Geografia Intima Do Deserto - Micheliny Verunschk

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1

Geografia ntima do Deserto


Micheliny Verunschk

A Aloizio e Mrcia, Michel e Max, minha famlia.


s famlias Pinto de Barros e Souza Machado.
Aos Amigos
Fred Barbosa
Lirinha
Mrio Hlio
Siane Gis
Weydson Barros Leal
A Tulle Czar

Todos os museus tm medo de mim


porque cada vez que fico um dia inteiro
em frente de um quadro,
no dia seguinte se anuncia
o seu desaparecimento.
(Marin Sorescu)

O Livro
Havia de encontrar
Alguma antiga ferida
E nela, supurando ainda
Teu rosto:
Outonos e infernos
Esquecidos
Entre pginas amareladas
E a dor, essa intil traa.

Domingo

Os cavalos
do carrossel
giram
ruas apressadas,
multido ereta.
Os doces cavalinhos
do carrossel giram,
tm olhos assimtricos
e giram.
Falos de madeira.

A Borboleta
Faminta mancha
na parede branca
a negra borboleta
abre as asas.
Devora toda
a parede branca
a lepra
da faminta
que se alastra.
Somente mancha,
somente mancha,
mancha que se alarga.
Somente mancha,
faminta mancha,
estrela negra
abrindo grandes asas.

Duo
O Violino
Entregue sutil carcia
da curva do queixo
mal finge
que freme mesmo
ao bal febril
das pontas dos dedos.
(Talhado em nobre madeira,
o filho de Eros,
dado ao gozo animal
ao humano sexo...)

Violoncello

A louca dama, nua e fera


deita e luta
com o seu msico:
que a mantendo
por entre as pernas
vai aprendendo
msculo a msculo
o gemer denso
de madeira rouca
a doma intensa
o sexo acstico.

Rpido Monlogo do Caador com Sua Caa

Trago
pardos
os olhos de cobia
que atiro sobre ti,
teu verbo/teu sexo:
tua presa de marfim.

10

O Rio:

O dia e a cidade
conspiram
contra mim
como um gatilho armado
de um revlver orgnico:
disparam
signos
concreto
e a pele quente dos nibus.
Mas noite
copulo com luzes e prdios.
Sou tero.
Cntaro.

11

O Drago

Um drago marfim e dourado


se desprendeu do livro
de um antigo sbio
numa tarde qualquer do sculo VIII.
Morreram de tristeza e saudade
as cincos gueixas da pgina vinte.
Procuraram por ele
os valentes samurais de nanquim
que fechavam cada captulo.
Mas, ningum mais viu
o drago que sangrava ouro.
E na fbula, uma chaga (fogo).

12

Desenho

A axila nua
e o cheiro quase doce de suor.
Os gatos no sabem do medo,
s do desenho e simetria
dos seus pares.
lacre,
o salto resina
e o gato.....................um risco.

13

Era um gato de bano


esttico e mudo:
um gato geomtrico
talhando em silncio
o seu salto mais duro.
Era um gato macio
se visto de perto,
um bicho de carne
ao olho certeiro,
arrepio de sombra
subindo nas pernas,
um lance no escuro,
um tiro no espelho.
O gato era um ato,
uma esttua viva,
uma lmpada acesa
no umbigo de Alice.
Era um gato concreto
no meio da sala:
era uma palavra
afiando palavras.
Era a fome do gato
e sua pata espreita,
veludo-armadilha:
uma nica letra.

14

Subverso

A sala no percebe
o navio que se agita
numa dana de touro furioso.
Da cerca em que est,
cega sua luz de solvente e leo.
Sua raiva desarruma mveis,
pessoas, pequenos objetos
dos altares domsticos.
Foge da moldura
rompendo paredes
sua quilha afiada.
Traz na lngua
o mar desgarrado e trpego
ruminando algas corais cemitrios marinhos e outros afetos ocultos.
Os mais velhos atribuem ao vento
o poder de tirar as coisas de lugar,
mas o navio arma-se,
ogiva em direo quietude

15

Noite

O mar
fareja e fareja
restos de sol sobre a areia.
O mar,
sextina negra,
sextina eterna e negra:
Galatia.

16

Seca
(ou O Boi e a Quaresma)
A Folia de Reis
chovendo fitas
passou ao largo de mim
que pastava calmo
no magro campo.
Ah! E o Sol,
imenso carrapato
agarrado no azul.

17

Memria

O meu pai
possua uma das asas
muito negra.
E dele herdei
estas estrelas na testa
e esta noite excessiva.
De minha me
lembro apenas
clarins e gua
e que cantava canes de janeiro.
As pedras brancas
deslizam suaves
sobre a asa muito negra
que foi de meu pai.
E eis toda a lembrana
que tenho da ptria.

18

Variao e Rito Sobre Uma Tourada Espanhola

Sobre o branco purssimo


a rosa negra intumesce:
seu caule espesso,
sua ptala spera,
sua fria intensa e violeta.
Porque a cidade escura,
porque as esquinas rasgam o passeio
e porque a chuva insiste fria, muito fria.
(Muitos animais
saem de entre as minhas pernas,
eu teria pensado aquela noite.
Hoje no.
Sei que moram tambm em minha garganta
e deslizam por ela
como o metr desliza sobre o dia,
repleto de vozes e suores,
sua msica polifnica.)
Sim, a cidade escura,
mas a arena clara.
O touro,
vermelho e arfante,
pinta a leo e sangue
o pr-do-sol
e a tarde emerge entre seio e lbio.
A cidade escura,
mas a arena clara
e a arena banha de festa e luta
toda a praa
que, luminosa e nua,
acende,
uma a uma,
as suas facas.

19

Falo alto com as telas


que pem em perigo a minha vida.
(Marin Sorescu)

20

Evangelho

Os seus dedos
tocam a ctara das chuvas
e traam
a virgem magra
arquitetura do estio:
sua poesia de extremos.

21

Face

Saber o deserto
como a cidade
sabe os seus ferrolhos,
a infeco, suas abelhas.
Saber o deserto
e mais ainda: t-lo.
Conquistar seus ferres de areia
sua gula seca e oca tempestade.
(Penetr-lo com suas ntimas chaves).

22

A Bicicleta

A bicicleta brilhava no deserto.


Dourada era um bicho.
Magra, buscava as tetas da me
quando se perdeu.
A bicicleta e sua solidez de areia,
sua solido de ferrugem
e seu olho manso e manso.
Tivera umas asas,
esfinge.
Tivera uma voz,
sereia.
Animal mtico,
pedais, semente, umbigo:
pedao de sol,
um deus enterrado no deserto.

23

Tero

Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma.


Em cada pedra uma mulher de sol.
Nas maiores se ornam de estrelas,
nas menores de todas as luas.
Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma.
Serpente a engolir o prprio corpo,
anfora, mandala,
palavras, mistrios, intenes.
Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma.
E Eva gloriosa, no verso da medalha.

24

Suicdio

A mulher cega
lapida lembranas:
uma raiva incontida
das cores que no acontecem
e o sentimento de areia e cuspe:
Deus se perdeu de mim.

25

Nightmare

O impondervel
alimenta
os animais da noite
mas eles permanecem inquietos.
Rondam
farejam
salivam
sobre o meu sono.

26

Rubaiat

O vinho prola na concha da lngua


o sol que abre a rosa daurora menina
e abrasa e deleita com luz que embriaga.
O vinho tapete na tenda mais ntima.
Quem bebe do sol, do seu lcool vermelho
j sabe das vinhas os msticos beijos
e bebe o incndio em osis de prata.
Que bbado sol, de deserto e desejo!
A tinta das uvas em poas na pele
desenha espinhos de prpura e neve
na areia to limpa de tez desmaiada.
Quem beba do vinho j soma as febres.
O vinho ctara, clice de prata,
bria concubina, rosa desmaiada,
aurora vermelha, manh de domingo.
Lquido tapete, dana que embriaga.

27

Infibulao

Lbios finos
recortados cuidadosamente a tesoura,
sem fugir da linha do contorno
sem preencher falha alguma
com lpis ou batom.
Ter cuidado, mo firme.
Ser terno pare que no sangre em demasia
e cantar quase ninando.
Ver seu vermelho
em plido esmaecer
(como as meninas mortas
que em suas fotografias
parecem que sempre foram mortas).
Sentir os frgeis ligamentos,
os nervos,
romperem as costuras
ante o dente rombo da tesoura.
Perceber a carne
ora cremosa, ora seca,
como uma folha seca,
se diluindo e se partindo
e antes do fim
colar tudo num lbum amarelo e vinho
e ir dormir em paz.

28

Darkness
A solido,
essa tempestade,
esse gozo s avessas,
esse jeito de eternidade
que as coisas adquirem
mesmo sendo apenas vidro.
Essas cartas ardendo
no estmago das gavetas,
essas plumas
que surgem quando se apagam
as ltimas luzes do dia.
Tudo faz a noite mais longa,
viso de uma sombra
sobre um bero.
No h resposta
e o labirinto o falso,
os lbios so falsos,
somente abismo,
absinto verdadeiro.
O sono,
grande placa de cermica
e o tempo,
demnio a ranger sobre o infinito.

29

Salom

Lances:
dados:
serpente, os dedos danam:
Uma noite
me habita
a cada abismo
que piso.
Joo Batista me olha:
precipcio:

30

O Tigre

O tigre crescia como uma serpente.


Viril como um crucifixo
plantava-se na terra macia.
Como uma estrela de gelo
queimava a pele
inflamando espasmos.
Tinta roxa como o cu bem cedo.
Abria bocas,
engatilhava-se.
O tigre-mel, confundia: opala.
Deslizava em grutas secretas.
Tomava a senda mais branca
feito cobra
feito as mos de quem ora
em segredo tenso.
Sem regras
espreitava-se em chuvas,
em salvas,
salivas
e coisas assim to finas
que o diriam morto.

31

O tigre suspeitava gretas


perante o cu mais cristalino
que o olho do que expia.
Tomando a carne mais virgem
como um ogro
ou s um tigre
o faria.
Deixando as garras de fora
como um rio de metal
que aguarda o sol.
Pedindo o gozo mais quente
como a lngua que deseja a gua
e se estica feito uma serpente.

32

O Que Dizem Os Girassis Sobre A Morte

Eles vestiram
suas roupas sujas
e saram de casa
e suas mos
se desmanchando
em linhas de sangue
borraram a l dos cordeiros
e as amendoeiras.
Nossas tias lamentavam a lua,
o tapete que teciam,
a voz de esmeralda
da menina cada no poo.
Eles no sabiam,
mas estvamos l.
Bebemos em silncio
o smen ainda quente do morto.

33

Hierglifo

Na pedra da alma
gravo a cifra
do que sinto:
sou a um s tempo
o alvo
o caador
e o arco tenso,
estendido.

34

O Homem Do Lado Do Espelho

O bestirio do Imperador
possua apenas seres monossilbicos,
mnimos e peonhentos
como um ponto final,
ruminantes como reticncias
e sentimentos ruins,
crispados em plos e palavras:
Uma luxria!

35

Deus

O pssaro,
essa pgina branca,
voa.
O deserto,
uma lngua de areia.

36

Conto

Existem minas
ao norte de uma grande cidade
onde os mineiros
no vem a luz
h pelo menos 25 anos.
Dizem que tm
olhos fosforescentes
como peixes de regies abissais.
Dizem que nascem da terra
e se proliferam por bipartio.
Dizem que tm pulmes modificados
e que nunca choram
porque di muito.
Mas so homens,
ainda homens,
os mineiros do Norte.

37

Ditirambo
Argolas de cristal,
a fina borda das taas,
brincos.
O vinho que vidro
vibra tanto pelos ouvidos,
divindade vermelha
que dana e transborda e se quebra.
ria.
Alegria contnua de bacantes
possudas como uvas que se pisam,
como guas
no ritmo alarde dos rebanhos.
Seus cascos trincando
um continente inteiro.
Diapaso do mais rubro beijo,
um caco de espelho
pintando/partindo
gengivas, himnos, a lngua
e ergamos vivas!
Evo, Aurora, Rom, Amara!
Evo, Baco!
Evo, irm ()vida breve,
breve como um copo
que se cai da mesa
se perde.

38

Se outro nome tivesse a rosa


A Mrio Hlio
A rosa,
rosa-convulsivo,
seca:
Incendiria
acende
uma tristeza interna
e combustveis
angstias
marrons e amarelas
(inventa
uma beleza
ferica,
nova,
a fnix,
a rosa).

39

Seda
Costurados
sobre mim
as mos e os ps
dos poetas mortos.
Como mas inchadas,
coaguladas
logo aps o caf.
Destroos laminados
de algum submarino
tocam de leve
os olhos feridos
e abrem fora
as bocas
(embora saibamos
que no podemos
naufragar na sala
que ela arde de dezembro).
Sutil seria, pois,
um outro beijo
como uma serpente
num cesto de fina palha,
mas ainda prefervel este:
um verme
um fuso
uma flor:
aberta em chaga

40

As Tardes Como Ces Danados


Ladram
de largos espelhos
esses ces de pedra e mormao
de lume e arame farpado.
Ladram quentes
e mordem
e inflamam
os calcanhares do vento.
E sobre os relgios pairam
ameaando-lhes de silncio.

41

Lenda

A me era um bicho em sua toca.


Comia estrelas
e lambia os filhos
com um mar to intenso
que todos adquiriram presas de cristal.

42

Aniversrio

O ceifeiro assobia
uma cano:
o tempo que dura a ceifa.
Eu assobio julhos e pianos
e trago na lngua
espigas maduras
ou um lrio.
Sega-me, o ceifeiro.
Cego o meu senhor.

43

Da Rotina
Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela sala,
o dia que persiste,
quase invisvel
pelo cho,
nos objetos
sobre os mveis da sala.
Varrer amanh
o p de hoje.
Varrer,
varrer hoje.
( E domingo quebrar nos dentes
o copo
e sua gua de vidro.
Segunda, no esquecer:
varrer todos os vestgios.)

44

Cena Suburbana

Os deuses dos olhos do gato


inquirem a alma da costureirinha
e lambem as mos do triste:
e quo escuro o poo
em que mergulham aquelas mos,
sabem os deuses,
por isso mesmo se aconchegam nelas.
A costureirinha, no,
no lhes d intimidades
e enxota o gato
que com ardis de homem,
ondula macio entre as suas pernas.

45

Le Cirque

No varal do manicmio,
camisolas agitam aplausos,
suportam o exlio de tudo
e nas tardes de tempestade,
piruetam, pipas pelo cu negro.
Os risos falhos dos mambembes
urinam uma luz trapzio,
sustentam os saltos suicidas, mas doem.
noite, depois que o dono faz a contabilidade,
as pulgas exibem o cerol.
Amanh tem espetculo, sim senhor!

46

Geografia ntima do Deserto


O Corpo Amoroso do Deserto
Teu corpo
branco e morno
(que eu deveria dizer sereno)
para mim
suave e doloroso
como as areias cortantes
dos desertos.
Que importa
que ignores minha sede
se tua miragem
gua cristalina.
E a miragem eu firo com mil lnguas
e cada uma um pssaro
a beb-la.
Ferroam a minha pele
escorpies de fogo e sol
com seu veneno
e vejo,
magoada de desejo,
os gros to leves
indo embora ao vento.

47

A Presena Dolorosa do Deserto

Teu nome meu deserto


e posso senti-lo
incrustado no meu prprio territrio.
Como uma prola
ou um gesto no vazio.
Como o amargo azul
e tudo quanto h de ilusrio.
Teu nome meu deserto
e ele to vasto.
Seus dentes to agudos
seus sis raivosos
e suas letras
(setas de ouro e prata
nos meus lbios)
so o meu tero de mistrios dolorosos.

48

Sou apanhado por fim


e chego em casa altas horas da noite
cansado e rasgado pelos ces
segurando na mo uma reproduo barata.
(Marin Sorescu)

49

O Espelho de Borges
Em uma jaula de vidro
repousa um homem
que no v,
mas visto.
O observam
as coisas inanimadas,
as trevas
a os mbiles
de onde pendem
transluminosas
palavras.
O trem
envolto na bruma azul
do calendrio
confunde-se com o homem,
seu sono de mrmore,
seu hlito.
Confunde-se com o homem
at a palavra em negro
Fevereiro
o musgo dos nmeros
a pedra dos domingos
em vermelho.
Confunde-se com o homem
tudo o que no v,
mas o cerca,
o que de fora da moldura
respira e observa.

50

Fotografia de Menino
O menino morto
nem fazia conta
do caixozinho de brinquedo,
do diadema de flores,
nem da roupa de festa
com que a me o vestira
num dia ordinrio.
Curioso, mirava a mquina,
o olho fixo e estranho da mquina
que o olhava tambm.
Estava to limpo e to lindo
e o verniz dos sapatos
brilhava tanto,
mas o que incomodava de verdade
eram as mos presas
numa prece que ele no sabia como soltar
e nem deveria, decerto,
pois a me poderia vir a ralhar
e seria um aborrecimento enorme.

51

Tankas
O Relgio

Sorrimos como migalhas de po


sobre a roupa nova de festa.
Somos p.

52

Natureza-Morta

Ontem noite, dois tiros:


frutas secas caindo.

53

Inverno

Por meses a fio


no saberemos ser pedra.

54

Vincent
... E ento
um girassol frentico
e mais campos
ruivos de trigo
brotaram-lhe
do profundo fosso
do ouvido.

55

Hades
Ouviram-se os gritos tenazes das lanas
e das entranhas da terra surgiu uma dana.
Lminas bailarinas na dana do ventre.
Elmos de brilho cadente.
Sabres, punhais, saliva metlica
mastigando os frutos mais verdes das rvores.
A msica dura de todas as armas
a dura sinfonia
sem sangue e sem gua.
Vinagre e sal
no campo sombrio
espadas que afinam
o pio seguinte.
A batalha suspende seu giro no espao.
A cortina se fecha.
Prximo ato.

56

Xadrez

Disseram aquela terra


menos poetas que pastores rudes
e bispos com as mos
lavadas em sangue.
Disseram mais suas vestes negras,
os gafanhotos profetizando
pelas sinistras gargantas dos velhos,
a dura sombra dos cavalos
no dorso das encostas.
Disseram aquela terra
em sua fome branca,
o contorno do pequeno cemitrio
continuamente redesenhado.
Disseram-na
quando no havia mais terra a dizer
e o filho do rei
roia unhas dos mortos que encontrava
com o desejo franco
de roer os prprios mortos.
Um novo rei com novos vcios.
Sim, um novo rei.

57

Lego

Corpo m util ado


batalha que/brada
no depor das armas
lance perd?do.
Como uma lmpada e seu bocal
ajustam-se ainda este membro
e o semelhante que se foi?
Como um jogo
um brinquedo
encontram-se as peas extraviadas
pela mesma dor?
Em algum lugar
braos e pernas
procuram braos e pernas
pe da os que se en-caixa-m
com todos os enganos.

58

Meninas
Na prateleira mais alta:
bonecas dentro das caixas,
olhos vidrados,
anjos sem asas.
Na prateleira mais baixa:
bonecas em potes de vidro,
olhos fechados,
anjos dormindo.

59

O Soldado Verde

A luz do sol
lava o soldado morto.
Um talho abre-lhe as costas
e vo se destacando ombros e pescoo.
Sangue tinge o uniforme o fuzil e minha mo
que o re-colhe na calada.
o seu sangue que se agarra a tudo,
musgo.
Di no meu bolso o soldado morto
atento em sua morte de plstico.
Doem minhas as suas pernas mastigadas.
A luz do sol,
lava verde,
meu soldado verde
doendo dentro do bolso,
sem mais guerra ou dono
sem nada mais.

60

Flor
Inaugura outro mar
este pesadelo inicitico
de pintor ensandecido.
Saco de trevas
envolvendo trevas
lousa semovente,
mesa.
As frutas biam entre caixotes
e vo arremeter contra os arrecifes
o doce pus.
O vaso
o vitral
ondabalaptala arrebentada,
herldica irregular,
de feras diversas,
de faca cega pelo sol,
esta jaula.

61

Dois Temas Para Meninos


I

O menino desenha
a bola ausente
e o muro cresce
perante o menino.
O muro prossegue
o menino no.
Clarssima cal
banha seu peito.
O vo extinto
no cimento duro.
(Decerto ela brincar
com meninos outros
que prosseguiro.
Provvel que baile
noutros braos e pernas.
Provvel que deles
tambm se perca
e se perca sempre
girando at o infinito).
O menino desenha com os olhos
a Ausente
e os seus olhos permanecem abertos.

62

II
Essa bola amarela
no pr-do-cu
nua devagar
e se espraia
no horizonte.
E rosa e amarelo
se quebra
e se espuma.
Essa fruta malva
brilha
breve lbio
fibra de barbante
quase de acar
e rosa e amarelo
mascava a noite
e se quebra
e se espuma
e se quebra
e se espuma.
Essa bria-novelo
teia tramas
raia linhas
essa bria
essa uma
esse puma
e se quebra.

63

Um Canto Obsessivo
O que habita este envelope fechado?
Um animal ou uma mquina
que engendra surpresas mal-queridas?
O que se escuta so risadas,
o trabalho de uma usina,
ou sero garras que rasgam papis,
mapas,
festas gregas em que se quebram pratos?
Que mecanismos trabalham nesta carta?
Seu tic-tac de bomba,
de conta atrasada,
de contagem regressiva?
Talvez intimao da justia
ou uma ao de despejo da prpria vida.
Talvez nada,
s um convite para a liquidao
da loja mais prxima
ou o corao de um indigente
pingando ainda,
material didtico para a aula de anatomia.
Talvez nada,
s uma carta,
papel contra papel,
uma rosa desfolhada
e um amontoado de letras desconexas.
Notcias,
um pedido que morre,
a graa que fica,
a guerra que arde no ntimo amigo.
Talvez tudo,
um bicho traioeiro e pardo e mudo
ataviado de selos e outros enfeites,
mas muito gil em cravar os dentes,
ele todo um rctus de espinhos
que desfibra a vtima.
Que palavras guardam este cofre?
Que susto de presente?
Que bote?

64

Inventrio
O armrio
esconde coisas insuspeitadas
sol
nudez
tintas
esta coleo de peas ntimas
o armrio esconde ideogramas
e sedas chinesas
e, num canto escuro,
uma letra.

65

Dor
Subindo pelas narinas
a dor, este verme de arame,
rasteja e pinga ovos
foscos
latejantes.
Seqestra-me, a dor.
Sabe-me, a vadia.

66

Trs Esboos de Mtodo para a Pintura


A Bala
Do olho do pintor,
o tiro
rouba do pssaro
a verdade e o esprito.
Avaro olho,
feroz unha asceta,
enclausura o pssaro-alma
em sua tela.

67

Fbula
A lngua do pintor
sabe o efmero seio que beija.
O seio que no cabe
na cela das mos,
que pouca:
espelho onda geometria
quebrando-se dentro da boca.

68

Nudez
O pintor
estuda
a flor
matemtica.
A flor
nua
de ptalas.
A flor:
nua,
exata.

69

Para Esquecer Os Mortos

Leonor
tinha dentes brancos
e fazia anotaes
numa caderneta xadrez.
Leonor era uma pea de xadrez.
Leonor
tinha dentes mrmore.
Leonor mar lpide
Leonor, no.
Letra.
Valquria

70

Salmo Da Luta Intil


Intil, Senhor,
o Vosso sangue de cordeiro,
se a morte o leo
e a vida, o circo.
Todos os dias
rumam para a prancha
os que vo morrer e no sabem.
Intil, Senhor,
esta dor crucificada
se nada Vos arranca
desses pregos nas igrejas,
se as Vossas mos furadas
no conseguem deter balas,
se uma ferida brota
na Vossa palma feito um tero.
V esta luta, Senhor Morto,
se a morte o leite,
o acidente que bebemos,
se nos lanamos aos bandos
tal crianas tontas,
ratos que se encantam
pela msica da arena.
V esta luta, Senhor Morto,
se ao menos Vs, s Vs escapsseis vivo,
mas este o nosso picadeiro
e o ingresso jamais devolvido.

71

Tempo

Moscas minsculas
e fruteiras brancas.
O rio escorrega
dia.
A porteira colhe gemas
gemidos
um rquiem de velhas lavadeiras.

72

O Farol
Toda noite
o seu olho me vem
da Baa de Laia
e os arpes
empalam sereias.
Toda noite
essa rede
essa malha
esse ferro
esse gancho de peixes.
Esse Deus tem o olho de Laia
e me acha acha
e me fode
bem antes que a espuma.
Toda noite Laia me olha
toda noite esse Deus
me devora.
Toda noite me vem
e me perde.
Toda noite
o farol me repete.

73

Decalque

A manh seguinte decalcou


quase toda a manh anterior
que se tinha fixado nos olhos.
E todas as outras manhs
copiariam detalhes
cada vez mais tnues
at que nem olhos mais houvesse.

74

Toys
Somos de uma tristeza serena
quando montamos
quebra-cabeas,
principalmente aqueles
de paisagens grandiosas
de pases distantes
(talvez porque saibamos
que h sempre uma pea perdida
no meio das outras
e que ser a do instante final).

75

Ofcio
Como um rei
que sonhasse
um crculo
um mrmore
um castelo
e dormindo
seus olhos declarassem
o Belo:
uma lgrima
a perfeio
a luz
o verbo.
Como um Deus
que criasse a Beleza
muito embora fosse cego.

76

A Tecel
A fome fia a teia,
Av Aranha.
A fome tece e trana.
Espalha suas cinzas
e espera o peso,
o efeito da armadilha.
Atalaia,
a fome aguarda,
Av Aranha.

77

Anotao Para um Domingo da Ressurreio


Domingo da Ressurreio
e leio no jornal
que chegado o tempo
de amolar as facas.
Minhas facas
esto todas mopes
pelo mau uso
(posso lamber-lhes o fio
que a lngua permanecer
(virgem).
A mo, esta sim,
cega
pelo tempo
de no empunhar,
de no acariciar
o cabo das facas
como a um falo
sedento
do orgasmo
do corte.
Minhas facas, mopes,
minha mo cega,
e o tempo que se aproxima:
o tempo
do afiador!
(Izaas no foi vaqueiro,
plantou cafezais.
A hora j era passada
quando descobriu o gado:
Ah, as facas inutilizadas!
As facas aleijadas
pelo desperdcio!)
Li no jornal
que chegado o tempo.
Urge tomar uma providncia.

78

Eplogo ao Anjo Cego do Senhor


Este tempo foi confiado
ao Anjo Cego do Senhor.
Polindo ossos contra ossos
como dentes contra vidro,
derrama a loucura do seu clice
e se aflige, ele mesmo, em longa e violenta chuva.
Junta pedaos de jornal sobre suas asas,
cavalga ratos, porcos, carros desgovernados
e agita seus longos cabelos contra os desertos e oceanos.
Ao Anjo Cego do Senhor
foram confiadas ainda 15 mil almas
de canibais e assassinos em srie.
E ele, que nada v,
festeja o burburinho,
criana entre fios coloridos de eletricidade.

79

Frida

Dentro do pssaro,
um pssaro mais livre
rompe o vo da carne
e parte no prprio canto,
invertebrado,
sem a ossatura da gaiola.
Fora do pssaro,
cristalino nada.

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