Refletir Sobre Maria Hoje - Afonso Murad in MARAI Toda de Deus e Tão Humana PP 13 A 34

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1 Refletir sobre Maria hoje: marialogia Iniciar a leitura de um bom livro é como ser levado para outro tempo ou para um espago diverso daquele que estamos acostumados. Mesmo que 0 assun- to seja conhecido, o(a) leitor(a) recebe um colirio nos olhos. Adquirem-se novas eo horizonte. scitam-se pergun- informagoe -se a percep¢ao, amplia apur: tas que moverao a mente e 0 coragdo para encontrar respostas e elaborar nova perguntas, Quando se lé um livro de teologia, descobre-se que 0 conhecimento sobre a revelagao de Deus presta-se nao somente para que saibamos mais, mas principalmente para que sejamos melhores: homens ¢ mulheres mais licidos, como seguidores de Jesus. conscientes, bondosos, integrado: Este capitulo visa a introduzi-lo(a) no vasto campo da mariologia. Inicia- -se com alguns casos reais, que levantam questées existenciais, pastorais & teolégicas acerea de Maria, a mae de Jesus. A seguir, descortina os principais momentos da reflexao sobre Maria, no correr dos dois milénios de Cristianis- mo. Entao, apresenta 0 conceito de marialogia (ou mariologia). suas fontes, exigéncias e tarefas, como uma teologia contextualizada na Igreja e no mundo atual. I. Perguntas que vém da vida de uma grande cidade no Bra- Jalia, jovem religiosa, foi morar na perifer il. Visitava as familias e participava-as dos movimentos sociais e das pastorais do bairro. Fazia parte de um grupo de mulheres que se reunia para rezar 0 ter- co. Ela introduziu a leitura de textos do Evangelho e refletia com as mulheres, em estilo de cfreulo bfblico. Dizia que Maria era uma mulher do povo, simples como elas, mie e membro do povo de Deus. Uma pessoa corajosa, decidida, jesa dos pobres, os com consciéneia social, que lutou junto com Jesus em def preferidos no Reino de Deus. stava com um filho doente. Certo dia, Jiilia foi visitar Dona Mariana, que Enquanto lavava a roupa, Dona Mariana lhe disse: “Irma, eu gosto muito de que sa com voce sobre a vocé participe do terco com a gente. Eu aprendi muita coi: Mae de Jesus. Mas as vezes eu prefiro a minha Maria”. Julia nao compreendeu. Entao Dona Mariana explicou: 13 A sua Maria é parecida demais com a gente. Nos momentos mais dificeis, ela nao me ajuda a aguentar a minha vida tao dura. Quando os meninos es- tao doentes, o marido chega bebado em casa, ou falta dinheiro até para f gate a gua e a luz, eu rezo para Nossa Senhora, a minha maezinha do céu. Entao, eu sinto uma forga imensa. E como se ela me carregasse no colo. Milia voltou para casa pensativa. Como ajudar as mulheres da comunidade, tao devotas de Nossa Senhora, a conhecer Maria de Nazaré? Como mostrar que a “Maria do Céu” é a mesma “Maria de Nazaré”? Aqui esta o grande desafio da marialogia (ou mariologia) contemporanea: redescobrir a dimensio humana e existencial de Ma digao atu; e articular com sua con- al de glorificada junto de Deus. Esses aspectos parecem em conflito ou est&o meramente justapostos. Vejamos outro caso real, relatado por uma agente de pastoral. Clarice, uma mulher em situagdo de prostituigao, vivia no baixo meretri- cio, préximo ao centro da cidade. Tinha uma filha de quatro anos, a raziio de sua vida, pela qual sobrevivia e batalhava. Uma noite, 0 pai da crianga foi a seu barraco e raptou-lhe a filha. Clarice chorou demais e comentou com suas com- panheiras que a vida estava se acabando sem a menina. Nesses dias, a Pastoral da Mulher organizou nos becos uma novena a Nossa Senhora Aparecida. En- quanto a estdtua de Nossa Senhora Aparecida estava num altar florido, Clari Se aproximou, em prantos. Ajoelhou que Maria Ihe trouxesse a filha de v com ela. As outras mulheres interpr Nossa Senhora, e -se respeitosamente e, sussurrando, pediu olta. Na semana seguinte, a menina estava ptaram que aquilo tinha sido um milagre de Tempos depois, as Inmas que animavam a pastoral dessas mulheres esta- vam organizando a casa que as acol Iheria durante o dia. Na sala de atendimento, alguém colo. uw uma pequena imagem de Nossa Senhora Apar mulheres prostitutas pediu A coo: ida. Uma das rdenadora: “Irma, por favor, tire esta imagem da santa daf. Eu tenho vergonha de falar da mink depois de escutar também outras mulheres, Maria por uma de Santa Maria Madalena, Esses fatos revelam a complexidade da figura de Maria no C. De um lado, ela est4 muito Proxima, pois ouve os vem-lhes em auxilio. De outro, ha vida perto dela”. Ent&o, a religiosa substituiu a imagem de atoli lamores dos seus filhos e estd distante enquanto referéncia humana. Ma- a demais” para ser tomada como figura inspiradora para homens e mulheres que vivem uma existéne ria 6 vista como “sant ia normal. Como “a santa”, parece 14 alguém que nao passou por dificuldades humanas. Perdeu-se a trilha da pere- grinaco espiritual de Maria, do caminho que ela fez na fé, na esperanga e no amor. A figura de Maria 6 um elemento caracteristico do Cristianismo catélico e ortodoxo, em contraposigao as Igrejas protestantes. Ela aparece no imagindrio popular especialmente como a santa poderosa e bondosa que intercede por nds. a mae divina, A proximidade de Ma (0 ao fiel nao se explica pela sua semelhanga conosco, mas sim pela sua capacidade de, enquanto alguém da esfera do divino, virem auxtlio de seus filhos. A grande parte das manifestagoes Jo de siplica, da {6 como entrega devocionais marianas gira em torno da ora confiante nas mios da “Mae de Deus”, do pedido de socorro, em situagdes ex- tremas de necessidade e angiistia. E isso causa uma dificuldade para dialogar com quem descobriu o perfil humano de Maria. Quando se pergunta a um eatélico comum qual a razdo da importancia de Maria, a resposta predominante é: “porque ela é mae de Jesu essiva: mulher obediente. . E ao se pedir sobre suas qualidades, a lista é curla e pouca expr suidou de Jesus e sofreu com ele na cruz. pura e silenciosa; A visdo tradicional apresentava Maria como 0 modelo de simultaneo de e aspecto € questionado, pelo fato de ter for- mie e de mulher. Atualmente, es: talecido o esteredtipo de mulher dominada em relagao ao homem. Nessa menta- lidade, a mulher sé se realizaria enquanto mie, “padecendo no parafso do lar”. ou se optasse pela virgindade consagrada na Vida Religiosa. O lugar da mae 6 0 espaco privado da casa, cuidando dos filhos e sendo obediente ao marido. Além di: mulheres que sao casadas e vivem relagdes conjugais com seus maridos? 0, como pode Maria, mae e virgem, ser modelo para grande parte das Muitas mulheres de hoje investem em formagao académica, entram com ompeténcia no mundo do trabalho, ocupam fungées piblicas, exercem lideran- ca em movimentos sociais ¢ ambientais, assumem seu corpo e sua sexualidade. Enfim, conquistam espagos antes reservados aos homens. Mas nesse intento tam dificuldade em conciliar seu estilo de vida e a propria visio de mulher com 6 modelo tradicional de Maria, a mulher obediente, caseira e silenciada. Na pluralidade e diversidade da Igreja Catdlica, descobriram-se nos tilti mos anos outras perspectivas de Maria. A Teologia da Libertagao, a partir da pritica das Comunidades Eelesiais de Base (CEBs) e das Pastorais Populares. . como sinal da opgao preferencial de Deus valorizou a figura humana de Mari pelos pobres. Resgatou sua condigao de mulher que, oprimida numa sociedade 15 patriareal, desponta corajosamente como protagonista e mulher profética. Des- cobriu Maria como educadora e discfpula de Cristo, membro ativo da comuni- dade erista, que se empenha em realizar a missao de Jesus: anunciar o Reino de Deus e edificar uma nova sociedade, justa, soliddria e inclusiva. - Ini- A teologia feminista tragou um caminho iluminador para a marialogi ciando seu trabalho com postura muito critica, ela apontou como o dis -urso catdlico sobre Maria fortaleceu a cultura androcéntrica (centrada no homem), tirando a mulher da sua condigao de agente hist6rico e companheira do homem em igual dignidade. No segundo momento. a teologia feminista r de Maria como mulher ativa na hist6ria, junto a outras mulheres. A atual “teolo- gatou a figura gia de género” considera Maria nao mais um modelo para as mulheres, mas sim uma figura inspiradora de todo ser humano. Na América Latina e no Caribe, o Catolicismo vive forte embate com Igre- Jas evangélicas originadas do “Protestantismo de mi sideram varie Ss con- 5 Igre praticas catdlicas como manifestagdes do paganismo, as quais devem ser radicalmente banidas da vida de quem se converte e aceita Jesus. O culto a Maria e aos santos seria uma mera continuidade da idolatria, de- munciada claramente na Biblia. Influenciadas também pelo fundamentalismo Protestante pelo Pentecostalismo, surgidos nos Estados Unidos no inicio do século XX, varias denominaco (c excludente) a tnica mediagao de salvagao para toda a humanidade. Os santos nao podem realizar nada, vinda de Cristo. to é de forma exclusiva es afirmam que Jesus Cri pois esto mortos, no sono eterno, & espera da segunda ___ Em vérias partes do mundo, a figura de Maria 6 colocada a s vigo do pro- Jeto de restauragao catélica, Exaltam-se os privilégios de Maria, prega-se que a oracao do rosério 6 obrigatoria, utiliza-se o dogma da virgindade para justificar preceitos de moral sexual, divulgam-se pretensas aparigdes de Maria ¢ suas mensagens como se fossem 0 quinto evangelho. A enorme devogao a Maria, a adoragao ao Santis: mo Sacramento e 0 culto personalista ao Papa sao apre- goados como as tinicas caracterfsticas do Cristianismo catélic a devogao mariana exagerada e descone . Ora, o estimulo. ctada da pessoa de Jesus Cristo parece Smo nas massas, mas tornar-se-4 um pr blema no futuro. Pois um Cristianismo sem Jesus, distante da Biblia e uma solugao para expandir 0 Catoli adornado com excesso de devogées perde seu foco e com o tempo mostra O tiltimo censo do Brasil e outras pesquisas rece e fragil. ntes sinalizaram que len- lamente cresce 0 percentual da populagio que se declara como “sem crenga’ 16 ou* do religiosa. Nao se sabe se tal tendéncia se consolidara ndiferente” a que nos préximos anos. Mas o fato faz pensar. O recurso indiscriminado a prétieas mi as e mil; ig greiras em varias Igrejas eri ejam catélicas, sejam evangé licas, pode levar, a longo prazo, rejeigdo ao Cristianismo, a indiferenga religio- sa ou ao desenvolvimento de uma religiosidade meramente privada e altamente sincréti a. O estudo sobre M aria deve ajudar a conhecer quem é essa mulher que viveu em Nazaré, foi companheira de José e mae de Jesus, membro da comu- nidade de seus seguidores e hoje esté na comunhdo dos santos, perto de Jesus seu ¢ (do préxima aos seres humanos. A mariologia (ou marialogia), como parte da teologia crista, visa a ser Boa-Nova para homens e mulheres do nosso tempo. II. Breve histéria da marialogia 1. Panorama do caminho percorrido Em largos tragos. podemos dizer que 0 primeiro milénio do Cristianismo gestou uma reflexao sobre Maria no conjunto da fé crista e da teologia. Nao havia marialogia como tratado em separado. Nos primeiros séculos, encontram- se homilias sobre Jesus nas quais se faz referéncia a Maria. A preocupagiio central da teologia nascente esta em Jesus, na sua humanidade e divindade. E justamente das polémicas cristolégicas brotam os dogmas da maternidade e da yindade de Maria. Surgem também hist6rias piedosas de Maria, como 0 Protoevangelho de Tiago (provavelmente do inicio do século III) ¢ Vida de Maria, do Monge Epifa- nio (século VII), que fa nao respeilam a centralidade de Jesus e abusam de narragdes mitolégicas sem ilmente se difundem. Os “Evangelhos apécrifos”, que fundo histérico, embora ndo tenham sido aceitos pela Tgreja oficial na época, serviram de base para 0 crescimento da devogao mariana. eo crescimento da piedade marial, que culmi- Na Idade Média, presencia ma Virgem de Sao Bernardo de Claraval (¥ 1153). na com 0 Tratado da Santiss Do grande tedlogo Santo Tomas de Aquino nao hé tratado de mariologia, nem na Suma Teoldgica, nem em outros escritos. Na mesma época, no Oriente floresce . O culto vai a frente da teologia. uma rica iconografia mariana e hinos litirgico Fala-se de Maria de uma forma mais simbélica do que dogmatica. No Ocidente, pinturas e esculturas marianas multiplicam-se a partir do Renascimento, apre- sentando em Maria tragos humanos de beleza tmpar. 17 A marialogia sistematica surge na Idade Moderna. No século XVI, a Refor- ma Protestante, ao centrar-se na salvagdo em Cristo, promove um corte radical na devogdo aos santos e, sobretudo, a Maria. Destroem-se imagens e pinturas dos santos e de Maria. Em reagao, a Contrarreforma catdlica retoma com mais vigor a figura de Maria, em contexto polémico. Fortalece 0 culto a Maria, sepa rada da pessoa de Jesus. O primeiro tratado mariano é elaborado por Francisco Suarez (1584). Jé o termo “mariologia” foi cunhado por Placido Nigido, em 1602. A partir do final do século XVI, criou-se a marialogia dos “privilégios Tratava-se de mostrar tudo que Deus concedeu a Maria, que a faz ser melhor do que os outros seres humanos. De acordo com a escolastica, faz-se uso do mé- todo dedutivo e do silogismo, acrescidos de argumentos de conveniéncia. Eles funcionavam assim: Deus podia; convinha que fizesse; logo, fez. Por exemplo: Deus, que € todo-poderoso, podia criar uma filha que nao fosse manchada pelo Pecado Original. Ora, convinha que ele fizesse isso, em vista da obra redentora de Cristo. Entéo, Deus concedeu a Maria o privilégio da Imaculada Conceicio. Contra 0 crescimento da razaio moderna, auténoma, antirreligiosa e antie- os cresce, nos séculos XVIII e XIX, a mariologia devocional, de cunho afetivo, no qual se misturam elementos simbélicos e racionais. Nessa linha, S40 Luis Maria Grignion de Montfort (1716), no Tratado da verdadeira devogao a Santissima Virgem, n. 76, afirma que Maria é a rainha do céu e da terra. Citando Anselmo, Bernardo e Boaventura, chega a dizer que “ao poder de Deus tudo 6 Submisso, até a Virgem; ao poder da Virgem tudo é submisso, até Deus”. Esta é ii tendéncia dominante: mariologia triunfalista e maximalis a, dizendo que para nelergdbiee € demais exalté-la. Em latim: De Maria nunquam o s dogmas da Imaculada Conceigao (1854) e da Assun- $0 (1950) aumentaram ainda mais a “euforia mariana”. No inicio da década de 1960 ja se pr a ; J Preparavam novos dogmas, de Maria mediancira de todas as gragas e corredentora, Essa onda de exagero mariano comegou a baixar somente com o advento do Coneitlio Vaticano II, esse grande momento de revistio e mudanga na [greja. Os movimentos de renovagao da Igreja, direcdo contréria & mariologia da época. tristica, com a “volta as fontes”. que culminaram no Coneflio, iam em O movimento biblico e o estudo da pa- : » pedem maior centralidade na pe questionando uma visio de Maria desvinculada da cristologia. O ecuménico valoriza 0 nticleo comum as Igrejas crista lugar as devogdes. A renovagao dogmatica inicia uma partir da Biblia e da evolugao historic pa de Jesus, movimento . colocando em segundo releitura dos dogmas, a . € assim desmonta a mariologia armada 18 somente sobre devogées, silogismos e argumentos de conveniéncia. A mentali- dade antropocéntrica, que coloca 0 ser humano no centro do pensamento, ques- tiona uma Maria endeusada, sem histéria e sem contexto. Como fruto de todo esse processo de renovagio, 0 Coneilio Vaticano IT inseriu Maria no capftulo VIII do documento Lumen Gentium. Situou Maria no mistério de Cristo e da Igreja, e nao num tratado a parte, como queriam os grupos conservadores. Na década de 1970, a devogao e a teologia marianas entram numa crise sem precedentes, sobretudo nas regiées de cultura ocidental moderna: Europa, Estados Unidos e Oceania. Chegou-se ao extremo de um “minimalismo maria- no”. Ha A se falou demais sobre Mari ia gente que dizi a. Agora, é tempo de calar”. Com a entrada do pensamento moderno na teologia vém também as suspeitas sobre a figura de Maria, de natureza psicolégica, sociocultural, religiosa e politica, A retomada da mariologia acontece em meio a essa crise. A exorl a¢iio apostélica, de Paulo VI, Marialis Cultus (“O culto a Maria”), de ao do culto a Mar 1974, fornece preciosos elementos para a renova na pers- pectiva do Coneflio. Posteriormente, Jodo Paulo II publica a encfcliea A mae do redentor (1987), na qual sistematiza varios dados sobre a Mae de Jesus, na Biblia e na Tradigao eclesial. Por fim, a carta apostélica sobre o Rosario (2002) sugere ampliar essa devogao, ao incluir a recitagao/meditagao dos mistérios da vida de Jesus. Atualmente, a reflexdo sobre Maria, que chamamos mariologia ou marialo- gia, expressa a pluridade do mundo e de suas culturas. Ha trabalhos bem fun- damentados sobre Maria na Biblia que constituem a base comum sobre o perfil de Maria nas Igrejas cristés. Desenvolvem-se pesquisas a respeito de Maria no didlogo inter-religioso com o Islamismo, o Judafsmo, as religides afro-america- nas e a religiosidade P6és-Moderna. Somam-se a isso a contribuigdio da Teologia ¢ 0s dogmas marianos com dupla fidelidade 4 Tradigdo e a contemporaneidade. Buscam- -se paradigmas (modelos de compreensao) para organizar com sentido os dados 0. carismatica da Libertagao, da teologia feminista e da ecoteologia. Interpretam-~ da Biblia, do culto do dogma a respeito de Maria. A renovag destaca a rela da em Jesus e na Trindade, que visa a balizar a peregrinagao espiritual de homens e mulheres, com Maria. De outro lado, reaviva-se na Igreja a mariologia Jo de Maria e 0 Espfrito Santo. Cresce a espiritualidade mariana centri de privilégios, 0 maximalismo mariano, a devo iana sem limites. Nesse conflito de interpretagdes” o tedlogo deve elaborar a marialogia mar bravio do 19 para os nossos dias. Tarefa desafiadora, que deve ser empreendida em espirito de respeito e didlogo. Para evitar relativismos e falta de critérios, 6 necessario recorrer aos documentos do magistério eclesial, norteadores da marialogia con- tempordinea, a comegar do Vaticano II. 2. Linhas basicas da mariologia no Vaticano IT O capitulo VIII da constituigao dogmatiea Lumen Gentium, do Concilio Vaticano I (proclamada em 21.11.1964), constitui a mais importante referéncia do magistério da Igreja Catdlica a respeito de Maria, a mae de Jesus. ‘Trata-se de um documento oficial, emanado por um Conetlio ecuménico, ap6s longo pro- cesso de didlogo, discussao, refle: conflito, até alcangar consenso. Por s , oragdo, Concessdes entre as correntes em 1 declaracao do Magistério extraordinario (todos os bispos do Oriente ¢ do Ocidente, em comunhao com o Papa), que con seguiu conciliar diferentes posigdes a respeito da mae de Jesus, no espirito de sensibilidade aos sinais dos tempos, deve ser reconhecido como tal e difundido amplamente, O documento apresenta o seguinte esquema: Introdugao (52-54;) A missio de Maria na histéria da salvagdo (55-59); 3. Maria e a Igreja (60-65); O culto de Maria na Igreja (66-67); 5. Conelustio: Maria, sinal de esperanga para o Povo de Deus peregrino (68-69). Na introducdo, afirma-si © que o Concilio nao propde a doutrina completa sobre Maria nem quer dirim ir as questées ainda nao trazidas A plena luz pelo trabalho dos te6logos (n, 54), Evitam-se titulos exagerados ou controversos. Os padres conciliares reconhecem Maria como “Mae dos membros (de Cristo). porque cooperou com o seu amor bros daquela cabega” forma isolada. para que na Igreja nascessem os fiéis, mem- (n. 53). Situam Maria na comunhao dos santos, e nao de Ela “ocupa depois de Cristo o lugar mais elevado e também o mais préximo de nés” (n. 54), O capitulo VIII da Lumen Gentium também é resgata a contribuigéo da teologia biblica, que hy curso sobre Maria nos tiltimos séculos. E original pela forma como avia sido dissociada do dis- m vez dos arroubos da apologética mariana, que usava citagdes bfblicas de forma aleg6rica e descontextualizada, simplesmente para ilustrar as conclusées, optou-se por uma visao sist@mic 20 na, a partir da hist6ria da salvagao. Assim, diz-se que no Antigo Testamento Maria é profeticamente esbogada como a mulher que vence a serpente, a Virgem mie do Ao trazer a luz os Emanuel, uma dos pobres de Javé e a Filha de Sido (cf. n. ngelhos sobre a Mae de Jesus, o Concilio traga um perfil dinamico de Maria. Na Anunciagao, Maria nao é um instrumento meramente passivo, mas cooperou para a salvagdo humana com livre {é e obediéncia (cf. n. 56) entre Mae e Filho na obra da salvagao ¢ um processo, que se estende concepgao virginal de Cristo até a sua morte” (n, 57). No ministério publico de Jesus, Maria avangou em peregrinagao de fé, de Cand até a cruz (cf. n. 58). Em Pentecostes e na Assungao, para que mais plenamente estivesse conforme o s Filho, foi exaltada como Rainha do Universo (cf. n. 59). Apés apresentar tragos do perfil biblico de Maria e sua mi 0 Coneflio Vati- cano II responde com clareza a esta crucial pergunta dogmatico-pastoral: se Je- da salvagao, aborda-se a relagdo de Maria com Jesus ea gre} sus 6 0 tinico mediador entre Deus e a humanidade, como compreender, entao, a intercessao dos santos ¢ especialmente a de Maria? Conforme 0 documento io materna de Maria ndo diminui sto € 0 tinico mediador. A mi: conciliar, Cri: a mediagao tinica de Cristo, mas mostra a sua poténcia. Nao se origina de uma necessidade interna, mas do dom de Deus. Nao impede, mas favorece a unido dos fiéis com Cristo (ef. n. 60). Nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo plano do Verbo encarnado e redentor. Mas 0 sacerdécio de Cristo é par- ticipado de varios modos pelo Povo de Deus, e a bondade de Deus € difundida nas criature s. A inica mediagao do Redentor suscita nas criaturas uma variada cooperagao, que participa de uma tinica fonte (cf. n. 62). O coneflio reconhece a legitimidade de recorrer a intercessao de Maria, pois trata-se de cooperagao na tinica mediagao de Ci o “medianeira”, ambigua e sto. Nao se utiliza a expre: com acentos maximalistas. A colaboracgao de Maria nao esté no mesmo plano da missao redentora de Jesus. Situa-se em fungio dessa missdo e dela depende incondicionalmente. 0 culto a Maria 6 singular, diferindo e orientando-se para 0 culto 4 Trindade (cf. n. 66): recomenda-se o culto a Maria, evitando tantos os exageros quanto a demasiada estreiteza de esptrito. A verdadeira devogdo a Maria nao consiste num estéril e transitério afeto, nem numa va credulidade, mas no reconhecimento da figura de Maria e no seguimento de suas virtudes (ef. n. 67). No que diz respeito a relagao de Maria com a Igreja, 0 Coneflio mostra que simbolo e mae da Igreja, a partir de sua relagdo fmpar com Jesu ela é membro, 21 Nao se trata somente da maternidade bioldgica. Maria foi mae, ompanheira e serva do Senhor, tornando-se assim, para nés, mae, na ordem da Graga (cf. n. 61). Devido & sua maternidade, & unio de misstio com Cristo e as suas \‘ singulares gracas e fungdes, Maria esté também intimamente relacionada com a Igreja (cf. n. 63). Ha semelhanga entre ambas, Como Maria, a Igreja é mae ¢ virgem: gera novos filhos pelo batismo, guarda a palavra dada ao Esposo, vive na fé, ranga e caridade (cf. n. 64), je: A Lumen Gentium, constituigao dogmatica do Vaticano II sobre a Igr encerra-se com uma bela imagem acerca de Maria, sinal para o Poyo de Deus peregrino. Distanciando-se do discurso triunfalista dos privilégios marianos, apresenta-se a \ . Maria infeio da Igreja que se hé de consumar no século futuro, assim também, na terra, e de Jesus como figura realizada do cristao e da Igrej assunta ao céu é “imagem e brilha como sinal de esperanga segura © de consolagio, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor” (n. 68) Em sintese, o capitulo VII da Lumen Gentium, como palavra do Magisté- rio da Igreja, orienta a mariologia em varios sentidos: *° Apresenta a Mae de Jesus nao de maneira isolada, mas sim em relagao de interdependéncia com Cristo e a comunidade de seus seguidores (a Igreja). Traz nova luz para os dogmas marianos ¢ 0 culto a Maria, a partir de ele- mentos da hist6ria da salvacao e da teologia biblica. Mostra que € possivel ¢ necessério elaborar o discurso mariano de maneira equilibrada, licida e contemporanea, que evite a légica dos privilégios, os silogismos e os argumentos de conveniéncia. . Nao fecha a marialogia num tratado hermético. fio pretende responder a tudo. Antes, estimula os tedlogos a continuar seus estudos, para esclarecer ¢ aprofundar temas em fase de maturagao (cf. n. 54). A partir do espfrito do Concilio, 0s mariélogos nao sao considerados como me: Magistério da Igreja. Em comunhao com a Biblia, a Tradi e os sinais dos tempos, el repetidores do , 0 Magistério tem a missdo de contribuir para o avango da teologia mariana na Igreja, Articula-se principalmente com textos biblicos e patristicos. N aio ha refe- réncias explicitas a tradicionai tratados de devogao a Maria nem a men- sagens de videntes. 22 Nos tiltimos aracteristi » perfil ficou restrito praticamente a trés elementos: 0 * © Amplia do perfil biblico-teoldgico de Mari im” da séculos, ess a unido com o filho no momento da Anunciagao, a maternidade biolégi cruz. O Coneflio descortina outras caracteristic companheira de Jesus, servidora (cf. n. 61), mulher que avanga em peregrinagao na fé, de Cand vz (cf. n. 58). até ac © Poe as bases teoldgicas necessdrias para superar a ambiguidade de titu- los marianos, como “medianeira” e “corredentora”. Sem meias palavra reafirma-se o dado btblico central: “Jesus é 0 tinico mediador™. Maria e os santos cooperam na missio salvifica de Jesus. Tal cooperagao nao os eleva ao mesmo nivel de Jesus. © Aponta as miltiplas e complementares formas de relagdo de Maria com a comunidade dos seguidores de Jesus. Maria é simultaneamente membro, mie e protétipo da Igreja. © Alerta sobre os equivocos dos extremos do minimalismo (subtrair a presen- ca de Maria do cotidiano dos catélicos) € do maximalismo (devocionismo que se afasta da centralidade de Jesus). Nem toda forma de devogao mari: na é aceila pela Igreja. Critica-se o afeto estéril e transitério e a va credu- lidade. Valoriza-se a atitude de inspirar-se no perfil biblico-espiritual de Maria ( virtudes 1a Ill. Estudar e elaborar marialogia 1. Conceito e etapas A marialogia 6 a disciplina teolégica que estuda o lugar de Maria no pro- a rela jeto salvifico da Trindade e com a comunidade eclesial. Enquanto saber teolégico, a marialogia é uma reflexo sistematica, critica e sapiencial que parte da {6 e a fé retorna. Respeitando as diferentes correntes de pensa- mento, pode-se afirmar que a marialogia mais adequada é aquela que ajuda os cristaos a seguir a Jesus com mais empenho e a compreender melhor aquilo em que creem. Do ponto de vista do contéudo, a marialogia pode ser dividida ao menos em trés blocos. O primeiro aborda Maria na Brblia. Mostra quem é Maria de Nazaré a histérica e simbélica da comunidade crista das origens e reflete enquanto figui sobre seu signi ja, compreendendo a liturgia e a devogao. 0 terc ou de hoje. O segundo trata do culto a Maria icado para os dic na Igre iro estuda os quatro 23 dogmas marianos — maternidade divina, virgindade, Imaculada i aEUTIGAG -e explica-os em linguagem compreensivel. Resumidamente, a mariologia estuda sobre a pessoa de Maria com 0 triplice olhar da Biblia, do culto e do dogma. Pro- cura responder, assim, & pergunta: Qual é 0 lugar de Maria no projeto salvifico de Deus, iniciado na criagéio; mediado na vida, morte e ressurreigao de Jesus Cristo e continuado pela agiio do Espfrito Santo na histéria? Hé, ainda, outras abordagens sobre Maria. Pode-se faz co-eclesial, que contempla como a comunidade crista compreendeu sua figura no correr dos tempos. Com a ajuda das ciéncias da religido, faz-se uma anili- se das diferentes visbes sobre a mae de Jesus em diversos cendrios religios er a leitura hist6ri- OS e socioculturais, tanto no sincretismo religioso tradicional quanto nas formas fragmentérias da religiosidade Pés-Moderna. f possfvel também estudar a es- Piritualidade mariana apresentando Maria como modelo de vida para os cristdos ea Igreja. Ou, ainda, perceber como Maria é vista em dif logicas cristas atuais, erentes corrente como a teologia das religides, a teologia da libertagao, @ teologia de género, a teologia indigena e negra etc. 5 leo- A reflexdo teolégica sobre Maria compreende etapas interdependentes. como subir uma escada de trés degraus. No nivel basico situam-se os dados biblicos sobre a mae de Jesus. Eles sao imprescindiveis para nao se construir a marialogia sobre o vazio. Toda reflexao teolégi consistente baseia-se na Sa- grada Escritur; } No segundo degrau estao os dogmas marianos, que conder grande parte da reflexao eclesial sobre Mari a Maria, compreendendo a devo. mutuamente ¢ hé uma pri m , sem esgoté-la. Por fim, 0 culto ao e a liturgia. Os trés degraus relacionam-se ridade histérica da Sagrada Escritura sobre o dogma leremos 08 textos biblicos sem deixar-nos tocar por € 0 culto. Caso contrario, eles, e somente confirmaremos o que esté proclamado nos dogmas e consolida- do na devogao. 2. Fontes Quais sao as fontes as quais recorre o pesquisador de mariologia ou o aluno se dispde a estudar sobre Maria, a Mae di Jesus? Podem-se distinguir fontes essenciais, complementares e suplementares (a) Fontes esseneiais: como o nome ind estudo acer , silo imprescindiveis para 0 a de Maria para alunos e professores da grad ¢&o em teologia. Compreendem: uagio ou especializa- 24 Sagrada Escritura, fonte primeira de toda teologia. Além de recorrer dire- zado tamente aos textos btblicos, 0 pesquisador serve-se do trabalho real pelos biblistas, sobretudo aqueles que escrevem sobre os Evangelhos de Lucas e Joao. a Maria nos primeiros ¢ — Escritos patristicos. Ha belfssimas referénci rios bfblicos e oragdes. culos, em forma de homilias, hinos, comenté basta copiar as Es seu horizonte cultural e eclesial e em relagdo a totalidade do texto, que itagdes dos autores. Essas devem ser compreendidas no normalmente est4 centrado na pessoa de Jesus. Para auxiliar este estudo. é titil recorrer aos telogos que comentam textos patrfsticos, sejam mari6- logos ou nao. ja sobre Mari qui se elencam as prin- cipais afirmagoes sobre a Mae de Jesus, formuladas em coneflios ecumé- © — Documentos do Magistério da lar nicos, documentos papais e conclusdes das conferéncias do episcopado cida. Esses documentos latino-americano, sobretudo em Puebla e Apar apresentam as formulagées dos dogmas marianos, oferecem elementos para sua interpretagao atual e fornecem orientagoes pastorais para 0 culto. Os textos mais antigos devem ser analisados a luz do contexto e da lingua- gem da 6poca, para evitar anacronismo} critos sao fundamentais ¢ — Textos ecuménicos acerca da Mée de Jesus. Tais es para compreender 0 consenso cristao a respeito de Maria, os pontos em co- mum e as principais diferengas. Ajudam a superar a intolerancia religiosa e suscitam respeito recfproco entre as Igrej © — Diciondrios e livros contemporéneos de marialogia/mariologia. Tais obras sintetizam, organizam e apresentam, com o olhar préprio de cada autor. (as) os conhecimentos sobre Maria na Biblia, no culto e no dogma. Vari logos(as) estabelecem um didlogo da teologia com a sociedade con- temporanea, suas buscas e questionamentos. (b) Fontes complementares: dependendo do tipo de estudo especffico », elas podem ser a ser realizado, especialmente em pesquisas de pés-gradua ai ssenc ¢ — Escritos de tedlogos, misticos e missiondrios no correr dos séculos. Tais tex- ao devem tos contém elementos preciosos para a reflexio sobre Maria. ser lidos de forma literal e fora de seu contexto. pois muitos deles es' La-se fio influenciados pelo maximalismo mariano ou pela visdo da época. Tr de reinterpretar as intuigdes desses autores & luz da teologia biblica e das 25 grandes linhas teoldgicas do Concflio Vaticano II, espe lo VIII da Lumen Gentium. almente 0 capitu- ° — Estudos de natureza antropoldgica e histérico-cultural. A figura de Maria e sua devogao ficaram impregnadas na cultura ocidental em dois mil anos de Cristianismo. Influenciaram e foram influenciadas pelas diferentes per- cepgoes de etnias, subculturas e grupos sociais. No correr dos século: gura cultural de Maria apresentou simultaneamente elementos de resi cia & dominagao aos poderes opressores ¢ de legitimagiio desses poderes. Por isso as pesquisas das ciéncias da religido, da hist6ria, da antropologia, da sociologia, da histéria da arte contribuem para compreender a ambig: dade das manifestagdes culturais sobre Maria ¢ podem ajudar a purificar a fé crista. A mariologia serve-se, assim, de varias reas do conhecimento, acolhe suas conclusdes de forma lticida e erftica e faz uma leitura teolégica de seus estudos. stén- ul Pinturas, esculturas, misicas, poemas ¢ outras obras arttsticas. Hé um enor- me acervo de produgao artfstica em torno da pessoa de Maria que serve a0 maridlogo como matéri: i -prima para sua reflexdo. Esse material utiliza linguagem prépria, n&o conceitual, e traz abordagem rica e diversificada, que permite amplo leque de interpretagao. A grande pergunta que orienta © estudo de obras artisticas com temitica religiosa 6: O que o autor quis comunicar sobre Deus, o ser humano e Maria, que é significativo para nés je? < . “. ‘ . hoje? Inclui-se aqui também o estudo sobre os {cones orientais, que + mais do que obra artistica, pois constituem uma narragdo espiritual em forma de imagem sobre Jesus e Maria. Manifestagdes devocionais atuais. A cultura produgao de significados. algo vivo e dindmico que transmite valores e visio de mundo. Assim, ¢ tudar as manifestagdes da religiosidade mariana, ou servir-se do resultado das pesquisas de outros, fornece elementos para o discernimento pastoral eareflexdo teolégica. As ciénci s da religiao sao grandes parc tarefa. Convém recordar que os estudos de natureza antropolégica, cultural € sociolégic kK sobre Maria nao sao ainda marialogia. Constituem matéria~ “prima que deve ainda passar pelo crivo de interpretagaio da Btblia e da Tradicao eclesial para tornar-se teologia marial. (c) Fontes suplementares: recebem este nome por tratarem-se de es- critos que fornecem informagées ou conhecimentos que podem ser titeis para a pastoral e a teologia, mas nao sao imprescindiveis nem fazem parte do nticleo 26 Nao tém forga de obrigagao. Trata-se de do ensino da Igreja a respeito de Mar im deve ser tratado. Por isso nado convém rista. Sao ela: algo que esté na esfera devocional e tomé-las como fontes essenciais e vinculantes para a fé © Os Evangelhos apécrifos, elaborados em grande parte entre os séculos II a VIIL Eles cireulavam com a pretensao de serem livros inspirados, mas nao foram reconhecidos como tais pela Igreja devido aos exageros e desvios do pensamento teolégico. Portanto, é equivocado sustentar que eles fornecem informagoes fidedignas sobre Jesus e Maria, para completar 0 que falta nos Evangelhos. Hé afirmagées que so contrérias aos textos biblicos. Veja ‘Textos complementares”. Dos ap6- mais detalhes sobre 0s apécrifos nos crifos aproveitam-se apenas dados secundarios, tais como: o nome do pai e da mae de Maria (Joaquim e Ana), 0 ntimero e 0 nome dos reis magos ete. © — Asnarragées da Vida de Jesus e de Maria elaboradas por videntes e mfstic medievais. Elas nao foram reconhecidas por concflios e outros documentos oficiais da Igreja como fontes de informagdes histéricas, embora tenham alimentado a devogao. O grande problema é que esses relatos sao divul- gados hoje com a pretensio de serem revelagoes diretas de Deus, a serem aceilos sem nenhuma discussao. Mas eles esto fortemente influenciados pelo contexto cultural, as estruturas psfquicas e a imaginagio criativa de seus autores. © As mensagens de videntes de aparigdes marianas nos dois tiltimos séculos. Elas sao compreendidas pela Igreja como “revelagdes privadas”. Merecem a classificagao de “dignas de fé humana” e no tém forga de obrigagao para os cristaos. Infelizmente, sdo consideradas por alguns grupos catéli- cos como palavras diretas de Maria, em concorréncia com a Biblia. Volta- remos a esse assunto no capftulo sobre as aparigoes. As fontes e recursos utilizados na elaboragiio da mariologia influenciam diretamente seus resultados. Nesse sentido, ndo se pode considerar todas as informacées como se estivessem no mesmo nivel. Isso conduz a uma série de a Bfblia, a Patristica e a Tra- equivocos na reflexio teolégica. Sao prioritéria digo eclesial, lidas em relagaio com os sinais dos tempos. 3. Exigéncias e tarefas A marialogia contempordnea exige, em primeiro lugar, boa base biblica. Isso significa conhecer em profundidade os textos sobre Maria, relacionando- sita também percorrer a hi -08 com 0 autor biblico sua teologia. Nec da reflexio de {6 da Igreja, para compreender como surgiram os dogmas ma- rianos e situd-los em seu contexto. Além disso, para pensar sobre o sentido da e estabele figura de Maria dev er relagdo com outros campos da refle teolégica que tratam de Jesus, da Igreja, do ser humano & luz da fé e de sua salvagao. O tedlogo percorre as disciplinas teolégicas e com elas vai tecendo a marialogia. e num hori O grande limite de professores e de livros de marialogia resid zonte teolégico estreito, que nao relacionam a figura de Maria com outras dreas e disciplinas da teologia. Ora, alguém vai escrever sobre a Mae de Jesus em Lucas, deve conhecer bem a teologia do terceiro evangelista. S dogma da Assungao, necessita lidar com a disciplina teolégic que reflete sobre a morte, a ressurreigao e a finalidade da histéria. Nao basta que seja recheada de citagdes isoladas de Padres da Igreja, concflios e papas. Deve ser articulada, > reflete sobre o da escatologia. consistente e abrangente. Por fim, a reflexaio atual sobre Maria se faz com o olhar e 0 coragao sinto- nizados com o caminho existencial ¢ e: piritual de homens e mulheres de hoje. Isso requer uma agugada sensibilidade historica e dialogal. O tedlogo esta aten- to nao somente aos livros publicados, mas também aos fatos significativos e as suas interpretag Assim, ele atualiza e reinterpreta os dados btblicos-teolé- gicos sobre Maria A luz dos sinais dos tempos e das praticas eclesiais. Busca conhecer as praticas litérgicas e devocionais marianas, visando purificd-las € Tesgatar seu sentido espiritual. A alogi 4 + marialogia contempordanea tem pela frente desafios e tarefas. Apontam- -se aqui alguns deles. a) D i - . rn - Phar 0 lugar apropriado de Maria na histéria da salvacao. mM muilas manifestagdes devocionais, parece que Maria tomou o lugar de Jesus. Ao proclamar que somente Jesus é “O Senhor” e que 0 culto cristao é trinitario, faz-se nec: sério refletir sobre a contribuigéo de Maria e dos outros santos no projeto salvifico da Trindade. A marialogia deve, cada vez mais, nos apontar para Jesus e 0 Reino de Deus. Pois Maria esta toda referida a Cristo. A marialogia atual visa a responder A pergunta: Qual é 9 lugar de Maria no projeto salvador de Deus em relac jo A humanidade? Essa reflexao deve estar a ticulada com os grandes tratados teolégicos so- bre Cristo, a Trindade, 0 Espfrito Santo, a Graga e a Igreja. b) Reinterpretar os dogmas. Alguns dogmas marianos apresentam dificil compreensao e questiondvel aceitagiio. Qual o significado humano e es- °) d) piritual da Virgindade Perpétua de Maria? O que quer dizer “Imaculada Conceigao”, numa visdo atualizada da Graga e do Pecado Original? Nao basta repetir 0 que disseram os concflios e os papas. FE. preciso proclamar essas verdades de uma forma coerente com avango dos estudos teolégi- cos. E mais ainda: que tenha sentido para a existéncia dos cristaos. Fornecer critérios pastorais para orientar a devogao. A teologia reconhece que no horizonte catélico as priticas devocionais em princi pio sao legitimas. Apresentam muitos valores e oportunizam momentos de evangelizagdo. Mas também sofrem forte influéncia dos contextos culturais na qual foram gestadas ¢ tendem a se tornar anacronicas. Por isso a mario- logia tem o dever de oferecer parametros que ajudem os cristaos ¢ as Igre- je e significativa, e referida sempre a Jesu: particulares a manter a devogao no lugar certo, de forma equilibrada A mariologia ainda oferece aos agentes de pastoral e aos presbiteros uma reflexao atual sobre Maria, que serve de subsfdio para homilias, exortagdes pastorais, pregagdes, vigilias e momentos orantes, e fornece contetido para a catequese e a formagao leigas. teolégico-pastoral de liderangas Discernir sobre as aparigées. O comego do século XXI traz em seu hojo uma crise epocal, que favorece a eclosdio de pretensas aparigdes ma- rianas, com insistentes apelos de conyersao e mensagens apocalfpticas. Quais a terem critérios de discernimento em relagao as mensagens dos videntes dio legitima srvem? A marialogia deve ajudar os cristaos ? A quem € aos movimentos aparicionistas. Colaborar no didlogo ecuménico e inter-religioso. Durante mui- to tempo utilizou-se Maria como um escudo contra as outras Igrejas cristas. Com o Vaticano II floresceu a marialogia bfblica e com isso estabeleceram-se alguns pontos de consenso entre catélicos, ortodo- xos e protestantes das Igrejas histéricas. Resta continuar tal caminho, tocando os delicados pontos do culto e do dogma, em per pectiva ecu- ménica. Respeitar as diferencas ¢ favorecer um aprendizado recfproco. Além disso, a f@ crista é chamada a dialogar com as outras religides. s até os modernos desde 0 classico Budismo e os cultos afro-brasile' esoteris Algumas formas de religiosidade P6s-Moderna se apro- mos priam da figura de Maria, a partir da figura mitolégica da deusa mae, revestindo-a de um “manto catdlico”. A teologia deve fazer uma leitura critica desse fendmeno. Em poucas palavras Maria é uma figura importante no imaginario catélico. Predornina o perfil da santa pode- rosa e bondosa, a mae do céu, mas este ndo € 0 Unico. O estudio sobre Maria, que chamamos ™arialogia ou mariologia, visa a ajudar os cristéios a descobrir outras dimensées da pessoa de Maria, especialmente a partir da Biblia. Realiza uma reflexdo teolégica articulada com varios temas, como a Trindade, 0 culto cristo, a Igreja e a antropologia. Nesse espirito de humildade € didlogo com © mundo faz-se uma marialogia que supere os equivocos do maximalismo e estimule o seguimento a Jesus, com Maria e inspirado nela. Devogéio mariana e marialogia sao formas diferentes e complementares de se apro- ximar da mae de Jesus. A devogao mariana compreende a relagdo de entrega, confianga, sUplica, discernimento, gratiddo € louvor a Deus e aos santos. Esté no ambito da religio- sidade e das praticas cultuais. Expressa a dimensao mistica e culturalmente situada da crenga. Jé a mariologia exercita outra dimens&o da fé: 0 conhecimento. Pois quem ama quer conhecer 0 outrofa) para amé-lofa) melhor e construir uma relagao Iticida e madura. A Piedade mariana sem teologia corre 0 risco de perder a lucidez, mover-se sem critérios @ limites e degenerar-se em crendice, Jaa teologia sem mistica e piedade se degenera num Giscurso racional que se distancia do fascinio divino. Mostra-se desrespeitosa e pastoral- mente inconsequente. A reflexao teol6gica sobre Maria é simultaneamente sistematica e critica, pois orga- niza as informagées, apresenta e justifica a compreensao catélica sobre a Mae de Jesus, 80 Mesmo tempo que corrige os eventuais desvios, aponta para as limitages historicas ¢ Propoe novas interpretagdes, que sejam figis & Biblia, & Tradigao viva de Igreja e a atualida- de. A marialogia conjuga razio emogao, aceitagao amorosa e busca. Reverencia a Mae de Jesus, reconhecendo seu lugar especial. Ao mesmo tempo, pensa, questiona, reflete, Pondera e propée alternativas visando a uma fé madura. Articulando conhecimento e vida 1. Nos ambientes que vocé frequenta, a imagem predominante da Mae de Jesus 6 a de "Mae do Céu" ou “Maria de Nazaré"? 2. Quals questées vocé gostaria que fossem respondidas no curso de marialogia (mariologia)? 8. Observando a pratica pastoral, que manifestages de “minimalismo" e de “maxima- lismo” marianas vocé identifica? Como encontrar um ponto de equilibrio? 4, Elabore um conceito de marialogia (mariologia). Some com a contribuigdo dos outros. Na rede 1. Veja 0 video “Perfil de Maria na sociedade plural”, de Afonso Murad. Localize-o no YouTube ou va a @ encontre-o no indice (o que procura?). Perceba os cinco perfis mais comuns de Maria na sociedade brasileira. Emita sua opiniao nos “comentarios”. 30 2. Organizamos uma série de vicleos introdutérios sobre Maria, com o nome de “Trem da mariologia’. Veja 0 primeiro, que € uma introdugdo geral & mariologia. Vocé pode encontra-lo no YouTube ou no blog (no indice: Videos marianos). Bibliografia basica BOFF, L. Maria na vida do povo. Sao Paulo: Paulus, 2001. p. 61-97. BOFF, C. Introdugao a mariologia. Petropolis: Vozes, 2003. p. 11-16. CALIMAN, C. (org.). Teologia e devogao mariana no Brasil, Sao Paulo: Paulus, 1989. COYLE, K. Maria na tradi¢do crista a partir de uma perspectiva contemporanea. 5. ed. SA0 Paulo: Paulus, 2005. p. 72-91 DE FIORES, S. Maria, Madre de Jesus. Sintese historico-salvifica. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2002. El fendmeno mariano en la Iglesia y en el mundo, p. 23-48. Mariologia-marialogia. In: Dicionério de mariologia. Sao Paulo: Paulus, 1995. p. 842-865. KOEHLER, Th. Histéria da mariologia. In: Dicionério de mariologia. So Paulo: Paulus, 1995. p. 561-575. MURAD, A. Introdugo e peril de Maria numa sociedade plural. In: UMBRASIL (org.). Maria no coragao da Igreja. Sao Paulo: Paulinas, 2011. p. 7-9, 15-38. Textos complementares 1, Introdugao a mariologia Em minha reflexdo mariolégica compreendi que, dado o momento de maturidade intelectual em que nos encontramos, nao se deve dar lugar a meras suposigdes e elu- cubragdes mentais. Maria nao necessita de nossas mentiras. E necessario deixar de lado as imaginagdes (que muitas vezes funcionaram na mariologia) para nos situarmos o mais possivel dentro do plano hist6rico. Hoje em dia a historiografia chegou a tal ponto de rigor e seriedade cientifica que seria desonesto nao té-la em conta na hora de falar sobre Maria. (No entanto,) Maria no é somente personage histérico, que ficou no pasado. Ela emerge como personagem arquetipico, contemporanea a todas as geracées. Maria foi acolhida na Igreja que, nas diversas comunidades, guardou sua memiéria. Pouco a pouco comegou a inclui-la em seu culo e liturgia. Depois, refletiu teologicamente sobre ela, tanto & luz de Jesus, confessado como Filho de Deus e redentor do mundo, como da Igreja, representada sob a imagem da Mulher, a Mae, a Esposa, a Virgem, a Imaculada e a Assunta, Uma série muito complexa de interagdes entre piedade popular, progresso dogmatico-teolégico e magistétio eclesidstico se cristalizou em uma mariologia dogmatica, Ela expressa com evidéncia até onde chegou a compreensao eclesial e crente do mistério de Maria, e como se torna dificil de ser explicada teologicamente. O objetivo da mariologia 6 oferecer uma sintese que situe Maria, a Mae de Jesus, nosso Senhor, no lugar teoldgico € eclesiolégico que Ihe corresponde. Uma sintese capaz de favorecer, no estudante de teologia, a obten¢ao de uma visdo apaixonada, inteligente e cordial do mistério de Maria; lucida para descobrir e compreender a energia espiritual trans- 31 formadora que Maria desencadeia na histéria da humanidade. (Condensado de: GARCIA PAREDES, José C. R. Mariologia, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos - BAC, 2001 Introdugdo, p. XVI XVII.) 2. Os “argumentos de conveniénciz "@ 0 pensamento dedutivo na marialogia A mariologia nos tltimos quatrocentos anos utilizou 0 pensamento dedutivo, fazendo uso sobretudo dos “argumentos de conveniéncia’, Veja um deles: ~ Deus, que é todo-poderoso, podia criar um ser humano sem pecado original. ~ Convinha a Deus que o fizesse, como prova extraordinéria da vitéria da Graga sobre omal. ~ Logo, fez isso em Maria, com a imaculada Conceicao. Os argumentos de conveniéncia funcionam bem para quem ja tem a devogao im- Pregnada. Eles serve para justificar, de forma racional, 0 que ja se acredita previamente. Sua fraglidade reside em varios aspectos: nao leva em conta a interpretagao biblica, s6 ¢ aceitavel para quem est no horizonte devocional, move-se num esquema linear e fixista de Pensamento, desconsidera as legitimas contribuigdes das outras Igrejas cristas, como as Ortodoxas do Oriente e as protestantes histéricas. Os argumentos de conveniéncia equiparam as possibilidades infinitas de Deus com a Sua realizagao efetiva. Ora, em sua infinita bondade e misericérdia, Deus, em principio, podia ‘azer muitas coisas extraordinérias para a humanidade. E até convinha que fizesse, mas nao © fez. O que sabemos que Deus realizou por nés foi revelado na histéria da salvagao, esta Consignado na Biblia e é interpretado pela Tradigao eclesial. O que vai além disso 6 mera su- Posigao © pode degenerar em delitio reigioso. Veja alguns exemplos: Deus poderia ter criado © ser humano simultaneamente em muitos planetas e em diversas galaxias. Mas parece que N40 © fez! Deus poderia ter criado outros seres inteligentes e livres na Terra, e até convinha Gue 0 fizesse, pois os humanos tinham o risco de usar mal aliberdade, mas ndo 0 fez. Deus ‘em a capacidade de dar ao homem e & mulher poderes extraordindrios, como o de extrair snergia do sol diretamente como as plantas, mas nao o fez! Quem pode cizer com certeza, para além daquilo que Deus mesmo revelou, o que € Conveniente para nés @ para ele? Nao seria prepoténcia e de vaidade humana ousar afirmar © que convém a Deus? Os argumentos de conveniénoia apresentam-se como um silogismo. O silogismo, por sua vez, 6 uma forma de raciocinio dedutivo, constituido por trés proposicées. As duas pri- meiras denominam-se premissas @ a terceira, conclusao. Aceitando certas premissas como verdadeiras, a conclusao é necessariamente valida e verdadeira, se foram cumpridas certas regras logicas. Mas tal procedimento pode levar a mente ao engano. Desde 0 tempo dos gregos, a filosofia denunciou os silogismos inconsistentes, que conduzem a conclusdes falaciosas, imprecisas ou equivocadas, Alem disso, ha certas iniciativas da revelagao divina que rompem com a logica da dedugao humana, como a encarnagao do Filho de Deus, a opgo pelos pobres e a escanda- losa morte na cruz. Paulo dizia que a morte de Cristo na cruz era escdndalo para os judeus @ loucura para os pagaos. Veja um argumento dedutivo que esta em voga no momento: 32 = O Filho de Deus veio ao mundo por meio de Maria. = Logo, todas as gracas atuais s4o comunicadas por ela. Onde falha 0 argumento? Ele confunde o nivel divino com 0 humano na obra da sal- vago. Ora, Maria tomou parte ativamente da encarnagao de Jesus, mas a iniciativa nao se deve a ela. A Trindade 6 a responsavel pelo movimento de comunicagao de Deus a nés que chamamos “Graga ofertada”. A salvago se realiza enquanto didlogo colaborativo. Deus toma a iniciativa, propde. Oferece-se ao ser humano. Este, por sua vez, participa, responde € colabora na obra de Deus. Maria ¢ a mulher que colaborou de forma Unica, como mae, educadora e discipula de Jesus Cristo, na obra da encarnagao e da salvagao. Isso tem grande valor, mas nao a eleva automaticamente ao nivel divino. O fato de Maria, um ser humane, ter participado de forma tao especial no mistério da encarnacao, ao acolher a proposta divina, nao a transforma imediatamente na dispensadora Unica e exclusiva da Graga divina. A vida em abundancia, a Graga comunicada por Jesus Cristo, que denominamos “salvagao” acontece num processo completo, que compreende sua encarnacao, a misao na Palestina por gestos e palavras, a morte, a ressurreigdo © 0 envio do Espirito Santo. Reduzir a experiéncia salvifica a uma de suas etapas empobrece a mensagem crista. Ora, Maria nao foi responsavel direta pela missdo de Jesus na Palestina, pelos seus gestos e palavras salvadores. Ela interveio somente no momento de Cana, 0 primeiro sinal de Jesus. O Evangelho de Lucas a apresenta como a perfeita discipula, que ‘ouve a Palavra, medita e frutifica (ver no capitulo 3). No momento da morte de Jesus, Maria estava ao pé da cruz, com 0 discipulo amado e cutras mulheres. No entanto, atribui-se somente a Jesus a forga redentora da morte de cruz. Maria também nao atuou na ressurreigao de Jesus nem sequer esta incluida nos relatos bi- blicos das primeiras testemunhas do ressuscitado. Mais tarde, a Igreja Catdlica reconhece-a como Assunta ao céu. Tal realidace nao pode ser compreendida de forma independente, ‘ou como mero privilégio, e sim em estreita dependéncia com a ressurreigao de Jesus. A prioridade é de Jesus, nao de Maria. Por fim, Maria esta presente no momento de Pentecostes, junto com os doze, outras mulheres e alguns membros da familia biolégica de Jesus (At 1,14 @ 2,1: “todos"). Seria ab- surdo atribuir a vinda do Espirito Santo a Maria. O Espirito de Deus nos ¢ comunicado pelo Pai e pelo Filho, como professa 0 Credo niceno-constantinopolitano. Em Pentecostes, como durante a missao de Jesus e no Mistério Pascal, Maria esta presente junto com outros se- guiddores de Jesus, enquanto alguém que recebe a Graga (ao responder & proposta divina), n&o como aquela que a concede. Portanto, a afirmagao: "Ja que o Filho de Deus se encarou por Maria, tudo o que Jesus nos comunica vem necessariamente por meio dela" transmite uma visao unilateral ¢ parcial da Graca divina. Mais do que isso, confunde as muitas dadivas que Deus nos dé no correr da vida (que chamamos “gragas") com a propria auto-oferta da Trindade a nés (Graca, com “g” maitisculo e no singular) O grande argumento favoravel a “mediagao da Graga por Maria” é este: “Diferente mente de todos nds, que somente podemos cooperar na distribuigao das gragas redento- ras, Maria cooperou também em sua aquisigao”. Segundo os defensores dessa ideia, isso acontece porque Maria é a "Nova Eva", associada a Cristo, "Novo Addo". Novamente, incor- re-Se no mesmo equivoco de equiparar a agao de Cristo a colaboragao de Maria. Perde-se a originalidade especifica da iniciativa divina. 33 Os argumentos dediutivos, utilizados na mariologia, foram titeis em determinado mo- mento hist6rico da Igreja, quando a Biblia estava distante dos fiéis, dos tedlogos e do Ma- gistério. Hoje, a teologia necessita partir da Biblia ¢ deixar-se purificar por ela. Alguns argu- mentos mariolégicos mostram sua fragilidade quando sao iluminados pela teologia biblica. Eis outro exemplo: ~ Oquinto mandamento diz que se deve honrar pai e mae. Jesus, como 0 mais perfei- to dos homens, sempre honrou sua mae e foi obediente a ela. ~ Haveria forma mais elevada de Jesus honrar sua mae do que eleva-la a gloria celes- tial pela assungdo e livré-la da morte? ~ Se isso 6 to bom, Jesus 0 fez, para honrar sua mde. Logo, levou-a para o céu de corpo e alma. Otexto se baseia numa visdo estreita de “honrar”. No contexto bitjico de Dt 5,16, esse mandamento visa a orientar 0 Povo de Deus para que os filhos respeitem seus genitores, 2elem pelo bom nome da familia e do cla, e cuidem dos pais e avés quando eles estiverem em situagao de fragilidace na doenga e na velhice. Ora, Jesus tratou bem a Maria e a José. Mas também, com grande liberdade, mostrou com clareza para seus parentes que ele ndo Poderia mais se submeter ao poder da familia patriarcal judaica. “Quem é minha mae e quem Sao meus irm&os?" Aqueles que aderem a “nova familia’ dos que realizam a vontade do Pai. O texto de Me 3,31-35 & claro quanto a isso (ver a explicagao no capitulo seguinte). O pro- brio Jesus alertou que, por amor & causa do Reino de Deus, seus discfpulos teriam enormes Confitos na familia (Lc 12,59). E ainda mais. Jesus elogia quem capaz de renunciar até a sua familia para segui-lo (Mt 10,37; Le 14,33). De certa forma, Jesus relativiza esse manda- Mento quando se trata da prioridade do seguimento. Mais importante 6 ouvir e praticar a Falavra (Le 8,21). Assim, 0 edticio da dedugao se dasmonta, quando a premissa ou um dos argumentos & questionado a partir da teologia biblica e da fé centrada em Jesus. ca Re cr ‘conduzir 0 pensamento teolégico pela dedugao move-se dentro de uma Io- légica dedatge no 2to".E diferente do grande pensadior Tomas de Aquino, que usava a a came rea fazer avancar a reflexdo. A logica dos argumentos marianos dedutivos cone a ae €M seu interior a contradigao, os graus diferentes de afirmagao fora gon Taditorios, que constituem 0 real. Ou seja: 0 pensamento complexo & a oes lemporanea. Se assim fosse, ao se perguntar “Jesus honrou sua mae? Nor responder: “Em parte sim, pois a amou e a respeitou", "Em parte nao, pois co- locou 0 amor ao Pai e a nova famfia dos seguidores acima dos lacos familiares tradicionais. Por fim, deve-se discernir para qual lado da balanga ela pende mais, considerando que a Posieao oposta tem também seu valor. Pode-se concluir, a partir da teologia lucana, que Je~ Sus honrou sua mée muito mais porque ela se fez discipula e imagem de todo cristao! O fato de respeitar sua mae nao evitou © confito nem se traduziu, automaticamente, na obrigagéio de Jesus glorificd-la ao fim da vida. Portanto, deve-se evitar 0 uso dos “ eles levam a uma marialogia pouco cons linear, ‘argumentos de conveniéncia” e da dedugao, pois sistente, sem base biblica, com um pensamento com restrito espago para 0 didlogo. Jogando com o préprio temo, dirlamos que 0 Problema nao reside em estarem certos ou errados, pois a dedugéo também faz parte do Pensamento humano. E sim porque so “inconvenientes", pouco apropriados para articular © complexo pensar contemporéneo. (MURAD, Afonso. Publicado em: .) 34

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