Ebook Marx Hoje PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 286

Volume I

A presente obra encontra-se sob a licena Creative Commons


(Atribuio-Uso no-comercial-No Derivative Works 3.0 Brasil)
Para visualizar uma cpia da licena, visite
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/br/ ou mande uma
carta para: Creative Commons, 171 Second Street, Suite 300, San
Francisco, California, 94105, USA.

Este livro teve o apoio da Coordenao de Aperfeioamento de


Pessoal de Nvel Superior (CAPES)

Isabel Fernandes de Oliveira Ilana Lemos de Paiva


Ana Ludmila Freire Costa Fellipe Coelho-Lima
Keyla Amorim (Organizadores)

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)


M392 Marx hoje: pesquisa e transformao social./ Isabel Fernandes de Oliveira,
Ilana Lemos de Paiva, Ana Ludmila Freire Costa, Felipe Coelho Lima, Keyla
Amorim (Organizadores). 1.ed. So Paulo: Outras Expresses, 2016.
284 p.
Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br.
Textos originalmente apresentados no I Seminrio Marx Hoje: Pesquisa e
Transformao Social em abril de 2014 na UFRN.
ISBN 978-85-9482-002-0
1. Socialismo. I. Oliveira, Isabel Fernandes de (org.). II. Paiva, Ilana
Lemos de (org.). III. Costa, Ana Ludmila Freire, (org.) IV. Lima, Felipe
Coelho (org.). V. Amorim, Keyla (org.). VI.Ttulo.
CDU 329.14
Bibliotecria: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Sumrio
Apresentao....................................................................................7
Prefcio...........................................................................................15
Marcello Musto, York University

Parte I A tradio marxista: pesquisa e transformao social


1. A atualidade do mtodo de Marx..............................................25
Oswaldo H. Yamamoto, UFRN

2. Lukcs: trabalho e ser social......................................................43


Ivo Tonet, UFAL

3. Pesquisa na tradio marxista: mtodo e sua contribuio


para as cincias humanas e sociais................................................57
Elaine Rossetti Behring, UERJ

4. O mtodo e a teoria marxiana....................................................71


Jane Cruz Prates, PUC-RS

5. Marxismo e transformao social:


tendncias e contratendncias.....................................................101
Carlos Montao, UFRJ

Parte II Questes contemporneas luz do marxismo


6. Capital: a verdade absoluta do ceticismo ps-moderno e
adjacncias....................................................................................137
Mario Duayer, UERJ

7. Educao, ideologia e prxis....................................................155


Ana Lia Almeida e Roberto Efrem Filho, UFPB

8. Marxismo e Amrica Latina: histria e possibilidades


no sculo XXI...............................................................................173
Daniel Araujo Valena, UFERSA

9. A era das rebelies e os desafios do marxismo.......................201


Ricardo Antunes, UNICAMP

Parte III Psicologia e marxismo


10. A atualidade do marxismo e sua contribuio para o debate
sobre a formao e atuao do profissional de Psicologia..........223
Isabel Fernandes de Oliveira e Ilana Lemos de Paiva, UFRN

11. Marxismo e pesquisa: apontamentos sobre a experincia


de um Grupo de Pesquisa em Psicologia.....................................245
Raquel Souza Lobo Guzzo, PUC-Campinas

12. Marxismo e Psicologia: Notas crticas sobre epistemologismo,


emancipao e historicidade.......................................................255
Fernando Lacerda Jnior, UFG

Organizadores...............................................................................277
Autores..........................................................................................279

Apresentao

ste livro fruto do conjunto de atividades que compuseram


o I Seminrio Marx Hoje: Pesquisa e Transformao Social,
ocorrido em abril de 2014, nas dependncias da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. O evento foi uma realizao do
Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao (GPM&E), vinculado
ao Programa de Ps-graduao em Psicologia da referida instituio (PPgPsi/UFRN). Constitudo no ano de 1995, o GPM&E tem
como proposta congregar pesquisadores, docentes e estudantes de
graduao e ps-graduao de Psicologia com uma identificao
de ordem terico-metodolgica comum: a teoria social marxiana.
Por sua insero no campo da Psicologia, o Grupo se
depara, cotidianamente, com dois rduos esforos na tentativa
de construir uma cincia da histria, uma vez que a tradio de
Marx no muito afeita academia e muito menos Psicologia.
Primeiro, romper com a tradio positivista, ainda hegemnica na
pesquisa cientfica acadmica, mesmo diante de diversos ensaios
de naturezas distintas. E o segundo, debater sobre transformao
social na Psicologia, que traz em sua histria estratgias de conservao da ordem, como por exemplo, ter sido parceira do Golpe
Civil-Militar de 1964.
Tendo em vista estes desafios, o GPM&E assumiu a tarefa
de realizao do Seminrio em questo. Dessa forma, o evento
visou proporcionar a difuso da obra de Karl Marx e da tradio
terica e poltica que se formou em sua esteira, promovendo conferncias, mesas-redondas e grupos temticos no campo do marxismo, voltados pesquisa e transformao social. Um objetivo
secundrio alcanado foi a insero do Nordeste (e do Rio Grande
do Norte, em particular) como um polo de eventos e debates sobre

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

a teoria social marxiana/tradio marxista no Brasil, circuito tradicionalmente restrito ao Sudeste.


O evento, gratuito, contou com a participao de quase
600 pessoas de todo o pas, entre alunos de graduao e ps-graduao das mais diversas reas (ainda que tenha ficado clara a
presena macia de alunos e pesquisadores do Servio Social,
tambm estiveram presentes acadmicos de Psicologia, Direito,
Pedagogia, Cincias Sociais, Filosofia, entre outros), alm de profissionais atuantes em vrios segmentos.
Na ocasio, a teoria marxiana e a tradio marxista funcionaram como articulao entre a pesquisa cientfica, reduto da
academia e por vezes criticada por seu distanciamento em relao vida real, e a perspectiva da transformao social, considerando as condies de vida de uma populao cada vez mais
pauperizada, despolitizada e excluda de muitos direitos sociais.
Vrias questes foram debatidas neste sentido, outras tantas ainda
carecem de respostas. Contudo, no longo e complexo processo de
estreitar mais a relao entre o que produzido na academia e o
que efetivamente ocorre na vida das pessoas, um primeiro e efetivo passo foi dado.
Ao final do evento, restou a constatao de que este
momento foi, no s importante, mas principalmente, necessrio: por meio do intercmbio entre pesquisadores e do aprofundamento de questes essenciais pesquisa marxista, reitera-se
o papel da academia na promoo de uma formao crtica e
revolucionria.
Visando dar continuidade a este debate, neste livro est
reunida grande parte das contribuies dos pesquisadores participantes do Seminrio, que foram convidados a elaborar um texto
que refletisse sua interveno no evento, com o intuito de que o
registro funcione como extenso do dilogo promovido. Por este
motivo, os captulos apresentam diferenas de estilo e contedo:
alguns mais didticos, outros mais informativos e uns tantos
essencialmente reflexivos, a depender da natureza da atividade

Apresentao

que lhe deu origem (conferncias, mesas-redondas e grupos temticos). Um aspecto, contudo, todos carregam: o carter revolucionrio, ao menos em inteno. Aproveitamos para agradecer pela
colaborao de todos os autores.
O livro est organizado em trs partes, que so precedidas por um prefcio, este, de autoria de Marcello Musto, professor da York University. Profundo conhecedor da obra marxiana,
Musto instiga os leitores a refletirem sobre a importncia da atualidade do pensamento marxiano a partir da apresentao do projeto Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), que pretende lanar
a edio completa dos escritos de Marx e Engels. Aproveitamos
para agradecer a contribuio de Victor Varela na traduo deste
material.
A primeira parte rene material acerca dos fundamentos
ontolgicos, tericos e metodolgicos da teoria marxiana e tradio marxista, disposto em cinco captulos.
No primeiro deles, Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN)
alude ao trip fundamental da teoria social marxiana mtodo
dialtico, teoria do valor-trabalho e revoluo para reivindicar a atualidade do mtodo de Marx. Na esteira da tradio marxista que recorre a Lukcs para reforar a ortodoxia do mtodo,
Yamamoto reitera o incontestvel lugar que a teoria social marxiana ocupa na compreenso da sociedade burguesa e na sua
superao. Tambm caracterstica desse texto a reflexo acerca
da apropriao de Marx pela academia, que, espao de contradio, tem sido lugar de formao, de resistncia poltica, de crtica
s tendncias relativistas, e de sofisticao de anlises de inspirao marxiana.
Na sequncia, Ivo Tonet (UFAL) fundamenta-se na ontologia do ser social para destacar a primazia do trabalho na constituio do ser social e a necessidade do retorno ao carter crtico
do pensamento de Marx para um projeto revolucionrio. Tonet
disserta sobre o carter genrico do trabalho como categoria
mediadora do ser social com o ser natural, e como modelo de

10

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

todas as atividades sociais; sobre a particularidade do ser social


na produo do novo; sobre a relao entre teleologia e causalidade; e sobre a importncia da conscincia nessa mediao. Alm
disso, trata da contribuio da ontologia do ser social do ponto
de vista metodolgico, na produo de conhecimento cientfico,
e prtico, nas consequncias dessa relao quando se trata da
sociedade dividida em classes.
Ainda nesta parte, Elaine Rossetti Behring (UERJ) atribui
teoria social marxiana o carter de aporte terico-metodolgico,
cujas categorias so necessrias explicao do mundo atual e
afeitas produo de conhecimento no mbito acadmico. Em
suas palavras, o mtodo em Marx essa sofisticada bssola
para interpretar o mundo. Ancorando-se nessa linha de argumentao, o captulo se estrutura a partir das contribuies dessa
teoria social para anlise do fundo pblico, temtica central na
linha de pesquisa da autora no Grupo de Estudos e Pesquisas do
Oramento Pblico e da Seguridade Social (GOPSS/UERJ).
No quarto captulo, Jane Cruz Prates (PUCRS) sistematiza
as diretrizes metodolgicas da teoria social marxiana, destacando
suas bases axiolgicas, ontolgicas e epistemolgicas; o trabalho
como objeto de investigao e suas particularidades no modo
de produo capitalista; e as principais categorias dialticas e
os momentos de investigao e exposio do mtodo marxiano.
Prates defende a escolha da teoria social marxiana como uma
opo poltica cuja direo a emancipao humana. com essa
postura que questes centrais para investigaes que subsidiam
o projeto revolucionrio se impem, bem como a forma de proceder essas pesquisas requer crtica. Assim, sistematizar diretrizes
para investigaes nessa perspectiva se torna tarefa necessria
em uma sociedade marcada por contradies de classes esforo
didtico adotado nesse captulo.
No ltimo captulo da primeira parte, Carlos Montao
(UFRJ) contribui para a discusso sobre transformao social, contrapondo-se s tendncias tericas fragmentrias contemporneas

Apresentao

11

que substituem transformao por mudana social. Defendendo a


crtica radical em oposio ao esvaziamento conceitual, Montao
reposiciona as categorias essenciais para anlise e transformao do modo de produo capitalista, define o socialismo como
caminho para o comunismo e recupera os fundamentos marxianos da transformao social, quais sejam, o esgotamento do modo
de produo e a constituio do sujeito revolucionrio. A crise
estrutural e a centralidade da classe trabalhadora organizada
so condies inegveis para a transformao do capitalismo e
nessa direo que o autor finaliza o captulo, com os desafios para
superao desse modelo societrio.
A segunda parte do presente livro composta por
quatro textos que tratam de debates emergentes do mundo
contemporneo.
Ela inicia-se com o captulo de Mrio Duayer (UERJ), no
qual problematiza o relativismo no atacado propalado hoje em
dia entre filsofos de tradies ps (ps-modernos, ps-estruturalistas, ps-crticos) e neopositivistas. Nessa incurso, Duayer
realiza um duplo movimento: primeiro, apresenta de que forma
os escritos marxianos j continham a crtica essencial estabelecida por ambas as correntes (a primeira, acerca do relativismo do
conhecimento humano, e a segunda, acerca do processo de construo do conhecimento); segundo, revela as limitaes e distores ontolgicas promovidas por ambas as tradies. A sada para
essa encruzilhada histrica o retorno, assim como fez Marx,
crtica verdadeira, isto , crtica ontolgica das imagens do
mundo burgus.
Em seguida, Ana Lia Almeida e Roberto Efrem Filho
(ambos da UFPB) traam uma anlise acerca das relaes entre
o processo educativo e a construo de formas ideolgicas de
conscincia na sociedade capitalista, exemplificando as potencialidades dessa relao em duas experincias acadmicas que
conduzem no curso de Direito da Universidade Federal da
Paraba. Alicerados nos escritos de Marx, Lukcs e Mzsros, os

12

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

autores precisam o conceito de ideologia, bem como a forma que


a educao comparece no processo de produo de conscincias,
tendo como marca indelvel a luta de classes.
O captulo seguinte, de autoria de Daniel Arajo Valena
(UFERSA), aborda a teoria social marxiana nos pases latino-americanos, com enfoque na compreenso da ascenso dos governos
de carter progressista nessa regio, em especial, na Bolvia.
Para tanto, empreende, ao mesmo tempo, um regaste histrico
das principais categorias marxianas para compreender a totalidade social e apresenta a forma como essas discusses aportaram na Amrica Latina. O autor realiza uma cuidadosa anlise do
processo histrico boliviano desde a consolidao dos regimes
neoliberais naquele pas at a atual constituio de um governo
popular-democrtico com intuito socialista e encerra problematizando o acesso ao poder desses governos de vis semelhante
em diversos pases latino-americanos e as possibilidades de contribuio do marxismo para a compreenso dessa situao.
Encerrando essa parte, Ricardo Antunes (UNICAMP) em
seu texto aborda quatro aspectos: a prevalncia de uma contrarrevoluo burguesa em escala mundial, iniciada na dcada de 1970
e marcada pela trade neoliberalismo, reestruturao produtiva
e crescimento do capital financeiro; a recente onda de revoltas
populares ocorridas, tanto no norte, como no sul do mundo,
caracterizadas pela heterogeneidade das pautas e o comparecimento ativo das transversalidades (gnero, etnia, nacionalidade,
idade etc.); o reconhecimento da relao intrnseca entre o proletariado e a revoluo, sendo necessrio o reconhecimento da nova
morfologia dessa classe; e, por fim, a incluso do proletariado do
setor de servios em meio aos debates de classe, haja vista o seu
pujante crescimento nas ltimas dcadas. Contrariando as teses
de que o marxismo irrelevante para o mundo atual, Antunes
conclui afirmando que preciso voltar a Marx e, a partir dele,
olhar o sculo XXI.

Apresentao

13

A terceira e ltima parte da coletnea rene material especfico da Psicologia.


Ela se inicia com o captulo de autoria de Isabel Fernandes
de Oliveira e Ilana Lemos de Paiva (ambas da UFRN), coordenadoras do GPM&E (junto com o Prof. Dr. Oswaldo H. Yamamoto) e
do evento. No texto, as autoras se propem a apresentar os pressupostos da teoria social formulada por Marx e Engels como eixo
inspirador de pesquisa, de formao de pensamento crtico e de
uma atuao profissional militante. Com isso, pretendem apontar contribuies do marxismo para refletir o lugar da Psicologia
como cincia e profisso, na direo de uma prxis verdadeiramente transformadora da realidade social alvo de seu trabalho.
Na sequncia, Raquel Souza Lobo Guzzo (PUCCAMP) problematiza a relao Psicologia & Marxismo evidenciando elementos tericos e exemplos prticos para essa aproximao. Para
tanto, trata das potencialidades da Psicologia como um campo do
conhecimento que forneceria subsdios valiosos quanto questo da tica e da vida social, ainda que, historicamente, essa rea
tenha compactuado com os ideais liberais. Como exemplo, Guzzo
resgata a experincia de seu grupo de pesquisa que vem desenvolvendo trabalhos acerca da passagem da conscincia de si para
a conscincia de classe.
No ltimo captulo referente a este tema, Fernando
Lacerda Jr. (UFG) argumenta em torno do que seria marxismo
e transformao social, seguindo com uma breve exposio dos
conceitos decisivos nessa tradio. Aps apresentar tentativas
de aproximao da Psicologia com o marxismo, ele sublinha as
potencialidades de aproximao desse campo com os pressupostos marxistas-lukacsianos, a saber: a construo de uma nova
filosofia da subjetividade, o papel do sujeito na histria e a compreenso materialista e histrica da autoconstruo humana.
A expectativa que esta coletnea fornea contribuies
essenciais para todos aqueles envolvidos na necessria articulao entre pesquisa e transformao social, sobretudo aqueles que

14

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

reconhecem na teoria social marxiana os fundamentos para esta


tarefa.
Cientes de que o conhecimento elemento indispensvel para qualquer tentativa de crtica e construo de alternativas, temos a satisfao de informar nossa adeso ao Movimento
de Acesso Aberto, com a disponibilizao da ntegra desta obra
na pgina eletrnica do evento (www.marxhoje.com.br) e adoo da licena de atribuio Creative Commons, alm de vdeos
do Seminrio na internet (https://www.youtube.com/user/
marxhoje).
Isabel Fernandes de Oliveira
Ilana Lemos de Paiva
Ana Ludmila F. Costa
Fellipe Coelho-Lima
Keyla Amorim

Prefcio
Marcello Musto

O (novo) renascimento de Marx

e a atualidade de um autor consiste em sua capacidade de


estimular novas ideias, ento se pode dizer que Karl Marx
permanece inquestionavelmente atual.
Em razo de eventos polticos ou disputas tericas, o interesse na obra de Marx tem variado ao longo do tempo e passou por
perodos de declnio. De debates sobre os problemas no resolvidos dO Capital tragdia do comunismo russo, a crtica s ideias
de Marx parece apontar persistentemente para alm do horizonte
conceitual do marxismo. Ainda que sempre tenha havido um
retorno a Marx, h uma nova necessidade de utilizar sua obra
como referncia, que, de tempos em tempos, tem continuado a
exercer um fascnio irresistvel tanto nos seus seguidores quanto
nos seus crticos.
Isso tambm foi o que aconteceu depois da queda do
Muro de Berlim. Em 1989, conservadores e progressistas, liberais
e ps-comunistas, quase unanimemente, decretaram o desaparecimento definitivo de Marx. Contudo, apesar de ter sido postulado como datado no final do sculo XX e contra as projees
daqueles que previam seu esquecimento total , a poeira tem sido
retirada de seus livros com cada vez mais frequncia, e Marx tem
reaparecido neste estgio da histria com uma velocidade surpreendente, em vrios aspectos.

16

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Diante de uma nova e profunda crise do capitalismo, jornalistas e formadores de opinio, de vrios crculos polticos e
culturais, esto novamente buscando um autor que, no passado,
era frequente e erroneamente associado Unio Sovitica e que
foi fortemente desacreditado depois do socialismo realmente
existente.
Desde 2008, centenas de grandes jornais, revistas, canais
de televiso e rdios tm estampado discusses reiteradas acerca
do papel de Marx como um dos mais relevantes pensadores de
todos os tempos.
Tem havido um renascimento de Marx em quase todos
os lugares. Ao redor de todo o mundo, cursos universitrios e
conferncias sobre seu pensamento esto na moda novamente1.
O Capital tornou-se mais uma vez um best-seller na Alemanha,
enquanto uma verso do livro foi produzida em mang, no Japo.
Na China, uma nova edio dos trabalhos de Marx e Engels est
sendo publicada (com tradues do alemo e no, como no passado, do russo), enquanto na Amrica Latina uma nova demanda
por Marx tem sido recorrente na poltica. Na Europa, como
demonstrado com a vitria do Syriza a Coligao da Esquerda
Radical nas eleies da Grcia, a crtica ao capitalismo e aos
seus dogmas contemporneos est de volta ao cenrio poltico.
Alm disso, peridicos acadmicos tm estado crescentemente abertos a contribuies sobre a produo de Marx e,
durante os ltimos anos, uma proliferao de estudos sobre sua
obra tem indubitavelmente surgido. Depois de um baixo interesse
nos anos 1980 e de um silncio conspiratrio nos anos 1990,
edies novas ou republicadas dos escritos de Marx tornaram-se novamente disponveis em quase todo lugar em que o autor
era popular nos anos 1960 e 1970 (exceto na Rssia e no Leste
Europeu, onde os desastres do socialismo realmente existente

1 O Seminrio Marx Hoje, organizado pelo Grupo de Pesquisas Marxismo &


Educao na UFRN, um exemplo desse fenmeno.

Prefcio

17

ainda esto muito recentes para um renascimento de Marx).


Novos estudos sobre Marx tm produzido resultados importantes
e inovadores nos muitos dos campos em que tm florescido.

A edio MEGA: novos naminhos de pesquisa


A contribuio acadmica mais significativa para o atual
renascimento de Marx vem da continuidade da Marx-EngelsGesamtausgabe (MEGA), a edio completa dos escritos de Marx
e Engels.
Depois da morte de Marx, em 1883, Friedrich Engels foi
o primeiro a dedicar-se a essa tarefa to difcil de editar o legado
de seu amigo devido disperso do material, da obscuridade
da linguagem e da ilegibilidade dos manuscritos. Seu trabalho
concentrou-se na reconstruo e seleo dos materiais originais,
na publicao dos textos ainda no publicados ou incompletos e,
ao mesmo tempo, nas republicaes e tradues, em novas lnguas, dos escritos de Marx j conhecidos. Mesmo se houvesse
excees, tais como o caso das Teses sobre Feuerbach, publicadas
em 1888 como apndice de sua obra Ludwig Feuerbach e o Fim
da Filosofia Clssica Alem, e Crtica ao Programa de Gotha, que
vieram a pblico em 1891, Engels focou quase exclusivamente
no trabalho editorial dO Capital, do qual Marx havia publicado
apenas o primeiro volume.
Depois da morte de Engels, o encarregado esperado pela
opera omnia2 de Marx e Engels no poderia ter sido ningum
menos que o Partido Social-Democrata da Alemanha, titular de
seus Nachla (direitos) e cujos lderes Karl Kautsky e Eduard
Bernstein possuam as melhores competncias lingusticas e
tericas. Entretanto, os conflitos polticos dentro do Partido
no apenas impediram a publicao da maior e mais relevante
parte dos trabalhos de Marx, como tambm ocasionaram a dis-

Do Latim: toda a obra.

18

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

perso de seus manuscritos, comprometendo qualquer possibilidade de uma edio sistemtica. Inacreditavelmente, o Partido
Social-Democrata da Alemanha no finalizou o trabalho, tratando
o legado literrio de Marx e Engels com o mximo de negligncia.
Nenhum de seus tericos reuniu uma lista cuidadosa dos manuscritos de seus dois fundadores. Ningum se dedicou a coletar suas
correspondncias, a despeito do fato de que esta foi claramente
uma fonte muito til de esclarecimento acerca dos seus escritos.
A primeira tentativa de publicar as obras completas de
Marx e Engels, a Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), deu-se
apenas nos anos de 1920, na Unio Sovitica. Ainda, no comeo
dos anos 1930, o stalinismo, que tambm alcanou os principais acadmicos envolvidos no projeto, e o advento do Nazismo
na Alemanha interromperam abruptamente os trabalhos nessa
edio.
A MEGA, planejada para ser uma reproduo fiel com um
aparato crtico extensivo de todos os escritos dos dois pensadores, iniciada em 1975, tambm foi interrompida; desta vez, como
resultado da queda do Muro de Berlim. Em 1990, com o intuito
de continuar a edio, o Internationaal Instituut voor Sociale
Geschiedenis, de Amsterdam, e o museu Karl Marx Haus, em
Trier, formaram o Internationale Marx-Engels-Stiftung. Depois de
uma fase difcil de reorganizao, em que novos princpios editoriais foram aprovados, a publicao da MEGA recomeou em
1998.
A edio est dividida em quatro sees: a primeira
inclui todas as obras, artigos e rascunhos, excluindo O Capital;
a segunda inclui O Capital e seus estudos preliminares de 1857;
a terceira dedicada correspondncia trocada entre Marx e
Engels; enquanto a quarta contm trechos, anotaes e notas marginais. Dos 114 volumes planejados, 58 j foram publicados (18
reiniciados desde 1998), cada qual consistindo em dois livros: o
texto mais o aparato crtico, que contm os ndices e muitas notas
adicionais. Esse empreendimento tem uma grande importncia,

Prefcio

19

considerando que uma parte substancial dos manuscritos preparatrios de Marx dO Capital, de sua correspondncia volumosa e
do imenso montante de trechos e anotaes comuns enquanto o
autor lia nunca foram publicadas antes da MEGA.3
Devido importncia dessas novas publicaes, o Marx
que ora emerge , em muitos aspectos, diferente daquele que foi
apresentado tanto por seus crticos quanto por seus ostensivos
seguidores. As esttuas de pedra que delineavam o caminho para
o futuro com uma certeza dogmtica nas praas de Moscou e
Pequim deram espao para a imagem de um pensador profundamente autocrtico que, sentindo a necessidade de devotar energia
para os estudos futuros e verificando seus prprios argumentos,
deixou inacabada a maior parte de seu trabalho de uma vida.
Qualquer outra contribuio rigorosa pesquisa sobre Marx, no
Brasil ou em qualquer parte do mundo, ter que levar em conta as
novas aquisies textuais MEGA.

No apenas um clssico
Libertada da irritante funo de instrumentum regni4,
qual foi designada no passado, e das correntes do marxismo-leninismo do qual est certamente separada, a obra de Marx tem sido
reempregada em novos campos do conhecimento. A completa
revelao de seu precioso legado terico, tomado de supostos
e presunosos proprietrios e dos modos de usos restritos, tem
tornado possvel esse processo. Entretanto, se Marx no figura
mais como uma esfinge cravada protegendo o velho socialismo
realmente existente do sculo XX, seria igualmente equivocado
acreditar que seu legado poltico e terico pode ser confinado
a um passado que no tem nada a contribuir com os conflitos

Cf. Marcello Musto, A redescoberta de Karl Marx, Margem Esquerda, n. 13


(2009): 51-73.

Do Latim: instrumento de governo.

20

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

atuais. Relegar Marx posio de clssico embalsamado, til apenas academia, seria um erro tal qual sua transformao em uma
fonte doutrinria do socialismo realmente existente.
A redescoberta de Marx est baseada em sua capacidade
persistente de explicar o presente: ele permanece como um instrumento indispensvel para entend-lo e transform-lo. Depois
de anos de manifestos ps-modernos, de falas solenes sobre o
fim da histria e da nfase s ideias vazias da biopoltica, o
valor das teorias de Marx est sendo reconhecido novamente, de
modo cada vez mais extensivo.
Quando Marx escreveu O Capital, o modo de produo
capitalista ainda no estava completamente desenvolvido, ainda
que ele tenha previsto que este seria expandido em escala global
e tenha formulado suas teorias a partir dessa base. Atualmente,
aps o colapso da Unio Sovitica e difuso da economia de
mercado a novas reas do planeta, como a China, o capitalismo
tem se tornado um sistema verdadeiramente mundial. Ademais,
o capitalismo no se expandiu apenas geograficamente, mas tambm em todos os aspectos da vida contempornea. Invadiu e deu
forma a todos os aspectos da existncia humana. No est apenas
determinando nossas vidas durante nossas jornadas de trabalho
uma parte da vida humana que, depois de trs dcadas de neoliberalismo, expandiu dramaticamente, em detrimento das descobertas cientficas e o aumento geral das riquezas mas tambm
tem transformado as relaes sociais. Uma destas certamente so
as transformaes trazidas pela tambm chamada globalizao.
A despeito de todas as transformaes profundas, Marx
ainda apresenta atualmente um rico espectro de ferramentas com
as quais se entende tanto a essncia quanto o desenvolvimento
do capitalismo. Ele no meramente um grande clssico da
Economia e um pensador poltico, mas um autor que dispe de
ideias que se provam mais frteis do que em seu prprio tempo.
claro que os escritos que Marx produziu h um sculo e meio no
contm uma descrio precisa do mundo de hoje. Porm, se sua

Prefcio

21

anlise for atualizada e aplicada maioria das situaes recentes


de desenvolvimento, ela pode ajudar a explicar muitos problemas que esto se manifestando intensamente em nossos tempos.
Depois de trinta anos nos quais as odes ao mercado tiveram que enfrentar apenas o vcuo dos mltiplos ps-modernismos, a nova habilidade de pesquisar a partir dos ombros de um
gigante como Marx um progresso positivo no apenas para
todos os pesquisadores interessados em uma compreenso sria
de nossa sociedade contempornea, mas tambm para qualquer
sujeito envolvido com a questo terica e poltica de busca por
uma alternativa para o capitalismo.
O que fica de Marx hoje? Quo til seu pensamento para
a luta por emancipao? Que parte de sua obra mais frtil para
estimular a crtica aos nossos tempos? Estas so algumas das
questes que recebem largamente vrias respostas. Se o ressurgimento contemporneo de Marx tem uma certeza, esta recai sobre
uma rejeio da ortodoxia e do dogmatismo que dominaram no
passado e profundamente condicionaram a interpretao desse
pensador. A tarefa de responder a esta nova situao est atribuda pesquisa, terica e prtica, de uma gerao emergente de
ativistas polticos e acadmicos.
Este livro, com contribuies tanto de autores estabelecidos quanto de jovens pesquisadores, e escrito no Brasil, um
dos pases do mundo onde a anlise de Marx tem sido cada vez
mais demandada, representa uma til contribuio nessa direo.
Reconhece-se que, sem Marx, estaramos todos mais pobres e que
qualquer crtica sria e radical ao capitalismo estaria condenada
a uma afasia grave.

Parte I
A tradio marxista:
pesquisa e transformao social

Captulo 1

A atualidade do mtodo de Marx


Oswaldo H. Yamamoto

tema deste Seminrio a atualidade do pensamento de


Marx, articulando pesquisa e transformao social. Nesta
sesso de abertura, coube-me discutir a atualidade do pensamento
marxiano no que diz respeito ao mtodo. Trata-se de um tema
complexo, sobre o qual pretendo fazer apenas alguns apontamentos baseados no acmulo de conhecimento existente e sem a pretenso de apresentar uma abordagem original sobre a questo.
O pensamento marxiano sempre ser um tema polmico,
assim como o seu mtodo de investigao: h pouco consenso
e uma multiplicidade de interpretaes. No mbito acadmico,
cria-se muitas vezes a expectativa entre os estudantes que buscam
inspirao na letra marxiana, de que o mtodo de Marx lhes seja
apresentado de forma clara, esquemtica, como um conjunto de
regras sobre procedimentos de pesquisa, semelhana de outras
abordagens correntes na academia. Mas isso no possvel, pois
Marx no s no nos legou um mtodo com tais caractersticas
como isso seria uma impossibilidade a partir de uma leitura da
obra marxiana com a qual operamos.
Portanto, necessitamos iniciar essa discusso acerca do
mtodo fazendo algumas distines preliminares e bsicas.

26

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

O sentido da obra marxiana e o marxismo


Inicio tratando do sentido da obra marxiana aquilo que
da estrita lavra de Marx , distinguindo-a do que se convencionou denominar de marxismo ou, talvez numa nomenclatura
mais precisa, da tradio marxista um bloco complexo e diferenciado, comportando vertentes convergentes e conflitantes. De
acordo com Jos Paulo Netto1, possvel tom-la em trs diferentes perspectivas.
A primeira entende a obra marxiana como uma nova concepo de mundo. Tal concepo se desdobraria em uma cincia
geral do ser que veio a ser conhecida como materialismo dialtico e uma aplicao ao estudo da sociedade denominada
de materialismo histrico. Em outras palavras, Marx teria fundado uma nova filosofia geral, um sistema de saber capaz de
dar conta da explicao do ser em todas as suas modalidades e
manifestaes.
Essa concepo, inspirada em Engels e desenvolvida pelos
tericos da II Internacional, ganha expresso na III Internacional
e, durante o perodo stalinista, na forma do chamado marxismo-leninismo, o marxismo oficial, adquire estatuto de uma escolstica. O pensamento marxiano engessado e transformado em
um conjunto de regras formais, que no mais buscam a compreenso do real, mas a apologia de uma determinada forma de poder
instaurada pelo stalinismo.
A segunda interpretao oposta da primeira, projetando
em Marx a ideia da especializao das Cincias Sociais. Marx
transforma-se, nessa matriz, em uma espcie de enciclopedista,

Acompanho as indicaes de Jos Paulo Netto (nesta anlise sobre o sentido da


obra marxiana e os seus desdobramentos) contidas em diversas fontes, dentre as
quais aponto, pela facilidade de acesso, a Introduo ao estudo do mtodo de
Marx (NETTO, 2011). Deixo registrado o meu dbito, ao mesmo tempo que o isento da responsabilidade por eventuais distores e divergncias na interpretao
de seus escritos que porventura este texto possa conter.

Captulo 1

27

cada qual buscando em sua obra os contributos para a sua especialidade e negando a unidade de sua obra.
Essa perspectiva acaba trazendo, como consequncia, a
possibilidade de conceber as especialidades como recortes legtimos dos objetos reais. Ou, de acordo com Lukcs (HOLZ et al.,
1969), sanciona um entendimento corrente (e equivocado) de que
alcanar a cidadania acadmica indicaria tratar o seu objeto de
uma esfera autnoma do ser.
Eu me referi ao fato de essa matriz ser oposta primeira
mas, ao mesmo tempo, anloga e complementar pois, de forma
equivalente interpretao do marxismo oficial embora fragmentada em suas diversas especialidades resultando em uma
concepo fatorialista do social , a obra marxiana possibilitaria
a interpretao do real em todas as suas expresses.
Mas possvel pensar em uma terceira interpretao,
aquela que parte das prprias formulaes marxianas, buscando
apanhar a sua estrutura interna. Partimos, pois, da afirmao contida nA Ideologia Alem de que ele (e Engels) (MARX; ENGELS,
1845-1846/2007) reconhecem uma cincia, a cincia da histria,
que, por sua vez, seria subdividida na histria da natureza e na
histria dos homens (reciprocamente condicionados). Marx (e
Engels) afirmam seu foco de interesse, naquela obra, na histria
dos homens. E o fazem a partir da compreenso do social como
uma unidade terica articulada a partir da perspectiva da totalidade. Articulado com essa obra de 1845-46, encontramos as
Teses sobre Feuerbach2, com a conhecida undcima tese na qual
Marx prope que a filosofia no deve se restringir a interpretar o
mundo, mas tambm transform-lo.
Ainda seguindo Jos Paulo Netto (2011), essa nova inteligibilidade do social posta por Marx seria caracterizada por
trs recusas: (a) a recusa compreenso de objetos tericos

Alm da transcrio das Teses, h uma importante anlise delas em Labica (1990).

28

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

desvinculados da perspectiva da totalidade (retomamos, aqui,


aquela ideia expressa anteriormente na minha referncia a
Lukcs); (b) a recusa a desbordar as suas anlises para alm da
compreenso do social (Marx); e (c) a recusa de qualquer forma
de conhecimento especulativo (ideologia).
Essas caractersticas nos conduzem a pensar a obra marxiana estritamente como uma teoria social, cujas formulaes so
rigorosamente histricas (mantm estrita conexo com o real e
esto fundamentalmente vinculadas compreenso da realidade
social por ele estudada, qual seja, a sociedade burguesa), um tratamento concreto de um objeto concreto (ou seja, no possvel
conceber em Marx o estabelecimento de um paradigma epistemolgico que desborde o seu estudo sobre a sociedade burguesa).
Em outros termos, estamos nos referindo compreenso
da obra marxiana como uma ontologia de um ser social especfico, a sociedade burguesa. Portanto, ao longo de sua trajetria
intelectual e de vida Marx estar construindo, nos termos
dessa compreenso que estamos analisando uma teoria social
histrico-ontolgica.
Seguindo nosso raciocnio, podemos entender que a teoria
social marxiana est fundada em trs pilares: o mtodo dialtico
ou seja, o entendimento de que o ser social processualidade,
autoestruturado e dinamizado pelos vetores crticos de suas contradies internas; a teoria do valor-trabalho (resultado de suas
investigaes, de sua anlise do real); e pela perspectiva da revoluo. importante destacar que se trata de uma possibilidade
e no uma determinao, uma inevitabilidade inscrita no curso
do desenvolvimento da ordem burguesa. sempre oportuna a
lembrana da disjuntiva marxiana-engelsiana, socialismo ou
barbrie3. Esses trs elementos so indissociveis da obra mar3 Essa disjuntiva, clssica no campo marxista, tema de uma obra de Rosa
Luxemburgo (1916/2009), escrita em 1916 a propsito da crise da social-democracia alem. No texto, Luxemburgo relembra um dito de Engels sobre o dilema
da sociedade burguesa, de avanar para o socialismo ou recair na barbrie.

Captulo 1

29

xiana; retirar alguma delas significa negar o cerne da sua teoria


social.
Em suma, essa terceira interpretao concebe a obra marxiana como uma ampla reflexo sobre o capitalismo, sua gnese,
seu desenvolvimento e sua crise.
Uma vez posto o nosso entendimento do que seja a obra
marxiana, passamos para o segundo ponto, referente ao mtodo.

Para uma abordagem do mtodo de Marx


Retomemos dois pontos aos quais nos referimos anteriormente: (a) o entendimento de que Marx, diferentemente de outros
tericos que so referncias no campo das chamadas Cincias
Humanas e Sociais, no formulou uma epistemologia; e (b) a
compreenso de que a obra marxiana uma ampla reflexo sobre
o modo de produo capitalista.
O primeiro deles demanda um detalhamento. Tericos,
como Durkheim (2007), apenas para citar um exemplo, propuseram, ao seu tempo, um conjunto de procedimentos que deveriam ser seguidos na produo do conhecimento sociolgico (as
conhecidas Regras do Mtodo Sociolgico). Essa maneira de produzir conhecimento no somente corriqueira, mas hegemnica
no mundo acadmico na atualidade. Nessa perspectiva, o mtodo
(entendido como a estratgia empregada pelo pesquisador para
buscar respostas para as questes de pesquisa que ele formula)
anterior ao objeto. Em outras palavras, desenvolve-se o mtodo
que seria aplicvel a qualquer objeto do conhecimento, operando-se, pois, uma dissociao entre teoria e mtodo.
Quando afirmamos que a orientao marxiana no epistemolgica mas ontolgica no estamos dizendo que Marx
no tenha desenvolvido ou utilizado estratgias especficas de
investigao para o estudo do seu objeto, nem que no haja em
seus escritos reflexes sobre o processo de construo de conhecimento. H, mas sempre vinculado a um processo concreto de

30

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

conhecimento do objeto. Nesse sentido, mais adequado que


nos refiramos ao modo de operar de Marx como uma orientao
terico-metodolgica.
O que teoria para Marx? Diferentemente de outras perspectivas para as quais teoria seria ou simplesmente uma sistematizao de dados ou a construo de consensos discursivos a
reproduo ideal do movimento real do objeto. Ideal, entenda-se, reproduo no plano do pensamento, do movimento real do
objeto, partindo-se da premissa da existncia do real externa
conscincia dos homens. Penso que todos se recordam da afirmao marxiana contida no livro Para a crtica da Economia
Poltica: O modo de produo da vida material condiciona o
processo em geral da vida social, poltico e espiritual. No a
conscincia do homem que determina o seu ser, mas, ao contrrio, o seu ser social que determina sua conscincia (MARX,
1859/1978, p. 130).
Levando-se em conta as observaes que fizemos at este
momento, podemos nos colocar a questo que possivelmente
aflige todos aqueles que buscam inspirao na obra marxiana para
as suas investigaes, acadmicas ou no: o que , finalmente, o
mtodo para Marx?
Considerando as ressalvas, entendemos que possvel
discutir a forma de operao de Marx na conduo dos seus estudos. Isso no sancionar qualquer investigao inspirada nesses
procedimentos, mas certamente poderemos evitar muitos dos
descaminhos de autores que afirmam a fidelidade ao mtodo
de Marx. E, seguramente, h importantes aportes marxianos para
esse tema.
Uma vez que Marx no se deteve na proposio de uma
epistemologia, tambm no encontraremos em seus escritos um
tratamento exaustivo da questo do mtodo ou, reiteramos, conjuntos de regras para a conduo de pesquisas sociais. Entretanto,
h, em algumas passagens da sua extensa obra, indicaes sobre o
tema, como por exemplo, nA ideologia alem, captulo I (MARX;

Captulo 1

31

ENGELS, 1845-1846/2007), de 1845-46; em um texto de 1847, A


Misria da Filosofia, captulo II (MARX, 1847/1985); no Posfcio
(e tambm no Prefcio) da segunda edio alem dO Capital,
de 1873 (MARX, 1867/1980a); e uma passagem na terceira parte
da Introduo escrita no contexto dos Grundrisse (MARX, 18571858/1986) e includa em uma obra de 1859, Para a crtica da
Economia Poltica, um texto intitulado O mtodo da economia
poltica (MARX, 1859/1978). E, sempre importante assinalar,
mais rico do que esses pequenos excertos figura, certamente, a
conduo terico-metodolgica dO Capital. Conforme Lenin,
Marx no nos entregou uma lgica, mas a lgica do Capital4.
Retomemos alguns dos apontamentos sobre a obra marxiana para essa tarefa de abordar elementos do seu mtodo.
Um primeiro ponto a retomar que as formulaes marxianas so rigorosamente histricas, isto , que mantm estrita
conexo com o real, um tratamento concreto de um objeto concreto. Portanto, uma primeira caracterstica do modus operandi
marxiano sua fidelidade ao objeto investigado (prioridade ontolgica do objeto).
Como fazer isso? Buscando reproduzir com a mxima
fidelidade o movimento real do objeto. Observem que estamos
falando de reproduo (ideal, no nvel do pensamento) do movimento real e no produo do real, como advogam determinadas
tendncias correntes na academia. Insisto nesse ponto, fundamental, por mais absurdo que possa parecer, sobre a existncia
real do objeto externa conscincia, em face desse pensamento
relativista (e irracionalista) atual5.

A citao est contida em uma observao de Lenin sobre o plano da dialtica


de Hegel (Lgica), escrita em 1915, integrando o volume 38 das Obras Escolhidas
(em ingls) da editora Progresso, de Moscou (LENIN, 1930/2003).

A mxima fidelidade ao objeto no significa, ao contrrio do que se possa deduzir, uma passividade do sujeito, mas, igualmente, uma mxima atividade do
sujeito que est investigando.

32

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Como Marx operava na conduo de suas investigaes?


O processo de investigao em Marx, o ponto de partida, o
emprico, a expresso emprica do real. Mas apenas o ponto
de partida: o emprico, ao mesmo tempo que revela, oculta. O
movimento do real no pode ser apreendido, pois, apenas em sua
exterioridade.
Portanto, para apreender o movimento do real, Marx
necessitava ultrapassar a sua aparncia fenomnica, o nvel da
empiria. Ou seja, o processo de conhecimento em Marx se inicia
com a negao da aparncia.
Mas a aparncia, dizamos, uma instncia constitutiva do real. uma expresso (emprica) dos processos que ela
oculta. A tarefa do pesquisador, conforme o modo de operao de
Marx, era identificar esse processo ou esses processos. Ou seja,
para alm da empiria existem processos conectados, articulados,
entrelaados.
Para Marx, era possvel identificar esses processos, romper o reflexo da aparncia imediata dos fenmenos, o que Karel
Kosk (1985) denominou de mundo da pseudoconcreticidade,
pela abstrao.
A abstrao permite ao investigador ultrapassar a imediaticidade, elevando-se do abstrato (a aparncia fenomnica)
ao concreto (a sua essncia, ou seja, a estrutura e a dinmica do
objeto). Marx j dizia que se houvesse uma correspondncia imediata entre a aparncia e a essncia toda cincia seria suprflua
(MARX, 1894/1983).
Esses processos dos quais a empiria uma expresso so as
determinaes. As determinaes so reais, importante ressaltar, so formas de existncia do ser. E, tanto mais rica a investigao no sentido marxiano quanto mais saturada de determinaes.
Essas determinaes so capturadas no processo de investigao na forma de categorias. As categorias ontolgicas tm

Captulo 1

33

existncia real, no so determinadas a priori pelo investigador;


elas so apreendidas no processo de investigao do real6.
Essa operao, de buscar as determinaes do ser e suas
relaes, a busca de mediaes. Portanto, superar a imediaticidade significa encontrar as mediaes que esto contidas no
processo do ser. Esse processo de reconstruo do ser no pensamento por meio da abstrao, repetindo, nos leva s determinaes reais, ao carter concreto do objeto.
O mtodo, o processo de construo do conhecimento,
consiste em elevar-se do abstrato ao concreto o concreto concreto porque a sntese de mltiplas determinaes, isto , unidade do diverso (MARX, 1859/1978, p. 116), a maneira para se
apropriar do concreto, reproduzindo-o como concreto pensado.
Nos termos de Marx, depois de alcanar as determinaes mais
simples, necessrio fazer a viagem de modo inverso, a viagem de volta, meio pelo qual aquele ponto de partida no mais
o aparente, mas uma rica totalidade de determinaes e relaes
diversas (MARX, 1859/1978, p. 116).
Esse o mtodo cientificamente correto para Marx, o
mtodo entendido como a relao que permite a apreenso das
determinaes constitutivas da dinmica do objeto.
importante assinalar que a realidade, para Marx, processualidade, movimento. Enquanto tal, o real comporta no
apenas efetividades, mas tambm possibilidades. A possibilidade
pode ou no se efetivar, mas ela tambm constituinte do real.
E a estrutura da realidade a totalidade concreta, um complexo
de totalidades.
Ser fiel ao objeto, dizamos, implicaria igualmente uma
mxima atividade do sujeito; conhecer a realidade partindo dos
apontamentos de Marx significa apanhar o movimento do real,

importante destacar a diferena entre categorias no sentido marxiano e no


modo usual de fazer pesquisa, entendido como uma estratgia de organizao
das informaes segundo um critrio definido pelo pesquisador.

34

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

entendendo que a realidade complexa e em movimento, maior


do que a nossa capacidade de compreenso (alm dos limites do
pesquisador).

Marx, a academia e a atualidade do mtodo


Retomo, agora, o que mencionei anteriormente a respeito
do sentido da obra marxiana, uma ontologia de um ser social
especfico, a sociedade burguesa, uma ampla reflexo sobre a
sua gnese, seu desenvolvimento e sua crise. a esse projeto
que Marx comea a se dedicar na primeira metade da dcada de
1840, tem a estrutura definida em 1857-58, e que vai ocupar toda
a sua vida. Marx no se dedica apenas compreenso rigorosa da
sociedade burguesa; fiel dcima-primeira tese sobre Feuerbach,
o seu trabalho de pesquisa e a sua vida esto intrinsecamente
ligados e dedicados revoluo socialista.
Marx nunca foi, portanto, um acadmico, embora tenha
iniciado a sua trajetria profissional, de vida, almejando uma
vaga de professor na Universidade de Bonn. atendendo a um
aceno de Bruno Bauer, jovem hegeliano, ento docente daquela
instituio, que Marx apressa a concluso de sua tese doutoral,
Diferena da Filosofia da Natureza de Demcrito e de Epicuro
(MARX, 1841/1982), na Universidade de Iena. O contexto poltico prussiano, com a entronizao do Rei Frederico Guilherme
IV e a reverso de expectativas polticas foram Marx a abandonar as iluses acadmicas no sentido que entendemos hoje e se
dedicar, profissionalmente, ao periodismo (jornalismo).
Mas, tendo por suposto o entendimento j referido de que
a sua obra focaliza a sociedade burguesa a partir de uma perspectiva ontolgica, no comportando uma epistemologia, um instrumental que permitisse o estudo de qualquer fenmeno a partir
de um conjunto de regras pr-estabelecidas, considerando o tema
desse seminrio, necessrio indagar sobre a atualidade do modo
marxiano de proceder ao produzir conhecimento, os eventuais

Captulo 1

35

desdobramentos para os trabalhos de pesquisa e a sua relao


com a academia, hoje.
A primeira , tendo em vista o projeto marxiano, foroso
concluir que a sua obra tanto inacabada (em vida), quanto inacabvel7 (at a sua ultrapassagem). E Marx, nunca demais lembrar,
um pensador do sculo XIX, carregando todas as consequncias
do fato de ter vivido em um determinado momento histrico.
Pensar na obra de Marx, moda de algumas interpretaes s quais nos aludimos no incio desta fala, como fornecendo
respostas para todas as questes postas pelo capitalismo hoje,
entendemos, um equvoco. certo que diversos desdobramentos bastante distantes do horizonte imediato de Marx foram descortinados em sua obra o que se chama hoje de globalizao,
sem o risco de cair em qualquer sorte de anacronismo um
exemplo mais do que claro.
Uma tarefa que o campo marxista abandonou (com raras
excees, como o caso, por exemplo, de Mandel) desde virtualmente a Revoluo Russa exatamente compreender as mudanas do capitalismo. Certamente a isso que Lukcs se referia
quando afirmava, enquanto escrevia a Ontologia do Ser Social,
que gostaria de retomar o projeto de Marx e escrever O Capital
dos nossos dias (ANTUNES, 2002, p. 15). E sempre importante lembrar ainda com Lukcs (de outros tempos, da Histria
e Conscincia de Classe, 1923/1974), a partir da perspectiva ortodoxa em relao ao mtodo, ou seja, prosseguir nas investigaes,
desenvolvendo, aperfeioando, aprofundando no sentido dos
seus fundadores (LUKCS, 1923/1974, p. 15).
Portanto, rigorosamente dentro da perspectiva a partir da
qual estamos propondo a leitura da obra marxiana, o trabalho de
pesquisa no somente atual quanto imprescindvel no sentido

Essa afirmao de Jos Paulo Netto uma referncia a uma anlise de Maximilien
Rubel, que afirma que O Capital se apresenta como uma teoria inacabvel da
transio (RUBEL, 1985).

36

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

dos seus fundadores. E, fiel sua maneira de operar, que tem


como um pressuposto que as suas formulaes so rigorosamente
histricas, todas as suas formulaes devem ser passveis de verificao, de atualizao.
Isso nos deixa uma questo que, para o mbito acadmico
no qual estamos imersos inescapvel: mesmo considerando
o fato de que a obra marxiana no e nunca poderia ser entendida
como uma epistemologia, possvel pensar em sua obra inspirando os trabalhos propriamente acadmicos?
Para isso, preciso novamente! retomar as interpretaes da obra marxiana, isto , afastar tanto uma postura epistemologista quanto a de que a sua obra fundaria uma nova
concepo de mundo, uma cincia geral do ser independente
de sua natureza. Nesse sentido, penso que nem tudo (ou talvez,
pouco) sobre o que, eventualmente, um acadmico possa se interessar no seu cotidiano de pesquisa seja passvel de receber aportes da teoria social marxiana. No raro (ou, pelo menos, no
era raro quando o marxismo estava em moda na academia) que
teses acadmicas sejam iniciadas enunciando sua afiliao ao
mtodo marxista ou ao mtodo dialtico, transcreva trechos
do Mtodo da Econmica Poltica ao qual nos referimos, e o trabalho siga sem que se perceba qualquer inspirao marxiana do
seu desenvolvimento.
Observem que, aqui, no estou me referindo a uma divertida polmica na academia a respeito de mtodos quantitativos
versus mtodo qualitativos. Alguns desses trabalhos acadmicos podem associar os chamados mtodos quantitativos a uma
abordagem positivista e, imediatamente, vincular os mtodos
qualitativos a abordagens no positivistas ou antipositivistas, a
marxista a includa... Associar recursos de pesquisa com os
mtodos consagrados na academia j um equvoco. Se pensarmos na estratgia de construo de conhecimento com o qual
operava Marx, nenhum recurso , a priori, aceito ou rejeitado.
Um exemplo disso a famosa enquete operria, realizada por

Captulo 1

37

Marx para publicao na Revue Socialiste em 1880, que utilizava


um questionrio muito prximo ao que utilizamos hoje8 (MARX,
1980b).
Ao lado de estudos realizados no mbito da academia (ou
fora dela) diretamente sintonizados com o projeto marxiano,
inegvel que os contributos da teoria social marxiana representam inspirao para muitos pesquisadores no mbito acadmico,
sejam eles alinhados, ou no, tradio marxista.
Embora a teoria social marxiana possa ser fonte de inspirao, no estamos falando daqueles estudos aos quais se referiu
Lukcs, ou seja, da ortodoxia em relao ao mtodo prosseguindo
investigaes no sentido propriamente marxiano.
E, importante deixar assinalado, esses estudos, sobretudo
realizados por pesquisadores que se alinham s teses marxianas,
so revestidos de importncia no mundo acadmico. A academia
no mundo isolado, , igualmente, espao de contradies, de
lutas de classes com as suas particularidades. Afinal, ela um
dos complexos constitutivos da sociedade, ou, nos termos marxianos, uma totalidade, de menor complexidade que a sociedade.
Se no fosse assim, no seria possvel entender o combate
aos intelectuais (marxistas ou no) nos momentos em que se agudiza a luta de classes. O Brasil e a Amrica Latina passaram
por essa experincia de uma maneira muito vvida na segunda
metade do sculo passado. A academia foi um importante espao
de resistncia no perodo autocrtico-burgus no Brasil e alvo de
interveno direta, no mbito legal e na represso direta. E, posteriormente dbcle do sorex, o socialismo real, a intolerncia
com relao ao pensamento inspirado em Marx no mbito da academia , igualmente, um testemunho dessa luta. Cotidianamente,
enfrentamos, hoje, as tendncias de pensamento irracionalistas,
ao lado do pensamento conservador, no mbito acadmico.

Composta por 100 questes, ou 101, se incluirmos as Observaes gerais.

38

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Um outro aspecto no menos importante incidncia do


pensamento marxiano e da tradio marxista na academia diz respeito ao seu papel formador. J assinalamos a importncia da atividade do pesquisador na tarefa de produo do conhecimento.
Relembremos Marx de 1844. Marx afirmava, nos Manuscritos
de Paris (MARX, 1844/2004), que o homem , necessariamente,
atividade. Por meio dela, produz objetivaes e a subjetividade apropriao do conjunto de objetivaes da sociedade.
A riqueza do homem, aqui, do pesquisador, est relacionada
riqueza de suas apropriaes das objetivaes postas pelo homem
no curso da histria. Portanto, a sua capacidade de produzir
conhecimento relevante entendido como o processo de ultrapassagem do mundo da pseudoconcreticidade para apanhar as
determinaes do real conecta-se com esse processo de apropriao das objetivaes postas pela sociedade9. E, para isso, a
academia pode ter uma papel importante.
Dito isso, importante deixar absolutamente assinalado
que se os trabalhos acadmicos inspirados nas teses marxianas
no so destitudos de sentido, se a academia tambm um
espao de confronto de ideias, as questes fundamentais esto
longe de serem resolvidas aqui. H uma distncia entre ser apenas um acadmico inspirado em Marx e na tradio marxista e ser
um intelectual orgnico do proletariado nos termos gramscianos.
Como a vida de Marx testemunha, o espao principal de lutas
encontra-se nas lutas cotidianas dos trabalhadores.
Finalmente, a questo que paira sobre esse seminrio, a
atualidade da obra marxiana. Seguramente, teremos, ao longo
deste seminrio, diversas oportunidades para discutir essa questo em detalhes. Mas, para encerrar esta fala, no poderia deixar
de mencionar a questo.
9

No me parece diverso o entendimento de Gramsci (ao se referir criao cultural) acerca da necessidade de difundir verdades j descobertas, socializ-las,
transformando em base de aes vitais, em elementos de coordenao e de ordem intelectual e moral (1999, p. 96).

Captulo 1

39

A crise do socialismo real encerra uma possibilidade de


transio socialista. Ela foi inscrita dentro de um contexto histrico especfico, o final da primeira guerra imperialista e seus
acordos, os descaminhos das revolues europeias das primeiras dcadas do sculo XX, em especial, a alem, as condies
nas quais construda a tentativa socialista na Rssia, a conjugao de vetores que leva vitria da faco stalinista, dentre
outros pontos que poderamos destacar. Mas, conforme lembra
muito bem Istvn Mszros (2002), tratou-se de uma experincia ps-capitalista inscrita ainda dentro da ordem do Capital. E
fracassou, como fracassaram outras experincias do sculo XX, o
Welfare State como um exemplo mais contundente da resposta
burguesa ao socialismo real (NETTO, 1993).
No necessrio, portanto, ser um arguto investigador
para observar que estamos longe de ver um triunfo do capitalismo, algo como alguns conservadores mais afoitos denominaram de fim da histria10. Basta abrir os jornais (ou consultar a
internet) para que nos defrontemos com a situao de misria que
grassa no nosso planeta. Enquanto isso permanecer, a atualidade
da obra marxiana ser incontestvel.
Entre acertos e desacertos, o fundamental que o ncleo
heurstico da obra marxiana permanece indiscutvel. Aquele
entendimento da obra marxiana a de uma ampla reflexo sobre
o mundo burgus, sua constituio, seu desenvolvimento e sua
crise, e a ultrapassagem revolucionria mais do que atual. Se
as formulaes marxianas a respeito do capitalismo do seu tempo
so insuficientes para entender o capitalismo contemporneo,
ignor-las significa abdicar da possibilidade da compreenso e

10 Um exemplo (relativamente) recente Francis Fukuyama, pensador conservador


norte-americano, que escreveu um artigo (O fim da histria), transformado posteriormente em um livro (O fim da histria e o ltimo homem, lanado no Brasil
pela Editora Rocco, em 1992) proclamando a vitria final do capitalismo. Para
uma crtica da tese do fim da histria, incluindo esse episdio, ver Anderson
(1992).

40

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

da transformao do real. Como , mais do que nunca, atual, a


perspectiva anunciada, socialismo ou barbrie.

Referncias
ANDERSON, P. O Fim da Histria: de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro:
Zahar, 1992.
ANTUNES, R. Apresentao. In: MSZROS, I. Para alm do Capital.
So Paulo: Boitempo, 2002. p. 15-20.
DURKHEIM, E. As regras do Mtodo Sociolgico. So Paulo: Martins
Fontes, 2007.
FUKUYAMA, F. O fim da histria e o ltimo homem. Rio de Janeiro:
Rocco, 1992.
GRAMSCI, A. Cadernos do Crcere (Vol. 1 Introduo ao estudo
da Filosofia/A Filosofia de Benedetto Croce). Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1999.
HOLZ, H. H.; KOFLER, L.; ABENDROTH, W. Conversando com Lukcs.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
KOSK, K. Dialtica do concreto. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
LABICA, G. As Teses sobre Feuerbach de Karl Marx. Rio de Janeiro:
Zahar, 1990.
LENIN, V. I. Plan of Hegels Dialectics (Logic), 2003 (Texto original
publicado em 1930). Disponvel em: <http://www.marxists.org/
archive/lenin/works/1915/misc/x01.htm>.
LUKCS, G. Histria e Conscincia de Classe. Porto: Escorpio, 1974.
(Texto original publicado em 1923)

Captulo 1

41

LUXEMBURGO, R. A crise da social-democracia (Folheto Junius), 2009


(Texto original publicado em 1916). Disponvel em: <http://www.
marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm>.
MARX, C. Tesis doctoral Diferencia entre la filosofa democriteana
y epicrea de la naturaleza, en general. In Escritos de juventud.
Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1982. p. 15-70 (Texto
original publicado em 1841)
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alem. So Paulo: Boitempo, 2007.
(Texto original escrito em 1846)
MARX, K. Para a crtica da economia poltica. In: ______. Manuscritos
econmico-filosficos e outros textos escolhidos. 2. ed. So Paulo:
Abril Cultural, 1978. p. 101-257. (Texto original publicado em
1859)
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 1). Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira,1980a. (Texto original publicado
em 1867)
MARX, K. O Questionrio de 1880. In: THIOLLET, M. (Org.). Crtica
metodolgica, investigao social e enquete operria. So Paulo:
Polis, 1980b. p. 249-256.
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 3). So Paulo:
Abril Cultural,1983 (Texto original publicado em 1894)
MARX, K. Misria da filosofia. So Paulo: Global, 1985. (Texto original
publicado em 1847)
MARX, K. Elementos fundamentales para la crtica de la economa
poltica (Grundrisse). Mxico: Siglo Veintiuno, 1986. (Texto
original escrito em 1858)
MARX, K. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo,
2004. (Texto original escrito em 1844)

42

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

MSZROS, I. Para alm do Capital. So Paulo: Boitempo, 2002.


NETTO, J. P. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. So Paulo: Cortez,
1993.
NETTO, J. P. Introduo ao estudo do mtodo de Marx. So Paulo:
Expresso Popular, 2011.
RUBEL, M. Avant-propos au numro Marx au lendemain dun
centenaire (I). Critique de la politique et de lconomie politique
(Quel bilan?). Revue conomies et Socits, v. 23-24, p. 3-4, 1985.
Disponvel em: <http://www.collectif-sbghn olny.org/article.
php3?id_article=1641>.

Captulo 2

Lukcs: trabalho e ser social


Ivo Tonet

O sentido e a importncia do empreendimento

conhecida a trajetria de G. Lukcs em direo elaborao


da interpretao do pensamento marxiano como ontologia do
ser social. Sabe-se que essa trajetria foi complexa e s encontrou
a sua plena expresso quando, buscando elaborar uma tica de
carter marxista, se deu conta de que seria necessria uma introduo que pudesse situar essa dimenso da atividade humana no
conjunto da realidade social. Ao elaborar essa introduo, porm,
Lukcs se deu conta, de novo, de que ela no poderia se configurar como uma simples pea introdutria, mas deveria se transformar em uma obra autnoma, de largo flego. Essa seria, ento, a
sua obra mxima, a Ontologia do Ser Social (LUKCS, 1981).
Teoricamente, essa obra se faria necessria porque, para
responder pergunta sobre o que a dimenso artstica seria preciso responder antes, questo: o que o ser social?, uma vez
que aquela se constitui apenas uma parte deste.
Praticamente, essa obra se situava na tarefa maior de resgate do carter radicalmente crtico e revolucionrio do pensamento de Marx. Como se sabe, para Marx, a transformao da
natureza para criar os bens materiais necessrios existncia
humana a dimenso que funda a vida social. Essa convico,
que est presente tanto nos Manuscritos Econmico-filosficos

44

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

(MARX, 1844/2004) quanto em A ideologia alem (MARX;


ENGELS, 1846/2009), em O Capital (MARX, 1867/1975) e em
outros escritos, ficou clara para Marx, em 1844, como ele mesmo
confirma no Prefcio Contribuio crtica da economia poltica, de 1859 (MARX, 1859/2008).
Contudo, nos embates entre capital e trabalho ao longo
da segunda metade do sculo XIX e tambm ao longo do sculo
XX, essa clara convico do trabalho como categoria fundante
do mundo social, com todos os seus desdobramentos, foi se perdendo, deslocando-se para a dimenso da luta de classes, tendo
como epicentro o Estado. Como consequncia, foi se perdendo,
tambm, o carter radicalmente crtico e radicalmente revolucionrio do pensamento de Marx. A interpretao dominante, que
comeou com a social-democracia alem e terminou no stalinismo, era uma mescla de idealismo e positivismo. As tentativas
de resgatar o carter crtico do pensamento de Marx no passaram, em sua maioria, de crticas a aspectos diversos do capitalismo sem, porm, articular uma crtica da sua totalidade que,
partindo da sua matriz fundante, desembocasse na necessidade e
na possibilidade da revoluo.
Desse modo, a empreitada lukacsiana tinha como objetivo tanto combater as diversas concepes burguesas, como o
empobrecimento a que tinha sido submetido o pensamento de
Marx. Nesse sentido, a descoberta, em 1932, junto com Riazanov,
das obras de juventude de Marx, especialmente os Manuscritos
Econmico-Filosficos, foi fundamental para o incio da caminhada de Lukcs em direo ao entendimento do pensamento de
Marx como uma ontologia do ser social.

Trabalho e ser social


Vale notar, antes de mais nada, que a anlise lukacsiana se
baseia, a nosso ver, inteiramente no pensamento de Marx. Lukcs
cita, expressamente, aquela passagem de O Capital em que Marx

Captulo 2

45

se refere ao trabalho humano, no sentido mais genrico possvel, como um intercmbio do homem com a natureza atravs do
qual so produzidos os bens materiais necessrios existncia
humana. E que este ato tanto transforma a natureza, adequando-a
ao atendimento das necessidades humanas, quanto transforma os
prprios seres humanos. Ainda segundo Marx, a natureza mais
ntima do trabalho se expressa no fato de ele ser uma sntese de
prvia-ideao e realidade natural. Esta sntese se realiza pela
mediao da prtica social. com isto que nasce este novo tipo
de ser, que o ser social. E por isso que o trabalho, neste sentido
de produtor de valores de uso, ser uma necessidade eterna da
humanidade.
O que Lukcs far ser retomar esses elementos fundamentais elaborados por Marx, ampli-los e aprofund-los. Mas
ser, como ele mesmo afirmou explicitamente, sempre na trilha
aberta pelo prprio Marx.
Um alerta metodolgico inicial feito pelo autor. Adverte
ele que o trabalho nunca um ato isolado. Ele sempre se realiza
no interior de uma dada totalidade social. Para poder, no entanto,
identificar os elementos que caracterizam essencialmente essa
categoria, faz-se necessrio separ-la da totalidade social e analis-la como se fosse algo isolado. Somente em seguida ser possvel recolocar essa categoria no interior da totalidade social e
apreender as suas conexes com as outras categorias.
Lukcs comea afirmando que s podemos compreender a
natureza especfica do ser social se apreendermos sua necessria
vinculao com o ser natural (inorgnico e orgnico). Entre um
e outro, porm, interpe-se uma mudana essencial, que Lukcs
chama de salto ontolgico. Ontolgico no sentido de que se trata
de uma mudana qualitativa, essencial, que, sem perder a sua
vinculao com o ser natural, d origem a um tipo de ser radicalmente novo. E essa diferena radical explicita-se no fato de que
a reproduo desse novo tipo de ser, ao contrrio do ser natural,
que ou apenas se transforma em algo diferente (ser inorgnico)

46

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

ou em algo que repete sempre o mesmo (ser orgnico), se d pela


produo constante do novo.
Trata-se, ento, para o autor, de analisar este salto ontolgico, identificando o ato que permite essa essencial transformao e quais so os elementos essenciais que o constituem e lhe
conferem a possibilidade de dar origem a esse novo tipo de ser.
Na esteira de Marx, e tambm de Engels, pois, embora com algumas observaes crticas, Lukcs cita o texto de Engels sobre a
importncia do trabalho na transformao do macaco em homem,
o autor identifica o trabalho como a categoria fundante do ser
social.
Retomando, ento, os elementos postos por Marx, Lukcs
afirma que o trabalho uma sntese de teleologia e causalidade.
Embora os termos utilizados por Lukcs sejam diferentes daqueles de Marx, por motivos que no vm ao caso aqui, no parece
haver dvida de que o sentido idntico. Trata-se, ento, para
o autor, de esclarecer o que significam tanto a teleologia como a
causalidade e como elas se articulam para dar origem a um novo
tipo de ser.
Teleologia um ato da conscincia; o estabelecimento de
fins a serem alcanados. Mas, no s. Teleologia tambm implica
a busca dos meios para o alcance dos fins propostos. Veremos
logo o porqu disto.
J a causalidade , segundo o autor, a realidade natural.
Lukcs assim a denomina para enfatizar o fato de que esta regida
por leis de carter puramente causal, vale dizer, sem nenhuma
finalidade consciente.
Contrariamente maioria dos outros pensadores, especialmente Aristteles, Hegel e Kant, Lukcs afirmar que no existe
nenhuma teleologia na natureza. E que nem sequer a histria
humana, no seu conjunto, teleologicamente orientada. A existncia de teleologia na natureza ou na histria suporia um ser
que estabelecesse previamente os fins a serem atingidos. Ora, isso
no existe nem na natureza e nem na histria em geral. O nico

Captulo 2

47

lugar onde existe teleologia, segundo o autor, o ato humano. A


prpria anlise do ato do trabalho demonstra isso, como veremos
mais adiante.
No basta, porm, afirmar que o trabalho uma sntese
de conscincia e realidade objetiva natural. preciso explicar,
em primeiro lugar, de onde vem a conscincia. Face s explicaes tradicionais, todas elas de corte idealista, isto , da maior
importncia.
Qual, ento, a origem da conscincia segundo o autor?
Sabe-se que a resposta tradicional supunha que a conscincia,
no sendo algo material, s poderia provir de fora do universo
da matria, portanto, de algum ser puramente espiritual. A resposta lukacsiana inteiramente diferente. Segundo ele, a conscincia nada mais do que um desenvolvimento tardio da prpria
matria. E ela s se desenvolve, como conscincia propriamente
humana, nessa inter-relao com a realidade material natural.
Aqui j fica clara a prioridade da matria sobre a conscincia. Isso
significa que a matria pode existir sem a conscincia, porm esta
no pode existir nem subsistir sem a matria. A nfase lukacsiana
est no fato de que tanto a conscincia como a objetividade social
se constituem em determinao reflexiva. Esses dois momentos
so, portanto, partes inseparveis de uma mesma unidade.
Estabelecida a origem da conscincia, trata-se de compreender como se relacionam estes dois momentos teleologia
e causalidade e como o ato que resulta dessa relao d origem
ao ser social.
Como j vimos anteriormente, essa relao comea pela
posio do fim e pela busca dos meios para realiz-lo. Contudo,
essa posio do fim e essa busca dos meios no so algo abstrato.
So sempre a resposta a um determinado carecimento em uma
determinada situao histrica e social. Ora, carecimento tambm prprio dos animais. Qual seria, ento, a diferena entre a
resposta do animal e a resposta humana? Segundo o autor, a diferena reside no fato de que a resposta animal biologicamente

48

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

determinada. Ela no comea com uma posio consciente de


um fim a ser atingido. Ao contrrio, a resposta humana transforma o prprio carecimento em pergunta, interrogando-se sobre
qual seria o fim e quais os meios adequados satisfao daquela
necessidade. O homem, diz Lukcs, um ser que responde.
Por sua vez, essa forma da resposta traz tona outro elemento fundamental do trabalho. Trata-se da alternativa. Como
nem o fim nem os meios esto, por sua natureza, fixados previamente, preciso fazer escolhas. Que fim e que meios sero adequados satisfao de determinada necessidade? Essas escolhas,
por sua vez, no seriam possveis sem o conhecimento, o mais
adequado possvel dos materiais e das possveis conexes entre
eles. A natureza no produz casas. Ela produz os materiais que,
conhecidos e articulados corretamente, podero permitir a construo de casas.
A existncia da alternativa, no interior do processo de trabalho, permite a Lukcs identificar o fundamento de uma categoria humana da maior importncia, a categoria da liberdade.
Segundo o autor (1981, p. 112-113):
[...] no momento em que a conscincia decide em termos alternativos qual fim ela quer por e de que modo
quer transformar em sries causais postas as sries causais existentes, enquanto meios da realizao, surge um
complexo realmente dinmico que no tem nenhuma
analogia na natureza. [...] A liberdade aquele ato da
conscincia atravs do qual surge, como seu resultado,
um novo ser posto por ele.

Certamente, a liberdade assumir as formas mais diversas tanto dependendo da dimenso da atividade humana na qual
ela se efetiva como ao longo do processo histrico. No entanto,
independente das suas formas, seu fundamento reside, em ltima
instncia na existncia da alternativa no interior do trabalho.
Retornando questo do carter da conscincia, reconhece o autor que o conhecimento tem que ter, necessariamente,

Captulo 2

49

um carter de reflexo da realidade. Reflexo no sentido de no ser


um mero produto da conscincia, mas uma traduo de elementos objetivamente existentes. Esse reflexo, contudo, no pode ser,
de modo nenhum, passivo. Um reflexo passivo apenas colheria
elementos imediatos e superficiais, heterogneos e desconexos,
o que seria imprestvel para a realizao do objetivo pretendido.
O atendimento de determinada necessidade implica, como j dissemos, a apreenso das qualidades e das possveis conexes dos
materiais adequados a esse fim. E isso s poderia ser realizado
por operaes ativas da conscincia.
Por outro lado, essa atividade da conscincia tambm tem
que estar em ntima conexo com a efetivao prtica, uma vez
que s esta poder comprovar a adequao do que foi capturado
pela conscincia ao fim pretendido.
Do ponto de vista metodolgico, que veremos mais
adiante, isso ter enormes consequncias, tanto em relao ao
conhecimento quanto em relao prtica.
Por sua vez, as respostas a essas perguntas enriquecem,
por meio das generalizaes, a prpria atividade. Na medida que
o conhecimento da realidade fixado na conscincia, atravs de
conceitos e juzos, ele pode ser generalizado, isto , tanto transmitido a outros indivduos como utilizado em outras circunstncias. isso que faz com que o trabalho tenha, em si, a capacidade
de produzir sempre algo novo. Pois, ao responder a determinada
necessidade e criar algo que ainda no existia, por esse meio cria-se uma nova situao que ser, por sua vez, o ponto de partida
para a resposta a novas necessidades e, assim, eternamente.
Isso leva a outra constatao importante. Trata-se do carter ontolgico e ativo da conscincia. A realizao de escolhas
no seria possvel, segundo o autor, se a conscincia fosse, como
nos animais, um mero epifenmeno. Nestes, a conscincia exerce
um papel meramente adaptativo, impulsionando diretamente o
animal satisfao da sua necessidade. No ser humano, ao contrrio, a interveno da conscincia tem um papel decisivo na

50

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

transformao do ser natural em ser social. Sem o por teleolgico


no haveria a menor possibilidade de transformar a realidade
natural em realidade social. Sem a interveno da conscincia
no haveria possibilidade de serem realizados todos os procedimentos necessrios s escolhas que resultariam na resposta
s alternativas postas pela realidade objetiva e que permitiriam
satisfazer as carncias.
Vale enfatizar, de acordo com o autor, que o por teleolgico no se circunscreve a uma atividade inicial. Trata-se, na verdade, de inmeros atos que se realizam ao longo da execuo de
uma determinada atividade.
Desse modo, o por teleolgico , segundo o autor, a categoria central do trabalho. Aps citar aquela passagem em que Marx
faz referncia diferena entre a abelha e o arquiteto (1981, p.
19): Com isto enunciada a categoria ontolgica central do trabalho: por seu intermdio se realiza no mbito do ser material
uma posio teleolgica dando origem a uma nova objetividade.
E ainda (1978, p. 4):
A essncia do trabalho consiste precisamente em ir
alm dessa fixao dos seres vivos na competio biolgica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatrio constitudo no pela fabricao de
produtos, mas pelo papel da conscincia, a qual, precisamente aqui, deixa de ser um epifenmeno da reproduo biolgica: o produto, diz Marx, um resultado
que no incio do processo existia j na representao
do trabalhador, isto , de modo ideal.

Lukcs sabe que esta nfase no papel da conscincia causar espcie e dar margem acusao de idealismo. Por isso ele
se apressa em afirmar (1978, p. 5):
Porm, no se deve esquecer que os complexos problemticos aqui emergentes (cujo tipo mais alto o da
liberdade e da necessidade) s conseguem adquirir um
verdadeiro sentido quando se atribui e precisamente

Captulo 2

51
no plano ontolgico um papel ativo conscincia.
Nos casos em que a conscincia no se tornou um
poder ontolgico efetivo essa oposio jamais pode ter
lugar. Em troca, quando a conscincia possui objetivamente esse papel, ela no pode deixar de ter um peso
na soluo de tais oposies.

Ora, os materiais que se encontram na natureza no esto,


por si ss, j prontos e adequados para alcanar o fim proposto.
Eles so inmeros e enormemente heterogneos. Suas qualidades
devero ser conhecidas para poderem ser escolhidas as mais adequadas. Alm disso, eles tambm devem ser articulados entre si
de um modo que no seria realizado pela prpria natureza. Por
isso mesmo, a conscincia deve, de algum modo refletir a realidade externa a ela. Mas, esse reflexo deve ser, necessariamente,
ativo, sob pena de no contribuir para alcanar o fim desejado.
nesse processo que se constitui o ser social sob a forma
de dois elementos que, mesmo sendo distintos, o integram
fazendo dele uma unidade. Trata-se de sua constituio como um
complexo de sujeito e objeto. Ao reproduzir ativamente o mundo
objetivo, a conscincia cria um novo mundo que tem uma forma
peculiar, a forma subjetiva. A pedra que est na conscincia no
a pedra real, todavia no deixa de ser um reflexo subjetivo da
pedra real. A diferena est no fato de que esse reflexo em forma
de ideias, conceitos e juzos no s no tem as qualidades fsicas da realidade objetiva, mas ainda no reproduz a totalidade
daquele objeto, mas apenas aquelas qualidades necessrias
obteno de determinado objetivo. desse modo que a subjetividade, nos seus mais diversos aspectos cognitivos, afetivos,
valorativos , se constitui como uma dimenso prpria, distinta
do objeto, embora sempre, de algum modo, articulada com ele.
Temos, aqui, do ponto de vista metodolgico, uma consequncia da maior importncia. Trata-se da definio do que seja
conhecimento cientfico, ou seja, verdadeiro. A partir da anlise
da categoria do trabalho fcil ver que conhecimento verdadeiro

52

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

aquele que cumpre a funo de apreender a realidade objetiva


como ela de fato . H, certamente, outras formas de conhecimento afetivo, artstico, filosfico , mas nenhuma delas tem a
funo que cabe ao conhecimento cientfico. A obteno do fim
desejado demanda o conhecimento das qualidades efetivas dos
materiais a serem transformados e de suas possveis articulaes.
Desse modo, conhecimento cientfico implica, necessariamente,
a subordinao da subjetividade realidade objetiva. Vale dizer,
o conhecimento cientfico deve ser, pela funo que ele chamado a exercer, objetivo.
Essa funo do conhecimento cientfico faz, segundo o
autor, com que a cincia deva ter um carter desantropomorfizador, isto , deve refletir as coisas como elas de fato so e no
segundo as preferncias ou os desejos do sujeito. o que Lukcs
chama de intentio recta, isto , o direcionamento do conhecimento no sentido de apreender o objeto em sua efetiva realidade.
Como, porm, o conhecimento se realiza sempre no interior da totalidade do processo histrico e social, ele pode receber
influncias de outras dimenses concepes de mundo, valores
etc. , que podero dificultar a apreenso da realidade como ela
de fato . Lukcs chama essas influncias de intentio obliqua.
A anlise realizada permite, tambm, compreender o
sentido da afirmao marxiana de que a prtica o critrio de
verdade da teoria. No ato do trabalho, teoria, isto , reproduo
reflexiva da realidade, e prtica, isto , o processo de efetivao
daquilo que foi anteriormente projetado na mente, configuram
uma unidade que possibilita, quando corretamente realizada, a
realizao do fim pretendido. Prtica, ento, aqui, no concebida como o mero andamento emprico imediato, mas como o
desdobramento da totalidade de um determinado processo em
direo ao objetivo pretendido. Nesse sentido, o conhecimento
visto pelo autor como uma mediao para apreenso e transformao do objeto. H, portanto, uma ntima conexo entre o
conhecimento cientfico e os fins que se pretende atingir. Essa

Captulo 2

53

articulao decidir se se trata de um conhecimento que visa


manipulao ou a uma verdadeira transformao.
Essa compreenso da articulao entre teoria e prtica nos
permite tambm, quando imersos numa sociedade de classes, distinguir claramente entre objetividade e neutralidade cientfica.
Lukcs no trata dessa questo ao analisar a categoria do trabalho,
mas em outro momento, quando se refere ao momento ideal e
ideologia. Todavia, julgamos importante fazer referncia a essa
questo neste momento, tendo em vista o seu enorme interesse
metodolgico na produo do conhecimento cientfico.
Ser neutro significa no tomar partido, especialmente face
s perspectivas postas pelas classes sociais. Ser objetivo significa, como j afirmamos, apreender a realidade como ela em si
mesma. Ora, ser neutro significa supor que as perspectivas postas
pelas diferentes classes so apenas diferentes, mas no superiores
ou inferiores em termos de possibilidades cognitivas. No caso do
mundo moderno, onde se enfrentam as perspectivas da burguesia e do proletariado, fica claro que a perspectiva burguesa tem
limitaes muito maiores para conhecer a realidade como ela de
fato . Isso se d pelo fato de a burguesia ser uma classe que, por
sua natureza, precisa apresentar um interesse particular como se
fosse universal. Por isso mesmo, as possibilidades cognitivas postas pelo proletariado so muito mais elevadas, uma vez que ele
representa um interesse verdadeiramente universal.
Contudo, a compreenso da relao entre subjetividade
e objetividade no importante apenas em relao ao processo
de conhecimento, mas tambm no que se refere prtica social.
Lukcs enfatiza que o por teleolgico sempre um fato histrica
e socialmente situado e no algo abstrato. Vale dizer, qualquer
por teleolgico tem que ter a possibilidade de realizar-se, caso
contrrio no passa de mera abstrao. A realizao, de fato, no
necessria, mas o que necessrio a sua possibilidade. Lukcs
exemplifica citando o caso da inteno de voar, expressa por caro
e Leonardo da Vinci. Em ambos os casos, esse por teleolgico no

54

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

tinha a menor possibilidade de se realizar, permanecendo, por


isso, uma simples inteno.
Essa afirmao lukacsiana da maior importncia para a
orientao da prtica social. essa compreenso correta da relao entre subjetividade e objetividade que permite evitar tanto o
idealismo quanto o empirismo. O primeiro, ao enfatizar unilateralmente a subjetividade, desconhece ou menospreza o campo
de possibilidades posto pela realidade objetiva. Com isso, atribui
ao humana tarefas que ela no pode cumprir. O segundo, ao
acentuar, tambm de modo unilateral, a objetividade, desconhece
o poder da subjetividade de, observados certos limites, ir para
alm do imediatamente dado. V-se, assim, bloqueado o caminho
para uma alterao substantiva da realidade objetiva.
A identificao dos elementos essenciais que caracterizam
o trabalho permite a Lukcs, junto com Marx, afirmar que trabalho
, nica e exclusivamente, transformao da natureza. Segundo
ele, o trabalho a nica categoria que no pressupe a existncia
do ser social, mas que se situa como mediador entre o ser natural
e o ser social. Todas as outras categorias, mesmo aquelas sem as
quais o prprio trabalho no se realizaria a exemplo da socialidade e da linguagem , pressupem o ser social como j existente
e sua funo de serem mediadoras das relaes entre os prprios indivduos. Todas essas outras categorias tm como funo
agir sobre a conscincia dos indivduos para lev-los a realizar
outros atos de carter teleolgico. O trabalho, ao contrrio, tem a
funo de agir sobre a natureza visando impor-lhe determinado
fim. Trata-se, portanto, de uma ao sobre dois tipos de matria, essencialmente diferentes. A matria natural, seja ela inteiramente natural ou que j tenha sofrido alguma transformao pela
ao humana e a matria subjetiva, a conscincia dos indivduos,
que tem como atributo a possibilidade de realizar outros atos de
carter teleolgico.
Certamente, no h uma absoluta separao entre o trabalho e as outras atividades. Estas outras podem, tambm, contribuir

Captulo 2

55

para a transformao da natureza, mas apenas de modo indireto,


pois no essa a sua funo essencial.
Lukcs adverte que essa afirmao da essencial diferena
de funo entre o trabalho e as outras dimenses da atividade
humana no significa nenhuma afirmao de superioridade ou
inferioridade. No se trata de valorao, mas de constatao ontolgica. Significa, apenas, a constatao de que elas exercem funes essencialmente diferentes.
Para evitar mal-entendidos, vale enfatizar que a anlise
lukacsiana se situa em nvel ontolgico, isto , na considerao
dos elementos que marcam, de modo essencial, o trabalho, independente de qualquer forma concreta. Isso importante para que
no se confunda essa dimenso com a anlise da forma especfica
que o trabalho assume, de modo especial, na sociedade capitalista. O prprio Marx adverte, em O Capital, que aquela anlise
geral imprescindvel, mas no suficiente para compreender o
trabalho na sociedade capitalista. Neste caso, o foco do problema
a forma especfica que o trabalho adquire ao produzir a riqueza
sob esta nova forma que se chama capital. Da porque o eixo o
valor-de-troca e no o valor de uso. Este ltimo subordinado ao
primeiro. Nesse sentido, de produtor de valores-de-troca, a noo
de trabalho gira ao redor da problemtica da produo ou no
de mais-valia e de capital. Da porque so chamadas de trabalho
atividades que nada tm a ver com a transformao da natureza,
como o professor de escola privada ou a danarina de cabar,
para usar os exemplos de Marx.
Tendo realizado a anlise interna da categoria do trabalho, ao autor pode, ento, reconduzi-la ao conjunto da realidade
social. Pode, ento, Lukcs, constatar que, nesse nvel mximo
de generalidade, o trabalho o modelo de todas as outras atividades sociais. Nesse sentido, diz ele (1981, p. 14): No trabalho
esto presentes in nuce todas as determinaes que, como veremos, constituem a essncia do que novo no ser social. Assim, o

56

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

trabalho pode ser considerado o fenmeno originrio, o modelo


do ser social [...].
Independente da funo que cada uma das outras dimenses da atividade social deva exercer na reproduo do ser social,
todas elas tm a mesma estrutura que caracteriza o trabalho. Todas
elas implicam o estabelecimento antecipado do fim a ser alcanado, a busca de meios e uma ao sobre determinada realidade
objetiva. Nesse nvel de generalidade, no importa o fato de que
essa realidade objetiva seja a natureza ou a conscincia humana.
Isso far uma enorme diferena no momento da anlise concreta,
mas no neste momento.

Referncias
LUKCS, G. Ontologia dell`Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1981.
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1975. (Texto original publicado em 1867).
MARX, K. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo,
2004. (Texto original publicado em 1844).
MARX, K. Contribuio crtica da economia poltica. So Paulo:
Expresso Popular, 2008. (Texto original publicado em 1859).
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alem. So Paulo: Expresso Popular,
2009. (Texto original publicado em 1846).

Captulo 3

Pesquisa na Tradio Marxista:


mtodo e sua contribuio para
as Cincias Humanas e Sociais
Elaine Rossetti Behring

[...] Marx no deixou uma Lgica, deixou a lgica de


O capital (Lnin).

Introduo

presente texto foi elaborado originalmente a convite do


evento I Seminrio Marx Hoje, realizado na UFRN, em abril
de 2014. De l para o momento em que reescrevo estas linhas,
tendo em vista os anais do evento, um acontecimento colocou o
tema do mtodo materialista histrico e dialtico e suas potencialidades no centro do debate das Cincias Humanas e Sociais.
Um parecerista da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal
de Nvel Superior (CAPES), no mbito da seleo para o Edital
Procad 071/2013, analisando um projeto de autoria coletiva de
equipes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Universidade de Braslia (UnB) e Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), sendo que fao parte desta ltima, sumariamente discriminou o projeto pela adoo dessa perspectiva
terico-metodolgica. No cabe aqui desenvolver essa questo,
amplamente denunciada e que desencadeou em fins de maio de

58

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

2014 uma grande mobilizao entre pesquisadores que adotam


e que no adotam essa perspectiva terico-metodolgica, tendo
em vista assegurar a liberdade acadmica, o pluralismo e as condies da pesquisa num Estado democrtico. Introduzimos o
debate que segue com esse fato que refora a importncia dessa
perspectiva na pesquisa social, que o mote central das linhas
que seguem.
Porm, nesse contexto, antes de seguir diretamente ao
tema proposto, quero falar da importncia de realizar um evento
que revisita as ideias de Marx e coloca na ordem do dia a relao entre conhecimento e revoluo ou de pesquisa e transformao social , esta ltima um componente indissocivel, um
pilar mesmo da teoria social de Marx, um patamar de observao
da realidade que marca o conjunto da obra de Marx, que no se
props apenas interpretar o mundo, mas transform-lo, conforme
as conhecidas Teses sobre Feuerbach, dedicando sua vida e sua
pesquisa minuciosa a esse propsito. Vale lembrar que essa pesquisa, esse projeto intelectual de uma vida inteira, como ressalta
Netto (2009), realizando a crtica da economia poltica, foi feita
na maior parte das vezes em condies bastante adversas: o exlio, a perseguio poltica, as condies precrias de moradia e
de sade. So famosos os furnculos adquiridos na Biblioteca de
Londres e a dependncia da sustentao material de Engels, lembrando que Marx no foi aceito na Universidade embora o tenha
pleiteado (KONDER, 1999).
Registro ainda que esse evento acontece no contexto das
descomemoraes dos 50 anos da Ditadura Militar, que dentre
outros desservios esforou-se por tentar expurgar a tradio
marxista da universidade brasileira, perseguiu professores, estudantes e tcnicos que adotavam a teoria crtica como referncia,
destruiu bibliotecas pblicas e particulares, e desencadeou transformaes profundas na universidade para fragment-la e domestic-la, para amalgamar a universidade expanso do capitalismo
monopolista no Brasil associado ao capital estrangeiro, projeto

Captulo 3

59

central da Ditadura1, obscurantismo que insiste em ser reeditado


se pensamos na situao inicialmente referida. Contudo, houve e
h valorosas resistncias e contradies nesse processo, e a maior
prova disso a realizao de um evento como esse e de tantos
outros que temos acompanhado e que revisitam o legado marxiano e a tradio marxista por vrios de seus principais expoentes, no Brasil e no mundo, no contexto hoje do aprofundamento
da crise estrutural e endmica do capital. Os jovens estudantes,
muitos oriundos da classe trabalhadora, muitos sem perspectiva
de insero num mundo onde no h emprego para todos (na
periferia do capitalismo nunca houve) e que vislumbram um
futuro de precarizao e superexplorao do trabalho, tm sede
de explicao das foras destrutivas dos homens e da natureza,
desencadeadas pelo capitalismo em sua maturidade, no centro e
na periferia.
Posso ser otimista, mas apesar da ofensiva burguesa, do
neoliberalismo no Brasil combinado ao transformismo de parcelas da esquerda , parece correta a assertiva que d ttulo ao
livro de Perry Anderson (1984), de um presente marcado pela
crise da crise do marxismo. Acompanha esse novo perodo de
mobilizaes que estamos vivendo, especialmente desde as jornadas de junho de 2013, a busca de interpretaes do mundo que
tem o objetivo de super-lo, a busca de uma nova sociabilidade.
Da a oportunidade desse evento, a sintonia com o seu tempo, o
que papel de uma universidade livre, crtica, humanista, laica
e pblica. Realizar um evento como esse adentrar na disputa
de hegemonia dentro da prpria universidade, cujos efeitos da
domesticao e impactos da ditadura ainda se fazem sentir, acirrados pelo neoconservadorismo e pelo ps-modernismo, o ethos,
a lgica cultural, que marca o contexto da reao burguesa crise

Recomendo vivamente o recm-lanado livro Pequena Histria da Ditadura


Brasileira (1964-1985) de Jos Paulo Netto (2014).

60

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

no capitalismo tardio (ou maduro), conforme Jameson (1996).


Parabns, ento, ousadia dos organizadores.

Pesquisa e marxismo
O caminho que escolhi para abordar a relao entre pesquisa e marxismo o de socializar os percursos da pesquisa que
vimos desenvolvendo, orientada por essa perspectiva, chamando
ateno para a referncia e a incidncia do mtodo em Marx no
nosso processo de produo de conhecimento. O mtodo em
Marx essa sofisticada bssola para interpretar o mundo, que se
apresenta ao pesquisador como um claro escuro de verdade e
engano, como nos relata Karel Kosk (1976) em seu imprescindvel trabalho Dialtica do Concreto. O pilar do mtodo na teoria
social de Marx to importante que Lukcs (1989, p. 15) escreveu
em Histria e Conscincia de Classe que a ortodoxia marxista se
refere ao mtodo. Em suas palavras: O marxismo ortodoxo no
significa, pois, uma adeso sem crtica aos resultados da pesquisa
de Marx, no significa uma f numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro sagrado. A ortodoxia em matria de marxismo
refere-se, pelo contrrio, e exclusivamente, ao mtodo.
Considerando as aventuras e desventuras da tradio
marxista o estruturalismo com sua misria da razo, como nos
ensinou o saudoso Carlos Nelson Coutinho (2010), a vulgata marxista-leninista, os inmeros manuais, os economicismos, politicismos, monocausalismos e unilateralismos das mais variadas
origens, os namoros eclticos com outras tradies tericas numa
tradio terica e poltica quase bicentenria essa demarcao
de Lukcs imprescindvel. Nesse mesmo texto, ele ressalta tambm a relao entre teoria e histria, teoria e prxis, ou seja, a
perspectiva da revoluo como um elemento interno a esse patamar de observao da realidade. Para Lukcs (1989, p. 17) h uma
relao dialtica do sujeito e do objeto no processo da histria, uma ao recproca, o que implica na recusa peremptria

Captulo 3

61

da neutralidade cientfica de Durkheim ou axiolgica de Weber,


especialmente na pesquisa social. Para essa conversa, podemos
tambm convidar a reflexo de Michael Lwy (2013), que mostra
a relao entre teoria e vises sociais de mundo, teoria e poltica,
em suas Aventuras de Karl Marx contra o Baro de Munchhausen,
por meio da alegoria daquele personagem bizarro que pretende
sair da areia movedia se puxando pelos cabelos. Ou seja, o pesquisador e seu objeto esto mergulhados na histria. Essas so
balizas centrais que orientam o nosso trabalho de pesquisa.
No ano de 2013, o grupo de pesquisa que coordeno na
UERJ, Grupo de Estudos e Pesquisas do Oramento Pblico e
da Seguridade Social (GOPSS), completou 10 anos de trabalho.
Nesses anos temos realizado um amplo monitoramento das contas
pblicas brasileiras, especialmente do oramento pblico federal, que revela aspectos importantes da dinmica da economia
poltica, do Estado e da luta de classes na sociedade brasileira.
Esse trabalho de pesquisa hoje tambm de extenso oferecendo cursos para trabalhadores, movimentos sociais e gestores
de polticas pblicas , e de formao de quadros em todos os
nveis de formao, da graduao ao ps-doutorado. Hoje somos
quatro professores, um ps-doutorando e onze estudantes (quatro
de graduao e sete de ps-graduao). O projeto guarda-chuva
do grupo intitulado Fundo Pblico, Poltica Social e Valor: fundamentos histricos, tericos e dinmica contempornea2, ou
seja, buscamos compreender o fundo pblico e a poltica social
em articulao com o processo de reproduo ampliada do capital (Behring, 2010), que passa pela caa apaixonada do valor,
como nos informa Marx em O Capital (MARX, 1867/1988, p. 126).
Esse projeto em desenvolvimento prope como objetivo
geral

2 Projeto registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e


Tecnolgico (CNPq), que conta com financiamento e bolsas de pesquisa. O GOPSS
pode ser encontrado no Diretrio de Grupos de Pesquisa do Brasil CNPq.

62

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

aprofundar o estudo terico-emprico do oramento


do Estado brasileiro e do financiamento das polticas sociais nas duas ltimas dcadas, com nfase na
seguridade social, desvelando a lgica de constituio
e alocao do fundo pblico na sociedade capitalista
contempornea, na sua relao com o circuito de criao, realizao e repartio do valor, diga-se, da acumulao do capital (BEHRING, 2012).

E desse objetivo se desdobram alguns objetivos acadmicos especficos, que vimos perseguindo a partir do estudo da
lgica da constituio e alocao do fundo pblico e sua relao
com a poltica social, dos quais destacamos: 1 aprofundar o
estudo terico acerca da relao entre a teoria do valor e o fundo
pblico em Marx e na tradio marxista contempornea; 2 aprofundar o estudo sobre a alocao do fundo pblico brasileiro,
considerando os interesses de classes e segmentos de classe em
disputa, a insero do pas no capitalismo contemporneo e as
polticas econmicas que vm sendo desenvolvidas; 3 refletir
sobre a relao entre poltica social e fundo pblico no Brasil,
considerando o ambiente neoliberal das ltimas duas dcadas e
seu impacto sobre as polticas e direitos sociais; 4 compreender
a natureza da crise do capitalismo em curso e seus impactos sobre
a constituio e alocao do fundo pblico, bem como adensar o
conceito de crise a partir da crtica da economia poltica clssica
e contempornea.
A leitura crtica da crise do capital, do papel do fundo
pblico e seu impacto sobre a produo e a reproduo social,
envolvendo o mundo do trabalho, dos direitos e das polticas
sociais, e tendo como base emprica o oramento pblico, ainda
que no exclusivamente, requisitam a perspectiva da totalidade
do ponto de vista heurstico, considerando que esses so processos que se inscrevem na totalidade concreta, a sociedade burguesa
contempornea, envolvendo ainda a particularidade brasileira. A
categoria da totalidade, portanto, decisiva para trazer tona as

Captulo 3

63

mltiplas determinaes do capitalismo contemporneo como


totalidade histrica concreta, a qual envolve um conjunto de
mediaes e contradies que a colocam em movimento, ou em
intenso sociometabolismo, na boa sntese de Mszros (2002)
razo pela qual todo conhecimento sobre a sociedade aproximado, inacabado, o que no significa dizer relativo. preciso
estarmos atentos ao relativismo, que na minha opinio remete
ao mais profundo idealismo. No o pensamento que produz a
realidade. No temos uma realidade histrico-social para cada
forma de pensar. Pela perspectiva metodolgica que adotamos,
o pensamento extrai da realidade seu movimento. E entre pensamento e realidade h inmeras mediaes e condies que vo
determinar as possibilidades maiores ou menores de apanhar as
determinaes do objeto, o ser social em movimento.
Outra categoria central que orienta a pesquisa a contradio. Vejam que colocamos a luta de classes como um elemento
interno ao processo de constituio e alocao do fundo pblico,
bem como de definio e execuo das polticas sociais. A partir
de uma ampla pesquisa documental e bibliogrfica, e de dados
primrios do oramento pblico brasileiro e algumas anlises
comparadas internacionais que vimos desenvolvendo (BEHRING,
2013), temos produzido aproximaes sucessivas e cada vez mais
profundas, tendo em vista a reproduo no nvel do pensamento
da lgica que preside o movimento do fundo pblico e da configurao da poltica social, como concreto pensado. Trata-se
de partir do concreto e aparente, para reconstru-lo no nvel do
pensamento como um conjunto mais rico de determinaes que
supera aquele momento primeiro. O que pressupe um trabalho
prvio sistemtico de organizao e tratamento dos dados, que
constitui a base para a anlise. Realizamos uma descrio sistemtica de dados do oramento pblico, como um trabalho prvio,
mas buscamos traduzir, desvelar sua lgica dialtica, marcada
pela contradio entre o desenvolvimento das foras produtivas
e as relaes sociais de produo, entre a produo social e a

64

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

apropriao privada, entre as classes sociais fundamentais, burguesia e trabalhadores, e seus interesses antagnicos na disputa
pelo fundo pblico, como um elemento insubstituvel na sua
reproduo material. Sobre a contradio, Netto (2009, p. 678)
nos auxilia:
Para ambos, [Marx e Engels] o ser social e a sociabilidade resulta elementarmente do trabalho, que constituir o modelo da prxis processo, movimento, que
se dinamiza por contradies, cuja superao o conduz
a patamares de crescente complexidade e novas contradies impulsionam a outras superaes.

Vejam, as categorias expressam modos de ser do ser social,


numa perspectiva ontolgica e como tal, so histricas e transitrias (Netto, 2009). O fundo pblico e a poltica social so
mediaes importantes na totalidade da vida social e nossa pesquisa busca adensar essas categorias, compreendendo seu modo
de ser. Teorizando a partir de um trabalho prvio e sistemtico do
sujeito que pesquisa, esgotando ao mximo a produo relevante
sobre o objeto e organizando dados primrios. Lembro sempre
dos relatrios dos comissrios encarregados de fiscalizar as fbricas como fonte de pesquisa da qual Marx extraiu os segredos da
jornada de trabalho, do controle do tempo, pesquisa central para
a sustentao do ncleo central da teoria do valor-trabalho. Para
Netto (2009, p. 673-674),
A teoria , para Marx, a reproduo ideal do movimento
real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o
sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a
dinmica do objeto que pesquisa. E esta reproduo
(que constitui propriamente o conhecimento terico)
ser tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o
sujeito for ao objeto.

E continua:

Captulo 3

65
Numa palavra: o mtodo de pesquisa que propicia
o conhecimento terico, partindo da aparncia, visa
alcanar a essncia do objeto. Alcanando a essncia
do objeto, isto : capturando a sua estrutura e dinmica,
por meio de procedimentos analticos e operando a sua
sntese, o pesquisador a reproduz no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo mtodo,
o pesquisador reproduz, no plano ideal, a essncia do
objeto que investigou.

Aqui um pequeno parntese. Participamos de muitas bancas de avaliao de propostas de pesquisa em vrios nveis e,
muitas vezes, apesar da adeso ao mtodo, sobrepe-se o modo
de ser ao dever ser. No campo da poltica social, isso muito
comum, a partir de uma anlise prescritiva, de como a poltica
social deveria ser. Isso pode ser uma consequncia da pesquisa:
algumas recomendaes prticas. Mas a tarefa da pesquisa do
ponto de vista dessa tradio terica desvelar o ser social burgus, a sociedade capitalista, a condio da poltica social nesta
sociedade, suas transformaes no mbito da totalidade histrica concreta, com a finalidade de alimentar os demnios, as
inquietaes, lembrando aqui Renato Ortiz (2008), em belo texto
sobre Octavio Ianni, cuja contribuio pesquisa no campo dessa
tradio terico-crtica formidvel (IAMAMOTO; BEHRING,
2009). E cabe a cincia desconcertar as opinies formadas,
como Durkheim (2007) reconhece como papel da cincia, numa
passagem potica das Regras do Mtodo Sociolgico.
Busca-se, ento, romper com o claro-escuro de verdade e
engano, com a aparncia, com o mundo da pseudoconcreticidade
que precisa ser superado pela crtica (KOSK, 1976). Vejamos a
discusso da crise do capital, suas causas, sua temporalidade e
suas consequncias. As abordagens correntes, acadmicas e jornalsticas a caracterizaram como passageira e conjuntural no
caso dos liberais mais ortodoxos ou como supervel em mdio
prazo desde que sejam desencadeados processos de regulao,

66

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

particularmente sobre a circulao de capitais e a ao dos rentistas, que foram descartados pelos neoliberais como afirmam
muitas das anlises de cariz keynesiano. A perspectiva da totalidade, do mtodo da crtica da economia poltica, permite ver
a crise do capital como um elemento interno a sua lgica, relacionado dinmica da produo e apropriao do valor, diga-se, da acumulao do capital, e contradio entre as classes
sociais, muitas vezes expressa por seus segmentos na correlao
de foras poltica. Permite perceber o curto-circuito no processo
de rotao do capital, e a queda tendencial da taxa de lucros e
suas causas contrariantes, como explicitou Marx (1867/1988),
em O Capital. Tudo isso determina a formao e alocao do
fundo pblico, um componente estrutural inarredvel no capitalismo contemporneo, e a condio da poltica social, como
uma mediao importante no campo da produo e reproduo
da totalidade, considerando seu lugar na reproduo da fora de
trabalho e na relao entre produo e consumo no capitalismo
maduro. O ponto de vista adotado pela pesquisa que desenvolvemos percebe a crise em curso como endmica, profunda e estrutural, envolvendo mltiplas dimenses: econmica, poltica,
social, cultural e ecolgica. Com Mandel (1982), entendemos que
a crise no detonada por uma nica causa (o petrleo, a perversidade da finana, os crditos imobilirios sem lastro etc.). Todo
monocausalismo nos leva a raciocnios reducionistas e dedutivos, que tendem a empobrecer a reproduo do movimento do
objeto como concreto pensado, nos mantendo presos ao imediato,
quando buscamos o mediato. Ou seja, a reproduo no nvel do
pensamento do concreto como sntese de muitas determinaes
formas de modos de ser, determinaes da existncia e unidade
do diverso, prenhe de contradies.

Captulo 3

67

Observaes finais
Para finalizar, aponto uma premissa importante do nosso
trabalho, para alm da totalidade, da contradio e da mediao,
que o entendimento de que o capitalismo maduro se desenvolve
desencadeando foras destrutivas avassaladoras, ou seja, o capitalismo maduro destrutivo e tende a fugir das regulaes, sendo
a experincia socialdemocrata do Estado de Bem-Estar, do pleno
emprego keynesiano, datada e geopoliticamente situada, delimitada por um conjunto de determinaes que no cabe desenvolver aqui, mas que esto sistematizadas em alguns dos nossos
trabalhos (BEHRING, 1998, 2003; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
Entender os processos sociais a partir desse patamar, evidentemente, no implica uma abordagem catastrofista ou finalista
da histria, que por vezes contagiou e ainda contagia o debate
crtico, e que aqui recusamos veementemente. Se o capitalismo
esgotou ou no seu tempo, um desdobramento que tem a ver
com as foras vivas, com a luta de classes e suas possibilidades
histricas. Nossa nica certeza a de que quanto mais capitalismo
hoje, maiores as possibilidades de barbarizao e banalizao da
vida, de desastre ecolgico, de radicalizao da desigualdade. Da
que, no compromisso acadmico primordial de trazer tona com
maior nitidez os processos sociais em curso no contexto da crise
no nosso caso a dinmica do fundo pblico e da poltica social
na sua relao com o circuito do valor, que organiza a sociedade
burguesa , h um evidente compromisso poltico, de alimentar as lutas sociais e polticas. Como j disse anteriormente, no
existe cincia assptica, neutra e descompromissada. E os tempos
difceis requisitam uma pesquisa na universidade comprometida
com a vida, com a humanidade, num sentido humano genrico
amplo. Um compromisso com a emancipao humana, e emancipao poltica naquelas realidades onde essa mediao ttica
ainda se repe. Mas esse um outro debate.

68

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Referncias
ANDERSON, P. A crise da crise do Marxismo: introduo a um debate
contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1984.
BEHRING, E. R. Poltica social no capitalismo tardio. So Paulo: Cortez,
1998.
BEHRING, E. R. Brasil em contra-reforma: Desestruturao do Estado e
perda de direitos. So Paulo: Cortez, 2003.
BEHRING, E. R. Crise do Capital, Fundo Pblico e Valor. In: BOSCHETTI,
I.; BEHRING, E. R.; SANTOS, S. M. M.; MIOTO, R. C. T. (Org.).
Capitalismo em Crise, Poltica Social e Direitos. So Paulo:
Cortez, 2010. p. 13-34.
BEHRING, E. R.; Notas sobre a Organizao Poltica e Sindical dos
Assistentes Sociais. Praia Vermelha (UFRJ), v. 21, p. 97-107, 2012.
BEHRING, E. R. Frana e Brasil: realidades distintas da proteo social
entrelaadas no fluxo da histria. Servio Social e Sociedade, So
Paulo, n. 113, p. 7-52, mar. 2013.
BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Poltica Social: Fundamentos e Histria.
9. ed. So Paulo: Cortez, 2006. (Biblioteca Bsica de Servio
Social).
COUTINHO, C. N. O Estruturalismo e a Misria da Razo. So Paulo:
Expresso Popular, 2010.
DURKHEIM, E. As regras do Mtodo Sociolgico. So Paulo: Martins
Fontes, 2007.
IAMAMOTO, M.; BEHRING, E. R. Pensamento de Octavio Ianni: um
balano de sua contribuio interpretao do Brasil. Rio de
Janeiro: Sete Letras/FAPERJ, 2009.

Captulo 3

69

JAMESON, F. Ps-Modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio.


So Paulo: tica, 1996.
KONDER, L. Marx: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
KOSK, K. Dialtica do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
LWY, M. As Aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen.
So Paulo: Cortez, 2013.
LUKCS, G. Histria e conscincia de classe. Porto: Elfos, 1989 (Texto
original de 1923).
MANDEL, E. O Capitalismo Tardio. So Paulo: Abril Cultural, 1982.
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 1). So Paulo:
Abril Cultural, 1988 (Texto original publicado em 1867).
MSZROS, I. Para alm do capital: rumo a uma teoria da transio
(Trad. de P. C. Castanheira e S. Lessa). So Paulo/Campinas:
Boitempo/Editora da Unicamp, 2002.
NETTO, J. P. Introduo ao Mtodo na Teoria Social. In: CONSELHO
FEDERAL DE SERVIO SOCIAL; ASSOCIAO BRASILEIRA
DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIO SOCIAL (Org.). Servio
Social, Direitos Sociais e Competncias Profissionais. Braslia:
Autor, 2009. p. 667-700. Disponvel em: <http://pt.slideshare.
net/rosanegafanhota/livro-completo-cfess-servio-social-direitossociais-e-competncias-profissionais-2009>.
NETTO, J. P. Pequena Histria da Ditadura Brasileira (1964-1985). So
Paulo: Cortez, 2014.
ORTIZ, R. Octavio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, Porto Alegre,
n. 20, 319-328. Dez. 2008. Disponvel em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222008000200014>.

Captulo 4

O mtodo e a teoria marxiana


Jane Cruz Prates

Introduo

presente captulo fruto de oficina realizada durante o I


Seminrio Marx Hoje, ocorrido em Natal, em abril de 2014.
Busca-se sistematizar os principais contedos trabalhados com o
grupo relativos ao mtodo em Marx, enfatizando no s os movimentos realizados pelo pensador alemo para a efetivao da
investigao e da exposio em termos epistemolgicos, mas articulando alguns elementos da teoria marxiana, pois o mtodo s
tem sentido luz dessas produes que veiculam valores e concepes acerca do real e so inspiradas por um projeto revolucionrio. A riqueza de uma oficina dificilmente pode ser capturada
nos limites de um texto, os debates foram profcuos e colaboraram
para que esta produo se qualificasse a partir da construo coletiva. Espera-se, portanto, que possa instigar o aprofundamento do
debate acerca da atualidade das contribuies da obra de Marx
para desocultar e desfetichizar o mundo contemporneo que infelizmente ainda no conseguiu superar a sociedade de classes e se
mantm sob o jugo do capital que segue celebrando suas orgias.
Inicialmente necessrio ressaltar que a perspectiva dialtica consiste em ver a vida, em primeiro lugar, como movimento permanente, como processo e provisoriedade, portanto,
como negao permanente dos estados, formas e fenmenos, para

72

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

demarcar sua existncia e possibilitar o seu prprio movimento,


o seu devir ou vir a ser, o que ser novamente negado para que
o prprio movimento siga seu curso. Esse curso nem sempre
linear, mas constitudo por avanos e recuos. Significa dizer que
o institudo pode ser superado por novas formas e que o conflito
necessrio realizado pela luta entre os contrrios fundamental a
sua movimentao (MENDES; PRATES, 2007).
Reconhecer, portanto, a contradio como motor desse
movimento, como elemento que conforma e est na base da
luta de classes, da questo social e do prprio desenvolvimento
humano-social uma necessidade. A opo pelo mtodo dialtico
crtico de inspirao marxiana , portanto, uma opo poltica,
que se pauta no reconhecimento de que a cincia no neutra e
suas posies defendem interesses que privilegiam a dominao
de alguns, seja pela via econmica, de subjugao, de poder, de
seduo, de acesso ou no a informao, acesso ou no a riqueza
socialmente produzida ou de todos esses elementos articulados
tendo como contraponto a defesa de novas formas de sociabilidade que tem na emancipao humana sua finalidade (PRATES,
2012). Na verdade, estamos falando de valores. E a escolha de
mtodos pressupe a opo por valores.
Fetichizadas pelo capitalismo, as concepes de emancipao tm sido reduzidas a processos de insero geralmente
precrios, que mascaram a incluso forada e precria, que interessam ao capital (ALVES, 2014), limitando-se a acessos restritos
educao e sade, o que nem sempre garante a efetiva incluso
dos sujeitos, pois mesmo acessando a vagas, como no caso da
educao, muitas vezes so expulsos e no permanecem inseridos e ainda quando no so reconhecidos e no estabelecem
laos de pertencimento no se pode falar em incluso. Esse processo chamado no mbito das polticas sociais de emancipao,
quando tratada de modo mais amplo, incidindo em processos
educativos e organizativos no mximo chega a contribuir para a
emancipao poltica, nica forma de emancipao possvel no

Captulo 4

73

modo de produo capitalista. Do mesmo modo outras categorias e processos sociais, tais como a participao, a cooperao, a
solidariedade, que so fundamentais luta dos trabalhadores, so
apropriadas de modo reducionista e despolitizadas pela cultura
capitalista, estratgia necessria para que o modo de vida por ele
engendrado seja naturalizado e assimilado como interesse geral,
reduzindo, desse modo, a potncia substantiva e transformadora
dessas categorias. Esse modo de vida se caracteriza por individualismo egosta, competio e reduo da incluso a possibilidade
de consumir.
H de se considerar, contudo, que as polticas sociais, no
capitalismo, tm carter contraditrio, ao mesmo tempo que conformam, so espaos de luta e resistncia, ao mesmo tempo que
servem aos interesses do capital, atendem a demandas e necessidades da populao trabalhadora, portanto, fundamental potencializarmos processos sociais emancipatrios, mesmo nos limites
do assalariamento, fortalecendo os sujeitos e a classe. Como destaca Marx (1844/1993, p. 112), Uma nao que procura desenvolver-se espiritualmente com maior liberdade no pode continuar
vtima das suas necessidades materiais, escrava do seu corpo.
A solidariedade de classe, conforme a aborda Marx
(1844/1993), tem por fundamento a necessidade de o homem
reconhecer-se como ser humano-genrico, o reconhecimento
de que todos temos direito a ter direitos, diferente da solidariedade crist que se pauta na caridade, na benesse e no favor. A
cooperao, por sua vez, fundamental ao trabalho, capturada
pela sociedade capitalista que no s engendra formas de explorao mascaradas por processos cooperativos, mas captura a subjetividade do trabalhador (ALVES, 2011) a partir de expresses
hipcritas como empreendedor, colaborador, entre outras formas
de mascarar o interesse antagnico que marca da sociedade de
classes. Como bem destacaram Marx e Engels (1845-1846/1993,
p. 119), Esta subsuno dos indivduos a determinadas classes
no pode ser superada at que se forme uma classe que j no

74

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

tenha qualquer interesse particular de classe a impor classe


dominante.

As bases axiolgicas, ontolgicas e epistemolgicas


que fundamentam a teoria e o mtodo marxiano
Marx (1844 s.d.) aborda a emancipao humana na obra A
questo judaica. Em um debate profundo com Bauer sobre emancipao poltica, afirma:
A emancipao poltica representa, sem dvida, um
grande progresso. No constitui porm, a forma final de
emancipao humana, antes a emancipao humana
dentro da ordem mundana at agora existente porque
se pauta no na essncia da comunidade, mas na
essncia da diferenciao. agora apenas a confisso
abstrata da loucura individual, da fantasia privada, do
capricho. Nem vale a pena dizer que estamos aqui a
falar da emancipao real, prtica. (MARX, 1844 s.d.,
p. 15)

E complementa Marx (1844 s.d.) destacando que a revoluo poltica (burguesa) aboliu apenas o carter poltico da
sociedade civil, esclarecendo que o homem no se libertou da
religio, recebeu a liberdade religiosa. No se libertou da propriedade, recebeu a liberdade da propriedade, no foi libertado do
egosmo do comrcio, recebeu a liberdade para se empenhar no
comrcio (p. 28).
Na verdade, a revoluo burguesa ou poltica, na concepo marxiana, dissolve a sociedade civil nos seus componentes,
mas no revoluciona esses componentes, porque no vai raiz,
no os submete critica dialtica (MARX, 1844 s.d.). E sobre os
direitos do homem, na mesma obra, esclarece que essa ideia de
direitos do homem surge somente no sculo XVIII, no mundo
cristo, e no se configura como ideia inata, mas se forja na luta
contra as tradies histricas em que os homens foram educados

Captulo 4

75

at ento, [...] so o prmio da luta contra o acidente do nascimento e contra os privilgios que a histria at agora transmitiu
de gerao a gerao (p. 21).
Portanto, para Marx, toda a emancipao uma restituio
do mundo humano e das relaes humanas ao prprio homem.
A emancipao poltica a reduo do homem, por um lado, a
membro da sociedade civil, indivduo independente e egosta e,
por outro, a cidado, a pessoa moral, logo,
A emancipao humana s ser plena quando o homem
real e individual tiver em si o cidado abstrato, quando
como homem individual, na sua vida emprica, no
trabalho e nas suas relaes individuais, se tiver tornado um ser genrico, e quando tiver reconhecido e
organizado suas prprias foras como foras sociais,
de maneira a nunca mais separar de si esta fora social
como fora poltica (MARX, 1844 s.d., p. 30).

A teoria social de Marx vincula-se a um projeto revolucionrio, Marx dedicou sua vida e sua obra pesquisa da verdade
a servio dos trabalhadores e da revoluo socialista (NETTO,
2011, p. 11), articulando o dilogo crtico com os maiores pensadores ocidentais participao em processos poltico-revolucionrios de sua poca. Conforme destaca Netto, (2011, p. 36),
Ele se dedica obsessivamente ao estudo da sociedade
burguesa: analisa documentao histrica, percorre
praticamente toda a bibliografia j produzida da economia poltica, acompanha os desenvolvimentos da economia mundial, leva em conta os avanos cientficos
que rebatem na indstria e nas comunicaes, considera as manifestaes das classes fundamentais (burguesia e proletariado) em face da atualidade.

Netto (2011), portanto, enfatiza a profundidade dos


estudos marxianos sobre seu objeto de pesquisa, a sociedade
capitalista a partir de suas multideterminaes. Marx articula
conhecimentos de reas diversas como a Filosofia, o Direito, a

76

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Economia, a Poltica, a Histria, a Comunicao, alm do acompanhamento atento e compromissado das condies materiais de
vida e do modo de vida da classe operria e de seus embates com
a burguesia. Em sntese, uma pesquisa com direo social clara e
com um adensamento pormenorizado acerca da realidade social
em todas as suas manifestaes, interconectando-as para ampliar-lhes o sentido.
Como bem destaca Netto (2011, p. 27), sua pesquisa, da
qual resultam as bases de sua teoria social, tem como problema
central a gnese, a consolidao, o desenvolvimento e as condies de crise da sociedade burguesa, fundada no modo de produo capitalista.
A estruturao da teoria marxiana toma por base o pensamento moderno a partir da filosofia alem, da economia poltica
inglesa e do socialismo francs.
Em Marx a crtica do conhecimento acumulado consiste
em trazer ao exame racional, tornando conscientes, os
seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus
limites; buscando desocultar a estrutura e a dinmica,
no caso de Marx, da sociedade burguesa, seu objeto de
estudo (NETTO, 2011, p. 18-19).

Para Marx, a teoria no se d a priori por um ato isolado


do pensamento. Pela teoria o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinmica do objeto de pesquisa. Alega Marx
(1867/1989, p. 22), contrapondo-se a Hegel que parte da ideia:
para mim o ideal no mais do que o material transposto para a
cabea do ser humano e por ele interpretado.
Portanto, como esclarece Netto (2011, p. 21), a teoria nessa
concepo no pode se limitar a enunciao de discursos pautados em hipteses que apontam relaes de causa-efeito, sobre os
quais a sociedade cientfica estabelece consensos.
Embora Marx no tenha dedicado nenhuma de suas obras
ao debate metodolgico, nem mesmo ao debate acerca de seu

Captulo 4

77

mtodo, seu movimento investigativo pode ser apreendido pelo


conjunto de sua obra, e na obra O capital (MARX, 1867/1989) ele
fala do mtodo na introduo.
Contudo, Marx mostra sua preocupao com o desocultamento da realidade a partir da formulao de questes politicamente adequadas e com base em contraprovas histricas, que
s podem ser construdas a partir de um acmulo inicial sobre o
objeto estudado, isto se evidencia, por exemplo, quando na obra
Ideologia Alem (MARX; ENGELS, 1845-1846/1993, p. 23) critica
os filsofos que no examinam os pressupostos filosficos gerais,
destacando que no sistema alemo fundamentado em Hegel h
uma mistificao no apenas em suas respostas, mas j nas prprias questes. Nos Manuscritos de Paris, mais especificamente
no primeiro manuscrito referindo-se passagem para o artesanato complexo, Marx (1844/1993, p. 113) afirma:
Um trabalho assim continuado, uniforme, por natureza (e a investigao confirmou-o) prejudicial para o
esprito e para o corpo; e quando o emprego da maquinaria se associa diviso do trabalho entre grande
nmero de homens surgem logo todas as desvantagens desta ltima. Tais desvantagens revelam-se, por
exemplo, na elevada mortalidade dos trabalhadores de
fbrica. A importante distino entre at que ponto os
homens trabalham com mquinas ou como mquinas,
no foi objeto de ateno.

Dito de outro modo, a questo destacada por Marx como


central era obscurecida, porque no interessava perguntar. Ainda
no I Manuscrito, Marx afirma que a economia poltica parte do
fato da propriedade privada, no o explica, apreende o processo
material a partir de frmulas gerais e abstratas conformadas em
leis, no compreende que tais leis resultam da essncia da propriedade privada, no apreende o seu fundamento , ou seja
pressupe o que deveriam explicar [...] no compreende as
interconexes desse movimento [...]. Pressupe sobre a forma

78

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

de fato, o que deveria deduzir, a saber a relao necessria entre


duas coisas, por exemplo entre a diviso do trabalho e a troca
(MARX; ENGELS, 1845-1846/1993, p. 158).
Atravs da crtica, Marx aporta importantes elementos
metodolgicos, quais sejam, a necessidade de explicar para alm
de compreender, a importncia de buscar-se os fundamentos, a
necessidade de desocultar o movimento e a interconexo entre
os fenmenos.
E no II Manuscrito, afirmam Marx e Engels (18451846/1993, p. 193) que [...] o movimento total da histria, tanto
a gnese real do comunismo o nascimento da sua existncia
emprica como tambm a sua conscincia presente, o movimento apreendido e consciente do seu devir.
Apreender a essncia do fenmeno desocultar, portanto,
sua estrutura e a dinmica, como bem destaca Netto (2011), ou
seja, o modo como se conforma e o modo como se movimenta o
objeto estudado. Mas quando o objeto a sociedade produto da
ao recproca dos homens (MARX, 1847/2009, p. 244), o processo de conhecimento no uma externalidade, o sujeito pesquisador est implicado nesse processo (NETTO, 2011).
As bases que fundamentam o pensamento de Marx so: o
materialismo dialtico e o materialismo histrico. Para o materialismo dialtico, a realidade existe independente da conscincia.
Consiste na tentativa de buscar explicaes coerentes, lgicas e
racionais para os fenmenos humanos da natureza, sociedade e
pensamento. Constitui-se por uma concepo cientfica da realidade, pelo reconhecimento da interconexo universal enriquecida
pela prtica social da humanidade. Da decorre o reconhecimento
de que a prtica social critrio de verdade e que os graus de
conhecimento so limitados pela histria.
O materialismo histrico estuda as leis que caracterizam
a vida da sociedade, sua evoluo a partir da prtica social dos
homens. Supera a viso idealista e cronolgica de histria e desenvolvimento humano, ressaltando que na gnese dos fenmenos

Captulo 4

79

esto a fora das ideias, os agrupamentos humanos, as formaes


socioeconmicas e as relaes de produo. Os meios de produo so constitudos pelas mquinas, ferramentas e pela matria-prima utilizadas no processo de trabalho; as foras produtivas se
conformam a partir da articulao entre os meios de produo e a
fora de trabalho; e, por fim, o modo de produo o resultado da
articulao entre as foras produtivas e as relaes de produo.
A prxis, por sua vez, uma prtica que tem uma perspectiva de direo social definida (palavra grega que significa
ao em busca de uma determinada finalidade, que tem uma
intencionalidade). teoria em movimento transformao de
conhecimentos em ao, com objetivos determinados, atravs
de mediaes entre teoria e prtica, e nesse sentido que precisa ser apreendida. A prtica, entendida como prxis, precisa
ser constantemente problematizada, os fundamentos que a informam constantemente revisitados porque, como teoriza Lefebvre
(1991), se reconhecemos que a realidade movimento que nossas anlises e intervenes sejam tambm movimento, que nosso
pensamento seja pensamento do e sobre o movimento. Porque a
prtica critrio de verdade, a partir dela que vamos verificar se
aquilo que construmos teoricamente (um sistema como o Sistema
nico de Assistncia Social ou o Sistema nico de Sade, uma
estratgia de interveno etc.) dar os resultados que esperamos,
ter efetividade. Por essa razo, trabalhar a partir de uma prxis
fazer o movimento prtica-teoria-prtica-teoria incessantemente,
qualificando, de modo progressivo, nossas anlises e interveno atravs desse movimento permanente de realimentao entre
prtica e teoria, razo pela qual no podem ser jamais separadas
(MENDES; PRATES, 2007).
Segundo Marx e Engels (1845-1846/1993), na prtica que
o homem deve mostrar a verdade e o poder do seu pensamento.
Para Cury (1986, p. 44), uma teoria sem prtica perde o sentido e
uma prtica sem teoria fica cega ou caolha.

80

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

A concepo ampliada de trabalho, sua


centralidade e o processo de alienao
O trabalho, na concepo marxiana, toda a produo
humana. Em qualquer forma de sociedade o homem precisa
trabalhar, pois atravs do trabalho que ele domina a natureza
criando instrumentos que facilitem o seu processo de desenvolvimento, desde os primrdios de sua evoluo. Ao trabalhar, o
homem transforma a matria-prima, ou seu objeto de trabalho, e
ao mesmo tempo se transforma no processo, ou seja, desenvolve-se enquanto sujeito social, construindo, a partir de condies
objetivas e de sua ao sobre elas, a sua subjetividade.
A partir do trabalho o homem desenvolve processos
sociais porque o trabalho pressupe relaes sociais e se vale de
tudo o que foi socialmente construdo anteriormente pelo prprio homem. No por outra razo que Marx salienta, desde suas
obras de juventude, que a histria social (das aes e relaes
humanas) nada mais do que a histria do trabalho humano.
A centralidade da categoria trabalho e sua articulao
com a categoria classe social so fundamentais para explicar o
modo de produo capitalista e suas contradies insuperveis,
porque so constitutivas desse modo de produo. A caracterizao marxiana dos diferentes modos de produo tem na relao
trabalho x apropriao do trabalho por uma classe o seu ncleo
central. A luta de classes historicamente estabelecida demarca as
formas como o homem se organizou para produzir e os processos
hegemnicos oriundos dessa relao, que so condicionados pelo
primeiro.
O trabalho sempre produz valor de uso, logo, qualquer trabalho mediado pelo valor, entendido aqui como produo que
atende a necessidades humanas e vale destacar que no s de
subsistncia ou proteo, mas simblicas e estticas. Mas a criao do valor no sentido marxiano Marx (1867/1989) usa simplesmente o termo valor para designar o valor de troca uma

Captulo 4

81

caracterstica da sociedade capitalista, para tanto foi preciso que


a sociedade burguesa abstrasse o trabalho concreto, subsumindo
suas qualidades, num equivalente quantitativo. O trabalho abstrato uma criao do mundo burgus, mas o trabalho ontolgico ao homem em qualquer forma social (PRATES, 2012).
Conforme Marx esclarece na obra O Capital (1867/1989, p.
28), o processo de trabalho pode ser configurado como
[...] atividade dirigida com fim de criar valores-de-uso,
de apropriar os elementos naturais s necessidades
humanas, condio necessria do intercmbio material entre o homem e a natureza, condio natural
eterna da vida humana, sem depender, portanto, de
qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas
as suas formas sociais.

Qualquer trabalho segundo Marx se desenvolve atravs de


uma cadeia produtiva que vai do sujeito produtor que exterioriza
suas energias fsicas e mentais e realiza um atividade transformando a matria-prima e objetivando-se naquilo que produz. Ao
transformar o objeto sobre o qual realiza o trabalho, o homem
tambm se transforma.
A Figura 1 que segue mostra de modo esquemtico o movimento da cadeia produtiva que, ver-se- mais adiante, capturado
no modo de produo capitalista pelo processo de alienao.
Figura 1 O processo desenvolvido na cadeia produtiva

A CADEIA PRODUTIVA
Sujeito exteriorizao realizao objetivao
Produtor energia o fazer o fazer
fsica e mental como processo como resultado
que transforma produto
Fonte: Figura elaborada pela autora com base em Marx (1867/1989).

Segundo Marx (1867/1989, p. 202), so componentes


desse processo: 1) a atividade adequada a um fim, isto o prprio trabalho; 2) a matria a que se aplica o trabalho, o objeto de
trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho.

82

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

E esclarece o autor que os meios de trabalho so uma


coisa ou conjunto de coisas que o trabalhador insere entre si
mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre este objeto [...] de acordo com o fim que tem em
mira (MARX, 1867/1989, p. 202) e complementa esclarecendo
que embora os meios no participem diretamente do processo de
trabalho, quando no se conta com eles o trabalho fica total ou
parcialmente impossibilitado de concretizar-se (p. 205). O produto do trabalho um valor de uso. O trabalho est incorporado
ao objeto sobre o que atuou [...]. Ele teceu e o produto um tecido
[...]. Meio e objeto de trabalho so meios de produo e o trabalho
trabalho produtivo (p. 205).
Qualquer trabalho pressupe, portanto: Planejamento:
[...] ele figura na mente sua construo antes de transform-la em
realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado
que j existia idealmente na imaginao do trabalhador (MARX,
1867/1989, p. 202); Gesto e Finalidade:
O trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas, de
arranc-las de sua inrcia, de transform-las de valores-de-uso possveis em valores-de-uso reais e efetivos.
O trabalho, com sua chama, delas se apropria [...] e de
acordo com a finalidade que o move, lhes empresta
vida para cumprirem suas funes (MARX, 1867/1989,
p. 207-208).

Consumo: O trabalho gasta seus elementos materiais,


seu objeto e seus meios, consome-os, um processo de consumo.
Trata-se de consumo produtivo que se distingue de consumo
individual [...].
Quando seus meios (instrumental) e seu objeto (matrias-primas etc.) j so produtos, o trabalho consome produtos para
criar produtos ou utiliza-se de produtos para criar produtos
(MARX, 1867/1989, p. 208).

Captulo 4

83

Contudo, a cadeia produtiva no modo de produo capitalista capturada pelo trabalho alienado ou seja, trabalho reduzido a consumo da fora de trabalho pelo capitalista, reduzido a
mercadoria, reduzido a seu carter abstrato, no mais como objetivao humana, mas apenas dispndio de energia, como algo
no qual o homem no mais se reconhece, algo estranho, alheio
que passa a dominar o seu produtor (MARX, 1867/1989; MARX;
ENGELS, 1845-1846/1993).
Os nveis de alienao explicitados por Marx (1867/1989),
no volume 1 da obra O Capital, no captulo relativo ao processo
de trabalho, mostram que esse processo abarca desde as relaes
entre o produtor e o produto por ele produzido at sua relao
com os demais produtores, o que de modo sinttico busca-se
apresentar na Figura 2.
Figura 2 Os nveis de alienao

Produtor ----------- Produto ( no tem acesso ao produto, no se reconhece


naquilo que produz)
Produtor ------------ Processo de produo (no define o que produzir e nem
como produzir)
Produtor --------- Consigo mesmo (trabalho como fardo e no como autorealizao, submete-se a explorao, precarizao, tem sua vida dominada
pelo que criou)
Produtor --------- Outros produtores (substitui a cooperao pela competio)
Fonte: Quadro elaborado pela autora com base em Marx (1867/1989)

O mtodo marxiano
possvel identificar alguns aspectos que particularizam
o mtodo marxiano, o que se passa a pontuar a seguir.
O primeiro deles o seu humanismo e historicismo absolutos. Para Marx, o centro o homem, na sua atividade prtica, cujo
processo de humanizao se d pelo trabalho concreto. Diferente
de Hegel, que parte do Absoluto e a ele retorna, Marx parte do
homem concreto, no do homem pensado e retorna ao homem,
sistematicamente superado na relao com os outros homens.

84

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Marx destaca nos Manuscritos (1844/1993) que o comunismo o naturalismo integralmente evoludo = naturalismo
humanizado, a resoluo autntica do antagonismo entre o
homem e a natureza, entre o homem e o homem (p. 192, grifos do autor). A histria, por sua vez, a histria do trabalho
humano que significa toda a produo e expresso humana,
na concepo marxiana. A histria, numa concepo ampliada e
processual, a chave heurstica para a explicao dos processos.
Outra particularidade do mtodo marxiano o seu materialismo, a sua concreticidade. Escrevem Marx e Engels na Ideologia
Alem (1845-1846/1993) e tambm na introduo obra O Capital
(MARX, 1867/1989, p. 16) que parte-se dos homens em carne e
osso na sua atividade prtica.
A prxima caracterstica que precisa ser destacada a dialtica, o seu movimento como processo, a necessria interconexo de mltiplas dimenses que constituem a totalidade, no a
exaurindo, mas a problematizando de forma interrelacionada. Os
processos de deduo e induo interconectados pelo entendimento e pela lgica dialtica.
Em que pese o fato de alguns autores entenderem que o
processo de anlise e sntese que particularizam o mtodo marxiano como indutivo e dedutivo representa um esvaziamento
das categorias marxistas atribuindo-lhes os contedos empiristas
ou do senso comum (MONTAO, 2013, p. 23). Lefebvre (1991),
importante intrprete da obra marxiana, mostra na sua obra
Lgica Formal / Lgica dialtica, que a lgica dialtica, ou lgica
concreta no rompe com a lgica formal, a apreende e supera,
articulando os dois movimentos de induo e deduo de modo
interconectado.
Segundo Lefebvre (1991), a lgica formal indutiva, parte
de proposies particulares e tenta chegar a concluses gerais
(generalizao); tenta por em forma o pensamento; um dos
momentos da razo, ope extenso (quantidade) e profundidade
(qualidade); parte do entendimento (separao) necessrio, mas

Captulo 4

85

no suficiente, porque unilateral (sem aprofundamento do contedo). Logo, ela no se basta e no basta (p. 170).
Marx s parte do particular, da manifestao aparentemente mais simples, no mtodo de exposio, j a investigao
parte do emprico, do concreto sensvel, imediato, e articula suas
determinaes a partir de totalizaes provisrias, que vo do
particular ao geral e do geral ao particular, mediando expresses
singulares com expresses universais para chegar ao concreto
pensado, por sucessivas aproximaes.
Sem dvida, o carter ontolgico caracterstico de seu
mtodo, o objeto de investigao impe movimentos, a partir dele
emanam categorias explicativas, mas no h como prescindir de
seu carter axiolgico e epistemolgico. Para alm da inteno
de capturar a vida do objeto concreto, o mtodo captura o movimento do real e a ele volta, utilizando categorias tericas que dele
emanam para ampliar a interpretao e a explicao sobre o seu
movimento. E, por fim, o processo de conhecimento, alm de
buscar desocultar as contradies inclusivas que conformam os
fenmenos, sujeitos, organizaes e sociedades, valoriza o processo porque pretende transformar o institudo, a partir da constituio de novos valores e condies objetivas e, nesse sentido,
tambm teleolgico.
O questionrio de 1880, realizado por Marx, dirigido
classe operria francesa para que os prprios sujeitos descrevessem as condies nas quais eram explorados pois segundo Marx
somente eles poderiam convenientemente faz-lo , um bom
exemplo do carter teleolgico das investigaes orientadas para
a transformao. Conforme Lanzardo (apud THIOLLENT, 1987),
o questionrio traz implcito o princpio de um mtodo de trabalho poltico que se encontra na Crtica da Economia Poltica. A
enquete operria conduzida por Marx, mais do que um instrumento exemplarmente elaborado de investigao social, se constituiu numa estratgia de conscientizao e mobilizao, condies
necessrias, embora no suficientes, para qualquer processo de

86

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

transformao social. E conclui Lanzardo (apud THIOLLENT,


1987), destacando a relevncia fundamental do processo, em que
pese a devoluo dos instrumentos terem sido pouco significativas em relao ao nmero enviado: [...] o essencial era que os
questionrios, chegando aos operrios, lhes dessem novas possibilidades de conhecer a maneira pela qual a explorao capitalista funciona (p. 244-245).Conforme Lefebvre (1991), para a
lgica concreta, a teoria emerge da prtica e a ela retorna. A ideia
representa a unidade indissolvel da prtica e da teoria.
O entendimento (Inteligncia) analisa, separa, divide, e
deve faz-lo. A razo une, agrupa, esfora-se por encontrar o conjunto e a relao. Mas a contradio entre o
entendimento e a razo renasce sempre e deve sempre
renascer, e isso porque, incessantemente o entendimento deve separar e a razo unir (LEFEBVRE, 1991,
p. 170).

Estudar um fato, querer conhec-lo , portanto, depois de


o ter discernido, isto isolado, pelo menos parcialmente, restitu-lo num conjunto de relaes, que se estende, paulatinamente a
todo o universo (LEFEBVRE, 1991).
O concreto concreto porque a sntese de muitas
determinaes, isto , unidade da diversidade. Por isso
o concreto aparece no pensamento como o processo de
sntese, como resultado, no como ponto de partida. O
mtodo que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto no seno a maneira de proceder do pensamento
para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como
concreto pensado totalidade concreta (MARX,
1859/1977, p. 229).

O aspecto seguinte a destacar a unidade entre objetividade e subjetividade, quantidade e qualidade, racionalidade e
sensibilidade, particularidade e universalidade, ou seja, o reconhecimento quanto a indissociabilidade, uma vez que os seres
e processos se constituem como unidades dialticas. Na mesma

Captulo 4

87

perspectiva, h o reconhecimento da interelao necessria entre


teoria e prtica, uma se conforma a partir da outra e se qualifica a
partir dessa relao (PRATES, 2003b).
Outro aspecto que caracteriza o mtodo marxiano sua
teleologia (finalidade), j destacada anteriormente, a centralidade
atribuda prxis (prtica com direo social definida, orientada pela teoria) e o seu carter prtico-operacional: no basta
interpretar preciso transformar, enfatiza Marx nas Teses sobre
Feuerbach (MARX; ENGELS, 1845-1846/1993). A perspectiva de
transformao que est presente no conjunto da obra marxiana
se efetiva no s pelas grandes rupturas, mas tambm a partir
de pequenas convulses revolucionrias, expresso utilizada por
Marx na obra A Ideologia Alem, para destacar rupturas processuais de menor envergadura que podem ser provocadas pelo trabalho concreto, a prxis revolucionria, que desvenda os fetiches
e os mascaramentos, que instiga o desenvolvimento de processos sociais emancipatrios e incide sobre o real com clareza de
direo.
Por fim, cabe ressaltar o seu carter revolucionrio, o reconhecimento da possibilidade histrica de superao das contradies constitutivas da natureza humana, das formaes sociais e
do modo de produo. Articulado a esta ltima caracterstica est
o reconhecimento de que os fenmenos so condicionados pelo
antagonismo e pela luta de classes. Marx afirma no Manifesto do
Partido Comunista (1848/1998) que A histria da sociedade at
nossos dias a histria da luta de classes (p. 8), a opo pela
classe trabalhadora , a solidariedade de classe e a necessidade de
a classe operria passar de uma classe em si (dada por sua condio comum de existncia) para uma classe para si (dimenso
poltica/humano genrica, o que requer a conscincia de classe).
Lefebvre (1991) destaca que a lgica concreta utilizada
pelo mtodo marxiano apresenta alguns princpios que so sistematizados no Quadro 1 que segue.

88

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Quadro 1 Princpios da Lgica Dialtica ou Lgica Concreta

Princpio

Explicitao

1. Princpio da
identidade

Os fenmenos se conformam a partir de sua negao


inclusiva contradio dialtica: vida morte, andar no
andar, objetividade subjetividade, indivduo coletivo,
comeo fim.

2. Princpio da
causalidade

Um fato no pode ser isolado, deve ser desdobrado pelo


entendimento e reconstitudo pela sntese/razo dialtica
como totalidade provisria, os fenmenos sociais decorrem
de mltiplas determinaes, devem ser explicados a partir
de sua interconexo, da interao universal.

3. Princpio da
finalidade

Tudo que existe finito, reconhecimento da provisoriedade


de seres, processos, organizaes, estruturas, modos de
produo. Isso significa uma viso de processo, superando a
viso estanque de estados, reconhecimento do movimento,
da existncia de transies, da historicidade.

4. Princpio
da essncia e
aparncia

A manifestao, a aparncia, faz parte da essncia, na


verdade um reflexo da essncia. A expresso ao mesmo
tempo implica e dissimula, oculta e revela, traduz e trai,
logo precisa ser superada pela investigao, pelo processo
de desvendamento. A aparncia apenas um aspecto da
coisa. A matria tem cor e cheiro, mas no so a cor ou o
cheiro.

5. Princpio da
quantidade e
qualidade

No h quantidade que no esteja relacionada a uma


qualidade, nem qualidade que no seja constituda por
elementos quantitativos que lhe so intrnsecos e cuja
alterao altera sua conformao.

Fonte: Quadro sistematizado pela autora a partir de Lefebvre (1991).

Como exemplo de superao da aparncia, Kosk (1989,


p. 54) mostra a anlise de Marx sobre a troca de mercadorias, em
que por trs da aparncia superficial de um fenmeno banal da
vida cotidiana da sociedade capitalista a simples troca das mercadorias existem na verdade profundos e essenciais processos
[...] trabalho mercenrio e a explorao deste.
Escreve Marx (1867/1989, p. 81), na obra O Capital:
A mercadoria misteriosa simplesmente por encobrir as caractersticas sociais do prprio trabalho dos
homens, apresentando-as como caractersticas materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do
trabalho, por ocultar, portanto, a relao social entre os

Captulo 4

89
trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total
ao refleti-la como relao social existente, margem
deles.

A articulao entre quantidade e qualidade fundamental na medida em que as transformaes se do pelo acirramento
das contradies, mas para que isso ocorra necessrio o amadurecimento do processo ou seu desenvolvimento lento e quantitativo, para que possa alterar-se qualitativamente. Os dados que
so contraprova histrica do real se materializam em quantidades e qualidades. No h qualidade que no seja constituda por
quantidades e no h quantidade que no seja relativa a uma qualidade. Na obra O Capital, Marx (1867/1989) explicita magistralmente a articulao entre qualidade e quantidade ao se referir ao
trabalho infantil.
A fabricao de fsforos de atrito data de 1833. [...] A
metade dos trabalhadores so meninos com menos de
13 anos [...]. Essa indstria to insalubre que somente
a parte mais miservel da classe trabalhadora, vivas
famintas etc., cede-lhe seus filhos, crianas esfarrapadas, subnutridas, sem nunca terem frequentado escola.
[...] Entre as testemunhas inquiridas, 270 tinham menos
de 18 anos, 40 tinham menos de 10, 10 apenas 8 e 5
apenas 6. O dia de trabalho variava de 12, 14 e 15 horas,
com trabalho noturno e refeies irregulares. Dante
acharia que foram ultrapassadas nessa indstria suas
mais cruis fantasias infernais (MARX, 1867/1989, p.
279)

E complementa Marx (1867/1989, p. 292):


Ningum pode pensar na quantidade de trabalho que,
segundo o depoimento de testemunhas, realizado por
crianas de 9 a 12 anos, sem concluir irresistivelmente
que no se pode mais permitir que continue esse abuso
de poder dos pais e dos patres [...]. George, de 9 anos
declara Vim trabalhar aqui na sexta-feira passada. No
dia seguinte tive de comear as 3 horas da manh. Por

90

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

isso fiquei aqui a noite inteira. Moro a 5 milhas daqui.


Dormi no corredor sobre um avental e me cobri com um
casaco pequeno.

As principais categorias dialticas


A totalidade mais do que a juno de fatores diversos
sua interconexo porque a unidade dos diversos muda o sentido do todo e da parte, reconhecer o universal no particular
e vice-versa, na verdade so o amplo e o mido simbiotizados,
que so separados provisoriamente apenas para fins didticos,
para melhor explic-los. Porque sempre importante reiterar, a
dialtica marxiana quer explicar, radical, quer ir a raiz dos fenmenos e desvendar as interconexes que os conformam no seu
processo de constituio. parte da totalidade tambm a articulao entre teoria e prtica que se realimentam sucessivamente e
essa prtica concreta, prxis, portanto, considerada critrio de
verdade.
A historicidade ter a histria como chave para o desvendamento dessa constituio, seja de sujeitos, fenmenos, organizaes, porque pela histria, superada uma leitura meramente
cronolgica e centrada em vultos, vista, portanto, a partir de fatos
significativos, podemos verificar como sujeitos e fenmenos se
conformam, em que contextos sociais, econmicos, polticos,
simblicos portanto objetivos e subjetivos.
Historicidade tambm o reconhecimento do movimento,
de que tudo est em curso, em processo, logo, que so provisrios, e esta conscincia da provisoriedade desestabiliza s vezes,
porque se contrape aos espaos conquistados de uma vez para
sempre, nos coloca diante de nossa finitude, e a provisoriedade
no s de sujeitos e fenmenos, mas tambm das estruturas,
j destacava Marx, razo pela qual conclumos por totalizaes
provisrias, articulando totalidade e historicidade. As categorias

Captulo 4

91

dialticas na verdade no podem ser dicotomizadas, elas so profundamente imbricadas (PRATES, 2005).
A contradio o motor desse movimento. Com isso no
se est afirmando que esta ou aquela categoria central, pois so
indissociveis, se h uma categoria central na obra marxiana
a categoria trabalho. Em que pese a importncia do motor, um
motor sem o restante da mquina no teria razo de ser, assim
como de nada serviria um corao sem corpo. Mas por que a contradio motor do movimento? Porque ao negarmos um estado,
uma etapa, uma necessidade, instigamos a reao oposta (a negao da negao), estimulamos a superao, porque a contradio
insuportvel e tendemos a tentar super-la.
A contradio dialtica ao mesmo tempo destruio e
continuidade, oposio que inclui... por essa razo definida
por Lefebvre (1991) como negao inclusiva, para morrer eu preciso estar vivo, e ao viver consumo minha vida, ao viver mais
me aproximo do tempo da morte, exemplifica Lefebvre (1991).
A criana tenta andar, cai e levanta, quer andar, quer alcanar os
objetos, toc-los, para isso precisa locomover-se, quer superar a
dificuldade de deslocamento. A dificuldade de se deslocar a
negao que inclui.
Somos contradio, s na morte ela cessa, ou possvel
que cesse; infelizmente, nesse ltimo caso, no podemos utilizar a prtica como critrio de verdade. Contradio e movimento
so indissociveis e essa unidade j pressupe em si a totalidade,
isso a dialtica que se expressa na vida, lugar de onde a apreendemos para voltar com seus elementos a mesma vida e tentar
explic-la a partir de nossos sentidos tambm provisrios, porque
histricos.
Como explica Lefebvre (1991, p. 43), [...] o humano s
pode se constituir atravs do inumano, de incio a ele misturado para, em seguida, distinguir-se, por meio de um conflito, e
domin-lo pela resoluo deste conflito.

92

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

A base da obra de Marx resume as contradies do modo


de produo capitalista. Conforme assinala Lefebvre (1963, p. 14),
Marx constata, desde suas obras da mocidade, a contradio entre
a libertao do homem frente a natureza, a partir do avano tcnico, e o enriquecimento da sociedade capitalista acarretando a
escravido e o empobrecimento da maior parte desta sociedade. E
a partir dessa relao bsica e essencialmente contraditria que
se constitui o capitalismo: o salrio, a produo da mais-valia.
A nfase dada por Marx ao desvendamento das contradies aparece na introduo de sua obra Contribuio para a
Crtica da Economia Poltica e reiterada na obra O Capital.
Escreve Marx (1867/1989, p. 48):
Assim como no se julga um indivduo pela ideia que
ele faz de si prprio, no se poder julgar uma tal poca
de transformao pela sua conscincia de si; preciso,
pelo contrrio, explicar essa conscincia pelas contradies da vida material, pelo conflito que existe entre
as foras produtivas sociais e as relaes de produo.

A categoria da contradio aparece metodologicamente


em O Capital (MARX, 1867/1989), mostrando o contraponto entre
falsa conscincia e compreenso do fenmeno. Conforme mostra
Kosk (1989, p. 16), Marx apresenta a compreenso conceitual de
aspectos da realidade aos pares:
fenmeno essncia; mundo da aparncia mundo
real; aparncia externa dos fenmenos lei dos fenmenos; existncia positiva ncleo interno, essencial,
oculto; movimento visvel movimento real, interno;
representao conceito; falsa conscincia conscincia real; sistematizao doutrinria das representaes
(ideologia) teoria e cincia.

Segundo Cury (1986, p. 43), a mediao deve ser ao mesmo


tempo relativa ao real e ao pensamento; procura apreender o
fenmeno na articulao de relaes com os demais fenmenos e

Captulo 4

93

no conjunto das manifestaes daquela realidade da qual ele faz


parte, seja como fenmeno essencial ou no. As mediaes abrem
espao para a concretizao das teorias, tornando-se guias das
aes. [...] Sem as mediaes as teorias se tornam vazias e inertes, e, sem as teorias, as mediaes se tornam cegas ou caolhas
(CURY,1986, p. 44).
Para Martinelli (1993, p.136-137), mediaes so categorias instrumentais, a partir das quais a ao profissional ganha
concretude, pois so instncias de passagem, vias de penetrao
no real, expressas atravs do uso de instrumentos, recursos, tcnicas e estratgias.
Como categoria reflexiva e ontolgica, sua construo
(histrica) se consolida com base em operaes intelectuais e
valorativas, apoiadas no conhecimento crtico do real, possibilitado fundamentalmente pela interveno da conscincia
(MARTINELLI, 1993).
Segundo Pontes (1995), a mediao tem papel fundamental no plano metodolgico devido a sua dupla natureza, ontolgica e reflexiva. As mediaes que estruturam (ontolgicas)
devem ser reconstrudas pela razo (reflexivas) para que seja possvel uma compreenso do movimento e constituio do objeto e
para orientar a interveno.

O mtodo de investigao e exposio


Marx demarca diferenas entre o mtodo de investigao
e de exposio, isso demonstra sua preocupao no s com o
processo investigativo que deveria ser intenso e abarcar as mais
diversas formas de manifestao do real reconhecidamente
mvel, contraditrio, mutante. Quanto ao primeiro, relata Marx
(1867/1989, p. 16) no Posfcio da 2 edio de O Capital:
A investigao tem de apoderar-se da matria, em seus
pormenores, de analisar suas diferentes formas de
desenvolvimento, e de perquirir a conexo ntima que

94

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

h entre elas. S depois de realizado sse trabalho,


que se pode descrever, adequadamente o movimento
real. Se isto se consegue, ficar espelhada, no plano
ideal, a vida da realidade pesquisada [...] o ideal no
mais do que o material transposto para a cabea do ser
humano e por ela interpretado.

J o mtodo de exposio deve ter um incio necessrio,


um embrio que ser, ao longo da exposio desdobramento,
complicao das antteses. A anlise dialtica deve ultrapassar
a reflexo acrtica, buscando estabelecer mediaes com a totalidade. A totalidade, esclarece Cury (1986, p. 36), interna os
dados empricos, implica-os e os explica no conjunto das suas
mediaes e determinaes contraditrias.
O mtodo de investigao valoriza a articulao entre
quantidade e qualidade, dados que espelham o contingente de
sujeitos envolvidos e suas expresses. Parte do concreto expresso
no cotidiano, no trabalho, na expresso dos homens em carne
e osso e s depois agrega a opinio dos sujeitos sobre esse concreto. Analisa o contexto no qual os fatos se conformam, buscando
desocultar os mltiplos fatores que os condicionam (econmicos,
sociais, culturais, polticos...). Verifica as relaes existentes entre
os fatos, superando sentidos isolados. Parte da estrutura do contexto presente (descrio crtica) dos elementos que conformam
o fenmeno e faz o movimento de retorno ao passado buscando
a gnese e identificando episdios significativos nesse contexto
histrico (transies) que o marcaram, os ressignificando no processo (movimento de detour), constituindo totalizaes provisrias, por sucessivas aproximaes. Busca desocultar o modo
como os fenmenos se organizaram, se desenvolveram e se transformaram ao longo de sua histria (dinmica do fenmeno), alm
de valorizar o processo e o carter pedaggico da investigao,
como ficou explicitado no modo como Marx interpretou o uso
do questionrio aplicado em 1880 junto aos operrios franceses,
explicitado anteriormente.

Captulo 4

95

Kosk (1989) assim resume as bases do mtodo de investigao marxiano:


1. Minuciosa apropriao da matria, pleno domnio
do material, nele includos todos os detalhes histricos aplicveis, disponveis; 2. anlise de cada forma de
desenvolvimento do prprio material; 3.investigao
da coerncia interna, isto , determinao da unidade
das vrias formas de desenvolvimento. (p. 31)

A pesquisa se vale das mais variadas tcnicas e instrumentos da cincia que possam auxiliar no desocultamento da estrutura e da dinmica do fenmeno (PRATES, 2003b).
No que consiste o mtodo dialtico materialista? Uma
postura, um mtodo de investigao e uma prxis, um movimento
de superao e de transformao. Trplice movimento: de crtica,
de construo do conhecimento novo, e da nova sntese no plano
do conhecimento e da ao (FRIGOTTO, 1991, p. 79).
Quanto ao mtodo de exposio, no Posfcio da 2 edio
de O Capital, Marx (1867/1989, p. 16), aps referir-se ao mtodo
de investigao, explica: S depois de concludo esse trabalho
que se pode descrever, adequadamente, o movimento real, a
vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impresso de uma
construo a priori.
Segundo Kosk (1989, p. 31), o mtodo de exposio, mais
do que uma forma de apresentao, um mtodo de explicitao, graas ao qual o fenmeno se torna transparente, racional, compreensvel (grifo do autor), razo pela qual o mtodo de
exposio assume posio significativamente relevante.
Esclarece Kosk (1989, p. 31) que, diferente do incio da
investigao, quando a problemtica ainda no suficientemente
conhecida, a exposio j resultado de uma investigao e de
uma apropriao crtico-cientfica sobre a matria, portanto, deve
ter um incio mediato, que contm em embrio a estrutura de
toda a obra.

96

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Por essa razo, Marx (1867/1989) inicia O Capital, a partir da anlise da mercadoria, clula da sociedade capitalista, o
embrio de todas as contradies, que durante o desenvolvimento da exposio iro sendo aprofundadas de acordo com
a prpria necessidade da exposio. Segundo Kosk (1989, p.
31-32):
O incio da investigao casual e arbitrrio, ao passo
que o incio da exposio necessrio [...] Sem um
incio necessrio, a interpretao nunca desenvolvimento, explicitao... O mtodo de explicitao no
um desenvolvimento evolucionista, desdobramento,
manifestao e complicaes das antteses, desdobramento da coisa por intermdio das antteses.

Algumas breves consideraes finais


Antes de finalizar, importante ressaltar que em Marx se
evidencia o reconhecimento da necessria interconexo entre
razo e sensibilidade. Os sentidos, segundo Marx (1844/1993)
nos Manuscritos de Paris, assim como a razo, tambm precisam
ser educados. Os sentidos vo perdendo capacidades ao longo
de nosso envelhecimento, por um lado dando provas fsicas da
nossa provisoriedade, mas por outro lado acumulam experincias sensoriais, aprimoram-se pelo exerccio ao longo da vida,
desenvolvem-se mais ou menos aguados de acordo com nossas
condies de existncia.
Aquele que no enxerga por uma deficincia visual geralmente desenvolve audio e tato mais acurados, mas tambm,
teoriza Marx (1844/1993), o olho que no aprende a ver no
enxerga, porque observar no simplesmente olhar, mas destacar aspectos significativos de uma determinada realidade. Para o
homem preso grosseira necessidade, o alimento s a possibilidade de atender a uma necessidade fsica e no espao de prazer
e partilha, sabor, arte culinria, por exemplo.

Captulo 4

97

A impossibilidade de acesso, portanto, a boa msica, a


expresso do esttico, as prticas esportivas, a prtica da participao, enfim, a riqueza material e simblica humana construda
pela humanidade condiciona o desenvolvimento no s de nossa
sade fsica, mas de nossas possibilidades, do desenvolvimento
de nossa humanidade em sentido ampliado, espao em que razo
e sensibilidade se interpenetram.
H sempre uma preocupao de mestrandos e doutorandos em relao mediao do mtodo em suas produes, em
especial ao uso das categorias do mtodo. Mais do que categorias
estanques que articulam resultados de um processo de coleta, as
categorias do mtodo podem no s ser utilizadas para interpretao dos dados, mas precisam ser transversais exposio, que
necessita explicitar a estrutura em que se inscreve o objeto de
estudo, buscar sua gnese e explicar seu movimento, sua dinmica. Portanto, so categorias historicizadas que emanam do real
e a ele voltam para auxiliar a explic-lo. Ao longo desse processo/
movimento, necessrio dar visibilidade s contradies e transformaes, aos mltiplos fatores que condicionam o fenmeno
analisado e que precisam ser problematizados para sua superao
e, por fim, apontar perspectivas no caminho da transformao,
porque o carter teleolgico do mtodo, reiteramos, tambm
uma de suas caractersticas centrais (PRATES, 2003a).
A riqueza e complexidade da obra marxiana fazem com
que diversas interpretaes sejam realizadas acerca de suas contribuies, o que inclui a crtica quanto mediao mecnica de
contedos por ele desenvolvidos ou ressignificados ou, ainda, a
utilizao reducionista de seu mtodo. Observamos que autores
cuja mediao da obra de Marx acrescida de contribuies, sem
dvida muito relevantes, de intrpretes diversos, pensadores que
desenvolvem suas teorias e criam novas mediaes para explicar
o desenvolvimento de processos que, poca de Marx, ainda no
haviam amadurecido, enfatizam esse ou outro aspecto, essa ou
aquela categoria. Notadamente, no Servio Social, so influncias

98

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

que decorrem especialmente das produes de Lukcs, de


Gramsci e de Lefebvre.
Para concluir, retoma-se duas citaes do pensador alemo profundamente atuais que foram utilizadas para fechar a oficina sobre o Mtodo em Marx, realizada em Natal. Sua utilizao
tinha por intuito dar visibilidade atualidade do pensamento
marxiano e instigar a reflexo sobre o tempo presente.
Segundo Marx (1871/1999, p. 95),
A civilizao e a justia da ordem burguesa aparecem em todo o seu sinistro esplendor onde quer que
os escravos e os prias dessa ordem ousem rebelar-se
contra os seus senhores. Em tais momentos, essa civilizao e essa justia mostram o que so: selvageria sem
mscara e vingana sem lei. Cada nova crise que se produz na luta de classes entre os produtores e os apropriadores faz ressaltar esse fato com maior clareza.

Em tempos de capitalismo manipulatrio, quando a vida


do conjunto dos trabalhadores reduzida a uma vida just in time
(ALVES, 2011, 2014), nosso desafio urgente contribuir, com
nossos estudos, pesquisas, intervenes e organizaes, para desfetichizar as orgias do capital e estimular o desenvolvimento
de processos sociais emancipatrios no caminho de novas formas
de sociabilidade, nas quais essas orgias no sejam naturalizadas,
e ns, homens e mulheres em carne e osso, trabalhadores, possamos desenvolver radicalmente nossa humanidade.

Referncias
ALVES, G. Trabalho e subjetividade. So Paulo: Boitempo, 2011.
ALVES, G. Trabalho e Neodesenvolvimentismo. So Paulo: Praxis, 2014.
CURY, C. R. J. Educao e contradio. So Paulo: Cortez, 1986.

Captulo 4

99

FRIGOTTO, G. O enfoque da dialtica materialista histrica na pesquisa


educacional. In: FAZENDA, Ivani. (Org.). 2. ed. Metodologia da
pesquisa educacional. So Paulo: Cortez, 1991. p. 69-90.
KOSK, K. Dialtica do Concreto. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
LEFEBVRE, H. O marxismo. 3. ed. So Paulo: Difuso Europeia, 1963.
LEFEBVRE, H. Lgica formal e lgica dialtica. 5. ed. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1991.
MARTINELLI, M. L. Notas sobre mediaes [Mimeo]. Pontifcia
Universidade de So Paulo, So Paulo, Brasil, 1993.
MARX, K. Manuscritos Econmico-Filosficos. Lisboa: Edies 70,
1993. (Texto original escrito em 1844).
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alem. 9. ed. So Paulo: Hucitec,
1993. (Texto original escrito em 1846).
MARX, K. Contribuio para a crtica da Economia Poltica. So Paulo:
Mandacaru, 1977. (Texto original publicado em 1859).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 1). Rio de
Janeiro: Bertrand, 1989. (Texto original publicado em 1867).
MARX, K. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Contraponto,
1998. (Texto original publicado em 1848).
MARX, K. A guerra civil na Frana. Ridendo Castigat Mores. 1999.
(Texto original publicado em 1871). Disponvel em: <http://www.
ebooksbrasil.org/eLibris/guerracivil.html>.
MARX, K. Misria da Filosofia. So Paulo: Expresso Popular, 2009.
(Texto original publicado em 1847)
MARX, K. A questo judaica. Rio de Janeiro: Achiam, s/d. (Texto
original publicado em 1844)

100

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

MENDES, J. M. R.; PRATES, J. C. Algumas reflexes acerca dos


desafios para a consolidao das Diretrizes Curriculares. Revista
Temporalis, v. 14, p. 175-197, 2007.
MONTAO, C. Breves anotaes sobre o mtodo e a teoria em Marx. In:
MONTAO, C.; BASTOS, R. L. (Org.). Conhecimento e sociedade:
Ensaios marxistas. So Paulo: Outras expresses, 2013. p. 11-28.
NETTO, J. P. Introduo ao estudo do mtodo em Marx. So Paulo:
Expresso Popular, 2011.
PONTES, R. Mediao e Servio Social. So Paulo: Cortez, 1995.
PRATES, J. C. O planejamento da pesquisa social. Revista Temporalis, v.
7, p. 123-143, 2003a.
PRATES, J. C. Possibilidades de mediao entre a teoria marxiana e o
trabalho do Assistente Social. 2003b. Tese (Doutorado em Servio
Social) Programa de Ps-graduo em Servio Social, Pontifcia
Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
PRATES, J. C. O mtodo e o potencial interventivo e poltico da pesquisa
social. Revista Temporalis, v. 9, p. 131-146, 2005.
PRATES, J. C. O mtodo marxiano e o enfoque misto na pesquisa: uma
relao necessria. Revista Textos e Contextos, v. 1, p. 116-128,
2012.
THIOLLENT, M. Crtica Metodolgica, Investigao Social e Enquete
Operria. 5. ed. So Paulo: Polis, 1987.

Captulo 5

Marxismo e transformao social:


tendncias e contratendncias
Carlos Montao

Transformao: donde e para onde?

ensar um processo de transformao social exige, particularmente para Marx e para a tradio marxista, a clara caracterizao do ponto de partida, aquilo que se quer transformar (o
capitalismo), e do ponto de chegada, a sociedade que se pretende
construir sobre aquela que findou (o socialismo, como caminho
para o comunismo). Vejamos ento a importncia do conhecimento cientfico e crtico do Modo de Produo Capitalista (MPC)
e os caminhos que tem seguido boa parte da intelectualidade na
construo de um conhecimento fragmentrio, desengajado e
acrtico.

O ponto de partida: o capitalismo contemporneo


A importncia do conhecimento crtico-cientfico do MPC e a
tendncia ao conhecimento fragmentado, desengajado e acrtico
Transformar a realidade social, o Modo de Produo
Capitalista (MPC), promovendo uma revoluo da ordem social
vigente, exige um profundo e crtico conhecimento cientfico da realidade contempornea, do sistema capitalista, seus

102

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

fundamentos, estrutura e movimento, sua gnese e desenvolvimento, suas leis e contradies dialticas, em constante movimento histrico.
Assim, o mtodo de Marx, o Materialismo Histrico e
Dialtico, na medida que se orienta para a transformao social,
tem por condio e exigncia a fiel reproduo intelectual do
movimento da realidade: o Modo de Produo Capitalista, a
Ordem Burguesa. Marx aprende com Hegel que a dialtica da realidade social, da histria, do Ser Social, significa, em primeiro
lugar, que as coisas, a realidade, esto em constante movimento: o
movimento constitutivo da realidade. Outra condio da dialtica presente na realidade a contradio: todo processo real, em
constante movimento, opera-se a partir da contradio, da afirmao e negao; a contradio o motor do movimento, num
processo de tese, anttese e sntese. Aqui aparece o conceito de
superao dialtica, sendo esta a negao do que era, a conservao de algo essencial da forma anterior, e a elevao a um nvel
superior do novo Ser (KONDER, 2003, p. 26). Finalmente, a dialtica contida na realidade mostra a articulao mtua dos fenmenos numa totalidade, numa relao entre o singular, o particular
e o universal.
Porm, o que se verifica na atualidade a fora, nas
anlises da realidade contempornea, de vises fragmentadas,
fundadas nas racionalidades formal-abstrata (positivista e neopositivista) e ps-moderna. Se na produo e divulgao de conhecimento sobre o real o intelectual tem papel destacado, ele (e
particularmente o cientista social) tem tido em geral uma viso
fragmentada do real e, portanto, tem desenvolvido e reproduzido, tendencialmente, um conhecimento fragmentado.
Assim, o intelectual (orgnico ou no) j nasce, no presente, imbudo de uma tendencial cultura positivista (enquanto
principal expresso da razo formal-abstrata), que visa segmentao da realidade em esferas sociais (objetos especficos), constituindo, a partir desta segmentao, campos de saber e disciplinas

Captulo 5

103

sociais especficas. o que Lukcs chama de Cincias Sociais


Particulares1.
Surge o conhecimento fragmentado em lugar da perspectiva de totalidade; surgem as teorias da mudana substituindo a
perspectiva de revoluo.
Para isso, a forma de conhecimento produzido sobre essa
histria natural da sociedade deve ser fragmentria e fenomnica: surgem e se desenvolvem as cincias sociais particulares
como disciplinas que repartem entre si o conhecimento (parcial
e fenomnico) dos retalhos de realidade, e o conhecimento fragmentrio da realidade dissociado da interveno, tomada como
uma manipulao corretiva de variveis dessas fraes do real
(ou realidades).
Se o positivismo foi a racionalidade hegemnica, dada a
sua funcionalidade com o tipo de conhecimento compatvel com
os interesses do capital, hoje o pensamento ps-moderno apresenta-se como nova racionalidade hegemnica, que no apenas
fragmenta o real em esferas isoladas, mas que pulveriza a realidade, retirando sua objetividade, transformando agora o real em
realidades vividas, sentidas (HARVEY, 1993; JAMESON, 1996).
O intelectual (o cientista social particularmente), para
fugir dessa armadilha, dessa gaiola de ferro positivista e/ou
ps-moderna, deve incorporar e desenvolver: 1) uma viso de
totalidade, 2) um pensamento crtico, 3) uma perspectiva de
transformao social. E para tal transformao, deve se apropriar dos fundamentos, contradies e movimento do Modo de
Produo Capitalista, na sua gnese e desenvolvimento histrico.
Pois, como recupera Netto (2009, p. 3), segundo Togliatti: quem
erra na anlise, erra na ao; acrescentando que
para aqueles que se propem como tarefa a supresso
da ordem do capital e a ultrapassagem da sociedade

A este respeito, ver Lukcs (1992) e Coutinho (1994).

104

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

burguesa, o conhecimento verdadeiro da realidade


social , como Lukcs esclareceu desde 1923, uma
questo de vida ou de morte. Isso equivale a dizer que,
para os revolucionrios, a formulao de projetos e o
estabelecimento de estratgias no marco das lutas de
classes supem o mximo conhecimento possvel da
dinmica social concreta.

Como afirmou Hobsbawm, o marxismo [...] um mtodo


para, ao mesmo tempo, interpretar e mudar o mundo (1987, p.
12). , portanto, um conhecimento para atingir os fundamentos,
a essncia do MPC. um conhecimento para a transformao
social.
A importncia da escolha e priorizao das categorias de anlise
Se o mtodo de Marx (e dos marxistas ortodoxos) pretende
se apropriar da realidade para transp-la ao pensamento, ele deve
se apropriar das categorias existentes na realidade. Conforme
Lukcs (1978/2012, p. 297),
as categorias no so elementos de uma arquitetura hierrquica e sistemtica, mas, ao contrrio, so, na realidade, formas de ser, determinaes da existncia,
elementos estruturais de complexos relativamente
totais, reais, dinmicos, cujas inter-relaes dinmicas
do lugar a complexos cada vez mais abrangentes.

Essas categorias, na concepo marxiana, so do pensamento por serem constitutivas (e extradas) da realidade. As
categorias empregadas na anlise dos fatos condicionam o tipo
de conhecimento produzido, o alcance da compreenso sobre a
realidade. As categorias funcionam, para o cientista social, como
o microscpio ou o reagente para o bilogo2. O tipo de categoria

Conforme esclarece Marx, no Prefcio 1 edio de O Capital, na anlise das


formas econmicas, no se pode utilizar nem microscpio nem reagentes qumicos. A capacidade de abstrao substitui esses meios (1867/1980, I, p. 4).

Captulo 5

105

empregado para o conhecimento da realidade social, como o tipo


de microscpio ou de reagente na pesquisa micro-orgnica, vai
levar a conhecimentos diferentes.
No a mesma coisa o conhecimento alcanado sobre a
realidade contempornea a partir de umas ou outras categorias
de anlise: contradio ou disfuno, antinomias e harmonia;
explorao ou excluso, ou at opresso; classe social (fundada
no processo de produo), ou classe rica e pobre (ou alta, mdia
e baixa), ou ainda cidadania ou povo; lutas de classes ou colaborao e parceria entre classes; imperialismo ou globalizao;
sociedade civil ou terceiro setor; transformao ou mudana etc.
Por qu? Porque a contradio trata do movimento, da
transformao, mas a harmonia ou a disfuno pressupe
um sistema perfectvel mas no em transformao; a explorao
faz referncia relao contraditria entre as classes fundamentais no processo de produo do MPC (capital e trabalho), e sua
eliminao supe a superao da ordem capitalista, enquanto a
excluso remete a qualquer forma de desigualdade, e sua resoluo passa pela incluso (dentro da ordem social vigente); a
classe social (fundada no processo de produo) remete relao contraditria entre os dois sujeitos fundamentais da produo capitalista (donos de fora de trabalho e donos de meios de
produo), entretanto, a noo de classe como ricos ou pobres
trata de uma diferena (de poder aquisitivo) mas no de uma contradio, e ainda, enquanto a classe mostra a contradio fundada
na diviso social do trabalho, o povo e a cidadania a escondem;
as lutas de classes remetem a um processo de conflito (manifesto
ou latente) que enfrenta as classes antagnicas, mas a colaborao ou parceria induz o ocultamento de tais antagonismos, de
tais contradies, supondo a comunho de interesses; o imperialismo remete a uma ordem mundial marcada pelo monopolismo,
pela fuso do capital bancrio e industrial, pelo desenvolvimento
desigual e combinado (pases de centro e periferia, em relao de
dependncia), sendo que a chamada globalizao esconde um

106

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

processo histrico, o naturaliza e oculta o sujeito; a sociedade


civil remete (mesmo com tratamentos diferentes) a uma esfera
da totalidade social saturada de contradies e lutas, enquanto
o chamado terceiro setor supe sua desarticulao da totalidade e sua homogeneidade e harmonia; a transformao significa a superao estrutural da ordem burguesa, do MPC, mas as
mudanas remetem a alteraes dentro do sistema vigente.
As categorias representam o arsenal heurstico, as ferramentas de pesquisa, apontando onde e o que vai se observar da
realidade. Portanto, o conhecimento alcanado depende do tipo
de categorias observadas.
A importncia da crtica radical
Ainda, para Marx, o papel da crtica central no processo de conhecimento. Tal assim que, como j observamos, os
fundamentos da obra marxiana sustentam-se na crtica da economia poltica inglesa, na crtica da filosofia alem e na crtica
do socialismo utpico francs. Ainda mais, nos textos de Marx,
a crtica sempre o fundamento central; vejamos: Crtica da
Filosofia do direito de Hegel (1843); A Sagrada Famlia ou a
Crtica da Crtica Crtica contra Bruno Bauer e consortes (1845,
com Engels); A Ideologia Alem. Crtica da mais recente filosofia alem em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e
do socialismo alemo em seus diferentes profetas (1845-6, com
Engels); Para a Crtica da Economia Poltica (1857); O Capital.
Crtica da Economia Poltica (1867); Crtica ao Programa de
Gotha (1875).
Mas, se a crtica central no pensamento marxiano, no
processo de conhecimento do real, no tipo de envolvimento
de Marx com a ordem social burguesa, de que crtica estamos
falando?
H, muito frequente, um uso do termo crtica como rejeio
ser crtico a algo, nesse entendimento, significar sua rejeio,

Captulo 5

107

seu descarte. H tambm uma crtica restauradora aquela que,


rechaando o moderno, o novo, prope a reutaurao do antigo.
H uma crtica moralista aquela que se funda em juizos de
valores, em avaliaes morais. Existe uma crtica doutrinria
quando se rejeita tudo o que esteja por fora de certa doutrina, de
certo dogma (como a religio). Pode se encontrar a crtica romntica, ou ingnua quando a crtica enfrenta um fenmeno ou discurso, mas sem conseguir captar os fundamentos destes, apenas
manifestando o descontentamento, a partir do senso comum, ou
deslizando para a crtica moral. Verificamos, como uma expreso da anterior, uma forma de crtica pontual centrada em processos isolados, sem conexo com as estruturas sociais, com os
demais fenmenos, certamente tratando das consequncias e no
das causas, e sem uma perspectiva de totalidade.
Para Marx, a crtica no tem qualquer relao com as anteriores: a crtica radical. A crtica (radical) no pode ser rejeio,
pois consiste na incorporao e superao dialtica. Ela jamais
pode ser doutrinria ou moralista, pois consiste no conhecimento
que apreende, no pensamento, e fielmente, o movimento efetivo
da realidade. A crtica (radical) no tem uma orientao restauradora, pois visa a transformao histrica orientada pelo progresso
e pela emancipao humana. E, ainda, a crtica no pode ser
romntica, ingnua, superficial ou pontual, pois, na perspectiva
de totalidade, deve captar os fundamentos dos processos, a essncia dos fenmenos, chagando raiz da realidade social. Trata-se
de uma crtica radical.
Segundo nosso autor, a crtica (radical) uma ferramenta
no processo de conhecimento, uma arma, pois, a crtica no
paixo da cabea, mas a cabea da paixo [...] uma arma, sem
ser, a crtica, um fim em si, mas apensas um meio (MARX,
1843/2005, p. 147). Para ele, preciso reconhecer:
que a arma da crtica no pode substituir a crtica das
armas, que o poder material tem de ser derrubado
pelo poder material, mas a teoria converte-se em fora

108

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

material quando penetra nas massas. A teoria capaz


de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem,
e demonstra-se ad hominem logo que se torna radical.
Ser radical agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o
homem, a raiz o prprio homem. [...]. No basta que o
pensamento procure realizar-se; a realidade deve igualmente compelir ao pensamento (MARX, 1843/2005, p.
151-152).

Assim, a anlise (crtica) marxista constitui uma poderosa


arma para a transformao social.

O ponto de chegada: o socialismo como


caminho para o comunismo
Se a anlise crtico-cientfica do MPC fundamental para
sustentar o processo de superao da ordem burguesa imprescindvel o conhecimento daquilo que ser quer transformar ,
devemos tambm apontar que to fundamental a clara determinao daquilo aonde quer se chegar, da sociedade que quer se
construir nas runas da sociedade capitalista: o socialismo (fundado na Ditadura do Proletariado e no princpio de a cada um
segundo sua contribuio) como caminho para o comunismo
(fundado numa sociedade sem classes, sem Estado, de livres produtores associados, e no princpio de a cada um segundo suas
necessidades, de cada um segundo suas possibilidades).
No entanto, tambm neste caso, o que se observa a
apresentao, como alternativas a realidade atual, de noes
vagas de uma sociedade que nada esclarecem sobre seus fundamentos, sobre se tratar de mudanas dentro da ordem ou de
transformaes da mesma, ou at de ilhas ou experincias localizadas convivendo (e preservando) o MPC. Exemplos disso: Um
Outro Mundo Possvel (consigna do Frum Social Mundial);
o Socialismo do Sculo XXI (caracterizao dos processos
que orientam os governos na Venezuela, Bolvia e Equador); a

Captulo 5

109

Economia Solidria (proposta sustentada na ideia de P. Singer


de constituir um mercado no-capitalista no interior do capitalismo); a descolonizao do Mundo da Vida (caminho habermasiano que pretende a emancipao ao afastar a Sociedade Civil
das esferas governamental e econmica) etc.

Os fundamentos marxianos da transformao social


Ao tratar dos processos que podem levar a um processo
de transformao social, Marx, no seu Prefcio Crtica da
Economia Poltica (redigido em 1859), afirma:
Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as foras
produtivas materiais da sociedade entram em contradio com as relaes de produo existentes, ou, o
que no mais que sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade no seio das quais elas se haviam
desenvolvido at ento. De formas evolutivas das foras produtivas que eram, essas relaes convertem-se
em entraves. Abre-se, ento, uma poca de revoluo
social. A transformao que se produziu na base econmica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente
toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformaes, convm distinguir sempre a
transformao material das condies econmicas de
produo que podem ser verificadas fielmente com
ajuda das cincias fsicas e naturais e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas, em
resumo, as formas ideolgicas sob as quais os homens
adquirem conscincia desse conflito e o levam at o
fim. [...] Uma sociedade jamais desaparece antes que
estejam desenvolvidas todas as foras produtivas que
possa conter, e as relaes de produo novas e superiores no tomam jamais seu lugar antes que as condies materiais de existncia dessas relaes tenham
sido incubadas no prprio seio da velha sociedade. Eis
porque a humanidade no se prope nunca seno os
problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a

110

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

anlise, ver-se- sempre que o prprio problema s se


apresenta quando as condies materiais para resolv-lo existem ou esto em vias de existir. [...]. As relaes
de produo burguesas so a ltima forma antagnica
do processo de produo social, [...]; as foras produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa
criam, ao mesmo tempo, as condies materiais para
resolver esse antagonismo. Com essa formao social
termina, pois, a pr-histria da sociedade humana
(MARX, 1859/2008, p. 47-48).

Temos que, primeiramente, a poca de transformao


social se abre quando as foras produtivas materiais da sociedade
(o desenvolvimento dos meios e condies de produo) entram
em contradio com as relaes de produo existentes (as relaes que fundam o MPC: a relao de compra e venda de Fora
de Trabalho, a relao salarial, a relao de explorao), ou com a
propriedade privada dos meios de produo.
Em segundo lugar, transforma-se a base material, as relaes de produo, levando a uma transformao na superestrutura
(jurdico e poltica), o Estado; pois, como diz Engels, o Estado,
o regime poltico, o elemento subordinado, e [...] as relaes
econmicas, o elemento dominante (MARX; ENGELS, 1975, p.
111); mesmo que essa determinao econmica no seja absoluta
e unilateral3.
Por outro lado, uma sociedade jamais desaparece antes
que estejam desenvolvidas todas as foras produtivas que possa
conter (MARX, 1859/2008), antes de que se esgote sua capacidade
de desenvolvimento ou de reestruturao; e ainda, as novas (ou
emergentes) relaes de produo jamais se tornam hegemnicas,

Em carta a Bloch, Engels afirma: segundo a concepo materialista da histria,


o fator que em ltima instncia determina a histria a produo e a reproduo da vida real. Nem Marx nem eu temos afirmado nunca mais do que isto. Se
algum tergiversa dizendo que o fator econmico o nico determinante, converter aquela tese em uma frase vazia, abstrata, absurda (MARX; ENGELS, 1975, p.
520).

Captulo 5

111

antes que se consolidem as novas condies materiais, a nova


ordem social.
Isso posto, podemos entender que dois so os fundamentos para que se abra um processo de transformao social, de
revoluo; um objetivo e um subjetivo:
1)

o esgotamento do antigo Modo de Produo;

2)

a constituio de um sujeito que ter como misso promover o processo de transformao.

O esgotamento do Modo de Produo


A anlise do primeiro fundamento para a transformao
social, o objetivo, exige a anlise da dinmica contempornea
capitalista a partir dos seus prprios fundamentos estruturais.
Conforme demonstrou Marx (1894/1980b), o MPC gesta-se, e se desenvolve, contendo uma contradio imanente e ineliminvel sua estrutura e dinmica: a saber, a contradio entre
a socializao da produo e a apropriao privada do produto
cada vez maior nmero de trabalhadores esto envolvidos na
produo de mercadorias, mas estas so majoritariamente apropriadas pelo capitalista (a partir da explorao), gerando a acumulao ampliada de capital. Essa a contradio fundante entre
capital (donos dos meios fundamentais de produo e reproduo) e trabalho (produtores de riqueza, que lhe expropriada
pelo capital): quanto mais o trabalhador produz riqueza, maior
a explorao e acumulao capitalistas; quanto maior riqueza
socialmente produzida, maior riqueza acumulada por um lado
(pelo grande capital) e maior pobreza (absoluta ou relativa) por
outro (do trabalhador, empregado ou desempregado)4.

Ver Marx, O Capital (1894/1980b), especialmente os captulos XXX a XXXII do


Livro 3.

112

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Em articulao com isso, com o desenvolvimento das foras produtivas (a partir das novas formas de organizao da produo e do desenvolvimento tecnolgico, apropriado pelo capital),
ocorrem no capitalismo a tendncia substituio da fora de
trabalho pela maquinaria alterando a composio orgnica do
capital, ou seja, a relao entre capital constante (meios de produo) e capital varivel (fora de trabalho), e gerando uma cada
vez maior superpopulao relativa desempregada, expulsa total
ou parcialmente do processo de produo (Marx, 1867/1980a)5,
e a tendncia queda da taxa de lucro (Marx, 1894/1980b)6.
Ou seja, quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais
tende o capital a se acumular, mais tende a fora de trabalho
pauperizao (absoluta ou relativa), maior a tendncia constituio de um excedente de fora de trabalho (aumentando o
desemprego) e a taxa de lucros tende em perodos a diminuir.
Temos aqui uma lei geral da acumulao capitalista que, considerada a longo prazo, intercala perodos de crescimento acelerado, seguidos de fases de crescimento desacelerado, convulses
e estagnao, derivando em crises econmicas estruturais e
cclicas.
Dessa forma, podemos claramente visualizar duas determinaes centrais quando analisamos o papel das crises nos
ciclos de produo e reproduo capitalistas: a) em primeiro
lugar, a crise um resultado, uma consequncia intrnseca do
prprio desenvolvimento capitalista com a superproduo e
a superacumulao geradas num perodo de expanso, chega-se
a um momento em que a capacidade de produo no encontra
possibilidades de escoamento no saturado mercado de consumo
(crise de superproduo), nem condies de reinvestimento do

Ver Marx, O Capital (1867/1980a), especialmente os captulos XIII e XXIII do


Livro 1.

Ver Marx, O Capital (1894/1980b), especialmente os captulos XIII, XIV e XV, do


Livro 3.

Captulo 5

113

total do volume de capital acumulado em atividades lucrativas (crise de superacumulao); b) em segundo lugar, a crise
a causa, o motor, da recuperao econmica e da retomada da
taxa de lucro com a reduo dos estoques, com a diminuio
dos salrios e o aumento do desemprego, os custos de produo
caem, os preos tendem a subir, retoma-se a taxa de mais-valia
(aumenta a explorao intensiva) e a taxa de lucro; o reinvestimento nas atividades produtiva e comercial retoma os nveis de
lucratividade esperados (MANDEL, 1977, p. 326).
Como entende Mszros (1997), a forma tpica de crise
sob o sistema capitalista a crise conjuntural [cclica e peridica]
que, como dizia Marx, se compara tempestade tropical; porm,
no ltimo quarto do sculo XX, o que vimos foi a crise estrutural do capitalismo, determinada pela ativao de um conjunto de
contradies e limites que no podem ser superados pelo prprio
sistema (p. 149). que com a interveno do Estado no haver
grandes tempestades e crises violentas, mas frequentes precipitaes por todas as partes; assim, estas podem se tornar a normalidade do capitalismo organizado. Para o autor, seria
um erro interpretar a ausncia de flutuaes extremas
ou de tempestades de sbita irrupo, como evidncia de um desenvolvimento saudvel e sustentado, em
vez da representao de um continuum depressivo,
que exibe as caractersticas de uma crise cumulativa,
endmica, mais ou menos permanente e crnica, com
a perspectiva ltima de uma crise estrutural cada vez
mais profunda e acentuada (MSZROS, 2002, p. 697).

A novidade levantada por Mszros, para caracterizar


a atual crise capitalista, significa que o sistema capitalista no
pode mais se recuperar da crise, tendo entrado numa fase de crise
estrutural e cumulativa.
Segundo Mszros (1997), uma das contradies (e limitaes) fundamentais do sistema capitalista a sua necessidade de
dissipao e destruio da riqueza produzida. Para o capitalista,

114

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

que visa ao valor de troca das mercadorias (e no o diferencia ou


o superpe ao seu valor de uso), o consumo igual destruio
(vide a indstria blica, os produtos descartveis e, por que no, a
indstria informtica); da a lei da taxa decrescente de utilizao
dos valores de uso das mercadorias, isto , a tendncia dos bens,
servios, maquinarias e fora de trabalho, se tornarem [no sistema
capitalista atual] suprfluas em propores crescentes.
Assim, Mszros (1997) afirma que um sistema de reproduo no pode se autocondenar mais enfaticamente do que
quando atinge o ponto em que as pessoas se tornam suprfluas
ao seu modo de funcionamento (p. 152). Dado, assim, o carter
cumulativo dessa crise estrutural/global do capital, baseada na
sua lgica autodestrutiva, aparece, segundo o autor, claramente
que o sistema do capital esgota o curso de seu desenvolvimento histrico (p. 152). A crise do prprio sistema capitalista
(MSZROS, 2007), sendo portanto uma crise terminal.
Parece, ento, contemplada essa condio (o esgotamento
das foras produtivas) para abrir um processo de transformao
social.

O Sujeito de Transformao Social


O segundo fundamento, o subjetivo, a formao do sujeito
que tem a misso de promover a transformao social, merece
um tratamento detalhado. Primeiramente porque objeto de
intensas polmicas no interior da esquerda, e particularmente do
marxismo. Por outro lado porque ao pensarmos os processos de
conscincia/alienao e de organizao poltica verificamos significativos limites. Vejamos.
A indeterminao do sujeito: Pobres; Povo;
Excludos; Multido; setores no monopolistas etc.
Alguns intelectuais enveredam pela procura da inovao, pretendendo encontrar um novo sujeito de transformao,
ou a recaracteriz-lo: o sujeito visto a partir de uma aliana de

Captulo 5

115

setores no monopolistas, que articula trabalhadores e pequenos


e mdios empresrios em aes antimonopolistas) (Boccara, como
expresso do euro-marxismo), viso que leva perda da centralidade da contradio de classe capital/trabalho, deslocada para
uma oposio setor monopolista/no monopolista; o ator da interao comunicativa (que deve descolonizar o Mundo da Vida,
em Habermas), separando a esfera social dos fundamentos contraditrios da dimenso econmica e poltica; a Multido (o
poder das massas contra o imprio, em direo a uma democracia
global, em Hardt e Negri); a Sociedade Civil Organizada; as
Organizao e Movimentos Sociais Identitrios (Boaventura de
Sousa Santos); o povo; o pobre; os excludos etc.
Todas essas propostas de sujeitos, alternativos (ou substitutivos) classe trabalhadora, remetem a um debate polmico,
controvertido, e ainda em aberto.
comum a confuso das categorias explorao e
pobreza (e explorado e pobre), como se fossem sinnimos,
como se o maior grau de explorao significasse um maior grau
de pobreza. Essa frequente confuso deriva de um erro conceitual, e produz equvocos tericos e polticos da maior dimenso.
Aqui confunde-se a classe trabalhadora com o grau de empobrecimento; algo assim como se ser trabalhador e ser pobre fossem
a mesma coisa. Ora, a explorao, conforme apresenta Marx,
remete ao processo mediante o qual o capitalista se apropria da
mais-valia produzida pelo trabalhador; isto , o grau de explorao deriva da quantidade de valor produzido pelo trabalhador e
apropriado (explorado) pelo capitalista; e esse processo nada nos
diz sobre o grau de pobreza absoluta. Inclusive pode-se afirmar
que, em geral, aquele trabalhador que maior mais-valia produz (e
portanto submetido a um maior grau de explorao) perceba um
salrio que lhe permita condies de vida muito acima da mdia
dos trabalhadores. Enquanto, por sua vez, pode-se afirmar que
quem ocupa a base da pirmide social, os mais pobres, sequer
sejam explorados, dada a sua condio de desempregados. As

116

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

categorias de explorao e de pobreza apresentam diferentes


determinaes; a primeira se fundamenta nas relaes de produo (tendo raiz no conceito de classe em Marx), a segunda se percebe no mbito do mercado (vinculada ao conceito de classe em
Weber). O perigo dessa confuso, porm, no s terico, mas
fundamentalmente poltico: confunde-se o sujeito classe trabalhadora com o sujeito pobre; assim, primeiramente, orientando
(focalizando) as aes sociais para o pobre (princpio central da
reforma neoliberal) no lugar do trabalhador, e em segundo lugar,
pensando o sujeito revolucionrio como o pobre e no o trabalhador. H que se registrar que Marx e Engels (1848/1988),
no Manifesto Comunista foram claros e enfticos ao conclamar:
Proletrios do mundo, uni-vos! remetendo contradio de
classes e no a diferena entre ricos e pobres.
Tambm observa-se a hoje comum substituio da categoria explorao pelo generalizante conceito de excluso social.
Assim, os conceitos atuais de Excludo/Includo, tanto
quanto o uso anterior de Marginal/Integrado (e de forma semelhante aos pases desenvolvido/subdesenvolvido), so classificaes sociais nas quais a situao de um no caracterizada a
partir de sua relao com o outro. So classificaes que no consideram os sujeitos em relao e sua situao como produto de tal
relao. Diferente so as categorizaes de Explorado/Explorador,
Dominado/Dominador (e, para os pases, Centro/Periferia), onde,
aqui sim, um sujeito deve sua condio sua relao com o outro,
e no a uma condio individual.
Dessa forma, enquanto o conceito de excluso social mostra o resultado de um processo: o afastamento de um/alguns
indivduo/s de certos bens e servios (materiais, culturais etc.),
ou de parcelas do poder (nas decises polticas), esse conceito,
no entanto, no mostra o processo em si, as causas desse processo, dessa excluso. O qualifica, mas no o explica. A forma
(sua aparncia) do produto final (a excluso, neste caso) esconde
o processo em si (sua formao e gnese, seus fundamentos,

Captulo 5

117

suas contradies, sua essncia); isto que Marx chamou de


fetichismo (MARX, 1867/1980a). Entretanto, a categoria explorao explica sim o fenmeno, a partir das relaes sociais prprias da sociedade capitalista: a relao entre capital e trabalho,
baseadas na explorao; no s o qualifica, no s o apresenta,
mas essa categoria permite compreender sua gnese, seus fundamentos, a relao social que funda esta condio... e portanto,
permite o caminho para sua superao.
Enquanto a soluo para a excluso a incluso (dentro do sistema), preservando a ordem do capital a partir de certas
mudanas (corretivas ou ajustadoras), a soluo para a explorao (condio fundante e insuprimvel do sistema capitalista)
consiste necessariamente na superao da ordem do capital, num
processo de transformao social.
Com tal procedimento, no qual explorao substituda por excluso, opera-se um esvaziamento conceitual (e poltico) no tratamento dos sujeitos que portam a misso histrica da
transformao social.
Assim, h um esvaziamento da categoria de classe
social, que de uma perspectiva marxiana fundada no lugar dos
sujeitos no processo de produzir valores, numa relao salarial e
de explorao entre donos de meios de produo e donos de fora
de trabalho passa a ser conceituada muito mais em funo da
compreenso weberiana enquanto uma estratificao social a
partir do poder aquisitivo das pessoas, esvaziando tal conceito da
contradio fundante do sistema capitalista, a explorao.
Com tal substituio da conceituao marxiana de classe
pela caracterizao weberiana, h paralelamente uma substituio (ou identificao) da categoria classe pelo liberal conceito
de cidadania. Sempre promovendo um esvaziamento das relaes sociais, transformando a classe, ou a cidadania, um processo
individual que no se funda a partir de relaes de desigualdade.
Nesse sentido, os termos de excluso/excludo, cidadania/cidado, povo/populao/popular no do conta das

118

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

relaes de produo e distribuio do valor, das contradies


internas, enfim, dos fundamentos das classes sociais que os compem. Como afirma Marx (1859/1977, p. 218):
a populao uma abstrao se desprezarmos, por
exemplo, as classes de que se compe. Por seu lado,
essas classes so uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supem a troca, a diviso do
trabalho, os preos etc. O capital, por exemplo, sem o
trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem
o preo etc., no nada.

A centralidade da Classe Trabalhadora e o Proletariado7.


No mais importante a desigualdade de classe que a
desigualdade de gnero ou de raa etc. A explorao (e a desigualdade de classe) no mais importante que a discriminao
racial, sexual ou qualquer outra. No pode se medir a importncia de quem sofre qualquer forma de segregao, discriminao
ou injustia. Portanto, no pode se estabelecer uma relao de
importncia (a no ser pela dimenso em que ela se expressa num
dado contexto).
Ainda, ao falar da contradio de classes, no se pretende
com essa categoria ter uma compreenso de todas as formas de
relaes contraditrias. A classe pouco nos diz sobre a desigualdade de orientao sexual, ou de gnero, por exemplo. Pensar
que a categoria classe resolveria todas as relaes desiguais da
sociedade seria no mnimo um equvoco.
No se trata, portanto, ao considerarmos a centralidade da
contradio de classes, nem de pretender com ela compreender
todas as relaes de desigualdade e opresso, nem de caracterizar a maior ou menor importncia de uma ou outra forma de

Baseado em Montao e Duriguetto (2010).

Captulo 5

119

desigualdade ou excluso. Trata-se de compreender com ela os


fundamentos da sociedade capitalista, do MPC, aquilo que peculiariza esse modo de produo e o diferencia de outros.
Na verdade, a explorao de uma classe por outra fundamento da sociedade capitalista. No mais importante, mas
fundamento. O fundamento que explica a sociedade e que lhe
confere carter central na/s luta/s pela emancipao social.
Por isso usamos a palavra centralidade da questo de
classe, e no a palavra importncia ou relevncia ou primazia. O fato dessa questo (de classe) ser central no lhe confere maior importncia ou relevncia sobre outras tantas questes
(racial, de gnero, sexual, dentre uma infinidade de outras).
central porque fundante do MPC, porque peculiariza e caracteriza essa formao social. No por ser mais importante ou anterior que outros. Ao contrrio, muitas questes, como a racial, de
gnero etc., so anteriores historicamente e precedem a questo
de classe; o MPC as incorpora e redimensiona, mas elas no caracterizam o sistema comandado pelo capital. Ainda, o capitalismo
pode existir e se perpetuar mesmo resolvendo a discriminao
racial, de orientao sexual, de gnero etc. (Wood, 2006). No
que o sistema capitalista promova isso, mas em essncia ele pode
subsistir sem essas formas de discriminao e desigualdade. No
pode subsistir, o MPC, um nico minuto sem a contradio, sem
a explorao do trabalho pelo capital. Isso confere centralidade
questo de classe, em funo dela ser fundamento da sociedade
capitalista.
A contradio de classe (a explorao de uma classe por
outra) peculiariza, caracteriza o MPC, constitui o momento fundante dessa sociedade.
Isso nos leva centralidade da classe trabalhadora, e do
proletariado (o trabalhador fabril, produtor de mais-valia) particularmente, na constituio do sujeito de transformao social.
A questo da determinao do sujeito da transformao
social representa uma dimenso fulcral, particularmente na

120

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

tradio marxista, para pensar as lutas e o processo revolucionrio. Mas, o debate sobre o sujeito da transformao social no
pode ser ideolgico, no pode se orientar por opes ou escolhas, pois no resulta da vontade, do desejo. Deve se sustentar,
pelo contrrio, na anlise cientfica das condies do MPC. So
as determinaes realmente existentes, e no a ideia, a vontade,
o que caracteriza o sujeito de transformao social o estudo das
reais contradies, dos interesses dos diferentes grupos sociais,
as potencialidades emergentes, da conscincia social, das organizaes e correlao de foras sociais.
As primeiras determinaes do sujeito na sociedade capitalista vm das anlises que Marx e Engels fazem nO Manifesto:
as armas que a burguesia empregou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a prpria burguesia. Mas
a burguesia no se limitou a forjar apenas as armas que
lhe traro a morte; produziu tambm os homens que
empunharo essas armas os operrios modernos, os
proletrios (1848/1988, p. 12).

E continuam,
o progresso da indstria [...] substitui o isolamento dos
operrios, resultante da concorrncia [entre eles], pela
sua unio revolucionria, resultante da associao. [...]
A burguesia produz, sobretudo, os seus prprios coveiros (1848/1988, p. 20).

Temos assim, o proletariado (o operrio moderno) como


sujeito privilegiado da transformao social. No pelo desejo
desses autores, mas por constiturem os produtores diretos da
riqueza, que lhes expropriada (alienada) mediante a explorao
capitalista, dona dos meios de produo. Por ser a classe explorada da riqueza que produz, o proletariado tem a misso histrica
de transformar a ordem social capitalista, a ordem que o oprime
e o explora.

Captulo 5

121

O proletariado (trabalhador industrial) constitui, para


Marx e Engels, o sujeito privilegiado, a vanguarda, da transformao social, da superao da ordem do capital, para constituir
uma sociedade sem classes, reunindo o produtor direto dos meios
para produzir riqueza.
Mas se o proletariado constitui a vanguarda da revoluo,
o sujeito privilegiado da revoluo, isso significa que h outras
classes ou fraes, outros sujeitos, que podem se unir a essa
misso de transformar a realidade, que so tambm submetidos,
oprimidos, segregados na sociedade capitalista, ou at que fazem
uma opo por uma sociedade emancipada: o trabalhador no
produtivo (que no produz mais-valia), as classes mdias (assalariados que possuem fora de trabalho melhor remunerada),
os servidores pblicos, trabalhadores autnomos, profissionais
independentes ou liberais, desempregados, dentre tantos outros.
Eles podem se articular nessa/s luta/s, mas, como afirmam Marx
e Engels, nO Manifesto do Partido Comunista: dentre todas as
classes que hoje se opem burguesia, somente o proletariado
uma classe realmente revolucionria (1848/1988, p. 17).
que, como afirmam Marx e Engels, as camadas mdias
o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o arteso, o campons combatem a burguesia para assegurar a sua existncia
como camadas mdias. No so, portanto, revolucionrias, mas
conservadoras (1848/1988, p. 17).
O proletariado precisa combater o capital, nos seus fundamentos, pois necessita transformar as relaes que o oprimem
e exploram; outras classes combatem o capital para melhorar
suas condies de vida. O primeiro precisa transformar o MPC;
os segundos apenas melhorar sua condio dentro do sistema
vigente. O primeiro s supera sua condio de opresso e explorao transformando a ordem burguesa; os segundos podem obter
seus objetivos dentro da ordem, sem necessariamente ter que
superar o sistema capitalista.

122

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Assim, o proletariado potencialmente revolucionrio,


por constituir a classe que produz a riqueza que, explorada pela
burguesia, garante a acumulao ampliada de capital.
No entanto, com a crescente complexificao das classes, a desproletarizao de amplas camadas de trabalhadores
(desempregados, trabalhadores do setor tercirio ou servios,
profissionalizao de amplos setores da populao etc.), a concorrncia entre trabalhadores e a expanso de classes mdias (e
seu aburguesamento), a noo do proletariado (e/ou da classe
trabalhadora industrial) como sujeito revolucionrio comea a
ser questionada (Habermas, Gorz, Boaventura Santos). Classe e
trabalho perderiam, para esses autores, sua centralidade no sistema social e seu poder emancipatrio.
Conscincia/alienao e organizao da classe trabalhadora.
No cabe aqui tratar dos fundamentos e processos da
conscincia de classe, da alienao e nem ainda da organizao
da classe trabalhadora para as suas lutas. Apenas devemos apontar que nesse aspecto ainda no esto dadas satisfatoriamente as
condies para o processo de transformao social, de revoluo.
Por um lado, se Marx escreveu O Capital para subsidiar
a classe trabalhadora no processo de desvelamento dos fundamentos do MPC, como requisito para orientar o processo de
lutas de classes no caminho para a revoluo, hoje esse conhecimento est longe de ser apropriado pela classe trabalhadora,
que na luta ideolgica parece estar seduzida pelos cantos de
sereia da esquerda possibilista cooptada pela ideologia e projetos do terceiro setor, sustentados na autorresponsabilizao
do indivduo, a desresponsabilizao do Estado e a desonerao
do capital: a Economia Solidria, o Empoderamento, a Ao
Social Voluntria do Terceiro Setor, as Aes Afirmativas,
o Empreendedorismo, as Incubadoras de Cooperativas, o

Captulo 5

123

estmulo humanizao do Capital e Responsabilidade


Social Empresarial, ou at ao Capital Verde.
Por outro lado, enquanto Partidos e Sindicatos, como as
formas clssicas de organizao dos trabalhadores para suas lutas
de classes, vm sofrendo perda de adeso, ONGs, Movimentos
por Identidade ou Territoriais, Associaes da Sociedade Civil,
Igrejas diversas, Organizaes Culturais etc., tm tido significativo aumento na insero de amplos setores de trabalhadores, que
investem suas energias e esforos militantes nessas organizaes, apostando nas suas aes as expectativas de mudanas e
melhoras nas condies (individuais) de vida.
Em sntese: o caminho para a revoluo exige, primeiramente, o esforo da esquerda radical (revolucionria) para a clara
determinao do Sujeito fundamental de transformao social,
que vai comandar as lutas de classes e o processo revolucionrio.
Tal caracterizao no remete apenas a uma questo terica, mas
dela emana a capacidade de determinao ttica e estratgica.
Por outro lado, nesse caminho, torna-se fundamental o fortalecimento das organizaes cujas lutas se articulem na contradio
fundante entre capital e trabalho, confluindo num projeto revolucionrio comum. Aqui Sindicatos e Partido precisam reassumir
o papel central de insero dos trabalhadores e articulao das
suas lutas.

Transformao ou mudana social?


Um dos grandes problemas no debate sobre a transformao social a comum identificao (ou at substituio) da
transformao (da ordem social) com (pelas) mudanas (dentro
da ordem vigente). Essa confuso (ou substituio consciente)
de importncia fulcral quando pensamos a esquerda contempornea, em muitos casos resignada uma suposta impossibilidade
de transformao da ordem capitalista, e adaptada quilo que
considera possvel: as mudanas dentro da ordem que melhorem

124

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

as condies de vida imediatas dos indivduos (a esquerda possibilista) ou as mudanas das subjetividades, no das estruturas
(a esquerda subjetivista).
Mudanas (dentro do capitalismo e/ou subjetivas)
O debate, e as propostas contemporneas, de amplos setores de esquerda, que congregam as energias militantes de massas
de trabalhadores, antes de se orientar transformao social, das
estruturas, superao da ordem, revoluo, propem mudanas de subjetividades (e no de estruturas), melhoras dentro do
capitalismo (e no a superao da ordem), mudanas pontuais e
desarticuladas (e no lutas que confluem na contradio central
entre capital e trabalho).
Por um lado, a esquerda possibilista, resignada e adaptada, tem apostado em mudanas pontuais dentro da ordem para
obteno de melhoras imediatas. O fundamento parece ser: se
no podemos transformar o sistema, ento melhoremos algo.
Nesse sentido, as apostas tm se orientado a um Capitalismo
Humanizado, a um Capitalismo Verde ou Ecolgico ou
Sustentvel, a um Empresrio Socialmente Responsvel, formao de processos de Economia Solidria, Democratizao
da Sociedade Civil entre outros.
Por outro lado, as bandeiras levantadas na atualidade
pela esquerda subjetivista, defensora da ideologia da autorresponsabilizao dos indivduos, apresentam-se nos discursos to
de moda hoje como: No mude o mundo, mude a si mesmo!,
No mude as coisas, mude de atitude!, No busque emprego,
procure trabalho!, Seja um empreendedor!, Seja seu prprio
patro!, O problema no est na sociedade, est em voc!,
desenvolvendo aes que visem a motivao, a autoajuda, o
empoderamento, a participao etc.

Captulo 5

125

Marx e a Emancipao Poltica e


a Emancipao Humana8
Uma rpida observao mostra-nos um uso indiscriminado do termo emancipao, remetendo a questes diversas:
emancipao jurdica, emancipao pela educao, pela cidadania, pela descolonizao do mundo da vida, pela incluso social,
emancipao da mulher, de uma nao, de um grupo particular
etc. Pareceria, assim, que a emancipao estaria representada praticamente por qualquer conquista de direitos sociais ou polticos,
ou de reduo de certas formas de desigualdade. Afinal, o que
ento e em que consiste a emancipao?
Para no cair no equvoco de imaginar que qualquer conquista representaria em si a emancipao, vamos recorrer diferenciao que Marx faz entre emancipao poltica e humana
nA questo judaica (MARX, 1843/1978) e nos Manuscritos
Econmicos e Filosficos (MARX, 2001).
a) A emancipao poltica, conforme Marx (1843/1978)
descreve, foi desenvolvida na passagem do feudalismo
ao capitalismo e no interior desta ordem burguesa a partir da conquista de direitos civis e polticos (direito de ir
e vir, de organizao, de representao etc.), direitos trabalhistas e sociais, e do desenvolvimento da cidadania,
e da democracia (formais). Ela corresponde quase que
linearmente ao conceito de cidadania, tal como apresentado por Marshall (1967).

A emancipao poltica remete, portanto, ao conjunto de


direitos polticos e sociais que garantem uma liberdade e uma
igualdade formais dos cidados a liberdade e a igualdade
perante a lei, portanto, meramente jurdicas. Dessa forma, ela sem
dvida representa conquistas importantes no progresso dos direitos e igualdades (formais) humanos, mas realiza-se no interior da

Baseado em Montao e Duriguetto (2010).

126

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

ordem social comandada pelo capital, portanto, na manuteno


de um sistema estruturalmente desigual. Emancipao poltica
no incompatvel com o MPC.
Para Marx, o limite da emancipao poltica, portanto,
est no fato de que ela pode ser atingida sem alcanar a emancipao geral do homem; nas suas palavras: o Estado pode ser um
Estado livre sem que o homem seja um homem livre (MARX,
1843/1978, p. 14). A emancipao poltica , portanto, fundamental para atingir a emancipao humana, mas no corresponde
a ela, nem garantia para sua conquista.
b) A emancipao humana, para o autor, exige a eliminao de toda forma de desigualdade, dominao e explorao, reunindo novamente o produtor com os meios
para produzir; ela ocorre, portanto, na necessria superao da ordem do capital para o comunismo. Nas palavras do autor:
a supresso da propriedade privada constitui, desse
modo, a emancipao total de todos os sentidos e qualidades humanas. [...] O comunismo constitui a fase
de negao da negao e , por consequncia, para
o seguinte desenvolvimento histrico, o fator real,
imprescindvel, da emancipao e reabilitao do
homem (MARX, 1844/2001, p. 142-148).

Assim, se a emancipao poltica compatvel com a


ordem burguesa, a emancipao humana supe sua superao.
Mas a construo da emancipao humana tambm pressupe a confirmao da emancipao poltica. No h oposio,
portanto, entre emancipao poltica e emancipao humana,
porm, tambm no h identidade entre ambas. A primeira
pressuposto da segunda, mas no a garante. Conforme sustenta
Marx (1843/1978), a emancipao poltica no implica emancipao humana. Afirma o autor (MARX, 1843/1978, p. 28):

Captulo 5

127
no h dvida que a emancipao poltica representa
um grande progresso. Embora no seja a ltima etapa
da emancipao humana em geral, ela se caracteriza
como a derradeira etapa da emancipao humana dentro do contexto do mundo atual. bvio que nos referimos emancipao real, emancipao prtica. Porm,
[continua Marx, tratando da questo religiosa-judaica]
no nos deixemos enganar sobre as limitaes da emancipao poltica. A ciso do homem na vida pblica e
na vida privada, o deslocamento da religio em relao
ao Estado, para transferi-la sociedade burguesa, no
constitui uma fase, mas a consagrao da emancipao
poltica, a qual, por isso mesmo, no suprime nem tem
por objetivo suprimir a religiosidade real do homem.

Todas as lutas contra formas de desigualdade, de opresso, de excluso, tornam-se, assim, importantes e fundamentais
para a conquista da emancipao poltica, mas elas no garantem
a emancipao humana. Para esta ltima, essas lutas (necessrias e fundamentais) devem confluir num processo que supere
a diviso social em classes e a separao do produtor dos meios
para produzir, ou seja, a eliminao da explorao e, com ela, da
ordem social burguesa.
No haver emancipao da trabalhadora-mulher numa
sociedade machista e patriarcal, assim como no haver emancipao da mulher-trabalhadora numa sociedade capitalista.
No haver emancipao do trabalhador-negro numa sociedade racista e xenofbica, assim como no haver emancipao
do negro-trabalhador na sociedade capitalista.
A luta anticapitalista no deve caminhar separada da luta
contra o machismo e a desigualdade sexual, contra o racismo e a
desigualdade racial e tnica, contra as diversas formas de segregao, desigualdade e preconceito. Ela deve reunir todos esses
campos de batalha, orientados no curto prazo contra a forma especfica de desigualdade (para a emancipao poltica especfica), e

128

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

no longo prazo contra a ordem burguesa, a sociedade de classes


(para a emancipao humana).

Gramsci e a Guerra de Movimento


e a Guerra de Posio9
a partir da socializao da poltica em pases como a
Itlia, e da relao entre sociedade poltica (esfera da dominao)
e sociedade civil (esfera da direo e hegemonia), que Gramsci
formula sua original teoria do processo revolucionrio de transio ao socialismo (ou para uma sociedade regulada). Para
tanto, distingue dois tipos formaes sociais: as sociedades de
tipo oriental e as sociedades de tipo ocidental.
A sociedade de tipo oriental (a exemplo da Rssia czarista) aquela na qual no se desenvolveu uma sociedade civil
forte e articulada, sendo esta primitiva e gelatinosa, e comandada pela sociedade poltica e a lgica da dominao e coero;
aqui as lutas de classes travam-se tendo em vista a conquista
(pelos setores dominados) ou conservao (pela classe dominante) do Estado em sentido estrito. O processo revolucionrio
nessas sociedades, em conformidade com as concepes de Marx
e de Lnin, se d mediante a Guerra de Movimento (ou guerra
de manobra ou frontal), como choque frontal, explosivo, com
vistas tomada do Estado.
No entanto, o tipo de sociedade denominada ocidental,
aquela que a poltica sofreu significativa socializao, com uma
relao equilibrada entre a sociedade poltica e a sociedade civil,
sendo esta ltima terreno das lutas de classes, a partir do crescimento dos aparelhos privados de hegemonia. Aqui as lutas de
classes podem se orientar para uma classe dar a direo social,
para a obteno do consenso, para a hegemonia, mesmo antes da
tomada do Estado necessrio, afirma Coutinho (1994, p. 59),

Baseado em Montao e Duriguetto (2010).

Captulo 5

129

que a classe que se candidata ao domnio poltico j seja previamente hegemnica no plano ideolgico. Nesse caso, diferentemente do anterior, o centro do processo revolucionrio dar-se-
como uma progresso de conquistas, de espaos no seio e atravs
da sociedade civil numa Guerra de Posio (GRAMSCI, 2000,
p. 261-262; ver tambm COUTINHO, 1994, p. 57-8).
Para Gramsci (2002, p. 62-63), a classe que se prope uma
transformao revolucionria da sociedade (de tipo ocidental),
pode e deve ser dirigente j antes de conquistar o poder governamental (esta uma das condies principais para a prpria
conquista do poder). No entanto, ser dirigente no campo da sociedade civil, ainda que necessrio, no implica sua completa realizao poltica. s com a tomada do poder poltico que as classes
subalternas atingem sua completa unificao poltica, tornando-se o prprio Estado e criando um novo bloco histrico.
Tal como Marx e Lnin, Gramsci perspectiva uma sociedade sem Estado, que denomina como sociedade regulada. O
fim do Estado concebido como uma reabsoro da sociedade
poltica na sociedade civil (BOBBIO, 1987, p. 50), ou seja, pela
ampliao da sociedade civil e, portanto, do momento da hegemonia, no interior da esfera estatal, at eliminar todo espao ocupado pela sociedade poltica.

A modo de sntese: a transformao como


superao da ordem capitalista
A esquerda revolucionria e a classe trabalhadora se deparam neste contexto histrico com desafios fundamentais.
Por um lado, tarefa revolucionria fundamental a (constante) elaborao terica crtica, fundada na teoria marxista, que
permita conhecer os fundamentos e dinmica da realidade social,
da ordem burguesa e seus fenmenos. Para tal requer-se fundar
a produo de conhecimento terico no Mtodo Materialista
Histrico e Dialtico e na Perspectiva de Totalidade.

130

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Assim, a anlise marxista tem a misso de submeter


crtica radical os fundamentos ideolgicos da autorresponsabilizao dos indivduos, das propostas de economia solidria, o
empoderamento etc.
Mas no basta produzir o conhecimento crtico da realidade. Tal conhecimento cientfico (histrico-crtico) precisa ser
apropriado pela massa de trabalhadores, promovendo conscincia de classe para combater os processos de alienao. Para Marx:
a arma da crtica no pode substituir a crtica das armas, [...] o
poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a
teoria converte-se em fora material quando penetra nas massas
(MARX, 1843/2005, p. 151-152).
A teoria crtica (radical), o conhecimento crtico, dessa
forma, por atingir a raiz das coisas, tem fora material, como uma
arma, quando apropriada pelas massas, para a transformao
social.
O conhecimento materialista, histrico e dialtico, um
conhecimento crtico radical, uma arma para as transformaes
das massas, das classes trabalhadoras. Trata-se de uma poderosa
arma para a transformao social operada pelas massas de trabalhadores, a caminho da emancipao humana.
Em segundo lugar, h o desafio da clara caracterizao do
sujeito que porta a misso da transformao social, a partir da
sua condio de explorao pelo capital: a classe trabalhadora, e
particularmente o proletariado. Sem prejuzo da diversidade de
setores, classes e fraes de classes que se inserem nos processos
de lutas, a centralidade da classe trabalhadora, e particularmente
os segmentos produtores de mais-valia (o proletariado), vem a
partir da sua contradio estrutural com o capital: a contradio
entre capital e trabalho se funda pela relao salarial (de compra e venda de fora de trabalho) constituindo uma relao de
explorao.
Por outro lado, torna-se fundamental a articulao das
diversas lutas e organizaes parciais (sindicatos, movimentos

Captulo 5

131

sociais, organizaes locais, que lutam em torno de diversas


manifestaes da questo social), confluindo num processo geral
comum, fundamentado na crtica ordem burguesa. Essa articulao demanda o papel central do Partido. A construo dele, em
um amplo processo de legitimao e adeso para o conjunto dos
trabalhadores e setores aliados torna-se tarefa fundamental.
Finalmente, e como Marx afirma, se a crtica (o conhecimento crtico) uma arma das massas, a indignao (a capacidade de se indignar frente s mazelas da questo social) torna-se
um sentimento fundamental para de partida enfrentarmos a realidade. Para Marx, a indignao o seu modo essencial de sentimento, e a denncia a sua principal tarefa (MARX, 1843/2005,
p. 147).
A indignao torna-se, na relao sujeito-objeto, no processo de conhecimento crtico, no conhecimento engajado, um
sentimento essencial; porm, hoje to deixado de lado. Hoje a
naturalizao da realidade social histrica, a resignao e aceitao com as formas de desigualdade, de discriminao, de submisso, de explorao, leva a um esvaziamento da capacidade
de indignao dos sujeitos: no nos indignamos mais diante da
realidade... nos resignamos, naturalizando essa realidade.

preciso recuperarmos a capacidade de indignao!


Para Marx, o conhecimento crtico exige a indignao
como sentimento essencial, primrio. Mas no basta a indignao. Como afirma, a crtica no paixo da cabea, mas a cabea
da paixo (MARX, 1843/2005, p. 48). preciso, a partir do sentimento de indignao, elaborar o conhecimento (cientfico) crtico, mediante a crtica radical, no horizonte da transformao
social.
Assim, o pensamento marxista sustenta-se definitivamente no posicionamento (dos interesses) da classe trabalhadora,
no seu antagonismo com a burguesia, num claro anticapitalismo

132

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

e, portanto, na perspectiva de revoluo, visando a emancipao humana. Como afirmou Hobsbawm, o marxismo [...] um
mtodo para, ao mesmo tempo, interpretar e mudar o mundo
(1987, p. 12). , portanto, um conhecimento para atingir os fundamentos, a essncia do MPC. um conhecimento para a transformao social.

Referncias
BOBBIO, N. O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro: Graal, 1987.
COUTINHO, C. N. Marxismo e poltica: A dualidade de poderes e outros
ensaios. So Paulo: Cortez, 1994.
GRAMSCI, A. Cadernos do Crcere (Vol. 3). Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2000.
GRAMSCI, A. Cadernos do Crcere (Vol. 5). Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2002.
HARVEY, D. Condio ps-moderna. So Paulo: Loyola, 1993.
HOBSBAWM, E. Histria do Marxismo: O Marxismo no tempo de Marx
(Vol. 1). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
JAMESON, F. Ps-Modernismo. A Lgica Cultural do Capitalismo
Tardio. So Paulo: tica, 1996.
KONDER L. O que dialtica. So Paulo: Brasiliense, 2003.
LUKCS, G. Sociologia. In: NETTO, J. P. (Org.). Grandes Cientistas
Sociais. So Paulo: tica, 1992. p. 109-131.
LUKCS, G. Para uma ontologia do ser social I. So Paulo: Boitempo,
2012. (Texto original publicado em 1978).

Captulo 5

133

MANDEL, E. Tratado de Economa Marxista. (Tomos I e II). Mxico:


Ediciones Era, 1977.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:
Zahar, 1967.
MARX, K. Contribuio Crtica da Economia Poltica. So Paulo:
Martins Fontes, 1977. (Texto original publicado em 1859).
MARX, K. A Questo Judaica. So Paulo: Moraes, 1978. (Texto original
publicado em 1843).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 1). Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980a. (Texto original publicado
em 1867).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 3). Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980b. (Texto original editado em
1894).
MARX, K. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Martin Claret,
2001. (Texto original publicado em 1844).
MARX, K. Crtica da filosofia do direito de Hegel. So Paulo: Boitempo,
2005. (Texto original publicado em 1843).
MARX, K. Contribuio crtica da economia poltica. So Paulo:
Expresso Popular, 2008. (Texto original publicado em 1859).
MARX, K.; ENGELS, F. Textos (Vol. 1). So Paulo: Edies Sociais, 1975.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. So Paulo:
Cortez, 1988. (Texto original publicado em 1848).
MSZROS, I. Ir alm do capital. In: COGGIOLA, O. (Org.). Globalizao
e socialismo. So Paulo: NET-Xam, 1997.

134

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

MSZROS, I. Para alm do capital: Rumo a uma teoria da transio.


So Paulo: Boitempo, 2002.
MSZROS, I. A crise estrutural da poltica. Margem Esquerda, v. 9, p.
96-113, 2007.
MONTAO, C.; Duriguetto, M. L. Estado, classe e Movimento Social.
So Paulo: Cortez, 2010.
NETTO, J. P. O dficit da esquerda organizacional. Socialismo e
liberdade, v. 2, p. 5-12, 2009.
WOOD, E. W. Democracia contra capitalismo. A renovao do
materialismo histrico. So Paulo: Boitempo, 2006.

Parte II
Questes contemporneas luz do marxismo

Captulo 6

Capital: a verdade absoluta do


ceticismo ps-moderno e adjacncias
Mario Duayer

ste captulo inspira-se nas contribuies de G. Lukcs e R.


Bhaskar, autores que, na contramo da moda antiontolgica,
fornecem elementos para uma crtica sistemtica s correntes
tericas nas cincias sociais e na filosofia contemporneas que
defendem, implcita ou explicitamente, o relativismo no atacado,
ou a equiparao de todas as descries do mundo. Tirando partido do vocabulrio em geral usado por tais posies tericas, a
saber, o vocabulrio das crenas, o captulo pretende mostrar que
admitir a relatividade de nossas crenas no equivale a equipar-las todas. Pois, como se experimenta na prtica cotidiana, certas
crenas nos parecem inapelavelmente absurdas. E so!
O objetivo central do captulo consiste em indicar os aspectos fundamentais da crtica s posies relativistas (no atacado)1
para as quais convergem tanto as posies ps (ps-modernas,
ps-estruturalistas, neopragmatismo) quanto as da filosofia da
cincia associadas a autores como T. Kuhn e I. Lakatos2, nas
quais as primeiras muitas vezes se apoiam. A atitude bsica de
todas essas posies, a despeito de suas sutis diferenas, pode

A menos de indicao ao contrrio, o relativismo aqui entendido desse modo,


i.e., relativismo no atacado.

Para uma exposio sinttica das concepes desses autores, ver Suppe (1977);
para uma anlise crtica cf. Duayer, 2001 e 2010.

138

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

ser resumida na ideia de que o mundo sempre conhecido sob


descries cultural, social, histrica e etnicamente especficas.
Tal postura funciona como uma espcie de senha para defender
a noo de que o conhecimento do mundo jamais pode ser objetivo porque sempre uma espcie de consenso local (classista,
cultural, tnico etc.). Com isso, essas teorias, apesar de crticas
da cientificidade positivista, assumem a divisa antimetafsica do
positivismo e negam toda ontologia. Este captulo procura mostrar que essa negao da ontologia meramente nominal, posto
que as teorias que a propugnam secretam uma ontologia que
reduz o mundo social e natural s percepes dos sujeitos. Na
terminologia de Bhaskar, todas elas se sustentam em um realismo
emprico3. Ontologia que, como se procura mostrar, resolve-se no
conformismo e fatalismo dos sujeitos perante o mundo configurado pelo capital. Essa prescrio de conformidade ao existente,
para ser combatida, pressupe a crtica da ontologia em que est
fundada. O captulo sustenta que a restaurao de uma ontologia
de inspirao marxiana constitui o fundamento incontornvel
dessa crtica ontolgica. Tarefa para a qual as contribuies de
Lukcs e Bhaskar so indispensveis.
Em primeiro lugar, acolhendo o vocabulrio relativista,
cumpre chamar a ateno para a natureza dinmica de nossas
crenas. Numa inspeo superficial, possvel constatar que
nossas crenas i.e., nossas convices sobre a realidade ou verdade das coisas tal como as concebemos so falveis, precrias,
instveis. Enfim, humanas e, portanto, histricas. Essa dinmica
de nossas crenas no se limita s crenas menos sofisticadas,
que nascem espontaneamente da prtica, mas marca tambm as
cientficas, crenas que, a despeito de sua complexidade, elaborao e de seu carter justificado, tidas e havidas por demonstradas,
verdadeiras, acabam se revelando superficiais, limitadas, falsas.

Cf., por exemplo, Bhaskar, 1977, captulo 1.

Captulo 6

139

Alm disso, preciso salientar que as crenas de diferentes espcies no existem em compartimentos estanques da mente.
Ao contrrio, de alguma maneira tm de formar uma unidade na
diferena. Na formulao de Lukcs, tal unidade vem expressa da
seguinte maneira: [] vida cotidiana, cincia e religio (teologia
includa) [] de uma poca formam um complexo interdependente, sem dvida frequentemente contraditrio, cuja unidade
muitas vezes permanece inconsciente (LUKCS, 2012, p. 30).
essa totalidade articulada de crenas que significa o mundo para
os sujeitos. Cria para eles um espao de significao. por meio
dessa significao que as relaes dos sujeitos com o mundo se
apresentam para eles como relao.4 Essa considerao fundamental e, por isso, importante real-la neste momento. A adaptao ativa (criativa) do ser social (dos seres humanos) com seu
meio ambiente pressupe esta dualidade: a realidade tal como
em si mesma e a realidade pensada mundo como possesso espiritual. O mundo como possesso espiritual dos sujeitos
pressupe, naturalmente, o distanciamento do sujeito em relao
ao mundo e, da mesma maneira, de si mesmo. S com tal afastamento possvel falar de relao dos sujeitos com o mundo
(LUKCS, 2013).
Todavia, a unidade das crenas cientficas com os outros
tipos de crenas a realidade pensada jamais investigada
pela filosofia da cincia. Ela se concentra, antes, na busca das
particularidades do discurso cientfico que tornaria suas crenas mais crveis, confiveis etc. No entanto, pode-se dizer que
os desenvolvimentos recentes da filosofia da cincia nada mais
fazem do que confessar que tal busca no tem sentido. Mostram
4

Ao tratar dessa questo, Lukcs (2012, p. 396) destaca a seguinte passagem do


jovem Marx: os animais no tm relao; esto em relao. Minha relao com
meu ambiente a minha conscincia. (S.M.) [Suprimido no manuscrito] Onde
existe uma relao, ela existe para mim; o animal no se relaciona com nada e
no se relaciona absolutamente. Para o animal, sua relao com outros no existe
como relao. (A.M.) [Anotao de Marx (escrita na margem do manuscrito)]
(MARX; ENGELS, 1846/2007, p. 35, nota a).

140

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

involuntariamente, bem verdade que no h como garantir


que as crenas cientficas so mais vlidas, confiveis, objetivas
etc. do que as outras modalidades de crena.
Quem expe esse resultado lquido dos debates na filosofia da cincia com mxima franqueza , sem dvida, o neopragmtico americano Richard Rorty. E o faz ressuscitando o axioma
pragmtico enunciado por James: o verdadeiro o nome daquilo
que se mostra bom a ttulo de crena [] (JAMES, 1907/2007,
p. 30) E que foi atualizado por Davidson: [] ao agente basta
apenas refletir sobre o que uma crena para compreender que
a maior parte de suas crenas bsicas verdadeira, e que, dentre
suas crenas, as mais arraigadas e coerentes com o corpo principal de suas crenas so as mais qualificadas a serem verdadeiras
(RORTY, 1989, p. 95).
Como se disse, o que se tem nessas formulaes a sntese exposta com total franqueza do resultado das tentativas de
qualificar, por meio do exame da estrutura do discurso cientfico das cincias paradigmticas, em especial, a fsica, as crenas
cientficas como portadoras de verdades e, ipso facto, livres de
noes metafsicas. Sem subterfgios, Rorty acusa o que para ele
simplesmente o carter pattico de tal pretenso. Capitalizando
o axioma de James/Davidson, Rorty libera as nossas crenas e
o seu discurso se dirige naturalmente s crenas cientficas do
fardo de serem verdadeiras. Crenas, diz ele, so hbitos de ao,
so adaptaes ao ambiente. E, por isso, o seu valor de verdade
nada mais do que um ttulo que outorgamos s crenas que se
mostraram ao mesmo tempo necessrias e adequadas para nosso
trato com o ambiente.
Na verdade, o argumento de Rorty suscita imediatamente
duas crticas: por um lado, ele deixa transparecer uma espcie de carecimento de deus, i.e., de conhecimento absoluto. O
que, alis, transparece em sua afirmao de que ns no temos
nenhum gancho celeste ou ponto de vista divino para podermos olhar o mundo de fora e, por isso, no podemos saber como

Captulo 6

141

o mundo em si mesmo (RORTY, 1990, p. 13). Por outro lado, tal


argumento patentemente tautolgico, pois se a significao do
mundo condio para a prtica especificamente humana, e se o
gnero humano vem existindo j h algum tempo, pode-se concluir que tais significaes so verdadeiras no sentido de adaptaes ao ambiente, como quer Rorty. Vale dizer, so significaes
que figuram o mundo de forma tal que permite aos sujeitos se
relacionarem com ele de maneira adequada, assegurando assim a
sua reproduo, sua sobrevivncia como gnero.
Pescando nessas guas para l de turvas, Rorty pretende
prover um argumento incontestvel para estabelecer a equiparao de todas as nossas crenas e, por extenso, sua no objetividade. A frmula de que lana mo bastante trivial: as crenas
so verdadeiras das relaes e prticas das quais so crenas.
Disso infere o autor que, sob pena de ser acusada de totalitria,
nenhuma crena pode desbordar o permetro das relaes e prticas nas quais e pelas quais verdadeira e pretender ser verdadeira
para outras relaes e suas correspondentes prticas. Como fcil
perceber, correntes tericas como o ps-colonialismo e o multiculturalismo recorrem a essas ideias para sustentar suas posies.
Sobre a historicidade de nossas ideias e concepes, alm
da historicidade de nossa prpria existncia social, Marx no
tinha a menor dvida. No obstante, no deduzia da a equiparao de todas as nossas concepes sobre a realidade e, consequentemente, a impossibilidade do conhecimento objetivo ou
melhor, a impossibilidade de oferecer melhores razes para as
nossas crenas. Ao contrrio, quando se dispe a criticar determinadas ideias socialmente correntes, a sua primeira providncia
afirmar a sua objetividade social, claro.
Ilustra essa posio de Marx, entre outros, o conhecido
captulo de O Capital, A Frmula Trinitria5. Nele o ponto central no a demonstrao lgico-gnosiolgica das insuficincias
5

Em Marx (1867/1974), refere-se ao captulo XLVIII.

142

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

da economia vulgar, cuja frmula fundamental consiste, de acordo


com Marx, em uma incongruncia simtrica e homognea. O
aspecto essencial da crtica de Marx reside na faticidade ontolgica das relaes econmicas, absurdas que so, representadas
pela teoria. Significa dizer que o principal problema ali tratado
nada tem a ver com presumidas insuficincias cognitivas. Ao
contrrio, a prpria realidade social, as determinaes formais
econmicas que se manifestam completamente substantivadas
e, sob tais circunstncias concretas, devem ser correspondentemente refletidas na conscincia. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que, para Marx, em lugar de provar que a economia vulgar
falsa, a questo elucidar porque correta i.e., empiricamente
plausvel para os sujeitos imersos nas relaes mercantis capitalistas apesar de ser prima facie absurda.
O carter tautolgico da posio rortyana tambm esclarecido nesta passagem de Lukcs: [a] prxis postula por si s,
necessariamente, uma imagem do mundo com a qual possa se
harmonizar e da qual resulta da totalidade das atividades um
contexto pleno de sentido (LUKCS, 2012, p. 31). O que quer
dizer que a prxis, como se disse antes, tem por condio uma
significao do mundo (natural e social) e, nesse preciso sentido
verdadeira, captura com objetividade, em determinados mbitos, o modo de ser do mundo.
Na considerao dessas questes, portanto, fica patente
que reafirmar a concepo relativista de Marx com relao ao
nosso conhecimento do mundo, juntamente com a de Lukcs, no
caso, da maior relevncia. A desconsiderao desse contedo
evidente do pensamento marxiano pode-se atribuir, ao menos
em parte, interpretao cientificista (e positivista) presente em
grande parte do marxismo e, em consequncia, o susto que lhe
causou a aragem relativista resultante da falncia da tradio
positivista. Da seu estado de estupor, sua sbita paralisia ante a
interdio do relativismo contemporneo s grandes narrativas,
como se Marx tivesse escrito uma espcie de mecnica social de

Captulo 6

143

corte iluminista. Se Marx foi assim interpretado, i.e., de maneira


cientificista, no estranha que as crticas tradio positivista no
interior da filosofia da cincia, todas elas focalizando as concepes de cincia e de explicao cientfica de extrao positivista
para as cincias naturais, tenham atingido tambm uma concepo sobre o conhecimento da sociedade (marxista, no caso) que
se atribua quase as mesmas propriedades do discurso da fsica.
Tais crticas tradio positivista esto em geral associadas, no mbito da filosofia da cincia, s obras de Kuhn, Lakatos
e, em menor grau, de Popper e Feyerabend, entre outros. Para
encurtar a histria, pode-se afirmar que a crtica desses autores
ditos ps-positivistas s concepes de cincia e de explicao
cientfica da tradio positivista, em particular, de sua ltima
forma, o positivismo-lgico, tem algo de bvio e trivial: em
ltima anlise, ela trata de mostrar que era simplesmente absurdo
o objetivo perseguido pela tradio positivista, a saber, descobrir
um algoritmo que garantisse que nossas generalizaes (diga-se,
proposies sintticas, ou teorias inteiras) pudessem ser sempre
referidas s coisas tais como as percebemos pelo nosso aparato
sensorial. Em outros termos, essa seria a nica maneira admitida a noo positivista de que conhecimento vlido conhecimento fundado em nossa experincia sensorial de eliminar
generalizaes invlidas, ou, dito de outra maneira, de impedir
que a razo descarrilasse de seus trilhos fincados no emprico, no
imediatamente existente.
Ora, o que esses autores mostraram, valendo-se de inmeras crticas tradio positivista j disponveis, e at mesmo de
crticas internas prpria tradio, foi que tal pretenso estava
fundada numa espcie de mito criacionista: em uma concepo
segundo a qual a gnese do conhecimento sistemtico-aditiva,
por assim dizer. Somente se o conhecimento fosse gerado dessa
maneira, ou seja, adquirido de modo serial e por partes, numa
espcie de linha de montagem cognitivo-fordista, seria possvel

144

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

verificar, a cada passo, se tal generalizao corresponde de fato a


tais experincias empricas primeiras, originrias.
Em lugar desse mito criacionista, Kuhn e Lakatos mostram
que, quando se analisa a histria das cincias exemplares, a fsica
em especial, jamais se tem esse momento originrio, esse ato inaugural do conhecimento, mas cincias que se constroem a partir de
um repertrio cognitivo prvio, cientfico e no cientfico, e com
ele iluminam (ou procuram iluminar) um determinado territrio
emprico. Tal repertrio prvio recebe o nome de paradigma, em
Kuhn, e de ncleo rgido, em Lakatos. Se as ideias e noes contidas em tal repertrio prvio, e sobre as quais se aliceram teorias
inteiras, tm uma procedncia emprica insofismvel coisa que
sequer vem ao caso, como se depreende das formulaes daqueles
autores. Teorias so construtos axiomtico-dedutivos e, por isso,
seus axiomas no esto sujeitos a esse tipo de inspeo. Alis, no
mais das vezes, no esto sujeitos a nenhuma inspeo, so o a
priori incontestvel das tradies cientficas ou dos programas
de pesquisa cientfica. Outra maneira de afirmar a mesma coisa
afirmar que os fatos ou dados da experincia so theory-laden, j so carregados de teoria. Melhor seria dizer que so
idea-laden.
Abrindo um parntese, no custa recordar que todas essas
concluses so trivialidades no pensamento de Marx, para quem
o indivduo isolado e superlativo, da cognio e da sociedade,
nada mais do que uma iluso da sociedade burguesa, fundada
na produo de mercadorias.6 Alis, uma eminncia nem to
parda das teorias de arquitetura liberal.

Sobre essa iluso, Marx assim se expressa: O caador e o pescador, singulares e


isolados, pelos quais comeam Smith e Ricardo, pertencem s iluses desprovidas de fantasia das robinsonadas do sculo XVIII [] Trata-se da antecipao
da sociedade burguesa, que se preparava desde o sculo XVI e que, no sculo
XVIII, deu largos passos para a sua maturidade. Nesta sociedade da livre-concorrncia, o indivduo aparece desprendido dos laos naturais etc. que, em pocas
histricas anteriores, o faziam um acessrio de um conglomerado humano determinado e limitado. Aos profetas do sculo XVIII, sobre cujos ombros Smith e

Captulo 6

145

Retomando a crtica de Kuhn e Lakatos ao positivismo,


preciso chamar a ateno para o seu efeito lquido e difundidssimo: a afirmao da relatividade incomensurvel de todo
conhecimento. Crtica que, supostamente, fornece argumentos
para as posies tericas que pretendem provar que o conhecimento mais elaborado que a humanidade conseguiu produzir, o
cientfico, to relativo quanto a mais tosca das representaes
pr-cientficas. Razo pela qual no estaria mais em condies de
reivindicar sua objetividade.
Essa crtica tradio positivista, ao se circunscrever ao
carter histrico-social de nosso conhecimento, i.e., sua relatividade, e sem explorar a possibilidade de que o conhecimento
social em sua processualidade, a despeito de relativo, pode ser
mais ou menos objetivo, pode capturar relaes e estruturas reais
do mundo, fica refm do mesmo critrio de validao do conhecimento sustentado pela tradio positivista, ou seja, conhecimento
vlido conhecimento emprico. Para se convencer disso basta
uma inspeo nas descries do progresso da cincia formuladas por Kuhn ou Lakatos. Cincia normal, em Kuhn, e PPC progressivo, em Lakatos, se legitimam pura e simplesmente porque
as teorias produzidas sob os seus auspcios demonstram maior
plausibilidade emprica, ou capacidade preditiva, do que teorias
concorrentes. Pouco difere esse diagnstico da mxima neopragmtica rortyana: todas as crenas so verdadeiras; crena consenso local: cientfico, poltico, tnico etc. Ou seja, reafirmam,
com uma roupagem mais moderna, ou melhor, ps-moderna, a
injuno positivista para a cincia: conhecimento vlido conhecimento empiricamente corroborado. Todavia, enquanto o positivismo podia afetar uma certa ingenuidade e pretender que o

Ricardo ainda se apoiam inteiramente, tal indivduo do sculo XVIII produto,


por um lado, da dissoluo das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas foras produtivas desenvolvidas desde o sculo XVI aparece como um ideal
cuja existncia estaria no passado. No como um resultado histrico, mas como
ponto de partida da histria (MARX, 1858/2011, p. 39).

146

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

emprico independente da teoria, os seus crticos ps-positivistas, como no podem se valer do mesmo recurso, j que suas concepes defendem explicitamente a dependncia do emprico em
relao aos pressupostos estruturais da teoria, s podem ficar presos na circularidade que criaram para si prprios. E, como mostra
Lukcs, somam esforos para elevar o inteiro sistema do saber
condio de instrumento de uma manipulabilidade geral de
todos os fatos relevantes, ou para elevar a prtica imediata, a
utilidade, a adequao emprica, a preditibilidade etc. a critrio
absoluto da teoria (da cincia) (LUKCS, 2012, p. 58).
Como o conhecimento cientfico, agora apoiado nesse
relativismo no atacado, vem hoje filosoficamente justificado
por sua utilidade prtico-operatria, justamente por isso que a
crtica de uma teoria existente, de ampla circulao social, articulada determinada prtica, forma de vida etc., tem como
primeira condio a admisso de que a teoria criticada de fato
funciona na prtica. Somente com tal reconhecimento possvel
descartar a priori a utilidade prtica como critrio de validao
da teoria. Lanando mo do prprio referencial terico do adversrio, relativista no atacado, a crtica pode afirmar que o critrio
da utilidade circular, pois segundo seus prprios critrios a sua
teoria til, funciona na prtica, verdadeira, exclusivamente no
espao de significao criado por ela mesma, em articulao com
as demais crenas que emergem das prticas e relaes sociais
existentes. Desse modo, a crtica permite tambm demonstrar
que, de acordo com as prprias premissas relativistas, no possvel retrucar que o mundo existente o nico mundo que temos
e que, portanto, nada mais razovel para uma teoria do que se
circunscrever s crenas que dele emergem, porque tal resposta
pressupe, necessariamente, que esse o nico mundo possvel,
pretenso que contradiz imediatamente o relativismo do qual
parte o argumento.
Tal atitude crtica, em suma, equivale a desfazer a confuso praticamente unnime entre relativismo epistemolgico e

Captulo 6

147

relativismo ontolgico. O primeiro, com o qual todas as partes


envolvidas no debate concordam, refere-se natureza relativa de
nossos conhecimentos, dado que so sociais e, portanto, histricos. O problema, contudo, que as correntes tericas hoje hegemnicas deduzem do relativismo epistemolgico o relativismo
ontolgico. Ou seja, do carter transitrio e relativo de nossos
conhecimentos deduzem que eles no podem ser objetivos. Do
relativismo epistemolgico deduzem o antirrealismo. E propem,
velada ou abertamente, a paridade de todas as ontologias. Ou a
equiparao de todas as crenas, no vocabulrio neopragmtico.
De bnus, recolhem como corolrio o relativismo julgamental
i.e., a concepo segundo a qual ideias, teorias etc. no podem
ser objetivamente comparadas. E, por conseguinte, criticadas. De
novo, comparece a circular proposio rortyana segundo a qual
nossas crenas so sempre verdadeiras empiricamente plausveis das prticas das quais so crenas.
De acordo com Bhaskar, para desfazer tal armao terica
necessrio promover uma espcie de revoluo copernicana no
domnio da filosofia (BHASKAR, 2009, p. 4). Em uma palavra,
preciso desantropomorfizar, retirar o sujeito do centro do universo e admitir que o mundo mais do que as sensaes e impresses que dele temos. Lukcs interpreta o problema de maneira
semelhante quando comenta que uma das iluses do pensamento
contemporneo de que o sujeito o responsvel exclusivo pela
construo do universal no pensamento, pois ele, ao contrrio
do singular, no se apresenta imediatamente aos nossos sentidos.
A iluso simtrica, comenta Lukcs, consiste em imaginar que o
singular pode ser e, portanto, ser identificado sem as determinaes do universal e do particular (LUKCS, 2012, p. 60).
A importncia da formulao de Bhaskar7 reside no fato
de que demonstra, de maneira irrefutvel, que as correntes te-

Conferir, por exemplo, Bhaskar (1977), especialmente o captulo 1, e em Bhaskar


(1979), o captulo 2.

148

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

ricas que negam a possibilidade do conhecimento objetivo compartilham de uma ontologia plana, achatada, cuja origem pode ser
traada at Hume (1711-1776). Segundo o autor, dada a impossibilidade de justificar indutiva ou dedutivamente a existncia das
coisas como so em si mesmas8, Hume prope uma epistemologia (uma teoria do conhecimento) fundada nas impresses. Tal
teoria do conhecimento, contudo, implicitamente tem de gerar
uma ontologia (i.e., uma noo de como deve ser o mundo para
que seja passvel de conhecimento por parte do sujeito). Essa
ontologia, que Bhaskar denomina com razo de realismo emprico, s pode subentender a imagem de um mundo composto de
fatos, coisas, objetos etc. atmicos, enfim, singulares irredutveis
capturados pelo aparato sensorial dos sujeitos. Tal ontologia o
corolrio necessrio da concepo de que o nosso conhecimento
(cientfico) se reduz captura de regularidades empricas entre
fatos e fenmenos (ou padres estveis de relaes entre fenmenos) , concepo comum tradio positivista e seus crticos
ps-positivistas. Em outras palavras, teorias cientficas nada
mais so do que a expresso terica (generalizaes) de regularidades empricas percebidas pelos sujeitos. Nesse sentido, teorias so sempre subjetivas, construes arbitrrias dos sujeitos a
partir de suas percepes e, portanto, pressupem um mundo de
coisas que no esto em relao mundo de coisas atmicas.
Enfim, a crtica de Bhaskar e tambm a de Lukcs, embora
com outra arquitetura, consistem em mostrar que toda a crtica
razo, racionalidade ocidental etc., crtica a essa concepo
do conhecimento cientfico defendido e disseminado pela tradio positivista. E, se esse tipo de conhecimento cientfico foi
o mximo de razo que a humanidade conseguiu elaborar, no
custa muito passar da crtica a essa dbil noo de cincia crtica da razo enquanto tal.

Como toda teoria, seja construda de maneira indutiva ou dedutiva, empiricamente subdeterminada, a validao emprica por definio impossvel.

Captulo 6

149

Dessa forma, possvel sustentar que a crtica razo,


cincia, tem por fundamento no uma negao do realismo, mas
a adoo implcita de um realismo emprico, achatado, colapsado nas impresses dos sujeitos. Segundo essa tica, os mundos criados pelos sujeitos, portanto, sero tantos mundos, tantas
ontologias quantos so os consensos locais, tnicos, culturais,
classistas, entre outros. Por conseguinte, so mundos, so ontologias incomensurveis e, nessa medida, refratrias crtica. E
como essas figuraes do mundo so empiricamente plausveis
nos respectivos mbitos, entende-se por que Rorty propugna a
benigna negligncia em relao verdade: verdade aquilo
em que til acreditar. Preceito que resulta imediatamente da
paridade de todas as ontologias, pois se a realidade no pode ser
conhecida, s nos resta aceit-la como se apresenta, suas estruturas, restries e imperativos.
Contra essa equiparao de todas as figuraes do mundo,
de todas as ontologias, contra a impugnao da crtica que implica,
preciso reafirmar que a verdade faz a diferena e, no sendo
absoluta, somente pode ser alcanada sempre incompleta, relativa, histrica, mas objetiva por meio da crtica continuada.
Crtica que, pelas razes apontadas anteriormente, naturalmente
tem de ser ontolgica.
Para ilustrar a afirmao de que crtica de fato crtica
ontolgica tomo uma observao de Marx no momento de instaurao de sua crtica economia poltica. Trata-se de uma considerao do final da dcada de cinquenta do sculo XIX, quando
Marx tentava consolidar em um texto o resultado de cerca de 15
anos de estudo da economia poltica, trabalho cujo resultado ficou
conhecido como Grundrisse. A passagem, datada de fevereiro de
1858, extrada de uma carta de Marx a Ferdinand Lassalle:
Uma coisa criticar alguma categoria econmica aceitando a formulao geral do sistema em que ela est
inserida; outra coisa, muito diferente, efetuar uma
crtica das categorias econmicas ou uma exposio

150

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

crtica do sistema da economia burguesa (MARX;


ENGELS, 1978, p. 549).

No primeiro caso, realiza-se uma crtica gnosiolgica, ou,


caso se queira, uma crtica interna ao referido sistema de categorias. Ou uma crtica que aceita a figurao do mundo tal como
subentendida pelo sistema de categorias da teoria sob crtica. No
segundo, e esse o procedimento crtico defendido por Marx,
trata-se de submeter crtica a prpria figurao do mundo
daquele sistema de categorias e, por isso mesmo, refutar a teoria
nele fundada. Trata-se, enfim, de uma crtica ontolgica.
Objetivo que Marx consuma ao redigir O Capital, no qual
ele expe as estruturas fundamentais da economia capitalista
e sua dinmica contraditria. A exposio crtica no pretende
converter-se em uma cincia econmica nova e superior criticada, e, nessa medida, mais apta para administrar as contradies do sistema econmico. Ao contrrio, explora as contradies
inerentes quela dinmica e, sem ignorar seus efeitos positivos,
como o desenvolvimento das foras produtivas, a universalizao
das relaes etc., mostra como tal dinmica envolve igualmente
a submisso dos seres humanos ao seu produto, que os subjuga
crescentemente. O fetichismo do sistema do capital consiste
precisamente no fato de que nosso trabalho passado, objetivado
como capital, escraviza o nosso trabalho vivo com seu imperativo
de crescimento infinito. E, em aparente paradoxo, nos torna crescentemente suprfluos: humanidade crescentemente suprflua
por efeito de sua prpria atividade.
Ao lado disso, em sua anlise, Marx mostra que essa forma
de socialidade, negativa porque implica uma inverso de sujeito
e objeto, histrica, na sua gnese, naturalmente, mas tambm
no seu curso. E nas crises que sua dinmica experimenta Marx
v os espaos, as aberturas para prtica transformadora. Da sua
preocupao de estudar as crises do seu tempo. E de estudar as
leis que regulam a dinmica da acumulao de capital. No para

Captulo 6

151

propor, como se assinalou anteriormente, uma cincia econmica


mais eficaz para gerenciar as crises, para produzir um mundo do
capital mais humano, mais justo; mas, ao contrrio, para descortinar possibilidades de prticas transformadoras, capazes de
contribuir para a mudana da socialidade fundada no valor, no
capital, valor que se valoriza.
O Capital, ento, envolve uma cientificidade muito distinta da cientificidade promovida e requerida pela sociedade
capitalista. No captulo A Frmula Trinitria, j mencionado,
Marx sustenta que a economia vulgar (precursora da teoria neoclssica) nada mais fazia do que sistematizar doutrinariamente as
ideias dos sujeitos imersos nas relaes mercantis. E tanto quanto
eles, sentia-se em casa com as categorias e, por extenso, com a
imagem da sociedade capitalista tal como ela se apresenta imediatamente. Para se instaurar, a cincia contida em O Capital, ao
contrrio, pressupe a crtica dessas ideias, dessa imagem, dessa
ontologia. Portanto, resumindo em um slogan esse procedimento:
crtica efetiva crtica ontolgica.
guisa de concluso, caberia talvez a seguinte indagao:
a crtica ontolgica elaborada por Marx, a sua descrio crtica,
alternativa, da sociedade capitalista, com sua abertura para o
futuro, um futuro possvel de ser construdo pela humanidade,
essa descrio, ou essa ontologia, ainda persiste despertando
paixes e, por isso, alimentando prticas? Ou no? Ou as experincias em nome de Marx, com seus fracassos e barbaridades,
desqualificam aquela ontologia, de modo que hoje, sem uma concepo cientificamente objetiva da dinmica de nossa sociedade,
nossas prticas de dissenso so meramente reativas, e se perdem
no varejo exaustivo e errtico dos momentos em que tm de estar
presentes? Na ausncia de um futuro objetivamente descortinvel,
como fazer para que todas essas prticas possam convergir para
um movimento que de fato confronte o sistema? Sem alternativa
a lhe confrontar, o sistema est livre para implementar no atacado
todas as polticas que lhe convm? Ao que parece, est livre para

152

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

faz-lo porque, na condio de nica realidade e inteligibilidade


no pedao, pode desqualificar todo dissenso como irracional,
irrealizvel. Para desqualificar a desqualificao, portanto, a restaurao da ontologia crtica marxiana um imperativo.

Referncias
BHASKAR, R. A Realist Theory of Science. London: Verso, 1977.
BHASKAR, R. The Possibility of Naturalism: a Philosophical Critique
of the Contemporary Human Sciences. Brighton: The Harvester
Press, 1979.
BHASKAR, R. Scientific Realism and Human Emancipation. London:
Routledge, 2009.
DUAYER. M., MEDEIROS, J. L. G., Painceira, J. P. A Misria do
Instrumentalismo na Tradio Neoclssica, Estudos Econmicos,
v. 31, n. 4, p. 723-783, 2001.
DUAYER, M. Relativismo, Certeza e Conformismo: para uma Crtica
das Filosofias da Perenidade do Capital, Revista da Sociedade
Brasileira de Economia Poltica, v. 27, p. 58-83, 2010.
JAMES. W. J. Pragmatism: A new name for some old ways of thinking.
New York: Longman Green and Co,2007 (Texto original publicado
em 1907).
LUKCS, G. Para uma Ontologia do Ser Social, I. So Paulo:
Boitempo,2012.
LUKCS, G. Para uma Ontologia do Ser Social, II. So Paulo: Boitempo,
2013.
MARX, K. O Capital, Livro III. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1974
(Texto original publicado em 1867).

Captulo 6

153

MARX, K. Grundrisse. So Paulo: Boitempo, 2011. (Texto original


publicado em 1858).
MARX, K; ENGELS, F. Marx Engels Werke, Band 29. Berlin: Dietz Verlag,
1978.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alem, So Paulo: Boitempo, 2007.
(Texto orginal publicado em 1846).
RORTY, R. Contingency, Irony and Solidarity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989.
RORTY, R. Objectivity, relativism and truth. New York: Cambridge
University Press, 1990.
SUPPE, F. The Structure of scientific theories (afterword). Chicago:
University of Illinois Press, 1977. p. 617-630.

Captulo 7

Educao, ideologia e prxis


Ana Lia Almeida
Roberto Efrem Filho

Introduo

s relaes existentes entre ideologia e educao, embora


sejam negadas pelo senso comum e por muitos estudiosos,
parecem evidentes aos leitores da revista Veja um dos mais
difundidos veculos de comunicao do pas. Um de seus colunistas, Rodrigo Constantino, vem empreendendo esforos nos
ltimos anos para caracterizar, acertadamente, a educao como
um espao de intensa atuao das ideologias.

Em seus textos, Constantino advoga contra o que entende


ser uma tendncia histrica no Brasil, a inclinao de nossa intelectualidade seita religiosa do marxismo1. Ele mapeia e critica
eventos acadmicos de orientao marxista, sobretudo aqueles
que recebem algum tipo de financiamento pblico foi o caso
do Seminrio Direito e Marxismo, realizado na Universidade
Federal de Santa Catarina em outubro de 2013, com o apoio do
Programa de Educao Tutorial (PET), evento caracterizado pelo
colunista como uma modalidade de desvio de dinheiro pblico:
o governo usando nossos impostos para criar papagaios

1 Disponvel em: <http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/historia/


marxismo-e-seita-religiosa>. Acesso em: 19 maio 2014.

156

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

marxistas2. Considera, dessa forma, inadmissvel a utilizao


de financiamento pblico destinado construo do conhecimento cientfico para a propagao de ideologias comunistas
que, supostamente, em nenhuma medida se relacionam com a
cincia. Tambm no escapou da sagaz anlise de Constantino o
evento para o qual propusemos o Grupo de Discusso que nomeia
este trabalho. Trata-se do I Seminrio Marx Hoje, realizado na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte em abril de 2014,
abrindo a temporada do marxismo nas universidades federais
nesse ano, simbolizando o Brasil e a sua obsesso pelo atraso.
As anlises do colunista so emblemticas porque dizem
de uma contraposio entre ideologia e cincia. Elas procedem
desqualificao de iniciativas de formao de conscincia que se
colocam num campo de oposio ordem do capital; identificam
esse campo como ideolgico e legitimam a si prprias como
um ponto de vista isento de valoraes sobre o mundo social.
Mas anlises assim no perfazem fenmenos isolados. A educao, em verdade, comumente reivindicada como um espao de
neutralidade e objetividade na funo de transmitir e construir
conhecimentos necessrios ao desenvolvimento humano. Dessa
maneira, julga-se que no caberia educao avaliar que tipo de
desenvolvimento est em questo; atribuir juzos de valor quanto
funo social do conhecimento; se estaria ele a servio de interesses socialmente justos ou injustos; tampouco empreender
anlises que busquem associar a produo do conhecimento aos
interesses especficos de determinadas classes e grupos sociais.
No entanto, os processos educativos nas sociedades divididas em classes do-se de maneira inexoravelmente atravessada
pelos conflitos entre essas mesmas classes. A educao jamais
se realiza de forma neutra; antes, firma compromissos com os
interesses que subjazem tais conflitos, formulando anlises da

2 Disponvel em: <http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/socialismo/


doutrinacao-marxista-na-ufrn>. Acesso em: maio 2014.

Captulo 7

157

realidade segundo esses interesses, oferecendo-lhes uma justificao. O modo pelo qual os processos educativos firmam esses
compromissos atravs da construo de formas ideolgicas de
conscincia.
A funo dessas formaes ideolgicas, presentes na educao e em quaisquer outras dimenses do ser social a poltica,
o direito, a religio, a arte etc. a de reproduzir o todo da formao social. Em nossa compreenso, essas dimenses complexos,
no dizer de Lukcs, ou ainda, campos, nas anlises de Bourdieu
(2006) no podem ser consideradas isoladas umas das outras,
pois inexiste uma separao entre elas na realidade material.
A necessidade reivindicada por Constantino, por exemplo, de que a educao mantenha distncia em relao a um
projeto poltico de mudana do mundo, apresenta uma forma
fetichizada de conceber a educao como algo isolado e aparentemente alheio s disputas sociopoltico-econmicas. Ao mesmo
tempo, o colunista da Veja dissimula a defesa de uma perspectiva
da educao orientada pelo liberalismo, e, ao agir dessa forma,
ele toma partido num conflito a respeito de como o mundo deve
ser, distanciando-se, claramente, do que concebe como um projeto marxista.
As relaes entre educao e ideologia no so apenas
existentes como so inevitveis na sociedade de classes, em funo da necessidade de tomar partido nos conflitos entre perspectivas opostas quanto a aspectos centrais do mundo social.
Isso no significa, contudo, que seja sempre bvia a presena da
ideologia nos processos educativos, tampouco que as ideologias
dominantes imperem de modo absoluto no campo da educao.
Refletiremos, neste trabalho, a respeito da necessidade de
resgatar as anlises sobre os processos ideolgicos que se desenrolam na esfera da educao, a fim de inseri-la como uma parte
da totalidade da formao social. Em primeiro lugar, cabe delimitar a nossa compreenso de ideologia, a qual possui complexas
nuances tericas. Em seguida, problematizaremos a presena da

158

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

ideologia na educao, sustentando a centralidade do trabalho


no desenvolvimento humano como um elemento indispensvel
compreenso das disputas ideolgicas no complexo da educao.
Ao finalizar, analisaremos duas experincias das quais participamos na universidade, enquanto docentes, que apontam para a
importncia de uma efetiva prxis nos processos educativos que
se colocam no campo do enfrentamento da ordem posta, para
alm da difuso terica da tradio marxista.
Antes de desenvolver o texto, cumpre esclarecer que ele
fruto da sistematizao de um momento de debate no I Seminrio
Marx Hoje, em Natal (2014). Trata-se de um Grupo de Trabalho
em que os autores problematizaram a interlocuo entre ideologia, educao e prxis de modo didtico, voltado uma apresentao inicial dessas categorias e, sobretudo, apresentao das
experincias que aqui se expem, o que justifica o carter propedutico e um tanto esquemtico do presente trabalho.

A presena da ideologia na educao


A educao uma instncia ideolgica: produz e reproduz
formas de conscincia que orientam e permeiam completamente
os processos educativos. Essa orientao ideolgica est presente
tanto na educao compreendida de forma mais restrita a educao formal, que acontece junto s instituies oficiais de ensino
como nos processos mais amplos de transmisso e construo
de conhecimentos e valores teis reproduo social que se
desenrola em todas as esferas da formao social (no trabalho, na
poltica, na religio, no direito, na famlia, na mdia etc.).
Esses processos de formao de conscincia, como veremos, embora sigam a orientao dominante de funcionamento da
esfera econmica, no o fazem de modo simplista ou mecnico
(como pretenderam e ainda pretendem algumas interpretaes
dentro da tradio marxista), possuindo, antes, formas complexas de interao com o todo da formao social. Mas, sem dvida,

Captulo 7

159

apesar das contradies existentes, a esfera da educao indispensvel para reproduzir a diviso social do trabalho, garantindo
o funcionamento da sociedade de classes.
Para compreendermos de modo mais aprofundado a afirmao da educao enquanto instncia ideolgica da sociedade
de classes, isto , enquanto esfera necessria reproduo do
capital processo que no se d sem tenses , devemos, em
primeiro lugar, situar a nossa compreenso acerca da categoria
de ideologia.

Ideologia como conscincia prtica da realidade


importante delimitar a nossa compreenso a respeito do
que seja ideologia porque tal categoria recebe um tratamento nada
linear entre os diversos tericos que se ocuparam dela, inclusive
no interior da tradio marxista, na qual se configuram seus contornos mais conhecidos.
Desde o seu primeiro uso em meados do sculo XIX, por
um crculo de filsofos franceses como uma nascente cincia
que investigaria a formao fisiolgica das ideias nas mentes das
pessoas (KONDER, 2002) passando pela ressignificao realizada por Napoleo Bonaparte, em conflito com esse grupo ao qual
atribuiu a alcunha pejorativa idelogos; at os diversos sentidos
dados pelos marxistas, o termo ideologia tem uma histria bastante polmica, confusa e complexa3 (EAGLETON, 1996).
A nossa compreenso da ideologia se insere no quadro
terico de Istvn Mszros (em O Poder da Ideologia), baseando-se tambm nas formulaes de Karl Marx (sobretudo no Prefcio
da Crtica Economia Poltica) e Gyorgy Lukcs (em Para uma
Ontologia do Ser Social): uma forma de conscincia social

Muitos tericos chegam mesmo a reivindicar a inutilidade do termo enquanto


categoria de anlise, por ter ele se tornado demasiado amplo e difcil de precisar
o caso, por exemplo, das consistentes anlises de Bourdieu e Eagleton (1996).

160

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

orientada para a ao, legitimadora de certos posicionamentos


(sejam de conservao ou de transformao da ordem) existentes
em funo de interesses conflitantes materialmente presentes nas
sociedades de classes. Nas palavras de Mszros (2004, p. 65),
a ideologia constituda objetivamente como: uma conscincia
prtica inevitvel das sociedades de classe, relacionada com a
articulao de conjuntos de valores e estratgias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus principais
aspectos.
Como argumenta Karl Marx, numa passagem clebre
no Prefcio de Contribuio Critica da Economia Poltica
(1859/2008), que orienta a perspectiva de Gyorgy Lukcs e Istvn
Mszros; as ideologias so aquelas formas de conscincia atravs das quais os homens e as mulheres se do conta dos conflitos
fundamentais da sociedade, tomam partido nesses conflitos e os
resolvem pela luta. No pertencem, portanto, apenas ao mundo
da conscincia; tm o poder de operar materialmente; incidir, de
fato, na realidade. Nas palavras de Lukcs (2013, p. 465), a ideologia sobretudo a forma de elaborao ideal da realidade que
serve para tornar a prxis social humana consciente e capaz de
agir.
Tal compreenso da ideologia assume uma perspectiva
ontolgica, colocando o problema do ponto de vista da incidncia prtica das ideologias na realidade buscando identificar
sua atuao e sua funo social (LUKCS, 2013). No se trata,
portanto, de um problema de cognio, da correspondncia entre
ideia e verdade, como reivindica a perspectiva gnosiolgica a respeito do assunto. No nos importa, portanto, para caracterizar um
posicionamento como ideolgico, ele ser necessariamente incorreto ou falso, tampouco que sirva necessariamente manuteno
da ordem.
A perspectiva gnosiolgica, ou seja, ocupada com a falsidade do pensamento como um elemento caracterizador da ideologia, est certamente relacionada forma como Marx e Engels

Captulo 7

161

colocaram o problema em A ideologia Alem (1846/2007), obra


de referncia quanto ao tema. Em denso esforo terico, eles se
ocuparam com a anlise do pensamento dos filsofos neo-hegelianos de seu tempo, sustentando que as formulaes desses tericos provocavam uma inverso na explicao da realidade, um
falseamento decorrente da forma com que procediam s investigaes partindo das prprias ideias, e no tomando a realidade como ponto de partida para a compreenso do mundo. Essa
forma de construir conhecimento, segundo Marx e Engels, ainda
que inconscientemente, firma um compromisso com a manuteno dos interesses da classe dominante, pois impede uma investigao da realidade de modo a possibilitar a interveno para
modific-la. Por isso eles defendem a necessidade de lidar com o
conhecimento de uma forma radicalmente nova o materialismo
histrico dialtico , partindo da realidade material e com vistas
sua transformao para uma outra ordem social, em que no
existam mais relaes de explorao.
A partir dessas ideias, a noo de ideologia se consolida
em parte da tradio marxista como uma falsa conscincia da
realidade que colabora para a manuteno da ordem dominante.
Da passa a ser comum o equvoco da adoo da perspectiva gnosiolgica da ideologia4. Aqui, o problema colocado no campo
da cognio, ligado meramente ao plano da conscincia, tendendo
ao cultivo de uma atitude idealista, de que basta o pensamento se
encontrar com a verdade para que a mudana da realidade acontea. Essa perspectiva tambm favorece um entendimento pejorativo da ideologia, vista apenas como o ponto de vista dominante
e se concentrando na sua crtica em vez de investir nos processos
ideolgicos que fundamentem aes polticas de contestao e
transformao da ordem. Dessa abordagem resulta uma postura
4

Colocam-se nesse campo, dentro da tradio marxista, as formulaes sobre ideologia de importantes tericos como Althusser, Marilena Chau, Michel Lwy e
Leandro Konder, segundo Maria Teresa Buomano Pinho (2013), em tese de doutorado sobre a ideologia em Marx, Lukcs e Mszros.

162

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

equivocada quanto ao potencial efetivo de incidncia das ideologias na prtica social, que pode e deve ser utilizado a favor dos
processos de emancipao.
No entanto, a leitura atenta de A ideologia Alem nos
autoriza a tomar concluses diversas. Marx e Engels jamais conceberam a ideologia como um mero problema de cognio, ligado
unicamente ao plano da conscincia. Pelo contrrio, as formas
ideolgicas possuem claramente, em suas anlises, uma base
material real, que a produo da vida humana, as relaes efetivas que estabelecem uns com os outros ao interagir com a natureza e construir o mundo social. Ainda que essas ideias possam
parecer autnomas, elas no tm histria prpria; sendo, antes, a
vida real que determina o plano da conscincia e por ela reciprocamente determinada (MARX; ENGELS, 1846/2007). Da resulta
que esse plano da conscincia no algo isolado, que pode, dessa
forma, incorrer numa correta ou falsa atitude cognitiva, desvinculada das posies que os sujeitos ocupam na sociedade.
A ideologia no se trata de algo que permanea no pensamento, por mais que tenha valor ou desvalor; um meio de
luta social e diz respeito, portanto, prxis (LUKCS, 2013). Por
isso, para compreender adequadamente o problema da ideologia,
necessrio partir da perspectiva ontolgica, buscando entender
a funo social desses processos de conscincia, a forma como
atuam como uma conscincia orientada para a prtica, a maneira
como se realizam enquanto poderes realmente operantes, nas
palavras de Lukcs (2013, p. 481).

O papel da educao na reproduo


da ordem do capital
Como vimos, ao contrrio do que defende a perspectiva ideolgica dominante, que apresenta a educao como um
lugar neutro de transmisso e construo do conhecimento, os
processos educativos se desenrolam por meio da atuao das

Captulo 7

163

ideologias, em sua maioria, funcionais reproduo de determinada formao social em que esto inseridos. Como argumenta
Istvn Mszros em A Educao Para Alm do Capital (2005, p.
25), pouca gente negaria hoje que os processos educacionais e os
processos sociais mais abrangentes de reproduo esto intimamente ligados. O padro idealizado de escola, de fato, cumpre
um importante papel no fortalecimento de valores como hierarquia, obedincia, disciplina, competio etc.; todos indispensveis ao bom funcionamento de relaes de trabalho nos moldes
exploratrios concebidos no capitalismo5.
A partir de funes diferentes, a escola e as outras esferas
relevantes para a reproduo da ordem social (poltica, direito,
arte, religio etc.) reforam os valores centrais ordem do capital,
pois, enquanto partes da totalidade social, esses mbitos tm no
capital o elemento hegemnico da sua entificao, nas palavras
de Ivo Tonet em Educao Contra o Capital (2012, p. 16).
Uma das consequncias que nos diz respeito mais diretamente, nessa reflexo que trazemos, a de que qualquer mudana
pretendida no campo da educao no pode ter xito se no
estiver acompanhada de uma mudana na esfera econmica; se
no incidir no modo atravs do qual se organiza o trabalho dos
homens e das mulheres.
Na contramo desse entendimento, comum a percepo
de que a educao pode mudar o mundo, ou de que a raiz do
problema social est na falta de educao. claro que o mundo
da educao pode contribuir para estimular processos de conscincia que enfrentem as desigualdades sociais, embora no seja
essa a lgica que predomina junto aos processos educativos ao
5

Fazemos a ressalva quanto ao padro idealizado de escola por compreender que


tais processos disciplinadores analisados por Foucault no podem ser generalizados para todos os contextos histricos. Ao observar as escolas pblicas do nosso
pas, por exemplo, no encontraremos a disciplina escolar nos moldes foucaultianos; embora compreendamos que os problemas enfrentados nesse mbito da
educao so tambm funcionais ao capital, medida que dizem de um completo
desinvestimento na formao da classe trabalhadora.

164

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

contrrio do que sustenta as anlises de Rodrigo Constantino. No


entanto, enquanto uma transformao no incidir sobre as relaes materiais de produo, alterando radicalmente a forma de
organizar o trabalho, no pode haver nenhuma mudana significativa na ordem social, muito menos protagonizada pela educao.

Duas experincias de enfrentamento


ideolgico na prxis educativa
Na ltima das onze Teses sobre Feuerbach, Marx coloca a
difundida e nunca suficientemente compreendida ideia de que
os filsofos teriam, at ento, apenas interpretado o mundo de
maneiras diferentes, e que a questo tratava-se, a partir dali, de
transform-lo (MARX; ENGELS, 1846/2007). Longe de subestimar
a importncia de conhecer a realidade, sem o que nenhuma transformao seria possvel, Marx chamava a ateno para a necessidade de articular a teoria com a prtica dentro de um projeto
poltico revolucionrio da ordem social. Entendemos que esse
um desafio prioritrio para a tradio marxista: o reencontrar-se
com a prxis.
Do lugar que ocupamos enquanto marxistas trabalhadores da educao, docentes do curso de direito na Universidade
Federal da Paraba (UFPB), buscamos levar em conta essas reflexes para decidir em que espaos de atuao dentro da universidade devemos investir esforos de modo mais contundente,
tendo em vista a capacidade de alimentar processos educativos
de questionamento da ordem posta. Em meio rotina da sala
de aula, necessidade de legitimao perante comunidade
cientfica mais envolvida com o produtivismo acadmico do
que com a maturidade de anlises tericas mais aprofundadas
, mediando tambm com a necessidade das tarefas administrativas, vivemos em um tempo de profunda reestruturao da
universidade pblica. Esse processo, obviamente, no ocorre de
forma descolada das demandas da reestruturao produtiva na

Captulo 7

165

esfera econmica, afinal de contas, como argumenta Marilena


Chau (2003, p. 1), a universidade, enquanto uma instituio
social, exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de
funcionamento da sociedade como um todo.
Segundo as anlises de Roberto Leher (2012), vem ocorrendo nos ltimos anos uma reorientao da necessidade de produo do conhecimento para o setor de servios, que apresenta
um maior crescimento na atual fase do modo de produo capitalista. As implicaes dessa reestruturao apresentam peculiaridades na periferia do capitalismo, em funo da posio que
esses pases sempre ocuparam na diviso internacional do trabalho. Desse modo, a formao educacional na Amrica Latina e
em outras economias perifricas continua orientada para a formao de trabalhadores que devem ocupar postos de trabalho mais
precarizados no setor de servios, e apenas excepcionalmente
ocuparo uma posio relevante no processo produtivo quanto
ao domnio das tecnologias o caso, por exemplo, de alguns
centros de excelncia no Centro-Sul do Brasil.
Nesse contexto, em uma universidade pblica do Nordeste
do Brasil, que se d a nossa atuao, junto ao curso de Direito.
Cabe mencionar, ainda, o intenso conservadorismo que est umbilicalmente ligado ao campo jurdico, e que encontra na formao de seus profissionais mecanismos particularmente eficientes
de reproduo da lgica do capital, como bem analisou Lukcs
(2013, p. 249) em j aludida passagem da Ontologia.
Nossa opo consiste em priorizar o apoio e o fortalecimento de grupos de estudantes que atuam junto ao movimento
estudantil e interagem com algumas organizaes da classe trabalhadora. Organizamo-nos com eles da maneira mais horizontalizada possvel; oferecemos suporte quanto garantia de certas
condies estruturais de funcionamento; e os apoiamos quanto
ao aspecto da formao terica. Nessa atuao, privilegiamos a
construo de dois espaos poltico-acadmicos: o Ncleo de

166

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Extenso Popular Flor de Mandacaru (NEP) e o Grupo de Pesquisa


Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas).
O Ncleo de Extenso Popular Flor de Mandacaru um
grupo de assessoria jurdica universitria popular (AJUP), institucionalmente localizado na extenso universitria, mas protagonizado por estudantes, que acompanha demandas jurdicas
e polticas de determinadas organizaes ligadas classe trabalhadora e aos demais sujeitos subalternizados na sociedade
de classes. Os grupos de assessoria jurdica popular como o
NEP se organizam nacionalmente atravs da Rede Nacional de
Assessoria Jurdica Universitria a RENAJU. Embora tenham
peculiaridades e mbitos de atuao bastante diversos, tais coletivos se caracterizam pela autonomia dos estudantes quanto sua
direo, pela horizontalidade na sua organizao, pela opo de
ampliar o enfoque de atuao jurdica para alm de uma perspectiva processual assistencialista (trabalhando muitas vezes com
a educao popular) e, sobretudo, pela opo poltica de firmar
compromisso com a classe trabalhadora e os grupos sociais subalternizados (Almeida, 2013).
O NEP, atualmente, organiza cerca de quinze estudantes
e possui trs frentes de atuao principais. Na primeira delas,
acompanhamos conflitos ligados luta por moradia e reforma
agrria junto ao Movimento Terra Livre (MTL) e ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Numa segunda frente,
atuamos com demandas ligadas a questes de feminismo, gnero
e sexualidade; desenvolvendo atividades junto ao Movimento de
Mulheres e ao Movimento de lsbicas, gays, bissexuais e travestis
e transexuais (LGBT). Em uma frente de atuao mais recente,
acompanhamos conflitos do mundo do trabalho, buscando dialogar com certos setores do sindicalismo e fortalecer alguns processos organizativos de trabalhadores. Afora essas frentes de atuao,
acompanhamos uma organizao chamada Assembleia Popular,
que funciona como um frum em que se encontram alguns

Captulo 7

167

movimentos e organizaes populares do estado da Paraba, articulando suas pautas.


J o Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais
(GPLutas), coordenado pelas professoras Dra. Renata Ribeiro
Rolim, Ana Lia Almeida e pelo professor Roberto Efrem Filho,
rene pesquisadores marxistas voltados s lutas sociais, privilegiando sujeitos que estejam, de fato, inseridos em algum tipo de
prtica poltica. Seu interesse primeiro o de promover anlises acadmicas alimentadas pelas experincias de organizao e
necessidades da classe trabalhadora e de diversos grupos sociais
subalternizados. Pretendemos construir um espaotempo de formao poltica, reflexo e articulao sobre as prticas polticas
com que os pesquisadores se comprometem. O GPLutas pressupe, portanto, que ao e reflexo no se dissociam, buscando
fomentar experincias tericas que se articulem com a prxis.
Somos parceiros do Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos
Sociais (IPDMS), uma organizao nacional que busca congregar
pesquisadores da rea do direito que se ocupam em construir
conhecimento voltado ao fortalecimento das lutas sociais na
busca por emancipao.
Em sua atividade inaugural, no segundo semestre de 2012,
o GPLutas se debruou sobre algumas das obras de Marx e Engels,
com o objetivo de provocar uma aproximao introdutria dos
estudantes pesquisadores com a tradio marxista. Nesses dois
anos de existncia, o grupo realizou, alm dessa formao inicial,
outras trs, em formato de minicurso: com a temtica da cidadania versus emancipao humana; sobre o mtodo marxiano de
construo do conhecimento (ambos ministrados pelo professor
Dr. Ivo Tonet); e uma terceira abordando a metodologia da pesquisa de campo sob o prisma da antropologia, com o professor
Ninno Amorim. O GPLutas tambm vem funcionando como um
espao de orientao coletiva e produo acadmica, sobretudo
de monografias de concluso de curso, mas tambm de dissertaes e teses, alm de artigos cientficos. Nessas orientaes,

168

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

privilegiamos anlises de experincias concretas de atuao


dos pesquisadores junto a processos de lutas sociais, buscando
fomentar a construo da pesquisa de campo como ponto de partida para as reflexes tericas.
Esses dois grupos atuam de forma conjunta na UFPB, conformando um campo poltico-acadmico que articula a dimenso
da extenso e pesquisa com a prtica poltica de setores do movimento estudantil, sobretudo os ligados assessoria jurdica universitria popular. Tambm integram um campo poltico externo
academia, j que incidem junto a alguns processos organizativos mais amplos da classe trabalhadora e de grupos sociais subalternizados da cidade de Joo Pessoa e do estado da Paraba.

Consideraes finais
As anlises empreendidas pela revista Veja, trazidas no
incio deste trabalho, de modo algum correspondem realidade
da conjuntura ideolgica da universidade hoje, francamente hegemonizada por perspectivas tericas de matriz liberal. Mas elas,
de certa forma, retratam uma dificuldade do marxismo em extrapolar os muros do ambiente acadmico, estando, nesse sentido,
limitado a uma parcela (pequena, diga-se de passagem) da esfera
da educao. As organizaes da classe trabalhadora como os
partidos polticos, os sindicatos e os movimentos sociais populares encontram-se politicamente distantes da perspectiva do
rompimento com a ordem do capital, na mesma medida que esto
tambm distantes das ideias do marxismo.
Vivemos, por outro lado, um perodo histrico de intensa
crise do capital. E no se trata de mais uma crise cclica, prpria
da dinmica de manuteno do modo de produo capitalista,
mas de uma crise estrutural, como analisa Mszros (2011). Esta
conjuntura histrica apresenta uma intensificao dos conflitos
entre capital e trabalho e, consequentemente, um acirramento das
disputas no mbito das ideologias.

Captulo 7

169

Paradoxalmente, o discurso dominante sustenta que o


enfoque da ideologia uma forma inadequada, porque ultrapassada, de analisar os conflitos sociais. Enquanto isso, os conflitos
centrais que se desenrolam nas sociedades de classes continuam
acirradamente a ser traduzidos por meio de embates ideolgicos entre posies conflitantes a respeito do exerccio do poder.
Compreendemos que a aludida refutao terica que enfrenta a
categoria de ideologia est fundamentalmente relacionada a certa
hesitao das esquerdas frente a um perodo histrico de ofensiva material e simblica do capital, que retira de cena as anlises
que tm como horizonte a superao radical e definitiva da atual
forma de organizar as relaes sociais.
Ocorre com a recusa da ideologia enquanto categoria de
anlise, nesses termos, a mesma situao de outras construes
analticas centrais tradio marxista como a centralidade do
trabalho, a existncia de classes sociais, luta de classes e a possibilidade de uma revoluo; todas elas ideologicamente consideradas obsoletas e inteis para compreender um mundo em que
supostamente a ordem do capital tornou-se um consenso absoluto, ainda que esteja caracterizado um perodo histrico de crise
estrutural dessa forma de organizao social.
Essa identificao dos reais motivos (ideolgicos) por trs
da recusa terica a tais termos revela, antes, a necessidade de resgatar e atualizar constantemente as anlises da tradio marxista.
Isso porque, por trs do discurso de que a ideologia algo ultrapassado e/ou no cientfico, faz-se presente um posicionamento
ideolgico a respeito de como o mundo social deve permanecer
sendo organizado, ou, dizendo de outro modo, de como o seu
funcionamento no deve ser fundamentalmente alterado.
A esfera da educao no pode interferir nessa conjuntura histrica de maneira isolada, como se fosse capaz de frear
as atrocidades que vm sendo cometidas contra a imensa maioria da populao do mundo em nome de um modelo de desenvolvimento econmico baseado na explorao. No entanto, os

170

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

processos educativos podem contribuir, e muito, no embate ideolgico com a perspectiva do capital, sobretudo se for enfrentado
o desafio de trazer a prxis revolucionria para o centro das preocupaes da tradio marxista.

Referncias
ALMEIDA, A. L. A ideologia e os grupos de assessoria jurdica popular.
In: II SEMINRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS
SOCIAIS, 2, 26-28 abr. 2012, Gois. Anais... Gois: Instituto de
Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, 2013.
BOURDIEU, P. O poder simblico. 10. ed. (Trad. de Fernando Tomaz).
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
BOURDIEU, P.; EAGLETON, T. A doxa e a vida cotidiana: uma
entrevista. In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto,1996.
CHAU, M. A universidade pblica sob nova perspectiva. Revista
Brasileira de Educao, v. 24, p. 5-15, 2003.
EAGLETON, T. A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental.
In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996.
KONDER, L. A questo da ideologia. So Paulo: Companhia das Letras,
2002.
LEHER, R. O governo Dilma, a greve nacional dos docentes e a
universidade de servios. 2012. Disponvel em: <http://
andesufrgs.wordpress.com/2012/05/27>. Acesso em: maio 2014.
LUKCS, G. Para uma ontologia do ser social II. So Paulo: Boitempo,
2013.

Captulo 7

171

MARX, K. Contribuio crtica da economia poltica. So Paulo:


Expresso Popular, 2008. (Texto original publicado em 1859).
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo, 2007.
(Texto original publicado em 1846).
MSZROS, I. O Poder da Ideologia. So Paulo: Boitempo, 2004.
MSZROS, I. A educao para alm do capital. So Paulo: Boitempo,
2005.
MSZROS, I. Para Alm do capital: rumo a uma teoria de transio.
(Trad. de P. C. Castanheira e S. Lessa). So Paulo: Boitempo, 2011.
PINHO, M. T. B. Ideologia e formao humana em Marx, Lukcs e
Mszros. 2013. Tese (Doutorado em Educao brasileira)
Programa de Ps-graduao em Educao Brasileira da Faculdade
de Educao da Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2013.
TONET, I. Educao Contra o Capital. So Paulo: Instituto Lukcs, 2012.

Captulo 8

Marxismo e Amrica Latina: histria


e possibilidades no sculo XXI
Daniel Araujo Valena

Introduo

marxismo chegou Amrica Latina na virada do sculo


XIX para o XX. Regio responsvel por parte da acumulao primitiva de capital na Europa no perodo do capitalismo
comercial, inmeras foram as rebelies e sublevaes indgenas
e negras anteriores chegada da teoria social marxista em nosso
continente.
A partir dela, todavia, se de um lado a classe trabalhadora
passou a ter um suporte terico para balizar a sua prxis poltica,
de outro, recorrentes foram as tentativas de um trasladar mecnico do marxismo, como se dogma fosse, a ser totalmente copiado
no novo continente, ou a inclinao a sustentar sua inadequao
para a regio.
Diante desse contexto, esse texto atende, pois, a dois
objetivos: primeiramente, ao intuito da organizao do seminrio de propor um espao para o debate sobre marxismo e
Amrica Latina; temtica essa de, no raro, escassa produo e
visibilidade frente sua importncia. Ademais, intenta resgatar

174

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

mesmo que brevemente a histria da filosofia da prxis1 no


continente latino americano para, da, propor-se alguns elementos voltados anlise dos processos polticos vivenciados nos
pases andinos, neste sculo, com recorte quanto Bolvia e seu
Estado Plurinacional. Argui-se, pois, que o marxismo revela-se
mais que atual nesta realidade, sendo necessrio o manejar dessa
teoria social revolucionria de maneira crtica, no dogmtica,
para no se incorrer em equvocos passados e, ao mesmo tempo,
potencializar o processo atual.
Para tanto, opta-se por abordar a temtica a partir de quatro momentos: uma breve compreenso da teoria social da filosofia da prxis; logo aps, uma panormica viso sobre o marxismo
e a luta socialista na Amrica Latina. Por fim, elementos dos
processos polticos vivenciados atualmente na Amrica Andina,
especialmente na Bolvia.

A teoria social de Marx e Engels:


elementos introdutrios
Desde que se consolidaram as sociedades cindidas em
classes sociais que h luta poltica e elaboraes tericas sustentando relaes de igualdade2. Com a modernidade, se de um lado
h a conformao de toda uma cientificidade burguesa, na qual
aparecem autores como Locke, Kant e Hegel, dentre outros, tambm surgiram intelectuais descontentes com as condies sociais
e econmicas da sociedade nascente, tais como Saint-Simon,
Fourier, Blanc e Owen. Este segundo grupo veio a conformar o
que seria denominado de socialismo utpico: de u-topos, ou seja,
do no lugar.

1 Em Cadernos do Crcere, Gramsci utiliza a expresso filosofia da prxis, tanto


para fugir da censura do fascismo quanto para reforar a unidade dialtica entre
teoria e prtica imanente ao marxismo.
2

Para um maior aprofundamento, recomenda-se a leitura de Beer (2006).

Captulo 8

175

Isso porque, em geral, nessa grande linha terica, havia


um repdio aos efeitos do capitalismo e a proclamao de outra
sociedade, igualitria, solidria. Todavia, eles no se debruavam
em relao a desvendar o funcionamento do capitalismo enquanto
sistema, e, por outro lado, estavam completamente apartados da
luta poltica: no chegaram a constituir uma teoria da revoluo,
da prxis poltica, de ttica ou estratgia (HOBSBAWM, 2011).
Ao contrrio, seriam as ideias dos pensadores da poca as que
teriam condies de alterar aquela determinada realidade.
Ao longo do sculo XIX ocorreu intensa disputa no campo
socialista pela liderana terica e poltica do movimento. nesse
momento que o socialismo cientfico ganha corpo diante do utpico e de demais tendncias da esquerda:
Marx difere de seus predecessores em trs aspectos.
Primeiro, substitua uma anlise crtica parcial da sociedade capitalista por uma anlise abrangente, baseada
num exame da relao fundamental (nesse caso, econmica), que regia essa sociedade (p. 49). [...] segundo,
ele inseria o socialismo no quadro de uma anlise histrica evolucionista, o que explicava duas coisas ao
mesmo tempo: por que o socialismo surgiu como teoria
e como movimento; e por que o desenvolvimento histrico do capitalismo deve por fim gerar uma sociedade
socialista (p. 50). [...] Terceiro, ele elucidava a forma
de transio da antiga sociedade para nova: o proletariado seria seu executor, atravs de um movimento de
classe empenhado numa luta de classes que s alcanaria seu objetivo atravs da revoluo a expropriao
dos expropriadores. O socialismo deixaria de ser utpico para se tornar cientfico (HOBSBAWM, 2011,
p. 49-50).

Marx e Engels, vo, portanto, conformar o que seria


denominado de socialismo cientfico: buscaram uma fundamentao cientfica, sofrendo influncias do desenvolvimento capitalista e cientificista da poca; suplantaram a mera

176

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

indignao e voltaram-se a compreender o desenvolvimento das


foras produtivas poca, as formas polticas e classes sociais.
Para tanto, recuperaram elementos do socialismo utpico, da economia poltica inglesa, bem como da filosofia clssica alem3. A
frente desta, Hegel construiu uma filosofia da histria fundada na
dialtica; todavia, como bom idealista, acreditava que a ideia, o
esprito, moviam o mundo. Marx, ento, subverte sua dialtica: o
ser social determina a conscincia social e no o oposto.
A obra marxiana, como no poderia deixar de ser, vai se
conformando e amadurecendo ao longo das dcadas. Ainda na
primeira metade do sculo XIX, Marx amadurece rapidamente
sua reflexo terica: em Para a Questo Judaica (1843/2009),
reconhece a importncia da emancipao poltica (e a desvincula
da questo religiosa, em confronto com o proposto por Bruno
Bauer), mas aponta seus claros limites, distinguindo-a da emancipao humana4.
J em Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx conclui que as formas constitucionais eram secundrias em relao
ao contedo social; a democracia ento aventada e comemorada
era uma parte formal do Estado, e no sua essncia:
A oposio entre Estado e sociedade civil [de acordo
com Hegel] est, portanto, consolidada; o Estado no
reside na sociedade civil, mas fora dela; ele a toca apenas mediante seus delegados, a quem confiado a
gesto do Estado no interior dessas esferas. Por meio
destes delegados a oposio no suprimida, mas
transformada em oposio legal, fixa. O Estado
feito valer, como algo estranho e situado alm do ser
da sociedade civil, pelos deputados deste ser contra a

Recomenda-se a leitura de As trs fontes (1913/2006), de Lenin, disponvel em


formato impresso em publicao da Expresso Popular.

Nesse sentido, aponta: a emancipao poltica , sem dvida, um grande progresso; ela no , decerto, a ltima forma de emancipao humana, em geral, mas
a ltima forma de emancipao poltica no interior da ordem mundial at aqui
(MARX, 1843/2009, p. 52).

Captulo 8

177
sociedade civil. A polcia, os tribunais, e a administrao no so deputados da prpria sociedade
civil, que neles e por meio deles administra o seu prprio interesse universal, mas sim delegados do Estado
para administrar o Estado contra a sociedade civil
(MARX, 1843/2013, p. 74).5

Dessa maneira, Marx vai desmontando a ideia de um Estado


democrtico acima dos interesses particulares, de um Estado
de Direito e, logo mais, em Introduo Crtica da Filosofia do
Direito de Hegel (1844/2013), as classes sociais aparecem como
elemento construtor da histria e a classe proletria como a capaz
de superar a sociedade capitalista.
Marx e Engels, durante a dcada de 1840, tero a convico de que a revoluo proletria mundial estava prxima. Com
a derrota proletria nas revolues de 1848, Marx resolve, ento,
partir para um estudo aprofundado da economia poltica e da
essncia do capitalismo, tarefa a qual se dedicar at o fim da vida
com O Capital (1905/1980; 1894/2008; 1867/2013; 1885/2014).
Mesmo nesse perodo, no abandonara nem a militncia
poltica, menos ainda a anlise concreta sobre as lutas de classes
de sua poca, dentre as quais destaca-se Guerra Civil na Frana
(1871/2011), na qual debrua-se sobre a indita e impressionante
experincia da Comuna de Paris.
Marx parte pois, das categorias historicidade, dialtica,
totalidade, negao e mediao para construir seu mtodo. Ao
oposto de escritores de outros campos tericos, ele no redigiu
nenhuma obra com esse intuito; o mtodo aparece e toma corpo
ao longo de seus trabalhos, j que Marx est voltado para a compreenso e transformao da realidade; para ele, o mtodo no
um fim em si mesmo. A totalidade no se trata de juno de
fatores diversos; configura-se na interconexo entre o particular
e o universal, que se retroalimentam. A historicidade tem sua
5

Colchetes no original.

178

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

importncia quanto a, apesar de nos determos aparncia, esta


a exteriorizao de uma essncia, situada na histria, em curso
e, portanto, esta revela-se eminentemente provisria, em construo. Nesse sentido, ela dialtica; a contradio que move
o mundo, especialmente entre as foras produtivas e as relaes
sociais de produo. Confronta-se, pois, diretamente com a viso
da sociedade enquanto um organismo em que conflitos representam disfunes e algo a ser eliminado com fins de manter o bom
funcionamento para todos. E, ao se negar um estado, instiga-se
a reao oposta (negao da negao). Por fim, necessrio uma
mediao entre o pensamento e o real; o marxismo , pois, a anlise concreta da realidade concreta para fins de transform-la a
partir da ao da poltica, e no da ideia em si, da mudana interior dos indivduos, de Deus ou outra fora transcendental.
Parte-se dessas categorias, pois, para recuperar a histria
do marxismo enquanto teoria e prxis poltica de luta pelo socialismo no continente, e trazer breves comentrios sobre os processos polticos andinos, especialmente o boliviano.

A tradio marxista e a disputa


pela teoria social marxiana
No momento do falecimento de Marx, o marxismo j
hegemnico na disputa ideolgica da esquerda o anarquismo,
por exemplo, torna-se minoritrio e se inaugura um novo perodo: a disputa dentre marxistas em relao a quais elementos
eram centrais em sua teoria social. poca, vrios de seus escritos ainda no tinham sido publicados, o que dificultava sobremaneira a compreenso da totalidade de seu pensamento. No
se intentar, neste momento, debater sobre as diversas correntes
do marxismo, mas, sim, resgatar algumas divergncias no campo
do marxismo e que tero influncias no continente latino-americano. Trata-se, pois, de um recorte terico arbitrrio, realizado
com esse fim especfico.

Captulo 8

179

A Revoluo Russa: natureza e sujeito


histrico revolucionrio em debate
Com a virada do sculo XIX para o XX, o centro do debate
socialista se traslada para a Rssia. Ante a possibilidade de revoluo, trs vertentes se destacavam: a ortodoxia dizia que primeiro tinha de ocorrer uma revoluo burguesa para, s aps,
desencadear-se a socialista. Por outro caminho, o economicismo
defendia que o socialismo deveria ser construdo pela luta econmica e a luta poltica deveria ser da burguesia. Lnin, em posio
heterodoxa, postulava que a classe operria deveria dirigir a revoluo burguesa para, logo a seguir, transform-la em revoluo
socialista. Para ele, cada pas detinha uma realidade especfica6
e, se na Rssia sua burguesia no aspirava revoluo burguesa,
esta deveria ser conduzida pelos trabalhadores.
Como pano de fundo desse debate, emergem as questes
de natureza da revoluo e sujeito histrico revolucionrio, temas centrais nas divergncias no campo do marxismo na
Amrica Latina, ao longo do sculo XX.
Ocorre que a previso de revoluo mundial, a partir
da Revoluo Russa e da instabilidade global provocada pela
Primeira Guerra, no veio a se concretizar; a revoluo alem,
italiana e hngara de 1919 foram derrotadas e o movimento revolucionrio entrou em perodo de refluxo.
Abre-se um novo momento internacional e nele se destaca
a reflexo de Antnio Gramsci, especialmente em seus Cadernos
do Crcere, redigidos enquanto estava na priso, durante o regime
fascista.
A originalidade gramsciana est em antecipar as consequncias das mudanas em curso na esfera poltica para a luta
socialista. Para ele, nesse momento histrico j se consolidava
6

Para Carlos Nelson Coutinho, Gramsci acompanha vrias das elaboraes de


Lnin; sua preocupao com a realidade nacional estaria nesse contexto. Ver em
Coutinho (2007).

180

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

uma transformao superestrutural na sociedade e nas formas


polticas capitalistas que a maioria do movimento revolucionrio
no percebera. Nos pases ocidentais7, a sustentao poltica das
sociedades cindidas em classes no mais construa seus alicerces
na pura coercitividade, mas sim na constituio de um consenso
no seio da sociedade civil. As classes subalternas, pois, viam-se
dirigidas poltica e culturalmente pelas dominantes. Partindo do
conceito de intelectuais orgnicos8, ele expunha a importncia
da hegemonia:
[...] podem-se fixar dois grandes planos superestruturais: o que pode ser chamado de sociedade civil
(isto , o conjunto de organismos designados vulgarmente como privados) e o da sociedade poltica ou
Estado, planos que correspondem, respectivamente,
funo de hegemonia que o grupo dominante exerce
em toda a sociedade e quela de domnio direto ou
de comando, que se expressa no Estado e no governo
jurdico. Estas funes so precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais so os prepostos do
grupo dominante para o exerccio das funes subalternas da hegemonia social e do governo poltico, isto : 1)
do consenso espontneo dado pelas grandes massas
da populao orientao impressa pelo grupo fundamental dominante vida social, consenso que nasce
historicamente do prestgio (e, portanto, da confiana) obtida pelo grupo dominante por causa de sua
posio e de sua funo no mundo da produo; 2) do
aparelho de coero estatal que assegura legalmente
a disciplina dos grupos que no consentem, nem
ativa nem passivamente, mas que constitudo para

Como bem aponta Coutinho (2007), a distino pases ocidentais versus orientais
em Gramsci no geogrfica, mas refere-se a tipos de formao econmico-social, em funo sobretudo do peso que neles possui a sociedade civil em relao
ao Estado (COUTINHO, 2007, p. 82).

Para uma abordagem mais profunda sobre a temtica intelectuais orgnicos,


consultar o Caderno 12 dos Cadernos do Crcere, disponvel no Volume II
(GRAMSCI, 1932/2010).

Captulo 8

181
toda a sociedade na previso dos momentos de crise no
comando e na direo, nos quais desaparece o consenso
espontneo (GRAMSCI, 1930-1932/2010, p. 20-21).

Portanto, nessas sociedades, quanto temtica natureza


da revoluo, a ttica de luta mais adequada seria a disputa cultural, moral e organizativa nos aparelhos da sociedade civil, lenta
e rdua, para constituir valores contra-hegemnicos e conformar
um novo bloco histrico.
Dentre os elementos colocados, tem-se que aqueles relativos ttica do perodo da Revoluo Russa vo balizar o debate
terico marxista em torno da ttica de luta pelo socialismo, desde
o incio do sculo XX at o incio de sua ltima quarta parte. As
contribuies de Gramsci tomaro corpo com os processos polticos de redemocratizao no continente. Ademais, as tomaremos
como norte para a anlise acerca das transformaes nos pases
andinos e, especialmente, na Bolvia. Buscar-se-, portanto, na
prxima seo, situar os debates tericos da tradio marxista no
continente ao longo do sculo XX.

O marxismo e a Amrica Latina: sua


atualidade em um continente saqueado
Desde a chegada do marxismo na Amrica Latina, no incio do sculo passado, h intensos debates no apenas entre suas
correntes, mas, tambm, sobre sua validade em territrio latino-americano. Todavia, aqui se construiu no apenas extensa teoria
no espectro marxista, como tambm lutas polticas lideradas por
agrupamentos polticos sob essa orientao.
O marxismo enquanto teoria toma corpo na Amrica
Latina entre a dcada de 1910 e 1920, quando o argentino Juan
Justo traduziu a obra O Capital, tornando-a disponvel antes
mesmo que em alguns pases europeus. Nesse mesmo perodo,
o jornalista peruano Jos Maritegui, aps alguns anos na Itlia e
provavelmente a partir da influncia de Gramsci, volta-se rdua

182

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

tarefa de utilizar as ferramentas do marxismo para a compreenso


da realidade peruana.
quela poca e nas dcadas seguintes, aparecem como
principais dilemas no continente, primeiramente, quanto validade do marxismo diante das especificidades da Amrica Latina
e, a seguir, quanto s questes de alianas de classe, mtodos de
luta e etapas da revoluo.
Quanto primeira, a polmica se deu com aqueles que
defendiam que o marxismo respondia a situaes tpicas da Europa
do sculo XIX. Denominada de excepcionalismo indo-americano,
tal vertente absolutizava a especificidade da Amrica Latina e de
sua cultura, histria e estrutura social. Ao extremo, colocava o
marxismo como teoria vlida exclusivamente na realidade europeia. Sua principal representao se deu com a Aliana Popular
Revolucionria Americana APRA, sob liderana de Haya de La
Torre: o espao-tempo indo-americano seria governado pelas suas
prprias leis, profundamente distintas do espao-tempo europeu analisado por Marx e, por isso, a necessidade de uma nova
teoria que negue e transcenda o marxismo (LWY, 1999).
Polemizando com a APRA, Maritegui (1928/2010), em
Sete ensaios de interpretao da realidade peruana, elabora a
primeira tentativa de anlise marxista da realidade concreta de
seu pas. Utiliza, pois, o marxismo, considerando a realidade
nacional de tradies milenares de seus povos indgenas, estendvel para os demais pases andinos. Ou seja, para alm do sujeito
revolucionrio operariado tpico da Europa no momento das elaboraes marxianas, ele complementa com o indgena. Vestgios
de comunismo inca facilitariam a via socialista, tendo em vista
o histrico de socializao dos meios de produo (propriedade
coletiva da terra), bem como do trabalho social. Para ele, classes
sociais, propriedade dos meios de produo, imperialismo, dentre outras, eram, portanto, categorias aplicveis compreenso
daquela realidade, desde que consideradas em suas especificidades. Percebe-se um ponto de contato com Gramsci na preocupao

Captulo 8

183

deste com a construo de uma vontade coletiva nacional-popular e com uma reforma intelectual e moral como premissas do
socialismo. Maritegui foi um dos marxistas que tambm dedicou
importncia s questes subjetivas para uma profunda transformao social e advogava por uma revoluo proletria para libertao de seu pas e do continente.
Na dcada seguinte, sob orientao da III Internacional e
liderana dos partidos comunistas locais, toma corpo a defesa da
revoluo democrtico-popular: no tendo o continente passado
por suas revolues burguesas, necessrio seria acumular foras
para uma revoluo democrtico-nacional, possibilitando, ento,
o desenvolvimento das foras produtivas e, a posteriori, a ecloso
da revoluo socialista. Buscava-se, pois, democratizar o Estado,
afirmar a soberania nacional contra o imperialismo e acabar com
o latifndio ante a necessidade de desenvolvimento da indstria
nacional.
Tal vertente, tambm denominada de etapismo, transladava mecanicamente os modelos de desenvolvimento socioeconmico que explicavam a evoluo histrica da Europa ao longo
do sculo XIX. Dessa maneira, no novo continente, haveria uma
estrutura agrria de tipo feudal; uma burguesia apta a cumprir
com seu dever histrico revolucionrio do sculo XVIII e um
campesinato hostil ao socialismo ou coletivismo. Essa orientao
nacional democrtica, todavia, incorria em erros insuperveis:
La orientacin nacional-democrtica fue criticada,
dentro de la propia izquierda, por tres motivos principales: a) por subestimar los vnculos orgnicos entre
latifundio, imperialismo y capitalismo; b) por creer en
la viabilidad de una alianza estratgica del proletariado
con la burguesa nacional; c) por concebir cmo etapas relativamente estancadas, lo que sera ms adecuado concebir como flujo, como transcrecimiento
(POMAR, 2013, p. 26).

184

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Adicione-se, a tais elementos, um ainda mais pujante


em relao aos pases andinos: a questo tnica era irrelevante
ou, para alm, vista como elemento de atraso e sinal de que a
modernidade ainda no chegara a essas terras e, consequentemente, menos ainda a possibilidade socialista. O mecanicismo
e dogmatismo de tal perspectiva desconsiderava a produo de
Maritegui e, na prtica, colocava os camponeses indgenas na
mesma posio que os camponeses pequeno-burgueses de 18
de Brumrio. Tal perspectiva transformara toda a Amrica Latina
em uma nica realidade nacional, em que a conformao de suas
classes sociais, o desenvolvimento de suas foras produtivas,
bem como as especificidades de cunho tnico e cultural no eram
fatores aptos a alterar a natureza da revoluo.
Em embate direto com essa vertente, no apenas em funo de divergncias de ttica e estratgia, mas tambm sob influncias do contexto internacional, constituiu-se a linha trotskista:
[...] a perspectiva de uma revoluo permanente que
combina tarefas democrticas, agrrias, nacionais e
anticapitalistas, e a rejeio de uma aliana estratgica
com a burguesia local, considerada incapaz de desempenhar um papel revolucionrio significativo, diferenciavam radicalmente o trotskismo do comunismo
pr-sovitico, alm, claro da sua independncia em
relao URSS e sua crtica ao autoritarismo burocrtico (LWY, 1999, p. 35).

Ocorre que, se a vertente etapista partia de anlises fechadas s realidades continentais e nacionais, o trotskismo, ao propugnar pela revoluo ininterrupta e imediatamente socialista,
sob liderana de operrios, tambm incorria no equvoco de minimizar a categoria mediao com a realidade e a concreta situao
particular das foras produtivas e relaes de produo em cada
pas. Portanto, se de um lado o etapismo um equvoco, dentre
outros elementos, porque supe a necessidade de fases intermedirias estanques, de outro,

Captulo 8

185
La revolucin cubana de 1959, la revolucin rusa de
1917 y la revolucin china de 1949, resultaron exactamente de la continua radicalizacin democrtica,
popular y nacional. Fueron revoluciones socialistas
no a priori sino debido al curso que tomaron, al proceso
global en el que estaban insertas (POMAR, 2013, p. 34).

Ressalte-se tambm que, aps a vitria da guerrilha popular em 1959, em Cuba, cresce a adeso luta armada e ttica de
guerrilhas como via para a revoluo, em um contexto continental em que a dominao de classe era exercida frequentemente a
partir da coercitividade em mbito da sociedade poltica.
Aps as derrotas nas maiorias das guerrilhas rurais e urbanas promovidas no continente e com o concomitante processo
de redemocratizao nos mais diversos pases, h o descenso do
ciclo guerrilheiro na Amrica Latina, e toma corpo uma outra vertente que argui pela revoluo democrtico-popular e socialista, a
qual se consubstanciaria em
Construir un bloque poltico-social en torno a un programa que articule medidas democrticas con medidas
socialistas. En las condiciones actuales de desarrollo
del capitalismo, las medidas democrticas no son
socialistas, pero pueden asumir un sentido anti-capitalista (POMAR, 2013, p. 32).

Essa vertente se apropria de elementos gramscianos ao


colocar como central na estratgia socialista a disputa de hegemonia no seio da sociedade civil, a partir da conformao de um
bloco histrico nacional-popular, com a consequente alterao
em mbito da sociedade poltica.
Independente da linha terica e de ao poltica dentro do
espectro do marxismo, cabe ressaltar que ele foi o principal motor
s lutas populares contra as formas de colonialismo, semicolonialismo e relaes de dependncia para com os pases centrais.

186

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Da mesma maneira, incompreensvel as alteraes nas


formas polticas e foras produtivas na Amrica Latina sem a filosofia da prxis enquanto mtodo cientfico: o atraso dos pases do
continente como expresso de um capitalismo tardio e de relaes
de dependncia diante de pases europeus e dos Estados Unidos;
as ditaduras militares como forma poltica adequada e necessria, por um lado, ao refreio das foras populares e, de outro, a
uma poltica de achatamento salarial forado e exportao de
mais-valias para manuteno do Estado de Bem-Estar Social9; e
a desagregao social com a forma neoliberal de Estado, desregulamentao da economia e insero dos mercados nacionais na
sistemtica internacional de financeirizao da economia.
Em mesmo sentido, parte-se da perspectiva de que os processos polticos ocorridos na Amrica Latina, especialmente na
Andina, no podem ser devidamente compreendidos sem o marxismo. O multiculturalismo e a busca por explic-los meramente
a partir da realidade tnica obscurecem o processo histrico,
levando a interpretaes parciais e que tm implicaes para as
futuras lutas polticas no pas.
Para se analisar as transformaes ocorridas na Bolvia,
parte-se da perspectiva da revoluo democrtico-popular e
socialista.

Bolvia: dilemas e possibilidades da


construo do socialismo no sculo XXI
No final da dcada de 1980, a derrota das foras sandinistas, da esquerda brasileira nas eleies de 1989 e a queda
da URSS se inseriam em um contexto de refluxo das foras

Harvey (2005) coloca que, com o risco de expanso sovitica e presso dos trabalhadores por expanso de direitos, o Estado de Bem-Estar Social e a ascenso econmica dos trabalhadores dos pases centrais foram possveis graas exportao
da mais-valia aos continentes sob julgo do colonialismo (frica) e das ditaduras
militares (Amricas).

Captulo 8

187

socialistas no continente e no mundo. Um a um, cada pas comeara a reproduzir a experincia neoliberal inaugurada no Chile
ditatorial de Pinochet. Pautados pelas polticas orientadas pelo
Fundo Monetrio Internacional FMI e Banco Mundial, sob
liderana inconteste americana, os governos nacionais empreenderam aes de privatizao de empresas pblicas e recursos
naturais, reduo da burocracia estatal, flexibilizao de direitos
e desestmulo s foras produtivas nacionais diante de polticas
de importao.
Essa realidade tomou contornos especficos na Bolvia,
pois, para alm de se submeter a essas aes generalizadas no
continente, contando com um precrio desenvolvimento de suas
foras produtivas, sob orientao dos Estados Unidos, desencadeou uma campanha permanente contra a folha de coca, a partir
da justificativa do combate ao trfico de drogas.
Esse pas andino sempre esteve dentre os sul-americanos
de menor desenvolvimento das foras produtivas, sendo eminentemente agrrio e dependente da explorao de minrios e
hidrocarbonetos. Em paralelo, detm um histrico de intensa instabilidade poltica:
Una prueba de ello es que al ao 1980 en Bolivia se
produjeron 200golpes de Estado en apenas 155 aos de
vida Republicana; lo que dio lugar a que eneste perodo de tiempo 74 Presidentes de la Repblica hubiesen
conducido al Estado,con un promedio de 2,09 aos de
duracin en el mandato (SANTIVEZ, 2008, p.174).

A conjuntura10 inaugurada pela dcada de 1980, a partir


das reformas da economia boliviana e do Estado, com Vctor Paz
Estenssoro e reforadas no governo de Snchez de Lozada, conhe10 Quanto conjuntura, parte-se de Gramsci, que a enxerga numa relao dialtica
entre estrutura e poltica: a conjuntura seria o conjunto das caractersticas imediatas e transitrias da situao econmica e, por este conceito, seria ento necessrio entender as caractersticas mais fundamentais e permanentes da prpria
situao. Portanto, o estudo da conjuntura ligado mais estreitamente poltica

188

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

cido por Goni, radicalizaram a depreciao das condies materiais de sua populao:
Relocalizao e fechamento de empresas, racionalizao do oramento estatal, livre comrcio, reforma
tributria, desregulao, privatizao, capitalizao,
flexibilizao trabalhista, fomento s exportaes e a lei
Inra (que criou o Instituto Nacional de Reforma Agrria)
centraram-se em prol da racionalidade empresarial,
da taxa de lucro na gesto de fora de trabalho, mercadorias, dinheiro e terras. Entretanto, com o tempo,
seus efeitos se fizeram sentir de maneira dramtica nas
condies de vida das comunidades (LINERA, 2010, p.
262).

Esse novo cenrio interno redefiniu a conformao das


classes socais e da ao poltica, com a progressiva perda da densidade e capacidade de mobilizao dos sindicatos e da Central
Operria Boliviana (COB) devido s mudanas no setor produtivo provocadas pelo neoliberalismo por formas de unificao
locais de carter tradicional e de tipo territorial (LINERA, 2010):
a deteriorao crescente da estrutura econmica tradicional da
sociedade rural e urbana deu lugar a um fortalecimento dos laos
comunitrios como mecanismos de segurana primria e reproduo coletiva (LINERA, 2008b, p. 59).
O protagonismo dentre as foras subalternas desloca-se,
pois, para o campo, especialmente em Cochabamba, no Chapare,
onde predominar um discurso de tipo campons complementado com alguns componentes culturais indgenas (LINERA,
2008b, p. 57). Em paralelo s polticas neoliberais, os sucessivos governos nas dcadas de 1990 e incio de 2000 empreenderam aes permanentes de combate e criminalizao da coca e
de seus produtores nessa regio do pas. Ocorre que tal regio

imediata, ttica [e agitao], ao passo que a situao liga-se estratgia e


propaganda etc.) (GRAMSCI, 1932/2006, p. 439-440).

Captulo 8

189

dispe de condies geogrficas e climticas privilegiadas comparadas ao restante do territrio nacional, e por trs da questo
da coca estava tambm instalada a disputa pela terra e a busca
permanente da expulso de cerca de 70 mil famlias camponesas.
Diante das incurses do Estado boliviano, revelaram-se
crescentes a conscincia e organizao popular camponesa, tambm favorecidas por elementos subjetivos, como a capacidade de
liderana de dirigentes como Evo Morales e Leonida Zurita. Os
camponeses, organizados em sindicatos e federaes, vinculadas
a Confederacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de
Bolivia CSUTCB, organizavam-se de maneira assemblesta, realizaram marchas at La Paz sempre acompanhadas e reprimidas pelas foras estatais e bloqueios de rodovias, relmpagos e
sucessivos ou no.
A luta camponesa em torno da terra, todavia, encontrava
na folha da coca um elemento totalizante e unificador: de um
lado, uma cultura milenar, de origem indgena, presente em todo
o pas11; de outro, uma imposio imperialista, que no apenas
realizou treinamentos com as foras policiais nacionais como
passou ao direta repressiva e com saldo de mortes com o passar do tempo (MORALES, 2014).12
Um conflito eminentemente corporativo e localizado,
diante desses elementos objetivos e subjetivos, tomou dimenso
poltica, totalizante e transbordou as fronteiras da luta particular

11 Por todo o pas h o consumo da folha de coca in natura, guardadas em pequenos


sacos plsticos, especialmente pelas camadas trabalhadoras. Todavia, dentre os
setores mdios e altos, tambm h tal consumo, porm, em geral, na forma de
ch e industrializada ou medicao homeoptica. Assim, os mineiros de Potos
a consomem para suportar as jornadas nas minas sem alimentao; os guias do
Salar del Uyuni, os trabalhadores informais e operrios em La Paz, e assim por
diante.
12 Aqui, no se trata apenas de determinado produto de notvel consumo nacional;
a coca representa uma cultura milenar dos povos indgenas da regio e, para
alm, dispe de propriedades que fazem frente s adversas condies climticas
e sociais: benfica contra dores de cabea e falta de ar devido altitude, neutraliza a fome, indicada para reumatismo, dentre outras propriedades.

190

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

do campons do Trpico: o campons indgena ao longo de mais


de uma dcada estar a frente da tentativa de conformao de um
novo bloco histrico, em que as classes subalternas, ao se solidarizarem para com o Trpico, estavam reafirmando a histria indgena e confrontando diretamente o imperialismo e a interveno
americana, em um pas fortemente marcado pela espoliao espanhola e perda do territrio e acesso ao mar para o Chile:
[...] Mas, a partir do momento em que um grupo subalterno tornar-se realmente autnomo e hegemnico, suscitando um novo tipo de Estado, nasce concretamente
a exigncia de construir uma nova ordem intelectual e
moral, isto , um novo tipo de sociedade e, consequentemente, a exigncia de elaborar os conceitos mais universais, as mais refinadas e decisivas armas ideolgicas
(GRAMSCI, 1932/2006, p. 225).

Com fins de extrapolar as demandas especficas e particulares, os camponeses comeam o processo de organizao
poltica com fins de combinar a luta poltica eleitoral. Assim,
participam das eleies municipais de 1989 com a sigla emprestada Izquierda Unida e das nacionais em 1993 com a Eje de
Convergencia Patritica (MORALES, 2014).
Aps essas experincias, deliberam, pois, pela criao de
seu prprio instrumento poltico, em 1995, durante o I Congresso
do Instrumento Poltico de Tierra y Territorio, em Santa Cruz:
El debate se centr en que mientras nosotros no seamos
poder poltico, nunca se cumplirn las reivindicaciones, nunca conseguiremos nada, seguiremos esperando
como hace 500 aos. Nosotros mismos debemos gobernarnos, creando un instrumento poltico para los bolivianos (MORALES, 2014, p. 274).

Ressalte-se que a criao do instrumento perpassa, como


se percebe pelo prprio nome do congresso, a questo da terra e
territrio. Tendo como primeiro dirigente Juan de la Cruz Villca,

Captulo 8

191

que era secretrio geral da COB poca, seu nome inicial foi
Asamblea por la Soberana de los Pueblos (ASP). No congresso
da CSUTCB de 1996, o Movimiento Nacionalista Revolucionrio
MNR e o Movimiento Bolivia Libre MBL, que conformavam
o bloco partidrio de apoio ao governo neoliberal, buscaram derrubar a criao do Instrumento, sendo, todavia, sua criao ratificada pela maioria presente.
A luta camponesa e a formao do instrumento seguem
incorporando plataformas, classes e setores sociais descontentes com o neoliberalismo, atingindo seu cume com os episdios
conhecidos como Guerra da gua (2000), o Impuestazo de Goni e
a Guerra do Gs (setembro e outubro de 2003).
A Guerra da gua ocorreu em 2000, quando a populao
da cidade de Cochabamba, organizada de maneira comunitria,
se sublevou contra a privatizao da gua e, com o apoio das entidades do campo daquele Departamento, conseguiram expulsar a
Empresa Aguas del Tunari. A privatizao no afetava a regio do
Trpico (Morales, 2014), todavia, o levante popular contou com
o apoio dos cocaleros e revelou-se momento de consolidao da
aliana campo-cidade. Em 2003, Goni implementa a majorao
de impostos conhecida como El Impuestazo, quando trabalhadores urbanos se revoltam e, no enfrentamento com as foras repressivas, 33 pessoas so assassinadas. No mesmo ano, em outubro,
o Governo anunciou que o gs do departamento de Tarija seria
exportado por um consrcio internacional, o Pacific LNG, para os
Estados Unidos e por territrio13. A partir da organizao comunitria e territorial, a cidade de El Alto14 se subleva e, em uma

13 Some-se a essa postura de reviver polticas neoliberais numa dcada de rechao


popular a essa via, insatisfao histrica dos bolivianos em relao aos chilenos
em funo da perda de seu territrio e acesso ao mar, e a condio do presidente
da Repblica, que mal falava castelhano, devido ao ingls em seu sotaque.
14 Cidade conurbada com La Paz, acima desta, com mais de um milho de habitantes, vrios devido ao xodo rural, majoritariamente de setores subalternos.

192

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

semana, 63 pessoas so assassinadas pelas foras estatais, culminando com a fuga do presidente Goni.15
Cria-se, ento, o Estado Mayor del Pueblo:
frente campesino y obrero, con las seis Federaciones
de Productores de Coca del Trpico, la CSUTCB, la
Confederacin Sindical de Colonizadores de Bolvia,
las federaciones de fabriles, mineros y otras organizaciones sociales y sindicales del pas (MORALES, 2014,
p. 328).

Adicione-se a tais processos polticos a expulso de Evo


Morales do parlamento boliviano, em 2002, e a fala pblica do
embaixador americano s vsperas da seguinte eleio presidencial de que sua vitria importaria em respostas econmicas e
polticas por parte do governo dos Estados Unidos.
A instabilidade poltica foi tamanha que setores da
esquerda ventilaram a possibilidade de tomada do poder por
parte de Evo, no aceita por este: [] me acuerdo lo que me dijo
Fidel Castro antes de que sea presidente. No hagan lo que yo he
hecho, hagan lo que est haciendo Hugo Chvez, la revolucin
se hace con el pueblo, se hace en democracia. Estamos en otros
tiempos (MORALES, 2014, p. 333).
Logo aps, em 2004, o MAS-IPSP se torna a maior fora
poltica do pas (sessenta prefeituras e 25% dos parlamentares municipais) e, em 2005, Evo Morales eleito presidente da
Repblica, com a plataforma:
recuperar los recursos econmicos que se van del pas,
debido a la privatizacin y capitalizacin, defender la
produccin, la cultura, la hoja de coca. Tambin hemos

15 O ex-presidente fugiu de La Paz, por meio de helicptero, durante os conflitos


e as dezenas de mortes na Guerra do Gs. Abrigou-se nos Estados Unidos, onde
profere palestras sobre a Bolvia. Vrios movimentos sociais, todavia, reivindicam que ele seja julgado por crime contra a humanidade. O Estado boliviano
requisitou sua extradio, a qual foi negada pelo governo americano.

Captulo 8

193
condenado la corrupcin, el racismo, la descarada
injerencia de los Estados Unidos, la falta de soberana,
el neoliberalismo [] tambin el pleito de Asamblea
Constituyente (MORALES, 2014, p. 315).

Entre 2006 e 2009 ocorrer o processo da Constituinte,


com intensa participao popular, dos setores camponeses, operrios e movimentos sociais. Aps aprovao mediante referendo,
a nova Constituio proclama um novo Estado Plurinacional da
Bolvia. Para Moldiz (2009), consubstancia-se a perda da liderana ideolgica, moral e intelectual do bloco imperial-burgus-colonial da Repblica ao neoliberalismo, em desfavor do bloco
nacional-popular-indgena.
Essa busca pela consolidao da hegemonia deste
novo bloco histrico e ordem intelectual e moral (GRAMSCI,
1932/2006), revela-se, simbolicamente, nas imagens de Tupak
Katari e Ernesto Che Guevara, reivindicadas pela CSUTCB, COB,
demais movimentos sociais, bem como pelo prprio governo16.
Essa realidade foi facilitada pelo histrico elo unificador
indgena, em contraposio a uma desmedida ao imperialista,
bem como da dificuldade em se garantir a hegemonia do modo
capitalista de produo e da democracia representativa:
A democracia liberal [...] um modo democrtico de
constituio da cidadania correspondente a sociedades
que passaram por processos de individuao modernos
que erodiram as fidelidades normativas e os regimes
de agregao de tipo tradicional (parentesco, comunitrias etc.). Isso, geralmente, sucede nos pases que se
integraram de forma majoritria e dominante a processos econmicos industriais substitutivos de economias
camponesas, artesanais ou comunitrias que sustentam

16 No ato do Primeiro de Maio, por exemplo, em que a grande maioria dos movimentos sociais e organizaes convocou uma marcha em conjunto com o presidente do Estado Plurinacional, eram recorrentes a evocao de ambos, por parte
das entidades e do governo (VALENA, 2014).

194

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

materialmente a existncia de modos normativos de


constituio da agregao social. Na Bolvia, a economia apresenta uma heterogeneidade tal que apenas 20% pode ser qualificado de mercantil-industrial
moderno, enquanto o resto est constitudo por sistemas tcnico-processuais tradicionais, semimercantis,
ancorados em uma forte presena dos sistemas gremiais
e comunitrios na organizao dos processos produtivos. Da que as formas de filiao corporativa, gremial e
comunitria se apresentem como sistemas de constituio de sujeitos coletivos majoritariamente praticados
nas cidades e zonas agrrias como modos de filiao
social, de resoluo de conflitos, de mediao e auto-representao poltica (LINERA, 2008a, p. 64).

H, pois, uma conjuntura distinta das anteriores enfrentadas pelas esquerdas no continente, tendo uma parcial aproximao com a experincia da Unidade Popular no Chile de Allende.
A nova Constituio reivindicada pelas classes subalternas,
estabelece mecanismos de democracia participativa superando a
democracia representativa, o mandato revogatrio e a obrigatoriedade de prestao pblica de contas por parte de gestores, a plurinacionalidade e multiculturalidade, cuja principal expresso
a quebra do castelhano como idioma nacional e o direito a ser
atendido nos rgos pblicos em quchua ou aimar, reconheceu a Justia Indgena e alterou o sistema de justia, bem como a
diversidade de propriedades da terra e dos meios de produo.
O governo tomou medidas com as quais pode-se caracteriz-lo como democrtico-popular com intento socialista: majorou o salrio mnimo de 400 para 1440 bolivianos, decretou o
14 salrio obrigatrio para setor pblico e privado em anos de
crescimento econmico; nacionalizou os hidrocarbonetos, criou
uma rede estatal de comunicao17, props a reformulao das

17 O jornal dirio Cambio, disponvel impresso e no stio www.cambio.bo; a rede


pblica de TV.

Captulo 8

195

diretrizes educacionais, estatizou ou criou estatais em setores


estratgicos: aeroportos, aviao, telecomunicaes, minerao,
cimento, computao, dentre outros.
Por fim, ressalte-se que
Hoje o vigoroso movimento social e poltico indgena
no tem como contraparte uma ampla produo intelectual e cultural marxista. O antigo marxismo de Estado
no significativo nem poltica nem intelectualmente
e o novo marxismo crtico provm de uma nova gerao
intelectual, tem uma reduzida e crculos de produo
ainda limitados (LINERA, 2008b, p. 61).

Por outro lado, h um campo aberto (necessria) reflexo marxista: como fortalecer o processo de liderana poltico
e moral desse novo bloco histrico? Quais devem ser sua composio e programa poltico, de maneira que aprofunde os processos de mudana e, ao mesmo tempo, no importem em uma
reao ditatorial por parte das burguesias e foras armadas como
em toda nossa histria do sculo XX? Qual a natureza dessa
Constituio e do Direito neste especfico momento histrico, em
que ele no representa apenas o reflexo das condies materiais
de reproduo social, mas tambm contribui no processo de disputa hegemnica por parte das classes subalternas? Como desenvolver a precria situao das foras produtivas sem fortalecer,
todavia, politicamente a burguesia detentora dos meios privados
de produo?
No se encerra, pois, a diversidade de problematizaes
possveis, nos campos estruturais e superestruturais.

Consideraes finais
A histria do continente latino-americano impossvel de
ser apartada do marxismo. Este, filosofia da prxis elaborada e
desenvolvida no contexto da modernidade e da explorao de
classe, a partir de uma pretensa igualdade possibilitadora da

196

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

venda da fora de trabalho, forneceu ferramentas e orientou lutas


polticas em um continente que se destaca pela histrica sublevao de suas classes subalternas mesmo antes de sua chegada18.
Consolidando-se enquanto teoria no incio do sculo XX,
o marxismo no continente no escapou ao dogmatismo stalinista:
a Amrica Latina era vista como pr-capitalista; sua burguesia
nacional como aliada para uma necessria revoluo democrtico-nacional, bem como seus camponeses seriam pequenos burgueses em semelhana ao cenrio traado por Marx em 18 de
Brumrio (LWY, 1999). Sua oposio trotskista tampouco deu
a devida ateno categoria mediao, com persistncia advogando a tese da revoluo permanente, independente da correlao de foras existentes em cada realidade nacional.
Na segunda metade do sculo XX, as obras de Gramsci
ganham maior insero no continente, em uma conjuntura de
transio democrtica, assim como uma viso da natureza da
revoluo como democrtico-popular e socialista, donde ascenses de esquerdas pela via democrtica combinariam lutas poltica e institucional, com medidas democratizantes e, em paralelo,
que apontassem ao socialismo.
As dcadas de 1980 e 1990 levam todos os pases da
regio, mais cedo ou mais tarde, a se subjugarem a polticas neoliberais. As respostas populares foram distintas, de acordo com
cada realidade nacional, bem como a correlao de foras em
cada pas. De qualquer maneira, desde a ascenso de Chvez em
1988 na Venezuela, o continente ao contrrio do resto do globo
vivenciou uma ascenso das esquerdas, atravs de processos
eleitorais. Destes, destacam-se Venezuela, Equador e Bolvia,
tanto por seus processos polticos revelarem a luta de classes de
maneira mais franca quanto por redundarem em novos processos
constitucionais.

18 Como exemplo, lembremos da Revoluo Haitiana de 1791 (JAMES, 2004) e da


histria de luta em Cuba (BARSOTTI; FERRARI, 1998).

Captulo 8

197

E, dentre eles, sobressai-se a Bolvia: ali, donde as classes burguesas nunca conseguiram uma plena liderana poltica e
moral sobre o conjunto da sociedade, tendo em vista o frgil desenvolvimento das foras produtivas e suas correspondentes instituies e a preservao dos elementos comunitrios indgenas,
duas dcadas de luta poltica sob liderana camponesa acabaram
por unificar diversos setores das classes subalternas, resultando
em recorrentes crises de hegemonia e a posterior derrubada do
iderio ocidental-burgus. Perante essa nova conjuntura, tanto
o multiculturalismo quanto o marxismo dogmtico revelam-se
insuficientes para a compreenso de tais processos, bem como,
para sua consolidao e aprofundamento. Aquele, porque v apenas o aspecto indgena como algo idealizado e de possvel convivncia com outras perspectivas, como os valores neoliberais;
todavia, como abordado, h uma ntima vinculao do indgena
com as condies materiais de reproduo social, sendo aquele
um elemento unificador dentre as classes subalternas. De outro
lado, o marxismo dogmtico revela-se insuficiente ao importar
categorias das obras marxianas sem a devida mediao, tendo historicamente subestimado o potencial revolucionrio da questo
agrria19, bem como suas potencialidades comunitrias (LINERA,
2008b) da sociedade indgeno-camponesas.
A derrubada de vrios presidentes e governos neoliberais
pela fora das ruas e da organizao popular, a eleio de Evo
Morales e promulgao da nova Constituio de 2009 abrem questes em sentidos diversos para a reflexo e ao poltica marxista.

19 Barsotti e Ferrari (1998, p. 131) ressaltam os elementos agrrios das revolues


socialistas do sculo XX e as dificuldades advindas do nfimo desenvolvimento
das foras produtivas: [] das revolues deste sculo. Autoproclamadas proletrias revelaram-se desde logo e ao longo de seu curso histrico o predomnio
de elementos agrrios, contrariamente ao que Marx e Engels consideravam o seu
solo frtil. Foram tentativas estranguladas pelo atraso histrico de construo
socialista a partir dos elos dbeis do capitalismo, que acabaram produzindo o estalinismo, deformao terico-prtica do pensamento e da perspectiva marxiana
do nosso sculo.

198

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Sem dvidas, ao nos debruarmos de maneira concreta sobre a


realidade concreta, essa uma das experincias, neste incipiente
sculo XXI, mais originais e consistentes no globo e que demanda
muita reflexo e prtica poltica para seu aprofundamento. Ao
contrrio do dito h duas dcadas, a histria no acabou e a teoria
poltica que mais tem a contribuir para com ela continua sendo a
filosofia da prxis.

Referncias
BARSOTTI, P.; FERRARI, T. A propsito de Cuba e da revoluo. In:
BARSOTTI, Paulo; PERICS, Luiz Bernardo. Amrica Latina:
histria, ideias e revoluo. So Paulo: Xam, 1998. p. 131-150.
BEER, M. Histria do socialismo e das lutas sociais. So Paulo: Expresso
Popular, 2006.
COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento poltico.
3. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.
GRAMSCI, A. Caderno 12. In: ______. Cadernos do Crcere. (Volume I).
Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006. (Texto original escrito
em 1932)
GRAMSCI, A. Caderno 6. In: ______. Cadernos do Crcere. (Volume II).
Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010. (Texto original escrito
em 1930-1932)
HARVEY, D. A produo capitalista do espao. So Paulo: Annablume,
2005.
HOBSBAWM, E. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011.
So Paulo: Companhia das Letras, 2011.
JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint LOuverture e a Revoluo
de So Domingos. So Paulo: Boitempo, 2004.

Captulo 8

199

LENIN, V. I. As trs fontes. So Paulo: Expresso Popular, 2006. (Escrito


em 1913).
LINERA, lvaro Garcia. A dimenso multicivilizatria da comunidade
poltica. In: SADER, Emir. Cadernos de pensamento crtico latinoamericano. So Paulo: Expresso Popular, CLACSO, 2008a. p.
63-68.
LINERA, lvaro Garcia. Indianismo e marxismo: o desencontro de duas
razes revolucionrias. In: SADER, Emir. Cadernos de pensamento
crtico latino-americano. So Paulo: Expresso Popular, CLACSO,
2008b. p. 41-62.
LINERA, A. G. A Potncia Plebeia: ao coletiva e identidades indgenas,
operrias e populares na Bolvia. So Paulo: Boitempo, 2010.
LWY, M. (Org). O marxismo na Amrica Latina: Uma antologia de
1909 aos dias atuais. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 1999.
MARITEGUI, J. C. Sete ensaios de interpretao da realidade peruana.
So Paulo: Expresso Popular, 2010. (Texto original publicado em
1928).
MARX, K. Para a questo judaica. So Paulo: Expresso Popular, 2009.
(Texto original publicado em 1843).
MARX, K. Guerra Civil na Frana. So Paulo: Boitempo, 2011. (Texto
original publicado em 1871).
MARX, K. Crtica da filosofia do direito de Hegel. So Paulo: Boitempo,
2013. (Texto original publicado em 1843).
MARX, K. Crtica da filosofia do Direito de Hegel Introduo. In: ______.
Crtica da filosofia do direito de Hegel. So Paulo: Boitempo,
2013. p. 145-157 (Texto original publicado em 1844).

200

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

MARX, K. Teorias da mais-valia. So Paulo: Civilizao Brasiliense,


1980. (Texto original publicado em 1905).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 1). So Paulo:
Boitempo, 2013 (Texto original publicado em 1867).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 2). So Paulo:
Boitempo, 2014 (Texto original publicado em 1885).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 3). So Paulo:
Civilizao Brasiliense, 2008. (Texto original publicado em 1894).
MOLDIZ, Hugo. Bolivia en los tiempos de Evo: claves para entender el
proceso boliviano. Mxico D.F.: Ocean Sur, 2009.
MORALES, E. Mi vida: de Orinoca al Palacio Quemado. La Paz: Artes
Graficas Sagitario, 2014.
POMAR, V. Las diferentes estrategias de las izquierdas latinoamericanas.
In: POMAR, Valter. Notas sobre a poltica internacional do PT.
So Paulo: Partido dos Trabalhadores, 2013. p. 24-47
SANTIVEZ, J. A. R. La evolucin politco-institucional em Bolivia
entre 1975 a 2005. Revista Estudios constitucionales, v. 6, n. 8, p.
173-210, 2008.
VALENA, D. A. Bolvia: crise de Estado, disputa hegemnica e
ressignificao democrtica. In: VAL, Eduardo. Manuel.;
Bello, Enzo. (Org.). O pensamento ps e descolonial no novo
constitucionalismo latino-americano. Caxias do Sul: EDUCS,
2014. p. 87-102

Captulo 9

A era das rebelies e os


desafios do marxismo1
Ricardo Antunes

iscutir Marx, hoje, no sculo XXI, um empreendimento


absolutamente fundamental. Antes de tudo, preciso fazer
uma nota de repdio. H cinquenta anos, uma ditadura militar
feroz torturou, prendeu e matou meninos e meninas, uma violncia brutal. Ns estamos vendo agora, com os resultados das
investigaes realizadas, um nvel pavoroso de torturas: abertura
dos cadveres, eliminao de dedos, extrao de dentes, tudo
para poder esconder os corpos dos meninos e meninas, homens e
mulheres, que foram brutalmente assassinados.
Mesmo diante dessas constataes, ainda ouvimos lacaios
da ditadura defendendo-a, afirmando que ela foi semelhante a
alguns governos de esquerda. Contudo, no conheo nenhum caso
na esquerda de um militar preso em combate, que tivera arrancado seus dedos, seus olhos, suas vsceras, estupradas as suas
mulheres nenhum caso. A mentira foi de tal envergadura que a
ditadura de 1964, essa contrarrevoluo burguesa (para lembrar
Florestan Fernandes, a quem modestamente homenageio), ditatorial e autocrtica se autodenominou como revoluo. A mentira prosseguiu quando ela se autodatou 31 de maro, comeando

Transcrio da conferncia de encerramento do I Seminrio Marx Hoje: pesquisa


e transformao social.

202

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

como uma fraude, j que o golpe ocorreu em 1 de abril, dia da


mentira (FERNANDES, 1975).
vital que a juventude no esquea esse fato e resista na
luta. As nossas classes dominantes so perversas, tentam apagar
a ditadura para acreditarmos que se passou algo positivo no
Brasil durante esse perodo. O nico jeito de impedir esse empreendimento a organizao popular. Se no houver organizao
social, popular, dos trabalhadores, das trabalhadoras, dos estudantes, dos trabalhadores rurais, dos camponeses, ela volta sob
uma forma mais brutal ou em formas mais abrandadas.
Esse foi um dos perodos mais nefastos e tenebrosos do
nosso pas, com uma das mais boais ditaduras da histria brasileira. Ela serviu de modelo para toda a Amrica Latina, inspirando a ditadura chilena de Pinochet, bem como a da Argentina.
Portanto, importante que nos lembremos desse momento tenebroso da histria do pas pra que ele nunca mais acontea.
Quando vocs me convidaram para fazer essa palestra, eu
pensei em propor como um marxista olha o mundo atual e quais
desafios esse mundo atual nos oferece. Obviamente que apresentarei a minha leitura e no tenho a menor inteno de afirmar que
essa anlise a verdadeira, mas que, depois de mais de 41 anos
lendo Marx, eu possa contribuir com uma pequena investida contra a muralha do capital.
A primeira ideia que eu queria apresentar a vocs que
desde 1968 com os levantes em Paris e na Europa, a invaso da
Tchecoslovquia, as greves no Brasil, o massacre no Mxico e as
greves do outono quente na Itlia, com o Cordobazo argentino em
1969, ns adentramos em uma era de contrarrevoluo burguesa
de amplitude global (para lembrar tambm Octavio Ianni). Uma
contrarrevoluo burguesa poderosa, cujo objetivo primeiro foi
destruir tudo que havia de organizao da classe trabalhadora, da
classe operria, do movimento socialista, de esquerda e anticapitalista. Essa reao foi a resposta s lutas empreendidas pelos

Captulo 9

203

polos mais avanados do movimento operrio europeu, em 1968,


que disputavam o controle social da produo.
Essa contrarrevoluo burguesa teve como consequncia:
a) a barbrie neoliberal, a qual est vigente, dominante e forte at
hoje; e b) a reestruturao produtiva do capital em escala mundial que alterou, em muitos elementos, o mundo maqunico do
capital. Sobre o segundo aspecto, importante notar que o capitalismo se mantm, mas o seu modo de operar se modificou, como,
por exemplo, o desenho da fbrica. No meu tempo de jovem, nos
anos 1970, uma fbrica era considerada forte se ela tinha 10, 30,
40, 50 mil operrios a Volkswagen do Brasil chegou a ter 44 mil
operrios. Hoje considerada uma empresa moderna aquela que
tem o nmero mais reduzido de operrios e altamente produtiva, que terceiriza sua produo e implementa e pratica a explorao intensificada (ANTUNES, 2006; 2013).
Isso teve um forte impacto na classe operria, principalmente no contexto de financeirizao do capital, no qual o
mundo do capitalismo tem no saque e na explorao do capital
financeiro o seu ncleo central hegemnico. Fao uma ressalva
de que o capital financeiro no s o capital fictcio que circula
e roda nas especulaes e nos saques: o capital fictcio uma
parte do capital financeiro. Mas o capital financeiro a fuso do
capital bancrio com o capital industrial, como nos ensinaram
Lenin, Hilferding, Rosa Luxemburgo. Portanto, no por acaso
que o capital financeiro controla grande parte do capital produtivo. Quando compramos um produto financiado, estamos, na
verdade, oferecendo um duplo ganho para a burguesia proprietria: na compra e no financiamento.
por isso que, na lgica do capital financeiro, o saque,
a explorao, a intensificao do uso da fora de trabalho tm
que ser levados ao limite. Como consequncia, temos hoje em dia
uma classe trabalhadora que sofre os padecimentos, constrangimentos e nveis de explorao na intensidade que estamos vendo
no cenrio global.

204

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Dentro desse contexto, eu entro na segunda ideia. Depois


de quarenta anos, de 1968 a 2008, da contrarrevoluo burguesa
de amplitude global, emergem com maior fora diversos momentos de lutas sociais em todo o mundo. Para ns marxistas, este
o primeiro desafio: entender que h uma nova era da luta de classes diferente da que existia nos anos 1950, 1940 e 1930. Se Marx
estivesse nos dias atuais, ele estaria respondendo ao mundo atual
com as respostas do sculo XIX. Por isso risvel, se no fosse
trgico, que muitas universidades esto abandonando o estudo de
Marx. triste, trgico e compreensvel: porque se deixarmos,
a universidade se curvar a todos os imperativos do mercado e,
para o mercado, no uma medida produtiva ler, discutir, refletir
e estudar Marx. Ns temos que resistir.
Podemos dizer que adentramos em uma nova era de lutas
em escala global, porque se olharmos o mundo na ltima dcada e
meia, mais recentemente nos ltimos cinco anos, veremos Grcia,
Itlia, Frana, Inglaterra, Portugal, EUA em exploso social para
comear com os pases do Norte. Essas lutas, nesses pases, possuem, por certo, um contedo muito heterogneo, polissmico,
diferenciado, mas que ainda expressam claras conexes, entre os
temas do trabalho, da vida, da mercadorizao do mundo, do desmoronamento e destroamento das cidades, da precarizao do
desemprego e da destruio ambiental.
Como outro desafio, necessrio que estudemos as ditas
transversalidades existentes nessas lutas entre classe, gnero,
gerao, etnia, sexualidade, natureza, propriedade, emancipao: foram importantes no sculo XIX e so absolutamente centrais no sculo XXI.
Se a crise estrutural do capital vem ampliando, significativamente, as diversas formas de precarizao do trabalho e
intensificando o emprego em escala global, o cenrio mundial
que se descortina o das mundializaes das lutas sociais. Assim
como o capital ampliou e intensificou o seu processo de mundializao, as lutas sociais, operrias, assumem cada vez mais uma

Captulo 9

205

dimenso mundial, de tal modo que, no limite, no conseguimos


mais derrotar o capital s pensando em lutas no mbito nacional.
Alis, isso no uma descoberta nossa: quem leu com
ateno o Manifesto do Partido Comunista de 1848, Marx e
Engels diziam que a marca mais positiva do capitalismo naquele
perodo foi que ele criou o mercado mundial e, consequentemente, criou o proletariado mundial, a classe dos trabalhadores
em escala ampliada. E agora, nos incios do sculo XXI, as coisas
esto esquentando em todos os rinces do mundo.
Foi certamente Mszros2 quem mostrou e neste ponto
atualizou Marx e Rosa Luxemburgo que esse sistema produtivo capitalista s pode crescer destruindo. Ento, ao invs do
que o Schumpeter chamou de destruio produtiva (seria preciso
destruir para que o capitalismo continue construindo), Mszros
afirma o contrrio: a lgica do capital atrelada destruio da
natureza e eu acrescentaria da fora de trabalho em uma proporo e em uma quantidade inimaginvel. Trata-se, como enfatiza Mszros, de uma Produo Destrutiva (MSZROS, 2002).
Para descrever esse novo ciclo mundial de lutas de classes
eu vou comear com o norte do mundo. Para no voltar muito
no tempo, ns podemos recordar, por exemplo, das exploses
ocorridas na Frana em 2005, com um enorme contingente de
imigrantes, trabalhadores pobres, san papier (sem documentos),
e a destruio de milhares de carros, smbolo da sociedade capitalista. Ainda que os nmeros no sejam exatos acessei alguns
artigos franceses que noticiavam a queima de milhares de carros
, considervel o impacto que eles podem causar, ainda mais

importante render homenagens Istvn Mszros. o marxista que, desde o fim


da dcada de 1960, vem se dedicado a mergulhar na lgica destrutiva do sistema
de metabolismo social do capital; a Franois Chesnais (1996) (que nos ajudou a
compreender o capitalismo financeiro e a sua forma imperialista); a Robert Kurz
(1992) (que no era marxista, mas era profundamente influenciado pela crtica
da economia poltica de Marx e tambm mostra o carter destrutivo do sistema
produtor de mercadoria e ainda David Harvey (1993), que vem tentando entender
as formas da explorao e imperialismo hoje.

206

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

que esse processo comeou na periferia e se expandiu at os


ptios da Peugeot e da Renault.
No ano seguinte, em 2006, houve as manifestaes dos
estudantes e trabalhadores na luta contra o primeiro emprego:
os primeiros defendiam a no aderncia poltica do primeiro
emprego, por considerarem que, de partida, entrariam precarizados no mercado de trabalho; os ltimos alegavam que essas medidas, sendo aplicados agora aos estudantes, logo se estenderiam
aos demais trabalhadores.
Na Grcia, ocorreram vrias manifestaes repudiando o
Banco Central Europeu e o Fundo Monetrio Internacional, que
agem em benefcios sempre das grandes corporaes financeiras.
So de 400 a 600 transnacionais que dominam o mundo hoje e
algumas poucas (mas enormes, apesar da redundncia) corporaes financeiras globais dominam o Banco Mundial, o governo
norte-americano, o europeu e o dos pases asiticos como Japo
etc. E que querem aumentar ainda mais a explorao e o vilipendio sobre a classe trabalhadora. Se eu pudesse fazer uma comparao filosfica aqui, ao pensar as rebelies na Grcia nesses
ltimos anos todos, eu poderia dizer que a polis moderna grega
presenciando a nova rebelio do coro.
Depois vieram as revoltas do mundo rabe. Cansados
do binmio ditadura-pauperismo, a Tunsia iniciou as eras das
rebelies que se estenderam e se estendem at os dias atuais.
A Tunsia foi o primeiro pas a desencadear os levantes desse
mundo rabe. Os ventos rapidamente sopraram para o Egito e as
manifestaes plebiscitrias diuturnas de outubro na Praa Tahrir,
conectadas pelas redes sociais, exigiam dignidade, liberdade e
melhores condies de vida. Se no incio lutavam pelo fim da
ditadura Mubarak, o que ns vemos a contrarrevoluo egpcia:
o exrcito tomou o poder no Egito exrcito controlado, fundamentalmente, com recursos norte-americanos. Recentemente, o
tribunal egpcio condenou morte 500 militantes, uma aberrao
jurdico-poltica completa. Talvez ns pudssemos dizer, ento,

Captulo 9

207

que estamos na era das rebelies (mas tambm, infelizmente, das


contrarrevolues).
Em Portugal, essas lutas tornaram-se emblemticas. Em
maro de 2011, explodiu o descontentamento da Gerao
Rasca, dos imigrantes, dos desempregados e desempregadas, dos
precarizados e precarizadas, expressando o monumental descontentamento. O movimento dos precrios e precrias inflexveis
oferece uma boa sintomatologia do quadro das lutas sociais em
Portugal. Eles dizem:
Somos precrios e precrias3 no emprego e na vida,
trabalhamos sem contrato ou com contratos a prazos
muito curtos. Somos operadores de call centers, estagirios, desempregados, imigrantes, intermitentes,
trabalhadores e estudantes. No entramos nas estatsticas. No temos frias. No podemos engravidar,
nem ficar doente. Direito greve? Nem em sonho.
Flexissegurana4: o flexi para ns; a segurana para
os patres. Estamos na sombra, mas no calados. Com
a mesma fora que nos atacam os patres, nos escondemos e reinventamos a luta. Afinal, somos muito mais
do que eles. Precrios e precrias sim, mas inflexveis
(PRECRI@S INFLEXVEIS, s/d).

Poucos dias depois dessa manifestao, ocorreu outra,


convocada pela CGT Portuguesa (que a principal Central Geral
de Trabalhadores de Portugal) e pelos sindicatos (que tm ligeira
presena majoritria dos partidos comunistas). Eles estavam
lutando contra a deteriorao dos seus direitos, pois tambm a
classe trabalhadora herdeira do taylorismo e do fordismo vivencia um monumental processo de corroso tanto em Portugal,

Temos uma questo vital aqui: o mundo do trabalho composto por homens e
mulheres.

uma palavra que aparece muito no mundo europeu, principalmente nos pases
escandinavos. Originalmente indicaria a demanda do capital por flexibilidade e
do trabalhador, por segurana.

208

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

como na Espanha, Itlia, Alemanha, Inglaterra, EUA e Japo


para pegar os pases no s da Europa, mas do Norte do mundo.
Abro um parntese para ressaltar que precisamos tomar cuidado
na compreenso de que a era das rebelies no igual era das
revolues, embora a passagem de uma para a outra por vezes
de difcil percepo.
Aqui emerge outro desafio importante para o marxismo.
Os dois polos mais visveis e importantes da classe trabalhadora
seja em Portugal, Inglaterra, Itlia, Espanha ou Frana esto se
manifestando nessas lutas que citei anteriormente. Os mais precarizados, mais jovens que alguns autores europeus chamam de
precariado5 , j nasceram sob o signo da completa barbrie:
lutam para conquistar direitos bsicos no trabalho, mais aproximado primeira fase da luta operria na poca da Revoluo
Industrial. Eles assinam apenas um termo o informal, segundo
nossa nomenclatura e fazem um trabalho pontual, sem perspectiva de continuidade. Esse polo luta, ento, para sair do patamar
mais rebaixado em que se encontram. Os que j tinham conquistado direitos, o operrio herdeiro da era taylorista-fordista,
do Welfare State, o proletariado do passado, que geracionalmente mais velho, ele luta para impedir o seu desmoronamento
e corroso.
Para mim, no so duas classes, como pensam muitos
europeus, isso um equvoco: a classe trabalhadora e o precariado. Para ns, do Sul do mundo, trata-se de uma nica classe
trabalhadora, em seus distintos e diversos segmentos. A nossa
classe trabalhadora sempre viveu majoritariamente na condio do precariado e nesse sentido ela se diferencia da classe
trabalhadora dos pases do Welfare State. O filme As Neves do
Kilimanjaro retrata muito bem essa situao: um operrio da
gerao antiga que juntou dinheiro pra fazer a viagem com a

Mas prefiro chamar de a nova jovem classe trabalhadora precarizada. Ver o estudo crtico de Braga (2013).

Captulo 9

209

mulher e assaltado por um proletariado precarizado mais novo.


Assim, a obra trata desse conflito intraclasse, na qual o jovem
proletrio enxerga no velho proletrio um inimigo, enquanto
que o ltimo assume o primeiro, inicialmente, como um ladro
que rouba para sobreviver.
Exemplos de outra dialtica, esses dois polos fundamentais da mesma classe que-vive-do-trabalho, em sua aparente
contradio, tem o seu futuro atado e, irremediavelmente, inseparvel. Em suas lutas, os primeiros do jovem proletariado aparentemente desorganizado querem o fim da precarizao completa
que os avassala e sonham com um mundo melhor, sem integrar
os ideais socialistas. O segundo polo, os chamados trabalhadores
organizados, querem evitar a sua degradao completa e recusam
a sua converso em novos precarizados no mundo.
Como a lgica destrutiva do capital mltipla em sua
aparncia, mas una em sua essncia, se esses polos vitais da
classe trabalhadora no se conectarem slida e organicamente, a
tragdia os atar pela maior precarizao e pela completa desumanizao. Por outro caminho, se souberem compor os laos de
solidariedade (no sentido de pertencimento) e a conscincia de
classe, compreender seu novo modo de ser e conjugar suas aes,
eles podero, mais do que qualquer outra fora social, demolir o
sistema de metabolismo social do capital por serem eles a classe
trabalhadora de hoje. nesse ponto que reside a centralidade do
trabalho das lutas sociais atuais.
Alm da rebeldia nascente, em Portugal, ns presenciamos
tambm outro levante importante nesses ltimos cinco anos: os
indignados na Espanha. Em 2014, segundo dados da Eurostat, era
cerca de 60% o ndice de desemprego para jovens de 18 a 24 anos
na Espanha. Um jovem graduado e ps-graduado na Espanha tem
60% de possibilidade de estar desempregado e 40% de encontrar
um emprego precrio. um novo precarizado ps-graduado sem
trabalho. O jovem estudante olha para os seus pais, ambos formados e acima de 40 anos e esto desempregados; diante dessa

210

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

situao julgam que hoje no adianta nem estudar, nem trabalhar contrariando a falcia de que qualificao leva a emprego,
defendida aqui no Brasil.
Depois foi a vez de a Inglaterra rebelar-se em um levante
que se iniciou depois de um negro taxista, trabalhador, ter sido
assassinado pela polcia. Os jovens pobres, desempregados,
negros, imigrantes em Tottenham e Brixton se revoltaram e em
poucos dias os levantes atingiram Manchester, Liverpool, as cidades industriais da Inglaterra e chegaram ao Reino Unido. Retrata
essa situao a fala de um trabalhador negro entrevistado pela
televiso inglesa que, diante da pergunta do que ele achava acerca
da violncia das manifestaes, respondeu estar havendo uma
revolta popular. Contextualizando essa revolta da populao
negra, trabalhadora, de imigrantes, Tariq Ali (2011) mostrou, em
pesquisa, o contingente enorme de negros e imigrantes que morreram no percurso, nos veculos policiais, ao sair do local onde
foram abordados at as delegacias, nos ltimos dez anos. Morrem
muito mais negros e imigrantes do que brancos, aflorando as conexes entre classe e etnia. Em suas palavras: A juventude negra
desempregada ou semi-empregada em Tottenham e Hackney,
Enfield e Brixton, sabe bem que o sistema est contra ela. (...)
Haver algum inqurito pattico ou outros para avaliar porque
Mark Duggan foi morto a tiros, desculpas sero ditas, flores da
polcia sero depositadas no funeral. Os manifestantes presos
sero punidos e todos daro um suspiro de alvio e seguiro em
frente. At que acontea de novo. (TARIQ ALI, 2011, s/p).
Nos EUA floresceu um movimento de massas, Occupy
Wall Street, denunciando a tragdia social no pas, a hegemonia
dos interesses do capital financeiro, a polarizao entre os ricos
e os despossudos, o flagelo do desemprego, do trabalho precarizado sem direitos e as moradias que foram perdidas. Talvez se
possa afirmar que o Occupy, com todos os limites, possibilitou a
retomada de temas que estavam h tempos fora dos debates nos

Captulo 9

211

EUA como classes, trabalho, desemprego, crise estrutural, financeirizao do mundo e o capital.
Mas no s no Norte do mundo ocidental que surgiram
e se ampliam a precarizao do trabalho e suas lutas operrias. A
China hoje um dos pases com as maiores taxas de greves. Nesse
pas, encontramos um alto nmero de greves, resultado da superexplorao conduzida pelas transnacionais que habitam o solo
chins. O exemplo mais elucidativo o da Foxconn, empresa terceirizada responsvel pela montagem de produtos para a Apple,
Nokia, dentre outras companhias, e que contrata mais de um
milho de trabalhadores. O estudo dos pesquisadores do trabalho, Pun e Jenny Chan (2010), nos mostram que a tragdia da
Foxconn foi de tal intensidade que, nos primeiros oito meses de
2010, dezessete jovens trabalhadores entre 17 e 25 anos tentaram
suicdio, havendo treze mortes.
Esse padro chins de explorao no trabalho se expande
para a ndia. A ndia outro pas com um nvel de lutas sociais,
rebelies e greves muito alto. Estou citando aqui algumas rebelies que no so propriamente as greves, mas tomo por pressupostos que essas ltimas as greves so instrumentos vitais para
a luta da classe trabalhadora. Felizmente, podemos ter notcias
sobre esses eventos no continente asitico por conta da internet
e mdias sociais, pois os grandes jornais eliminaram de sua pauta
essas notcias.
No Japo, o cenrio de precarizao tambm notrio.
Quando eu fiz a pesquisa do meu livro Os sentidos do trabalho
(2011), descobri um fato assustador no Japo, que denominei
como operrios encapsulados. So operrios jovens migrantes
do campo que migram e vo morar e trabalhar em Tquio e nas
cidades japonesas industriais, e como no possuem dinheiro para
pagar um apartamento ou um quarto dormem em cpsulas de
vidro (ANTUNES, 2011). Outro grupo crescente nesse pas o do
cyber-refugiados. So jovens, operrios precarizados, sem perspectivas de trabalho que frequentam os cybercafs espaos que

212

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

cobram preos baixos para ficarem abertos por toda a noite para
descansar, interagir pela internet e procurar algum trabalho para
o dia seguinte, como a descarga de caminho ou navio. E 35% dos
trabalhadores japoneses hoje esto na informalidade. Essa um
pouco a tragdia do mundo do trabalho.
Quando vrios autores, como Guy Standing (2013) e
outros, dizem que o precariado outra classe, eu me permito discordar. Engels (1845/2008) nos ensinou, no livro A situao da
classe trabalhadora na Inglaterra, que ns devemos entender que
a classe trabalhadora um compsito heterogneo. De 1844 at
a atualidade, a classe trabalhadora vem se tornando mais heterognea, mais fragmentada e mais complexificada, como venho
acentuando desde o livro Adeus ao Trabalho? (Antunes, 2014).
Outro aspecto importante a imigrao. Em 2010, havia
50 milhes de imigrantes nos quinze principais pases, o que
representava, ento, 15% da populao europeia. Eles chegam da
frica, da sia, da China, da Amrica Central e do Sul e do leste
europeu e aderem aos piores trabalhos.
Eu gostaria de falar agora da Amrica Latina, porque nosso
olhar no pode ser um olhar do Norte. Ns temos que conhecer o
Norte do mundo, mas ns no podemos deixar de falar a partir da
tica do Sul do mundo. Aqui ns vivemos a desertificao neoliberal, a contrarrevoluo aqui foi com ditadura com autocracia
militar. A ditadura militar chilena antecipou o neoliberalismo,
antes da Inglaterra, assim como o fez a Argentina. O neoliberalismo significou pauperizao, expulso, desemprego, aumento
desmesurado da concentrao de riqueza, concentrao da propriedade da terra, crescimento do agronegcio, avano dos lucros
e ganhos do capital. Muitos bancos europeus pagam a sua falncia, nas suas sedes, com o saque latino-americano. O Brasil, que
h 15 anos tinha bancos nacionais e estatais dominantes e majoritrios, hoje est em grande medida transnacionalizado.
O receiturio neoliberal teve enorme presena no Brasil,
na Argentina, na Colmbia, no Mxico e nos outros pases. Mas

Captulo 9

213

ensaiam-se nesses pases latino-americanos sejam os povos


indgenas6, os campesinos, os sem terras, os operrios, os assalariados despossudos, os desempregados da Amrica Latina
novas formas de luta social e ao poltica.
Nos Andes, responsvel por uma cultura indgena milenar,
cujos valores, iderios e sentimentos so muito distintos daqueles
estruturados pelo controle e tempo do capital (CANTOR, 2013)
h uma ampliao das rebelies, dando claros sinais de contraposio ao domnio do capital. Eu j vi manifestaes em Mendoza,
na Argentina, de trabalhadores e da populao local contra as
mineradoras que vo desertificar e extrair minrio daquelas regies. E essa no uma luta anticapitalista? Ir contra uma transnacional que saqueia o minrio, expulsando a populao da sua
rea?
No caso argentino, as fbricas recuperadas so um bom
exemplo de resistncia. H l aproximadamente 200 fbricas
recuperadas/ocupadas. Do mesmo modo, h aes dos trabalhadores desempregados, os quais, em 2001, representaram quase
40% da populao argentina: a cada dois argentinos/argentinas,
aproximadamente um/uma estava desempregado/a.
Ento como que se faz a greve dos desempregados?
Fechando as estradas, impedindo a circulao de mercadoria e
de pessoas e assim est, de alguma forma, combatendo o capital
com as armas que possui.
O Chile tem feito nos quatro anos o que talvez seja o mais
espetacular dos levantes nos pases latino-americanos. Sabe quem
est lutando no Chile? A juventude. Nesse pas, como herana da
ditadura Pinochet, a educao paga. Para um jovem chileno hoje
estudar em uma universidade, caso seja oriundo de uma famlia
de trabalhadores, posto o dilema de vender a casa, na esperana

Assim como nos ensinou um dos mais importantes latino-americanos, Maritegui,


indispensvel o marxismo pensar a classe operria em articulao com os povos
indgenas e campesinos.

214

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

do filho poder ascender na vida por meio da educao, ou no


vender e ele no acessar o ensino superior, correndo o risco de
padecer da mesma situao de sua famlia.
Para comear a concluir: ns temos que fazer o que o Marx
fazia. Marx olhava o mundo real e compreendia-o, para transform-lo: isso fazer ontologia, no adianta eu falar sobre algo que
no tem concretude, que no tem movimento e no compreende a
contradio. Talvez o nosso mais qualificado filsofo marxista do
sculo XXI, Lukcs (2013), teve o feito de mostrar a importncia
em se compreender o modo de ser e de existir do mundo real. Isso
em uma poca em que o marxismo tinha se ossificado, desde o
neopositivismo, passando pelo estruturalismo e caindo no pior
de todos eles: a stalinizao do pensamento.
Um ltimo ponto a ser tratado a relao entre o proletrio e a revoluo. Algum pode falar que nenhum desses proletariados que citei so industriais e somente esses poderiam fazer
revoluo. Mas quem disse um absurdo desses? Pois no foi Mao
Tse Tung quem ensinou que uma massa de camponeses, comandado por uma liderana com o olhar do polo mais avanado da
classe trabalhadora (o proletariado industrial), poderia fazer uma
revoluo? Como que eu posso, por exemplo, pensar a revoluo em um pas que no tenha criado um proletariado industrial,
mas permanea predominantemente com proletrios e trabalhadores rurais? Ela tem que ser, nesse exemplo hipottico, efetivado
pelo proletariado agrcola.
claro que o proletariado industrial sempre foi o polo
mais vital da classe trabalhadora, mas o que eu quero sugerir
a vocs a centralidade do trabalho para a vida social. Alguns
crticos de Marx tentaram negar isso, como Habermas (1991) e
Kurz (1992) para pegar os melhores. Claus Offe (1989) tambm
imprimiu algumas crticas: ele era um weberiano e afirmava que
o mundo atual no tem mais a tica do trabalho, conforme analisado por Weber (1913/1991). Ele estava certo: quem disse que o
trabalho central porque ele tem uma tica positiva do trabalho?

Captulo 9

215

Marx nunca disse isso. Na verdade, os escritos marxianos afirmam a classe trabalhadora como potencialmente revolucionria
por criar mais-valor. Tanto Habermas como Claus Offe afirmam
que o valor no tem mais importncia; mas como eles explicariam a justificativa da Foxconn extrair os ossos, peles e almas dos
seus jovens operrios, a no ser pela extrao de mais-valia? Por
que existe zona franca no Haiti, onde o trabalhador ganha poucos
centavos por hora de trabalho?
Essa anlise no novidade. Se vocs virem uma fala
minha gravada em 1990, quando muitos da esquerda e neoliberais diziam que a classe trabalhadora havia acabado, eu afirmava
que a temperatura social iria aumentar na dcada de 1990 e 2000
e estamos vendo essa temperatura aumentando.
H um desafio importante para os marxistas, socialistas
da vrios matizes e os anticapitalistas. Em vez de afirmarem que
essas lutas at agora elencadas so irrelevantes por no ter a direo de um Partido, h de se compreender a fundo esses movimentos e, inclusive, h que se repensar o papel dos partidos nesse
processo.
O Partido dos Trabalhadores no surgiu como um partido de esquerda com o projeto de ser um partido de classe? Pois
agora est no colo da burguesia7. Marx dizia, na Associao
Internacional dos Trabalhadores, que era preciso criar um partido
poltico distinto. O que seria isso hoje?
Ainda mais: essas lutas sociais dos trabalhadores precarizados tm conexo com o trabalho, alm de outras ligaes que
apontei anteriormente (a tragdia urbana, a mercadorizao das
coisas, da sade, tudo aquilo que j estamos sabendo). H uma
nova morfologia da classe trabalhadora e so inmeras as consequncias e dificuldades; por exemplo, frequentemente o jovem

Outro exemplo o Partido Comunista Italiano, que virou o Partido Democrtico


de Sinistra e, hoje, s o Partido Democrtico, convertido a um posicionamento
de centro-direita.

216

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

no mundo europeu percebe o velho trabalhador como seu inimigo, o sindicato como aliado apenas do ltimo e querem distncia dos partidos.
Eu no acho que os partidos esto aniquilados da histria.
Mas, ateno: ns sabemos que no curso histrico novos organismos de representao nascem, velhos desaparecem, antigos
se atualizam e se tornam contemporneos. verdade que esses
movimentos sociais encontram sua principal lacuna na falta de
organicidade, mas tambm sinal de que h algo errado se os
partidos no priorizarem a luta das ruas e ficarem se exaurindo
em favor das eleies que limitam-se estritamente ao espao da
institucionalidade.
Eu tenho tido uma posio muito clara sobre isso: para
mim os partidos de esquerda devem priorizar as lutas sociais,
as greves, as rebelies, as manifestaes. Se priorizam a cada
semestre uma eleio, disputada a base de alianas, o partido no
avana. E essas lutas sociais esto dizendo algo para os partidos,
os sindicatos, que vo na direo contrria.
Claro que ns temos alguns desafios vitais. Como possvel repor o socialismo no sculo XXI? Eu diria: descobrir as
questes vitais. Essa a funo tambm dos intelectuais radicais.
Lukcs (1968/2013) tem uma passagem na Ontologia do Ser Social
na qual comenta que na vida cotidiana h uma serie infindvel
de se e mas; contudo, somente quando algumas questes cruciais, que tocam no nervo da sociedade aparecem, a transformao radical torna-se possvel e deflagram-se as revolues.
Quais so as questes vitais hoje? Uma delas o trabalho: a humanidade que trabalha depende dele para sobreviver.
A humanidade que trabalha precisa demolir o capital para que
o seu trabalho seja livre, associado, no menor tempo possvel
(por isso realizado segundo a lgica do tempo disponvel e no
do tempo excedente para produo de mais-valia) e para que sua
vida fora do trabalho seja a mais ampla e a mais rica, verdadeiramente livre. Para isso, repito, preciso demolir o sistema de

Captulo 9

217

metabolismo social do capital e para que isso ocorra tem que haver
luta, e no somos ns intelectuais que vamos fazer. luta social
em escala ampliada. E quem pode puxar essas lutas sociais? Uma
mirade de seguimentos e de movimentos sociais, sob a impulso
da classe trabalhadora, em seu sentido amplo.
ltima nota trata sobre o crescimento do proletariado de
servio. Primeiro, esses sujeitos compem o proletariado? Para
mim no paira dvidas que sim. Cria valor? Quem so os trabalhadores que criam valor e os que no criam? Se algum disser
para mim que no cria valor, no entendeu Marx, porque ele nos
ensinou que o professor, o artista, o cantor, dentre outros, tambm podem criar valor. Vrios setores de servios deixaram de
produzir servios para valor de uso privado ou pblico consumidos pelos outros trabalhadores, para gerar mercadoria (material
e imaterial) gerando mais-valia. Sobre a alegao de alguns de
que Marx no discutiu essas questes, pousa um erro notrio. No
volume II de O Capital (1885/1974), Marx vai falar da circulao
do capital e assume como indstria, tambm, os seguimentos dos
transportes, do gs, da eletricidade, exemplos que escapam ao
pensamento de senso comum do que seria a indstria. E ele acrescenta, claramente, que a indstria de transporte cria mais valia.
Se no entendermos quem esse novo proletariado, camos na enrascada que nos tentaram colocar h 20 anos, afirmando
que a classe operria estava diminuindo. Como indico em Adeus
ao Trabalho? (2014), na verdade a classe trabalhadora, o proletariado, est crescendo, basta pensar no novo proletariado de servios que no para de se expandir em escala global.
E como que a gente faz para entender essa classe trabalhadora? preciso voltar a Marx e, a partir dele, olhar o sculo
XXI. Por isso eu parabenizo a vocs pelo Marx Hoje e espero ter
ajudado, com essas provocaes, a jogar a nossa batalha para
frente. Porque o sculo XXI, como dizia o Gramsci, com otimismo e anlise crtica, h de ser um sculo mais generoso para
a humanidade.

218

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

E nossa Amrica Latina, em suas lutas, tem muito a dizer


neste cenrio8. Viva a Amrica Latina e viva o Marx Hoje!

Referncias
ALI, TARIQ. Distrbios em Londres: por que aqui e por que agora?.
2011. Disponvel em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/
opiniao/17284/disturbios+em+londres+por+que+aqui+e+por+qu
e+agora.shtml>. Acesso em: 7 maio 2015.
ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e Misria do Trabalho no Brasil Vol. I.
So Paulo: Boitempo, 2006.
ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho (Ensaio sobre a Afirmao e a
Negao do Trabalho). 13. ed. So Paulo: Boitempo, 2011.
ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e Misria do Trabalho no Brasil Vol. II.
So Paulo: Boitempo, 2013..
ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a
Centralidade do Mundo do Trabalho. So Paulo: Cortez, 2014.
BRAGA, R. A Poltica do Precariado. So Paulo: Boitempo, 2013.
CANTOR, R. V. Capitalismo y Despojo: Perspectiva Histrica sobre la
expropriacin universal de bienes y saberes. Colmbia: Impresol
Ediciones, 2013.
CHESNAIS, F. A Mundializao do Capital. So Paulo: Xam, 1996.
ENGELS, F. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. So Paulo:
Boitempo, 2008. (Escrito em 1845).

bom lembrar que a primeira revoluo negra, a primeira revoluo que tocou
a propriedade privada e que props a propriedade social nessa nossa Amrica,
ocorreu no Haiti.

Captulo 9

219

FERNANDES, F. A Revoluo Burguesa no Brasil. So Paulo: Zahar,


1975.
HABERMAS, J. The Theory of Communicative Action (Reason and the
Rationalization of Society). (Vol. I). (Trad. de McCarthy). Londres:
Polity Press, 1991.
HARVEY, D. A Condio Ps-Moderna. So Paulo: Edies Loyola, 1993.
KURZ, R. O Colapso da Modernizao. So Paulo: Paz e Terra, 1992.
LUKCS, G. Para uma Ontologia do ser Social (Vol. II). So Paulo:
Boitempo, 2013. (Texto original publicado em 1968).
MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica (Livro 2). Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1974. (Texto original publicado
em 1885).
MSZROS, I. Para Alm do Capital. So Paulo: Boitempo, 2002.
NGAI, P.; CHAN, J. The Advent of Capital Expansion in China: A Case
Study of Foxconn Production and the Impacts on its Workers.
Dsponvel em: <http://rdln.files.wordpress.com/2012/01/punngai_chan-jenny_on-foxconn.pdf>. Acesso em: 8 maio 2014.
OFFE, C. Trabalho como Categoria Sociolgica Fundamental?. In:
OFFE, C. Trabalho & Sociedade (Vol. I). Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.13-41.
PRECRI@S INFLEXVEIS. Manifesto precrio. s/d. Disponvel em:
<http://www.luta-social.org/2008_03_01_archive.html>. Acesso
em: 11 fev. 2015.
STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. So Paulo:
Autntica, 2013.
WEBER, M. Economia e Sociedade (Vol. 1). Braslia: Editora da UnB,
1991. (Texto original publicado em 1913).

Parte III
Psicologia e marxismo

Captulo 10

A atualidade do marxismo e
sua contribuio para o debate
sobre a formao e atuao do
profissional de Psicologia
Isabel Fernandes de Oliveira
Ilana Lemos de Paiva

A crtica no arranca flores imaginrias dos grilhes


para que os homens suportem os grilhes sem fantasia e consolo,
mas para que se livrem deles e possam brotar as flores vivas.
Karl Marx

realizao do I Seminrio Marx Hoje, promovido pelo Grupo


de Pesquisas Marxismo e Educao (GPM&E), no mbito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte teve por objetivo
assim como outras iniciativas do grupo radicalizar a discusso
marxiana no interior da universidade, ousando discutir os pressupostos da teoria social formulada por Marx e Engels como eixo
inspirador de pesquisa, de formao de pensamento crtico e de
uma atuao profissional militante. De forma mais pretenciosa, o
GPM&E tem ousado lanar algumas questes para o debate da formao e atuao profissional da Psicologia tendo, tambm, como
eixo problematizador e norteador, as contribuies desses pensadores na gnese, desenvolvimento e superao da Era do Capital,
e dos seus perversos desdobramentos em vrias esferas.

224

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Essa tem sido nossa principal tarefa, talvez porque ainda


persista na academia (e fora dela) a ideia, falsa, de que 1) Marx em
nada pode contribuir com a formao de profissionais ou de pesquisadores, e 2) que a universidade, como espao privilegiado de
produo de cincia, e essa cincia, vista pelo prprio Marx como
corolrio do capitalismo, no guardaria espao para a subverso,
para a perspectiva da revoluo ou outros termos. Bem, temos
feito um rduo esforo para mostrar que no. Afinal, no se discute os determinantes histrico-sociais que constri esse modelo
de cincia, de onde nasce e a que/quem interessa, qual a funo
social que ela assume diante de determinada forma de sociedade.
Qualquer outro caminho que possamos tomar no mbito acadmico tem sido visto como ideolgico e no cientfico. preciso
demonstrar, ento, a partir da perspectiva marxista, que a cincia
moderna no neutra.
Assim, temos buscado, seja pela estrita letra de Marx, seja
por meio de seus comentadores, discutir, questionar e apontar
caminhos para uma articulao entre Marxismo e Psicologia,
que objetivo do presente texto. Isso no significa falar em uma
Psicologia Marxista ou algo do gnero, mas uma tentativa de contribuir com mudanas nos rumos da cincia e da profisso da
Psicologia, na direo de uma prxis verdadeiramente transformadora da realidade social alvo de seu trabalho.
Dito isso, buscaremos discutir de que modo algumas categorias ou aspectos trabalhados por Marx e alguns de seus seguidores podem subsidiar, se no a ao concreta, mas os princpios
dela, o trabalho do psiclogo. Certamente essa contribuio no
ser no como fazer, mas possivelmente a direo, os limites e o
objetivo ltimo dessa ao. Comecemos, ento, pelo desenvolvimento da Psicologia por um caminho que nos permite ousar
pensar em uma articulao entre o pensamento marxiano e a prtica profissional. No de toda e qualquer Psicologia que falamos. Tambm no de uma rea da Psicologia (como defendem
alguns), mas sim, de um contexto de trabalho, cujas demandas

Captulo 10

225

nos colocam de frente com a condio mais palpvel e perversa


do desenvolvimento do capitalismo: a questo social e suas
sequelas. Falamos tambm de um posicionamento poltico anterior a qualquer formao ou atuao profissional. Considerando
esses elementos, defendemos que o campo social, poltico, o
espao, por excelncia, onde se pode pensar uma prxis transformadora das condies de vida, tal como dizia o velho Marx.
Sabemos que o campo social no territrio sob o qual
se erigiu a profisso de psiclogo. Quando no campo social, no
limite, a Psicologia serviu de instrumento de tortura, de subjugao e opresso de presos polticos, de controle e manipulao
de massas. Isso percorre a histria da Psicologia de tal forma que
muito recentemente, mais precisamente em 30 de abril de 2015,
foi publicada uma notcia no The New York Times revelando que
a American Psychological Association colaborou secretamente
com o governo de George W. Bush, fornecendo uma justificativa
legal e tica para a prtica de tortura de prisioneiros capturados
e mantidos na priso americana em Guantnamo, aps a tragdia de 11 de setembro de 2001. O ttulo da reportagem All the
Presidents Psychologists (todos os psiclogos do presidente)1.
um passado de vergonha, mas que no podemos esquecer; pelo contrrio, temos um compromisso de evitar qualquer
desenvolvimento no campo profissional atual que sinalize a retomada de prticas semelhantes, apesar de travestidas de modernidade e de democracia. E acreditem, essas prticas existem, e
cooptam diariamente estudantes e profissionais ansiosos por
responder s demandas imediatas e impostas pelo avano capitalista sobre os povos; esses profissionais respondem no aqui e
no agora sem ter a dimenso (ou at mesmo tendo e pactuando
com as mesmas) e sem responder politicamente s questes: para

Embora o Conselho da APA tenha publicado, posteriormente divulgao da


notcia, um documento em que afirma que est apurando e demitindo todos os
que possam ter ferido a misso da Associao, a mancha permanece.

226

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

qu e a servio de quem esto algumas prticas? A Psicologia no


una; so vrios modelos tericos, vrios sujeitos alvo, vrios
campos de insero. preciso respeit-los e disso no h dvida.
Entretanto, tambm preciso avaliar se interessante e possvel
a construo de um projeto tico-poltico para a profisso em que
alguns elementos sejam base de toda e qualquer ao profissional. O Servio Social fez isso e sustenta esse projeto, mesmo com
alguma dificuldade. Para a Psicologia, parece ser um caminho
mais rduo. Vejamos por que.
No Brasil, a Psicologia se desenvolve como cincia aplicada, com influncia, por exemplo, de escolas mdicas e da
Moderna ortodoxa clnica psicanaltica. O ensino de Psicologia
em cursos como os de Pedagogia, Medicina e Servio Social,
apostava na contribuio dessa disciplina para a anlise dos comportamentos tidos como desviantes. Vale salientar que estamos
falando das primeiras dcadas do sculo XX e hoje ainda questionamos o rano rotulador da profisso e a psicologizao dos
sujeitos e dos fenmenos sociais.
Mas, a dcada de 1960 emblemtica nos rumos que a profisso tomou no pas: a Psicologia se consolida como profisso,
em 1962, coadunada com o projeto desenvolvido pelo governo
civil-militar golpista, o Estado de Segurana Nacional. Era uma
Psicologia voltada para o desenvolvimento de um iderio individualista, privativo, subjetivo e inconsciente, que funcionou
como instrumento de moldagem, controle dos corpos e ajustamento. Exemplo dessas prticas foram os estudos realizados para
levantar o perfil de personalidade dos subversivos, patologizando os militantes que lutavam pela democracia (BICALHO,
2013; COIMBRA, 1995, 2001; SCARPARO et al., 2014). A face
mais perversa desse modelo que a Psicologia se desenvolve,
portanto, como ideologia no sentido de conscincia falsa, equivocada da realidade (MARX; ENGELS, 1846/2007) e responsabiliza os sujeitos por seus problemas (materiais, existenciais,
psquicos), cabendo aos mesmos a tarefa para sua superao.

Captulo 10

227

Perde-se o contexto histrico, a dinmica societria, as contradies de classe. O modelo de Psicologia empreendido voltava-se,
portanto, para a elite brasileira e, mesmo para ela, defendia seu
condicionamento, sua colonizao, renegando a capacidade crucial dos indivduos de serem agentes reflexivos.
O iderio individualista provocou uma cultura profissional que perdura e que engessa a atuao profissional, mas
garante mercado de trabalho para a profisso. O problema que
o contexto social negligenciado por dcadas pelos profissionais
de Psicologia o mesmo que provoca retrao de mercado para
o exerccio liberal da profisso no final da dcada de 1970 e
tambm o mesmo que ir atrair psiclogos para o trabalho nesse
espao. No apenas por convices profissionais, mas, principalmente, por uma oportunidade de emprego (YAMAMOTO, 2007;
OLIVEIRA; AMORIM, 2012; YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010).
A falncia do milagre econmico, o processo de abertura
democrtica com a consequente reforma do Estado e as sucessivas crticas acerca do papel poltico do trabalho do psiclogo os
impele para o campo da poltica social. De espao obscuro passa
a ser referncia de insero, uma vez que o servio pblico e o
trabalho institucionalizado tornam-se os grandes empregadores
de psiclogos no Brasil, a partir da dcada de 1980. E a Psicologia
entrou no hospital, na escola, nas unidades de sade, na assistncia social, nas ONGs. Merece destaque, nesse movimento
questionador do papel ideolgico da cincia e da profisso, as
influncias de Vygotsky na Rssia; as influncias marxistas sobre
o tema trabalho na Frana; a Psicologia Alem, com sua redefinio da Psicologia da Atividade (para uma Psicologia Crtica); os
eventos de maio de 1968 na Frana (e seus vrios desdobramentos na esquerda mundial); o trabalho de Michel Foucault, sobre
poder, encarceramento e controle dos corpos, para citar alguns.
Podemos citar tambm, numa geografia mais prxima, as influncias dos vrios movimentos no campo social que vieram na esteira
dos golpes civil-militares da Amrica Latina e respondendo a um

228

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

movimento das Cincias Sociais e Humanas que havia comeado a produzir uma sociologia comprometida, militante, dirigida aos oprimidos. A Psicologia comea a receber influncias da
Teologia da Libertao, da Pedagogia de Paulo Freire, dos estudos
de Martin-Bar e do colombiano Orlando Fals Borda, alm de
uma matriz essencialmente marxista. Todo esse contexto deflagra a chamada crise de relevncia social da Psicologia, que em
um primeiro momento se restringe academia e a profissionais
envolvidos com a militncia poltica. Em terras nacionais, merece
destaque o movimento no campo da Psicologia Social, que agregou vrias dessas influncias e teve na figura de Silvia Lane uma
de suas principais ativistas. Questionava-se por que a Psicologia
no atuava como agente de transformao social. Qual o seu compromisso social? Por que a Psicologia no se ocupava de questes
da macroestrutura? So perguntas para as quais temos algumas
respostas, no todas, mas possvel compreender que o dilema
do chamado compromisso social da profisso j existia desde os
tempos da regulamentao da profisso no Brasil.
No nvel macroestrutural, nos estertores finais do ciclo de
autocracia burguesa, o clamor popular responsabiliza o Estado
pela exacerbao das condies de pobreza de um expressivo
quinho de brasileiros. A reforma do Estado o torna agente protetor dos cidados e o impele ao resgate da dvida social radicalizada na ditadura. Para isso, dentre outras medidas, o aumento do
gasto para a garantia dos chamados mnimos sociais era imperativo. Com isso, houve um incremento na poltica social e, dentre
suas novas diretrizes est a incorporao de categorias profissionais no existentes anteriormente em instituies pblicas. Esse
o contexto que permite o ingresso massivo dos psiclogos no
campo.
A partir do momento em que o psiclogo adentra no
campo das polticas sociais, um novo sujeito psicolgico, no
contemplado inicialmente, emerge como alvo de seu trabalho,
trazendo elementos como a fome, a destituio, a violao de

Captulo 10

229

direitos, a marginalizao, o trabalho escravo, a explorao, para


dizer algumas.
Os psiclogos lidam agora com processos, contextos e
fenmenos complexos e multidimensionais, e mais, essencialmente diferentes daqueles sob os quais se erigiu a profisso no
Brasil. Seus clientes so grupos espoliados e pauperizados e
no mais a classe mdia que podia pagar por sesses de psicoterapia em consultrios privados. Novas profissionalidades so
exigidas ao mesmo tempo que uma leitura de realidade passa a
ser requisito para o trabalho. Martin-Bar (1997) j havia afirmado que o trabalho profissional do psiclogo deve ser definido
em funo das circunstncias concretas da populao a que deve
atender. Cabe-nos questionar quais respostas a Psicologia tem
dado aos problemas que atingem nossa populao e no que podemos/devemos, ainda, avanar? Afinal, passados mais de 30 anos
do ingresso efetivo dos psiclogos no Sistema nico de Sade
(SUS), primeiro grande espao de trabalho do psiclogo na poltica pblica brasileira, ainda estamos, pensando e discutindo o
compromisso social da profisso, que novas profissionalidades o
campo social requer, e como a Psicologia pode romper com seu
carter ideolgico e de dominao de classe para uma Psicologia
desideologizante e potencialmente revolucionria das condies
de vida das pessoas. Nessa busca, passamos a retomar algumas
das discusses empreendidas pelo campo marxista que podem
contribuir com esse debate.
Em primeiro lugar, as novas demandas para o psiclogo quando imerso na poltica social advm das sequelas da
questo social, que nada mais do que um conjunto de problemas sociais, polticos e econmicos postos pela emergncia
da classe trabalhadora na lgica da contradio capital-trabalho
(YAMAMOTO, 2007; NETTO, 1992; PASTORINI, 2004). Mas, afinal, como se caracteriza essa contradio? o capitalismo que
gera a pobreza? A explorao? Podemos dizer que no s ele, mas
ele os radicaliza. Embora no sendo a pobreza, a explorao e

230

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

a destituio privilgios desse modo de produo, em nenhuma


outra formao societria a pobreza e a explorao aparecem de
forma to perversa quanto no capitalismo.
Nos Grundrisse, Marx (1858/2011) tratou de discutir o
mecanismo geral de toda mudana social a formao das relaes sociais de produo que correspondam a uma etapa definida
de desenvolvimento das foras materiais de produo. A base
objetiva do humanismo de Marx a ideia de homem como animal
social: e aqui temos a categoria trabalho como fundamental na
sua obra. A interao entre o homem e natureza e produz evoluo social. Evoluo que, a partir da modificao da natureza
e da sua independncia em relao a ela, leva o homem a mudar
as foras e relaes de produo. Como animal social, o homem
cria cooperao e diviso social do trabalho (especializaes das
funes). A troca, ento, pode ser compreendida como a concomitncia do excedente e da diviso social do trabalho, e a acumulao do capital o produto dessa evoluo. Assim, a relao
trabalho-propriedade vai se dissolvendo, pois o homem se distancia das primitivas relaes e passa a evoluir espontaneamente,
numa separao entre o trabalhador e a terra como laboratrio
natural (HOBSBAWM, 2011).
A partir dessa compreenso, Marx se debruou sobre a
dinmica interna dos sistemas: o que faz os sistemas ascenderem
ou declinarem? Para ele, as contradies internas do feudalismo,
por exemplo, levaram ao capitalismo. Vejamos.
Em formaes pr-capitalistas havia explorao, seja
de escravos, servos ou de vassalos. No feudalismo, as relaes
comerciais se davam eminentemente por meio da troca de produtos. A destituio era generalizada porque no havia produo de riqueza material em grande escala. Assim, havia pobreza,
em primeiro lugar, porque no havia riqueza a ser compartilhada
(no que seria, caso houvesse). Com a instaurao do capitalismo,
houve um intenso desenvolvimento das cidades, urbanizao,
construo de infraestrutura, bens, servios mveis e imveis. O

Captulo 10

231

surgimento das fbricas, o tear a vapor (grande marco da passagem do feudalismo para o capitalismo), sem dvida provocaram
um expansivo desenvolvimento da sociedade como um todo. Ou
seja, comeou-se a produzir riqueza material em grande escala.
Com a universalizao do trabalho livre, os ex-escravos e servos
passaram a vender sua fora humana de trabalho em troca de um
salrio. A questo a ser debatida : em que condies ocorre essa
venda da fora humana de trabalho desumanizada e transformada
em mercadoria? Para Marx, o capitalismo sinnimo do trabalhador reduzido fora de trabalho.
H a preocupao de Marx com todo esse processo, que
abarca sculos e continentes. Nessa evoluo, ocorre o processo
de individualizao do homem que s se d atravs do processo
da histria. O homem surge como ser genrico, animal tribal, gregrio e o aparecimento da troca o agente de individualizao
torna suprfluo o animal gregrio e o dissolve. O capitalismo
a forma desumanizada, contraditria, porm, pois quando h o
desenvolvimento individual livre (HOBSBAWM, 2011).
A partir da, emergem, da anlise marxiana da sociedade
do sculo XIX, duas grandes categorias ontolgicas fundamentais
para compreendermos o capitalismo: os detentores dos meios de
produo e que ficaro com boa parte da riqueza produzida, a
burguesia, e outra categoria, a daqueles que no tm alternativa
seno subsumir-se aos mandos do capitalista, vendendo sua fora
de trabalho como nica alternativa de sobrevivncia o proletariado. No capitalismo, o trabalho aliena o trabalhador..., mas,
como e por que?
Marx fala da categoria classe social para abarcar essas
duas que, para ele, so fundamentais e existem em uma relao
dialtica: uma existe to somente porque a outra existe. No se
pode imaginar em uma sociedade do capital apenas uma dessas
classes fundamentais. Qual a relao que se estabelece entre elas?
o proletariado o responsvel pela produo de riqueza, mas no
ele quem a acessa. E por isso conhecemos essa relao entre

232

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

burguesia e proletariado como contradio capital-trabalho.


Aqueles que trabalham no detm o capital. Antes, so explorados at o limite de sua reproduo como seres humanos. Nos
Manuscritos Econmico-Filosficos, Marx (1844/2004, p. 80) se
pergunta aonde vai parar o produto do trabalho do homem. A
alienao, alm de degradar o homem, o despersonaliza, transforma-o em mero apndice de carne em uma mquina de ferro:
O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza
produz, quanto mais a sua produo aumenta em poder
e extenso. O trabalhador se torna uma mercadoria to
mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorizao do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta
em proporo direta a desvalorizao do mundo dos
homens (Menschenwelt). O trabalho no produz
somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral.

A propriedade privada dos meios de produo a forma


mxima dessa alienao, pois o potencial social se converteu no
poder privado de poucos. O trabalho de muitos se transforma no
capital de poucos privilegiados e a essncia mais profunda do
homem, o seu ato criativo, foi convertido em posse.
E enquanto existir capitalismo essa contradio perdurar. Enquanto existir capitalismo a explorao perdurar. Como
modificar esse estado de coisas? Para Marx, o limite dessa explorao, contudo, dado pela conjuno de foras que uma classe e
outra conseguem agregar em um determinado momento histrico.
A presso que uma exerce sobre a outra e faz valer seus interesses. Em A Sagrada Famlia, Marx e Engels (1845/2003) colocaram
em evidncia o conflito entre esses opostos que se desenvolveram
na sociedade capitalista, a contradio entre capital e trabalho e
a inevitvel luta de classes. Vale salientar que a luta de classes
no foi uma inveno de Marx, pois est ligada a determinadas
fases histricas de desenvolvimento da produo. No entanto, a

Captulo 10

233

abolio de todas as classes e transio para uma sociedade sem


classes depende dessa luta histrica. E Marx demonstra com preciso que o trabalhador est condenado a no desfrutar jamais das
vantagens que o sistema reserva aos proprietrios dos meios de
produo. Por isso, enquanto no houver a superao do sistema
capitalista, a harmonia no poder existir, pois na medida em
que uma classe explora a outra, haver resistncia e luta contra a
explorao:
A sociedade burguesa moderna que brotou das runas
da sociedade feudal, no aboliu os antagonismos de
classe. No fez mais do que estabelecer novas classes,
novas condies de opresso, novas formas de luta
em lugar das que existiram no passado. Entretanto, a
nossa poca, a poca da burguesia, caracteriza-se por
ter simplificado o antagonismo de classe. A sociedade
divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em
duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e
o proletariado (MARX; ENGELS, 1848/1998, p. 40-41)

Como mediadora dessa relao est a representao do


povo: o Estado. Entretanto, da mesma forma que no capitalismo
no se pode pensar em relaes igualitrias, tambm no possvel conceber o Estado como representante dos interesses gerais.
impossvel defender interesses que esto em relao de oposio.
Ento, o Estado (e todas as suas intervenes) na formao societria que temos, um Estado que existe para garantir a continuidade dessa relao de contradio, ou seja, um Estado burgus.
Cabe ao Estado burgus garantir as melhores condies possveis
para a reproduo do capital. Dentre essas condies est uma
fundamental: a possibilidade de reproduo da fora de trabalho,
ou seja, do trabalhador. com esse objetivo que o Estado lana
mo da poltica social como forma de compensar a pauperizao
do trabalhador, decorrente da explorao na cadeia do processo
produtivo. Os desdobramentos disso so, na verdade, o que foi
sinalizado anteriormente como a questo social. As polticas

234

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

sociais so estratgias capitalistas de compensao da explorao; so estratgias minimizadoras da tenso social gerada pela
desumanidade da explorao, e so essenciais para a manuteno da lgica de reproduo do capital. Como operadores delas,
precisamos ter isso sempre muito claro porque, por mais democrtica que seja, uma poltica social no visa a superao total da
explorao. Retomaremos esse ponto mais frente.
Sob o discurso da otimizao e da estratgia, o Estado fragmenta a poltica social em polticas sociais setorizadas, e utiliza
o princpio da intersetorialidade para manter a relao entre elas.
Obviamente que se falamos de UMA questo social, para solucion-la no podemos pensar em estratgias que ataquem parte
dela apenas.
A poltica social ser mais permevel ao trabalhador tanto
mais essa classe conseguir pressionar a sociedade para isso. A
lgica inversa a mesma. Poltica, portanto, conflito de interesses, de classe, uma em oposio a outra. Em que pese a discusso
acerca de quais classes fazem parte da composio orgnica do
capital, a principal tenso que se estabelece quando falamos de
polticas sociais ou de agenda econmica , como apontou Marx,
entre a burguesia e o proletariado (ou ampliando, como prope
Ricardo Antunes, a classe que vive do trabalho).
Dizer que poltica social uma estratgia do capitalismo
para que este continue operante no invalida dizer que por
meio dela que se torna possvel a melhoria das condies de vida
da classe trabalhadora. Temos, ento, mais um exemplo das contradies do capitalismo. Ento, precisamos sim lutar pela plena
efetivao da poltica social e pela responsabilizao do Estado
sobre as condies de vida da populao, pois ela configura uma
etapa importante do movimento de organizao de classe e de
tomada de conscincia.
Diante da discusso levantada at aqui, destacam-se
alguns elementos importantes para compreender a atualidade
do marxismo, depreendidas de sua trajetria de construo de

Captulo 10

235

uma teoria da sociedade capitalista, e sua possvel contribuio


ao campo da Psicologia. So aproximaes iniciais, mas efetivas,
para pensarmos numa prtica profissional comprometida com
outro projeto de sociedade.
Antes de mais nada, Karl Marx foi um estudioso da sociedade burguesa e um revolucionrio. Sua principal contribuio,
a obra O capital, trata da gnese, estruturao, dinmica e superao da sociedade burguesa em tempos de surgimento e consolidao do modo de produo capitalista. Ento, de incio,
busca-se apontar trs premissas sobre as quais desenvolveremos
tal aproximao:
1)

Um primeiro aspecto a ser abordado que, ao contrrio do que comumente se diz, Marx no foi um terico
do Comunismo ou do Socialismo; Marx foi um terico
do capitalismo, estruturando toda a sua obra em uma
perspectiva revolucionria, de superao da ordem
do capital. Para ele, menos que isso era nada e o que
viria depois do capitalismo no era, necessariamente, o
comunismo, mas que essa era uma possibilidade por ele
defendida. Para Marx, era inconcebvel uma sociedade
que matava trabalhadores para se reproduzir; uma sociedade em que no havia igualdade de oportunidades nem
o acesso de todos riqueza produzida. Para ele, uma
formao societria desumana deveria ser aniquilada.

2) Tambm ao contrrio do que ouvimos sistematicamente, tanto em alguns espaos acadmicos como fora
deles, a teoria marxiana no foi superada e nem obsoleta. A forma como Marx operou em seu tempo ainda
nos d respostas e explicaes para a compreenso de
vrios fenmenos contemporneos. Obviamente ela no
nos fornece todas as respostas. Teoria nenhuma o faz.
Tambm claro que sua teoria tem limitaes, histricas
principalmente, mas, enquanto a sociedade burguesa
no for superada, a obra de Marx sim, atual. Como

236

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

diz um dos maiores conhecedores brasileiros da obra de


Marx, Jos Paulo Netto, Marx pode no ser suficiente
para compreender o capitalismo de hoje, mas sem ele
no se compreende nada sobre esse modo de produo.
3)

No existe um mtodo marxiano, pelo menos no da


forma como usualmente se concebe mtodo (como um
conjunto de procedimentos padro para a investigao
e interveno). Trata-se, ento, de pesquisar e atuar com
inspirao no pensamento marxista. Vrias adaptaes
so feitas e elas no podem ser atribudas obra de
Marx.

Dito isso, faz-se importante resgatar, ainda que de forma


superficial, algumas premissas essenciais para a compreenso da
lgica de Marx operar sobre o real, as quais usamos como referncia para o nosso trabalho.
Em seu percurso de construo de uma teoria (algo que
no foi buscado originalmente por ele), Marx identifica categorias que ele concebeu como ontolgicas, fundamentais na construo de seu pensamento, que surgem eminentemente em funo
de sua profunda imerso no campo, no real, no mundo material.
Lembremos, pois, que Marx no foi um mero terico, mas sim,
militante intenso. Sua clebre frase, presente nas Teses sobre
Feuerbach, afirmando que os filsofos tm apenas interpretado
o mundo de maneiras diferentes; a questo, porm, transform-lo, denota bem a posio poltica assumida por Marx.
Mas, o que o real? Para Marx, o real ou a realidade existe
independentemente de ns. Portanto, o mundo no o que eu
enxergo ou interpreto (portanto, esqueamos aqui abordagens
que apontam para a construo social da realidade ou o real
como resultado de experincias individuais, fenomenolgicas).
O mundo est l, mesmo que eu no o veja na forma como ele .
Ento, se o real existe, independente da forma como eu o vejo, o
qu, exatamente, eu vejo?

Captulo 10

237

Na nossa vida cotidiana, o tempo todo nos deparamos com


vrios objetos e situaes sociais que nos aparecem na forma de
fenmeno. O fenmeno algo que nos chega aos olhos de forma
imediata, mas desprovida do que Karel Kosk (2002) chamou de
determinaes. O fenmeno pertence ao real, mas no a mesma
coisa que ele. um seu fragmento, que revela o real ao mesmo
tempo que o oculta. O fenmeno, descolado do real, carrega em
si toda uma singularidade e um isolamento que nos impede de
compreender porque ele existe, para qu ele existe, a servio de
qu/quem ele existe. Ele um recorte do real mediatizado pela
ideologia. Assim, se apreendemos os fatos da vida sem atentar
para as suas determinaes, que, para Marx, so histricas, tendemos a absorver esse fenmeno suavemente e naturalmente,
como se fosse o curso fatal da vida e sem estabelecer relaes
entre objetos sociais.
Essa naturalizao de fenmenos sociais constitui o processo de alienao (no sentido marxiano) no qual os fenmenos
ou as aparncias (e no a essncia deles) so tidos como a realidade (exemplos de naturalizao dos fenmenos sociais: pobreza,
marginalidade, fome, violncia, classes sociais, entre outros).
Kosk (2002) afirma que temos de fazer um esforo, que Marx
denomina de terico (no sentido de abstrao, de conscincia)
para entender o fenmeno como parte do real, mas parte que o
oculta ao mesmo tempo em que o revela. Para sairmos da superficialidade do fenmeno, ou, para avanarmos sobre sua aparncia,
precisamos entend-lo em uma rede evolutiva e de determinaes histricas. Entendendo a histria como processualidade,
cada fenmeno se interliga a um outro; cada fenmeno resultado de uma composio histrica que o constitui e constituda por ele. O fenmeno, na verdade, deve ser situado dentro da
realidade concreta e de acordo com suas determinaes, com as
leis tendenciais que explicam seu movimento. Isto considerar a
dinamicidade da histria, analisando-a sob uma perspectiva que

238

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

dialtica e que visa, acima de tudo, transformao do curso


da histria.
Ento, como Marx superou o fenmeno que lhe foi de incio objeto de estudo e chegou sua essncia? Bem, Marx, como
dito anteriormente, no foi um terico da academia. Ele escreveu
para os trabalhadores, viveu e militou com eles. Por toda a sua
vida, Marx esteve imerso na vida material. Essa imerso outro
ponto importante a ressaltar: no nos possvel, sob a perspectiva marxiana, estudar ou intervir sobre um determinado objeto
sem conhec-lo bem e exatamente onde ele acontece. S isso j
nos distancia de estudos experimentais, de isolamento e testagem de variveis e estabelecimento de relaes diretas de causa
e de efeito. Dessa forma, Marx identificou (ele no escolheu)
categorias ontolgicas fundamentais (trabalho, classe social, mercadoria, burguesia, proletariado, entre outras) em funo dessa
imerso e elas dizem respeito e s fazem sentido porque para
Marx o modo pelo qual a produo material de uma sociedade
realizada constitui o fator determinante da organizao poltica
e das representaes intelectuais de uma poca. Melhor dizendo,
a base de uma sociedade est na forma como se organizam a produo e reproduo da vida material. Em O 18 de brumrio de
Lus Bonaparte, Marx (1858/2011) afirma que os homens fazem
a sua prpria histria, mas no a fazem segundo a sua livre vontade; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradio de todas as geraes mortas oprime
como um pesadelo o crebro dos vivos (p. 25).
Assim, em um momento em que a emergncia da contradio capital-trabalho aponta como o grande eixo de reproduo
da vida, as bases econmicas, para ele, so as relaes de produo, so os elementos estruturantes de toda a sociedade. So
essas relaes de produo - a infraestrutura da sociedade, que
determinam o que ele chamou de superestrutura - as instituies
jurdicas, polticas e ideolgicas.

Captulo 10

239

A superestrutura, pensando dialeticamente, tambm


influi sobre o desenvolvimento material. s considerar as possibilidades que as determinaes jurdicas possuem de colaborar
para uma maior ou menor intensificao da explorao dos trabalhadores, ou como direcionar o curso de reforamento de uma
ideologia dominante que pode 1) apassivar o movimento dos trabalhadores, ou 2) incendiar os conflitos que, em ltima instncia,
alteram o prprio movimento material.
Portanto, tendo como base a produo material, mais
uma ressalva deve ser feita: qualquer anlise que faamos de um
fenmeno social deve necessariamente abarcar as relaes entre
infraestrutura e superestrutura, em uma perspectiva dialtica. Na
verdade, a partir do prprio movimento da dialtica, a anlise de
qualquer objeto, de qualquer fenmeno deve permitir determinar
quais so os elementos que constituem a contradio, a dinmica
desencadeada por estas contradies. A questo que se coloca na
sociedade capitalista at que ponto a luta de classes resultante
da existncia de classes antagnicas governa o movimento da histria das sociedades divididas em classes.
Assim, tambm nos distanciamos da micropoltica por si
s. A perspectiva defendida por Marx e por ns absorvida a da
macropoltica, em uma perspectiva que chamamos de Totalidade
Histrica e que, necessariamente, implica ao transformadora,
prxis. Da, ao delimitarmos um objeto de estudo ou de interveno, precisamos ter em vista que: 1) ele no se encerra em si
mesmo; parte de um contexto mais amplo, interligado no passado, no presente e no futuro; 2) se o analisarmos dialeticamente,
conseguiremos entend-lo luz de sua materialidade histrica,
revelando sua essncia, que nada mais do que os determinantes histricos, polticos e ideolgicos que constituem tal objeto e
que no nos aparece em um nvel imediato, mas mediatizado por
uma ideologia que, no nosso caso, a ideologia do capital. E aqui
cabe o cuidado para no cairmos em relaes mecanicistas de
causa e efeito. No disso que se trata. Para melhor esclarecer a

240

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

questo, convocamos as palavras de Lukcs que concebe a sociedade humana como um complexo de complexos e que cada complexo uma sntese de mltiplas determinaes.
Tendo essa perspectiva como base, sobrevm as questes:
como operamos no real? Como o estudamos? E como o fazemos?
Qual o nosso mtodo? Poderamos apontar quatro premissas
essenciais que norteiam nosso fazer pesquisa/interveno:
1)

O objeto precede o mtodo. Ao imergir no real e identificar um objeto de estudo, ele mesmo nos aponta, por
suas caractersticas, a forma como deve ser investigado.
Portanto, o mtodo de investigao particular a cada
objeto e no o contrrio. No temos definies metodolgicas antecedentes escolha e a apropriao do objeto.
Isso no quer dizer que qualquer forma de apreenso do
objeto vlida. O rigor do mtodo, seja de investigao
seja de interveno, premissa essencial do trabalho.

2)

O objeto faz parte de uma processualidade histrica que


deve ser resgatada e compreendida, no apartada do
nosso objeto, pois s assim possvel darmos um salto
do fenmeno para a essncia do objeto de investigao.

3)

O objeto, mesmo recortado para fins de investigao, faz


parte de uma Totalidade Concreta, portanto, sua apreenso s faz sentido quando feita na sua relao com os
outros objetos, fenmenos e processos histrico-sociais
que conformam uma sociedade.

4)

O objeto no neutro, descompromissado. Ele sempre


reflexo de um contexto pautado por relaes polticas
que, no modo de produo vigente, so alvo de contestao por ns. Portanto, no temos pretenso de afirmar
que nossa cincia neutra (se que alguma o ); ela
tem um fim poltico claro que a busca pela superao
da sociedade burguesa. Isso o que nos move, mesmo
estando conscientes de que, pelas condies objetivas,

Captulo 10

241

trabalhamos mais em uma perspectiva progressista do


que revolucionria. Mas, visamos, por meio da nossa
prxis, uma mudana da Totalidade Concreta.

Considerando esses apontamentos iniciais, voltemos, para


finalizar, Psicologia e ao seu compromisso social. A primeira constatao que se considerarmos a pluralidade de sujeitos, fenmenos psicolgicos, concepes de mundo, de tica, de interveno,
entre outros elementos, podemos afirmar que as concepes marxistas no refletem a realidade da Psicologia como cincia e como
profisso. Portanto, pensar em um nico projeto tico-poltico para
a Psicologia no creio que seja possvel nesse momento. Ana Bock,
em livro publicado nos 40 anos de regulamentao da profisso
afirmou que o compromisso da Psicologia ao longo desse interstcio havia sido com as elites. Pensamos que isso ainda acontece,
mas os sinais de mudana j so bem claros, haja vista momentos
como o I Seminrio Marx Hoje, promovido, ousadamente, por um
grupo de pesquisa em Psicologia. Apesar de ser uma profisso com
perspectivas polticas divergentes e contraditrias, possvel pensar em um projeto tico-poltico para uma Psicologia que atua no
combate pobreza, em defesa dos direitos humanos, dos grupos
espoliados e pauperizados. Um projeto para uma Psicologia que
luta contra a pobreza poltica, nas palavras de Pedro Demo (2003).
Essa Psicologia no pode ser ideolgica, no pode ter o compromisso com a reproduo de uma falsa conscincia sobre o mundo.
Essa Psicologia no pode ser rotuladora, pacificadora, conformadora. Por isso, os psiclogos que a operam tambm no podem
assumir qualquer Psicologia, sem base, ecltica, despolitizada, ou
uma Psicologia pobre para os pobres.
Dessa forma, preciso mais poltica e politizao na
Psicologia. preciso mais compreenso terica e no falo de
teorias psicolgicas apenas por parte dos psiclogos. preciso
mais crtica radical: ir raiz dos fenmenos, compreender suas
mltiplas determinaes e analisar a complexidade de seus complexos. Afinal, como afirmou Kosk (2002), a realidade s pode

242

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

ser mudada por que, e na medida em que, saibamos que produzimos a realidade. Anlises simplistas e superficiais corroboram a
alienao. Precisamos nos desalienar. Precisamos nos conscientizar como um complexo que se liga a outros; nos fortalecer como
categoria. Hoje ns somos igualmente trabalhadores explorados,
precarizados e alienados de nossa prpria prxis. J sabemos
que a maior parte dos conhecimentos produzidos no interior da
Psicologia no nos subsidia a uma atuao efetivamente comprometida com projetos revolucionrios. Ento vamos produzir
novos conhecimentos e ferramentas! A Psicologia uma prtica
social feita de carne, ossos, historicidade, cultura, linguagem,
sociabilidade etc. Da, no o lugar de atuao que define a postura de um profissional, por isso, precisamos refletir criticamente
sobre teorias, mtodos e prticas. Como trabalhar conscincia,
classe, movimentos sociais, se no nos enxergamos como parte
de uma engrenagem que mantm as condies de explorao?
Se considerarmos cada um de ns como um potencial
revolucionrio, precisamos desenvolver constantemente o exerccio do pensamento dialtico sobre nossa rea de atuao. uma
forma de treinar esse pensamento para conceber cada pequena
luta poltica ou sindical nos marcos da grande poltica, nos marcos do pensamento dialtico de conjunto, em que mltiplas
determinaes, grandes e pequenas, visam elevar o proletariado a
sujeito poltico da sociedade.
Alguns avanos j ocorrem nessa seara. Um grupo marxista dentro da Psicologia j algo que merece destaque. So as
aproximaes iniciais desse e de outros grupos junto ao campo
profissional que nos revelam lampejos para a prxis a partir do
momento em que se mostram como uma nova forma de compreender a realidade.
Portanto, se por um lado no apresenta procedimentos e
tcnicas fechados o que seria contraditrio at mesmo com os
prprios pressupostos apresentados , eles oferecem ferramentas
de compreenso do real que permitem aos psiclogos elaborarem

Captulo 10

243

aes que rompam os limites tradicionais da Psicologia, bem como


a sua tradicional atuao reificante do status quo do capitalismo.
Mszros (2007) recupera de Marx, em Crtica ao Programa de
Gotha, o que consideramos uma premissa fundamental para uma
prxis comprometida: no pode haver barganha sobre princpios.
O caminho para emancipao humana exige rduo trabalho, organizao, militncia e pacincia histrica.

Referncias
BICALHO, P. P. Ditadura e Democracia: qual o papel da violncia de
Estado?. In: XIMENDES, A. M. C; REIS, C. dos; OLIVEIRA, R. W.
(Org.). Entre Garantia de Direitos e Prticas Libertrias. Porto
Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul
(CRPRS), 2013.
COIMBRA, C. M. B. Guardies da Ordem: Uma Viagem pelas Prticas
Psi no Brasil do Milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
COIMBRA, C. M. B. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa histria.
Psicologia em Estudo, v. 6, n. 2, p. 11-19, 2001.
DEMO, P. A pobreza da pobreza. Petrpolis: Vozes, 2003.
HOBSBAWM, E. Como mudar o mundo. Marx e o marxismo. So Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
KOSK, K. Dialtica do concreto. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2002.
MARTIN-BARO, I. O papel do Psiclogo. Estud. Psicol. (Natal), v. 2, n.
1, p. 7-27, 1997.
MARX, K. Manuscritos Econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo,
2004. (Texto original publicado em 1844).

244

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

MARX, K. Grundrisse. So Paulo: Boitempo, 2011. (Texto original


publicado em 1858).
MARX, K., ENGELS, F. O manifesto comunista. So Paulo: Boitempo,
1998. (Texto original publicado em 1848).
MARX, K., ENGELS, F. A Sagrada Famlia. So Paulo: Boitempo, 2003.
(Texto original escrito em 1845)
MARX, K., ENGELS, F. A Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo, 2007.
(Texto original escrito em 1846)
MSZROS, I. O desafio e o fardo do tempo histrico. So Paulo:
Boitempo, 2007.
NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Servio Social. So Paulo:
Cortez, 1992.
OLIVEIRA, I.F.; AMORIM, K. M. O. . PSICOLOGIA E POLTICA
SOCIAL: O TRATO POBREZA COMO SUJEITO PSICOLGICO.
Psicologia Argumento (PUCPR. Impresso), v. 30, p. 567-573, 2012.
PASTORINI, A. A categoria questo social em debate. So Paulo:
Cortez, 2004.
SCARPARO, H. B. K.; TORRES, S, & ECKER, D. D. Psicologia e ditadura
civil-militar: reflexes sobre prticas psicolgicas frente s
violncias de estado. Rev. Epos [online], v. 5, n. 1, p. 57-78, 2014.
YAMAMOTO, O. H. Polticas sociais, terceiro setor e compromisso
social: perspectivas e limites do trabalho do psiclogo. Psicol.
Soc., v. 19, n. 1, p. 30-37, 2007.
YAMAMOTO, O. H. ; OLIVEIRA, I.F. . Poltica social e psicologia:
uma trajetria de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa (UnB.
Impresso), v. 26, p. 9-24, 2010.

Captulo 11

Marxismo e pesquisa: apontamentos


sobre a experincia de um Grupo
de Pesquisa em Psicologia
Raquel Souza Lobo Guzzo

Introduo

Psicologia como cincia produz um campo de conhecimento importante para a compreenso do desenvolvimento
humano em distintos contextos sociais, pela anlise das experincias cotidianas e o impacto de algumas situaes concretas nos
processos de sade e doena. Por esse motivo, a Psicologia tem
relevncia, sobretudo, porque fornece subsdios para uma discusso sobre tica e vida social dentre outras contribuies tericas em dilogo com outros campos do saber. Apesar disso, nem
todo conhecimento psicolgico sustenta uma prtica emancipadora. Pelo contrrio, a grande parte do conhecimento produzido
pela cincia psicolgica tem se constitudo em uma argamassa
para a constituio de um modo de vida incompatvel com a
humanizao, por excelncia, das relaes sociais. E diante
dessa premissa que surgiram, no mbito do Grupo de Pesquisa1,

Grupo de Pesquisa: Avaliao e Interveno Psicossocial preveno, comunidade e libertao Programa de Ps-graduao em Psicologia Pontifcia
Universidade Catlica de Campinas, So Paulo.

246

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

questionamentos sobre o sentido da produo cientfica, para qu


e para quem essa cincia tem servido.
Esses questionamentos serviram para o redirecionamento
das produes do Grupo na busca de fundamentos ontolgicos
do mtodo, assim como uma anlise crtica da Psicologia como
cincia e profisso e do compromisso de um conhecimento que
sirva, de fato, para a mudana social.

Algumas condies determinantes


prolegmenos da Psicologia Crtica Marxista
Quando os fundamentos de uma cincia e as prticas decorrentes no impactam a vida cotidiana da maioria das pessoas,
no sentido de produzir mudanas nas perspectivas de futuro, na
sade fsica e psicolgica e no pleno desenvolvimento das crianas e jovens, significa que no servem ao horizonte emancipador
e se apresentam submissas a outros interesses, esvaziando de sentido a busca por uma vida digna. obvio que existem vrios sentidos e contextos para a produo do conhecimento, mas sempre
importante a anlise do que tem sido produzido com recursos
pblicos e o avano real que esse conhecimento tem propiciado.
Nessa perspectiva, e considerando que a Pesquisa em
Psicologia pertence rea do conhecimento das Cincias Humanas
e Sociais, os investimentos feitos na formao de pesquisadores
e no avano do conhecimento, j justificariam uma avaliao do
impacto dessa produo sobre a vida da maioria das pessoas provenientes das camadas populares, que lutam por direitos bsicos
para viverem com dignidade.
A Psicologia tem uma trajetria histrica em que predomina a condio de uma cincia liberal comprometida com o
ajustamento das pessoas condio da conjuntura social e econmica (PARKER, 2007). No Brasil, foi regulamentada como profisso em 1962 e se consolidou no perodo da ditadura civil-militar
com imenso impacto na formao bsica de estudantes e futuros

Captulo 11

247

profissionais. At os dias de hoje, nem a formao nem o exerccio profissional conseguem se desligar dessa carga tecnicista
que pouco responde s demandas do servio pblico no atendimento s camadas populares. Professores e pesquisadores ainda
reproduzem o modelo hegemnico em que foram formados e so
responsveis por uma enorme quantidade de estudantes que no
fazem uma leitura crtica da Psicologia e a mantm como uma
poderosa ferramenta a servio da atual forma de sociabilidade
que causa sofrimento na maioria das pessoas. Apenas para destacar um elemento: durante os primeiros vinte anos de formao
dos psiclogos no Brasil a predominncia do perfil profissional
era de um psiclogo clnico, cuja prtica profissional era voltada
populao que podia pagar pelos atendimentos em consultrios
privados e fundamentada em um modelo mdico-positivista com
intervenes teraputicas remediativas.
Refletindo as marcas do processo de colonizao vivido
pelos pases do continente americano, a Psicologia, como uma
profisso recente, acabou por se desenvolver no Brasil e outros
pases da Amrica Latina, predominantemente, por um mimetismo cientfico (MARTN-BAR, 1998), ou seja uma importao
acrtica dos conhecimentos produzidos nos pases do hemisfrio
norte, predominantemente dos Estados Unidos. Sob essa influncia, os fundamentos para a anlise marxista da realidade nas
abordagens da Psicologia, no sobreviviam no Brasil.

A questo da pesquisa: alguns pressupostos


Pesquisar ou desenvolver pesquisa atividade poltica,
especialmente porque a pesquisa dotada de sentido e intencionalidade. Assim, no pode ser neutra, mesmo que sejam desenvolvidas distintas maneiras de torn-la imparcial.
A pesquisa tem sempre um sentido de buscar resposta
para questes feitas por pesquisadores. Essas questes surgem
de uma leitura da realidade, a partir de uma determinada tica.

248

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Assim, a definio ou escolha de fundamentos ontolgicos que


emolduram essa leitura da realidade e de fundamentos metodolgicos, os quais orientam seu desenvolvimento e parmetros de
anlise, j posicionam a pesquisa politicamente.
As muitas definies de pesquisa podem no deixar clara
a importncia da produo do conhecimento para a organizao social e decises sobre a vida em comunidade. No entanto,
sempre que se procura organizar espaos e grupos de pesquisa,
parte-se de questionamentos sobre o sentido, a finalidade e as
consequncias da ao, reflexo e avaliao sobre a realidade. Por
essa razo, so distintos grupos, distintas produes cientfica
que se constituem nos espaos de pesquisa.
O compromisso com a realidade capaz de gerar temas de
pesquisa no pode ser apenas um discurso, mas deve ser revelador, principalmente, de uma prtica engajada em mudanas.
por esse argumento que a escolha do mtodo cientfico passa a ser
um elemento decisivo para o desenvolvimento de exerccios de
anlise que requerem aprofundamento terico e insero na vida
cotidiana real e no apenas nas distintas configuraes dos espaos universitrios. A investigao das razes mais profundas dos
problemas psicossociais presentes na realidade, capaz de fazer
emergir elementos para sua anlise, o que Marx denomina de
um processo crtico e revolucionrio (MARX, 1844/2004).
Na Psicologia, a abordagem histrico-crtica, fundamentada na anlise marxista, aquela capaz de oferecer elementos
concretos para o processo de investigao das questes psicossociais e fornecer um quadro claro das condies objetivas em
que as pessoas nascem, crescem e se desenvolvem como sujeitos, quais os fatores que incidem nas diferenas entre homens e
mulheres e entre crianas de distintos grupos sociais. A anlise
marxista reveladora da ideologia que impregna a vida cotidiana
com uma marca de sofrimento, explorao e violncia, tornando
desumanas e degradantes as relaes sociais, e indignas as condies para a sobrevivncia. pela anlise marxista que se pode

Captulo 11

249

chegar compreender o desenvolvimento da subjetividade e a


formao da personalidade humana. Da decorre a importncia
da relao Psicologia e Marxismo, sobretudo pelo mtodo de anlise da realidade.

O mtodo em Marx
A pesquisa em Psicologia tem suas origens no empirismo
e controle experimental de dimenses subjetivas ou constructos e variveis psicolgicas o ser humano e sua essncia biologicista. O positivismo sustentou e ainda inspira a pesquisa
em Psicologia. E interessante observar que a relao entre o
Marxismo e a Psicologia caracterizada por um discreto silncio se considerarmos a abundncia de pensamentos e ideias
caractersticas das duas reas, mesmo considerando o discurso
recorrente nos espaos acadmicos sobre a pesquisa servindo
transformao social e a aceitao acrtica de que a globalizao
probe qualquer discusso sria de alternativas mudana. Para
Hayes (2001), h importantes argumentos e razes que podem
explicar esse silncio e a represso ao pensamento marxista. A
Psicologia se afastou das teorias sociais em geral e, particularmente do Marxismo. Ao mesmo tempo, o Marxismo se manteve
hostil a esse corpo de conhecimento que desconsiderava elementos da histria, do materialismo e da dialtica para a compreenso
da personalidade humana. Na perspectiva da Psicologia Crtica,
o Marxismo tem muito a contribuir e essa tem sido uma tarefa
importante e premente de alguns pesquisadores e grupos de pesquisa na Psicologia.
Ao aprofundarmos a questo do mtodo em Marx chama
a ateno o paradigma analtico e o problema central de pesquisa
qual seja, a gnese, a consolidao, o desenvolvimento, as condies e as crises da sociedade capitalista, contexto por excelncia de desenvolvimento dos seres humanos. nesse cenrio
de relaes sociais e de produo da vida que as condies de

250

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

desenvolvimento se estabelecem. A anlise desse cenrio se faz


por fundamentos materialistas, histricos e dialticos. nesse
cenrio que a Psicologia Crtica aqui entendida como aquela
influenciada pelo pensamento marxista, ou seja, aquela Psicologia
engajada prtica e politicamente que busca desenvolver conceitos, os quais tm o potencial de transcender a anlise terica e
meramente abstrata (HAYES, 2001) ressaltando o caminho para
que mudanas, efetivamente, ocorram. A dimenso crtica, no
sentido marxista, envolve o criticismo terico e o engajamento
poltico, e a Psicologia Crtica ser incompleta se no levar em
conta as injustias e desigualdades e se as colocar como parte dos
movimentos sociais radicais em vrias esferas da vida social.
Alguns conceitos marxistas so importantes para a radicalizao da Psicologia a dialtica, a totalidade e a vida cotidiana.
A dialtica como um conceito metodolgico capaz de trazer tona
na anlise as contradies um processo de relaes recprocas,
interlaadas e que se codeterminam, do universal ao particular
e singular e ao contrrio. Esse movimento dificulta a anlise de
problemas psicolgicos. A totalidade como uma unidade de foras opostas (recorte de classe), relativa e mutvel no marco de
circunstncias histricas e concretas sempre em movimento. Por
fim, a vida cotidiana e suas relaes mediadas pelos nveis de
complexidade e pelas estruturas peculiares de cada totalidade.
Os sistemas de mediao devem ser apreendidos porque as determinaes presentes no cotidiano da vida no so aparentes. A
reside uma das dificuldades da anlise marxista apreenso das
razes profundas das expresses cotidianas na dinmica da vida
que estejam relacionadas produo e reproduo da prpria
vida (GUZZO, 2015).

O Grupo de Pesquisa
O Grupo de Pesquisa Avaliao e Interveno Psicossocial
preveno, comunidade e libertao foi formado em 1996 com

Captulo 11

251

a finalidade de aprofundar caminhos tericos e prticos que


pudessem sustentar a interveno do profissional de Psicologia
em espaos educativos e comunitrios a partir de outra perspectiva que no a da Psicologia dominante. A compreenso das
estruturas de organizao sociais e comunitrias, de instrumentos que pudessem ajudar na avaliao da realidade cotidiana de
homens, mulheres e crianas de camadas empobrecidas onde
o trabalho do psiclogo no alcanava, o horizonte libertador
desse trabalho e as intervenes preventivas dando lugar quelas
mais teraputicas e remediativas, foram as primeiras motivaes
para a organizao terica e metodolgica do Grupo de Pesquisa.
Depois de passar por distintas configuraes, o Grupo atualmente
se apresenta estruturado por trs eixos tericos que desembocam
em um objetivo investigativo: a promoo da conscincia classe,
conforme a Figura 1.

Figura 1. Eixos terico do Grupo de Pesquisa Avaliao e Interveno Psicossocial


preveno, comunidade e libertao

252

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

A cada eixo terico corresponde um conjunto de formulaes que, inspiradas no Marxismo, permitem a anlise capaz
de fornecer elementos para o desenvolvimento do processo de
tomada de conscincia de pessoas e grupos das camadas populares, dando um outro sentido e significado prtica profissional
do psiclogo.
O grupo tem como fundamentos tericos a libertao na
perspectiva do sujeito, espaos de desenvolvimento como escola
e comunidade, conselhos de participao social e poder poltico;
o processo de tomada de conscincia e a subjetivao pensar e
agir sob certas condies sociais, historicidade da vida cotidiana,
ideologia na relao indivduo e sociedade; opresso, subalternidade e violncia, psicologia comunitria e psicologia crtica.

Desafios, dificuldades e avanos alcanados


Nesses ltimos anos de trabalho, imensas dificuldades
e desafios foram identificados, mas tambm foram alcanados
alguns elementos de avano. As dificuldades e desafios podem
se resumir na apreenso da totalidade possvel de ser conhecida,
pelos acessos quase impossveis a banco de dados e informaes
relacionadas histria e outras dimenses sociais e polticas da
vida em comunidade; a construo de instrumentos para o acesso
fontes distintas de informaes; a anlise crtica com elementos das contradies que se revelam no processo de anlise; e o
rompimento com o positivismo ainda presente e dominante na
formao bsica do profissional de Psicologia.
Muito embora as dificuldades ainda sejam grandes, tem
sido possvel identificar alguns avanos e superaes os quais
podem ser resumidos na maior clareza sobre a relao entre condies subjetivas e objetivas no desenvolvimento da conscincia,
na leitura crtica da conjuntura para alm da Psicologia, assim
como no estabelecimento de uma outra dinmica do fazer cientfico, que tm sido predominantes o exerccio da crtica, das

Captulo 11

253

problematizaes e dvidas movimento contrrio ao dominante


na formao da rea. Com essa prtica, decorre o desenvolvimento de instrumentos para acesso das informaes importantes
para a anlise, assim como so fortalecidos os processos de interveno por meio da prxis, os quais se caracterizam pela confrontao com o corpo de conhecimento estabelecido e o desafio para
a construo de um outro referencial para a prtica psicolgica.

Referncias
GUZZO, R. S. L. Critical Psychology And The American Continent: From
Colonization And Domination To Liberation And Emancipation.
In: PARKER, I. (Ed). Handbook of Critical Psychology. London:
Routledge, 2015. p. 406-414.
HAYES, G. Marxism and Psychology: a vignette. PINS (Psychology in
Society), v. 27, p . 46-52, 2001.
LUKCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. In: COUTINHO,
N. C.; NETTO, J. P. (Org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
MARTN-BAR, I. Psicologa de la Liberacin. In: BIANCO, A. (Org.).
Madrid: Editorial Trotta, 1998.
MARX, K. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo,
2004. (Texto original publicado em 1844).
PARKER, Ian. Revolution in psychology: Alienation to emancipation.
London: Pluto Press, 2007.

Captulo 12

Marxismo e Psicologia: Notas


crticas sobre epistemologismo,
emancipao e historicidade1
Fernando Lacerda Jnior

Introduo

presente texto explora possveis relaes entre Psicologia,


marxismo e transformao social com o intuito de apresentar algumas indicaes sobre como a concepo marxiana pode
dar contribuies tarefa de interpretar e transformar o mundo
para aquelas e aqueles que esto, de alguma maneira, inseridos
na Psicologia. Mais especificamente, o texto apresenta trs destaques sobre a contribuio do marxismo para a crtica e a anlise da Psicologia: (a) a crtica ontolgica do epistemologismo na
Psicologia; (b) a crtica da hegemonia da emancipao poltica
na Psicologia; (c) a nfase na radical historicidade da essncia
humana.
Trata-se, portanto, de um texto mais dedicado aos psiclogos e psiclogas que buscam apreender contribuies da tradio
marxista. A exposio aqui introdutria e no pretende esgotar
todas as possibilidades que brotam do dilogo entre marxismo e
Psicologia. O trabalho est, fundamentalmente, dividido em duas

Apoio: CNPq.

256

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

partes. A primeira aponta qual veio da tradio marxista fundamenta o conjunto de proposies presentes neste texto, enquanto
a segunda desenvolve o conjunto de notas sobre as contribuies
do marxismo para a Psicologia.

Marxismo e transformao social: Emancipao


humana e ontologia do ser social
Analisar marxismo e transformao social algo relativamente difcil, pois nenhum dos termos homogneo, efetivamente, so marcados por enorme polissemia. O tema da
transformao social ambguo at mesmo para aqueles que utilizam termos mais especficos como socialismo ou comunismo.
Vale lembrar, que Marx e Engels (1848/2010) no Manifesto
Comunista dedicaram um tpico inteiro anlise e crtica das
diferentes propostas de transformao social socialista existentes
em sua poca.
Da mesma forma, sabe-se que h distintos marxismos que,
no raramente, so marcados por virulentas disputas. Por isso,
Netto (1985) menciona a existncia de uma tradio marxista
e no apenas de um marxismo. Assim, uma necessidade destacar qual o marxismo que est sendo discutido aqui e, com isso
posto, deixo claro que o presente texto especialmente devedor
da leitura da obra marxiana a partir de uma abordagem ontolgica e que tem na obra de Lukcs a principal referncia terica,
com uma nfase especial em seus estudos sobre a ontologia do ser
social (LUKCS, 1968/2012).
H, pelo menos, dois elementos fundamentais que caracterizam essa leitura. Primeiro, o pensamento marxiano caracterizado por ser uma radical crtica da sociedade burguesa2
(NETTO, 1985; 2011; YAMAMOTO, 1994). Sendo crtica radical

Dussel (2001, p. 269) caracteriza a obra de Marx como um juzo cientfico negativo crtico do capital.

Captulo 12

257

da sociedade burguesa, a vigncia do pensamento de Marx no


depende da idade de seus textos ou de algum argumento formulado a partir de proposies lgico-gnoseolgicas formuladas pelo positivismo ou outras manifestaes do pensamento
moderno, mas sim da vigncia histrica da totalidade histrica
regida pelo capital. Enquanto a sociedade do capital for vigente,
a crtica radical dessa sociedade formulada por Marx ponto de
partida indispensvel (DIAS, 2005; NETTO, 2013).
A obra de Mszros (2002) um exemplo ilustrativo desse
aspecto. Atualizando as anlises de Marx sobre o capital, o filsofo hngaro demonstrou a vigncia do pensamento marxiano
destacando como o sistema socioreprodutivo de expanso e acumulao do capital mantm diversas das tendncias desveladas
por Marx: o movimento expansivo e incontrolvel do processo de
reproduo do capital, a tendncia centralizao e concentrao
de capital, assim como a manuteno das fraturas entre produo
e controle, produo e consumo e produo e circulao. Assim,
ainda que destaque a existncia de diversas processualidades que
no foram analisadas por Marx, Mszros (2002) demonstra a sua
importncia como ponto de partida para a crtica da produo
destrutiva (como o crescimento da centralidade do complexo
industrial-militar ou da obsolescncia planejada de mercadorias),
do surgimento de formas avanadas de reificao e explorao ou
da crise estrutural do capital.
Em segundo lugar, essa leitura destaca a existncia de uma
ontologia radicalmente histrica e social que Marx elaborou ao
mesmo tempo que estudou o movimento real da sociedade burguesa, isto , o estudo histrico da sociedade burguesa foi possvel
somente com o desenvolvimento de uma anlise sobre as determinaes ontolgicas que caracterizam o ser social (LUKCS,
1968/2012; TONET, 2005; 2013). Esse aspecto da obra de Marx
aquele que, para os objetivos do presente texto, merece ser analisado mais detalhadamente. Destacarei quatro dimenses sobre
a ontologia marxiana: (a) a centralidade ontolgica do trabalho,

258

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

(b) o redimensionamento da relao entre ser humano, natureza e


sociedade; (c) a afirmao da radical historicidade humana; (d) o
horizonte da emancipao humana.
Em primeiro lugar, a ontologia marxiana possibilitou a
instaurao de novos marcos para o estudo da vida humana ao
teorizar sobre a centralidade ontolgica do trabalho. De acordo
com Engels (1883/1983, p. 335), a singular contribuio de Marx
deve-se descoberta do fato de que o homem precisa, em primeiro lugar, comer, beber, ter um teto e vestir-se antes de poder
fazer poltica, cincia, arte, religio etc.. Em outras palavras, o
primeiro pressuposto de toda a existncia humana o pressuposto de que os homens tm de estar em condies de viver para
poder fazer histria (MARX; ENGELS, 1846/2007, p. 32-33), o
que significa que o ser social comea com um salto, com o pr
teleolgico do trabalho (LUKCS, 1968/2012, p. 287).
No processo de trabalho, o homem converte os objetos
da natureza em meios para sua reproduo. Diferentemente dos
outros seres vivos, que no processo de reproduo operam uma
mera estabilizao muda com a natureza, o ser humano transforma ativa e intencionalmente a natureza para satisfazer suas
necessidades. O ser social parte do processo orgnico de reproduo comum a todos os seres vivos, mas vai alm da adaptao
passiva ao meio ambiente, porque, pelo trabalho, os seres humanos satisfazem suas necessidades de uma forma completamente
nova, na qual a conscincia central. O trabalho um processo
conduzido pela conscincia, pela busca permanente do homem
de adequar a natureza s suas necessidades elaborando previamente ideaes que orientam a atividade (LUKCS, 1968/2012).
Com o pr teleolgico do trabalho o papel da natureza
na vida humana ganha um novo significado. O trabalho cria um
novo complexo, o ser social, do qual emergem relaes, conexes
e objetivaes cujos limites e possibilidades no dependem meramente de determinaes naturais. H aqui um leque, extremamente amplo, de processos inaugurados pelo processo de trabalho

Captulo 12

259

como a relao dialtica entre sujeito e objeto, os processos de


objetivao e exteriorizao, a tenso permanente entre teleologia
e causalidade que caracteriza o ser social, alm de outras que so
impossveis de serem aqui abordadas.
Em segundo lugar, o pensamento marxiano redimensionou
as relaes entre natureza, sociedade e ser humano. Trata-se de
uma radical inovao em relao ao pensamento moderno, o qual
caracterizado pela afirmao de que h uma determinao natural da existncia humana. Nessa perspectiva, a natureza humana
precede as relaes sociais e, assim, estas se tornam um mero
subproduto determinado por aquela. Essa concepo ontolgica
est presente, por exemplo, na tese de que a natureza humana
seria marcada, fundamentalmente, por um individualismo possessivo que explica o antagonismo entre indivduo e sociedade,
assim como a existncia insupervel da propriedade privada
(MACPHERSON, 1964). Mas essa natureza humana nada mais
do que uma absolutizao de uma situao histrica particular
e justamente o estudo do processo de trabalho que possibilita o
marxismo ir alm dos limitados marcos do pensamento moderno.
Os estudos sobre o trabalho mostram como dele surge um complexo processo de desenvolvimento social em que os objetos, as
possibilidades, os complexos e as categorias no so mais redutveis natureza. Esta, ainda que permanea enquanto base insuprimvel da existncia humana, apresenta-se, cada vez menos, como
uma barreira que define as possibilidades da atividade humana.
Cada vez mais, complexos socialmente determinados, que no
so redutveis natureza, passam a predominar na determinao
da histria humana (LUKCS, 1968/2007; 1968/2012).
Assim, a ontologia marxiana afirma a radical historicidade da essncia humana. Mais ainda, de acordo com a anlise
de Lukcs (1968/2012), a novidade terica da obra de Marx
justamente a de fundar uma ontologia histrico-materialista que
afirma a historicidade como trao essencial de todo e qualquer
ser. Na prpria definio da categoria substncia, a historicidade

260

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

constatada como um princpio ontolgico fundamental. Assim,


substncia no se contrape historicidade e nem ao movimento
da matria, pelo contrrio: a continuidade na persistncia,
enquanto princpio de ser dos complexos em movimento, indcio de tendncias ontolgicas historicidade como princpio do
prprio ser (LUKCS, 1968/2012, p. 341).
Nesse sentido, na ontologia marxiana toda e qualquer
essncia histrica e processual. Assim:
a substancialidade no uma relao esttica-estacionria de autoconservao, que se contraponha em
termos rgidos e excludentes ao processo do devir; ao
contrrio, ela se conserva em essncia, mas de modo
processual, transformando-se no processo, renovando-se, participando do processo (LUKCS, 1968/2012, p.
413).

No caso do ser social, isso se reflete no simples fato de que


tanto o nvel imediato das situaes histricas concretas quanto
as suas determinaes mais essenciais so produto da atividade
humana. Como o elemento fundante do ser social o processo
de trabalho, isto , um processo conduzido pela conscincia, a
histria humana no mais concebida como histria natural, mas
como histria das relaes sociais. Marx enfatizou esse elemento
inmeras vezes. Possivelmente, a melhor sntese sobre o tema
est na tese de que a essncia humana o conjunto das relaes
sociais (MARX, 1843/2010, p. 538)3.
Ao afirmar a radical historicidade de todo ser, Marx infirma
todo e qualquer estudo que no seja produzido a partir de uma
angulao histrico-gentica. Por isso, o estudo sobre qualquer
fenmeno do ser social s pode ser um estudo da histria humana:
No nos desloquemos a um estado primitivo imaginrio. Um tal

Por isso, no pensamento marxiano, impossvel conceber um processo de emancipao do gnero humano sem qualquer tipo de transformao da sociedade
(TERTULIAN, 2004).

Captulo 12

261

estado primitivo nada explica. Ele simplesmente empurra a questo para uma regio nebulosa, cinzenta. Assim o telogo explica
a origem do mal pelo pecado, isto , supe como um fato dado e
acabado, o que deve explicar (MARX, 1844/2004, p. 80).
Finalmente, cabe destacar que a perspectiva de Marx sobre
a transformao social no a mera construo de uma sociedade
democrtica ou de um Estado aperfeioado. Seu projeto revolucionrio impulsionado pela busca de superar o Estado em si.
Para tanto, Marx sublinha a necessidade de um projeto social
que, para alm da emancipao poltica, almeja a emancipao
humana. A emancipao poltica possibilitou superar a ordem
feudal, mas no possibilitou a libertao humana:
O limite da emancipao poltica fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma
limitao sem que o homem realmente fique livre dela,
no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem
que o homem seja um homem livre (MARX, 1843/2010,
p. 37-38).

A emancipao poltica instaura uma sociedade civil


marcada pela ciso entre citoyen (cidado do Estado que atua na
esfera pblica) e bourgeois (indivduo egosta que atua na esfera
privada). Da que as anlises realizadas na perspectiva da emancipao poltica no precisam analisar as condies para a superao da sociedade burguesa. J a busca da emancipao humana
demanda um referencial de anlise mais amplo e geral: Uma
revoluo social se situa do ponto de vista da totalidade porque
[...] ela um protesto do homem contra a vida desumanizada
(MARX, 1844/1995, p. 89).
Na perspectiva da emancipao humana, a tarefa passa
a ser a anlise do mundo social. No h como alcan-la sem
a destruio das barreiras sociais ao livre desenvolvimento do
indivduo em relao consciente com o gnero humano. Assim,
a crtica marxiana, por almejar a emancipao humana, supe a

262

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

anlise dos fundamentos da sociedade burguesa, revelando que


o ser humano o principal demiurgo de sua prpria histria e
que, no atual momento histrico, as nicas barreiras ao seu livre
desenvolvimento so barreiras socialmente postas, isto , que so
historicamente especficas e que foram produzidas pelos prprios
homens. Que contribuies esses fundamentos podem oferecer
para a Psicologia?

Contribuies da tradio marxista para a Psicologia


O dilogo com o marxismo possibilitou diversos desdobramentos no interior da Psicologia. De um lado, possibilitou
novos marcos para se criticar e problematizar ideias e prticas
dominantes na Psicologia, ressaltando a determinao social do
conhecimento psicolgico, desvelando a ideologia na Psicologia
e sublinhando as contribuies da Psicologia em processos de
reificao (PARKER, 2007). De outro, contribuiu para reflexes e
crticas sobre a funo social da Psicologia (YAMAMOTO, 1987)
assim como para a elaborao de novos referenciais tericos no
campo da Psicologia.
Nesta parte, apresentarei algumas notas abordando dimenses da Psicologia pensadas a partir de formulaes presentes na
tradio marxista. Essa apresentao aborda trs temas especficos: os problemas epistemolgicos da Psicologia; a hegemonia da
emancipao poltica em campos como a Psicologia Comunitria
e a Psicologia Poltica; e as implicaes sobre a radical historicidade humana para o estudo da subjetividade.

Crtica ontolgica e os problemas


epistemolgicos da Psicologia
Em primeiro lugar, o tipo de marxismo apresentado neste
trabalho (aquele devedor das contribuies de Marx e Lukcs)
pode contribuir para uma crtica dos debates sobre os problemas

Captulo 12

263

epistemolgicos da Psicologia. Tal como boa parte da literatura


existente sobre crises e crticas na Psicologia indica (TEO, 2005),
h uma enorme quantidade de tinta derramada sobre os dilemas
epistemolgicos da Psicologia. Ponto importante nessa literatura
a busca por legitimar uma Psicologia verdadeiramente cientfica
por meio do desenvolvimento de mtodos verdadeiramente cientficos. Esse debate nasce juntamente com a Psicologia, se expressando, por exemplo, nos debates inaugurados pelo veto kantiano
de que a Psicologia tinha um componente emprico, mas carecia de um componente racional por no ser redutvel anlise
metdica, experimentao e quantificao (FERREIRA, 2006;
LEARY, 1978) ou na defesa da tese de que o marco fundacional
da Psicologia se deu com a constituio do laboratrio de pesquisas criado por Wundt (DANZIGER, 1998). Da mesma forma,
os debates sobre os mtodos quantitativos e qualitativos e sua
relao com a constituio de uma Psicologia que ignora ou no a
subjetividade (ver, por exemplo, GONZLEZ REY, 1997) tambm
so ilustrativos indicadores sobre a centralidade dos problemas
epistemolgicos da Psicologia.
Trata-se, portanto, de uma clara hegemonia de uma postura epistemologista que pode ser criticada por partir da concepo ontolgica que infirma o objeto como polo regente no
processo de conhecimento e afirma uma centralidade da subjetividade na construo da cincia. Nessa concepo, a definio
das condies ideais de conhecimento pelo sujeito o elemento
fundamental e precedente de toda anlise sobre o ser. Se o polo
determinante do processo de conhecimento o sujeito (ao invs
do objeto), ento s possvel conhecer apenas aquilo que acessvel subjetividade pelas sensaes ou pela experincia. Assim,
o sujeito s tem acesso imediato s manifestaes fenomnicas
daquilo que ele pretende conhecer e o fundamento ltimo das
coisas no pode ser apreendido. A realidade converte-se numa
sucesso catica de dados, experincias, fenmenos que cabe
subjetividade organizar, classificar e definir (TONET, 2013).

264

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Muitas vezes, isso significa que fazer cincia apenas operacionalizar um conjunto de regras que possibilitam a manipulao
de um objeto em certas condies ideais (COUTINHO, 1972;
LUKCS, 1968/2012).
Essa crtica ontolgica da postura epistemologista abre
novos horizontes para o debate sobre os problemas ontolgicos da
Psicologia. A crtica da metodolatria apresentada por Danziger
(1998) demonstrou como a construo do mtodo cientfico na
Psicologia estadunidense foi produto da mais pura arbitrariedade. Enquanto, retoricamente, muitos pioneiros apontavam
para a importncia de Wundt para a constituio da Psicologia,
os psiclogos estadunidenses realizavam um conjunto de adaptaes no chamado mtodo cientfico com a finalidade de criar
uma cincia mais adequada a um contexto marcado pela competio, pela racionalizao de instituies sociais especialmente
educativas e que primava pela converso dos problemas sociais
em problemas individuais. Nesse contexto, a prtica de pesquisa
que mais poderia florescer no era aquela que buscava o estudo
da mente humana individual tal como props Wundt, mas sim
aquela que estudava o desempenho do indivduo em comparao com uma norma estatstica. Aqui, h uma deciso arbitrria: define-se que um conjunto de dados que agrega um grande
nmero de sujeitos uma base vlida de conhecimento. Essa base
de dados estatisticamente tratada e as regularidades encontradas so interpretadas enquanto manifestaes de leis cientficas
quantitativamente demonstrveis. Da que a regularidade estatstica permite inferir a conduta individual (DANZIGER, 1998).
Da mesma forma, Samelson (1979) destaca como os
diversos achados dos testes de inteligncia sobre a inferioridade
mental de certas raas ou nacionalidades acompanhou o clima
sociopoltico existente nos EUA. A tarefa de muitos testes no era
a de estudar a inteligncia, mas sim a de demonstrar a utilidade
da Psicologia e a melhor forma de se fazer isso era garantir que

Captulo 12

265

os resultados reforassem as suposies ideolgicas vigentes na


sociedade norte-americana.
Esses trabalhos crticos oferecem contribuies importantes para demonstrar a arbitrariedade e a pseudocientificidade
da suposta Psicologia cientfica. No entanto, alm da demonstrao do processo de construo social de certas prticas cientficas, necessrio questionar as bases histricas e reais desse
processo. Qual a determinao ontolgica do objeto de estudos da Psicologia e como ela possibilitou o reinado da arbitrariedade e da pseudocientificidade? Pode a subjetividade ser estuada
por uma cincia particular e independente, perdendo de vista a
totalidade? Mais ainda, uma anlise marxista da Psicologia, de
acordo com Parker (2009), supe perguntar: Por que a Psicologia
existe? Por que existe um domnio da ideia de que uma disciplina
particular pode revelar as razes da ao humana?
A crtica marxista coloca novos desafios para a anlise
dos problemas epistemolgicos da Psicologia. Antes de passar
ao debate sobre os princpios epistemolgicos, preciso analisar ontologicamente o objeto que foi abordado pela cincia psicolgica e as condies histrico-sociais que possibilitaram a
emergncia dessa cincia. Assim, cabe analisar a relao entre o
processo de constituio da Psicologia como cincia e as transformaes histrico-sociais que converteram o estudo da vida
social em um estudo de uma totalidade fraturada, fragmentada e
que, muitas vezes, fetichiza a realidade existente o que coloca
como condio fundamental o desenvolvimento de uma crtica
ontolgica.

A perspectiva da emancipao poltica e a Psicologia


Na histria da Psicologia brasileira, a crtica da funo
social do psiclogo esteve associada com o processo de busca e
elaborao de modalidades alternativas para a cincia e a profisso (LACERDA JR., 2013; YAMAMOTO, 1987). Tanto a crtica

266

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

da Psicologia quanto a busca por aes alternativas esto estreitamente relacionadas com as diversas transformaes da sociedade brasileira e seus influxos sobre a Psicologia como profisso.
Alm de um complexo processo de crescente assalariamento dos
psiclogos brasileiros, houve, tambm, o crescimento da atuao
profissional, normalmente em condies precrias, em instituies que lidam com refraes da questo social (YAMAMOTO,
2003; 2007).
Ao mesmo tempo que houve uma maior insero profissional da Psicologia em equipamentos ou instituies que lidam
com refraes da questo social, comeou a se explicitar diversas
discusses sobre a atuao da Psicologia na esfera das polticas
pblicas ou sobre sua importncia para o fortalecimento da democracia e a conquista de direitos sociais (BOCK, 2003; FURTADO,
2007; SAADALLAH, 2007). Especialmente em campos como a
Psicologia Poltica e a Psicologia Comunitria que, na Amrica
Latina, surgiram com explcitos compromissos com movimentos sociais, lutas por poder popular e processos de libertao,
os temas da democracia, da socializao de direitos e das polticas pblicas passaram a predominar (PRADO; COSTA, 2009;
FREITAS, 2007; XIMENES et al. 2009)4.
A crtica marxiana serve para alertar sobre possveis iluses
quanto aos limites e possibilidades reais das polticas pblicas,
da democracia e da defesa da esfera pblica, pois os seus limites
so os mesmos da emancipao poltica. De acordo com a discusso j apresentada sobre emancipao poltica, esta pressupe a
existncia de uma sociedade caracterizada pelo conflito entre o
indivduo possessivo e o cidado pblico, pela contradio entre

H um claro contraste entre essas propostas e algumas das propostas de MartnBar (1988/2002). O autor prope a busca do poder popular, ao invs da busca de
falsas democracias eleitorais e a intensificao de processos de libertao social
por meio de uma prtica de classe de carter revolucionrio, ao invs da mera
defesa de direitos ou busca por polticas pblicas.

Captulo 12

267

uma igualdade formal perante o Estado e uma desigualdade real


na sociedade (MARX, 1843/2010).
A crtica da emancipao poltica desvelou a impossibilidade de se analisar a poltica como um fator separado da economia, o que no significa reduzir a poltica economia, mas
sim que a democracia s existe no interior de um arranjo social
que assegura a emergncia do indivduo, que livre para vender
ou explorar a fora de trabalho, que igual apenas perante a lei
e que, acima de tudo, s se humaniza na medida que proprietrio. Assim, o cidado de direitos s emerge quando h separao entre sociedade civil e Estado. O prprio Estado s existe na
medida que h uma ciso entre exploradores e explorados. No
h como existir Estado sem desigualdades sociais. E no h como
existir cidado, polticas pblicas ou democracia sem Estado e,
portanto, sem explorao, alienao e desigualdades estruturais
(TONET, 2005).
Em outras palavras, ao desvelar os limites da emancipao poltica, o pensamento marxiano possibilita redimensionar
as reflexes sobre o compromisso social de uma Psicologia que
se contenta com a democracia, a conquista de direitos e a elaborao de polticas pblicas. Se essas tarefas so mais progressistas
do que aquelas aes da Psicologia que contribuem para intensificar o processo de extrao de mais-valia, isso no significa que
algo problemtico prometer libertao ou transformao social
por meio de aes que so, estruturalmente, incapazes de superar
a sociedade do capital, pois no lidam com as causas, mas apenas
com as refraes aparentes da desigualdade social. Mais ainda, ao
afirmar que a Psicologia pode contribuir para a mudana social
por meio de certas aes profissionais especficas, pode-se incorrer na falsa elaborao ideolgica de que possvel transformar
o mundo mediante a atuao profissional e no pelas lutas de
classe. De la Torre (1995) refere-se a esse problema ao criticar
algumas manifestaes da Psicologia Comunitria que, involuntariamente, repetem um componente ideolgico que marcou a

268

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

histria do Behaviorismo: prometem a realizao de mudanas


sociais sem apontar a incmoda tarefa de se realizar uma revoluo social.
Assim, a perspectiva da emancipao humana possibilita
redimensionar todos os debates sobre a relao da Psicologia com
as refraes da questo social e repensar as efetivas possibilidades de uma Psicologia do compromisso social ou da funo
real da busca por realizar transformaes sociais mediante apenas prticas profissionais.

A radical historicidade humana e a Psicologia


Como se afirmou, o marxismo desvelou a radical historicidade da essncia humana. Essa tese contrasta radicalmente
com vrias teorias psicolgicas que apresentam concepes de
homem que, em ltima instncia, reduzem o papel do sujeito na
transformao da histria. Assim, em geral, essas teorias transmutam uma condio historicamente especfica o indivduo
burgus em uma condio humana universal5.
Das proposies presentes na teoria marxiana surgiram
inmeras tentativas de se repensar a concepo de homem na
Psicologia. Possivelmente, o exemplo mais expressivo seja o trabalho de Vygotsky (1927/1997), o qual explicitamente apresentou
a centralidade das contribuies do pensamento marxiano para se
reconstruir a Psicologia. Da mesma forma, h inmeras propostas
de construo de uma Psicologia que incorpora as contribuies
de Marx e que elabora um aparato categorial que incorpore todas
as concluses da tese de que o ser humano produto e produtor

H inmeros textos sobre o tema. O trabalho de Prilleltensky (1994) uma interessante reviso que destaca os componentes ideolgicos das concepes de
indivduo e de sociedade da psicanlise, do humanismo e do behaviorismo. Da
mesma forma, Parker (2007) dedica toda a sua ateno tarefa de demonstrar a
relao entre a existncia da sociedade burguesa e as concepes de homem que
circulam na Psicologia.

Captulo 12

269

da histria. Esse o caso das tentativas de construo de uma


Psicologia Marxista6, da proposta de reconstruo categorial da
Psicologia Crtica Alem (HOLZKAMP, 1992) e, finalmente, de
todas as correntes que nasceram tomando como ncleo central a
contribuio seminal de Vygotsky, como a Psicologia HistricoCultural, a Teoria da Atividade (LEONTYEV, 1977/2009) e a
Psicologia Macrocultural (RATNER, 2012).
Alm das elaboraes que surgiram na tentativa de salvar
a Psicologia por meio da introduo de teses marxistas, cabe destacar a possibilidade de se pensar uma teoria da subjetividade a
partir das contribuies tericas de Marx e Lukcs. Especialmente
a ontologia lukacsiana, contm: (a) os lineamentos fundamentais
para uma filosofia da subjetividade; (b) uma discusso sobre o
papel do sujeito na histria, estabelecendo uma relao entre, de
um lado, atividade, processualidade e historicidade e, de outro
lado, socialidade, essncia e substncia; (c) uma compreenso
radicalmente materialista e histrica do processo de autoconstruo humana mediante uma anlise do processo de reproduo
social e seus dois polos distintos: indivduo e sociedade (COSTA,
2012; LUKCS, 1968/2012). Dessa forma, a ontologia lukacsiana
aponta para uma autntica concepo crtica da subjetividade
que pode ser formulada sem criar qualquer iluso de que ela
objeto de estudo de uma cincia particular e autnoma. Assim,
indica a possibilidade de estudar a subjetividade sem isol-la do
processo de estudo e apreenso da totalidade social.

De um lado, a proposta de construir uma Psicologia Marxista foi apenas reflexo


do esforo para se construir uma Psicologia adequada doutrinao apologtica
do marxismo-leninismo dominante nos pases do antigo Leste Europeu e da
ex-URSS; por outro lado, a proposta de elaborao de uma Psicologia Marxista
revela a busca de autores que, engajados com o processo de emancipao humana, buscam construir uma Psicologia que, efetivamente, incorpore todas as contribuies possveis do Marxismo (ver CALVIO, 2013; HIEBSCH; VORWERG,
1982; GONZLEZ SERRA, 1984). H crticas que destacam as dificuldades na
construo de uma Psicologia Marxista, tal como indicam Yamamoto (1987) e
Parker (1999).

270

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Consideraes finais
O presente texto buscou indicar algumas das possveis
contribuies da tradio marxista, especialmente do veio lukacsiano, para a Psicologia, especialmente quando se assume como
perspectiva a construo da emancipao humana. As anotaes
indicativas oferecidas neste texto intentaram enfatizar: (a) que a
radical historicidade humana exige horizontes mais amplos do
que aqueles oferecidos por uma cincia particular e independente;
(b) que a crtica ontolgica condio fundamental para se efetivamente conhecer a subjetividade, isto , que a reproduo ideal
do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa (NETTO,
2011, p. 21) no depende da elaborao unilateral de critrios
lgico-gnoseolgicos, tal como ocorreu, de maneira recorrente,
na histria da Psicologia; (c) que a perspectiva da emancipao
humana possibilita uma avaliao mais realista e menos ufanista
ou redentorista sobre as possibilidades da Psicologia cumprir um
papel protagonista em processos de transformao social.
A perspectiva da emancipao humana enunciada por
Marx possibilitou a construo de projetos de Psicologia que, pelo
menos, buscam ser um instrumento em processos de transformao social, seja mediante a realizao de estudos e pesquisas que
contribuam para desvelar ou denunciar processos de explorao
e alienao em nossa sociedade, seja pela busca de elaborar intervenes que intentam reduzir desigualdades sociais ou favorecer
os interesses de grupos oprimidos e explorados. Para que essas
propostas no incorram no erro de repetir a busca da transformao da sociedade sem a realizao de uma revoluo social,
imperativo lembrar a afirmao de Vygotsky (1930/2006), que
expressou, didaticamente, a complexidade da tarefa de se buscar a emancipao humana e a transformao dos seres humanos:
To-s uma elevao de toda a humanidade a um nvel mais alto
de vida social a libertao de toda a humanidade pode conduzir formao de um novo tipo de homem.

Captulo 12

271

Referncias
BOCK, A. M. B. Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com
as elites. In: BOCK, A. M. B. (Org.), Psicologia e compromisso
social. So Paulo: Cortez, 2003. p. 15-28
CALVIO, M. Pensando em una psicologa marxista: Contribuciones
para el reconocimiento y la construccin. Alternativas cubanas
en Psicologa, v. 1, n. 1, p. 8-24, 2013.
COSTA, G. M. Indivduo e sociedade: sobre a teoria de personalidade em
Georg Lukcs. So Paulo: Instituto Lukcs, 2012.
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a misria da razo. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1972.
DANZIGER, K. Constructing the subject: Historical origins of
psychological research. Cambridge: Cambridge Univesity Press,
1998.
DE LA TORRE, C. Psicologa latinoamericana: Entre la dependencia y la
identidad. San Juan: Publicaciones Puertorriqueas, 1995.
DIAS, E. F. Sobre o marxismo contemporneo. In: ABRANTES, A. A.;
SILVA, N. R. D.; MARTINS, S. T. F. (Org.), Mtodo histrico-social
na psicologia social. Petrpolis: Vozes, 2005. p. 52-60.
DUSSEL, E. Hacia una filosofia poltica crtica. Bilbao: Descle de
Brouwer, 2001.
ENGELS, F. Discurso pronunciado por F. Engels diante da sepultura
de Karl Marx. (Texto original escrito em 1883). In: KONDER, L.;
CERQUEIRA FILHO, G.; FIGUEIREDO, E. L. (Org.). Por que Marx?
Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 355-357.
FERREIRA, A. A. L. A psicologia no recurso aos vetos kantianos. In:
JAC-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.; PORTUGAL, F. T.

272

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

(Org.), Histria da psicologia: Rumos e percursos. Rio de Janeiro:


Nau, 2006. p. 85-91.
FREITAS, M. de F. Q. de (2007). Interveno psicossocial e compromisso:
Desafios s polticas pblicas. In: JAC-VILELA, A. M.; SATO,
L. (Org.), Dilogos em psicologia social. Porto Alegre: Evangraf,
2007. p. 370-386.
FURTADO, O. O trabalho na perspectiva das polticas pblicas. In:
JAC-VILELA, A. M.; SATO, L. (Org.), Dilogos em psicologia
social. Porto Alegre: Evangraf, 2007. p. 413-422.
GONZLEZ R. F. Epistemologa cualitativa y subjetividad. So Paulo:
EDUC, 1997.
GONZLEZ SERRA, D. Problemas filosficos de Psicologa. Havana:
Pueblo y Educacin, 1984.
HIEBSCH, H.; VORWERG, M. Psicologa social marxista. Havana:
Poltica, 1982.
HOLZKAMP, K. On doing psychology critically. Theory & Psychology, v.
2, n. 2, p. 193-204, 1992.
LACERDA JR., F. Capitalismo dependente e a psicologia no Brasil: Das
alternativas psicologia crtica. Teora y Crtica de la Psicologa,
v. 3, p. 216-263, 2013.
LEARY, D. The philosophical development of the conception of
psychology in Germany, 1780-1850. Journal of the History of the
Behaviorial Sciences, n. 14, p. 113-121, 1978.
LEONTYEV, A. N. The development of mind. New York: Erythrs Press,
2009. (Texto original publicado em 1977).
LUKCS, G. As bases ontolgicas do pensamento e da atividade do
homem. (Escrito em 1968). In: COUTINHO, C. N.; NETTO, J. P.

Captulo 12

273

(Org.). O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro:


Editora UFRJ, 2007. p. 225-245.
LUKCS, G. Para uma ontologia do ser social I. So Paulo: Boitempo,
2012. (Texto original publicado em 1968).
MACPHERSON, C. B. The political theory of possessive individualism:
Hobbes to Locke. Oxford: Oxford University Press, 1964.
MARTN-BAR, I. La psicologa poltica latinoamericana. (Texto
original escrito em 1988). In: PACHECO, G.; JIMNEZ, B (Org.).
Ignacio Martn-Bar: Psicologa de la liberacin para Amrica
Latina. 2. ed. Guadalajara: ITESO / Universidad de Guadalajara,
2002. p. 91-114.
MARX, K. Sobre a questo judaica. So Paulo: Boitempo, 2010. (Texto
original publicado em 1843).
MARX, K. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo,
2004. (Texto original publicado em 1844).
MARX, K. Glosas crticas marginais ao artigo O rei da Prssia e a
reforma social. De um prussiano. Prxis, n. 5, p. 68-91, 1995.
(Texto original publicado em 1844).
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alem. So Paulo: Boitempo, 2007.
(Texto original escrito em 1846).
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. So Paulo: Boitempo,
2010. (Texto original publicado em 1848).
MSZROS, I. Para alm do capital. So Paulo: Boitempo, 2002.
NETTO, J. P. O que marxismo? So Paulo: Brasiliense, 1985.
NETTO, J. P. Introduo ao estudo do mtodo de Marx. So Paulo:
Expresso Popular, 2011.

274

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

NETTO, J. P. Uma face contempornea da barbrie. Revista Novos


Rumos, v. 50, n. 1, s/p, 2013.
PARKER, I. Psychology and marxism: Dialectical opposites? In: MAIERS,
W.; BAYER, B; B. DUARTE, B.; JORNA, R.; SCHRAUBE, E. (Org.),
Challenges to theoretical psychology. Toronto: Captus, 1999. p.
477-484.
PARKER, I. Revolution in psychology: Alienation to emancipation.
London: Pluto Press, 2007.
PARKER, I. Critical psychology and revolutionary marxism. Theory &
Psychology, v. 19, n. 1, p. 71-92, 2009.
PRADO, M. A. M.; COSTA, F. A. A raridade da poltica e a democracia: os
movimentos sociais entre sujeitos e identidades. In: BERNARDES,
J.; MEDRADO, B. (Org.), Psicologia social e polticas de existncia:
Fronteiras e conflitos. Macei: ABRAPSO, 2009. p. 71-83.
PRILLENTENSKY, I. The morals and politics of psychology: Psychological
discourse and the status quo. Albany: State of University of New
York Press, 1994.
RATNER, C. Macro Cultural Psychology: a political philosophy of mind.
New York: Oxford University Press, 2012.
SAADALLAH, M. M. (2007). A psicologia frente s polticas pblicas.
In: MAYORGA, C.; PRADO, M. A. M. (Org.), Psicologia social:
Articulando saberes e fazeres. Belo Horizonte: Autntica, 2007.
p. 159-172.
SAMELSON, F. World War I intelligence testing and the development of
psychology. Journal of the History of the Behavioral Sciences, v.
13, p. 274-282, 1977.
TEO, T. The critique of Psychology: From Kant to postcolonial theory.
New York: Springer, 2005.

Captulo 12

275

TERTULIAN, N. Marx: uma filosofia da subjetividade. Outubro, v. p. 10,


7-16, 2004.
TONET, I. Educao, cidadania e emancipao humana. Iju: Uniju,
2005.
TONET, I. Mtodo cientfico: Uma abordagem ontolgica. So Paulo:
Instituto Lukcs, 2013.
VYGOTSKY, L. S. El significado histrico de la crisis de la psicologa:
Una investigacin metodolgica (Escrito em 1927). In: ALVAREZ,
A.; DEL RO, P. (Org.), Obras escogidas. Madrid: Visor, 1997. p.
257-413.
VYGOTSKY, L. S. A transformao socialista do homem. 2006 Disponvel
em: <http://www.pstu.org.br/cont/subjetividade_vigotski.pdf>.
Acesso em: fevereiro 2009 (Texto original publicado em 1930).
XIMENES, V. M.; PAULA, L. R. C.; BARROS, P. P. Psicologia comunitria
e poltica de assistncia social: Dilogos sobre atuaes em
comunidades. Psicologia: Cincia e Profisso, v. 29, n. 4, p. 686699, 2009.
YAMAMOTO, O. H. A crise e as alternativas da psicologia. So Paulo:
Edicon, 1987.
YAMAMOTO, O. H. Marx e o mtodo. So Paulo: Moraes, 1994.
YAMAMOTO, O. H. Questo social e polticas pblicas: Revendo o
compromisso da psicologia. In: BOCK, A. M. B. (Org.), Psicologia
e compromisso social. So Paulo: Cortez, 2003. p. 37-54
YAMAMOTO, O. H. Polticas sociais, terceiro setor e compromisso
social: Perspectivas e limites do trabalho do psiclogo. Psicologia
& Sociedade, v. 19, n. 1, p. 30-37, 2007.

Organizadores
Ana Ludmila F. Costa
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, pesquisadora do Grupo de Pesquisas Marxismo
& Educao (GPM&E). Tem interesse pelos temas: teoria social marxiana, poltica cientfica, poltica social, formao, atuao e pesquisa
do psiclogo nas reas jurdica, social/comunitria e ambiental.
Endereo eletrnico: [email protected]

Fellipe Coelho-Lima
Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, professor da mesma instituio, pesquisador do
Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao (GPM&E) e do Grupo
de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho (GEPET). Tem interesse
pelos temas: ideologia do trabalho, informalidade, desemprego,
polticas sociais, profisso e formao de psiclogo e teoria social
marxista/marxiana.
Endereo eletrnico: [email protected]

Ilana Lemos de Paiva


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, professora da mesma instituio e coordenadora do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao (GPM&E), do
Centro de Referncia em Direitos Humanos da UFRN (CRDH) e
do Observatrio da Populao Infantojuvenil em Contextos de
Violncia (OBIJUV). Tem interesse pelos temas: teoria social marxiana, polticas pblicas, direitos humanos, infncia e juventude
em contextos de violncia.
Endereo eletrnico: [email protected]

278

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Isabel Fernandes de Oliveira


Doutora em Psicologia Clnica pela Universidade de So
Paulo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
e coordenadora do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao
(GPM&E). Tem interesse pelos temas: Teoria Social Marxiana,
Polticas sociais, Polticas da Sade e Assistncia Social, formao e atuao de psiclogos.
Endereo eletrnico: [email protected]

Keyla Mafalda de Oliveira Amorim


Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, pesquisadora do Grupo de Pesquisas Marxismo
& Educao (GPM&E). Tem interesse pelos temas: teoria social
marxiana, poltica cientfica, prtica social do psiclogo, e
Psicologia e poltica social.
Endereo eletrnico: [email protected]

Autores
Ana Lia Almeida
Mestre em Cincias Jurdicas pela Universidade Federal
da Paraba, professora da mesma instituio e coordenadora do
Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas)
e do Ncleo de Extenso Popular Flor de Mandacaru (NEP). Tem
interesse pelos temas marxismo, assessoria jurdica popular e
direitos humanos.
Endereo eletrnico: [email protected]

Carlos Eduardo Montao Barreto


Doutor em Servio Social pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, professor da mesma instituio e coordenador do
Ncleo de Estudos Marxistas sobre Poltica, Estado, Trabalho e
Servio Social (PETSS). Tem interesse pelos temas: marxismo,
neoliberalismo, Estado, crtica ao Terceiro Setor, Servio Social,
poltica social, teoria marxista, lutas sociais, movimentos sociais.
Endereo eletrnico: [email protected]

Daniel Arajo Valena


Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, doutorando em cincias Jurdicas
pela UFPB, professor da Universidade Federal Rural do Semirido e coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crtico,
Marxismo e Amrica Latina (GEDIC). Tem interesse pelos temas:
movimentos sociais e Amrica Latina, marxismo, educao
jurdica e popular, direitos humanos, novo constitucionalismo

280

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

latinoamericano, assessoria jurdica popular, democracia, propriedade fundiria, terrenos de marinha, direito urbanstico.
Endereo eletrnico: [email protected]

Elaine Rossetti Behring


Doutora em Servio Social pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, professoraassociadada Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas
do Oramento Pblico e da Seguridade Social (GOPSS). Tem
interesse pelos temas: servio social, poltica social, oramento
pblico, seguridade social, assistncia social e trabalho.
Endereo eletrnico:[email protected]

Fernando Lacerda Jnior


Doutor em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica
de Campinas, professor da Universidade Federal de Gois e
membro do Ncleo de Estudos e Pesquisas Crtica, Insurgncia,
Subjetividade e Emancipao (CRISE). Tem interesse pelos temas:
Psicologia da Libertao, Psicologia Social, Psicologia Crtica,
Psicologia Comunitria e marxismo.
Endereo eletrnico: [email protected]

Ivo Tonet
Doutor em Educao pela Universidade Estadual Paulista
Jlio de Mesquita Filho e professor de filosofia da Universidade
Federal de Alagoas. Tem interesse pelos temas: socialismo, marxismo, poltica e educao.
Endereo eletrnico: [email protected]

Captulo 12

281

Jane Cruz Prates


Doutora em Servio Social pela Pontifcia Universidade
Catlica do Rio Grande do Sul, professora da mesma instituio,
pesquisadora do Ncleo de Pesquisa em Demandas e Polticas
Sociais (NEDEPS), coordenadora do Grupo de Estudos sobre Teoria
Marxiana, Ensino e Politicas Pblicas (GETEMPP), pesquisadora
da Rede Latinoamericana Laboratrio Internacional de Estudos
Sociais da Federao Internacional de Universidades Catlicas
(FIUC). Tem interesse pelos temas: ensino, formao e trabalho do
assistente social, teoria e metodologia da pesquisa social, teoria,
mtodo marxiano e enfoque misto, avaliao de politicas pblicas,
PNAS, SUAS e Populaes em situao de Rua.
Endereo eletrnico: [email protected]

Marcello Musto
PhD em Filosofia pela University of Naples LOrientale,
PhD em Filosofia e Poltica pela University of Nice Sophia
Antipolis, Assistant Professor no Departament of Sociology da
York University - Toronto. Tem interesse pelos temas: Marxismo,
Histria do Pensamento Poltico, Filosofia Moderna e Histria do
movimento operrio.
Endereo eletrnico: [email protected]

Mario Duayer
PhD pela Manchester University (Inglaterra), professor
visitante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Tem interesse pelos temas: Marx, ontologia crtica, teoria social crtica,
filosofia da cincia, metodologia da anlise econmica.
Endereo eletrnico: [email protected]

282

MARX HOJE: pesquisa e transformao social

Oswaldo H. Yamamoto
Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
e coordenador do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educao
(GPM&E). Tem interesse pelos temas: polticas sociais e a teoria
social marxiana.
Endereo eletrnico: [email protected]

Raquel Souza Lobo Guzzo


Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano pela Universidade de So Paulo, professora da Pontifcia
Universidade Catlica de Campinas, coordenadora do Grupo
de pesquisa Avaliao e Interveno Psicossocial: Preveno,
Comunidade e Libertao (GEP-InPsi). Tem interesse pelos temas:
Psicologia Escolar e Comunitria, indicadores de risco e proteo ao desenvolvimento da criana e adolescente, avaliao e
intervenes preventivas e psicossociais, Psicologia Social da
Libertao, processos de tomada de consciencia e relao entre
Psicologia e marxismo.
Endereo eletrnico: [email protected]

Ricardo Antunes
Doutor em Sociologia pela Universidade de So Paulo,
professor titular da Universidade Estadual de Campinas. Tem
interesse pelos temas: trabalho, nova morfologia do trabalho,
ontologia do ser social, sindicalismo, reestruturao produtiva e
centralidade do trabalho.
Endereo eletrnico: [email protected]

Captulo 12

283

Roberto Efrem Filho


Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco, professor da Universidade Federal da Paraba, coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais
(GPLutas) e do Ncleo de Extenso Popular Flor de Mandacaru
(NEP). Tem interesse pelos temas: conflitos territoriais, relaes
de classe, gnero e sexualidade, violncia e criminalizao.
Endereo eletrnico: [email protected]

Volume I

Você também pode gostar