Jenny Von Westphalen PDF

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Revista Marxista - Ncleo de Estudos dO Capital

IDEO
graphos

Revista Marxista - Ncleo de Estudos dO Capital

ISSN 2175-4519

www.mouro.com.br
[email protected]

Conselho Editorial

Lincoln Secco, Agnaldo dos Santos, Jos Rodrigues Mo Jnior,


Luiz Eduardo Simes de Souza, Marisa Midori Deaecto,
Heitor Sndalo, Paul Singer, Eduardo Bellandi,
Marianne Reizewitz, Maria Reizewitz, Ana Lcia Sanches,
Lus Fernando Franco, Francisco de Souza, Carlos Csar Felix,
Francisco del Moral, Walcir Previtale Bruno, Yuri Martins Fontes

Comit Editorial
Marisa Yamashiro, Lgia Yamasato, Ciro Yoshiyasse

ilustraes

Maria Reizewitz (aquarelas: capa, p. 130, 162), Suzana da Costa


Borges Longo (lpis - quarta capa, aquarela e nankin p. 92)
Luma (aquarela p. 10), Rosinha (photoshop p. 122),
Marianne Reizewitz (aquarela p. 34, 82, 104),
Lgia Yamasato (aquarela p. 65), Luciana (aquarela p.146)

projeto grfico
Labor Design Editorial

diagramao
Lgia Yamasato

Janeiro de 2011

SUMRIO

Editorial ...........................................................5
MARXISMO
Carta de Jenny a Marx..............................................7
Jenny von Westphalen
Karl Marx por Eleanor Marx.....................................11
Eleanor Marx

socialismo e educao
Educao Militante.................................................21
Zillah Murgel Branco
La Isla educa sus hijos: Educao infantil por vias
no-formais em Cuba..............................................35
Valria Aroeira Garcia
A educao infantil:Suas modalidades em Cuba..........55
Olga Franco Garca

POLTICA
A ordem do regresso: sexo, profisso e poltica............67
Lidiane Soares Rodrigues
As Relaes entre o Ir e o Ocidente.......................83
Arlene Elizabeth Clemesha
Reforma Agrria e subdesenvolvimento:
a experincia revolucionria de Cuba.......................93
Joana Salm Vasconcelos
Notas sobre a origem das FARC-EP..........................105
Ana Carolina Ramos e Silva
Quando as mulheres invadiram as
oficinas tipogrficas...................................................123
Marisa Midori Deaecto

Resenha
Acumulao do Capital: militarismo e colapso..........131
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes

fico e crtica
Crtica literria: O caso da vara...........................147
Marisa Yamashiro
O desafio de ter a liberdade de pensar as coisas em si..155
Maria Viana

poema
Mulher Feita........................................................163
Ana Lcia Reboledo Sanches

Editorial
Nunca antes neste pas uma revista marxista foi
produzida inteiramente por mulheres. As mulheres no
aparecem aqui como tema ou objeto de estudo, mas como
produtoras da revista.
Nota bene: no se trata de um nmero sobre mulheres,
mas feito por mulheres. A comear pelas ilustraes (a maioria
produzida por meninas adolescentes e j to talentosas).
Dessa forma, a revista mantm uma de suas peculiaridades:
ela totalmente ilustrada por obras inditas realizadas por
pessoas que, voluntariamente, colaboram com o nosso esforo
de difundir os ideais socialistas.
Apesar da inovao formal, este nmero tambm rico
no seu contedo. Entre tantas autoras competentes, algumas
iniciantes, outras reconhecidas em seus campos de pesquisa,
cabe destacar a primeira seo, na qual se publicam dois textos
inditos de Jenny von Westphalen (depois, Jenny Marx) e de
sua filha Eleanor (traduzidos por Ligia Yamasato).
Nossa homenageada Zillah Murgel Branco.
Lutadora, me, sociloga, revolucionria, marxista e muito
mais. Ela nasceu em 1936 na cidade de So Paulo e cursou
Cincias Sociais na velha Rua Maria Antnia, na USP;
trabalhou desde os 19 anos no Brasil, Chile, Portugal e em
Cabo Verde; participou do Processo Revolucionrio em Curso
em Portugal, aps a Revoluo de 25 de abril de 1974. Mouro
publica um indito artigo autobiogrfico desta lutadora de
toda uma vida.
Coerentemente, este nmero de Mouro no ter o
velho Marx na capa, mas a Jenny .

Jenny von Westphalen

MARXISMO

Carta de Jenny von


Westphalen a Karl Marx
em Bonn
Traduo: Ligia Kimie Yamasato

Trier, 10 de agosto de 1841


Meu pequeno negro selvagem,

Estou to feliz por voc estar feliz e por saber que minha
carta te alegra, que est torcendo por mim, que est morando em
quartos de papel de parede, que bebeu champanhe em Colnia,
que existem sociedades de Hegel a, que voc vem sonhando e que,
resumindo, voc meu, meu amor, meu querido negro selvagem.
Mas apesar de tudo isso, de uma coisa eu senti falta: voc poderia
ter elogiado um pouco o meu grego e dedicado um pequeno artigo
louvando a minha erudio. Mas vocs so assim mesmo, vocs,
cavalheiros hegelianos, no reconhecem coisa alguma, o cmulo da
superioridade, tudo tem de ser exatamente como vocs pensam, e por
isso mesmo eu devo ser modesta e descansar sobre meus prprios
louros. Sim, querido, eu ainda tenho de repousar, infelizmente, e na
verdade em uma cama com travesseiros de plumas, e at mesmo esta
pequena carta ser enviada ao mundo da minha pequena cama.
No domingo, aventurei-me em uma audaciosa excurso nos
quartos da frente, mas isso no me fez bem e agora tenho de fazer
nova penitncia por isso. Schleicher disse-me h pouco que vem se
correspondendo com um jovem revolucionrio, mas o jovem est
muito enganado a respeito de seus compatriotas. Ele no acredita que
possa conseguir um quinho ou qualquer outra coisa. Ah, querido,
meu querido amor, voc agora tambm est envolvido com poltica.
Realmente essa a atividade mais arriscada de todas. Querido Karl,
lembre-se sempre que aqui voc tem uma namorada que o espera e

est sofrendo, e depende totalmente do seu destino. Querido, meu


querido amor, como eu desejaria poder ver-te novamente.

Infelizmente, no devo e ainda no posso marcar um dia.


Antes de me sentir bem novamente, no vou pedir permisso para
viajar. Mas estou me restabelecendo esta semana. E por outro lado,
nosso querido sinopsista poder finalmente partir e no devo mais
ver este estimado senhor. Esta manh, bem cedo, li no jornal de
Augsburgo trs artigos hegelianos e o anncio do livro do Bruno!
Francamente falando, meu querido, eu deveria agora dizer
adeus, pois voc s me pediu um par de linhas e j preenchi quase
a pgina inteira. Mas hoje eu no quero seguir tudo ao p da letra e
pretendo esticar as linhas que voc pediu para muitas pginas. E
verdade, no mesmo, meu querido, que voc no vai ficar zangado
com sua pequena Jenny por causa disso e pelo contedo em si? Voc
deve saber que s um criado oferece mais do que ele tem. Hoje o meu
zumbido, sussurrando em minha pequena cabea, est se esvaindo
e j no percebo quase nada, apenas rodas, sinos e moinhos. Os
pensamentos se foram, mas, por outro lado, meu pequeno corao
est to cheio, transbordando de amor e de saudades e desejo ardente
por ti, meu infinito amor.

A propsito, voc recebeu uma carta escrita a lpis enviada


por Vauban? Talvez um intermedirio j no seja to bom, e no
futuro devo enderear as correspondncias diretamente ao meu amo
e senhor.
O Comodoro Napier acabou de passar com seu manto
branco. Os pobres sentidos falham. Eles me atacam como se fosse
o desfiladeiro de lobos no Freischuz, quando de repente surgem o
exrcito selvagem e todas as formas fantsticas e curiosas. Somente
sobre o pequeno palco do nosso teatro algum sempre v as
armadilhas nas quais guias, corujas e crocodilos so capturados s
que neste caso, o mecanismo um pouco diferente.

Amanh, pela primeira vez, o pai poder sair de sua posio


constrangedora e poder se sentar cadeira. Ele anda um pouco
desanimado com o progresso lento de sua recuperao, mas ele
continua dando suas ordens sem parar, e em breve ele receber a
Gr-Cruz da Ordem dos Comandantes.
Se eu no estivesse aqui to miseravelmente deitada, logo
estaria arrumando minhas malas. Est tudo pronto. Vestidos, colares
 - Carta de Jenny para Marx

e tiaras esto em ordem, s mesmo sua dona no est em plenas


condies. Oh, meu querido, fico pensando em voc e no seu amor
durante minhas noites sem sono, quantas vezes orei, abenoei e
pedi bnos a voc, e como bom sonhar tantas vezes com toda a
felicidade que foi e que ser. - Esta noite Haizinger estar atuando
em Bonn. Voc ir v-la? Eu a vi como Donna Diana.

Meu mais amado Karl, eu gostaria de dizer muito mais, tudo


o que resta a ser dito - mas minha me no vai tolerar por muito mais
tempo - ela vai arrancar a caneta de minhas mos e eu no poderei
sequer expressar as minhas saudaes mais ardentes e carinhosas.
Apenas um beijo em cada dedo e, depois, a distncia. Voem, voem
para o meu Karl, e apertem seus lbios to calorosamente como se
fossem quentes e carinhosos quando forem de encontro a eles e,
ento, no sejam mais os tolos mensageiros de amor e sussurrem
todas as minsculas, doces e secretas expresses do amor, o amor
que lhe darei - contem-lhe tudo mas, nem tudo, deixem um pouco
para a sua amada.

Adeus, meu primeiro e nico amor. Eu no posso escrever


mais, ou minha cabea vai virar um turbilho [...] voc sabe, e
quadrupedante putrem sonitu, etc. etc. - Adeus, meu querido senhor
das ferrovias. Adeus, meu querido pequeno homem - certo, no ,
que me casarei com voc?
Adeus, adeus, meu querido.

Jenny

Jenny von Westphalen - 

Eleanor Marx

MARXISMO

Karl Marx por Eleanor


Marx

Traduo: Ligia Kimie Yamasato

No se passou muito tempo, talvez muito pouco, para escrever


a biografia de um grande homem quase que imediatamente aps
sua morte, e a tarefa duplamente difcil quando recai sobre uma
pessoa que o conhecia e o amava. Para mim, neste momento, s
possvel apresentar um breve resumo da vida do meu pai. Vou
me limitar a uma simples demonstrao de fatos, e no vou sequer
tentar fazer uma exposio de suas grandes teorias e descobertas;
teorias que so a base do Socialismo Moderno descobertas que
esto revolucionando toda a cincia da Economia Poltica. Espero,
contudo, poder fazer futuramente uma anlise para a Progress da
grande obra do meu pai, O Capital, e das verdades nela contidas.

Karl Marx nasceu em Trier, em maio de 1818, de pais judeus.


Seu pai um homem de grande talento era advogado, muito
influenciado pelas ideias francesas do sculo XVIII sobre religio,
cincia e arte; sua me era descendente de judeus hngaros que no
sculo XVII se estabeleceram na Holanda. Entre seus amigos de
infncia mais antigos estavam Jenny que mais tarde tornou-se sua
esposa e Edgar von Westphalen. Com o pai deles, o Baro von
Westphalen meio escocs Marx aprendeu a gostar da Escola
Romntica e, enquanto seu pai lia Voltaire e Racine, Westphalen lia
Homero e Shakespeare, que se tornaram seus escritores preferidos.

Muito amado e, ao mesmo tempo, temido por seus colegas de escola


amado por suas travessuras e temido por sua aptido para escrever
versos sarcsticos e difamar seus inimigos Karl Marx teve uma
rotina escolar normal, e depois seguiu para as Universidades de
Bonn e Berlim, onde, para agradar seu pai, cursou Direito por algum
tempo, e para satisfazer a si mesmo foi estudar Histria e Filosofia.
Em 1842, Marx estava prestes a habilitar-se como Livre Docente
em Bonn, mas o movimento poltico que surgia na Alemanha desde
a morte de Frederick William III em 1840 levou-o para outra
carreira. Os lderes da burguesia liberal renana Kamphausen e
Hansemann haviam fundado a Gazeta Renana em Colnia, com a
colaborao de Marx, cuja crtica brilhante e ousada do parlamento
provinciano causou tanta comoo que, embora tivesse apenas vinte
e quatro anos de idade, lhe foi oferecido o cargo de redator-chefe do
jornal. Ele aceitou, e com isso comeou sua longa luta contra todas as
tiranias e, particularmente, contra a tirania prussiana. Obviamente o
jornal estava sob a superviso de um censor mas o pobre censor se
via impotente. A Gazeta invariavelmente publicava todos os artigos
importantes, e o censor nada podia fazer. Ento um segundo censor,
um especial, foi enviado de Berlim, mas mesmo esta dupla censura
no teve xito e, finalmente, em 1843 o governo simplesmente
proibiu todo o jornal. No mesmo ano, em 1843, Marx casou-se com
sua velha amiga de infncia, com quem havia sido noivo por sete
anos, Jenny von Westphalen, e com sua jovem esposa mudou-se
para Paris. L, junto com Arnold Ruge, publicou os Anais FrancoAlemes, iniciando sua longa srie de artigos socialistas. Sua primeira
contribuio foi uma crtica sobre a filosofia do direito de Hegel;
a segunda, um ensaio sobre a Questo Judaica. Quando os Anais
deixaram de existir, Marx contribuiu para o perdico Vorwrtz, do
qual ele era tido como editor. De fato, o cargo de editor deste jornal,
que tambm contou com a colaborao de Heine, Everbeck, Engels
etc., era um tanto irregular, e um editor realmente responsvel nunca
existiu. A prxima publicao de Marx foi A Sagrada Famlia escrita
com Engels, uma crtica sarcstica dirigida contra Bruno Bauer e sua
escola de idealistas hegelianos.
Apesar de, naquela poca, dedicar a maior parte de seu tempo
para o estudo de Economia Poltica e Revoluo Francesa, Karl Marx
continuou a travar uma guerra raivosa contra o governo da Prssia e,
por essa razo, este governo exigiu de M. Guizot conforme relato
da agncia de Alexander von Humboldt em Paris a expulso de
12 - Karl Marx por Eleanor Marx

Marx da Frana. E a essa exigncia Guizot atendeu com firmeza, e


Marx teve de deixar Paris, mudando-se para Bruxelas, e l, em 1846,
publicou em francs o Discurso sobre o livre comrcio. Proudhon
havia publicado Contradies Econmicas ou Filosofia da Misria
e escreveu a Marx, dizendo que aguardava sua frula crtica. Ele no
teve de esperar muito tempo, pois, em 1847, Marx publicou Misria
da Filosofia, resposta Filosofia da Misria de Proudhon e a frula
foi aplicada com uma austeridade que Proudhon provavelmente
no esperava. Neste mesmo ano, Marx fundou uma Associao dos
Operrios Alemes em Bruxelas e, o mais importante, participou,
junto com seus amigos polticos, da Liga dos Comunistas. Toda
a organizao da Liga foi modificada por ele; de uma conspirao
secreta passou a ser uma organizao para a propaganda dos princpios
comunistas, e s era secreta porque as circunstncias existentes
na poca faziam do sigilo uma necessidade. Onde houvesse uma
associao de operrios alemes, a Liga tambm existia, e este foi
o primeiro movimento socialista de carter internacional, que tinha
como membros ingleses, belgas, hngaros, poloneses, escandinavos.
Esta foi a primeira organizao do Partido Social Democrata. Em
1847, foi realizado um Congresso da Liga em Londres, onde Marx
e Engels assistiram como delegados; e eles foram convocados para
escrever o clebre Manifesto do Partido Comunista publicado
pela primeira vez imediatamente antes da Revoluo de 1848, e
posteriormente traduzido em quase todas as lnguas europeias.
O manifesto comea com uma anlise das condies existentes
da sociedade. E passa a mostrar como pouco a pouco a velha
diviso de classes feudal desapareceu, e como a sociedade moderna
foi dividida em apenas duas classes a dos capitalistas, ou classe
burguesa, e a dos proletrios; dos expropriadores e dos expropriados;
da classe burguesa em posse da riqueza e do poder sem nada produzir
e da classe trabalhadora que produz riqueza, mas no possui nada.
A burguesia, aps usar o proletariado para lutar em suas batalhas
polticas contra o feudalismo, usou o poder ento adquirido para
escravizar o proletariado.

Para a acusao de que o Comunismo visa abolir a propriedade,


o Manifesto respondeu que os Comunistas visam apenas abolir
o sistema burgus de propriedade, porque para nove dcimos da
Comunidade a propriedade j est abolida; para a acusao de que
os Comunistas visam abolir o casamento e a famlia, o Manifesto
respondeu perguntando que tipo de famlia e casamento eram
Eleanor Marx - 13

possveis para os operrios, j que para eles o verdadeiro significado


dessas palavras nunca existiu. Quanto a abolir a ptria e a nacionalidade, essas esto abolidas para o proletariado e, graas ao
desenvolvimento da indstria, para a burguesia tambm. A burguesia
tem feito grandes revolues na histria; ela revolucionou todo o
sistema de produo. Sob suas mos, foram desenvolvidos a mquina
a vapor, o tear mecnico, o martelo-pilo a vapor, as ferrovias e navios
a vapor de nossos dias. Mas a sua produo mais revolucionria foi a
produo do proletariado, de uma classe cujas prprias condies de
existncia obrigam-na a destruir toda a sociedade real. O Manifesto
termina com as palavras:
Os comunistas recusam-se a esconder seus propsitos e suas
opinies. Declaram abertamente que os seus objetivos s podero ser
alcanados atravs da derrubada violenta de todas as condies sociais
existentes. Deixem que as classes dominantes estremeam diante de uma
revoluo comunista. Nela, os proletrios nada tm a perder a no ser
suas prprias correntes. Eles tm um mundo a ganhar. Proletrios de
todos os pases, uni-vos!
Entretanto, Marx continuou no jornal Brsseler Zeitung seu
ataque contra o governo da Prssia e, novamente, o governo prussiano
exigiu sua expulso mas, em vo, a Revoluo de Fevereiro
organizou um movimento entre os operrios belgas, quando Marx,
sem recusa alguma, foi expulso pelo governo da Blgica. Entretanto,
o governo provisrio da Frana, atravs de Flocon, convidou-o a
retornar a Paris, e este convite foi aceito. Em Paris ele permaneceu
durante algum tempo, at depois da Revoluo de Maro, em
1848, quando retornou para Colnia, e l fundou a Nova Gazeta
Renana o nico jornal que representava a classe trabalhadora e
tinha ousadia para defender os rebeldes de Junho de Paris. Em vo,
vrios jornais revolucionrios e liberais denunciaram a Gazeta por
sua audcia em atacar tudo aquilo que sagrado e que desafia toda a
autoridade e que se encontra em uma fortaleza prussiana! Em vo,
as autoridades, em virtude do Estado de Stio, suspenderam o jornal
por seis semanas. Este apareceu novamente sob os olhos da polcia.
Sua reputao e circulao crescia medida que os ataques lhe eram
feitos. Aps o Golpe de Estado de Novembro da Prssia, a Gazeta,
nas manchetes de cada nmero, convocava as pessoas a recusarem
os impostos e encontrarem a fora pela fora. Por isso, e por conta
de certos artigos, o jornal foi duas vezes processado e absolvido.
Finalmente, aps a revolta de maio (1849) em Dresden, Provncias
14 - Karl Marx por Eleanor Marx

Renanas e Alemanha do Sul, a Gazeta foi violentamente proibida.


O ltimo nmero impresso em vermelho foi publicado em 19
de maio de 1849.
Marx retornou a Paris, mas algumas semanas aps a
manifestao de 13 de junho de 1849, o governo francs deu a
ele a opo de se retirar para a Gr-Bretanha ou deixar a Frana.
Ele preferiu a ltima alternativa, e foi para Londres onde viveu
por trinta anos. Foi feita uma tentativa de publicar a Nova Gazeta
Renana na forma de uma anlise, publicada em Hamburgo, mas
esta no foi bem sucedida. Imediatamente aps o golpe de estado
de Napoleo, Marx escreveu seu 18 Brumrio de Luis Bonaparte
e, em 1853, Revelaes sobre o Processo dos Comunistas de
Colnia onde revelou as tramas infames do governo e da polcia
da Prssia.
Aps a condenao dos membros da Liga Comunista em
Colnia, Marx afastou-se da vida poltica ativa durante algum tempo,
dedicando-se aos seus estudos econmicos no Museu Britnico,
contribuindo com editoriais e correspondncias Tribuna de Nova
Iorque, e escrevendo panfletos e prospectos atacando o regime de
Palmerston, amplamente divulgados por David Urquhart.
Os primeiros frutos de seus longos e dedicados estudos sobre
a Economia Poltica surgiram em 1859 na Crtica Economia
Poltica uma obra que apresenta a primeira exposio de sua
Teoria de Valor.
Durante a Guerra Italiana, Marx, no jornal alemo O
Povo, publicado em Londres, denunciou o Bonapartismo, que se
escondia sob a aparncia da aprovao liberal para as nacionalidades
oprimidas, e a poltica prussiana que, sob o disfarce de neutralidade,
pretendia pescar em guas agitadas. Naquela ocasio, foi preciso
atacar Carl Vogt que, a servio do assassino da meia-noite, estava
incentivando a neutralidade alem. Deliberadamente caluniado
por Cart Vogt, Marx respondeu a ele e a outros cavalheiros de sua
laia em Herr Vogt, em 1860, acusando Vogt de estar a servio de
Napoleo. S dez anos mais tarde, em 1870, comprovou-se que esta
acusao era verdadeira. A Defesa Nacional do governo francs
publicou uma lista de mercenrios bonapartistas e abaixo da letra
V apareceu: Vogt, recebeu, em agosto de 1859, 10.000:francos. Em
1867, Marx publicou em Hamburgo sua principal obra: O Capital,
uma reflexo que retomarei no prximo nmero da Progress.
Eleanor Marx - 15

Entretanto, o movimento operrio havia avanado tanto


que Karl Marx poderia pensar em executar um plano h muito
tempo almejado a fundao de uma Associao Internacional
dos Trabalhadores em todos os pases mais avanados da Europa
e Amrica. Em abril de 1864, foi realizado um encontro pblico
para expressar solidariedade com a Polnia. Esse encontro trouxe
operrios de vrias nacionalidades e, ento, decidiu-se fundar a
Internacional. E, em 28 de setembro de 1864, foi realizado um
encontro, presidido pelo Professor Beesley no St. James Hall. Foi
eleito um conselho geral provisrio, e Marx redigiu o Discurso
Inaugural e as Medidas Provisrias. Neste discurso, aps um terrvel
quadro de misria das classes trabalhadoras, mesmo nos anos da
chamada prosperidade comercial, ele evoca os operrios de todos
os pases para se associarem, e, quase vinte anos antes no Manifesto
Comunista, ele concluiu com as palavras: Proletrios de todos os
pases, uni-vos! As Medidas afirmam as razes para a fundao
da Internacional:
Considerando,

Que a emancipao das classes trabalhadoras deve ser


conquistada pelas prprias classes trabalhadoras; que a luta pela
emancipao das classes trabalhadoras significa no uma luta por
privilgios e monoplio de classe, mas por direitos e deveres iguais, e
a abolio de todo regime de classe;
Que a submisso econmica do operrio ao monopolizador
dos meios de trabalho, ou seja, as fontes de vida, est na base da
servido em todas as suas formas de misria social, degradao
mental e dependncia poltica;

Que a emancipao econmica das classes trabalhadoras ,


portanto, o grande objetivo para o qual todo movimento poltico
deve estar subordinado como um meio;
Que todos os esforos que visam o grande final fracassaram
at agora por falta de solidariedade entre as vrias divises de
trabalho em cada pas e pela ausncia de lao de unio fraternal entre
as classes trabalhadoras de diferentes pases;

Que a emancipao do trabalho no um problema local


nem nacional, mas um problema social que engloba todos os pases
onde existe a sociedade moderna, e que depende da sua soluo sobre
a concorrncia, prtica e terica, dos pases mais avanados;
16 - Karl Marx por Eleanor Marx

Que a renovao das classes trabalhadoras nos pases mais


industrializados da Europa, ao despertar uma nova esperana,
adverte solenemente contra uma recada nos antigos erros e clama
pela associao imediata dos movimentos ainda desunidos.
Por essas razes

Foi fundada a Associao Internacional dos Trabalhadores.

Para dimensionar a importncia de Marx na Internacional


seria preciso escrever uma histria da prpria Associao pois,
alm de ser secretrio correspondente da Alemanha e Rssia, ele foi
o esprito de liderana de todos os conselhos gerais. Os Discursos,
com rarssimas excees desde o Inaugural ao ltimo sobre a
Guerra Civil na Frana, todos foram escritos por ele. Neste ltimo
discurso, Marx explicou o real significado da Comuna essa
esfinge que tanto atormenta o esprito burgus. E com palavras to
fortes quanto belas, ele qualificou o governo corrupto de desero
nacional que abandonou a Frana nas mos da Prssia, denunciou
o governo de homens como o falsrio Jules Favre, o agiota Perry e o
trs vezes infame Thiers, esse gnomo monstruoso. Aps contrastar
os horrores perpetrados pelos Versailistas e a devoo herica dos
operrios parisienses, que morreram pela preservao da repblica
da qual M. Perry agora o Primeiro-Ministro, Marx conclui:
A Paris dos operrios com sua Comuna ser para sempre
celebrada como o arauto glorioso de uma nova sociedade. Seus mrtires
so consagrados no grande corao da classe trabalhadora. A histria
de seus exterminadores j est pregada naquele pelourinho eterno do
qual nem todas as oraes de seus padres vo resgat-los.

A queda da Comuna colocou a Internacional em uma posio


impossvel. Era preciso mudar o Conselho Geral de Londres para
Nova Iorque, e essa deciso, por sugesto de Marx, foi tomada pelo
Congresso de Haia em 1873. Desde ento, o movimento tomou
outra forma; a relao contnua entre os proletrios de todos os pases
um dos milhares frutos da Associao Internacional mostrou
que j no h mais necessidade de uma organizao formal. Mas
de qualquer forma, o trabalho continua e deve continuar enquanto
existir as atuais condies da sociedade.
At 1873, Marx havia se dedicado quase que totalmente ao seu
trabalho, embora este tivesse sido postergado por alguns anos por
problemas de sade. O segundo volume dO Capital, sua principal

Eleanor Marx - 17

obra, ser editado pelo seu mais velho, mais verdadeiro e mais
querido amigo, Frederick Engels. H outros volumes dO Capital
que tambm podero ser publicados.

Limitei-me nos detalhes estritamente histricos e biogrficos


do HOMEM. De sua personalidade marcante, sua imensa erudio,
seu esprito, humor, gentileza e compaixo no d para falar. Para
somar todos
os elementos

to misturados nele que a Natureza poderia se levantar,


E dizer a todo o mundo, Este era um Homem!
Eleanor Marx.

18 - Karl Marx por Eleanor Marx

Retorno a
Gramsci
Srie Economia
de Bolso

Lincoln Secco

Antonio Gramsci (1891-1937) foi o mais importante pensador


italiano do sculo XX. Muito difundida no Brasil, a sua obra trata de
poltica, pedagogia, economia, histria, filosofia etc. Neste livro,
o leitor conhecer outras facetas do pensamento gramsciano: sua
leitura de Dante; sua relao com as bibliotecas e os livros; sua
releitura do marxismo; e a atualidade dos seus conceitos no Brasil
de hoje.
Autor: Lincoln Secco nasceu em So Paulo em 1969. Em 1987
Ingressou na Universidade de So Paulo (USP), onde fez o bacharelado,
licenciatura, mestrado, doutorado e livre docncia em Histria. Desde
2003 professor de Histria Contempornea na USP.
LCTE Editora

Zillah Branco

SOCIALISMO E EDUCAO

Educao militante
Zillah Murgel Branco
Bacharel em Cincias Sociais pela USP

difcil saber a origem da formao do militante de


esquerda. Os estudos tericos quase sempre vm depois de uma
formao cultural pontuada por princpios ticos e conceitos
filosficos adquiridos ainda na infncia por meio de exemplos
familiares ou referncias histricas que marcaram os sentimentos
de solidariedade humana e respeito pela vida, cultivados
familiarmente.

Tive a ventura de nascer em uma poca em que todos os


fatos polticos promoviam o despertar dos povos para a necessidade
de defender a dignidade humana, a independncia nacional e a
solidariedade internacional. A gerao anterior minha vivera os
efeitos da 1 Grande Guerra, conhecera os movimentos operrios
que da Europa irradiaram para os Estados Unidos e Amrica
Latina, a Revoluo Russa e a criao da Unio Sovitica, as lutas
pelo sufrgio universal, pela reduo do horrio de trabalho, pelos
direitos das mulheres e das crianas. Tambm conheceram as
origens do fascismo e nazismo que no seu incio confundiram-se
com aspectos nacionalistas e de social-democracia para, no curso
dos confrontos polticos, ir definindo a identidade ideolgica com
as elites exploradoras que dirigiam o mundo.
Minha famlia, de classe mdia na sua juventude, dividiase em duas tendncias: a do enriquecimento pessoal e mudana de
status social; e, outra, a da formao profissional e cultural voltada

para a participao no desenvolvimento da sociedade. Grosso modo,


um lado direita, sob orientao catlica, de outro esquerda
sob influncia do positivismo francs e dos conceitos libertrios
que germinaram na sociedade brasileira a partir das lutas contra a
escravido, contra o domnio estrangeiro, o dogmatismo religioso,
a supremacia oligrquica, os privilgios de classe. No primeiro
quartel do sculo XX esta diferena marcou dois tipos diferentes e
conflitantes de conscincia de classe: o da alta burguesia com todos
os seus preconceitos e privilgios, e o da baixa classe mdia voltada
para a realidade em que sobrevivia o proletariado e se misturavam s
diferentes origens imigrantes. Meus avs tiveram o mrito de manter
a unidade de toda a famlia que se reunia nas festas tradicionais
quando, por acordo tcito, no se tocava em temas divergentes. Este
esforo permitiu que as amizades se mantivessem sob a imagem
desvanecida humanista unificadora e de uma moral cvica traduzida
em honestidade, generosidade e compreenso individual. De fato
foram os profundos laos afetivos iniciados quando todos jovens
viviam a mesma realidade social, que cimentou as amizades apesar
das divergncias ideolgicas que os conduziram por caminhos
diferentes na vida.
Quando um de meus tios foi candidato a deputado comunista
Assembleia Estadual de So Paulo em 1947, minha av catlica,
que tinha filhos conservadores e at militantes integralistas, pediu
licena ao seu confessor para votar pela eleio do genro comunista.1
Com o passar dos tempos, apesar da famlia manter sempre relaes
de amizade, em 1964 com o advento da ditadura militar, verificou-se
um acirramento nas posies dessa ala de direita com a produo
de vrios membros do CCC que usavam armas ostensivas na
presena de parentes comunistas. A clandestinidade foi necessria e
o distanciamento inevitvel.
Formao marxista
Disse Samora Machel (primeiro Presidente da Repblica
Popular de Moambique) a um jornalista portugus que lhe perguntou
quando estudou pela primeira vez o pensamento de Marx?.
Respondeu sem delongas: quando estudei j foi na segunda vez.
A minha formao cientfica, assim como a da maioria dos
militantes que conheci, veio depois de estar imbuda pela prtica
militante marxista e leninista junto a membros do PCB. As emoes
22 - Educao Militante

deram incio da dedicao a um ideal para depois, enfrentadas


as questes prticas da realidade, serem buscadas as explicaes
cientficas que a histria oferecia ou a fundamentao dos princpios
nas crenas religiosas.
Desde os 11 anos de idade, quando aprendi a fazer cola de
farinha para pregar os cartazes dos candidatos comunistas nos postes
e paredes pelas ruas, acompanhei vrias atividades militantes atravs
das quais ia conhecendo a realidade social e poltica. Durou pouco
mais de um ano a fase de legalidade do PCB. Depois a militncia
tornou-se mais arriscada, mas nunca cessou, envolvida pelos graves
problemas sociais que no podiam deixar de ser manifestados por
organizaes de massas e cidados conscientes. Era uma escola
permanente.

Esta formao emprica, a partir das condies culturais e


da vivncia direta dos problemas humanos na sociedade mais pobre,
propicia a conjugao das emoes com a razo que vai amadurecer
com as leituras e debates ao longo da vida. Se, por um lado, introduz
juzos ideais de valor que s sero objetivados com a reflexo
terica, resiste s presses sectrias e dogmticas sem fundamento
racional e tendncia que a condio elitista de formao conduz
ao paternalismo que mascara a solidariedade e transforma-a em
instrumento de explorao.
A realidade dos povos clarifica a ideologia
Depois do final da Segunda Guerra, a ao imperialista
expandiu o anticomunismo por todo o mundo. Isto pesou
culturalmente nas populaes que temiam ou odiavam os comunistas
demonizados pelos meios de comunicao social, igrejas, escolas e
todos os que se submetiam propaganda das elites obedientes ao
que o Imprio Norte-Americano determinava. As campanhas foram
levadas ao extremo como veculo de combate URSS que se tornava
uma potncia mundial e apoiava todos os movimentos e organizaes
revolucionrias.

Graas emigrao de trabalhadores italianos e espanhis


com experincia em lutas polticas e sindicais nos seus pases, o
anarco-sindicalismo foi um fator importante na formao ideolgica
da sociedade brasileira contribuindo para a formao do Partido
Comunista e movimentos de ideias de esquerda. Foi o embasamento
do pensamento de esquerda no Brasil. Tambm dos Estados Unidos
Zillah Mugel Branco - 23

chegava uma literatura sobre a histria social que refletia o idealismo


dos autores herdeiros dos princpios de independncia e de formao
de instituies para um Estado democrtico, que ao longo do sculo
XIX e incio do XX enfrentaram dificuldades impostas pela Inglaterra
e Frana que ainda disputavam o domnio do territrio norteamericano e impunham a sua estratgia de colonizao econmica e
poltica pela via do poder econmico europeu e da fora militar e do
transporte martimo.

Desde que as crises do sistema capitalista comearam a alterar


os passos da sociedade independente norte-americana, acentuavamse as lutas internas, reveladas por importante literatura e textos
jurdicos que abriam espao para a ideologia socialista que crescia
na Europa com Marx e Engels, e todos os intelectuais com projetos
diferentes para uma Revoluo que, em 1917, eclodiu na Rssia
sob a liderana de Lnin e os bolcheviques. Ao mesmo tempo se
desenvolveu naquela sociedade industrializada dos Estados Unidos,
em ncleos de poder favorecidos pelos paises ricos da Europa, as
sementes do imperialismo que substituiu o sistema colonialista
centralizando o poder militar, de transportes e financeiro mundial.
No Brasil, ao mesmo tempo em que tomvamos conhecimento
do combate ideolgico que os livros norte-americanos (e bons
grandes filmes) revelavam, sentamos a presso do imperialismo
tentando manter a nossa economia subdesenvolvida. As denncias
contra a ocultao feita por empresas e tcnicos vindos dos EU e
do Canad das potencialidades de desenvolvimento brasileiro da
produo de petrleo e construo de hidroeltricas deram origem
literatura nacionalista no Brasil e campanha do Petrleo
Nosso que representou importante dinamizao de movimentos
de massas de esquerda.

Quando fiz o curso de Cincias Sociais na USP, pretendia


aprofundar o conhecimento da realidade social. Retardei a formatura
por problemas familiares a partir do segundo ano de Faculdade. Ao
conseguir obter o diploma, a minha turma escolheu para nosso
paraninfo Celso Furtado que havia se destacado no governo de
Joo Goulart. A festa e a prpria vida brasileira foi frustrada pelo
golpe militar de 1964. As tarefas do socorro vermelho ganharam
prioridade frente da construo de uma carreira profissional e
pessoal para quem j tinha a formao militante.
24 - Educao Militante

Experincia chilena
Depois de cinco anos militando clandestinamente e
arriscando os empregos que conseguia ter, tornou-se aconselhvel
sair do Brasil com meus filhos. Fui para o Chile onde havia um
governo democrata-cristo que permitia alguma liberdade a vrios
brasileiros exilados. Seis meses depois de chegar, fomos premiados
com a eleio de Allende. A sensao de liberdade abriu-nos a vida,
e a militncia tornou-se possvel mesmo para uma estrangeira pelo
engajamento com a Unidade Popular.
Foi no trabalho organizado pela FAO, de apoio reforma
agrria na empresa governamental ICIRA, em Santiago, que
encontrei o meu verdadeiro amadurecimento no conhecimento da
realidade social. Distanciei-me da vida acadmica e mergulhei na
vida campesina chilena com toda a complexidade que integrava
a histria dos ndios mapuches como fundamento cultural. Na
organizao promovida pela FAO, com os conceitos cooperativos
adequados ao sistema capitalista e ao pensamento democrata-cristo
implantado pelo governo Frei, fora orientado o projeto de reforma
agrria. Junto aos companheiros da UP encontrei estudiosos do
marxismo com quem podia dialogar e procurar fundamentao
terica para os temas que dinamizavam o processo de transformao
social e poltica.

Eu falava mal o castelhano, o que me aproximava dos


indgenas que misturavam o seu idioma ao que era usado no
Chile. Algumas vezes os camponeses indgenas me pediam para
traduzir o que os tcnicos chilenos diziam. Quando comeou
a haver dificuldades entre os tcnicos chilenos representantes do
governo e os indgenas, que preferiam a orientao radical do
MIR (Movimiento de Isquierda Revolucionria), por vrias vezes
fui chamada pelos indgenas para servir de mediadora. Senti-me
adotada pelos mapuches que sempre me trataram com respeito e
amizade deixando perceber que eu, apesar de branca (huinca como
os colonizadores) no tinha qualquer responsabilidade pelos sculos
de colonizao agressiva. Aprendi muito no convvio com uma
cultura desconhecida para mim, onde os laos de identidade se
davam no contexto de luta pelos direitos de cidadania e de trabalho.
A militncia social brasileira era o melhor passaporte para o
aprendizado daquela realidade em que eu era estrangeira, tal como
os indgenas tambm eram tratados no seu pas.
Zillah Mugel Branco - 25

Frequentando as aldeias mapuches percebi a clareza do


seu raciocnio poltico. Os indgenas recomendavam, quanto
linguagem utilizada pelos tcnicos, que no se usasse o termo
expropriao das terras do latifndio, mas sim apropriao do que
fora roubado aos mapuches. Faziam perguntas sobre a orientao
do governo e procuravam entender comparando com as lutas
tradicionais centenrias dos ndios. Guardavam nas suas rucas uma
documentao antiga sobre as terras indgenas que lhes garantia a
propriedade, roubada nos trezentos anos de colonizao.
Trabalhando pelo projeto da FAO em contacto direto com os
camponeses pobres do Chile fui percebendo as contradies subtis entre
a mensagem acadmica que continha uma viso elitista e paternalista
em contraste com o raciocnio claro dos trabalhadores quando
respeitadas as condies sociais e culturais em que foram formados
e viviam. Eu tinha sempre a preocupao de traduzir a linguagem
acadmica para a que era habitual entre eles, inclusive criando recursos
pedaggicos mais adequados que as abstraes intelectuais.
Assim foi quando fui dar um curso de histria para camponeses
de uma localidade no interior de Temuco com a proposta de formar
os Consejos Comunales onde estariam os trabalhadores sem terra ao
lado dos camponeses. Li bastante e me muni de mapas regionais e
grficos com dados estatsticos. Ao iniciar a exposio sobre a histria
deles abri o mapa para situar a histria naquela regio e me dei
conta de que eu estava falando grego e mostrando um quadro de
rabiscos ininteligveis para expor o que eles no sabiam que sentiam
mais do que eu. Interrompi para tomarmos um ch por causa do frio,
conversamos descontraidamente e comecei novamente com o mapa
virado de costas para que eles desenhassem os pontos principais da
regio e passei a perguntar como era a histria dos latifndios, dos
trabalhadores, dos pequenos agricultores, quem distribua a gua etc.
Discutiam, entre si, traando caminhos, fontes de gua, obstculos
naturais, terras boas e ms, casas grandes, casinhas e rucas mapuches.
Com entusiasmo foram contando a histria das relaes sociais, os
sofrimentos, as formas de explorao, o uso da fora com a ajuda da
igreja e da represso policial. Abri um grfico de barras para indicar
a populao dividida em classes e as terras de cada. Ficaram quietos e
desinteressados. Redesenhei os grficos em forma de queijos e eles
indicaram o tamanho das fatias que, elas sim, indicavam a dimenso
social e do poder.
26 - Educao Militante

Alm da possibilidade de exercer a militncia junto ao


trabalho profissional, a sociedade chilena estimula a participao
social de toda a populao. um povo sofrido devido aos muitos
terremotos e vulces ocasionando catstrofes que promovem a
solidariedade entre todos, e a dura realidade de explorao imposta
s camadas mais pobres da populao e ao empobrecimento da classe
mdia apesar do acesso a um sistema de ensino bem organizado.
A volta ao pas fechado
O golpe militar no Chile foi o segundo que senti contra
o meu povo, agora chileno e mapuche. O retorno ao Brasil, ainda
sob a ditadura, depois de quatro anos, deu-me a sensao de exlio,
principalmente pelas mudanas de comportamento poltico ocorrido
entre parentes e antigos amigos. A vivncia de uma realidade em
processo revolucionrio alterara tambm a minha capacidade de
adaptao a uma camada social que se mantinha alienada para
poder conviver com a presso poltica e policial, o que a conduzia
insensivelmente a uma posio conservadora e preconceituosa
sobretudo expressamente anticomunista.

Ao ouvirmos pela rdio a notcia da Revoluo dos Cravos


na manh do dia 25 de Abril de 1974, meus filhos pediram que
fossemos para Portugal. A formao militante deles havia sido
iniciada no Chile de Allende onde a participao social ocorria
promovida pela escola pblica, os Centros de Madres e as associaes
de moradores. Eles tambm se sentiam exilados em um meio que
lhes parecia terrivelmente agressivo pelas ameaas policiais e,
tambm, pela exibio de riquezas individuais.
Nova experincia de viver em liberdade
Em Lisboa percebi a profunda diferena cultural existente
entre latino-americanos e europeus, com histrias opostas em muitos
aspectos, preconceitos subtis e uma estrutura social rgida. Ingressei
no Partido Comunista Portugus, onde a formao ideolgica dos
militantes era uma ponte para a necessria identidade pessoal e
familiar que vencia a condio de estrangeiros que isola. Ali conheci
militantes exemplares que combinavam uma profunda formao
terica marxista com uma preocupao humanista permanente
originada na vida clandestina junto s camadas mais pobres da
populao portuguesa ao longo de dezenas de anos.
Zillah Mugel Branco - 27

Mergulhei nos trabalhos de apoio reforma agrria


que, organizados pelos comunistas portugueses que atuaram
clandestinamente nas regies do Alentejo e Ribatejo durante 40
anos de ditadura de Salazar, no sofria as contradies do projeto
FAO. A questo rural fora profundamente estudada por lvaro
Cunhal, Secretrio Geral do PCP e pelo engenheiro agrnomo Jlio
Martins, nos tempos em que ficaram presos e estavam j editados
os livros que serviam de orientao em 1974. Foram formadas as
UCPs Unidades Coletivas de Produo que permaneciam como
propriedade nacional gerida por uma assembleia de trabalhadores
eleita ao contrrio das cooperativas que atribuam a propriedade aos
trabalhadores. Foi criada uma organizao de apoio voluntrio
CRARA (Comisso revolucionria de apoio reforma agrria) que
reunia recursos de financiamento, apoio profissional e de organizao
e promovia visitas regulares de trabalhadores voluntrios, de grupos
mdicos e de alfabetizadores para assegurar os recursos necessrios
at que as UCPs constitudas pudessem ser apoiadas tcnica e
profissionalmente pelo Estado. A CRARA dinamizava atravs de
meios de comunicao voluntrios a informao nacional e europeia
no meio urbano sobre a situao da reforma agrria, que do Alentejo
expandiu-se como fora poltica nacional ligando-se aos pequenos
agricultores de todo o pas em apoio CNA (Confederao Nacional
de Agricultura) e ao MARN (Movimento de agricultores e rendeiros
do Norte) defendendo leis que assegurassem o desenvolvimento
daquelas formas de produo agrcola nas zonas de minifndio.

Os trabalhos de militncia em prol da reforma agrria eram


realizados em vrias frentes: nos Ministrios, com a preparao de
legislao especfica e promoo de encontros entre os trabalhadores
e organismos governamentais; com a redao de artigos para ampla
divulgao dos programas de trabalho e captao de investimentos e formas
de apoio voluntrio para a sua realizao; em contatos internacionais com
universidades e associaes solidrias (Frana, Blgica, Holanda, pases
socialistas); no apoio a produo de filmes e documentrios nacionais
e internacionais (por exemplo da Thames Television de Londres) e
trabalhos universitrios na Holanda; junto ao movimento sindical para
integrao dos sindicatos agrcolas a nvel nacional e internacional; com
a promoo de estudos jurdicos referentes produo e comercializao
agrcolas e organizao social do setor rural.
A reforma agrria, pelo seu xito na produo (UCPs
receberam prmios de produo e produtividade e a OCDE destacou
28 - Educao Militante

a sua importncia na Europa) e por constituir um exemplo da luta


revolucionria dos trabalhadores que atraia a solidariedade de vrios
setores urbanos da sociedade portuguesa e de outros pases, despertou
o antagonismo dos social-democratas monitorados pelo imperialismo
(Kissinger, Secretrio de Estado dos E.U. e o embaixador Carlucci,
alto funcionrio da CIA) e pela Internacional Socialista.
O PS, liderado por Mario Soares, trabalhou pela derrubada
do Coronel Vasco Gonalves que ocupou o cargo de Primeiro
Ministro nos primeiros meses da Revoluo dos Cravos, dando inicio
a um vasto programa de nacionalizaes e intervenes para impedir
a reao terrorista dos opositores transformao democrtica de
Portugal. Eleito Mrio Soares, os dirigentes socialistas se somaram
aos defensores do sistema capitalista e latifundirio, levantando
obstculos a todos os caminhos para o prosseguimento da reforma
agrria e das nacionalizaes. Comeou por propor que fossem
criadas cooperativas de propriedade dos trabalhadores, sem definir as
responsabilidades e direitos do Estado. Assim introduziu a ambio
individual pela apropriao da terra minando a unidade em torno
do trabalho e da produo e do prprio Estado. As UCPs foram
destrudas, as terras devolvidas aos antigos agrrios, houve conflitos
policiais, prises e mortes.
Restaram na sociedade portuguesa os efeitos polticos e
sociais que levaram para as pequenas cidades das regies agrcolas
as iniciativas de transformao da vida rural atravs das Cmaras
Municipais. A militncia prosseguiu no apoio ao Poder Local que
foi dinamizado para a construo de infra-estruturas econmicas e
sociais que desenvolveram as reas urbanas do Alentejo e Ribatejo.

O PCP promoveu debates abertos sobre cada setor de


atividade econmica e social, durante o perodo em que a Revoluo
dos Cravos manteve a sua dinmica. Eram momentos de balano
e reflexo marxista sobre a realidade do pas. Os militantes
tinham oportunidade de aprofundar o seu conhecimento emprico
confrontado com os textos tericos e a opinio de destacados
profissionais de vrias tendncias polticas.
O registro da evoluo do processo revolucionrio em cada
rea consta da documentao partidria, das concluses de reunies
especficas para balano da situao, de textos divulgados em artigos e
palestras. Dificilmente eram produzidos livros com anlises histricas
no momento em que ocorriam as lutas sociais, devido necessidade
Zillah Mugel Branco - 29

de serem preservadas algumas decises polticas em curso. O relato


histrico em cada caso s seria possvel com distanciamento em
relao a dinmica do processo. Esta carncia de documentao
organizada para divulgao permitiu que predominassem as opinies
sociais-democratas ou de direita que escreveram com a viso que
lhes era possvel, sem a integrao profunda com a realidade vivida
pelo povo que foi o verdadeiro autor do processo revolucionrio.
O domnio social-democrata na Europa
A Revoluo dos Cravos existiu na sua plena pujana
durante o Governo dirigido pelo Cel. Vasco Gonalves. O povo
participante conseguiu manter as UCPs produtivas, e uma intensa
defesa das que foram sendo devolvidas aos antigos proprietrios, por
mais sete anos. As intervenes de trabalhadores nas empresas em
processo de nacionalizao foram repelidas pelo Governo PS que se
aliou aos senhores de antigamente, como se dizia. Todo o processo
revolucionrio foi minado de dentro para fora e, apesar da forte
organizao popular liderada pelo PCP e a Intersindical Nacional,
ao longo de vrios anos tornou-se dominante uma cultura de medo
alimentada pelas fices terroristas que a mdia passou a divulgar
sobre o perigo comunista.
Fui a Cabo Verde com um projeto de formao de agentes de
participao popular a ser coordenado pelo PAIGC partido africano
pela independncia da Guin e Cabo Verde que estava no Governo.

Ali trabalhei durante dois anos com total apoio dos


camaradas cabo-verdianos, dando aulas a funcionrios pblicos,
elementos de vrias associaes de solidariedade, sindicalistas,
representantes das Foras Armadas e dirigentes partidrios. Vivia-se
no pas o rescaldo da luta revolucionria dirigida por Amilcar Cabral
que fora vitoriosa contra o colonialismo portugus no territrio
da Guin Bissau. luz da independncia conquistada o Governo
de Cabo Verde reconstrua a administrao nacional atravs de
um trabalho militante aprofundado que unia as caractersticas
de associao popular tradicionais, de origem tribal, s formas de
organizao administrativa moderna. Destacavam-se as Comisses
de Moradores, os Tribunais Populares, a Milcia Popular.
Cada mdulo do curso suscitava o esclarecimento sobre a
realidade nacional apresentado pelos alunos. Desse conhecimento
foram produzidos artigos publicados pela imprensa local, que serviam
30 - Educao Militante

de incentivo aos debates nas reunies partidrias algumas vezes


conduzidas por ministros e quadros superiores da administrao
governamental. No segundo ano de trabalho comeou-se a sentir a
presena da social-democracia que se infiltrava atravs de quadros
tcnicos ligados cooperao internacional. Vivamos o final da
dcada de 1980 quando era patente a imploso da URSS com todas
as consequncias articuladas pelo imperialismo norte-americano
agora estreitamente ligado CEE Comisso de Estados Europeus
que deu origem Unio Europeia.
As dificuldades cresciam para que os agentes de participao
pudessem realizar os trabalhos finais que haviam sido definidos por
eles no projeto. Sem condies para terminar o trabalho reuni o que
foi realizado na zona urbana de Santiago e tive a surpresa comovedora
de receber da zona rural justamente onde os agentes no falavam
o portugus, mas sim o crioulo e muitos eram analfabetos - um
quadro sntese de todo o levantamento das condies de vida nas
aldeias apontando as necessidades de infra-estrutura, escolas, postos
de sade, recursos para lazer. O responsvel do PAIGC explicou
que enquanto a populao aplicava o questionrio elaborado em
conjunto no curso, sempre com a ajuda dos adolescentes que j
eram alfabetizados, cresceu o nmero de participantes das reunies
partidrias onde as questes passaram a ser tratadas com maios
ateno a fim de ser estabelecida uma escala de prioridade para
iniciar as construes ligando o apoio do Governo com a prtica de
djuntamon (mutiro) tribal.
Fim do socialismo na Europa, abalo mundial
Foi um tempo depressivo, de forte sentimento de orfandade
poltica. Em Portugal foram os velhos militantes do PCP que alertaram
os mais jovens de que a histria tem altos e baixos, mas recupera o
rumo. Era necessrio estudar novos mtodos de trabalho, corrigir erros
e dependncias de uma situao favorvel de luta, agora abalada.

Voltei ao Brasil e tentei reencontrar as minhas origens para


reconstruir a vida. Os velhos camaradas e amigos haviam desaparecido
com idade avanada. Os mais jovens haviam seguido, na sua maioria,
caminhos divergentes do que havamos iniciado juntos. Um antigo
professor, amigo e ex-camarada comunista, fora eleito Presidente do
Brasil. O seu governo liderava o neo-liberalismo que afogava as lutas
contra a ditadura militar e o imperialismo. A sociedade brasileira
encontrava-se dominada por pensamentos msticos e por uma
Zillah Mugel Branco - 31

linguagem metafsica que impedia qualquer conversa sobre a realidade


que eu conhecera h 25 anos nos pases em que vivi. Fiz uma reciclagem
para atualizar a capacidade de comunicao que j me faltava.
A eleio de Lula em 2002 foi uma entrada de oxignio na
masmorra. A esquerda brasileira emergiu das cinzas onde ficaram
muitas brasas durante os anos negros da ditadura e os dbios do
neoliberalismo fortemente aliado social-democracia europeia, em
especial a de Portugal. Mantive o alento militante escrevendo para o
Avante, jornal do PCP, e no Portal Vermelho do PCdoB.

Levei discusso as propostas de desenvolvimento


nacional que o Governo Lula defendia e que, a meu ver, permitia
uma importante, ainda que lenta caminhada revolucionria.
Acenderam-se os debates com alguns camaradas portugueses que
condenavam o reformismo burgus e no vm as perigosas alianas
que fazemos como acidentes de percurso. Foi uma grande escola
este debate que eu continuei a defender conhecendo a realidade dos
trabalhos incansveis da sociedade brasileira que consegue vencer o
neoliberalismo e manter na Amrica Latina o exemplo da dignidade
nacional e da solidariedade com todos os povos em luta.
Sou otimista e a esperana de que o Estado se torne
democrtico h de me animar sempre. Acredito no valor do ser
humano desde que no lhe seja imposto um sistema de vida e de
pensamento oportunista, cruel e egosta.
Encontrei condies para engajar a militncia que faz parte
essencial da minha vida. E, aos poucos, fui podendo reconstruir a
existncia com novos amigos e camaradas de outros partidos que
representam hoje a extenso da minha verdadeira famlia.
E a luta continua!

Notas
1.

Trata-se do engenheiro Catullo Branco que, por um ano, foi deputado constituinte
e Secretrio da Assembleia Legislativa de So Paulo (Nota dos Editores).

32 - Educao Militante

Juventude Metalrgica e
Sindicato

ABC Paulista
1999-2001

Agnaldo dos Santos


O sindicalismo contemporneo
vive transformaes em sua
base social de sustentao,
decorrncia das mudanas em
curso no mundo do trabalho. A
marca dessas transformaes
a heterogeneidade, ou seja, o
antigo mundo fabril composto
majoritariamente
por
homens
adultos, provedores do lar, d
espao s mulheres e aos jovens,
com aspiraes e vises de mundo
distintas daquelas tradicionalmente
traba-lhadas pelo sindicalismo. Os
jovens metalrgicos de hoje, mais
educados, usufruindo as conquistas
trabalhistas do passado, no se
sentem mais como os seus pais
ou avs, vencedores por terem
aprendido uma profisso, orgulhosos

por serem trabalhadores qualificados: a atual gerao ponto com


deseja abandonar a condio de
metalgico, percebe seu trabalho
como passageiro, transitrio, o que
acaba gerando uma incongruncia
entre as estratgias universalistas
do movimento sindical e os anseios
desses metalrgicos outsiders. Isso
fica claro na prpria composio
do sindicato hoje, composto em
sua maioria por a maioria de
trabalhadores acima dos 30 anos
de idade e com mais de cinco
anos de empresa.
Vendas pelo site:
h t t p : / / w w w. a g b o o k . c o m .
br/book/26361--Juventude_
Metalurgica_e_Sindicato

Educa a sus hijos

SOCIALISMO E EDUCAO

La Isla educa a sus hijos:


Educao infantil por vias
no-formais em Cuba1
Valria Aroeira Garcia

Doutora em educao pela Faculdade


de Educao da Unicamp, Supervisora
Educacional da Secretaria Municipal de
Educao de Campinas - SP
A educao cubana se destaca por ao prioritria
do governo desde a Revoluo Cubana, tendo inclusive,
reconhecimento internacional.2 Um dos aspectos desta evidncia,
so as vias no-formais na educao infantil. Neste artigo,
abordamos o Programa Educa a tu hijo, que acontece em Cuba, e
foi idealizado para atender crianas que no frequentam o sistema
formal de educao infantil, alm de fazermos uma interface com
a histria da educao no-formal, em especial no Brasil. Partimos
da caracterizao do histrico da educao no-formal no Brasil
considerando as pesquisas de Garcia (2009) que dialogam com a
construo conceitual na filosofia de Deleuze e de recente artigo
de Franco Garca (2010), membro do Ministrio de Educao
de Cuba, sobre a educao infantil neste pas, contanto com uma
bibliografia bastante recente.
Faria (2007), pontuando a educao para as crianas pequenas
na atualidade, ao destacar a poltica plural para crianas de 0 a 6
anos,3 aborda tanto a legalidade dessa modalidade da educao como
a opo da famlia em escolher ou no a educao infantil:
No obrigatria para as crianas, sendo uma opo das
famlias garantida pela Constituio Nacional de 1988,
que entende a criana como portadora de histria, capaz de
estabelecer mltiplas relaes, construtora de cultura, enfim,
sujeito de direitos. Outras formas de educao das crianas

desta faixa etria que no se enquadrem no sistema formal de


educao e ensino do pas, assim no se caracterizando como
primeira etapa da educao bsica, podendo ser governamentais
ou no governamentais, faro parte da construo de uma
poltica plural de ateno e educao da criana pequena e,
assim, so chamadas de educao infantil por vias no-formais.
Cuba, j na sua primeira fase de implantao do socialismo,
criou o Programa Educa Tu Hijo, hoje referncia mundial de
via governamental no-formal de educao infantil, garantindo
sempre a todas as crianas de 0 a 6 anos e suas famlias alguma
forma de educao na esfera pblica, fora da esfera privada da
famlia. No norte da Itlia, reconhecido como parte do mundo
capitalista de primeiro mundo, experincias governamentais
como Tempo Per Le Famiglie, de Milo, Spazio Insieme, de
Parma e Roma, Centro Integrativo de Bolonha, CIAF, de
Pistia, entre outras, tambm se caracterizam como vias noformais de educao e cuidado das crianas e suas famlias, de
todas as camadas sociais (como tambm a educao elementar
pblica estatal obrigatria italiana). Lanada pela primeira
vez na Frana, criada por Franoise Dolto, foi a Maison Vert.
Portanto seja formal ou no-formal, governamental ou nogovernamental, em pas socialista ou capitalista, para crianas
pobres e ricas, a educao infantil no escolar, devendo estar
centrada na produo das culturas infantis e no no ensino, nem
na antecipao, nem na preparao para a escola obrigatria.
[...]. As vias no-formais existem, ao contrrio, para garantir
a poltica plural que caracteriza este segmento da educao
bsica no obrigatria em creches e pr-escolas que, procuram
implementar a Constituio brasileira respondendo tanto pelos
direitos trabalhistas de adultos e adultas, pais e mes, como
tambm e, ao mesmo tempo, respondendo ao direito educao
de seus filhos e filhas e aos de todas as crianas de 0 a 6 anos,
independentemente da situao trabalhista do pai e da me, mas
tendo-os como atores sociais constitutivos da educao infantil
ao lado do protagonismo das professoras e tendo a criana como
enfoque principal (grifo nosso, p. 291, 292).

Em entrevista realizada com a professora Olga Franco Garca


do Ministerio de Educacin de Cuba,4 ela nos revelou que o Programa
Educa a tu hijo, iniciado em 1983,5 comeou primeiro em algumas
cidades e, atualmente, existe em todo o pas, sendo compreendido
como um programa educacional e social junto s famlias.
O Programa, desde o incio tinha como pano de fundo, a
proposta poltica cubana de oferecer educao infantil para todas6
36 - La Isla educa a sus hijos

as crianas, como no havia condies de oferecer educao infantil


nos moldes formais7 para toda a populao infantil,8 o pas criou
o Programa Educa a tu hijo, enfatizando sua opo em garantir
educao infantil de carter pblico para todas e todos.
essencial destacar a importncia dessa ao poltica, uma
vez que ainda nos dias de hoje, os pases no conseguem oferecer
educao infantil para todas as crianas, e Cuba ao fazer esta opo,
escolheu faz-lo garantindo que esta educao fosse pblica. A lei
cubana que estabeleceu a primeira Reforma Integral do Ensino
determina que a educao seja: gratuita, estatal, laica e nica para
toda a populao.
Como inspirao para o Programa Educa a tu hijo, Cuba
considerou outros programas de educao no-formal na Amrica
Latina, como o Proyecto Wawa Wasi (Casa de Nios) do Per; o
Programa Social Hogares Comunitarios de Bienestar, promovido
pelo Instituto Colombiano de Bienestar Familiar, e o Programa
Hogares de Cuidado Diario e Multihogares promovidos pelo
Ministerio de la Familia, la Fundacin del Nio e outras instituies
governamentais e no-governamentais da Venezuela. Mas j neste
momento Cuba fez a crtica de que estes progrmas eram para poucos,
atendendo no mximo 15% da populao infantil em cada pas.9
Atualmente algumas opes adotadas pelas gestes pblicas,
o fazem realizando parcerias com instituies no-governamentais,
e a apesar da gesto ser pblica, a ao educacional realizada
por instituies que no so estritamente do poder pblico. Como
exemplo, citamos as Naves-Me do municpio de Campinas-SP,
onde a Prefeitura Municipal estabelece um contrato com a instituio
parceira e atravs de um convnio repassa verba para a ONG fazer
a gesto desta unidade de educao infantil, sendo responsvel
inclusive pela contratao e pagamento de funcionrios, alm do
desenvolvimento e acompanhamento do Projeto Pedaggico da
Unidade Educacional.
Inicialmente o Programa Educa a tu hijo atendia apenas as
crianas de 4 e 5 anos, atualmente inicia-se com a educao e atividades
para as mulheres grvidas, inclusive com visitas domiciliares.
Atualmente as aes dessa proposta educacional incluem encontros
peridicos com os adultos e crianas que fazem parte do Programa,
visitas nas casas, principalmente das mulheres grvidas e de recmnascidos e formao para os adultos responsveis pelas crianas, em
Valria Aroeira Garcia - 37

especial aqueles que cuidam cotidianamente das crianas, incluindo


as famlias na ao pela educao infantil das crianas de 0 a 6 anos,
e potencialidades para a concretizao da educao infantil. Essa
formao inclui tanto palestras, encontros e atendimentos, como
uma srie de cadernos que detalham em uma linguagem acessvel
a todos, as fases de vida das crianas com sugestes de atividades
adequadas para cada fase especfica de desenvolvimento.
Para sucesso do Programa houve a necessidade de envolver
outros profissionais, como os mdicos de famlia, enfermeiras, alm
de setores da comunidade, como os Conselhos Populares. Atualmente
h uma coordenao nacional, depois uma provincial, municipal e
finalmente acompanhamentos pelos bairros. O Programa tem uma
forte marca comunitria e intersetorial, sendo a coordenao do
Ministrio da Educao e tendo como participantes os Ministrios
de Sade Pblica, de Cultura e de Esportes; a Federao de Mulheres
Cubanas (FMC); os Comits de Defesa da Revoluo (CDR);
a Associao Nacional de Pequenos Agricultores; as Associaes
Estudantis; os Sindicatos e os meios de difuso. O envolvimento de
vrias representaes do governo marca o carter estatal do Programa
Educa a tu hijo, que apesar de utilizar a via no-institucional, demonstra
a ao e a responsabilidade do Estado atravs de seu apoio e por
ser organizado dirigido, assessorado e controlado pela Direccin de
Educacin Preescolar del Ministerio de Educacin de Cuba.
Inicialmente os educadores envolvidos no programa eram
oriundos da educao infantil formal, mas desde algum tempo
as universidades j preparam os profissionais para atuarem no
Programa Educa a tu Hijo. Existe formao universitria tanto
nos cursos de educao, como tambm nos cursos de medicina e
enfermagem. A formao universitria nos cursos de educao visa
tanto a educao formal como a no-formal, consideradas como
duas modalidades, o currculo e os princpios so os mesmos, sendo
que o que muda a forma de organizar, segundo a prof Olga: hay un
solo curriculo para los dos programas, e todos os estudantes passam
pelas duas formaes. No h oposio entre os dois programas,
tanto na concepo terica como na atuao prtica, a promotora
(denominao dada as coordenadoras do Educa a tu hijo) tem a
mesma valorizao que as professoras, e as executoras (que so as
educadoras que atuam diretamente com as crianas e famlias) so
extremamente respeitadas pela comunidade.
38 - La Isla educa a sus hijos

Outro destaque que fazemos iniciativa cubana em relao


educao infantil que o Programa Educa a tu hijo teve incio em
1992, poca em que militantes da educao infantil de muitos pases
ainda lutavam por leis e infraestrutura que garantissem o acesso
educao infantil para todas as crianas.10

A trajetria histrica da educao no-formal nos pases


da Amrica do Sul, por exemplo, passa, no por uma abordagem e
concepo em que ambas as possibilidades educacionais (formal e
no-formal) tm a sua importncia e so respeitadas em sua lgica
de acontecimento, mas percebemos que desde sua concepo, ela foi
pensada como alternativa barata para solucionar problemas advindos
de parcos e/ou inadequados investimentos na educao formal.
Desta forma a educao no-formal, em geral, analisada tendo
como eixo comparativo a educao formal. As primeiras pesquisas
norteamericanas11 demonstram que, economicamente, a educao
no-formal foi planejada e pensada para favorecer o desenvolvimento
mais rpido e mais barato de pases que naquele momento histrico
eram considerados pelos Estados Unidos como pases em vias de
desenvolvimento. Assim, muito comum, observarmos nas pesquisas
sobre educao no-formal referncias aos problemas da educao
formal. A educao no-formal comeou a aparecer no cenrio terico
como uma opo possvel para soluo aos problemas que a escola no
havia resolvido. essencial chamar a ateno para o fato de que, apesar
de em alguns momentos a educao no-formal ser compreendida
como outro campo educacional diferente do formal, a sua oposio a
esse campo foi construda teoricamente considerando a possibilidade
desta ser mais econmica e mostrar resultados mais rpidos.

Acreditamos que resida nos primeiros artigos produzidos


sobre a educao no-formal a perceptvel oposio, contraponto,
rivalidade, ou seja, a compreenso da educao no-formal como
coadjuvante e/ou complemento da educao formal.
Um desdobramento dessa relao se d no sentido de
perceber de que maneira essa nova especificidade vem influenciando
o que prprio da educao formal. Ou seja, de que forma a educao
formal vem percebendo e como se apropria do que apontado e
descoberto pela educao no-formal.12 Essa relao ainda centrada
na comparao, como se educao formal e no-formal estivessem
o tempo todo disputando uma mesma demanda, sendo necessrio
demonstrar em quais aspectos um campo mais relevante, mais
barato, mais flexvel, mais isso ou menos aquilo do que o outro.
Valria Aroeira Garcia - 39

Coombs13 (1986) tambm identifica certa disputa por


recursos financeiros, o que observamos ainda nos dias atuais. As
dificuldades aparecem por conta da educao formal temer dividir
recursos com a no-formal para atuarem juntas, caso essa no
contribua com recursos adicionais. H ainda uma certa disputa de
reas de conhecimento e atuao profissional e h tambm uma
disputa entre secretarias por maiores recursos para manterem esses
programas:
Mas a prpria educao divide-se na competio pelos
recursos podem existir rivalidades entre a escola primria e
a secundria, entre a secundria e a superior; entre a formao
de professores e a construo de salas de aula; e, o (que)
muito importante, entre a educao formal e a no-formal
(Coombs, op. cit., p. 75).

Pode-se supor que essa rivalidade no natural e no parte


nem das prticas que caracterizam a educao no-formal e nem da
histria da educao formal, mas que ela incitada por uma srie de
estudos e publicaes sobre a educao no-formal.
No verbete Nonformal Education: Policy in developing
countries, escrito por J. C. Bock e C. M. Bock, na The International
Encyclopedia of Education (1985), fica evidente o teor econmico
e desenvolvimentista atribudo, principalmente pelas pesquisas
norte-americanas, educao no-formal. Aparecendo como uma
alternativa mais barata e mais rpida reconstruo nacional aps
a segunda guerra mundial, a educao no-formal tida como um
apelo poderoso para o desenvolvimento de pases, compreendidos por
eles como subdesenvolvidos; como uma ferramenta para melhorar e
promover a qualidade de vida dos cidados e como meio e condio
para o desenvolvimento nacional. A partir da constatao de que
a educao formal teria dificuldades para dar conta de promover o
nacional desenvolvimentismo e a modernizao da mo-de-obra
necessria para colocar os pases em desenvolvimento em condies
de negociar internacionalmente, a educao no-formal passa a
ser vista como alternativa para suprir, com mais rapidez e menor
investimento, essas necessidades econmicas.
A rivalidade entre essas duas modalidades educacionais
provocada e incentivada, pelo fato de pesquisadores e planejadores
norteamericanos apresentarem a educao no-formal como
possuidora de caractersticas para sanar problemas no educacionais,
40 - La Isla educa a sus hijos

tendo os meios para resolver problemas de desenvolvimento social


e nacional. Ainda no verbete citado, podemos perceber que um dos
fatores que provocaram essa rivalidade a percepo difundida da
educao formal como responsvel pela educao das elites e sem
condies de formar a mo-de-obra necessria para o desenvolvimento
esperado para os pases considerados subdesnvolvidos.
Havia, portanto, uma suposio de que a educao noformal poderia, em algumas situaes, ocupar o lugar da formal,
principalmente no que se refere aos pases considerados pobres.
Cuba vem se destacando em relao ao Programa Educa a tu
hijo, pois desde a concepo de formao dos educadores e demais
envolvidos no Programa, seja ela acadmica ou no, a educao formal
e no-formal j abrange uma complementariedade, no no sentido
de que uma existe para completar a outra, realizando aquilo que
falta, ou tampando os buracos do que faltou fazer, mas concebendo
ambos campos educacionais como independentes, operando em
lgicas distintas, apesar de existirem pontes, de se conversarem e se
complementarem eventualmente.
Referendando-nos na filosofia deleuziana consideramos
que as propostas educacionais formal e no-formal operam em
lgicas distintas podendo ter concepes que se colocam, inclusive
em oposio, se questionando e produzindo outros conhecimentos.
Lembramos aqui a concepo de amigo dos gregos, trazida por
Deleuze e Guattari (1992), na qual o amigo aquele que tem, em
potncia, o seu objeto de desejo e pelo seu envolvimento com esse
objeto ele se mistura com ele. Amigo designa uma certa intimidade
competente, uma espcie de gosto material e uma potencialidade (op.
cit. p. 11).
O amigo grego traz em si tanto o pretendente ao objeto
do desejo como o seu rival, ambos incorporados sua compreenso
de mundo, sendo este movimento que considera inclusive posies
divergentes, que se configura como parte do processo de construo do
pensamento. Este outro, que para o amigo rival do seu pensamento
inicial, que permite e facilita as idas e vindas, as digresses e
construes para o desenvolvimento do pensamento.
A amizade comportaria tanto desconfiana competitiva com
relao ao rival, quanto tenso amorosa em direo do objeto
do desejo (Deleuze e Guattari, 1992, p. 11).
Valria Aroeira Garcia - 41

Esse dilogo com o outro, com o que diferente, com aquele


que muitas vezes encarado inicialmente como opositor, nos revela
que na oposio existem questionamentos que nos permite, em
muitas situaes, refazer, reelaborar, construir e criar o novo.

Parece-nos que Cuba soube operar com esta lgica a seu


favor, uma vez que a proposta Educa a Tu Hijo de educao noformal foi criada considerando os problemas, as dificuldades o no
pensado, no imaginado para lidar com as situaes do cotidiano.

A maneira em que o Programa organizado nos evidencia


seu funcionamento e realizao em uma lgica prpria, que no
rivaliza, nem disputa com as prticas da educao formal. No
contexto educacional, possvel observar a presena de aes tanto
do campo da educao formal, como no campo da no-formal e da
informal, convivendo sem preocupaes em relao nomenclatura
e definies utilizadas.
As propostas do Educa a tu hijo acontecem em vrios espaos
da cidade (praas, casas, galpes)14 e so direcionadas para toda a
famlia, sendo a maioria dos envolvidos os avs, avs e mes, que
participam levando as crianas para as atividades, que ocorrem com
regularidade, mas com uma organizao diferente os encontros so
alternados, sazonais, mas com periodicidade. As crianas no so
divididas por faixa etria e tambm h a participao de crianas
com necessidades especiais.

H uma constante retroalimentao entre as famlias e as/os


coordenadora(es) do programa, e a cada dois anos h uma avaliao
completa deste, com indicadores nacionais.

Atualmente, em Cuba, no esto utilizando mais a


terminologia educao no-formal pelo fato da proposta se diferenciar
dos demais programas de educao no-formal na Amrica Latina,
pois em Cuba, a proposta no se caracteriza em atender somente s
camadas populares, sendo aberta para toda a sociedade cubana, no
havendo separao para participantes de camadas sociais diferentes,
tanto na educao formal como na no-formal.
Segundo Garcia Franco (2010),15 a opo pela no utilizao
da terminologia no-formal recente e especificamente pelo fato da
educao no-formal em Cuba no corresponder ao que vem sendo
definido como educao no-formal em outros pases, em especial
no que diz respeito ao pblico ao qual essa proposta educacional
42 - La Isla educa a sus hijos

se destina. O atendimento focalizado para setores e grupos das


camadas populares parece ser uma tendncia de prticas da educao
no-formal em diferentes pases capitalistas, nos quais a educao
no-formal acaba sendo utilizada, muitas vezes, como poltica
compensatria para as classes populares e imigrantes. Em vrios
texto e documentos cubanos aparece a nomenclatura modalidade
no institucional.

Portanto em Cuba, a concepo de educao no-formal


se diferencia pelo vis poltico, ou seja, como para os cubanos
a educao formal e no-formal no so compreendidas como
opositoras e a educao no-formal no encarada como ao para
questes sociais, evidencia-se a concepo e posio poltica de
um pas que compreende as aes educacionais (como tambm as
sociais, econmicas etc) voltadas para toda a populao.

A educao no-formal est integrada ao sistema


educacional cubano, e continua tendo uma proposta pedaggica
diferente da educao formal no que diz respeito ao tempo de
atendimento, periodicidade, locais para as prticas, educadores e
educandos (pois esses so tanto as crianas como seus familiares),
alm das educadoras(es) e coordenadoras(es) possurem papeis e
denominaes diferentes daquelas que atuam na educao formal.

Essa outra caractersitica que desejamos destacar do


programa cubano, pois considerar, analisar, valorizar e propor
polticas pblicas a partir das necessidades da populao, dever dos
gestores pblicos. Desta forma importante que o governo proponha
diferentes opes para que a populao possa se servir, identificando
aquela que mais condiz com as diferentes necessidades que permeiam
uma nao. Cuba, ao criar um programa de educao no-formal,
com condies de atender parcela da populao crianas cujas
mes que no trabalham, ou aquelas que ficam sob os cuidados
das avs e/ou avs, inova e avana no somente por adequar uma
proposta educacional s ncessidades de sua populao, mas tambm
por oferecer alternativas de qualidade, mas que funcionam com
lgicas diferentes, para pblicos que tm necessidades diferentes. O
Educa a tu hijo tem recebido diversos prmios internacionais.
O programa educacional, governamental, considerado
uma outra modalidade de educao, porm diferente da educao
formal, embora entrelaado ela. Enquanto nos pases de orientao
capitalista a educao no-formal vem sendo utilizada com

Valria Aroeira Garcia - 43

bastante nfase em programas para as camadas populares e/ou para


imigrantes, em Cuba, em funo de sua opo poltica - socialista,
a educao no-formal tambm para todos, garantindo para todos
sem hierarquia, possibilidades de experimentar diferentes opes.

Da forma como os pases capitalistas vm propondo e


lidando com as vrias possibilidades que a educao no-formal
oferece, os programas acabam por correr o risco de disponibilizar
propostas educacionais endereadas a grupos especficos: as crianas
e jovens das classes alta e mdia acabam tendo nas atividades de
educao no-formal que realizam uma opo a mais, como se
essa outra educao fosse um adicional em sua formao, atuando
como um diferencial. J em relao as crianas e jovens das classes
populares, a educao no-formal vista como aquela que vai
oferecer o que falta, aquilo que as crianas e jovens no tiveram
condies de receber em sua formao, seja escolar ou familiar. Em
uma situao uma educao que amplia, que aumenta. Em outra,
no mximo iguala, ou tenta igualar. Essa uma tendncia inclusive
assumida por vrias instituies de educao no-formal, que muitas
vezes, sem se darem conta, reproduzem esse projeto poltico em
seus discursos. Essa problemtica bastante complicada, uma vez
que a educao no-formal compreendida como uma formao a
mais para crianas, jovens e adultos das classes dominantes e como
uma educao compensatria, como complementar para as crianas,
jovens e adultos das classes populares. Nos pases capitalistas, essa
diferena tambm observada na educao formal, que diferente
para classes sociais diversas, visando a formao de lideranas nas
classes economicamente favorecidas e a formao de trabalhdores
nas classes populares.
Outras maneiras de conceber a educao no-formal nos
pases capitalistas compreendem outros tipos de organizaes,
que no concebem um tipo especfico de educao para camadas
pobres da populao, como exemplo citamos as polticas plurais
de educao infantil, realizadas na Itlia. Na Sucia, Dinamarca
e Noruega a educao infantil compreendida como integrante
da rede de servios do Estado de Bem-Estar Social, na qual o
cuidar e o educar de maneira conjunta fazem parte da concepo
de educao para essa faixa etria. No h distino entre os
profissionais que atuam na educao infantil, e toda a rede
coordenada pelo Ministrio/Secretaria de Bem-Estar Social (tanto
em nvel federal como municipal). O perodo de oferecimento ,
44 - La Isla educa a sus hijos

em geral, integral. A concepo de educao infantil no-escolar.


A infncia compreendida at os nove anos e h um olhar especial
para essa fase:
Os programas de atendimento infantil, compreendendo todos
os tipos de servios ao pr-escolar e os centros recreativos
para crianas em idade escolar esto sob a jurisdio do
Ministrio do Bem-Estar Social, enquanto as escolas esto
vinculadas ao Ministrio da Educao. O sistema de ensino
conserva a tradio de denominar as crianas de alunos,
agrup-las em classes da mesma idade, ter um professor que
ensina a focalizar a ao educativa no processo de ensinoaprendizagem. J o sistema de atendimento infantil apresenta
uma estrutura diferenciada em que as crianas so chamadas
de crianas, so distribudas em idades heterogneas, o
profissional tem o status de pedagogo, o foco est no
desenvolvimento e o que acontece diariamente chamado de
vida diria, ou simplesmente de convivncia (Hammershj
apud HADDAD, Lenira. p. 47, 1996).

Outro vis que a educao no-formal vem assumindo


no Brasil atualmente a interferncia da educao no-formal no
campo da educao formal. As prticas vivenciadas no cotidiano da
educao no-formal, assim como a lgica do no-formal, acabam
por interferir e fazer com que a educao formal se repense.

Existem propostas que fazem o que parece ser o caminho


inverso, partindo do no-formal para o formal. Em Campinas SP,
o Programa Qualidade na Educao, que se originou na FEAC
(Federao das Entidades Assistenciais de Campinas), se transformou
no plano de metas Todos pela Educao,16 encampado pelo
governo federal e apoiado por uma srie de empresas representantes
da iniciativa privada. Outro exemplo, em Salvador Bahia, o
Projeto Ax que, aps avaliar que as crianas e jovens atendidos por
eles tinham muitas dificuldades em frequentar e permanecer nas
escolas pblicas, conseguiu que a Secretaria Municipal de Educao
e Cultura inaugurasse uma escola pblica que atua em parceria com
o Projeto Ax, direcionada aos seus participantes.17 De acordo com
La Rocca, no livro sobre a pedagogia do Projeto Ax, organizado por
Ana Bianchi Reis (2000):
A dimenso do prazer no aprender fortssima em todas as
atividades pedaggicas do Ax. Porm, as crianas continuavam
achando chata e insuportvel a escola formal. A ideia de
uma escola privada do Ax imediatamente rejeitada como
Valria Aroeira Garcia - 45

politicamente incorreta. Levamos quatro anos em buscas,


elaboraes, consultas e negociaes antes de poder levar a efeito
uma ousada parceria com a Secretaria Municipal de Educao
de Salvador para a criao de uma escola em cogesto, com
projeto pedaggico inovador, na qual as crianas encontram o
caminho perdido do prazer em aprender. (p. 14)

Esses dois exemplos demonstram aes de grupos organizados


da sociedade civil interferindo em determinaes de polticas pblicas,
tanto municipais,como federais.O Projeto Ax tem repercusso nacional
e internacional e a FEAC18 (Federao das Entidades Assistenciais de
Campinas), tem uma forte ao nas ONGs e instituies de Campinas,
alm de uma forte interlocuo com prestigiadas empresas e grupos
representantes do poder econmico e poltico do pas. A interferncia
que essas instituies da sociedade civil obtiveram nas polticas pblicas
refletem tambm o poder que tm.
necessrio chamarmos a ateno ao fato de que esses dois
exemplos demonstram estruturas e intervenes bastante distintas,
a FEAC representa um grupo de ONGs do municpio, mas tem
em seus conselhos e diretoria representantes de corporaes que
operam de acordo com a lgica capitalista do mercado. Assim, apesar
de existirem muitas ONGs com projetos polticos com intenes
transformadoras da ordem social vigente que esto associadas
FEAC, elas tm que dialogar com os interesses que as empresas
ali representadas tm em relao s polticas sociais. O Projeto Ax
surgiu de diferentes preocupaes com a situao de crianas e jovens
das classes populares de Salvador - BA, para os filhos e as filhas das
camadas populares [..]. (p. 11), de acordo com La Rocca (in Bianchi,
2000), o idealizador da ONG, que logo que saiu da UNICEF, recebeu
apoio da ONG italiana Terra Nuova, que o convidava, em 1989 para
coordenar um projeto para meninos de rua em Salvador - BA. O
projeto teve inclusive o apoio poltico e institucional do Movimento
Nacional dos Meninos e Meninas de Rua.19
Uma anlise mais detalhada dessas aes necessria ao
refletirmos sobre a conduo de polticas pblicas educacionais
por diferentes grupos da sociedade civil. Independentemente
das intenes polticas e pedaggicas da FEAC e do Projeto Ax
cabe, a partir desses exemplos, questionarmos uma lgica em que
instituies vinculadas a diferentes grupos, inclusive empresariais,
ocupam lugares decisivos na elaborao, gesto e encaminhamento
de polticas pblicas.
46 - La Isla educa a sus hijos

Nosso questionamento evidencia que a mesma lgica de


funcionamento pode fazer valer e implantar projetos com intenes
inclusive divergentes. Do mesmo modo que uma iniciativa da FEAC,
se transformou em um programa de governo e que uma parceria entre
uma ONG educacional, o Projeto Ax, e uma Secretaria Municipal
de Educao originou a co-gesto de uma escola pblica, temos a
possibilidade, de condizente com essa lgica, termos igrejas, grupos
polticos, sindicatos e outras instituies implementando e gerindo
polticas pblicas.
Dessa forma, nossa crtica vem no sentido de demonstrar
como em funo de diferentes interesses, do poder econmico e
poltico de determinados grupos, as polticas pblicas podem ser
engendradas e implantadas nem sempre considerando as necessidades
e desejos dos grupos aos quais ela se destina. As polticas pblicas
deveriam ser implantadas tendo o Estado como gestor do pblico,
direcionando seus investimentos no sentido de oferecer as melhores
condies para a populao em geral considerando, para isso, as
diferentes necessidades.
Em relao s polticas assistenciais e sociais nas sociedades
capitalistas sempre foi a elite no poder que influenciou, decidiu e
props quais deveriam ser as polticas a serem adotadas, em geral
sem ouvir quais eram os desejos e necessidades do povo. Atualmente,
com algumas excees, a elite continua elaborando as polticas
sociais, pois muitas ONGs so compostas por representantes das
classes mdia e alta e tm como dirigentes representantes membros
participantes de grandes empresas, fundaes etc. Ou seja, as polticas
sociais so elaboradas por uma parcela da populao, mas destinadas
a outra parcela, quem precisa das aes a recebem, mas em geral
no participam da elaborao das polticas sociais. Temos em fases
histricas diferentes e com estratgias diferentes, as classes sociais
mais abastadas administrando as polticas para as camadas populares,
e atualmente, inclusive utilizando processos populares. A elite sempre
influenciou as propostas populares. Outro aspecto em relao s
ONGs, que elas tm papeis muito pontuais s o estado pode garantir
os direitos, sendo a forma poltica e democrtica de garantir direitos,
o dilogo entre Estado e sociedade, atravs de grupos representativos
como os movimentos sociais e nessa relao cumprindo seu papel e
garantindo direitos e polticas pblicas para a populao.
Dessa forma acreditamos e buscamos um outro Estado,
que dialogando com a sociedade e a partir de suas necessidades e
Valria Aroeira Garcia - 47

desejos, prope e assume polticas sociais que garantam e promovam


direitos. Nesse sentido, tm acontecido prticas no Brasil, nas quais,
movimentos sociais como, por exemplo, o MST (Movimento dos
Sem Terra) e grupos Quilombolas tm sentado diretamente na mesa
de negociao junto ao governo para elaborarem conjuntamente, sem
intermediadores, aes e polticas sociais, contribuindo diretamente
nas polticas.
Nessa lgica, as instituies representantes da sociedade
civil so ouvidas, mas tambm o so as comunidades e as instituies
pblicas. Nossa crtica aponta para os riscos de que o Estado, quando
desconsidera as necessidades de parcela da populao, fique aqum
de suas funes.

Cuba, ao oferecer na educao infantil, diferentes opes de


educao de qualidade, considera as diferenas de necessidades de
sua populao, e ao conceber a educao no-formal e a formal com
suas especificidades, cada uma com sua lgica de funcionamento,
mas ambas integradas ao sistema estatal de formao, cria uma ao
revolucionria no por ser educao no-formal, mas por fazer
parte de uma proposta de governo que pensa e faz a educao de uma
maneira diferente, para todos: crianas, mes, comunidade, famlia.
Notas
1.

Para a elaborao deste artigo agradeo a interlocuo e as contribuies da


professora Ana Lcia Goulart de Faria.

2.

Cuba recebeu reconhecimento internacional, sendo considerado um pas


de referncia em educao infantil tanto por atender a sua populao nesta
faixa etria, como pela estratgia utilizada pelo Programa Educa a tu hijo.

3.

Em 16 de maio de 2005 foi promulgada a lei no 11.114 que Altera os


arts. 6o., 30, 32 e 87 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, com o
objetivo de tornar obrigatrio o incio do ensino fundamental aos seis anos
de idade. E ainda em 06 de fevereiro de 2006 a lei no 11.274 que Altera
a redao dos arts. 29, 30 ,32 e 87 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, dispondo
sobre a durao de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrcula
obrigatria a partir dos 6 (seis) anos de idade.
Acesso ao site: http//www.planalto.gov.br/ccivil_03/Ato2004-2006/2006/
Lei/11274.htm acesso em 05/10/2007.

4.

Entrevista realizada em 24/05/2005 em Campinas SP.

5.

Em 1961 foram criadas as primeiras instituies infantis cubanas para os


filhos de mes trabalhadoras.

48 - La Isla educa a sus hijos

6.

Cuba atende 100% da sua populao de 0 a 6 anos na educao infantil,


considerando as vias formais e no-formais. Dados retirados do Estudio de caso
del Programa social de atencin educativa a nios y nias de 0 a 6 aos Educa a tu
hijo realizado para la Evaluacin Regional de Educacin para Todos, 2000.

7.

A educao infantil cubana nos moldes da educao formal ou institucional


denominada de Crculos infantiles para crianas de 6 meses a 5 anos e Aulas
preescolares para as crianas de 5 a 6 anos.

8.

Cuba atende 17% da populao infantil atravs da educao formal e o


restante pelo programa Educa a tu hijo, sendo um dos poucos pases a atender
a totalidade das crianas em programas especficos e pblicos para esta
populao.

9.

Dados retirados do Estudio de caso del Programa social de atencin educativa


a nios y nias de 0 a 6 aos Educa a tu hijo realizado para la Evaluacin
Regional de Educacin para Todos, 2000.

10.

A educao infantil no Brasil inicia com os movimentos feministas e


movimentos de esquerda, e se estabelece como uma etapa da educao formal
na ps-ditadura, com a constituio em 1988, e depois se fortalece, ganhando
o status de modalidade da educao bsica com a LDB (Lei de Diretrizes e
Bases da Educao). Assim a educao infantil no Brasil passa a ser sujeito na
constituio e sistematizada pela LDB, adquirindo o status de educacional e
estatal compondo uma das modalidades da educao bsica, apesar de ter tido
seu incio no campo assistencial. No Brasil, as vias no-formais na educao
infantil esto se caracterizando como outros direitos diferentes concomitante
educao infantil formal. Lembramos que ns defendemos o direito de vrias
possibilidades de educao (formal, no-formal, integral, sazonal etc), e que elas
sejam educao promovida pelo estado.

11.

Em especial o verbete Nonformal Education: policy in developing countries, The


International Encyclopedia of Education (1985 p. 3551 -3556).

12.

PARK, M. B. (2005) analisa a relao entre educao formal e no-formal, e


como uma pode contribuir para as realizaes da outra. Para maiores detalhes
ver o artigo: Educao formal versus educao no-formal: impasses, equvocos
e possibilidades de superao. Tambm Afonso (2001), faz uma interessante
anlise considerando a relao entre educao formal e no-formal, mostrando o
perigo de que a educao no-formal sirva de argumento para a desvalorizao
e desmanche da escola pblica. Para maiores detalhes ver o artigo: Os lugares da
educao.

13.

A utilizao das obras A crise mundial da educao de P.H.Coombs (publicada


pela 1 vez em 1968) e da The International Encyclopedia of Education (1985)
como bibliografia de referncia para as pesquisas sobre educao no-formal se
justificam por serem textos em que tanto a compreenso de educao no-formal,
cunhada por Coombs, como sua definio, so apresentados ao pblico, e so
importantes para compreendermos a concepo atual em que essa terminologia
vem sendo utilizada.

14.

Em muitas situaes, os espaos utilizados para os encontros do Programa


Educa a tu hijo, so os mesmos usados pelo Movimento Pioneiros da
Valria Aroeira Garcia - 49

Educao. Em geral as crianas ingressam nestas organizaes no incio


da escola primria e continuam nelas at a adolescncia, momento eme que
podem se filiar juventude do Partido poltico. O principal distintivo dos
pioneiros, cuja filiao voluntria e tem como insgna um lencinho azul
ou vermelho, para o ensino primrio e um distintivo para o secundrio.. Os
pioneiros cubanos celebram seu congresso cada 5 anos, nos quais debatem
temas relativos qualidade da educao, o sistema de estudo, sua organizao
e outros aspectos da vida da nao.
15.

Olga Garcia Franco em entrevista realizada em 24/05/2005 em Campinas SP.

16.

interessante analisarmos um movimento que se inicia em uma fundao de


entidades assistenciais que toma rumos nacionais, orientando e interferindo nas
polticas educacionais. O programa patrocinado pelo Banco Real, DPaschoal,
Fundao Bradesco, Ita Social Fundao Ita, Gerdau, Instituto Camargo Correa,
Oderbrecht e Suzano. Tem como objetivo atingir 5 metas da educao at 2022,
ano do bicentenrio da independncia no pas: 1- toda criana e jovem de 4 a 17
anos na escola; 2- toda criana plenamente alfabetizada aos 8 anos; 3- todo aluno
com aprendizado adequado sua srie; 4- todo jovem com ensino mdio concludo
at os 19 anos; 5- investimento em educao ampliado e bem gerido. Como texto
introdutrio e de apresentao, o programa se apresenta da seguinte forma: O Brasil
s ser verdadeiramente independente quando todos seus cidados tiverem acesso a
uma educao de qualidade. Partindo dessa ideia, representantes da sociedade civil, da
iniciativa privada, organizaes sociais, educadores e gestores pblicos de Educao
se uniram no movimento Todos pela Educao: uma aliana que tem como objetivo
garantir Educao Bsica de qualidade para todos os brasileiros at 2022, bicentenrio
da Independncia do pas.
A partir de abril de 2007, esse movimento se tornou tambm uma meta do governo
federal, atravs do Decreto no 6094 que, seguindo 28 pontos, chama a parceria entre
escolas pblicas e sociedade civil para melhoria da educao bsica: Decreto no
6094, de 24 de abril de 2007: Dispe sobre a implementao do Plano de Metas
Compromisso Todos pela Educao, pela Unio Federal, em regime de colaborao
com municpios, Distrito Federal e Estados, e a participao das famlias e da
comunidade, mediante programas e aes de assistncia tcnica e financeira, visando
a mobilizao social pela melhoria da qualidade de educao bsica. Para maiores
detalhes, ver: www.todospelaeducacao.org.br e www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2007-2010/Decreto/D6094.htm, acesso em 20/10/2008.

17.

A ideia de fazer uma escola para crianas e adolescentes atendidos pelo


Projeto Ax, vinha sendo discutida h 5 anos. Nasceu de uma forte demanda
dos educadores em funo da observao e constatao das dificuldades pelas
quais grande parte dessas crianas e adolescentes passou nas escolas pblicas
que frequentava. Esta populao costuma chegar no Projeto com uma histria
de evaso e repetncia escolar, histria esta, semelhante de muitas crianas e
jovens das comunidades pobres de Salvador. A frequncia na escola sempre foi
uma condio para participar das atividades do Projeto Ax, mas, com raras
excees, os educandos ultrapassavam a 2 srie do ensino fundamental e na sua
maioria permaneciam fora da escola.
Esses dados, com base no relatrio anual do Projeto Ax (1998), revelava que
grande parte desses alunos com defasagem idade/srie passou por mltiplos
fracassos na escola e apresentava srios bloqueios provocados por essa situao.

50 - La Isla educa a sus hijos

Geralmente tinham a auto-estima muito baixa e no acreditavam na sua


capacidade de aprender.
Em funo disso, realizou-se uma parceria entre o Projeto Ax e a SMEC
(Secretaria Municipal de Educao e Cultura) com o objetivo de oferecer
educao formal de 1 4 sries com qualidade, s crianas e adolescentes
atendidos pelo Projeto e da comunidade na qual a escola estaria inserida. Em
abril de 1999 - incio do ano letivo, a escola funcionou em uma casa alugada pelo
Projeto Ax [...], foram atendidas 9 classes,
[...]. Em 2000 foi ampliada a capacidade de atendimento para 29 turmas de
1 4 sries [...], uma matrcula prxima a 800 alunos. [...]. Situada no bairro
de So Cristvo, a Escola Municipal Barbosa Romeo funciona num prdio
bastante amplo, com instalaes modernas e bem equipado. Conta com 10
salas de aula, 2 salas informatizadas, biblioteca, sala de vdeo, sala de professores,
sala de coordenao, sala da direo, sala para atendimento de alunos, refeitrio,
quadra e parque infantil. A rotina semanal dos alunos, inclui, alm das disciplinas
obrigatrias, aulas de Artes, Informtica e Educao Fsica. Em 2001, a matrcula
foi mais uma vez ampliada, chegando a 1.035 alunos. Para maiores detalhes
sobre o Projeto Ax: REIS, A. M. B. dos (org). Plantando Ax: uma proposta
pedaggica, 2000.
18.

Para maiores detalhes sobre a histria e atuao da FEAC, ver: ROSSETTO,


J. Polticas de assistncia e educao para crianas: um estudo de caso sobre
a Federao das Entidades Assistenciais de Campinas Fundao Odila e
Lafayette lvaro.

19.

O movimento Nacional de Meninos e Meninas de rua (MNMMR) um


movimento social, fundado em 1985, a partir das experincias inovadoras do
Projeto Alternativo de Atendimento aos Meninos e Meninas de Rua. Surgiu
do desejo dos educadores: criar espaos de articulao dos programas de
atendimentos e dos prprios meninos e meninas de rua. Composto por uma rede
de educadores e colaboradores voluntrios, mais de 800 pessoas, o Movimento
atua na defesa e promoo dos direitos das crianas e adolescentes das camadas
populares do Brasil, nos diversos nveis do sistema de garantias do pas,
assegurando a aplicao das polticas pblicas e fiscalizando os gastos pblicos
e a sua gesto. Seu princpio fundamental de atuao considerar crianas e
adolescentes como seres humanos em condio especial de desenvolvimento.
Trabalha para que esses meninos e meninas sejam cidados sujeitos de direitos
legtimos e protagonistas em decises sobre sua prpria vida, sua comunidade
e da sociedade em geral. Informaes retiradas do site: www.ajudabrasil.org/
dadosentidade.asp?identidade=142 - acesso em 27/12/2008.

Bibliografia
AFONSO, Almerindo J. Os lugares da educao in: SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes;
PARK, Margareth Brandini e FERNANDES, Renata Sieiro (orgs). Educao no-formal:
cenrios da criao. - Campinas, SP: Editora da Unicamp e Centro de Memria, 2001, p. 29
38.
COOMBS, Philip H. A Crise Mundial da Educao. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1986.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. O que a filosofia?; Traduo Bento Prado Jnior e
Alberto Alonso Muoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
Valria Aroeira Garcia - 51

FARIA,Ana Lcia Goulart de.Educao pr-escolar e cultura: para uma pedagogia da educao
infantil. Campinas, SP: Editora da Unicamp; So Paulo: Cortez, 2002.
_______________________. Poltica plural para crianas de 0 a 6 anos. In: PARK, Margareth
Brandini; FERNANDES, Renata Sieiro e CARNICEL, Amarildo (orgs). Palavras-chave em
educao no-formal. Holambra, SP: Editora Setembro; Campinas, SP: Unicamp;CMU, 2007,
p. 231 - 232.
GARCA, Olga Franco. La educacin infantil: importncia para El desarrollo de los nios y ls
nias desde el nacimiento hasta los seis aos. Sus modalidaes em Cuba. Cuba, 2010 (mimeo).
GARCIA, Valria Aroeira. A educao no-formal como acontecimento. Tese de doutorado.
Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas. Campinas SP, 2009.
HADDAD, Lenira. Polticas integradas de cuidado e educao infantil: o exemplo da
Escandinvia. In: Revista Pro-Posies vol. 7, no 03 [21], p. 36 50, novembro, 1996.
HADDAD, Lenira & JOHANSSON, Jan-Erik. A pr-escola sueca: a histria de um sistema
integrado de cuidado e educao. In: Cadernos Cedes grandes polticas para os pequenos,
educao infantil. no 37, p. 45 61, 1995.
MINISTERIO DE EDUCACIN. Educa a tu hijo. Programa para la familia dirigido
al desarrollo integral del nio. Editorial Pueblo y Educacin, La Habana, Cuba, 1992 (9
fascculos).
PARK, Margareth Brandini. Educao formal versus educao no-formal: impasses, equvocos
e possibilidades de superao, in PARK, Margareth Brandini e FERNANDES, Renata Sieiro
(orgs). Educao no-formal: contextos, percursos e sujeitos. Campinas, SP: UNICAMP/
CMU; HOLAMBRA, SP: Editora setembro, 2005, p. 67 - 90.
REIS, Ana Maria Bianchi dos (org). Plantando Ax: uma proposta pedaggica. So Paulo:
Cortez, 2000.
ROSSETTO, Jessica. Polticas de assistncia e educao para crianas: um estudo de caso sobre
a Federao das Entidades Assistenciais de Campinas Fundao Odila e Lafayette lvaro.
Dissertao de Mestrado, Faculdade de Educao Unicamp, Campinas, 2006.
The International Encyclopedia of Education. Research and studies. Vol. 6; M O, p.
3536 - 3558. Editors-in-chef: Torsten Husen University of Stockolm, Sweden; T. Neville
Postlethwaite University of Hamburg, FRG. Oxford, New York, Toronto, Sydney, Paris,
Frankfurt: Ed. Pergamon Press Ltd, 1985.

Videografia
Cinematografa educativa. EDUCA A TU HIJO, un programa para a famllia. La
Habana: CINED, s. d., color, 13 min.

52 - La Isla educa a sus hijos

Palavras-chave em

EDUCAO
NO-FORMAL
Organizadores
Margareth Brandini Park
Renata Sieiro Fernandes
Amarildo Carnicel
Finalmente, chega ao leitor
a possibilidade de manusear
um livro de palavras-chave em
educao no formal, primeiro
e indito no pas. Trabalho
meticulosamente
elaborado,
envolvendo pesquisadores de
renome nacional, bem como
educadores que atuam neste
campo. Contm um conjunto de
verbetes de fcil compreenso
que ser de grande utilidade
para todos aqueles interessados
em enveredar pelos meandros
de um campo da educao to
vivenciado e pouco conhecido.
Esta obra original esclarece
conceitos, oferece noes/
vises e problematiza aes

e prticas com o intuito de


impulsionar reflexes crticas e
conscientes, condizentes com as
perspectivas de incluso social
e poltica e de democratizao
dos saberes e da cultura.
Leitura obrigatria para todos os
que trabalham com a educao,
seja ela em espaos escolares ou
paraescolares de interconexo,
enriquecimento mtuo e de
construo de novas praticas e
polticas educacionais.
Profa. Dra. Silvia Maria Manfredi
Consultora da OIT/ Brasil e
Presidente do instituto Paulo
Freire itlia.
Editora Setembro

SOCIALISMO E EDUCAO

A Educao Infantil:
A importncia para o desenvolvimento
dos meninos e meninas desde o
nascimento at os seis anos.
Suas modalidades em Cuba

Olga Franco Garca

Professora, Educadora
Ministrio da Educao de Cuba
Traduo: Fernando Sarti Ferreira

Breves reflexes sobre uma concepo de desenvolvimento infantil


A etapa que compreende os seis primeiros anos de vida
fundamental no processo de desenvolvimento e formao da
personalidade. Esta uma asseverao aceitada e compartida
por psiclogos e pedagogos, independentemente das tendncias,
teoria e escolas as quais esto vinculados. Isso est fundamentado
essencialmente pela grande plasticidade do crebro infantil nas
primeiras etapas do desenvolvimento, que oferece amplssimas
possibilidades para o estabelecimento de conexes que podem servir
de base para o registro e consolidao dos mais variados estmulos.
Os dados cientficos obtidos em inumerveis estudos e
pesquisas evidenciaram que nesta etapa se encontram as bases
essenciais para todo o posterior desenvolvimento e que existem
considerveis reservas e possibilidades para a formao das mais
diversas capacidades e qualidades pessoais.

Da que resulta de grande interesse conhecer as caractersticas


deste perodo da vida em toda sua profundidade para, a partir deste
conhecimento, poder organizar e estruturar as foras educativas,
dirigidas com o intuito de conseguir o desenvolvimento mximo
possvel de cada criana. O exposto fundamenta a necessidade
de conhecer as particularidades de to importante momento do
desenvolvimento infantil e de preparar, capacitar as pessoas, famlia
e educadores, encarregados de sua educao.
Para compreender os fatores que influem no desenvolvimento
infantil, as foras motrizes, as condies em que se realizam,
preciso considerar que o desenvolvimento, em uma determinada
etapa da formao da personalidade, tem de inserir-se numa teoria
ou concepo geral.
As posies que consideram a experincia gentica,
hereditariamente fixada e transmitida como determinante do
desenvolvimento, tratam de explic-lo como um simples transcorrer
e desenvolvimento essencialmente hereditrio com o qual o sujeito
foi dotado desde seu nascimento, como uma semente, onde se
encontra o grmen de tudo o que uma planta chegar a ser.
O avano cientfico psicolgico tornou cada vez mais
evidente a necessidade de considerar o fator meio ambiente na
explicao sobre do desenvolvimento humano, surgindo assim as
teorias, que em uma ou outra medida, tiveram em conta o meio
em que o sujeito vive e atua, a experincia individual de interao
do sujeito com seu meio especfico o que deu lugar a diferentes
explicaes, algumas nas quais prevaleciam fundamentalmente o
fator gentico, hereditrio, e para as quais o meio constitua somente
o campo no qual teria lugar o desenvolvimento e cuja simples funo
era o favorecer ou no. At as mais progressistas dessas explicaes
que considerava a convergncia de ambos fatores, mesmo que em
geral, sempre deram mais peso ao primeiro. Nestas teorias gerais
nunca se encontrou uma verdadeira resposta explicativa pergunta
sobre quais so as foras que movem esse desenvolvimento; mais do
que explicaes, elas se limitaram somente a descrever o que ocorria
e qual era o resultado em cada momento.
As prprias investigaes realizadas, inclusive dentro
destas mesmas concepes, puseram de manifesto muitas de suas
inconsistncias e em meio a estas lutas biologistas e ambientalistas surge
uma teoria mais acabada e abarcadora: a teoria do desenvolvimento
56 - A Educao Infantil

histrico cultural. Nesta teoria, exposta essencialmente por


L.Vigotsky, se mostra a especificidade do desenvolvimento humano
e nela se integram de forma peculiar o biolgico, o ambiental e o
especificamente scio-cultural da personalidade em geral e em cada
um dos diferentes perodos.
Cada sujeito nasce com determinadas estruturas biolgicas
que podem ser consideradas como condies necessrias para seu
desenvolvimento, porm, se constituem precisamente como isso:
condies; preciso nascer com um crebro humano para chegar
a ser homem. Determinadas condies destas estruturas podem
favorecer ou no o desenvolvimento e formao de capacidades no
ser humano e devem, portanto, ser levadas em conta na explicao
desse desenvolvimento.
O homem um ser bio-psico-social e, portanto seria
absurdo desconhecer suas particularidades biolgicas, porm estas
no determinam o que um sujeito pode chegar a ser ou no. Tudo
isso j foi cientificamente demonstrado. Se a criana se desenvolve
no processo de apropriao da cultura material e espiritual que foi
legado pelas geraes precedentes, essas condies educacionais e de
vida resultam fundamentais, pelas quais este processo transcorre, e
que esto histrico, social e culturalmente condicionadas. A criana
nasce em uma etapa histrica determinada e, portanto, em um mundo
de objetos materiais e espirituais culturalmente determinados;
quer dizer, seu meio mais especfico pela cultura de seu entorno
mais prximo, pelas condies de vida e educao nas quais vive.
No se trata de um meio abstrato e metafsico. O meio social no
simplesmente uma condio externa do desenvolvimento humano,
seno uma verdadeira fonte para o desenvolvimento da criana, pois
nele que esto contidos todos os valores e capacidades materiais e
espirituais do gnero humano que a criana tem de se apropriar no
processo de desenvolvimento.
O processo de apropriao desta cultura como fator
essencial em seu desenvolvimento, tem de ser concebido no como
um processo em que a criana um simples receptor, seno como
um processo ativo no qual essa participao do sujeito resulta
indispensvel; neste processo, a criana no s interage com os
objetos materiais e culturais, mas tambm esta imersa em um
processo de interao ativa como os sujeitos que a rodeiam, adultos
e co-etrios. Assim, so to importantes as atividades que a criana
Olga Franco Garca - 57

realiza quanto as interaes e a comunicao que estabelece com os


outros, na apropriao, na assimilao ativa, como meio essencial
para sua formao.
Por outro lado, o papel do adulto se torna essencial: como
portador, mediador, das formas de ao que a criana tem de realizar,
at o ponto em que no podemos pensar a apropriao pela criana
da cultura por si s, mesmo com a existncia de objetos culturais,
materiais e espirituais, nos quais tal cultura se concentra, sem o
adulto e sua presena e ao orientadoras. Assim, mesmo quando
existam os mais modernos equipamentos de computao, a criana
no poderia utiliz-los sozinhos, resulta indispensvel a mediao
de outro, portador dessas aes que organize e estruture o processo
ativo de apropriao pela criana deste logro da cultura, da cincia
e da tcnica. A mais valiosa informao pode estar ao alcance da
criana nos livros mais belos e preciosos. Esta conquista cultural
permaneceria alheia criana se nele no se abarca o processo de
leitura como via de acesso a cultura. A ao conjunta com os adultos
resulta indispensvel pois dominam as aes de ler e neste processo
se desenvolvem ao mesmo tempo as capacidades intelectuais.
No atual momento do desenvolvimento da cincia
psicolgica se destacam trs posies diferentes. Uma primeira
posio, na qual o desenvolvimento se considera como independente
do ensino e da educao. Considera-se que o desenvolvimento
se produz de maneira espontnea, seguindo suas prprias leis e a
educao deve adaptar-se a ele; o desenvolvimento se antecipa e a
educao se assenta sobre as bases do desenvolvimento j alcanado.
Um exemplo desta concepo a mundialmente conhecida e
divulgada teoria de J. Piaget e seus seguidores.
Uma segunda posio distingue ambos processos como
paralelos, que se produzem ao mesmo tempo. O desenvolvimento
no mais que o prprio resultado do exerccio que se d atravs
do ensino. Esta concepo se encontra na essncia das diferentes
teorias condutoras e neo-condutoras. Para os condutoristas
o desenvolvimento o resultado dos efeitos acumulativos da
aprendizagem. As distintas aprendizagens que a criana vai realizando
ao longo de sua vida vai dando lugar a transformaes mais gerais
que seriam as que consideramos desenvolvimento.
Em uma terceira posio, o ensino e a educao adquirem
o valor de promotores do desenvolvimento, o ensino conduz o
58 - A Educao Infantil

desenvolvimento e o impulsiona. Claro que para alcanar esta fora


que promove o desenvolvimento, este processo educativo tem de
ter determinadas caractersticas, cumprir determinados requisitos e
desde logo, basear-se no desenvolvimento j alcanado previamente
pelos sujeitos para que, desde sua plataforma, impulsion-lo a um
nvel superior, levando em conta as potencialidades de cada sujeito
(zona de desenvolvimento prximo).
Desde esta ltima posio, o processo educativo adquire
uma dimenso desenvolvedora e educativa e se corresponde com
uma concepo de desenvolvimento pela apropriao da experincia
histrico-cultural (L. Vigotsky e seguidores) em um momento
determinado e nas condies concretas e particulares em que o
processo de formao da personalidade se produz.
Para os educadores em condies de educao
institucionalizada ou no, esta posio pode qualificar-se como
otimista e responsvel. Otimista, pois coloca o educador em
posio de ser fator promotor do desenvolvimento infantil e,
responsvel, porque o produto visto no desenvolvimento de seus
educandos no algo que possa dever-se a natureza, as prprias
crianas e suas condies hereditrias, que no deixam de ser
levadas em considerao - somente como premissas necessrias,
porm no suficientes. Responsvel, porque o educador assim
assume a responsabilidade de guiar o processo de educao que
equivale a promover seu desenvolvimento at nveis superiores.
Dessa maneira, o processo educativo se concebe como fora que
impulsiona o desenvolvimento na medida em que contribui no
somente a vencer com xito as contradies que surgem na vida
do individuo, seno como tambm constitui uma fonte para o
surgimento de novas contradies.
Nesta concepo de infncia em que o processo educativo se
insere em um lugar essencial como promotor do desenvolvimento,
necessrio conceber o tipo de ensino e educao que lhe corresponde.
O importante no reside em que a criana adquira conhecimentos,
mas sim que consiga o maior desenvolvimento dos processos e
funes psquicas, sempre tendo em conta as particularidades da
idade para os objetivos propostos.
Uma educao desta natureza deve necessariamente
responder a uma srie de princpios pedaggicos essenciais. Deve se
destacar, em primeiro lugar, que uma educao dirigida a obter o
Olga Franco Garca - 59

maior desenvolvimento de cada criana e a formao mais integral


possvel, para a qual se torna indispensvel conhecer no apenas
as particularidades gerais desta etapa, como tambm o nvel real e
potencial de cada uma das crianas com os quais se vai trabalhar.
Deve ser um processo educativo em cujo centro esteja a
criana como protagonista principal, o que no significa, como
s vezes se interpreta, que se deve fazer sempre o que ela quer e
decida, seno que deve se conceber as aes educativas em funo
de suas necessidades e interesses, para conseguir uma participao
ativa e cooperadora, no como algo que o educador d e a criana
se limita a receber, mas como aes que ele deseja realizar e que lhe
proporciona satisfao e alegria.
Os meninos e meninas tm de conviver em um grupo
social, e desde pequenos devem acostumar-se a trabalhar de maneira
conjunta, com a satisfao que lhes produz fazerem coisas juntos nas
quais cada qual brinda e aporta algo.
A criana se educa para participar ativamente como
criador na vida social, por isso seu processo educativo tem de estar
intimamente relacionado com os problemas da realidade. A criana
que educamos forma tambm parte de outro grupo social, a famlia,
que exerce sua influncia educativa com grande fora sobre ela.
Deve-se conseguir coerncia entre essas duas influncias, de tal
forma que se conjuguem harmonicamente e uma reforce a outra.
Para tanto indispensvel uma aproximao entre a instituio
infantil e a famlia. Nesta tarefa, o educador deve desempenhar um
papel fundamental, ao brindar todo o apoio a famlia e colaborar
ambos em sua educao.
Em nossa concepo se resgata a ideia de que o adulto,
por sua posio e experincia como tal, e basicamente o educador,
que recebeu uma preparao cientifico-pedaggica para exercer este
trabalho, que deve organizar, orientar e dirigir o processo educativo
das crianas, do que deve ser estabelecido como objetivo e como
pode alcan-lo.
O processo educativo abarca toda a vida da criana tanto no
lar, como na instituio infantil. Todo momento da vida tem que ser
educativo; quando a criana aprende, quando realiza alguma tarefa
simples em seu benefcio, da educadora ou de outras crianas, quando
se veste, quando se alimenta, mesmo quando dorme, tudo deve ser
60 - A Educao Infantil

organizado e concebido para contribuir para seu desenvolvimento e


formao integrais.
A concepo de desenvolvimento infantil expressa constitui
o sustento terico-metodolgico sobre o qual descansa em nosso
pas o sistema educativo da infncia de 0 a 6 anos que responde
a poltica educacional do Estado Cubano de Educao para Todos
desde as menores idades.
Isso significa dar ateno educativa a todos os meninos
e meninas desde seu nascimento at seu ingresso na escola,
sem distino de origem, raa, sexo, crenas ou outra forma de
descriminao, o que, alm disso, corresponde ao referendado na
Conferncia Mundial de Educao Para Todos celebrada em
Jomtien, Tailndia, em 1990; na Cpula de Chefes de Estado em
Favor da Infncia (1990); no Frum Mundial de Educao de
Dakar em abril de 2000; recentemente na II Conferncia Iberoamericana de Ministros, Ministras e Altos Responsveis da Infncia
e Adolescncia e na X Cpula Ibero-americana de Chefes e Chefas
de Estado e de Governo no Panam (2000).
A implementao de um Sistema Educativo com tais
propsitos deve ser variada e flexvel e, portanto, pode assumir em
suas projees diferentes modalidades organizativas de ateno
educativa: institucional e no institucional, porm no como
modalidades que competem entre si, mas sim concebidas em uma
unidade, em um sistema que respondem aos princpios de concepo
de desenvolvimento referida.
Desta maneira, rompe-se a dicotomia que usualmente se
coloca para estabelecer diferenas entre ambas as vias. No se trata
de organizar a ateno educativa da primeira infncia com diferentes
expectativas e resultados que em alguns pases se caracteriza
como de primeira e segunda ordem, mas sim de se propor os
mesmos objetivos para alcanar a formao integral, o que supe a
formao de premissas de desenvolvimento scio-moral e afetivo,
de condutas socialmente aceitveis e de qualidades pessoais valiosas
em correspondncia com a etapa; o xito de um desenvolvimento
intelectual adequado; o domnio prtico da lngua materna e de
habilidades e capacidades motrizes. Obviamente, tudo o que foi
dito tem que sustentar-se em uma garantia para a sobrevivncia que
inclui condies de subsistncia e perspectivas de vida.
Olga Franco Garca - 61

A educao infantil de 0 a 6 anos em Cuba


O sistema de Educao Pr-escolar Cubano que abarca as
crianas de 0 a 6 anos, quer dizer, desde seu nascimento at seu
ingresso na escola primria, se organiza de duas formas distintas,
de aplicao na prtica: pelas modalidades, institucional e no
institucional, com o fim de alcanar um timo desenvolvimento
dos meninos e meninas destas idades, o que significa conseguir o
mximo desenvolvimento possvel de cada um. Isso se plasma em um
currculo nico, como dois programas fundamentados nos mesmos
princpios tericos e metodolgicos e com orientaes didticas
semelhantes para os que se encarregam da ateno educativa das
crianas nesta idade.
As duas modalidades assinaladas se materializam da
seguinte maneira:
A modalidade institucional, que se realiza nos chamados
Crculos Infantis e em aulas de grau pr-escolar das escolas
primrias.

Os crculos infantis so instituies educativas que atendem


os meninos e meninas de mes trabalhadoras desde os seis meses at
os seis anos de idade que ingressam na escola. Nestes crculos, so
educados por educadoras graduadas em Universidades Pedaggicas
apoiadas nesta tarefa por auxiliares pedaggicas que so verdadeiras
colaboradoras no desenvolvimento do processo educativo e que
recebem tambm uma preparao especial. Alm disso, contam
com servios de ateno mdico-estomatolgica permanente e com
um programa nutricional em correspondncia com as necessidades
destas idades. Nos 1118 Crculos Infantis se educa 18% da populao
cubana de 0 a 6 anos.

As aulas de grau pr-escolar, que atendem os meninos


e meninas de 5 a 6 anos e se podem encontrar tanto nos crculos
infantis como nas escolas primrias urbanas e rurais. Da educao
destas crianas se ocupam as professoras pr-escolares formadas em
Universidades de Cincias Pedaggicas que contam ainda com o
apoio de auxiliares pedaggicas, tambm preparadas especialmente.
A estas aulas assistem diariamente os meninos e meninas, em geral,
das oito as quatro e meia da tarde, mesmo que existam algumas que
funcionam com apenas uma sesso. A cobertura de ateno para a
populao infantil de 5 a 6 anos de praticamente 100% no pas.
62 - A Educao Infantil

A modalidade no institucional chamada Programa Educa


a tu Hijo, esta dirigido a promover o desenvolvimento integral dos
meninos e meninas que no frequentam as instituies infantis,
desde antes de seu nascimento at seu ingresso na escola. Tem um
carter comunitrio e eminentemente inter-setorial e toma como
ncleo bsico a famlia, que orientada por pessoal especializado,
quem realiza as aes educativas com seus filhos desde as primeiras
idades no lar.
O modelo de educao institucional para meninos e meninas
de 0 a 6 anos constitui um verdadeiro programa social de ateno
educativa. Nele participam representantes de distintos organismos
estatais e organizaes sociais (Sade, Cultura, Educao Fsica e
recreao, Federao de Mulheres Cubanas, Associao Nacional de
Pequenos Agricultores, entre outras), que operam na comunidade,
integrados em um Grupo Coordenador ou Comit Gestor que
coordena a esfera de educao, quem concebe, desenha, organiza
e aplica na prtica o programa Educa a tu Hijo, conforme as
particularidades e condies concretas de cada regio.

Em sua execuo prtica, para a orientao da famlia, conta


com pessoal profissional (educadoras e professoras pr-escolares,
professoras de ensino primrio, auxiliares pedaggicas, bibliotecrias,
mdicos e enfermeiras da famlia, tcnicos de esportes, instrutores
culturais, entre outros), e tambm com pessoal totalmente voluntrio
da comunidade (donas de casa, aposentados e outros), que realizam
este trabalho sem receber remunerao alguma.
Este programa se organiza por duas modalidades
fundamentais:
Ateno individual no lar, para meninos e meninas de 0 a
2 anos, realizada fundamentalmente por mdicos e enfermeiras da
famlia que fazem visitas uma ou duas vezes por semana e orientam e
demonstram s famlias as aes educativas a realizar.

Ateno em grupo, que se realiza em um local da comunidade


(parque, praa, jardim de um Crculo Infantil ou escola, casa de
cultura, ginsio ou crculo desportivo, entre outros), onde frequentam
uma ou duas vezes por semana as famlias com seus filhos e filhas
para realizar atividades curriculares e receber orientaes por um ou
uma executora (orientadora) para dar continuidade nas condies
de seu lar.
Olga Franco Garca - 63

O Programa Social de Ateno Educativa conta como


suporte material com uma coleo de nove folhetos (Educa a tu
Hijo) que contm orientaes para a famlia sobre as caractersticas
e necessidades dos meninos e meninas destas idades e sobre as
atividades a realizar para estimular o desenvolvimento intelectual da
linguagem, dos movimentos, da socializao, da formao de valores,
assim como sobre os cuidados de sade, nutrio e preveno de
acidentes nos distintos perodos etrios. Alm disso, o programa conta,
para sua implementao, com materiais que apiam a capacitao dos
Grupos Coordenadores, dos promotores e executores em diferentes
aspectos de seu trabalho: orientaes sobre sade, sobre as condies
em que tem lugar o desenvolvimento infantil, sobre as caractersticas
do trabalho comunitrio e com a famlia, entre outros; igualmente,
Cadernos de Trabalho para orientar as aes das famlias com seus
filhos no lar.
A cobertura de ateno educativa que oferece o Programa
de Ateno Social Educa a tu Hijo de mais de 70% da populao
cubana de 0 a 5 anos. Ambas as vias a institucional e a no institucional
se organizam em um sistema nico de educao pr-escolar que em
seu conjunto, no momento atual, alcana uma cobertura de 99,5% de
toda a populao cubana nessa faixa etria.

A monitorao realizada do Programa Educa a tu Hijo


mostrou sua efetividade nos dois primeiros anos de sua aplicao,
assim como na ltima avaliao realizada. A amostragem foi realizada
em 1.000 comunidades (Conselhos Populares) correspondentes
a 161 municpios dos 169 do pas. Foi selecionada de maneira
aleatria e se exigiu o requisito de ter como mnimo um ano de
incorporao ao programa. 20,6% das comunidades pertenciam
populao que reside na zona rural. Foram avaliados na primeira
ocasio 16.031 meninos e meninas de 161 municpios das 14
provncias do pas, e na segunda, 148.718 meninos e meninas e suas
famlias, assim como 3786 pessoas da comunidade e membros dos
grupos coordenadores.
O conhecimento que as famlias mostraram ter da concepo
do Programa e sua participao nele ofereceu resultados positivos j
que das famlias que responderam a pesquisa, 82% realizava em casa
as atividades orientadas pelo Programa e 65% frequentava com seus
filhos e filhas sistematicamente as reunies com os executores. No
obstante, somente 50,8% das famlias participava no desenvolvimento
64 - A Educao Infantil

das atividades junto com a criana, elemento de importncia para


garantir a continuidade das aes educativas no lar.

A prpria famlia reconheceu que a partir de sua incorporao


ao Programa, alm das mes, pais e avs, outros membros da famlia
comearam a participar de forma mais ativa na educao das
crianas. O efeito instrutivo do Programa na famlia ficou manifesto
tambm no fato de que 85% reconhecia que sua participao no
Programa provocou neles uma mudana de atitude e relao com as
crianas. Neste sentido, 69,5% escutavam e atendiam mais quando
perguntados; 63,8% brincavam mais e 87% no gritavam nem batiam
mais nas crianas.

Por sua parte, os representantes dos grupos coordenadores


pesquisados aludiram que haviam conseguido desenvolver a tarefa e
implementar a educao no formal na comunidade com participao
comunitria e de distintos agentes sociais, mas que ainda nem
todos o faziam com a dedicao e sistematizao necessria e que
tinham que conseguir uma maior coeso inter-setorial na elaborao,
execuo e controle do plano de ao.
Como se pode observar, ambas avaliaes mostraram as
brechas que ainda existem, que se converteram e se convertem at
o momento atual em foco de ateno permanente, desenhando-se
estratgias especiais tanto para a faixa etria de 0 a 3 anos, como
para os grupos coordenadores de bairro, municpio, da provncia e da
nao, para dar soluo aos problemas e alcanar nveis superiores de
desenvolvimento.

O importante no somente atender a criana, mais importante


o resultado que se obtm com o adulto que progressivamente
mais consciente em reconhecer que o patrimnio mais valioso de
sua comunidade A CRIANA.
Gaby Fujimoto, Primeiro Encontro Estatal de Educao
Inicial La Calidad en La Educacin Inicial, Maio de 2001.

Olga Franco Garca - 65

Cacto

POLTICA

A ordem do regresso:
sexo, profisso e poltica
Lidiane Soares Rodrigues
Doutoranda do Departamento de Histria-USP

Para Bertha Dunkel,


mulher fora do lugar

(...) quando da segunda metade do sculo XIX em diante [a mulher]


comeou a interessar-se pelas profisses, encontrou-se diante de um
impasse. A carreira, privativa do homem e compreendida (...) em termos
de austeridade do traje, obrigava-a a desinteressar-se do adorno e a
renunciar ao comportamento narcsico, como as governantes j o tinham
feito e como o vo fazer as sufragettes. Mas no se desiste impunemente
de velhos hbitos que anos de vida bloqueada desenvolveram como
uma segunda natureza. E lanando-se no spero mundo dos homens,
a mulher viu-se dilacerada entre dois plos, vivendo simultaneamente
em dois mundos, com duas ordens diversas de valores. Para viver dentro
da profisso adaptou-se mentalidade masculina da eficincia e do
despojamento, copiando os hbitos do grupo dominante, a sua maneira
de vestir, desgostando-se com tudo aquilo que, por ser caracterstico de
seu sexo, surgia como smbolo de inferioridade: o brilho dos vestidos,
a graa dos movimentos, o ondulado do corpo. E, se na profisso era
sempre olhada um pouco como um amador, dentro de seu grupo, onde os
valores ainda se relacionavam com a arte de seduzir, representava um
verdadeiro fracasso. No de se espantar que esse dilaceramento tenha
levado a mulher ao estado de insegurana e dvida que perdura at
hoje. Pois perdeu seu elemento mais poderoso de afirmao e ainda no
adquiriu aquela confiana em si que sculos de trabalho implantaram
no homem. (Gilda de Mello e Souza. O esprito das roupas. So Paulo:
Companhia das Letras, 2009 [1950], grifos meus)

O sentimento de modernidade em meio a atraso dialtico


ou dualista tem sua base no tipo de modernizao capitalista
brasileiro e ganhou contornos ntidos na diviso sexual do trabalho
e no uso de tecnologias avanadas, na campanha poltica de 2010
para a presidncia da Repblica. Eis o mote do presente artigo.
O observador que atente para o ponto nota que talvez
este tenha sido o processo eleitoral em que dois fenmenos, em
escala sem precedncia, estiveram conjugados: mulheres em muita
evidncia e, simultaneamente, mdias do chamado mundo virtual
desempenharam um papel de destaque. Ele talvez advogasse
a modernidade em tela: espao para as mulheres, superao
da assimetria entre os sexos, uso da tecnologia para garantir a
universalidade das informaes. Ledo engano.

Possivelmente, a ausncia de sedimentao dos valores


modernos anti-utilitrios entre ns responda pelo fato de que o
alvissareiro das novidades desloque constantemente a ateno para
os dilemas vividos por uma sociedade que passou diretamente
de iletrada e deseducada a massificada, sem percorrer a etapa
intermediria de absoro da cultura moderna (NOVAIS, F.;
CARDOSO de MELLO J. M.,1998, p.640). Um punhado de
episdios decisivos pode servir de matria para nosso argumento.
No final de junho, por meio do twitter, a vereadora, de So
Paulo, Mara Gabrilli fez a seguinte pergunta: Voc confiaria seus
filhos para Dilma de bab?. Soninha Francine, ex-apresentadora
da MTV, coordenadora da campanha de Jos Serra pela internet,
decerto tomou parte na disseminao da questo do aborto, como
se sabe, entre os elementos que deslocaram votos da candidata
Dilma Rousseff para Marina Silva e alavancaram o segundo turno
entre a primeira e Jos Serra. Monica Serra, esposa do candidato,
foi uma figura com pouca visibilidade na campanha do marido at
que proclamasse Dilma a favor da morte de criancinhas. Como
parte das estratgias de campanha do candidato tambm se adotou
o telemarketing, que consistiu em ligar para residncias, procurando
mudar os votos de eleitores que no primeiro turno no votaram em
Serra, com o argumento de Dilma ser a favor do aborto. A maioria
das pessoas envolvidas eram mulheres (Correio Braziliense, 16 de
outubro de 2010). Quando este artigo estava em fase de concluso,
recebi um desses telefonemas, verificando que se tratava de uma
gravao, com voz feminina.
68 - A Ordem do Regresso

O nexo central: modernidade das mdias/suportes


(telemarketing, internet, twitter) e tarefas femininas na diviso sexual
do trabalho merece ateno. s mulheres coube prioritariamente o
trabalho de fofocar (espalhando histrias por tais mdias/suportes),
restabelecendo o espao privado naturalmente feminino (filhos,
residncia, valores religiosos). No se trata de papel insignificante. No
interior dos valores vigentes, caso as investidas partissem de homens,
logo o epteto machista viria tona e o caldo entornaria. Nesse
sentido, e de modo menos bvio do que pode parecer primeira vista,
vale a assertiva: objetivamente o discurso machista no sustenta o lugar
social da mulher, mas sustentado pela organizao sexual do trabalho, como
parte da reproduo social e das estruturas de dominao, tanto mais eficazes
quanto menos sejam (re)conhecidas enquanto tais. Na diviso trabalho
em tela, particularmente, no apenas a forma da dominao no
(re)conhecida como tal, mas troca as bolas, pois, no final das contas, ao
precisar da participao feminina, confere visibilidade s mulheres.
Ora, sem que se explicite o lugar da fofoca-feminino na hierarquia
do trabalho de campanha nada irrelevante do ponto de vista dos
resultados, porm, subordinado, de baixo nvel, evocando tendncias
regressivas, do ponto de vista da modernidade a organizao desse
mesmo trabalho, como parte da reproduo da assimetria entre os
sexos, permanece (ir)reconhecvel.

Como j sobejamente sabido, h nexos fundamentais entre


classe, sexo e profisso luz de processos de modernizao e de
mobilidade social, como, na escala que lhe cabe, tem-se visto no Brasil
nas ltimas dcadas. Na hierarquia das ocupaes profissionais no
espao das classes dirigentes e, a seu modo, tambm em ocupaes
qualificadas ou no, das classes no-dirigentes h uma reposio das
relaes de dominao entre os sexos, um dos elementos do fenmeno
mais amplo da reproduo social. Tomemos, por exemplo, profisses
naturalizadas, histrica e socialmente, como femininas (BOURDIEU, P.,
1998): secretria, enfermeira, aeromoa. Elas se localizam no interior
de uma escala de valorizao que as subordina, respectivamente, ao
chefe, ao mdico, ao piloto e seu trabalho consiste em servir ao
superior e ornamentar o espao. No preciso muita imaginao
de fato, preciso ter nenhuma para perceber o quanto as fantasias
masculinas em torno das vestimentas dessas profisses se devem
liga feminino-servir-enfeitar, e tudo que isso implica em matria de
inao e passividade. Do mesmo modo, e com sinal trocado, mulheres
que assumem posies de ao/atividade habitam as male fantasies
Lidiane Soares Rodrigues - 69

como se pusessem em risco as prerrogativas da virilidade, atributos


exclusivos dos homens no raro sendo representadas com falos,
bigodes, ou so ridicularizadas ao serem masculinizadas.

Ainda que com pouco esforo seja possvel identificar as


hierarquias ligadas aos sexos no interior do mesmo campo profissional,
nem sempre se extrai as implicaes mais substantivas delas. Numa
anlise mais detida talvez fosse o caso de ponderar as dimenses
classistas e etrias como condies de subverso da hierarquia dos
sexos, luz do setor profissional em questo um homem formado
em direito por uma universidade no renomada pode, decerto, ser
secretrio de uma jovem advogada, bem nascida e formada, qui, no
exterior. Por outro lado, no interior do mesmo setor de ocupaes,
notvel a naturalizao de posies femininas e masculinas ocupadas
por mulheres e homens, respectivamente. Assim, no que se refira,
por exemplo, a ensino e pesquisa, considerando as posies possveis
s disposies socialmente disponveis, natural a professora que
ensine para as crianas os rudimentos da leitura e escrita, tarefa
ligada re-produo, prxima do lar, etc.; mas pouco usual que
ocupe posies como de chefe de laboratrio, catedrtica, etc.
tomando parte no trabalho de produo. Vale a ressalva, com relao
a este setor, na contemporaneidade: no apenas natural que as mulheres
sejam professoras-tias primrias, como a isso se liga o prprio valor que
assumiu socialmente a educao infantil se comparada a outros setores da
produo, seja de mo de obra, seja de tecnologia. De todo modo, os
exemplos poderiam se repetir, porm j so suficientes para delimitar
os termos do exame proposto.
uma platitude afirmar que a dominao entre as classes,
entre os sexos s possvel caso os dominados compartilhem com
os dominantes os esquemas comuns de percepo, apreciao e
conduta e, decerto, dentro deles, tenses e resistncia tambm
podem se manifestar. Desse modo, os dominados so parte da ativa
da dominao que os mantm dominados. possvel colher pelo
menos dois indicadores desse ponto no quadro. Primo: em numerosas
pesquisas de opinio foi detectado maior rechao candidatura
de Dilma Rousseff entre as mulheres do que entre os homens,
sendo constante a preferncia dela entre estes. (Folha de S. Paulo,
29/10/2010). Secondo: notvel, a simetria das posies assumidas
pela vereadora, pela coordenadora, pela esposa entre elas, no baixo
escalo e a assimetria delas com relao a ele, no centro e no topo.
Tais posies no parecem, alis, impingidas por ele, diferentemente
70 - A Ordem do Regresso

de outros casos, a que me remeto abaixo, mas, simplesmente, adotadas


naturalmente por elas.

O apelo aos afetos maternidade, religiosidade, ao lar


azeitado pelo tpico que pautou as semanas mais quentes do confronto
das campanhas o aborto evidentemente, no foi decidido por mulheres
seu trabalho no decisrio. Sem entrarmos na controvrsia das
determinantes da pauta das campanhas em geral, preciso reconhecer que
a sacada do tema est ligada ao trabalho de opor-se a uma adversria na
disputa pela presidncia da Repblica; decerto, com objetivos idnticos,
outro seria o tema se fosse um candidato a ser enfrentado. Para dizer
tudo, lanou-se mo desse expediente de maneira estratgica e o lance
foi bem sucedido por ter porta-vozes femininas e uma adversria mulher.
Tudo se passa como se a divergncia fosse entre elas. No por acaso foi
a interveno da esposa do candidato e no a dele prprio que mais
mobilizou as atenes, ganhando ainda mais visibilidade quando mais
uma mulher, sua ex-aluna, Sheila Canevacci, entrou no jogo (Folha de S.
Paulo, 16/10/2010).
A posio ocupada na campanha do adversrio-homem pelas
mulheres denuncia o amalucado da posio ocupada pela mulher e
homens, de lambuja do outro lado: uma candidata presidncia.
O trabalho consiste em mobilizar-se em torno de temas que repem
o lugar feminino das mulheres. Mas no o fazem valendo-se dos
espaos de interveno masculinos. O ponto merece ateno.

Excetuando-se a interveno da ex-aluna de Monica Serra,


ocorrida por meio de jornal de grande circulao, os detonadores
privilegiados para monopolizar o confronto em torno do assunto do
aborto, famlia, e, encadeando-se a eles, o apelo s convices religiosas
foram suportes miditicos como os mencionados. Sem entrar na zona
cinzenta das definies concorrentes e interessadas do que seja a tal
esfera pblica, possvel afirmar com alguma segurana que tais
recursos, isoladamente, no a constituem, e que, portanto, h, na
diviso sexual do trabalho poltico em tela um veto/chancela voz/
fala da mulher em espaos reconhecidos como mais idneos do que
as duvidosas correntes de emails, blogs, facebook, Orkut, twitter, entre
outros. Ao tomarem tais posies na diviso sexual do trabalho de
campanha, essas mulheres tomam a palavra em espaos que rebaixam
sua participao as mdias em que se projetam no estimulam e
mesmo freiam o esclarecimento que possvel no dilogo racional
entre iguais.
Lidiane Soares Rodrigues - 71

No imenso repertrio das representaes a respeito


das competncias naturalmente femininas, sabe-se, o jocoso a
respeito de serem fofoqueiras/falarem excessivamente dos mais
recorrentes. No entanto, esta, como tantas outras revelam mais do
que pretendem ocultar. A pergunta de Freud, por exemplo, O que
quer a mulher?, se cotejada, por Maria Rita Kehl com as cartas que
ele escrevia para sua noiva, autorizaria reformulao: o que o homem
no quer saber a respeito da mulher? (KEHL, 2009). Dentro do
rol dessas invertidas, valeria lembrar as brincadeiras que se faz com
o materialismo e interesse das mulheres pelos bens materiais dos
homens ridicularizadas por isso, suportariam eles o lao com uma
mulher que no dependesse de seu auxlio material, a eles ligada por
motivos outros que no o dinheiro e sua capacidade de ostentao/
ornamentao do poder? Sem a obrigao de responder a qualquer
das indagaes acima, vale atinar a delegao do trabalho de fofoca,
dentro de um quadro de percepo no qual a mulher fala demais
sustenta a assertiva: o que se pretende o veto palavra dela.

Assim, no difcil entender por que o candidato Jos


Serra respondeu candidata Dilma Rousseff, no debate televisivo
em 03/10/2010: estou estranhando a sua agressividade (...) ela
est revelando quem . bem provvel que a reao de Jos
Serra encerrasse algo de sincero na demonstrao de surpresa e
na espontaneidade da resposta sobretudo se considerarmos que
a estratgia da mulher-adversria foi assumir o problema que
estava correndo pelos subterrneos da campanha, escancarando-o,
enfrentando-o no sentido forte do termo: colocando-se de frente
indagou: o senhor a favor desse tipo de campanha difamatria
que sua esposa, a internet e seu vice est fazendo a meu respeito?
[Citao do teor da indagao, no ipsis litteris].
So numerosos e nada bvios os mecanismos desenvolvidos
para lembrar os que tomam caminhos desviantes daqueles que lhe
so socialmente destinados e a reao do candidato tanto mais
significativa pela espontaneidade. Desnorteado, assumiu o papel de
vtima, e menos pelo contedo de sua frase, mas pela modalidade
performtica de sua fragilizao especialmente no tom de voz
ameno ele produziu a tal agressividade feminina, recusando-se a
responder no mesmo tom, lembrando-a que a ela cabe a doura,
a delicadeza, a maternidade. De lambuja, restabelece, invertendo as
posies feminina/masculina, a assimetria. Ele, homem-fragilizado,
assume a posio feminina; ela, forte, a masculina. Qiproqu?
72 - A Ordem do Regresso

Nem tanto, nem necessrio, se o confronto pudesse ser estabelecido


esvaziando-se ambos os atributos de seus sexos, priorizando a
igualdade da interlocuo no espao pblico como acento do
conjunto da campanha. Mas este menos por Serra ou Dilma em
funo da configurao social, foi interditado.

Alguns agentes padecem de experincias que os tornam


mais dispostos a defenderem, por meio de sua conduta, padres
competitivos impessoais. Houve um tempo em que socilogos
elegeram sua prova dos nove da modernidade: o agente por meio do
qual as possibilidades, dilemas e limites dela eram revirados. Cada
um a seu modo e com sua dose de empatia, Antonio Candido e
Florestan Fernandes investigaram os caipiras e os negros em processo
de mobilidade social, respectivamente, estabelecendo os termos em
que (no) se realizava nossa modernidade (CANDIDO, A., 1964;
FERNANDES, F., 2008). No cometerei o ridculo sacrilgio da
equiparao com eles, nem com os processos macro-sociolgicos
que enquadraram os estudos mencionados. Mas se o mote de outra
escala, a preocupao se aparenta. Vale a pena atiar: a mulher seria
um agente social desses por meio dos quais a vigncia dos mores
modernos secularizao, igualdade, racionalidade pode ser
aquilatada? Peo vnia e arrisco.

conhecida a disposio das mulheres que se dedicam a uma


profisso a sobre-investirem em suas carreiras, tanto mais se esta
tiver prioridade/exclusividade entre suas escolhas. Em alguns setores,
a fofoca entre os concorrentes, dimenso nada desprezvel dos
mecanismos de constituio da interdependncia social, faz par com
o temor da que essa figura provoca, seja ele o de outras mulheres
ou o dos homens. A fama das mulheres que chegaram l correm
esses espaos de formao de opinies e condutas, como os corredores
da empresa, da escola, boca pequena, na qual tomam parte tanto
seus concorrentes homens quanto mulheres. Estas, caso tenham se
subdividido nos papis de esposa e me, dificilmente se solidarizaro
com aquelas que, por escolha ou falta dela, dedicaram-se apenas
profisso, na medida em que tm disponibilidade de tempo e energia
concentrada que falta esposa-me. De outra parte, os homens ficam
ameaados, pelo menos em trs direes: pela feminizao de sua
profisso, que implica, obviamente desvalorizao material e simblica
dela; pela alta voltagem da competio observada, vale lembrar, no
apenas em mulheres que chegam l, mas em ascendentes em geral
que tm na profisso a grande chance de existirem socialmente e
Lidiane Soares Rodrigues - 73

procuram se destacar pela excepcionalidade; e pela perda da posio


dominante a que esto sujeitos na possvel e provvel derrota na
competio. Vale reiterar: a sobrevalorizao da seriedade tpica
daquele que, naturalmente, ali no deveria estar.

A respeito do debate televisivo j mencionado houve curioso


consenso nem sempre assumido entre eleitores de ambas as partes:
a candidata no se saiu bem, e no se sai bem em geral. Descontandose a dose de adestramento que a parafernlia por trs das cmeras
e dos candidatos determina estilo, estratgia, etc,. resta algo
que, ao escapar dessa programao de bastidores, revela aspectos
pessoais dos que ali esto expostos. Nesse sentido, vale dizer que um
dos elementos nada favorveis a tal performance que se espera nos
debates deve-se ao fato da candidata privilegiar um vocabulrio no
to popular, raciocnios demasiado complexos para serem expostos no
pouco tempo em que deve desenvolv-los economizando em ironia,
sacando poucas frases de efeito e, constantemente valer-se desses
dois ltimos recursos com muita dificuldade. A performance que
vai do domnio do tom de voz, do olhar, dos gestos no casa com
clculo de raciocnio, seno com a ausncia dele. Ao tentar o dilogo
racional, a explicao, a argumentao lgica num economs que
seu adversrio tem pleno domnio mas, seguro de si, no vai, nem
precisa, acionar ali lanava em tela, a modalidade de afirmao da
mulher no mundo dos homens, por excelncia: a insistente e irritante
defesa da seriedade, do argumento lgico, da razo. No entanto, tal
seriedade, de que talvez tenha se valido para se afirmar ao longo de
sua trajetria, no casa com a performance requerida pelas cmeras,
e parece denunciar o percurso social desviante. Na impossibilidade de
colher e expor todas as vezes em que a ironia fez as vezes da resposta,
nos debates televisivos, o que ultrapassaria o exame possvel dentro dos
limites desse texto, vale assinalar: o candidato se saiu melhor no uso
desse recurso, altamente eficaz na interdio do dilogo, por rebaixar
o interlocutor. O uso social desse mecanismo, obviamente, pressupe
segurana e autoconfiana, ligadas ao trajeto social natural da posio
dominante, que d suporte a certo descaso para com o contedo
propriamente dito das questes que poderiam ser discutidas.
Ainda no que se refere ao uso da fala pblica pelas mulheres
nesta campanha, vale lembrar o segundo debate do segundo turno, em
que se verificou uma espcie de segmentao dos blocos por temas.
Num deles, as perguntas foram lanadas por duas jornalistas. A elas
se reservou o edificante papel de introduzirem os temas de escndalo
74 - A Ordem do Regresso

e boataria (corrupo, denncias), aquecendo o confronto com uma


dose de surpresa. Neste mesmo debate, Jos Serra, por duas vezes
atribui as perguntas da candidata queles que a auxiliaram notese: ela no d conta.
H uma poro de fanfarronice presente em todas as
eleies, e, como todo bom e mau humor, condensa experincias
sociais, valendo, por isso, alguma meditao. O esquema de recepo
e percepo que sustentou as investidas vexatrias dirigidas a ambos
girou em torno da diviso social-sexual do trabalho, vale dizer, no
apenas poltico. Um apanhado pode ser ilustrativo.

Ela estudou Economia, foi guerrilheira e torturada, eis


todo o seu passado. Ela cria poltica de Lula-Dirceu: eis todo o seu
presente. Ambos os traos a desqualificam para exercer bem qualquer
papel, pblico-masculino ou privado-feminino. A cincia que
escolheu afasta-se de profisses femininas assim como de disciplinas
mais ligadas sensibilidade que deveria ter literatura, pedagogia,
secretariado, enfermagem. A guerrilha liga-a guerra e no paz.
Venceu a tortura: forte demais ou mentiu. No primeiro caso, m
mulher, no segundo, uma mulher m. Venceu um cncer, vence
demais; ter mesmo vencido, possvel vencer tanto assim?

O alarde espalhafatoso em torno de seu passado


guerrilheiro e algum silncio a respeito disso no percurso de Serra
lembrado e relembrado por estar em exlio no Chile, sem que se
pergunte exatamente fazendo o qu, por qu, a qual organizao
poltica pertencia, etc. outro indicador seguro de que em tudo
desconfortvel a candidatura de uma mulher para a presidncia da
Repblica. E se a constatao poderia parecer uma platitude, parece
haver uma disposio a se ignorar os artifcios disso. Guerrilhatortura: o espao semntico em que se movimenta a discusso a
respeito do passado poltico da candidata remetem carreira militar.
Ainda que no conjunto das carreiras dirigentes esta seja dominada,
tambm a de mais apelo virilidade tangvel no recrutamento,
no poder de que se v investido seu representante, da fora a que
associado entre outras prerrogativas tpicas do quartel. Digamos
tudo, com poucas palavras: nem a guerra, nem a poltica, so espaos
tpicos femininos, seno em ocupaes subordinadas que lhe cabem.
Notvel na construo social do contraste homem-mulher, com
papis invertidos, acima mencionado, foi o episdio da dramatizao
de Serra por ter sido acertado por uma bolinha de papel na boca
Lidiane Soares Rodrigues - 75

pequena, ela mais macho que ele. Imbrglio curioso que em alguns
momentos significou colocar em confronto atributos de covardia e
coragem num e noutro ele se refugiou em 1964/covardia; ela ficou e
foi torturada/coragem. Ainda que essa invertida jogasse contra Serra,
estava coerente no conjunto da construo social de sua figura, a
respeito do que, vale assinalar: a associao a Cristo/fragilidade fsica
em santinhos distribudos na campanha no encerra apenas o
apelo religiosidade popular, mas inverso homem-frgil, mulherforte, anti-Cristo/demonaca.
Sendo cria de dois homens, ela incapaz de pensar por si
prpria, mas pretende ser presidente: m filha que se desprende do
pai. Descuidada da casa civil da qual era chefe ao colocar Erenice
Guerra, Dilma de Dilma, onde no deveria no deve sair
rua. Retomando o mote do aborto: tambm m me. Em suma:
deslocando-a do lugar masculino, colocando-a no lugar feminino, ela
o desempenha mal quem no governa a casa incompetente para
o governo do Estado, no dizer da campanha adversria: Ela no
vai dar conta; O Brasil pode mais. Seria preciso ignorar o bvio
para no atinar o nexo: patriarcalismo, patrimonialismo e privatismo
apostam na indiferenciao entre administrao da vida privada e da
vida pblica. Em xeque, mais uma vez, a famigerada modernidade.
Como no poderia deixar de ser, a centralidade da diviso
sexual do trabalho tambm se manifestou em programas humorsticos
destinados a grande pblico e relativamente descompromissados de
vnculos partidrios. Ao acompanharem as celebridades da poltica
no dia de votao para o primeiro turno, um programa humorstico
perguntou para Fernando Henrique Cardoso: nestas eleies, qual
o seu homem, Serra ou Dilma?. Ele riu e disse: mas s h um
homem [CQC, ao ar em 03 de outubro de 2010]. Na cobertura
humorstica aps um dos debates, Sabrina Sato indagou Dilma:
esto dizendo que vai se sentir falta de uma primeira dama, voc
vai arranjar um namorado. E obteve a resposta: Eu no acho
imprescindvel uma primeira dama quando ns tivermos uma
primeira presidente [Pnico, ao ar em 24 de outubro de 2010].
Os indicadores que confirmam a centralidade da diviso
sexual do trabalho nesta campanha poderiam ser multiplicados. Em
entrevista a jornal televisivo, questionado a respeito da educao em
So Paulo, Jos Serra defendeu a presena de duas professoras nas
salas de aula, evidenciando sua ateno para o setor e ressaltando a
relevncia da alfabetizao, em suas palavras, a segunda professora
76 - A Ordem do Regresso

uma jovem universitria estudante de pedagogia. Em fase de


concluso deste artigo, ocorreu um ato poltico em Uberlndia, em
apoio a Serra, no qual o candidato delegou a seguinte tarefa a suas
eleitoras: Se menina bonita, tem que ganhar 15 votos. simples,
faz a lista dos pretendentes e manda um email dizendo que ter mais
chances contigo aquele que votar 45.
Mais uma vez: diviso sexual do trabalho poltico de
campanha; vetado o espao pblico do dilogo entre iguais para
as mulheres; estas neste episdio, no assumem so instrudas a
assumir seu papel feminino: valer-se dos atributos fsicos (beleza), dos
suportes virtuais (emails), e, aceitando ativamente sua inferioridade,
devem rep-la, participando do processo poltico com recursos
inferiores, de seres menos inteligentes ( fcil), menos aptos para
o exerccio da poltica: a seduo. Esse ponto valeria outro artigo,
mas como passo tangente a ele, menciono esse ltimo episdio
rebaixa apenas mulheres, mas a todos, retirados, por princpio da
competncia requerida para o dialogo no espao pblico. O alarde
em torno da religiosidade, tudo indica, seguiu esta linha.

A biografia dos dois candidatos est ligada intensificao


dos processos de modernizao pelo qual a sociedade brasileira
passou da dcada de cinquenta at o presente. A segmentao
dos setores produtivos, o crescimento do mercado da produo de
cultura e processos econmicos e sociais correlatos possibilitaram
tanto a presena das mulheres em espaos que anteriormente eram
exclusivos masculinos, como alimentaram esperanas relativas
chamada revoluo dos costumes, que, em linhas gerais apostou, de
diferentes maneiras na superao das assimetrias sociais includas
a, as de classe e as de sexo (RIDENTI, M., 2010). At onde posso
compreender, nem modernidade, nem revoluo dos costumes
vingaram. Mas, por acreditar que a dominao mais eficaz aquela
que no reconhecida como dominao, quis contribuir para a reflexo
a respeito desse fracasso elegendo um agente social (a mulher) e um
aspecto de sua interao na sociedade inclusiva (a diviso sexual do
trabalho). Ciente de que sequer me aproximei das numerosas tarefas
e mulheres que recusam-se, na prtica, a serem ativas no processo
social que as faz inativas e silenciadas; e de que ficou fora de meu
recorte muitas outras figuras femininas de destaque mormente
Marina Silva ; ainda assim acredito que o problema mais amplo e o
enquadramento tenham algum valor.
*
Lidiane Soares Rodrigues - 77

Uma historiadora que goste de Sociologia tem contas a acertar


ao se aventurar por domnio disciplinar que no o seu e por se atrever
a examinar um tempo que no o privilegiado pelo seu mtier.

Quanto ao primeiro acerto, gostaria de me irmanar


concepo de que a Sociologia, filha da modernidade, entende o
desenvolvimento da autoconscincia social como um dos passos
necessrios contra tendncias regressivas, definidoras dessa mesma
modernidade. Por isso, o rechao disciplina seja por ignor-la,
seja por defesa do territrio de disciplina concorrente acredito,
deva ser contornado se possvel, enfrentado se necessrio. Ele parece
anlogo aos que cortam a machado a apreciao das dimenses de
classe na localizao profissional, poltica, etc.; bem como aos que em
nome da biologia, da natureza possuem um repertrio inesgotvel
de ideias feitas a respeito dos motivos pelos quais as mulheres
esto onde esto e os homens tambm. Manifestaes tpicas das
tendncias regressivas a que procurei aludir, vale a confisso, se o
texto no bastar, de que me oponho a elas, venham da cor ideolgica
que vierem. Se as paixes polticas dificultam o exame mais objetivo
dos fenmenos recentes, so precisamente elas que convocam esta
tentativa: a aposta nos valores da civilizao moderna como freios
barbrie que ela instaura que obriga a reflexividade. Ademais, vale
acrescentar, se o texto no o disser por si prprio: fiz questo de
terminar este artigo antes do desfecho do processo eleitoral, autoimposio como prova de que a ltima coisa que tenho em mira
nestas linhas imaginar esse desfecho, que, seja qual for, no parece
desmentir a anlise.
Ainda no que diz respeito ao domnio sociolgico, um mea
culpa. Num trabalho de mais flego valeria investigar como o corpo
da prpria candidata Dilma Rousseff foi trabalhado esteticamente
buscando difcil equilbrio entre tenses que seguramente no
esteve de fora do clculo daqueles que a vestiram, maquiaram,
operaram. Contudo, um exame desse tipo, tomando o corpo como
suporte do habitus, se talvez atinasse para a a-sexualizao, notvel se
comparada com a apresentao de uma Marta Suplicy, por exemplo,
requereria tambm a considerao de outros elementos como as
numerosas mudanas de aparncia em funo da doena enfrentada
por ela, o que estaria alm dos limites desse texto e de minha
competncia.
Quanto ao segundo acerto, evoco Marc Bloch, em seu Mtier
dhistorien. Dentre as assertivas desse livro de cabeceira, vale destacar
78 - A Ordem do Regresso

sua ironia com relao aos que almejam poupar casta Clio contatos
demasiado ardentes: o erudito que no tem gosto por olhar em
torno de si, nem os homens, nem as coisas, nem os acontecimentos
(...) agiria sensatamente se renunciasse ao ttulo de historiador.

Possivelmente nos seja contraposto,numa verve frankfurtiana,


que pode desmontar ponto por ponto dos argumentos mobilizados
acima: a racionalidade que rege o mundo masculino (...) produz e
produzida pelo trabalho alienado, que cria uma viso alucinatria
de um mundo preenchido por objetos cujo sentido se perdeu. Nesse
sentido, no mundo em que houve uma queda de todos os valores
em valor de troca, todos os valores que se opem e negam os da
produtividade, ou que no mnimo os colocam em questo, como
os mitos sociais e coletivos da beleza da mulher, os da felicidade
improdutiva que ela promete, da sensualidade gratuita e sem um
fim preestabelecido podem se tornar explosivos, especialmente, se
a caricatura de erotismo e sensualidade que o mundo do Capital
oferece na forma de mercadorias erticas se tornar uma exigncia
real. Se assim o for, valeria afirmar os valores femininos em protesto
ao esquecimento do prazer que renuncia aos direitos de Eros
(MATOS, O., 1989, p. 134-135). Estamos de acordo. Mas h que se
ponderar: os atributos do feminino, no interior da reproduo social, so
dispositivos que repem a dominao masculina (BOURDIEU, P.,
1998). E, assim sendo, h que se indagar se a promessa de felicidade
do feminino imaginrio social irrealizado e reprimido que fonte
de qualquer transformao social (MATOS, O. 1989) consistindo
em algo irrealizado, no se torna algo reprimido e simultaneamente
repressor, isto , instaurando o regresso no projeto da emancipao,
dos sexos e do capital. O n sobejamente conhecido afirmao
do particularismo ou do universalismo e a obrigao de escolher
um ou outro talvez seja mais afeita s lutas polticas que anlise.
Parece-me que estamos homens e mulheres, pois a emancipao,
como a dominao, fruto da interdependncia dos sexos numa
bifurcao em que ambas as ruas so sem sada.
Agnaldo, Carlos, Danilo, Uiran, Ramone, Paulo, Francini,
Rosinha, Ruth, Camila leram uma verso amalucada deste texto e
sou grata a todos pelos comentrios e incentivo para fazer rodar o
argumento, tambm recebido de Lincoln, que pacientemente ouve
minhas tergiversaes a respeito do assunto. Igualmente estimulante
foi a participao de Helosa Fernandes e Laura de Mello e Souza
no ato realizado na Faculdade de Filosofia da USP (25 de outubro
Lidiane Soares Rodrigues - 79

de 2010) e se menciono esse evento junto a meus agradecimentos


porque no conjunto encerram um dos sentidos da anlise que
propus. Filhas de dois homens que so a alma da instituio, e
apresentando-se como tais, at onde pude compreender, buscando
enquadrar o episdio no esquema que delineei, ao assumirem suas
posies polticas de maneira autnoma, mas no divergentes das de
seus pais, deram a contraprova que me faltava. O espao era pblico,
a apresentao das posies no recorria a subterfgios propiciados
pelas mdias supramencionadas, o uso da palavra, no qual tomaram
parte ancorava-se em seus percursos profissionais e na memria das
lutas de seus pais, ligando ambas tradio sem que isso implique
conservadorismo elementos que indiscutivelmente contrastam
com a diviso sexual do trabalho exposta anteriormente, em que a
mescla do hiper-moderno trazia o recalque do retrocesso. William
sabe por que esse texto s pode ser assinado em parceria com ele, e
eu sei por que ele no faria questo desta meno. Nem tudo cabe em
palavras, o resto se resume em uma: utopia.
Bibliografia
BLOCH, M. Apologia da histria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

BOURDIEU, P. A dominao masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. So Paulo: Duas Cidades, 1975, 3ed. [1954].

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www.cpflcultura.com.br/site/2009/06/30/integra-mulheres-em-transformacao-ehomens-em-crise-maria-rita-kehl/
MATOS, Olgria. Masculino e feminino. Revista USP, julho-agosto, 1989.

MELLO e SOUZA, G. O esprito das roupas. So Paulo: Companhia das Letras,


2009 [1950].
NOVAIS, F.; CARDOSO de MELLO J. M. Capitalismo tardio e sociabilidade
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v. 4. Contrastes da intimidade contempornea. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.
RIDENTI, M. Brasilidade revolucionria. So Paulo: Unesp, 2010.

80 - A Ordem do Regresso

FLORESTAN FERNANDES

Interldio
(1969-1983)

Lidiane Soares Rodrigues

Neste livro, a autora procura


reconstituir a elaborao de uma
modalidade de atuao poltica
para os intelectuais empreendida
por Florestan Fernandes, entre os
anos de 1969 e 1983. Tratase de um momento em que o
socilogo esteve desvinculado
da instituio universitria, da
qual a aposentaria compulsria
imposta pelo regime autoritrio
o arrancou, e empenhado num
de retiro da vida pblica, refgio
que chamou de gaiola de
ouro, e ela, de interldio. No
cultivo dessa rejeio ao mundo,
o autor dedicou-se autorreflexo, parcela considervel da

obra ento produzida nasce sob


o signo dela so balanos
de sua trajetria intelectual, da
Sociologia e dos impasses da
formao das cincias sociais
no Brasil e da liberao da
coero discursiva que os campos
institucionais promovem. Por
meio do exame desse conjunto
de textos, sobressai-se na obra
do autor o tema que centro
gravitacional dos estudiosos da
obra e trajetria do socilogo: o
equacionamento de sua atuao
acadmica e poltica.
Editora HUCITEC

Mulheres iranianas

POLTICA

As Relaes entre o Ir e o
Ocidente
Sob o Vu Mistificador da
Doutrina do Choque de
Civilizaes
Arlene Elizabeth Clemesha1

Professora de Histria rabe (DLO-FFLCH/


USP) e Diretora do Centro de Estudos
rabes da USP

No atual contexto ideolgico mundial - onde no mais


a Guerra Fria, mas a Guerra ao Terror e a doutrina do Choque
de Civilizaes, que vm justificar as sucessivas investidas norteamericanas pela hegemonia mundial - o Ir surge cada vez mais
como smbolo da negao de tudo que o Ocidente supostamente
representa: democracia, direitos humanos e liberdades individuais,
alm de outros valores autoproclamados.
Para Samuel Huntington - pai da doutrina do Choque de
Civilizaes -, a velha poltica, que se dava ao redor do conflito entre
grupos ideolgicos como o primeiro, o segundo e o terceiro mundos,
deu lugar a conflitos mundiais entre blocos culturais antagnicos
(1993). As grandes divises da humanidade, diria Huntington, e
as principais fontes de conflito, seriam agora culturais. Segundo
a viso de Huntington, que por sua vez se apia nos escritos de
Bernard Lewis (1990), o Isl seria uma civilizao homognea e
monoltica, definida por seu antiocidentalismo, dio irracional e
inextirpvel ao ocidente.

Para tomar um exemplo, a relao entre o Estado de Israel


e o Ir passa a ser vista no por sua real natureza de disputa pelo
poder militar no Oriente Mdio, mas como o embate entre a
nica democracia da regio e uma teocracia antiliberal, fantica
e ameaadora. Com a vantagem de que, colocado nesses termos, o
alinhamento dos Estados ocidentais a Israel no mais uma questo
de escolha ou interesse poltico genuno (Parsi, 2006).

O prprio programa nuclear iraniano, originado no final da


dcada de 1950, s passou a ser combatido pelos Estados Unidos aps
a substituio do governo colaboracionista do Shah Mohammed Reza
Pahlavi, pelo regime politicamente opositor do Aiatollah Khomeini,
em 1979. Antes disso, o Ir comprava combustvel nuclear dos Estados
Unidos, erguera seu primeiro Centro de Pesquisas Nucleares de Teer
(em 1967) com apoio norte-americano, e planejara a construo de
at 20 usinas nucleares por orientao de uma pesquisa de 1974 do
Stanford Institute que indicava que o pas necessitaria produzir 20.000
megawatts de energia atmica at o ano 1994. O Ir foi tambm
um dos primeiros signatrios do Tratado de No Proliferao
(TNP) em 1968, aderindo em 1974 ao Safeguard Agreement da
Agncia Internacional de Energia Atmica (AIEA). Ou seja, com
a perspectiva de grandes lucros oriundos da venda de combustvel
nuclear para a operao dos reatores iranianos, os Estados Unidos
defendiam e impulsionavam seu programa nuclear.
A partir de 1979, os Estados Unidos comearam a
pressionar no sentido contrrio. Suspenderam o apoio, barraram a
cooperao iraniana com empresas francesas e alems, e impediram
o estabelecimento de acordos de cooperao nuclear com pases
como a China, frica do Sul e Argentina, alegando que o programa
nuclear iraniano tinha finalidade blica.

No entanto, os inspetores da AIEA, que monitoram intensamente toda atividade nuclear iraniana desde 2002, no encontraram
at a presente data evidncia da capacidade iminente de produo de
armas nucleares no Ir. Em 2003, para tentar reverter o crescimento
de um consenso mundial contrrio ao programa de enriquecimento
de urnio no Ir, o governo desse pas empreendeu um dilogo com a
Frana, Alemanha e Gr-Bretanha, para construir confiana baseada
na transparncia e no acesso s plantas nucleares. Ao mesmo tempo,
assinou e implementou o Protocolo Adicional ao TNP, e abriu as portas
a uma das inspees mais rigorosas e completas na histria da AIEA.
84 - As relaes entre o Ir e o Ocidente

Finalmente, com base no modelo fornecido pelos especialistas da AIEA,


o Ir props converter as facilidades nucleares em complexos regionais
ou multinacionais, o que fornece o maior grau de transparncia na
medida em que permite s partes envolvidas participar da propriedade
e operao dessas plantas (Zarif, 2007: 86).
Desde pelo menos 2002, os Estados Unidos pressionavam
a AIEA a encaminhar ao Conselho de Segurana (CS/ONU) um
pedido de sanses contra o Ir devido a seu programa nuclear. Mas o
apoio da Rssia e China ainda tinha que ser construdo. Em outubro
de 2005, uma votao dividida na AIEA (rgo acostumado a operar
por consenso), com 22 a favor, 1 contra e 12 abstenes, concluiu que
o Ir no respeitava o TNP mas ainda se mostrava receoso da crescente
presso europeia e norte-americana sobre o pas. No entanto, antes
mesmo de serem aprovadas as sanes, o simples envolvimento do
Conselho de Segurana j tinha o efeito de transportar a questo
para o nvel da confrontao.

Finalmente, em julho de 2006 o CS/ONU aprovou a


resoluo 1696, declarando sua falta de confiana na capacidade
da AIEA de garantir o carter pacfico do programa nuclear
iraniano, exigindo o fim imediato do enriquecimento de urnio, e
estabelecendo, pela primeira vez, a aplicao de sanes econmicas
e diplomticas ao Ir. Em 2010, como se no bastasse o Conselho de
Segurana da ONU ter aprovado uma nova rodada de sanses contra
o Ir, a Unio Europeia imps em seguida, segundo fontes da BBC,
as mais duras sanes jamais adotadas pela UE contra qualquer pas,
enquanto lideranas polticas norte-americanas debatiam se deviam
ou no apoiar oficialmente um ataque israelense quele pas.2

Segundo o ex-embaixador do Ir na ONU, Mohammad


Javad Zarif, o imenso volume de atividade diplomtica norteamericana direcionada a amedrontar e alinhar os pases em uma
coalizo anti-iraniana tornou-se a pedra central de uma estratgia
para resgatar as polticas fracassadas dos Estados Unidos na regio
(2007). De acordo com artigo no Wall Steet Journal, o espectro da
ameaa da ascenso do Ir tornou-se para os Estados Unidos
uma espcie de cimento diplomtico... para remendar uma aliana
destinada a consertar no apenas o Iraque, mas tambm o Lbano e
o conflito palestino ( Jaffe e King, 2007).
O Ir possui uma demanda real de energia alternativa
e no oriunda do petrleo ou do gs natural, no apenas porque

Arlene Elizabeth Clemesha - 85

estes so recursos esgotveis, mas para que o pas possa aumentar


suas divisas da exportao desses recursos naturais. A produo de
20.000 megawatts de energia nuclear at 2020 economizaria ao pas
190 milhes de barris de petrleo todo ano, ou quase 14 bilhes de
dlares ao ano. significativo que os mesmos governos que hoje
questionam o programa nuclear iraniano, apoiavam-no ativamente e
competiam por suas aes h 40 anos, quando a populao iraniana
e as demandas de energia eram muito inferiores ao que so hoje, e a
produo e exportao de petrleo, muito maiores.

Vale lembrar que o acordo nuclear Brasil-Turquia-Ir, firmado


em maio de 2010, foi imediatamente desqualificado pelos Estados
Unidos em nome da aprovao de mais uma rodada de sanes contra
o Ir no Conselho de Segurana da ONU. As novas sanses foram
aprovadas pelo CS/ONU em 9 de junho de 2010 (Res. UNSC/1929),
mas o que passou a ocupar o maior espao da grande mdia foi o caso
da sentena de morte por apedrejamento de Sakineh Mohammadi
Ashtiani, iraniana de origem azeri, 43 anos, julgada culpada em 2006
por traio e depois por participao na morte de seu marido.

O acordo diplomtico brasileiro-turco-iraniano foi


rapidamente esquecido pela mdia e as sanes tampouco so
debatidas. Tornaram-se problema exclusivo do povo iraniano,
obrigado a lidar com o recrudescimento do seu castigo coletivo. Mas
o caso de Sakineh Ashtiani, cuja pena foi transformada em morte
pela forca, continua ganhando as manchetes.
O caso Sakineh e a doutrina do direito de intervir
Por mais abominvel que seja a condenao de Sakineh, e por
mais importante que seja tentar salvar sua vida, o que chama ateno
que a mdia se mostre to indignada perante essa pena de morte,
mas complacente e at mesmo indiferente diante das execues nos
Estados Unidos, ou outras formas de graves violaes de direitos
humanos em pases ocidentais ou aliados dos ocidentais.
Aps a alterao da sentena de Sakineh, da morte por
apedrejamento morte na forca, o ministro do Exterior da GrBretanha, Alistair Burt, disse que qualquer ao para executar
Ashtiani seria totalmente inaceitvel, enquanto a ministra das
Relaes Exteriores da Unio Europeia, Catherine Ashton, segundo
sua porta-voz, exige que o Ir suspenda a execuo e altere a
sentena (BBC Brasil, 02/11/2010).
86 - As relaes entre o Ir e o Ocidente

Pouco antes, o editorial da Folha de So Paulo de 22 de julho,


Dilogo de Surdos, afirmava que as tentativas at ento frustradas
de convencer o Ir a revogar a pena de morte por apedrejamento
de Sakineh Ashtiani seriam emblemticas das diferenas entre o
Ocidente e o mundo islmico. No havia, segundo esse veculo de
comunicao, bases para o dilogo. O caso Sakineh viria comprovar,
para todos os efeitos, a diviso do mundo entre Ocidente e
Oriente, em linhas demarcadas, fixas e intransponveis. O
Ocidente, supostamente defensor dos direitos humanos, possuiria
valores mais avanados que o Isl. Por mais que o editorial tenha ao
mesmo tempo criticado Samuel Huntington, reproduziu a mesma
ideia central desse autor ao descrever Isl e Ocidente como duas
entidades fixas e monolticas, cujas linhas imaginrias de diviso
seriam tambm aquelas de conflito. A viso de mundo orientalista
expressa por esse editorial no se distingue do orientalismo reciclado
pela teoria do Choque de Civilizaes.

Em artigo recente na Carta Maior, Francisco Teixeira tece


uma srie de crticas pertinentes ao governo iraniano, faz referncia
importante luta interna iraniana por direitos humanos, mas parece
valer-se do mesmo paradigma do choque de civilizaes quando,
entre outras coisas, afirma que a questo das liberdades civis e do
reconhecimento dos direitos humanos no Ir (e por extenso em
todos os pases muulmanos) impe um debate bastante duro e srio
sobre o convvio entre as civilizaes no mundo moderno (2010).
O autor elabora retoricamente um problema de direitos humanos
comum a todos os pases islmicos, supostamente pertencentes a um
mesmo bloco civilizacional retratado como atrasado e problemtico
por suas caractersticas intrnsecas. No entanto, como diria Edward
Said, h um mundo de diferenas entre o Isl no Egito e o Isl na
Indonsia (2001). Sendo que, em matria de defesa dos direitos
humanos o Ocidente no prima pela coerncia. Como anunciou
Umberto Eco, o mundo protesta contra pena de morte no Ir mas
no se ope injeo letal nos EUA (2010). Alm de Guantnamo
e Abu Ghraib, lembremos os ilegais assassinatos dirigidos e os mais
de 7.000 prisioneiros polticos mantidos pelo Estado de Israel, muitos
dos quais na categoria de presos administrativos, sem acusao
formal ou processo na justia. Os demais aliados norte-americanos
da regio, como Egito, Arbia Saudita e Jordnia tambm possuem
vastos repertrios de abusos de direitos humanos, sem por isso
tornarem-se alvo da crtica mundial.
Arlene Elizabeth Clemesha - 87

Outro indcio de que o objetivo antes isolar o Ir, do que


apoiar os setores do pas que lutam por mudanas, que a ateno dada
ao abuso de direitos humanos no Ir no costuma vir acompanhada
de informao sobre a resistncia interna, ou o debate interno,
existente no pas em torno do problema. Como lembra a advogada
e ativista de direitos humanos Mehrangiz Kar, que durante 22 anos
advogou no Ir, h um movimento de protesto no Ir que luta para
acabar com essas prticas. Dele participam inclusive alguns clrigos,
que infelizmente, por no estarem vinculados ao governo, no tm
nenhuma autoridade. Eles pregam uma reforma no nosso sistema
legal sem que isso signifique insultar o Isl (Rossetti, 2010).
Segundo Shirin Ebadi, advogada iraniana e premio Nobel
da Paz, o apedrejamento tem sido criticado, h muito tempo, por
uma srie de juristas islmicos, notadamente Aiatollah Yousef Saanei.
Acreditam que tais punies eram correntes na pennsula rabe no
perodo de advento do Isl, ou seja, no sculo VII, mas observam que
o Coro no faz nenhuma meno ao apedrejamento, defendendo
assim que o Estado passe a adotar penas mais leves e adaptadas aos
dias de hoje, como multas ou a priso (Ebadi, 2010).
Lembremos ainda que a pena por apedrejamento chegou
a ser completamente suspensa durante o governo do Presidente
Khatami (1997-2005), mesmo sendo ele Hojjat al-Islam, e filho de
Aiatollah (Cf. Abrahamian, 2008: 187).
Para alm da falta de divulgao e conhecimento da luta
pelos direitos humanos e reformas polticas dentro do Ir, o fato
que a retrica de guerra dos Estados Unidos e da Europa, bem como
as sanes aprovadas pelo CS/ONU, atrapalham o avano de todo
movimento interno de contestao ao regime, notadamente a luta
por direitos humanos.

Ao no se dar voz aos que lutam por mudanas no Ir, transmitese a concepo segundo a qual a soluo passaria por algum tipo de
interveno, presso ou castigo da comunidade internacional. Por trs
disso est a noo enraizada (por sculos de colonialismo e o discurso
etnocntrico que sempre o acompanhou) de que os iranianos precisam
do Ocidente para avanar, para seu bem e proteo contra suas prprias
crueldades. Nesse contexto, a propaganda gerada em torno ao caso
Sakineh ganha uma importncia estratgica mundial, ajudando a criar
uma opinio pblica que poder ver com olhos favorveis um ataque ao
Ir e, eventualmente, uma interveno para a mudana de regime.
88 - As relaes entre o Ir e o Ocidente

Como explica a antroploga Lila Abu-Lughod, aqueles que


pesquisam o governo britnico no sul da sia ao longo dos sculos
XIX e XX, podem notar a ampla utilizao da questo da mulher
nas prticas colonialistas, como forma de justificar a colonizao.
Percebe-se, ao mesmo tempo, que a ideia de salvar outras mulheres
refora o sentimento de superioridade dos interventores ocidentais,
uma forma de arrogncia que deve ser questionada. Para as
feministas afegs, por exemplo, a emancipao da mulher deveria
ocorrer dentro do marco do islamismo e no atravs do combate ao
Isl. Elas tendem, inclusive, a olhar para o Ir como modelo de pas
islmico onde as mulheres esto alcanando notvel progresso, com
uma ampla alfabetizao, diminuio da taxa de natalidade, presena
das mulheres nos postos de trabalho e no governo, bem como nos
campos de cultura e arte como a escrita e a realizao de filmes. Ao
mesmo tempo, a permanncia de injustias contra a mulher objeto
de anlise e crtica das mulheres desses pases, que esto longe de
ver, seja a interveno externa, seja a laicizao, como soluo para
a condio da mulher nos diferentes pases islmicos. Para AbuLughod, um primeiro passo na direo necessria seria romper com
a linguagem das diferentes culturas, seja para compreender ou para
elimin-las. Trabalho missionrio e feminismo colonial pertencem
ao passado, diz a autora (2002: 783-970).
O tratamento conferido pela imprensa e pelas lideranas
polticas norte-americanas e europeias, ao caso Sakineh, tem sido no
apenas parcial, mas expresso de uma concepo de mundo etnocntrica,
que possui, deve-se notar, uma longa tradio na utilizao da questo
da mulher para justificar a interveno, ocupao, e dominao externas.
Sendo que, no devemos menosprezar a importncia que os Estados
Unidos atribuem criao de um consenso anti-iraniano. Aps a
ocupao do Iraque, efetuada sem o aval da ONU, a um enorme custo
poltico-ideolgico e militar, os Estados Unidos dificilmente podero
sustentar um novo ataque unilateral. Por isso, inclusive, tanta irritao
da Secretria de Estado Clinton com o acordo Brasil-Turquia-Ir.
Apesar do acordo basicamente repetir os termos oferecidos ao Ir
pela AIEA em outubro de 2009, ele indicava - pelo fato de ter sido
firmado com a Turquia e o Brasil, no momento em os Estados Unidos
preparavam novas sanes no CS-ONU -, mais uma vez, que no
se havia chegado a um consenso pelo total isolamento daquele pas.
A prpria ideia de que era possvel chegar a um acordo com o Ir
constitua uma ameaa poltica isolacionista norte-americana.
Arlene Elizabeth Clemesha - 89

A exaltao da crena na existncia de diferenas culturais


e civilizacionais insuperveis vem acompanhada da defesa do
chamado direito ingerncia externa, doutrina poltica que elabora
a ideia segundo a qual as potncias industriais dos Estados Unidos
e da Europa no s tm o direito como o dever moral e poltico de
intervir em pases ou regies onde supostos valores universais, como
a democracia e os direitos humanos, so desrespeitados.

Ou seja, transformam-se valores como direitos humanos e


democracia, alm de ecologia e livre mercado, em valores universais
e recorre-se a eles para criar um consenso e justificar algo que no to
fcil de ser aceito, que a ingerncia externa ou, fundamentalmente,
o reconhecimento de que os Estados estrangeiros podem violar a
soberania nacional de outros pases. Em 1999, o ento secretriogeral da ONU, Kofi Anan defendeu, diretamente, a limitao da
soberania em favor dos direitos humanos. Sendo que foi justamente
a Guerra do Golfo que abriu caminho consolidao do droit
dingrence humanitaire (Bandeira, 2007: 15 e 18).
Lamentavelmente, ignora-se que os efeitos mais provveis
de um ataque externo seriam arruinar a luta iraniana por democracia
e direitos humanos, encorajando a populao, todo o espectro
poltico includo, a alinhar-se ao governo na defesa da nao. Os
defensores da guerra, que afirmam que ela criaria revolta interna e
encorajaria a populao a lutar contra o regime, claramente ignoram
a histria, a realidade atual, e o nacionalismo iranianos. Ainda no
que diz respeito aos efeitos de um ataque, vale lembrar que iniciar
uma guerra a melhor maneira at hoje conhecida e comprovada de
se criar as condies para o desrespeito aos direitos humanos.
Notas
1.

2.

Arlene E. Clemesha, PhD, Professora de Histria rabe (DLO-FFLCH/


USP) e Diretora do Centro de Estudos rabes da USP. Autora dos livros
Marxismo e Judasmo (Boitempo/Xam), Palestina 48-08 (Teer, em idioma
farsi), entre outros livros e artigos relacionados ao tema, e tradutora de
Edward Said. representante da sociedade civil brasileira em reunies da
ONU pela defesa dos direitos do povo palestino.

Entre 2005 e 2006, enquanto os relatrios do National Intelligence Estimate


ou aqueles da IAEA concluam que o Ir no possua tecnologia para
produzir armas nucleares antes de 2015, o Chief of Staff do exrcito israelense,
Dan Halutz, declarava que o Ir atingir o ponto do no-retorno e poder
produzir armas nucleares em trs meses (Apud ZARIF, 2007).

90 - As relaes entre o Ir e o Ocidente

Bibliografia
ABRAHAMIAN, Ervand. A History of Modern Iran. Cambridge: University Press,
2008.
ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological
Reflections on Cultural Relativism and Its Others. American Anthropologist, New
Series, vol. 104, no. 3, setembro 2002.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Apresentao. In: Immanuel Wallerstein. O
Universalismo Europeu: a retrica do poder. So Paulo: Boitempo, 2007.
EBADI, Shirin. When adultery means death. The Guardian. 7 de agosto 2010. http://
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ECO, Umberto. Mundo protesta contra pena de morte no Ir mas no se ope
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ZARIF, Mohammad Javad. Tackling the Iran-US Crisis. Journal of International
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Arlene Elizabeth Clemesha - 91

Cana-de-acar

POLTICA

Reforma Agrria e
subdesenvolvimento: a
experincia revolucionria
de Cuba
Joana Salm Vasconcelos

Historiadora e Mestranda em Desenvolvimento


Econmico (UNICAMP)

Em 1948, a CEPAL surgiu como novidade no cenrio do


pensamento econmico mundial. O grupo de economistas reunidos
a partir desta peculiar instncia da ONU formulou um programa
econmico original para a regio latino-americana, viabilizado
como programa continental devido s caractersticas estruturais
(histricas e produtivas) compartilhadas pelas formaes nacionais
da Amrica Latina. A principal delas, j identificada por autores
marxistas e no marxistas desde o sculo XIX, era a dependncia
econmica e cultural que Amrica Latina vivia em relao aos pases
do norte.
O conceito de subdesenvolvimento elaborado pelos
economistas da CEPAL uma chave posteriormente desdobrada
pela teoria da economia-mundo (ou sistema-mundo), sntese de
Immanuel Wallerstein para a explicar a estrutura e a dinmica do
capitalismo mundial, a partir de seus intrnsecos desequilbrios
internacionais. A teoria do sistema-mundo define com eficiente
didatismo os distintos papis que cada pas ou regio ocupam no
cenrio das trocas, da produo e do domnio financeiro. As funes
reprodutoras, nacionais e regionais, do circuito de realizao do
capital em escala mundial (centros, periferias, semi-periferias)
expressam uma articulao desigual e combinada.

Apesar de no podermos considerar marxistas os economistas


da CEPAL, o organismo absorveu uma forte identidade de periferia
do capitalismo. Por isso politizou a teoria econmica ainda mais que
o keynesianismo. Seu propsito, na dcada de 50 em diante, passou
a ser diagnosticar o cenrio macroeconmico latino-americano e
formular hipteses de desenvolvimento que livrassem o continente
da condio de dependncia estrutural. Em suma, a misso da
CEPAL foi desenvolver a periferia a partir do planejamento econmico,
se contrapondo instabilidade gerada pela doutrina liberal. Por isso,
alguns objetivos da CEPAL coincidiram com propsitos socialistas.
O subdesenvolvimento pode ser definido, basicamente, por
algumas caractersticas, das quais destaco quatro. Em primeiro lugar, a
herana colonial da economia latino-americana fez perdurar a condio
de dependncia de um centro dinmico fora de alcance, localizado nas
economias industriais. Apesar de alguns ciclos de industrializao, como
no Brasil das dcadas de 30 e 50, a tonalidade predominantemente agroexportadora das economias da regio produziu um sistema com alta
dependncia da flutuao dos preos internacionais e da inelstica demanda
dos compradores. Um segundo elemento, o crescimento desarticulado
e desequilibrado das economias perifricas, gerando disparidades sociais
sem precedentes. O carter espontneo do crescimento a resposta
irrefletida s condies favorveis ou desfavorveis do centro econmico
mundial, e no fruto de demandas endgenas. Essas disparidades
possuem forte impacto geogrfico: retalham pases por dentro gerando
permanentes fluxos migratrios. Terceiro, o subdesenvolvimento foi
caracterizado por um mercado de trabalho extremamente populoso,
como herana histrica do escravismo ou da encomienda: permanente
presso do excedente estrutural de mo de obra sobre os salrios. Um
quarto fator do subdesenvolvimento foi a tendncia deteriorao dos
termos de troca. O baixo valor agregado das mercadorias primrioexportadoras gera a nsia dos grandes produtores para ampliar a
produtividade e a viabilidade comercial. Essa tendncia produz aumento
da oferta, e consequente queda de preos. Ao contrrio, os produtos
industriais produzidos pelas economias do centro contm maior valor
agregado, e o crescimento desequilibrado das economias perifricas
aumenta a demanda para importao, aumentando preos. Esse ciclo
descoordenado de crescimento da oferta dos produtos primrios e da
demanda dos produtos industriais constitui a tendncia deteriorao
dos termos de troca, que tanto lastima as economias perifricas, as
impelindo ao endividamento crnico para sanar os dficits comeciais.
94 - Reforma Agrria e Subdesenvolvimento

Ora,se o subdesenvolvimento esteve definido a partir da diviso


internacional do trabalho, na qual as economias latino-americanas
ocupavam o espao primrio-exportador, este grupo perifrico nunca
foi homogneo. Nos anos de 1960, Celso Furtado (1969: 62-4)
define 3 diferentes categorias de pases primrio-exportadores de
nosso continente: os de produtos agrcolas de clima temperado, os de
produtos agrcolas de clima tropical, e os exportadores de produtos
minerais. Os critrios soam a grosso determinismo climtico, mas
expressam uma diferena talvez mal nomeada, que foi visvel na
metade do sculo passado, entre as periferias latino-americanas.
No serve para anlise do presente, mas para visualizao histrica
das especializaes destas periferias. O primeiro grupo, de clima
temperado (Uruguai, Argentina), se caracterizaria pelo uso extensivo
das terras com a criao de um sistema de transportes que unificou
o mercado interno. Estavam integrados aos setores mais avanados
da economia mundial, absorvendo tecnologia agrcola da Europa.
O segundo grupo, de clima tropical (Brasil, Colmbia, Venezuela,
Equador, Mxico, Caribe e Amrica Central, somando mais da
metade da populao latino-americana) por sua vantagem da maior
produtividade da terra, no exigiu o desenvolvimento tcnico de infraestrutura econmica moderna e no absorveu alta tecnologia agrcola
como o primeiro grupo. Possuiram a marca das monoculturas do
acar, do tabaco, do cacau e do algodo, que em ciclos especializados
cresceram e esmoreceram, levando junto o mercado interno criado
para alimentar a atividade exportadora. Dadas as excees (como o
caf brasileiro), os produtos tropicais no se conectaram a processos
substantivos de desenvolvimento do mercado interno. O terceiro
grupo, de exportadores de minrio (Chile, Per, Bolvia, Mxico e
Venezuela), foi caracterizado por grandes unidades produtivas de alta
tecnologia controladas por grupos estrangeiros, que monopolizavam
as tcnicas avanadas de extrao mineral. A pequena exigncia
de mo de obra separou os grandes empreendimentos extrativos,
capitalizados por fora, de um mercado interno atrofiado.
A definio da plantation, como se consagrou na historiografia
brasileira com Caio Prado Jr, constitui, uma forma produtiva especializada
da funo primrio-exportadora da periferia do capitalismo. Para o
pensamento da CEPAL da dcada de 60, desmontar progressivamente
esta especializao era um passo importante da superao do
subdesenvolvimento. O projeto de industrializao por substituio de
importaes se converteu num potente modelo econmico durante
Joana Salm Vasconcelos - 95

algumas dcadas do sculo XX. Contudo, se foi razoavelmente consensual


(entre economistas no ortodoxos) que para desmontar a especializao
da plantation era preciso industrializar substituindo importaes, nunca
ficou to claro qual seria o melhor modelo de produo agrcola que
superasse o subdesenvolvimento.

As reformas agrrias experimentadas na Amrica Latina


foram forjadas to diretamente pela luta de classes que, pode-se afirmar,
no possuem relao direta com as elaboraes tericas da CEPAL,
apesar de inciderem no desmonte da plantation. As experincias mais
substantivas, infelizmente, foram escassas: Mxico, Bolvia e Cuba.
Estas experincias reorganizaram o pensamento da CEPAL, abrindo
novas hipteses de desenvolvimento. Celso Furtado explica:
Admitia-se, implicitamente, na linha da experincia clssica
europeia, que o setor industrial ao expandir-se atuaria como
plo transformador do conjunto das estruturas tradicionais.
A medida que os obstculos industrializao se acumularam
e que essa ltima mostrou-se menos eficaz do que se havia
esperado como fator de transformao das estruturas, todo
um horizonte de novas preocupaes se abriu (1969: 308).

As elaboraes da CEPAL, relevando-se as divergncias,


so teis ao pensamento marxista. Por isso esse novo horizonte, sob
o olhar marxista, pode ser (livremente) interpretado: como superar o
subdesenvolvimento no mbito da produo agrria, sem mistificar a
industrializao, e com vistas transio econmica para o socialismo? A
experincia encarnada mais profunda deste dilema ocorreu em Cuba.
Reforma agrria em Cuba: entre o aumento produtividade e a
distribuio da riqueza
Cuba, por seu desenvolvimento tardio como colnia espanhola
de altssimo rendimento, no acompanhou as formaes nacionais do
sculo XIX latino-americano. A transferncia dos domnios espanhis
diretamente para tutela dos EUA foi ntida desde 1818. Formouse assim um pas que reuniu todas as mais intensas contradies do
subdesenvolvimento. Em 1958, as propriedades estadunidenses em
Cuba representavam nada menos que 40% da produo aucareira,
90% dos servios de eletricidade e telefonia, 50% das ferrovias e 23%
das indstrias no aucareiras (PERICS, 2004: 30).

A primeira medida de desmonte desta estrutura foi a Lei de


Reforma Agrria, promulgada oficialmente em 17 de maio de 1959.
96 - Reforma Agrria e Subdesenvolvimento

A primeira reforma agrria cubana no era ainda socialista, analisa


o primeiro presidente do Instituto Nacional de Reforma Agrria
(INRA), Carlos Rafael Rodriguez (RODRIGUEZ, 1978: 136). Ainda
que a reforma agrria fosse uma medida essencial do novo governo, as
condies de produo encontradas em 1959 no permitiam a imediata
expropriao das grandes unidades produtivas. A economia da ilha
dependia dos engenhos. Por isso, a reforma agrria teria que conciliar a
distribuio de terras aos camponeses com a produo em larga escala.
a) A grande unidade produtiva e a questo da produtividade da terra
A transformao da produo rural num agregado de
pequenas propriedades camponesas no era compatvel com as
formas produtivas desenvolvidas em Cuba, dependentes da economia
agrria de larga escala. A historiografia produziu algumas elaboraes
diferentes sobre a correlao entre reforma agrria e revoluo
socialista. Paul Sweezy e Leo Huberman afirmam que os principais
objetivos da reforma agrria em Cuba poderiam ser sintetizados em
4 eixos: primeiro, a necessidade de eliminar a monocultura; segundo,
o imperativo do desenvolvimento econmico; terceiro, a realizao
da justia social; e quarto, o aumento da produtividade da terra. A
experincia cubana, ao conjugar estes objetivos, se diferenciou das
outras experincias de reforma agrria, tanto burguesas quanto
socialistas. Essa comparao feita nos seguintes termos:
As reformas agrrias burguesas tiveram sempre como objetivo
dividir os grandes latifndios em pequenas propriedades de
camponeses. Ideias mais radicais, pelo menos a partir de
Marx, rejeitam essa soluo com o duplo argumento de que
a agricultura em pequena escala, feita pelos camponeses,
insoluvelmente ineficiente, e constitui inevitavelmente uma
fora contra revolucionria. A Revoluo Russa, porm,
mostrou as dificuldades que tem de enfrentar qualquer
tentativa de passar diretamente do sistema de latifndios
para alguma forma de agricultura coletiva. Contra a vontade,
os bolchevistas russos foram forados a distribuir a terra a
milhes de pequenos camponeses, e somente depois de
renhidas e sangrentas lutas sociais, e de inmeras perdas de
colheitas, conseguiram estabelecer o sistema de fazendas
coletivas e estatais (1960: 145).

A ineficcia da pequena propriedade agrria foi criticada


por Karl Marx em seu breve texto de 1872, A Nacionalizao da
Joana Salm Vasconcelos - 97

Terra (1982). Nele, Marx afirma que o conhecimento cientfico


que possumos e os meios tcnicos de agricultura que dominamos,
tais como maquinaria, etc, no podem ser aplicados com xito seno
cultivando a terra numa larga escala. A partir da identificao feita
entre a grande unidade agrria e o maior desenvolvimento das foras
produtivas, Marx chega a afirmar que a ordem latifundiria da
Inglaterra est mais perto da nacionalizao progressiva da terra do
que a estrutura agrria retalhada da Frana.
Entretanto, as revolues reais da URSS China se
caracterizaram pelo retalhamento da terra em pequenas propriedades,
uma demanda histrica profunda e incontida dos camponeses que
protagonizaram as aes polticas destas revolues. Isso consolidou
uma viso tradicional etapista da reforma agrria socialista: primeiro
o retalhamento, depois a coletivizao. Mas Cuba surpreendeu a
tradio, porque no houve grande demanda pelo retalhamento total
da terra e houve preservao da grande unidade produtiva.

Apesar da reforma agrria em Cuba preservar a grande


unidade produtiva, a distribuio de terras teve enormes propores.
O capitalismo cubano subutilizava largas extenses de terras que,
ociosas, serviam a dois propsitos: como reserva exploratria para
investimentos futuros e reserva especulativa no mercado internacional.
Fidel Castro afirmou em 1953, durante o clebre julgamento pelo
ataque ao quartel de Moncada, que havia 1,5 bilho de dlares de
capital inativo em Cuba e que a ilha poderia manter uma populao
trs vezes maior em condies de igualdade social (apud SWEEZY;
HUBERMAN, 1960: 66-67). Em maro de 1960, segundo relatrio
de Nuez Jimenez, havia 250 mil acres (aproximadamente 100 mil
hectares) no cultivados que foram integrados produo com vistas
substituio de importaes (apud HUBERMAN; SWEEZY, 1960:
150). Segundo Celso Furtado, a CEPAL avaliou que cerca de 25% da
capacidade da indstria aucareira cubana antes da revoluo estava
propositadamente ociosa, com fins especulativos (FURTADO, 1969:
349). Isso porque o valor da renda da terra seria, segundo Furtado,
proporcionalmente maior que os ganhos da produo na mesma
terra, de modo que era mais lucrativo aos capitalistas cubanos o uso
especulativo da estrutura agrria, do que o seu uso produtivo.
Uma das medidas imediatas da Lei foi a universalizao
do minifndio: a propriedade de 2 caballerias de terra frtil passou
a vigorar oficialmente como mnimo vital para uma famlia de
98 - Reforma Agrria e Subdesenvolvimento

5 pessoas1 e foi garantida gratuitamente pelo novo governo. A


capacidade ociosa da terra convertida pela reforma agrria em
capacidade produtiva responsvel pelo salto de produtividade que
os primeiros anos de socializao da economia representam em
Cuba. A produo de arroz, tomate, milho e feijo aumentaram
extraordinariamente de 1958 a 1962,2 como efeito da poltica de
substituio de importaes agrcolas.

H um impasse entre grande unidade produtiva e pequena


propriedade na reforma agrria cubana? A grande unidade produtiva
foi reflexo da necessidade de desenvolvimento econmico atravs
de uma hiptese de acumulao socialista de riqueza. A pequena
propriedade representou a ruptura com o sistema fundirio
neocolonial, garantindo o direito efetivo de acesso terra s famlias
camponesas. Por trs deste impasse h modelos de desenvolvimento.
Celso Furtado define que a economia de transio em Cuba
possui uma fase redistributivista e outra desenvolvimentista.
So diferentes regimes de acumulao, contraditrios, porm
implementados com vistas a objetivos comuns. Para Furtado, h uma
contradio estrutural entre estes caminhos, pois:
A revoluo cubana comeara por redistribuir a renda
com vistas a elevar o nvel de consumo da grande massa
da populao, o que significa que, no apenas a taxa de
investimento no se elevaria, mas tambm que a capacidade
para importar liberada pela reduo de consumo das classes
ricas foi absorvida pela importao de bens de consumo de
uso geral, ou de produtos intermedirios e matrias primas
para produzi-los dentro do pas (FURTADO, 1969, p. 345).

Alm da melhor forma de uso dos recursos agrrios, outra


grande questo da reforma agrria em Cuba foi a forma de gesto
econmica da transio. Tanto a forma de uso das foras produtivas
existentes no campo, quanto a administrao destes recursos para
a transio econmica so polmicas estratgicas para o governo
revolucionrio.
b) Centralismo ou flexibilizao: o debate da transio
econmica em 1963-64
Em 1963 e 1964, um debate econmico estratgico
polarizou o governo cubano e atingiu patamar internacional. A
divergncia fundamental estava ligada relao da lei do valor
Joana Salm Vasconcelos - 99

e do clculo econmico mercantil com a economia socialista em


gestao. A polmica dividiu o governo, e instaurou um embate
sobre estratgia e possibilidades da economia socialista em pases
subdesenvolvidos com predominncia agrria. De um lado, estavam
Ernesto Guevara (ministro das Indstrias), Luis Alvarez Rom
(ministro das Finanas), Miguel Cosso, Alexis Condena e Mario
Rodriguez Escalona. Junto deles, Ernest Mandel. Do outro lado,
estavam Alberto Mora (ministro do Comrcio Exterior), Marcelo
Fernandez Font (presidente do Banco Nacional), Juan Infante e
Carlos Rafael Rodriguez (presidente do INRA), alm de Charles
Bettelheim. A polmica se concentrava em 4 pontos. Primeiro:
a forte centralizao do planejamento econmico do sistema
oramentrio de financiamento (SOF), elaborado por Guevara
de acordo com o centralismo administrativo da NEP, estava
sendo criticada por dirigentes que defendiam maior flexibilidade
produtiva, atravs da auto gesto e auto financiamento das unidades
econmicas. Segundo: a centralizao do SOF diminua ao mximo
o uso do clculo econmico e das categorias mercantis, uma vez que
o Estado era o nico detentor de um enorme aparato produtivo e
as demandas de cada setor poderiam ser supridas de acordo com o
plano, sem a ferramenta do valor de troca. A flexibilidade defendida
implicava no uso do clculo econmico entre as empresas do Estado,
na restaurao parcial do valor de troca e das relaes mercantis.
Terceiro: a centralizao exigia controle dos preos administrado pelo
Estado. A flexibilidade implicava na lei da oferta e da procura. Quarto:
os defensores do centralismo administrativo se posicionaram contra
a adoo dos estmulos materiais aos trabalhadores para aumento da
produtividade, e a favor da prioridade dos estmulos morais. Aqueles
que defendiam a flexibilidade da transio acreditavam que os
estmulos morais eram idealismo, e os estmulos materiais eram
necessrios para o incremento da produo.

No geral, a historiografia diverge sobre quando o modelo


centralista de gesto do SOF foi alterado, e at mesmo em que
medida foi alterado. Celso Furtado escreve que em 1964 h uma
significativa mudana no modelo de desenvolvimento que passa
concentrar mais investimentos no acar, configurando uma
proposta monocultora vinculada s vantagens comerciais de Cuba
com o bloco socialista, especialmente a Unio Sovitica (1969:
349). Ou seja, a poltica de diversificao produtiva se ameniza
para abrir mais espao econmico ao acar. De fato, em 1964 foi

100 - Reforma Agrria e Subdesenvolvimento

criado o Ministrio da Indstria Aucareira e estabelecido o acordo


comercial de 5 anos de progressivo aumento da venda de acar
cubano para a URSS.

Ernest Mandel acredita que faltam dados a respeito do


desmantelamento do SOF e no arrisca nenhuma periodizao
da gesto econmica (1982: 169). Florestan Fernandes diz: as
cooperativas e seus conselhos administrativos se converteram em
ltimo elo da cadeia e no transmitiam decises, obedeciam-nas
e as punham em prtica (2007: 185). Admite, assim, a vitria do
centralismo como fato mais relevante da realidade produtiva. Michael
Lowy tambm defende que a proposta centralista do SOF foi
vitoriosa, j que Fidel Castro apoiou o modelo em discursos pblicos
em 67 e 68 (1999: 99). Mas Carlos Rafael Rodriguez, presidente
do INRA poca, afirmou que o centralismo administrativo do
SOF no era a melhor forma de gesto da produo rural, j que a
agricultura exige solues cambiantes, de ms a ms, de dia a dia,
e s vezes de hora a hora. Nenhum regulamento pode substituir
a iniciativa consciente e tcnica derivada da anlise e experincias
locais (apud MANDEL, 1982: 274). A crtica programtica de
Rodriguez ao SOF ainda no suficiente para conhecermos com
rigor cientfico as formas de produo estabelecidas de fato no
campo e suas modificaes. Sweezy e Huberman (1960: 153-155),
diferentemente de Lowy e Fernandes, afirmam que a cooperativa
cubana detinha seu prprio excedente, e no o depositava ao Estado,
como determinava o SOF.

A transio em Cuba, no bastasse ser um dilema histrico


por si mesma, se deu em meio a uma encruzilhada do mundo do
socialismo real. A URSS, de 1954 a 1964, esteve sob a liderana de
Nikita Khrushchov, aliado de Yevsei Liberman. Trabalharam juntos
pela flexibilizao da economia sovitica, a partir de medidas como
autonomia financeira s empresas, instaurao da concorrncia,
repartio do lucro como incentivo aos trabalhadores, salrios
vinculados lucratividade, impostos sobre a propriedade, novas
tcnicas de marketing, estmulo aos consumismo, re-instaurao lei
do valor como critrio produtivo. Essa poltica descentralizadora
foi chamada de Libermanismo (PERICS, 2004: 95). A retrica
oficial que acompanhou esta reforma econmica foi um espelho
invertido da realidade: seriam os passos de transio do socialismo
ao comunismo? Uma nova etapa em que o poder econmico
retornava diretamente aos trabalhadores e o Estado se tornava
Joana Salm Vasconcelos - 101

menos importante como agente planejador? No. O desmonte do


centralismo autoritrio da economia sovitica parece ter, mais que
qualquer outra coisa, criado condies favorveis forma de produo
tipicamente capitalista.

A reforma agrria em Cuba se enredou totalmente


neste debate. Qual seria a melhor forma de gesto econmica da
propriedade agrria na transio ao socialismo? O presente artigo
no pretende responder a isso. Pelo contrrio, elaborar a pergunta
profcua talvez seja o objetivo mais desafiador da cincia histrica.
Notas
1.
2.

Cada caballeria equivale, aproximadamente, a 13,45 hectares.


(FERNANDES, 2007: 59). Os dados de Luis Bernardo Perics diferem: ele
fala em 2 caballerias por pessoa (PERICS, 2004: 36).
Arroz: de 163 mil para 300 mil toneladas; tomates: de 44 mil para 116 mil
toneladas; milho: de 134 mil para 257 mil toneladas; feijo: de 33 mil para
78 mil toneladas (FURTADO, 1969: 342).

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102 - Reforma Agrria e Subdesenvolvimento

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Manoel Marulanda

poltica

Notas sobre a origem das


FARC-EP

Ana Carolina Ramos e Silva

Mestranda em Sociologia pelo Programa de


Ps-graduao em Sociologia da Universidade
Federal de Gois (UFG)

A histria colombiana apresenta um grau de dramaticidade


to intenso que seus historiadores classificam seus perodos como
etapas da Violncia com v maisculo. Este artigo visa to
somente dar uma ideia geral do significado dessa violncia pelo
ponto de vista daqueles que a testemunharam.
O foco central o de explicar a origem do principal
movimento guerrilheiro do pas as Foras Armadas Revolucionrias
da Colmbia Exrcito do Povo (FARC-EP) cuja fundao foi no
ano de 1966, assim como traar um breve panorama dos principais
movimentos de esquerda que lhe foram contemporneos. Para isso
feita uma retrospectiva dos processos originrios da luta armada a
partir da dcada de 1930.
I
A luta armada na Colmbia originou-se como uma resposta
vinda dos prprios camponeses diante dos resultados de um rduo
processo de lutas. Seus antecedentes esto na dcada de 1930, poca
em que o Partido Liberal (PL) chegou ao poder e por meio de
reformas conseguiu conter o movimento das ligas camponesas que

pressionavam pela reforma agrria contra a grande propriedade e


foram lideradas por Gaitn1 e pelo Partido Comunista Colombiano
(PCC).2 Tais reivindicaes foram parcialmente atendidas durante
governo liberal, denominado Revoluo em Marcha, de Alfonso Lpez
Pumarejo. Em seu mandato promulgou-se a Lei de Terras (Lei 200 de
1936).3 No entanto essa concesso institucional foi abandonada pela
promulgao da Lei 100 de 19444 que revogou os estatutos reformistas
de 1936 no que tange questo agrria, retornando os embates entre
camponeses e latifundirios; liberais e conservadores. Para se ter uma
ideia do grau de rivalidade entre liberais e conservadores nesta poca,
veja-se a afirmao a seguir:
O Partido Conservador aliado Igreja e em ao com grupos
abertamente fascistas semeou na populao o esprito sectrio
atravs de um sistemtico apontamento aos liberais como
ateus e comunistas, e em uma suposta defesa dos valores
cristos foram construindo o dio que irrigaria com sangue
a histria da violncia dos anos seguintes. Na medida em
que as contradies entre os partidos cresciam, os discursos
e as prticas polticas se faziam mais violentos: comeou com
ameaa verbal e foram se instituindo formas de organizao
encarregadas de agenciar atos de violncia contra a populao
liberal em uma espiral que logo se fez incontrolvel.
No Partido Conservador foram se constituindo grupos de
choque como os denominados Centros de Ao Conservadora
que maneira dos cruzados enfrentavam os liberais atravs
de mecanismos violentos. Agruparam-se intelectuais
conservadores que se constituram no que se conheceu como
o grupo Os Leopardos, que assumiram a plenitude da defesa
do pensamento da extrema direita, expressaram suas simpatias
pelo fascismo de Mussolini e Hitler e desenvolveram em praa
pblica, na imprensa e no Parlamento uma furiosa oposio ao
liberalismo (GALLEGO, 2008, p.29, traduo prpria).

Em 1946 o Partido Conservador ganhou as eleies


colombianas e em 1948 esses embates assumiram feies dramticas.
Ao final do ltimo mandato liberal de Carlos Lleras Camargo, o PL
encontrava-se enfraquecido por uma diviso interna gerada pelos
desentendimentos acerca de quem seria o candidato presidencial
nas eleies de 1946: Gabriel Turbay ou Jorge Elicer Gaitn.
Enfraquecido, o PL derrotado nas urnas pelo Partido Conservador,
que elegeu Mariano Ospina Prez.
106 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

Em 1947, a diviso do PL superada com a nomeao de


Gaitn como chefe nico do Diretrio Nacional Liberal. Devido
sua popularidade junto s massas, Gaitn passou a ser uma ameaa
continuidade dos conservadores no poder. A partir de ento,
intensificou-se a perseguio por parte dos conservadores contra
os adeptos do PL, especialmente nas regies agrrias, o que levou
Gaitn, como resposta, a organizar em fevereiro de 1948 a Marcha do
Silencio em protesto aos ataques. Dias depois, em 9 de abril de 1948,
Gaitn foi assassinado no centro de Bogot, o que deu incio ao
processo de insurreio popular que ficou conhecido como Bogotazo
e ao nefasto perodo da histria colombiana que muitos autores
convencionaram chamar de Violncia.
II
Se por um lado, como um rastilho de plvora, o Bogotazo gerou
nas reas urbanas uma onda de insurreio imediata caracterizada por
saqueios e depredaes, por outro, no campo, iniciou-se um levante
popular que foi servindo como estmulo organizao dos primeiros
grupos armados contrrios ao Partido Conservador. O depoimento
a seguir traz imagens vivas do impacto gerado pelo assassinato de
Gaitn numa pequena aldeia rural:
Isso foi o que ocorreu em 9 de abril. J havia descarregado e
colocado o queijo nas bancas quando se tomou conhecimento
do assassinato de Gaitn. Soou como uma m notcia e
atrapalhou o almoo, porque todo mundo saiu para a praa para
ouvir o nico rdio que havia e que era de outro chefe liberal
de Ceiln, um tal Gallego, muito distinto o homem e muito
bom liberal. Tanto que tirou o rdio para que todo mundo
ouvisse as tagarelices vindas das emissoras de rdio. Na praa,
as coisas esquentaram quando Don Gallego comeou a beber
seu Hennessy [conhaque] e todo o povo seguiu seu exemplo.
Ento, comearam os vivas ao partido e os morras a Laureano
que saiam de nossas entranhas. Os vivas e os morras foram
crescendo: nomeando prefeito e destituindo polcias, pedindo
armas e assaltando bares para tomar aguardente. Por trs dias
beberam e governaram. At que na segunda chegou o exrcito
em dois jipes e prenderam 180 liberais (MOLANO, 2009: 42,
traduo prpria).

Em 1948, a violncia poltica na Colmbia chegou sua


mxima intensidade, difundindo-se por quase todo o pas. Segundo
Ana Carolina Ramos e Silva - 107

Snchez (1989), sua manifestao afetou irreversivelmente a vida,


a integridade fsica e os bens de milhares de colombianos. Os
acontecimentos desta poca conferem um carter extremo a este
processo, pois um dos fenmenos que exerceu maior impacto sobre
a memria coletiva foi o terror de Estado movido por um forte
sectarismo oriundo das classes dominantes latifundirias.
A feio mais dramtica desse perodo foram os assassinatos
em massa. No somente pelo nmero de vtimas, mas tambm pelos
atrozes rituais de tortura empregados.5 Os camponeses que no eram
assassinados eram submetidos a todo tipo de agresso, como saqueios,
incndios, destruio de casas e expulso de suas propriedades.
Ocorria uma incessante guerra que estabeleceu linhas estritas de
demarcao poltica, cuja transgresso tinha consequncias fatais. O
tipo de controle exercido pelo Partido Conservador sobre os adeptos
do PL pode ser percebido pelo relato de um combatente liberal que
atuou no perodo:
O prefeito de Roldanillo convocou uma reunio e disse que
quem quisesse voltar poderia voltar sempre, quando assinasse
um certificado no qual renunciasse a sua filiao liberal e se
comprometesse a votar pelo Partido Conservador. Era uma
verdadeira cdula, um salvo-conduto: quem no a tivesse era
liberal. [...] O papelzinho tornou-se requisito para voltar para
a famlia e sem t-lo no bolso no se poderia trabalhar na
terra. Era tudo: ttulo de propriedade, recomendao, seguro
de vida. Muitos, mas muitos tiveram que assin-la, ou melhor,
pr sua digital (MOLANO, 2009: 46-47, traduo prpria).

Em certas operaes atuavam os pjaros pessoas contratadas


para matar camponeses que contavam com o apoio de uma
extensa rede e a cumplicidade das autoridades, dos latifundirios
e de figuras ligadas ao governo.6 Estes grupos atuavam por todo o
pas, mas especialmente nas reas de minifndios do Sul, reas onde
o movimento demogrfico propiciou o surgimento de uma classe
de camponeses dedicados principalmente ao cultivo de caf em
pequenas propriedades.
O campo estava tomado pela barbrie e com isso sua estrutura
agrria foi profundamente modificada. Milhares de camponeses
abandonaram suas propriedades ou as venderam forosamente por
preos irrisrios. Cresceu o nmero de correntes migratrias do
campo para a cidade, o exrcito de desempregados originado pelo
108 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

fenmeno da migrao passou a engrossar as filas das guerrilhas.


Segundo Kalmanovitz (2001), entre 1948 e 1953 o nmero de
mortos foi provavelmente de 200 a 300 mil e o nmero de migrantes
foi trs ou quatro vezes superior a tal cifra. O depoimento de Isauro
Yosa descreve a necessidade de fuga de milhares de camponeses e
suas famlias, trazendo um dado interessante sobre a presena da
Coluna Prestes no imaginrio dos comunistas colombianos:
Entre Ambeima e Rio Blanco eram dois dias de caminhada.
Mas andar com famlias e bagagens era uma histria diferente.
A primeira coisa que fizemos foi construir em El Davis, acima
de Rio Blanco, um Quartel-General e abrigos para as famlias.
Mandei vinte homens para trabalhar no ponto de chegada
enquanto ns avanvamos pela trilha com as pessoas. Mais
de duzentas famlias. Iam desde avs at galinhas. Milhares
de pessoas. Dividimo-nos em vrias comisses defendidas
por fuzileiros [...]. Os fuzileiros iam na frente e pelos lados;
as famlias no centro. Assim nasceu a coluna que batizamos
com o nome de Lus Carlos Prestes, um comunista brasileiro
(MOLANO, 2009: 25, traduo prpria).

A violncia tomou conta do pas e diante da impossibilidade


de cont-la foi declarado estado de stio em novembro de 1949.
Neste ano deveriam ocorrer eleies para o Congresso, mas os
liberais abstiveram-se devido aos constantes ataques sofridos contra
seus membros. Inclusive os camponeses liberais deixaram de votar,
conforme o relato de um combatente:
O clima de Ceiln era pesado, a tenso era imensa; as eleies
de Laureano se aproximavam e ns, liberais, havamos decidido
no sair para votar porque estavam nos matando. Assim foi
pior, porque quem no tivesse o comprovante de votao era
liberal, em algumas partes como no norte do Vale, Quindo e
Tolima, isso era um atestado de bito. O Partido Liberal levou
sua gente a converter-se em conservadores ou em defuntos.
Escolhemos nos defender. (MOLANO, 2009: 48, traduo
prpria).

Com a absteno dos liberais, em 7 de agosto de 1950,


Laureano Gmez do Partido Conservador tomou posse da
presidncia da Repblica e seu governo foi marcado pelo aumento
da represso e perseguio aos liberais.
Diante da incapacidade do PL em conter a violncia no
campo por meio das instituies polticas, em muitas regies iniciouAna Carolina Ramos e Silva - 109

se a resistncia armada no campo. Para os camponeses liberais, que


sofriam uma perseguio implacvel, a resistncia armada se imps
de forma inevitvel:
O plano de tornar-nos minoria matando-nos para ganhar as
eleies era verdade, o terror, a morte, o sentir que algum
pode te matar por ter nascido liberal, dava muito temor, muito
medo, e o medo a me da violncia. Os godos7 produziram
o medo e a ns restou lutar. [...] A violncia era a nica sada
(MOLANO, 2009: 59, traduo prpria).

Em sua maioria, as primeiras guerrilhas eram compostas


por liberais. A de maior proporo foi a dos Llanos Orientales
comandada por Guadalupe Salcedo, que se fortaleceu at 1952.
Em outra regio da Colmbia, no sul de Tolima, estava o ncleo
de combatentes comandado por Isauro Yosa, comunista,8 que
organizou os camponeses, sob orientao do PCC em autodefesas.
Segundo Gilberto Vieira, dirigente histrico do Partido Comunista
Colombiano:
A autodefesa de massas uma peculiaridade do movimento
popular da Colmbia. parte integrante do processo
revolucionrio, da luta das massas populares contra a reao
e o imperialismo, pela democracia, libertao nacional e o
progresso social. Nas condies da Colmbia, a autodefesa de
massas uma forma mista da via pacfica e da via no pacfica,
que responde s peculiaridades deste pas. A autodefesa surgiu
e se desenvolveu como uma necessidade das massas, na luta
contra o terror reacionrio, praticada em muitas regies do pas
em resposta a todas as formas de violncia terrorista da reao.
A autodefesa de massas profundamente democrtica, quem
a forma e a dirige so os prprios trabalhadores. (VIEIRA,
1963: 11, traduo prpria).

Aps sofrer severas ameaas por parte dos latifundirios da


regio, o ncleo de Isauro Yosa foi duramente golpeado por pjaros
e chulavitas9 e depois desta intensa represso, organizaram a Coluna
em Marcha para fugir dos ataques e estabelecer contatos com a
guerrilha liberal dos Loaiza, que estava operando mais ao sul. Foi
assim que o grupo de Isauro Yosa tomou contato com as guerrilhas
liberais, onde atuava Pedro Antonio Marn, ou Manuel Marulanda
Vlez, ou ainda Tirofijo.
As relaes entre a guerrilha comunista de Yosa e as
guerrilhas liberais comandadas por Marulanda e Ciro Trujillo foram
110 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

se estreitando, principalmente porque Marulanda passou a admirar


a forma organizativa dos comunistas, semelhante a uma comuna
agrria, com a prevalncia do trabalho coletivo. Conforme a descrio
feita por um guerrilheiro liberal em entrevista a Molano (2009: 64,
traduo prpria):
Eles estavam melhor organizados que ns e formavam um
bloco nico em torno de um comando central [...]. No comando
se vivia como militar dias e noites. Construam fortificaes,
tinham senha para entrar e sair, horrio para o banho e para a
comida, hora de cuidar das armas e hora de instruo militar.
Nas sextas, sbados e domingos, davam conferncias pblicas
para explicar os motivos da luta, as razes da violncia, a
causa dos ricos e dos pobres. Eles trabalhavam todos juntos
na economia, tinham plantaes coletivas e o que colhiam era
para alimentar a todos [...]. Essa era uma diferena sumamente
grande em relao aos liberais.

Alm disso, Marulanda passou a discordar dos liberais,


principalmente com relao distribuio de bens e armas
conquistados em combate:
Marulanda nunca aceitou a maneira de distribuir as armas que
tinham os liberais e foi por isso que comeou a ser amigo dos
comunistas. Todos estvamos de acordo com o que ele dizia.
A foi que comeou o problema. Entre liberais e comunistas
havia diferenas sumamente grandes, comeando por todas as
coisas (MOLANO, 2009: 69, traduo prpria).

Se por um lado a aproximao de Marulanda e seu grupo


aos comunistas abriu um novo horizonte para a organizao de
luta,10 por outro, foram se acirrando as diferenas com os liberais, o
que gerou divises e embates no interior do movimento guerrilheiro
do sul de Tolima.
Iniciado o ano de 1953, o cenrio poltico colombiano
encontrava-se destroado pela diviso no seio dos partidos
tradicionais e pelo desgaste ocasionado por uma situao de guerra
civil. Neste momento, chegou ao poder o general Gustavo Rojas
Pinilla, em 13 de junho, por meio de um golpe de militar, o que
representou uma soluo de momento para o conflito no interior
das classes dominantes. No poder, Rojas Pinilla empreendeu a tarefa
de pacificar o pas, desarmando as guerrilhas com o oferecimento
de uma anistia geral e incondicional. A guerrilha liberal dos Llanos
Ana Carolina Ramos e Silva - 111

Orientales cedeu anistia. No entanto, a guerrilha e os movimentos


de autodefesa que estavam sob orientao do PCC no entregaram
as armas e no corroboraram a anistia.
Com esta brusca mudana do cenrio poltico colombiano,
o Comit Central do PCC enviou de Bogot dois de seus quadros
polticos ao sul de Tolima, Martn Camargo e Pedro Vsquez. No
momento de sua chegada, e sob suas orientaes, decidiu-se que o
movimento permaneceria inativo militarmente, mas sem entrega das
armas. Conforme Marulanda:
Explicou-se nas reunies que o golpe militar aconteceu em
um momento difcil na histria do nosso movimento, que
como conjuntura era negativo, porque os inimigos da regio
se aproveitariam dele para fortalecerem-se e ampliarem sua
influncia. Foi dito terminantemente que no haveria entrega
das armas, nem entrega de pessoal, que se esperaria um tempo
prudente para tratar do problema [...] (ALAPE, 2004: 199,
traduo prpria).

Mesmo com a anistia, a violncia poltica continuou e os


conflitos armados no cessaram totalmente em muitas regies do
pas, principalmente porque o governo passou a financiar alguns
guerrilheiros liberais anistiados (que ficaram conhecidos como
limpios) para atacar ncleos armados remanescentes (os comunes). El
Davis regio do sul de Tolima onde estava concentrado o grupo
de Marulanda foi vrias vezes atacada pelos limpios. Marulanda
e Charro Negro, juntamente com seus homens, decidiram partir
de El Davis e se deslocaram para Villarrica. No entanto, a maioria
da populao de El Davis optou por deixar a guerrilha. Sobraram
apenas nove dos oitocentos combatentes.
Os remanescentes organizaram ento a II Conferncia
Regional do Sul, em outubro de 1953, na qual foi decidido que se
criariam comisses que atuariam como destacamentos mveis, tendo
como perspectiva a criao de movimentos de massas em regies de
influncia comunista. O primeiro destes grupos, sob o comando de
Jacobo Pras Alape (Charro Negro) e Manuel Marulanda, travou
duros embates com os limpios e com o exrcito regular, e terminaram
por se instalar em Riochiquito. O segundo, sob o comando de
Andrs Bermdez, foi aniquilado em poucos dias pelos limpios. O
terceiro, sob o comando de Jos Castaeda e Isauro Yosa, instalouse em Villarrica, e esta regio passou a ser palco de acontecimentos
112 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

que levaram conformao de guerrilhas, desta vez, com um claro


contedo revolucionrio.
Em 1955, o PCC posto na ilegalidade, e as regies onde
exercia influncia foram consideradas zonas de guerra. Em abril do
mesmo ano o governo de Rojas Pinilla iniciou as operaes militares
em Villarrica, na qual empregou 5000 soldados para enfrentar 800
combatentes. Em solidariedade aos camponeses agredidos, o PCC
orientou os grupos de autodefesa do sul de Tolima a se reativarem
como guerrilhas mveis. A 31o Plenria do Comit Central estabelecia
que: Nas zonas agredidas pela poltica oficial de sangue e fogo que se
acelera, a ao guerrilheira ser convertida na forma principal de luta das
massas camponesas (Documentos Polticos, 1957: 100, grifos do autor,
traduo prpria).
Com o que foi denominado Guerra de Villarrica, teve incio
uma segunda onda de ataques sistemticos aos comunes, o que obrigou
os camponeses a se deslocarem novamente, desta vez para regies
quase desabitadas de Sumapaz, Guayabero, El Pato e Marquetalia.
Nesta regio, organizaram-se em unidades de trabalho agrcola.
Com o fim do governo militar de Rojas Pinilla, em 1957,
conservadores e liberais formaram um governo de coalizo chamado
Frente Nacional, que foi levado ao poder por um plebiscito popular
que recomps a antiga estrutura bipartidria e estabeleceu o consenso
entre as classes dominantes. Essa soluo poltica implicou na
diviso milimtrica do poder entre o partido conservador e o liberal,
durante 16 anos (19581974), abrangendo todos os cargos polticos
e burocrticos do Estado.
Nesta transio, os grupos guerrilheiros de Marquetalia,
Guayabero, El Pato e Riochiquito passaram por uma significativa
modificao: de movimento guerrilheiro converteram-se em
movimento agrrio, e voltaram condio de autodefesas. Em
suas reas de influncia vo organizar e defender os assentamentos
camponeses, repartir terras entre seus habitantes, criar mecanismos de
trabalho coletivo. Conforme Gallego (2008: 61, traduo prpria):
O Novo Movimento Agrrio se deu por sua prpria direo,
ajustado s caractersticas de sua nova condio, no mais
militar, mas agrria. Os antigos guerrilheiros se transformaram
em dirigentes agrrios, camponeses e trabalhadores do campo.
Nestas circunstncias, todos os habitantes da regio comearam
a trabalhar nos servios do campo, de tal maneira que um ano
Ana Carolina Ramos e Silva - 113

depois, em 1958, a selva da regio havia sido devastada e em


seu lugar se desenvolvia uma agricultura pujante e prspera,
e as propriedades iam se abrindo e se consolidando como
espaos familiares e de produo.

Neste contexto, um fato histrico foi determinante para


a esquerda colombiana, o triunfo da Revoluo Cubana (1959),
sinalizando que nos pases latino-americanos a luta revolucionria
poderia ser iniciada no campo. No entanto, se por um lado o triunfo
da Revoluo liderada por Fidel Castro representou um sopro de
esperana para a massa camponesa colombiana, para as classes
dominantes representou o perigo de ter as cordilheiras da Colmbia
convertidas em uma nova Sierra Maestra.11
Diante desse novo fator, o governo colombiano, com o apoio
direto do Pentgono e da CIA, iniciou o Plano Laso (Latin American
Segurity Operacion), o qual financiou e orientou o governo colombiano
no combate quelas que foram designadas pejorativamente como
Repblicas Independentes. Os ataques iniciados em 18 de maio de
1964 contaram com a utilizao de um aparato militar moderno e um
amplo contingente de tropas, que levaram a cabo uma guerra brutal
de aniquilamento, constituda por bombardeios, ataques por terra,
bombas de Napalm, dentre outros meios.
Aps maio de 1964, os camponeses iro promover uma
mudana ttica, saindo da condio de autodefesas e convertendo-se
em grupos de guerrilhas mveis. Esta deciso foi tomada durante a
Assembleia Geral, celebrada de 17 a 20 de maio de 1964, cujo principal
propsito foi analisar qual seria a ttica de luta a ser utilizada naquela
conjuntura. Decidiram pela evacuao das famlias, adoo da ttica de
mobilidade total, no aceitao da guerra de posio, transformao das
autodefesas em guerrilhas mveis, e por uma nova forma organizativa
aos corpos armados. (GUZMN, 1968: 425, traduo prpria).
Assim, em 20 de julho de 1964, realizaram a Conferncia do Bloco
Sul, que reuniu guerrilheiros de outras reas tambm atacadas, como
El Pato e Guayabero, a qual traou as linhas gerais do que mais tarde
seriam as Foras Armadas Revolucionrias da Colmbia (FARC), e
lanou o histrico Programa Agrrio constitutivo da luta guerrilheira,
que serve de parmetro para as FARC-EP at a atualidade.
Algumas semanas depois desta primeira Conferncia, a
regio de Riochiquito, onde estava o Movimento Agrrio comandado
por Ciro Trujillo foi tambm duramente golpeada. Riochiquito
114 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

apresentava uma particularidade que deve ser ressaltada: ali a


resistncia indgena mesclou-se resistncia camponesa, formando
um coeso grupo de ao comunal, como demonstra Gallego (2008:
73, traduo prpria):
A situao de Riochiquito no era fcil para a consolidao
de um movimento agrrio que fosse uma organizao de
autodefesa camponesa. Ali, havia a necessidade de fazer
coincidir os interesses e a cultura de dois grupos claramente
diferenciados: os camponeses brancos e as comunidades
nativas indgenas. Os camponeses brancos se vincularam
terra em um processo lento, pelo caminho da compra de
seus direitos dos indgenas e suas comunidades, adquirindo
fundos e estabelecendo companhias. Com esta conduta
orientada e defendida pelo Movimento, buscava-se que os
indgenas comprovassem o respeito com que eram tratados
seus interesses e a solidariedade com que se defendiam seus
direitos.

Alm disso, Gallego (2008) salienta que o trabalho social


e poltico que o movimento agrrio desenvolveu em Riochiquito
levou criao de escolas mistas para crianas em idade escolar e
para adultos. Tudo acompanhado por trabalhos que respeitavam a
cultura de cada grupo. No entanto, essas atividades eram diversas
vezes interrompidas pelo ataque de militares e pjaros.
Depois dos duros golpes nos movimentos agrrios
das regies de Marquetalia, Guayabero, El Pato, Riochiquito
empreendidos pelo governo, os guerrilheiros tiveram que se dispersar
por todo territrio colombiano. Diante disso, viram a necessidade de
convocar a Segunda Conferncia das Guerrilhas do Bloco Sul, na qual
foram fundadas oficialmente as Foras Armadas Revolucionrias da
Colmbia FARC.
III
Conforme demonstra a histria contempornea da
Colmbia, as FARC se constituram no mais importante movimento
guerrilheiro do pas, desenvolvendo um projeto de transformao
social, apoiado teoricamente no marxismo, que seria realizado a
partir da tomada do poder do Estado. No entanto, a dcada de 1960,
especialmente entre 1964 e 1966, foi caracterizada pela ampliao
dos agrupamentos de esquerda no pas que se contrapunham ao
domnio de conservadores e liberais, e que tiveram peso importante
Ana Carolina Ramos e Silva - 115

nas lutas sociais e polticas colombianas. Essa diversificao ter


implicaes no espectro poltico-ideolgico, com o marxismo, em
suas vrias tendncias (leninismo, maosmo, marxismo cristo, etc.),
fazendo-se cada vez mais presente e mesclando-se s tendncias
polticas prprias realidade colombiana.
As principais organizaes que se formaram no campo
da esquerda, alm das FARC, foram o MOEC (Movimento
Operrio Estudantil da Colmbia), o MOIR (Movimento Operrio
Independente e Revolucionrio), a FUAR (Frente Unida de Ao
Revolucionria), a Frente Unida Popular, o ELN (Exrcito de
Libertao Nacional) e o PCC- ML (Partido Comunista da Colmbia
Marxista-Leninista), cujo brao armado era o EPL (Exrcito
Popular de Libertao). O denominador comum entre esses grupos
foi a opo pela luta armada como principal forma de ao poltica.
De inspirao cubana, O MOEC, fundado em 1959, era
formado, basicamente, por ncleos de jovens que militaram na luta
estudantil dos anos 1958/59 e por uma srie de quadros que se
afastaram do PCC por discordarem de sua linha de ao poltica,
alm de ex-guerrilheiros que participaram das lutas camponesas. Sua
atuao foi predominantemente urbana, expressando uma tendncia
insurrecional de tomada do poder muito semelhante ao que seria
caracterizado posteriormente como foquismo, com vrios de seus
integrantes promovendo aes armadas em solidariedade a Cuba,
em vrias cidades da Colmbia. De sua dissoluo que ir surgir o
MOIR. Constitudo com um novo nome, esse grupo transitar do
foquismo ao maosmo, sendo um dos principais representantes dessa
tendncia na esquerda colombiana dos anos 1970. Vale ressaltar que
o MOIR ainda existe e atua na poltica colombiana integrado ao
Plo Democrtico Alternativo (PDA).12
A FUAR foi outra organizao de inspirao cubana,
fundada em 1962 por Luis Emiro Valencia e sua esposa Gloria
Gaitn, filha de Jorge Elicer Gaitn. Seus militantes, em sua
maioria procedentes das classes mdias altas, incluindo militantes
polticos que foram ligados ao General Rojas Pinilla, realizaram
pequenas aes guerrilheiras, mas sem maior insero social, o que
levou ao fracasso do movimento. Mas, as organizaes de esquerda
mais significativas foram a Frente Unida Popular, o ELN e o EPL.
A Frente Unida Popular foi um movimento poltico
heterogneo, composto basicamente por setores da pequena burguesia
116 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

intelectuais e estudantes e proletrios urbanos, propondo-se


como um movimento pluralista e de unidade popular, capaz de se
constituir como uma alternativa poltica aos partidos Liberal e
Conservador. Seu lder, o padre Camilo Torres (19291966), oriundo
de uma aristocrtica famlia de Bogot, propunha a mudana da
estrutura do poder poltico em favor da maioria, a partir de aes
como: reforma agrria, reforma urbana e nacionalizao da economia.
Esta plataforma produziu um grande impacto em todas as esferas
sociais e Camilo Torres projetou-se como um lder nacional. Devido
sua ascenso poltica, Camilo Torres passou a ser pressionado e
perseguido pelo governo do conservador Guillermo Len Valencia,
o que o levou a optar pelo ingresso no Exrcito de Libertao
Nacional (ELN), que tambm fora fundado em 1965. A figura de
Camilo Torres interessante por unir duas esferas que primeira
vista parecem antagnicas e inconciliveis: religio e revoluo. Seu
pensamento expressou a juno entre duas tendncias que teriam um
papel extremamente importante nas lutas sociais da Amrica Latina
do perodo, marxismo e religio. Segundo Torres:
Eu optei pelo cristianismo, por considerar que nele se
encontrava a forma mais pura de servir a meu prximo. Fui
eleito por Cristo para ser sacerdote eternamente, motivado
pelo desejo de me entregar em tempo integral ao amor aos
meus semelhantes. Como socilogo, quis que esse amor fosse
eficaz, mediante a tcnica e a cincia. Ao analisar a sociedade
colombiana me dei conta da necessidade de uma revoluo
para poder dar de comer ao faminto, de beber ao sedento, vestir
o desnudo e realizar o bem-estar para a maioria do nosso povo.
Acredito que a luta revolucionria uma luta crist e sacerdotal.
Somente por ela, nas circunstncias concretas de nossa ptria,
podemos realizar o amor que os homens devem ter a seus
prximos. O que me faz sacerdote a revoluo social, que a
essncia do cristianismo. (GUZMAN, 1968, p. 494).

No entanto, apesar de propor-se como fora aglutinadora


dos grupos de oposio Frente Nacional, a Frente Unida no logrou
seu intento optando pela luta armada como forma de combate
ao regime, quando Camilo Torres ingressa no ELN. Em 1965, ele
tentou aproximar-se do grupo guerrilheiro de Marulanda, mas sem
sucesso. Camilo Torres morreu em 1966 em seu primeiro combate.
Com sua morte, a Frente Unida desapareceu, mas o ELN prosseguiu
na luta. Apesar de ser um dos um dos mrtires do ELN, Camilo
Torres no foi seu fundador.
Ana Carolina Ramos e Silva - 117

O ELN foi fundado em 7 de fevereiro de 1965, sendo


formado inicialmente por universitrios, alguns antigos militantes
do MOEC, trabalhadores urbanos e camponeses. Seu batismo foi a
tomada da aldeia de Simacota, na regio de Santander, ocasio em
que lanaram seu manifesto fundador. Liderados por Fabio Vsquez
Castao, que fora treinado em Cuba por Fidel Castro, e Victor
Medina Morn, o ELN ir se constituir na segunda agrupao
guerrilheira em importncia na Colmbia. Com influncia do
marxismo, da revoluo cubana e tambm das ideias de Camilo
Torres, o ELN propunha uma revoluo popular que rompesse com
o imperialismo e o domnio conservador, promovendo a reforma
agrria e o desenvolvimento econmico por meio da estatizao da
economia.
Por fim, o EPL, que surge como o brao armado do PCC-ML,
fundado em 1965 e dissidncia do Partido Comunista Colombiano.
Assim como os integrantes do MOEC e do MOIR, tambm fizeram
a crtica linha de ao adotada pelo PCC, considerada reformista
por muitos, e tendo por parmetro a revoluo chinesa liderada
por Mao Ts-tung. A linha de ao proposta foi a guerra popular
prolongada, que o EPL passaria a empregar a partir do ano de 1968,
especialmente nas regies de Crdoba e Antioquia.
Notas
1.

2.

3.

Jorge Elicer Gaitn, figura emblemtica do Partido Liberal, em 1934


trilhou um caminho alternativo hegemonia bipartidria no cenrio
poltico colombiano por meio da fundao da UNIR (Unin Nacional
Izquierdista Revolucionaria). Ele ganhou bastante popularidade entre as
ligas camponesas da dcada de 1930.

Fundado em 1930 por dissidentes do Partido Revolucionrio Socialista.


Tambm exerceu forte influncia nas ligas camponesas de 1930. Conforme
Campos: Em finais de 1936 a luta estava mais desenvolvida, os camponeses
haviam sado luz pblica com uma srie de organizaes. Por exemplo, as
ligas camponesas estavam organizadas em cada setor e essas ligas causaram
uma efervescncia muito grande em toda gente ligada ao movimento dos
colonos. Por trs das ligas, naturalmente vinha a organizao do partido, dos
comunistas que promoviam manifestaes gigantescas [...] (CAMPOS, s/d
apud FARJADO, 1979: 60, traduo prpria).
Uma ideia do significado desta Lei para os camponeses colombianos pode ser
percebida pelo depoimento do guerrilheiro Isauro Yosa: Por essas datas saiu a
Lei de Terras, a famosa Lei 200 de 1936. Eu era vereador e comemorvamos o
triunfo como se ns a tivssemos escrito. As ligas cresceram e os patres tornaram-

118 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

4.

5.

6.

7.
8.

9.

10.
11.

12.

se amargos, muito amargos. At o ponto de importar lacaios para domesticar


comunistas. Com essa lei, comeou-se a ouvir falar dos comunistas e apontar-nos
como tal. A lei era severa: dava 24 horas ao proprietrio para denunciar a invaso
de um prdio. Tratava-se de madrugar e plantar para que quando amanhecesse a
terra fosse de algum (MOLANO, 2009: 18, traduo prpria).

Segundo Gallego (2008: 25, traduo prpria): Durante essa poca, os


proprietrios lanaram a contra-ofensiva reforma agrria de 1936 atravs
da Sociedade de Agricultores da Colmbia (SAC) e Associao Patronal
Econmica Nacional (APEN) e lograram a expedio da Lei 100, de
1944.
Para que no nascessem filhos do partido opositor, uma modalidade de
tortura era a de no deixar nem a semente. Guzmn (1968: 330, traduo
prpria) a descreve: Para no deixar nem a semente, as mulheres prximas
do parto so barbaramente violadas. Fazem uma espcie de cesria, trocando
o feto por um galo, ou, arrancam seu filho e depois o despedaam na sua
presena; ou arrancam o feto das entranhas mostrando-o em seguida ao pai
antes de mat-lo.

O depoimento de um guerrilheiro do perodo ilustrativo: Sabia-se que os


pjaros eram conservadores, mas no sabamos que eram pagos pelo governo,
mesmo que todo mundo suspeitasse. [...] o que mais doa era saber que as
autoridades tinham as mos untadas com esse sangue que comeava a jorrar
(MOLANO, 2009: 44- 46, traduo prpria).
Como eram chamados os conservadores.

Em entrevista a Alfredo Molano, Isauro Yosa conta como passou de liberal


para comunista: Veio a eleio de Santos e perdemos as bancas no Conselho.
A UNIR, partido de Gaitn, deixou-se convencer pelos liberais santistas e
eu me tornei comunista de verdade, de Partido. Pedi para ingressar e recebi
carn [...]. Os donos das fazendas se armaram e comearam as ameaas
(MOLANO, 2009: 19-20, traduo prpria).
Chulavitas ou polcia chulavita era a denominao dada aos grupos armados
das elites que existiu durante a violncia. Eram formados por camponeses
conservadores. Receberam este nome porque eram procedentes da regio
Chulavita, no estado de Boyac.

Como descreve Gallego (2008: 55): Eles foram encontrando, com o tempo,
nos argumentos dos comandantes comunistas, uma nova concepo da luta
armada e um novo partido para militar.
Se no definirmos esta situao anormal no menor tempo possvel,
Marquetalia se converter em uma nova Sierra Maestra. (Palavras do
general Manuel Prada Fonseca publicadas no jornal El Siglo, 16 de abril
de 1964, apud Guzmn, 1968: 419).

O Plo Democrtico Alternativo (PDA) de origem recente na Colmbia,


comea a se formar no final dos anos 90 e vai se consolidando no decorrer
dos anos 2000. constitudo por foras polticas distintas, como o Partido
Liberal, o Partido Comunista Colombiano, o MOIR, entre outros. Nos
anos 2000 o PDA constitui-se como a principal frente de oposio ao bloco
conservador liderado pelo ex-presidente lvaro Uribe (2002-2010).
Ana Carolina Ramos e Silva - 119

Bibliografia
ALAPE, Arturo. Las vidas de Pedro Antonio Marin, Manuel Marulanda Vlez, Tirofijo.
Bogot: Planeta Colombiana, 2004.
GALLEGO, C. M. FARC-EP: Notas para una historia poltica 1958-2006. (Tese
de Doutorado) Universidad Nacional de Colombia, Bogot: 2008.
DOCUMENTOS POLTICOS. Tesis sobre el movimiento armado. Revista del comit
central del partido comunista de Colombia. Bogot, p. 99-100, 1957.
FARJADO, D. Violencia y Desarrollo. Bogot: Colombia Nueva, 1979.
GUZMN, G. La Violencia en Colombia: parte descriptiva. Cali: Progreso, 1968.
KALMANOVITZ, Salomn. El desarrollo histrico del campo colombiano. In:
GONZLEZ, Melo, ORLANDO, Jorge (Org.). Colombia Hoy. Bogot: Banco
de la Repblica, 2001. Disponvel em: http://www.lablaa.org/blaavirtual/historia/
colhoy/colo9.htm>. Acesso em: 20 out. 2006.
MOLANO, Alfredo. Trochas y fusiles. Bogot: Punto de Lectura, 2009.
SNCHEZ, Gonzalo, Violencia, guerrillas y estructuras agrarias. In: MEJA,
lvaro Tirado (Org.). Nueva Historia de Colombia. Bogot: Planeta Colombiana,
1989. p. 127-152.
VIEIRA, G. El incremento del militarismo en Colombia ya la tctica del Partido
Comunista. Revista terica e informativa de la actualidad internacional, Bogot, a. 6,
n. 4, p. 7-18, abr. 1963.

120 - Notas sobre a Origem das FARC-EP

Capitalismo Globalizado e
recursos territoriais

Alfredo de Almeida
Andra Zhouri
Antonio Ioris
Carlos Brando
Francisco Hernndez
Gustavo Bezerra
Luis Henrique Cunha
entre outros

A humanidade vem passando por


um intenso e extenso processo de
expropriao: nunca tantos povos,
etnias e comunidades camponesas
foram desalojados de suas terras
como nos ltimos quarenta anos.
Na Amrica Latina, esse processo
foi impulsionado por ditaduras civis/
militares que protagonizaram o
desenvolvimento de uma agricultura
sem agricultores mediante transformaes (nas relaes sociais e de
poder) com o uso da tecnologia.
Esse
projeto
desenvolvimentista
volta a ser impulsionado, e dados
de pesquisas demonstram que os
conflitos envolvendo as populaes
tradicionais [...] j ultrapassam os de
trabalhadores rurais sem-terra, que
at recentemente protagonizavam a

maior parte dos conflitos no campo


brasileiro.
Os textos aqui reunidos no s nos
mostram com riqueza analtica todo
esse processo em diferentes regies
do pas, mas tambm nos do uma
viso de conjunto do desenvolvimento
desigual e combinado e do potencial
que nossa populao detm para dar
ensejo a outro projeto societrio.
Carlos Walter Porto-Gonalves
Coordenador do Laboratrio de
Estudos de Movimentos Sociais e
Territorialidades (Lemto) da Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Editora Lamparina

POLTICA

Quando as mulheres
invadiram as oficinas
tipogrficas: sindicalismo
e feminismo na Frana
(Sec. XIX-XX)
Marisa Midori Deaecto

Professora do Departamento de Jornalismo e


Editorao (ECA-USP)
Para Matheus, com amor

Desde suas origens, o mundo dos livros se caracterizou pelo


domnio absoluto dos homens em todas as etapas de sua produo,
distribuio e, ainda por muitos sculos, consumo. O livro, tal como o
concebemos nos dias atuais, teve seu primeiro impulso na Baixa Idade
Mdia, a partir dos ateliers monsticos, onde os monges dedicavamse a todas as etapas de sua criao, das funes mais hodiernas de
leitura em voz alta e cpia dos textos, at as atividades mais delicadas
de ornamentao dos cdices manuscritos, em que as imagens, no
raro muito mais do que as letras, entretinham e informavam leitores
e leitoras por todas as partes.
Nesse aspecto, as mudanas foram bem lentas na era
inaugurada por Gutenberg. Do clebre atelier da Mogncia, donde
saram verdadeiras obras artsticas impressas por tipos mveis, aps
1450, s cidades florescentes do Velho Mundo Veneza, Paris,
Lyon, Londres etc. formou-se ao longo dos sculos um verdadeiro
panteo de ilustres fundidores, compositores, tipgrafos, douradores,
encadernadores, revisores e livreiros. Homens que desempenhavam
uma jornada rdua, a qual, no raro, atingia 18 horas de trabalho, o

que no nos deixa dvidas sobre a complexidade das tarefas realizadas


nessas primeiras oficinas tipogrficas. Mas onde entram as mulheres
entre os Manuzio, Garamond, Plantin, Elzevier, Didot, Bodoni, para
citar apenas algumas celebridades nessa verdadeira constelao que a
histria do livro impresso acumulou?
Alguns nmeros do bem a medida da progresso lenta,
ainda que constante, da participao feminina nos ofcios do livro.
Nos sculos XV e XVI, so conhecidas 119 mulheres que atuaram
nos ateliers tipogrficos franceses; no sculo XVII, este nmero
salta para 647 inscritas nas corporaes dos profissionais do livro;
no sculo XVIII, so 966 mulheres, entre elas, a precisa e precavida
viva Duchesne, no dizer de Voltaire; e, de 1800 a 1870, j so 4
692, entre jovens, senhoras casadas e vivas.1
bem verdade que o espao fora aberto pelas vivas de
antigos artfices j no alvorecer da Europa moderna. Mas apenas
na qualidade de vivas e herdeiras do ofcio, situao que mudaria
apenas a partir de 1791, com a abolio das corporaes. Assim, ao
lado da antiga inscrio Viva (...) o mercado editorial francs viu
circular as primeiras Mmes. (senhoras), Mlles. (senhoritas) e at
algumas Cne. (cidads), bem no esprito das revolues silenciosas
nascidas no seio de 1789.
A Imprimerie de Femmes nasceu como fruto da Revoluo em
sua fase mais radical. Trata-se da primeira e, ao que tudo indica, nica
iniciativa de que se tem conhecimento no perodo em anlise, de uma
escola de formao profissional, especializada no ofcio tipogrfico e
destinada exclusivamente s mulheres. O curso foi idealizado por um
certo Deltufo, artfice do ramo, homem que gozou de certa influncia
junto aos seguidores de Robespierre, o que parece se confirmar pelo
xito obtido em seu empreendimento. Nos primeiros meses de
funcionamento a escola atendeu a vrios pedidos oficiais: 20.000
exemplares de um relatrio de Saint-Just, no 17 Germinal do ano
II e, no 7 Floreal, encomendaram-se outros 20.000 exemplares de
Ideias morais e religiosas sob a tica dos prncipes republicanos,
de Robespierre. As encomendas se mantiveram aps a morte de
Robespierre, em 10 thermidor do ano II (28 de Julho de 1794), e
a escola foi mantida at a morte de seu idealizador. A viva bem
ensaiou novos contatos para manter a Imprimerie des Femmes, mas
seus esforos resultaram em uma resposta consoladora e definitiva
por parte de um burocrata do Estado.2
124 - Quando as Mulheres Invadiram as Oficinas Tipogrficas

bem verdade que a maior participao feminina nas


oficinas tipogrficas entenda-se, de jovens trabalhadoras, com idade
mnima de 12 anos, at senhoras, vivas, que se tornaram arrimo de
famlia acompanha sua maior insero no mercado de trabalho,
de modo particular, no ambiente fabril. No que toca o mundo dos
livros, observamos, de modo geral, que o projeto idealizado por
Deltufo deitou razes na nascente indstria francesa, tendo os novos
empresrios da mdia impressa logo percebido que a explorao da
mo-de-obra feminina, em idade adulta ou infantil, se lhes afigurava
como um recurso seguro e rentvel. Afinal, os operrios h muito
davam mostras do efeito perverso das greves para o bom andamento
dos negcios do livro e da imprensa de modo geral.3
Essas mudanas no mundo do trabalho e do livro, as quais se
tornam patentes em meados do Oitocentos, culminaram no apenas
na presena da mulher em ambiente ostensivamente masculino,
como em sua organizao poltica. Todavia, se a participao
da mulher na nascente indstria grfica constituiu importante
fermento para as organizaes sindicais nesse setor, a emergncia
de movimentos feministas, na segunda metade do sculo, os quais
tiveram na Frana seu principal centro geogrfico, concorreu para
as primeiras dissenses entre os operrios do livro, para falar como
Paul Chauvet.
Isso porque, desde muito cedo, como pudemos notar no
caso da Imprimerie des Femmes, houve srias resistncias insero
das mulheres nos negcios do livro e do impresso. Cumpre notar
que malgrado o fato de a presena feminina ter tornado-se cada
vez mais expressiva no mundo do trabalho (ao lado do homem)
apenas muito lentamente sua imagem se descola da figura da
me, da musa, enfim, do ente social frgil merc da proteo
masculina. E se a imagem da mulher/me-de-famlia, ancorada
no modelo familiar burgus, torna-se senso comum em todos os
meios sociais, o destino das militantes no seria mais promissor no
meio operrio, sobretudo entre certas tendncias socialistas que se
tornam dominantes entre os tipgrafos nas dcadas de 1840-50.
Lembremos, apenas a ttulo de exemplo, das atitudes francamente
antifeministas, seno misginas, correntes nos ambientes fabris, as
quais culminaram em disputas abertas entre homens e mulheres no
movimento operrio, conforme veremos mais adiante. Dentre os
militantes socialistas, o maior exemplo de investida anti-feminista,

Marisa Midori Deaecto - 125

bem apropriado ao mundo dos livros, seria o de Proudhon e seu


libelo La pornocratie, ou Les femmes dans les temps modernes [Paris:
A. Lacrois, 1875].4

Exemplos mais amenos podem ser extrados do


Dictionnaire de lArgot des Typographes, de Eugene Boutmy [1883],
em que so levantadas as grias usadas pelos operrios do livro.
Alm das mudanas sensveis que se notam nos termos correntes
da poca em relao queles desfilados pelo pai Schard de Iluses
Perdidas, observa-se, de modo geral, que as grias se encerram em
referncias deliberadamente masculinas. mulher so reservadas
as corriqueiras frases galantes, em geral cantadas em verso, nas
quais as associaes MULHER-VINHO-AMOR so exploradas
em suas mltiplas variantes.5
Tambm a questo da sade no trabalho afeta diretamente
a rotina das typotes, como eram chamadas as operrias dos livros.
Particularmente quando se nota em Paris e na Provncia a emergncia
de verdadeiros parques grficos, a partir de 1860, com o advento
das rotativas, fato que conduz a uma nova fase de especializao
e hierarquizao nas oficinas impressoras. Outrossim, a exposio
a substncias altamente txicas, como o chumbo, utilizado para a
fundio dos tipos, torna-se ainda mais intensa. Logo, se frases de
ordem do tipo Ele no quer nos envenenar, ele prefere nos ver morrer
de fome e de sede,6 como proclamaram as typotes da Imprimerie des
Femmes, faziam eco entre as oficinas de modelo artesanal, agora a
situao adquiria novos contornos.
o que demonstra um inqurito sobre higiene e sade
na indstria grfica, em que so levantados, pela primeira vez, em
1861, as consequncias do trabalho nas tipografias para as typotes.
Segundo o documento,
dos 141 casos de gravidez constatados, foram verificados 82
abortos e quatro partos prematuros. Cinco crianas vieram
ao mundo mortas, vinte morreram no primeiro ano, oito no
segundo, sete no terceiro e um no quarto. No total, apenas dez
das doze crianas haviam passado da idade de trs anos.7

Do ponto de vista organizacional, a polarizao de interesses


entre homens e mulheres no ambiente fabril, as prprias condies
desiguais de resistncia ao trabalho e cultura machista, arraigada na
sociedade como um todo, tornaram invivel, seno, rduo o caminho
da aliana poltica. Mesmo entre os operrios do livro. Tal realidade
126 - Quando as Mulheres Invadiram as Oficinas Tipogrficas

se reflete no esforo de arregimentao das mltiplas formas de


organizaes profissionais, entre associaes, ligas, sociedades,
sindicatos, em uma nica federao da categoria. Esta nasce apenas
em 1885, sob a chancela de Fdration Franaise des Syndicats
du Livre, aps quase um sculo de luta, em que fatores internos,
relacionados forte hierarquizao no ambiente fabril, somam-se a
outros, de ordem ideolgica, geogrfica, poltica e econmica.8
As organizaes de operrias correspondem, por sua vez,
amplitude atingida pelos movimentos feministas no segundo meeiro
do sculo. Seria fcil repetir uma frmula pronta, segundo a qual
as feministas ganham corpo nas fbricas devido reao machista
ou mesmo misgina dos operrios. Esta resposta simplista impese quando se ignora a prpria evoluo do movimento operrio
aps a Ia Internacional e, conforme apontamos anteriormente, as
especificidades da presena feminina no mundo do trabalho. Alm
das questes relacionadas higiene e sade, as quais apontaram um
quadro bastante trgico, outros fatores, tais como a queda brusca dos
nveis salariais, as aes violentas das autoridades governamentais
contra as militantes e a consequente dificuldade de organizao
poltica dificultaram drasticamente a ao efetiva das ligas feministas
contra os capites da indstria grfica. 9

De fato, o aparecimento do Syndicat des Femmes


Typographes, em maro de 1899, resultou da luta de lideranas
feministas reunidas no jornal La Fronde, sob a direo de Marguerite
Durant, pelo direito de se fazerem representar em uma entidade
de classe. Em 1900, seria fundada a Association Cooprative des
Femmes Typographes. Essas organizaes se do em resposta s
represlias movidas contra as typotes pela Fdration du Livre, em
uma longa disputa que atingiu seu clmax em 1901, no incidente
Berger-Levrault. Este e outros incidentes, ocorridos na virada do
sculo, radicalizaram as tenses entre operrias e operrios, colocando
em cena tanto as fissuras entre os movimentos feministas, os quais
ganham projeo nas primeiras dcadas do novo sculo, quanto os
pontos de vista de operrias e operrios do setor grfico. Apenas nos
anos de 1910 a Fdration du Livre, pouco mais tarde organizada
sob a forma de uma central sindical, viria a aceitar a adeso das
mulheres. Primeira grande vitria mais de um sculo aps a criao
da Imprimerie des Femmes, quando as mulheres invadiram o antigo
templo dos livros, dominados pelos homens.

Marisa Midori Deaecto - 127

Notas
1.
2.

3.

4.
5.
6.
7.
8.

9.

Dictionnaire Encyclopdique du Livre. Sous La direction de Pascal Fouch.


Paris: ditions Du Cercle de La Librairie, 2005, vol. II, pp. 203-204.
Assim escreve o Ministro do Interior no 18 Pluviose, ano IV: Gostaria
de poder satisfazer o seu pedido, mas todas as impresses do Governo
so feitas na Imprensa Nacional e eu no tenho neste momento nenhum
trabalho particular para vos passar. Como tradicionalmente a Imprimerie
des Femmes servia aos rgos pblicos, escusado dizer que esta carta resultou
em seu sepultamento. Apud Paul Chauvet, Les ouvriers du livre en France.
De 1789 la constitution de la fdration du livre. Paris: Marcel Rivire,
1956, p. 266.

Outros empresrios ainda mais astutos passaram a contratar famlias de


origem camponesa, de preferncia, com boa educao catlica, pretendendo,
com esta estranha atitude, manter boas ovelhas em suas oficinas impressoras.
Cf. Jean-Yves Mollier, O dinheiro e as letras. Histria do capitalismo de
edio. So Paulo: Edusp, 2010.
Dictionnaire de la Commune. Dir. par Bernard Nol. Paris: Fernand Hazan,
1971.
Sobre a cultura dos operrios tipgrafos, ver artigo de Marguerite Ribrioux
em Histoire de ldition franaise. Le temps des diteurs. Dir. Par Henri-Jean
Martin et Roger Chartier. Paris: Fayard, 1990.
Paul Chauvet, op. cit., p.264.

Armand Lvy, Memoires pour les typographes, 1862. Apud Paul Chauvet, op.
Cit., pp.590-591.

Dentre os fatores ideolgicos, pensemos nas correntes socialistas que


percorrem todo o sculo, ora colaborando umas com as outras, ora opondose umas s outras em questes pontuais. A questo geogrfica se verifica na
clssica oposio de duas cidades fortes no campo da produo impressa,
Lyon e Paris, mas, tambm, na disputa entre Paris e as regies provincianas.
Finalmente, os fatores poltico e econmico, os quais se apresentam como
entraves para a unificao dos operrios do livro, considerando o longo ciclo
revolucionrio e de instabilidade francs, o qual se estende at 1870, quando
se inaugura a III Repblica (a mais longa da Histria daquele pas).
Para uma anlise mais global e aprofundada dessa questo, cf. Mary Lynn
Stewart, Women, work and french State. Labour protection and social
patriarchy (1879-1919). Quebec: Queens University Press, 1989.

128 - Quando as Mulheres Invadiram as Oficinas Tipogrficas

Paula Brito
Editor, Poeta e
Artfice das Letras
Organizadores
Jos de Paula Ramos Jr.
Marisa Midori Deaecto
Plnio Martins Filho
Este livro trata das mltiplas faces
de um personagem singular de
nossa histria: Francisco de
Paula Brito (1809-1861).
Paula Brito-Editor de Machado
de Assis, Casimiro de Abreu,
Jos de Alencar, Gonalves Dias,
Baslio da Gama, Gonalves de
Magalhes, Teixeira de Souza,
Martins Pena... e de outros tantos
literatos menos afortunados pela
crtica. Na livraria da Praa da
Constituio, Paula Brito fundou a
Sociedade Petalgica, registrando
de forma bem-humorada e criativa
sua presena na cartografia
cultural da Corte.
Paula Brito-Poeta registrou em
seus versos e nas modinhas
que comps traos da cultura
fluminense de se tempo. Se o
Talento lhe faltou nessa arte em
que o engenho no tudo,

o leitor no poder se furtar


das cenas pitorescas inserta
em seus poemas, em que o
entrudo narrado com notas
picantes, enquanto cenas de
amores no correspondidos
encontram no raro a mesma
ingenuidade e sentimentalismo
que conquistaram os leitores de
um Casimiro de Abreu, ou de um
Gonalves de Magalhes.
Enfim,
Paula
Brito-Arte
e
Inspirao. Os ensaios apresentados neste livro reconstituem
em nobilssimas linhas as mltiplas fazes deste que foi o,
segundo Machado de Assis, o
primeiro editor digno deste nome
que houve entre ns.
Sem dvida, uma bela homenagem ao homem e seu maios
legado: o livro.

Rosa Luxemburg

resenha

Acumulao do Capital:
militarismo e colapso

Rosa Rosa Souza Rosa Gomes

Graduanda em Histria (USP)

Na tentativa de escrever um livro de Introduo a Economia


Poltica, Rosa Luxemburg se deparou com um problema terico
presente no volume II de O Capital. Isso deu origem, em 1912, sua
obra terica A Acumulao de Capital.
Estruturada em trs partes, a obra procura pensar o
problema da acumulao numa tentativa de entender e lutar contra
o imperialismo. Nossa autora faz uma exposio terica e histrica
da reproduo ampliada, apresentando uma questo e propondo
sua soluo, atravs do desenvolvimento de uma nova teoria sobre
o processo de acumulao de capital. Ela a primeira a perceber o
problema da demanda efetiva; Rosa procura mostrar nesse livro
que h um problema de realizao1 da mais-valia a ser explicitado
e resolvido.
Assim, Rosa Luxemburg comea seu livro explicando o
que a reproduo; passando pela formulao do capital social total2
de Quesnay e pelos esquemas de Marx. Consegue assim explicar a
reproduo ampliada e a acumulao atravs de uma concatenao de
ideias que, alm de explicitarem seu objeto de estudo a acumulao
e o problema da realizao da mais-valia - , deixam claro tambm o
ponto de partida de sua questo e seus pressupostos tericos.

Logo no incio, a reproduo definida como ciclo regular de


produo e consumo que supe determinado grau de produtividade
do trabalho.3 No capitalismo, ela adquire especificidade histrica,
porque depende no apenas das condies tcnicas e sociais meios de
produo e mo-de-obra do perodo anterior -, mas tambm do lucro.
A reproduo no capital no ocorre pela necessidade de consumo da
sociedade, mas pelo seu potencial lucrativo. Assim, para entender a
reproduo no capitalismo preciso entender a circulao do dinheiro,
porque o lucro s aparece na realizao da mais-valia, quando o maisproduto toma a sua forma monetria. Da termos ainda nessa primeira
parte um captulo sobre a circulao do dinheiro.
Em sua anlise considera uma mdia das alternncias
conjunturais dentro de um determinado ciclo do capital; o equilbrio
entre oferta e demanda; a composio do valor como sendo a soma de
capital constante, capital varivel e mais-valia;4 o objetivo da produo
capitalista sendo a produo ilimitada de mais-valia. Esses pontos de
partida so importantes para entendermos como ela pde chegar
concluso exposta no final do livro.
Aceita tambm a definio do prprio Marx de que a
acumulao de capital a expresso capitalista da reproduo ampliada.
Isso nos permite entender porque ao longo do livro reproduo
ampliada e acumulao se intercalam parecendo sinnimos.5
E j na primeira parte do livro, aponta para a sua tese ao
colocar a necessidade, para o capitalista individual, de encontrar ...
os meios de produo, a fora de trabalho e os segmentos de mercado no
apenas em geral, mas em progresso determinada, que corresponda a seus
avanos na acumulao.6
A partir dessa base, Rosa constri seu raciocnio. Apresenta
as teorias de Quesnay e Smith e seus problemas, destacando o erro,
que perdurou at Marx, da considerao do valor como dividido em
capital varivel (v) e mais-valia (m) apenas, desconsiderando o capital
constante. Explica o esquema da reproduo simples em Marx, sobre
o qual este sustentaria o da reproduo ampliada e analisa a circulao
do dinheiro, j destacada como extremamente importante dentro do
processo capitalista de acumulao.7
Ao expor reproduo ampliada em Marx, ela apresenta
sua questo fundamental, at ento desapercebida por todos os
economistas: qual a origem da demanda? Para quem os capitalistas
vendem? Como se realiza a mais-valia acumulada? Rosa escreve a
132 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

primeira parte percorrendo o caminho analtico que a levou a essa


formulao e j indica sua tese:
... a acumulao s pode efetivar-se na medida em que o mercado
cresce fora dos Departamentos I e II.8-9 (grifo meu)

Com essa descoberta, Rosa aponta os erros que obscureceram


a questo por muito tempo. Um dos principais, na teoria marxista,
foi a proposio de que a soluo da acumulao estaria na origem
do dinheiro. Marx preocupa-se em demonstrar de onde vem o
dinheiro, pois parte do pressuposto, correto de que a forma monetria
essencial na acumulao, apesar de no o ser na reproduo efetiva,
pois o mais-produto precisa se desprender de sua forma de uso e
adotar a forma natural conveniente, transformao mediada pelo
dinheiro. Assim, ao tratar da realizao da mais-valia, Marx se fixa
em explicar onde se encontra o dinheiro que ir realiz-la, no
se atentando para o fato de que essa pergunta irrelevante, pois
a resposta bvia: o dinheiro est na mo dos consumidores. O
problema efetivo seria: quem so esses consumidores? E ainda, do
ponto de vista da circulao, como a mais-valia se realiza retornando
o capital aos proprietrios deste? Como ocorre a transformao de
capitais: capital-dinheiro, capital-produtivo e capital-mercadoria?
Quem ou o que permite que essa circulao ocorra em escala cada
vez maior?
Com essas formulaes, nossa autora passa a ver como o
problema foi tratado pela Economia ao longo da histria. Ela precisa
pensar o que foi produzido de teoria sobre o assunto antes e depois de
Marx, para deixar os pontos de avano e de estagnao que este representa.
A segunda parte , ento, uma anlise dos economistas clssicos e dos
marxistas na perspectiva da possibilidade ou no da acumulao.
Assim, do ponto de vista dos economistas clssicos a
questo a possibilidade ou no da reproduo ampliada em termos
capitalistas; uma questo anterior a de Rosa. J do ponto de vista dos
marxistas russos, ela existe. S preciso explicar como ela ocorre,
tendo como base os esquemas de Marx, dados como certos..
O problema geral que une todos esses tericos o fato de no
olharem para as condies sociais concretas, para o desenvolvimento
do capitalismo em sua concretude, partindo sempre de abstraes para
formularem suas teorias, sejam elas os esquemas matemticos de Marx,
sejam as formulaes de Smith sobre a composio do valor. Rosa
junta pontos de vista to diferentes pensando que todos eles caem no
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 133

mesmo idealismo, recusam-se a pensar seu objeto a partir do concreto,


fazendo dele simples frmulas matemticas a que tudo se encaixam.

Os ltimos a serem tratados nessa exposio histrica do


problema, numa ordem cronolgica, so os marxistas russos legais.
Suas teorias chegaram ao ponto de colocar o capitalismo como um
modo de produo ilimitado, tornando o socialismo algo impossvel,
uma vez que este s existiria depois do colapso do modo de produo
capitalista. Isso inaceitvel para R. Luxemburg, pois, no geral, o
socialismo visto pelos marxistas como uma necessidade histrica,
guardadas as devidas condies objetivas e subjetivas.
Veremos ao fim, como isso problemtico dentro da
proposta de nossa autora. No que a partir de sua teoria seja possvel
concluir a impossibilidade do socialismo, mas ela permite achar um
ponto no qual a possibilidade de crescimento do capital ilimitada,
algo que ela mesma no percebeu, mas dedutvel dentro do esquema
proposto por ela.
Terminadas as crticas e exposies tericas sobre o tema, mas
no a tese, Rosa retoma os esquemas de Marx, ponto de estagnao
da teoria econmica sobre a reproduo ampliada e seu ponto de
partida. um momento de sistematizao dos erros, retomados para
desenrolar sua teoria.

Os esquemas so insuficientes, porque partem j de um


pressuposto equivocado: uma sociedade formada apenas por
capitalistas e proletrios. Sabemos que isso no corresponde
realidade e, sendo justos, o prprio Marx tambm sabia. No entanto,
ele parece ter esquecido disso e caiu no mesmo erro dos outros
economistas, deixando de olhar a sociedade concreta para finalizar
sua teoria, ao menos na viso de Rosa Luxemburg.
Alm disso, Marx considera o consumo de capitalistas e
operrios como fonte de realizao da mais-valia acumulada e esquece
que o crescimento da produo no acompanhado pelo do consumo.
No leva em conta a produtividade do trabalho ao manter constantes
a taxa de mais-valia e o crescimento do capital constante em termos
relativos e absolutos em relao ao capital varivel. Pressupe a
acumulao do departamento I (produo dos meios de produo)
em detrimento da estagnao ou do dficit do departamento II
(produo dos meios de consumo). No permite a acumulao por
saltos ao excluir a possibilidade de entesouramento e, por fim, exclui
a contradio entre capacidade produtiva e consumidora.
134 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

... o esquema nega a concepo marxista do processo global


do capital [] A ideia bsica dessa concepo a contradio
imanente que existe entre a capacidade de expanso ilimitada da
produtividade e a capacidade de expanso limitada do consumo
social, dentro das condies capitalistas de distribuio.10

Isso ocorre porque o esquema pressupe uma


proporcionalidade do crescimento dos dois departamentos, havendo
para tanto uma harmonia entre a produo e o consumo, j que todo
o produto precisar ser realizado na mesma medida e no mesmo
tempo para que toda a produo cresa junto.

Marx utiliza os pressupostos de anlise do capital individual


para a anlise da totalidade. De fato, para o indivduo s existe o modo de
produo capitalista e a sociedade se divide em proprietrios dos meios
de produo e trabalhadores. No entanto, para a anlise da totalidade, da
formao social capitalista, a realidade muito mais complexa.
Com um problema no resolvido e apresentadas as falhas
na sua descoberta e resoluo, Rosa apresenta uma sada: os
mercados externos.

A sociedade no constituda apenas por capitalistas e


operrios e o modo de produo capitalista no o nico presente
no mundo. A demanda efetiva, a realizao da mais-valia est fora
do modo de produo, seja em outras camadas sociais ou em pases
no-capitalistas.
A realizao da mais-valia , de fato, a questo vital da
acumulao capitalista. [] a realizao da mais-valia exige
como primeira condio um crculo de compradores fora da
sociedade capitalista.11 (grifo meu)

As condies para esse processo de acumulao so: crculo


de compradores fora da sociedade capitalista, existncia de meios
materiais correspondentes e necessrios ampliao da produo e o
fornecimento de trabalho vivo e adequado s necessidades do capital.
Essas duas ltimas condies mostrar-se-o submetidas primeira,
pois a expanso da produo e a realizao dos produtos, exige tambm
maior quantidade de matria-prima e mo-de-obra, fornecidas em
escala exponencial tambm pelos mercados externos.12
Mostra-se o processo histrico da acumulao do capital,
suas condies de existncia e a forma como se transformou no
imperialismo observado por ela no sc. XIX e incio do XX.
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 135

Assim, o processo de acumulao dividido em trs fases: a


luta contra a economia natural, a luta contra a economia mercantil e
a concorrncia do capital no mercado mundial.

A economia natural se caracteriza por uma economia de


subsistncia, no tem nenhuma ou quase nenhuma necessidade de
produtos estrangeiros e no produz excedentes. Alm disso, existe
sempre algum vnculo com os meios de produo e a mo-de-obra,
o trabalhador no totalmente despojado como o proletrio.

Essas formaes de nada servem ao capitalismo porque ou


rejeitam o comrcio ou no podem oferecer nada ao capital por causa
de sua estrutura social. Assim, o capital usar na maioria das vezes da
violncia para acabar com essas sociedades, liberando mo-de-obra
e criando mercados atravs da expropriao. Mas no se trata aqui
de acumulao primitiva, o capitalismo j est constitudo enquanto
modo de produo, est em processo de expanso, o que, para Rosa,
vital para sua continuidade.
Essa a primeira condio para a aquisio de meios de
produo e realizao da mais-valia: destruio da economia natural.
A segunda, a sua insero na economia mercantil. E para isso, os
meios de transporte so essenciais, pois permitem ao capital chegar
aos mais distantes rinces, alcanando o interior dos continentes
atravs de ferrovias, telgrafos, navios. Deste modo, amplia-se a
distribuio de mercadorias que somada a expropriao e violncia
militar levam a expanso do mercado e explorao dos meios de
produo matria-prima e mo-de-obra.
... os meios de transporte (ferrovias, navegao, canais)
representarem os pr-requisitos indispensveis expanso da
economia mercantil em regies de economia natural. A marcha
de conquista da economia mercantil comea no geral com
maravilhosas obras modernas de transporte, como linhas frreas
que atravessam densas florestas e montanhas, com linhas de
telgrafo que se estendem por sobre desertos e com transatlnticos
que atingem portos distantes. A pacificidade dessas aes , no
entanto, apenas aparente.[...] A moderna histria da China nos
oferece o exemplo clssico do comrcio afvel e pacfico com
sociedades atrasadas, marcado desde o incio dos anos 40 e durante
o resto do sculo XIX pela guerra que lhe movem os europeus no
intuito de integrar a China, pela fora, em seu comrcio.13 (fala,
ento, sobre a Guerra do pio).
...as ferrovias abriam o caminho e o capital fazia o resto.14
136 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

Para terminar de vez com a economia natural e introduzir a


economia mercantil preciso separar indstria e agricultura, criando
a economia camponesa e a indstria rural. A economia camponesa foi
sendo reduzida cada vez mais, at sobrar apenas a agricultura como
ramo, obrigando os camponeses a consumirem do capital. Esses
fazendeiros se vero na necessidade de vender rapidamente toda a
sua produo para conseguirem comprar da indstria as mercadorias
de que precisam, porque j so mais capazes de produzir artesanato.
Cria-se assim a produo mercantil, forma geral que permite ao
capitalismo desenvolver-se.15
No entanto, essa economia agrcola torna-se mundial e o
grande capital toma conta dela, destruindo o fazendeiro.

Uma vez expandida a produo mercantil sobre as runas da


economia natural, inicia-se a luta do capital contra esta ltima.
O capitalismo passa a concorrer com a economia mercantil;
aps dar-lhe vida, disputa-lhe seus meios de produo, sua
fora de trabalho e seu mercado.16

Deste modo, o capital liberta sua fora de trabalho.

Aps despojar o campons, o capital passa a produzir nas


regies que antes lhe serviam para realizar sua mais-valia e fornecer
mo-de-obra e matria-prima. A terceira fase do processo de
acumulao esta, a fase imperialista.

Aqui, essas zonas de realizao da mais-valia so


industrializadas e ingressam definitivamente para o modo de
produo capitalista, a produo mercantil suplantada. As colnias
tornam-se independentes e para isso pegam emprstimos junto a
pases capitalistas mais antigos. Com isso, sua dependncia com
relao a esses pases tambm agravada. Aquilo que os torna
independentes tambm gera sua servido.
Alm disso, esse processo gera uma contradio para o
prprio capitalismo, na medida em que a suplantao da economia
mercantil pela produo capitalista diminui a realizao da maisvalia numa regio que dominada, a princpio, por esse motivo.

Nessa perspectiva, a ideia de livre-cambismo aparece como


episdica, nas palavras da prpria Rosa, pois o surgimento do grande
capital acirra as disputas para a acumulao fazendo com que os
pases adotem medidas protecionistas as tarifas - , a nica exceo
a Inglaterra, pois
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 137

...pde encontrar em suas imensas possesses uma base


vastssima de operao, que abriu perspectivas quase ilimitadas
sua acumulao de capital, colocando-a efetivamente a salvo
da concorrncia das demais naes capitalistas.17

Sabendo-se que as reas do globo possuem um limite, parece


bvio o colapso do capitalismo independente da subjetividade das
massas. Ele acabaria assim que no houvesse mais possibilidades de
acumulao.18
Contudo, o ltimo captulo abre uma brecha. Seu ttulo
O Militarismo como Domnio da Acumulao de Capital.

O militarismo est presente em todas as fases da acumulao,


acompanha o processo histrico de desenvolvimento do capitalismo.
Alm da coero necessria e exemplificada com fatos histricos, ele
um campo para a prpria acumulao.
Isso possvel, atravs dos impostos indiretos19 retirados
dos salrios dos trabalhadores e dos camponeses. No primeiro caso
(o dos operrios), parte do capital que seria gasto na produo de
meios de subsistncia para a fora de trabalho redirecionado para a
indstria blica, abrindo-se um novo setor, pois a produo de meios
de subsistncia algo necessrio para a reproduo da mo-de-obra,
mas no gera acumulao, acarretando na verdade uma economia
dos gastos dos capitalistas.
... para o capital total a alimentao da classe operria
no passa de um mal necessrio, um meio para atingir de
forma indireta o objetivo propriamente dito da produo:
a gerao e realizao da mais-valia. Podendo-se extrair a
mesma quantidade de mais-valia sem oferecer em troca o
mesmo equivalente em meios de subsistncia, melhor ser o
negcio.20

No segundo caso, dos camponeses, temos um grupo nocapitalista, que faz parte das reas de expanso da acumulao do
capital; eles so um mercado externo. Deste modo, a tributao
indireta recebida dos camponeses abre uma fonte inteiramente nova,
pois essa soma se insere no modo de produo capitalista no exato
momento em que passa s mos do estado. Por esse motivo, esses
impostos tero um papel muito mais importante na formao da
indstria blica e ainda serviro como forma de presso para que
os camponeses passem a vender todo o seu produto e consumam
mercadorias produzidas dentro do modo de produo capitalista.
138 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

A presso tributria fora o campons a transformar uma parte


cada vez maior de seu produto em mercadoria, convertendo-o,
ao mesmo tempo, em comprador. Essa presso lana o produto
da economia camponesa em circulao e os camponeses passam
obrigatoriamente a compradores de produtos do capital. [] Tudo
que antes figuraria como poupana do campons, entesourada pela
pequena classe mdia, e se destinasse normalmente a aumentar o
capital depositado em bancos e Caixas Econmicas, em busca de
aplicaes, transforma-se, de posse do Estado, pelo contrrio, em
demanda e investimento potencial do capital.21

Esse mecanismo de criao de demanda atravs da indstria


blica inteiramente controlado e impulsionado pela prpria classe
capitalista, pois ela a detentora do poder poltico, do comando do
Estado. Aqui se encontra a grande novidade acerca do militarismo:
um mercado externo gerido pela classe dominante, no havendo
sobre ele influncias exteriores. Assim, atravs do Estado, a classe
capitalista consegue regular esse ramo da indstria, gerando demanda
para suprir a necessidade de realizao da sua mais-valia. Com esse
mecanismo, o colapso no parece ser matizado.
...esse campo especfico da acumulao parece ser dotado, em
princpio, de uma capacidade de ampliao indeterminada.
Enquanto qualquer outra ampliao do domnio de mercado
e da base operacional do capital dependem, em grande parte,
de aspectos polticos, sociais e histricos, que atuam fora da
esfera de vontade do capital, a produo blica representa um
domnio cuja ampliao sucessiva e regular parece depender
antes de mais nada das prprias intenes do capital.22

Rosa parece notar nesse ponto uma perspectiva de ilimitao


do capital. No entanto, acaba o livro na pgina seguinte dizendo:
O capitalismo a primeira forma econmica capaz de propagarse vigorosamente: uma forma que tende a estender-se por todo o
globo terrestre e a eliminar todas as demais formas econmicas, no
tolerando nenhuma outra a seu lado. Mas tambm a primeira que
no pode existir s, sem outras formas econmicas de que alimentarse (sic); que, tendendo a impor-se como forma universal, sucumbe
por sua prpria incapacidade intrnseca de existir como forma
de produo universal. O capitalismo , em si, uma contradio
histrica viva; seu movimento de acumulao expressa a contnua
resoluo e, simultaneamente, a potencializao dessa contradio.
A certa altura do desenvolvimento essa contradio s poder ser
resolvida pela aplicao dos princpios do socialismo...23
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 139

O livro acaba. A autora parece no ter percebido a brecha


colocada linhas acima: o militarismo poderia ser um ramo de acumulao
infinita para o capital? Essa pergunta parece ocupar um espao especial
quando olhamos para o sc. XX, nos anos posteriores escrita desta obra,
em especial, no que diz respeito economia dos Estados Unidos.
Passados quase um sculo de sua escrita, a obra de Rosa
Luxemburg atual e ainda gera muita polmica. Em geral, pouca ateno
dada importncia deste livro quanto questo colocada e soluo
que apresenta. Ao explicitar o problema da realizao da mais-valia, Rosa
vai fundo no debate travado entre a possibilidade ou impossibilidade de
existncia ilimitada do capitalismo. Ela percebe o ponto economicamente
fraco do sistema e ao procurar resolv-lo toma um partido dentro da
querela: o capitalismo economicamente invivel, no resistir falta dos
modos de produo no-capitalistas que ele mesmo destruiu.

Visto ser recorrente o destaque dos pontos negativos e


at o obscurecimento dessa obra, coloco aqui algumas crticas que
destacam seus pontos positivos, como o texto de Georg Lucks a
respeito de nossa autora. Ele destaca a obra como ponto de retomada
do mtodo marxista, pressupondo a totalidade do processo histrico.
Rosa Luxemburg e Lnin seriam os autores a se voltarem para a obra
de Marx rejeitando o marxismo vulgar.
Para Lucks, ao tratar o problema partindo de um estudo
histrico-literrio a segunda parte do livro de Rosa, quando trata
da literatura sobre o tema -, Luxemburg expe a problemtica no
processo histrico e traz o velho Marx de volta.

Seja qual for o tema em discusso, o mtodo dialtico trata sempre


do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo
histrico. Sendo assim, os problemas ideolgicos e econmicos
perdem para ele sua estranheza mtua e inflexvel e se confundem
um com o outro. A histria de um determinado problema tornase efetivamente uma histria dos problemas. A expresso literria
ou cientfica de um problema aparece como expresso de uma
totalidade social, como expresso de suas possibilidades, de seus
limites de seus problemas. Estudo histrico-literrio do problema
acaba sendo o mais apto a exprimir a problemtica do processo
histrico. A histria da filosofia torna-se filosofia da histria.24

Ao fazer a anlise histrica do problema da acumulao,


Rosa se insere dentro daquele debate da impossibilidade ou no do
capitalismo e responde, propondo uma soluo tambm histrica,
tomando o partido do colapso. Ao fazer isso Rosa no est deixando
140 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

de lado a subjetividade da ao revolucionria, mas se mantm


coerente unidade entre teoria e prtica. Ela formula uma teoria do
colapso sem deixar de lado a prxis que deve levar a ele.
Muitos autores criticam sua obra justamente, tomando sua
teoria como fatalista. De fato, ao terminar o livro, s no achamos que
o capitalismo vai acabar um dia por si s, porque sabemos que isso
no aconteceu e ainda vivemos sob seus imperativos. De qualquer
modo, ela parece deixar pouco espao para a ao da subjetividade
dentro desta obra. Mas preciso entend-la dentro do contexto
histrico e da vida da autora.
Rosa Luxemburg compreendeu o mtodo marxista como
o mtodo da totalidade sendo necessria a unidade entre teoria e
prtica. Nessa perspectiva, a formulao de uma teoria do colapso seria
um ponto essencial para essa unidade, sem deixar de lado tambm a
outra parte: a ao era ponto necessrio tambm, do capitalismo no
surgiria por si s o socialismo sem a ao do proletariado. Isso Rosa
compreendia muito bem e no se pode tom-la por fatalista, tendo
como base apenas A Acumulao do Capital.

Ela [a revoluo proletria] est garantida somente metodicamente pelo mtodo dialtico. E essa garantia tambm s
pode ser provada e adquirida pela ao, pela prpria revoluo,
pela vida e pela morte para a revoluo. Um marxista que cultive
a objetividade do estudo acadmico to repreensvel quanto
algum que acredite que a vitria da revoluo mundial pode ser
garantida pelas leis da natureza.25

Rosa contribuiria desta forma para o andamento em direo


a revoluo, propondo avanos em relao a Marx e no retrocessos
como os economistas vulgares, analisados em sua obra.

Outra contribuio, apresentada por outros dois autores Paul


Singer26 e Michel Brie,27 a constatao de que o modo de produo
capitalista no sobrevive sem modos de produo no-capitalistas.
Essa formulao gera muita polmica, mas tem uma consequncia
interessante para Michel Brie.

Ele destaca a importncia da questo reforma ou revoluo


dentro da obra de Rosa Luxemburg, solucionada apenas depois de
1917 e 1918, quando ela sentiu a necessidade de caminhos alternativos
para o socialismo. Ela prope ento um processo rumo ao socialismo.
A revoluo no aconteceria mais num dia D, mas no agora,
comeando com mudanas dentro da prpria sociedade.
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 141

... a transformao socialista deixa de ser pensada exclusivamente como o dia decisivo, e passa ser pensada como processo
que pode comear, aqui e agora, pela mudana da correlao de
foras, das estruturas de poder e de propriedade, da inovao
institucional. Nem toda reforma social ou democrtica rejeita
o capitalismo, mas h reformas que tm por natureza um
potencial transformador, revolucionrio.28

Para Brie, da mesma forma que o modo de produo


capitalista engloba reas no-capitalistas, reas capitalistas podem
sair da esfera capitalista. Isso porque, como Rosa Luxemburg disse,
o capitalismo no pode existir como modo de produo nico, ele
precisa de esferas no capitalistas. Assim, o prprio mecanismo do
sistema abriria espao para um novo tipo de ao transformadora: a
que se prope no presente, comea no presente e se coloca no caminho
inverso ao da cooptao, lutando para sair da esfera capitalista e
construindo modos de vida alternativos. uma revoluo que no
se projeta no futuro, mas no presente e tem a cada segundo o seu dia
D, vive sempre a ao decisiva, porque no se pensa num momento
nico de reviravolta, mas num processo que preciso construir no
hoje, a todo instante.
No esqueamos o ponto de maior crtica obra de
R. Luxemburg e que impediu, muitas vezes, de se considerar
o conjunto de sua teoria. De fato, Rosa erra quando diz estarem
equivocados os esquemas de reproduo de Marx, porque eles
estavam matematicamente certos dentro do modelo de abstrao
colocado por ele. Foi uma falha desapercebida por ela; apesar de ter
pontuado algumas vezes em seu livro, o fato de Marx deixar claro
que seus esquemas no representavam a realidade, nem a sociedade
se dividia apenas entre capitalistas e trabalhadores, mas esses eram
apenas recursos para o estudo. Claro que esse erro e outros devem
sempre ser discutidos e explicitados, no entanto, no podemos
balizar a discusso sobre a obra neles, renegando aquilo que ela traz
de novo e interessante.
At hoje, vemos um incmodo na discusso sobre a teoria
econmica de Rosa Luxemburg e uma dificuldade em se voltar
sua obra e deixar isso explcito; seus pensamentos so relegados a
um limbo: sabe-se que existe, mas no se fala, no se comenta, ou
quando o faz sempre com um mas.... importante retomar a
obra A Acumulao do Capital e levar em conta seus pontos positivos e
seus avanos para a teoria econmica, tomando-a como pressuposto
142 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

para o estudo da acumulao, ainda mais em nossos dias, quando


as questes da economia armamentista e de guerra voltam a ser
discutidas com maior ateno. O trabalho de Rosa Luxemburg
fundante para um comeo de reflexo acerca da indstria blica e da
expanso do capitalismo, no entanto sua crtica a Marx pareceu to
despropositada aos ortodoxos que foi o suficiente para negar a sua
contribuio.

No entanto, estamos num momento em que as crticas so


necessrias e at bem recebidas, pois se percebeu a necessidade de
pensar outras sadas, outros caminhos, porque eles no esto dados.
E para isso importante ver aquilo que j se fez e avanar, procurar
outras respostas. Nossa autora , assim, s o comeo, necessrio,
de uma longa reflexo sobre o que o nosso mundo hoje, o que
queremos dele e como faremos para alcanar esse desejo.
Notas
1.

2.
3.

4.

A mais-valia tem sua forma natural como mais-produto, ela precisa ser trocada
por dinheiro, adquirindo sua forma pura de valor para ser capitalizada e reinserida
na produo, para virar capital ativo. Esse processo de transformao da maisvalia, de mais-produto em dinheiro a realizao.
Isso nos permite pensar num sistema total e fazer uma anlise global, no apenas
dos capitalistas individualmente; constitui-se um sistema.

Rosa coloca essa expresso como equivalente econmico de determinado grau


de domnio da Natureza pela sociedade.

... o conceito de reproduo significa algo mais do que a simples repetio:


ele j pressupe determinado grau de domnio da Natureza pela sociedade
ou, em termos econmicos, determinado grau de produtividade do trabalho.
(LUXEMBURG, Rosa. A Acumulao do Capital. Nova Cultural, 1985. pg. 8)
Capital constante: capital utilizado para repor ou comprar novos meios de
produo
Capital varivel: capital gasto em salrios

5.
6.
7.

Apresenta um debate sobre esse ponto argumentando sua escolha pela definio
de Marx e demonstrando o erro na teoria da reproduo ampliada dos
economistas clssicos a partir de sua definio equivocada de valor, como sendo a
soma de mais-valia e capital varivel.
De fato, para Rosa, esses termos no coincidem seno no capitalismo, pois outros
modos de produo tm a reproduo ampliada, mas s com o capital ela adquire
a forma da acumulao.
LUXEMBURG, Rosa. A Acumulao do Capital. Nova Cultural, 1985. pg. 18

Neste ponto, a autora faz uma anlise confusa da proposta marxista e parece
no apresentar nenhuma soluo efetiva para o problema da produo do
Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 143

8.

9.

10.
11.
12.

13.
14.
15.
16.
17.
18.

19.

20.

dinheiro dentro da produo capitalista. Ela prope a existncia de um terceiro


departamento para a produo do dinheiro, argumentando que esse produto
no faz parte da produo e portanto no poderia se encaixar em um dos outros
departamentos sem prejuzo para eles. Marx teria, ento, formulado a resposta
errada ao colocar o dinheiro dentro do departamento I (meios de produo),
porque a forma monetria no participa do processo produtivo o que causaria
um dficit no produto total deste departamento: ao fim no haveria meios de
produo suficientes para repor o capital constante de I e II. Para ela, ao colocar
a produo de dinheiro no departamento III, esse problema estaria resolvido, no
havendo dficit no produto total nem dos meios de produo, nem dos meios de
consumo.
Na anlise do modo de produo capitalista em seu conjunto, Marx divide em
dois departamentos. O Primeiro, Departamento I constitui-se na produo dos
meios de produo de toda a produo, j o Departamento II produz os meios
de subsistncia de toda a produo. Essa diviso parte do pressuposto de que
no modo de produo capitalista existem apenas dois tipos de produtores: o de
meios de produo e o de meios de subsistncia.
Idem. pg. 81

Idem pg. 236


Idem pg. 241

Essa resoluo sobre a fora de trabalho e os meios materiais pode parecer colocada
a partir do nada nesse final, pois Rosa passa a maior parte do livro falando sobre
a questo da realizao. No entanto, ela aparece indicada nos primeiros captulos,
quando ela pontua:

... necessrio que ele [o capitalista individual] encontre os meios de produo,


a fora de trabalho e os segmentos de mercado, no apenas em geral, mas em
progresso determinada, que corresponda a seus avanos na acumulao
(LUXEMBURG, Rosa. A Acumulao do Capital. Nova Cultural, 1985.pg. 18)
LUXEMBURG, Rosa. A Acumulao do Capital. Nova Cultural, 1985. pg. 265
Idem pg. 281

LUXEMBURG, Rosa. A Acumulao do Capital. Nova Cultural, 1985. pg. 275


Idem pg. 275
Idem pg. 308

Esse um dos pontos de forte crtica obra de Rosa Luxemburg. Muitos autores
criticam seu fatalismo deixando de lado sua grande contribuio a teoria e histria
econmicas: a formulao do problema da realizao e sua perspectiva totalizante
de anlise e soluo dessa questo.

So os impostos repassados no preo dos produtos, que se encarecem reduzindo


a possibilidade de consumo dos trabalhadores, pois seus salrios no aumentam
em igual proporo. O capital adianta esses impostos ao Estado, mas eles so
cobrados depois dos trabalhadores transformados em consumidores.

A magnitude da tributao indireta se manifesta na elevao de preos dos


meios de subsistncia, enquanto a expresso monetria da fora de trabalho no
se altera [] ou pelo menos no se modifica na proporo daquela elevao de
preos. Idem pg. 313.
Idem pg. 318

144 - Acumulao do Copital: militarismo e colapso

21.

Idem pg. 319

23.

Idem pg. 320

22.
24.
25.
26.
27.
28.

Idem pg. 319


LUCKS, Georg. Rosa Luxemburg como marxista. In: Histria e
Conscincia de Classe. Martins Fontes, So Paulo, 2003. pg. 117.
Idem. pg. 131

SINGER, Paul. Apresentao. In: Luxemburg, Rosa. A Acumulao do


Capital. Nova Cultural, 1985.
BRIE, Michel. Prefcio. In: Loureiro, Isabel M. Rosa Luxemburg: Os
dilemas da ao revolucionria. Editora Unesp.
Idem. pg. 20

Rosa Rosa Souza Rosa Gomes - 145

Machado de Assis

Francisco Jos Soares Teixeira- 146

fico e crtica

Crtica Literria: O Caso


da Vara
Marisa Yamashiro

Bacharel em Letras pela USP e


Membro do Ncleo de Estudos dO Capital

A anlise do conto de Machado de Assis tenta chamar a


ateno para as relaes de dependncia e suas consequncias na
manuteno do estado das coisas.

Em resumo, O caso da vara, publicado na Gazeta de Notcias


em 1891,1 traz os momentos de apuro e angstia de Damio, um
rapaz que foge do seminrio e procura refgio na casa de Sinh
Rita, uma viva que ele suspeita ser amante de seu padrinho,
Joo Carneiro. Damio consegue persuadi-la a usar sua influncia
sobre o padrinho, para que ele interceda junto ao compadre e o
convena de que o filho no tem vocao para a Igreja, tampouco
para o seminrio. Enquanto aguarda por uma notcia boa trazida
pelo padrinho, Damio passa o dia com Sinh Rita, alternando
momentos de apreenso e troca de piadas; uma delas, no entanto,
provoca riso tambm em uma das crias da casa, a menina Lucrcia
de onze anos. Tal impropriedade de achar graa fora de hora e,
implicitamente, fora de lugar social desagrada a senhora, que a
ameaa de castigo caso a tarefa da costura no esteja pronta ao final
do dia. Sentindo-se responsvel pela distrao da menina, Damio
promete a si mesmo que intervir junto a Sinh Rita caso ela queira
puni-la de fato e, mais ainda, que a apadrinhar. No fim do dia, o
trabalho de Lucrcia ainda est por terminar e Sinh Rita agarra-a

pela orelha para castig-la; nesse momento, a despeito da promessa


em favor da menina, uma outra realidade concorre com o senso de
justia e compaixo de Damio.
Retomando o momento de introduo de Damio vida
eclesistica, Machado lana, sem alarde, num deslocamento temporal
e espacial do cenrio principal da estria, a ideia moralizante do conto,
atravs da voz do reitor do seminrio. Ao apresentar-lhe Damio, o
padrinho o projeta no futuro como o grande homem que h de ser,2
ao que o reitor lhe responde: venha o grande homem, contanto que
seja tambm humilde e bom. A verdadeira grandeza ch. Nessa
resposta, Machado questiona e desconstri o imaginrio que cerca
uma conduta de grandeza que, longe da ideia de humildade, estivesse
viciosamente atrelada ao orgulho de quem a pratica por um lado e,
por outro, sustentada pela admirao do outro.
Do alto de sua condio beneficente, a inteno do rapaz
piedosa e avessa a injustias, assumindo total responsabilidade sobre
a distrao da menina. Posto, entretanto, na posio de beneficirio
e dependente do favor daquela que cometia o ato injusto, as
consequncias da atitude benevolente passam a ser calculadas e, ao
fim e ao cabo, sua necessidade (ou vontade) individual se sobrepe
grandeza do gesto que no se sustenta em defesa da menina, e
direciona para si todo o benefcio das relaes de favor em jogo.

Machado no precisa o ano em que os fatos se deram, mas


afirma ser antes de 1850, o que suficiente para nos assegurar qual
seja a relao de trabalho ainda vigente no Brasil isso do lado de fora
da casa de Sinh Rita, porque dentro dela, certamente, se respiram os
ares da escravido. Num primeiro momento, o narrador nos introduz
a menina impessoalmente, como uma das crias de Sinh Rita e, ao
enunciar seu nome, j sob o alar da vara ameaadora da Sinh que
ele o faz:
_ Lucrcia, olha a vara!
A pequena baixou a cabea, aparando o golpe

Mas quem Lucrcia, alm de ser uma das crias da casa,


sobre quem se levanta a vara to somente por ter desviado a ateno
para o rapaz que fazia rir tanto a Sinh?... Ela uma criana, vivendo
no se sabe em que condies: era uma negrinha, magricela, um
frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura
na mo esquerda. Contava onze anos (...) tossia, mas para dentro,
148 - Crtica Literria: O caso da vara

surdamente, a fim de no interromper a conversao. Filha de


negros, provavelmente ainda escravos nesse tempo, j traz no corpo
franzino sinais do uso da violncia do senhorio e no tossir abafado,
ndices de represso. Aprende movimentos rpidos, e necessrios,
esquivando-se do castigo do costume.

Hbito de castigar, hbito de apanhar, assim se apresenta a


relao entre a menina e Sinh Rita, dona da casa e de suas crias.
Por um lado, a senhora subalterniza as escravas e por outro ela se
subalterniza ao manter s escusas o romance com Joo Carneiro,
ainda que bastante forte sua influncia sobre ele. Quando Damio
duvida que o padrinho o atenda e, astutamente, que atenda a
qualquer pessoa, uma atitude repentina de boa vontade em favor
do rapaz ilumina a viva: movida por nenhuma outra razo que seu
orgulho, a viva manda trazer imediatamente o padrinho em sua
presena. Aqui poderamos, ento, numa proposio provocativa,
ecoar sobre a viva as palavras do reitor: as verdadeiras grandezas
so chs.
Ao chegar casa da viva e deparar-se com o afilhado, Joo
Carneiro empalidece e ameaa-o de castigo por estar incomodando
a viva, a qual lhe questiona Castigar por qu?. E ns nos
perguntamos: qual a funo do castigo na viso da viva? Se fugir do
seminrio, desacatando a deciso paterna e a autoridade eclesistica,
no motivo para castigo, por que a menina rir-se de um chiste seria?
Talvez o que esteja em jogo no seja o gesto educativo supostamente
embutido no castigo, mas a subjugao de ambos, a cria Lucrcia
e o admirador Carneiro, a saber: a primeira pelo domnio scioeconmico e o segundo pela privao amorosa, ainda que clandestino
o romance. Entre olhares de splica e censura ao pedido da viva,
as contrapropostas que invadem a imaginao de Joo Carneiro
oscilam entre o ridculo e a covardia, ultrapassando os limites da
razoabilidade. Vale a citao: Por que lhe no ordenava que fosse a
p, debaixo de chuva, Tijuca, ou Jacarepagu? (...) Ah! Se o rapaz
casse ali, de repente, apopltico, morto! Era uma soluo, cruel,
certo, mas definitiva. As alternativas para Joo Carneiro continuam
na mesma toada de grande imaginao, porm o narrador o traz de
volta responsabilidade, com refinada ironia machadiana: Imaginai
que o barbeiro de Napoleo era encarregado de comandar a batalha
de Austerlitz... Mas a igreja continuava, os seminrios continuavam,
o afilhado continuava, cosido parede, olhos baixos, esperando, sem
soluo apopltica.
Marisa Yamashiro - 149

Damio tem, em contrapartida, um olhar fino, atento e


curioso: desconfia do caso amoroso entre a viva e o padrinho e se
vale dele para que ela o ajude; reconhece o carter mole do padrinho,
mas sabe aproveit-lo assim como as vaidades de Sinh Rita; repara a
tosse abafada da menina Lucrecia e, ao recontar a piada a umas moas
da vizinhana, verifica se ela ria novamente, mas no ria todavia,
num comentrio mordaz, desfere: ou teria rido para dentro, como
tossia. Damio calcula seus passos, prefere prev-los, mas no deixa
escapar oportunidades: a fuga do seminrio j havia sido planejada,
para mais tarde, mas uma circunstncia fortuita a apressou. Para no
se deparar com situaes de impasse, planeja: prevendo a possibilidade
do pai chamar a polcia correu ao quintal, e calculou que podia saltar
o muro para chegar a uma determinada rua, mas tambm cogita
pedir a algum vizinho para receb-lo. At mesmo as boas aes ele
calcula: resolveu apadrinh-la, se no acabasse a tarefa, mas somente
se, e no antes; planeja com segurana: Sinh Rita no lhe negaria
o perdo....
No entanto, as coisas nem sempre correm dentro do planejado.
Ao pedir a Sinh Rita abrigo e intercesso junto ao padrinho, Damio
se coloca, por opo ou falta de melhor opo , numa posio de
dependncia em relao a Sinh, no que toca sua influncia, menos no
mbito econmico que no afetivo, e, ao mesmo tempo, numa posio
de privilgio de classe sobre uma camada inferior, a da menina sujeita
ao castigo da senhora. Economicamente, Damio representaria a
figura do homem livre e pobre,3 restando-lhe ser subserviente e, no
raro, lanar mo do escravo, nico patamar ainda mantido abaixo
do seu, em proveito prprio. Como retratado em outro conto de
Machado de Assis, Pai contra me, nele o homem livre e pobre tem
a funo de entreg-lo literalmente ira do senhor.4
Embora se posicione nessa camada intermediria, Damio
no tem nenhum papel social a cumprir, salvo no desagradar ao
senhorio. Enquanto se encontra na zona confortvel de voluntariedade
e planos bem traados, capaz de gestos nobres, promete a si mesmo
apadrinhar e defender a menina negra do castigo da senhora; mas,
solicitado a cumprir o papel intermedirio, de danar conforme
a msica sem resvalar a ordem das coisas, tirado dessa zona de
conforto de ideais e segurana.

Em Iai Garcia, romance de 1878, Machado nos fala da


coexistncia de duas naturezas no homem, a natureza primeira,
150 - Crtica Literria: O caso da vara

instintiva e sem filtros, e a outra mediada pelos valores sociais


vigentes. Citando o nosso autor:
A vida no uma gloga virgiliana, uma conveno natural, que
se no aceita com restries, nem se infringe sem penalidade. H
duas naturezas, e a natureza social to legtima e to imperiosa
como a outra. No se contrariam, completam-se; so as duas
metades do homem5

Assim, quando a realidade invoca Damio, as duas


naturezas de que nos fala Machado imperam de fato e, a despeito
da possibilidade da natureza segunda se configurar a favor da
menina negra e de um impasse na deciso do rapaz, a natureza
segunda se impe segundo a ordem natural das coisas, e as duas
naturezas de que nos fala Machado acabam apontando para uma
mesma direo, a saber, a da manuteno da ordem. O desejo de
sair do seminrio, natureza primeira, se une ao dever de cumprir
seu papel social, natureza segunda, e tudo acaba bem, dentro da
ordem. Damio no apenas deixa de defender a menina, como
entrega a vara solicitada pela Sinh, encerrando o caso da vara
com a qual a menina ser castigada, origem mesma das cicatrizes
na testa da criana negra.

Como bem diz o sentencioso narrador do conto Pai contra


me ao falar das mscaras usadas nos escravos, Era grotesca tal
mscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcana sem o
grotesco, e alguma vez o cruel.6
Nota: este artigo trouxe para a revista Mouro uma reflexo
sobre um conto de Machado de Assis. De um modo geral, a incluso
da literatura ficcional pode causar estranheza em meio linha
histrico-marxista proposta pela revista, porm tambm possvel
e foi meu objetivo nesta minha intromissso que se perceba o
poder crtico do nosso autor sobre a realidade, que ele soube to bem
reproduzir na fico.

Fica como destaque para esta Mouro Mulheres a


observao de um dos idealizadores da revista, Lincoln Secco, a saber,
a da subalternizao no somente em uma, mas tambm em duas
mulheres do conto: a da cria Lucrecia mais evidente e a da viva
que tem que manter escondida sua relao com Joo Carneiro.

Marisa Yamashiro - 151

Notas
1.
2.
3.

4.
5.

6.

Em 1899, o conto foi republicado por Machado de Assis na coletnea


Pginas recolhidas.
Citaes extradas de: Machado de Assis, O caso da vara, in Contos: uma
antologia: seleo, introduo e notas John Gledson, So Paulo: Companhia das
Letras, 1998, vol. 2, pp. 378-385

Como indicao de leitura sobre o homem livre e pobre no romance


machadiano, ver anlise da personagem Jos Dias, o agregado de Dom
Casmurro, em: Schwarz, Roberto: A poesia envenenada de Dom Casmurro
in Duas meninas. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 19-27
Para uma comparao entre os dois contos: Bosi, Alfredo. Machado de Assis:
o enigma do olhar. So Paulo: tica, 1999, pp. 120-125

Machado de Assis, Iai Garcia: edies crticas de obras de Machado de


Assis. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975. Chama ateno para esse
aspecto: Pereira, Lucia Miguel. Machado de Assis: estudo crtico e biogrfico. 3.
ed., Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1955, pp. 173-85
Pai contra me in Machado de Assis, contos. op. cit., p. 483

152 - Crtica Literria: O caso da vara

Comrcio e vida
urbana na
cidade de
So Paulo
(1889-1930)
Marisa Midori Deaecto

O que este livro faz reviver


em toda a sua inteireza uma cidade que j tendia a ser, no quinhentismo, a capital geogrfica
do Brasil, como a chamou Jaime
Corteso. Assim, as andanas de
suas gentes, seus costumes, suas
atitudes e sua f, juntam-se com
aqueles impulsos econmicos
bsicos que levaram os paulistas
at muito longe, devastando o
serto ignoto na caa ao bugre
e s pedras preciosas. (...)
Marisa Deaecto mostra como a
disposio do eixo comercial no
tringulo continuou respeitando a topografia acidentada da

cidade. Enfim, ela escolheu escrever uma geohistria de So


Paulo, cujo ncleo o comrcio,
com suas rotas e transportes. Mas
este apenas o motivo inicial.
Ela usa o comrcio para reconstituir a totalidade da vida social
e econmica. O nico excesso,
poder-se-ia afirmar, o seu amor
desmedido pela cidade. Que a
autora no consegue esconder.
E deixa transparecer nas linhas
e, especialmente, nas entrelinhas
de seu belo livro.

Editora SENAC So Paulo

fico e crtica

O desafio de ter a
liberdade de pensar as
coisas em si
Maria Viana

Bacharel em Letras pela USP e mestranda do


Programa Culturas e Identidades Brasileiras do
Instituto de Estudos Brasileiros da USP

Ser que a expresso a liberdade de pensar as coisas em


si,1 que o cerne da questo colocada por Virginia Woolf no livro
Um teto todo seu, poderia tambm ter sado das mos Marguerite
Yourcenar? Se a resposta puder ser afirmativa, a meu ver, esse o
ponto de conexo entre essas duas grandes escritoras.

Sei que poderia escolher outro percurso de reflexo e


escrever, por exemplo, sobre o quanto as obras por elas escritas
foram fundamentais na minha vida e formao. No por terem sido
urdidas por mulheres, mas por serem grandes obras literrias. Isso
porque, realmente, no acredito na existncia de uma literatura
feminina, pois, se assim fosse, no haveria tambm de se criar o
rtulo literatura masculina?
Ento, se escrevo sobre Virginia Woolf e Marguerite
Yourcenar e no sobre Goethe, Flaubert ou Guimares Rosa por
que, em um exemplar assinado s por mulheres, caso deste exemplar
da revista Mouro, no mnimo instigante pensar em um fio que possa
alinhavar a produo esttica de duas escritoras que produziram em
lnguas distintas, ingls e francs e, portanto, a partir de tradies
literrias e em condies de produo tambm especficas.

Depois de muito ler e refletir, a questo colocada por Virginia


Woolf, e que, talvez, ainda seja a grande dificuldade que muitas
mulheres tm como produtoras textuais de fico ou teoria, ainda
ecoava: como alcanar a to almejada liberdade de pensar as coisas
em si? Portanto, a partir desse ponto que darei curso reflexo
aqui proposta.

Virginia Woolf nasceu em Londres, a 25 de janeiro de 1882,


em um ambiente intelectualizado. Filha de um famoso crtico literrio,
Leslie Stephen, desde menina a futura escritora seria estimulada a
pensar com liberdade. Ainda que essa formao intelectual libertria
no compensasse certas proibies severas impostas mulher de
maneira geral, naquela poca. Interdies que iam desde a proibio
de fumar, passando pelo no direito ao voto, que s foi permitido na
Inglaterra depois de 1919, mas s para inglesas com mais de 30 anos.
Alm do fato de a mulher s poder ter o direito de posse sobre uma
casa naquele pas, a partir de 1880.
Talvez tenha sido justamente a forte conscincia sobre a
condio da mulher na sociedade de sua poca que levou Virginia
Woolf a desenvolver importantes consideraes a respeito dos
entraves impostos criao ficcional feminina no livro que, no Brasil,
recebeu o ttulo Um teto todo seu. Trata-se da reunio de dois artigos
lapidares, escritos em outubro de 1928, quando fora convidada para
dar uma palestra sobre o tema As mulheres e a fico.
Ao ser interditada pelo bedel por percorrer determinado
caminho nos parques de Oxbridge, que s podia ser usado por
graduados da universidade, e ser proibida de entrar na biblioteca
da mesma instituio, por no estar acompanhada de um estudante
local, Virginia resolve desenvolver toda a sua palestra pensando a
respeito da sujeio intelectual das mulheres ao longo dos sculos
e sobre o quanto isso estava ligado ao fato de elas, mesmo quando
nascidas em bero esplndido, no poderem administrar o prprio
dinheiro, realizarem determinadas funes e serem privadas de seus
direitos cvicos e de cidadania.

Isso quer dizer que, se na fico, desde a Antiquidade, as


mulheres eram hericas, corajosas e brilhantes, e os exemplos so
abundantes, s pensar, em Electra, Media, Fedra, Lady Macbeth,
Ana Karenina, madame de Guermantes, para citar algumas, em casa,
na realidade, elas eram trancadas, surradas e desprovidas de qualquer
direito cvico.
156 - O Desafio de ter a liberdade de pensar as coisas em si

Ao analisar parte do que fora escrito at ento sobre


as mulheres no sculo XIX, Virginia Woolf confere que a voz
predominante era a de que nada se poderia esperar das mulheres
intelectualmente.2
Todavia, o que mais surpreende neste ensaio, que, depois
de percorrer o que havia sido escrito at ento por homens sobre
as mulheres, no s na fico, mas tambm nos estudos cientficos
e histricos, e de se deter sobre a produo feminina das escritoras
inglesas que a antecederam, a ensasta, longe de instigar um esprito
de revolta e vingana, conclui: Alguma colaborao tem que ocorrer
na mente entre a mulher e o homem antes que a arte da criao
possa realizar-se. Algum casamento entre opostos precisa ser
consumado.3

E, finalmente, quando chega produo feminina


propriamente dita, e descobre que Jane Austen escrevia na sala de
estar, e escondia seus papis quando chegava uma visita, Woolf
considera que a produo da autora de Orgulho e preconceito
superior de Charlote Bront justamente porque, apesar de todas as
dificuldades de produo enfrentadas por Austen, ela no entra em
conflito, como Bront, com sua sina de mulher reprimida. Portanto,
quando uma ficcionista v o homem como a faco oposta, sua
criao literria torna-se fraca e empobrecida.
Indo mais alm, Virginia Woolf aponta que se os homens
escritores criaram personagens femininas fortes e inesquecveis; em
contrapartida um quadro verdadeiro do homem como um todo
nunca poder ser pintado enquanto uma mulher no descrever
aquele pontinho do tamanho de um xelim.4 E conclui que isso
s ocorreria quando a mulher tivesse mente andrgena, dinheiro
suficiente que lhe permitisse contemplar as coisas at ter sua prpria
opinio sobre elas, e um teto todo seu. Entenda-se que aqui, para
alm de significar um espao fsico onde se possa escrever, o teto
todo seu o direito de poder pensar por si mesma.
E este o fio que nos leva de Virginia Woolf a Marguerite
Yourcenar, que nasceu em 1903, em Bruxelas, mas escreveu em
francs. impossvel sair de livros como Memrias de Adriano e A
obra em Negro sem a certeza de que essa escritora conseguiu ir bem
mais alm daquele pontinho do tamanho de um xelim.

Memrias de Adriano uma reconstituio de fatos ocorridos


no passado, feita na primeira pessoa e sadas da boca de um homem.
Maria Viana - 157

Para urdir seu romance, Yourcenar leu obras de historiadores gregos,


coletneas de cartas do imperador e recorreu a fontes histricas, como
fragmentos de discurso, relatrios oficiais e at moedas cunhadas
poca. O trabalho de ambientao histrica no foi diferente para
a criao de Znon, mdico, alquimista e filsofo, protagonista de A
obra em negro, que se passa na renascena. Ainda que diferentemente
de Adriano, Znon seja uma personagem totalmente fictcia.
Portanto, na construo dos dois romances h o amor de
Marguerite pelo passado, to bem expresso por ela em trechos de
entrevista concedida a Mathieu Galey no livro De olhos abertos:
Quando se fala do amor pelo passado, preciso atentar para isso,
trata-se do amor pela vida; a vida est muito mais no passado que
no presente. O presente um momento curto, mesmo quando
sua plenitude o faz parecer eterno. Quando se ama a vida, ama-se
o passado, porque o presente tal como sobreviveu na memria
humana.5

Mas o que o fato de Marguerite Yourcenar ter concebido


personagens masculinas to marcantes, em obras j consideradas
fundamentais da fico do sculo XX, tem haver com as ideias
postuladas por Virginia Woolf em seu ensaio sobre a mulher
e a fico? Talvez justamente o que Yourcenar diz na mesma
entrevista acima mencionada: Na opo entre a segurana e
a liberdade, eu sempre a fiz no sentido da liberdade. E depois.
Enfim, o horror da posse, o horror da aquisio, da avidez, do
sentimento de que o sucesso consiste na acumulao de dinheiro
muito forte em mim.6

E essa opo pela liberdade me remete liberdade de


pensar as coisas em si, postulada por Virginia em Um teto todo
seu, e que, em certa medida, me leva tambm a considerar o quanto
a educao recebida por Marguerite Yourcenar contribuiu para isso.
A escritora, que jamais frequentou a escola formal foi educada pelo
pai: um francs culto, direto, aventuroso, incrivelmente impulsivo
e independente, decidido (...) Era algum que viveu segundo
seus impulsos e caprichos do momento, um letrado como se era
antigamente, pelo amor aos livros, no para fazer pesquisas ou
mesmo, sistematicamente, para se instruir; um homem infinitamente
livre, talvez o homem mais livre que conheci.7
Foi por intermdio dele que Marguerite Yourcenar aprendeu
ingls, grego e latim. Esses ensinamentos, geralmente, eram feitos
158 - O Desafio de ter a liberdade de pensar as coisas em si

durante viagens, visitas a museus, campos, escavaes. E o que mais


surpreende na postura desse pai educador que deste muito cedo
Yourcenar foi estimulada a ter suas prprias ideias sobre as coisas
e escolher com liberdade. Essa educao pouco ortodoxa, recebida
por Marguerite Yourcenar desde a mais tenra idade, favoreceu o
desenvolvimento da mente andrgena, da qual fala a criadora de
Orlando. E aqui devo apontar que essa ideia de androgenia, defendida
pela escritora inglesa, tambm diz respeito produo masculina
Quando se homem, ainda assim, a parte feminina do crebro deve
ter influncia; assim como a mulher deve tambm manter relaes
com o homem em seu interior.8

Marguerite Yourcenar nasceu uma gerao depois de Virginia


Woolf, mas, na Europa, somente em 1928 a idade mnima para a
mulher votar passou a ser 21 e no 30 anos. Nessa poca, muitas
j podiam gerir o prprio dinheiro, mas certamente poucas, como
Marguerite, ousaram escolher viajar com uma mala de livros e uma
de roupa, em lugar de optar pela estabilidade do casamento. Portanto,
o teto todo seu da escritora belga foi o mundo, at comprar uma
casa na ilha de Maine, em 1949, lugar onde terminou de escrever
Memrias de Adriano. Essa liberdade de ir e vir tambm deve ter
contribudo para o alcance do to almejado desafio de pensar as
coisas em si.
Em 1937, Marguerite Yourcenar traduziu a obra As ondas,
de Virginia Woolf, para o francs. Foi quando teve a oportunidade de
visitar a escritora inglesa, em Bloomsbury. Sobre esse encontro diz
o seguinte: H poucos dias, na sala de visitas vagamente iluminada
pelo fogo onde Virginia Woolf teve a bondade de acolher-me, eu
olhava recortar-se na penumbra esse plido rosto de jovem Parca
um tanto envelhecido, mas delicadamente marcado pelos sinais do
pensamento e da lassido, e me dizia que a acusao de intelectualismo
frequentemente feita s naturezas mais finas, s mais ardentemente
vivas, obrigadas s duras disciplinas do esprito. Para tais seres, a
inteligncia apenas uma vidraa perfeitamente transparente atrs
da qual olham atentamente a vida passar.9

Participar da vida como produtora de conhecimento,


diplomar-se em universidades, ocupar posies que at bem pouco
tempo eram exclusivas aos homens, poder exercer plenamente os
direitos de cidadania e tantas outras conquistas j foram alcanadas
por significativa parcela de mulheres. E muitas, certamente, j
Maria Viana - 159

conseguiram tambm a liberdade de se expressar livremente e exercitar


essa expresso, at que a totalidade da mente fosse escancarada e elas
pudessem comunicar sua experincia com inteireza, talvez justamente
porque, Como Virginia Woolf e Marguerite Yourcenar, no tenham
visto no homem a faco oposta.
Notas
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985,
p. 52.
Ibidem, p. 71.
Ibidem, p. 72.

Ibidem, p. 119.

GALEY, Matthieu. Entrevistas como Marguerite Yourcenar. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1985, p. 35.
Ibidem, p. 88.
Ibidem. p 27.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985,
p. 82.
YOURCENAR, Marguerite. Peregrina e estrangeira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989, p. 96.

Bibliografia
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
GALEY, Matthieu. Entrevistas como Marguerite Yourcenar. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
YOURCENAR, Marguerite. Peregrina e estrangeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989.
________. A obra em negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
________. Memrias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

160 - O Desafio de ter a liberdade de pensar as coisas em si

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publicao, pgina citada (p.) ou pginas citadas (p.).
Ex.: ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: Franois Maspero, 1965.
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Artigo em Coletnea
SOBRENOME, Nome. Ttulo do captulo. In: SOBRENOME, Nome (org.).
Ttulo em itlico. Local de publicao: Editora, data, pgina citada.
Ex.: MAO Jr., Jos Rodrigues. A Revoluo Cubana em Questo, in: SECCO,
Lincoln e SANTIAGO, C. (Orgs). Um Olhar que Persiste: Ensaios Crticos sobre
o Capitalismo e o Socialismo. So Paulo: Editora Anita, 1995.
Artigo em Revista
SOBRENOME, Nome. Ttulo do artigo. Ttulo do peridico em itlico, volume,
nmero do peridico, Local, ms (abreviado) e ano de publicao.
Ex.: SANTOS, Agnaldo. A Construo Histrica da Juventude e a Ascenso da
Juvenilidade. Mouro - Revista Marxista, N. 1, S. Paulo, dez 2009.
Tese Acadmica:
SOBRENOME, Nome. Ttulo da tese em itlico: subttulo. Tipo de trabalho
(Dissertao Mestrado ou Tese Doutorado), universidade, ano.
Ex.: REISEWITZ, Marianne. Dom Fernando Jos de Portugal: Prtica Ilustrada na
Colnia (1788-1801), Dissertao de Mestrado, Universidade de So Paulo, 2001.
Ilustradores que quiserem publicar suas obras (xilogravuras, aquarelas, bricolagens
etc) so bem-vindos. A edio em papel no colorida, mas a edio virtual sim.

Francisco Jos Soares Teixeira - 162

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