Tribalismo Pós-Moderno Maffesoli PDF
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Resumo
O presente trabalho trata sobre as caractersticas assumidas por aquilo que se chama de
ps-moderno na atualidade. Michel Maffesoli, nesta ocasio, reafirma a idia de que o
tribalismo ser o valor dominante para os decnios vindouros. Neste sentido, desdobrase, elegantemente, sobre as duas razes prprias do tribalismo ps-moderno: por um lado,
acentuando os aspectos simultaneamente arcaicos e juvenis do tribalismo e, por outro,
sublinhando a sua dimenso comunitria e a saturao do conceito de indivduo e da
lgica da identidade.
Palavras-chave: ps-modernidade, tribalizao, identidade, identificaes.
Abstract
The article discusses the characteristics involved in what is presently called post-modern.
Michel Maffesoli reaffirms the idea that tribalism will be the dominating value in the
coming decades. Thus, he elegantly elaborates on the two roots contained in post-modern
tribalism: on the one hand, by stressing aspects of tribalism that are simultaneously
archaic and youthful and, on the other hand, by pointing out to its communal dimension
along with the saturation of the concept of individual and the logic of identity.
Key words: post-modernity, tribalization, identity, identifications.
Um arcasmo juvenil
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Artigo cedido pelo autor em 9/12/2006 para publicao no Brasil. Traduzido do original em francs Tribalisme postmoderne: de lidentit aux
identifications, publicado na revista Dialogue
politiques - revue plurielle de science politique, n
2, janeiro de 2003. Por se tratar de uma traduo,
foi respeitada a formatao original do artigo.
Professor da Universidade de Paris V, Sorbonne.
Diretor do Centre dtudes sur lActuel et le
Quotidien (CEAQ) da Sorbonne. Vice-presidente
do Instituto Internacional de Sociologia (IIS).
Professor do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos UNISINOS.
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mais elevados no ranking social. A mediocridade da midiacracia , hoje, algo evidente. Mas deixemos que as coisas aconteam por si mesmas. A Rocha Tarpia4 est, como sabido,
perto do Capitlio, e os baluartes do saber estabelecido, dela
sero, em breve, precipitados.
Encontrar as palavras, as menos falsas possveis, utilizadas para expressar a poca em que se vive exige um trabalho de verdadeira criao. Participar desse trabalho no , com
certeza, tarefa intil.
A metfora da tribo muito freqente. Ela permite
perceber de forma mais concreta a metamorfose do vnculo
social, atenta saturao da identidade e do individualismo, sua expresso... O termo repetidamente usado. Caiu
nas mos dos mercenrios. Certos intelectuais (s vezes so
os mesmos mercenrios) conseguem atribuir-lhe a importncia devida. Os jornalistas, com certeza, fazem uso imoderado do mesmo. Eles no podem fazer de outra forma. A
realidade do tribalismo est a, cegante, para o melhor e
para o pior. uma realidade incontornvel e no est limitada a uma rea geogrfica particular. 5 Ainda h muito que
se pensar sobre isto.
Sim, o tribalismo, em todos os domnios, ser o valor
dominante para os decnios vindouros. Da a necessidade de
retomar uma expresso de Durkheim no sentido de identificar
os caracteres essenciais. Entenda-se, para ficar o mais prximo de sua etimologia, o que efetivamente pode deixar uma
marca durvel.
H a, eu o reconheo, um verdadeiro paradoxo: indicar uma direo assegurada com palavras sem ter, nulamente, segurana de conceito. Talvez seja necessrio saber viver
com este paradoxo e aceit-lo. Mais do que lorotas redundantes, a encantao; mais do que cacoetar sempiternamente as palavras mestras do sculo XIX, necessrio saber contentar-se com metforas, analogias, imagens, tudo coisas vaporosas, que seriam os meios, os menos nocivos possveis, para
o social. Para evitar ser repetitivo (ainda que a redundncia
seja inerente ao mito, e as idias obsessivas o sejam para as
obras criadoras) eu sintetizaria as palavras novas atravs de
dois grandes eixos essenciais: por um lado, aquele que coloca
o acento nos aspectos ao mesmo tempo arcaicos e juvenis
do tribalismo e, por outro, aquele que sublinha a sua dimenso comunitria e a saturao do conceito do indivduo e da
lgica da identidade. Eis, parece-me, as duas razes do tribalismo ps-moderno. Eis, conseqentemente, o que um pensamento radical deve levar em conta.
Bergson o mostrou bem: existe sempre uma intuio por
trs de todo pensamento criador. Este s pode ser considerado
Na mitologia romana, Tarpia filha de Rmulo. A Rocha Tarpia a rocha de cima da qual eram lanados os traidores (N. do T.).
No certamente por nada que O tempo das tribos foi publicado em ingls, espanhol, portugus, italiano, alemo, japons. (Alm do original
francs [N. do T.]).
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Remeto a meus livros, M. Maffesoli, La violence totalitaire (1979), reeditado por Descle de Brouwer, cap. 1: Pouvoir-Puissance (traduzido para
o portugus e publicado pela Ed. Zahar em 1981) e Temps des tribus (1988), reeditado La Table Ronde, 2000.
7
Cf. F. Casalegno, Les cybersocialits, CEAQ-Paris 5, juin, 2000.
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Cf. Chaoying Sun et Gilbert Durand, Du Ct de la Montagne de LEst, in: A. Siganos et S. Vierne, Ellug (orgs.), Montagnes imaginaires, Grenoble,
2000, p. 69. Cf. tambm A. Pessin, La montagne des gants de la route, in: ibid., p. 255.
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nessas sociedades que o brbaro retorna. Nisto reside, tambm, o sentido do tribalismo.
Alis, por limitada que seja a compreenso disto em
profundidade, o retorno do brbaro no uma coisa m. Lembremos Le Play: As sociedades perfeitas ficam incessantemente
submissas a uma invaso de pequenos brbaros que trazem
sem cessar todos os maus instintos da natureza humana. Deixemos de lado a qualificao moral; ela no apresenta nenhum interesse. Pelo contrrio, o fenmeno recorrente e v,
regularmente, retornar as foras vivas ao seio mesmo do que
se tornou demasiado institucionalizado. Os pequenos brbaros de Le Play, as pequenas hordas de Charles Fourier lembram nossas bocas brabas dos bairros e outros recantos selvagens que fazem recordar, de forma pertinente, que um lugar onde o no morrer de fome no conseguiu salvar-nos do
fato de morrer de tdio no merece o nome de cidade.9
Face anemia existencial suscitada por um social demasiado racionalizado, as tribos urbanas acentuam a urgncia de uma socialidade emptica: partilha das emoes, partilha dos afetos. Quero lembrar que a relao comercial, fundamento de todo o construto social, no , simplesmente, troca
de bens; tambm comrcio de idias e comrcio amoroso. Dizendo em outras palavras, um pouco mais antropolgicas, existem momentos onde se observa um escorrego de importncia, com a passagem da Polis para a Thiase, de uma
ordem poltica para uma ordem fusional. a passagem que
descreve o que chamei de tempo das tribos, marcando a saturao da lgica da identidade. Est-se longe do universalismo moderno, aquele das Luzes, aquele do Ocidente triunfante. Universalismo que no era, de fato, mais que um etnocentrismo particular generalizado, onde os valores de um pequeno recanto do mundo foram extrapolados num modelo vlido
para todos. O tribalismo lembra, empiricamente, a importncia do sentimento de pertena a um lugar, a um grupo, como
fundamento essencial de toda a vida social.
O ideal comunitrio
No fundo essa a revanche do dionisaco, a ambincia ertica da vida social, a importncia acordada para a
proxemia cotidiana, o que est em jogo no mito do puer
aeternus. Ao imperativo categrico kantiano, imperativo
moral, ativo e racional, sucede, para retomar uma expresso
de Ortega y Gasset, um imperativo atmosfrico, que se pode
compreender como uma ambincia esttica onde s importa
a dimenso transindividual, coletiva, talvez csmica.
a saturao do sujeito, a subjetividade de massa, o
que chamei de narcisismo de grupo e outras formas de ur-
Cf. P. Tacussel, Charles Fourier, le jeu des passions, Paris, Descle de Brouwer, 2000, e M. Maffesoli, Lombre de Dionysos: Contribution une
sociologie de lorgie (1982), Le Livre de Poche, 1991.
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Volens nolens = querendo / no querendo (N. do T.).
11
Cf. P. Le Quau, La tentation bouddhiste, Paris, Descle de Brouwer, 1998 e M. Maffesoli, Linstant eternel, le retour du magique dans les socits
postmodernes. Paris, Denol, 2000.
Cincias Sociais Unisinos
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melhor acompanhar os seus diversos sobressaltos. Renascimento das comunidades espirituais (G. Tarde)... Talvez
mesmo se possa falar, com G. Bachelard, de narcisismo
csmico. Em todo o caso, de algo que ultrapassa, e de muito, os indivduos que fazem parte dele. Algo como repousando no contgio e na inflao do sentimento. Algo que,
a partir de um enraizamento especfico, se v integrado
numa ligao csmica. Ao contrrio do universalismo abstrato, prprio das filosofias modernas, o tribalismo coloca
em jogo um processo complexo feito de participao mgica, de interaes mltiplas, em harmonia com as pessoas
e as coisas. esta efervescncia assim que torna a poca
to envolvente!
Com efeito, assim como aconselha Leibniz, e dentro do
esprito que lhe prprio, trata-se de no desprezar quase
nada. Em todo caso, no so essas coisas nascentes que, para
alm dos preconceitos, dos pensamentos paranicos e outros
simplismos morais, constituem as nossas sociedades. sempre
dentro desse mesmo esprito no julgador e no normativo
que preciso saber retornar s prprias realidades, no que
so, de fato. Sbio adgio fenomenolgico (zu den Sachen
selbst) que permite captar a lgica interna de um fenmeno.
A sua essncia ntima. bem disto que se trata quando se fala
de tribos ps-modernas. Elas esto a, como j sinalizei vrias
vezes, para o melhor e para o pior.
A sua complexidade, o seu aspecto complicado necessita de uma complicao na abordagem. Da a necessidade de
pensar, de forma orgnica, as sucessivas sedimentaes que
constituem a socialidade, a saber, o sentimento de pertena,
o colocar-se em rede horizontal, a simbiose de afeto, e os
processos de contaminao que tudo isso faz suscitar. Eis a
sua ordem ou a sua razo interna.
Mas, para capt-las, ou, pelo menos, para compreend-las, no serve para nada o que, maliciosamente, Santa Teresa de vila chamava todo o bosque rene os discursos.
Podemos dizer, tambm, o modo de se exprimir das florestas
dos sistemas tericos, de todas as tendncias e varincias reunidas. Por isso importante a tarefa coletiva, se o , de encontrar as palavras menos falsas possveis.
Quando acontece mudana de paradigma preciso saber, paradoxalmente, cavar fundo e, ao mesmo tempo, manter-se ligado superfcie das coisas. Est a o pensamento
radical: marcar as razes para melhor apreciar o crescimento
que elas permitem. Assim como o diz mais belamente Rainer
Maria Rilke: Com mais arte torceria os galhos dos salgueiros
aquele que dos salgueiros tivesse conhecido as razes (Sonnets Orphe, I,6)
So as coisas mesmas que nos ensinam o que elas so.
E, muitas vezes, pens-las como convm exige que se saiba
remar contra a corrente dos pensamentos conformes. Isto no
12
Remeto s referncias e s anlises em M. Maffesoli, La transfiguration du politique, la tribalisation du monde, Paris, Grasset, 1992 e tambm em
Au creux des apparences (1990), Le Livre de Poche, 1995.
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se faz sem dificuldade. Trocar a tranqila certeza das teorias
estabelecidas pelo agito do mar alto, sempre difcil. Do mesmo jeito cavar para buscar as razes, exige um esforo. Tratase, no entanto, do esforo mental que, sem julgamento a priori, sem esprito preconcebido, pode permitir ver dentro do surpreendente mimetismo tribal, do deslizamento da identidade
estvel para as identificaes ocasies (lbeis), uma outra ma-
neira de viver a relao com a alteridade. Voltemos a uma banalidade de base: a vida, apesar de tudo, perdura. E esta vitalidade, volens nolens, assumida pelas tribos contemporneas.
este o desafio que nos lana a socialidade ps-moderna.
Submetido em 09/12/2006
Aceito em: 20/02/2007
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