O Que É Utopia - Teixeira Coelho
O Que É Utopia - Teixeira Coelho
O Que É Utopia - Teixeira Coelho
CULTURA . . . primeiros
passos
Primeiros Passos uma coleo dirigida, principalmente, aos jovens que sentem a importncia da sua
participao poltica no processo de construo de nosso
Pas.
Primeiros passos na vida poltica - na universidade,
no colgio. no banco, na fbrica , no comrcio, em qual quer atividade - que representem um elo de ligao
entre o indivduo e a sociedade na qual vive e cresce e
pela qual deve lutar a fim de torn-Ia justa. livre e democrtica.
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CULTURA primeiros
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Primeiros Passos uma coleo dirigida , principalmente, aos jovens que sentem a importncia da sua
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Primeiros passos na vida poltica - na universidade ,
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entre o indivduo e a sociedade na qual vive e cresce e
pela qual deve lu tar a fim de tom-la just a. livre e democrtica .
Jaim e Lem er
O QUE t COMUNICAO VISUAL - Cleudius Ceccon O QUE tCONSOENTIZAAo - Miguel Darcy de Oliveira
O QUE t CONTRACULTURA - Luis Carlos Maciel
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editora brasiliense s.a,
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so paulo - brasil
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Utopia, sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Em parte alguma, em toda parte . . . . . . . . .
Da Ditadura no Pararso Eutopia . . . . . . ..
Utop ia ou Cincia. . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
A Prt ica no Novo Mundo. . . . . . . . . . . . . .
" Sejamos Realistas: exijamos o irnposs fvel"
Bibliografia . , . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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UTOPIA, SEMPRE
Para BRUNA,
que viu nascer este texto
(o inverso tambm verdadeiro)
e para quem ele fo i
utopicamente escrito.
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il
sonho, sem o qu al o sonh o uma droga narcotizante como outr a qu alquer e a vida, uma seqncia de
banalidades inspidas. I ela que , at hoje pelo menos , sempre esteve presente nas sociedades humanas, apresentando-se como o elemento de impulso
das invenes, das descobertas, mas, tambm, das
revolues. I ela que aponta para a pequena brecha
por onde.o sucesso pode surgir, ela que mantm
em p a crena nu ma out ra vida. Explodindo os
quadros minimizadores da rotina, dos hbitos circulares, ela que, militando pelo otimismo, levanta
a nica hiptese capaz de nos manter vivos: mudar
de vida.
; Contrariamente quilo que insistem em divulgar
os defensores do realismo respons vel .- cuja nica
realizao, alm da demagogia, a defesa da estagnao - a imaginao utpica no deli rante, nem
fantstica. Ela parte, sim, de fatores subjetivos pro duzidos, num primeiro mom ento, apenas no rnbito do indiv duo. Mas, a seguir, ela se nutre dos fatores objetivos produzidos pela te ndncia social
da poca, guia-se pelas possib ilidades objetivas e
reais do instante, que funcion am co mo elementos
mediadores no processo de passagem para o diferente a ex istir amanh. No fantasia inconseqente (pelo contrrio: deve ter seq nc ia), mas
tampouco se deixa nortear e corrigir pelo dia-a-dia,
pelo terra-a -terra : seu lastro o da realidade da prpria antecipao visada, a nica realidade plaus vel
que existe. E que se torna responsvel pe lo fato de
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(
essa imaginao no ser um simples sonho abst rat amente utpico e, sim, uma imaginao utp ica
concreta.
Que tambm nada tem a ver com as profecias,
as adivinhaes, a futurologia. Todas estas jogam,
a rigor, com aquilo que existe, co m os dados concretos sem no entanto, transp -los para uma situa o diverS;;o Mais importante: elas descrevem con textos que devero se impor ao homem, faa este
o que fizer (marcadas qu e esto pela vontade quase
sempre inconfessa de submeter-se ao destino),
enquan to a imaginao utpica trabalha com os
dados reais e, tamb m, com a vontade do ho mem,
que permanece no controle do projeto. Mesmo por'q ue a imaginao utpica um pro-jeto, algo que o
homem lana sua frente para , a seguir, partir em
busca de sua co nsecuo. A profecia a visualizao do no sabido, do desconhecido; a imaginao ut pica a projeo do sabido, do conscient e. A imaginao utpica lut a pela materializao
de um desejo que estivera antes , t alvez e no rnxlmo, ao nrvet do inconsciente; a profecia extravasa
os limites do desejado pelo homem para ir remexer
naquela zona de passividades e confo rmismo s que ,
o destino, isto , o sabido no pelo ho mem mas po r
um hipottico super-homem, freqentemente um
deus. A profecia, a adivinhao so antecipativas:
as coisas acontecero da manei ra prevista. A imaginao utpica propositiva : as coisas, que devem
acontecer daquela maneira , podero acon tecer se o
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homem qu iser; o homem necessita querer, mas
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I. '
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EM PARTE ALGUMA,
EM TODA PARTE
A imaginao utpica , assim, inerente ao homem; sua presena nas sociedades histricas, uma
constante. No se trata, portanto, de um componente da estrutura psquica do homem cuja existncia e aparecimento tenham sido provocados
por circunstncias desta ou daquela poca, por caractersticas insatisfatrias das sociedades deste
momento ou de uma ou outra ocasio do passado'.
No: esteve sempre presente, pelo menos, como se
disse, sob a forma de um excedente utpico, uma
vez que o realizado nunca est altura do projeto humano; e, se por descuido estiver, de imediato surge
um complemento ou um suplemento por realizar.
Dessa presena perene da vontade utpica so
indcios tanto as sociedades primitivas, ditas a-histricas, quanto o pensamento religioso das mais an-
tigas sociedades histricas conhecidas. Entre as sociedades chamadas primitivas encontra-se a imaginao utpica sob a forma de lendas e crenas que
apontam para um lugar melhor (situado no outro
ou, o que importante, neste mundo) onde ser
possvel encontrar a felicidade ou, pelo menos,
uma vida melhor. E entre as sociedades histricas,
como as de que se originou esta civilizao, as formas do pensamento religioso encarregam-se de
servir como veculos primeiros para a imaqinao
utpica. A idia de um paraso a alcanar, depois,
mais tarde, ao fim de alguma coisa - em todo caso,
no futuro - ou a intuio de um paraso perdido,
esquecido l para trs e do qual o homem teria
sado ou sido expulso, so as formas mais comuns
de manifestao reiigiosa da vontade utpica .
E constitui um erro relativamente comum desprezar o pensamento religioso como fonte da imaginao utpica, ao acus-lo de misticismo e de
provocador de iluses, de alienao. Muitas das
propostas vinculadas ao pensamento religioso-melhor seria dizer: ao pensamento do sagrado' dirigem-se para objetivos to concretos e realizveis
quanto os defendidos pelas grandes utopias nascidas posteriormente entre as sociedades ditas civilizadas, como a Grcia da poca urea e a Europa
da Renascena ou da Revoluo Industrial. As
A tas dos Apstolos descrevem mesmo uma situao que seria tranqilamente encampada por todas
as utopias, tanto as mais tmidas quanto 'as mais
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TROMAS
f\~O RE
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dessa pa lavra j most ra como desde sempre os advers rios da ple na realizao d o home m, os pode res co nst it u rdos (por natureza con servadores e,
mesmo, reacion rios), procuraram reprimir e esma gar a ima ginao utpica. Se Thomas More escolheu a fabricao dessa palavra foi porqu e a Inglaterra de seu tempo era um lugar onde no apenas
inex isti a a liberda de de expresso como tamb m a de pe nsame nto - e as idias e co me nt rios
de More eram to " sub versivos" , mesmo sendo
ele um ho me m do poder, q ue, para evitar maiores
dissa bores, ele acabo u sit ua ndo sua imaginao de
um a vid a segund o ele melh or num lugar q ue no
exis tia , no nad a: em Utopia . Assim, no mexeria
co m os interesses de nenhum grupo no poder, nem
os dos ingleses, ne m de quaisquer outros. (De qual quer modo, More acabou decapitado , em bora no
por isso: mesmo no se manifestando contra ce rtos at os de seu rei, ele nada falou a favor desse
mesmo rei.);
Portanto, desde sempre e em toda par t e. Mas, o
que quer a imag inao utpica? A ma n ifestao
mais popular da imaginao utpica tem sido a
ut o pia pol tica, Ist o : o q ue se pre tende, an tes de
mais nada, uma ou tra vida ba seada num novo arranjo po l rtico da soc iedade, firmad a em nov as estru t uras sociais. E, neste campo , aqui lo a q ue se
pode aspirar prati ca mente tudo, uma vez q ue
nada o u prat icamente nada foi feito. Po r exemplo,
e po r ma is em contr rio que se ma nifestem os hi-
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pcritas, asp irar a q ue se acabe com o t rabalho pelo menos co m esse t rabalho que ' embrutece,
co nsum indo o ind ivrdu o e colocando-o numa situao de sujeio ta l que melho r se ria a pris o.
Ou a mo rte. Ou en t o, pe lo menos, preten de r que
t odos trabal he m pa ra que todos possam trabalhar
menos, ao invs de se matarem un s enquanto out ros ficam assist indo de camarote. A imagi nao
ut pica que r ainda - e penoso const at ar q ue a
imaginao tem de intervir aqui tambm - q ue
tod os sejam t ratados do mesmo modo, homens,
mul heres e crianas. Que ningum passe necessida des. Que ningum seja considerado superior aos
o ut ros por ter mais co isas do que eles . Que os
mais competentes e honestos dirij am os negc ios
pb licos. Que ningum seja o brigado a fa zer o que
no qu er, o que no pode e no deve. Ou, ento,
q ue desa pa rea o d inhei ro . E a propriedade privada . E que exista a liberdade de expresso, e a religiosa. E que a educao seja acesstvel a todos. A
est a llsta cada um poderia acrescentar ainda uma
srie -de exignc ias bsicas: todas caberiam . E mais
algumas e outras ainda no imaginadas.
O que inte ressa destacar a respeito dessa lista ,
porm - nu m o ut ro toque amargo em relao s
co isas da uto pia - q ue a ma ior ia das exigncias
dela co nstantes nada tem de novo. Pelo con t rrio:
so t o antigas quan to est a mes ma civiliz ao qu e
gosta de se r ch a mada de ocide ntal e, even t ua lment e, de crist , em bora se pudesse dizer q ue ela no
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noso. I: que, ao contrrio da Atenas ideal,_a At lnt ida era a cidade da desmedida, das ambies e da
injustia, originria dos caprichos ~e um deus.agi:
tado Poseidon. Uma cidade rica, sim, como ainda
hoje' se acredita, onde tudo existiria em profuso,
mas colocada sob o signo do irracional: os impostos
so pesados e ind iscutrveis, os cas~ig?s e pena s ~ro
liferam' sem a preexist ncia de leis Justas e aceitas
pelo povo, e os govern antes s~o: antes de mais
nada uma espcie de casta divina, degenerada.
A 'Aten as perfe ita, inversamente, saberia cul tivar
o esprito racion al e democrtic~ .- embora se ! ratasse de uma democracia peculiar. E nela teriam
vez uma srie de medidas que ainda hoje habitam
a imaginao utpica. Os homens no se agrupa riam segundo seus n rvels de renda, segundo sua
.fortuna mas conforme suas ocupaes - embora
estivessem previstas trs classes sociais : os governantes os auxiliares e a terceira classe, form ada
pelo r~sto da populao. Classes que .a. rigor_reduzem-se a duas , pois governantes e aux iliares sao ext ra fdos do grupo dos militares, sendo a segund a
classe compost a pelo povo em geral. Caberia primeira classe defender a com un idade e admin istr-Ia ocupando os postos da burocracia, do exrcito
e da polici a. Aos outros caberia satisfazer as nec~s
sidades materiais da sociedade que , embora nao
fosse comunista no sentido de terem todos a
mesma renda, no aceitaria em seu meio pessoas
demasiadamente ricas ou desmesuradamente po-
o qu e Utopia
bres: os guard ies, membros da primeira classe impediriam que isso acontecesse.
'
Ainda de um grupo redu zido da pri meira classe
sair ia aquele que deveria exercer o poder em nome
de to dos, con creti zando uma aspirao bsica da
imaginao utpica : esse seria o filsofo. O filsofo
no poder, a servio do povo enqu anto estivesse a
servio da Sabedoria. O maior talento da comuni dade e que passaria a servi-Ia, dirigindo- a, no por
vontade prpria, nem por amb io, mas por deve r '
de cidado. Um problema, po rm : esse supergovernante no seria livremente eleito, mas indicado. Na .
Repblica no haveria eleies, pois Plato entendia ser esse um procedimento incapa z de apontar o
melhor, uma vez que as pessoas acaba riam votando
com base em suas prefernci as pessoais (motivadas
eventu almente por simpatias ou subordinao) e
em seus desconhecimentos. Um grupo fechado,
auto-intitulado capaz, quem procederia a essa esco lha - exemplo que os regimes tot alitrios, at ravs da histria, resolveram seguir alegremente. _ .
Uma outra ex igncia da imaginao voltada para
a utopia poltica, e q ue to ant iga quanto o homem em sociedade, encontrava seu lugar na Nova
Aten as: a abolio da propriedade privada. Pelo
menos os membros das du as primeiras classes no
deveriam ter bens pessoais porque estes , conforme
entend ia Plato, eram a causa bsica dos males
sociais, da agressividade e da competio entre os
homens. Nenhum governante ou administrador po-
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Alm da utopi a pol tica figurada no modelo platni co, h um outro esquem a a ser co nsiderado
pela imaginao utpi ca qu e no quer perder tem po inventando o que j foi inventado e que no
pretende repetir erros evitveis. Trata-se exa tamente daquele modelo responsvel pela divulgao da
palavra utopia , descrito no livro de mesmo nome
de autoria de Thomas More. Como ele mesmo observa, sua fonte de inspirao fo i o projeto platruco, que no enta nto pretendia ampl iar e superar _
e qu e ele, de qu alquer modo , conseguiu divulgar
amp lamente.
O livro vem na fo rma de um relato feito a More
por u~ vi.ajante, Raphael Hythlodaeus - que , n~
tr aduao Inglesa de Paul Turner apa rece muito
oportunamente como Rafael Nonsenso, nome adequad o quando se sabe que Rafael apresent ado
como portugus e qu ando se lembra que a obra foi
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Antecipando-se ainda ao programa que Mao Ts-Tung iria tentar aplicar na China, More defend ia o
pr incipio da alternnc ia de fun es para as pessoas:
este, aliado ao do trabalho obrigatri o na agricul-
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antes do casamento), bem co mo reprimido o ad ultrio. Divrcio , sim - mas em condies especiais.
Sem um sistema de leis rgido e exaustivo (a regra geral era cada caso receber uma sentena especffica , pr incpio bsico do sistema ingls real),
Utopia reconhecia a liberdade religiosa de culto,
aspirao particularmente cara a um Thomas More
que acabaria sendo morto por uma questo pol (tico-religiosa.
* * *
Estes dois exerCICIOS da imaginao utpica
constituem, de certo modo, aquilo que se poderia
chamar de arqutipo da utopia pol ttlca, do qual derivam uma srie de outros. Estes apresentaro variaes, diferenas, penetraro em campos no explo rados por aqueles e iro mais longe, eventualmente;
mas a estrutura bsica a que vem figurad a na Repblica e na ilha de Utopia .
Sob alguns aspectos, ambos os programas so regressivos, defendem o retorno a uma sit uao ideal
ou idealizada que teria ocorrido nos primrdios da
humanidade e que o hom em teria perdido. Esta
tendncia para o passado , tambm ela, um trao
prprio da imaginao utpica, por mais que alguns
pretendam reneg-lo por reacionrio, e pode ser
tomado como uma vontade de apreender e integrar ,
esse passado vida do homem e do grupo a fim de
evitar que percam suas amarras e se alienem .
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Mas ambos so tambm aquilo sem o que a imaginao ut p ica declina : emblemas do futu ro, q ue
arranca m so lues do passado para proje t -Ias, jog-Ias para a fre nte, reformulad as. Sob este aspecto, so exemplos daque le utpico-concreto, distin to do sonho abstrat amente utpico po rque leva em
considerao as possibilidades histricas de realizao. De fat o, a sociedade con cretizo u ou continua mostrando um a tend ncia para conc ret izar vrias das proposies desses e de out ros progr amas.
Estes servem co mo exer crc ios de sonho, mas so
igualmente for as cont rad itrias da realidade,
muito concret as. Que o d iga a vont ade reacio nria,
sem pre vigilante no sentido de imped ir qu e aquelas
se realizem.
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DA DITADURA NO PARAlsO
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Teixei ra Coelho
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sociedade , como Plato ) dedicam-se descrio de
suas cidades maravilhosas. O prprio Campanella
afir ma que em seu cond ado as pessoas no sof reriam de gta, de reumat ismo, de dores citicas, de
clicas - e nem de flatul nc ia. Cabet, falando de
sua Icaria, prev que numa fbrica trabalhariam
2 500 moas, nem uma a mais ou a' menos; costureiras todas elas, t rabalhariam umas sentadas ou tras em p, embora fossem quase todas "encantadoras " . . . E das mos dessas lindas cr iadoras surgiriam, toda manh , milhares de elegantes perucas. .. que no se v muito bem que m poderia usar
numa sociedade que, afinal, perfeita, e onde por
conseguinte ningum precisa most rar o que no .
Crticos, ou cticos como Cioran , no deixam por
menos : elucubraes como essas so ind cios garantidos de mera deb ilidade mental ou, pelo
menos , do mau gosto de seus autores.
Mas ent re essas acusaes menores h out ras
mais srias. ~ relativamente fcil senti r que os
habitantes dessas sociedades, ou de grande parte
de las, apresentam-se na verdade com o meros fantoches, como personagens sem vida, aut matos.
Sente-se que no passam de meros s mbolos - e
embora se possa dizer qu e as utopias na verdade
tm essa funo simblic a, fica a suspeita de que,
se de ixassem o mundo dos smbolos para tornarem-se realidade, seus habitantes cont inuariam a ser
ent idades vazias e imobilizadas, como signos num
quadro-negro. A harmonia universal, baseada na
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felicidade impessoal pregada pelas utopias, acaba
surgindo como um magma capaz de ence rrar e suo
focar seus eventuais habitantes reais. O mundo ut pico seria plano, liso, chato, sem acidentes a atrair
a aten o de seus morad ores - ou de seus pr isioneiros, como preferem alguns. Inimigos das utopias
cost umam dizer que elas so insuportveis po r
serem anti rnanlque fstas, isto : no haveria nelas
aquele dualismo que costuma t raar dist ines
absolut as entre o bem e o mal, o justo e o injusto,
o moral e o imora l, e assim por diante . Na verdade ,
se as utopias so chatas , insuportveis, porque
so, exatamente, rnanique fst as ao ext remo . Sem
dvida nelas no existe o mal, o injusto, o imoral
(Thomas More prev pesadas penas para os acusados de adultrio, seduo e outras coisas que esta ramos inclinados a chamar, simp lesmente, de prazeres; mas ele mesmo reconhece que essas penas
so desnecessrias porque aqueles "crimes" raramente ou nunca acontecem, pois os utopianos se
inclinariam "n aturalmente" para o "bem"). Mas a
atit ude maniquesta est embutida no programa
que as cria. Na verdade , sem o rnaniquefsrno muitas das utopi as no precisariam vir tona.
As utopias so chatas porque permitem apenas
idlios geomtricos, como diz Cioran, e xt ases
regulamentados. Elas aspiram homogen eidade,
repetio do mdulo, do padro, e pregam a orto doxia, isto , literalmente, o atendi mento ret o do
dispos to na letr a do programa que as criou . Como,
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tado ; condenada e el iminada a prpria Histria),
seus processos de tortura psicolgica capazes de
faze r o melhor dos seres humanos renegar aquilo
que lhe mais vital. Um mundo cujo totalitarismo
se inf ilt ra na prpria linguagem, regido que por
trs palavras de ordem: "A guerra a paz", "A liberdade a escravido", "A ignorncia a fora".
Se assim, se ex istem esses prs e contras, o
conceito de utopia revela -se demasiado estreito
para abranger todos esses diferentes programas.
Mesmo que tenha traos totalitrios, a Utopia de
More no rigorosamente o mundo novo de
Huxley, assim como a Inglaterra sonhada pelo arquiteto William Morris no o incmodo "mundo
diverso mas idntico" de Joseph Hall (Mundus alter
e~ unumi. Impem-se dois outros conceitos, espcies do gnero utopia: a eutopie, ou lugar bom, e a
distopia, o mau lugar, o lugar da distoro. Utopia,
Icaria, Nova Atlntida, apesar de tudo, tenderiam a
ser primeira vista , eutopias; e o "mundo novo" de
Huxley, assim como o mundo nazista, distopias embora esta classificao no possa ser aplicada de
modo simplista, uma vez que muitas das eutopias
no deixam de apresentar seu lado distpico.
Esta classificao permite aos opositores da utopia deixar de lado a inadequada expresso "contra-utopia" (pois o contrrio da utopia a topie, o
lugar concreto e existente aqu i e agora), quando
pretendem na verdade se referi r ao bom lugar,
eutopia. Mas a d istino entre os nomes no resol-
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A imagem de revolucionrio sempre vista nele acabou sendo substitu (da pela do conservador e do
reacionrio. Esse processo de reviso foi talvez
longe dema is. Karl Popper no apenas apresent~
Plato como um antiigualitrio, mas tambm como
um pensador que na verdade teria contrariado as
aspiraes e a prpria prtica pol rtlca dos gregos
da poca. No entanto, no se v muito bem onde e
quando os gregos puseram em prtica os trs princ fpios que, segundo Popper, Plato teria contrariado : humanismo, igualitarismo e individualismo. A
este ltimo Plato pode aparentemente ter oposto
o coletivismo; mas dizer que a sociedade grega punha em prtica os outros dois forar um pouco a
mo . Nenhuma das cidades-estado gregas foi exemplo de repblica ou democracia perfeita, muito
menos de utopia .
Em todo caso, anlises como a de Popper serviram para indicar a alguns os motivos pelos quais
muitas utopias, seno todas, apresentavam aqueles
traos distpicos, ditatoriais: que elas seriam resultado de uma vontade subjetiva, de um desejo
individual incapaz de levar em con ta as reais necessidades e desejos das pessoas s quais os projetos
utpicos se destinariam. Isso provocaria inevitavelmente aquelas distores, por mais bem intencionado que fosse o autor.
Mas essa no toda a causa das tendncias distpicas das utopias. Antes de mais nada deve-se con siderar que , 'embora uma ou outra utopia possa ser
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De qu alquer modo, mesmo antes do paral elo
feito com os projetos fascistas e que perm itiu apo ntar para sua inclinao d istpica, j no sculo XIX
havia quem se levantasse para falar contra os aspectos enganosos das utopias. Esses abriam, ento, u m
outro quadro de en tendimento da utopia, baseado
no conceito e no projeto de revoluo.
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UTOPIA OU CIf:NCIA
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HOBBES
LEVIATHAN
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O quarto tipo representado 'pelo programa socialista-comunista, que radicaliza a utopia liberal ao
mesmo tempo em que supera os traos anrquicos
dos quiliasmas. Esta se situa no futuro - mas, agora, trata-se de um futuro historicamente determina.
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do, com um ponto de referncia: a queda do capitalismo. Ancorada na realidade histrica e social, a
utopia socialista -comunista no evita - pelo contrrio - a revoluo.
E nesse quadro - particularmente centrado na
passagem da mentalidade utopista liberal dos sculos XVI e XVII para a utopista revolucionria instaurada no sculo XVIII - que se localizaro as
utopias do sculo XIX, fronteirias da revoluo .
Uma delas foi a do ingls Robert Owen (1771-1858), figurada basicamente em seu Livro do
Novo Mundo Moral, publicado em 1836. Owen
descreve os habitantes de sua cidade perfeita usando coisas como as roupas esvoaantes dos antigos
romanos. Mas no se limitou a devaneios como
esse. Mais que uma utopia, props uma topia, uma
realizao concreta num lugar real: uma fbrica de
sua propriedade foi po r ele transformada em associao comunitria, em 1813, uma espcie de precursora das cooperativas. E ao lado dessa comun idade de trabalho, Owen projetou uma reforma urban Istica, apresentando uma concepo de cidade
provida de parques e pomares, com casas dotadas
de aquecimento central e sem cozinha (as refeies deveriam ser tomadas em comum). com 4 aposentos para uma fam lia de 4 pessoas. Como em
outras utopias, a educao - de crianas e adultos - assumia para Owen um papel de destaque
na nova sociedade: a 1 de janeiro de1816 era inaugurada uma escola em sua New Lanark. Preocupan
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do-se com problemas concretos de sua poca ,
muito mais que a maioria de seus colegas utopistas, Owen debruou-se sobre as condi es de trabalho em vigor, tornando-se um dos precursores no
estudo do d ireito do trabalho, corpo legal cuja for malizao s se daria no sculo XX. Era sua proposta, por exemplo, que as crianas menores de 10
anos fossem proibidas de trabalhar e que o trabalho
. do s que tivessem entre 10 e 18 anos de idade fosse
limitado a uma jornada de dez horas e meia por
d ia - o que implicava numa reduo de at 6
horas, segundo os padres em. vigor. Ainda ao contrrio de outros utopistas, como seu conterrneo
Morris, acred itava que a era da mquina poderia vir
a satisfazer todas as necessidades do homem, se alteradas as estruturas da sociedade. Trabalhou pela
idia do sindic alismo, tendo fundado em 1833 uma
confederao geral das profisses, precursora das
atuais "trade unions" inglesas. Defendendo um sistema corporativo cujas caracterfsticas lhe valeram
ser chamado, j na poca, de sistema socialista, no
era de espantar que, diante da organizao soc ial
daquele momento, todas as suas promoes e projetos tenham fracassado num prazo curto.
Um outro utopista caracterfstico da mentalidade
do sculo XIX foi o francs Claude Henri de
Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825). No
escreveu propriamente uma utopia, no sentido clssico, embora suas obras (Cartas de um Habitante de
Genebra a seus Contemporneos, 1802; Reorgani-
o que Utopia
zao da Sociedade Europia, com A. Thiery,
1814; A Indstria, 1817; O Sistema Industrial,
1820-1823' Novo Cristianismo, 1825) contivessem
indicaes gerais que s poderiam ser consideradas
utpicas, para a poca. Foi, como dele se costuma
dizer, um apstolo do capitalismo e um profeta d a
tecnocracia - mas tambm um "protetor" dos operrios (com todo o paternalismo em que isso implica ) e um anunciador, paradoxalmente, do socialismo. Como Owen, apostava na indstria para a solu o dos problemas econmico-sociais - indstria
que teria na cincia uma auxiliar privilegiada. Mas
. para que a "frmula" funcionasse, impunha-se,
para ele, um novo sistema social e uma nova moral.
A propriedade privada no deveria ser tolerada, a
menos quando produtiva socialmente, e a sociedade deveria ser formada por uma classe nica : a
classe industrial, a n ica "ti l", O Estado existiria :
no para governar, apenas para administrar; sua
funo deveria ser , por exemplo, garantir o dire ito
ao trabalho, assistncia social e educao. (V-se aqui, alis, como Saint-Simon no ultrapassa de
fato a esfera da mentalidade conservadora, no mximo liberal : um revolucionrio como Paul Laforgue, por exemplo, defendendo seu "direito preguia", no pediria a manuteno do trabalho e o
direito ao trabalho mas, sim, a abolio do trabalho
na forma como exlstla.) O povo, no entanto, ficaria de fora dos poderes de deciso: os dirigentes
seriam aqueles hoje chamados de chefe de empresa
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o que Utopia
por 1600 pessoas, habi tando em comum num ediffcio em forma de est rela estabelecida ao redor de
um centro) era garantir a seus adere ntes um m inimo vital de subsistncia , a ser obtido no atravs
de um salrio, mas pela pa rtici pao de todos na
prod uo da un idade. Produo organ izada basicamente sobre a explorao da ter ra e nr,o da ind st ria; ao contrrio de Owen e Saint-Simon , Fourier
via na agricultu ra o cami nho necessrio para a nova
soc iedade -- e sua ind icao ser obse rvada pelos
autores pro priame nte soc ialist as que se seguiram .
Fou rier tambm descreve com deta lhes sua cidade perfeita, a ser for mada em seus 7/8 por agricul
tores e manufaturei ros e, no 1/8 resta nte, por cientistas, artistas e, coerente com sua defesa da prop riedade privada, por capitalist as, respon sveis pelo
financiamento das ati vidades econmicas da co munidade em tro ca de juros com pensado res, embo ra
limitad os. Tambm seus projet os permaneceram
ao n (vel da ut op ia, fracassando enquanto experincias t picas.
J as comunidades propostas po r Pierre Proudhon
(1809-1865 ) so eventualmente consideradas como
exemplos de socialismo tpico - embora se d iga,
de um lado, que sempre permaneceram como ut opias e, de outro, q ue o socialismo prop riame nt e dito
s tem existncia a part ir de Marx e Engels e sua
teoria da luta de classes. E que, enqua nto Fourier
acreditava ser "natural" a diviso da sociedade
entre ricos e pobres, Proudhon propu nha que essa
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I,
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o que Utopia
histrico. Tratava-se, isto , de encerrar o cap itulo
d o soc ialismo ut pico - e, por ex tenso , da utopia
- e co mea r o do socia lismo cientifico. Fascin ado s
por aquilo que o scu lo XIX acreditava ser a essn cia e o trao po sit ivo da cincia, isto , a Objetividade, Marx e Engels viam na utopia e na cincia
dois conceitos opostos e irreconciliveis. Mas seria
suficiente apresentar a opos io como sendo entre
utopia e revoluo (co mo fizera m no Manifesto)
u ma vez qu e era disso qu e se tratava; sua preocu pao era, basicamente, evitar que as propostas utpicas impe d issem a revoluo.
De modo particu lar, Marx tem ia ainda mais
si.~plesmente, que as previses " fantsticas":como
d izia, de u~ programa de ao para uma revo luo
no futuro fizessem com que as pessoas t ivessem sua
ateno desviad a das lutas necessrias a serem travadas no momento presente. Mesmo resgatando
dos projetos utpicos aquilo qu e tinham de conveniente pa ra seu prp rio programa, Mar x era claro
t amb m qu anto inviabilid ade de se estabelecer
uma socieda de perfeita por decreto, quer esse de cret o partisse de um inventor, intelectual paternalista, quer do prprio povo. Para Marx essa fase s
po~eria ser alcanada at ravs de uma lo~ga luta que
te ~la .suas eta pas e .caracterlsticas indicadas pelo
propn o processo SOCial, de acordo com o momento
hist rico; esse processo que acaba ria por t ransformar c ircunstncias e homens. Assim, de antemo nada se poderia prever.
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terior no deixaria de manifestar contra Icaria,
acabariam provocando a desintegrao daquel a sociedade comunista utpica. E, em terceiro lugar,
Marx comentava que, para os comunistas qu e reconheciam o princpio da liberdade pessoal (entre os
quais os prp rios icarianos]. uma sociedade ond e se
praticasse a comunidade de bens, sem passar por
uma etapa democrtica de transio - em que a
propriedade privada aos poucos passaria a social _.
seria simplesmente impossvel. Um gradualismo
se impunha: o do socialismo. Em outras palavras,
e mais uma vez: a sociedade ideal no se consegue
por decreto, nem pela vontade dos indivduos, mas
resulta de um processo social onde se desenvolvero as normas que acabaro por prevalecer. Sem
isso, a comunidade - melhor: a pseudocomunidade
- acabaria por assumir um aspecto sectrio e total itrio, se chegasse a manter-se.
Mas, observ a Marx ao final do documento, aind a
melhor que chegar comunidade ideal atrav s do
processo hist rico, mas num outro lugar, seria cada
um ficar onde estava e lutar ali pelos seus ideais
- pois ou essa co munidade ser estabelecida nesse
lugar ou no o ser, em lugar algum.
Marx no ti nha d vida alguma a respeit o: ap s
o su rgimento do socialismo baseado no mat erialismo hist rico, as propostas do socialismo utp ico
no poderiam ser mais que infant is, est reis e reacionrias. Por essa mesma razo, Marx no seguiu o
caminho dos utopistas, que retratavam - s vezes
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.-
o que Utopia
o desejo da utopia transforma-se em algo de pre ciso, tende a co ncretizar-se? Ou a imaginao utpica cultivada pelo homem apenas como um meio
de fuga, como vlvula de escape interior diante da
triste realidade? Uma postura diletante e acadm ica
di ante da questo optaria pela segunda proposio .
Mas o fato que a fora bsica da imaginao utpica est exatamente em sua propriedade de levar
o ho mem a procurar sua transformao em algo de
concreto . Embo ra a proximidade imed iata com o
realizado possa imp licar no risco de levar o homem
a desgost ar-se com os antigos ideais, o sonho, este
t ipo de sonho, no tem a tendncia de perpetuar-se
idefinidamente. Tentar a prtica surge, ento como
um imperativo.
E ela foi vrias vezes tentada . A multiplicao
dos mostei ros pela Europa, ap s o ano 1 000,
exemplo dos esfo ros pela co ncretizao de co munidade s ideais. Numa Europa devast ada pela fom e
e pela peste , cuja popu lao estava merc de grupos invasores e saqueado res, o mostei ro, cercado
por seus altos muros, significava o mximo de perfeio poss vel. L den tro havia seguran a, comida
e sade .. E mesmo que se diga q ue o moste iro, por
ser de or ientao religiosa e por des t inar-se especificamen t e a religiosos, constitui ria no mximo um
caso margin al de utopia, no h dvida de que a
imaginao utpica esteve em sua base e de que ele
punha em prtic a muitas das teses defendidas na
Repblica, por exemplo.
Mas fo i a descoberta das terras americanas
ent re o final do sculo XV e o in cio do XVI, qu~
representou um papel de primeiro plano no pen samento ut op ista o cidenta l. A descrio de terra s no
habitadas pelo homem branco provocou a mu lti plicao, entre intelectuais, religiosos e povo em gera l,
das idias relativas possib ilidade, afinal, do esta belecimento do para so te rrest re. Teo rias sob re a bon dade natural do hom em no co rrodo pela chamada civilizao (o "bom selvagem") e relat os fantsticos sob re lugares o nde era farto o ouro ou onde
jorrava a fonte da juventude, associados a verifica es concretas sobre a abund ncia de alimentos
flor da terra (ou aluses , como no caso do Brasil,
a uma terra onde "em se plan tan do, nela tudo d")
davam a entende r ao eur opeu da poca que era possvel o reino da felicidade neste mundo.
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t istas. t que neles se proc uravam coisas com o Eldorado e a fonte da juventu de, isto , terras onde
as riq uezas materiais seriam abunda ntes. Em outras
palavras: o que se pro curava era uma espcie de
utopi a da nat ureza. Mas isto rep resenta prat icamente uma contra dio nos prprios termos da
expres so . A utop ia no o dado, o existente,
o forn ecido , mas um projeto humano result ante
de relaes hu manas.
Com este sent ido, o novo mundo - salvo
algumas excees .- s comeou a funcion ar praticamente a parti r do sculo XVIII e, mais especialmente, do sculo XIX. O que, em parte, se explica
pela grande divulgao na Europ a, no sculo XIX,
dos programas socialistas utpi cos.
A Europa fo i cenrio t ambm para algumas ex perincias utpicas. Mas era grande demais, nos
utopistas, a vontade de comear tudo numa te rra
no contaminada de modo algum pela sociedade
velha, europia, por tem or de q ue a presena da
cult ura degenerada acabasse por corromper as
novas tenta tivas. No qu e ti nham toda a razo. Po r
isso, a grande opo foram mesmo as terras novas,
onde acaba ram pululando as comu nidades inspiradas na imaginao ut pica. t interessant e notar
que o novo mundo no produziu propriamente
novas co ncepes utpicas; apenas tentou realiz-Ias. E mesmo o fato de grande parte de suas
ex peri ncias nesse ca mpo te rem sido as promo vidas por movimentos milenaristas religiosos,
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* * *
Os Estados Unidos foi o pa is de eleio dos
utop istas europeus em sua busca de um mun do
du plamente novo.
Victor Considrant, fourier ista qu e j havia
tentado uma experincia prtica na Frana te nt a
deste lado du as outras : uma no leste em 1843 e
outra no Texas , em 1853. E ao reddr desses a~os
que se est abelecem a maior parte das outras como
a Comun idade dos Santos dos Ult imos Oias '(183 1
no Missou ri), Brook Farm (fundada entre 1840 ~
1843) e a Wisconsin Phalanx e a North American
Phalanx, tambm a parti r de 1843.
O.uas, de modo especial, chamaram a ateno:
lcaria e Oneida. A lcaria a mesma de Etienne
Cabet, cujo projeto foi duramente combatido por
Marx, mas que acabou se instalando em Nauvoo
~stado de Utah, em 1847, tendo uma vida rela:
trvamente longa: du ra at 1895. Oneida po rm
foi a experincia mais complexa e durado~ra Fun :
dada no interior do Estado de Nova Yor k em '1 848
manteve (em certos momentos mais acentu ada:
mente, em outros nem tanto) at a dca da de 40
deste sculo seu carter de comunidade utpica,
q uando passou a ser uma comum e prspera cidade
)
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americana. Oneida foi, de certo modo, a concretizao das utopias clssicas, com um comunismo "razo vel", como dizia seu fundador, grandes reunies
comuns num palcio central para discusso dos interesses pblicos e experincias no sentido de "aprimorar a raa", como no velho sonho platnico.
Mas todas essas experincias acabaram se encerrando, seja porque algu mas comunidades evolu (ram n~utro sentido (como Oneidal, seja porque foram simplesmente desertadas por seus adeptos.
Entre as razes apontadas para esses fracassos
est a recusa dos ideais de uma vida que de um
modo ou de outro poderia ser chamada de medrocre, tanto ffsica quanto intelectualmente (era comum que os ideais, a ideologia daquelas comunidades, se ~onstitu rssern num amontoado de planitudes
e chavo.es ?e um nrvel absolutamente primrio).
Alquns . I ca n a n~s, retornando Frana aps a expenencla amencana, queixaram-se do despotismo
Imperante na comunidade de Cabet. E o isola~ento f fsico das comunidades, freqentemente
situadas no meio do nada (sem contar o despreparo para o cultivo do campo, como apontara
Marx: os utopistas eram, na maioria da classe
mdia urbana, e seus projetos no atrafam os
camponeses), tampouco contribu (a para que as
coisas se apresentassem com cores mais suaves .
O malogro das comunidades utpicas no sculo
XIX foi uma constante, reforando a idia difundida nesse sculo, de que o homem estava 'fadado
* * *
A Amrica do Sul tambm no ofereceu exem- '
pios originais de projetos utpicos tericos. Foi
igualmen.te bem menor dela, do que na do Norte,
a quantidade de experincias utpicas propriamente ditas: as tentadas foram muito mais de ca.
rter religioso do que leigo.
Aqui, alm das cidades ricas dos Incas, capazes de encantar a mais de um europeu invasor,
destacaram-se para os utopistas as redues jesu (ticas estabelecidas no Paraguai desde 1588. Proje tadas geomtrica e ortogonal mente, como a Utopia de More e as cidades dos Incas, as comunidades
sob o imprio das redues abrigavam de 5 a 10
mil pessoas (como Yapahu, uma espcie de capital)
e eram uma materializao, a mais prxima possr -.
vel, dos modelos tericos clssicos, com jornada de
trabalho de 6 horas dirias, comunidade de bens e
uma vida simples, regrada. Essas redues duraram
at 1788, quando os [esu tas foram expulsos da '
regio por Carlos 111. Mas duraram o suficiente
para atrair a ateno da Europa, intelectualizada
ou no. Montesquieu e Voltaire viram nas redues uma alternativa para a sociedade da poca .
Sem dvida, distncia as coisas tendem a parecer
azuis, como as montanhas.
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~I
* * *
No Brasil, com exceo de coisas como as aluses de Manuel Bandeira a sua Pasrgada, onde ele
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era amigo do rei e 'poderia ter a mulher que escoIhesse, ou de idias como a de Afonso Schmidt
sobre uma cidade do sculo XXI (descrita como localizada num certo vale de Zanzal, ironicamente para quem conhece, hoje, a cat strofe ecolgica do
lugar - colocado perto de Cubat o; e Zanzal est
longe de ser uma utopia), a produo terica origi
nal sobre utopias tende a limitar-se a textos de interess e episdico e.' ago ra, quase museolgico.
Assim, em 1663 Simo de Vasconcelos publ icou
uma Crnica onde descrevia o Brasil como sendo,
afinal, o pararso terr estre - idia que ainda hoje
muitos insistem em fazer crrvel .. . Em 1617,
Pedro Fernando de Queirs fazia aparecer, em
Paris, sua Cpia do pedido apresentado ao Rei de
Espanha pelo capittio Pierre Ferdinand de 'Qu/r
sobre a descoberta da quinta parte do mundo chamada Terra Austral, desconhecida, e das suas grandes riquezas e fertilidade; ali vinha descr ita uma
terra sem 'sofrimento e sem muralhas, sem rei nem
lei. Em 1907, A. Sergipe pub licava Nova Luz sobre
o Passado, onde a prpria realidade apresentava-se
como um para rso,
Mesmo assim, possvel registrar a oco rrncia de
pelo menos trs modalidades de prtic a utpica no
Brasil. A primeira poder ia ser entend ida como
exe mplo da mentalidade utopista de tipo quilistico, ou milenarista, de ext rao pag, e remete
imaginao utpica da popul ao indrqen a - como
a constatada na cultura guarani, descrit a por Egon
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sem mosquitos. E se para uns, como os Nandva,
ali no seria preciso trabalhar, outros (os Mb)
viam o lugar ideal como aque le ond e as terras
seriam boas para o cultivo - o que implica em que
no repudiavam, ainda, o trabalho, no o viam
como sofrime nto (isso foi antes da invaso europia). Um tr ao comum com muitas utopias trad icionais: a excluso dos no iniciado s, pertencentes a outros grupos ou raas, como a bra nca, aps
a chegada dos eu ropeus . Entre os Kara b s os
membros da tribo teriam acesso Ilha da Felicidade , que semp re se afastaria dos est rangeiros como
uma miragem.
Aps a interferncia da cultura europia, os guaranis apresentaram uma tendncia antes constatada
entre os europeus: o anseio pelo retorno a um mundo perfeito que teria existido antes, em alguma
poca atrs, e que teria sido perdido. Uma idade
urea enterrada. Disso foi causa o contato com os
novos donos da terra , que os colocou num estad o
de esfacelamento cultural - impondo-se ento a
crena na possib ilidade deum retorno a uma poca
onde imperara a felicidade. A prpria localizao
da te rra perfeita mudou : ela no pod ia mais estar
na direo de onde vinham os brancos, mas na direo oposta. Alguns procuravam-na no znite
talvez j sob a influncia do cristianismo.
'
A segunda modalidade de prtica utpica observada no Brasil poderia ser considerad a com o de tipo quilist ico, de inspirao religiosa. Ou do tipo
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messinico. Observa Maria Isaura Pereira de Queiroz que o messianismo uma subdivis o do milenarismo, essa crena na vinda de um mundo melho r,
ten do ambos em comum a procura do para so terrestre com base num a combinao de princ ipios
religiosos e sociais. Do ponto de vista em qu e nos
co locamos, esta orie nt ao social e a tenta tiva de
funda r uma socied ade perfe ita na terra que perrnlti ro considerar o messianismo como figura da imaginao ut pic a.
Disti ngue-se o messianismo da utopia por no
aprese ntar aquele um Jrder " burocrt ico-legal",
avaliado por sua competncia e sabedoria, como na
Repbl ica ou na Utopia; em seu lugar aparece um
lide r car ismt ico, estimado no po r sua competncia civil, mas por suas qualidades m sticas, so brenatu rais. Mas tanto o messianismo como a utopia
lutam contra a injust ia social, em bora tam bm os
d ist inga a tendncia para a int olerncia religiosa
nas comun idades messinicas, j que nas utopias
(pelo menos nas tericas) a tolernci a de regra.
Uma das comun idades messinicas mais conhecidas foi a que se instalou numa antig a fazend a (Canudos) do interior baiano : o Impri o de Belo Monte, como a denominavam seus adeptos e seu fundador, Antonio Vicente Mendes Maciel, ou Antonio Conselh eiro, conhecido como missionrio itiner ante desde 1873. Belo Monte tinha alguns traos das utopias : rennc ia aos bens, assistncia efetiva aos mais pobres, baixa incidncia de crimes e
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( \
experincias que ilust ram o terceiro tipo de mentalidade utopista, o que se convencionou chamar de
socialista-eomunista (embora anarquista fosse uma
designao talvez mais adequ ada).
Uma delas foi a da Coln ia Vapa, est abelecida
por imigrantes letes em Assis, Estado de So Paulo ao redor de 1930 . Seu esquema de organizao
segue as linhas das experincias utp icas t picas
do sculo XIX europeu e norte -americano, sem o
sinal do fanatismo religioso prprio dos movimentos messinicos brasileiros. Na Colnia Vapa no
havia dinheiro, sendo os produ to s de todo tipo
dist ribufdos segundo as necessidades. Inexist ia
tambm a propriedade privada: as hab itaes eram
comuns, as refeies igualmente deviam ser tom adas em comum e o amor -era livre, abolindo-se o
casamento monogmico.
A outra , de maior vulto, foi a Colnia Cecrlia,
de inspirao fourierista , fundada pelo anarqu ista
e engenhe iro agrnomo italiano Giovanni Rossi, em
Palmeira, Paran (1890) . Estabelecida em local
afastado, desde o n rclo a coln ia encontrou srias
dificuldades para subsist ir, uma vez que o maior
problema a superar (como aconteceu em Icarial
era o desconhecimento das tcnic as da agricultura
por parte de seus membros. Problemas dessa espcie fizeram com que 3 anos aps sua fundao a
colni a tivesse apenas 64 habitantes (durante sua
existncia, no mais que 300 pessoas passariam
pela comunidade) .
Nela, repete-se o esquema j conh ecido : propriedade em comum dos bens, distribuio dos produtos bsicos segundo as necessidades, impon do-se
um racionamento dos mais custo sos e raros. Em
relao ao t rabalho, a comunidade seguia princ fpios anarquistas: ou o controle mtu o das at ividades ou nenhum con trole, co m as pessoas sendo
levadas ao t rabalho segundo as necessidades incontornveis ou as inclinaes pessoais. Na Colnia
no vigoravam, segundo seu fundado r, nem leis,
nem regulamentos; as prprias leis do pa rs no
eram reconh ecidas. Um dos objetivos bsicos da
comun idade era a deco mposio da " molcula
dom stica", em decorrncia do que resultaria a
reform a geral da sociedade, pois com ela estariam
relacionados os males bsicos da sociedade tradicional (propriedade privada, sent imento de posse,
dominao e opresso, etc.): como conseqncia,
por exemplo, impunha-se a renncia fi posse da
mulher.
Embora a Colnia Cec rlia no representasse um
elemento de pertu rbao da ordem estab elecida
equ ivalente ao dos Muker, como de regra no caso
das experincias utopistas brasileiras as tropas governamentais acabaram por expulsar os moradores
da coln ia, cerca de 4 anos aps sua fund ao,
indo Giovanni Rossi ser professor no Rio Grande
do Sul, antes de voltar para a Itlia.
O que se destac a, na histri a dos movimentos
utopistas brasileiros, mais do que a presena da
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violncia, a intole rncia de monstrada pela sociedade, atra vs 'dos grupos no poder, diante dessas
tentativas de organizao de um outro modo de
vida - mesmo naqueles casos em que os movimentos no representavam um risco direto para
o pode r estabelecido, embora natu ralmente contestassem seus princfpios , Desde o Quilombo dos
Palmares, exterminado em 1694 aps uma resist ncia de mais de 60 anos (e era uma prtica ut pica: sem lei, sem chefe; sem casamento, amor
livre; no propriedade privada, traba lho em comum, cada um se servindo conforme a necessidade), a interveno milita r uma constante,
bem ao contrrio do registrado nos EUA, por
exemplo, onde a tendncia foi para a autodissoluo das comun idades desse tipo. Talvez num caso
ou noutro a interveno armada tenha sido imperiosa, como ocorreu com o Reino Encantado (Pernambuco, 1838), cujo .firn sob as armas governamenta is foi precedido por um mortic rnio generalizado praticado pelos adeptos em seus prprios
companheiros e com a concordncia deste s (um
precursor, no o nico, do recente "massacre da
Guiana", qu ando, aps mudarem-se dos EUA em
busca de um local mais adequado, adeptos de uma
comunidade religiosa foram induzidos - prat icamente todos - ao suicrdlo) . Mas o quadro geral
impede de dizer, despreocupadamente, que o Brasil seja a terra de adoo da utopi a.
Em todo caso, pelo menos algumas das tentati-
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vas registradas nas Amricas demonstram a viabilidade dos programas utpicos, se observad as as exigncias da imaginao utpica concreta.
-a
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"SEJAMOS REALISTAS:
EXIJAMOS O IMPOsslvEL"
( Paris - Maio de 68 )
configurada em 1984, de George Orwell, e Admirvel Mundo Novo, de Aldous Huxley - resultan tes de um cet icismo quanto s possibilidades de
reforma, para melhor, da sociedade, em ambas as
obras pintada como o lugar da represso mxima.
A desiluso, de fato , tende a se instalar. Aps a
t ransformao da Unio Sovitica em distopia
burocrtica, como dizia Lnin, duros golpes foram
o fracasso da guerrilha de Che Guevara, os acontecimentos no Vietn aps o conflito com os EUA e
as escaramuas militares entre pases comunistas;
Cuba, apesar de tudo, perde parte de seu carisma
e o mesmo, relativamente, acontece com a China.
Mas, diante desse quadro, no se alegrem rpido demais os idelogos do capitalismo neoliberal ou neo-outros-rtulos: mesmo para aqueles que insistiam
em no admiti-lo, a mscara deste regime terminou
de cair definitivamente.
Um outro t ipo de coveiro da utopia se tem naqueles que, com base nas sociedades europias pass veis de serem chamadas de social-democratas,
afirmam terem -se extinguido os projetos utpicos
porque existem hoje todas as cond ies econmicas e sociais para realiz-los. Muitos igualmente j
disseram , ao longo da histria, antes de Cristo ou
nos Sculos XVI, XVI" e XIX, que "os tempos
esto maduros", que "agora somos capazes de comear tudo de novo", que o "nascimento de um
novo mundo est ao alcance da mo", A superfi cialidade e o voluntarisrno situados na base de afir-
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;1 I
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i
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um segundo plano a utopia exclusivamente polt ica. A imaginao utpica, porm, no se limita
a esta sua manifestao mais popular. O qu e est
havendo , na verdade, a deslocao do eixo centrai das questes colocadas pelos utopistas, uma alterao de perspectiva, uma inverso de posies
quanto ao que deveria ser o objetivo final da utopia. Esta tend ncia deriva da minimizaco da importncia antribu da aos aspectos econmicos e
poltico-sociais das condies de existncia e da
maior nfase dada queles domnios da vida abrangidos por Eros.
Na base disto est a contestao de dois princpios basilares dos programas utpicos tradicionais :
primeiro, o de que a responsvel pela agressividade
do homem, impeditiva da harmonia universa l,
a organ izao econmica, baseada na propriedade
privada; e, segundo, que a tarefa de evitar o sofr imento deve ter preferncia sobre a de obter o prazer.
De certo modo, foram as teorias psicanaltic as
as respons veis pela derrubada de um e outro. Em
relao ao primeiro, no que a propriedade pr ivada deva ser considerada como um bem, pelo contrrio: o que fizeram aqueles estudos foi simplesmente demonstrar ser inadequada a tese, em vigor
desde a antigidade grega, de que os problemas no
relacionamento social derivavam apenas da disputa
pela posse privada dos bens. Uma srie de outros
fatores existem que colocam em xeque a harmonia
universal, e to rnar a questo econmica o cent ro
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Teixei ra Coelho
nos" ), mas para acolher aque les com as mais diversas prefe rncias que, ao invs de serem abafadas
ou sublimadas, sero exacerbadas para o maior
prazer de cada um r sem que os outros se sintam le
sados . Uma comu nidade cuja unidade est na entrega s paixes (por Fou rier calcu ladas em 810
para cada sexo) e das qua is fazem parte, entre
outras, as paixes do luxismo (as dos sentidos)
e as do grupismo (pilares: a honra , a amizade , o
amor, o parentesco). Para Fourier, do is campos
se opem : o da Necessidade, ou Polftico, e o do
Desejo, ou Domstico. Fourier escolhe este cont ra
aquele , vendo entre eles uma relao de suplementaridade necessria e no de mera complementaridade, como pretende, por exemplo, a cr t ica marxista dita progressista.
O discurso de Fourier, inteiramente marginali
zado durante largo tempo (po rq ue irreal, para os
liberais e marxist as, e amoral ou imoral , para todos,
incluindo-se aquelas duas espcies) somente ser
retomado, com vigor, e com as evidentes correes,
ao fina l da dcada de 60, neste sculo. Herbert
Marcuse, retomando a observao de Freud segundo a qual o amor a mola da civilizao , ir falar
numa d imenso esttico-ert ica indispensvel
existncia humana e que deve caracte rizar por excelncia todo projeto utpico. Sua proposta foi
(e ) vista como hertica pelas doutrinas revolucionrias oficiais, mas os jovens que promoveram
os movimentos libert rios de 1968 de imediat o
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..
~
- ,).
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menso do imaginrio utpico outra - e o movimento hippie j alertava sobre isso desde os anos 60.
O objetivo outro. Na Itlia de hoje, como exernpio, os jovens desaparecidos da vida "normal" para entregarem-se luta clandestina, terrorista, so
algumas centenas. Os'que se dispersaram pelo Orlente, porm, esse Oriente que ainda sa como Utopia,
so mais de quinze mil. A imprensa burguesa diz
que eles foram perder-se nos meandros da droga e
nos labir intos do misticismo. Por que no admitir
que eles preferiram subir no "nibus mgico" de
uma outra dimenso de vida, d istanciando-se de um
modo de vida esmagador capaz de triturar mesmo
os mais atentos? Outros, como o grupo americano
Bread & Puppet (Po & Boneco) arriscaram uma
vida simples em comunidade, afastada da civilizao, para entregar-se prtica daquilo que sua razo de ser : o teatro. Alienao? Grupos marginais?
No mais alienados e marginais (embora a rnarqina lidade seja praticamente um imperativo para o utopista) do que os projetos de Owen, Cabet, Fourier,
do que as propostas anarquistas. Talvez se entenda
por que as ideologias capitalista e comunista (ou
"comunista") preferem combater esses programas.
Mas no possvel aceitar tranqilamente a idia
de que essa nova viso utpica seja algo contrrio
realidade histrica e social Utpica, fora deste momento, sim - por natureza . Mas no anti-humana,
pelo contrrio, e nem um devaneio delirante e insignificante, abstrato.
.'-
o que Utopia
Essa iluso, e a iluso da utopia de modo geral,
tem um futuro - mesmo que as distoplas nos cerquem hoje por todos os lados. Como sugere Ernst
Bloch, existe um excedente utpico, um ncleo ao
nvel do indivduo e da sociedade que traz em si
permanentemente os traos de uma sociedade perfeita: Mas esse ncleo agora surge como situado alm
e acima do pol tico, ncleo que pode romper as mu ralhas da utopia pol tica e abrir caminho para uma
humanidade reconciliada consigo mesma e capaz,
enfim, de reconhecer e conhecer o prazer, como
props Fou rier e outros pensadores marginais antes
e depois dele .
No reconhecimento da existncia desse excedente
utpico est a esperana. E se ele uma realidade,
como , sOa como obrigao, alm de direito, exigir
sua concretizao. Como anota Freud, o princpio
do prazer domina o funcionamento do aparelho psquico desde o momento inicial do indivduo. Sobre
seu programa, sobre sua ascendncia no pode haver
dvida - embora ele esteja em desacordo com o
mundo todo . Todas as normas da sociedade, e da
natureza, parecem ser-lhe contrrias. O princpio de
realidade, que nos obriga a dobrar os joelhos diante
da necessidade, que exige a sufocao das satisfaes
em nome do social . onipresente. E to poderoso
que Freud se sente inclinado a dizer que a possibilidade de o homem ser feliz talvez no esteja includa
nos projetos da "Criao". Mas ele mesmo reconhece, de imediato, que, embora o programa de tornar-
97
I',
98
Teixeira Coelho
-se feliz seja talvez int rinsecamente invivel, simplesmente no possrve aba ndonar os esfo ros no sentido de ten tar sua mate rializao.
Assim, tod o t rao de pessimismo, de entreguismo , deve se r eliminado. Os grit os de "a utopi a morreu '" - reveladores do medo ou da raiva d iante do
Novo, e ind icadores da aspirao de ver reinar a imbecilidade sufocante - devem ser aba fados pelo otimismo militante, de que fala Bloch . Ao q ue recor re r,
para isso? A toda uma t rad io utpica , que no
homognea mas, pelo contr rio, plu ral, multi fo rme.
Se um dado pro jeto dessa t rad io imperfeito, o
caso co rrigi-lo. Se nen hum deles agrada, que cada
um crie um outro. Em uto pia, no o mod elo que
interessa, pois o ut opista no se impede de abando nar seu programa se um ou t ro se revela melhor; o
q ue importa a vontade de evitar o velho, a repetio, o beco sem sard a. Para se conseguir ist o, para
evit ar que o fut u ro despenqu e sobre o homem co m
a fo ra da fat alidade, resvalando ambos para a fossa
co mu m, no necessrio mais que a co ragem e o
saber. O sabe r, a histr ia forn ece. E a coragem
pode ser busc ada na imaginao exigente.
Muito difrcil t udo isso? lmpossrvel concretiza r o
programa ditado pelo princfpio do praze r? Nem
tanto. A imaginao utpica muito realista nesse
ponto ; para ela, o irnposs rvel o m nimo a exigir.
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A lienao - Laymm ert Garcia dos Santos
Antropo log ia - Peter Fry
A rq uitet ura - Carlos A. C. Lemos
C idade - Jaime L erner
Cine ma - Lean-Claud e B erna rdet
Com unicao V isua l - C laudlus Ceccon
Co nscient izao - Miguel Darcy de Oliveira
Contracultura - L us Carlos Maciel
C orpo - A na Vernica Mautner
C ultura Popular - Antonio A ugusto A rantes
Dia ltica - Leandro K onder
Editora o - Pedro Paulo Poppovic
Ed ucao - Carlos R odrigues Brando
Energia Nucle ar - Jos Goldemb erg
Energia Solar - No rberto de Paula Lima
Ex is tencialismo - L uiz R oberto Salinas Fortes
Filosofia - Bento Prado Ir.
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Ideolog ia - Marilena Chaui
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Insurreio - Moni: Bandeira
Isla mismo - Jamil Mansur Hadda d
J o rnalismo - Clvis R ossi
L iterat ura - Marisa L ajolo
L ou cu ra - Io o Augusto Frayze Pereira
Mark et ing - R aimar Richers
M sica Popular - M atinas Suzuki ir.
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T ea tro -
Utopia -
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ECONOMIA
O qu e
Desequilbrio Regional - Wilso n Cano
Ca pital Financeiro - Ma ria Co nceio T avares
Ca pitalismo Monopolista de Estado - Joo Manuel
Cardoso de M ello
Economia Poltica - Luiz Gon zaga de M ello Belluzzo
Emprego e Salrio - Paulo R enato de So uza
Inflao ~ Jos Bonifcio Amaral Filho
* Mult inacion ais - Hamardo Kucinski
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Questo Agrria - Jos Graziano da Sil va
Feminismo -
POLlTICA
O que
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Autoritarismo - Carlos .Es tevan Martins
Capitalismo - Afrnio Mendes Cata ni
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Comunismo - A rnaldo Sp indel
Constituinte - Raymundo Faoro
Democracia - V anya Sant'A nna
, Ditadur as - A rnaldo Spindel
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G reves -
SOCIEDADE
O que
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Classes Sociais - Jos Alvaro Moiss
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IMPRESSES DE VIAGEM
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OQUE
UTOPIA
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1~ edio 1980
2~ edio