi-as para baixo e agarrei entre ambas a
informe pata dianteira do drago.
No mesmo instante, consegui sentir o drago.
Quase se contorcia dentro da pedra. Soube onde se
encontrava o limite de cada escama, a ponta de
cada garra cruel. E conheci a mulher que o
esculpira. As mulheres. Um crculo, h tanto
tempo. O Crculo de Sal. Mas Sal fora orgulhosa
demais. Eram as suas feies que o rosto
esculpido mostrava e ela procurara permanecer na
sua prpria forma, esculpindo-se sentada no
drago a que o seu crculo dera forma sua volta.
As outras haviam sido leais demais para fazer
objees. E ela quase tivera sucesso. O drago
fora terminado, e quase cheio. O drago se avivara
e comeara a se erguer enquanto o crculo era
absorvido para dentro dele. Porm, Sal tentara
permanecer apenas dentro da garota esculpida.
Mantivera-se afastada do drago. E o drago cara
antes mesmo de se erguer, voltando a afundar na
pedra, atolando-se para sempre. Deixando o
crculo aprisionado no drago e Sal aprisionada na
garota.
Eu soube de tudo isto, mais rapido do que um
raio. E tambm senti a fome do drago. Ele me
puxou, suplicando por nutrio. Muito fora tirado
do Bobo. Detectei o que ele dera, aquilo que era
luminoso e o que era sombrio. As provocaes
trocistas de jardineiros e camareiros quando era
novo em Torre do Cervo. Um galho de botes de
macieira em uma janela na primavera. Uma
imagem de mim, com o justilho esvoaando
enquanto atravessava o ptio correndo no encalo
de Bronco, tentando fazer com que as minhas
pernas mais curtas acompanhassem os seus passos
longos. Um peixe prateado saltando por cima de
um charco silencioso ao amanhecer.
O drago me puxava com insistncia. De repente
compreendi o que me atrara realmente at ali.
Leve as recordaes da minha me e os
sentimentos que as acompanham. No quero
conhec-los de modo algum. Leve a dor na
garganta quando penso em Moli, leve todos os
dias ntidos de cores brilhantes de que me lembro
com ela. Leve o seu brilho, e deixe comigo
apenas as sombras do que vi e senti. Deixe que os
recorde sem que me corte nos seus gumes. Leve
os dias e noites que passei nas masmorras de
Majestoso. Basta saber o que me foi feito. Leve-
os para sempre, e permita que eu deixe de sentir
o rosto contra aquele cho de pedra, de ouvir o
som do meu nariz se quebrando, de sentir o
cheiro e o sabor do meu sangue. Leve a dor por
nunca ter conhecido o meu pai, leve as horas que
passei de olhos fixos no seu retrato quando o
grande salo estava vazio e podia faz-lo
sozinho. Leve as minhas
Fitz. Pare. Voc est lhe dando demais, no
restar nada para voc. A voz do Bobo dentro de
mim estava horrorizada com o que ele encorajara.
memrias daquele topo de torre, do Jardim
da Rainha, vazio e varrido pelo vento, e de
Galeno em p, sobre mim. Leve essa imagem de
Moli entregando-se to voluntariamente aos
braos de Bronco. Leve-a e apague-a e sele-a
onde ela no possa nunca mais me queimar.
Leve
Irmo. Basta.
Olhos-de-Noite subitamente estava entre mim e
o drago. Eu sabia que ainda agarrava aquela pata
escamosa, mas ele rosnou para o drago,
desafiando-o a levar mais de mim.
Eu no me importo se tudo for levado, eu disse
a Olhos-de-Noite.
Mas eu me importo. Preferia no ficar
vinculado a um forjado. Afaste-se, Frio. Rosnou
tanto em esprito como ao meu lado.
Para minha surpresa, o drago cedeu. O meu
companheiro mordiscou o meu ombro. Largue.
Afaste-se disso!
Larguei a pata dianteira do drago. Abri os
olhos, surpreso por descobrir que ainda era noite
minha volta.
O Bobo tinha o brao em volta de Olhos-de-
Noite.
Fitz disse ele em voz baixa. Falou para o
pelo do lobo, mas eu o ouvi com clareza. Fitz,
desculpe. Mas voc no pode jogar fora todas as
suas dores. Se parar de sentir dor
No escutei o resto do que ele disse. Fitei a pata
da frente do drago. Onde as minhas duas mos
repousaram contra a pedra irregular havia agora
duas impresses de palmas. No interior dessas
silhuetas, cada escama mostrava-se delicada e
perfeita. Tudo aquilo, pensei. Tudo aquilo, e este
todo o drago que obtive em troca. Depois pensei
no drago de Veracidade. Era imenso. Como fora
que o fizera? O que contivera em si, durante todos
aqueles anos, para ter o suficiente para dar forma a
um drago como aquele?
O seu tio sente muito. Grandes amores.
Vastas lealdades. s vezes acho que os meus
duzentos e tantos so pouco diante do que ele
sentiu nos seus quarenta e poucos.
Todos nos viramos para Panela. No senti
surpresa. Soubera que ela se aproximava e no me
importara. Ela se apoiava pesadamente em um pau,
e o seu rosto parecia pender dos ossos do crnio.
Olhou-me nos olhos e eu compreendi que ela sabia
de tudo. Ligada por Talento como estava a
Veracidade, ela sabia de tudo.
Desa da. Os trs, antes que se machuquem.
Obedecemos lentamente, e eu fui o mais lento de
todos. As articulaes de Veracidade doam e o
seu corpo estava cansado. Panela me fulminou com
o olhar quando finalmente parei ao lado dela.
Se ia fazer isso, podia ter posto essas coisas
no drago de Veracidade observou ela.
Ele no teria deixado. Vocs no teriam
deixado.
No. No teramos. Deixe-me lhe dizer uma
coisa, Fitz. Voc sentir falta do que deu. Com o
tempo vai recuperar alguns dos sentimentos, claro.
Todas as recordaes esto interligadas e, tal
como a pele de uma pessoa, podem sarar. Com o
tempo, deixadas a si mesmas, essas recordaes
teriam parado de machuc-lo. Um dia voc pode
vir a desejar ser capaz de recordar essa dor.
Acho que no eu disse calmamente, para
esconder as minhas dvidas. Ainda me resta
bastante dor.
Panela ergueu o seu velho rosto para a noite.
Inspirou profundamente pelo nariz.
A alvorada se aproxima disse, como se a
tivesse cheirado. Deve voltar para junto do
drago. Do drago de Veracidade. E vocs dois
a cabea girou para encarar o Bobo e Olhos-de-
Noite. Vocs deviam voltar para aquele ponto
de vigia para ver se as tropas de Majestoso j
esto visveis. Olhos-de-Noite, informe Fitz do
que vir. Vamos, vocs dois. E Bobo. Deixe a
Garota-em-um-Drago em paz depois disso. Voc
teria de lhe dar a sua vida inteira. E, mesmo assim,
poderia no ser suficiente. Assim sendo, pare de
se torturar. E a ela. Vamos, agora!
Eles foram, mas no sem alguns olhares para
trs.
Vamos ordenou-me Panela com uma voz
tensa. Comeou a mancar de volta por onde viera.
Eu a segui, caminhando to rigidamente quanto ela,
atravs das sombras negras e prateadas dos blocos
que cobriam a pedreira. Ela aparentava
inteiramente os seus duzentos e tanto anos. Eu me
sentia ainda mais velho. Corpo dolorido,
articulaes que se prendiam e que rangiam. Ergui
a mo e cocei a orelha. Depois a baixei
precipitadamente, mortificado. Veracidade teria
agora uma orelha prateada. A pele dela j ardia, e
parecia agora que os distantes insetos noturnos
cantavam mais ruidosamente.
A propsito, lamento. Sobre a sua garota,
Moli, e todo o resto. Eu tentei avis-lo.
Panela no parecia lamentar. Mas eu agora
compreendia por qu. Quase todos os seus
sentimentos estavam no drago. Falava do que
sabia que teria sentido, outrora. Ainda sentia dor
por mim, mas j no recordava nenhuma das dores
que tivera para poder comparar com elas essa dor.
Apenas perguntei, em voz baixa:
J no h nada de privado?
S as coisas que escondemos de ns mesmos
respondeu ela com tristeza. Olhou para mim.
O que voc faz esta noite um bem. Uma coisa
bondosa. Seus lbios comearam a sorrir, mas
os olhos se encheram de lgrimas. Dar-lhe uma
ltima noite de juventude e paixo. Examinou-
me, examinou a expresso rgida no meu rosto.
Sendo assim, no direi mais nada sobre isso.
Percorri o resto do caminho ao seu lado em
silncio.
Sentei-me ao lado das brasas quentes da
fogueira da noite anterior, e fiquei vendo a
chegada da alvorada. A estridncia dos insetos
noturnos transformou-se gradualmente nos desafios
matinais de aves distantes. Agora conseguia ouvi-
los muito bem. Era estranho, pensei, estar sentado
espera de mim. Panela nada dizia. Respirou
profundamente o odor em mutao do ar quando a
noite se transformou em alvorada e observou o
clareamento do cu com olhos vidos.
Armazenando tudo para pr no drago.
Ouvi o ranger de botas em pedra e olhei para
cima. Vi a mim mesmo se aproximando. O meu
passo era confiante e vivo, a minha cabea estava
erguida. O meu rosto estava lavado e o cabelo
mido fora alisado para trs, afastado do rosto e
amarrado em um rabo de cavalo de guerreiro.
Veracidade usava bem o meu corpo.
Os nossos olhos se encontraram primeira luz
do dia. Vi os meus olhos se estreitarem quando
Veracidade avaliou o seu prprio corpo. Levantei-
me e, sem pensar, comecei a espanar a roupa.
Ento percebi o que estava fazendo. Aquilo no
era uma camisa que eu pedira emprestada. As
minhas gargalhadas ribombaram, mais ruidosas do
que eu as usava. Veracidade sacudiu para mim a
minha cabea.
Deixe estar, rapaz. No h maneira de
melhor-lo. E seja como for, j quase acabei com
ele. Bateu no meu peito com a palma da minha
mo. J tive um corpo como este disse-me,
como se eu no soubesse. J esqueci tanto da
sensao que isso dava. Tanto. O sorriso
desapareceu do seu rosto quando me viu olhando-o
com os seus prprios olhos. Cuide dele, Fitz.
Voc s tem um. Que possa ficar com ele, pelo
menos.
Uma onda de vertigem. A escurido se fechou,
vindo das bordas do meu campo de viso, e eu
dobrei os joelhos e desci para evitar cair.
Lamento disse Veracidade em voz baixa, e
foi com a sua prpria voz.
Ergui os olhos para encontr-lo me olhando.
Olhei-o sem palavras. Conseguia sentir o cheiro
de Kettricken na minha pele. O meu corpo estava
muito cansado. Conheci um momento de completo
ultraje. Ento a emoo atingiu o clmax e caiu,
como se exigisse esforo demais. Os olhos de
Veracidade encontraram-se com os meus e
aceitaram tudo o que eu sentia.
No vou nem lhe pedir desculpas, nem lhe
agradecer. Nem uma coisa nem outra seria
adequada. Sacudiu a cabea para si mesmo.
E, na verdade, como poderia dizer que lamento?
No lamento. Afastou os olhos de mim, olhou
por cima da minha cabea. Meu drago ir se
erguer. A minha rainha ter um filho. Eu afastarei
os Navios Vermelhos da nossa costa. Respirou
fundo. No. No lamento a nossa troca. Seus
olhos voltaram para mim. FitzCavalaria. Voc
lamenta?
Lentamente, levantei-me.
No sei. Tentei decidir. As razes so
muito profundas acabei por dizer. Por onde
comearia a desfazer o meu passado? At onde
teria de chegar, quanto teria de mudar para alterar
isto, ou para dizer agora que no lamentava?
A estrada est vazia abaixo de ns. Olhos-de-
Noite falou na minha mente.
Eu sei. Panela tambm sabe. Ela s procurou
alguma coisa para manter o Bobo ocupado e
mandou voc com ele para mant-lo a salvo.
Agora pode voltar.
Oh. Voc est bem?
FitzCavalaria. Voc est bem? Havia
preocupao na voz de Veracidade. Mas ela no
conseguia esconder por completo o triunfo que
tambm se encontrava ali.
Claro que no disse a ambos. Claro
que no. Afastei-me do drago.
Atrs de mim, ouvi Panela perguntar
impacientemente:
Estamos prontos para lhe dar vida?
A suave voz de Veracidade projetou-se at os
meus ouvidos.
No. Ainda no. Quero ter estas recordaes
para mim por algum tempo. Por um momento,
quero permanecer um homem.
Quando atravessei o acampamento, Kettricken
saiu da tenda. Usava a mesma tnica e cala
desgastadas pela viagem que usara no dia anterior.
O cabelo estava preso atrs da cabea em uma
trana curta e espessa. Havia ainda rugas na sua
testa e nos cantos da boca. Mas o seu rosto
continha a quente luminescncia das melhores
prolas. Uma f renovada brilhava nela. Respirou
fundo o ar da manh e sorriu para mim, radiante.
Passei depressa por ela.
A gua do riacho estava muito fria. speros
macios de cavalinha cresciam ao longo de uma
das margens. Usei mos cheias da erva para me
esfregar. A minha roupa molhada estava enrolada
nos arbustos do outro lado do riacho. O calor do
dia prometia que em breve estaria seca. Olhos-de-
Noite sentou-se na margem e me observou com
uma ruga entre os olhos.
No compreendo. Voc no cheira mal.
Olhos-de-Noite. V caar. Por favor.
Quer ficar sozinho?
Tanto quanto isso ainda seja possvel.
Ele levantou-se e se espreguiou, fazendo-me
uma mesura baixa ao mesmo tempo. Um dia,
seremos s ns dois. Caaremos, comeremos e
dormiremos. E voc ficar curado.
Que ambos vivamos para ver isso, concordei,
de todo o corao.
O lobo esgueirou-se por entre as rvores.
Experimentalmente, esfreguei as marcas de dedo
do Bobo que tinha no pulso. Elas no saram, mas
aprendi muito sobre o ciclo de vida da cavalinha.
Desisti. Cheguei concluso de que podia
arrancar a pele toda sem que isso fizesse com que
me sentisse livre do que acontecera. Sa do riacho,
sacudindo a gua enquanto o fazia. Tinha a roupa
suficientemente seca para vesti-la de novo. Sentei-
me na margem para calar as botas. Quase pensei
em Moli e em Bronco, mas logo deixei a imagem
de lado. Preferi perguntar a mim mesmo quo
depressa chegariam os soldados de Majestoso, e
se Veracidade teria o drago concludo antes
disso. Talvez j estivesse terminado. Eu ia querer
v-lo.
Queria ainda mais estar sozinho.
Deitei-me na grama e ergui os olhos para o cu
azul. Tentei sentir alguma coisa. Terror, excitao,
ira. dio. Amor. Mas s me senti confuso. E
cansado. Fatigado de carne e de esprito. Fechei
os olhos ao brilho do cu.
As notas de harpa caminharam em conjunto com
os sons do riacho correndo. Fundiram-se com eles,
ento se afastaram danando. Abri os olhos para
os sons e olhei Esporana de soslaio. Estava
sentada na margem do riacho, ao meu lado, e
tocava. Tinha o cabelo cado, secando em ondas
pelas costas abaixo ao sol. Tinha um caule de
capim verde na boca e os seus ps nus
aconchegavam-se relva macia. Cruzou o olhar
com o meu, mas nada disse. Eu observei as suas
mos tocando as cordas. A mo esquerda
trabalhava mais, compensando a rigidez nos dois
ltimos dedos. Eu devia ter sentido alguma coisa a
esse respeito. No sabia o qu.
Para que servem os sentimentos? No
sabia que tinha aquela pergunta a fazer at que a
verbalizei.
Os dedos dela pairaram sobre as cordas. Franziu
a testa para mim.
No acho que haja uma resposta para essa
pergunta.
No ando encontrando respostas para quase
nada nos ltimos tempos. Por que voc no est na
pedreira, vendo-os completar o drago? Isso sem
dvida material de onde poder brotar uma
cano.
Porque estou aqui com voc disse ela,
simplesmente. Depois sorriu. E porque todos os
outros parecem estar atarefados. Panela dorme.
Kettricken e Veracidade Ela estava penteando o
cabelo quando sa. Acho que eu nunca tinha visto o
Rei Veracidade sorrir. Quando o faz, parece-se
muito com voc, ao redor dos olhos. Enfim. No
acho que sentiro a minha falta.
E o Bobo?
Ela sacudiu a cabea.
Lasca a pedra em volta da Garota-em-um-
Drago. Eu sei que ele no devia, mas no acho
que consiga parar. E no conheo nenhuma
maneira de for-lo.
No acho que ele possa ajud-la. Mas
tambm no acho que consiga resistir a tentar.
Apesar da sua lngua rpida, ele tem uma natureza
compassiva.
Eu sei. Agora. Em certos aspectos, acabei
por conhec-lo muito bem. Em outros, ser sempre
incompreensvel para mim.
Respondi quilo com um aceno silencioso. O
silncio durou um minuto. Ento, sutilmente,
transformou-se em um tipo diferente de silncio.
Na verdade disse Esporana com
desconforto , o Bobo sugeriu que eu devia vir
sua procura.
Soltei um gemido. Perguntei-me quanto ele lhe
teria contado.
Lamento saber o que aconteceu com Moli
comeou.
Mas no est surpresa conclu. Ergui o
brao e tapei os olhos com ele, para bloquear a luz
do sol.
No. Ela falava em voz baixa. No
estou surpresa. Procurou alguma coisa para
dizer. Pelo menos voc sabe que est em
segurana e que tem quem cuide dela disse.
Eu sabia. Envergonhei-me por encontrar no fato
to pouco conforto. Coloc-lo no drago ajudara,
da mesma forma que cortar um membro infectado
ajudava. Livrar-me dele no era a mesma coisa
que ficar curado. O lugar vazio dentro de mim
coava. Talvez eu quisesse sofrer. Observei-a da
sombra do meu brao.
Fitz disse ela em voz baixa. Eu lhe
pedi uma vez, por voc. Com gentileza e amizade.
Para afastar uma recordao. Tirou os olhos de
mim, perdeu-os na luz do sol que cintilava no
riacho. Agora ofereo o mesmo disse, com
humildade.
Mas eu no amo voc eu disse
honestamente. E nesse mesmo instante compreendi
que era a pior coisa que poderia ter dito naquele
momento.
Esporana suspirou e deixou a harpa de lado.
Eu sei disso. Voc tambm sabe. Mas no era algo
que precisasse ser dito neste momento.
E eu sei disso. Agora. s que no quero
nenhuma mentira, dita ou no
Ela inclinou-se para mim e parou a minha boca
com a dela. Passado algum tempo, ergueu um
pouco o rosto.
Sou uma menestrel. Sei mais sobre mentir do
que voc jamais descobrir. E os menestris
sabem que s vezes de mentiras que um homem
mais precisa. Para fazer delas uma nova verdade.
Esporana comecei.
Voc sabe que s vai dizer a coisa errada
disse ela. Portanto, por que no se cala durante
algum tempo? No torne isso complicado. Pare de
pensar, s por um momento.
Na verdade, foi mais do que um momento.
Quando acordei, ela ainda estava deitada,
quente, encostada ao meu flanco. Olhos-de-Noite
estava de p sobre ns, olhando-me, arquejando
com o calor do dia. Quando abri os olhos, ele
encolheu as orelhas para trs e deu uma lenta
sacudida com a cauda. Uma gota de saliva quente
caiu no meu brao.
V embora.
Os outros esto chamando voc. E sua
procura. Inclinou a cabea para mim e sugeriu: Eu
podia mostrar a Kettricken onde encontr-lo.
Sentei-me e esmaguei trs mosquitos no peito.
Deixaram manchas de sangue. Estendi a mo para
a camisa. H algo errado?
No. Esto prontos para despertar o drago.
Veracidade quer lhe dizer adeus.
Sacudi suavemente Esporana.
Acorde. Seno no ver Veracidade
despertando o drago.
Ela se mexeu, com preguia.
Por isso, vou me levantar. No consigo
imaginar mais nada que me acordasse. Alm disso,
pode ser a minha ltima chance de conseguir uma
cano. O destino determinou que eu esteja sempre
em outro lugar quando voc faz alguma coisa
interessante.
Tive de sorrir quilo.
Ento. No vai fazer canes sobre o
Bastardo de Cavalaria, afinal? provoquei.
Talvez uma. Uma cano de amor.
Concedeu-me um ltimo sorriso secreto. Essa
parte, pelo menos, foi interessante.
Levantei-me e a coloquei de p. Beijei-a. Olhos-
de-Noite ganiu a sua impacincia, e ela se virou
rapidamente nos meus braos. Olhos-de-Noite
espreguiou-se e lhe fez uma longa mesura.
Quando voltou a se virar para mim, os olhos dela
estavam arregalados.
Eu lhe avisei disse-lhe.
Ela apenas riu e abaixou-se para apanhar a
roupa.
CAPTULO 39

O Drago de Veracidade

Tropas dos Seis Ducados jorraram para Lago


Azul e embarcaram para a outra margem e para
o Reino da Montanha precisamente nos dias em
que os Navios Vermelhos abriam violentamente
caminho pelo Rio Vim acima at Vaudefeira. Esta
nunca fora uma cidade fortificada. Embora as
novas sobre a vinda dos navios os tivessem
precedido por mensageiro rpido, a notcia foi
recebida com um desdm generalizado. Que
ameaa constituam doze navios de brbaros
para uma cidade to grande como Vaudefeira? A
Guarda da Cidade foi posta em alerta, e alguns
dos mercadores ribeirinhos tomaram medidas
para tirar os seus bens de armazns situados
perto da gua, mas a atitude geral era de que se
eles conseguissem chegar to longe como
Vaudefeira, os arqueiros iriam abater os
Salteadores facilmente antes de terem tempo de
causar danos reais. O consenso geral era que os
navios deviam trazer alguma oferta de tratado ao
Rei dos Seis Ducados. Houve muita discusso
sobre que extenso dos Seis Ducados eles
pediriam que lhes fosse cedida e sobre o possvel
valor de se reabrir o comrcio com as Ilhas
Externas propriamente ditas, sem falar em
restaurar o fluxo comercial ao longo de Rio
Cervo.
Esse apenas mais um exemplo dos erros que
podem ser cometidos quando se pensa que se
sabe o que o inimigo deseja e se age de acordo.
O povo de Vaudefeira atribuiu aos Navios
Vermelhos o mesmo desejo de prosperidade e
abundncia que ele mesmo sentia. Basear a
avaliao dos Navios Vermelhos nesse motivo foi
um erro grave.

No creio que Kettricken aceitara a ideia de que


Veracidade tinha de morrer para que o drago
despertasse at o momento em que ele lhe deu o
beijo de despedida. Beijou-a cheio de cuidado,
com as mos e braos bem afastados dela, a
cabea inclinada para que nenhuma mancha de
prata lhe tocasse o rosto. Apesar de tudo isso, foi
um beijo terno, um beijo vido e prolongado. Ela
agarrou-se por mais um momento. Ento ele lhe
disse alguma coisa em voz baixa. Ela ps
imediatamente as mos no baixo ventre.
Como pode ter certeza? perguntou-lhe,
embora as lgrimas comeassem a lhe escorrer
pelo rosto abaixo.
Eu sei disse ele com firmeza. E por
isso a minha primeira tarefa tem de ser lev-la de
volta para Jhaampe. Desta vez, voc precisa ser
mantida a salvo.
O meu lugar no Castelo de Torre do Cervo
protestou ela.
Eu pensei que ele discutiria. No entanto, disse:
Tem razo. . E ser para l que a levarei.
Adeus, meu amor.
Kettricken no respondeu. Ficou vendo-o se
afastar, com uma intensa expresso de
incompreenso no rosto.
Apesar de todos os dias que havamos passado
nos esforando para conseguir precisamente
aquilo, o fim pareceu apressado e desordenado.
Panela andara rigidamente de um lado para o outro
perto do drago. Dissera adeus a todos ns com
um ar distrado. Agora vacilava ao lado do
drago, respirando como se tivesse acabado de
fazer uma corrida. No parava de tocar o drago,
uma carcia com a ponta de um dedo, uma mo que
se arrastava. A cor ondulava na esteira do seu
toque e permanecia, desaparecendo lentamente.
Veracidade teve mais cuidado com as suas
despedidas. Esporana exortou:
Cuide da minha senhora. Cante bem e
fielmente as suas canes e no deixe nunca que
algum duvide de que o beb que ela espera
meu. Encarrego-lhe dessa verdade, menestrel.
Darei o melhor de mim, meu rei
respondeu Esporana com gravidade. Foi se
colocar ao lado de Kettricken. Ia acompanhar a
rainha montada no largo dorso do drago. No
parava de limpar a umidade das palmas das mos
na parte da frente da tnica e de se assegurar de
que a trouxa em que transportava a harpa estava
bem presa s suas costas. Dirigiu-me um sorriso
nervoso. Nenhum de ns precisava de mais
despedidas do que essa.
Houvera um certo furor com respeito minha
deciso de ficar.
As tropas de Majestoso aproximam-se a cada
momento que passa lembrou-me Veracidade
mais uma vez.
Ento deve se apressar, para que eu no
esteja nesta pedreira quando eles chegarem
lembrei-lhe.
Ele franziu o cenho ao ouvir aquilo.
Se eu vir alguns dos soldados de Majestoso
na estrada, cuidarei para que eles no cheguem at
aqui sugeriu.
No corra riscos com a minha rainha
lembrei-lhe.
Olhos-de-Noite era a minha desculpa para ficar.
Ele no tinha qualquer desejo de montar um
drago. Eu no podia abandon-lo. No tenho
certeza se Veracidade conhecia os verdadeiros
motivos. Eu no achava que devia regressar a
Cervo. J obrigara Esporana a me prometer que
no haveria nenhuma meno sobre mim nas
canes. No fora uma promessa fcil de arrancar
de uma menestrel. Mas eu insistira. No queria que
Bronco e Moli soubessem que eu ainda estava
vivo.
Nisto, querido amigo, voc foi Sacrifcio
dissera-me Kettricken em voz baixa. No podia me
fazer maior elogio. Sabia que nem uma palavra
sobre mim atravessaria os seus lbios.
O Bobo era quem estava sendo difcil. Todos
insistimos para que fosse com a rainha e a
menestrel. Ele recusou com consistncia.
O Profeta Branco permanecer com o
Catalisador era tudo o que dizia. Pessoalmente,
eu acreditava que era mais o caso de o Bobo
permanecer com a Garota-em-um-Drago. Ele se
tornara obcecado com ela e isso me assustava.
Teria de deix-la antes dos soldados de Majestoso
chegarem pedreira. Eu lhe dissera isso em
particular, e ele assentira facilmente, mas com um
ar distrado. No duvidava de que ele tinha seus
prprios planos. Acabara-se o tempo para
discutirmos com ele.
Ento chegou um momento em que deixou de
restar motivo para que Veracidade se demorasse.
Pouco tnhamos dito um ao outro, mas eu sentia
que havia pouco que pudssemos dizer. Tudo o
que acontecera agora me parecia inevitvel. Era
como o Bobo dissera. Olhando para trs, eu
conseguia ver onde as suas profecias havia muito
nos empurraram para aquele canal. Ningum podia
ser culpado. Ningum podia ficar sem culpas.
Ele me fez um aceno com a cabea antes de se
virar e caminhar para o drago. Ento parou de
repente. Quando se virou para trs, estava
desafivelando o seu desgastado cinturo da
espada. Aproximou-se de mim, enrolando o cinto
em volta da bainha enquanto caminhava, sem
apert-lo.
Fique com a minha espada disse
abruptamente. No vou precisar dela. E voc
parece ter perdido a ltima que lhe dei. Parou
de repente no meio de um passo, como se estivesse
reconsiderando. Desembainhou a espada depressa.
Passou uma ltima vez uma mo de prata pela
lmina, deixando-a brilhando aps o toque. A voz
lhe soou spera quando disse: Seria fraca
cortesia percia de Hode oferecer isto com uma
lmina cega. Cuide melhor dela do que eu, Fitz.
Voltou a embainh-la e a entregou a mim. Os seus
olhos cruzaram-se com os meus quando a aceitei.
E tome melhor cuidado de voc do que eu. Eu
realmente o amei, sabia? disse bruscamente.
Apesar de tudo o que lhe fiz, eu o amei.
A princpio no consegui encontrar resposta
para lhe dar. Ento, quando ele estendeu as mos
para o drago e as pousou na sua testa, disse-lhe:
Eu nunca duvidei. Nunca duvide que eu o amei.
Acho que nunca esquecerei aquele ltimo
sorriso por cima do ombro. Os seus olhos
dirigiram-se uma ltima vez para a sua rainha.
Empurrou firmemente as mos contra a cabea
esculpida do drago. Ficou observando-a enquanto
partia. Por um instante, consegui sentir o cheiro da
pele de Kettricken, recordar o sabor da sua boca
na minha, o suave calor dos seus ombros nus
agarrados pelas minhas mos. Mas logo a tnue
recordao desapareceu, Veracidade desapareceu
e Panela desapareceu. Para a minha Manha e para
o meu Talento, sumiram to completamente como
se tivessem sido forjados. Durante um instante
enervante, vi o corpo vazio de Veracidade. Ento
ele fluiu para dentro do drago. Panela estivera
encostada no ombro da esttua. Desapareceu mais
depressa do que Veracidade, espalhando-se pelas
escamas como turquesa e prata. A cor inundou a
criatura e espalhou-se por ela. Ningum respirou,
exceto que Olhos-de-Noite ganiu levemente. Uma
grande quietude prolongou-se sob o sol de vero.
Ouvi Kettricken soltar um nico soluo
estrangulado.
Ento, como um vento sbito, o grande corpo
escamoso encheu os pulmes de ar. Os seus olhos,
quando os abriu, eram negros e brilhantes, os
olhos de um Visionrio, e eu soube que
Veracidade olhava por eles. Ergueu a grande
cabea no topo do seu pescoo sinuoso.
Espreguiou-se como um gato, dobrando e rolando
ombros reptilianos e estendendo garras. Quando
puxou para trs as patas, as garras abriram
profundos sulcos na pedra negra. De repente, como
uma vela que captura o vento, as imensas asas
desdobraram-se. Agitou-as, um falco arrumando a
plumagem, e voltou a dobr-las bem justas ao
corpo. A cauda chicoteou uma nica vez, atirando
ao ar poeira de rocha e cascalho. A grande cabea
virou-se, com os olhos exigindo que estivssemos
to contentes com aquela nova identidade como
ele estava.
Veracidade-enquanto-Drago avanou para se
apresentar sua rainha. A cabea que abaixou at
ela tornava-a insignificante. Vi todo o reflexo de
Kettricken em um cintilante olho negro. Ento
abaixou um ombro para ela, pedindo-lhe para
montar.
Por um instante, o pesar controlou o rosto dela.
Ento Kettricken respirou fundo e tornou-se rainha.
Avanou, destemida. Ps a mo no brilhante
ombro azul de Veracidade. As suas escamas eram
escorregadias, e ela deslizou um pouco quando
subiu no seu dorso e depois se arrastou para frente
at onde podia lhe envolver o pescoo com as
pernas. Esporana me lanou um olhar de terror e
espanto e seguiu mais lentamente a rainha. Vi-a
tomar o seu lugar atrs de Kettricken e verificar
uma vez mais se a trouxa com a harpa estava bem
presa s suas costas.
Kettricken ergueu um brao em despedida para
ns. Gritou alguma coisa, mas as palavras
perderam-se no vento das asas do drago, que se
abriam. Bateu-as uma, duas, trs vezes, como que
para experiment-las. Poeira e cascalho picaram o
meu rosto e Olhos-de-Noite encostou-se bem
grudado na minha perna. O drago abaixou-se
enquanto preparava as grandes patas sob o corpo.
As grandes asas turquesa voltaram a bater e ele
saltou de repente. No foi uma descolagem
graciosa, e ele oscilou um pouco ao levantar voo.
Vi Esporana agarrar-se desesperadamente a
Kettricken, mas Kettricken inclinou-se para frente
contra o pescoo do drago, gritando
encorajamentos. Em quatro batimentos, as asas o
fizeram percorrer metade do comprimento da
pedreira. Ganhou altitude, descrevendo um crculo
por cima das colinas e rvores que rodeavam a
pedreira. Vi-o inclinar as asas e virar para
inspecionar a estrada do Talento que levava
pedreira. Ento as asas comearam a bater a um
ritmo regular, levando-o cada vez para mais alto.
A sua barriga era de um branco azulado, como a
de um lagarto. Apertei os olhos para v-lo contra o
cu de vero. Ento, como se fosse uma flecha azul
e prateada, desapareceu, dirigindo-se a toda a
velocidade para Cervo. Fiquei olhando o cu
durante muito tempo depois de ele desaparecer da
minha vista.
Por fim, exalei. Estava tremendo. Limpei os
olhos na manga e virei-me para o Bobo. Que
desaparecera.
Olhos-de-Noite! Onde est o Bobo?
Ns dois sabemos para onde ele foi. No
preciso gritar.
Eu sabia que ele tinha razo. Mas no conseguia
negar a urgncia que sentia. Corri pela rampa de
pedra abaixo, deixando o estrado vazio atrs de
mim.
Bobo? gritei quando cheguei tenda. At
parei para olhar l para dentro, esperando que ele
pudesse estar guardando aquilo que precisvamos
levar conosco. No sei por que me permiti uma
esperana to tola.
Olhos-de-Noite no esperara. Quando cheguei
Garota-em-um-Drago, ele j se encontrava l.
Estava pacientemente sentado, com a cauda
cuidadosamente enrolada em volta das patas,
olhando para o Bobo. Diminu o passo quando o
vi. A minha premonio de perigo desapareceu.
Estava sentado na borda do estrado, com os ps
pendurados, a cabea encostada na perna do
drago. A superfcie do estrado estava coberta de
lascas novas, provenientes da atividade do dia.
Caminhei na sua direo. Os seus olhos estavam
erguidos para o cu, e a expresso no seu rosto era
melanclica. Em contraste com a pele de um verde
vivo do drago, o Bobo j no era branco, mas do
mais plido dos dourados. Havia at uma
tonalidade alourada no seu cabelo fino e sedoso.
Os olhos que virou para mim eram de um topzio
claro. Sacudiu a cabea muito lentamente na minha
direo, mas no falou at eu me encostar no
pedestal do drago.
Estive com esperana. No consegui evitar a
esperana. Mas vi hoje o que precisa ser posto em
um drago para que ele possa voar. Sacudiu a
cabea mais energicamente. E mesmo se eu
tivesse o Talento para dar essas coisas, no as
possuo para dar. Mesmo se ela consumisse tudo o
que sou, no seria suficiente.
Eu no disse que sabia que seria assim. Nem
mesmo disse que sempre suspeitara. Finalmente eu
aprendera alguma coisa com Esporana Cantodave.
Deixei-o ter um silncio durante algum tempo.
Ento disse:
Olhos-de-Noite e eu vamos buscar duas
jepas. Quando eu voltar, melhor fazermos
rapidamente a trouxa e irmos embora. No vi
Veracidade perseguir nada. Isso talvez queira
dizer que as tropas de Majestoso ainda esto
distantes. Mas no quero correr quaisquer riscos.
Ele respirou fundo.
Isso sensato. Est na hora deste Bobo ser
sensato. Quando voc voltar, eu o ajudo a embalar
as coisas.
Percebi ento que ainda tinha a espada de
Veracidade na mo. Tirei a simples espada curta
que usara e substitu-a pela arma que Hode fizera
para Veracidade. Tinha um peso estranho contra
mim. Ofereci a espada curta ao Bobo.
Quer isto?
Ele me lanou um olhar intrigado.
Para qu? Sou um Bobo, no um matador.
Nunca sequer aprendi a usar uma coisa dessas.
Deixei-o ali, para fazer as suas despedidas.
Quando ziguezagueamos para fora da pedreira e
para os bosques onde havamos pastoredo as
jepas, o lobo ergueu o focinho e farejou.
Nada resta de Cedoura alm de um cheiro
ruim, observou ele quando passamos pela
vizinhana do cadver.
Suponho que devamos t-lo enterrado
disse, tanto para mim como para ele.
No faz sentido enterrar carne que j
apodreceu, observou ele, intrigado.
Passei pelo pilar negro, mas no sem um
pequeno estremecimento. Encontrei as nossas
jepas dispersas em um prado que cobria a encosta
de uma colina. Mostraram-se mais relutantes em
ser apanhadas do que eu esperara. Olhos-de-Noite
divertiu-se consideravelmente mais reunindo-as do
que elas ou eu. Escolhi a lder das jepas e mais
uma, mas quando as levei, as outras decidiram nos
seguir tambm. Devia ter contado com isso.
Esperara que as outras ficassem e se tornassem
selvagens. No apreciava a ideia de levar seis
jepas atrs de mim o caminho inteiro at Jhaampe.
Uma nova ideia me ocorreu quando as fazia passar
pelo pilar e para o interior da pedreira.
No tinha de regressar a Jhaampe.
A caa l a melhor que j encontrei.
Temos de pensar tambm no Bobo, no s em
ns.
No deixarei que ele passe fome!
E quando o inverno chegar?
Quando o inverno chegar, ento Ele est
sendo atacado!
Olhos-de-Noite no esperou por mim. Passou
por mim como um raio, cinzento e baixo, raspando
a pedra negra do cho da pedreira com as garras
enquanto corria. Larguei as jepas e corri atrs
dele. O focinho do lobo me informou sobre um
odor humano no ar. Um instante mais tarde, ele
identificara Emaranhado enquanto se precipitava
na sua direo.
O Bobo no abandonara a Garota-em-um-
Drago. Fora ali que Emaranhado o encontrara.
Devia ter se aproximado discretamente, pois nunca
era fcil apanhar o Bobo desprevenido. Era
possvel que a sua obsesso o tivesse trado.
Qualquer que fosse o caso, Emaranhado
conseguira dar o primeiro golpe. Corria sangue
pelo brao do Bobo e lhe pingava das pontas dos
dedos. Ele deixara manchas de sangue por todo o
drago quando subira em cima dele. Agora estava
empoleirado, com os ps apertados contra os
ombros da garota e uma mo agarrada ao maxilar
inferior escancarado do drago. Na mo livre tinha
a faca. Fitava Emaranhado ameaadoramente,
esperando. O Talento projetava-se, fervente, de
um Emaranhado furioso e frustrado.
Emaranhado subira no estrado e estava agora
tentando subir no drago propriamente dito
enquanto se esforava para estender a mo e impor
um toque de Talento ao Bobo. A pele de escamas
lisas o estava frustrando. S algum to gil como
o Bobo poderia ter escalado at o local em que se
empoleirava logo fora do alcance de Emaranhado.
Emaranhado puxou a espada, frustrado, e a brandiu
contra os ps apertados do Bobo. A ponta errou,
mas no por muito, e a lmina ressoou contra as
costas da garota. O Bobo gritou to alto como se a
lmina o tivesse realmente atingido e tentou subir
ainda mais. Vi a sua mo escorregar onde o seu
prprio sangue lubrificara a pele do drago. Em
seguida, ele escorregou, tentando freneticamente
agarrar-se at cair com fora atrs do local onde a
garota se sentava no dorso do drago. Vi a sua
cabea se chocar no ombro dela. Pareceu meio
atordoado e agarrou-se onde se encontrava.
Emaranhado levantou a espada para um segundo
golpe, um golpe que poderia facilmente separar a
perna do Bobo do seu corpo. Mas, to inaudvel
como o dio pode ser, o lobo saltou para o estrado
e apanhou Emaranhado por trs. Eu ainda corria
para eles quando vi o impacto de Olhos-de-Noite
atirar Emaranhado para frente, fazendo-o colidir
com a Garota-em-um-Drago. Caiu de joelhos ao
lado da esttua. O golpe de espada errou o Bobo e
voltou a ressoar contra a cintilante pele verde do
drago. Ondulaes de cor afastaram-se ligeiras
dessa coliso de metal e pedra, como as ondas que
surgem quando se atira um seixo em uma lagoa de
guas paradas.
Cheguei ao estrado no momento em que Olhos-
de-Noite atirava a cabea em frente. As suas
mandbulas se fecharam, agarrando Emaranhado
por trs, entre o ombro e o pescoo. Emaranhado
gritou, com uma voz que se tornou espantosamente
estridente. Deixou cair a espada e ergueu as mos
para se agarrar s vorazes mandbulas do lobo.
Olhos-de-Noite sacudiu-o como um coelho. Ento
o lobo firmou as patas da frente nas largas costas
de Emaranhado e assegurou-se melhor de t-lo
agarrado.
H coisas que acontecem depressa demais para
contar bem. Senti Vontade atrs de mim no mesmo
momento em que a violenta borrifada de sangue de
Emaranhado se transformava num sbito jorro.
Olhos-de-Noite cortara-lhe a grande veia da
garganta, e a vida de Emaranhado era bombeada
para o exterior em jorros escarlates. Para voc,
irmo!, disse Olhos-de-Noite ao Bobo. Esta morte
para voc! Mesmo assim, Olhos-de-Noite no o
largou, e voltou a sacudi-lo. O sangue saltou como
uma fonte enquanto Emaranhado lutava, sem saber
que j estava morto. O sangue atingiu a pele
brilhante do drago e escorreu por ela abaixo,
para ir se acumular nas depresses que o Bobo
cinzelara ao tentar libertar as suas patas e cauda. E
ali o sangue borbulhou e fumegou, devorando a
pedra como a gua escaldante teria corrodo um
pedao de gelo. As escamas e garras das patas
traseiras do drago foram reveladas, o detalhe da
cauda semelhante a um chicote foi exposto. E
quando Olhos-de-Noite finalmente atirou ao cho
o corpo sem vida de Emaranhado, as asas do
drago se abriram.
A Garota-em-um-Drago ergueu-se no ar como
lutara para fazer durante tanto tempo. Pareceu
erguer-se sem esforo, quase como se flutuasse
para longe. O Bobo foi levado com ela. Vi-o
inclinar-se para frente, agarrando-se
instintivamente cintura elstica da garota que
estava na sua frente. O rosto estava virado para
longe de mim. Vislumbrei os olhos sem expresso
e a boca imvel no rosto da garota. Era possvel
que os seus olhos vissem, mas ela no era mais
separada do drago do que a cauda ou a asa;
meramente outro apndice, um apndice ao qual o
Bobo se agarrava enquanto ambos se erguiam cada
vez mais alto.
Vi todas essas coisas, mas no porque parasse
para olhar. Vi-as em vislumbres e atravs dos
olhos do lobo. O meu olhar foi virado para
Vontade quando ele se aproximou correndo por
trs de mim. Trazia uma lmina desembainhada na
mo e corria com facilidade. Puxei a espada de
Veracidade quando me virei, e descobri que ela
levava mais tempo para sair da bainha do que a
espada curta a que me habituara.
A fora do Talento de Vontade me atingiu em
uma onda de bofetadas no preciso instante em que
a ponta da arma de Veracidade se soltava da
bainha. Dei um passo cambaleante para trs e
ergui as muralhas contra ele. Ele me conhecia bem.
Aquela primeira onda era composta no apenas de
medo, mas tambm de dores especficas. Haviam
sido preparadas especialmente para mim.
Experimentei mais uma vez o choque do nariz
quebrado, senti a queimadura do rosto cortada,
mesmo que ela no fazia escorrer sangue quente
pelo peito abaixo como fizera outrora. Durante um
segundo glido, nada pude fazer a no ser manter
as muralhas erguidas contra aquela dor debilitante.
A espada em que segurava pareceu subitamente ser
feita de chumbo. Ficou frouxa na minha mo e a
ponta baixou para a terra.
A morte de Emaranhado me salvou. No momento
em que Olhos-de-Noite atirou o seu corpo sem
vida para o cho, vi essa morte bater contra
Vontade. Os seus olhos quase se fecharam com o
impacto. O ltimo membro do seu crculo havia
partido. Senti Vontade diminuir de repente, no s
porque o Talento de Emaranhado j no
suplementava o seu, mas por ser dominado pela
dor. Encontrei na minha mente uma imagem do
cadver apodrecido de Cedoura e a atirei contra
ele, para garantir. Ele cambaleou para trs.
Voc fracassou, Vontade! Cuspi as
palavras. O drago de Veracidade j acordou.
Neste exato momento, voa na direo de Cervo. A
sua rainha o monta e ela carrega dentro de si o seu
herdeiro. O legtimo rei ir reclamar trono e
coroa, ir varrer das costas os Navios Vermelhos
e expulsar as tropas de Majestoso das Montanhas.
No importa o que voc fizer aqui e agora, est
derrotado. Um estranho sorriso retorceu a
minha boca. Ganhei. Rosnando, Olhos-de-
Noite avanou para se pr ao meu lado.
Ento o rosto de Vontade mudou. Majestoso me
olhou atravs dos seus olhos. Estava to
impassvel com a morte de Emaranhado como
estaria com a de Vontade. No detectei qualquer
pesar, s ira pela diminuio do seu poder.
Talvez disse ele com a voz de Vontade ,
talvez, nesse caso, eu no deva me preocupar com
mais nada alm de mat-lo, Bastardo. A qualquer
custo. Sorriu para mim, um sorriso de um
homem que sabe o resultado que os dados daro
antes de eles pararem. Experimentei um momento
de incerteza e medo. Ergui mais alto as minhas
muralhas contra as tticas insidiosas de Vontade.
Acha mesmo que um espadachim caolho tem
alguma chance contra a minha arma e o meu lobo,
Majestoso? Ou ser que voc planeja jogar fora a
vida dele com tanta indiferena como jogou as do
resto do crculo? Atirei a pergunta na leve
esperana de despertar a discrdia entre eles.
E por que no? perguntou-me Majestoso
calmamente com a voz de Vontade. Ou ser que
voc pensa que eu fui realmente to estpido como
o meu irmo e me contentei s com um crculo?
Uma onda de Talento me atingiu com a fora de
uma muralha de gua. Cambaleei para trs diante
dela, mas ento recuperei o equilbrio e investi
contra Vontade. Teria de mat-lo depressa.
Majestoso tinha o controle do Talento de Vontade.
Pouco se importava com o que isso faria a
Vontade, como o queimaria se me matasse com
uma exploso de Talento. Conseguia senti-lo
absorvendo poder de Talento. Porm, mesmo
enquanto dedicava toda a minha energia a matar
Vontade, as palavras de Majestoso me corroam.
Outro crculo?
Caolho ou no, Vontade era rpido. A sua
lmina era parte dele quando ele parou e desviou a
minha primeira estocada. Por um instante, desejei
a familiaridade da minha velha espada curta. Ento
afastei tais pensamentos por serem inteis e pensei
apenas em ultrapassar a sua guarda. O lobo passou
rapidamente por mim, de barriga baixa, ao
procurar se aproximar de Majestoso pelo lado
cego de Vontade.
Trs novos crculos! A voz de Vontade
arquejou de esforo quando voltou a aparar a
minha arma. Esquivei-me da sua estocada e tentei
fazer a sua lmina girar. Ele era rpido demais
para isso.
Utilizadores de Talento jovens e fortes. Para
esculpir drages meus. Um golpe lateral cuja
brisa senti. Drages s minhas ordens, leais a
mim. Drages para derrubar Veracidade, em
sangue e escamas. Ele rodopiou e desferiu uma
estocada contra Olhos-de-Noite. O lobo deu um
grande salto para trs. Eu saltei em frente, mas a
sua lmina j regressara para se cruzar com a
minha. Lutava com uma velocidade incrvel. Outro
uso para o Talento? Ou uma iluso de Talento que
forava em mim?
Depois, varrero os Navios Vermelhos. Por
mim. E abriro as passagens da Montanha. As
Montanhas tambm sero minhas. Serei um heri.
Ningum se opor a mim ento. A lmina dele
atingiu a minha com fora, uma sacudida que senti
no ombro. As suas palavras tambm me sacudiam.
Ressoavam com verdade e determinao. Imbudas
de Talento, batiam contra mim com a fora slida
da impotncia. Dominarei a estrada do Talento.
A cidade antiga ser a minha nova capital. Todos
os meus utilizadores de Talento sero mergulhados
na magia do rio.
Outro golpe contra Olhos-de-Noite. Cortou-lhe
um punhado de pelos do ombro. E de novo essa
abertura passou depressa demais para a minha
desajeitada lmina. Senti-me como se estivesse
mergulhado em gua at aos ombros e combatesse
um homem cuja arma era to leve como palha.
Bastardo estpido! Achava mesmo que eu me
preocupava com uma vadia grvida, um drago em
voo? O verdadeiro prmio a prpria pedreira,
aquele que voc deixou sem vigilncia para mim.
O material de onde uma vintena, no, uma centena
de drages se erguer!
Como podamos ter sido to estpidos? Como
fora possvel que no vssemos o que Majestoso
realmente procurava? Pensramos com os
coraes, no povo dos Seis Ducados, em
fazendeiros e pescadores que precisavam do brao
do seu rei para defend-los. Mas Majestoso? Ele
pensara apenas no que o Talento podia conquistar
para si. Eu sabia as suas palavras seguintes antes
de ele atir-las.
Em Vilamonte e Calcede, eles se curvaro
diante de mim. E nas Ilhas Externas se encolhero
de medo ao ouvir o meu nome.
Chegam mais! E por cima de ns!
O aviso de Olhos-de-Noite quase me matou.
Pois no instante em que levantei os olhos, Vontade
saltou sobre mim. Cedi terreno, praticamente
correndo para trs para evitar a sua arma. Muito
atrs dele, vindos da entrada da pedreira, uma
dzia de homens correu at ns, brandindo
espadas. No marcavam passo, mas se deslocavam
com uma unidade de movimentos que era muito
mais coesa do que quaisquer meros soldados
poderiam ter adquirido. Um crculo. Quando se
aproximaram, detectei o seu Talento como os
ventos tempestuosos que precedem uma tormenta.
Vontade parou de repente o seu avano. O meu
lobo saltou para enfrent-los, de dentes
arreganhados, rosnando.
Olhos-de-Noite! Pare! No pode enfrentar doze
lminas brandidas por uma nica mente.
Vontade abaixou a arma, e ento a embainhou
casualmente. Gritou ao crculo por cima do ombro.
No se preocupem com eles. Que os
arqueiros acabem com eles.
Um relance s altas paredes da pedreira me
mostrou que aquilo no era nenhum blefe.
Soldados vestidos de dourado e marrom estavam
se posicionando. Compreendi que era aquele o
objetivo dos soldados. No derrotar Veracidade,
mas tomar e defender aquela pedreira. Fui
submerso por outra onda de humilhao e
desespero. Ento ergui a espada e avancei contra
Vontade. Pelo menos ele eu mataria.
Uma flecha estrepitou na pedra onde eu estivera,
outra ricocheteou bem entre as patas de Olhos-de-
Noite. Um grito soou, vindo das paredes da
pedreira a oeste de ns. A Garota-em-um-Drago
me sobrevoou a baixa altitude, com o Bobo
sentado no dorso e um arqueiro dourado e marrom
contorcendo-se nas mandbulas do drago. O
homem desapareceu de repente, uma baforada de
fumaa ou vapor levada pelo vento criado pela
passagem do drago. Encolheu as asas, voltou a se
aproximar a baixa altitude, abocanhando outro
arqueiro e fazendo outro saltar para a pedreira
para evit-lo. Outra baforada de fumaa.
No cho da pedreira, todos ns estacamos,
olhando para cima boquiabertos. Vontade se
recuperou mais depressa do que eu. Um grito
furioso aos seus arqueiros, ressoando em Talento.
Disparem contra ele! Abatam-no!
Quase no mesmo instante, uma falange de flechas
partiu cantando na direo do drago. Algumas
arquearam e caram antes mesmo de se
aproximarem. As outras foram defletidas com um
nico poderoso bater de asas. As flechas
oscilaram de repente no sopro do seu vento e
caram rodopiando, como palhas, para irem se
estilhaar no cho da pedreira. A Garota-em-um-
Drago inclinou de sbito o corpo para a frente e
mergulhou diretamente contra Vontade.
Ele fugiu. Creio que Majestoso o abandonou,
pelo menos durante o tempo que ele levou para
tomar essa deciso. Fugiu e, por um instante,
pareceu que perseguia o lobo que j quase cobrira
a distncia que o separava do crculo. Porm, no
momento em que o crculo percebeu que Vontade
estava fugindo na sua direo com um drago
cortando o ar atrs dele, girou sobre os
calcanhares e fugiu tambm. Captei um breve
claro de deliciado triunfo vindo de Olhos-de-
Noite, por ver doze espadachins no enfrentarem a
sua investida. Ento se agachou contra a terra
quando a Garota-em-um-Drago sobrevoou todos
ns em voo rasante.
No senti s o vento severo da sua passagem,
mas tambm um varrimento estonteante de Talento
que me roubou em um instante da mente todos os
pensamentos que eu estava tendo. Foi como se o
mundo tivesse sido brevemente mergulhado numa
escurido absoluta e depois me tives-se sido
devolvido numa luz plena. Tropecei na minha
corrida, e por um instante no me consegui lembrar
do motivo pelo qual carregava uma espada
desembainhada e de quem perseguia. minha
frente, Vontade vacilou quando a sombra do
drago o cobriu, e ento, por sua vez, foi o crculo
que cambaleou.
As garras do drago tentaram sem sucesso
apanhar Vontade quando passou. Os blocos de
pedra negra que estavam espalhados por todo o
lado foram a sua salvao, pois a envergadura da
Garota-em-um-Drago era tamanha que ele
conseguiu escapar dela na estreiteza do labirinto
que formavam. O drago guinchou, frustrado, o
grito agudo e selvagem de um falco contrariado.
Ergueu-se no ar e virou, para tentar apanh-lo uma
segunda vez. Arquejei quando ele voou direto para
um bando cantante de flechas. Elas se chocaram
inutilmente na sua pele como se os arqueiros
tivessem mirado na pedra negra da pedreira. S o
Bobo se retraiu diante das setas. A Garota-em-um-
Drago mudou abruptamente de rumo para
sobrevoar os arqueiros a baixa altitude e apanhar
outro deles e consumi-lo num instante.
De novo a sua sombra me cobriu, e de novo um
momento da minha vida me foi arrancado. Abri os
olhos para descobrir que Vontade desaparecera.
Depois obtive um breve vislumbre dele, mudando
de direo enquanto corria de cabea baixa por
entre os blocos verticais de pedra, muito maneira
de uma lebre que muda de rumo quando foge de um
falco. J no via o crculo, mas de repente Olhos-
de-Noite saltou da sombra de um bloco de pedra e
para correr ao meu lado.
Oh, irmo, o Sem Cheiro caa bem!, exultou.
Fomos espertos por aceit-lo na nossa alcateia!
Vontade presa minha!, declarei.
A sua presa minha presa, observou ele, muito
srio. isso que alcateia. E no ser presa de
ningum se no nos separarmos para encontr-
lo.
Ele tinha razo. nossa frente, eu ouvia gritos e
via ocasionalmente um claro dourado e marrom
quando um homem se precipitava por um espao
mais largo entre os blocos de pedra. Contudo, a
maioria deles havia compreendido rapidamente
que a maneira de permanecerem protegidos do
drago era agarrarem-se bem s bordas dos
imensos blocos de pedra.
Eles esto fugindo para o pilar. Se chegarmos
a um lugar de onde consigamos v-lo, podemos
esperar l por ele.
Parecia lgico. Fugir atravs do pilar seria a
nica esperana que eles tinham de escapar do
drago durante algum tempo. Ainda ouvia o rudo
ocasional das flechas quando elas choviam na
esteira do drago, mas uma boa poro dos
arqueiros que haviam rodeado as paredes da
pedreira se retirara para o abrigo da floresta
circundante.
Olhos-de-Noite e eu abandonamos todos os
esforos para encontrar Vontade e nos
encaminhamos simples e diretamente para o pilar.
Tive de admirar a disciplina de alguns dos
arqueiros de Majestoso. Apesar de todo o resto, se
o lobo e eu surgssemos a descoberto durante mais
do que alguns passos, ouvamos um grito de Ali
esto eles! e momentos depois choviam flechas
no local onde nos encontrramos.
Chegamos ao pilar a tempo de ver dois dos
membros do novo crculo de Majestoso correndo
por terreno aberto, de mos estendidas para diante
a fim de mergulharem no pilar escuro
propriamente dito no momento em que o tocassem.
A runa que escolheram foi a do jardim de pedra,
mas isso talvez se devesse apenas ao fato de ser o
lado do pilar mais prximo do local onde
estiveram abrigados. No samos da esquina de um
grande bloco que nos abrigava das flechas.
Ser que ele j atravessou?
Talvez. Espere.
Passaram vrias eternidades. Tive certeza de
que Vontade nos escapara. Por cima de ns, a
Garota-em-um-Drago passava a sua sombra pelas
paredes da pedreira. Os gritos das suas vtimas
tornaram-se menos frequentes. Os arqueiros
estavam usando a cobertura das rvores para se
esconderem. Numa olhada rpida, vi o drago
ascender, descrevendo um crculo bem acima da
pedreira. Pairava em um brilhante tom de verde
contra o cu azul, balanando nas suas asas.
Perguntei-me como seria para o Bobo mont-lo
assim. Pelo menos tinha a parte da garota qual se
agarrar. De repente, a Garota-em-um-Drago
inclinou-se, deslizou de lado no cu e depois
dobrou as asas, mergulhando na nossa direo. No
momento em que o fez, Vontade abandonou o
esconderijo e correu para o pilar.
Olhos-de-Noite e eu saltamos atrs dele.
Estvamos terrivelmente perto logo atrs dele. Eu
corri depressa, mas o lobo correu mais depressa, e
Vontade fugiu mais depressa ainda. No momento
em que os seus dedos esticados roaram no pilar,
o lobo deu um ltimo salto. As suas patas da frente
colidiram com as costas de Vontade, atirando-o de
cabea contra o pilar. Quando o vi se derretendo
nele, gritei um aviso a Olhos-de-Noite e o agarrei
no pelo para pux-lo para trs. Ele apanhou a
barriga de uma das pernas de Vontade quando este
foi levado para longe de ns. No momento em que
as mandbulas do lobo se fecharam na carne de
Vontade, a sombra do drago nos cobriu. Larguei o
mundo e ca na escurido.
Abundam lendas sobre heris que combateram
inimigos sombrios no submundo. Contam-se
algumas sobre aqueles que entraram
voluntariamente no escuro desconhecido, a fim de
resgatar amigos ou amantes. Em um momento sem
tempo, foi-me oferecida claramente uma escolha.
Podia agarrar Vontade e estrangul-lo at deix-lo
sem vida. Ou podia apertar contra mim Olhos-de-
Noite e mant-lo inteiro contra todas as foras que
dilaceravam a sua mente e o seu ser de lobo. Na
verdade, no foi escolha alguma.
Emergimos para a sombra fresca e a relva
pisoteada. Num momento, tudo foi escurido e
passagem; no seguinte respirvamos e sentamos
de novo. E temamos. Levantei-me com
dificuldade, espantado por descobrir que ainda
trazia na mo a espada de Veracidade. Olhos-de-
Noite ergueu-se, cambaleou dois passos e caiu.
Doente. Envenenado. O mundo inteiro balana.
Fique quieto e respire. Fiquei de p diante dele
e levantei os olhos para olhar em volta. O olhar foi
devolvido no s por Vontade, mas pela maior
parte do novo crculo de Majestoso. A maioria
deles ainda respirava com fora, e um soltou um
grito de alarme ao nos ver. Quando Vontade gritou,
surgiu tambm correndo um nmero considervel
de guardas de Vara. Espalharam-se para nos
cercarem.
Temos de voltar pelo pilar. a nossa nica
chance.
No posso. V voc. A cabea de Olhos-de-
Noite caiu em cima das patas e os olhos se
fecharam.
Isso no alcateia!, disse-lhe com severidade.
Ergui a espada de Veracidade. Ento era assim
que eu ia morrer. Estava contente por Bobo no ter
me contado. Era provvel que eu tivesse me
suicidado antes.
Apenas o matem ordenou Vontade aos
seus homens. J perdemos tempo demais com
ele. Matem-no e ao lobo tambm. E depois me
tragam um arqueiro capaz de abater um homem de
cima do dorso de um drago. Majestoso virou
as costas de Vontade para mim e afastou-se a
passos largos, ainda dando ordens.
Vocs, Terceiro Crculo. Disseram que um
drago concludo no pode ser despertado e
levado servir. Bem, acabei de ver um Bobo sem
Talento fazendo exatamente isso. Iro descobrir
como se faz. Comearo agora. Que o Bastardo
teste o seu Talento contra espadas.
Ergui a espada e Olhos-de-Noite ficou de p. A
sua nusea ondulou de encontro ao meu medo
quando o crculo de soldados se aproximou de
ns. Bem, se tinha de morrer naquele momento,
nada mais havia a temer. Talvez devesse testar o
meu Talento contra as espadas deles. Descartei as
minhas muralhas, jogando-as fora com desdm. O
Talento era um rio que se enfurecia a todo o meu
redor, um rio que, naquele local, estava sempre em
cheia. Encher-me com ele foi to fcil quanto
inspirar. Uma segunda inspirao baniu o cansao
e as dores do meu corpo. Estendi a fora para o
meu lobo. Ao meu lado, Olhos-de-Noite sacudiu-
se. O eriar dos seus pelos e o arreganhamento dos
seus dentes tornaram-no duas vezes maior. Os
meus olhos percorreram o crculo de espadas que
nos rodeava. Ento no mais esperamos e saltamos
contra eles. Quando as espadas se ergueram ao
encontro da minha, Olhos-de-Noite correu em
frente e por baixo delas, e ento rodopiou para
golpear a perna de um homem por trs.
Olhos-de-Noite transformou-se em uma criatura
de velocidade, dentes e pelo. No tentou morder e
prender. Em vez disso, usou o seu peso para
desequilibrar os homens, fazendo-os tropear uns
nos outros, jarretando-os quando conseguia faz-
lo, cortando com os dentes em vez de morder. Para
mim, o desafio passou a ser evitar golpe-lo
enquanto ele corria de um lado para o outro.
Nunca tentou enfrentar as espadas deles. No
momento em que um homem se virava para ele e
avanava, ele fugia e ia se meter entre as pernas
daqueles que tentavam me enfrentar.
Quanto a mim, brandi a espada de Veracidade
com uma graa e percia que jamais conhecera
antes com uma arma daquelas. As lies e o
trabalho de Hode finalmente juntaram-se para mim
e, se tal coisa fosse possvel, eu diria que o
esprito da mestre de armas se encontrava na arma
e que ela me cantava enquanto eu a brandia. No
consegui abrir uma brecha no crculo em que me
encurralaram, mas eles tambm no conseguiram
ultrapassar a minha guarda para causar mais do
que danos menores.
Nessa primeira agitao de batalha, lutamos bem
e nos samos bem, mas a desvantagem era gritante.
Eu podia forar homens a se afastarem da minha
espada e dar um passo para eles, mas no momento
seguinte tinha de me virar para lutar com aqueles
que haviam se aproximado vindos de trs. Podia
deslocar o crculo de batalha, mas no fugir dele.
Mesmo assim, abenoei o alcance superior da
espada de Veracidade, que me manteve vivo.
Outros homens estavam surgindo correndo ao
ouvir o tumulto e os gritos do combate. Aqueles
que chegaram abriram uma cunha entre mim e
Olhos-de-Noite, forando-o a afastar-se cada vez
mais.
Afaste-se de todos eles e fuja. Fuja. Sobreviva,
irmo.
Em resposta, ele correu para longe de todos
eles, e logo regressou aos saltos, investindo pelo
meio dos soldados. Os homens de Majestoso
golpearam-se uns aos outros num esforo ftil para
det-lo. No estavam habituados a um oponente
com menos de metade da altura de um homem e
com duas vezes a sua rapidez. A maioria desferiu
contra ele cutiladas que no fizeram mais do que
rasgar a terra no seu encalo. Num instante, o lobo
passara por eles e desaparecera de novo na
floresta viosa. Homens olhavam rapidamente em
todas as direes, tentando saber de onde ele
surgiria a seguir.
Contudo, mesmo no auge da luta, eu sabia que o
que fazamos era intil. Majestoso venceria.
Mesmo se eu matasse todos os homens que ali se
encontravam, incluindo Vontade, Majestoso
venceria. Alis, j vencera. E no teria eu sabido
sempre que assim seria? No teria eu sabido,
desde o incio de tudo, que Majestoso estava
destinado a governar?
Dei um sbito passo adiante, cortei o brao de
um homem pelo cotovelo e usei o impulso desse
golpe para trazer a lmina da espada de volta, num
arco que fez com que a ponta passasse pelo rosto
de outro homem. Quando os dois caram,
emaranhando-se um no outro, surgiu uma
minscula abertura no crculo. Dei um passo para
o interior do breve espao, foquei o Talento e
agarrei a mo insidiosa de Vontade que segurava a
minha mente. Senti que uma lmina me lambia o
ombro direito enquanto o fazia. Rodopiei para me
defender da espada do meu atacante, ento pedi ao
meu corpo que pensasse por si mesmo por um
momento e consolidei o controle que ganhara
sobre Vontade. Cravado na conscincia de
Vontade, encontrei Majestoso, enfiado dentro dele
como um parasita em um corao de veado.
Vontade no poderia ter se livrado dele mesmo se
fosse capaz de pensar em faz-lo. E me pareceu
que nem sequer restava o suficiente de Vontade
para dar forma a um pensamento prprio. Vontade
era um corpo, um recipiente de carne e sangue, que
continha Talento para ser empunhado por
Majestoso. Privado do crculo que o fortalecera,
j no era uma arma to terrvel como fora. Menos
valioso. Algum que podia ser usado e posto de
lado sem grande remorso.
No podia lutar em ambas as direes ao mesmo
tempo. Mantive a mente de Vontade agarrada,
forcei os seus pensamentos a se manterem
afastados dos meus e me esforcei para dirigir
tambm o meu corpo. No instante seguinte, recebi
dois golpes, um na barriga da perna esquerda e
outro no antebrao direito. Sabia que no
conseguiria aguentar. No via Olhos-de-Noite.
Pelo menos ele tinha uma chance. Afaste-se disso,
Olhos-de-Noite. Est tudo acabado.
Est s comeando!, contradisse-me ele.
Avanou por dentro de mim como um relmpago
de calor. Vindo de alguma outra parte do campo de
batalha, ouvi um grito com a voz de Vontade. Em
algum lugar, um lobo de Manha devastava o seu
corpo. Consegui sentir Majestoso tentando
desenlaar a sua mente da de Vontade. Agarrei os
dois com mais fora. Fique e enfrente, Majestoso!
A ponta de uma espada encontrou o meu quadril.
Afastei-me dela com um safano e tropecei em
pedra, deixando nela a marca de uma mo
ensanguentada quando me endireitei de novo. Era
o drago de Realder; eu arrastara a batalha toda
essa distncia. Encostei as costas nele, sentindo-
me grato, e me virei para enfrentar os meus
atacantes. Olhos-de-Noite e Vontade ainda
lutavam; era claro que Vontade aprendera algumas
coisas com a tortura de Manhosos. No estava to
vulnervel ao lobo como teria estado
anteriormente. No conseguia causar dano ao lobo
com o Talento, mas foi capaz de envolv-lo em
camada atrs de camada de medo. O corao de
Olhos-de-Noite surgiu de repente ribombando nos
meus ouvidos. Voltei a me abrir ao Talento, enchi-
me e fiz aquilo que nunca antes tentara fazer.
Alimentei Olhos-de-Noite com fora de Talento
transformada em Manha. Para voc, irmo. Senti
Olhos-de-Noite repelindo Vontade, libertando-se
dele por um instante. Vontade usou esse instante
para fugir de ns dois. Desejei ir na direo dele,
mas senti atrs de mim uma agitao da Manha no
drago de Realder. Com um breve odor
nauseabundo, a impresso ensanguentada da minha
mo na sua pele desapareceu em fumaa. Ele se
agitou. Estava despertando. E estava faminto.
Ouviu-se um sbito estalar de galhou e surgiu
uma tempestade de folhas rasgadas quando um
grande vento penetrou no corao imvel da
floresta. A Garota-em-um-Drago aterrissou de
repente no pequeno espao sem rvores que
rodeava o pilar. As chicotadas da sua cauda
limparam de homens a rea ao seu redor.
Ali! gritou-lhe o Bobo e, num instante, a
cabea do drago projetou-se para capturar um
dos meus atacantes nas suas temveis mandbulas.
Ele desapareceu numa baforada de fumaa e eu
senti o Talento dela inchar com a vida que
consumira.
Atrs de mim, uma cabea reptiliana em forma
de cunha ergueu-se de sbito. Durante um
momento, tudo foi escurido quando essa sombra
passou por cima de mim. Ento a cabea projetou-
se para fora, mais rpida do que uma serpente
dando o bote, para capturar o homem que estava
mais perto de ns. Ele desapareceu, e o vapor
daquilo que ele fora passou brevemente por mim,
ftido. O rugido que o drago soltou quase me
ensurdeceu.
Irmo?
Estou vivo, Olhos-de-Noite.
Eu tambm, irmo.
EU TAMBM, IRMO. E TENHO FOME!
A voz de Manha de um carnvoro muito grande.
Verdadeiramente Sangue Antigo. A sua fora fez
os meus ossos tremerem. Olhos-de-Noite teve a
esperteza de responder.
Ento se alimente, irmo grande. Torne sua a
nossa presa, e seja bem-vindo. Isso alcateia.
O drago de Realder no precisou ser
convidado duas vezes. Quem quer que Realder
tivesse sido, ele pusera um apetite saudvel no seu
drago. Grandes patas armadas de garras
libertaram-se do musgo e da terra; uma cauda
soltou-se com uma chicotada, derrubando de
passagem uma pequena rvore. Foi por pouco que
consegui sair do seu caminho quando ele investiu
para apanhar outro vars nas suas mandbulas.
Sangue e a Manha! isso que preciso.
Sangue e a Manha. Podemos despertar os
drages.
Sangue e a Manha? No momento estamos
ensopados em ambos. Ele me compreendera
instantaneamente.
No meio do massacre, Olhos-de-Noite e eu nos
lanamos a um enlouquecido jogo infantil. Foi
quase uma competio para ver quem conseguia
despertar mais drages, uma competio que o
lobo ganhou com facilidade. Corria para um
drago, sacudia sobre ele o sangue que trazia na
pelagem, ento lhe pedia: Acorde, irmo, e
alimente-se. Trouxemos carne para voc. E
quando cada um dos grandes corpos fumegava com
sangue de lobo e despertava, ele lhe lembrava:
Somos alcateia!
Eu encontrei o Rei Sabedoria. Era seu o drago
da galhada de veado, e ele ergueu-se do sono
gritando: Cervo! Para Torre do Cervo! Eda e El,
que fome tenho!
H fartura de Navios Vermelhos ao largo da
costa de Cervo, senhor. Esto espera das suas
mandbulas, disse-lhe. Apesar de todas aquelas
palavras, pouco de humano restava nele. A pedra e
as almas haviam se fundido, para se transformarem
realmente em drago. Compreendamos uns aos
outros como os carnvoros se compreendem. Eles
j haviam caado em alcateia, e disso lembravam-
se bem. A maioria dos outros drages no tinha em
si nada de humano. Haviam sido esculpidos por
Antigos, no por homens, e pouco mais
compreendamos uns dos outros do que o fato de
sermos irmos e de termos lhes trazido carne.
Aqueles que haviam sido formados por crculos
possuam vagas lembranas de reis de Cervo e
Visionrio. No foram essas lembranas que os
ligaram a mim, mas a minha promessa de alimento.
Considerei a maior das bnos que conseguisse
inculcar pelo menos isso naquelas estranhas
mentes.
Chegou um momento em que no consegui
encontrar mais drages entre a vegetao rasteira.
Atrs de mim, onde os soldados de Majestoso
haviam acampado, ouvi os gritos de homens
perseguidos e o rugido dos drages que
competiam, no por carne, mas por vida. As
rvores cediam diante das suas arremetidas e as
chicotadas que as suas caudas davam cortavam
arbustos como uma ceifa corta caules de cereais.
Eu fizera uma pausa para respirar, com uma mo
apoiada no joelho e a outra ainda segurando a
espada de Veracidade. A respirao me vinha
difcil e seca. A dor estava comeando a abrir
caminho por entre o Talento que eu impusera ao
meu corpo. Pingava sangue dos meus dedos.
falta de um drago a quem d-lo, limpei a mo no
justilho.
Fitz?
Virei-me enquanto o Bobo corria para mim.
Envolveu-me nos braos, abraou-me com fora.
Ainda vive! Graas a todos os deuses de toda
parte. Ela voa como o prprio vento e sabia onde
encontr-lo. De algum modo, sentiu esta batalha, a
toda aquela distncia. Fez uma pausa para
respirar, e acrescentou. Tem uma fome
insacivel. Fitz, voc precisa vir comigo, agora.
Eles esto ficando sem presas. Precisa mont-la
comigo e lev-los para onde possam se alimentar,
seno no sei o que faro.
Olhos-de-Noite juntou-se a ns. Esta alcateia
grande e est esfomeada. Ser preciso muita
caa para saci-los.
Vamos com eles, para a caa?
Olhos-de-Noite hesitou. Nas costas de um
deles? Pelo ar?
assim que eles caam.
No so esses os mtodos deste lobo. Mas se
voc tiver que me deixar para trs, eu
compreendo.
No o deixo, irmo. No o deixo.
Acho que o Bobo detectou um pouco do que foi
transmitido entre ns, pois j estava sacudindo a
cabea antes de eu falar.
Voc precisa lider-los. Na Garota-em-um-
Drago. Leve-os para Cervo e para junto de
Veracidade. Eles iro lhe dar ouvidos, pois voc
alcateia conosco. Isso algo que eles
compreendem.
Fitz, no posso. Eu no fui feito para isso,
para esse massacre! No foi para essa perda de
vidas que eu vim. Nunca tinha visto isso, em
nenhum sonho, nem o li em nenhum pergaminho.
Temo que eu possa levar o tempo por um caminho
errado.
No. Isto est certo. Eu o sinto. Eu sou o
Catalisador, e vim mudar todas as coisas. Profetas
transformam-se em guerreiros, drages caam
como lobos. Quase nem reconhecia a minha voz
enquanto falava. No fazia ideia de onde vinham
aquelas palavras. Enfrentei os olhos incrdulos do
Bobo. como tem de ser. V.
Fitz, eu
A Garota-em-um-Drago aproximou-se de ns
pesadamente. No cho, a sua graa area a
abandonara. Caminhava com poder, como um urso
gigantesco ou um grande touro chifrudo. O verde
das suas escamas brilhava como escuras
esmeraldas luz do sol. A garota no seu dorso era
de uma beleza de perder o flego, apesar da sua
expresso vazia. A cabea do drago ergueu-se, e
ele abriu a boca e projetou a lngua para fora, para
saborear o ar. Mais?
Depressa pedi ao Bobo.
Ele me abraou quase convulsivamente, e me
chocou quando me beijou na boca. Girou nos
calcanhares e correu para a Garota-em-um-
Drago. A parte da garota inclinou-se para baixo,
para lhe oferecer ajuda e pux-lo para cima, para
que se fosse sentar atrs dela. A expresso no seu
rosto nunca se alterou. S mais uma parte do
drago.
A mim! gritou ele aos drages que j se
reuniam nossa volta. O ltimo olhar que me
lanou foi um sorriso trocista.
Sigam o Sem Cheiro!, ordenou-lhes Olhos-de-
Noite antes de eu ter tempo de pensar. Ele um
poderoso caador e ir lev-los a muita carne.
Deem ouvidos a ele, pois ele alcateia conosco.
A Garota-em-um-Drago saltou para cima, de
asas abertas e, com poderosas batidas, elas a
levaram firmemente para cima. O Bobo seguia
agarrado atrs dela. Ergueu uma mo em
despedida, mas a baixou depressa para voltar a lhe
apertar a cintura. Foi a ltima vez que o vi. Os
outros o seguiram, soltando um grito que me
lembrou ces de caa seguindo um rastro, embora
soassem mais como os guinchos de aves de rapina.
At o javali alado subiu, por mais desajeitado que
fosse o seu salto para o ar. O bater das asas dos
drages foi tal que eu cobri os ouvidos e Olhos-
de-Noite encolheu-se, encostando a barriga na
terra ao meu lado. rvores oscilaram naquela
grande passagem de drages e deixaram cair
galhos, tanto mortos como verdes. Durante algum
tempo, o cu encheu-se de criaturas cravejadas de
joias, verdes, vermelhas, azuis e amarelas. Sempre
que a sombra de uma delas passava sobre mim,
experimentava um negrume, mas os meus olhos
estavam abertos e atentos quando o drago de
Realder levantou voo, o ltimo de todos, para
seguir aquela grande alcateia para o cu. Pouco
tempo depois, a abbada de rvores escondeu-os
da minha vista. Gradualmente, os seus gritos foram
se atenuando.
Os seus drages esto a caminho, Veracidade
disse eu ao homem que outrora conhecera.
Os Antigos ergueram-se em defesa de Cervo. Tal
como voc disse que fariam.
CAPTULO 40

Majestoso

O Catalisador vem mudar todas as coisas.

Na sequncia da partida dos drages, houve um


grande silncio, quebrado apenas pelos sussurros
do punhado de folhas que caiu no cho da floresta.
Nem uma r coaxava, nem uma ave cantava. Os
drages haviam quebrado o teto da floresta na sua
partida. Grandes colunas de luz solar brilhavam
sobre solo que estivera ensombrado desde antes
do meu nascimento. rvores haviam sido
desenraizadas ou quebradas e grandes fendas
haviam sido abertas no cho da floresta pela
passagem dos seus imensos corpos. Ombros
escamosos haviam aberto profundos sulcos na
casca de rvores antigas, desnudando o secreto
cmbio branco que havia por baixo. A terra e
rvores golpeadas e os capins pisoteados soltavam
os seus ricos odores na tarde quente. Fiquei
imvel no meio da destruio, com Olhos-de-
Noite ao meu lado, e olhei lentamente ao redor.
Ento fomos procura de gua.
A nossa busca nos levou a passar pelo
acampamento. Era uma estranha cena de batalha.
Havia armas espalhadas por todo o lado e alguns
elmos, tendas pisoteadas e material espalhado,
mas pouco mais do que isso. Os nicos corpos que
restavam eram os de soldados que Olhos-de-Noite
e eu havamos matado. Os drages no se
interessavam por carne morta; alimentavam-se
com a vida que j fugira desse tecido.
Encontrei o riacho de que me lembrava e me
atirei no cho na beira dele para beber como se
no houvesse fundo para a minha sede. Olhos-de-
Noite lambeu a gua ao meu lado, ento se atirou
sobre o capim fresco que crescia nas margens do
riacho. Deu incio a uma lenta e cuidadosa
lambida de um corte que tinha na pata da frente.
Rasgara-lhe a pelagem, e ele enfiou a lngua nessa
fenda, limpando-a cuidadosamente. Iria sarar
como uma fuso de pele escura e sem pelos. S
mais uma cicatriz, respondeu ele ao meu
pensamento, com indiferena. Que fazemos
agora?
Eu estava tirando cuidadosamente a camisa. O
sangue que secava a fazia aderir aos meus
ferimentos. Cerrei os dentes e a soltei com um
puxo. Debrucei-me sobre o riacho para espalhar
gua fria pelos cortes de espada que sofrera. S
mais algumas cicatrizes, disse sombriamente a
mim mesmo. E que faremos agora? Dormimos.
A nica coisa que soaria melhor do que isso
seria comer.
No tenho estmago para matar mais nada
agora disse-lhe.
esse o problema de matar homens. Todo o
trabalho que do, e em troca nada para comer.
Levantei-me cansado.
Vamos dar uma olhada nas tendas deles.
Preciso de alguma coisa que possa usar como
bandagem. E eles devem ter algumas provises.
Abandonei a minha velha camisa onde ela cara.
Arranjaria outra. Naquele momento, at o seu peso
parecia excessivo para me incomodar em carreg-
la. Teria provavelmente deixado cair a espada de
Veracidade se j no a tivesse embainhado.
Desembainh-la de novo teria sido esforo
demais. Era esse o cansao que eu de repente
sentia.
As tendas haviam sido esmagadas durante a
caada dos drages. Uma cara sobre uma fogueira
e ardia em fogo brando. Puxei-a para o lado e
pisei nela at apagar o fogo. Ento o lobo e eu
comeamos a recuperar sistematicamente aquilo
de que precisaramos. O seu faro logo encontrou
as provises alimentares dos soldados. Havia
alguma carne seca, mas era principalmente po de
viajante. Estvamos esfomeados demais para
sermos exigentes. Eu passara tanto tempo sem
qualquer tipo de po que aquele quase tinha um
gosto bom. At descobri um odre de vinho, mas
bastou prov-lo para me convencer a us-lo para
lavar os ferimentos em vez de beb-lo. Enfaixei os
ferimentos com cambraia marrom rasgada da
camisa de um vars. Ainda me restava algum
vinho. Provei-o de novo. Depois tentei convencer
Olhos-de-Noite a me deixar lavar os seus
ferimentos, mas ele recusou, dizendo que j lhe
doam o suficiente.
Eu estava comeando a ficar rgido, mas me
forcei a ficar de p. Encontrei a trouxa de um
soldado e joguei fora todas as coisas que me eram
inteis. Enrolei dois cobertores e os amarrei bem,
e encontrei um manto dourado e marrom para usar
nas noites frias. Desencavei mais po e o enfiei na
trouxa.
O que voc est fazendo? Olhos-de-Noite
estava sonolento, quase dormindo.
No quero dormir aqui esta noite. Portanto,
recolho aquilo de que vamos precisar para a
nossa viagem.
Viagem? Vamos para onde?
Fiquei imvel por um momento. Regressar para
Moli e Cervo? No. Nunca mais. Jhaampe? Por
qu? Para qu voltar a percorrer aquela estrada
longa e cansativa? No consegui imaginar nenhuma
boa razo. Bem, seja como for, no quero dormir
aqui esta noite. Gostaria de estar bem longe
daquele pilar antes de descansar de novo.
Est bem. Depois: O que foi isso?
Ficamos paralisados, com todos os sentidos
formigando.
Vamos descobrir sugeri em voz baixa.
A tarde estava se transformando em anoitecer e
as sombras sob as rvores se aprofundavam. O que
ouvramos era um som que no tinha lugar entre a
chiadeira das rs e dos insetos e dos chamados,
que iam se calando, das aves diurnas. Viera do
local da batalha.
Encontramos Vontade deitado de barriga,
arrastando-se na direo do pilar. Ou melhor,
estivera se arrastando. Quando o encontramos,
estava imvel. Uma das suas pernas desaparecera,
cortada irregularmente. Osso projetava-se da
carne rasgada. Ele atara uma manga em volta do
coto, mas no com fora suficiente. Ainda
sangrava. Olhos-de-Noite arreganhou os dentes
quando me baixei para toc-lo. Estava vivo, mas
por pouco. No havia dvida de que tivera
esperana de chegar ao pilar e atravess-lo para
encontrar outros dos homens de Majestoso que o
ajudassem. Majestoso devia ter sabido que ele
permanecia vivo, mas no enviara ningum para
busc-lo. Nem sequer tinha a decncia de ser leal
a um homem que o servira durante tanto tempo.
Soltei a manga e a amarrei com mais fora.
Ento ergui a sua cabea e pinguei um pouco de
gua dentro da sua boca.
Por que se incomoda com isso?, perguntou
Olhos-de-Noite. Ns o odiamos, e ele est quase
morto. Deixe-o morrer.
Ainda no. Ainda no.
Vontade? Consegue me ouvir, Vontade?
O nico sinal foi uma mudana na sua
respirao. Dei-lhe um pouco mais de gua. Ele
respirou alguma, engasgou-se, e ento sorveu o
gole seguinte. Respirou mais fundo e soltou o ar.
Abri-me e reuni Talento.
Irmo, deixe isso. Deixe-o morrer. Bicar uma
coisa moribunda para as aves carniceiras.
No Vontade que procuro, Olhos-de-Noite.
Esta pode ser a ltima chance que tenho contra
Majestoso. Vou aproveit-la.
Ele no respondeu, mas se deitou no cho ao
meu lado. Observou-me enquanto eu absorvia
ainda mais Talento. Quanto, perguntei a mim
mesmo, seria necessrio para matar? Eu
conseguiria reunir o suficiente?
Vontade estava to fraco que quase senti
vergonha. Enfiei-me pelas suas defesas to
facilmente como se afastaria as mos de uma
criana doente. No era s a perda de sangue e a
dor. Era a morte de Emaranhado, seguindo-se to
perto de Cedoura. E era o choque do abandono
de Majestoso. A sua lealdade a Majestoso lhe fora
inculcada pelo Talento. No conseguia
compreender que Majestoso no tivesse sentido
nenhum verdadeiro vnculo para com ele.
Envergonhava-o que eu conseguisse ver isso nele.
Mate-me agora, Bastardo. V em frente. Estou
morrendo, de qualquer modo.
Isso no sobre voc, Vontade. Nunca foi
sobre voc. Agora o via com clareza. Apalpei
dentro dele como se estivesse sondando uma
ferida em busca da ponta de uma flecha. Ele lutou
debilmente contra a minha invaso, mas eu o
ignorei. Revistei as suas memrias, mas encontrei
pouco de til. Sim, Majestoso tinha crculos, mas
eles eram jovens e inexperientes, pouco mais do
que grupos de homens com potencial para o
Talento. At aqueles que eu vira na pedreira eram
duvidosos. Majestoso queria que ele fizesse
crculos grandes, para poderem reunir mais poder.
Majestoso no compreendia que a proximidade
no podia ser forada, nem partilhada por tanta
gente. Perdera quatro jovens utilizadores de
Talento na estrada do Talento. No estavam
mortos, mas de olhos vazios e vagos. Outros dois
haviam atravessado com ele os pilares, mas
haviam perdido depois toda a capacidade para
usar o Talento.
Afundei-me mais e Vontade ameaou morrer nas
minhas mos, mas eu me liguei a ele e introduzi
nele alguma fora. No vai morrer. Ainda no,
disse-lhe com ferocidade. E ali, nas profundezas
do seu ser, a minha sondagem encontrou finalmente
o que procurava. Uma ligao de Talento com
Majestoso. Era tnue e dbil; Majestoso o
abandonara, fizera o possvel para deixar Vontade
para trs. Mas era como eu suspeitara. Eles
estiveram ligados com fora demais e durante
tempo demais para que a ligao se dissolvesse
assim to facilmente.
Reuni o meu Talento, concentrei-me e me selei.
Equilibrei-me, e ento saltei. Como quando uma
chuva sbita se rene e enche um leito de riacho
que passou o vero inteiro seco, assim flu atravs
daquela ligao de Talento entre Vontade e
Majestoso. No ltimo momento possvel, contive-
me. Infiltrei-me na mente de Majestoso como um
veneno lento, escutando com os seus ouvidos,
vendo com os seus olhos. Conheci-o.
Ele dormia. No. Quase dormia, com os
pulmes repletos de Fumo e a boca dormente de
conhaque. Pairei para o interior dos seus sonhos.
A cama era macia debaixo dele, as colchas
quentes em cima dele. Aquele ltimo ataque de
quedas fora ruim, muito ruim. Era repugnante, cair
e contorcer-se como o Bastardo Fitz. No era
apropriado que aquilo acontecesse a um rei.
Estpidos curandeiros. Nem sequer conseguiam
dizer o que provocara aqueles ataques. O que as
pessoas pensariam dele? O alfaiate e o aprendiz
tinham visto; agora teria de mat-los. Ningum
podia saber. Ririam dele. O curandeiro dissera
que ele estava melhor na semana passada. Bem,
encontraria um novo curandeiro, e enforcaria
amanh o antigo. No. Iria d-lo aos forjados na
Arena do Rei, eles j estavam com muita fome. E
depois deixaria os grandes gatos solta com os
forjados. E o touro, o grande touro branco com os
chifres largos e a corcova.
Tentou sorrir e dizer a si mesmo que seria
divertido, tentou dizer a si mesmo que o dia de
amanh lhe traria prazer. O quarto estava pesado
com o odor enjoativo do Fumo, mas at isso tinha
dificuldade em acalm-lo. Tudo correra to bem,
to, to bem. E ento o bastardo estragara tudo.
Matara Emaranhado, e despertara os drages, e os
mandara a Veracidade.
Veracidade, Veracidade, era sempre
Veracidade. Desde que ele nascera. Veracidade e
Cavalaria recebiam cavalos altos, enquanto ele era
remetido para um pnei. Veracidade e Cavalaria,
sempre juntos, sempre mais velhos, sempre
maiores. Sempre pensando que eram melhores,
mesmo apesar de Majestoso provir de melhor
sangue do que eles e ser justo que fosse ele a
herdar o trono. A me o avisara contra o cime
que os irmos tinham dele. A me lhe pedira para
ser sempre cauteloso e ultrapassar a simples
cautela. Eles o matariam se pudessem, matariam,
matariam. A me fizera o melhor que pudera,
arranjara um modo de mand-los para longe tantas
vezes quantas fora possvel. Mas, mesmo
mandados para longe, eles podiam regressar. No.
S havia uma maneira de estar em segurana, s
uma maneira.
Bem, amanh venceria. Tinha crculos, no
tinha? Crculos de belos jovens fortes, crculos
para fazer drages para si e apenas para si. Os
crculos estavam vinculados a ele e os drages
tambm lhe ficariam vinculados. E ele criaria mais
crculos e mais drages, e mais ainda, at ter
muitos mais do que Veracidade. S que fora
Vontade quem ensinara os crculos em seu nome, e
agora Vontade era intil. Quebrado como um
brinquedo, o drago lhe arrancara a perna quando
o atirara ao ar, e Vontade aterrissara em uma
rvore como uma pipa de papel sem vento. Era
repugnante. Um homem com uma perna s. No
suportava coisas quebradas. O seu olho cego j
fora ruim o suficiente, mas perder tambm uma
perna? O que pensariam os homens de um rei que
mantinha um servidor aleijado? A me nunca
confiara em aleijados. So invejosos, avisara-o,
sempre invejosos, e se voltaro contra voc. Mas
precisara de Vontade para os crculos. Estpido
Vontade. Era tudo culpa de Vontade. Mas era
Vontade quem sabia como despertar o Talento nas
pessoas e transform-las em crculos. De modo
que talvez devesse mandar algum buscar Vontade.
Se Vontade ainda estivesse vivo.
Vontade? Majestoso sondou timidamente na
nossa direo.
No exatamente. Fechei o meu Talento ao redor
dele. Foi ridiculamente fcil, como tirar uma
galinha adormecida do poleiro.
Solte-me! Solte-me!
Senti-o tentando alcanar os outros crculos.
Afastei-os dele com uma bofetada, isolei-o do
Talento deles. Ele no tinha fora alguma, nunca
tivera nenhuma fora real para o Talento. O poder
que ele manejara pertencera por inteiro ao crculo.
Isso me chocou. Todo o medo que eu carregava
dentro de mim, h mais de um ano. De qu? De
uma criana chorona e mimada que conspirava
para roubar os brinquedos dos irmos mais velhos.
A coroa e o trono no eram para ele mais do que
haviam sido os cavalos e as espadas. No tinha
nenhuma ideia sobre como governar um reino; s
sobre como usar uma coroa e fazer o que quisesse.
Primeiro a me, e depois Galeno, tinham
conspirado por ele. No aprendera com eles mais
do que uma astcia matreira para obter o que
queria. Se Galeno no tivesse vinculado a ele o
crculo, nunca teria manejado nenhum poder
verdadeiro. Privado do seu crculo, eu o vi tal
como era: uma criana mimada com uma queda
para a crueldade que nunca fora reprimida.
isto que temos temido e de que temos fugido?
Isto?
Olhos-de-Noite, o que faz aqui?
A sua presa minha presa, irmo. Quero ver
que carne viemos at to longe para capturar.
Majestoso contorceu-se e sacudiu-se,
literalmente nauseado pelo toque de Manha do
lobo na sua mente. Era imundo e repugnante, uma
coisa suja e canina, nojenta e malcheirosa, to m
como aquela criatura parecida com uma ratazana
que corria pelos seus aposentos durante a noite e
no se deixava apanhar. Olhos-de-Noite
aproximou-se mais, empurrou a Manha contra ele
como se o conseguisse cheirar a toda aquela
distncia. Majestoso vomitou e estremeceu.
Basta, eu disse a Olhos-de-Noite, e o lobo
cedeu.
Se vai mat-lo, faa-o depressa, aconselhou
Olhos-de-Noite. O outro enfraquece e morrer se
voc no se apressar.
Ele tinha razo. A respirao de Vontade
tornara-se baixa e rpida. Agarrei Majestoso com
firmeza, e ento alimentei Vontade com um pouco
mais de fora. Ele tentou no aceitar, mas o seu
autodomnio no era assim to forte. Se lhe dada
uma chance, o corpo escolher sempre sobreviver.
E assim os seus pulmes se acalmaram e o
corao bateu com mais fora. De novo puxei
Talento para mim. Concentrei-me nele e afiei a sua
finalidade. Devolvi a minha ateno a Majestoso.
Se me matar, queimar a si mesmo. Perder o
seu Talento se me matar com ele.
Eu pensara nisso. Nunca gostara muito de ser
Talentoso. Preferia de longe ser Manhoso do que
Talentoso. No seria nenhuma perda.
Forcei-me a me lembrar de Galeno. Chamei
mente o crculo fantico que ele criara para
Majestoso. Isso deu forma minha determinao.
Como ansiara por fazer h tanto tempo, soltei o
meu Talento contra ele.
Depois disso, pouco restou de Vontade. Mas eu
fiquei sentado ao seu lado e lhe dei gua quando
ele pediu. At o cobri quando se queixou
debilmente de frio. A minha viglia de morte
confundiu o lobo. Uma faca na garganta de
Vontade teria sido muito mais rpido para ambos.
Talvez mais misericordiosa. Mas eu chegara
concluso de que j no era um assassino.
Portanto, esperei pelo seu ltimo suspiro e,
quando ele o soltou, levantei-me e me afastei.
uma longa distncia do Reino da Montanha
costa de Cervo. Mesmo a voo de drago,
incansvel e rpido, uma longa, longa distncia.
Durante alguns dias, Olhos-de-Noite e eu
conhecemos a paz. Viajamos para longe do Jardim
de Pedra vazio, para longe da negra estrada do
Talento. Estvamos ambos demasiado cansados
para caar bem, mas encontrramos um bom
ribeiro de trutas e seguimo-lo. Os dias estavam
quase quentes demais, as noites mostravam-se
limpas e suaves. Pescvamos, comamos,
dormamos. Eu pensava apenas em coisas que no
magoavam. No no abrao de Moli e Bronco, mas
em Urtiga, abrigada pelo bom brao direito dele.
Bronco seria um bom pai para ela. Tivera prtica.
At encontrei em mim a esperana de que ela
pudesse vir a ter irmos e irms mais novos nos
anos que a vinham. Pensei na paz de regresso ao
Reino da Montanha, em Navios Vermelhos
afastados da costa dos Seis Ducados. Sarei. No
por completo. Uma cicatriz nunca igual a boa
carne, mas para a hemorragia.
Eu estava l na tarde de vero em que Veracidade-
enquanto-Drago surgiu nos cus sobre Torre do
Cervo. Com ele, vi as brilhantes torres e torrees
negros do Castelo de Torre do Cervo muito abaixo
de ns. Para alm do castelo, onde estivera a
Cidade de Torre do Cervo, erguiam-se os
esqueletos enegrecidos de edifcios e armazns.
Forjados andavam tranquilamente pelas ruas,
empurrados para o lado por arrogantes
Salteadores. Mastros, com farrapos de tela
pendendo deles, projetavam-se das guas calmas.
Uma dzia de Navios Vermelhos balanava
pacificamente no porto. Senti o corao de
Veracidade-enquanto-Drago inchar de fria. Juro
que ouvi o grito de angstia de Kettricken diante
do que via.
Ento o grande drago turquesa e prata desceu
no terreno central do Castelo de Torre do Cervo.
Ignorou a nuvem de flechas que subiu ao seu
encontro; ignorou tambm os gritos dos soldados
que se encolhiam sua frente, deixados sem
sentidos quando a sua sombra se espalhou sobre
eles e as suas grandes asas bateram para baixar o
seu volume at o cho. Foi um milagre que no os
tivesse esmagado. Ainda enquanto o drago
descia, Kettricken j procurava ficar de p nos
ombros dele, gritando guarda para que baixasse
os piques e se afastasse.
No cho, ele baixou o ombro para permitir que
uma desgrenhada Rainha Kettricken desmontasse.
Esporana Cantodave deslizou para o cho depois
dela e distinguiu-se por fazer uma mesura fileira
de piques que estavam apontados para elas. Vi
mais do que alguns rostos que conhecia e partilhei
da dor de Veracidade pelo modo como as
privaes os haviam transformado. Ento
Pacincia avanou, com um pique bem seguro na
mo, de elmo posto de vis sobre o cabelo
entranado. Abriu caminho aos encontres por
entre os intimidados guardas, com os olhos cor de
avel duros como pedra num rosto encovado. Ao
ver o drago, parou. O seu olhar saltou da rainha
para os olhos escuros do drago. Respirou fundo,
prendeu a respirao e ento exalou a palavra.
Antigo. Atirou o elmo e o pique ao ar com
um grito de jbilo e correu em frente para abraar
Kettricken, gritando: Um Antigo! Eu sabia, eu
sabia, eu sabia que eles iriam regressar! Girou
sobre os calcanhares, dando uma saraivada de
ordens que incluam tudo, desde um banho quente
para a rainha at preparar uma investida a partir
dos portes do Castelo de Torre do Cervo. Mas o
que guardarei para sempre no corao foi o
momento em que se virou, para bater o p para
Veracidade-enquanto-Drago e lhe dizer para se
apressar a pr aqueles malditos navios fora do
porto.
A Dama Pacincia de Torre do Cervo habituara-
se a que lhe obedecessem rapidamente.
Veracidade subiu e partiu para a batalha, como
sempre fizera. Sozinho. Por fim, tinha o que
desejara, confrontar os seus inimigos no com o
Talento, mas em carne e osso. Na primeira
passagem que fez, um golpe com a cauda
despedaou dois dos Navios Vermelhos. Pretendia
que nenhum lhe escapasse. Foi s horas mais tarde
que o Bobo, a Garota-em-um-Drago e os seus
seguidores chegaram para se juntarem a ele, mas a
essa altura j no permanecia no Porto de Cervo
nem um Navio Vermelho. Os recm-chegados
juntaram-se caa pelas ruas ngremes daquilo
que fora a Cidade de Torre do Cervo. Ainda no
era noite quando as ruas ficaram vazias de
Salteadores. Aqueles que haviam se abrigado no
castelo jorraram para a cidade, para chorar todos
os destroos, certo, mas tambm para se
aproximarem dos Antigos que haviam regressado
para salv-los, e maravilharem-se com eles.
Apesar da quantidade de drages que chegaram,
seria Veracidade o drago de que o povo de Cervo
se lembraria com mais clareza. No que as
pessoas se lembrem de grande coisa com muita
clareza quando os drages as sobrevoam, lanando
sombra por baixo. Apesar disso, ele o drago
que se v em todas as tapearias sobre a Limpeza
de Cervo.
Foi um vero de drages para os Ducados
Costeiros. Eu vi tudo, ou tanto quanto conseguia
caber nas minhas horas de sono. Mesmo acordado,
estava consciente do que se passava, como troves
que so mais sentidos do que ouvidos distncia.
Soube quando Veracidade levou os drages para o
norte, a fim de expurgar de Navios Vermelhos e
Salteadores todo o Cervo e Vigas, e at as Ilhas
Prximas. Vi a limpeza de Torre Crespa, e o
regresso de F, Duquesa de Vigas, fortaleza que
lhe prpria. A Garota-em-um-Drago e o Bobo
voaram para o sul ao longo da costa de Rasgo e
Razos, erradicando tambm os Salteadores das
suas fortalezas nas ilhas. No sei como
Veracidade lhes transmitiu que deviam se
alimentar apenas de Salteadores, mas essa
fronteira no foi ultrapassada. As pessoas dos Seis
Ducados no os temiam. Crianas saam correndo
de cabanas e casas de campo para apontar para
cima, para a passagem enfeitada de joias das
criaturas. Quando os drages dormiam nas praias e
nos pastos, temporariamente saciados, as pessoas
saam para caminhar entre eles sem medo, para
tocar com as suas prprias mos aquelas criaturas
cintilantes como pedras preciosas. E por todo o
lado em que os Salteadores estabeleceram bases,
os drages alimentaram-se bem.
O vero mingou lentamente, e o outono chegou
para encurtar os dias e prometer tempestades
vindouras. Enquanto o lobo e eu pensvamos em
arranjar abrigo para o inverno, eu tinha sonhos de
drages voando sobre costas que nunca vira antes.
A gua batia fria contra aquelas costas duras, e o
gelo apossava-se das bordas das suas estreitas
baas. As Ilhas Externas, deduzi. Veracidade
sempre ansiara por levar a guerra s suas costas, e
o fez com mpeto. Tambm fora assim no tempo do
Rei Sabedoria.
Era inverno e a neve havia chegado s maiores
altitudes das Montanhas, mas no ao vale onde as
nascentes quentes fumegavam no ar gelado quando
os drages passaram por cima de mim pela ltima
vez. Fui at a porta da cabana para v-los passar,
voando em grandes formaes, como gansos em
migrao. Olhos-de-Noite virou a cabea para os
seus estranhos chamados e soltou um uivo seu em
resposta. Quando eles passaram sobre mim, o
mundo piscou minha volta e eu perdi toda a
memria disso, menos a mais vaga. No saberia
lhes dizer se era Veracidade que liderava o voo,
ou mesmo se a Garota-em-um-Drago se
encontrava entre eles. Soube apenas que a paz fora
restaurada nos Seis Ducados e que nenhum Navio
Vermelho voltaria a se aventurar por perto das
nossas costas. Esperei que todos dormissem bem
no Jardim de Pedra, como haviam antes feito.
Regressei para a cabana, para virar o coelho no
espeto. Ansiava por um longo e calmo inverno.
E assim a prometida ajuda dos Antigos foi
levada aos Seis Ducados. Eles vieram, tal como
tinham vindo nos tempos do Rei Sabedoria, e
afastaram os Navios Vermelhos das costas dos
Seis Ducados. Dois Navios Brancos de grandes
velas foram tambm afundados nessa grande
limpeza. E, tal como no tempo do Rei Sabedoria,
as suas sombras estendidas sobre as pessoas que
sobrevoavam roubavam momentos de vida e de
memria ao passar. Toda a mirade de formas e
cores dos drages chegaram aos pergaminhos e
tapearias desse tempo, tal como antes. E as
pessoas preencheram aquilo que no recordavam
das batalhas em que os drages enchiam os cus
com suposies e fantasias. Menestris fizeram
canes sobre elas. Todas as canes dizem que
Veracidade voltou pessoalmente para casa
montado no drago turquesa e cavalgou o animal
para a batalha contra os Navios Vermelhos. E as
melhores das canes dizem que, quando a luta
terminou, Veracidade foi levado pelos Antigos, a
fim de se banquetear com eles coberto de
honrarias e depois dormir ao seu lado no seu
castelo mgico at a momento em que Cervo
precise cham-lo mais uma vez. E assim a verdade
se transformou, tal como Esporana me havia
avisado, em algo maior do que os fatos. Aquele
era, afinal, um tempo para heris, e para
ocorrerem todos os tipos de coisas maravilhosas.
Como quando Majestoso em pessoa chegou a
cavalo, cabea de uma coluna de seis mil
vareses, para levar ajuda e provises no s a
Cervo, mas a todos os Ducados Costeiros. A
notcia do seu regresso o precedera, bem como as
barcaas de gado, cereais e tesouros vindas do
prprio Palcio de Vaudefeira, que chegaram num
fluxo constante pelo Rio Cervo. Todos falavam,
maravilhados, de como o prncipe acordara
sobressaltado de um sonho e correra meio nu pelos
sales de Vaudefeira, predizendo miraculosamente
o regresso do Rei Veracidade a Torre do Cervo e
a convocao dos Antigos para salvar os Seis
Ducados. Foram enviadas aves, retirando todas as
tropas das Montanhas e oferecendo as mais
humildes desculpas e uma generosa compensao
monetria ao Rei Eyod. Ele chamou os seus nobres
para lhes predizer que a Rainha Kettricken estaria
grvida de um filho de Veracidade e que ele,
Majestoso, desejava ser o primeiro a jurar
lealdade ao prximo monarca Visionrio. Em
honra desse dia, ordenara que todas as forcas
fossem desmontadas e queimadas, que todos os
prisioneiros fossem perdoados e libertados e que a
Arena do Rei deveria ser rebatizada como Jardim
da Rainha e plantada com rvores e flores
provenientes de todos os Seis Ducados como
smbolo da nova unidade. Quando, mais tarde
nesse dia, os Navios Vermelhos atacaram os
arredores de Vaudefeira, o prprio Majestoso
gritou pelo seu cavalo e armadura e partiu para
liderar a defesa do seu povo. Lutou lado a lado
com mercadores e estivadores, nobres e pedintes.
Conquistou nessa batalha o amor da gente comum
de Vaudefeira. Quando anunciou que a sua
lealdade devia ser sempre entregue criana que a
Rainha Kettricken esperava, eles juntaram os seus
juramentos aos dele.
Quando chegou a Torre do Cervo, dizem que
permaneceu de joelhos porta do Castelo de
Torre do Cervo durante alguns dias, vestido
apenas de serapilheira, at que a rainha em pessoa
se dignou a sair e aceitar os seus mais abjetos
pedidos de desculpa por um dia ter duvidado da
sua honra. s suas mos devolveu tanto a coroa
dos Seis Ducados como o aro mais simples do
Prncipe Herdeiro. J no desejava, disse-lhe, ter
nenhum ttulo mais elevado do que tio do seu
monarca. A palidez da rainha e o silncio perante
as suas palavras foram atribudos aos problemas
de estmago que a gravidez lhe causava. A Dom
Breu, o conselheiro da rainha, devolveu todos os
pergaminhos e livros da Mestre do Talento
Solicitude, com uma splica para que os guardasse
bem, pois havia neles muitas coisas que podiam
ser voltadas para o mal nas mos erradas. Tinha
terras e um ttulo que queria outorgar ao Bobo,
assim que este regressasse da guerra a Torre do
Cervo. E sua to, to querida cunhada, Dama
Pacincia, devolveu os rubis que Cavalaria lhe
dera, pois nunca poderiam agraciar melhor outro
pescoo que no o dela.
Eu pensara em obrig-lo a erigir uma esttua
minha memria, mas decidira que isso seria ir
longe demais. A lealdade fantica que imprimira
nele seria o meu melhor memorial. Enquanto
Majestoso estivesse vivo, a Rainha Kettricken e o
seu filho no teriam sdito mais leal.
No fim de contas, claro, isso no foi por muito
tempo. Todos ouviram falar da trgica e bizarra
morte do Prncipe Majestoso. A raivosa criatura
que o atacou ferozmente na cama, certa noite,
deixou rastros sangrentos no s na roupa da sua
cama, mas por todo o seu quarto, como se tivesse
exultado com o seu feito. Segundo os boatos, fora
uma ratazana de rio extremamente grande que, sem
que se soubesse como, viajara com ele desde
Vaudefeira. Aquilo foi muito perturbador para
todas as pessoas do castelo. A rainha mandara
trazer os ces rateiros, para esquadrinhar todos os
aposentos, mas sem qualquer sucesso. A fera
nunca fora capturada ou morta, embora rumores de
avistamentos da imensa ratazana abundassem entre
a criadagem do castelo. Houve quem dissesse que
foi por isso que, durante os meses seguintes, Dom
Breu raramente foi visto sem o seu furo de
estimao.
CAPTULO 41

O Escriba

A bem da verdade, o forjamento no foi uma


inveno dos Navios Vermelhos. Ns o havamos
ensinado bem, nos tempos do Rei Sabedoria. Os
Antigos que levaram a nossa vingana s Ilhas
Externas pairaram muitas vezes sobre esse pas
de ilhas. Muitos ilhus foram simplesmente
devorados, mas muitos outros foram sobrevoados
por drages com tal frequncia que foram
despidos das suas recordaes e sentimentos.
Transformaram-se em estranhos indiferentes
sua prpria famlia. Era esse o ressentimento que
tanto amargurara aquele povo de longa memria.
Quando os Navios Vermelhos se fizeram ao mar,
no foi para conquistar territrio ou riquezas
dos Seis Ducados. Foi por vingana. Para nos
fazer o que tanto tempo antes ns havamos feito
a eles, nos tempos das bisavs das suas bisavs.
O que um povo sabe, outro pode descobrir.
Eles tinham os seus prprios eruditos e sbios,
apesar de nos Seis Ducados serem desdenhados
como brbaros. E assim foi que as menes aos
drages foram estudadas por eles, em todos os
pergaminhos antigos que conseguiram encontrar.
Embora seja difcil que se venha a encontrar uma
prova incontestvel, parece-me que algumas
cpias dos pergaminhos recolhidos por Mestres
do Talento de Cervo podem na verdade ter sido
vendidas, nos dias que antecederam a ameaa
dos Navios Vermelhos contra as nossas costas, a
mercadores das Ilhas Externas, que pagavam
bem por coisas assim. E quando o lento
movimento das geleiras revelou, nas suas costas,
um drago esculpido em pedra negra e
afloramentos de mais dessa rocha negra, os
sbios ilhus combinaram os seus conhecimentos
com a insacivel nsia de vingana de um certo
Quebal Pancru. Decidiram criar os seus prprios
drages, e fazer cair sobre os Seis Ducados a
mesma violenta destruio que outrora lhes
havamos levado.
S um Navio Branco foi empurrado para terra
pelos Antigos quando limparam Cervo. Os
drages devoraram toda a sua tripulao, at o
ltimo homem. No seu poro foram encontrados
apenas grandes blocos de brilhante rocha negra.
Trancados l dentro, creio eu, estavam as vidas e
sentimentos roubados das pessoas dos Seis
Ducados que haviam sido forjadas. Os seus
estudos tinham levado os eruditos ilhus a crer
que uma pedra suficientemente imbuda de fora
vital podia ser esculpida em drages para servir
os ilhus. arrepiante pensar em como eles
chegaram perto de descobrir a verdade completa
sobre o modo de criar um drago.
Crculos e crculos, como o Bobo me disse um
dia. Os ilhus assolaram as nossas costas, por
isso o Rei Sabedoria trouxe os Antigos para
expuls-los. E os Antigos forjaram os ilhus com
Talento quando sobrevoaram as suas cabanas
to repetidamente. Geraes mais tarde, eles
vieram assolar as nossas costas e forjar a nossa
gente. De modo que o Rei Veracidade foi
despertar os Antigos, e os Antigos os expulsaram.
E nos forjaram ao faz-lo. Pergunto-me se o dio
ir voltar a se inflamar at que

Suspiro e ponho de lado a pena. Escrevi demais.


Nem todas as coisas precisam ser contadas. Nem
todas as coisas deviam ser contadas. Pego o
pergaminho e me dirijo lentamente lareira. Tenho
cibras nas pernas de estar sentado em cima delas.
O dia est frio e mido, e o nevoeiro que vem do
oceano encontrou cada um dos velhos ferimentos
que tenho no corpo e os despertou. O ferimento de
flecha ainda o pior. Quando o frio aperta a
cicatriz, sinto o seu puxo em todas as partes do
meu corpo. Atiro o velino sobre as brasas. Tenho
de passar por cima de Olhos-de-Noite para faz-
lo. O seu focinho est agora ficando grisalho e os
seus ossos no gostam mais deste tempo do que os
meus.
Voc est ficando gordo. J no faz nada alm
de se deitar junto lareira para cozinhar os
miolos. Por que no vai caar?
Ele espreguia-se e suspira. V implicar com o
garoto, no implique comigo. O fogo precisa de
mais lenha.
Mas antes de eu ter tempo de cham-lo, o meu
ajudante entra na sala. Franze o nariz com o cheiro
de velino ardendo e me dirige um olhar
contundente.
Devia simplesmente ter me pedido para
trazer mais lenha. Sabe quanto custa um bom
velino?
No respondo, e apenas suspira e sacode a
cabea. Sai para ir reabastecer a sala de lenha.
O garoto um presente de Esporana. J o tenho
h dois anos, e ainda no me habituei a ele. No
acredito que algum dia eu tenha sido um garoto
como ele. Lembro-me do dia em que ela o trouxe a
mim, e tenho de sorrir. Viera, como costuma vir
umas duas ou trs vezes por ano, visitar-me e me
repreender pelos meus costumes de eremita. Mas
dessa vez me trouxera o garoto. Ele ficara l fora,
montado em um pnei muito magro, enquanto ela
batia na minha porta. Quando a abrira, Esporana
imediatamente se virara e gritara ao garoto:
Desmonte e entre. Aqui dentro est quente.
Ele deslizara de cima do dorso nu do pnei e
ento ficara ao seu lado, tremendo, enquanto me
fitava. O cabelo negro lhe era atirado pelo vento
contra o rosto. Apertava um velho manto de
Esporana em volta dos ombros estreitos.
Eu lhe trouxe um garoto anunciou
Esporana, e sorriu para mim.
Eu a olhei nos olhos, incrdulo.
Quer dizer ele meu?
Ela encolheu os ombros.
Se o quiser. Achei que ele talvez lhe fizesse
bem. Fez uma pausa. Na verdade, pensei que
voc talvez fizesse bem a ele. Com roupa,
refeies regulares e coisas assim. Tratei dele o
melhor que consegui, mas a vida de menestrel
Deixou que as palavras sumissem.
Ento ele Voc teve, ns Avancei
pelas palavras, tropeando nelas, negando a
esperana. Ele seu filho? Meu?
O seu sorriso se abrira ao ouvir aquilo, ao
mesmo tempo que os olhos se suavizavam com
simpatia. Sacudiu a cabea.
Meu? No. Seu? Suponho que seja possvel.
Voc passou por Angra do Linguado h cerca de
oito anos? Foi l que o encontrei h seis meses.
Estava comendo legumes podres tirados de uma
estrumeira. A me est morta, e tem os olhos
diferentes um do outro, de modo que a irm no o
aceita. Diz que um bastardo gerado pelo
demnio. Inclinou a cabea para mim e sorriu
enquanto acrescentava: Assim, suponho que
talvez seja seu. Virou-se de novo para o garoto
e ergueu a voz. Venha para dentro, j disse.
Est quente. E h um lobo verdadeiro que vive
com ele. Vai gostar do Olhos-de-Noite.
Zar um garoto estranho, com um olho castanho
e o outro azul. A me no teve misericrdia, e as
suas memrias mais antigas no so suaves.
Chamara-lhe de Azar. Para ela, talvez tenha sido.
Eu acho que o chamo mais vezes de garoto do
que outra coisa qualquer. Ele no parece se
importar. Ensinei-lhe as letras e os nmeros e o
cultivo e colheita de ervas. Tinha sete anos quando
ela o trouxe. Agora tem quase dez. bom com um
arco. Olhos-de-Noite o aprova. Caa bem para o
velho lobo.
Quando Esporana aparece, ela me traz notcias.
No sei bem se gosto sempre disso. Coisas demais
mudaram, muitas so estranhas. A Dama Pacincia
governa em Vaudefeira. Os seus campos de
cnhamo do agora tanto papel como boa corda. O
tamanho dos jardins que existem l duplicou. A
estrutura que antigamente foi a Arena do Rei
agora um jardim botnico com plantas
provenientes de todos os cantos dos Seis Ducados
e de mais alm.
Bronco, Moli e os filhos esto bem. Tm Urtiga
e o pequeno Cavalaria e vem outro a caminho.
Moli cuida das suas colmeias e da loja de velas,
enquanto Bronco usou o que cobrou por usar
Ruivo e o potro de Ruivo como garanhes para
recomear a criar cavalos. Esporana conhece
essas novidades, pois foi ela quem os encontrou e
se assegurou de que Ruivo e o potro de Fuligem
lhe fossem dados. A pobre, velha Fuligem era
velha demais para sobreviver viagem de
regresso das Montanhas. Tanto Moli quanto
Bronco pensam que estou morto h muitos anos.
s vezes eu tambm acredito nisso. Nunca
perguntei a Esporana onde eles vivem. Nunca vi
nenhuma das crianas. Nisso, sou verdadeiramente
filho do meu pai.
Kettricken teve um filho, o Prncipe
Respeitador. Esporana me disse que ele tem as
cores do pai, mas parece que talvez venha a ser um
homem alto e esguio, como o irmo de Kettricken,
Rurisk. Ela pensa que ele mais srio do que um
garoto devia ser, mas todos os tutores gostam dele.
O av viajou do Reino da Montanha para ver o
garoto que um dia governar ambos os pases.
Ficou bastante contente com a criana. Perguntei-
me o que pensaria o seu outro av de tudo o que
acontecera em consequncia do tratado que
elaborara.
Breu j no vive nas sombras e o honrado
conselheiro da rainha. De acordo com Esporana,
um velho afetado que gosta em demasia da
companhia de mulheres jovens. Contudo, ela sorri
quando diz aquilo, e As Contas de Breu
Tombastrela ser a cano por que ser lembrada
depois de morrer. Tenho certeza de que ele sabe
onde estou, mas nunca me procurou. E ainda bem.
s vezes, quando Esporana aparece, traz para mim
velhos pergaminhos curiosos e sementes e razes
para estranhas ervas. Outras vezes me traz papel
de boa qualidade e velino limpo. No preciso
interrog-la sobre a origem dessas coisas.
Ocasionalmente, dou-lhe em troca pergaminhos
que escrevi: desenhos de ervas, com as suas
virtudes e perigos; um relato do tempo que passei
naquela cidade antiga; registros das minhas
viagens por Calcede e por terras mais distantes.
Ela as leva obedientemente consigo.
Certa vez, o que me trouxe dele foi um mapa dos
Seis Ducados. Fora cuidadosamente iniciado pela
mo e tintas de Veracidade, mas nunca chegara a
ser completado. s vezes, olho-o e penso nos
lugares que podia lhe adicionar. Mas o pendurei
na parede. No acho que algum dia o altere.
Quanto ao Bobo, regressou ao Castelo de Torre
do Cervo. Por pouco tempo. A Garota-em-um-
Drago o deixou l, e ele chorou quando ela
levantou voo sem ele. Foi imediatamente aclamado
como heri e um grande guerreiro. Tenho certeza
de que foi por isso que fugiu. No aceitou nem
ttulo, nem terras de Majestoso. Ningum tem bem
certeza do lugar para onde o Bobo foi ou do que
lhe aconteceu depois disso. Esporana acredita que
ele regressou sua ptria. Talvez. Talvez, em
algum lugar, exista um fabricante de brinquedos
que faz marionetes que so um deleite e uma
maravilha. Espero que ele use um brinco prata e
azul. As marcas de dedos que me deixou no pulso
desvaneceram at ficarem de um cinza sombrio.
Acho que terei sempre saudades dele.
Levei seis anos para regressar a Cervo. Um,
passamos nas Montanhas. Outro foi passado com o
Rolfe Negro. Olhos-de-Noite e eu aprendemos
muito sobre a nossa gente nas estaes que
passamos l, mas descobrimos que gostamos mais
da nossa prpria companhia. Apesar dos melhores
esforos de Azevinha, a filha de Olita olhou para
mim e decidiu que eu certamente no serviria. Os
meus sentimentos no ficaram minimamente
feridos e isso nos forneceu uma desculpa para
partirmos mais uma vez.
Fomos para o norte at as Ilhas Prximas, onde
os lobos so to brancos como os ursos. Fomos
para o sul at Calcede, e at chegamos a passar de
Vilamonte. Subimos a p as margens do Rio da
Chuva e o descemos em uma jangada.
Descobrimos que Olhos-de-Noite no gosta de
viajar por navio e que eu no gosto de terras sem
inverno. Caminhamos para alm dos limites dos
mapas de Veracidade.
Eu pensei que nunca mais regressaria a Cervo.
Mas regressamos. Os ventos de outono nos
trouxeram at aqui, um certo ano, e no partimos
desde ento. A casa de campo que reivindicamos
para ns pertenceu antigamente a um fabricante de
carvo. No fica longe de Forja, ou melhor, de
onde Forja ficava. O mar e os invernos devoraram
essa vila e afogaram as recordaes malignas
dela. Um dia, talvez, os homens regressaro em
busca do rico minrio de ferro. Mas no ser em
breve.
Quando Esporana aparece, repreende-me, e me
diz que sou ainda um homem novo. O que,
pergunta-me, aconteceu minha insistncia em vir
um dia a viver uma vida prpria? Eu lhe digo que
j a encontrei. Aqui, na minha casa, com os meus
escritos, o meu lobo e o meu garoto. s vezes,
quando se deita comigo e eu fico depois acordado
escutando a sua respirao lenta, penso que me
levantarei de manh e encontrarei algum novo
significado para a minha vida. Mas, na maioria das
manhs, quando acordo com dores e rgido, acho
que no tenho nada de homem novo. Sou um velho,
aprisionado no corpo cheio de cicatrizes de um
jovem.
O Talento no dorme facilmente em mim.
Especialmente nos veres, quando caminho ao
longo das falsias marinhas e olho para a gua, sou
tentado a sondar a distncia como Veracidade fez
outrora. E s vezes o fao, e sei, durante algum
tempo, o que o pescador apanhou, ou conheo as
preocupaes domsticas do imediato do navio
mercante que est de passagem. O tormento, como
Veracidade me disse um dia, que nunca ningum
sonda em resposta. Uma vez, quando a fome de
Talento ardia em mim at o ponto da loucura, at
tentei contactar Veracidade-enquanto-Drago,
implorando-lhe que me escutasse e respondesse.
Ele no o fez.
Os crculos de Majestoso j se dissolveram h
muito por falta de um Mestre do Talento que os
ensinasse. Mesmo nas noites em que estendo o
Talento num desespero to solitrio como um uivo
de lobo, suplicando que algum, seja quem for, me
responda, nada sinto. Nem sequer um eco. Ento
me sento junto janela e olho atravs das nvoas
para alm da ponta da Ilha da Armao. Aperto as
mos para evitar que tremam e me recuso a
mergulhar inteiro no rio de Talento que est
espera, sempre espera de me levar. Seria to
fcil. s vezes, a nica coisa que me detm o
toque de uma mente de lobo na minha.
O meu garoto j aprendeu o que essa expresso
quer dizer, e mede cuidadosamente o casco-de-
elfo para me insensibilizar. Acrescenta levame
para que eu consiga dormir, e gengibre para
disfarar a amargura do casco-de-elfo. Ento me
traz papel, uma pena e tinta e me deixa com a
minha escrita. Sabe que quando a manh chegar
vai me encontrar de cabea apoiada na mesa,
dormindo entre os meus papis espalhados, com
Olhos-de-Noite estendido aos meus ps.
Sonhamos esculpir o nosso drago.
ndice
CAPA
Ficha Tcnica
NOTA DO EDITOR
PRLOGO Os Esquecidos
CAPTULO 1 Nascimento Sepulcral
CAPTULO 2 A Separao
CAPTULO 3 A Demanda
CAPTULO 4 A Estrada do Rio
CAPTULO 5 Confrontos
CAPTULO 6 A Manha e o Talento
CAPTULO 7 Vara
CAPTULO 8 Vaudefeira
CAPTULO 9 Assassino
CAPTULO 10 Feira de Emprego
CAPTULO 11 Pastor
CAPTULO 12 Suspeitas
CAPTULO 13 Lago Azul
CAPTULO 14 Contrabandistas
CAPTULO 15 Panela
CAPTULO 16 Esconderijo
CAPTULO 17 Travessia do Rio
CAPTULO 18 Olho de Lua
CAPTULO 19 Perseguio
CAPTULO 20 Jhaampe
CAPTULO 21 Confrontos
CAPTULO 22 Partida
CAPTULO 23 As Montanhas
CAPTULO 24 A Estrada do Talento
CAPTULO 25 Estratgia
CAPTULO 26 Sinalizadores
CAPTULO 27 A Cidade
CAPTULO 28 O Crculo
CAPTULO 29 A Coroa dos Galos
CAPTULO 30 Jardim de Pedra
CAPTULO 31 Casco-de-elfo
CAPTULO 32 Praia do Capelim
CAPTULO 33 A Pedreira
CAPTULO 34 Garota em um Drago
CAPTULO 35 Segredos de Panela
CAPTULO 36 A Manha e a Espada
CAPTULO 37 Alimentando o Drago
CAPTULO 38 A Troca de Veracidade
CAPTULO 39 O Drago de Veracidade
CAPTULO 40 Majestoso
CAPTULO 41 O Escriba

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