SANTOS, Irlan Simões. Direito Ao Estádio e Ao Clube - As Lutas Dos Torcedores de Futebol No Brasil
SANTOS, Irlan Simões. Direito Ao Estádio e Ao Clube - As Lutas Dos Torcedores de Futebol No Brasil
SANTOS, Irlan Simões. Direito Ao Estádio e Ao Clube - As Lutas Dos Torcedores de Futebol No Brasil
Resumo
O artigo que segue reflete sobre o surgimento de diversas experincias organizativas de
torcedores no Brasil nos ltimos anos, criadas no sentido de pautar seus interesses
acerca do futebol. As pautas dessas organizaes podem ser sintetizadas em dois
principais temas: o direito ao estdio e o direito ao clube, que aqui sero entendidas
como comuns culturais ameaados pela lgica privatista e excludente da cidade
neoliberal dos tempos atuais. Para tanto ser feito um breve histrico da formao do
futebol, dos estdios e da cultura torcedora; e posteriormente sero discutidos os
movimentos de torcedores no mundo e no Brasil.
Palavras-chave: futebol, torcida, estdio, cultura, comum.
Introduo
Os interessados no tema do futebol esto testemunhando um momento nico e
relativamente curioso no Brasil. Em torno de diversos clubes de todos os cantos do pas,
crescem o nmero de experincias organizativas de torcedores com vistas ao
estabelecimento de direitos democrticos de acesso aos estdios e aos seus clubes.
Desde a metade final dos anos 2000 j se detectam experincias desse carter,
tendo aumentado em grande proporo a partir da produo da Copa do Mundo de
2014. O fenmeno chama ateno por variados motivos e surpreende imaginar que
setores sociais precarizados de uma juventude de classe mdia baixa estariam se
organizando em torno de um divertimento, um mero produto da indstria do
entretenimento, num pas em que, segundo dados do IBGE, apenas 27% da populao
adulta integra sindicatos, associaes profissionais, partidos, entidades de bairros e
outros tipos bsicos de organizaes cvicas.
O que veremos ao longo desse artigo que essas experincias no so exclusivas
do Brasil e tentaremos entende-las a partir da anlise das mudanas ocorridas no
capitalismo, nas cidades e na cultura e como isso tem impacto direto no futebol.
1
Critcher (1979) desenvolveu uma taxonomia das identidades torcedoras no futebol ingls, aprimorada e
atualizada por Giulianotti (2012), na qual identificavam esse perfil mais fidelizado de torcedor como
membros ou fanticos. Sobre o tema ver Santos (2015b).
3
Gilmar Mascarenhas, Um jogo decisivo, mas que no termina: a disputa pelo sentido da cidade nos
estdios de futebol. Revista Cidades, v. 10, n. 17, 2013, pp. 142-170.
Michael Hardt e Antonio Negri, Commonwealth, Cambridge, Havard University Press, 2009.
David Harvey, Cidades Rebeldes: do direito cidade revoluo urbana. So Paulo: Martins Fontes,
2014.
5
do trabalho orientado pelas tarefas. Era o tempo em que se trabalhava por 16 horas
num nico dia6.
A tica protestante que apresentava a duplicidade de um discurso religioso
radical e punitivo com um ethos tipicamente burgus do corpo para a produo de
riquezas, comprimindo o tempo ao mximo da racionalidade seria agora o bastio da
formao dessa nova sociedade, que veria longos anos de conflitos, resistncias e
desajustes. Afinal, o problema no se tratava apenas da rejeio da grande maioria dos
trabalhadores s regras impostas, mas tambm da forma com que esses aproveitavam o
seu tempo fora do ambiente da fbrica. Em termos mais precisos: o que era feito do
tempo livre desses trabalhadores. Todo tempo devia ser consumido, negociado,
utilizado... fora disso seria considerado no-produtividade e impertinncia7.
A partir da terceira dcada do sculo 19 toma forma a conhecida Era Vitoriana,
que aprofundou e aprimorou todo um arcabouo de normatizaes moralistas e
disciplinantes que sofisticaram as tecnologias sociais de controle e, principalmente,
educao cvica. O casamento de uma nova moral burguesa com preceitos religiosos
explica a srie de ataques promovidos aos costumes, jogos e feriados populares do
perodo. Alguns documentos expem a classificao dos sujeitos praticantes desses
tipos de lazer desregrado das ruas como dissolutos, depravados, brutais, insolentes,
libertinos, extravagantes, ociosos, faltosos com a religio, blasfemos, dentre outros8.
exatamente na Era Vitoriana que algumas dessas prticas de lazer, em especial
os jogos coletivos sero apropriados e inseridos na educao de jovens abastados das
escolas inglesas, onde seriam aprimorados e embutidos de elementos que
representassem os valores predominantes da poca, como disciplina, obedincia e
competitividade, tpicos valores do homem burgus. nas proximidades de Londres
que surge ento a Football Association, em 1863, da reunio de doze clubes, perodo
conhecido como de normatizao ou esportivizao9 do futebol, quando se definiram as
suas regras. A ttulo de contextualizao, a fundao da primeira associao se deu
apenas quatro anos aps o lanamento de duas obras histricas: Contribuies Critica
da Economia Poltica, de Karl Marx e A Origem das Espcies, de Charles Darwin.
como
competividade,
mrito
disciplina,
deixando de
lado
ou
10
11
12
Henrique S. Santos (2012) vai apontar registros jornalsticos que acusam a cobrana de ingressos no
futebol em Salvador em 1907.
13
Antonio Cruz, A nova economia do futebol: uma anlise do processo de modernizao de alguns
estdios brasileiros / Antnio Holzmeister Oswaldo Cruz. Rio de Janero: UFRJ/PPGAS, Museu
Nacional, 2005.
14
Antonio Cruz, op. cit, 2005.
15
Na Inglatera a exigncia da profissionalizao se deu ainda em 1885. No Brasil, ultimo reduto de
resistncia do esporte amador, s passaria por tal mudana em 1933.
16
Charles Critcher, op. cit., 1979. Football Since The War. In: CLARKE, J.; CRITCHER, C.;
JOHNSON, R. (orgs). Working Class Culture: Studies in history and theory. Londres: Hutchinson, 1979,
p.161-184 (163).
17
Nos primrdios do pblico assistente do futebol e de tantos outros esportes era muito comum, e at
elogiada, a presena de mulheres das classes mais abastadas. Assistir aos sports simbolizava um evento
de distino nos tempos aristocrticos do futebol oficial.
O futebol ento a torna-se uma indstria cultural, adotando a sua dupla funo:
de publicidade e propaganda18. A propaganda compete aos seus usos pelo Estado e
grupos polticos dominantes, a instrumentalizao de um aspecto cultural para fins de
ideolgicos. A publicidade se refere ao uso pelo Capital, em sua competncia de servir
aos capitais individuais em concorrncia e ao mesmo tempo na moral geral do
capitalismo enquanto sistema, o que Raymond Williams um dia chamou de man
geral para a reputao pblica do capitalismo. dentro dessa chave que poderemos
entender os dois momentos que marcam o futebol no sculo XX.
Nos anos iniciais o Estado que se encarregar de difundir o futebol enquanto
cultura de massas, promovendo a construo de imensos estdios, ou de estdios de
bom porte em todo o territrio nacional. No Reino Unido estdios j atingiam a
capacidade de mais de 80 mil lugares, a exemplo do Wembley, construdo em 1823. No
Brasil o Pacaembu em 1940 e o Maracan em 1950 exemplificam essas medidas.
Ganha destaque no Brasil os perodos do governo de Getlio Vargas e
posteriormente da Ditadura Militar. Ambos deram grande importncia ao futebol
enquanto instrumento de propaganda, tendo na construo de grandes estdios19 uma
das principais ferramentas de articulao poltica e busca de apoio popular. Criar
grandes estdios cumpriria um papel fundamental aos clubes, que at ento tinham as
bilheterias como uma das poucas fontes de receita. Nesse ambiente que surgem as
gerais, setores populares que criaram suas prprias culturas torcedoras notavelmente
festivas, onde os torcedores mais pobres se amontoavam em locais de pssima
visualizao da partida, mas que davam ao clube o status de clube de massas, to
importante para atrair outros torcedores. Esses podem ser chamados de superestdios,
uma vez que so concebidos para receber o maior pblico possvel.
Quatro momentos histricos importantes marcam processos de mercantilizao
agressiva do futebol que chamam uma maior ateno por impactarem diretamente na
produo do estdio e consequentemente do seu pblico, medida que se hipertrofia a
funo publicidade na chave utilizada acima.
O primeiro, no ps-guerra na Europa, e mais contundentemente nos anos 1960, a
partir da formao de uma sociedade do consumo e da concorrncia entre diferentes
indstrias culturais e do entretenimento, se notar uma nova forma de conduo do
18
futebol enquanto negcio por uma nova gerao de dirigentes atrelados ao mundo
corporativo, muito influenciado por uma americanizao da cultura global20. Os efeitos
da mercantilizao do futebol nos jogadores, agora celebridades; nos torcedores, de
operrios para consumidores de classe mdia; nos clubes, da criao de um oligoplio
uma elite vencedora; e no jogo, mais mecnico e pragmtico; salientando a mudana
dos padres culturais ali estabelecidos, quando o jogo passaria a ser moldado pelos
ditames do lucro e inserido na lgica do espetculo21.
O segundo momento destacvel a entrada de Joo Havelange na presidncia da
FIFA, em 1974, inaugurando uma sofisticao sem precedentes do futebol enquanto
negcio, a partir da articulao com grandes empresas globais, no gancho da crescente
tecnologia de transmisso de imagens via satlite. Essa realidade faz com que os valores
dos ingressos vendidos para cada jogo se torne muito menores do que aquele recebido
pelos clubes ao fechar contratos de cesso de direitos de imagem com a TV. Essa
inverso de prioridades tem impactos diretos nos estdios: o pblico-alvo principal dos
clubes no estava mais nas suas cidades de origem, mas agora espalhados por todo o
pas ou mesmo pelo mundo. Surgem, portanto, novos atores econmicos e uma nova
realidade comercial entre clubes, atletas, torcedores de estdios e consumidores de TV.
No Brasil o primeiro grande acordo de televisionamento dos clubes se deu em 1987.
O terceiro momento a tragdia de Hillsborough, em 1989, na Inglaterra. A
superlotao do estdio do Sheffield gerou 96 mortes e centenas de feridos entre os
torcedores do Liverpool. O Liverpool era o clube mais popular do pas e muito famoso
pelos seus hooligans, sendo sistematicamente perseguido pelo governo ingls, que
desconsiderou as causas reais do acidente, alm da negligncia das foras policiais que
pouco fizeram para evit-la22. O caso favoreceu o discurso neoliberal do ento governo
de Margareth Thatcher, que h algum tempo j buscava interferir de forma agressiva no
futebol local. Com base no Relatrio Taylor, encomendado para avaliar tais problemas,
Thatcher promoveu uma srie de exigncias de reformas dos estdios ingleses,
acarretando numa nova percepo desses espaos e consequentemente numa mudana
total do seu pblico, em sintonia com os elementos j ressaltados anteriormente. O
expediente poltico de utilizar o tema da violncia (real, porm superestimado) como
20
23
Irlan Simes Santos, Mercantilizao do futebol e movimentos de resistncia dos torcedores: histrico,
abordagens e experincias brasileiras (no prelo), 2015
26
As propostas tericas partiam de Antonio Gramsci, Karl Polanyi, Jurgen Habermas, Pierre Bourdieu e
Anthony Giddens.
27
28
O comum deve ser entendido como uma relao entre grupos sociais e os
aspectos j presentes ou ainda criveis do meio social, considerada crucial para sua vida
e subsistncia. Pensar o comum em sua forma cultural, identificando-o nas lnguas
criadas, nas praticas sociais e tambm nos modos de sociabilidade que definem nossas
relaes29, nos permite entender o futebol dentro desse raciocnio.
Esse comum cultural tambm pode ser entendido tanto como o produto do
trabalho coletivo quanto os meios que proporcionam sua produo. Estendendo esse
conceito ao futebol, podemos pensar o estdio, a cultura torcedora e o clube como os
bens comuns sob a ameaa constante e contraditria da apropriao/destruio.
Estdio e clube se confundem enquanto territrio, espao e lugar. Para um
torcedor identificado com um clube, assistir a um jogo de futebol pode ser uma prtica
de diverso qualquer, desde que no se trate do seu prprio clube. No caso da
representao da agremiao que lhe traz elementos de pertencimento, todo um novo
processo ritualstico toma parte naquelas quatro ou cinco horas que antecedem,
competem e sucedem aos jogos.
Portanto quando falamos estdio, entendemo-lo preenchido das cores e do
povo de determinado comunidade; e ao tratar do assalto neoliberal a esse espao
tambm precisamos compreender que a sua valorizao, em termos capitalistas, se d
atravs de uma rede de relaes sociais e construes subjetivas. O valor do Maracan,
da Fonte Nova ou do Mineiro no se contabiliza pelo concreto que sustenta aquela
imensa estrutura, mas toda uma historia de centenas de milhares de famlias e
trabalhadores que transformaram aquele espao em lugar: conferiram-lhe elementos de
topofilia, representatividade e pertencimento.
Um aspecto interessante desse tipo de relao dbia do comum cultural
mostrado por Harvey30 ao avaliar o processo gentrificao de bairros populares em
grandes cidades do mundo. Ao passo em que se ressaltam os valores culturais e o
ambiente produto direto dos seus moradores a atratividade causada por esses
bairros em visitantes e consumidores externos (turistas) gera um amplo processo de
valorizao imobiliria, que inevitavelmente acaba por forar a sada dos seus
habitantes. Esse um efeito direto de polticas estatais-corporativas de revitalizao
dessas regies, quando na verdade acabam por simbolizar desvitalizaes para seus
usurios originais.
29
30
Por isso que falar de justia no futebol vai muito, mas muito mesmo alm, de
denunciar a corrupo na CBF e FIFA, como fazem crer os poucos e valorosos
jornalistas esportivos crticos do pas. No caso do futebol as demandas partem dos
torcedores muito mais do que os prprios atletas (como infelizmente a experincia do
Bom Senso FC33 tambm leva a crer). So elementos do comum cultural que esto em
jogo. Se o direito ao estdio - critica ao alto preo dos ingressos, ao cerceamento da
festas e imposio de um modelo de estdio - acabou ganhando notoriedade com a
construo dessas arenas higienistas e elitizantes; o momento agora avanar a pauta
para a questo do direito ao clube, que ainda mais urgente.
Estamos falando da democratizao das instncias diretivas de instituies civis
centenrias que seguem extremamente restritas e autoritrias; afastando os torcedores
mais comuns de qualquer possibilidade de tomada de decises. Apesar de avanos
recentes em alguns clubes, ainda notvel a dificuldade de impulsionar essa bandeira.
Basta ver como o PROFUT, programa federal que refinancia as dvidas dos clubes com
a unio, exigiu que os interessados em aderi-lo fizessem uma srie de alteraes nos
seus estatutos, mas no tocou nem um instante sequer na temtica da democratizao
das estruturas deliberativas e diretivas dessas instituies.
Exigiu-se, por exemplo, a responsabilizao dos dirigentes quanto aos rombos
oramentrios dos clubes, de cima pra baixo; sem cogitar que a maior presso
possivelmente exercvel nesse sentido seria exatamente dos torcedores, desde que esses
pudessem ter acesso aos documentos e s discusses sobre o tema, com poder de voto.
Tais experincias aqui investigadas mostram que h possibilidade de avanos.
Os novos desafios estaro na capacidade de aglutinao de foras supraclubsticas e do
apoio de movimentos sociais que percebam, de uma vez por todas, o peso que o futebol,
e os elementos que o envolvem, tem na vida cotidiana de milhes de habitantes das
33
grandes cidades brasileiras, sejam eles adeptos, ou no, de algum clube ou nem ao
menos frequentador de estdios.
O resultado dessas experincias pode no ser vitorioso, mas deixaria um potente
legado poltico para o povo brasileiro. Ou, como alguns movimentos de torcedores
ingleses j passam a vislumbrar: caso todos esses esforos no vinguem, que recriemos
o futebol e os nossos clubes, que refaamos tudo o que j foi feito at aqui e cuidar para
que no volte a ser tomado pelas presas vorazes do sistema que a tudo e a todos
transforma em mercadoria.
Referncias bibliogrficas:
BOLAO, C. (org.). Comunicao e a crtica da economia poltica: perspectivas
tericas e epistemolgicas. / Organizador Csar Bolao; - So Cristvo:
Editoria UFS, 2008.
CRUZ, Antonio. A nova economia do futebol: uma anlise do processo de
modernizao de alguns estdios brasileiros / Antnio Holzmeister Oswaldo
Cruz. Rio de Janero: UFRJ/PPGAS, Museu Nacional, 2005.
CRITCHER, Charles. Football Since The War. In: CLARKE, J.; CRITCHER, C.;
JOHNSON, R. (orgs). Working Class Culture: Studies in history and theory.
Londres: Hutchinson, 1979, p.161-184.
GIULIANOTTI, R. Fanticos, seguidores, fans e flaneurs: uma taxonomia de
indentidades do torcedor no futebol. Revista Histria do Esporte, 5, 2012, 2546
FOUCAULT, Michel.. 2013. O Corpo Utpico; As Heterotopias. So Paulo, n-1
Edies.
HARDT, M; NEGRI, A. Commomwealth. Cambridge, Harvard University Press,
2009.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito cidade revoluo urbana. So
Paulo: Martins Fontes, 2014
MASCARENHAS, Gilmar. Um jogo decisivo, mas que no termina: a disputa pelo
sentido da cidade nos estdios de futebol. Revista Cidades, v. 10, n. 17, 2013,
pp. 142-170.
NUMERATO, Dino. Who Says No to Modern Football? Italian Supporters,
Reflexivity, and NeoLiberalism. Journal of Sport and Social Issues 2015, Vol.
39(2) 120138