Ebook Marx Hoje PDF
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Sumrio
Apresentao....................................................................................7
Prefcio...........................................................................................15
Marcello Musto, York University
Organizadores...............................................................................277
Autores..........................................................................................279
Apresentao
Apresentao
que lhe deu origem (conferncias, mesas-redondas e grupos temticos). Um aspecto, contudo, todos carregam: o carter revolucionrio, ao menos em inteno. Aproveitamos para agradecer pela
colaborao de todos os autores.
O livro est organizado em trs partes, que so precedidas por um prefcio, este, de autoria de Marcello Musto, professor da York University. Profundo conhecedor da obra marxiana,
Musto instiga os leitores a refletirem sobre a importncia da atualidade do pensamento marxiano a partir da apresentao do projeto Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), que pretende lanar
a edio completa dos escritos de Marx e Engels. Aproveitamos
para agradecer a contribuio de Victor Varela na traduo deste
material.
A primeira parte rene material acerca dos fundamentos
ontolgicos, tericos e metodolgicos da teoria marxiana e tradio marxista, disposto em cinco captulos.
No primeiro deles, Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN)
alude ao trip fundamental da teoria social marxiana mtodo
dialtico, teoria do valor-trabalho e revoluo para reivindicar a atualidade do mtodo de Marx. Na esteira da tradio marxista que recorre a Lukcs para reforar a ortodoxia do mtodo,
Yamamoto reitera o incontestvel lugar que a teoria social marxiana ocupa na compreenso da sociedade burguesa e na sua
superao. Tambm caracterstica desse texto a reflexo acerca
da apropriao de Marx pela academia, que, espao de contradio, tem sido lugar de formao, de resistncia poltica, de crtica
s tendncias relativistas, e de sofisticao de anlises de inspirao marxiana.
Na sequncia, Ivo Tonet (UFAL) fundamenta-se na ontologia do ser social para destacar a primazia do trabalho na constituio do ser social e a necessidade do retorno ao carter crtico
do pensamento de Marx para um projeto revolucionrio. Tonet
disserta sobre o carter genrico do trabalho como categoria
mediadora do ser social com o ser natural, e como modelo de
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Prefcio
Marcello Musto
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Diante de uma nova e profunda crise do capitalismo, jornalistas e formadores de opinio, de vrios crculos polticos e
culturais, esto novamente buscando um autor que, no passado,
era frequente e erroneamente associado Unio Sovitica e que
foi fortemente desacreditado depois do socialismo realmente
existente.
Desde 2008, centenas de grandes jornais, revistas, canais
de televiso e rdios tm estampado discusses reiteradas acerca
do papel de Marx como um dos mais relevantes pensadores de
todos os tempos.
Tem havido um renascimento de Marx em quase todos
os lugares. Ao redor de todo o mundo, cursos universitrios e
conferncias sobre seu pensamento esto na moda novamente1.
O Capital tornou-se mais uma vez um best-seller na Alemanha,
enquanto uma verso do livro foi produzida em mang, no Japo.
Na China, uma nova edio dos trabalhos de Marx e Engels est
sendo publicada (com tradues do alemo e no, como no passado, do russo), enquanto na Amrica Latina uma nova demanda
por Marx tem sido recorrente na poltica. Na Europa, como
demonstrado com a vitria do Syriza a Coligao da Esquerda
Radical nas eleies da Grcia, a crtica ao capitalismo e aos
seus dogmas contemporneos est de volta ao cenrio poltico.
Alm disso, peridicos acadmicos tm estado crescentemente abertos a contribuies sobre a produo de Marx e,
durante os ltimos anos, uma proliferao de estudos sobre sua
obra tem indubitavelmente surgido. Depois de um baixo interesse
nos anos 1980 e de um silncio conspiratrio nos anos 1990,
edies novas ou republicadas dos escritos de Marx tornaram-se novamente disponveis em quase todo lugar em que o autor
era popular nos anos 1960 e 1970 (exceto na Rssia e no Leste
Europeu, onde os desastres do socialismo realmente existente
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perso de seus manuscritos, comprometendo qualquer possibilidade de uma edio sistemtica. Inacreditavelmente, o Partido
Social-Democrata da Alemanha no finalizou o trabalho, tratando
o legado literrio de Marx e Engels com o mximo de negligncia.
Nenhum de seus tericos reuniu uma lista cuidadosa dos manuscritos de seus dois fundadores. Ningum se dedicou a coletar suas
correspondncias, a despeito do fato de que esta foi claramente
uma fonte muito til de esclarecimento acerca dos seus escritos.
A primeira tentativa de publicar as obras completas de
Marx e Engels, a Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), deu-se
apenas nos anos de 1920, na Unio Sovitica. Ainda, no comeo
dos anos 1930, o stalinismo, que tambm alcanou os principais acadmicos envolvidos no projeto, e o advento do Nazismo
na Alemanha interromperam abruptamente os trabalhos nessa
edio.
A MEGA, planejada para ser uma reproduo fiel com um
aparato crtico extensivo de todos os escritos dos dois pensadores, iniciada em 1975, tambm foi interrompida; desta vez, como
resultado da queda do Muro de Berlim. Em 1990, com o intuito
de continuar a edio, o Internationaal Instituut voor Sociale
Geschiedenis, de Amsterdam, e o museu Karl Marx Haus, em
Trier, formaram o Internationale Marx-Engels-Stiftung. Depois de
uma fase difcil de reorganizao, em que novos princpios editoriais foram aprovados, a publicao da MEGA recomeou em
1998.
A edio est dividida em quatro sees: a primeira
inclui todas as obras, artigos e rascunhos, excluindo O Capital;
a segunda inclui O Capital e seus estudos preliminares de 1857;
a terceira dedicada correspondncia trocada entre Marx e
Engels; enquanto a quarta contm trechos, anotaes e notas marginais. Dos 114 volumes planejados, 58 j foram publicados (18
reiniciados desde 1998), cada qual consistindo em dois livros: o
texto mais o aparato crtico, que contm os ndices e muitas notas
adicionais. Esse empreendimento tem uma grande importncia,
Prefcio
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considerando que uma parte substancial dos manuscritos preparatrios de Marx dO Capital, de sua correspondncia volumosa e
do imenso montante de trechos e anotaes comuns enquanto o
autor lia nunca foram publicadas antes da MEGA.3
Devido importncia dessas novas publicaes, o Marx
que ora emerge , em muitos aspectos, diferente daquele que foi
apresentado tanto por seus crticos quanto por seus ostensivos
seguidores. As esttuas de pedra que delineavam o caminho para
o futuro com uma certeza dogmtica nas praas de Moscou e
Pequim deram espao para a imagem de um pensador profundamente autocrtico que, sentindo a necessidade de devotar energia
para os estudos futuros e verificando seus prprios argumentos,
deixou inacabada a maior parte de seu trabalho de uma vida.
Qualquer outra contribuio rigorosa pesquisa sobre Marx, no
Brasil ou em qualquer parte do mundo, ter que levar em conta as
novas aquisies textuais MEGA.
No apenas um clssico
Libertada da irritante funo de instrumentum regni4,
qual foi designada no passado, e das correntes do marxismo-leninismo do qual est certamente separada, a obra de Marx tem sido
reempregada em novos campos do conhecimento. A completa
revelao de seu precioso legado terico, tomado de supostos
e presunosos proprietrios e dos modos de usos restritos, tem
tornado possvel esse processo. Entretanto, se Marx no figura
mais como uma esfinge cravada protegendo o velho socialismo
realmente existente do sculo XX, seria igualmente equivocado
acreditar que seu legado poltico e terico pode ser confinado
a um passado que no tem nada a contribuir com os conflitos
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atuais. Relegar Marx posio de clssico embalsamado, til apenas academia, seria um erro tal qual sua transformao em uma
fonte doutrinria do socialismo realmente existente.
A redescoberta de Marx est baseada em sua capacidade
persistente de explicar o presente: ele permanece como um instrumento indispensvel para entend-lo e transform-lo. Depois
de anos de manifestos ps-modernos, de falas solenes sobre o
fim da histria e da nfase s ideias vazias da biopoltica, o
valor das teorias de Marx est sendo reconhecido novamente, de
modo cada vez mais extensivo.
Quando Marx escreveu O Capital, o modo de produo
capitalista ainda no estava completamente desenvolvido, ainda
que ele tenha previsto que este seria expandido em escala global
e tenha formulado suas teorias a partir dessa base. Atualmente,
aps o colapso da Unio Sovitica e difuso da economia de
mercado a novas reas do planeta, como a China, o capitalismo
tem se tornado um sistema verdadeiramente mundial. Ademais,
o capitalismo no se expandiu apenas geograficamente, mas tambm em todos os aspectos da vida contempornea. Invadiu e deu
forma a todos os aspectos da existncia humana. No est apenas
determinando nossas vidas durante nossas jornadas de trabalho
uma parte da vida humana que, depois de trs dcadas de neoliberalismo, expandiu dramaticamente, em detrimento das descobertas cientficas e o aumento geral das riquezas mas tambm
tem transformado as relaes sociais. Uma destas certamente so
as transformaes trazidas pela tambm chamada globalizao.
A despeito de todas as transformaes profundas, Marx
ainda apresenta atualmente um rico espectro de ferramentas com
as quais se entende tanto a essncia quanto o desenvolvimento
do capitalismo. Ele no meramente um grande clssico da
Economia e um pensador poltico, mas um autor que dispe de
ideias que se provam mais frteis do que em seu prprio tempo.
claro que os escritos que Marx produziu h um sculo e meio no
contm uma descrio precisa do mundo de hoje. Porm, se sua
Prefcio
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Parte I
A tradio marxista:
pesquisa e transformao social
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cada qual buscando em sua obra os contributos para a sua especialidade e negando a unidade de sua obra.
Essa perspectiva acaba trazendo, como consequncia, a
possibilidade de conceber as especialidades como recortes legtimos dos objetos reais. Ou, de acordo com Lukcs (HOLZ et al.,
1969), sanciona um entendimento corrente (e equivocado) de que
alcanar a cidadania acadmica indicaria tratar o seu objeto de
uma esfera autnoma do ser.
Eu me referi ao fato de essa matriz ser oposta primeira
mas, ao mesmo tempo, anloga e complementar pois, de forma
equivalente interpretao do marxismo oficial embora fragmentada em suas diversas especialidades resultando em uma
concepo fatorialista do social , a obra marxiana possibilitaria
a interpretao do real em todas as suas expresses.
Mas possvel pensar em uma terceira interpretao,
aquela que parte das prprias formulaes marxianas, buscando
apanhar a sua estrutura interna. Partimos, pois, da afirmao contida nA Ideologia Alem de que ele (e Engels) (MARX; ENGELS,
1845-1846/2007) reconhecem uma cincia, a cincia da histria,
que, por sua vez, seria subdividida na histria da natureza e na
histria dos homens (reciprocamente condicionados). Marx (e
Engels) afirmam seu foco de interesse, naquela obra, na histria
dos homens. E o fazem a partir da compreenso do social como
uma unidade terica articulada a partir da perspectiva da totalidade. Articulado com essa obra de 1845-46, encontramos as
Teses sobre Feuerbach2, com a conhecida undcima tese na qual
Marx prope que a filosofia no deve se restringir a interpretar o
mundo, mas tambm transform-lo.
Ainda seguindo Jos Paulo Netto (2011), essa nova inteligibilidade do social posta por Marx seria caracterizada por
trs recusas: (a) a recusa compreenso de objetos tericos
Alm da transcrio das Teses, h uma importante anlise delas em Labica (1990).
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A mxima fidelidade ao objeto no significa, ao contrrio do que se possa deduzir, uma passividade do sujeito, mas, igualmente, uma mxima atividade do
sujeito que est investigando.
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Essa afirmao de Jos Paulo Netto uma referncia a uma anlise de Maximilien
Rubel, que afirma que O Capital se apresenta como uma teoria inacabvel da
transio (RUBEL, 1985).
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No me parece diverso o entendimento de Gramsci (ao se referir criao cultural) acerca da necessidade de difundir verdades j descobertas, socializ-las,
transformando em base de aes vitais, em elementos de coordenao e de ordem intelectual e moral (1999, p. 96).
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Referncias
ANDERSON, P. O Fim da Histria: de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro:
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da Filosofia/A Filosofia de Benedetto Croce). Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1999.
HOLZ, H. H.; KOFLER, L.; ABENDROTH, W. Conversando com Lukcs.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
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Zahar, 1990.
LENIN, V. I. Plan of Hegels Dialectics (Logic), 2003 (Texto original
publicado em 1930). Disponvel em: <http://www.marxists.org/
archive/lenin/works/1915/misc/x01.htm>.
LUKCS, G. Histria e Conscincia de Classe. Porto: Escorpio, 1974.
(Texto original publicado em 1923)
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se refere ao trabalho humano, no sentido mais genrico possvel, como um intercmbio do homem com a natureza atravs do
qual so produzidos os bens materiais necessrios existncia
humana. E que este ato tanto transforma a natureza, adequando-a
ao atendimento das necessidades humanas, quanto transforma os
prprios seres humanos. Ainda segundo Marx, a natureza mais
ntima do trabalho se expressa no fato de ele ser uma sntese de
prvia-ideao e realidade natural. Esta sntese se realiza pela
mediao da prtica social. com isto que nasce este novo tipo
de ser, que o ser social. E por isso que o trabalho, neste sentido
de produtor de valores de uso, ser uma necessidade eterna da
humanidade.
O que Lukcs far ser retomar esses elementos fundamentais elaborados por Marx, ampli-los e aprofund-los. Mas
ser, como ele mesmo afirmou explicitamente, sempre na trilha
aberta pelo prprio Marx.
Um alerta metodolgico inicial feito pelo autor. Adverte
ele que o trabalho nunca um ato isolado. Ele sempre se realiza
no interior de uma dada totalidade social. Para poder, no entanto,
identificar os elementos que caracterizam essencialmente essa
categoria, faz-se necessrio separ-la da totalidade social e analis-la como se fosse algo isolado. Somente em seguida ser possvel recolocar essa categoria no interior da totalidade social e
apreender as suas conexes com as outras categorias.
Lukcs comea afirmando que s podemos compreender a
natureza especfica do ser social se apreendermos sua necessria
vinculao com o ser natural (inorgnico e orgnico). Entre um
e outro, porm, interpe-se uma mudana essencial, que Lukcs
chama de salto ontolgico. Ontolgico no sentido de que se trata
de uma mudana qualitativa, essencial, que, sem perder a sua
vinculao com o ser natural, d origem a um tipo de ser radicalmente novo. E essa diferena radical explicita-se no fato de que
a reproduo desse novo tipo de ser, ao contrrio do ser natural,
que ou apenas se transforma em algo diferente (ser inorgnico)
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Certamente, a liberdade assumir as formas mais diversas tanto dependendo da dimenso da atividade humana na qual
ela se efetiva como ao longo do processo histrico. No entanto,
independente das suas formas, seu fundamento reside, em ltima
instncia na existncia da alternativa no interior do trabalho.
Retornando questo do carter da conscincia, reconhece o autor que o conhecimento tem que ter, necessariamente,
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Lukcs sabe que esta nfase no papel da conscincia causar espcie e dar margem acusao de idealismo. Por isso ele
se apressa em afirmar (1978, p. 5):
Porm, no se deve esquecer que os complexos problemticos aqui emergentes (cujo tipo mais alto o da
liberdade e da necessidade) s conseguem adquirir um
verdadeiro sentido quando se atribui e precisamente
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no plano ontolgico um papel ativo conscincia.
Nos casos em que a conscincia no se tornou um
poder ontolgico efetivo essa oposio jamais pode ter
lugar. Em troca, quando a conscincia possui objetivamente esse papel, ela no pode deixar de ter um peso
na soluo de tais oposies.
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Referncias
LUKCS, G. Ontologia dell`Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1981.
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica. Rio de Janeiro:
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MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alem. So Paulo: Expresso Popular,
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Pesquisa e marxismo
O caminho que escolhi para abordar a relao entre pesquisa e marxismo o de socializar os percursos da pesquisa que
vimos desenvolvendo, orientada por essa perspectiva, chamando
ateno para a referncia e a incidncia do mtodo em Marx no
nosso processo de produo de conhecimento. O mtodo em
Marx essa sofisticada bssola para interpretar o mundo, que se
apresenta ao pesquisador como um claro escuro de verdade e
engano, como nos relata Karel Kosk (1976) em seu imprescindvel trabalho Dialtica do Concreto. O pilar do mtodo na teoria
social de Marx to importante que Lukcs (1989, p. 15) escreveu
em Histria e Conscincia de Classe que a ortodoxia marxista se
refere ao mtodo. Em suas palavras: O marxismo ortodoxo no
significa, pois, uma adeso sem crtica aos resultados da pesquisa
de Marx, no significa uma f numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro sagrado. A ortodoxia em matria de marxismo
refere-se, pelo contrrio, e exclusivamente, ao mtodo.
Considerando as aventuras e desventuras da tradio
marxista o estruturalismo com sua misria da razo, como nos
ensinou o saudoso Carlos Nelson Coutinho (2010), a vulgata marxista-leninista, os inmeros manuais, os economicismos, politicismos, monocausalismos e unilateralismos das mais variadas
origens, os namoros eclticos com outras tradies tericas numa
tradio terica e poltica quase bicentenria essa demarcao
de Lukcs imprescindvel. Nesse mesmo texto, ele ressalta tambm a relao entre teoria e histria, teoria e prxis, ou seja, a
perspectiva da revoluo como um elemento interno a esse patamar de observao da realidade. Para Lukcs (1989, p. 17) h uma
relao dialtica do sujeito e do objeto no processo da histria, uma ao recproca, o que implica na recusa peremptria
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E desse objetivo se desdobram alguns objetivos acadmicos especficos, que vimos perseguindo a partir do estudo da
lgica da constituio e alocao do fundo pblico e sua relao
com a poltica social, dos quais destacamos: 1 aprofundar o
estudo terico acerca da relao entre a teoria do valor e o fundo
pblico em Marx e na tradio marxista contempornea; 2 aprofundar o estudo sobre a alocao do fundo pblico brasileiro,
considerando os interesses de classes e segmentos de classe em
disputa, a insero do pas no capitalismo contemporneo e as
polticas econmicas que vm sendo desenvolvidas; 3 refletir
sobre a relao entre poltica social e fundo pblico no Brasil,
considerando o ambiente neoliberal das ltimas duas dcadas e
seu impacto sobre as polticas e direitos sociais; 4 compreender
a natureza da crise do capitalismo em curso e seus impactos sobre
a constituio e alocao do fundo pblico, bem como adensar o
conceito de crise a partir da crtica da economia poltica clssica
e contempornea.
A leitura crtica da crise do capital, do papel do fundo
pblico e seu impacto sobre a produo e a reproduo social,
envolvendo o mundo do trabalho, dos direitos e das polticas
sociais, e tendo como base emprica o oramento pblico, ainda
que no exclusivamente, requisitam a perspectiva da totalidade
do ponto de vista heurstico, considerando que esses so processos que se inscrevem na totalidade concreta, a sociedade burguesa
contempornea, envolvendo ainda a particularidade brasileira. A
categoria da totalidade, portanto, decisiva para trazer tona as
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apropriao privada, entre as classes sociais fundamentais, burguesia e trabalhadores, e seus interesses antagnicos na disputa
pelo fundo pblico, como um elemento insubstituvel na sua
reproduo material. Sobre a contradio, Netto (2009, p. 678)
nos auxilia:
Para ambos, [Marx e Engels] o ser social e a sociabilidade resulta elementarmente do trabalho, que constituir o modelo da prxis processo, movimento, que
se dinamiza por contradies, cuja superao o conduz
a patamares de crescente complexidade e novas contradies impulsionam a outras superaes.
E continua:
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Numa palavra: o mtodo de pesquisa que propicia
o conhecimento terico, partindo da aparncia, visa
alcanar a essncia do objeto. Alcanando a essncia
do objeto, isto : capturando a sua estrutura e dinmica,
por meio de procedimentos analticos e operando a sua
sntese, o pesquisador a reproduz no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo mtodo,
o pesquisador reproduz, no plano ideal, a essncia do
objeto que investigou.
Aqui um pequeno parntese. Participamos de muitas bancas de avaliao de propostas de pesquisa em vrios nveis e,
muitas vezes, apesar da adeso ao mtodo, sobrepe-se o modo
de ser ao dever ser. No campo da poltica social, isso muito
comum, a partir de uma anlise prescritiva, de como a poltica
social deveria ser. Isso pode ser uma consequncia da pesquisa:
algumas recomendaes prticas. Mas a tarefa da pesquisa do
ponto de vista dessa tradio terica desvelar o ser social burgus, a sociedade capitalista, a condio da poltica social nesta
sociedade, suas transformaes no mbito da totalidade histrica concreta, com a finalidade de alimentar os demnios, as
inquietaes, lembrando aqui Renato Ortiz (2008), em belo texto
sobre Octavio Ianni, cuja contribuio pesquisa no campo dessa
tradio terico-crtica formidvel (IAMAMOTO; BEHRING,
2009). E cabe a cincia desconcertar as opinies formadas,
como Durkheim (2007) reconhece como papel da cincia, numa
passagem potica das Regras do Mtodo Sociolgico.
Busca-se, ento, romper com o claro-escuro de verdade e
engano, com a aparncia, com o mundo da pseudoconcreticidade
que precisa ser superado pela crtica (KOSK, 1976). Vejamos a
discusso da crise do capital, suas causas, sua temporalidade e
suas consequncias. As abordagens correntes, acadmicas e jornalsticas a caracterizaram como passageira e conjuntural no
caso dos liberais mais ortodoxos ou como supervel em mdio
prazo desde que sejam desencadeados processos de regulao,
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particularmente sobre a circulao de capitais e a ao dos rentistas, que foram descartados pelos neoliberais como afirmam
muitas das anlises de cariz keynesiano. A perspectiva da totalidade, do mtodo da crtica da economia poltica, permite ver
a crise do capital como um elemento interno a sua lgica, relacionado dinmica da produo e apropriao do valor, diga-se, da acumulao do capital, e contradio entre as classes
sociais, muitas vezes expressa por seus segmentos na correlao
de foras poltica. Permite perceber o curto-circuito no processo
de rotao do capital, e a queda tendencial da taxa de lucros e
suas causas contrariantes, como explicitou Marx (1867/1988),
em O Capital. Tudo isso determina a formao e alocao do
fundo pblico, um componente estrutural inarredvel no capitalismo contemporneo, e a condio da poltica social, como
uma mediao importante no campo da produo e reproduo
da totalidade, considerando seu lugar na reproduo da fora de
trabalho e na relao entre produo e consumo no capitalismo
maduro. O ponto de vista adotado pela pesquisa que desenvolvemos percebe a crise em curso como endmica, profunda e estrutural, envolvendo mltiplas dimenses: econmica, poltica,
social, cultural e ecolgica. Com Mandel (1982), entendemos que
a crise no detonada por uma nica causa (o petrleo, a perversidade da finana, os crditos imobilirios sem lastro etc.). Todo
monocausalismo nos leva a raciocnios reducionistas e dedutivos, que tendem a empobrecer a reproduo do movimento do
objeto como concreto pensado, nos mantendo presos ao imediato,
quando buscamos o mediato. Ou seja, a reproduo no nvel do
pensamento do concreto como sntese de muitas determinaes
formas de modos de ser, determinaes da existncia e unidade
do diverso, prenhe de contradies.
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Observaes finais
Para finalizar, aponto uma premissa importante do nosso
trabalho, para alm da totalidade, da contradio e da mediao,
que o entendimento de que o capitalismo maduro se desenvolve
desencadeando foras destrutivas avassaladoras, ou seja, o capitalismo maduro destrutivo e tende a fugir das regulaes, sendo
a experincia socialdemocrata do Estado de Bem-Estar, do pleno
emprego keynesiano, datada e geopoliticamente situada, delimitada por um conjunto de determinaes que no cabe desenvolver aqui, mas que esto sistematizadas em alguns dos nossos
trabalhos (BEHRING, 1998, 2003; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
Entender os processos sociais a partir desse patamar, evidentemente, no implica uma abordagem catastrofista ou finalista
da histria, que por vezes contagiou e ainda contagia o debate
crtico, e que aqui recusamos veementemente. Se o capitalismo
esgotou ou no seu tempo, um desdobramento que tem a ver
com as foras vivas, com a luta de classes e suas possibilidades
histricas. Nossa nica certeza a de que quanto mais capitalismo
hoje, maiores as possibilidades de barbarizao e banalizao da
vida, de desastre ecolgico, de radicalizao da desigualdade. Da
que, no compromisso acadmico primordial de trazer tona com
maior nitidez os processos sociais em curso no contexto da crise
no nosso caso a dinmica do fundo pblico e da poltica social
na sua relao com o circuito do valor, que organiza a sociedade
burguesa , h um evidente compromisso poltico, de alimentar as lutas sociais e polticas. Como j disse anteriormente, no
existe cincia assptica, neutra e descompromissada. E os tempos
difceis requisitam uma pesquisa na universidade comprometida
com a vida, com a humanidade, num sentido humano genrico
amplo. Um compromisso com a emancipao humana, e emancipao poltica naquelas realidades onde essa mediao ttica
ainda se repe. Mas esse um outro debate.
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Referncias
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modo de produo capitalista. Do mesmo modo outras categorias e processos sociais, tais como a participao, a cooperao, a
solidariedade, que so fundamentais luta dos trabalhadores, so
apropriadas de modo reducionista e despolitizadas pela cultura
capitalista, estratgia necessria para que o modo de vida por ele
engendrado seja naturalizado e assimilado como interesse geral,
reduzindo, desse modo, a potncia substantiva e transformadora
dessas categorias. Esse modo de vida se caracteriza por individualismo egosta, competio e reduo da incluso a possibilidade
de consumir.
H de se considerar, contudo, que as polticas sociais, no
capitalismo, tm carter contraditrio, ao mesmo tempo que conformam, so espaos de luta e resistncia, ao mesmo tempo que
servem aos interesses do capital, atendem a demandas e necessidades da populao trabalhadora, portanto, fundamental potencializarmos processos sociais emancipatrios, mesmo nos limites
do assalariamento, fortalecendo os sujeitos e a classe. Como destaca Marx (1844/1993, p. 112), Uma nao que procura desenvolver-se espiritualmente com maior liberdade no pode continuar
vtima das suas necessidades materiais, escrava do seu corpo.
A solidariedade de classe, conforme a aborda Marx
(1844/1993), tem por fundamento a necessidade de o homem
reconhecer-se como ser humano-genrico, o reconhecimento
de que todos temos direito a ter direitos, diferente da solidariedade crist que se pauta na caridade, na benesse e no favor. A
cooperao, por sua vez, fundamental ao trabalho, capturada
pela sociedade capitalista que no s engendra formas de explorao mascaradas por processos cooperativos, mas captura a subjetividade do trabalhador (ALVES, 2011) a partir de expresses
hipcritas como empreendedor, colaborador, entre outras formas
de mascarar o interesse antagnico que marca da sociedade de
classes. Como bem destacaram Marx e Engels (1845-1846/1993,
p. 119), Esta subsuno dos indivduos a determinadas classes
no pode ser superada at que se forme uma classe que j no
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E complementa Marx (1844 s.d.) destacando que a revoluo poltica (burguesa) aboliu apenas o carter poltico da
sociedade civil, esclarecendo que o homem no se libertou da
religio, recebeu a liberdade religiosa. No se libertou da propriedade, recebeu a liberdade da propriedade, no foi libertado do
egosmo do comrcio, recebeu a liberdade para se empenhar no
comrcio (p. 28).
Na verdade, a revoluo burguesa ou poltica, na concepo marxiana, dissolve a sociedade civil nos seus componentes,
mas no revoluciona esses componentes, porque no vai raiz,
no os submete critica dialtica (MARX, 1844 s.d.). E sobre os
direitos do homem, na mesma obra, esclarece que essa ideia de
direitos do homem surge somente no sculo XVIII, no mundo
cristo, e no se configura como ideia inata, mas se forja na luta
contra as tradies histricas em que os homens foram educados
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at ento, [...] so o prmio da luta contra o acidente do nascimento e contra os privilgios que a histria at agora transmitiu
de gerao a gerao (p. 21).
Portanto, para Marx, toda a emancipao uma restituio
do mundo humano e das relaes humanas ao prprio homem.
A emancipao poltica a reduo do homem, por um lado, a
membro da sociedade civil, indivduo independente e egosta e,
por outro, a cidado, a pessoa moral, logo,
A emancipao humana s ser plena quando o homem
real e individual tiver em si o cidado abstrato, quando
como homem individual, na sua vida emprica, no
trabalho e nas suas relaes individuais, se tiver tornado um ser genrico, e quando tiver reconhecido e
organizado suas prprias foras como foras sociais,
de maneira a nunca mais separar de si esta fora social
como fora poltica (MARX, 1844 s.d., p. 30).
A teoria social de Marx vincula-se a um projeto revolucionrio, Marx dedicou sua vida e sua obra pesquisa da verdade
a servio dos trabalhadores e da revoluo socialista (NETTO,
2011, p. 11), articulando o dilogo crtico com os maiores pensadores ocidentais participao em processos poltico-revolucionrios de sua poca. Conforme destaca Netto, (2011, p. 36),
Ele se dedica obsessivamente ao estudo da sociedade
burguesa: analisa documentao histrica, percorre
praticamente toda a bibliografia j produzida da economia poltica, acompanha os desenvolvimentos da economia mundial, leva em conta os avanos cientficos
que rebatem na indstria e nas comunicaes, considera as manifestaes das classes fundamentais (burguesia e proletariado) em face da atualidade.
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Economia, a Poltica, a Histria, a Comunicao, alm do acompanhamento atento e compromissado das condies materiais de
vida e do modo de vida da classe operria e de seus embates com
a burguesia. Em sntese, uma pesquisa com direo social clara e
com um adensamento pormenorizado acerca da realidade social
em todas as suas manifestaes, interconectando-as para ampliar-lhes o sentido.
Como bem destaca Netto (2011, p. 27), sua pesquisa, da
qual resultam as bases de sua teoria social, tem como problema
central a gnese, a consolidao, o desenvolvimento e as condies de crise da sociedade burguesa, fundada no modo de produo capitalista.
A estruturao da teoria marxiana toma por base o pensamento moderno a partir da filosofia alem, da economia poltica
inglesa e do socialismo francs.
Em Marx a crtica do conhecimento acumulado consiste
em trazer ao exame racional, tornando conscientes, os
seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus
limites; buscando desocultar a estrutura e a dinmica,
no caso de Marx, da sociedade burguesa, seu objeto de
estudo (NETTO, 2011, p. 18-19).
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A CADEIA PRODUTIVA
Sujeito exteriorizao realizao objetivao
Produtor energia o fazer o fazer
fsica e mental como processo como resultado
que transforma produto
Fonte: Figura elaborada pela autora com base em Marx (1867/1989).
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Contudo, a cadeia produtiva no modo de produo capitalista capturada pelo trabalho alienado ou seja, trabalho reduzido a consumo da fora de trabalho pelo capitalista, reduzido a
mercadoria, reduzido a seu carter abstrato, no mais como objetivao humana, mas apenas dispndio de energia, como algo
no qual o homem no mais se reconhece, algo estranho, alheio
que passa a dominar o seu produtor (MARX, 1867/1989; MARX;
ENGELS, 1845-1846/1993).
Os nveis de alienao explicitados por Marx (1867/1989),
no volume 1 da obra O Capital, no captulo relativo ao processo
de trabalho, mostram que esse processo abarca desde as relaes
entre o produtor e o produto por ele produzido at sua relao
com os demais produtores, o que de modo sinttico busca-se
apresentar na Figura 2.
Figura 2 Os nveis de alienao
O mtodo marxiano
possvel identificar alguns aspectos que particularizam
o mtodo marxiano, o que se passa a pontuar a seguir.
O primeiro deles o seu humanismo e historicismo absolutos. Para Marx, o centro o homem, na sua atividade prtica, cujo
processo de humanizao se d pelo trabalho concreto. Diferente
de Hegel, que parte do Absoluto e a ele retorna, Marx parte do
homem concreto, no do homem pensado e retorna ao homem,
sistematicamente superado na relao com os outros homens.
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Marx destaca nos Manuscritos (1844/1993) que o comunismo o naturalismo integralmente evoludo = naturalismo
humanizado, a resoluo autntica do antagonismo entre o
homem e a natureza, entre o homem e o homem (p. 192, grifos do autor). A histria, por sua vez, a histria do trabalho
humano que significa toda a produo e expresso humana,
na concepo marxiana. A histria, numa concepo ampliada e
processual, a chave heurstica para a explicao dos processos.
Outra particularidade do mtodo marxiano o seu materialismo, a sua concreticidade. Escrevem Marx e Engels na Ideologia
Alem (1845-1846/1993) e tambm na introduo obra O Capital
(MARX, 1867/1989, p. 16) que parte-se dos homens em carne e
osso na sua atividade prtica.
A prxima caracterstica que precisa ser destacada a dialtica, o seu movimento como processo, a necessria interconexo de mltiplas dimenses que constituem a totalidade, no a
exaurindo, mas a problematizando de forma interrelacionada. Os
processos de deduo e induo interconectados pelo entendimento e pela lgica dialtica.
Em que pese o fato de alguns autores entenderem que o
processo de anlise e sntese que particularizam o mtodo marxiano como indutivo e dedutivo representa um esvaziamento
das categorias marxistas atribuindo-lhes os contedos empiristas
ou do senso comum (MONTAO, 2013, p. 23). Lefebvre (1991),
importante intrprete da obra marxiana, mostra na sua obra
Lgica Formal / Lgica dialtica, que a lgica dialtica, ou lgica
concreta no rompe com a lgica formal, a apreende e supera,
articulando os dois movimentos de induo e deduo de modo
interconectado.
Segundo Lefebvre (1991), a lgica formal indutiva, parte
de proposies particulares e tenta chegar a concluses gerais
(generalizao); tenta por em forma o pensamento; um dos
momentos da razo, ope extenso (quantidade) e profundidade
(qualidade); parte do entendimento (separao) necessrio, mas
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no suficiente, porque unilateral (sem aprofundamento do contedo). Logo, ela no se basta e no basta (p. 170).
Marx s parte do particular, da manifestao aparentemente mais simples, no mtodo de exposio, j a investigao
parte do emprico, do concreto sensvel, imediato, e articula suas
determinaes a partir de totalizaes provisrias, que vo do
particular ao geral e do geral ao particular, mediando expresses
singulares com expresses universais para chegar ao concreto
pensado, por sucessivas aproximaes.
Sem dvida, o carter ontolgico caracterstico de seu
mtodo, o objeto de investigao impe movimentos, a partir dele
emanam categorias explicativas, mas no h como prescindir de
seu carter axiolgico e epistemolgico. Para alm da inteno
de capturar a vida do objeto concreto, o mtodo captura o movimento do real e a ele volta, utilizando categorias tericas que dele
emanam para ampliar a interpretao e a explicao sobre o seu
movimento. E, por fim, o processo de conhecimento, alm de
buscar desocultar as contradies inclusivas que conformam os
fenmenos, sujeitos, organizaes e sociedades, valoriza o processo porque pretende transformar o institudo, a partir da constituio de novos valores e condies objetivas e, nesse sentido,
tambm teleolgico.
O questionrio de 1880, realizado por Marx, dirigido
classe operria francesa para que os prprios sujeitos descrevessem as condies nas quais eram explorados pois segundo Marx
somente eles poderiam convenientemente faz-lo , um bom
exemplo do carter teleolgico das investigaes orientadas para
a transformao. Conforme Lanzardo (apud THIOLLENT, 1987),
o questionrio traz implcito o princpio de um mtodo de trabalho poltico que se encontra na Crtica da Economia Poltica. A
enquete operria conduzida por Marx, mais do que um instrumento exemplarmente elaborado de investigao social, se constituiu numa estratgia de conscientizao e mobilizao, condies
necessrias, embora no suficientes, para qualquer processo de
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O aspecto seguinte a destacar a unidade entre objetividade e subjetividade, quantidade e qualidade, racionalidade e
sensibilidade, particularidade e universalidade, ou seja, o reconhecimento quanto a indissociabilidade, uma vez que os seres
e processos se constituem como unidades dialticas. Na mesma
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Princpio
Explicitao
1. Princpio da
identidade
2. Princpio da
causalidade
3. Princpio da
finalidade
4. Princpio
da essncia e
aparncia
5. Princpio da
quantidade e
qualidade
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trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total
ao refleti-la como relao social existente, margem
deles.
A articulao entre quantidade e qualidade fundamental na medida em que as transformaes se do pelo acirramento
das contradies, mas para que isso ocorra necessrio o amadurecimento do processo ou seu desenvolvimento lento e quantitativo, para que possa alterar-se qualitativamente. Os dados que
so contraprova histrica do real se materializam em quantidades e qualidades. No h qualidade que no seja constituda por
quantidades e no h quantidade que no seja relativa a uma qualidade. Na obra O Capital, Marx (1867/1989) explicita magistralmente a articulao entre qualidade e quantidade ao se referir ao
trabalho infantil.
A fabricao de fsforos de atrito data de 1833. [...] A
metade dos trabalhadores so meninos com menos de
13 anos [...]. Essa indstria to insalubre que somente
a parte mais miservel da classe trabalhadora, vivas
famintas etc., cede-lhe seus filhos, crianas esfarrapadas, subnutridas, sem nunca terem frequentado escola.
[...] Entre as testemunhas inquiridas, 270 tinham menos
de 18 anos, 40 tinham menos de 10, 10 apenas 8 e 5
apenas 6. O dia de trabalho variava de 12, 14 e 15 horas,
com trabalho noturno e refeies irregulares. Dante
acharia que foram ultrapassadas nessa indstria suas
mais cruis fantasias infernais (MARX, 1867/1989, p.
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dialticas na verdade no podem ser dicotomizadas, elas so profundamente imbricadas (PRATES, 2005).
A contradio o motor desse movimento. Com isso no
se est afirmando que esta ou aquela categoria central, pois so
indissociveis, se h uma categoria central na obra marxiana
a categoria trabalho. Em que pese a importncia do motor, um
motor sem o restante da mquina no teria razo de ser, assim
como de nada serviria um corao sem corpo. Mas por que a contradio motor do movimento? Porque ao negarmos um estado,
uma etapa, uma necessidade, instigamos a reao oposta (a negao da negao), estimulamos a superao, porque a contradio
insuportvel e tendemos a tentar super-la.
A contradio dialtica ao mesmo tempo destruio e
continuidade, oposio que inclui... por essa razo definida
por Lefebvre (1991) como negao inclusiva, para morrer eu preciso estar vivo, e ao viver consumo minha vida, ao viver mais
me aproximo do tempo da morte, exemplifica Lefebvre (1991).
A criana tenta andar, cai e levanta, quer andar, quer alcanar os
objetos, toc-los, para isso precisa locomover-se, quer superar a
dificuldade de deslocamento. A dificuldade de se deslocar a
negao que inclui.
Somos contradio, s na morte ela cessa, ou possvel
que cesse; infelizmente, nesse ltimo caso, no podemos utilizar a prtica como critrio de verdade. Contradio e movimento
so indissociveis e essa unidade j pressupe em si a totalidade,
isso a dialtica que se expressa na vida, lugar de onde a apreendemos para voltar com seus elementos a mesma vida e tentar
explic-la a partir de nossos sentidos tambm provisrios, porque
histricos.
Como explica Lefebvre (1991, p. 43), [...] o humano s
pode se constituir atravs do inumano, de incio a ele misturado para, em seguida, distinguir-se, por meio de um conflito, e
domin-lo pela resoluo deste conflito.
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A pesquisa se vale das mais variadas tcnicas e instrumentos da cincia que possam auxiliar no desocultamento da estrutura e da dinmica do fenmeno (PRATES, 2003b).
No que consiste o mtodo dialtico materialista? Uma
postura, um mtodo de investigao e uma prxis, um movimento
de superao e de transformao. Trplice movimento: de crtica,
de construo do conhecimento novo, e da nova sntese no plano
do conhecimento e da ao (FRIGOTTO, 1991, p. 79).
Quanto ao mtodo de exposio, no Posfcio da 2 edio
de O Capital, Marx (1867/1989, p. 16), aps referir-se ao mtodo
de investigao, explica: S depois de concludo esse trabalho
que se pode descrever, adequadamente, o movimento real, a
vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impresso de uma
construo a priori.
Segundo Kosk (1989, p. 31), o mtodo de exposio, mais
do que uma forma de apresentao, um mtodo de explicitao, graas ao qual o fenmeno se torna transparente, racional, compreensvel (grifo do autor), razo pela qual o mtodo de
exposio assume posio significativamente relevante.
Esclarece Kosk (1989, p. 31) que, diferente do incio da
investigao, quando a problemtica ainda no suficientemente
conhecida, a exposio j resultado de uma investigao e de
uma apropriao crtico-cientfica sobre a matria, portanto, deve
ter um incio mediato, que contm em embrio a estrutura de
toda a obra.
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Por essa razo, Marx (1867/1989) inicia O Capital, a partir da anlise da mercadoria, clula da sociedade capitalista, o
embrio de todas as contradies, que durante o desenvolvimento da exposio iro sendo aprofundadas de acordo com
a prpria necessidade da exposio. Segundo Kosk (1989, p.
31-32):
O incio da investigao casual e arbitrrio, ao passo
que o incio da exposio necessrio [...] Sem um
incio necessrio, a interpretao nunca desenvolvimento, explicitao... O mtodo de explicitao no
um desenvolvimento evolucionista, desdobramento,
manifestao e complicaes das antteses, desdobramento da coisa por intermdio das antteses.
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Referncias
ALVES, G. Trabalho e subjetividade. So Paulo: Boitempo, 2011.
ALVES, G. Trabalho e Neodesenvolvimentismo. So Paulo: Praxis, 2014.
CURY, C. R. J. Educao e contradio. So Paulo: Cortez, 1986.
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ensar um processo de transformao social exige, particularmente para Marx e para a tradio marxista, a clara caracterizao do ponto de partida, aquilo que se quer transformar (o
capitalismo), e do ponto de chegada, a sociedade que se pretende
construir sobre aquela que findou (o socialismo, como caminho
para o comunismo). Vejamos ento a importncia do conhecimento cientfico e crtico do Modo de Produo Capitalista (MPC)
e os caminhos que tem seguido boa parte da intelectualidade na
construo de um conhecimento fragmentrio, desengajado e
acrtico.
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fundamentos, estrutura e movimento, sua gnese e desenvolvimento, suas leis e contradies dialticas, em constante movimento histrico.
Assim, o mtodo de Marx, o Materialismo Histrico e
Dialtico, na medida que se orienta para a transformao social,
tem por condio e exigncia a fiel reproduo intelectual do
movimento da realidade: o Modo de Produo Capitalista, a
Ordem Burguesa. Marx aprende com Hegel que a dialtica da realidade social, da histria, do Ser Social, significa, em primeiro
lugar, que as coisas, a realidade, esto em constante movimento: o
movimento constitutivo da realidade. Outra condio da dialtica presente na realidade a contradio: todo processo real, em
constante movimento, opera-se a partir da contradio, da afirmao e negao; a contradio o motor do movimento, num
processo de tese, anttese e sntese. Aqui aparece o conceito de
superao dialtica, sendo esta a negao do que era, a conservao de algo essencial da forma anterior, e a elevao a um nvel
superior do novo Ser (KONDER, 2003, p. 26). Finalmente, a dialtica contida na realidade mostra a articulao mtua dos fenmenos numa totalidade, numa relao entre o singular, o particular
e o universal.
Porm, o que se verifica na atualidade a fora, nas
anlises da realidade contempornea, de vises fragmentadas,
fundadas nas racionalidades formal-abstrata (positivista e neopositivista) e ps-moderna. Se na produo e divulgao de conhecimento sobre o real o intelectual tem papel destacado, ele (e
particularmente o cientista social) tem tido em geral uma viso
fragmentada do real e, portanto, tem desenvolvido e reproduzido, tendencialmente, um conhecimento fragmentado.
Assim, o intelectual (orgnico ou no) j nasce, no presente, imbudo de uma tendencial cultura positivista (enquanto
principal expresso da razo formal-abstrata), que visa segmentao da realidade em esferas sociais (objetos especficos), constituindo, a partir desta segmentao, campos de saber e disciplinas
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Essas categorias, na concepo marxiana, so do pensamento por serem constitutivas (e extradas) da realidade. As
categorias empregadas na anlise dos fatos condicionam o tipo
de conhecimento produzido, o alcance da compreenso sobre a
realidade. As categorias funcionam, para o cientista social, como
o microscpio ou o reagente para o bilogo2. O tipo de categoria
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Em articulao com isso, com o desenvolvimento das foras produtivas (a partir das novas formas de organizao da produo e do desenvolvimento tecnolgico, apropriado pelo capital),
ocorrem no capitalismo a tendncia substituio da fora de
trabalho pela maquinaria alterando a composio orgnica do
capital, ou seja, a relao entre capital constante (meios de produo) e capital varivel (fora de trabalho), e gerando uma cada
vez maior superpopulao relativa desempregada, expulsa total
ou parcialmente do processo de produo (Marx, 1867/1980a)5,
e a tendncia queda da taxa de lucro (Marx, 1894/1980b)6.
Ou seja, quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais
tende o capital a se acumular, mais tende a fora de trabalho
pauperizao (absoluta ou relativa), maior a tendncia constituio de um excedente de fora de trabalho (aumentando o
desemprego) e a taxa de lucros tende em perodos a diminuir.
Temos aqui uma lei geral da acumulao capitalista que, considerada a longo prazo, intercala perodos de crescimento acelerado, seguidos de fases de crescimento desacelerado, convulses
e estagnao, derivando em crises econmicas estruturais e
cclicas.
Dessa forma, podemos claramente visualizar duas determinaes centrais quando analisamos o papel das crises nos
ciclos de produo e reproduo capitalistas: a) em primeiro
lugar, a crise um resultado, uma consequncia intrnseca do
prprio desenvolvimento capitalista com a superproduo e
a superacumulao geradas num perodo de expanso, chega-se
a um momento em que a capacidade de produo no encontra
possibilidades de escoamento no saturado mercado de consumo
(crise de superproduo), nem condies de reinvestimento do
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total do volume de capital acumulado em atividades lucrativas (crise de superacumulao); b) em segundo lugar, a crise
a causa, o motor, da recuperao econmica e da retomada da
taxa de lucro com a reduo dos estoques, com a diminuio
dos salrios e o aumento do desemprego, os custos de produo
caem, os preos tendem a subir, retoma-se a taxa de mais-valia
(aumenta a explorao intensiva) e a taxa de lucro; o reinvestimento nas atividades produtiva e comercial retoma os nveis de
lucratividade esperados (MANDEL, 1977, p. 326).
Como entende Mszros (1997), a forma tpica de crise
sob o sistema capitalista a crise conjuntural [cclica e peridica]
que, como dizia Marx, se compara tempestade tropical; porm,
no ltimo quarto do sculo XX, o que vimos foi a crise estrutural do capitalismo, determinada pela ativao de um conjunto de
contradies e limites que no podem ser superados pelo prprio
sistema (p. 149). que com a interveno do Estado no haver
grandes tempestades e crises violentas, mas frequentes precipitaes por todas as partes; assim, estas podem se tornar a normalidade do capitalismo organizado. Para o autor, seria
um erro interpretar a ausncia de flutuaes extremas
ou de tempestades de sbita irrupo, como evidncia de um desenvolvimento saudvel e sustentado, em
vez da representao de um continuum depressivo,
que exibe as caractersticas de uma crise cumulativa,
endmica, mais ou menos permanente e crnica, com
a perspectiva ltima de uma crise estrutural cada vez
mais profunda e acentuada (MSZROS, 2002, p. 697).
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tradio marxista, para pensar as lutas e o processo revolucionrio. Mas, o debate sobre o sujeito da transformao social no
pode ser ideolgico, no pode se orientar por opes ou escolhas, pois no resulta da vontade, do desejo. Deve se sustentar,
pelo contrrio, na anlise cientfica das condies do MPC. So
as determinaes realmente existentes, e no a ideia, a vontade,
o que caracteriza o sujeito de transformao social o estudo das
reais contradies, dos interesses dos diferentes grupos sociais,
as potencialidades emergentes, da conscincia social, das organizaes e correlao de foras sociais.
As primeiras determinaes do sujeito na sociedade capitalista vm das anlises que Marx e Engels fazem nO Manifesto:
as armas que a burguesia empregou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a prpria burguesia. Mas
a burguesia no se limitou a forjar apenas as armas que
lhe traro a morte; produziu tambm os homens que
empunharo essas armas os operrios modernos, os
proletrios (1848/1988, p. 12).
E continuam,
o progresso da indstria [...] substitui o isolamento dos
operrios, resultante da concorrncia [entre eles], pela
sua unio revolucionria, resultante da associao. [...]
A burguesia produz, sobretudo, os seus prprios coveiros (1848/1988, p. 20).
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as condies de vida imediatas dos indivduos (a esquerda possibilista) ou as mudanas das subjetividades, no das estruturas
(a esquerda subjetivista).
Mudanas (dentro do capitalismo e/ou subjetivas)
O debate, e as propostas contemporneas, de amplos setores de esquerda, que congregam as energias militantes de massas
de trabalhadores, antes de se orientar transformao social, das
estruturas, superao da ordem, revoluo, propem mudanas de subjetividades (e no de estruturas), melhoras dentro do
capitalismo (e no a superao da ordem), mudanas pontuais e
desarticuladas (e no lutas que confluem na contradio central
entre capital e trabalho).
Por um lado, a esquerda possibilista, resignada e adaptada, tem apostado em mudanas pontuais dentro da ordem para
obteno de melhoras imediatas. O fundamento parece ser: se
no podemos transformar o sistema, ento melhoremos algo.
Nesse sentido, as apostas tm se orientado a um Capitalismo
Humanizado, a um Capitalismo Verde ou Ecolgico ou
Sustentvel, a um Empresrio Socialmente Responsvel, formao de processos de Economia Solidria, Democratizao
da Sociedade Civil entre outros.
Por outro lado, as bandeiras levantadas na atualidade
pela esquerda subjetivista, defensora da ideologia da autorresponsabilizao dos indivduos, apresentam-se nos discursos to
de moda hoje como: No mude o mundo, mude a si mesmo!,
No mude as coisas, mude de atitude!, No busque emprego,
procure trabalho!, Seja um empreendedor!, Seja seu prprio
patro!, O problema no est na sociedade, est em voc!,
desenvolvendo aes que visem a motivao, a autoajuda, o
empoderamento, a participao etc.
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no h dvida que a emancipao poltica representa
um grande progresso. Embora no seja a ltima etapa
da emancipao humana em geral, ela se caracteriza
como a derradeira etapa da emancipao humana dentro do contexto do mundo atual. bvio que nos referimos emancipao real, emancipao prtica. Porm,
[continua Marx, tratando da questo religiosa-judaica]
no nos deixemos enganar sobre as limitaes da emancipao poltica. A ciso do homem na vida pblica e
na vida privada, o deslocamento da religio em relao
ao Estado, para transferi-la sociedade burguesa, no
constitui uma fase, mas a consagrao da emancipao
poltica, a qual, por isso mesmo, no suprime nem tem
por objetivo suprimir a religiosidade real do homem.
Todas as lutas contra formas de desigualdade, de opresso, de excluso, tornam-se, assim, importantes e fundamentais
para a conquista da emancipao poltica, mas elas no garantem
a emancipao humana. Para esta ltima, essas lutas (necessrias e fundamentais) devem confluir num processo que supere
a diviso social em classes e a separao do produtor dos meios
para produzir, ou seja, a eliminao da explorao e, com ela, da
ordem social burguesa.
No haver emancipao da trabalhadora-mulher numa
sociedade machista e patriarcal, assim como no haver emancipao da mulher-trabalhadora numa sociedade capitalista.
No haver emancipao do trabalhador-negro numa sociedade racista e xenofbica, assim como no haver emancipao
do negro-trabalhador na sociedade capitalista.
A luta anticapitalista no deve caminhar separada da luta
contra o machismo e a desigualdade sexual, contra o racismo e a
desigualdade racial e tnica, contra as diversas formas de segregao, desigualdade e preconceito. Ela deve reunir todos esses
campos de batalha, orientados no curto prazo contra a forma especfica de desigualdade (para a emancipao poltica especfica), e
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que a classe que se candidata ao domnio poltico j seja previamente hegemnica no plano ideolgico. Nesse caso, diferentemente do anterior, o centro do processo revolucionrio dar-se-
como uma progresso de conquistas, de espaos no seio e atravs
da sociedade civil numa Guerra de Posio (GRAMSCI, 2000,
p. 261-262; ver tambm COUTINHO, 1994, p. 57-8).
Para Gramsci (2002, p. 62-63), a classe que se prope uma
transformao revolucionria da sociedade (de tipo ocidental),
pode e deve ser dirigente j antes de conquistar o poder governamental (esta uma das condies principais para a prpria
conquista do poder). No entanto, ser dirigente no campo da sociedade civil, ainda que necessrio, no implica sua completa realizao poltica. s com a tomada do poder poltico que as classes
subalternas atingem sua completa unificao poltica, tornando-se o prprio Estado e criando um novo bloco histrico.
Tal como Marx e Lnin, Gramsci perspectiva uma sociedade sem Estado, que denomina como sociedade regulada. O
fim do Estado concebido como uma reabsoro da sociedade
poltica na sociedade civil (BOBBIO, 1987, p. 50), ou seja, pela
ampliao da sociedade civil e, portanto, do momento da hegemonia, no interior da esfera estatal, at eliminar todo espao ocupado pela sociedade poltica.
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e, portanto, na perspectiva de revoluo, visando a emancipao humana. Como afirmou Hobsbawm, o marxismo [...] um
mtodo para, ao mesmo tempo, interpretar e mudar o mundo
(1987, p. 12). , portanto, um conhecimento para atingir os fundamentos, a essncia do MPC. um conhecimento para a transformao social.
Referncias
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Parte II
Questes contemporneas luz do marxismo
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Para uma exposio sinttica das concepes desses autores, ver Suppe (1977);
para uma anlise crtica cf. Duayer, 2001 e 2010.
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Alm disso, preciso salientar que as crenas de diferentes espcies no existem em compartimentos estanques da mente.
Ao contrrio, de alguma maneira tm de formar uma unidade na
diferena. Na formulao de Lukcs, tal unidade vem expressa da
seguinte maneira: [] vida cotidiana, cincia e religio (teologia
includa) [] de uma poca formam um complexo interdependente, sem dvida frequentemente contraditrio, cuja unidade
muitas vezes permanece inconsciente (LUKCS, 2012, p. 30).
essa totalidade articulada de crenas que significa o mundo para
os sujeitos. Cria para eles um espao de significao. por meio
dessa significao que as relaes dos sujeitos com o mundo se
apresentam para eles como relao.4 Essa considerao fundamental e, por isso, importante real-la neste momento. A adaptao ativa (criativa) do ser social (dos seres humanos) com seu
meio ambiente pressupe esta dualidade: a realidade tal como
em si mesma e a realidade pensada mundo como possesso espiritual. O mundo como possesso espiritual dos sujeitos
pressupe, naturalmente, o distanciamento do sujeito em relao
ao mundo e, da mesma maneira, de si mesmo. S com tal afastamento possvel falar de relao dos sujeitos com o mundo
(LUKCS, 2013).
Todavia, a unidade das crenas cientficas com os outros
tipos de crenas a realidade pensada jamais investigada
pela filosofia da cincia. Ela se concentra, antes, na busca das
particularidades do discurso cientfico que tornaria suas crenas mais crveis, confiveis etc. No entanto, pode-se dizer que
os desenvolvimentos recentes da filosofia da cincia nada mais
fazem do que confessar que tal busca no tem sentido. Mostram
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emprico independente da teoria, os seus crticos ps-positivistas, como no podem se valer do mesmo recurso, j que suas concepes defendem explicitamente a dependncia do emprico em
relao aos pressupostos estruturais da teoria, s podem ficar presos na circularidade que criaram para si prprios. E, como mostra
Lukcs, somam esforos para elevar o inteiro sistema do saber
condio de instrumento de uma manipulabilidade geral de
todos os fatos relevantes, ou para elevar a prtica imediata, a
utilidade, a adequao emprica, a preditibilidade etc. a critrio
absoluto da teoria (da cincia) (LUKCS, 2012, p. 58).
Como o conhecimento cientfico, agora apoiado nesse
relativismo no atacado, vem hoje filosoficamente justificado
por sua utilidade prtico-operatria, justamente por isso que a
crtica de uma teoria existente, de ampla circulao social, articulada determinada prtica, forma de vida etc., tem como
primeira condio a admisso de que a teoria criticada de fato
funciona na prtica. Somente com tal reconhecimento possvel
descartar a priori a utilidade prtica como critrio de validao
da teoria. Lanando mo do prprio referencial terico do adversrio, relativista no atacado, a crtica pode afirmar que o critrio
da utilidade circular, pois segundo seus prprios critrios a sua
teoria til, funciona na prtica, verdadeira, exclusivamente no
espao de significao criado por ela mesma, em articulao com
as demais crenas que emergem das prticas e relaes sociais
existentes. Desse modo, a crtica permite tambm demonstrar
que, de acordo com as prprias premissas relativistas, no possvel retrucar que o mundo existente o nico mundo que temos
e que, portanto, nada mais razovel para uma teoria do que se
circunscrever s crenas que dele emergem, porque tal resposta
pressupe, necessariamente, que esse o nico mundo possvel,
pretenso que contradiz imediatamente o relativismo do qual
parte o argumento.
Tal atitude crtica, em suma, equivale a desfazer a confuso praticamente unnime entre relativismo epistemolgico e
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ricas que negam a possibilidade do conhecimento objetivo compartilham de uma ontologia plana, achatada, cuja origem pode ser
traada at Hume (1711-1776). Segundo o autor, dada a impossibilidade de justificar indutiva ou dedutivamente a existncia das
coisas como so em si mesmas8, Hume prope uma epistemologia (uma teoria do conhecimento) fundada nas impresses. Tal
teoria do conhecimento, contudo, implicitamente tem de gerar
uma ontologia (i.e., uma noo de como deve ser o mundo para
que seja passvel de conhecimento por parte do sujeito). Essa
ontologia, que Bhaskar denomina com razo de realismo emprico, s pode subentender a imagem de um mundo composto de
fatos, coisas, objetos etc. atmicos, enfim, singulares irredutveis
capturados pelo aparato sensorial dos sujeitos. Tal ontologia o
corolrio necessrio da concepo de que o nosso conhecimento
(cientfico) se reduz captura de regularidades empricas entre
fatos e fenmenos (ou padres estveis de relaes entre fenmenos) , concepo comum tradio positivista e seus crticos
ps-positivistas. Em outras palavras, teorias cientficas nada
mais so do que a expresso terica (generalizaes) de regularidades empricas percebidas pelos sujeitos. Nesse sentido, teorias so sempre subjetivas, construes arbitrrias dos sujeitos a
partir de suas percepes e, portanto, pressupem um mundo de
coisas que no esto em relao mundo de coisas atmicas.
Enfim, a crtica de Bhaskar e tambm a de Lukcs, embora
com outra arquitetura, consistem em mostrar que toda a crtica
razo, racionalidade ocidental etc., crtica a essa concepo
do conhecimento cientfico defendido e disseminado pela tradio positivista. E, se esse tipo de conhecimento cientfico foi
o mximo de razo que a humanidade conseguiu elaborar, no
custa muito passar da crtica a essa dbil noo de cincia crtica da razo enquanto tal.
Como toda teoria, seja construda de maneira indutiva ou dedutiva, empiricamente subdeterminada, a validao emprica por definio impossvel.
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Referncias
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MARX, K. O Capital, Livro III. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1974
(Texto original publicado em 1867).
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realidade segundo esses interesses, oferecendo-lhes uma justificao. O modo pelo qual os processos educativos firmam esses
compromissos atravs da construo de formas ideolgicas de
conscincia.
A funo dessas formaes ideolgicas, presentes na educao e em quaisquer outras dimenses do ser social a poltica,
o direito, a religio, a arte etc. a de reproduzir o todo da formao social. Em nossa compreenso, essas dimenses complexos,
no dizer de Lukcs, ou ainda, campos, nas anlises de Bourdieu
(2006) no podem ser consideradas isoladas umas das outras,
pois inexiste uma separao entre elas na realidade material.
A necessidade reivindicada por Constantino, por exemplo, de que a educao mantenha distncia em relao a um
projeto poltico de mudana do mundo, apresenta uma forma
fetichizada de conceber a educao como algo isolado e aparentemente alheio s disputas sociopoltico-econmicas. Ao mesmo
tempo, o colunista da Veja dissimula a defesa de uma perspectiva
da educao orientada pelo liberalismo, e, ao agir dessa forma,
ele toma partido num conflito a respeito de como o mundo deve
ser, distanciando-se, claramente, do que concebe como um projeto marxista.
As relaes entre educao e ideologia no so apenas
existentes como so inevitveis na sociedade de classes, em funo da necessidade de tomar partido nos conflitos entre perspectivas opostas quanto a aspectos centrais do mundo social.
Isso no significa, contudo, que seja sempre bvia a presena da
ideologia nos processos educativos, tampouco que as ideologias
dominantes imperem de modo absoluto no campo da educao.
Refletiremos, neste trabalho, a respeito da necessidade de
resgatar as anlises sobre os processos ideolgicos que se desenrolam na esfera da educao, a fim de inseri-la como uma parte
da totalidade da formao social. Em primeiro lugar, cabe delimitar a nossa compreenso de ideologia, a qual possui complexas
nuances tericas. Em seguida, problematizaremos a presena da
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apesar das contradies existentes, a esfera da educao indispensvel para reproduzir a diviso social do trabalho, garantindo
o funcionamento da sociedade de classes.
Para compreendermos de modo mais aprofundado a afirmao da educao enquanto instncia ideolgica da sociedade
de classes, isto , enquanto esfera necessria reproduo do
capital processo que no se d sem tenses , devemos, em
primeiro lugar, situar a nossa compreenso acerca da categoria
de ideologia.
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Colocam-se nesse campo, dentro da tradio marxista, as formulaes sobre ideologia de importantes tericos como Althusser, Marilena Chau, Michel Lwy e
Leandro Konder, segundo Maria Teresa Buomano Pinho (2013), em tese de doutorado sobre a ideologia em Marx, Lukcs e Mszros.
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equivocada quanto ao potencial efetivo de incidncia das ideologias na prtica social, que pode e deve ser utilizado a favor dos
processos de emancipao.
No entanto, a leitura atenta de A ideologia Alem nos
autoriza a tomar concluses diversas. Marx e Engels jamais conceberam a ideologia como um mero problema de cognio, ligado
unicamente ao plano da conscincia. Pelo contrrio, as formas
ideolgicas possuem claramente, em suas anlises, uma base
material real, que a produo da vida humana, as relaes efetivas que estabelecem uns com os outros ao interagir com a natureza e construir o mundo social. Ainda que essas ideias possam
parecer autnomas, elas no tm histria prpria; sendo, antes, a
vida real que determina o plano da conscincia e por ela reciprocamente determinada (MARX; ENGELS, 1846/2007). Da resulta
que esse plano da conscincia no algo isolado, que pode, dessa
forma, incorrer numa correta ou falsa atitude cognitiva, desvinculada das posies que os sujeitos ocupam na sociedade.
A ideologia no se trata de algo que permanea no pensamento, por mais que tenha valor ou desvalor; um meio de
luta social e diz respeito, portanto, prxis (LUKCS, 2013). Por
isso, para compreender adequadamente o problema da ideologia,
necessrio partir da perspectiva ontolgica, buscando entender
a funo social desses processos de conscincia, a forma como
atuam como uma conscincia orientada para a prtica, a maneira
como se realizam enquanto poderes realmente operantes, nas
palavras de Lukcs (2013, p. 481).
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ideologias, em sua maioria, funcionais reproduo de determinada formao social em que esto inseridos. Como argumenta
Istvn Mszros em A Educao Para Alm do Capital (2005, p.
25), pouca gente negaria hoje que os processos educacionais e os
processos sociais mais abrangentes de reproduo esto intimamente ligados. O padro idealizado de escola, de fato, cumpre
um importante papel no fortalecimento de valores como hierarquia, obedincia, disciplina, competio etc.; todos indispensveis ao bom funcionamento de relaes de trabalho nos moldes
exploratrios concebidos no capitalismo5.
A partir de funes diferentes, a escola e as outras esferas
relevantes para a reproduo da ordem social (poltica, direito,
arte, religio etc.) reforam os valores centrais ordem do capital,
pois, enquanto partes da totalidade social, esses mbitos tm no
capital o elemento hegemnico da sua entificao, nas palavras
de Ivo Tonet em Educao Contra o Capital (2012, p. 16).
Uma das consequncias que nos diz respeito mais diretamente, nessa reflexo que trazemos, a de que qualquer mudana
pretendida no campo da educao no pode ter xito se no
estiver acompanhada de uma mudana na esfera econmica; se
no incidir no modo atravs do qual se organiza o trabalho dos
homens e das mulheres.
Na contramo desse entendimento, comum a percepo
de que a educao pode mudar o mundo, ou de que a raiz do
problema social est na falta de educao. claro que o mundo
da educao pode contribuir para estimular processos de conscincia que enfrentem as desigualdades sociais, embora no seja
essa a lgica que predomina junto aos processos educativos ao
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Consideraes finais
As anlises empreendidas pela revista Veja, trazidas no
incio deste trabalho, de modo algum correspondem realidade
da conjuntura ideolgica da universidade hoje, francamente hegemonizada por perspectivas tericas de matriz liberal. Mas elas,
de certa forma, retratam uma dificuldade do marxismo em extrapolar os muros do ambiente acadmico, estando, nesse sentido,
limitado a uma parcela (pequena, diga-se de passagem) da esfera
da educao. As organizaes da classe trabalhadora como os
partidos polticos, os sindicatos e os movimentos sociais populares encontram-se politicamente distantes da perspectiva do
rompimento com a ordem do capital, na mesma medida que esto
tambm distantes das ideias do marxismo.
Vivemos, por outro lado, um perodo histrico de intensa
crise do capital. E no se trata de mais uma crise cclica, prpria
da dinmica de manuteno do modo de produo capitalista,
mas de uma crise estrutural, como analisa Mszros (2011). Esta
conjuntura histrica apresenta uma intensificao dos conflitos
entre capital e trabalho e, consequentemente, um acirramento das
disputas no mbito das ideologias.
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processos educativos podem contribuir, e muito, no embate ideolgico com a perspectiva do capital, sobretudo se for enfrentado
o desafio de trazer a prxis revolucionria para o centro das preocupaes da tradio marxista.
Referncias
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Nesse sentido, aponta: a emancipao poltica , sem dvida, um grande progresso; ela no , decerto, a ltima forma de emancipao humana, em geral, mas
a ltima forma de emancipao poltica no interior da ordem mundial at aqui
(MARX, 1843/2009, p. 52).
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sociedade civil. A polcia, os tribunais, e a administrao no so deputados da prpria sociedade
civil, que neles e por meio deles administra o seu prprio interesse universal, mas sim delegados do Estado
para administrar o Estado contra a sociedade civil
(MARX, 1843/2013, p. 74).5
Colchetes no original.
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Como bem aponta Coutinho (2007), a distino pases ocidentais versus orientais
em Gramsci no geogrfica, mas refere-se a tipos de formao econmico-social, em funo sobretudo do peso que neles possui a sociedade civil em relao
ao Estado (COUTINHO, 2007, p. 82).
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toda a sociedade na previso dos momentos de crise no
comando e na direo, nos quais desaparece o consenso
espontneo (GRAMSCI, 1930-1932/2010, p. 20-21).
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deste com a construo de uma vontade coletiva nacional-popular e com uma reforma intelectual e moral como premissas do
socialismo. Maritegui foi um dos marxistas que tambm dedicou
importncia s questes subjetivas para uma profunda transformao social e advogava por uma revoluo proletria para libertao de seu pas e do continente.
Na dcada seguinte, sob orientao da III Internacional e
liderana dos partidos comunistas locais, toma corpo a defesa da
revoluo democrtico-popular: no tendo o continente passado
por suas revolues burguesas, necessrio seria acumular foras
para uma revoluo democrtico-nacional, possibilitando, ento,
o desenvolvimento das foras produtivas e, a posteriori, a ecloso
da revoluo socialista. Buscava-se, pois, democratizar o Estado,
afirmar a soberania nacional contra o imperialismo e acabar com
o latifndio ante a necessidade de desenvolvimento da indstria
nacional.
Tal vertente, tambm denominada de etapismo, transladava mecanicamente os modelos de desenvolvimento socioeconmico que explicavam a evoluo histrica da Europa ao longo
do sculo XIX. Dessa maneira, no novo continente, haveria uma
estrutura agrria de tipo feudal; uma burguesia apta a cumprir
com seu dever histrico revolucionrio do sculo XVIII e um
campesinato hostil ao socialismo ou coletivismo. Essa orientao
nacional democrtica, todavia, incorria em erros insuperveis:
La orientacin nacional-democrtica fue criticada,
dentro de la propia izquierda, por tres motivos principales: a) por subestimar los vnculos orgnicos entre
latifundio, imperialismo y capitalismo; b) por creer en
la viabilidad de una alianza estratgica del proletariado
con la burguesa nacional; c) por concebir cmo etapas relativamente estancadas, lo que sera ms adecuado concebir como flujo, como transcrecimiento
(POMAR, 2013, p. 26).
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Ocorre que, se a vertente etapista partia de anlises fechadas s realidades continentais e nacionais, o trotskismo, ao propugnar pela revoluo ininterrupta e imediatamente socialista,
sob liderana de operrios, tambm incorria no equvoco de minimizar a categoria mediao com a realidade e a concreta situao
particular das foras produtivas e relaes de produo em cada
pas. Portanto, se de um lado o etapismo um equvoco, dentre
outros elementos, porque supe a necessidade de fases intermedirias estanques, de outro,
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La revolucin cubana de 1959, la revolucin rusa de
1917 y la revolucin china de 1949, resultaron exactamente de la continua radicalizacin democrtica,
popular y nacional. Fueron revoluciones socialistas
no a priori sino debido al curso que tomaron, al proceso
global en el que estaban insertas (POMAR, 2013, p. 34).
Ressalte-se tambm que, aps a vitria da guerrilha popular em 1959, em Cuba, cresce a adeso luta armada e ttica de
guerrilhas como via para a revoluo, em um contexto continental em que a dominao de classe era exercida frequentemente a
partir da coercitividade em mbito da sociedade poltica.
Aps as derrotas nas maiorias das guerrilhas rurais e urbanas promovidas no continente e com o concomitante processo
de redemocratizao nos mais diversos pases, h o descenso do
ciclo guerrilheiro na Amrica Latina, e toma corpo uma outra vertente que argui pela revoluo democrtico-popular e socialista, a
qual se consubstanciaria em
Construir un bloque poltico-social en torno a un programa que articule medidas democrticas con medidas
socialistas. En las condiciones actuales de desarrollo
del capitalismo, las medidas democrticas no son
socialistas, pero pueden asumir un sentido anti-capitalista (POMAR, 2013, p. 32).
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Harvey (2005) coloca que, com o risco de expanso sovitica e presso dos trabalhadores por expanso de direitos, o Estado de Bem-Estar Social e a ascenso econmica dos trabalhadores dos pases centrais foram possveis graas exportao
da mais-valia aos continentes sob julgo do colonialismo (frica) e das ditaduras
militares (Amricas).
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socialistas no continente e no mundo. Um a um, cada pas comeara a reproduzir a experincia neoliberal inaugurada no Chile
ditatorial de Pinochet. Pautados pelas polticas orientadas pelo
Fundo Monetrio Internacional FMI e Banco Mundial, sob
liderana inconteste americana, os governos nacionais empreenderam aes de privatizao de empresas pblicas e recursos
naturais, reduo da burocracia estatal, flexibilizao de direitos
e desestmulo s foras produtivas nacionais diante de polticas
de importao.
Essa realidade tomou contornos especficos na Bolvia,
pois, para alm de se submeter a essas aes generalizadas no
continente, contando com um precrio desenvolvimento de suas
foras produtivas, sob orientao dos Estados Unidos, desencadeou uma campanha permanente contra a folha de coca, a partir
da justificativa do combate ao trfico de drogas.
Esse pas andino sempre esteve dentre os sul-americanos
de menor desenvolvimento das foras produtivas, sendo eminentemente agrrio e dependente da explorao de minrios e
hidrocarbonetos. Em paralelo, detm um histrico de intensa instabilidade poltica:
Una prueba de ello es que al ao 1980 en Bolivia se
produjeron 200golpes de Estado en apenas 155 aos de
vida Republicana; lo que dio lugar a que eneste perodo de tiempo 74 Presidentes de la Repblica hubiesen
conducido al Estado,con un promedio de 2,09 aos de
duracin en el mandato (SANTIVEZ, 2008, p.174).
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cido por Goni, radicalizaram a depreciao das condies materiais de sua populao:
Relocalizao e fechamento de empresas, racionalizao do oramento estatal, livre comrcio, reforma
tributria, desregulao, privatizao, capitalizao,
flexibilizao trabalhista, fomento s exportaes e a lei
Inra (que criou o Instituto Nacional de Reforma Agrria)
centraram-se em prol da racionalidade empresarial,
da taxa de lucro na gesto de fora de trabalho, mercadorias, dinheiro e terras. Entretanto, com o tempo,
seus efeitos se fizeram sentir de maneira dramtica nas
condies de vida das comunidades (LINERA, 2010, p.
262).
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dispe de condies geogrficas e climticas privilegiadas comparadas ao restante do territrio nacional, e por trs da questo
da coca estava tambm instalada a disputa pela terra e a busca
permanente da expulso de cerca de 70 mil famlias camponesas.
Diante das incurses do Estado boliviano, revelaram-se
crescentes a conscincia e organizao popular camponesa, tambm favorecidas por elementos subjetivos, como a capacidade de
liderana de dirigentes como Evo Morales e Leonida Zurita. Os
camponeses, organizados em sindicatos e federaes, vinculadas
a Confederacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de
Bolivia CSUTCB, organizavam-se de maneira assemblesta, realizaram marchas at La Paz sempre acompanhadas e reprimidas pelas foras estatais e bloqueios de rodovias, relmpagos e
sucessivos ou no.
A luta camponesa em torno da terra, todavia, encontrava
na folha da coca um elemento totalizante e unificador: de um
lado, uma cultura milenar, de origem indgena, presente em todo
o pas11; de outro, uma imposio imperialista, que no apenas
realizou treinamentos com as foras policiais nacionais como
passou ao direta repressiva e com saldo de mortes com o passar do tempo (MORALES, 2014).12
Um conflito eminentemente corporativo e localizado,
diante desses elementos objetivos e subjetivos, tomou dimenso
poltica, totalizante e transbordou as fronteiras da luta particular
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Com fins de extrapolar as demandas especficas e particulares, os camponeses comeam o processo de organizao
poltica com fins de combinar a luta poltica eleitoral. Assim,
participam das eleies municipais de 1989 com a sigla emprestada Izquierda Unida e das nacionais em 1993 com a Eje de
Convergencia Patritica (MORALES, 2014).
Aps essas experincias, deliberam, pois, pela criao de
seu prprio instrumento poltico, em 1995, durante o I Congresso
do Instrumento Poltico de Tierra y Territorio, em Santa Cruz:
El debate se centr en que mientras nosotros no seamos
poder poltico, nunca se cumplirn las reivindicaciones, nunca conseguiremos nada, seguiremos esperando
como hace 500 aos. Nosotros mismos debemos gobernarnos, creando un instrumento poltico para los bolivianos (MORALES, 2014, p. 274).
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que era secretrio geral da COB poca, seu nome inicial foi
Asamblea por la Soberana de los Pueblos (ASP). No congresso
da CSUTCB de 1996, o Movimiento Nacionalista Revolucionrio
MNR e o Movimiento Bolivia Libre MBL, que conformavam
o bloco partidrio de apoio ao governo neoliberal, buscaram derrubar a criao do Instrumento, sendo, todavia, sua criao ratificada pela maioria presente.
A luta camponesa e a formao do instrumento seguem
incorporando plataformas, classes e setores sociais descontentes com o neoliberalismo, atingindo seu cume com os episdios
conhecidos como Guerra da gua (2000), o Impuestazo de Goni e
a Guerra do Gs (setembro e outubro de 2003).
A Guerra da gua ocorreu em 2000, quando a populao
da cidade de Cochabamba, organizada de maneira comunitria,
se sublevou contra a privatizao da gua e, com o apoio das entidades do campo daquele Departamento, conseguiram expulsar a
Empresa Aguas del Tunari. A privatizao no afetava a regio do
Trpico (Morales, 2014), todavia, o levante popular contou com
o apoio dos cocaleros e revelou-se momento de consolidao da
aliana campo-cidade. Em 2003, Goni implementa a majorao
de impostos conhecida como El Impuestazo, quando trabalhadores urbanos se revoltam e, no enfrentamento com as foras repressivas, 33 pessoas so assassinadas. No mesmo ano, em outubro,
o Governo anunciou que o gs do departamento de Tarija seria
exportado por um consrcio internacional, o Pacific LNG, para os
Estados Unidos e por territrio13. A partir da organizao comunitria e territorial, a cidade de El Alto14 se subleva e, em uma
192
semana, 63 pessoas so assassinadas pelas foras estatais, culminando com a fuga do presidente Goni.15
Cria-se, ento, o Estado Mayor del Pueblo:
frente campesino y obrero, con las seis Federaciones
de Productores de Coca del Trpico, la CSUTCB, la
Confederacin Sindical de Colonizadores de Bolvia,
las federaciones de fabriles, mineros y otras organizaciones sociales y sindicales del pas (MORALES, 2014,
p. 328).
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condenado la corrupcin, el racismo, la descarada
injerencia de los Estados Unidos, la falta de soberana,
el neoliberalismo [] tambin el pleito de Asamblea
Constituyente (MORALES, 2014, p. 315).
16 No ato do Primeiro de Maio, por exemplo, em que a grande maioria dos movimentos sociais e organizaes convocou uma marcha em conjunto com o presidente do Estado Plurinacional, eram recorrentes a evocao de ambos, por parte
das entidades e do governo (VALENA, 2014).
194
H, pois, uma conjuntura distinta das anteriores enfrentadas pelas esquerdas no continente, tendo uma parcial aproximao com a experincia da Unidade Popular no Chile de Allende.
A nova Constituio reivindicada pelas classes subalternas,
estabelece mecanismos de democracia participativa superando a
democracia representativa, o mandato revogatrio e a obrigatoriedade de prestao pblica de contas por parte de gestores, a plurinacionalidade e multiculturalidade, cuja principal expresso
a quebra do castelhano como idioma nacional e o direito a ser
atendido nos rgos pblicos em quchua ou aimar, reconheceu a Justia Indgena e alterou o sistema de justia, bem como a
diversidade de propriedades da terra e dos meios de produo.
O governo tomou medidas com as quais pode-se caracteriz-lo como democrtico-popular com intento socialista: majorou o salrio mnimo de 400 para 1440 bolivianos, decretou o
14 salrio obrigatrio para setor pblico e privado em anos de
crescimento econmico; nacionalizou os hidrocarbonetos, criou
uma rede estatal de comunicao17, props a reformulao das
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Por outro lado, h um campo aberto (necessria) reflexo marxista: como fortalecer o processo de liderana poltico
e moral desse novo bloco histrico? Quais devem ser sua composio e programa poltico, de maneira que aprofunde os processos de mudana e, ao mesmo tempo, no importem em uma
reao ditatorial por parte das burguesias e foras armadas como
em toda nossa histria do sculo XX? Qual a natureza dessa
Constituio e do Direito neste especfico momento histrico, em
que ele no representa apenas o reflexo das condies materiais
de reproduo social, mas tambm contribui no processo de disputa hegemnica por parte das classes subalternas? Como desenvolver a precria situao das foras produtivas sem fortalecer,
todavia, politicamente a burguesia detentora dos meios privados
de produo?
No se encerra, pois, a diversidade de problematizaes
possveis, nos campos estruturais e superestruturais.
Consideraes finais
A histria do continente latino-americano impossvel de
ser apartada do marxismo. Este, filosofia da prxis elaborada e
desenvolvida no contexto da modernidade e da explorao de
classe, a partir de uma pretensa igualdade possibilitadora da
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E, dentre eles, sobressai-se a Bolvia: ali, donde as classes burguesas nunca conseguiram uma plena liderana poltica e
moral sobre o conjunto da sociedade, tendo em vista o frgil desenvolvimento das foras produtivas e suas correspondentes instituies e a preservao dos elementos comunitrios indgenas,
duas dcadas de luta poltica sob liderana camponesa acabaram
por unificar diversos setores das classes subalternas, resultando
em recorrentes crises de hegemonia e a posterior derrubada do
iderio ocidental-burgus. Perante essa nova conjuntura, tanto
o multiculturalismo quanto o marxismo dogmtico revelam-se
insuficientes para a compreenso de tais processos, bem como,
para sua consolidao e aprofundamento. Aquele, porque v apenas o aspecto indgena como algo idealizado e de possvel convivncia com outras perspectivas, como os valores neoliberais;
todavia, como abordado, h uma ntima vinculao do indgena
com as condies materiais de reproduo social, sendo aquele
um elemento unificador dentre as classes subalternas. De outro
lado, o marxismo dogmtico revela-se insuficiente ao importar
categorias das obras marxianas sem a devida mediao, tendo historicamente subestimado o potencial revolucionrio da questo
agrria19, bem como suas potencialidades comunitrias (LINERA,
2008b) da sociedade indgeno-camponesas.
A derrubada de vrios presidentes e governos neoliberais
pela fora das ruas e da organizao popular, a eleio de Evo
Morales e promulgao da nova Constituio de 2009 abrem questes em sentidos diversos para a reflexo e ao poltica marxista.
198
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Temos uma questo vital aqui: o mundo do trabalho composto por homens e
mulheres.
uma palavra que aparece muito no mundo europeu, principalmente nos pases
escandinavos. Originalmente indicaria a demanda do capital por flexibilidade e
do trabalhador, por segurana.
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Mas prefiro chamar de a nova jovem classe trabalhadora precarizada. Ver o estudo crtico de Braga (2013).
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situao julgam que hoje no adianta nem estudar, nem trabalhar contrariando a falcia de que qualificao leva a emprego,
defendida aqui no Brasil.
Depois foi a vez de a Inglaterra rebelar-se em um levante
que se iniciou depois de um negro taxista, trabalhador, ter sido
assassinado pela polcia. Os jovens pobres, desempregados,
negros, imigrantes em Tottenham e Brixton se revoltaram e em
poucos dias os levantes atingiram Manchester, Liverpool, as cidades industriais da Inglaterra e chegaram ao Reino Unido. Retrata
essa situao a fala de um trabalhador negro entrevistado pela
televiso inglesa que, diante da pergunta do que ele achava acerca
da violncia das manifestaes, respondeu estar havendo uma
revolta popular. Contextualizando essa revolta da populao
negra, trabalhadora, de imigrantes, Tariq Ali (2011) mostrou, em
pesquisa, o contingente enorme de negros e imigrantes que morreram no percurso, nos veculos policiais, ao sair do local onde
foram abordados at as delegacias, nos ltimos dez anos. Morrem
muito mais negros e imigrantes do que brancos, aflorando as conexes entre classe e etnia. Em suas palavras: A juventude negra
desempregada ou semi-empregada em Tottenham e Hackney,
Enfield e Brixton, sabe bem que o sistema est contra ela. (...)
Haver algum inqurito pattico ou outros para avaliar porque
Mark Duggan foi morto a tiros, desculpas sero ditas, flores da
polcia sero depositadas no funeral. Os manifestantes presos
sero punidos e todos daro um suspiro de alvio e seguiro em
frente. At que acontea de novo. (TARIQ ALI, 2011, s/p).
Nos EUA floresceu um movimento de massas, Occupy
Wall Street, denunciando a tragdia social no pas, a hegemonia
dos interesses do capital financeiro, a polarizao entre os ricos
e os despossudos, o flagelo do desemprego, do trabalho precarizado sem direitos e as moradias que foram perdidas. Talvez se
possa afirmar que o Occupy, com todos os limites, possibilitou a
retomada de temas que estavam h tempos fora dos debates nos
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EUA como classes, trabalho, desemprego, crise estrutural, financeirizao do mundo e o capital.
Mas no s no Norte do mundo ocidental que surgiram
e se ampliam a precarizao do trabalho e suas lutas operrias. A
China hoje um dos pases com as maiores taxas de greves. Nesse
pas, encontramos um alto nmero de greves, resultado da superexplorao conduzida pelas transnacionais que habitam o solo
chins. O exemplo mais elucidativo o da Foxconn, empresa terceirizada responsvel pela montagem de produtos para a Apple,
Nokia, dentre outras companhias, e que contrata mais de um
milho de trabalhadores. O estudo dos pesquisadores do trabalho, Pun e Jenny Chan (2010), nos mostram que a tragdia da
Foxconn foi de tal intensidade que, nos primeiros oito meses de
2010, dezessete jovens trabalhadores entre 17 e 25 anos tentaram
suicdio, havendo treze mortes.
Esse padro chins de explorao no trabalho se expande
para a ndia. A ndia outro pas com um nvel de lutas sociais,
rebelies e greves muito alto. Estou citando aqui algumas rebelies que no so propriamente as greves, mas tomo por pressupostos que essas ltimas as greves so instrumentos vitais para
a luta da classe trabalhadora. Felizmente, podemos ter notcias
sobre esses eventos no continente asitico por conta da internet
e mdias sociais, pois os grandes jornais eliminaram de sua pauta
essas notcias.
No Japo, o cenrio de precarizao tambm notrio.
Quando eu fiz a pesquisa do meu livro Os sentidos do trabalho
(2011), descobri um fato assustador no Japo, que denominei
como operrios encapsulados. So operrios jovens migrantes
do campo que migram e vo morar e trabalhar em Tquio e nas
cidades japonesas industriais, e como no possuem dinheiro para
pagar um apartamento ou um quarto dormem em cpsulas de
vidro (ANTUNES, 2011). Outro grupo crescente nesse pas o do
cyber-refugiados. So jovens, operrios precarizados, sem perspectivas de trabalho que frequentam os cybercafs espaos que
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cobram preos baixos para ficarem abertos por toda a noite para
descansar, interagir pela internet e procurar algum trabalho para
o dia seguinte, como a descarga de caminho ou navio. E 35% dos
trabalhadores japoneses hoje esto na informalidade. Essa um
pouco a tragdia do mundo do trabalho.
Quando vrios autores, como Guy Standing (2013) e
outros, dizem que o precariado outra classe, eu me permito discordar. Engels (1845/2008) nos ensinou, no livro A situao da
classe trabalhadora na Inglaterra, que ns devemos entender que
a classe trabalhadora um compsito heterogneo. De 1844 at
a atualidade, a classe trabalhadora vem se tornando mais heterognea, mais fragmentada e mais complexificada, como venho
acentuando desde o livro Adeus ao Trabalho? (Antunes, 2014).
Outro aspecto importante a imigrao. Em 2010, havia
50 milhes de imigrantes nos quinze principais pases, o que
representava, ento, 15% da populao europeia. Eles chegam da
frica, da sia, da China, da Amrica Central e do Sul e do leste
europeu e aderem aos piores trabalhos.
Eu gostaria de falar agora da Amrica Latina, porque nosso
olhar no pode ser um olhar do Norte. Ns temos que conhecer o
Norte do mundo, mas ns no podemos deixar de falar a partir da
tica do Sul do mundo. Aqui ns vivemos a desertificao neoliberal, a contrarrevoluo aqui foi com ditadura com autocracia
militar. A ditadura militar chilena antecipou o neoliberalismo,
antes da Inglaterra, assim como o fez a Argentina. O neoliberalismo significou pauperizao, expulso, desemprego, aumento
desmesurado da concentrao de riqueza, concentrao da propriedade da terra, crescimento do agronegcio, avano dos lucros
e ganhos do capital. Muitos bancos europeus pagam a sua falncia, nas suas sedes, com o saque latino-americano. O Brasil, que
h 15 anos tinha bancos nacionais e estatais dominantes e majoritrios, hoje est em grande medida transnacionalizado.
O receiturio neoliberal teve enorme presena no Brasil,
na Argentina, na Colmbia, no Mxico e nos outros pases. Mas
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Marx nunca disse isso. Na verdade, os escritos marxianos afirmam a classe trabalhadora como potencialmente revolucionria
por criar mais-valor. Tanto Habermas como Claus Offe afirmam
que o valor no tem mais importncia; mas como eles explicariam a justificativa da Foxconn extrair os ossos, peles e almas dos
seus jovens operrios, a no ser pela extrao de mais-valia? Por
que existe zona franca no Haiti, onde o trabalhador ganha poucos
centavos por hora de trabalho?
Essa anlise no novidade. Se vocs virem uma fala
minha gravada em 1990, quando muitos da esquerda e neoliberais diziam que a classe trabalhadora havia acabado, eu afirmava
que a temperatura social iria aumentar na dcada de 1990 e 2000
e estamos vendo essa temperatura aumentando.
H um desafio importante para os marxistas, socialistas
da vrios matizes e os anticapitalistas. Em vez de afirmarem que
essas lutas at agora elencadas so irrelevantes por no ter a direo de um Partido, h de se compreender a fundo esses movimentos e, inclusive, h que se repensar o papel dos partidos nesse
processo.
O Partido dos Trabalhadores no surgiu como um partido de esquerda com o projeto de ser um partido de classe? Pois
agora est no colo da burguesia7. Marx dizia, na Associao
Internacional dos Trabalhadores, que era preciso criar um partido
poltico distinto. O que seria isso hoje?
Ainda mais: essas lutas sociais dos trabalhadores precarizados tm conexo com o trabalho, alm de outras ligaes que
apontei anteriormente (a tragdia urbana, a mercadorizao das
coisas, da sade, tudo aquilo que j estamos sabendo). H uma
nova morfologia da classe trabalhadora e so inmeras as consequncias e dificuldades; por exemplo, frequentemente o jovem
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no mundo europeu percebe o velho trabalhador como seu inimigo, o sindicato como aliado apenas do ltimo e querem distncia dos partidos.
Eu no acho que os partidos esto aniquilados da histria.
Mas, ateno: ns sabemos que no curso histrico novos organismos de representao nascem, velhos desaparecem, antigos
se atualizam e se tornam contemporneos. verdade que esses
movimentos sociais encontram sua principal lacuna na falta de
organicidade, mas tambm sinal de que h algo errado se os
partidos no priorizarem a luta das ruas e ficarem se exaurindo
em favor das eleies que limitam-se estritamente ao espao da
institucionalidade.
Eu tenho tido uma posio muito clara sobre isso: para
mim os partidos de esquerda devem priorizar as lutas sociais,
as greves, as rebelies, as manifestaes. Se priorizam a cada
semestre uma eleio, disputada a base de alianas, o partido no
avana. E essas lutas sociais esto dizendo algo para os partidos,
os sindicatos, que vo na direo contrria.
Claro que ns temos alguns desafios vitais. Como possvel repor o socialismo no sculo XXI? Eu diria: descobrir as
questes vitais. Essa a funo tambm dos intelectuais radicais.
Lukcs (1968/2013) tem uma passagem na Ontologia do Ser Social
na qual comenta que na vida cotidiana h uma serie infindvel
de se e mas; contudo, somente quando algumas questes cruciais, que tocam no nervo da sociedade aparecem, a transformao radical torna-se possvel e deflagram-se as revolues.
Quais so as questes vitais hoje? Uma delas o trabalho: a humanidade que trabalha depende dele para sobreviver.
A humanidade que trabalha precisa demolir o capital para que
o seu trabalho seja livre, associado, no menor tempo possvel
(por isso realizado segundo a lgica do tempo disponvel e no
do tempo excedente para produo de mais-valia) e para que sua
vida fora do trabalho seja a mais ampla e a mais rica, verdadeiramente livre. Para isso, repito, preciso demolir o sistema de
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metabolismo social do capital e para que isso ocorra tem que haver
luta, e no somos ns intelectuais que vamos fazer. luta social
em escala ampliada. E quem pode puxar essas lutas sociais? Uma
mirade de seguimentos e de movimentos sociais, sob a impulso
da classe trabalhadora, em seu sentido amplo.
ltima nota trata sobre o crescimento do proletariado de
servio. Primeiro, esses sujeitos compem o proletariado? Para
mim no paira dvidas que sim. Cria valor? Quem so os trabalhadores que criam valor e os que no criam? Se algum disser
para mim que no cria valor, no entendeu Marx, porque ele nos
ensinou que o professor, o artista, o cantor, dentre outros, tambm podem criar valor. Vrios setores de servios deixaram de
produzir servios para valor de uso privado ou pblico consumidos pelos outros trabalhadores, para gerar mercadoria (material
e imaterial) gerando mais-valia. Sobre a alegao de alguns de
que Marx no discutiu essas questes, pousa um erro notrio. No
volume II de O Capital (1885/1974), Marx vai falar da circulao
do capital e assume como indstria, tambm, os seguimentos dos
transportes, do gs, da eletricidade, exemplos que escapam ao
pensamento de senso comum do que seria a indstria. E ele acrescenta, claramente, que a indstria de transporte cria mais valia.
Se no entendermos quem esse novo proletariado, camos na enrascada que nos tentaram colocar h 20 anos, afirmando
que a classe operria estava diminuindo. Como indico em Adeus
ao Trabalho? (2014), na verdade a classe trabalhadora, o proletariado, est crescendo, basta pensar no novo proletariado de servios que no para de se expandir em escala global.
E como que a gente faz para entender essa classe trabalhadora? preciso voltar a Marx e, a partir dele, olhar o sculo
XXI. Por isso eu parabenizo a vocs pelo Marx Hoje e espero ter
ajudado, com essas provocaes, a jogar a nossa batalha para
frente. Porque o sculo XXI, como dizia o Gramsci, com otimismo e anlise crtica, h de ser um sculo mais generoso para
a humanidade.
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ENGELS, F. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. So Paulo:
Boitempo, 2008. (Escrito em 1845).
bom lembrar que a primeira revoluo negra, a primeira revoluo que tocou
a propriedade privada e que props a propriedade social nessa nossa Amrica,
ocorreu no Haiti.
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Parte III
Psicologia e marxismo
Captulo 10
A atualidade do marxismo e
sua contribuio para o debate
sobre a formao e atuao do
profissional de Psicologia
Isabel Fernandes de Oliveira
Ilana Lemos de Paiva
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Perde-se o contexto histrico, a dinmica societria, as contradies de classe. O modelo de Psicologia empreendido voltava-se,
portanto, para a elite brasileira e, mesmo para ela, defendia seu
condicionamento, sua colonizao, renegando a capacidade crucial dos indivduos de serem agentes reflexivos.
O iderio individualista provocou uma cultura profissional que perdura e que engessa a atuao profissional, mas
garante mercado de trabalho para a profisso. O problema que
o contexto social negligenciado por dcadas pelos profissionais
de Psicologia o mesmo que provoca retrao de mercado para
o exerccio liberal da profisso no final da dcada de 1970 e
tambm o mesmo que ir atrair psiclogos para o trabalho nesse
espao. No apenas por convices profissionais, mas, principalmente, por uma oportunidade de emprego (YAMAMOTO, 2007;
OLIVEIRA; AMORIM, 2012; YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010).
A falncia do milagre econmico, o processo de abertura
democrtica com a consequente reforma do Estado e as sucessivas crticas acerca do papel poltico do trabalho do psiclogo os
impele para o campo da poltica social. De espao obscuro passa
a ser referncia de insero, uma vez que o servio pblico e o
trabalho institucionalizado tornam-se os grandes empregadores
de psiclogos no Brasil, a partir da dcada de 1980. E a Psicologia
entrou no hospital, na escola, nas unidades de sade, na assistncia social, nas ONGs. Merece destaque, nesse movimento
questionador do papel ideolgico da cincia e da profisso, as
influncias de Vygotsky na Rssia; as influncias marxistas sobre
o tema trabalho na Frana; a Psicologia Alem, com sua redefinio da Psicologia da Atividade (para uma Psicologia Crtica); os
eventos de maio de 1968 na Frana (e seus vrios desdobramentos na esquerda mundial); o trabalho de Michel Foucault, sobre
poder, encarceramento e controle dos corpos, para citar alguns.
Podemos citar tambm, numa geografia mais prxima, as influncias dos vrios movimentos no campo social que vieram na esteira
dos golpes civil-militares da Amrica Latina e respondendo a um
228
movimento das Cincias Sociais e Humanas que havia comeado a produzir uma sociologia comprometida, militante, dirigida aos oprimidos. A Psicologia comea a receber influncias da
Teologia da Libertao, da Pedagogia de Paulo Freire, dos estudos
de Martin-Bar e do colombiano Orlando Fals Borda, alm de
uma matriz essencialmente marxista. Todo esse contexto deflagra a chamada crise de relevncia social da Psicologia, que em
um primeiro momento se restringe academia e a profissionais
envolvidos com a militncia poltica. Em terras nacionais, merece
destaque o movimento no campo da Psicologia Social, que agregou vrias dessas influncias e teve na figura de Silvia Lane uma
de suas principais ativistas. Questionava-se por que a Psicologia
no atuava como agente de transformao social. Qual o seu compromisso social? Por que a Psicologia no se ocupava de questes
da macroestrutura? So perguntas para as quais temos algumas
respostas, no todas, mas possvel compreender que o dilema
do chamado compromisso social da profisso j existia desde os
tempos da regulamentao da profisso no Brasil.
No nvel macroestrutural, nos estertores finais do ciclo de
autocracia burguesa, o clamor popular responsabiliza o Estado
pela exacerbao das condies de pobreza de um expressivo
quinho de brasileiros. A reforma do Estado o torna agente protetor dos cidados e o impele ao resgate da dvida social radicalizada na ditadura. Para isso, dentre outras medidas, o aumento do
gasto para a garantia dos chamados mnimos sociais era imperativo. Com isso, houve um incremento na poltica social e, dentre
suas novas diretrizes est a incorporao de categorias profissionais no existentes anteriormente em instituies pblicas. Esse
o contexto que permite o ingresso massivo dos psiclogos no
campo.
A partir do momento em que o psiclogo adentra no
campo das polticas sociais, um novo sujeito psicolgico, no
contemplado inicialmente, emerge como alvo de seu trabalho,
trazendo elementos como a fome, a destituio, a violao de
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surgimento das fbricas, o tear a vapor (grande marco da passagem do feudalismo para o capitalismo), sem dvida provocaram
um expansivo desenvolvimento da sociedade como um todo. Ou
seja, comeou-se a produzir riqueza material em grande escala.
Com a universalizao do trabalho livre, os ex-escravos e servos
passaram a vender sua fora humana de trabalho em troca de um
salrio. A questo a ser debatida : em que condies ocorre essa
venda da fora humana de trabalho desumanizada e transformada
em mercadoria? Para Marx, o capitalismo sinnimo do trabalhador reduzido fora de trabalho.
H a preocupao de Marx com todo esse processo, que
abarca sculos e continentes. Nessa evoluo, ocorre o processo
de individualizao do homem que s se d atravs do processo
da histria. O homem surge como ser genrico, animal tribal, gregrio e o aparecimento da troca o agente de individualizao
torna suprfluo o animal gregrio e o dissolve. O capitalismo
a forma desumanizada, contraditria, porm, pois quando h o
desenvolvimento individual livre (HOBSBAWM, 2011).
A partir da, emergem, da anlise marxiana da sociedade
do sculo XIX, duas grandes categorias ontolgicas fundamentais
para compreendermos o capitalismo: os detentores dos meios de
produo e que ficaro com boa parte da riqueza produzida, a
burguesia, e outra categoria, a daqueles que no tm alternativa
seno subsumir-se aos mandos do capitalista, vendendo sua fora
de trabalho como nica alternativa de sobrevivncia o proletariado. No capitalismo, o trabalho aliena o trabalhador..., mas,
como e por que?
Marx fala da categoria classe social para abarcar essas
duas que, para ele, so fundamentais e existem em uma relao
dialtica: uma existe to somente porque a outra existe. No se
pode imaginar em uma sociedade do capital apenas uma dessas
classes fundamentais. Qual a relao que se estabelece entre elas?
o proletariado o responsvel pela produo de riqueza, mas no
ele quem a acessa. E por isso conhecemos essa relao entre
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sociais so estratgias capitalistas de compensao da explorao; so estratgias minimizadoras da tenso social gerada pela
desumanidade da explorao, e so essenciais para a manuteno da lgica de reproduo do capital. Como operadores delas,
precisamos ter isso sempre muito claro porque, por mais democrtica que seja, uma poltica social no visa a superao total da
explorao. Retomaremos esse ponto mais frente.
Sob o discurso da otimizao e da estratgia, o Estado fragmenta a poltica social em polticas sociais setorizadas, e utiliza
o princpio da intersetorialidade para manter a relao entre elas.
Obviamente que se falamos de UMA questo social, para solucion-la no podemos pensar em estratgias que ataquem parte
dela apenas.
A poltica social ser mais permevel ao trabalhador tanto
mais essa classe conseguir pressionar a sociedade para isso. A
lgica inversa a mesma. Poltica, portanto, conflito de interesses, de classe, uma em oposio a outra. Em que pese a discusso
acerca de quais classes fazem parte da composio orgnica do
capital, a principal tenso que se estabelece quando falamos de
polticas sociais ou de agenda econmica , como apontou Marx,
entre a burguesia e o proletariado (ou ampliando, como prope
Ricardo Antunes, a classe que vive do trabalho).
Dizer que poltica social uma estratgia do capitalismo
para que este continue operante no invalida dizer que por
meio dela que se torna possvel a melhoria das condies de vida
da classe trabalhadora. Temos, ento, mais um exemplo das contradies do capitalismo. Ento, precisamos sim lutar pela plena
efetivao da poltica social e pela responsabilizao do Estado
sobre as condies de vida da populao, pois ela configura uma
etapa importante do movimento de organizao de classe e de
tomada de conscincia.
Diante da discusso levantada at aqui, destacam-se
alguns elementos importantes para compreender a atualidade
do marxismo, depreendidas de sua trajetria de construo de
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Um primeiro aspecto a ser abordado que, ao contrrio do que comumente se diz, Marx no foi um terico
do Comunismo ou do Socialismo; Marx foi um terico
do capitalismo, estruturando toda a sua obra em uma
perspectiva revolucionria, de superao da ordem
do capital. Para ele, menos que isso era nada e o que
viria depois do capitalismo no era, necessariamente, o
comunismo, mas que essa era uma possibilidade por ele
defendida. Para Marx, era inconcebvel uma sociedade
que matava trabalhadores para se reproduzir; uma sociedade em que no havia igualdade de oportunidades nem
o acesso de todos riqueza produzida. Para ele, uma
formao societria desumana deveria ser aniquilada.
2) Tambm ao contrrio do que ouvimos sistematicamente, tanto em alguns espaos acadmicos como fora
deles, a teoria marxiana no foi superada e nem obsoleta. A forma como Marx operou em seu tempo ainda
nos d respostas e explicaes para a compreenso de
vrios fenmenos contemporneos. Obviamente ela no
nos fornece todas as respostas. Teoria nenhuma o faz.
Tambm claro que sua teoria tem limitaes, histricas
principalmente, mas, enquanto a sociedade burguesa
no for superada, a obra de Marx sim, atual. Como
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questo, convocamos as palavras de Lukcs que concebe a sociedade humana como um complexo de complexos e que cada complexo uma sntese de mltiplas determinaes.
Tendo essa perspectiva como base, sobrevm as questes:
como operamos no real? Como o estudamos? E como o fazemos?
Qual o nosso mtodo? Poderamos apontar quatro premissas
essenciais que norteiam nosso fazer pesquisa/interveno:
1)
O objeto precede o mtodo. Ao imergir no real e identificar um objeto de estudo, ele mesmo nos aponta, por
suas caractersticas, a forma como deve ser investigado.
Portanto, o mtodo de investigao particular a cada
objeto e no o contrrio. No temos definies metodolgicas antecedentes escolha e a apropriao do objeto.
Isso no quer dizer que qualquer forma de apreenso do
objeto vlida. O rigor do mtodo, seja de investigao
seja de interveno, premissa essencial do trabalho.
2)
3)
4)
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ser mudada por que, e na medida em que, saibamos que produzimos a realidade. Anlises simplistas e superficiais corroboram a
alienao. Precisamos nos desalienar. Precisamos nos conscientizar como um complexo que se liga a outros; nos fortalecer como
categoria. Hoje ns somos igualmente trabalhadores explorados,
precarizados e alienados de nossa prpria prxis. J sabemos
que a maior parte dos conhecimentos produzidos no interior da
Psicologia no nos subsidia a uma atuao efetivamente comprometida com projetos revolucionrios. Ento vamos produzir
novos conhecimentos e ferramentas! A Psicologia uma prtica
social feita de carne, ossos, historicidade, cultura, linguagem,
sociabilidade etc. Da, no o lugar de atuao que define a postura de um profissional, por isso, precisamos refletir criticamente
sobre teorias, mtodos e prticas. Como trabalhar conscincia,
classe, movimentos sociais, se no nos enxergamos como parte
de uma engrenagem que mantm as condies de explorao?
Se considerarmos cada um de ns como um potencial
revolucionrio, precisamos desenvolver constantemente o exerccio do pensamento dialtico sobre nossa rea de atuao. uma
forma de treinar esse pensamento para conceber cada pequena
luta poltica ou sindical nos marcos da grande poltica, nos marcos do pensamento dialtico de conjunto, em que mltiplas
determinaes, grandes e pequenas, visam elevar o proletariado a
sujeito poltico da sociedade.
Alguns avanos j ocorrem nessa seara. Um grupo marxista dentro da Psicologia j algo que merece destaque. So as
aproximaes iniciais desse e de outros grupos junto ao campo
profissional que nos revelam lampejos para a prxis a partir do
momento em que se mostram como uma nova forma de compreender a realidade.
Portanto, se por um lado no apresenta procedimentos e
tcnicas fechados o que seria contraditrio at mesmo com os
prprios pressupostos apresentados , eles oferecem ferramentas
de compreenso do real que permitem aos psiclogos elaborarem
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243
Referncias
BICALHO, P. P. Ditadura e Democracia: qual o papel da violncia de
Estado?. In: XIMENDES, A. M. C; REIS, C. dos; OLIVEIRA, R. W.
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MARX, K. Manuscritos Econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo,
2004. (Texto original publicado em 1844).
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Introduo
Psicologia como cincia produz um campo de conhecimento importante para a compreenso do desenvolvimento
humano em distintos contextos sociais, pela anlise das experincias cotidianas e o impacto de algumas situaes concretas nos
processos de sade e doena. Por esse motivo, a Psicologia tem
relevncia, sobretudo, porque fornece subsdios para uma discusso sobre tica e vida social dentre outras contribuies tericas em dilogo com outros campos do saber. Apesar disso, nem
todo conhecimento psicolgico sustenta uma prtica emancipadora. Pelo contrrio, a grande parte do conhecimento produzido
pela cincia psicolgica tem se constitudo em uma argamassa
para a constituio de um modo de vida incompatvel com a
humanizao, por excelncia, das relaes sociais. E diante
dessa premissa que surgiram, no mbito do Grupo de Pesquisa1,
Grupo de Pesquisa: Avaliao e Interveno Psicossocial preveno, comunidade e libertao Programa de Ps-graduao em Psicologia Pontifcia
Universidade Catlica de Campinas, So Paulo.
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profissionais. At os dias de hoje, nem a formao nem o exerccio profissional conseguem se desligar dessa carga tecnicista
que pouco responde s demandas do servio pblico no atendimento s camadas populares. Professores e pesquisadores ainda
reproduzem o modelo hegemnico em que foram formados e so
responsveis por uma enorme quantidade de estudantes que no
fazem uma leitura crtica da Psicologia e a mantm como uma
poderosa ferramenta a servio da atual forma de sociabilidade
que causa sofrimento na maioria das pessoas. Apenas para destacar um elemento: durante os primeiros vinte anos de formao
dos psiclogos no Brasil a predominncia do perfil profissional
era de um psiclogo clnico, cuja prtica profissional era voltada
populao que podia pagar pelos atendimentos em consultrios
privados e fundamentada em um modelo mdico-positivista com
intervenes teraputicas remediativas.
Refletindo as marcas do processo de colonizao vivido
pelos pases do continente americano, a Psicologia, como uma
profisso recente, acabou por se desenvolver no Brasil e outros
pases da Amrica Latina, predominantemente, por um mimetismo cientfico (MARTN-BAR, 1998), ou seja uma importao
acrtica dos conhecimentos produzidos nos pases do hemisfrio
norte, predominantemente dos Estados Unidos. Sob essa influncia, os fundamentos para a anlise marxista da realidade nas
abordagens da Psicologia, no sobreviviam no Brasil.
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O mtodo em Marx
A pesquisa em Psicologia tem suas origens no empirismo
e controle experimental de dimenses subjetivas ou constructos e variveis psicolgicas o ser humano e sua essncia biologicista. O positivismo sustentou e ainda inspira a pesquisa
em Psicologia. E interessante observar que a relao entre o
Marxismo e a Psicologia caracterizada por um discreto silncio se considerarmos a abundncia de pensamentos e ideias
caractersticas das duas reas, mesmo considerando o discurso
recorrente nos espaos acadmicos sobre a pesquisa servindo
transformao social e a aceitao acrtica de que a globalizao
probe qualquer discusso sria de alternativas mudana. Para
Hayes (2001), h importantes argumentos e razes que podem
explicar esse silncio e a represso ao pensamento marxista. A
Psicologia se afastou das teorias sociais em geral e, particularmente do Marxismo. Ao mesmo tempo, o Marxismo se manteve
hostil a esse corpo de conhecimento que desconsiderava elementos da histria, do materialismo e da dialtica para a compreenso
da personalidade humana. Na perspectiva da Psicologia Crtica,
o Marxismo tem muito a contribuir e essa tem sido uma tarefa
importante e premente de alguns pesquisadores e grupos de pesquisa na Psicologia.
Ao aprofundarmos a questo do mtodo em Marx chama
a ateno o paradigma analtico e o problema central de pesquisa
qual seja, a gnese, a consolidao, o desenvolvimento, as condies e as crises da sociedade capitalista, contexto por excelncia de desenvolvimento dos seres humanos. nesse cenrio
de relaes sociais e de produo da vida que as condies de
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O Grupo de Pesquisa
O Grupo de Pesquisa Avaliao e Interveno Psicossocial
preveno, comunidade e libertao foi formado em 1996 com
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A cada eixo terico corresponde um conjunto de formulaes que, inspiradas no Marxismo, permitem a anlise capaz
de fornecer elementos para o desenvolvimento do processo de
tomada de conscincia de pessoas e grupos das camadas populares, dando um outro sentido e significado prtica profissional
do psiclogo.
O grupo tem como fundamentos tericos a libertao na
perspectiva do sujeito, espaos de desenvolvimento como escola
e comunidade, conselhos de participao social e poder poltico;
o processo de tomada de conscincia e a subjetivao pensar e
agir sob certas condies sociais, historicidade da vida cotidiana,
ideologia na relao indivduo e sociedade; opresso, subalternidade e violncia, psicologia comunitria e psicologia crtica.
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Referncias
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LUKCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. In: COUTINHO,
N. C.; NETTO, J. P. (Org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
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Madrid: Editorial Trotta, 1998.
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2004. (Texto original publicado em 1844).
PARKER, Ian. Revolution in psychology: Alienation to emancipation.
London: Pluto Press, 2007.
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Introduo
Apoio: CNPq.
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partes. A primeira aponta qual veio da tradio marxista fundamenta o conjunto de proposies presentes neste texto, enquanto
a segunda desenvolve o conjunto de notas sobre as contribuies
do marxismo para a Psicologia.
Dussel (2001, p. 269) caracteriza a obra de Marx como um juzo cientfico negativo crtico do capital.
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Por isso, no pensamento marxiano, impossvel conceber um processo de emancipao do gnero humano sem qualquer tipo de transformao da sociedade
(TERTULIAN, 2004).
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estado primitivo nada explica. Ele simplesmente empurra a questo para uma regio nebulosa, cinzenta. Assim o telogo explica
a origem do mal pelo pecado, isto , supe como um fato dado e
acabado, o que deve explicar (MARX, 1844/2004, p. 80).
Finalmente, cabe destacar que a perspectiva de Marx sobre
a transformao social no a mera construo de uma sociedade
democrtica ou de um Estado aperfeioado. Seu projeto revolucionrio impulsionado pela busca de superar o Estado em si.
Para tanto, Marx sublinha a necessidade de um projeto social
que, para alm da emancipao poltica, almeja a emancipao
humana. A emancipao poltica possibilitou superar a ordem
feudal, mas no possibilitou a libertao humana:
O limite da emancipao poltica fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma
limitao sem que o homem realmente fique livre dela,
no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem
que o homem seja um homem livre (MARX, 1843/2010,
p. 37-38).
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Muitas vezes, isso significa que fazer cincia apenas operacionalizar um conjunto de regras que possibilitam a manipulao
de um objeto em certas condies ideais (COUTINHO, 1972;
LUKCS, 1968/2012).
Essa crtica ontolgica da postura epistemologista abre
novos horizontes para o debate sobre os problemas ontolgicos da
Psicologia. A crtica da metodolatria apresentada por Danziger
(1998) demonstrou como a construo do mtodo cientfico na
Psicologia estadunidense foi produto da mais pura arbitrariedade. Enquanto, retoricamente, muitos pioneiros apontavam
para a importncia de Wundt para a constituio da Psicologia,
os psiclogos estadunidenses realizavam um conjunto de adaptaes no chamado mtodo cientfico com a finalidade de criar
uma cincia mais adequada a um contexto marcado pela competio, pela racionalizao de instituies sociais especialmente
educativas e que primava pela converso dos problemas sociais
em problemas individuais. Nesse contexto, a prtica de pesquisa
que mais poderia florescer no era aquela que buscava o estudo
da mente humana individual tal como props Wundt, mas sim
aquela que estudava o desempenho do indivduo em comparao com uma norma estatstica. Aqui, h uma deciso arbitrria: define-se que um conjunto de dados que agrega um grande
nmero de sujeitos uma base vlida de conhecimento. Essa base
de dados estatisticamente tratada e as regularidades encontradas so interpretadas enquanto manifestaes de leis cientficas
quantitativamente demonstrveis. Da que a regularidade estatstica permite inferir a conduta individual (DANZIGER, 1998).
Da mesma forma, Samelson (1979) destaca como os
diversos achados dos testes de inteligncia sobre a inferioridade
mental de certas raas ou nacionalidades acompanhou o clima
sociopoltico existente nos EUA. A tarefa de muitos testes no era
a de estudar a inteligncia, mas sim a de demonstrar a utilidade
da Psicologia e a melhor forma de se fazer isso era garantir que
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da Psicologia quanto a busca por aes alternativas esto estreitamente relacionadas com as diversas transformaes da sociedade brasileira e seus influxos sobre a Psicologia como profisso.
Alm de um complexo processo de crescente assalariamento dos
psiclogos brasileiros, houve, tambm, o crescimento da atuao
profissional, normalmente em condies precrias, em instituies que lidam com refraes da questo social (YAMAMOTO,
2003; 2007).
Ao mesmo tempo que houve uma maior insero profissional da Psicologia em equipamentos ou instituies que lidam
com refraes da questo social, comeou a se explicitar diversas
discusses sobre a atuao da Psicologia na esfera das polticas
pblicas ou sobre sua importncia para o fortalecimento da democracia e a conquista de direitos sociais (BOCK, 2003; FURTADO,
2007; SAADALLAH, 2007). Especialmente em campos como a
Psicologia Poltica e a Psicologia Comunitria que, na Amrica
Latina, surgiram com explcitos compromissos com movimentos sociais, lutas por poder popular e processos de libertao,
os temas da democracia, da socializao de direitos e das polticas pblicas passaram a predominar (PRADO; COSTA, 2009;
FREITAS, 2007; XIMENES et al. 2009)4.
A crtica marxiana serve para alertar sobre possveis iluses
quanto aos limites e possibilidades reais das polticas pblicas,
da democracia e da defesa da esfera pblica, pois os seus limites
so os mesmos da emancipao poltica. De acordo com a discusso j apresentada sobre emancipao poltica, esta pressupe a
existncia de uma sociedade caracterizada pelo conflito entre o
indivduo possessivo e o cidado pblico, pela contradio entre
H um claro contraste entre essas propostas e algumas das propostas de MartnBar (1988/2002). O autor prope a busca do poder popular, ao invs da busca de
falsas democracias eleitorais e a intensificao de processos de libertao social
por meio de uma prtica de classe de carter revolucionrio, ao invs da mera
defesa de direitos ou busca por polticas pblicas.
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H inmeros textos sobre o tema. O trabalho de Prilleltensky (1994) uma interessante reviso que destaca os componentes ideolgicos das concepes de
indivduo e de sociedade da psicanlise, do humanismo e do behaviorismo. Da
mesma forma, Parker (2007) dedica toda a sua ateno tarefa de demonstrar a
relao entre a existncia da sociedade burguesa e as concepes de homem que
circulam na Psicologia.
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Consideraes finais
O presente texto buscou indicar algumas das possveis
contribuies da tradio marxista, especialmente do veio lukacsiano, para a Psicologia, especialmente quando se assume como
perspectiva a construo da emancipao humana. As anotaes
indicativas oferecidas neste texto intentaram enfatizar: (a) que a
radical historicidade humana exige horizontes mais amplos do
que aqueles oferecidos por uma cincia particular e independente;
(b) que a crtica ontolgica condio fundamental para se efetivamente conhecer a subjetividade, isto , que a reproduo ideal
do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa (NETTO,
2011, p. 21) no depende da elaborao unilateral de critrios
lgico-gnoseolgicos, tal como ocorreu, de maneira recorrente,
na histria da Psicologia; (c) que a perspectiva da emancipao
humana possibilita uma avaliao mais realista e menos ufanista
ou redentorista sobre as possibilidades da Psicologia cumprir um
papel protagonista em processos de transformao social.
A perspectiva da emancipao humana enunciada por
Marx possibilitou a construo de projetos de Psicologia que, pelo
menos, buscam ser um instrumento em processos de transformao social, seja mediante a realizao de estudos e pesquisas que
contribuam para desvelar ou denunciar processos de explorao
e alienao em nossa sociedade, seja pela busca de elaborar intervenes que intentam reduzir desigualdades sociais ou favorecer
os interesses de grupos oprimidos e explorados. Para que essas
propostas no incorram no erro de repetir a busca da transformao da sociedade sem a realizao de uma revoluo social,
imperativo lembrar a afirmao de Vygotsky (1930/2006), que
expressou, didaticamente, a complexidade da tarefa de se buscar a emancipao humana e a transformao dos seres humanos:
To-s uma elevao de toda a humanidade a um nvel mais alto
de vida social a libertao de toda a humanidade pode conduzir formao de um novo tipo de homem.
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Referncias
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as elites. In: BOCK, A. M. B. (Org.), Psicologia e compromisso
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COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a misria da razo. Rio de Janeiro:
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FERREIRA, A. A. L. A psicologia no recurso aos vetos kantianos. In:
JAC-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.; PORTUGAL, F. T.
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Organizadores
Ana Ludmila F. Costa
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, pesquisadora do Grupo de Pesquisas Marxismo
& Educao (GPM&E). Tem interesse pelos temas: teoria social marxiana, poltica cientfica, poltica social, formao, atuao e pesquisa
do psiclogo nas reas jurdica, social/comunitria e ambiental.
Endereo eletrnico: [email protected]
Fellipe Coelho-Lima
Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, professor da mesma instituio, pesquisador do
Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao (GPM&E) e do Grupo
de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho (GEPET). Tem interesse
pelos temas: ideologia do trabalho, informalidade, desemprego,
polticas sociais, profisso e formao de psiclogo e teoria social
marxista/marxiana.
Endereo eletrnico: [email protected]
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Autores
Ana Lia Almeida
Mestre em Cincias Jurdicas pela Universidade Federal
da Paraba, professora da mesma instituio e coordenadora do
Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas)
e do Ncleo de Extenso Popular Flor de Mandacaru (NEP). Tem
interesse pelos temas marxismo, assessoria jurdica popular e
direitos humanos.
Endereo eletrnico: [email protected]
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latinoamericano, assessoria jurdica popular, democracia, propriedade fundiria, terrenos de marinha, direito urbanstico.
Endereo eletrnico: [email protected]
Ivo Tonet
Doutor em Educao pela Universidade Estadual Paulista
Jlio de Mesquita Filho e professor de filosofia da Universidade
Federal de Alagoas. Tem interesse pelos temas: socialismo, marxismo, poltica e educao.
Endereo eletrnico: [email protected]
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Marcello Musto
PhD em Filosofia pela University of Naples LOrientale,
PhD em Filosofia e Poltica pela University of Nice Sophia
Antipolis, Assistant Professor no Departament of Sociology da
York University - Toronto. Tem interesse pelos temas: Marxismo,
Histria do Pensamento Poltico, Filosofia Moderna e Histria do
movimento operrio.
Endereo eletrnico: [email protected]
Mario Duayer
PhD pela Manchester University (Inglaterra), professor
visitante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Tem interesse pelos temas: Marx, ontologia crtica, teoria social crtica,
filosofia da cincia, metodologia da anlise econmica.
Endereo eletrnico: [email protected]
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Oswaldo H. Yamamoto
Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
e coordenador do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao
(GPM&E). Tem interesse pelos temas: polticas sociais e a teoria
social marxiana.
Endereo eletrnico: [email protected]
Ricardo Antunes
Doutor em Sociologia pela Universidade de So Paulo,
professor titular da Universidade Estadual de Campinas. Tem
interesse pelos temas: trabalho, nova morfologia do trabalho,
ontologia do ser social, sindicalismo, reestruturao produtiva e
centralidade do trabalho.
Endereo eletrnico: [email protected]
Captulo 12
283
Volume I