Panorama Histórico Geometria
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IME/USP
fsico e do universo.
guidade at os tempos modernos. Com ele, no pretendemos de modo algum escrever uma obra exaustiva
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Ao contrrio dos povos que os precederam, que mormente tomavam a geometria como um conjunto de re-
gras empricas e teis, que eram aplicadas a casos particulares e cujas justificativas eram aparentemente ne-
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A ideia grega de usar a matemtica para compreender os mistrios do universo dependia, para dar
certo, de uma maneira de separar a assero verdadeira
daquela meramente hipottica. Em outras palavras,
necessitava-se de uma noo de demonstrao matemtica. A percepo desse fato provavelmente a primeira
descoberta importante na histria da cincia. A Tales e
Pitgoras credita-se a introduo dessa noo. Mas o
que a verdade nesse contexto? Plato apresentou
uma resposta a essa pergunta explicando que tanto as
noes como as proposies matemticas no se referem a objetos do mundo fsico, mas a certas entidades
ideais que habitam um mundo diferente do mundo fsico. Por exemplo, uma reta que traamos em uma folha de papel representa apenas aproximadamente uma
reta que vive em um mundo platnico de entidades ideais. O mesmo se aplica s proposies matemticas verdadeiras. No se trata aqui de um conceito ficcional,
produto de nossa imaginao, ou ainda de um conceito
esotrico, mas de uma ideia extraordinria cujo significado pode ser colocado da forma seguinte. Em primeiro
lugar, ele nos alerta para distinguirmos as noes matemticas precisas das aproximaes que encontramos
no mundo fsico. Mais interessante ainda identificar a
existncia do mundo platnico das entidades matemticas com a objetividade da verdade matemtica. Em outras palavras, as proposies matemticas que habitam
o mundo platnico, ditas verdadeiras, esto submetidas
a um padro de objetividade externo que no depende
mente e inconscientemente.
Euclides (c. 325AEC c. 265AEC) provavelmente estudou na Academia de Plato e foi o fundador da vigorosa escola matemtica de Alexandria, numa poca em
que Atenas declinava como fora poltica. Sua obra mxima, os Elementos consiste de treze volumes que contm a maior parte da matemtica conhecida na poca.
Trata-se de um texto sistemtico, organizado segundo
os critrios de rigor lgico-dedutivo, mas tambm de
experincia intuitiva. O volume I trata de geometria
plana e inicia-se com uma srie de definies e axiomas. Finalmente, h uma lista de proposies, cada
uma delas incluindo um enunciado imediatamente seguido de uma demonstrao. Cada afirmao de uma
demonstrao logicamente justificada com base em alguma definio, axioma, ou proposio anteriormente
demonstrada, mas h tambm algumas afirmaes cujas justificativas apoiam-se na intuio sobre o espao
fsico. Dentre os axiomas, destacam-se os cinco postulados que transcrevemos em linguagem moderna:
1. Existe um nico segmento de reta conectando dois
pontos dados.
2. Todo segmento de reta pode ser estendido indefinidamente em ambas as direes.
3. Existe um crculo com quaisquer centro e raio dados.
4. Todos os ngulos retos so iguais entre si.
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Os primeiros que compreenderam que o quinto postulado de Euclides era indemonstrvel e que se poderia, a partir de sua negao, construir geometrias novas e totalmente coerentes foram Gauss, Lobachevski e
Bolyai, que chegaram s suas concluses independentemente uns dos outros. curioso notar que Gauss nunca
publicou seus trabalhos nessa rea, e os outros dois au-
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que uma tal geometria poderia corresponder geometria de nosso espao. Aqui ele aparentemente estava
menos interessado na questo filosfica da independncia do postulado das paralelas do que na natureza geomtrica verdadeira do espao fsico. Tal interpretao
da questo era certamente ousada em vista da doutrina
kantiana de considerar o conceito euclidiano de espao
como a priori, a saber, um componente essencial da estrutura de nossa mente. Segundo Gauss, a aritmtica
era a priori, mas muito diferentemente de nosso ponto
de vista atual a geometria estava ligada mecnica
e consistia-se numa cincia experimental de forte teor
intuitivo. Assim, a questo da natureza geomtrica do
espao fsico no deveria ser decidida a priori, mas experimentalmente.
A histria da geometria diferencial inicia-se com o estudo de curvas. Noes como retas tangentes a curvas
j eram encontradas entre os gregos Euclides, Arquimedes e Apolnio. No sculo XVII, os franceses Pierre de
Fermat (16011665) e Ren Descartes (15961650) fundaram a moderna geometria analtica, enquanto que o
alemo Gottfried von Leibniz (16461716) e o ingls Sir
Isaac Newton (16431727) inventaram os algoritmos do
clculo infinitesimal, os quais permitiriam o estudo de
curvas e superfcies atravs de suas propriedades diferenciais.
A curvatura de uma curva plana em um ponto da
curva a taxa de variao naquele ponto da direo
tangente curva em relao ao comprimento de arco.
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Uma transio natural da teoria de curvas para a teoria de superfcies encontra-se no problema geodsico, i.e. o
problema de encontrar o caminho mais curto entre dois
noes de linhas conjugadas e assintticas de uma superfcie, bem como a inveno do que se costuma chamar
de indicatriz de Dupin.
ginveis.
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|K ( p)| = lim
Nessa obra, Gauss lanou seu famoso e influente programa para a geometria diferencial intrnseca, a saber, o
estudo das propriedades geomtricas de uma superfcie que so independentes das vrias maneiras de
mergulh-la no espao tridimensional. Ele utiliza sistematicamente a representao paramtrica x = x (u, v),
y = y(u, v), z = z(u, v) introduzida por Euler, e define a
primeira forma fundamental ds2 = Edu2 + 2Fdudv + Gdv2
em termos de trs funes E, F e G de u e v, o que essencialmente determina as distncias ao longo da superfcie e assim define sua natureza essencial. As propriedades intrnsecas da superfcie so exatamente aquelas
= rea( (ABC ))
=
ABC
KdS.
rio. A curvatura total de uma regio da superfcie definida como sendo a rea da representao esfrica dessa
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segunda ordem.
Em 1848, Bonnet generalizou o teorema de Gauss relativo curvatura total de um tringulo geodsico de
modo a obter uma frmula para a curvatura total de
qualquer regio simplesmente conexa de uma superfcie. Em outra contribuio importante teoria de superfcies, estabeleceu o que chamamos hoje em dia de
teorema fundamental de existncia e unicidade de superfcies. Os italianos Gaspare Mainardi (18001879) e Delfino Codazzi (18241873) j haviam derivado as equaes de compatibilidade entre os coeficientes da duas
formas fundamentais de uma superfcie, independentemente um do outro e respectivamente em 1856 e 1867.
Bonnet demonstrou em 1867 que essas equaes, juntamente com a equao de Gauss, so suficientes para que
haja uma superfcie com as formas fundamentais dadas, e tal superfcie fica ento unicamente determinada
a menos de um movimento rgido do espao. Menos
conhecido o fato do leto Karl Peterson (18281881),
que foi pupilo de Minding, ter chegado antes s equaes de Codazzi-Mainardi e ao teorema de Bonnet em
sua tese de doutoramento, que foi escrita em alemo em
1853 mas publicada somente em 1952 (em uma traduo para o russo).
geometria plana do matemtico russo e a geometria intrnseca de uma superfcie de curvatura constante negativa (a pseudoesfera) so (localmente) equivalentes, construindo assim o primeiro modelo concreto do plano de
Lobachevski e demonstrando por fim a consistncia da
geometria no euclidiana, o que promoveu a aceitao definitiva dessa geometria nos meios matemticos.
Por outro lado, essa aceitao tambm teve o efeito de
conscientizar os matemticos do alcance das deficincias dos Elementos, e de disseminar a percepo da necessidade de reconstruir os fundamentos da geometria
euclidiana em bases modernas, o que foi concretizado
principalmente pelas mos de Pasch, Peano e Hilbert
durante as ltimas duas dcadas do sculo XIX.
*
Em 1809, Wilhelm von Humboldt, o irmo mais velho do importante naturalista e explorador Alexander
von Humboldt, foi nomeado ministro da educao do
estado da Prssia e encabeou uma profunda reforma
do sistema educacional prussiano. Em oposio filosofia utilitarista pregada por Napoleo do outro lado
da fronteira, Humboldt era desfavorvel prtica da
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l .
bolos do tensor de curvatura Rijk
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guinte de desenvolvimento.
*
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perimentalmente.
prev que uma partcula sujeita apenas ao campo gravitacional move-se ao longo de uma geodsica nessa mtrica. Esse interesse ampliado em geometria advindo
da teoria da relatividade levou Levi-Civita a descobrir o
importante conceito de transporte paralelo em 1917. Por
sua vez, as tentativas de unificar as teorias dos campos
gravitacional e eletromagntico tambm beneficiaram a
geometria e incentivaram o desenvolvimento de conexes afins em espaos fibrados, atravs dos sucessivos esforos de Hermann Weyl (1918), Jan Schouten (1922),
lie Cartan (1923) e Charles Ehresmann (1950).
*
o de ideias topolgicas.
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positiva.
e topologia.
poderamos deixar de mencionar uma das mais espetaculares aplicaes recentes da geometria topologia, a
saber, a prova da centenria conjectura de Poincar por
Hamilton e Perelman. Em 1904, motivado pela classificao de superfcies fechadas e aps um longo estudo
da topologia de 3-variedades, Poincar mencionou a
questo, reformulada em linguagem moderna, de decidir se toda variedade topolgica tridimensional compacta e simplesmente conexa homeomorfa esfera de
mesma dimenso. O desenvolvimento de ferramentas
para atacar esse problema orientou a maior parte do trabalho em topologia de 3-variedades durante o sculo
passado. Na dcada de 1980, William Thurston desenvolveu uma nova metodologia para estudar a topologia
de 3-variedades e colocou a conjectura de Poincar no
revolucionarias
do Premio Abel de 2009, pelas suas contribuicoes
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tematica.
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Hamilton formalizou um tal caminho introduzindo o
Hamilton formalizou um tal caminho introduzindo o
fluxo de Ricci como uma equao de evoluo no espao
fluxo de Ricci como uma equao de evoluo no espao
de mtricas riemannianas em uma variedade de dimende mtricas riemannianas em uma variedade de dimenso arbitrria. Ele ento conjecturou que, comeando
so arbitrria. Ele ento conjecturou que, comeando
com uma mtrica arbitrria em uma 3-variedade comcom uma mtrica arbitrria em uma 3-variedade compacta, o fluxo de Ricci deveria produzir uma famlia a
pacta, o fluxo de Ricci deveria produzir uma famlia a
um parmetro de mtricas convergindo para uma mum parmetro de mtricas convergindo para uma mtrica bem comportada, como previsto na conjectura de
trica bem comportada, como previsto na conjectura de
geometrizao. Mas esse programa esbarrou em uma
geometrizao. Mas esse programa esbarrou em uma
srie de dificuldades tcnicas: em geral, o fluxo de Ricci
srie de dificuldades tcnicas: em geral, o fluxo de Ricci
desenvolve singularidades em tempo finito, e um mdesenvolve singularidades em tempo finito, e um mtodo para analisar essas singularidades e continuar o
todo para analisar essas singularidades e continuar o
fluxo para alm delas precisava ser encontrado; alm
fluxo para alm delas precisava ser encontrado; alm
disso, mesmo que o fluxo esteja definido para todos os
disso, mesmo que o fluxo esteja definido para todos os
valores do tempo, restam ainda questes delicadas sovalores do tempo, restam ainda questes delicadas sobre a natureza do objeto-limite. Numa srie de artigos
bre a natureza do objeto-limite. Numa srie de artigos
publicados entre 1982 e 1999, Hamilton realizou propublicados entre 1982 e 1999, Hamilton realizou progresso considervel no seu programa, sem no entanto
gresso considervel no seu programa, sem no entanto
complet-lo. Mais recentemente, em trs manuscritos
complet-lo. Mais recentemente, em trs manuscritos
surgidos entre 2002 e 2003 e apoiando-se no trabalho
surgidos entre 2002 e 2003 e apoiando-se no trabalho
de Hamilton, Grigori Perelman anunciou ter resolvido
de Hamilton, Grigori Perelman anunciou ter resolvido
todas as dificuldades tcnicas de natureza geomtrica e
todas as dificuldades tcnicas de natureza geomtrica e
analtica do programa daquele. Em linhas gerais, mosanaltica do programa daquele. Em linhas gerais, mostrou como estender o fluxo de Ricci atravs das singutrou como estender o fluxo de Ricci atravs das singularidades por meio do que chamou de fluxo de Ricci com
laridades por meio do que chamou de fluxo de Ricci com
cirurgia, e estendeu as estimativas de Hamilton para o
cirurgia, e estendeu as estimativas de Hamilton para o
fluxo de Ricci com cirurgia, bem como sua anlise do
fluxo de Ricci com cirurgia, bem como sua anlise do
processo de limite. Desse modo, ele afirmou ter estabeprocesso de limite. Desse modo, ele afirmou ter estabelecido a conjectura de geometrizao e portanto a conlecido a conjectura de geometrizao e portanto a conjectura de Poincar. Aps cerca de dois anos de intenso
jectura de Poincar. Aps cerca de dois anos de intenso
escrutnio, a comunidade matemtica finalmente recoescrutnio, a comunidade matemtica finalmente reconheceu a validade dos argumentos de Perelman no que
nheceu a validade dos argumentos de Perelman no que
concerne conjectura de Poincar e o agraciou com a
concerne conjectura de Poincar e o agraciou com a
Medalha Fields em 2006. No que concerne mais geral
Medalha Fields em 2006. No que concerne mais geral
conjectura de geometrizao, nos ltimos dois anos foconjectura de geometrizao, nos ltimos dois anos foram colocados disposio pelo menos quatro manusram colocados disposio pelo menos quatro manuscritos, de autoria de especialistas, expondo uma srie
critos, de autoria de especialistas, expondo uma srie
de detalhes que faltavam nos artigos de Perelman, de
de detalhes que faltavam nos artigos de Perelman, de
modo que parece se estar formando um razovel conmodo que parece se estar formando um razovel consenso tambm em torno da soluo desse problema. De
senso tambm em torno da soluo desse problema. De
toda maneira, as contribuies de Perelman vo muito
toda maneira, as contribuies de Perelman vo muito
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Referncias
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forming on the proof of the Poincar
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Consensus
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