Otakismo 2.0 - Novos Textos

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Otakismo 2.

0 Novos Textos
20 de Agosto, 2012

Dance enquanto a msica estiver tocando (Haruki Murakami)


Acordo. Onde estou? Reflito. No s reflito como tambm me questiono: Onde estou? No entanto, esta
pergunta no tem nenhum sentido, pois sei exatamente qual a resposta. [...] s vezes uma mulher est
dormindo do meu lado, mas normalmente estou s. [...] Elas vm a mim, relacionam-se comigo e um dia
vo embora. Elas se tornam amigas, namoradas, esposas. Em certas ocasies tornam-se minhas oponentes.
De qualquer forma, todas acabam se afastando de mim. Algumas desistem, outras se decepcionam, outras
silenciam e acabam indo embora. [....] O pior de tudo era constatar que elas saam do meu quarto mais
tristes do que quando entravam. (Dance, Dance, Dance)
Haruki Murakami um escritor natural de Kyoto,
geralmente tomado como o provvel futuro japons
a ser recompensado com um Prmio Nobel da
Literatura. sem sombra de dvidas o mais famoso e
influente escritor da atualidade no arquiplago, de
longe o mais lido e apreciado pela juventude
japonesa. No por menos. Sua escrita gil, pop e
folhetinesca toca o corao de adolescentes e
jovens adultos que no olham mais para o Japo
com o mesmo otimismo e orgulho com o qual
olharam seus pais e avs em tempos passados. A
obra que escolhi comentar a que, talvez, melhor
captou o sentimento da juventude japonesa dos
anos 80. Trocando em midos, uma gerao to eufrica quanto desorientada. O nome desse
livro agridoce Dance, Dance, Dance (1988); publicado no Brasil com traduo direta do
japons pela Estao Liberdade, facilmente encontrado em grandes livrarias.
Murakami no , no entanto, uma unanimidade entre os japoneses. Seguidor do movimento psmoderno no Japo, costurando sua narrativa com elementos da cultura pop como Dunkin
Donuts e Michael Jackson, seus livros so muito atacados pelos crticos literrios japoneses
adeptos da tradio moderna do pas (defensores de nomes como Natsume Soseki, Yasunari
Kawabata e Ryunosuke Akutagawa).
Essa informao interessante para ns na medida em que Murakami passa a subverter as
normas literrias aceitas como elevadas, de qualidade ou intelectualizadas para falar a
mesma lngua da mocidade nipnica. Seu sucesso plenamente justificado e os seus livros so
best sellers, vendem aos milhes justamente porque, assim como a literatura tradicional no
estaria mais dando conta de narrar a realidade mutante, talvez o Japo dos anos 80 para c
no consiga mais apresentar respostas para os anseios dos jovens; o preo pelo indiscutvel
progresso tcnico e material conquistado pelo Japo aps a Segunda Guerra mundial est to
salgado que, aparentemente, poucos ainda fazem questo de banc-lo. Sim, os textos de
Murakami sempre apresentam protagonistas angustiados, solitrios, tentando manter a cabea
fora da areia movedia em suas jornadas. Alm, claro, de conviverem com outros que no
tiveram a mesma sorte e, apesar de nascidos para brilhar, foram drenados pelo lodaal.

Sem exagero, posso dizer que metade dos textos que tive de escrever era totalmente ftil, material sem
utilidade. Um desperdcio de papel e tinta. Evitei parar para refletir sobre isso e fui apenas arrematando
trabalhos mecanicamente. [...] No tinha nenhuma ambio nem esperana. Apenas ia arrematando
sistematicamente, de ponta a ponta, tudo o que aparecia. Para ser franco, at cheguei a pensar se isso no
seria uma vida desperdiada. Mas, se at mesmo o papel e a tinta podem ser desperdiados, no havia

razo para que eu ficasse me lamentando. Essa foi a concluso a que cheguei. Ns vivemos numa sociedade
altamente capitalista. Nela, o desperdcio a maior das virtudes. Os polticos chamam isso de requinte da
demanda domstica. Eu chamo de desperdcio sem sentido. So divergncias de pensamento. Apesar delas,
a nossa realidade indiscutivelmente assim. Os incomodados que se retirem para Bangladesh ou para o
Sudo.
Espere um minuto voc intervm -,
um
sentimento
generalizado
de
desamparo fez sucesso no Japo?
Ento a segunda economia do
mundo, um bolso de prosperidade,
segurana pblica e respeito social?
Exato. E justamente nesse ambiente
que um pessimismo e um mal estar
existencial poderiam florescer com
mais intensidade. Se voc quer
entender a razo dessa situao
aparentemente
contraditria,
me
acompanhe nesse texto! Murakami
um bom anfitrio ao dar voz aos
tmidos japoneses que sucederam os
samurais corporativos do Milagre
Japons a partir dos anos 80.
O livro

No fiz quase nada. No criei nada. Amei


algum e fui amado. Mas hoje no resta
mais nada. A minha vida estranhamente
linear e seu quadro, totalmente montono.
Parece at que estou andando dentro de um videogame. Eu sou o PacMan. Vou apenas comendo os
pontinhos pelo labirinto, sem nenhum objetivo. E, com certeza, um dia vou morrer.
A glacial Sapporo, o ensolarado Hava e a desumanizada Tquio so os trs cenrios onde se
desenvolve esse romance. O protagonista, segundo as palavras de Lcia Nagib, um
Dissidente silencioso de uma sociedade altamente organizada, onde se recusa a participar do
sistema de ensino e trabalho, sua vida um vagar sem rumo ao embalo da msica pop
americana e inglesa que no d espao tradio cultural local.
Nomes do jazz e cones pop da poca (como Genesis, David Bowie e Duran Duran), junto com
redes de fast food e marcas de automveis, so o pano de fundo de sua jornada muitas vezes
onrica em busca de um sentido para sua vida. Um escritor freela de matrias jornalsticas tapaburacos resolve passar a rgua em sua vida solitria e sem propsito na capital japonesa, e
pega o avio para o glido inverno de Hokkaido. L, pretende passar um tempo no hotel
decadente no qual se hospedou com a ex-namorada, que, como todas as outras, saiu da sua
vida para nunca mais voltar.

Por favor, no me deixe mais tempo aqui sozinho, fiz mentalmente esse pedido. Eu preciso de voc. No
quero mais ficar s. Sem voc, sinto que sou expelido para os confins do universo por uma fora centrfuga.
Por favor, aparea e prenda-me em algum lugar. Quero que voc me prenda neste mundo real. No quero
fazer parte do clube dos fantasmas. Sou apenas um homem extremamente comum e simples de trinta e
quatro anos.
O hotel ser o ponto de partida fsico da sua procura pelas coisas que foram caindo do seu
bolso enquanto vagava por a, assoviando sem perceber. A partir de l, encontrar uma srie de
personagens exticas, cada uma com sua prpria dor, sua prpria histria; e como um Hamlet
ps-moderno, rechear os dilogos com reflexes sobre os mais diversos assuntos. Dos mais
complexos, como o amor, a morte e as ideologias, aos mais banais como a cultura pop e a

culinria. Nesse meio tempo, o mundo real dilui aos poucos as barreiras com o universo onrico,
ao ponto de ficar difcil distinguir onde, de fato, as personagens esto com a cabea.

Que absurdo! Perdi a autoconfiana. Ser que irei apodrecer, falando sozinho, dessa forma, nesse lugar
que parece um cemitrio de elefantes da sociedade altamente capitalista?
O Japo oitentista de Murakami

Como no fazia havia tempos, liguei o rdio e segui para o oeste ouvindo rock. A maioria das msicas era
sem graa. Fleetwood Mac, Abba, Melissa Manchester, Bee Gees, KC & Sunshine Band, Donna Summer,
Eagles, Boston, Commodores, John Denver, Chicago, Kenny Rogers Essas msicas apareciam e
desapareciam como bolhas de espuma na gua. Que droga! Um lixo de msica de consumo para arrancar o
dinheiro da garotada, pensei. De repente bateu uma melancolia. Os tempos mudaram. Era s isso.
O Imprio Japons derrotado na Segunda Guerra pelas tropas norte-americanas deu espao
para um governo parlamentar pacifista e progressista. Com auxlio do capital americano, o
Japo rapidamente se reconstruiu e orientou sua economia industrial para as exportaes. Nas
dcadas de 60 e 70 o pas entrou no processo chamado de Milagre Japons com uma
economia em plena ascenso (as Olimpadas de Tquio em 64 foi, grosso modo, o que Rio 2016
ser para ns). Os anos 80 foram o auge absoluto desse processo. Economistas diziam que a
superao da economia americana pela japonesa no era mais discutida em termos de se (no
sentido de possibilidade), mas sim em termos de quando. Sony, Toyota e Nintendo invadiram o
mundo. O pas concentrava riqueza e a distribua de modo igualitrio. Aps muito sofrimento,
finalmente chegara a hora da bonana.
O Japo tinha se tornado
o exemplo maior do
sucesso
capitalista
e
posou como modelo ao
mundo, de como um pas
sem
recursos
poderia
construir
seu
prprio
caminho de sucesso com
muito trabalho rduo. No
entanto, as coisas no
eram
to
simples
e
maravilhosas assim, conforme denunciaram os jovens japoneses dessa poca, aqueles que
nunca passaram pelas privaes da guerra e da reconstruo do pas.

As pessoas reverenciam a dinmica que o capital possui. Idolatram seu carter mitolgico. Adoravam o
preo do terreno em Tquio e o que simboliza o Porsche que brilha reluzente. Pois, alm dessas coisas,
neste mundo j no resta mitologia nenhuma. () Neste mundo, a filosofia vai se assemelhando a uma
teoria econmico-administrativa.
As jornadas de trabalho eram desumanas (resultando em inmeras mortes por excesso de
trabalho e fragmentao do ncleo familiar); o clima de competio instaurado tornou a
atmosfera escolar rarefeita demais (e disso ganhou fora o ijime [bullying] e o alarmante ndice
de suicdios infanto-juvenis); as corporaes japonesas sustentavam seu crescimento com ampla
degradao dos recursos naturais, entre outros fatores. O clima geral, claro, era de otimismo
bobo e consumismo desenfreado, mas parte dos estudantes japoneses passou a olhar para esse
Japo quase irreconhecvel, responsvel por exigir demais de todos os cidados, e a se
questionar: O que estamos fazendo? Estamos realmente trilhando um caminho saudvel?
Falamos de um Japo apartado de suas razes religiosas e morais, tendo como nica referncia
o Deus Mercado Livre e a Princesa Economia. Pas maduro at demais, j comeava a
apresentar os primeiros pontos de bolor. Prometeram-lhes a felicidade com o desenvolvimento
econmico. Eles correram atrs e se tornaram mais ricos do que qualquer um poderia supor,
para, enfim, perceber que felicidade no algo assim to fcil de ser encontrado
coletivamente. Pior, toda essa riqueza estava cobrando um preo indignante. Se a economia
era a nica referncia reforada pela sociedade, se eles j tinham alcanado o topo do mundo

nesse sentido, e ainda assim continuavam incomodados, em qual direo correr? Sem dvidas
os ndices sociais do Japo davam inveja a quase todos, mas no pensem que fcil dar
sentido uma vida momentaneamente sem objetivos claros. No caso japons, a crise de
perspectiva ainda mais grave por questes naturais. Eles tm conscincia da destruio de
tudo o que foi erigido suando sangue. O Grande terremoto de Tquio um fato, hoje ele
esperado a qualquer momento.

Expliquei-lhe que o desperdcio era uma grande virtude das sociedades altamente capitalistas. O Japo,
ao adquirir os Phantoms dos Estados Unidos com misturadores nada econmicos, movimentava um volume
maior no comrcio de combustveis, e esse adicional repercutiria na economia global, que
consequentemente alimentaria cada vez mais o capitalismo global. Se todas as pessoas, de uma s vez,
deixassem de desperdiar, ocorreria um colapso geral e a economia global se desestruturaria [...] ele
admitiu que eu poderia estar com a razo. E continuou dizendo que tinha muita dificuldade em entender
essa nova estrutura social capitalista por ser de uma gerao que sofreu muitas privaes materiais na
infncia durante a guerra.
Esse o Japo que serve de cenrio para Dance, Dance, Dance. Jovens apticos e indiferentes
ouvindo Phil Collins e comendo frango frito no KFC; freelancer sem perspectiva de futuro
entregando trabalhos descartveis para sobreviver, funcionrias neurticas, abandono familiar,
entre outros.
As relaes entre a juventude japonesa oitentista e o discurso da ps-modernidade

Deitado na minha cama, odiei o mundo. Odiei mesmo, profunda e intensamente. O mundo estava repleto
de mortes sem graa e ilgicas. Eu era impotente e estava atolado na sujeira desse mundo-co. As pessoas
chegavam pela porta de entrada e partiam pela porta de sada. As que saam jamais retornavam. O que
mais estou para perder? Como voc disse, talvez eu no possa mais ser feliz. Isso no importa, mas essa
situao terrvel demais.
Alm do contexto especfico da realidade japonesa, das inseguranas tpicas da idade e
inerentes da condio humana, Murakami produz uma obra global, bastante antenada com a
situao do mundo quela poca. Voc j deve ter ouvido o termo ps-modernidade.
Entend-lo essencial para sentir a textura que se esconde por trs dos textos pop do japons.
No se preocupe, no ficarei com intelectualismos, mas tentarei faz-los entender essa
atmosfera pessimista e imediatista que varre o mundo desde os anos 80 sob essa tica.
A conscincia ps-moderna o reconhecimento de um fracasso. Qual? A derrocada da
Modernidade, que fracassou nas utopias que nos prometeram. Pessoas com essa conscincia
estariam despertando de um sonho em tons pastis para um pesadelo cinzento; perceberam
que todas as flores so, na verdade, de plstico e que o perfume sinttico. Calma, eu explico
melhor.
A Modernidade o nome dado para algo que se iniciou na Europa por volta de 1500, quando o
homem foi colocado no centro do mundo (antropocentrismo do Renascimento); os rumos do
planeta foram colocados nas mos da racionalidade, ou melhor, da cincia (a partir do cogito
cartesiano); e as religies pouco a pouco ganharam status de superstio barata. Os Estados
nacionais seriam os responsveis por produzir segurana no mundo, na condio de produtor de
justia social e esforos para melhorar a qualidade de vida (esse discurso em tempos de guerras
consecutivas e fome muito atraente). Em concluso, a Modernidade tinha um objetivo futuro,
uma linha de chegada para um lugar onde permanecer, enfim, a promessa de um mundo
melhor.
-Voc gosta do Dalai Lama?
-O que isso?
- o monge mais importante do Tibete.
- Nunca ouvi falar.
O Japo seguiu essa cartilha com afinco a partir do sculo XIX, durante o processo de
ocidentalizao. Justamente na poca em que intelectuais europeus, como Nietzsche e Freud,

comearam a levantar a hiptese de que a Modernidade trouxe tantos problemas na


bagagem, que talvez seja melhor que fosse substituda.

esse
projeto
racionalista que alou o
Japo
ao
topo
do
mundo, isso que fez a
Toyota engolir a General
Motors e dominar o
mercado
americano.
Dedicao absoluta ao
trabalho. Mas isso trouxe
segurana no mundo
apenas em partes.
verdade que no havia
mais guerras ou fome. Por
outro lado, as pessoas
foram aceleradas ao ritmo das mquinas que operavam. Horas extras interminveis marcam o
mundo empresarial japons. Tudo precedido por inacabveis horas de estudo para entrar nos
melhores colgios, que determinavam quem ia para as melhores universidades, que por sua vez,
decidiam os poucos aptos a uma vaga numa grande corporao. Estavam todos correndo, mas
no ao local prometido pelo projeto moderno, corriam a esmo. E ao correr para colocar
Walkman nas mos de todos os adolescentes do mundo que podiam pagar por um, os
japoneses esqueceram-se dos seus prprios filhos.
A perspectiva ps-moderna aquela que no acredita mais em noes de progresso, mundo
melhor, linha de chegada. Na verdade, ps-moderno aquele que no consegue acreditar em
nada. Ele v o mundo como um palco em branco. No h aonde chegar, no h direo
correta, qualquer direo vai dar em algum lugar que no melhor do que os outros possveis.
Quando se acredita nisso, fica complicado traar planos para o futuro [No tinha nenhuma
ambio nem esperana], trabalhar por um amanh [fui apenas arrematando trabalhos
mecanicamente], no? Isso fica claro em vrios trechos de Dance, Dance, Dance (eu poderia
citar outros tantos):

Eu estava bem no meio de um espao em branco. Era um branco que preenchia todos os espaos e, por
mais que caminhasse, essa brancura me acompanhava. No chegava a concluso nenhuma. [...] Eu estava
sozinho e com medo. Sentia-me sozinho como se fosse uma criana perdida na floresta.
Enquanto observo a chuva cair, reflito sobre o que sentir-se fazendo parte de algo. Penso tambm no
que ter algum chorando por mim. Tenho a sensao de que tudo isso faz parte de um mundo muito, mas
muito distante.
Durante algum tempo, senti um vazio sem fim. Eu, no final das contas, no ia a lugar algum. Todos que
iam partindo sucessivamente, e somente eu permanecia no estado de incubao.
Estou me perdendo e deixando-me perder. Estou confuso. No estou ligado a lugar algum.
Por onde, afinal, devo comear? No consigo alcanar nada. Estou totalmente perdido.
Como minha ex-mulher dizia, enquanto for capaz, s irei magoar mais e mais pessoas.
Os adolescentes japoneses dos anos 80 confrontados com o distanciamento familiar, com as
cobranas escolares asfixiantes, com a ausncia de vida espiritual, em suma, com um futuro
nada promissor em termos de felicidade foram o hardware perfeito para a instalao desse
software mental na forma de um mal estar cnico. No queriam sair de uma infncia rica e
mimada para a competio carnvora pelas melhores universidades, empresas e, por que no,
parceiros afetivos (homens herbvoros mandam lembrana).
Amarrando esse raciocnio com o livro, Murakami nos mostra o que acontece quando toda uma
gerao, gozando de uma condio scio-econmica privilegiada, se depara com a falta de

perspectivas. Todas as principais doenas sociais do pas (karoshi, hikikomori, ijime, enjo kosai,
otaku) nasceram ou foram intensificadas no auge da acelerao dessa dinmica (anos 80) ou
no estouro da bolha financeira e conseqente recesso econmica (anos 90 e 2000), quando
eles j eram um pas prspero (nos termos da Modernidade). O clima do livro pesado do incio
ao fim, Murakami no parece descartar a possibilidade de uma vida findada em tragdia, mas
convoca o leitor, durante toda a jornada, a se manter de p:

Enquanto a msica estiver tocando, voc deve continuar a danar. Entende o que quero dizer? DANAR,
CONTINUAR DANANDO. No deve pensar no motivo ou no sentido disso, pois eles praticamente no
existem. Se ficar pensando nessas coisas, seu p ficar imvel. Uma vez parado, j no serei mais capaz de
agir. VAI SE ACABAR PARA SEMPRE, ENTENDEU? Da, s lhe restar viver unicamente neste mundo
[da fantasia]. Cada vez mais ser sugado por ele. Por isso, no deve parar de mover os ps. Por mais que
lhe parea uma tolice, no deve ligar. Deve continuar danando, dando passos () Ainda deve haver algo
que no esteja perdido. Use tudo o que puder usar. D o mximo de si. No h o que temer. Voc deve estar
mesmo cansado. Cansado e com medo. Qualquer pessoa passa por esses momentos. Sente que tudo est
errado. Por isso ficam inertes
Da o ttulo Dance, Dance, Dance. Nomeando o livro com o clssico dos Beach Boys, Murakami
testemunha de inmeras pessoas que esto paralisadas pelo medo de agir, ou ento j esto
desesperadamente em queda livre no abismo relembra o projeto de homem desenhado por
Nietzsche: Aquele que cai no abismo danando!
Observao: Parafraseei e usei trechos literais da palestra O Diagnstico de Zygmunt Bauman
para a ps-modernidade: uma agenda para o inverno do filfoso Luiz Felipe Pond, pois achei
muito clara, didtica e conceitualmente coerente.
Comentrios Relevantes
anachan2010 - 21 de agosto de 2012
> uma gerao de pessoas morrendo de trabalhar
> prxima gerao de foda-se essa merda
, faz sentido o ser humano campeo em combater um extremo com o outro.
Me lembra tambm o filme Beleza Americana, quando o pai deles pega o emprego de
atendente no Mc Donalds procurando um trabalho com a menor responsabilidade possvel.
Talvez seja um movimento necessrio para equilibrar a balana. Estando no meio do furaco
dificl dizer. S espero que no percam a capacidade de feitos admirveis como a solidariedade
demonstrada no evento do terremoto ano passado. Que outro lugar do mundo no haveriam
saques e veramos comerciantes distribuindo comida de graa?
(, apesar de tudo eu gosto de ver o melhor do ser humano)
otakismo2 - 21 de agosto de 2012
Como voc citou Beleza Americana, podemos fazer uma analogia das produes japonesas
com o cinema americano em 1999.
Nesse ano, a Amrica produziu, entre outros bons filmes, Beleza Americana, Matrix e Clube da
Luta. O primeiro, a exposio de um fracasso bem mascarado; O segundo, um convite sada
da caverna; O ltimo, a tentativa de desestabilizao de um sistema tomado como podre. Na
mesma dcada que o Japo teve seu Murakami, seu Evangelion, seu Aum Shinrykyo.
O Bauman, que citei no final do texto, olha esse mal estar generalizado com certo otimismo. A
partir da percepo de que algo est muito errado, talvez seremos capazes de desenvolver
uma nova tica, um novo modo de viver, mais humano, menos asfixiante. A tal agenda para o
inverno em que vivemos.

09 de Setembro, 2012

Otakismo Crianas Invisveis: Para o que voc tem olhos?


Um curta metragem chins o protagonista dessa postagem.
Furei o cronograma. Estava construindo aos pouquinhos um texto sobre um filme japons. Fui
obrigado a pass-lo para trs. Por enquanto. Hoje no vim aqui dar aula, mas dialogar com
pessoas. No serei verborrgico. At porque a obra que trago como recomendao imediata
trata justamente da incapacidade das palavras darem conta de certos momentos, situaes e
emoes.
Song Song e Little Cat um curta metragem dirigido pelo chins John Woo e faz parte
da coletnea responsvel por reunir outros seis curtas sob o ttulo guarda-chuva Crianas
Invisveis. Este projeto, financiado para benefcio da UNICEF, teve como proposta dar liberdade
criativa absoluta para sete diretores, de sete diferente pases, expressarem uma viso particular a
respeito da infncia em seus pases de origem. Mais precisamente das crianas invisveis, aquelas
que no sabemos (ou fingimos no saber) de sua existncia, das quais desviamos nas ruas
abarrotadas sem lhes dirigir nem mesmo um olhar.
A coletnea d corpo a
essas
crianas
translcidas em diversas
partes do mundo (EUA,
China, Inglaterra, frica
do Sul, Srvia, Itlia e
Brasil), e ao materializlas, torna-as visveis para o
espectador
que
s
consegue rachar o gelo da insensibilidade e do conformismo no conforto de uma sala de
cinema. O projeto reuniu pessoas do escalo de Spike Lee e Emir Kusturica, mas o biscoito fino
da gravao o segmento chins que fecha o filme. John Woo foi especialmente feliz na sua
abordagem, pois no falou apenas de crianas, falou de humanidade.
Em Song Song e Little Cat
temos uma China imersa
em
suas
conhecidas
contradies.
Uma
desigualdade
social
pornogrfica, a poltica
do
filho
nico,
o
desprestgio de ter uma
filha mulher, a explorao
do trabalho infantil. Nesse cenrio, conhecemos a vida de duas meninas chinesas. A primeira,
abastada, pianista, penteada, rodeada de brinquedos, mas carente de afetos no seio de uma
famlia que se encontra em estado de runas; A segunda, miservel, foi abandonada na rua e
encontrada por um catador de lixo que a criou com muito carinho, mas mesmo assim no pde
oferecer a ela um ambiente mais saudvel para seu desenvolvimento.

Essas duas meninas so


ligadas pelo acaso e
reconhecero nos olhares
uma da outra sua prpria
natureza humana, e o
mesmo
em
seus
semelhantes. O curta tem
poucos
dilogos,
geralmente triviais e sem
efeito. Justamente porque a premissa dessa histria de que a linguagem verbal limitada e
no d conta dos momentos mais pungentes da nossa experincia humana. Me apresentaram
esse curta para explicar o conceito platnico de Arrethon, o estado da alma to profundo,
visceral, que no h nenhuma palavra capaz de captur-lo. Quando algo realmente
impactante demasiado humano-, nos acontece, ficamos sem palavras. O que so lies de
moral e frases de impacto diante do incapturvel da nossa experincia?
O ponto alto do curta de
Woo so os olhares. A real
comunicao e empatia
entre as pessoas se d no
momento em que o
incapturvel de cada um
entra em contato com o
outro. O que brilhante,
pois o filme nos mostra,
dentro da proposta do
projeto,
que
s
poderemos compreender
a experincia do prximo
se
nos
dermos
ao
trabalho
de
cruzar
olhares. Por isso so
crianas
invisveis.
Fugimos do olhar que,
lancinante, nos arrebata.
Ameaa nossa superfcie.
Nossa frgil estabilidade.
A cena do homem que
agride
a
pequena
vendedora
de
flores
registra
isso
com
preciso sua. O olhar da
criana simplesmente o
desarma.
Por hoje o que tenho a dizer. O curta est na ntegra no Youtube. Menos de 20 minutos, menor
que um episdio de um anime. Assistam! Infelizmente s est disponvel com legendas em ingls.
Mas e quanto a voc, para o que tem olhos?

24 de Novembro, 2012

Otakismo Hallyu: A Onda Coreana do pop de Seul invade o mundo!

Oppa ChuNan Style!


Em 1965, os Beatles foram nomeados como membros da Ordem do Imprio Britnico. Os integrantes do
grupo pop que abalou o mundo com sua msica poderosa foram condecorados como escudeiros, o grau
imediatamente abaixo de cavaleiro. Hoje em dia, se a Repblica da Coreia atribusse ttulo de cavalaria
equivalente ao britnico para uma celebridade coreana, a primeira pessoa da lista seria o ator-cantor Ahn Jae
Wook (An, Jae-uk), que pode ter realizado algo que nenhum poltico, empresrio ou diplomata jamais fizeram
pela nao. (Choe Yong-sik, jornalista do Korea Herald, 2001)
Em meados de julho estourou na internet o clipe de uma celebridade sul-coreana de segundo
escalo. Alguns meses depois, Gangnam Style do Psy o vdeo com mais curtidas na histria do
Youtube e caminha a passos largos para destronar Justin Bieber e levar para Seul tambm o ttulo
de vdeo com mais visualizaes no site. Para dar dimenso do nmero alcanado at o
momento em que redijo este texto, Gangnam Style, um clipe em coreano sem legendas, foi
assistido por um volume de pessoas correspondente soma da populao de Estados Unidos,
Brasil, Japo, Alemanha e Coreia do Sul.
Uma dana engraada, um gordinho carismtico e uma melodia adesiva, apenas mais uma
sub-celebridade gozando seus 15 minutos de fama, categoriza o mais ctico. Um clipe to
impactante quanto fugaz, que fez sucesso apesar de ser coreano e no por causa disso, opinam
quase todos. O histrico de memes efmeros que pipocam diariamente pela internet e somem
com a mesmo velocidade parece conferir substncia a estes argumentos. Mas o sucesso do Psy
se resume nisso? Voc nunca percebeu que a Coreia do Sul est dia aps dia mais presente na
sua rotina? Seu celular possivelmente um Samsung, seu monitor provavelmente um LG. Voc
mais
impactado
por
propagandas da Hyundai
do que da FIAT ou
Volkswagen.
Alimentos
como os sorvetes Melona
so
facilmente
encontrados em pontos
de venda no-orientais. A
tecnologia
da
linha
amarela do metr de So
Paulo toda coreana.
Fora do Brasil, um show
de
msicos
coreanos
colocou sete mil franceses no Le Znith de Paris. O grupo Big Bang por dois anos seguidos figurou
no top 10 do iTunes nos EUA. Voc notava isso cinco anos atrs? Reforo o questionamento.
Voc ainda acha que a febre de Gangnam Style foi meramente fruto do acaso?

Psy apenas o pico de sucesso de um acontecimento crnico conhecido como Hallyu, a onda
coreana. O termo classifica a rpida popularizao internacional da cultura sul-coreana a partir
dos anos 90, primeiro no continente asitico, depois no Oriente Mdio e norte da frica, e por
fim, ainda timidamente, na Amrica e Europa. S em 2011, a Coreia movimentou US$ 4,2 bilhes
em exportaes de produtos culturais. O governo sul-coreano j investiu quase US$ 1 bilho em
medidas de promoo e proteo da propriedade intelectual na construo de centros de
estudo e divulgao da cultura coreana mundo afora. Internamente, centenas de milhares de
empregos diretos ou indiretos so sustentados por esse mercado.
O pop coreano, filho da globalizao que permitiu a livre circulao de bens, apenas um dos
braos com os quais governo e empresas da pennsula asitica esto internacionalizando sua
economia nacional para enriquecer. No foi coincidncia que tantos brasileiros assistiram ao
Ronaldo danando Gangnam Style em seus televisores LG. Os coreanos tm planos ambiciosos e
metas agressivas. Nesse post, pretendo demonstrar como a onda coreana na esfera cultural
est ganhando o mundo e as projees para o futuro deste movimento to atual, que ainda
no conseguimos olhar em perspectiva e sobre o qual s podemos especular. No existem
frmulas para criar um sucesso pop garantido, mas ele s chega aos que esto preparados para
criar e receber, como muito bem ensinaram os filmes americanos, as msicas britnicas e os
games japoneses no sculo XX. A Coreia do Sul quer entrar neste seleto grupo de exportadores
culturais. Quer saber como? Vem comigo! O texto grande, favorite e leia aos poucos se achar
mais confortvel.
A PRIMEIRA
HALLYU 1.0

ONDA

Tropas americanas e das


Naes
Unidas
ocuparam a Coreia do
Sul durante a Guerra Civil
do pas nos anos 50,
deixando na pennsula
resduos
culturais.
Posteriormente, soldados
coreanos que auxiliaram
o esforo de guerra
americano no Vietn voltaram para seu pas de origem trazendo uma miscelnea de influncias
musicais: o rock e o folk dos Estados Unidos, o enka do Japo, ritmos latinos e cubanos, alm de
melodias de origem italiana e francesa. Com o processo de redemocratizao entre os anos 80
e 90 (A Coreia do Sul era ento um regime militar) e a flexibilizao das leis que limitavam a
entrada de contedo estrangeiro, esperava-se na Coreia uma invaso e dominao das
culturas americana e japonesa em detrimento da nacional. Contra todas as previses, no incio
dos anos 90 msicas nacionais tomaram os rdios, doramas se enraizaram na programao
televisiva e filmes coreanos no foram sufocados por Hollywood. Com o aprendizado obtido no
contato com os estrangeiros, os coreanos conseguiram produzir frutos culturais bons o bastante
para agradar o mercado interno nos anos 90. Eis que veio a Crise Asitica de 1997
A crise que afetou tigres e tigrinhos asiticos erodiu a economia coreana. Acostumados com a
lgica produtivista de criar objetos tangveis (carros, navios, circuitos eletrnicos), a crise obrigou
os coreanos a mergulhar em novas possibilidades do capitalismo, dando mais ateno ao

financeiro e especulativo no desenvolvimento de uma nova cultura industrial. Para a economia


sul-coreana, no bastava mais exportar chips, era preciso desbravar novos mercados e novas
possibilidades. Nesse ponto, empresrios e governo coreanos enxergaram na sua cultura pop e
nacional uma potencial mina de ouro.
Diferente do Japo, a
populao sul-coreana
pequena comparada aos
pases vizinhos, menos de
50 milhes de habitantes.
Isso
significa
que
o
mercado interno do pas

muito
pequeno.
Qualquer empresrio que
espera ganhar quantias
significativas de dinheiro
na Coreia precisa olhar
para mercados externos. assim com celular Samsung e com CD do Big Bang. Financiar a Hallyu
no foi um luxo, e sim uma necessidade comercial. Como afirma Bernie Cho, lder de um selo de
distribuio musical: Muitos artistas de alto nvel fazem mais dinheiro em uma semana no Japo
do que em um ano inteiro na Coreia. Isso ajuda a explicar por que o pop japons encontra hoje
dificuldades de exportao (seu mercado interno ainda grande o bastante, muitos
empresrios se agarram nesse porto seguro e produzem produtos s para pblico japons a
indstria de animes d tiros de canho no p com essa postura), enquanto o coreano cresce de
modo substancial (o imperativo da exportao obriga os coreanos a considerarem as
demandas dos mercados internacionais saibam, Super Junior foi criado sob medida para
agradar o pblico chins).
A crise no apenas abriu os olhos dos coreanos, mas tambm implodiu a economia dos pases
vizinhos, que, ainda incapazes de produzir cultura de qualidade internamente, tambm no
tinham dinheiro para gastar com o caro pop americano ou japons. O terreno estava
pavimentado para a invaso de Seul e os pioneiros dessa empreitada foram os doramas!
A onda comeou na
China com a exibio de
What is Love em 1997 e
Wish Upon a Star em 1999,
grandes
sucessos
de
audincia. Na cola deles,
grupos musicais coreanos
como H.O.T., NRG, BABY
V.O.X.
e
S.E.S.
conquistaram no s a
China,
mas
tambm
Taiwan, Hong Kong e
Vietn. O prprio termo Hallyu nasceu na mdia chinesa. Algumas verses dizem que o nome
veio de uma coletnea de msicas coreanas lanada no mercado chins no perodo. Outras
dizem que o termo apareceu em 1999 num jornal chins quando o H.O.T. fez uma apresentao
em Beijing. Detalhe: o termo, nessa verso, teria na verdade um tom cnico, numa aluso
lingstica que brinca com o termo Onda fria.

A brincadeira ganhou proporo com a conquista do mercado japons a partir da exibio de


Winter Sonata em 2003. Para que vocs tenham noo do sucesso, Junichiro Koizumi, ento
Primeiro Ministro da segunda maior economia do mundo, brincou, mencionando o protagonista
coreano: vou fazer um grande esforo para que eu possa ser to popular quanto Yon-sama e
ser chamado de Jun-sama [Yon-sama foi o apelido japons dado ao protagonista]. Winter
Sonata mexeu com a atual crise social da nao japonesa e balanou a viso histrica que os
nipnicos tinham dos coreanos como um povo inferiorizado:
Modismos vm e vo no Japo, mas este toca vrios problemas na sociedade japonesa e em
sua relao com a Coreia do Sul. Em uma sociedade dominada por um mal-estar generalizado,
onde a incerteza e o pessimismo preenchem as revistas com manchetes sobre homens e
mulheres que no se casam, no tm filhos, no fazem sexo, Yon-sama parece abordar a
nostalgia japonesa () sobre os anseios de mulheres de meia-idade em busca de uma conexo
emocional que lhes falta, e, talvez, acreditam no poder encontrar no Japo. (Norimitsu Onishi,
para o New York Times, 2004)
Paralelamente a Hallyu conquistou outros mercados. Novelas coreanas passaram a ser exibidas
em pases como Arbia Saudita, Rssia, Nigria, Colmbia, Israel, Bsnia, Turquia e EUA (para
citar apenas alguns pases de culturas diametralmente opostas que receberam igualmente bem
a produo coreana).
No Ir, a novela Dae
Jung Geum atingiu 86%
de audincia nacional,
chegando a 90% na
capital Teer.
Na onda dos doramas,
grupos de Kpop, com
auxlio
do
marketing
assertivo das agncias e
do
financiamento
e
proteo do governo
nacional, comearam a gravar discos tambm em chins e japons, para facilitar a penetrao
nestes mercados. A cantora BoA o principal nome deste momento da msica pop coreana (e
quase todos vocs devem ter conhecido ela por Every Heart, encerramento de Inu-Yasha
cantado em japons).
O interesse inicial por novelas e msicas coreanas levou a uma crescente curiosidade dos povos
vizinhos pela cultura coreana de um modo geral: alimentao, lngua, histria e produtos
culturais tradicionais passaram a ser conhecidos e consumidos. O estilo urbano de Seul, como
moda, padres de comportamento e consumo, comearam a ser imitados. O turismo para a
Coreia do Sul, um alvo pouco lembrado por viajantes internacionais, aumentou sensivelmente, e
pacotes de viagem que levam fs para conhecer dolos e set de filmagens locais so sucesso na
sia. Em casos extremos, a prpria febre por cirurgia plsticas (um problema social na Coreia)
consumida por estrangeiras, que procuram cirurgies coreanos para ganharem a aparncia de
alguma estrela do stardom sul-coreano.
Podemos concluir que a primeira onda de cultura coreana nos anos 90 e incio dos anos 2000 foi
um resultado do fim da polarizao poltica da Guerra Fria e incio da globalizao (que permitiu
a circulao de produtos culturais de um pas perifrico como a Coreia do Sul), da pequenez do
pas (percepo da necessidade de internacionalizao) e do esforo conjunto de empresrios

e
governantes
para
transformar a cultura do
pas, nacional e industrial,
em um produto a mais a
ser
ofertado
nos
mercados externos para
incrementar a economia
do pas como um todo.
Isto , o mundo mudou e
os coreanos souberam
surfar na onda gerada
pelo
abalo
ssmico
causado pela queda da
Unio Sovitica. Outro abalo aconteceu nos ltimos anos e mudou o pop coreano de modo
estrutural: a democratizao da internet pelo mundo. Apresento-lhes a Hallyu 2.0.
A SEGUNDA ONDA HALLYU 2.0
Se na primeira onda os pioneiros foram os doramas (apenas seguidos pela msica pop), na
segunda onda a ordem se inverte. O entusiasmo maior est sendo gerado por grupos de msica
pop como KARA, Girls Generation, Big Bang, SHINee, Super Junior, 2NE1, f(x), Wonder Girls, 2PM e
MBLAQ, para citar alguns dos principais; todos agenciados por grupos empresariais como as trs
irms S.M. Entertainment, J.Y.P. Entertainment e Y.G. Entertainment. Alm disso, a Hallyu 2.0
tipificada pela participao da internet e das redes sociais no processo de divulgao,
ferramenta essencial na manuteno e crescimento da onda, principalmente do Kpop. Qual a
importncia da internet?
Primeiro, a internet deu
maior poder de escolha
ao pblico. At um
passado muito recente,
ainda com o predomnio
das mdias tradicionais
(TV,
rdio,
cinema,
revista, jornal), o capital
tinha muito poder na
hora de decidir o que o
pblico iria consumir. No
era
fcil
para
uma
indstria cultural perifrica como a coreana bater de frente com estdios e gravadoras de EUA,
Inglaterra e Japo, no s pela qualidade indiscutvel destes concorrentes, mas tambm pelos
mtodos de sustentao do poder econmico que o capital acumulado deles proporcionava
(jab, controle acionrio dos grupos miditicos e etc.). Alm disso, mdias tradicionais precisam
de produtos culturais que movimentem altos volumes de dinheiro, logo, que sejam consumidos
por um nmero grande de pessoas, deixando pouco ou nenhum espao para os nichos. Na
internet o usurio busca e compartilha de modo legtimo o que lhe agrada, sem pretenses
comerciais. Voc, leitor do ChuNan, consumidor compulsivo de animaes japonesas que ,
deve entender o que estou falando se dependesse da Globo, voc no assistiria animes da
temporada. Nem mesmo ttulos de primeira grandeza como Evangelion ou Hunter x Hunter. Teria
que se contentar com Naruto e olhe l.

A internet tambm possibilitou o compartilhamento de um volume muito grande de informao


de modo instantneo e gratuito (novos fs) de uma msica multisensorial. O Kpop no s um
ritmo danante e uma melodia grudenta, ele conta tambm com a habilidade de dana dos
integrantes, figurino estilizado e beleza fsica e juvenil. Um trunfo do Kpop na era do Youtube.
O ltimo ponto, e no
menos importante, a
relao do pblico com
as agncias e seus dolos.
Na
Hallyu
1.0,
os
coreanos produziram um
pop agradvel, mas o
consumo dele era mais
passivo,
as
pessoas
recebiam o que as
agncias
acreditavam
que elas queriam (e de
certo modo, elas acertaram). Hoje os fs empenham papel ativo no movimento como cocriadores. Por exemplo, enquanto as agncias buscavam produzir msicas em outros idiomas
para agradar pblicos internacionais, elas descobriram que parte desse mercado demandava
as msicas originais em coreano, desse modo, o Big Bang promoveu seu lbum nos EUA em
coreano. Flashmobs e interao nas redes sociais mostram novos focos de demanda, como
Argentina, Peru e Cazaquisto, que esto recebendo ou esto para receber shows dos grupos
sul-coreanos.
Falando um pouco em nmeros, a 2.0 tambm aumentou em proporo. Girls Generation tocou
para mais de 140 mil japoneses, vendendo meio milho de lbuns nesse mercado. Sobre a
internet (ainda pr-Psy):

O principal jornal coreano, JoongAng Ilbo, publicou um artigo em Janeiro de 2011 analisando um total de
923 vdeos de cantores coreanos das trs maiores agncias de entretenimento que foram postados no
Youtube () De acordo com a anlise, usurios de internet de 229 pases assistiram aos vdeo 793.57
milhes de vezes em 2010. Por continente, o nmero bateu a marca de 566.27 milhes na sia, 123.47
milhes na Amrica do Norte e 55.37 milhes na Europa. Por nao, o Japo vem em primeiro com 113,53
milhes, seguido pela Tailndia com 99.51 milhes e os Estados Unidos com 94.87 milhes. (No Brasil,
pouco mais de 6 milhes, nmero superior ao alemo, mas inferior ao saudita)
A
FORA
COREANO

DO

POP

Ok, voc diz, j entendi o


contexto
histrico
do
surgimento
da
onda
coreana e percebi que
ela
tem
foras
impressionantes. Sei que
h esforos de instituies
diversas para a sua
popularizao. Mas nada
faz sucesso sem mritos. Quais so os mritos do pop coreano? O que nele conquista as
pessoas? , no sei. Ningum sabe ainda. Pelo menos no com certeza. H teorias diversas

defendidas em simpsios pela Coreia do Sul. Existem perspectivas nacionalistas, ps-coloniais,


neoliberais, entre outras. No vou me prender a escolas de pensamento, apenas pincelar
algumas vises mais bem aceitas ou propagadas.
H argumentos de que o que faz sucesso nos produtos da Hallyu a sensibilidade coreana. O
alicerce moral da cultura nacional deles o Confucionismo de origem chinesa. Entre os
principais pilares dessa moralidade esto a valorizao dos laos familiares e da harmonia na
sociedade. O pop coreano teria mantido esses princpios morais que dialogariam positivamente
com os demais pases influenciados pela mesma moralidade, justificando principalmente o
estrondoso sucesso dos doramas na sia. Eles fariam um contraponto s produes
individualistas e violentas de origem ocidental ou japonesa, se apresentando como uma
novidade em termos de esttica e roteiro. Mas isso no explica o sucesso, ainda que moderado,
da Hallyu fora da sia confucionista, nem cobre com um pano as produes coreanas de
sucesso igualmente sensacionalistas ou violentas.
Outros afirmam que o
pop
coreano
de
qualidade
encontrou
espao aberto nos pases
com sentimentos antijapons e anti-americano
da
sia.
O
Japo
barbarizou
algumas
regies nos tempos do
Imprio, imps medidas
de aculturao forada
e certas feridas histricas
ainda
no
foram
cicatrizadas. Em pases de passado ou presente Comunista, o sentimento contra Japo e EUA
ou foi institucionalizado no discurso do Estado e propagado nos livros didticos. A Coreia do Sul,
por outro lado, no seria enxergada como uma ameaa fsica ou cultural. Este argumento talvez
funcione para a China, mas se choca com os fatos de que o Japo e os EUA so culturas pop
presentes h muito mais tempo e com mais intensidade nos prprios pases que um dia
aoitaram (ou so acusados de terem aoitado) na sia.
Um terceiro argumento da Hallyu como resultado de um colonialismo cultural. O pop coreano
seria apenas uma cpia sem identidade das culturas estrangeiras, que jamais conseguiria sair da
sombra dos EUA e da Europa Ocidental, pois luta com as mesmas armas, s que mais
antiquadas, com menos munio, menos experincia de guerra e em terreno menos propcio.
No haveria futuro para a Hallyu sem se desvincular de uma tradio cultural que no a
coreana, esta, que aos poucos estaria sendo morta pela cultura pop. Financiar a Hallyu seria uma
morte em duas frentes; ela fracassaria, e levaria consigo a cultura nacional do pas. Uma viso a
meu ver muito fatalista e retrgrada de cultura.
A explicao comercialista no tenta encontrar verdades ocultas. Essa perspectiva enxerga a
cultura como um produto, produto como dinheiro, e dinheiro como prosperidade. Cultura seria
um elemento competitivo no comrcio internacional e o sucesso garantido com a plena
execuo de estratgias bem elaboradas de regulamentao da qualidade dos produtos da
Hallyu, distribuio global contnua por meio da produo em maior escala e desvinculao da
Hallyu com o fervor nacionalista. Nessa viso, enlatados culturais no matariam a cultura
coreana, ao contrrio, preparariam o terreno para a expanso e perpetuao dela, como

Godzilla teria feito por


Kurosawa pelo Japo.
Cultura pop e cultura
nacional andariam de
mos dadas em prol da
Coreia
do
Sul,
no
haveria por que tem-la.
Mas bastaria querer e ter
dinheiro para conseguir
despertar um carinho
significativo em tantas
culturas diferentes? Ento
por que outros no
conseguiram o mesmo? Viso dinheirista demais, parece subestimar elementos culturais e a
postura ativa dos receptores dela.
No h consenso quanto a isso. Todos os argumentos parecem ter fragilidades e no se
explicam por si s. Algo mais prximo da realidade talvez esteja na interseco desses e outros
elementos ainda no explorados. Mas vou tentar apresentar alguns argumentos favorveis aos
elementos internos da Hallyu, dos dois embaixadores da onda: doramas e Kpop.

Os K-doramas oferecem entrelaados temas de famlia, romance, amizade, artes marciais, guerras e
negcios, e so vistos como capazes de lidar com os seguros: eles so menos explcitos comparados aos
americanos, e aderem relacionamentos de um modo mais afetivo e significativo, mais emocional do que
sensual () Um olhar mais atento mostra que diferentes novelas so populares em diferentes pases por
razes diversas. Americanos acham os doramas coreanos relaxantes e alegres; europeus acham os roteiros
descomplicados
e
romnticos. Asiticos, por
sua vez, descobrem estilos
de vidas e tendncias que
pretendem
imitar.
A
represso sutil das emoes
e intensa paixo romntica
sem excesso de sexualidade
ressoa entre os espectadores
do Oriente Mdio.
Os doramas mostraram
um estilo de vida moderno e prspero, alm de vender o povo coreano como sofisticado,
educado e digo de respeito. Em pases como Japo e China, potncias regionais, serviu para
quebrar um pouco os preconceitos e esteretipos. Em pases mais pobres ou com
passado/presente comunista, como o Vietn, venderam um padro de vida prspero e
saudvel, logo, desejvel, aspiracional.
O Kpop, por outro lado, sustentado por uma indstria fonogrfica muito boa em vender
sensaes, algo que combina com o hedonismo contemporneo (ou com a viso ps-moderna
de alguns):

Na Coreia ns usamos msicas e performances muito poderosas. Tudo deve ser perfeito. A msica pop
japonesa no tem movimentos adorveis nem performances poderosas, mas na Coreia voc deve ser o

maior e se voc quer ser adorvel, voc tem que ser muito adorvel. Se quer ser sexy, tem que ser muito
sexy (Joy, do grupo Rania)
As agncias buscam
talentos cedo, e no s
na Coreia, mas na China,
Japo, Tailndia, EUA e
Canad, principalmente.
Artistas coreanos so
espartanamente
selecionados e treinados
para no apenas cantar
e danar, mas aprender
lnguas
e
culturas
estrangeiras, como se expressar, como se portar em pblico, como atuar. Rain, por exemplo,
alm de cantar, tambm atuou em filmes como Speed Racer e Ninja Assassin. O stardom sulcoreano muito seletivo, e com tanto treinamento holstico, dificilmente erra em atender as
demandas do seu pblico.
Mas ser que tudo so flores?
GANGNAM STYLE: PSY UM ICONOCLASTA?
Qualquer ocidental que
acompanhou a traduo
de Gangnam Style bateu
o martelo: essa letra tem
a profundidade de um
pires. Analistas coreanos,
em
contrapartida,
observaram nuances que
qualquer pessoa que
nunca esteve na Coreia
jamais poderia captar.
Com o clipe, Psy estaria
parodiando o estilo de vida de Gangnam, pequeno bairro dos endinheirados de Seul, sede de
empresas e lojas de grife, local criador de tendncias. 7% do PIB nacional concentrado em
poucos km. Mais do que isso, Psy estaria ridicularizando as pessoas que aspiram ao estilo de
Gangnam, isto , que querem fazer parte dele, mas no tem poder financeiro nem status social
para tal. Da no vdeo ele se veria numa hpica de um campo de polo (junto com o golfe, o
esporte smbolo dos ricos), mas depois percebe que est apenas dando voltas num cavalinho de
carrossel. Ou que ele est se bronzeado numa praia, para depois perceber que est bancando
o ridculo num playground. Estaria Psy marretando dolos?
O Kpop uma cria de Gangnam. As principais agncias de entretenimento que engendraram o
estilo esto sediadas l. HyunA, membro do 4minute, a ruivinha do metr que cavalga em cima
do Psy, contratada da Cube Entertainment de Gangnam-gu. Juntos, gravaram uma verso da
msica pelo ponto de vista feminino, e oppa Gangnam style foi substitudo por oppa is just my
style. O estilo juvenil e fashion de Gangnam que ela de fato faz parte e ajuda a propagar. Nessa
nova verso sai do palco o humor bufo e entra a seduo ao tempero asitico, pernas finas de

fora, aegyo no refro e um estilo infantilide de provocar. Sobre a participao dela no clipe
original, Psy relata sem falsa modstia:

Ela super no fazia esse tipo de coisa antes. Ela perguntou: Por qu? Por qu? Por que eu fiz isso?
Estava se perguntando o que isso? Ele fica me pedindo para fazer essa merda idiota. Eu no fao ideia.
Do que voc est falando? Em certo ponto ela percebeu o que estava acontecendo e disse: Ah, Psy, seu
idiota! Isso genial, demais! Foi isso que ela me disse no meio do clipe. E a ela fez certo.
Onde eu quero chegar?
A avacalhao de Psy
pode
no
estar
direcionada apenas de
modo geral ao estilo de
vida
glorificado
pela
regio de Seul, mas ao
prprio
sistema
de
manufatura de dolos do
qual ele faz parte. Park
[seu nome verdadeiro]
uma espcie de ovelha
desgarrada desse sistema; na casa dos 30, gordo, com pouco a oferecer em termos de capital
esttico, j foi detido por porte de maconha, fugiu do servio militar obrigatrio do pas e
testemunhou lbuns seus sendo censurados e banidos na Coreia. 1/5 disso seria mais do que
justificativa para a resciso contratual de uma estrela do stardom coreano. Falemos um pouco
dele.
Preciso e conformidade diferenciam o Kpop. Para a criao dos grupos, as agncias [diferente
do Ocidente, onde msicos so cuidados ou produzidos pelas gravadoras] precisam investir
alguns anos e milhes de dlares em treinamento. Grupos atuais com sete membros inicialmente
tinham 40 ou 50 jovens (alguns muito jovens) que foram pr-selecionados, mas acabaram
excludos um a um, sobrando apenas os mais aptos. A rotina de treinamento normalmente
ultrapassa 12 horas dirias, impedindo contato com famlia e amigos. Relaes amorosas so
proibidas por fora de contrato. Membros do grupo Rania, por exemplo, no podiam ter
telefone celular antes da estreia.
Apesar
da
rotina
sobrecarregada,
as
celebridades
mais
proeminentes costumam
ser
relativamente
respeitadas
por
suas
agncias, no apenas
pela exposio miditica
a qual esto expostas,
mas pela fonte de renda
que representam. Por
outro
lado,
inmeras
agncias menores so acusadas de propor contratos fusticos para jovens iludidos pelo sonho
da fama que ainda nem teriam condies de julgar a validade de clusulas to amarradas
presentes nos contratos que fecham ainda na adolescncia. So pactos com durao superior a
10 anos, com termos invasivos em suas vidas pessoais.

O Strait Times, jornal de Singapura, denunciou que a Alpha Entertainment veta contratualmente
a ingesto de alimentos e gua aps as 19h, bem como probe que seus pupilos saiam sem
superviso. De vez em quando os conflitos atingem at os grupos mais famosos. Han Geng, exSuper Junior de origem chinesa, processou o Grande Arquiteto do Kpop, empresrio Lee, por ser
forado a trabalhar dois anos seguidos sem um nico dia de folga, ter ficado doente por conta
disso, e no ter sido recompensado proporcionalmente de acordo com a lucratividade que
ajudou a gerar tudo baseado num contrato com durao de 13 anos assinado aos 18. O
tribunal sul-coreano deu ganho de causa para o jovem.
De modo curioso, Psy foi
o primeiro coreano a
genuinamente
bombar
nos Estados Unidos, e
conseguiu isso justo com
uma chacota sobre o
estilo
ao
qual
ele
supostamente
est
servindo como porta-voz.
No final do clipe, ele
canta triunfante em seu
trono hip hop estilo to
emulado pelos cantores da Coreia para depois compreender que ele est pagando de
bacana em uma privada. Ainda no comeo, ele dana contra o vento com uma beldade sob
cada brao, mas a sequncia pitoresca. Lixo arremessado na cara deles e as moas
demonstram evidente desconforto com a situao, enquanto um Psy impassvel se deleita com
seu momento de gangsta, totalmente desconectado do que acontece ao seu redor. Ludibriado.
Encantado demais para olhar em volta.
No s uma zombaria com as coreanas que andam de costas para perder peso e perseguem o
padro de beleza do mainstream, ou com aquelas que economizam no almoo para se
sentirem elegantes e superiores bebendo caf no Starbucks com o dinheiro (!) como enumera
Jea Kim, responsvel pelo blog Dear Korea. Talvez o estilingue do Psy mire tambm as pessoas
(os dolos pop juvenis) que ajudam a construir esse arqutipo de glamour que almeja a eterna
juventude, elas prprias vtimas do mito que arquitetam; afinal, os dois lados dessa moeda
dolos e fs, ou se preferir, produtores e consumidores esto dispostos a passar pelo crivo do
bisturi para se adequarem a ele (a Coreia do Sul o pas onde mais se faz, proporcionalmente,
cirurgias plsticas).
Requisitei a imagem do
estilingue
porque
obviamente Psy no usou
nenhuma arma letal. Sua
crtica no tem qualquer
pretenso destrutiva ou
reformista, ao contrrio,
sua inteno foi fazer as
pessoas darem risada
com o clipe, entreter. Est
aproveitando
como
ningum
o
sucesso

proporcionado por essa indstria de dolos. O rolo compressor de Gangnam Style no est
destruindo dolos, ao contrrio, de bom grado est na dianteira abrindo caminho para eles. No
sem um trao de deboche.
HALLYU NA COREIA DO NORTE
A onda coreana hoje consegue banhar at os lugares mais improvveis do mundo, como o
regime ditatorial norte-coreano, talvez o pas no mundo que mais controla o fluxo de
informaes. Doramas entram de forma clandestina, principalmente via China, ajudados pela
corrupo generalizada dentro do pas. Num verdadeiro processo de escambo, onde pessoas
trocam arroz por mdias com novelas gravadas, informao do Sul est penetrando aos poucos
no vizinho do norte. Lideranas de Pyongyang tem motivos suficientes para se preocupar, pois as
novelas servem como uma divulgao de um estilo de vida mais prspero do que aquele
fornecido populao pela dinastia Kim. No pas, ter posse, alugar ou emprestar contedo
visual de origem sul-coreana crime passvel de punies como prestao de servios forados
ou mesmo cadeia. A resposta do Estado para a produo e/ou divulgao massiva desse tipo
de material pode ser mesmo a Execuo em pblico.
A gerao Jangmadang
[pessoas que esto na
faixa dos 20-30 anos] no
parece se importar como
as passadas. Passaram
sua juventude durante a
Marcha da Tribulao
[perodo entre 94 e 98
onde a Coreia do Norte
sofreu com uma crise de
abastecimento
alimentcio, e centenas
de milhares - outros dizem milhes morreram de fome ou por problemas dela decorrentes] e
muitos j no nutrem a mesma simpatia pelo Estado ou pelo Juche [a ideologia oficial do Partido
Comunista criada por Kim Il Sung, que, segundo eles, seria uma evoluo do prprio pensamento
marxista]. Escaldados pela fome de outrora, tendo como prioridade o acesso seguro
alimentao, e conhecendo clandestinamente o estilo de vida dos irmos do sul, essa gerao
j apresenta focos de resistncia passiva ao sistema retrgrado dos Kim. No hesitam em optar
pelo mercado do contrabando para garantir sua subsistncia e alguns luxos. H relatos de jovens
norte-coreanos imitando cortes de cabelo e dana dos doramas do sul. O governo de Seul no
poderia ficar mais feliz.
ANTI-HALLYU?
No Japo, um dos principais mercados para a Hallyu, est acontecendo uma movimentao no
sentido oposto: a anti-Hallyu. Tudo comeou quando o ator Takaoka Sasuke foi demitido pela
sua agncia por criticar no Twitter a predominncia de programas de origem coreana
transmitidos pela Fuji TV. A discusso fomentada pelo caso ganhou tons de rivalidade poltica. No
dia 21 de Agosto, em torno de seis mil japoneses se reuniram na sede da emissora para protestar.
A acusao de que no existe onda coreana alguma no Japo, que no seria nada alm de
uma coqueluche artificial parida pela mdia, que fraudaria nmeros e informaes, interessados
em renovar a imagem da Coreia do Sul no pas. Teorias e evidncias pipocam por boards da
internet como o 2chan, onde investigaram e relataram que a Fuji TV acionista de inmeros

grupos ligados ao Kpop e teria interessa na fabricao do seu sucesso situao que fere a
constituio japonesa, pois estariam camuflando propaganda como mdia jornalstica.
Crticos dessa postura a
condenam
como
fanatismo
nacionalista.
Um modo antiquado de
enxergar o mundo e a
participao do Japo
na era globalizada. Essa
repulsa ao diferente seria
um suicdio para um pas
j em crise que demanda
com urgncia, na viso
deles,
medidas
de
reforma e abertura poltica. Os criticados respondem que nada tm contra coreanos ou contra
a Coreia, mas que no vlido fabricar uma febre que desvaloriza a cultura nacional e desloca
capital para outro pas. No protesto, um depoimento dizia: O Japo est passando por um
perodo difcil, e no h necessidade de assistir a um canal que apoia outros pases.
Independente de quem tenha razo nessa discusso, focos de resistncia na terceira economia
e no segundo maior mercado fonogrfico do mundo no uma boa notcia para os
empresrios coreanos e para a sobrevivncia do seu pop.
CONSIDERAES FINAIS

Muitos fs jovens ao redor do mundo experimentam a onda coreana como uma unificao, um
mecanismo de cura para suas almas feridas, e como uma sada para a auto-realizao. H alguns, no
entanto, que consideram a onda coreana como algo a ser combatido, porque eles a reconhecem como uma
invaso cultural (Park, Chang)
Gostaria de iniciar minhas consideraes finais com uma advertncia necessria. Por favor, no
superestimem a Hallyu. Falemos um pouco tambm a respeito de suas fragilidades. A indstria do
entretenimento coreana conseguiu se infiltrar entre gigantes e, como um todo, movimentar mais
de US$ 4 bilhes nos mercados externos durante o ano passado. Uma quantia notvel, mas
ainda insignificante quando comparada s indstrias nacionais que de fato mandam na
produo cultural do mundo. Em termos de comparao, um nico jogo de videogame
americano Call of Duty: Black Ops II arrecadou US$ 500 milhes em 24 horas. A alegoria de
uma briga entre Davi e Golias nesse momento indevida por sua inadequao, no existe a
menor possibilidade de Davi ameaar Golias, nem mesmo no longo prazo. O mximo que eles
conseguiro incomodar um pouco em certos momentos, e justamente neste ponto reside uma
ameaa para a onda coreana. Enquanto se pequeno, os grandes no se incomodam com
sua existncia. A partir do momento em que os coreanos comearem a morder alguma fatia do
mercado alheio, retaliao e protecionismo por parte das empresas concorrentes podem fechar
as portas para a Coreia em mercados essenciais. E acreditem, o impacto financeiro da Coreia no
Ocidente ainda insignificante, eles so grandes na sia, mas sequer arranham o Oeste. Mesmo
aparecendo na MTV. Mesmo bombando no Youtube.
Protecionismo pode existir no apenas em termos de concorrncia mercadolgica, mas
envolver protecionismo nacional. No Japo j h movimentos de tom nacionalista contrrios
invaso dos produtos coreanos, enquanto na China o Partido Comunista j baixou leis limitando
a transmisso de produes estrangeiras, enquanto estudam meios deles mesmos criarem uma

cultura pop atrativa que


no ameace seu regime
os chineses sabem que
no podem ser apenas
uma potncia militar e
poltica, cedo ou tarde
precisaro
conquistar
tambm o corao dos
outros povos [Soft Power],
e no h o menor
interesse de Pequim em
permitir uma invaso
coreana
arquitetada
pelo governo de Seul. A Coreia do Sul no ter vida fcil nos seus trs principais mercados.

Dez ou vinte anos atrs, estvamos preocupados com os efeitos sociais das culturas americana e japonesa
no nosso pas. Ns repreendemos os jovens que se satisfaziam com elas e tomamos medidas para proteger
nossa cultura [coreana]. Quando as invases americana e japonesa se converteram em invaso econmica
por meio da venda de produtos culturais, ns nos irritamos e levantamos nossas vozes. Agora que o sapato
est em outro p, ns no pensamos seriamente sobre o que a Onda Coreana significa para as pessoas do
outro lado (Won Yong-jin, crtico cultural)
Uma limitao estrutural do pop coreano sua pouca diversidade e baixa criatividade. A
indstria ainda est muito refm do Kpop e dos doramas, sem nada muito significativo para
combater em outras frentes. Alm disso, praticamente todos os grupos musicais esto criando
sob a mesma frmula de origem americana e os empresrios das agncias admitem que o
Kpop apresenta uma lacuna em inovao; apenas com dana competente, a onda no ir
longe. Enquanto eles apenas emularem invenes e estilos americanos com o acrscimo de
uma alma coreana, eles nunca conquistaro os mercados ocidentais que no enxergam isso
como algo legtimo. Tampouco conseguem reconhecer o que seria um verniz coreano.
Uma ala de crticos
culturais defende que a
Coreia precisa seguir o
exemplo do Japo e
vender melhor a cultura
nacional do pas como
um todo. O Japo se
beneficiou
do
seu
exotismo perante o olhar
ocidental e desde o
sculo XIX espalhou seus
tentculos pelo mundo.
Da apropriao da arte
pictrica nipnica pelos artistas impressionistas europeus at a propagao das artes marciais,
da literatura, do vesturio entre outros tantos exemplos (o anime Ikoku Meiro no Croise se passa
nesse contexto). Cultura pop descartvel por definio. Seria necessrio fazer com que
pessoas de todos os cantos do planeta se apaixonem pela cultura do pas para a indstria no
ficar refm da fugacidade dos seus produtos. Para o futuro da onda, seria preciso que as pessoas
queiram se sentir um pouco coreanas, invejem os coreanos, sonhem em fazer parte e

compartilhar alguns elementos dessa cultura como meninos colombianos fazem com a
americana.
No uma opinio unnime. Maxwell Coll, jornalista residente em Seul, cr justamente no
oposto. O esforo governamental concedido popularizao da cultura coreana, que ajudou
financeira e legalmente o crescimento da Hallyu em seus primrdios, hoje se apresentaria como
seu principal gargalo e ameaa. Os polticos de Seul, no interessados apenas no impacto
econmico, mas sobretudo na imagem e identidade do pas, estariam matando a
espontaneidade do pop produzido na Coreia. Ao se esforar para melhorar a imagem do pas
no exterior e aumentar a autoestima dos cidados, o governo estaria se intrometendo no
mercado e forjando produtos com uma coreanidade artificial. Com uma agenda poltica por
trs, a Hallyu estaria negligenciando as demandas dos fs ou seja, o mercado e
superestimando o aspecto nacional de produtos que fazem sucesso justamente por seu perfil
global. Nas suas palavras: o governo, com suas iniciativas culturais e comentaristas
nacionalistas, esto prejudicando os artistas coreanos e limitando o potencial da Hallyu. Eles
esto fazendo um desservio aos atores, cantores, produtores e diretores.
No s fragilidades e
ameaas esperam os
coreanos no futuro. Um
papel interessante que a
Hallyu j est fazendo, e
impulsionar ainda mais,

a
renovao
da
imagem
interna
e
externa
da
nao
coreana. Historicamente
tratados e vistos como
inferiores por vizinhos e
dominadores, os coreanos esto conseguindo renovar essa identidade na aldeia global apesar
das suas limitaes sociais e geogrficas.
A Hallyu tambm tem potencial para atacar em novas frentes. O cinema coreano hoje um dos
mais respeitados do mundo. Filmes pipoca como Oldboy e Shiri ganharam projeo
internacional, ao passo que na ala cult, Kim Ki-duk faturou o Leo de Ouro no Festival de Veneza
deste ano, entrando de vez para a seleo dos principais diretores da atualidade. Na literatura,
escritores como Shin Kyung-sook e Kim Young-ha j esto sendo editados em mercados
internacionais e podem render frutos num mdio-longo prazo.
Enfim, resta-nos observar os prximos passos da Hallyu para saber se a onda ganhar fora e se
tornar um tsunami a encharcar mercados resistentes, ou se perder vitalidade e findar como
uma marolinha no mar do Japo.

14 de Junho, 2013

Otakismo Um panorama da arte contempornea japonesa


Ao
discutir
arte
contempornea do Japo, h
uma necessidade crnica de
ir alm do kawaii, anime,
mang, otaku e essas coisas.
De muitas maneiras, o que o
Ocidente v como o Japo
de hoje mais precisamente
um reflexo dos dias de glria da gerao otaku nos anos 90, ou seja, uma viso do Japo 10 anos
desatualizada. (Adrian Favell, em 2009!)
Quando somos levados a pensar em arte japonesa, uma sorte de figuras costuma aparecer em
nossas mentes de imediato. Imagens chapadas de pontes, flores ou do Monte Fuji, construdas
com pinceladas precisas e suaves. Alguns podem buscar a memria do som do shamisen
acompanhando a dana das gueixas. Entre outros exemplos, quando se fala de arte japonesa,
as imagens que povoam o imaginrio coletivo, de modo geral, so aquelas do Perodo Edo
(1603-1868), tpicas do Japo recm-descoberto pelo Ocidente no sculo XIX ou baseadas no
estilo artstico daquela poca. Se nos desafiarmos a pensar o que a arte japonesa de hoje em
dia, muito provvel que nossa primeira lembrana seja dos produtos de consumo da indstria
pop japonesa, advinda dos mangs, animes e jogos eletrnicos. Temos dificuldade em distinguir
o que arte ou entretenimento nas produes japonesas que vieram aps a pacificao do
pas com o trmino da Segunda Guerra Mundial.
Existe uma explicao
para o fato de que as
imagens do Japo pop
tenham
sido
internacionalmente
generalizadas como a
representao do Japo
do nosso tempo, ou
melhor, nomeadas como
embaixadoras do pas
mundo
afora.
Essa
justificativa no passa
pela
hiptese
da
inexistncia de artistas de
qualidade (entendendo artista na concepo ocidental do termo). O ps-guerra japons
apresentou artistas de renome como Yayoi Kusama, Hiroshi Sugimoto, Yasumasa Morimura, Yoko
Ono, Tatsuyo Miyajima e Tadashi Kawamata. Trouxe tambm contribuies importantes em
movimentos modernos como a Anti-art e o Mono-ha. Atualmente continua preparando jovens
com grande potencial, caso da Tabaimo, Miwa Yanagi, Motohiko Odani e Kohei Nawa. Apesar
disso, apenas trs artistas contemporneos do Japo so mencionados como nomes que
guiaro o mundo da arte no sculo XXI junto com os estrangeiros, todos eles relacionados de
alguma maneira com as fantasias pop do movimento Superflat: Takashi Murakami, Yoshitomo
Nara e Mariko Mori. Murakami, particularmente, foi considerado pela revista Time como uma das
100 pessoas mais influentes do mundo em 2008.
Que caminho percorreu a arte japonesa no final do sc. XX para que ela se confundisse com o
imaginrio descartvel da cultura pop comercial? Para esclarecer essa questo, ser necessrio
primeiro mapear o contexto histrico, de modo que a produo artstica nipnica seja
compreendida luz da realidade objetiva do pas que lhe deu origem. Com tal misso, este
texto passar brevemente pelo contexto global do nosso tempo, pela histria do ps-guerra
asitico (pela relao do povo com a sua memria histrica) e pelos esforos do governo

japons
em
internacionalizar
sua
cultura nacional. Por fim,
investigar o que a arte
contempornea
do
Japo
produziu
nas
ltimas duas dcadas,
seus principais artistas e
movimentos
(Superflat,
Zero Zero Generation,
ChimPom e etc.), suas
implicaes
e
provocaes
direcionadas ao povo
japons
e
ao
mundo/mercado da arte, bem como descobrir as vozes que no compactuam com esse
universo pop, mas foram abafadas pela onipotncia do discurso Superflat dentro e fora do
Japo enquanto tentam demonstrar que o pas no apenas composto de Hello Kittys. Nas
consideraes finais, o texto passar pelo que podemos esperar da produo artstica japonesa
no futuro, tendo em vista que ela foi profundamente modificada em propsito pelos desastres
naturais e atmico de Fukushima, alm de encarar a desleal concorrncia por ateno e
financiamento com a emergente produo artstica da China (China Mania). Espero poder
levantar questes relevantes durante a leitura deste artigo!
Antes de falar de arte
japonesa, eu preciso falar
um pouco do ambiente
japons. Ah, o texto
grande, leia aos poucos
se julgar mais confortvel.

~COOL JAPAN~
Cool Japan celebrou o
Japo quando no havia
muito o que celebrar. Ao
contrrio.
Polticos
estagnados,
negcios
internacionais
vacilantes,
m relao com o resto da sia, uma crise demogrfica iminente, um monte de jovens trancados em seus
quartos com problemas psicolgicos. Apesar disso, depois do 11 de Setembro nos EUA, houve uma
demanda por imagens de brilhantes torres prateadas com flores e dinossauros felizes [Roppongi Hills], e
no de uma colapsando com fumaa e chamas ao redor [World Trade Center]. (Adrian Favell)
Nenhum pas no mundo apresentou durante o sculo passado crescimento econmico e
progresso material de forma to vertiginosa quanto o Japo. O pas emergiu da 2 Guerra
fisicamente em frangalhos, militarmente ocupado e moralmente arruinado. Quatro dcadas
depois as corporaes japonesas solapavam colossos industriais dos Estados Unidos e Europa
enquanto economistas apostavam na inevitvel superao da economia americana pela
nipnica. Isso no aconteceu, ao contrrio, desde o incio dos anos 90, quando estourou a bolha
imobiliria do pas, o Japo se encontra estagnado, sofrendo h mais de 15 anos com uma
economia deflacionria que perde dia aps dia a relevncia e a competitividade que possua
nas dcadas passadas.
Como afirmou o prprio governo japons em um relatrio oficial: J no podemos mais contar com

os modelos convencionais da indstria e economia japonesa, que consistem em produo em massa,


consumo em massa e competio por custo. O Japo no ir sobreviver sem a criao de novas fontes de
receita. Com a falncia do modelo econmico responsvel pelo Milagre Japons, o governo

buscou novas formas de


rentabilizar sua produo,
e enxergou em sua
cultura
nacional,
principalmente a cultura
pop, uma alternativa de
valor.

De alguma maneira, nesse


universo
dos
animes,
mangs e jogos, criou-se
uma
aproximao
com
algumas questes que esto
em jogo em diversas
situaes e se referem
perda da humanidade, da identidade, dos gneros, ou da prpria vida. o mundo ps-Akira que comea
quando quase tudo j acabou, como props Katsuhiro Otomo no mang de 1984, que originou o filme
homnimo. Christine Greiner
A nova poltica comercial recebeu o nome oficial Cool Japan, possivelmente inspirado no
esforo ingls de fazer o mesmo com o Britpop, denominado Cool Britannia. O Ministrio da
Economia, Comrcio e Indstria espera quadruplicar o faturamento com a exportao de
elementos culturais at 2020, saltando dos atuais US$50 bilhes para desejveis US$200 bilhes,
tendo como foco estratgico a alimentao, moda, anime, mang, artesanato, utenslios do
cotidiano e turismo; Alm de usar, claro, sua desejada imagem pop como atributo para
agregar valor em sua
produo
industrial
(marketing). Com a mira
apontada,
sobretudo
para a classe mdia
ascendente
da
sia,
como as de Singapura e
Indonsia, o Japo tem
relatrios detalhados com
os
passos
necessrios
para se tornar cool em
cada pas. No caso de
Singapura, por exemplo,
o governo claro:

A crescente popularidade do contedo da Coreia do Sul est causando um declnio na imagem do Japo
ente os jovens que determinam o que popular em Singapura e em outras naes asiticas. Para reverter
esta tendncia, este projeto vai trabalhar como um consrcio composto principalmente por empresas
japonesas
que
esto
alarmadas com a situao
presente, para garantir
oportunidades de exposio
regular de contedo japons
e para que os membros do
consrcio adquiram ganhos
no exterior (METI)
Adrian Favell classifica o
Cool Japan como um
Neo-Japonisme,
um
renascimento do encanto
ocidental pelo Japo
(em
referncia
ao

Japonisme do sculo XIX, momento no qual inmeros artistas impressionistas europeus se


inspiraram na arte clssica japonesa). No foi por acaso que o Japo se tornou pop no mundo
inteiro a partir dos anos 90 (e o boom comeou no Brasil em 1994 com Cavaleiros do Zodaco). O
esteretipo do salaryman japons, que produzia as maravilhas tecnolgicas modernas como o
Walkman, foi substitudo de modo consciente e arquitetado pelo esteretipo da cultura
urbana e otaku japonesa, do divertimento jovem, hedonista e descompromissado.
A influncia da cultura japonesa deveria substituir a extenso internacional da manufatura e das
finanas nipnicas. Cool Japan, nas mos dos polticos conservadores do pas, se tornou
ferramenta de poltica externa. O Ministrio de Relaes Exteriores do Japo nomeou como
embaixadoras do kawaii trs meninas vestidas com a moda juvenil de Harajuku. Garotos
propaganda da cultura japonesa foram internacionalmente divulgados, como os cineastas
Takeshi beat Kitano e Takashi Miike, o fashion designer Issey Miyake, o romancista Haruki
Murakami, o chefe de cozinha Nobu Matsuhisa, o artista plstico Takashi Murakami (de quem
falarei muito), entre outros.
rgos como o Japanese
Foreign Ministry, a Japan
Foundation e a Agency
for Cultural Affairs (Bunkacho) gastam milhes de
ienes todos os anos para
moldar a imagem que o
Japo presente ter no
mundo.
A
arte
contempornea
virou
uma das principais frentes
de batalha por dialogar
com uma elite rica e
cosmopolita.

O que eles falavam a respeito, enquanto a economia permanecia estagnada e a influncia do Japo no
mundo diminua, era cultura: como ressignificar e remontar a imagem internacional do Japo. E assim eles
colocaram mangs e animes em folhetos oficiais. Videogames e personagens de brinquedo substituram
carros e computadores como os smbolos principais da indstria exportadora japonesa (Adrian favell)
evidente, apenas o lobby poltico de Tquio no seria capaz de criar uma mentalidade
voltada para a arte, a realidade mundana do Japo ps-industrial foi um excelente combustvel
para movimentar esta mquina. A economia degringolou, o Imperador Hiroito morreu (em 1989)
e o perodo Showa terminou levando consigo os tempos ureos do pas. O capital internacional
migrou para outras regies da sia, como a China e a Coreia do Sul, e o sonho japons
terminou. Sem esperanas de encontrar ou construir um futuro melhor para si e para o Japo,
muitos jovens perderam a referncia e passaram a apresentar srios problemas de socializao.
A sociologia japonesa a
partir dos anos 90 criou ou
intensificou o uso de uma
infinidade de termos para
tipific-los,
como
hikikomori
(isolamento
domstico
extremo),
parasaito singuru (adultos
solteiros
que
vivem
eternamente na casa dos
pais), make inu (mulheres
que no se casam), enjo
kosai
(meninas
quase
sempre menores de idade
que
participam
de

encontros compensados), homens herbvoros (que voluntariamente deixam de competir por


mulheres e empregos), otaku e etc.
Outros jovens, no entanto,
reagiram
de
modo
diferente ao Japo que
gangrenou. Com sonhos
esfacelados,
eles
debandaram do sistema
corporativo japons para
viver
como
espritos
livres,
afastados
da
lgica comercial vigente.
Eles aceitam viver de
freelas ou em empregos
temporrios que apenas
garantem
subsistncia
sem luxos. O entusiasmo
dessas pessoas, que em tempos melhores era aproveitado pela indstria do pas, hoje quase
que completamente desaguada em expresses culturais. a gerao de Hiroshi Fujiwara,
Cornelius e Jun Takahashi. Tendo que viver num mundo de fantasias, fartamente alimentados por
mangs e animes, estes jovens do corpo aos seus pensamentos na forma de arte, geralmente
ingnua e quase sempre medocre, enquanto esto trancados em seus quartos.
Favell defende que o Japo atual vive um supervit criativo, mas ele no est mais sendo
empregado pela indstria nacional para se reinventar e recuperar a competitividade perdida
nos mercados internacionais, est sendo, na verdade, desperdiado em arte adolescente. Do
mesmo modo que, como orientam Hiroki Azuma e Etienne Barral, o rgido ensino matemtico das
escolas japonesas no est sendo integralmente aproveitado em complexos sistemas estatsticos
que aperfeioam a administrao corporativa. Muitos jovens esto usando estas habilidades
adquiridas para registrar e categorizar dados inteis sobre suas fixaes nerd, atividade que no
o leva, nem leva seu pas, a lugar algum (tabulao uma das caractersticas que melhor
caracteriza um otaku hardcore no toa, o livro do Azuma chama-se Otaku: Japans
database animals).
Vamos l, passagem do sc. XX ao XXI, esforo governamental para a popularizao do Cool
Japan e uma gerao de jovens imaturos criadores. Podemos, finalmente, entrar onde interessa.
O Manifesto Superflat de Takashi Murakami.

SUPERFLAT
O que aparentemente era entendido apenas como entretenimento ou depravao acabou por revelar
espao importante para reflexo e manifestao de ideias. Quando o artista Takashi Murakami lanou seu
manifesto Superflat, em 2001, o mundo passou a compreender as experincias otaku ou o mundo dos nerds
sob um vis politizado. A exposio de suas obras em Nova York (Little Boy: the arts of Japan exploding
subculture, 2005) retomou a Segunda Guerra e as bombas atmicas, identificando os japoneses, desde
ento, como portadores de membros fantasmas que no seriam propriamente braos e pernas amputados,
mas princpios dilacerados. Little Boy era codinome da bomba atmica que explodiu em Hiroshima ().
Desde ento a questo mais complicada passou a ser como olhar para frente sem tentar erradicar a histria
ou como conviver com a noo de sujeito individual, importada do Ocidente, sem perder o sentido da
coletividade Christine Greiner
Superflat [supercompactao/supernivelamento/superachatamento] no apenas um estilo
artstico do criador Murakami, ou o nome de uma exposio em particular, mais do que isso (j
que abarca tambm esses fatores), uma teorizao sobre a produo e o consumo de arte no
mundo globalizado que surgiu com a queda da URSS. Movimento esttico ps-moderno nascido
nas artes plsticas japonesas, parte do pressuposto de que o mundo est bidimensional.

O Superflat, em termos
estticos, uma criao
que faz ponte entre a
arte clssica japonesa (j
que perspectiva e outras
tcnicas
desenvolvidas
na
Europa
medieval
ainda
no
eram
conhecidas) e a cultura
pop do Japo. Dito de
outra forma, ela faz
construes
com
o
imaginrio otaku (animes,
mangs
e
games),
utilizando algumas tcnicas e estticas que consagraram a arte japonesa pr-ocidentalizao
(no exclusivamente, j que os mangs foram imensamente influenciados pelas tcnicas
ocidentais). Suas obras so propositalmente artificiais, sem profundidade aparente. Parecem
ilustraes publicitrias criadas por designers grficos. Atraente e de fcil consumo, a arte
Superflat, nas palavras da curadora Catherine Taft, tem muita fora por dar a impresso de que
oculta algo do espectador. Por trs das suas imagens pop e descartveis, s vezes grosseiras e
de mau gosto, esconde-se algo perturbador e provocativo. Porque realmente tem. Como
defendeu o curador na exposio de Los Angeles, Michael Darling, Murakami ficou famoso por
colocar sentido em produtos comerciais superficiais e vender isso aos adultos por milhes de
dlares.

O mundo do futuro pode ser como o Japo hoje Superflat. Sociedade, costumes, arte, cultura: todos
esto extremamente bidimensionais (T. Murakami)
O Superflat, em termos
conceituais, turvou as
fronteiras entre a alta
arte e a cultura popular,
entre local e global,
Japo
e
EUA,
modernismo
e
psmodernismo, real e virtual,
capitalismo e arte, leste e
oeste, analgico e digital.
Todas
estas
coisas
estariam
niveladas,
supercompactadas
e
indistinguveis no mundo
contemporneo, como um hambrguer cultural. Tudo no mundo est processado, prontamente
disponvel para ser digerido com igual facilidade, mas tambm est achatado e sem
profundidade. Carregam consigo apenas odores daquilo que um dia lhes caracterizavam. Assim
a provocativa arte de Murakami: flat, como a tela do computador que produz arte no mundo
de hoje. Flat, como ficaram as cidades de Hiroshima e Nagasaki aps os ataques nucleares. Isso
fica muito claro quando ele coloca suas esculturas plsticas multicoloridas em exposio no
opulento Palcio de Versailles na Frana, smbolo da realeza e da alta cultura europeia.
Murakami um terico da arte, publicou livros como The Art Entrepreneurship Theory e Art Theory
Battle, e tem muito a dizer sobre o atual estado da sociedade japonesa.

A superfcie lisa do Superflat um terreno de contestao, marcando tanto a ausncia de divises


hierrquicas entre a arte e cultura tradicional quanto a presena de mltiplas estruturas que demarcam os
diversos contextos culturais, polticos, sociais e histricos aos quais o Superflat se insere medida que
circula globalmente (K. Sharp)

Mais do que denunciar o


nivelamento do Japo, e
de certa forma de todo o
planeta,
o
manifesto
Superflat
tem
uma
proposta
destrutiva e
reformadora
que
direciona seus canhes
ao
mundo
da
arte
japons
(e
por
isso
mesmo
jamais
concordaria com crticos
de arte como Jerry Saltz
que afirmam Murakami
como um simples vendedor de sensaes visuais). Crtico ferrenho da arte moderna japonesa
(kindai bijutsu), Murakami delata seus conterrneos por se apropriarem de maneira malfeita e
incompleta, ainda por cima dos conceitos e instituies da arte ocidental no perodo Meiji
(1868-1912). Tcnicas, materiais, a noo de museu, escolas de arte e o prprio conceito de arte
do Oeste (todos diferentes das japonesas) foram importados e assimilados sem maiores critrios e
consideraes pela tradio artstica nacional. Murakami veria no mang, no anime, na moda e
no design grfico do Japo atual a beleza e a originalidade artstica do passado, sumariamente
descartadas pela arte moderna do pas. A crtica no ao padro da arte ocidental em si, mas
absoro acrtica dela por parte dos japoneses.
Murakami e seu manifesto so hbridos. A pop-art americana sua grande influncia, enquanto
Andy Warhol e Jeff Koons so referncias declaradas do japons. Ao mesmo tempo, ele se
formou na Geidai e foi o primeiro Ph. D em nihonga na histria do Japo (nihonga a produo
de arte que segue as convenes estticas e materiais japonesas pr-ocidentalizao). Com
proposta global, fez grandes esforos para internacionalizar sua arte e os produtos
manufaturados produzidos em seus estdios, que levam o carimbo da sua valiosa marca. E
conseguiu. Murakami levou sua arte para Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Bilbao, Londres,
Veneza e Frankfurt. Dono de forte veia comercial, 70% de suas obras foram comercializadas no
Ocidente, e no no Japo. Ele globalizou sua arte no apenas porque gosta de ganhar dinheiro
com isso, mas porque isso tambm faz parte do seu manifesto.

Quando os produtos e
costumes pop saram do
Japo,
tornaram-se
independentes do contexto
em que foram concebidos, e,
na maioria das vezes,
passaram a ser embalados
na
esttica
da
mera
diverso. Murakami far
uma crtica sociedade
japonesa consumista, e ao
mesmo tempo mostrar
como uma nova gerao de
artistas poderia valer-se do
prprio mercado e dos meandros da poltica cultural para construir um novo pensamento, aliando arte e
consumo (Christine Greiner)
Ao crescer junto a outros artistas que foram identificados como representantes do neo-pop,
Murakami, segundo leitura de Noi Sawagiri, parodiou o infantilismo da cultura de consumo
japonesa do ps-guerra. Eles remixavam e faziam sampling (atitude 100% ps-moderna, no?)
usando as referncias da cultura junk com a qual os japoneses preencheram suas vidas pacficas
e dependentes dos EUA. Os americanos criaram o novo Japo com a cultura pop fazendo o

papel do cimento que pavimentava o futuro e amaciava os nativos (outrora ensinados pela
lgica militarista do Imprio Japons). Inundaram a vida dos japoneses com seus enlatados
culturais. Os japoneses gostaram. No s gostaram como aprenderam a fazer o mesmo. Com o
Superflat sendo apresentado no exterior, Murakami devolveu a cria aos criadores. Ele pegou
todo o entulho cultural que despejaram no Japo, reprocessou, prensou tudo at deix-lo flat
como fazem os caminhes de lixo, e enfiou num container destinado aos Estados Unidos. Sua
exposio encheu Nova Iorque com imagens de menininhas pr-pberes perigosamente
seminuas, sugestivos cogumelos (atmicos), flores sorridentes e uma gigantesca esttua de um
jovem ejaculando. Foi a vez dos americanos. Eles adoraram. Gastaram fortunas comprando as
obras e os produtos confeccionados nos estdios do Murakami. E a cobra acabou mordendo o
prprio rabo.

No seria exagero dizer


que a constituio feita pelos
americanos [imposta ao
Japo em 1945] impediu a
nao de tomar uma postura
agressiva e forou o povo
japons no sentido de uma
mentalidade de dependncia
sob a proteo militar dos
Estados Unidos. No entanto,
por mais justa ou injusta que
tenha sido a posio
americana na poca, ela
lanou o Japo ao papel de
uma criana obrigada a seguir a orientao adulta dos Estados Unidos (T. Murakami)
Provocaes parte, a cama j estava montada. Mais do que depositar no Japo sua cultura,
o governo americano foi um pai muito rgido para os japoneses. Na viso de Murakami,
infantilizou o pas ao impedi-lo de desenvolver suas Foras Armadas numa regio abarrotada de
potncias blicas (os nucleares China, Rssia, ndia, Paquisto e agora Coreia do Norte, alm do
poderoso exrcito sul-coreano), sendo que o pas ainda tem disputas territoriais em andamento,
como as ilhas Curilas com a Rssia e as ilhas Senkaku com a China. Quando uma disputa retrica
ameaa ferver o Pacfico, principalmente agora que a sia est se tornando o centro
geopoltico do mundo, o Japo precisa correr para o colo dos americanos.
Ben Hamamoto enxerga
essa
mesma
infantilizao, mas com
outras
lentes.
Os
americanos
poderiam
transformar o arquiplago
num gigantesco pasto
aps
a
Rendio
Incondicional se assim
desejassem (e
muitos
queriam),
mas
por
questes
estratgicas
colocaram o Japo na
direo do progresso
material. Mais do que isso, no levaram o Imperador ao julgamento das cortes internacionais
para ser avaliado por crimes de guerra pelos quais foi responsvel, permitindo assim que o Japo
silenciasse sobre seus abusos militares privilgio no concedido aos demais pases derrotados,
sobretudo Alemanha e Itlia.
Esvaziaram a memria histrica do povo japons. No pense no passado, aproveite o seu
presente que prspero, ensinaram s crianas do Japo. Esse mindset, o excesso de paz fsica

do ps-guerra e a dependncia geral em relao aos EUA teriam ajudado a criar uma
mentalidade mimada, dependente, frgil e pueril no Japo amplamente disseminada pela
cultura pop e agora ironizada pelo Superflat. Os artistas ligados ao movimento no vivenciaram
a guerra ou seus momentos de reconstruo, mas so testemunhas vivas de um processo radical
de ocidentalizao e a conseqente dificuldade de fixar uma identidade numa atmosfera to
fluida.

Renderizar um pas atravs de uma figura bidimensional fofinha tambm proporciona uma forma de
mascarar o cadver ensangentado do cachorro que o Japo Imperialista [referncia ao personagem
Maromi do anime Paranoia Agent]. Experincias com humanos (incluindo vivisseces sem anestesias),
rapto de mulheres para servirem de escravas sexuais, e o infame Massacre de Nanquim; todas essas coisas
escondidas debaixo do olhar tolo da Hello Kitty. O Japo foi tambm um participante extra-oficial na
Guerra do Vietn, Guerra da Coreia e nas Guerras do Iraque. Ainda sim o Japo visto como inocente e
pacfico. (Ben Hamamoto)
Essa ideia poderosa. A
arte criada nos tempos
do
Cool
Japan
frequentemente remete
cultura das garotas.
Seja ao dar espao para
a criao delas prprias,
seja ao pintar a fantasia
do que a cultura
infanto-feminina
que
brotava das cabeas dos
homens otaku envolvidos
com
o
Superflat
(obcecados
pela
juventude e frescor delas). Cores chapadas, meninas virginais e vulnerveis, mas ao mesmo
tempo um pouco ressentidas e violentas um quadro freqente na arte contempornea
japonesa. Murakami reuniu algumas dessas meninas (Aya Takano, Chiho Aoshima e Mahomi
Kunikata) sob a sua bandeira Superflat na exposio Tokyo Girls Bravo, que foi levada da capital
japonesa costa oeste americana. No catlogo, artes pueris, fotos das artistas remetendo
mocidade (ainda que algumas delas j beirassem os 30 anos), mas com descries textuais
duras: relatos de angstias existenciais, perverses sexuais e violncia. Kunikata levou isso alm e
foi mais direta na explorao destes elementos. Essas meninas eram, sob qualquer perspectiva
crtica, amadoras. Murakami as empacotou como o melhor da arte contempornea japonesa.
O mundo comprou a ideia.
Em sua escola de arte
(GEISAI), Murakami trouxe
para baixo de sua tutela
esses jovens insatisfeitos
com o intuito de destruir o
sistema de arte vigente
no Japo. Em seus
estdios KAIKAI KIKI, em
Tquio e no Brooklyn
(EUA), a produo de arte
e
dos
artigos
colecionveis
com
a
marca MURAKAMI, como
chaveiros e camisetas,
funciona em regime fordista. Seu papel na histria da arte mundial ficar marcado pela forma
como ele trabalhou o branding (a gesto da marca pessoal) da sua produo criativa, unindo
conceito artstico e sanha comercial. Foi um dos precursores, no mundo, da arte na era da
internet 2.0 (banda larga, 3G, blogging, wiki, redes sociais, fruns de discusso, scanner pessoal e

proliferao dos softwares de edio de imagens). Sua arte funciona bem, talvez at melhor,
fora das galerias. Pode ser consumida e distribuda na tela do PC. Vendida em chaveiros,
cadernos e bolsas mesmo as Louis Vuitton (afinal, o mundo est flat). A reprodutibilidade
tcnica elevada potncia mxima.
Localmente,
ser
lembrado
pela
sua
tentativa de desconstruir
o sistema de produo e
comercializao de arte
no Japo. L, a arte
clssica ainda muito
forte, conta com mode-obra
qualificada,
amplo
financiamento,
escolas conceituadas e
orientao
terica
voltada
ao
domnio
absoluto
da
tcnica.
Murakami, um conceitualista, d espao e notoriedade para a inovao mesmo que nas mos
de amadores. Ser reconhecido tambm por tecer uma crtica esttica ao contexto social que
gerou essa superficialidade no Japo, e ao mesmo tempo como um oportunista que se
aproveita dessa falta de fronteiras. Alguns crticos mais temerosos se questionam se Murakami
est nos guiando ao futuro da arte ou terminando de destru-la.
Em parte porque Murakami sim um conceitualista (que pode talvez estar guiando muita gente
ao caminho errado), mas muitos dos artistas contidos no guarda-chuva do seu Superflat no so!
Na verdade alguns so otaku que vivem de reproduzir seus fetiches estticos grotescos, e a ideia
do Takashi pode acabar se diluindo lado a lado com outras obras que esto l contribuindo
apenas com o choque pelo choque, no com o choque via distoro do real para escancarar
o ridculo de algo em termos crticos. Exemplifico:

Maio
de
2008
foi
certamente um momento
histrico para a arte
japonesa. Milhares de anos
de histria da arte nipnica,
com a sua sensibilidade
esttica
refinada
e
requintada; bem como o
desenvolvimento
urbano
dramtico do ps-guerra e
mudanas culturais sem
paralelos em qualquer lugar
durante o sculo XX, de
alguma forma, se concentraram nisto: uma estatueta plstica de oito ps de altura se masturbando na frente
de uma multido de magnatas da classe executiva e estrelas das passarelas, a aplaudindo, no corao de
Nova Iorque (Adrian Favell)
My Lonesome Cowboy vendido para um colecionador europeu por US$ 15 milhes (no
postarei aqui sem censura) parodia, na leitura de Sharp, a noo de autonomia e da
expresso subjetiva da Modernidade Ocidental, claramente expressa em artistas como Jackson
Pollock. A esttua era apresentada a frente de uma tela chamada Milk, onde o estilo splash de
Pollock emulado (Expressionismo Abstrato), mas os traos caticos so feitos referenciando o
smen da esttua. A obra tambm faz escrnio com os otaku (acusados de praticar o ato com
muita freqncia), faz referncias ao ukiyo-e de Katsushika Hokusai e aos animes (dinamismo
esttico), alm de brincar com os clichs do pop japons (cabelo estilo Goku, o jato simulando a
energia emanada por um personagem do gnero shonen, a confiana do protagonista etc).

My Lonesome Cowboy considerado um caso raramente feliz de casamento entre conceito e


forma, apesar do aspecto burlesco de mau gosto aparente. J outros artistas Superflat como
Mr. parecem mais dispostos a apenas explorar suas fascinaes, produzindo sempre sob o
perigoso vu do Lolita Complex. Um exemplo a ilustrao 15 Minutes from Shiki Station (a
censura minha, vocs sabem o que ela esconde):
O discurso ou posicionamento Superflat,
diretamente influenciado pelos mangs e
animes, foi posteriormente absorvido por
eles em ttulos como Paranoia Agent [de
Satoshi Kon] e Puni Puni Poemi [de Shinichi
Watanabe]. Sayonara Zetsubou Sensei
[Adeus, professor desesperado] de Koji
Kumeta, no entanto, talvez seja a expresso
mxima do conceito aplicado ao pop
comercial.
No
ttulo,
um
professor
extremamente pessimista, que v em tudo
um motivo para o suicdio, d aulas em
uma classe repleta de personagens
derivativos dos clichs do pop japons: tem
a hikikomori, a certinha, a possuidora de um
otimismo cego, a menina machucada com
tapa-olho (Rei Ayanami, quem?), entre
outros. Ainda no li o mang, portanto
tomarei o anime como base de anlise.
No fragmento de um episdio chamado A
estudante ilegal, Mari-san, uma imigrante
ilegal vinda de algum canto misterioso da
sia, se encanta com o maravilhoso Japo, onde as pessoas so gentis, generosas e tratam bem
as crianas. SZS est, na verdade, demolindo o Cool Japan e nos lembrando que o NeoJaponisme propaganda. Enquanto ela elogia os japoneses por tratarem bem as crianas, as
imagens nos mostram um pedfilo abordando uma menina, num pas cujo padro de beleza
padro o infantilismo (NO ESTOU DIZENDO QUE OS JAPONESES SO PEDFILOS). Quando ela
sai de cena dizendo um bom pas, eu gosto dele!, rodeada pelo belssimo despetalar das
cerejeiras, paisagem to usada nas propagandas de turismo, ao fundo podemos ver que h um
casal de nativos se suicidando por enforcamento em um dos galhos destas rvores (num pas
com media de 30 mil suicdios por ano). Maria-san, encantada demais, no percebeu que por
trs de tanta beleza h um pas como outro qualquer, com inmeras qualidades, mas tambm
com srios defeitos.

YOSHITOMO NARA
Se h no Japo algum
artista que compartilha com
Murakami o mesmo faro
comercial, ele se chama
Yoshitomo Nara. Com uma
distino.
Diferente
de
Murakami,
que
alcana
cifras inditas para um
japons,
mas
cujo
faturamento flutua muito de
acordo
com
as
especulaes no mundo da
arte e as crises econmicas, Nara obteve um slido reconhecimento financeiro com a chegada
de sua maturidade artstica. Suas produes esto ficando progressivamente mais caras, de

forma consistente, sem flutuaes. Antenado, produz o que sabe vender, sobretudo nos
mercados asiticos.
Iniciou
sua
carreira
artstica na Alemanha,
mas alcanou sucesso
nos EUA, Japo e Coreia
do Sul (onde um
fenmeno e constante
vtima
de
pirataria).
Ganhou
notoriedade
primeiro com um livro
ilustrado, In the Deepest
Forest, mas se tornou um
dos grandes com suas
pinturas de crianas (olha
elas aqui de novo).
Geralmente pequenas, indefesas, por vezes com aspecto tristonho. Em alguns quadros, elas
esto armadas ou com feies de raiva e medo. Sua obra costuma ser interpretada como o
registro do sentimento de desesperana e frustrao que os jovens japoneses degustam,
isolados, numa sociedade hiper-conectada pela tecnologia.
Ele desconversa. Diz que
as crianas so apenas
auto-retratos
(de
um
homem que j passou
dos 50 anos). Brinca que
as pessoas entendem
mais da arte dele do que
ele prprio. Nisso difere
muito de Murakami, no
um conceitualista, no
pretende reformar nada,
apenas quer viver de sua
arte. De todo modo, a
esttica rgida de uma
eterna adolescncia, que ele continua pintando por incontveis anos, foi um prato cheio para
os pblicos sul-coreano e japons. Geralmente associado ao movimento Superflat, Nara foi
tambm um dos principais nomes do Micropop, do qual se desvinculou posteriormente.

MARIKO MORI
Mariko Mori seguiu um caminho muito diferente daquele galgado por Murakami e Nara, alis,
por quase todos os aspirantes ao mundo da arte, com suas intrnsecas dificuldades financeiras.
Ela pertence a uma das famlias mais ricas do Japo. Estudou moda em Tquio (Bunka Fashion
College de Shinjuku) e arte em Londres e Nova Iorque. Sua posio social lhe garantiu contatos
privilegiados e condies materiais raras para um iniciante.
Obteve sucesso ainda nos anos 90 com seus trabalhos fotogrficos, nos quais atuou como
modelo. Em Love Hotel (1994, quando o Japo comeava a discutir sobre o enjo kosai) ela se
metamorfoseou em uma ciborgue Vestida de colegial numa cama de motel. No mesmo ano
se fotografou como uma idol em Birth of a Star. Na poca sua obra discutia o papel da mulher
na modernidade das metrpoles japonesas.

Sua arte uma sntese de opostos: realidade e fantasia, seriedade e humor, homem e mquina, tecnologia
e natureza, cincia e religio. Assim como o Xintosmo e o Budismo coexistem no Japo, essas
bipolaridades, como uma sntese entre Oriente e Ocidente, tambm se manifestam nas obras de Mariko
Mori (Kunsthaus Bregenz, galeria austraca)

Na
sequncia
sua
preocupao
terica
abraa
o
conceito
budista de conexo entre
os elementos do universo,
trabalhando o contraste
entre
a
investigao
lgica, tpica do cenrio
japons atual, com a
espiritualidade
to
esquecida em nossos
tempos ou, nas palavras
de
Gwen
Kuo
a
justaposio
de
modernidade tecnolgica com mitologia tradicional. Essa ideia permeou obras como Burning
Desire (1996-98), Dream Temple (1997) e Kumano (1998). Dream Temple, para comentar uma
obra, um templo multimiditico de aspecto high-tech, onde os visitantes aproveitam sensaes
audiovisuais muito elogiadas.

Enlightenment Capsule (1998)


consiste em uma flor de ltus
transparente feita de cabos de fibra
tica em uma cpsula de vidro. A
cpsula conectada a um sensor no
teto do museu que utiliza o desvio
cromtico para separar os raios
ultravioletas e infravermelhos dos
raios da luz solar. A luz tem uma
funo de dualidade material e
metafsica: foras visveis e invisveis
trabalham em conjunto para
alcanar uma combinao entre
cincia e esprito (descrio em
museu sueco)
Infelizmente sua arte, muito representativa na dcada de 90, perdeu fora nos anos 2000 e ela j
estudada em termos mais histricos que atuais. Isso se deu por uma srie de razes. A China
tomou do Japo o papel de referncia de futuro para a modernidade asitica, e as pessoas
perderam um pouco do interesse pelo high-tech japons. Outro elemento que justifica sua
queda a obsolescncia de temas acadmicos que alavancavam a popularidade da obra
dela, como o ps-humanismo e o ps-modernismo.
Sem contar que suas
obras
mais
recentes
tomaram
propores
hollywodianas (como Tom
Na H-iu), e a produo
envolve
engenheiros,
arquitetos, cientistas (staff
que inclui at mesmo um
prmio Nobel japons)
tudo isso muito caro,
depende de patrocnio
parrudo, coisa que no
est sobrando no Japo.
Por outro lado, esse
gigantismo do aparato

artstico de Mori, bem como o faro comercial de Murakami e Nara, foi o que lhes possibilitou
renome internacional, defende Favell. Conforme a arte extrapolou a tela para abraar formas
arquitetnicas e digitais, envolvendo toda uma variedade de profissionais, impossvel para um
artista se tornar proeminente sem apoio financeiro e organizao logstica (Kaikai Kiki funciona,
literalmente, como uma empresa). No a toa so os nicos trs japoneses capazes de ainda
competir com artistas chineses, americanos e ingleses.

ZERO ZERO GENERATION


A experincia de amadurecer por volta de 1995 e depois foi desastrosa. Eles deixaram a escola ou
universidade para um mundo economicamente abalado. As oportunidades secaram. Ningum estava
contratando. A ambio selvagem do Japo oitentista tinha desaparecido. Tquio ainda era o destino
porque a dor nas demais provncias era ainda maior, e a cultura da cidade grande forneceu o escape para a
crise econmica. O melhor que eles podiam fazer era conseguir algum trabalho temporrio em uma loja de
convenincia e manter seus sonhos particulares presos em seus mundos internos. Os jovens japoneses que
nunca conheceram os anos da bolha econmica como adultos so A Gerao Perdida () Os baby
boomers nasceram correndo, a Gerao Perdida teve que aprender a engatinhar novamente (Adrian
Favell)
O Superflat, e os artistas a
ele ligados de alguma
maneira, como Nara e
Mori, foram apropriados
pelo
governo
e
corporaes como uma
ferramenta extra do Soft
Power japons, um trunfo
a mais em prol do Cool
Japan. O movimento
terminou por monopolizar
a viso do mundo a
respeito
da
arte
japonesa, generalizandoa como um grande mang. A conseqncia disso foi que o Superflat jogou sombra sobre todos
os artistas e movimentos que no estavam atrelados ao seu discurso, marginalizando-os.
As principais vtimas desse processo foram os artistas nascidos a partir de 1975, a gerao que
atingiu a maturidade fsica, intelectual e artstica em um Japo que, maduro demais, j
ameaava cair do p. Diferente dos Baby Boomers (gerao do Murakami), a Gerao Perdida
mais aberta s diferentes possibilidades que a tecnologia pode proporcionar a servio de sua
esttica. Se distanciando assim do propagado colapso da tcnica do Superflat, eles se voltaram
novamente ao treino e valorizao da habilidade individual.
Testemunharam tambm
a queda das teorias psmodernas
e
pshumanas, sendo assim
pessoas voltadas a uma
vida mais calma, porm
concreta. Rejeitam os
excessos
do
Milagre
Japons,
responsvel
inclusive
por
mortes
decorrentes do excesso
de trabalho [karoshi] e
pelas
humilhaes
escolares [ijime]; bem
como se afastam das teorias apocalpticas que propagam o fim do Japo, a morte da arte e da

cultura. No querem retornar ao sucesso do passado, pois ele continha falhas inerentes, nem
querem dar de ombros, pois um futuro os aguarda. Sintonizados com os novos tempos, so
artistas que querem construir algo novo nos escombros daquilo que ficou para trs. Com tal
misso, usam e abusam de materiais e ideias ligadas ao conceito de sustentabilidade. Aps o
desespero do No Future propagado por vozes como Superflat e Aum Shinrikyo, eles querem
plantar rvores no hambrguer do Murakami e lutar para viver suas vidas no Post-No Future.

THE ECHO e THE ECHO EMBORA EU AINDA ESTEJA VIVO


As pessoas acham que o Japo s produz anime, videogames e arte grotesca e ertica. (Michiko Ogura,
um dos organizadores de The Echo Embora eu ainda esteja vivo)
Um grupo de artistas se insurgiu contra o sistema de artes do Japo em termos bem distintos da
revolta Murakamiana. Eles estavam exaustos de tudo. Da falta de incentivo dado arte
contempornea; da predominncia do discurso e da esttica do Superflat; dos museus e
galerias que s reuniam artistas que confirmavam a teoria de algum curador consagrado e no
necessariamente exibiam a pluralidade da nova arte nipnica (ataque direto a gente como
Matsui Midori e seu manifesto Micropop).
Este grupo organizou uma
exposio em Yokohama
chamada The Echo, um
show
inteiramente
organizado por artistas e
sem curadoria. Nomes
como Satoru Aoyama, Kei
Takemura, Satoshi Ohno,
Daisuke Ohba, Taro Izumi,
Koichi Enomoto, Hiraki
Sawa e Ichiro Sobe
tentaram assim gritar em
nome de uma nova
gerao,
que
apresentam novidades em termos de contedo e estilo. A inteno era apresentar ao Japo
uma nova viso de criao, fazendo uso de materiais sustentveis e oficinas de trabalho
intensivo. Foram, naturalmente, ignorados pela mdia e massacrados pelos intelectuais do meio.

No Japo no h uma tradio de arte contempornea, isso no faz parte do nosso mundo artstico. As
grandes galerias s se interessam pela arte tradicional japonesa e o sistema l tambm diferente. S os
artistas consagrados conseguem exibir, pois as galerias tm que ser alugadas e funcionam como
um showroom (Takahiro Ueda)
Medida semelhante foi
tomada em Berlim com
The Echo Embora eu
ainda esteja vivo. A
proposta a mesma:
declarar a multiplicidade
de vises, posies e
estilos da arte japonesa e
internacionaliz-la.
Mentalidade
esperada
de
uma
gerao
globalizada (10 dos 17
artistas
dessa
mostra
nasceram no Japo e
moram na Alemanha). Como afirma Michiko Ogura, um dos organizadores: Os artistas so

jovens, originais, versteis e da mesma gerao. Queremos mostrar que temos orgulho de sermos
japoneses, mas somos pessoas do mundo.

Neo Tokyo Contemporaries e Sndrome de Galpagos


Alguns nomes envolvidos na exposio The Echo em Yokohama esto ligados a um dos novos
movimentos denominado Neo Tokyo Contemporaries, dando apoio a inovao e artistas no
comerciais. Tquio tentou canalizar essa nova energia com a Tokyo Art Week em 2005. A
ausncia de estrangeiros na visitao levou os organizadores, em 2010, a realizar simpsios sobre
a Sndrome de Galpagos que afeta o Japo, com foco maior no mundo da arte.
Sdrome de Galpagos faz referncia ao conjunto de ilhas situadas no oceano Pacfico que
renem uma fauna de quase 2000 espcies que evoluram somente l. uma aluso tambm ao
tablet nomeado Galapagos que a Sharp desenvolveu exclusivamente (ou ao menos visando
prioritariamente) o mercado japons. Acho que j deu para notar a acidez do termo.
Se no mundo analgico
dos bens de consumo os
japoneses dominaram a
Terra
com
suas
exportaes, o advento
do mundo digital fez o
Japo
aninhar-se
no
prprio
umbigo.
O
mercado d exemplos
ntidos
disso.
Waichi
Sekiguchi, editor do Nihon
Keizai Shimbun, comenta
que a telefonia mvel
japonesa era a melhor do
mundo. Empresas japonesas foram as primeiras a introduzir internet, televiso e GPS nos
aparelhos, mas se preocuparam em atender apenas as necessidades locais e se alienaram das
demandas internacionais (enquanto a Apple entendeu que o celular para as pessoas era
tambm um artigo de design, ostentao, diferenciao e pertencimento a um grupo). Hoje as
corporaes nipnicas detm apenas 5% de participao de mercado global, sendo a maior
parte disso dentro do prprio Japo. Os finlandeses (Nokia, Motorola) e os sul-coreanos (Samsung
e LG) tm populao nacional pequena, insuficiente, portanto se voltaram principalmente aos
desejos dos grandes mercados e hoje dominam o setor.
E eu relembro a cultura
pop, j que a Hallyu sulcoreana est tomando o
mercado que antes era
do Japo, enquanto os
nipnicos se agarram
com todas as foras ao
porto seguro do mercado
interno ainda rico e
volumoso, mas cada dia
mais
inexpressivo
no
contexto globalizado.
O
mesmo
acontece
quando as galerias no
disponibilizam traduo do japons em seus catlogos, ateno destinada aos visitantes
internacionais que por ventura possam se interessar pela apresentao, ou quando alguns
artistas se mostram desconectados das vanguardas do exterior. Como as espcies de
Galpagos perdidas nas ilhas do Pacfico, segundo essa viso, os japoneses parecem bastante
confortveis em seu habitat natural, mas seriam capazes de sobreviver fora dele? Com alegria
percebo que empresrios, governantes e artistas j observaram essa realidade e aos poucos
tomam medidas para contorn-la, e ento, como defende Sekiguchi, escapar de Galpagos.

MAKOTO AIDA E ChimPom


Muitas pessoas no Japo
pensam que Makoto Aida o
artista mais importante de
sua gerao. Mesmo assim,
ele foi mal interpretado ou
ignorado na Europa e
Estados Unidos. Murakami
sempre reconheceu que ele e
Aida compartilham ideias e
sensibilidades semelhantes,
mas Murakami tem sido
muito mais eficaz em
mascarar isso com uma
superfcie plana e atraente.
Em um de suas melhores
obras, de 1996, Aida pintou
Mitsubishi Zeros circulando
em moebius loop sobre
uma Nova Iorque em
chamas. () era difcil isto
cair bem no Museu de Arte
Moderna de NY ()
Murakami, por outro lado,
veio
a
Nova
Iorque
triunfante. A mensagem
subjacente estava l. Ele
nomeou seu show com o
nome da bomba que destruiu
Hiroshima,
mencionou
nuvens de cogumelo atmico
e Akira. Mas transformou
cogumelos em desenhos
animados e encheu o show
com flores felizes. (Adrian
Favell)
Se Takashi Murakami o
nome basal da arte
japonesa nos anos 2000,
Makoto Aida cumpriu
esse papel na dcada de
90. No Japo at mais
respeitado
que
Murakami, homem que
no goza de muita simpatia pblica em sua terra natal. Aida, no obstante, foi uma das
principais vtimas do rolo compressor do Superflat, responsvel por amassar tudo o que veio antes
dele no hambrguer do achatamento cultural. Aida foi obliterado pelo sucesso do Murakami.
Muito por causa da semelhana em esttica e argumento de ambos. Em Mokomoko (2008, por
exemplo, Aida traz a tona novamente a ideia de um povo que ainda luta para sublimar o
trauma nuclear.

Eu queria que fosse uma fuso de trs imagens: a fofura da cultura pop japonesa do ps-guerra,
simbolizada por personagens como Hello Kitty; um pnis ereto; e a capacidade de destruio em massa da
bomba atmica. Eu pensei que essa combinao iria simbolizar o infantilismo distorcido que caracteriza o
Japo contemporneo. (Makoto Aida, sobre Mokomoko)

Agora que o discurso Superflat perdeu vigor e a poeira comeou a cair, alguns curadores esto
revisitando a histria da arte para devolver ao Makoto o lugar que dele por direito, finalmente
reconhecendo sua importncia para o perodo. Mais do que reescrever os livros de histria, existe
uma preocupao em apontar novos caminhos, e nessa observao descobriram uma prolfera
ninhada de novos artistas diretamente ligados ao Makoto Aida. Entre eles, destaca-se o grupo
ChimPom.
ChimPom, nome derivado de chimpo (uma forma de dizer pnis em japons), um grupo
artstico sem treinamento formal em artes, composto por cinco homens e uma garota na faixa
dos 20-30 anos de idade, que se comportam quase como uma banda de J-rock (Ellie, Ryuta
Ushiro, Yasutaka Hayashi, Masataka Okada, Toshinori Mizuno e Motomu Inaoka). A tnica do
grupo se d em intervenes urbanas provocativas, irnicas e cmicas. Suas interferncias so
gravadas em vdeo enquanto fazem troa com o absurdo da vida contempornea,
principalmente a toquiota. Vale a pena descrever algumas das divertidas aes de guerrilha
artstica do grupo.
Em Super Rat (2005) os
jovens caaram alguns
ratos ariscos e resistentes
ao veneno desenvolvido
pelos
humanos
que
povoavam uma regio
central de Tquio. Eles
mataram as ratazanas,
submeteram os corpos ao
processo de taxidermia e
os pintaram de Pikachu.
O Pokmon kawaii, mas
ainda um rato, alerta o
ChimPom. Esto ironizando as meninas que freqentam o Center Gai vestidas de Pikachu, e por
tabela toda a moda urbana japonesa.
Black of Death (2007) tinha um alvo mais geral. Nesta interveno os artistas saram s ruas antes
da coleta de lixo, com megafones para amplificar o som que os corvos (abundantes no Japo)
usam para se reunir em bandos. Fizeram isso em locais como o Shibuya 109 (famoso local de
compras), o Parlamento e a Torre de Tquio. A ideia era fotografar uma revoada de corvos
circulando logo acima de construes simblicas do Japo. A mensagem? Excesso de riqueza
tambm atrai corvos que chafurdam os lixos em busca dos restos.
Se esses dois exemplos parecem mais uma brincadeira adolescente, com Pika (2008) o
ChimPom revolveu a memria histrica dos habitantes de Hiroshima. Com um avio, eles
picharam no cu (Pika!, flash em japons), em cima do Memorial da Paz de Hiroshima,
uma das poucas construes que permaneceram de p aps a exploso da Little Boy. Fizeram
isso sem permisso ou consentimento dos habitantes de Hiroshima que se revoltaram, sobretudo
os hibakusha, aqueles que sobreviveram bomba e classificaram a ao como desrespeitosa e
insensvel. Curiosamente, Hiroshima recebeu muito bem os fogos de artifcio do chins Cai Guo
Qiang, cujo Black Fireworks (2008) simulou, ao lado do Memorial, primeiro um cogumelo atmico;
Depois, ao se dissipar, deu a impresso da chuva negra, lembrando o p dgua radiativo que
caiu horas depois da exploso em 1945. Voc pode assistir a impactante queima de fogos no
youtube.
Aps as catstrofes de Fukushima, o grupo se voltou para a problemtica nuclear caseira, a
discusso sobre a fonte energtica do pas e a vida daqueles diretamente afetados pela
radiao em 2011: No h como ns continuarmos a viver como antes. Ns devemos trabalhar
para fornecer oportunidades de reflexo sobre o que aconteceu, afirmou Ellie. Criaram novas
intervenes para falar do assunto, como Real Times, mas tambm ressignificaram obras antigas.
Ao reeditar Super Rat em 2011, o ChimPom fotografou os ratos em Shibuya. Ratos e humanos
convivem em harmonia na cidade ou tolerncia, por falta de opo. Do mesmo modo que os

cidados
japoneses
so
obrigados a coexistir em casa
com usinas nucleares mal
administradas e com alimentos
contaminados pela radiao.
O crtico Yoshitaka Mouri, em
contato com as intervenes
da cria do Makoto Aida, se
questiona a respeito do papel
da arte no mundo atual,
quando
os
artistas
mais
parecem dolos pop praticando
um
J-Jackass
de
vapor
politizado e provocao vazia.

A AMEAA DO CONTINENTE:
CHINA MANIA
O Japo entrou no sculo XX
crente que seria o curador e
porta voz da arte asitica ao
mundo. Hoje percebe que a
arte chinesa o deixou na sarjeta
do mercado internacional. A
China atualmente o que o
Japo foi nos anos 60, o mundo
olha para l com a curiosidade
de
conhecer
uma
nova
alternativa de modernidade
com tempero asitico. Se Neuromancer fosse escrito hoje, Gibson no situaria seu cyberpunk nas
ruas marginais japonesas, mas sim nas vielas de Pequim ou Xangai. Os olhares que antes se
deslocavam para a China com desdm ou mesmo nojo hoje j contm traos de curiosidade e
mesmo temor. At onde o Drago recm-desperto capaz de chegar?
Quando falamos em arte, os criativos chineses recebem muito mais financiamento pblico do
que os japoneses, principalmente quando falamos de arte contempornea. A favorvel
condio econmica do pas permitiu o surgimento de empresrios milionrios que patrocinam
artistas locais como legtimos mecenas, enquanto os ricos japoneses apertam os cintos para no
perder ainda mais ienes para as naes emergentes da sia. A numerosa classe mdia chinesa
(os novos ricos) e o recrudescimento do interesse ocidental pelo pas criaram uma verdadeira
bolha de especulao no mercado da arte chins e onde tem dinheiro, tem museu
interessado. Claro, sem ignorar o perodo rduo e recente do Maosmo e o tema do pscomunismo
que
com
freqncia alimentam a
imaginao dos criadores
chineses (ao contrrio do
pacificado Japo que se
abriu tolice pop em
tempos de paz extrema).
Tudo isso, evidente,
sustentado
por
uma
tradio milenar herdada
do Imprio Chins que
confere
consistncia
artstica s obras atuais.
No podemos esquecer
tambm
que
o

contrabando ilegal de obras chinesas que foram censuradas pelo Partido tambm d mais
dinmica ao comrcio de quadros.
Ufa! Motivos e tanto para o Japo temer a concorrncia chinesa. Alis, no h o que temer, j
aconteceu, o Japo ficou para trs. A arte chinesa hoje mais criativa, fresca e dinmica que a
nipnica. Em termos comerciais, as obras dos chineses movimentam quantias muito maiores de
dinheiro comparadas aos japoneses; mesmo Murakami virou caf pequeno.
Numa diviso simplista, os
chineses
podem
ser
separados entre aqueles
que so apoiados pelo
governo, seja por fazerem
arte despolitizada ou a
favor
do
regime,
e
aqueles que usam a arte
para atacar as lideranas
polticas
da
China,
principalmente em temas
como
a
falta
de
liberdade de expresso e
a tortura. Caio Guo
Qiang (do Black Fireworks citado acima) o principal nome do grupo apoiado por Pequim, ele
no entende a arte como ferramenta poltica e sempre se cala quando questionado sobre
temas espinhosos da realidade chinesa. Zou Cao, por outro lado, compra briga quando associa
o Maosmo ao leninismo em East is Red quadro onde o rosto de Mao Ts-Tung aparece como
digitais sobre a bandeira da Unio Sovitica.
O artista mais miditico da China sem dvidas Ai Weiwei. Crtico ferrenho do regime comunista,
ele cumpre priso domiciliar desde 2012 por suposta fraude fiscal (e tambm por isso tem muita
visibilidade no ocidente, arrematando o 3 posto entre os mais influentes da arte, segundo a
revista Art Review). No clipe Dumbass ele retrata ao som de heavy metal o perodo em que ficou
encarcerado. Brincalho, em 2012 entrou na onda viral de Gangnam Style e gravou sua verso:
em certo ponto no passinho do cavalo ele no segura rdeas imaginrias, e sim algemas. Voc
pode ver o vdeo no Youtube.
Remembering (2008)
sua obra mais visceral. Em
exposio na Alemanha,
Weiwei empilhou 9 mil
mochilas escolares num
paredo. Usando cores
diferentes,
a
muralha
virou um grande painel
onde se podia ler em
chins Ela viveu feliz
neste mundo por sete
anos. Frase de uma me
que perdeu a filha no
terremoto de Sichuan,
responsvel por matar mais de 80 mil pessoas. Weiwei avana contra os oficiais corruptos do
Partido que desviaram dinheiro das obras e construram escolas com fundaes fracas,
incapazes de suportam o abalo ssmico (diferente do Japo, onde as escolas eram os prdios
mais seguros para se abrigar durante o terremoto/tsunami de 2011). A pilha de mochilas uma
homenagem aos milhares de estudantes soterrados nas escolas, e uma lembrana macabra das
cenas do terremoto, onde mochilas se misturaram aos escombros e corpos enquanto os
bombeiros lutavam para resgatar os sobreviventes.

O Japo deixou de ser interessante quando se tornou menos Cool e deixou de movimentar
dinheiro no mercado da arte. Favell conclui que isso uma perda lamentvel, pois o mundo
desenvolvido tem mais a aprender com um pas que vive uma realidade mais prxima do
decadente welfare state europeu do que com a locomotiva mandarim.

CONSIDERAES FINAIS
O Cool Japan foi soterrado pelo terremoto e contaminado pela radiao de Fukushima. Como
conseqncia o Superflat foi afogado pelas guas do tsunami e virou histria, no h mais
espao para suas ideias e estticas. O projeto de se autodenominar legal do governo japons
est fracassando como o Cool Britannia, que j virou motivo de piada na Inglaterra. A viso do
Japo perante o mundo se alterou profundamente em 11 de Maro de 2011. O impacto do
terremoto, tsunami e acidente nuclear fez o mundo olhar com mais ateno para um pas que
patina na deflao h quase duas dcadas e no mais visto como vanguarda do mundo
tecnolgico, da modernidade ou do Sculo Asitico, como alguns definem o atual.
O mundo descobriu que o Japo est com a economia e com as lideranas governamentais
estagnadas no paroquialismo poltico, que a populao envelhece rapidamente e no se
renova, que os ndices de
suicdio so alarmantes,
que a presso escolar
ainda insustentvel, e
que o pas como um todo
est sendo derrotado, em
vrios
setores,
pelas
sociedades chinesa e
coreana. O interesse pelo
Japo perdeu fora, e o
Cool Japan d pinta de
que ser esquecido e
jogado na lixeira junto
com a Dcada Perdida
que o pariu.
O Japo encontra dificuldades de transformar sua cultura pop em Soft Power e, mais ainda,
numa poltica industrial capaz de substituir a manufatura de bens de consumo que serviu de
locomotiva no ps-guerra. O atual governo do Shinzo Abe j percebeu isso e est fazendo
esforos pela revitalizao da manufatura japonesa. Novamente reconhecer que a vantagem
competitiva do Japo a excelncia tcnica (ateno aos detalhes). Alguns destes projetos
voc pode conhecer no site do governo Made in New Japan.

Hoje, tenho o prazer de fazer um anncio: As pessoas que sofreram tremendamente no perderam a
esperana. Em Watari, os produtores de morango se recuperaram. Eu comi o produto deles, aqueles
morangos grandes e vermelhos. Eles estavam deliciosos. Na verdade, at mais saborosos, j que a fruta
agora cresce com uma nova tecnologia de controle de temperatura, uma tecnologia de ponta. Este o novo
Japo: O resultado da determinao do povo somado ao conhecimento avanado. Um pas que enfrentou
um desafio inimaginvel e renasceu. A nao, uma vez auxiliada por sua boa vontade, est agora beira de
um novo futuro (Shinzo Abe, Primeiro Ministro do Japo)
verdade que mangs so lidos no mundo inteiro e eventos otaku acontecem por a, mas o pas
est se mostrando incapaz de rentabilizar seriamente isso (d lucro, mas no substitui nem serve
como complemento). A esttica japonesa se desvinculou do pas. O clich da dialtica
tradio-modernidade j no seduz como antes. O mundo se cansou de olhos grandes,
uniformes de colegial, meninas ingnuas e tons pastel. No h mais espao para a
Akihabarizao das galerias de Arte.
Tquio novamente est saindo da rota global de circulao da arte. Porm, os artistas (no
necessariamente apenas os jovens) esto percebendo seu papel na criao de novas diretrizes
que norteiem o futuro do Japo ps-crise e ps-desastre, o tal Post-no future. Este o trabalho

de gente como Tabaimo, Kumi Machida e de curadores como David Elliott (e seu projeto Bye Bye
Kitty!!!). Alguns artistas esto abandonando Tquio e as instituies consagradas da produo
artstica para se instalar em escolas abandonadas do interior. Outros esto visitando as zonas
afetadas pela radiao para se inspirar e inspirar as pessoas que ainda sofrem com o desastre.
Enfim, muita gente no mundo da arte, dos negcios e da poltica est lutando por um novo
Japo. E esse novo Japo no se pretende um hambrguer de pelcia, sarin e menininhas
prensados, como pregam
os
apocalpticos
do
Superflat e da seita Aum
Shinrikyo, e sim um pas
mais plural, dinmico,
otimista e integrado com
a
comunidade
internacional.

por Kau Antonio Lee

Fontes:
Before and after Superflat A short history of Japanese Contemporary Art 1990-2011 (Adrian Favell)
SUPERFLAT WORLDS: A Topography of Takashi Murakami and the Cultures of Superflat Art (K Sharp)
Os corpos do J-pop (Christine Greiner)
Taboos in Japanese postwar art: mutually assured decorum (Ashley Rawlings)
Entertainment Re-oriented: Atomic Pop Pt. II: Hello Kitty and the Rape of Nanking (Ben Hamamoto)
Superflat: A Reao do Ps-Modernismo Japons ao Boom Otaku (Alexandre Soares)
After the Gold Rush: Japans new post-bubble art and why it matters (Adrian Favell)
Bye Bye Little Boy (Adrian Favell)
Bye Bye Kitty: The Dark Side of Art in Japan (Lucy Birmingham)
Cool is not enough (Christopher Graves)
Escape from Galapagos (Waichi Sekiguchi)
Cool Japan Strategy (Modified version of the Interim Report submitted to the Cool Japan Advisory Council)
(METI/2012)
Cool Japan Strategy: Singapore Program (METI)
Generation Superflat: Fashion Fusions and Disappearing Divisions in the 21st Century (Cindy Lisica)
Micropop, and what it says about Japan (iMomus)
Ai Weiweis Remembering and the Politics of Dissent (Khan Academy)
Exposio em Berlim desmistifica a jovem arte contempornea japonesa (Marco Sanchez)
Nihilist Moralists for a Traumatized Japan: Chim Poms Real Times (Alan Gleason)
Mariko Mori: Digital Deity of Technology and Spirituality (Gwen Anes Kuo)
Mariko Mori: Dream Temple (autor desconhecido)
http://chimpom.jp/index.html (site oficial do ChimPom)
http://english.kaikaikiki.co.jp/ (site oficial do Superflat)
01 de Agosto, 2013

Otakismo Dez filmes japoneses que voc precisa conhecer


Melhor ainda se puder assistir.
No so necessariamente os dez melhores nem os dez mais importantes ou conhecidos, so
apenas alguns dos ttulos do cinema nipnico que eu considero relevantes aos fs da cultura
japonesa por razes diversas. Alguns foram to extraordinrios para a histria do cinema
mundial, que so usados como referncias em matrias ou artigos nas mais diversas reas do
conhecimento. Outros fazem parte do grupo das melhores coisas que o Japo produziu nos

ltimos anos. A ordem de apresentao no qualitativa, nem mesmo cronolgica. O nico


critrio foi dar algum sentido no texto, e apenas isso.

Rashomon
(
,1950)

Ouvi
dizer
que
o
demnio vive aqui em
Rashomon, fugindo com
medo da ferocidade do
homem
Rashomon,
de
Akira
Kurosawa, um ttulo
fundamental por dois
motivos. Apesar de ter
sido produzido h mais de
60 anos, continua atual (e genial) em argumento e esttica. Alm disso, foi o filme que abriu as
portas do mundo ao cinema japons. Foi o primeiro ttulo do pas a faturar um prmio
internacional de prestgio, o Leo de Ouro em Veneza, menos de uma dcada aps o trmino
da Segunda Guerra, perodo no qual os japoneses ainda eram odiados por muitos e o Japo
como um todo era visto sob um vu de desconfiana.
Baseado em dois contos de Ryunosuke Akutagawa, um dos principais nomes da literatura
japonesa moderna, Rashomon mostra a histria de um crime. No Japo do sc. XII, o bandido
Tajomaru violenta uma mulher e assassina o marido dela. A ocorrncia contada por quatro
pessoas diferentes: o criminoso, a viva, o marido assassinado (por intermdio de um xam) e um
lenhador que observava a cena de longe, no papel de testemunha no envolvida.

A vida realmente delicada e passageira, como o orvalho da manh


Os quatro relatos so, no entanto, contraditrios entre si. Mas todos vlidos, pois Kurosawa no
eleva em dignidade nenhum dos discursos. Com base nos depoimentos, nunca ficaremos
sabendo dos fatos objetivos do crime. Algum est dizendo a verdade? Ou ser que todos os
discursos escondem algo, revelando apenas o que os envolvidos julgam interessante expor?
O impacto de Rashomon na cultura global to significativo, que ele usado em textos e aulas
nas reas do Direito e da Psicologia para exemplificar questes como a credibilidade de um
testemunho no tribunal. Clssico absoluto do cinema japons, conta com a interpretao
excepcional de Toshiro Mifune, que costuma bater carto nos filmes mais antigos do Kurosawa.

- Se os homens no puderem confiar nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o inferno.
Certo. O mundo uma espcie de inferno.
No! No quero acreditar nisso!
Ningum vai ouvir voc, no importa o quanto voc berre. Pense: em qual dessas verses da histria
voc acredita?
Nenhuma delas faz sentido.
No se preocupe com isso. Os homens no fazem sentido.

Hana-Bi
,
(Fogos de artifcio,

1997)
Oscilante
entre
a
impiedosa hiperviolncia
kitaniana e as nuanas
mais delicadas do amor e
da
amizade
Maria
Roberta Novielli
Kurosawa abriu os olhos
do Ocidente para o
cinema japons com
Rashomon, mas levou 46
anos para outro nipnico conquistar a mesma premiao na Itlia. O mrito cabe a Takeshi
beat Kitano, que em 1997 foi reconhecido por Hana-Bi. O termo em japons significa fogos de
artifcio, mas formado pelos ideogramas de flor e fogo, metforas escolhidas pelo comediante
para falar de vida e morte.
Kitano conhecido no Japo como comediante de televiso e usualmente trabalha com os
dois ps no humor negro. No cinema, as coisas so diferentes. Hana-Bi pendula entre a ternura
extrema e a violncia exacerbada. Na histria, Nishi um detetive da Polcia que perde o
horizonte da vida quando testemunha a desolao de muitas pessoas que lhe so caras. Sua
esposa descobre ter uma doena terminal. Seu amigo fica paraltico aps uma emboscada da
mfia e abandonado pela famlia, sendo drenado pela solido. Fatigado, Nishi radicaliza sua
vida e no medir esforos, mesmo ao custo de inmeros crimes, em nome da vingana.
Intercalando com momento de intenso carinho com sua esposa.

No se preocupe. Voc muito amvel. Depois de tudo, meu marido morreu cumprindo o seu dever. Por
causa da recesso, muito difcil conseguir um bom trabalho, mas estou trabalhando em uma
lanchonete. O mais difcil quando meu filho me diz que sente saudades do papai.
Hana-Bi uma repaginao pop de elementos dos filmes de Yakuza, e pode tranquilamente
agradar uma audincia que aprecia a violncia de Quentin Tarantino (Kill Bill, Bastardos Inglrios,
Pulp Fiction). Mais do que isso, acredito que pode ser uma boa porta de entrada para o gnero
dos filmes de mfia japonesa (Yakuza Eiga), como Sangue de Vingana (Meiji Kyokyakuden
sandaime shumei, 1965) e Luta Sem Cdigo de Honra (Jingi Naki Tatakai, 1973). Com o diferencial
de ter tambm uma sensibilidade apurada e no ficar restrito a um festival de sangue e tiroteios.
O silncio em Kitano, que pouco fala nesse filme, muitas vezes diz mais do que a verborragia
tarantinesca.

Imprio dos Sentidos


(Ai no Koriida,
,
1976) (NSFW, +18)
Por
quatro
dias,
carregando consigo parte
do corgo de Kichi-san
[pnis], Sada vagou por
Tquio. Quando foi presa,
pde ser visto um sorriso
incomum
em
seu
semblante. O caso chocou
a opinio pblica do
Japo, e a compaixo do povo a tornou estranhamente popular. Tal acontecimento data de 1936.

Mais de quatro dcadas separaram o Leo de Ouro de Kurosawa e Kitano, mas isso no significa
que o Japo no produziu nada de estrondoso nesse intervalo. Ao contrrio. japons um dos
filmes mais debatidos, talvez o mais polmico da dcada de 70, conhecido no Brasil como
Imprio dos Sentidos (ou Tourada do amor, numa traduo literal). Tem o mrito de ser
considerado, sem maiores contestaes, o melhor filme ertico de todos os tempos. Na
narrativa, baseada em fatos reais, vemos o amor obsessivo desperto pelo patro Kichi na
empregada e ex-prostituta Sada Abe. A relao, que a princpio era apenas uma
inconsequente diverso afetiva, logo evolui numa escalada de prticas sadomasoquistas que
culminam com a morte do homem por estrangulamento. Pessoas to profundamente
apaixonadas que terminam consumidas pelo sentimento, um conceito que os franceses
chamam de lmour fou.
A pelcula tem uma explorao subversiva que vai muito alm da mera pornografia. Na cena
mais clssica, tropas do Exrcito Imperial marcham rumo guerra, apoiadas pela populao,
enquanto o amante ruma no sentido oposto em direo amante, numa aluso queles que
no se integram na sociedade e no se comportam segundo os valores vigentes. A prpria
relao do casal virada de cabea para baixo; ele, o patro que a conquistou com sua
posio social, sumariamente dominado pelos anseios da amante, numa sociedade com
valores abertamente masculinos como a japonesa. Alguns enxergam no filme uma negao ao
Japo consumista dos anos 70.
O filme tem vrias cenas de sexo explcito e uma infinidade de outras situaes erticas. De
modo curioso, ele censurado at hoje no Japo. Enquanto Nagisa Oshima se tornou o
segundo diretor japons mais lembrado no Ocidente por conta deste filme (atrs apenas do
Kurosawa), no Japo ele um semi-desconhecido e sua morte passou em branco na Terra do
Sol Nascente esse ano. Acho imprescindvel que voc saiba da existncia desse filme, mas s
recomendo se for um entusiasta do Cinema. Se voc procura justamente a sacanagem pela
sacanagem, advirto que este no o melhor material para as suas intenes. Filme disponvel
oficialmente em DVD no Brasil. Voc acha o trailer com facilidade no Youtube.

Kwaidan
(
,
1965)
Um osis de beleza
perdido dentro do gnero
comumente
conhecido
como horror ou terror
At o momento citei o
reconhecimento
ocidental
por
obras
japonesas
mais
intelectualizadas, todavia,
nas ltimas duas dcadas,
os filmes do Japo que mais se destacaram por aqui foram do gnero terror; Principalmente
aps adaptaes americanas de produes nipnicas, como O Chamado (adaptado de
Ringu), O Grito (adaptado de Ju-On) e gua Negra (adaptado de Honogurai Mizu no Soko
Kara). Os filmes de terror japoneses se diferenciam pela prpria forma como asiticos e
ocidentais imaginam e interpretam a existncia do sobrenatural.
A onda do J-horror muito mais antiga do que as pessoas imaginam. Sua primeira grande obra
cinematogrfica Kwaidan, dirigido por Masaki Kobayashi quase quatro dcadas antes de
Ringu. Financiado pela Toho, foi o filme mais caro produzido no Japo at aquela poca. Ele
conta quatro histrias sobrenaturais procedentes da tradio oral do folclore japons, trazendo
para a linguagem cinematogrfica elementos estticos advindos dos teatros Kabuki e Bunraku
(teatro de bonecos). Segue a sinopse do DVD:

O Cabelo Negro (Kurogami) Samurai desolado com a pobreza e com o sofrimento abandona
a esposa para se casar com uma moa mais rica e galgar algumas escadas sociais. Anos
depois, arrependido, ele retorna aos braos dela no meio da noite.
A Mulher da Neve (Yuki Onna) Dois lenhadores so pegos de surpresa durante uma nevasca e
so obrigados a passar a noite numa cabana abandonada. O mais jovem deles presencia o
momento em que uma plida figura feminina entra no casebre e tira a vida do colega mais
idoso, passando a conviver com este segredo durante anos.
Hoichi, o Sem Orelhas (Mimi-nashi Hoichi) Novio cego residente em um monastrio, que possui
raros talentos musicais, abordado pelo fantasma de um guerreiro assassinado h sculos
durante uma das grandes batalhas que ele retrata em suas msicas. No entanto, suas sadas
noturnas para atender ao chamado do morto no passam despercebidas de seus superiores.
Em uma Xcara de Ch (Chawan no Naka) Oficial de um destacamento militar surpreendido
pela imagem de um homem na gua de sua xcara. Aps beber a gua com hesitao, ele
passa a ser assombrado pela presena do homem da xcara.
Kwaidan foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e faturou uma Palma de Ouro em
Cannes. Para uma audincia acostumada aos filmes extremos com cenas de tortura explcita e
exorcismo da atualidade, Kwaidan pode parecer datado e no assustar como na poca em
que foi concebido, cumprindo mais um papel de suspense do que terror. No entanto, uma
obra me de todo um gnero que ajudou a disseminar o cinema japons pelo mundo,
merecendo a recomendao. Foi publicado no Brasil como Kwaidan as quatro faces do medo
e distribudo pela Continental Home Video.

Ran
(
, 1985)
O
homem
nasce
chorando. Quando ele
chorou o suficiente, ele
morre.
Antes que os desavisados
de planto protestem
contra as adaptaes
americanas de histrias
japonesas, apropriado
lembrar que este uma
via de mo-dupla. Prova disso Ran de Akira Kurosawa, uma releitura da obra Rei Lear do ingls
William Shakespeare, transposta ao Japo feudal. Na histria ambientada no sculo XVI, o
senhor feudal Hidetora, com a idade avanada e antevendo seu fim, resolve dividir seu reino
entre os trs filhos Tar, Jir e Sabur. Ele no imaginava a disputa pelo poder que a deciso
dele resultaria, gerando guerras e fragmentao do ncleo familiar. Ran um olhar oriental
sobre a obra do maior dramaturgo que este mundo j conheceu.

Hidetora: Estou perdido


Kiyoami: Assim a condio humana
O filme comea um pouco lento, mas ganha intensidade conforme avana. Tenha um pouco
de pacincia com o ritmo inicial (e com o bobssimo bobo da corte), pois as cenas de batalha
nos campos do Japo medieval so de uma beleza mpar na cinematografia japonesa. Assim
como Kwaidan, Ran (que significa caos) era o filme mais caro produzido no Japo at o seu
lanamento.
Existe toda uma categoria de filmes de samurai (chanbara), mas muito do melhor deste gnero
foi produzido entre os anos 40 e 60, como Os 47 Ronin (do mestre Kenji Mizoguchi, 1941), Harakiri
(Masaki Kobayashi, 1962) e Os Sete Samurais (do prprio Kurosawa, 1954). So, portanto, filmes

em preto e branco, com um ritmo um pouco diferente do que estamos acostumados. Ran, ao
contrrio, colorido, tem uma direo mais moderna, mas ainda conta com a destreza
impecvel do Kurosawa na direo. Acredito ser uma introduo mais adequada ao chanbara.
Aposto que aps assisti-lo, voc ficar com vontade de ver mais filmes de espada (chanbara
na verdade uma subcategoria do jidaigeki do qual Ran faz parte). Distribudo em DVD no Brasil
pela Universal Pictures.

Kiyoami No h deuses, no h Buda? Se existem, ouam-me. Vocs so mesquinhos e cruis! Esto


to entediados a em cima que nos matam como insetos, para brincar? divertido ver homens sofrendo?
Tango No blasfeme! No v que os deuses esto chorando? Eles nos observam e esto vendo que nos
matamos continuamente ao longo dos tempos e no podem nos salvar de ns mesmos. No chore!
assim que o mundo feito: os homens preferem pesar alegria, sofrimento paz, alegram-se com sangue
e dor!
A Partida
(Okuribito,
2008)

a minha mulher. Ela


faleceu h nove anos.
Todos
os
casais,
eventualmente,
so
separados pela morte, mas
muito duro ser aquele
que sobreviveu.
Produes
japonesas
recentes conseguiram destaque mundial tambm fora dos rtulos (J-Horror, Pinku Eiga e etc).
Prova disso o longa-metragem A Partida, de Yojiro Takita, que faturou o Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2009, desbancando favoritos como Gomorra. No roteiro, a orquestra na qual
Daigo Kobayashi toca subitamente se dissolve e o violoncelista se v desempregado do dia para
a noite. Sem saber o que fazer, com uma dvida adquirida, Daigo questiona-se se o sonho infantil
de ser msico era realmente um sonho legtimo e, com o apoio da esposa Mika, retornam juntos
para Yamagata, sua cidade natal.
L ele comea um novo trabalho. Bem remunerado, mas sem aceitao social. Ele se torna, no
incio com certo repdio, um Nokanshi, uma espcie de agente funerrio responsvel pela
preparao do corpo e procedimentos rituais escondendo esse fato da prpria mulher. No
contato com a morte, Daigo busca o sentido para a sua vida. E daqui pra frente se desenrola
um dos filmes mais afveis produzidos nos ltimos anos. Oficialmente distribudo no Brasil em DVD
pela Paris Filmes.

Maborosi
(Maboroshi no Hikari,
,
1995)
Yumiko: Eu apenas Eu
no entendo! Por que ele se
matou? Por que ele estava
caminhando ao longo dos
trilhos? Essa dvida vai e
volta na minha cabea. Por
que voc acha que ele fez
isso?
Tamio: O mar tem o poder

de seduzir. Lembre quando o pai estava pescando, certa vez ele viu um maborosi uma luz estranha
longe no mar. Algo que estava acenando para ele Isso acontece com todos ns.
Uma pelcula japonesa multipremiada com uma pegada parecida com Okuribito Maborosi,
primeira fico do documentarista Hirozaku Kore-eda. Nela, Yumiko uma mulher com um
casamento feliz, amada pelo marido e com um filho recm-nascido. Certo dia ela recebe a
notcia de que seu cnjuge faleceu na linha do trem, num suposto suicdio. O choque se
alimenta de um antigo trauma e Yumiko abandona a cosmopolita Osaka, dominada pela
apatia e melancolia de se sentir responsvel por trazer desgraa queles que ama. Tem um
ritmo mais lento e a expresso das emoes so bem japonesas, enquanto A Partida ainda flerta
com o humor de vez em quando. No h muito que descrever nesse filme, melhor assistir.

HELTER SKELTER
(
,

2012)
A coisa mais fascinante
sobre o estrelato [stardom]
que um tipo de
deformidade,
como
o
cncer.
Um
rosto
fascinante, beira do
colapso. A pele e os
movimentos
musculares
no
correspondem

estrutura ssea. Parece bom, mas est desbalanceado. Est prestes a ruir (). Bonita por fora, mas
como uma fruta devorada por insetos por dentro.
importante quando um filme japons toca temas humanos universais e extrapola suas
fronteiras, como A Partida, tornando pequenas as diferenas culturais entre as naes.
igualmente significativo, por outro lado, quando os japoneses miram seus problemas caseiros e
falam de problemas que dizem respeito ao modo de vida da sociedade deles. o caso de
Helter Skelter, adaptao cinematogrfica do mang homnimo de Kyoko Okazaki, dirigido por
Mika Ninagawa.
A temtica do filme no novidade. Lilico a grande idol do momento no sistema de
entretenimento japons ou, a melhor idol de todos os tempos da ltima semana. Seu rosto
estampa todas as capas de revistas. As mulheres querem ser como ela, os homens querem ela.
Toda a sua beleza, contudo, est assentada em diversos procedimentos cirrgicos insustentveis.
Aos poucos seu corpo comea a ruir e uma nova idol com tudo no lugar, ao menos por
enquanto toma-lhe inteiramente o fugaz destaque miditico. Da para frente testemunhamos a
derrocada do corpo e da sanidade de Lilico, cuja auto-estima estava inteiramente escorada por
sua beleza fsica e notoriedade pblica. O assunto no novo, mas relevante para a sia. Em
pases como Japo, China e Coreia do Sul, mais do que aqui, padres de beleza surreais esto
gerando uma epidmica crise de ansiedade sem precedentes.

H uma voz dentro de mim. Tic tac, tic tac, ela diz. Dizendo-me para que eu me apresse. A voz dentro de
mim diz que algo vai acabar em breve Lilico
O filme tambm irnico, pois usa a tima atriz Erika Sawajiri para representar Lilico. A vida
pessoal da Sawajiri no mundo real se assemelha muito vida de Lilico na fico. Comeou
como uma esperanosa e nnfica idol fazendo vdeos de biquni (foi Visual Queen da Fuji TV em
2002), virou uma respeitosa atriz de doramas (Ichi Rittoru no Namida e Taiyou no Uta), e hoje faz
Helter Skelter, com encenaes de nudismo, beijo homossexual e sexo enquanto sua vida
pessoal rodeada de boatos sobre consumo de drogas, alm da demisso da agncia de
talentos por comportamento indevido. Em outras palavras, o ciclo de vida de uma idol japonesa,
com sua ascenso e queda, se turva entre real e fico. No h mais fronteiras entre intrprete e
interpretado. Diferente de alguns dos filmes citados acima, a direo muito moderna e

corajosa ritmo incomum no cinema japons. A decupagem frentica e a narrativa no


linear. Os cenrios so lindos e a atuao da Sawajiri rouba a cena. Alm disso, tem fanservice
com a protagonista de Um Litro de Lgrimas hehe ;) O Trailer d uma ideia do visual.

Love & Pop


&
(
,
1998)
Enquanto voc est nua
desse jeito, algum, em
algum lugar, est se
sentindo inconsolavelmente
triste.
Se Helter Skelter toca um
problema
fortemente
nipnico,
mas
ainda
global, Love & Pop um
filme muito interessante
que trabalha todo o seu roteiro em cima de um problema quase exclusivo do Japo: O enjo
kosai. Love & Pop, adaptao de um romance de Ryu Murakami (no confundir com Haruki), foi
o primeiro filme dirigido pela estrela da indstria dos animes, Hideaki Anno, a mente por trs de
Neon Genesis Evangelion. Nos anos 90 a crise econmica abalou o poder de compra de muitos
japoneses. Vrias meninas em idade escolar, para no diminuir seu padro de consumo,
passaram a participar de encontros compensados (com ou sem sexo) com homens mais velhos,
conseguindo assim dinheiro para bancar itens de luxo. Alguns encontros pagos exigiam apenas
que a menina acompanhasse o homem solitrio at algum passeio, uma refeio ou um
karaok, onde ele poderia usufruir da presena de uma jovem por algumas horas. Outros
desbancavam para a prostituio e at abuso sexual da menor, com casos extremos de
assassinato e esquartejamento. O enjo kosai foi um srio problema social do Japo na dcada
de 90.
O filme cobre 24 horas do dia de Hiromi, uma estudante que fica encantada com um anel e
resolve aderir ao enjo kosai. O filme foi um dos primeiros a serem gravados com tecnologia digital
e faz uso de muito experimentalismo na escolha dos ngulos (muitas vezes geniais, por vezes
amadores). Ao colocar a cmera na cabea da atriz e captar seus reais movimentos, Anno
mandou uma mensagem juventude japonesa dos reais perigos e da depravao moral do
ato. O pblico via a menina com as pernas abertas pela perspectiva da menina. O jogo de
cmeras sempre muito fechado e vouyerstico. Anno no te d opo de escolher para onde
olhar, como possibilita uma tomada mais aberta. Ele fecha a cmera no detalhe e violenta o
espectador, obrigando-o a assistir as cenas mais pesadas como um participante da cena. Com
o filme ele tenta dialogar diretamente com as meninas que no precisavam se prostituir na
ento segunda maior economia do mundo. A abordagem adolescente, afinal, esse o target.
Pela temtica restrita, o filme no tem reputao nem circulao internacional, e por isso
mesmo ganhou um espao nesse post.

Otoko Wa Tsurai Yo
( Duro Ser Homem, )

inegvel que h algo de mesmice e previsibilidade nos filmes de Otoko wa Tsurai Yo, mas muito
do que atraiu o pblico japons aos cinemas ao longo das dcadas para ver as histrias de Tora-san
est na familiaridade e na saudade de um estilo de vida que seus filmes inspiram. Diferente dos atuais
estilos de vida urbanos do Japo, no qual vizinhos mal se falam e salarymen e Office ladies viciados
em trabalho vivem em endinheirada solido Cristiane Sato
Otoko Wa no um filme, um colosso cinematogrfico. Segundo o Guinness, a mais longa
srie de filmes j produzida por um nico diretor (Yoji Yamada). So 48 longas realizados em 27
anos pela Shochiku. Comdia de costumes tradicionalmente lanado no dia do ano novo,
tornou-se um habitual compromisso das famlias japonesas nas frias viradas de ano. Seu

protagonista, Torajirou Kuruma (Tora-san) de longe o personagem mais famoso do pas. Assim
como no anime Sazae-san, os autores foram mantidos por dcadas, e as histrias
acompanhavam a evoluo de vida deles.
A srie de filmes segue
uma frmula batida e
insistentemente
reproduzida (talvez nisso
resida
o
valor
da
franquia). Tora-san, como
define a Sato, tmido
com as mulheres ainda
que romntico, impulsivo
e
irresponsvel,
mas
honesto.
Pressionado
pela vida, resolve viajar
para algum canto do
Japo (viajou para todas
as provncias!). L encontra uma bela mulher, se apaixona, se ilude, acaba envolvido em algum
problema, se desilude e volta pra casa, sozinho e resignado. Tora-san no encontra o seu
amor. A srie, que buscava mostrar o cotidiano, acabou sendo um retrato da evoluo histrica
de Tquio. Doces, vesturio, arquitetura, penteados e relacionamentos pessoais de um mundo
suburbano que foi soterrado por ao e concreto. Inexplicavelmente desconhecida fora do
Japo.
*****
Voc deve ter sentido falta de muitos ttulos essenciais ou bacanas, mas a inteno aqui passou
longe de esgotar a histria do cinema japons. Quem sabe em uma parte 2?
10 de Outubro, 2013

Otakismo Seis ttulos imperdveis do cinema japons contemporneo


Mais recomendaes cinematogrficas na coluna Otakismo.
Essa a segunda bateria de filmes japoneses que eu recomendo aos leitores do Chuva de
Nanquim. Enquanto na primeira lista eu tentei indicar algumas pelculas representativas dos
principais gneros do cinema japons (yakuza eiga, chanbara, J-Horror) ou com algum valor
histrico (premiaes internacionais), nesta eu tentei reunir apenas ttulos recentes que abordam
problemas ou assuntos do Japo moderno. Em outras palavras, para os iniciados no estudo do
pas, filmes que foram produzidos a partir da chamada Dcada Perdida, como ficaram
conhecidos os anos 90. Portanto, no espere por filmes de Kurosawa, Ozu, Mizoguchi ou Imamura
neste post.

Battle Royale
(
,

2000)
- Por que est fazendo
isso?
A culpa toda de vocs.
Vocs
zombam
dos
adultos. Podem faz-lo
vontade, mas no se
esqueam. A vida um
jogo. Ento, lutem pela
sobrevivncia e descubram se so dignos dela.

Distopia, Takeshi Kitano, armas e colegiais japonesas. O responsvel pela obra precisaria ser
muito talentoso para conseguir produzir algo ruim com tais ingredientes. No o caso de Kinji
Fukasaku na feliz adaptao cinematogrfica de Battle Royale. A verso foi feita em cima do
livro homnimo escrito por Koushun Takami em 1999, que ser lanando oficialmente no Brasil
pela Globo Livros em 2014. Tem como mrito ser a obra que, segundo muitos, foi a fonte capital
de inspirao para no acusar de plgio na criao da franquia americana Jogos Vorazes.
tambm o filme favorito de Quentin Tarantino e uma das referncias na criao do roteiro de Kill
Bill (Chiaki Kiriyama, a Go Go de Kil Bill, interpreta a Chigusa em Battle Royale).
Na virada do milnio a Grande Nao do Leste (uma referncia ao hipottico governo
totalitarista que tomou o poder no Japo) se encontra em um estado de absoluta anomia social.
As taxas de desemprego so alarmantes e a evaso escolar se tornou uma constante indigesta.
O smbolo da autoridade no impe mais respeito em um pas de milenar tradio patriarcal e
hierrquica. Os adultos, temendo a desintegrao social derivada da postura anrquica destes
jovens, aprovam o Ato BR para coloc-los na linha: a lei consiste num reality show anual onde
um grupo de estudantes da mesma classe escolhido aleatoriamente no pas para matar uns
aos outros em uma ilha deserta e isolada, at que sobreviva apenas um. Caso isso no acontea
dentro do perodo de trs dias, todos so sacrificados e o jogo termina sem um vencedor (se
que essa palavra faz sentido em BR).

Escutem! por culpa de gente como o Kuninobu que este pas no presta mais. Por causa disso, os
figures se reuniram e aprovaram esta lei. Battle Royale. Ento a lio de hoje Matarem uns aos
outros at sobrar apenas um. Vale tudo.
Battle Royale captou o sentimento dos japoneses quando caiu a ficha de que o pas estava
numa crise no mais temporria e sim crnica, a sensao generalizada de ver todas as portas
se fecharem para o Japo a aceitao do fim do Milagre Econmico Japons. Os mais velhos
sabiam que o pas no seria mais a potncia que tinha sido no seu tempo e no toleravam a
postura desleixada dos mais jovens (e algumas radicais mudanas culturais provenientes da
ocidentalizao); estes respondiam com o ressentimento de viver em um pas sem oportunidades
e carente de perspectivas de futuro para alimentar suas esperanas (crise econmica, bomba
demogrfica, a possibilidade da chegada do temido Terremoto de Tquio, perda da
competitividade industrial).
Como filme, no uma obra de arte, um produto de entretenimento. A atuao ao estilo
japons pode incomodar alguns e existem alguns problemas de adaptao. Mesmo assim vale
muito a pena assistir. Takeshi Kitano rouba a cena no papel do professor que comanda o
programa. A histria tambm feliz em captar a cornucpia dos tolos anseios adolescentes.
Um misto de desejo de sobreviver, com vontade de proteger os amigos e sua amada, passando
at mesmo pela resignao com a morte, contanto que lhe seja concedido a chance de
desvirginar a coleguinha de classe no momento derradeiro. Na iminncia da morte, todos os
sentimentos desconfiana, amabilidade, apetites, carinhos e dios -, escondidos pela hipocrisia
ou vergonha do convvio social, deixam de se esconder e mostram a face. A conscincia da
finitude expe o que o ser humano tem de melhor e de pior. Paixes so declaradas, lealdades
demonstradas e acertos de conta so colocados em prtica. Uma boa recomendao para
assistir comendo pipoca, mas tambm possvel penetrar algumas camadas mais profundas na
anlise.

No temos alternativa a no ser seguir em frente. No importa a distncia, corra em busca do que voc
merece CORRA!
Kokuhaku
(
,
Confessions, 2010)
Os fracos de corao magoam os ainda mais fracos. Tero eles alguma escolha para alm da
resistncia ou da morte? Sim, vocs habitam um mundo mais amplo do que isso. Se a vida difcil
onde esto, por que no se refugiam em outro lugar?

Kokuhaku, de Tetsuya
Nakashima, foi a escolha
japonesa para concorrer
ao Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2011. No
foi
selecionado
pela
Academia, mas basta
assistir ao ttulo para
compreender a opo
do Japo. Kokuhaku
uma histria de vingana
contada de uma forma
muito
peculiar.
A
professora Yuko Moriguchi
anuncia aos alunos que deixar de lecionar e faz uma declarao inusitada. Ela proclama que,
a despeito da investigao policial ter registrado o caso como um acidente, a morte de Manani,
sua filha de quatro anos, no foi uma fatalidade, e sim um assassinato. Detalhe: cometido por
dois alunos daquela turma. A primeira meia hora do filme combina o relato da professora com
flashbacks. Sem mencionar os nomes dos alunos, os detalhes fazem com que todos os demais
descubram quem so os dois suspeitos. E, j que o sistema penal japons no capaz de punir
os menores infratores, ela decidiu preparar justia com as prprias mos. Yuko injetou o vrus do
HIV no leite ingerido pelos dois. Ao trmino desse depoimento, o filme se desdobra nas
implicaes da ao vingativa da professora.

Manami est morta, mas no foi um acidente. A Manani foi assassinada por alunos desta turma. Qual
a proteo mais efetiva de vocs? So os seus pais? Uma arma? O aliado mais protetor e fidedigno de
vocs o cdigo civil juvenil. Sob o Artigo 41 do cdigo penal os menores no so criminalmente
responsabilizados. Vocs no podem ser presos. No maravilhoso? () Vocs podem assassinar e
sarem impunes.
Os fs de Kokuhaku costumam ser apaixonados pelo filme. Isto porque ele tem fora em vrios
sentidos. As revelaes da trama so oferecidas em plulas, aos poucos, mantendo o espectador
num clima permanente de tenso, sem entedi-lo. Nakamura usa tons frios, com filtros de cores
para atribuir ao filme uma atmosfera nevoenta. A direo muitas vezes flerta com a estrutura
narrativa dos videoclipes e a trilha sonora usa msicas da cultura pop, como Radiohead, AKB48
e KC & Sunshine Band. Alm disso, aborda temas contemporneos como Ijime (bullying),
violncia juvenil, transtornos mentais, apologia ao crime e a reviso da legislao do pas. Se
voc gosta do jeito japons de produzir suspense, este um must watch, mas assista Kokuhaku
preparado. Esta no uma histria de redeno. E assim como Battle Royale, outra vendeta
adulta contra a juventude japonesa. A letra da infantilesca Milk que abre o filme j te mostra o
sarcasmo com o qual ela pintada [now come inside me].

No retribua dio com dio. Isso nunca trar paz de esprito. Algum dia eles iro se redimir. Acredite
neles. Isso tambm trar a tua salvao. Foi o que Sakuramiya me disse. At o ltimo momento ele no
parou de dizer a coisa certa. Mas eu fui em frente.
Kids Return
(
,
1996)
- Ma-chan, voc acha que est tudo acabado para ns?
Idiota! A gente ainda nem comeou
Quando falamos de Takeshi Kitano no papel de diretor, Hana-Bi, Dolls e Zatoichi aparecem como
ttulos obrigatrios. No Japo, entretanto, toda a filmografia do beat tem reconhecimento e,
entre estes ttulos pouco conhecidos fora do arquiplago, est o timo Kids Return. O cenrio
inicial do filme me lembra muito os primeiros captulos de Yu Yu Hakusho. Uma escola decadente
comandada por professores acomodados e um milharal de alunos flertando com a delinqncia

juvenil. Temos aqui a fatia


do
Japo
e
dos
japoneses
que
no
costumamos
ver
na
propaganda
e
nos
noticirios.
Medocre,
abatido, conformado e
desesperanado.
Kids Return acompanha o
crescimento
de
dois
destes alunos, Masaru e
Shinji. Prias no colgio e
sem iluso com o futuro,
eles tentam tomar as
rdeas de suas existncias cada um ao seu modo. Um entra para a mfia japonesa, o outro
comea a lutar boxe. S para descobrir que o Sol Nascente que simboliza o Japo no brilha
igualmente para todos. Outros estudantes, sempre em duplas, tm suas vidas miserveis
mostradas em paralelo. Uns no vo para a faculdade, outros no conseguem se sustentar em
seus empregos sem prestgio. O filme inteiro tem um clima amargo e ajuda a quebrar o
esteretipo do cidado japons como um homem com uma carreira bem sucedida de
assalariado em algum conglomerado. Tambm no Japo h potenciais desperdiados, talentos
mal explorados e um exrcito de pessoas sem talento algum, lutando para sobreviver da forma
como podem. De modo interessante, Kitano expe isso como um fenmeno cclico.

Vendam pelo menos a soma dos salrios de vocs! Caso contrrio, vocs so uns ladres. Vocs no
esto envergonhados? Se continuarem assim a empresa vai ir bancarrota, mas primeiro, eu vou ser
demitido. Se vocs no esto dispostos a tentar, demitam-se. Vocs podem encontrar qualquer emprego
que queiram se procurarem bem.
A atmosfera depressiva de Kids Return com freqncia recortada pelo humor negro
caracterstico dos trabalhos do Kitano, ento, apesar da moldura fria, o filme poder diverti-lo
em vrios momentos (o humor tambm lembra MUITO as piadas do Togashi em YYH). O percurso
da histria no maante e ele ainda deixa um sabor prolongado aps o consumo da
narrativa. Ah, a trilha sonora foi criada pelo Joe Hisaishi, autor das msicas de vrias animaes
do Estdio Ghibli, como Nausica, Chihiro, Laputa e Totoro. Um grande achado!

Ns no esperamos que vocs dois estudem. Tudo o que pedimos que vocs no incomodem os outros.
Se vocs no conseguem parar com isso, no precisam se incomodar em voltar s aulas.
Norwegian Wood
(
,
2010)

O mito de Andrmeda
fala sobre um amor
indestrutvel
e
suas
trgicas conseqncias
A Universidade de
Waseda
protesta.
Exigimos um fim para a
base americana e
Guerra do Vietn. Ns
exigimos que esta leitura
seja interrompida. Temos problemas mais srios do que as tragdias gregas.
No acho que haja problemas mais srios neste mundo do que as tragdias gregas. Faam o que
quiserem

Haruki Murakami o escritor que representa os adolescentes japoneses da atualidade. Seus livros
fazem com que ele seja apontado como o favorito ao Prmio Nobel da Literatura de 2013 nas
casas de aposta britnicas. Sua obra faz sucesso por ter encontrado um nicho de mercado
robusto e pouco explorado: jovens em transio entre a adolescncia e a vida adulta. Murakami
descreve com certo lirismo o desamparo aflitivo das personagens ainda em processo de
descobertas, com seus temores, esperanas e queixas. O livro que o alou ao estrelato no Japo
foi Norwegian Wood de 1987, que vendeu quase cinco milhes de cpias no arquiplago. A
adaptao cinematogrfica do vietnamita Tran Anh Hung foi muito honesta e fiel ao texto
original, transmitindo com eficcia o clima encontrado nas pginas do Murakami.
Inspirado na cano dos Beatles, Norwegian Wood apresenta um trgico tringulo amoroso. No
tumultuado final dos anos 60 as universidades japonesas estavam um caos com as revoltas
estudantis. Conservadores, comunistas e nacionalistas degladiavam entre si e todos contra as
foras policiais. Neste cenrio, um jovem de 19 anos, Toru Watanabe, estuda teatro na
Universidade de Waseda e enfrentar uma luta que no ocorre no campo poltico. Solitrio,
conduz sua vida sem maiores ambies, apenas devorando clssicos da literatura um atrs do
outro. Essa letargia sofre um chacoalho com o suicdio do seu melhor amigo, Kizuki. Watanabe
se encontrar dividido entre o amor da ex-namorada do amigo, a psicologicamente fragilizada
Naoko, e da liberal Midori, conhecida da universidade que possui hbitos modernos para a
poca, como o corte de cabelo e a naturalidade ao falar sobre sexo.

Que aniversrio quieto. to estpido quando voc entra nos 20 sem estar pronto para tudo. Sabe,
estranho. Como se algum te empurrasse
Recomendo Norwegian Wood por uma srie de motivos. uma ambientao competente de
um perodo importante do sculo XX no Japo. Geralmente vemos a revolta estudantil retratada
na Frana, EUA e Tchecoslovquia (Primavera de Praga), mas o Japo tambm tremeu na
poca e seu governo emitiu mais de mil autorizaes para a invaso policial das universidades
entre os anos 60 e 70 (o Japo era usado como base para os americanos atacarem o Vietn).
Vesturios, cortes de cabelo, dilogos e hbitos so bem reconstrudos nessa pelcula as
locaes so belssimas. Alm disso, acho bacana pensar como, independente da poca e da
situao poltica, os dramas pessoais da humanidade seguem semelhantes. Claro, tambm
pode ser uma boa introduo para voc que nunca leu nada do Murakami e gostaria de
conhecer uma histria do escritor japons que est conquistando o mundo com sua prosa psmoderna. Quem sabe isso no te anima a pegar o livro depois?

Yankees, caiam fora de Okinawa! Fim Guerra do Vietn! Saiam com a sua Declarao de Segurana!
Vo embora, vo embora, vo embora!
Suicide Club
(Jisatsu
Club,
Suicide
Circle, ,
2002)

Mesmo que voc pudesse


morrer, a sua ligao com
o seu namorado iria
permanecer. Mesmo que
voc pudesse morrer, a sua
ligao com o mundo iria
permanecer. Ento, por
que vive?
Jisatsu Club de Sion Sono
tem uma introduo antolgica. 54 garotas de diferentes colgios se aglomeram na frente de
uma linha de trem e cometem um suicdio ritual coletivo. Esta foi a primeira leva de suicdios
que comeam a pipocar Japo afora. O detetive Kuroda da polcia encarregado de
investigar boatos sobre um grupo que organiza os suicdios pela internet. E esta ser apenas a
linha de partida para os comentrios sociais que este filme buscar fomentar. Alienao,

onipresena miditica, modismos, virtualizao da vida, niilismo e a prpria problemtica dos


suicdios no Japo.

Eu sou o Charles Manson da Era da Informao!


O Clube do Suicdio tambm uma boa porta de entrada para a complicada obra do
realizador Sion Sono, um dos expoentes do cinema japons alternativo. Seus filmes muitas vezes
transitam entre gneros diferentes, transmitindo uma sensao um pouco esquizofrnica ao
espectador. Ele ainda gosta de flertar com concluses surreais e isso afasta o grande pblico.
Jisatsu Club uma experincia esttica com crtica social embutida. Se a direo fora do
padro no for um problema para voc, no fuja por causa do tema. O suicdio usado como
artifcio para defender o valor da vida, um chamado vida e uma rejeio a certos padres
de comportamento do mundo moderno e do dia a dia nas metrpoles japonesas. Vale a pena
ser desafiado pelo Sion Sono. O post do @synthzoid na coluna Japania do blog Contraverso
(japanoia 12 suicide club modismos e suicidios) pode te ajudar a esclarecer alguns detalhes que
ajudam na compreenso da obra. O Trailer dele uma porcaria, ento optem por ver o vdeo
com a cena do suicdio inicial. Sore De Wa Minna San Sayonara.
The Kirishima Thing
(Kirishima,
Bukatsu
Yamerutteyo /
,
2012)
Kirishima nos disse para
pararmos com as atividades
nos clubes e comear a viver
nossas vidas
O dramaturgo irlands
Samuel
Beckett
revolucionou a narrativa
teatral no sculo XX com
a obra Esperando Godot. Nela, dois vagabundos esgotam a vida espera de uma pessoa ou
algo chamada Godot, que supostamente teria um encontro marcado com eles, mas sem uma
data fixa, e justificaria todo o tempo desperdiado na espera. Eles passam dia aps dia
preenchendo o tempo com inocuidades, pequenas distraes ou dilogos sobre a prpria
misria, no aguardo do aparecimento da figura misteriosa. Godot nunca aparece. No se sabe
sequer se ele existe. Caso exista, tampouco possvel garantir se de fato havia prometido
encontr-los. A vida de todos os personagens, mesmo assim, gira em torno da apario e da
existncia de algo que nunca d as caras. Uma possvel representao da conscincia do
Absurdo na vida humana.
The Kirishima Thing parte de uma premissa muito semelhante (e no fui o nico a lembrar da
pea beckettiana). A vida escolar de uma classe de Ensino Mdio japonesa apresentada
permeando a existncia de um aluno que seria o correspondente japons de Godot, o tal do
Kirishima. A narrativa comea com a informao da sbita desistncia de Kirishima do clube de
vlei. Ele tambm passa a faltar na escola. Quem Kirishima? Sabemos que existe, mas ele
nunca aparece. A vida de todos no ecossistema escolar, todavia, afetada pela sua ausncia e
a conseqente esperana do retorno. A forma como os alunos passam a reagir lacuna que ele
deixa escancara a brutal hierarquizao informal que existe nas escolas japonesas e, por
extenso, na sociedade como um todo. Evidencia como todos vivem, para alm de si, limitados
pelos rtulos que escolhem para si (ou so outorgados por algum). H os esportistas, os
descolados, os otaku fracassados, os msicos, todos vivendo num tnue equilbrio de velada
desconfiana e perseguio. Essa hierarquizao sofre uma eroso com o sumio de Kirishima.
Muitos coraes sero partidos quando os rtulos comearem a se misturar e a estabelecer
contato entre si. Novamente, a juventude japonesa no ser perdoada.
Parece confuso? Sim, porque mesmo, em todos os aspectos. Alm de eu ter feito uma pssima
resenha, os temas so um pouco abstratos e difceis de captar. A direo do filme totalmente

fragmentada, apresentando as mesmas cenas por diversas perspectivas pessoais diferentes e


demanda o triplo de ateno aos detalhes (algo semelhante ao filme Elefante do Gus Van Sant,
ou ao anime Boogiepop Phantom). Se voc tiver coragem de encarar, no entanto, a
recompensa ser altura do esforo, pois Kirishima Thing foi um dos filmes mais impressionantes
que assisti nos ltimos anos. De modo surpreendente, apesar de ser um ttulo muito entrpico, foi
um sucesso de crtica no Japo. Filme vencedor do Japan Academy Prize de melhor filme em
2013.
Eu gostaria de ter um feedback dos
interessados. Vocs preferem foco total
nos filmes mais recentes ou tambm
querem que os clssicos sejam
explorados? H interesse em cinema
coreano
e
chins
ou
apenas
japons? Sei que faltaram muitos filmes
bons e relevantes, mas, novamente,
no foi minha inteno esgotar o
assunto
nem
apresentar
necessariamente os seis melhores, apenas compartilhar aos poucos o que conheo do rico e
complexo cinema japons. Mata ne.
24 de Janeiro, 2014

Otakismo Mestres do Anime: Makoto Shinkai


O herdeiro de Miyazaki?
Quando Hayao Miyazaki
anunciou sua retirada da
indstria dos animes em
2013, a mdia japonesa
usou o termo para
proclamar
a
aposentadoria
do
fundador
do
Studio
Ghibli. O entendimento
do valor de Hayao
dentro da cultura japonesa passa pela compreenso destes ideogramas, usualmente reservados
para chamar a ateno pblica chegada de terremotos. O aviso de que Miyazaki no
produziria mais longas-metragens caiu no Japo como um desastre natural. No momento em
que um mestre deixa o trono vago, a primeira coisa que se busca o sucessor. Um dos nomes
mais citados como provveis herdeiros desta condio o jovem Makoto Shinkai.
Quem Makoto Shinkai?
Todas as atenes se
voltam ao deleite visual
proporcionado
pela
animao
que
ele
produz, cuja narrativa
costuma ser sempre uma
experincia
guiada
majoritariamente
pelos
olhos. Os dilogos em
seus filmes, OVAs e curtas
no costumam trazer
nada de especial, a fora
est na destreza mpar em manejar luzes e sombras. As paisagens aquareladas onde suas
histrias acontecem nascem de esboos coloridos, padro de trabalho incomum no nvel inicial

de storyboard (garranchos em preto e branco). A exemplo de mangaks como Inio Asano, ele
gosta de fotografar paisagens reais do Japo para captar com detalhes o ambiente
circundante e reproduzi-los em suas criaes. Esmero tcnico e sensibilidade esttica
caractersticas quase sempre presentes na produo cinematogrfica japonesa so suas
marcas registradas, acessveis mesmo aos olhares mais leigos. A reproduo animada de
cenrios reais parece
esconder a inteno de
se mostrar mais autntica
do
que
a
prpria
realidade, tamanha a
profuso de cores e jogos
de luzes. Personagens
esteticamente genricos,
por vezes indistinguveis,
contrastam
com
paisagens exuberantes.
verdade que isto lhe
rende algumas crticas,
como a afirmao de
que em certos momentos
sua arte se torna kitsch devido aos excessos.
Obsesso seria sua terceira caracterstica. Shinkai obcecado por certos assuntos, por alguns
simbolismos e por determinadas construes visuais. H trens em TODAS as suas animaes,
geralmente em movimento e interrompendo o caminho dos personagens. A linha frrea com
frequncia fechada para pedestres obstrui a passagem e cega o horizonte. O transcorrer do
tempo e as mudanas psicolgicas so expressas pelo ciclo de transio das estaes. Pingos
de chuva e poas dgua marcam presena constante, assim como lanamentos espaciais,
cus estrelados e personagens interessados em assuntos astronmicos. Ligaes telefnicas,
marcas e referncias ao universo do consumo, pssaros voando (muitas vezes no sentido
contrrio ao do personagem) e mos apoiadas na porta do trem completam a lista de fixaes
imagticas do japons. Alm disso, ele gosta de finalizar suas animaes com uma msica ela
geralmente ajuda a amarrar o texto, elementos essenciais so trabalhados j nos crditos -, e de
vez em quando opta por trabalhar com ambientes beligerantes, onde fala sobre a condio
humana em ambientes desumanizados.
Mais do que um padro visual, toda a obra do Makoto est amarrada a um fio condutor, isto ,
de uma forma ou de outra, todos os seus ttulos parecem contar a mesma histria, sempre
relacionada a algum tipo de relacionamento interpessoal marcado pela distncia e pela
ausncia. Suas criaes costumam ter um clima depressivo, uma atmosfera de renncia. Ele
geralmente trabalha com
o ciclo do luto, onde h a
insatisfao
por
uma
perda,
seguida
da
aceitao do mundo tal
qual ele se apresenta,
mas no sem o pesar de
precisar abrir mo de
coisas que so to caras
aos personagens. Muitas
vezes este ciclo (que nem
sempre se completa, o
que torna Hoshi no Koe
uma
animao
mais
soturna) acompanhado
de um sentimento de inadequao, ora espacial (insatisfao com o lugar em que se est), ora
temporal (flerte com a nostalgia). Isso o distancia muito dos ttulos frequentemente positivos do

Miyazaki, que gostava de energizar a juventude com uma abordagem mais otimista. Esprito
auto-suficiente, Shinkai declara que sua obra toda a criao daquilo que ele gostaria de assistir
para se animar ou consolar.
Creio ter passado por cima das caractersticas que saltam aos olhos no Makoto Shinkai. Abaixo,
pretendo empregar uma anlise que buscar pontos de convergncia e divergncia destes
padres em cada um das suas animaes, e, claro, apontar as fragilidades de sua obra. Na
concluso, trarei a ideia de que, goste voc ou no, Shinkai ajudou a mudar a indstria do
anime em dois momentos e por isso merece um pouco de ateno. No mnimo.
Curtas: Tooi
Kanojo to
Neko

Sekai
Kanojo

/
no

Ei, o mundo bonito, n?


Mas h algo que no posso
aceitar Que algum dia
voc vai encontrar sua
verdadeira metade.
Shinkai comeou sua
carreira
como game
designer. Paralelamente
ao seu trabalho na
indstria dos jogos, o
japons comeou a produzir curtas independentes durante seus momentos de folga, fazendo da
internet sua aliada na divulgao. A primeira delas foi Tooi Sekai (Other Worlds / )
de
1997, que voc pode assistir em ingls na Internet. A produo ainda precria, mas em seus
menos de dois minutos, nota-se uma antecipao de temas que sero recorrentes na sua obra
futura, como a separao de um casal.
Kanojo to Kanojo no Neko (She and Her Cat / )
de 1999 j apresenta uma
evoluo no cenrio independente. Durante seus cinco minutos, que cobrem o perodo de um
ano, testemunhamos o desenvolvimento da relao entre um gato e sua dona, pelo ponto de
vista do gato. Diferente
do romance Neko do
escritor Natsume Soseki,
onde a perspectiva do
gato a respeito do seu
dono acida e irnica
(Shinkai
estudou
literatura japonesa na
universidade), o bichano
de Makoto guiado
pela inocncia e se
apaixona pela criadora,
fechando os olhos para
suas oportunidades.

A neve absorve todo o som do mundo, mas apenas o som do seu trem alcana minhas orelhas
ouriadas. Eu, e talvez ela tambm, provavelmente gostamos desse mundo.

Hoshi no Koe (2002)


(Voices of a Distant Star / )

Quanto mais longe a Mikako ia da Terra, mais tempo as mensagens demoravam a chegar. E se eu
acabar me tornando algum que apenas espera pelas mensagens dela?

Shinkai se enamorou com a linguagem cinematogrfica criando cenas animadas para


videogames. A necessidade sentida de contar uma histria sua conflitava com a rotina de
trabalho. Isso o fez largar
o emprego e passar oito
meses
trabalhando
sozinho em casa no
projeto de Hoshi no Koe.
Seus
nicos
companheiros
de
trabalho
eram
um
Macintosh e sua esposa.
O trabalho foi homrico,
ele criou um OVA de 25
minutos SOZINHO em um
computador
pessoal.
Para te dar noo do
feito, tenha em mente
que cada episdio de um anime produzido no Japo custa em mdia 100 mil dlares e envolve
mais de uma dezena de profissionais. A proeza projetou o nome de Shinkai e o DVD de HnK
vendeu mais de 100 mil unidades.

Mesmo que eu tenha escrito o roteiro, desenhado os quadros e dublado as falas em Hoshi no Koe, eu
no me sentia como um diretor, eu era apenas um cara na minha, fazendo algo para o meu prprio
prazer. Ento eu estranhei quando as pessoas se dirigiam a mim como diretor (Makoto Shinkai)
Hoshi no Koe apresenta
uma realidade futurista
onde a humanidade j
havia
iniciado
a
colonizao do Sistema
Solar
e
tinha
a
capacidade de explorar
dobras
espaciais.
Tamanho
avano
tecnolgico colocou o
Homem em rota de
coliso com uma espcie
aliengena
chamada
Tarsian,
contra
quem
trava
duelos
interplanetrios fazendo
uso
dos
famigerados
mechas. Para combatlos, as Naes Unidas
convocou uma srie de
pilotos, entre os quais
figura a garota Mikako
Nagamine.
O motor do plot a troca
de mensagens de texto
entre Mikako e seu amigo
Noboru Terao, que ficou
na Terra. Quanto maiores
as distncias intergalcticas, maiores as dificuldades. A comunicao ficava limitada pela
velocidade da luz e de meses passou a levar anos para alcanar seu destino. Sem ignorar o risco
da mensagem sequer chegar. Enquanto Noboru seguia sua vida provinciana no Japo, Mikako
se encontrava presa em uma cpsula do tempo, condenada a ser uma eterna adolescente

pela falta de interao com os seus semelhantes (como Shinkai ficou solitrios oito meses em seu
apartamento s trocando mensagens com a esposa). Ambos, no entanto, amarrados um ao
outro.
O OVA talvez a obra mais pessimista do autor. Seu final ligeiramente aberto, mas d amplas
margens para uma interpretao pouco feliz. Um carto de visitas e tanto, seja no aspecto
tcnico, seja no artstico. Suficiente para chamar a ateno da indstria do anime. A partir de
agora Shinkai seria um profissional contratado, com verba e equipe.
Kumo no Mukou, Yakusoku no Basho (2004)
(
/ The Place Promised in Our Early Days)

Nos ltimos 25 anos, a


torre se tornou parte da
paisagem do dia a dia, e ela
simboliza muitas coisas.
Nao. Guerra. Desespero.
E at admirao. A maneira
dela ser interpretada muda
entre as geraes, mas uma
constante que todos a
vem como um smbolo de
algo alm dos seus alcances.
Algo que no pode ser
mudado. Enquanto eles
acharem isso, esse mundo
provavelmente
no
mudar.
Este o primeiro produto
de concepo comercial
do Shinkai. No ttulo temos
uma verso alternativa
da Histria do ps-guerra.
A exemplo da Coreia, o
Japo
havia
sido
seccionado em duas
partes, diviso pela qual
a
ilha de Hokkaido
passou a ser chamar Ezo
e ficou sob controle da
Unio (uma bvia referncia ao bloco sovitico), enquanto o resto se manteve ao lado
americano sob a denominao Aliana. O militarizado espao da Unio construiu uma torre
absurdamente alta que poderia ser vista a olhos nus mesmo de Tquio. Ningum sabia ao certo
sua funo, mas a desconfiana de seu sentido militar era certa.
O roteiro gira em torno de dois garotos, Hiroki Fujisawa e Takuya Shirakawa, ambos interessados
pela mesma menina, Sayuri Sawatari, e empregados na indstria blica da Aliana. O sonho dos
dois era construir um avio caseiro para mirar com os prprios olhos a torre de perto (novamente,
h paralelos com a produo caseira de animao do Makoto). Eles fazem uma promessa de
irem juntos ao monoltico monumento dentro do espao areo da Unio.
Aqui h um forte discurso cientfico e a presena de teorias da fsica quntica. Se em Hoshi no
Koe falamos de dobras espaciais simbolizando distncias, aqui estamos falando de universos
paralelos. Pessoalmente, no sou o maior f deste ttulo, mas os fs do Shinkai costumam gostar.
No que eu veja grandes problemas, apenas no entrei na histria. A meu ver sua maturidade
chega com a obra seguinte:

Byousoku 5 centimeters
(2007)
(5
Centmetros
por
Segundo / 5

)

- Ei, vai fazer os exames?


Sim, para a Universidade
de Tquio.

Tquio
Entendo.
Pensei que seria o que
faria.
Por qu?
De alguma forma sempre
soube que voc iria a algum
lugar distante
5cm/s a velocidade
com que a flor de
cerejeira cai, e nomeia o
ponto mais alto da
carreira do Shinkai. Esta
animao de 1h
dividida em trs atos. No
primeiro,
Flor
de
Cerejeira,
acompanhamos
a
amizade construda entre
os toquiotas Takaki Tono e
Akari Shinohara. Ela
apartada quando Akari
se muda com a famlia
para
Tochigi
e
intensificada
quando
Takaki fixa residncia no
sul
do
Japo,
em
Kagoshima. O primeiro
tero
da
animao
focaliza no reencontro
entre os dois aps longa
viagem e na sensao
de que algo nunca mais
seria
o
mesmo.
O
segundo
arco,
Cosmonauta,
se
preocupa com a vida de
Takaki em Kagoshima e
insere
uma
nova
personagem,
Kanae
Sumida. O terceiro e
ltimo, 5cm/s, conclui a
histria anos depois, mas
no entrarei em detalhes
para no estragar a
experincia.

Este o ttulo onde aquelas caractersticas enumeradas no incio do texto melhor encontram
execuo. A insatisfao com a atual situao (Akari seguia vendo a previso do tempo de
Tquio mesmo morando em outra provncia); o fluxo do tempo caracterizado pela troca de
estaes; o dilogo sempre comprometido pela passagem de um trem, por uma carta no
entregue ou ligaes telefnicas nunca completadas; e a corrida espacial usada como
metfora para os personagens: quando uma revista folheada entrega a manchete Finalmente
achou seu caminho alm do Sistema Solar, pode-se entender claramente quem a sonda e
quem era o Sol.

Quando comecei a escrever mensagens que nunca enviei?


Primeiro sucesso internacional do diretor, a obra foi licenciada em mais de 30 pases. Pela
primeira vez aparece com nitidez a riqueza visual anteriormente citada. Como descreveu o
Crtico Nippon no blog Elfen Lied Brasil, ele faz a cmera filmar sempre planos abertos,
salientando o isolamento dos personagens. Uma boa histria, bem contada e tecnicamente
diferenciada, uma unio rara de forma e contedo. Foi feliz tambm na escolha musical que
encerra o ttulo, One
more time, One more
chance, que Masayoshi
Yamasaki comps em
homenagem

namorada falecida no
terremoto de Kobe em
1995. Caso exista um
interesse no processo
tcnico
do
Shinkai,
recomendo assistir ao
primeiro ato no formato
storyboard.
Curiosamente sua histria
mais famosa antecipa a sua pior criao
Hoshi Wo O Kodomo (2011)
(Children Who Chase Lost Voices / )

- E assim, sua esposa morreu. Devastado pela tristeza, Izanagi decidiu viajar para a terra de Yomi,
muito abaixo da terra, para buscar do mundo dos mortos sua falecida esposa, Izanami. Ao chegar l ele
finalmente encontrou sua esposa e ela lhe disse: eu j me tornei moradora do mundo dos mortos.
Finalmente um longa metragem de duas horas. O incio promete uma experincia espetacular.
Logo de cara o espectador se depara com belssimas imagens naturais. Uma cmera fixa na
residncia da protagonista acompanha, em segundos, a mudana dos horrios do dia e das
estaes.
Da
noite
primaveril ao ardor de um
dia ensolarado de vero.
Paranicos detalhes com
cores, troca de folhagens
e trabalhos de luz
mesmo na incidncia de
uma lmpada no piso de
madeira podem ser
definidos como Scenery
Porn. Infelizmente, da pra
frente a coisa desanda e
este filme se torna a
grande
bomba
na
carreira do Shinkai.

Ele abandona o tema do


cotidiano e abraa o
mundo fantasioso, numa
tentativa de se aproximar
(ou de homenagear) os
trabalhos
de
estdios
como Ghibli e Disney. A
menina Asuna e seu
professor
Morisaki
decidem
entrar
no
mundo dos mortos para
buscar algum que lhes
caro,
numa
bvia
reconstruo de vrios
mitos humanos, como o
de Orpheu (Grcia) e de
Izanagi-Izanami (Japo).
O
desenvolvimento,
porm, terrvel. rico
em
referncias,
mas
capenga em execuo.
Muitos inclusive o acusam
de plagiar o Miyazaki,
mas no acho que seja o
caso, at porque as
referncias soam bvias
demais
para
um
oportunista. apenas
uma homenagem mal
feita.
O roteiro foi concebido
na Inglaterra no breve
perodo em que ele
morou l por presso dos
seus produtores. O filme
tem
muitos
clichs.
Personagens
nada
carismticos apresentam
comportamento
esquizofrnico.
Tanto
quanto o roteiro, que
parece sair do nada para
desaguar
em
lugar
nenhum. A tentativa era
de criar algo menos
japons e falar uma
lngua mais universal, por
isso mesmo a adoo de
mitos que dialogam com
diferentes culturas. No
entanto o Shinkai
japons at o osso, e
creio que seu forte est
menos em criar mundos
fantsticos e mais em

adicionar um pouco de poesia ao nosso mundo mundano.


No gostei tambm do final escancarado, tpico das produes Disneyficadas, que no deixam
qualquer margem para um olhar interpretativo (relaxa, no tem spoiler aqui). O que ele apenas
sugere com sutileza na ltima cena de 5cm/s (um sorriso que diz tudo sem afirmar nada), aqui
ele te joga na cara literalmente. Ok, era uma produo comercial que custou muito dinheiro e
levou 5 anos de trabalho, ele apenas jogou o jogo da indstria. E o resultado no ficou to
bacana.
Dareka no Manazashi (2013)
(Someones Gaze /
)

Parece que a Aa-chan velha demais para apreciar uma refeio com seus pais
Aps levar muita paulada da crtica especializada, Shinkai retornou ano passado em grande
estilo com esse curta de sete minutos. Se destaca um ganho de maturidade em dois aspectos.
Primeiro no visual, ele mantm seu estilo, mas est um pouco mais econmico, entende que em
certos momentos menos mais. Em termos de narrativa, ele abandona os relacionamentos
amorosos de adolescentes e descortina uma sensvel histria entre pais e filha. Ele continua fiel
ao seu fio condutor relacionamentos e distncia -, mas apresenta um novo olhar sobre o tema.
Voc pode assistir na ntegra, em ingls, no Youtube. (COLOCA EM HD!!)
O conto, encomendado
por uma empresa de
empreendimentos
imobilirios,
demonstra
como as atribulaes do
dia
a
dia
podem
desgastar
os
afetos.
Alexandre
Nagado,
pesquisador de cultura
pop
japonesa
que
escreve no blog Sushi
Pop, fez uma interessante
observao:

normalmente,
filmes
publicitrios de projetos
residenciais
mostram
famlias
felizes
e
idealizadas. Este mostra
uma famlia que poderia ser
a de qualquer um, com
qualidades e defeitos, altos e
baixos. De modo curioso,
Shinkai
achou
seu
caminho de volta para
casa
numa
pea
publicitria
de
uma
incorporadora.

Kotonoha no Niwa (2013)


(The Garden of Words /

Honestamente, h apenas
duas coisas que eu sei com
certeza. Um: ela deve pensar
que um garoto de quinze
anos como eu no passa de
uma criana. Dois: fazer
sapatos a nica coisa que
pode me levar para longe
daqui.
O
relacionamento
amoroso volta no ttulo
mais recente da criao
Shinkaiana, mas dessa
vez
envolvendo
um
adolescente de 15 anos,
Takao Akizuki, cujo sonho
ser um designer de
sapatos, e uma mulher
misteriosa,
certamente
mais velha, mas esquiva
em
todas
as
outras
informaes. Takao o
smbolo
da
nova
juventude
japonesa,
hesitante em relao ao
mtodo escolar da era
industrial, com sonhos de
criar um negcio que lhe
d prazer e seja menos
estressante (o lado noradical do herbivorismo
japons). Em dias de
chuva ele no suporta
pegar o metr para ir
escola, ento ele vai a
um parque em Shinjuku
para desenhar sapatos
nesse oasis verde em
meio selva de pedra da capital japonesa. Esprito livre, ele contraria o senso comum e se sente
melhor em dias chuvosos. O Sol a Deusa Amaterasu que deu origem ao povo japons e sua
tradio, segundo a mitologia lhe passa a ideia de caminho ditado por outrem, no
necessariamente o seu. Dias ensolarados apenas no lhe dizem respeito.
Em meio poca de chuvas no Japo (junho), ele passa a ir quase diariamente ao parque,
onde sempre encontra uma mulher que tambm mata o seu trabalho, no para desenhar, mas
para beber cerveja e comer chocolate. Algo se desenvolve entre os dois tendo como plano de
fundo a chuva, que segundo o Shinkai um personagem do filme, mesmo no tendo alma (em
termos visuais, minha obra favorita dele).
Makoto defende que essa a obra mais incompreendida no Ocidente. Isso porque todo o filme
foi criado sob o conceito de amor. Mas no o amor que conhecemos por aqui, e os japoneses
descrevem como Ai (), mas sim o amor escrito com o ideograma Koi (), que estaria mais

relacionado
a
um
sentimento de tristeza e
desejo na solido, uma
necessidade fsica de
afeto. Tanto Ai quanto
Koi so traduzidos como
amor, mas h sutilezas
nas entrelinhas do idioma
japons
que
os
diferenciam e os fazem
ser
aplicados
em
momentos diferentes (e o
Japons a lngua do
discurso no dito, das
sutilezas, do subentendido). Sinceramente, mesmo pesquisando eu no entendi direito a
diferena, me peguei lost in translation, aceitei que uma obra japonesa feita para o pblico
japons e azar o meu se posso apenas subaproveit-la enquanto no sou fluente na lngua.
Por outro lado, uma coisa clara. Os sapatos que ele desenha so os passos que usar para
construir seu futuro, caminho, faro seguir em frente apesar dos pesares. a representao
simblica da mobilidade, do eterno fluxo, da inexorvel impermanncia, noes filosficas caras
ao pensamento japons, originrias do budismo moda chinesa. Tudo passa, tudo sempre
passar
Ok,
mas
comear?

por

onde

Se voc tem a inteno


de assistir toda a obra do
Shinkai, recomendo que
faa como eu e siga a
ordem cronolgica de
lanamento
para
entender como as coisas
evoluram. Se voc quer
ver apenas o que vale a
pena, recomendo esta
ordem:
Dareka
no
Monozashi, 5cm/s, Hoshi
no Koe, Kotonoha no
Niwa. Eu no sou um
grande f de Kumo no
Mukou e no gosto de
Hoshi Wo o Kodomo,
apesar de visualmente
lindo. Veja se quiser. Os
curtas
independentes
voc pode assistir j aps
a leitura do texto. A
nica condio : assista
na mxima resoluo
possvel. Se for para
assistir em MP4 melhor
nem comear. No faz sentido assistir Shinkai sem essa disposio.

Consideraes finais
Makoto Shinkai uma montanha russa. Oscila entre o notvel e o descartvel. Costuma reunir
fs fervorosos e detratores raivosos. indiscutvel sua excelncia tcnica, bem como sua
mesmice. Makoto me parece um exmio executor que tinha uma boa histria para contar, e a
remodelou de vrias formas em diferentes ttulos. Precisar se reinventar e se afirmar de modo
mais assertivo como criador de narrativas se no quiser perecer como a eterna promessa da
animao japonesa. Fs mais exaltados costumam valorizar demais a beleza visual e s vezes
ignoram fraquezas evidentes no resto do processo de criao.
Por outro lado, ele carrega o peso das expectativas nas costas. Obras iniciais boas e a sombra
de Miyazaki so um fardo pesado demais para um iniciante. Pessoas tentam, injustamente,
demolir suas criaes
para
demolir
as
comparaes com um
mestre da animao
mundial. No estar no
nvel do Miyazaki no
um demrito, na verdade
uma condio normal.
No gostar, consider-lo
superestimado e abaixo
do nvel do Hayao
compreensvel
(e
eu
concordo); achar que
por
conta
disso
o
trabalho inteiro dele de
se jogar no lixo um
exagero dos crticos. Seus
filmes esto trazendo
uma
mensagem
importante para um povo
vitimado pelos desastres
naturais, como os de
Fukushima em 2011: o
desespero adolescente
de Hoshi no Koe cedeu
espao aceitao da
impermanncia
dos
ttulos mais recentes.
Todo mundo precisa reconhecer: ele arregaa as mangas e d a cara tapa. Shinkai escreve,
anima, dirige, dubla, concentra vrias atividades da criao nas prprias mos e faz acontecer.
Quando acerta colhe os louros, mas quando peca, assina o erro. Isso admirvel em um
profissional. Sem ignorar o esprito empreendedor de abandonar o emprego para produzir
animao independente (num pas onde os animadores profissionais tm condies de trabalho
precrias).
Por tudo isso, Shinkai marcou a indstria do anime em dois momentos. Primeiro, ele mostrou que
era possvel criar contedo CG pessoal ainda nos anos 90, alterando a percepo dos
profissionais da rea. Quem diz isso Yutaka Kamada da Doga: eu tambm estava convencido que
isto marcou a consolidao da animao pessoal como um genuno meio de expresso. Uma vez
contratado, Shinkai demonstrou, com seu know-how adquirido no mundo dos jogos, todas as
possibilidades que a computao grfica poderia trazer para a indstria da animao japonesa,
que naquela poca ainda prezava por um modelo de animao analgico ou misto. Em outras
palavras, ele ajudou a inovar a narrativa no cenrio independente, e a tcnica no cenrio
profissional. No estamos falando de qualquer um!

Resta saber se ele ser capaz de se livrar deste cordo umbilical e dar a guinada em uma
carreira de diretor capaz de trabalhar com temas diversos, ou se, como pensam os mais cticos,
ser apenas mais um. Uma coisa certa. Ele pode no ser um gigante, mas est sentado nos
ombros de um. Se voc gosta de Shinkai, agradea ao Miyazaki e lamente sua ausncia. Mas
siga em frente, pois como diz Shinkai em todas as suas obras, o show deve continuar, no
importa quo grande a perda.
17 de Junho, 2014

Otakismo De Godzilla a Akira: O trauma nuclear no cinema japons


O impacto de uma
catstrofe na arte do
cinema.

Para
aqueles
que
mergulham abaixo da
superfcie, Godzilla no
um
mero
filme
de
monstro. Ele uma espcie
de paradoxo uma
realizao horrvel da
bomba que o criou, e
ainda uma penosa vtima dela; um smbolo dos arrependimentos ps-guerra e temores nucleares do
Japo, e, alternadamente, a raiva e a retaliao da nao (Steve Ryfle)
A discusso sobre o uso da energia nuclear
se confunde com a histria recente do
Japo. Primeiro, o pas amargou os nicos
ataques intencionais com ogivas nucleares
em
contexto
de
guerra,
agora,
experimenta a intranquilidade de viver nas
redondezas de uma usina danificada
regurgitando
toneladas
de
gua
contaminada diariamente. Em virtude da
gravidade destas experincias, de se
esperar
que
o
assunto
paute
a
mentalidade, a existncia e a produo cultural recente dos nipnicos.
Da produo pop ao cinema documental, a cortina nuclear direta ou indiretamente alterou boa
parte da cultura japonesa do ps-guerra, desfigurando seu cdigo gentico. Artistas plsticos
contemporneos como Takashi Murakami e Makoto Aida acusaram a responsabilidade das
bombas de Hiroshima e Nagasaki como pivs de infantilizao da mentalidade japonesa e do
esvaziamento da memria histrica do pas (por ser vtima, se permitiu esquecer que por tanto
tempo foi agressor).
Na cultura pop, a temtica ps-apocalptica marcou a ferro os animes e mangs, casos de Gen
(Keiji Nakazawa), Akira (Katsuhiro Otomo) e Paranoia Agent (Satoshi Kon), entre tantos outros
exemplos possveis. Como bem definido
por Freda Freiberg: Akira foi concebido por e

para uma gerao de japoneses que no possui


uma memria pessoal de Hiroshima e
Nagasaki. Ainda assim, a experincia est
marcada no inconsciente coletivo do
pas. Satoshi Kon, ao se referir atual
juventude japonesa, abre sua nica
animao episdica com a frase: a

criana perdida o magnfico cogumelo no


cu, associando

com
acidez

direcionada aos seus conterrneos os jovens do Japo Little Boy, nome codificado da
bomba estourada em Hiroshima, dia 6 de Agosto de 1945.
O cinema tambm teve sua cota. Gneros inteiros foram dedicados ao tema. O Hibakusha Eiga
( gnero de filmes sobre a histria dos sobreviventes das bombas atmicas) e o Kaiju
Eiga ( filmes de monstros como Godzilla) so exemplos mrbidos, pelas suas
similaridades e origens em comum, de como o retrato dos sequelados com suas quelides
tranquilamente se confundia com a histria de monstros, para aterrorizar o status quo do novo
Japo, prspero e pacificado aps a guerra. A semelhana inicial tamanha que possvel
citar pontos literais de interseco entre os gneros, como o filme The H-man, da trilogia
mutante produzido pela Toho, mas comecemos pela gnese:
GODZILLA E O HIBAKUSHA EIGA

Podemos viver sem a


destruio? Podemos olhar
para
o
futuro
com
esperana? Poder a luz
voltar a ns?
O senso comum dita que
Godzilla Gojira (
) no original um filme
descartvel
de
um
monstro emborrachado
destruindo Tquio sem
uma justificativa plausvel.
Esta at uma leitura
possvel, mas tremendamente injusta com a
produo de 1954, dirigida por Ishiro
Honda, com efeitos especiais de Eiji
Tsuburaya (que mais tarde produziria o
Ultraman). Gojira originalmente no foi
concebido como filme de monstro
apesar de fundar o gnero Kaiju -, e sim
como um suspense.
Na
histria,
testes
nucleares
desestabilizaram o habitat de uma criatura
pr-histrica que vivia escondida no interior
da Terra e o alteraram, tornando-o radiativo
e imune s armas convencionais. Ele passa
a atacar embarcaes no mar do Japo e
a destruir, com fria e volpia incontrolveis,
a Baa de Tquio. O monstrengo na
verdade,
e
isso
foi
declarado
explicitamente por quem concebeu o filme,
uma alegoria da bomba atmica, a
personificao do temor humano em
relao ao poder destrutivo das armas
nucleares, e da manipulao dessa energia de modo geral, que poderiam resultar na prpria
extino da humanidade. Uma forma burlesca e recreativa de trazer baila uma temtica que
ainda era um tabu na sociedade japonesa e sobre o qual ningum gostava de falar
abertamente ou no podiam, devido aos recentes mtodos de censura praticados pelo
governo de ocupao americano.
Hoje, pela precariedade tcnica da produo e limitaes dos efeitos especiais, a mensagem
original do filme pode ser compreendida apenas de modo anedtico, mas no se pode correr o
risco de assistir ao Godzilla pelas lentes do anacronismo. O que atualmente parece apenas

entretenimento
barato,
na
poca
dialogou com os receios mais profundos
da Guerra Fria. Aps os ataques no Japo
e ao quase uso de outra bomba atmica
na Guerra da Coreia um ano antes do
lanamento do filme, esta pelcula
conseguiu reunir entretenimento e crtica
social, jogando luz sobre um assunto ainda
restrito nas telonas. Justamente numa
poca em que, aps dcadas de
sofrimento com as guerras mundiais e o
Terremoto de Tquio, o povo japons s queria se divertir.
O insight para o conceito do filme partiu de um evento real. Um teste americano com a bomba
H foi mal calculado e a rea contaminada se expandiu alm do previsto. Um barco pesqueiro
japons foi pego pela cortina e o operador do rdio morreu, situao que justifica a cena inicial
do filme, na qual o Gojira ataca uma embarcao pesqueira e o operador do rdio engolido
pelas guas aps enviar o sinal de socorro.

A ideia de partida para essa bem-sucedida produo era que houvesse um grande ser que devastasse
tudo o que encontrasse na sua passagem, porque dotado de uma fora no movida pela razo, mas sim
pela brutalidade no estgio mais selvagem, gerada pelos erros humanos, e pronta a voltar-se contra os
prprios homens, em particular os japoneses, aqui novamente vtimas (Maria Roberta Novielli)
Godzilla teve um oramento alto para os padres japoneses da poca, e s no foi maior
porque Akira Kurosawa quase faliu o estdio com a produo do clssico Os Sete Samurais. Os
resultados financeiros agradaram e Gojira foi transformado numa franquia com continuaes
bizarras, como quando enfrentou o King Kong ou virou mecha, dando incio a um dos gneros
mais rentveis e distinguveis da cultura pop japonesa. Virou um caa-nquel desmiolado
reproduzido exausto at por estdios de cinema americanos, totalmente drenado de sua
substncia original, mas ainda fiel ao seu papel como entretenimento. O que no se pode
perder de vista o que estava por trs da gnese do gnero.

Eu no posso acreditar que Godzilla era o nico membro sobrevivente de sua espcie. Se ns
continuarmos conduzindo testes nucleares, possvel que outro Godzilla possa aparecer em algum lugar
do mundo, novamente.
curioso, mas o sucesso de Godzilla, como o dos videogames, surgiu dos medos inconscientes
da Guerra Fria para se transformar num cone do entretenimento global. Esta, porm, no foi a
abordagem principal do tema no cinema japons. As bombas, os testes, as usinas e as
conseqncias foram trabalhados de modo mais direto em outros filmes no decorrer da segunda
metade do sculo. Ora em tom de denncia, ora em clima de propaganda; ora com crueza,
ora pincelado com sutil indiferena.
A abordagem mais bvia a exposio
direta e didtica dos fatos. No h ttulos
relevantes cujo pice ou concluso da
trama seja a exploso, todos eles partem
do desastre para escancarar o que veio
em seguida com o cessar da guerra. Um
exemplo antigo Genbaku no Ko
(Children of Hiroshima/
,
1952) de
Kaneto Shindo. No filme, uma professora
de Hiroshima que fugiu para uma ilha resolve voltar cidade natal, onde perdeu toda a sua
famlia, para reencontrar seus alunos e talvez a si mesma. Com intenes educativas, o filme
aborda, a partir dos casos de trs alunos, alguns dos problemas enfrentados pelos sobreviventes,
sobretudo as crianas: misria, carncia, doenas, fatalismo e a vontade louca de reconstruir a
vida nos escombros do que sobrou, ou, ao menos, encontrar na f a paz para deixar esse mundo
com a mente serena, j que a radiao no oferece clemncia (caso da menina crist com os

dias contados). A detonao, ainda no


incio do filme, reserva ao espectador os
momentos de apreciao artstica. Os
ngulos e as insinuaes escolhidas
surpreendem pela originalidade.
Outro exemplo, este mais recente, Kuroi
Ame (Black Rain/
,
1989), verso
cinematogrfica de Shohei Imamura para
o livro de Ibuse Masaji, publicado no Brasil.
Para transferir o espectador a outro
perodo, o filme rodado em preto e
branco, com um clima lento, transmitindo
a sensao de que ele contemporneo
ao Genbaku no Ko. Se a professora do
filme de 1952 jogou luz sobre as crianas,
Kuroi Ame expe a condio desfavorvel
das mulheres vitimadas, ao narrar histria
da jovem Yasuko. Exposta chuva negra
radioativa que caiu em Hiroshima aps os
ataques, Yasuko sente na pele as
dificuldades que elas encontraram para
tocar uma vida normal, pois foram no apenas rejeitadas no seio da prpria sociedade, mas elas
prprias se rejeitaram. Abdicaram da possibilidade de se casar e ter filhos para no transmitir a
maldio que caiu sobre suas cabeas.

Os hibakusha (sobreviventes da bomba


atmica), com partes do corpo e do rosto
marcados por quelides, eram discriminados
na prpria sociedade japonesa como a
personificao daquilo que os japoneses
queriam esquecer que havia ocorrido durante
a 2 Guerra, fazendo com que os sobreviventes
se tornassem duas vezes vtimas: das exploses
atmicas, e do medo de que a exposio
radiao causasse mutaes genticas e danos
sade perptuos em seus descendentes
(Cristiane Sato)
Segundo Novielli, italiana que estudou
cinema japons em Tquio, existiram
diretores
que
optaram
por
uma
abordagem mais pornogrfica, usando
cenas de fetos deformados e das chagas
da leucemia, alm de direcionar crticas
mais explcitas ao papel dos EUA na
deciso de usar os artefatos contra o povo
japons. Ela enumera nomes como Hideo
Sekigawa (Hiroshima) e os documentrios
de Fumei Kamio (Ikite Ite Yokatta / Sekai
wa Kyofu Suru). Infelizmente fica apenas o
registro, pois no possvel encontrar estes
ttulos na internet em alguma lngua
inteligvel, ento no posso dissertar a
respeito.

Houve ainda uma terceira forma de abordar o tema: a explorao indireta. Enquanto uns
esgoelaram urros de protesto e outros partiram da bomba para fazer um registro histrico da
condio humana das vtimas, alguns apenas resvalaram na bomba, no a citando
nominalmente, ou tirando-a do centro das atenes, tornando-as personagens significativos,
mas no mais centrais. A princpio porque a censura americana no governo de ocupao
impedia qualquer meno indecorosa ao ocorrido, mas posteriormente (com o fim da
ocupao) devido prpria cultura
japonesa, regrada pela conformidade.
Esta cultura da consonncia se reflete na
lngua japonesa e sua preveno do
afrontamento, sendo ela marcada pelas
entrelinhas, pelo subentendido, pela leitura
daquilo que no foi dito, apenas ficou
implcito. Um idioma onde a palavra no
em diversos contextos sociais um tabu,
para evitar a coliso e preservar o
princpio confucionista de harmonia social.
Arthur Dapieve cita no prefcio de uma coleo de contos de Kenzaburo Oe o caso do escritor
japons (pretensamente britnico) Kazuo Ishiguro e seus romances Os Vestgios do Dia e Uma
Plida Viso dos Montes, onde a guerra mundial e o bombardeio nuclear formam um pano de
fundo essencial s tramas, mas no so concretamente elaborados, so, ao contrrio, nas
palavras dele, centros vazios, simultaneamente ausentes e presentes (ah, a ambivalncia da
cultura japonesa). No cinema h ttulos assim, como Junai Monogatari (A Story of Pure Love/
, 1957) de Tadashi Imai. Com uma pitada de James Dean na construo, a histria do
casal influenciada pela bomba, mas o artefato no o argumento do filme. Interfere
diretamente no desenvolvimento da narrativa, mas tratada com naturalidade e
imparcialidade.
Por fim, dentro dessas trs subdivises existiu tambm uma tentativa de sublimar o trauma da
bomba a partir da reconciliao com o passado, em filmes que adotaram um tom
propagandista de um novo Japo, progressista e democrtico. No negam os conflitos militares
da Segunda Guerra, mas entendem que essa foi uma conseqncia natural do choque entre o
mundo e a mentalidade militarista do Japo Imperial. O importante seria cicatrizar as feridas e
seguir em frente.
Por parte dos americanos esta tentativa vista em pelculas como Sayonara (do Joshua Logan,
1957), que conta com atuao do Marlon
Brando, um militar americano que busca a
aceitao do at ento condenado amor
por uma artista japonesa (aceitao da
unio simblica entre o militarismo
americano e a tradio milenar
japonesa aps anos de dio). No Japo, o
filme No Esqueo as Canes de
Nagasaki (Nagasaki no Uta wa Wasureji,
1952), do diretor Tomotaka
Takasaka, vtima pessoal da radiao, que
o afastou do trabalho por cinco anos:

sua abordagem sobre a questo da bomba no foi nem crtica nem acusatria. a histria de uma
mulher, vtima das radiaes, que se apaixona por um jovem americano. Com esse relacionamento
sentimental, declarava-se o perdo Amrica e, o mais importante, perdoavam-se as atrocidades
perpetradas pelos prprios japoneses, absolvidos e redimidos justamente por terem sofrido as duas
exploses atmicas. Era um pressuposto necessrio para deixar tudo para trs e arregaar as mangas
para a reconstruo, enquanto pelo arquivo da histria deslizava a maior de todas as tragdias
experimentadas por esse povo (Novielli)

CYBERPUNK JAPONS Fico cientfica bebeu na fonte contaminada pela Little Boy

Qualquer coisa que se


possa fazer a um rato se
pode fazer a um humano. E
podemos
fazer
quase
qualquer coisa aos ratos.
duro pensar nisto, mas a
verdade. Isto no mudar
com ns cobrindo os olhos.
Isto cyberpunk (Bruce
Sterling)
Cyberpunk

um
subgnero
da
fico
cientfica
criado
nos
Estados Unidos e sintetizado no aforismo High Tech, Low Life, cujo auge foi alcanado na
dcada de 80. De modo muito resumido, a temtica dele gira em torno do medo crescente em
relao corporatocracia, vigilncia digital, intervenes tecnolgicas no corpo e na mente
humana (trans-humanismo) e diluio da fronteira entre realidade e o universo virtual. So
clssicos do gnero os livros de William Gibson (Neuromancer) e Bruce Sterling, alm de filmes
muito populares, Blade Runner e Matrix.
O Japo se tornou, do outro lado do mundo, o segundo ninho criativo do gnero. Referncia em
tecnologia eletrnica e robtica, Tquio era a capital esttica do Cyberpunk, com sua
metrpole apinhada de gente, arranha-cus e luzes de non. A originalidade do cyberpunk
japons, todavia, se deu pela indita influncia da sua bagagem cultural na criao dos ttulos
o que inclui as bombas. verdade que temas mais abstratos relacionados ao ciberespao
conduzem ttulos de anime, casos de Serial Experiments Lain e Ghost in the Shell, mas as obras
mais veementes do cinema se aliceram no trans-humanismo (enquanto os americanos
preferem a temtica do ciberespao). Sendo mais preciso, se assentam num olhar censor e
crtico s possibilidades de modificao/aperfeioamento humano. As deformaes fsicas dos
hibakusha serviram de argumento suficiente para manter o Japo com um p atrs diante das
novas possibilidades surgidas na poca.
Enquanto algumas obras
globais
encararam
o
trans-humanismo
como
possibilidade o aumento
artificial da capacidade
fsica e mental que pode
fazer o mal tambm
pode ser ferramenta para
combat-lo
-,
os
japoneses
tendem
a
revelar os perigos da
ausncia de barreiras
morais
a
partir
da
dissoluo de tudo o que
slido. O clssico Akira ( , 1988) de Katsuhiro Otomo fundamentalmente isso. Tetsuo
vtima de um experimento do governo que foge do controle das autoridades e do seu prprio
manejo. Tetsuo e a capital japonesa so engolidos pela manipulao de uma energia que
sequer plenamente compreendida. O corpo de Tetsuo marcado por mutaes bizarras. O
Cyberpunk japons quase sempre reporta o trans-humanismo de maneira traumtica, isto , a
interveno (seja ela mecnica, psicotrpica, comportamental ou gentica) no se funde ao
homem, mas o possui, o transforma e o domina, levando-o danao. A fuso dolorida, o
resultado inesperado e o final, trgico.

dentro da carne de um assalariado comum, coisas terrveis comearam a aparecer


O cinema B japons, com baixssimo
oramento, proveu alguns dos ttulos mais
assertivos nessa direo. Tetsuo, o Homem
de Ferro (, 1989) de Shinya Tsukamoto
levou estas mutaes ao extremo.
lisrgico,
perturbador,
doentio
e
esquizofrnico.
Possui
poucas
falas,
decupagem
frentica,
trilha
sonora
composta
por
msica
industrial
e
experimentalismo com um toque amador.
Na verdade ele parece um amontoado de videoclipes desconexos e expressionistas que
ganham sentido ao final. No plot, um homem chamado apenas como Fetichista tenta fazer um
implante em casa, mas sua perna refuga a prtese e em desespero ele foge correndo pela rua,
sendo atropelado por um casal que, no apenas no presta socorro como, excitados pela
situao, copulam observados pela presa ferida. A histria segue com a tentativa de vingana
do Fetichista e muitas transformaes metlicas. Em um delrio onrico, o Assalariado atropelador
sonha estar sendo sodomizado pela namorada, que possui um gigantesco strap-on metlico,
numa bvia viso (100% cyberpunk) do homem rendido pela mquina. um filme para poucos,
outro caso de produo trash que virou cult com o tempo.
H outros filmes que acompanharam a
tocada extrema de Tetsuo, casos de
Pinnochio 964, Rubbers Lover e Meatball
Machine, mas fiquem avisados, esse o
cinema underground japons, e ele no
preza pelo bom gosto. H cenas de tortura,
explorao
sexual,
excrees
e
constrangimento psicolgico, alm disso,
no contam com narrativa linear, sequer
lgica. Uma viagem APENAS para quem
possui interesse histrico/acadmico no
gnero ou no cinema japons (acredite em mim). Em todos, a condio humana colocada
em xeque e uma situao se desgoverna, causando aberraes e destruio. A marginalizao
social dos protagonistas cyberpunk se conciliou com a marginalizao dos hibakusha. Em vez de
quelides, leucemia e deformaes plausveis, metais retorcidos, fluidos corporais diversos e
mutaes animalescas despontaram da pele dos japoneses, quando antigos traumas
encontraram os novos temores da dcada de 80.
AKIRA KUROSAWA E O DESASTRE DE FUKUSHIMA

- As nuvens. Aquela vermelha plutnio 239.


Um dcimo milionsimo de grama causa
cncer. A amarela estrncio 90. Entra em
voc e causa leucemia. A roxa csio 137.
Afeta a reproduo, produz mutaes. Faz
nascerem monstruosidades. A estupidez do
homem inacreditvel. A radioatividade era
invisvel. Por causa do perigo eles a coloriram.
Mas isso s permite que voc saiba qual o tipo
que vai mat-lo. o carto de visita da morte.
Uma comisso parlamentar no Japo concluiu em 2012, aps anlises in loco e entrevistas com
mais de mil pessoas relacionadas, que a tragdia nuclear na usina de Fukushima foi falha
humana. Documentos j antecipavam a possibilidade de instabilidades ssmicas na regio de
Tohoku ainda em 2006, mas nada foi feito para blindar a usina contra acidentes. O governo
assumiu que foi uma catstrofe Made in Japan, ao apurar que muitos funcionrios conheciam

problemas de segurana, mas no


contestaram seus superiores, como dita a
cartilha confucionista na hierarquizada
sociedade nipnica.
No
cinema,
em
contrapartida,
a
possibilidade de um grave acidente
nuclear foi antecipada pelo filme Sonhos
(Yume/ , 1990) do mestre Akira Kurosawa.
Um
combinado
de
oito
sonhos
alegadamente reais do diretor, adaptados
Stima Arte. Talvez este seja seu filme
mais artisticamente hermtico, tanto por
trabalhar com imagens advindas da
natureza onrica (e usar simbolismos
comuns apenas aos orientais), como por
ser uma representao mpar do ritmo no
cinema tradicional do Japo: lento,
contemplativo, visualmente exuberante e
mais preocupado em fazer pensar do que
estimular a adrenalina da audincia.
Portanto, os dois primeiros sonhos podero
fazer voc desistir (so lentos mesmo para
espectadores maduros). No desista, ele engrena a partir do terceiro.

- O Fuji entrou em erupo? Terrvel.


Bem pior do que isso! No est sabendo? A usina nuclear explodiu! Os seis reatores nucleares esto
explodindo um a um. O Japo to pequeno que no h como escapar.
Entre um sonho e outro a mesma tela negra com a inscrio konna yume o mita (algo como
tive tal sonho) antecipa, quase de modo premonitrio, algumas situaes. O sexto sonho,
Monte Fuji em Vermelho, toca na problemtica da energia nuclear no das bombas, mas das
usinas de energia. De fato, ela proporciona energia barata, abundante e prxima aos centros
industriais, sem poluir a atmosfera, num pas miservel em recursos naturais e incapaz de
alimentar sua grada economia sem recorrer ao urnio enriquecido. Mas e as conseqncias de
acidentes ou imprevistos? Chernobyl h pouco cobrira a Europa de radiao. O sonho cobre a
devastao ps-exploso.

Disseram que as usinas nucleares eram


seguras. Que o mau uso era o perigo, no a
usina nuclear em si! Sem acidentes no
haveria perigo. Foi o que nos disseram.
Mentirosos! Se no forem enforcados por isso,
eu mesmo irei mat-los!
No se preocupe. A radiao far isso por
voc.
Kurosawa, que j havia trabalhado a temtica da bomba em Anatomia do Medo (e tornou a
us-lo no stimo sonho), acompanhou o curso da histria. Enquanto a Guerra Fria esmorecia e a
perspectiva de um ataque moscovita se exauria, ele se voltou s mesmas preocupaes que
passaram a atormentar a opinio pblica japonesa na poca, ou seja, a gradual substituio do
modelo desenvolvimentista do passado por outro menos desumanizador. A hecatombe dos
reatores de Fukushima foi anunciada por um dos patronos do cinema nipnico com duas
dcadas de antecedncia. Os japoneses no podem alegar que no foram avisados.

Fontes e Saiba mais:

Japans most fav mon-star Steve Ryfle


Histria do cinema japons Maria Roberta Novielli
Japop , o poder da cultura pop japonesa Cristiane Sato
Atomic Bomb Cinema Jerome Shapiro
O Extremo Oriente idealizado: orientalismos no cinema Marcela Canizo
14 contos de Kenzaburo Oe Introduo
Post-Human Nightmares The World of Japanese Cyberpunk Cinema
14 de Agosto, 2014

Otakismo Mestres do Anime: Satoshi Kon


Um mestre que se foi cedo demais.

Dizem que a animao


tem potencial infinito, mas
dizem tambm isto no
serve para animao!. O
pessoal
do
ramo
cinematogrfico
impe
limites animao. Para
eles, tudo sobre garotas
lindas, robs e exploses, e
no bem assim (Satoshi
Kon)
Osamu Tezuka e Hayao Miyazaki aps dcadas de trabalho consistente obtiveram um trono
cada no panteo da cultura japonesa. Dentro do universo pop, h anos existe certa ansiedade
no Japo em revelar um profissional capaz de ocupar o vcuo deixado pelo envelhecimento de
suas grandes estrelas. Uns mais veteranos, outros ainda aprendizes, que, com suas
peculiaridades, surgiram como grandes promessas da animao japonesa. So usualmente
mencionados nomes como Katsuhiro Otomo (Akira), Mamoru Hosoda (Summer Wars), Mamoru
Oshii (Ghost in the Shell) e Makoto Shinkai (5cm/s).
De uns, j no se espera muita coisa, em outros, ainda depositam votos de esperana na
continuidade e evoluo do trabalho. Infelizmente o mais coeso destes diretores em minha
opinio o melhor teve uma carreira to impressionante quanto curta, pois um cncer quis que
ela fosse menor do que poderia. Falo de Satoshi Kon, workaholic que nos legou quatro animes
longa metragem e um episdico, e nos deixou em 2010 aos 47 anos. Nesse texto pretendo
enumerar suas principais caractersticas de trabalho para depois comentar, luz dos fatos
mencionados, cada uma das obras.
A comear pela anlise tcnica, a primeira qualidade a ser destacada em Kon, diretor versado
nos clssicos Mobile Suit Gundam e Patrulha Estelar, o profundo respeito esttica anime.
Mesmo quando adotou o uso da tecnologia digital, investiu esforos e gastou recursos para
mascar-la e no despersonalizar os padres estticos que caracterizaram e hoje definem e
distinguem a animao japonesa das demais. Mesmo quando incorporou a tecnologia 3D, foi
bem sucedido em tirar o melhor dos dois mundos e no drenou o DNA japons dos seus filmes.
A destreza no uso da paleta de cores outra qualidade do Kon (e dos seus assistentes). Alguns
diretores tiveram na colorao um elemento de consolidao das suas personalidades artsticas.
Makoto Shinkai, por exemplo, faz das cores o seu elemento narrativo central, gosta de
hiperrealidade, cores ardidas e muita densidade visual em tudo o que faz. J Miyazaki costuma
optar por um aspecto aquarelado nas animaes do Studio Ghibli. Satoshi Kon, em
contrapartida, adapta sua paleta s necessidades narrativas de cada histria, podendo variar
muito de uma para outra. Em Paprika uma exploso de cores. Em Tokyo Godfathers a capital
japonesa representada por cores frias cortadas pelo vermelho. Nas anlises individualizadas
ficar claro o motivo.

No acha que os sonhos e a internet so semelhantes? Ambos so lugares para se liberar o consciente
reprimido.
Respeito esttica anime no implica servido aos seus clichs. No possvel ver em suas
animaes homens com cabelos azuis pontiagudos nem meninas com olhos aquosos a ocupar
40% do rosto. Os personagens so apresentados com aspectos realistas, dotados de traos
humanos e no raro claramente asiticos. No h espao para personalidades laboratoriais
como Tsundere ou Imouto Kawaii. Todas as suas histrias acontecem em cenrios urbanos
japoneses (s vezes destrudos no final) e apontam pessoas, locais e situaes de fcil
assimilao, principalmente do pblico japons, mas no exclusivamente. Isso facilita a projeo
do espectador no drama.
Essa opo tem um propsito e aqui o texto sai da tcnica para entrar nas caractersticas
propriamente narrativas. Satoshi Kon foi reconhecido como um animador apto a trabalhar sem
maiores problemas na Stima Arte, com atores e locaes reais. Ele usou a animao como
meio de tratar assuntos e abordagens cinematogrficos. Cisne Negro sublinha essa tese, como
aprofundarei mais para frente. Em outras palavras, Kon, mais do que fazer cinema animado,
fazia cinema com animao, e espero que essa sutil diferena seja compreendida. E, para
esclarecer qual era o pblico-alvo dele, o seu desejo era oferecer entretenimento aos adultos.
Todas as suas produes podem ser inicialmente compreendidas como extenses de um mesmo
tema: o Homem duplo. Divididos, a exercer dois papeis dentro de um conflito que ope e
mescla as perspectivas objetiva e subjetiva. H separaes entre realidade e universo
psicolgico (Perfect Blue e Paranoia Agent); realidade e fico (Perfect Blue e Millennium
Actress) e realidade e sonhos (Paprika e Perfect Blue). Todos trabalhados de modo muito
inteligente para gerar desorientao,
turvar essas fronteiras e desnortear o
pblico de modo que, no meio da
experincia, o espectador j no consiga
mais distinguir a iluso das situaes
concretas dos personagens.
Kon gosta de estilhaar o senso de
continuidade sonolenta ao qual o
pblico est acostumado para confundi-lo
no meio e s desatar o n da trama na
concluso, onde tudo ganha sentido
novamente. Um mtodo de trabalho que seria pouco comercial se mal trabalhada, mas
justamente a se revela a percia tcnica do diretor. Parece confuso, mas tudo ficar
descomplicado quando eu exemplificar em cada filme.

Para algum de fora, os sonhos e o filme dentro do filme so fceis de distinguir do mundo real, mas
para a pessoa que est passando pela experincia, tudo real (Satoshi Kon)
Satoshi, natural de Hokkaido, gozou oportunidades profissionais mpares ao ter contato com
profissionais renomados e qualificados antes de tomar a batuta de maestro para si. Aps estudar
design grfico na Universidade de Artes de Musashino, foi assistente de Katsuhiro Otomo, artista
de animao em Roujin Z, trabalhou com Mamoru Oshii e depois fez roteiro de um dos curtas da
trade animada Memories. Ao lado deles lapidou seus senso crtico afiado, original e antenado.
S ento ele dirigiu sua primeira animao autoral: Perfect Blue.
PERFECT BLUE (
, 1997)

- Sim, hoje foi o ltimo. No cantarei mais.


Lembro-me de quando voc dizia que queria ser uma cantora.
Essa minha grande chance! Eu j lhe disse.
Ultimamente estamos procurando pelo novo single. Seu tio sempre compra 20 cpias de uma vez!
Voc no entende esta indstria, me.
Voc no melhor cantando?
Essa imagem de idol est me sufocando!

Em Perfect Blue, Kirigoe Mima uma idol


da indstria fonogrfica japonesa e est
para realizar seu ltimo show pelo trio de
msica pop CHAM!, dono de um sucesso
apenas moderado. O objetivo dela
alavancar sua carreira como atriz e
abandonar a imagem passada de idol
virginal. No seu primeiro trabalho, lhe do o
papel de uma personagem que
estuprada numa boate. Pouco mais tarde,
faz um ensaio de fotos erticas. Essa virada
de 180 na carreira no nada bem vista
pela sua agente, a ex-idol Rumi, nem
pelos seus antigos fs, em especial o MeMania, stalker obcecado pela antiga
Mima, disposto a persegui-la de maneira
doentia para recuperar a antiga Mima.
Pior, nem ela mesma tem certeza se foi
uma boa ideia abandonar a carreira de
idol para desempenhar estes papeis, sua
mente fica dividida e comea a se
manifestar por intermdio de um alterego.
Uma carta bomba recebida o estopim
para a confuso mental de Mima. Desse
ponto em diante muita ateno, pois a
vida antiga se mistura com a atual e com
os papeis encenados pela atriz Mima. O
motor do filme pode ser sintetizado pela
ideia confundir para unificar, falar da
vida atravs da loucura, como explica o
diretor:

As imagens da vida real e as imagens


virtuais vm e vo rapidamente em Perfect
Blue. Quando voc est assistindo ao filme, s
vezes sente como se estivesse se perdendo em
qualquer um dos dois mundos assistidos, real
ou virtual. Mas, depois de idas e vindas, voc
eventualmente
encontra
sua
prpria
identidade entre as suas potencialidades
(Satoshi Kon)
Alm disso, o filme abre discusso sobre
como funciona a vida no moedor de
carne da indstria de entretenimento do Japo e outros assuntos subsequentes. Em 2011 o filme
Cisne Negro, dirigido por Darren Aronofsky e interpretado pela Natalie Portman, surpreendeu o
mundo pela ousadia do roteiro e execuo. excelente, mas no me impressionou porque eu
fiquei com a impresso de j ter assistido quele filme antes. Parecia-me a verso real e
ocidental de Perfect Blue, de um diretor f confesso do Satoshi Kon. As semelhanas existem em
abundncia, tanto no plot quanto em cenas especficas (porta do metr, quebra do espelho,
fotografias falantes). Se duvida, assista a um comparativo em espanhol na Internet. Alis, Perfect
Blue inicialmente seria um filme live-action, mas com o terremoto de Kobe em 1995, cortaram as
verbas e o projeto foi adaptado para o 2D.

Ns fizemos uma edio rpida de um ponto a outro como se fosse uma cena de luta, mesmo quando
no havia nenhuma cena de ao envolvida. Isso ajudou a enfatizar o senso de confuso da Mima
(Satoshi Kon)

MILLENNIUM ACTRESS (
,
2001)

A premissa central deste filme que uma idosa que fora uma grande atriz fale sobre sua histria de
vida. Enquanto ela conta, os filmes nos quais ela participou se entrelaam com sua prpria vida. O
presente e o passado se cruzam e a histria dela se torna tempestuosa. Esta a essncia deste filme e
minha ideia original em Millennium Actress (Satoshi Kon)
Millennium Actress um tributo ao cinema
nipnico, uma animao abarrotada de
referncias
histricas
ao
trabalho
cinematogrfico do Japo e histria do
pas.
Na
trama,
Tachibana,
um
entrevistador
da
televiso,
est
preparando um documentrio a respeito
de uma estrela aposentada do cinema
japons,
Chiyoko
Fujiwara,
voluntariamente afastada da sociedade.
Ao conseguir a rara oportunidade de
entrevist-la, ganha a chance de
conhecer a histria de vida da idosa atriz
e os bastidores do trabalho. No
desenvolvimento do filme, as experincias
pessoais da intrprete se emaranham com
os papis por ela representados.
A
carreira
da
Chiyoko
atravessa
importantes pginas da histria japonesa.
Passa de maneira breve pelo Perodo
Sengoku e se assenta no auge do Imprio
Japons,
a
campanha
militar
na
Manchria, a devastao da guerra e a
reconstruo em parceria com os
americanos, acompanhada de todas as
mudanas culturais trazidas por elas. Filme
sobre
o
fazer
cinematogrfico,
homenageou grandes nomes da Stima
Arte, casos de Akira Kurosawa (Trono
Manchado de Sangue), os filmes familiares
do Yasujiro Ozu, alm de gneros, como o
Jidaigeki e o Kaiju (de
Godzilla).
Chiyoko
Fujiwara
foi
inspirada na vida da diva
do
cinema
japons
Setsuko Hara, a Eterna
Virgem, protagonista de
filmes monumentais, a
exemplo de Era uma Vez
em Tquio e Pai e Filha
do Ozu, o mais japons
dos
cineastas.
Ela
subitamente se aposentou aos 43 anos, aps confessar nunca ter gostado de atuar e ter
construdo carreira de atriz apenas para sustentar a famlia nos turbulentos anos que circularam a
Segunda Guerra. Depois de aposentada, viveu dcadas num local afastado, sem conceder
entrevistas, apenas flagrada pelos paparazzi de vez em nunca.

TOKYO GODFATHERS (
,
2003)

Na noite de Natal, um milagre divino ocorrer em um beco de Tquio


Os padrinhos de Tquio
so o ponto destoante de
toda a carreira do Kon.
Diferente do que veio
antes e dos ttulos que o
sucederiam,
esta
animao tem roteiro
descomplicado, linear e
pode ser definido como
uma
comdia
com
matizes dramticos. A
histria se passa na noite
de Natal compartilhada
por trs moradores de
rua, um travesti, uma adolescente que
fugiu de casa e um adulto que perdeu a
famlia. Enquanto fuam no lixo por um
presente,
encontram
um
beb
abandonado. O senso maternal do
travesti faz com que, a princpio, o trio de
maltrapilhos adote a criana, mas depois a
animao se converte numa saga para
devolv-la me verdadeira. A criana
vira um amuleto, uma beno natalina que
protege a todos com uma cadeia
milagrosa de coincidncias positivas,
apenas possveis na noite Sagrada.

Kiyoko queria que ns a encontrssemos.


Kiyoko? Por que Kiyoko?
Vem de Kiyo, pura, na mais pura das
noites
Durante a jornada, aos poucos se revelam
os motivos que levaram os trs s ruas. Por
que esto l? De onde vieram? Teriam
para onde voltar? Paulatinamente os
indigentes se projetam no beb, um signo da esperana para os que j desistiram da vida e
perderam a coragem e a esperana. As cores frias e mortias do inverno toquiota se contrastam
com o uso massivo do vermelho, cor que nas culturas asiticas remete vida, pureza, sorte e
renovao. Uma lufada de calor na neve, freqente contraste entre luz e escurido, um trabalho
semiolgico interessante.

Minha me a brisa pura


Que me v partir
Para a jornada escura
Em Tokyo Godfathers o diretor de arte, Ike Nobutaka, passou a usar mais de um plano na mesma
tomada, um recurso propiciado pelas novas tecnologias que resulta em um maior realismo nas
cenas, pois a tcnica digital traz mais detalhes ao gerar profundidade nos cenrios. Como
curiosidade, a variante da Nona Sinfonia do Beethoven usada nesta animao buscou
inspirao na verso sinttica criada pelo Wendy Carlos no clssico Laranja Mecnica, do
Stanley Kubrick.

PAPRIKA (
,
2006)

Em um mundo de
realidade inumana, o nico
santurio humano que
resta o sonho. A parada
est cheia de refugiados
afugentados da realidade
contra a vontade deles.
Paprika
retoma
a
estrutura que consagrou
o Satoshi Kon, mas
radicaliza a experincia.
A temtica tira o p da
realidade para se infiltrar nos domnios dos
sonhos. O processo tcnico de criao do
roteiro e storyboards, em uma perigosa
experimentao, foi alterado para se
adequar proposta do filme.
Em um futuro no muito distante, cientistas
inventaram uma mquina psicoterpica
capaz de visualizar os sonhos dos pacientes,
o DC Mini. Ainda em fase de testes, um dos
aparelhos roubado do laboratrio antes
do desenvolvimento das barreiras de
restrio, o que possibilita a entrada de
terceiros
nos
sonhos
alheios.
Imediatamente aps o roubo, um dos
cientistas, aps proclamar frases sem nexo,
tenta o suicdio ao pular na janela num
evidente estado de inconscincia sobre
seus atos. O detetive Konakawa da Polcia
envolvido, mas ele um dos que esto
fazendo tratamento ilegal com o DC Mini
roubado, em posse de uma mulher que se
identifica como Paprika. Sonhos e
realidade se misturaro enquanto o
pblico tenta entender quem roubou a
mquina e com quais intenes.

O homem tem a responsabilidade de


controlar a cincia e a tecnologia.
Compartilhar sonhos literalmente um sonho
tecnolgico, mas, com o tempo, isso resultar
em violncia.
Paprika a adaptao animada do livro homnimo escrito por Yasutaka Tsutsui. A narrativa
literria foi criada para dar sentido s imagens onricas acumuladas e ao conhecimento em
psicanlise do escritor. Alguns diretores se propuseram a adaptar o livro em live action, todos
recusados pelo autor. Para ele, suas aventuras onricas precisavam da animao como meio,
ento ele ofereceu pessoalmente o projeto ao Satoshi Kon. O livro uma metafico
transborda surrealismo, o filme j conecta algumas pontas para atribuir certo sentido
experincia. A cena da Parada de tudo o que existe o ponto de encontro entre eles.

Que castigo recair sobre o plebeu ignorante que tentar entrar em um sonho sagrado?

O ttulo pode fomentar reflexes muito


sofisticadas sobre o papel da moral diante
do poder quase ilimitado da cincia e suas
aplicaes tecnolgicas deve ser feito
apenas porque possvel fazer? ,
questiona. E gosta de confundir, pois
muitas vezes coloca essas reflexes na
boca do vilo. Paprika pode tambm ser
apreciado apenas como uma exploso de
sensaes imateriais, algo mais prximo da
proposta do livro. Ao final da experincia,
como sempre, percebe-se que Satoshi Kon
est falando sobre a vida, e usa os sonhos
onricos como mera ferramenta para
dialogar sobre os sonhos concretos de
cada um na platia.

Implantar sonhos
terrorismo

na

cabea

alheia

Em respeito natureza surreal de Paprika,


Kon optou por iniciar a produo dos
storyboards antes mesmo da finalizao do
roteiro. Como a histria ainda no tinha sido totalmente elaborada para amarrar todas as
pontas, a inteno era introduzir um elemento aleatrio na concepo, afinal, se nem os
criadores sabem, no comeo, como a histria vai terminar, de se esperar que o pblico seja
surpreendido de cara com a imprevisibilidade que um bom sonho deve ter. As opinies sobre a
eficcia desse mtodo variam, mas em termos conceituais fica difcil no qualificar
positivamente a ideia.

Quando se sabe o final, tende-se a forar tudo na histria para a direo do clmax. Normalmente fao
a maior parte da histria de modo simples e seguro, de modo que eu possa us-la de suporte para o final,
sem complicar as coisas. Eu decidi experimentar um mtodo diferente neste projeto (Satoshi Kon)
O trabalho da equipe na Madhouse foi rduo. 614 pginas de storyboard executadas em 1046
tomadas. Muita densidade informativa na tela para diferenciar sonhos de realidade
cuidadosamente remodelada para aparentar desenhos feitos mo. Quando se analisa os
detalhes, possvel ver que alguns confetes da parada caem atrs de algum objeto, enquanto
outros caem pela frente. Um zelo, definido por alguns como preciosismo, pouco provvel de ser
detectado por um olhar leigo espontneo, mas que faz diferena na experincia final. Assim
como Perfect Blue influenciou Aronofsky em Cisne Negro, Paprika foi um dos ttulos que inspirou
Nolan na criao do filme Inception.

A vaidade dos residentes diurnos o que os noturnos querem


PARANOIA AGENT (
, 2004)

a criana perdida o magnfico cogumelo no cu


Paranoia Agent a sua nica animao
em formato de episdios, 13 no total,
realizados entre a produo de Tokyo
Godfathers
e
Paprika.
Pela
maior
disponibilidade de durao e flexibilidade
do formato, pde desenvolver nele vrias
idias no aproveitadas nos filmes e
inviabilizadas pelas distintas naturezas das
mdias cinema e TV. A morte precoce do
diretor valoriza ainda mais Paranoia Agent,
pois foi a nica amostra de como funciona

a mente do Satoshi Kon


fora
do
gesso
cinematogrfico.
O anime comea nos
mostrando Sagi Tsukiko, a
character
design
responsvel pelo grande
sucesso kawaii do Japo,
o fofinho e lnguido
cachorrinho
rosa
chamado Maromi. Com
seus
olhos
cansados,
Maromi uma febre que
movimenta muito dinheiro
na forma de absolutamente todas as
espcies de produtos licenciados, tem srie
animada, CD, pelcia e tudo mais. Uma
verso fictcia dos reais Doraemon,
Pikachu, Hello Kitty e todos os outros
bichinhos kawaii que sufocam o mercado
de massa japons com seu onipresente
aroma de tutti-fruti. Tsukiko, no entanto,
intimada por sua empresa para dar
sequncia no sucesso de Maromi atravs
da criao de um novo personagem.
Como fazer para replicar o sucesso de um
fenmeno, cada vez mais pressionada por
demandas insustentveis e hostilidades das
companheiras de trabalho, invejosas do
dinheiro e prestgio conquistados por ela
com Maromi?
Quando estava prestes a jogar a toalha,
Tsukiko agredida com um basto de
beisebol por um garoto ginasial em patins
dourados. Hospitalizada, Tsukiko v seus
prazos serem flexibilizados e um sabor de alvio paira em sua boca. O agressor passa a atacar
pessoas Japo afora com seu taco e o anime ganha rumos detetivescos com as investigaes
dos agentes Ikari e Maniwa da polcia japonesa. A primeira metade do anime mostra diversas
histrias paralelas, personagens distintos que se entrelaam numa rede social complexa, todo
conectados pela mesma liga: o agressor do taco de beisebol, o Shonen Bat. Todos foram
atacados impiedosamente pelo delinquente juvenil enquanto a polcia buscava evidncias para
capturar o pequeno marginal.
Maniwa, ao perceber a incapacidade de capturar o sujeito por vias policiais clssicas, atenta
para um fato importante. As vtimas foram todas atacadas em momento de desespero, em
situaes onde no viam mais sada para seus problemas. Possudos pela parania, eram
atacados e encontravam conforto na cama do hospital, que no cobrava nada deles. Todos
ficavam aliviados e pareciam apreciar os resultados da agresso. A questo inicialmente
levantada por Ikari comea a rondar a cabea de Maniwa Existe mesmo um criminoso?
No vou entrar em muitos detalhes para no estragar a sua experincia com spoilers, mas, aps
assistir, peo que leia meu texto no qual desenvolvo uma argumentao que tenta explicar
cada um dos fatos e simbolismos. Em Paranoia Agent Kon vai debater suicdio, bullying, cultura
do consumo e relao do povo japons com a memria da guerra. genial, meu anime
favorito.

DREAMING MACHINE (
,
sem data)
Dreaming Machine o nome do trabalho
que ficou incompleto pelo adoecimento
do Kon. A preparao de outra ruptura
com sua filmografia, pois seria um filme
para crianas totalmente protagonizado
por robs. O Estdio Madhouse lhe
prometeu nos momentos finais que
terminaria o filme usando suas anotaes
como um tributo sua carreira, mas
recentemente paralisou a labuta por falta
de financiamento. Eles esperam conseguir
fundos para a concluso do projeto derradeiro at o final de 2015.
Considerao final
Satoshi Kon desfrutou de muita notoriedade no Ocidente por demonstrar que a animao no
obrigatoriamente precisa ser infanto-juvenil e desmiolada, e, mais especificamente, a animao
japonesa no precisa necessariamente ser de pancadaria entre adolescentes de cabelos
coloridos ou reinos mgicos com simbolismos orientais indecifrveis. Ela um meio com
caractersticas prprias que pode ser usado para contar histrias boas ou nem tanto, como
qualquer outra mdia (em qualquer uma a mediocridade o padro). Uma grande herana que
ele deixou para o pop japons foi justamente a desmistificao de alguns clichs que afastavam
o pblico no iniciado dos produtos culturais japoneses.
No, no acho que o anime precisa ser elevado categoria de produto adulto ou maduro
para ganhar respeito, apenas acredito que a animao pode abranger todos os pblicos, e
para isso precisa de pioneiros. preciso abrir espao para boas histrias animadas direcionadas
s crianas, aos adolescentes e tambm aos adultos. Kon ajudou a difundir essa perspectiva
com histria originais, universais e contemporneas. Foi um sopro de originalidade no cenrio
mundial dos filmes animados, muito refm daquela eterna e batida frmula Disney/Pixar do
engraadinho para as crianas, com uma mensagem positiva para os pais, j que a famlia
toda precisa assistir para a bilheteria justificar os altos custos de produo.
Dentro de uma perspectiva japonesa,
Satoshi Kon no foi nenhum revolucionrio,
apenas contribui com seu quinho de
boas produes, sem grandes oscilaes
qualitativas.
Ainda
no
temos
a
perspectiva histrica suficiente para
afirmar, mas acredito que Kon no dever
ser colocado no mesmo patamar de
Tezuka ou Miyazaki no mundo dos homens.
Se existe outro mundo alm do nosso,
entretanto, tenho certeza que Tezuka o
recebeu com um bom trabalho, sensei.
(Ah, ele tambm dirigiu esse curta de um minuto chamado Ohayo [bom dia], que voc pode
assistir pela internet)

Ento, a todos que permaneceram comigo atravs deste longo documento, obrigado.
Com meu corao cheio de gratido, por tudo de bom no mundo, soltarei minha caneta.
Agora, com licena; eu preciso ir
(Satoshi Kon, em sua carta de despedida, Agosto de 2010)

18 de Setembro, 2014

Otakismo Recomendaes: O Cinema Coreano Uma Introduo


O crescente mercado cinematogrfico coreano em pauta.
Antes de listar as recomendaes, vlido partir da contextualizao histrica e apresentar as
caractersticas gerais da produo audiovisual sul-coreana. Neste texto h uma breve
introduo aos motivos do sucesso da Coreia neste setor e uma seleo de filmes aptos a inicilo satisfatoriamente na maioria dos gneros contemplados por aquilo que se convencionou
chamar Novo Cinema Coreano tentei encontrar um ponto de equilbrio entre o gosto pessoal e
os ttulos mais famosos e representativos. Se no deseja ler a introduo, pule direto para o
tpico Oldboy e a Trilogia da Vingana.
INTRODUO:
A tecnologia e a linguagem cinematogrficas foram criadas e desenvolvidas nos domnios de
poucos pases. Frana, Estados Unidos, Rssia, Alemanha, Itlia, Japo e Inglaterra legaram ao
mundo praticamente todo o know-how acumulado hoje pela Stima Arte, tanto em narrativa
quanto em tcnica gneros, cmeras modernas, novas lentes, inovaes em planos de
captura, fragmentao das narrativas convencionais. A runa sovitica e o advento da
globalizao, todavia, pavimentaram estradas para novas escolas cinematogrficas
destacadas a partir dos anos 90.
Algumas escolas apareceram devido
ao volume de produes, como a ndia
(Bollywood) e a Nigria (Nollywood). Outros
pases
ganharam
notoriedade
pela
qualidade dos filmes, dentro da proposta
de cada um, casos da Argentina, do Ir,
da Tailndia e da China (incluindo Hong
Kong
e
Taiwan).
Nenhum
destes
emergentes cinematogrficos, de qualquer
modo, conseguiu igualar a dimenso, a
consistncia,
a
popularidade,
a
heterogeneidade e a rentabilidade dos filmes produzidos na Coreia do Sul.
Os coreanos conseguiram romper barreiras geogrficas e, no apenas aumentaram a audincia
interna (mais da metade dos filmes vistos na Coreia so ptrios), como passaram a dialogar com
um pblico global, fato demonstrado pelos mais de 120 milhes de ingressos vendidos fora das
fronteiras nacionais em 2013 (5 pas com a maior bilheteria acumulada no exterior). Para no
mencionar a constante presena e premiaes nos festivais internacionais de prestgio. Park
Chang-wook, Lee Chang-dong, Kim Ki-duk,
Kwong Tag-in e Hong Sang-soo passaram a
ser laureados em Veneza, Cannes, Berlim e
Nova York, onde se instalam os mais
importantes festivais do mundo.
PRINCIPAIS CARACTERSTICAS:
A produo audiovisual da Coreia do Sul,
florescida como veculo de propaganda
do Imprio Japons durante a ocupao
nipnica, depois convertida em canal de
propaganda dos valores bem vistos pela ditadura local aps a diviso do pas, se beneficiou do
relaxamento na censura estatal, consequncia da queda do regime militar que governou a
nao at os anos 80.
Com isso, uma nova safra de diretores, quase todos muito jovens e tecnicamente bem treinados,
abriu mo do purismo nacional e trouxe Coreia influncias diversas dos mangs japoneses, dos
longas-metragens de kung fu de Hong Kong, do Western Spaghetti italiano e, sobretudo, dos

blockbusters da Califrnia. Os filmes coreanos se hollywoodizaram em termos de estilo e


prticas comerciais, mas mantiveram temas e sensibilidades locais, em outras palavras,
ressignificaram gneros cinematogrficos sob uma tica oriental.
Park Kwang-su, Jang Sung-woo e outros
diretores coreanos mais autorais ainda
gozam de maior liberdade criativa, com
papel central na produo do filme,
diferente de Hollywood, onde muitas vezes
a produtora detm maior parcela de
influncia nos rumos e estticas dos
produtos. Eles gostam de misturar gneros e
tornam difcil a rotulao das pelculas,
comum ver elementos de comdia,
suspense e ao misturados com muito
bom gosto. Mesmo com produes autorais, o cinema coreano hoje fundamentalmente
comercial e criado para auferir lucro, sendo hoje pouco ou quase nada dependente de verbas
pblicas.
O governo de Seul teve papel fundamental no renascimento e independncia do seu cinema
local. A Crise Asitica de 1997 escancarou aos governantes no perodo Kim Dae-jung o
imperativo da exportao para a revitalizao da economia nacional. Com isso em vista,
ajudou a divulgar os produtos culturais da Coreia fora da pennsula, como o Kpop, as novelas, os
jogos eletrnicos e o cinema (a Hallyu, explicada a fundo em outro texto do ChuNan).
Eles ento desenvolveram o Korean Film
Council (KOFIC) para patrocinar tradues
de legendas, stands em festivais e viagens
aos diretores, alm de criar o influente
Festival de Cinema de Busan. Em 1995, a
Coreia do Sul exportou apenas 15 filmes,
para, apenas uma dcada mais tarde,
contar 202 filmes exibidos oficialmente no
exterior. Seus executivos testemunharam
um aumento de 365 vezes no faturamento
com bilheteria fora do pas no mesmo
perodo.
Internacionalizados, os estdios coreanos
buscam novos e maiores mercados para
que o faturamento acompanhe o aumento
galopante nos custos de produo. Uma
sada inteligente foi as parcerias com
grupos estrangeiros em co-produes,
onde dividem gastos de marketing e
distribuio, alm de permitir a penetrao
em mercados restritos como o chins,
possuidor de cotas para contedo estrangeiro. Voc pode torcer o nariz para as verses
americanas de Oldboy, Il Mare e My Sassy Girl, mas apenas isso viabiliza o crescimento da ainda
frgil indstria cultural da Coreia. Vamos logo ao que interessa, aos filmes. Alguns tpicos esto
separados por gnero enquanto outros foram agrupados por temtica.
OLDBOY E A TRILOGIA DA VINGANA (Park Chang-wook)

Ria, e o mundo rir com voc. Chore, e chorar sozinho.


Oldboy (
.
2003) j considerado um clssico moderno. Quando se pensa em pelculas
coreanas inevitvel lembrar-se de Oldboy, vencedor do Grand Prix em Cannes 2004, a porta
de entrada para o cinema da pennsula asitica. Oh Dae-su subitamente sequestrado e

enclausurado por 15 anos em um quarto, onde pode desfrutar apenas da companhia de uma
televiso. Suas namoradas so as cantoras dos programas musicais, suas refeies so
invariavelmente compostas por bolinhos chineses entregues por uma portinhola. Detalhe: no lhe
dado qualquer esclarecimento para o crcere e ele tampouco se recorda de ter feito algo
que justifique o confinamento. Certo dia ele liberado tambm sem explicao. Enfim livre, 15
anos mais velho, Dae-su corre atrs de vingana e compreenso dos motivos que levaram
algum a prend-lo por tanto tempo.

Embora eu no passe de um animal, no


tenho o direito de viver?
Adaptao
do
mang
homnimo
produzido no Japo por Garon Tsuchiya e
Nobuaki Minegishi (publicado no Brasil pela
Editora Nova Sampa), a evidncia do
sucesso do modelo sul-coreano. Em vez de
temer a globalizao e fechar o mercado
com mil restries e protecionismos sem
prazos para acabar com medo do imperialismo estrangeiro -, eles a abraaram e
transformaram ameaa em oportunidade. O fluxo de produtos importados no s no matou a
indstria nacional como a fortaleceu na marra, ao impor seu padro de qualidade e ao mesmo
tempo servir de referncia criativa. Ele varreu a letargia do antigo cinema coreano. Oldboy foi a
resposta local ao gigantismo dos estdios ocidentais e japoneses. A atuao do Choi Min-sik no
papel do protagonista primorosa. Em 2013, o americano Spike Lee fez uma contestada e
desnecessria verso do filme.
Oldboy o segundo filme de uma trilogia
cujo mote a vingana. Antes dele veio
Simpatia Pelo Sr. Vingana (
,
2002). Ryu, protagonista surdo-mudo,
trabalha em uma fbrica pesada para
sustentar a irm que desesperadamente
necessita de um transplante de rim. Sem
perspectiva de ver a fila do transplante
andar, ele apela ao mercado negro e
oferece dinheiro e um rim prprio em troca
de outro rgo imediato sua irm com
quem no compartilha compatibilidade sangunea. Os criminosos, no muito afeitos s
promessas, o traem. Ryu cujos pensamentos so apresentados na forma de dilogos do
cinema mudo -, com a ajuda de sua namorada anarquista, d incio ao seu projeto de
vingana. A situao engendra uma cadeia fatalista de psicticos tocando trs projetos
vingativos ao mesmo tempo. Eu gostei muito do desenvolvimento dele.

Beying good doesnt get you anything


Oldboy foi sucedido por Lady Vingana (
,
2005). Uns o consideram o melhor da
trilogia por aspectos mais lricos da construo imagtica, que existem em grande quantidade
nele, mas acho ele um pouco abaixo dos
primeiros pelo desenvolvimento mais
artificial do roteiro. Assista e tire suas
prprias concluses. A trilogia como um
todo possui aspectos em comum alm do
tema central. H a existncia de
personagens tragicmicos (como o
suicida em Oldboy e o deficiente mental
em Senhor Vingana), takes no gramado,
quartos vazios e foco da cmera em
rostos enraivecidos.

O HORROR! O HORROR! (K-HORROR, TERROR COREANA)


Se existe um domnio cinematogrfico
onde os coreanos disputam braadas com
os protagonistas sem dvidas o terror. A
partir da apropriao de elementos do
terror nipnico, o K-horror conquistou
plateias em todos os mercados pela
qualidade da fotografia, imprevisibilidade
em
alguns
roteiros,
abordagem
diferenciada dos temas e personagens
femininos comumente belas e juvenis. O
que eles fazem de melhor o horror
psicolgico inspirado nas produes japonesas. O mais famoso deles A Tale of Two Sisters (
,

,
2003), baseado numa lenda folclrica coreana, no qual duas irms retornam ao lar aps
passarem um tempo internadas. Recebidas por uma madrasta tirnica e um pai passivo, imersas
em um pssimo clima familiar, as meninas descobriro que uma alma atormentada vive sob o
mesmo teto. E esse s o comeo de um enredo com vrias reviravoltas
A Coreia proporciona, com mais ou menos
qualidade, uma infinidade de opes
subsequentes no terreno assombrado:
Arang, Bunshinsaba, the Red Shoes,
Cinderella, Cello, Phone, Hansel and Gretel,
R-point, The Wig. No mbito do cinema
slasher, o mais distinto Bloody Reunion.
No assisti a todos os enumerados acima,
no sou f de terror, mas o terreno frtil.
O K-horror ganhou autoridade nos ltimos
anos, mas tudo comeou com a franquia Whispering Corridors (
,
entre 1998 e 2009).
Cinco filmes com uma temtica central - garotas na escola - mas sem relao de continuidade
entre eles, permitem aleatoriedade na ordem de assistir. No terror extremo, pendulam entre o
horror soft e o suspense sobrenatural. Franquia ganhou muito prestgio na sia por trabalhar com
suicdio juvenil, homossexualidade e os excessos do sistema educacional coreano (conivente
com castigos fsicos na poca), entre outros temas polmicos.
O segundo filme, Memento Mori, o mais
popular da franquia, pois no tem como
prioridade assustar ou amedrontar o
espectador, mas sim trabalhar, com o
acrscimo de subsdios fantasmagricos, o
drama de um casal homossexual impedido
de ficar junto pela presso no ambiente
educativo e cultural sul-coreano. Vale a
meno por ser a mais clebre franquia
coreana do gnero, mas tenha em mente
que voc no vai sentir calafrios assistindo
a eles, principalmente se j for perito em outros clssicos da categoria.
SUSPENSE:
A temtica da vingana incessantemente explorada pelo cinema da Coreia. A Trilogia de Park
Chang-wook apenas a mais ilustre dentro de uma ampla gama de suspenses que abordam o
mesmo argumento: cidados ordinrios vtimas de alguma injustia se revoltam, tomam uma
deciso extrema e optam pela vendeta, se possvel com uso de violncia mais enrgica do que
a aplicada sobre si. O pblico coreano , segundo alguns especialistas, muito sensvel ao assunto
devido aos milnios de opresso e aculturao arbitrria de invasores diversos: chineses,

japoneses, mongis, russos Outros ligam a fixao do coreano pela vingana ao turbulento
processo de democratizao do pas, cravejado de casos de corrupo e impunidade.
Eu Vi o Diabo (
,
2010) talvez
o melhor da espcie. Um psicopata
decapita a mulher de um agente da
polcia coreana. Atormentado, o oficial
resolve achar o criminoso e faz-lo sentir
um desespero igual ao seu. Psicopatas,
porm, tm algumas disfunes cerebrais
que os fazem imunes a certos estmulos e
apresentam diferente capacidade de
sentir e expressar medo, ansiedade, culpa
ou desalento quando a possui. O policial
cria um jogo de perseguio com sua presa para tentar extrair dela a humanidade que nele
transborda em saudade da mulher. Mas o psicopata no um inofensivo camundongo disposto
a brincar de gato e rato para sempre e decide ele ser gato tambm.
O Homem de Lugar Nenhum (
,
2010)
apresenta o proprietrio de uma miservel
loja de penhores, dono de um passado
nebuloso e impressionantes habilidades em
artes marciais, amigo de uma menina
vizinha no conjunto habitacional. A vida
banal se transforma quando a me viciada
da garota mexe com as pessoas erradas. A
polcia coreana e mafiosos da Coreia e da
China se colocam entre a improvvel
amizade construda por um homem de
lugar algum e uma menina maltratada, ambos sozinhos no mundo. A truculncia deles seria
capaz de romper o lao entre os dois? Se gostar do gnero, assista The Chaser (, 2008)
tambm.
Aos que apreciam o escopo vingativo,
provvel que se delicie tambm com a
crueza de Bedevilled (

,
2010) e com o tom desesperanado
de Piet (, 2012). Uma coisa a ser
notada ao acompanhar filmes de suspense
e ao coreanos a menor proporo de
armas de fogo nas pelculas, comparado
s americanas. S 2% das mortes na
pennsula so com arma de fogo, logo, muitas vezes objetos do cotidiano viram armas nas mos
dos personagens que resolveram partir para a violncia: faca, serrote, corrente, garrafa
quebrada, fogo, caneta, martelo, alicate e outros objetos alternativos capazes de tornar as
cenas de violncia bem diferentes do padro. E doentias.
DRAMA:

- Que cara essa? Parece nervosa. Sorria.


No devo sorrir.
Por que no?
Os homens me pediam para no sorrir, porque isso os fazia se apaixonarem por mim. Todos
enlouqueciam quando eu sorria. Vai te acontecer o mesmo se eu sorrir.
Em Poesia (
, 2010), uma senhora tenta desenvolver uma veia artstica ao se matricular num
curso de poesia, enquanto convive com os primeiros sinais de Alzheimer doena responsvel
pela corroso de sua capacidade lingustica -, e a delinquncia juvenil do neto com quem

mora, acusado de participao em um


estupro coletivo na escola que frequenta.
Sua primeira e nica poesia ser uma
elegia presa molestada pelo seu
herdeiro. As pontas soltas no roteiro deixam
a histria aberta e pedem a participao
do espectador. O primeiro filme do genial
Lee Chang-dong a arrebatar plateias no
mercado ocidental.
Do mesmo diretor de Poesia, Peppermint
Candy (
,
1999) comea do fim,
como em Memento de Christopher Nolan, e parte do suicdio de um policial para depois exibir,
em cronologia reversa, a existncia vivida e o que o levou ao ato extremo. Como aperitivo posso
descrever uma cena na qual, aps torturar um preso e se sujar com as fezes dele, ele no
consegue tirar o aroma da mo, enquanto um parceiro de trabalho lhe adverte difcil tirar
esse cheiro. O espectador testemunha, como se rebobinasse uma antiga fita VHS, o processo
de profanao da inocncia de um jovem. Durante todo o filme, um trem em marcha-r
mantm a busca pela pureza para sempre perdida. Uma referncia onda de represso policial
que pairou sobre a Coreia nos anos que
antecederam a queda da ditadura militar.
Mais especificamente ao Massacre de
Gwangju e s centenas (alguns dizem
milhares) de civis nele ceifados. Uma
lembrana muito viva na memria dos
coreanos e um marco na luta democrtica
no continente asitico. Um senhor filme,
mas fundamentalmente dramtico que
sublinha a vida do policial, Gwangju
apenas um pano de fundo sequer
mencionado diretamente. Sobre o assunto h abordagens mais cruas:

Se por acaso voc vislumbrar sua carne nua atravs das dobras da saia suja e rasgada dela, vire a
cabea e passe por ela como se nada tivesse visto. Mesmo que ela puxe seu cotovelo ou manga,
gentilmente livre-se dos seus dedos. Se voc a ver seguindo-o algum dia, no tenha medo dela nem
proclame palavras ameaadoras. Apenas dedique um pouco de tempo a olh-la com alguma
considerao.
Os coreanos produziram bons dramas politizados, dos quais A petal (
,
1996) de Jang Seonwoo um dos dois mais importantes exemplares. Sombrio, acompanha a vida de uma garota de
15 anos enlouquecida aps fazer parte de modo involuntrio do Levante de Gwangju. Seus
surtos alucinados, no papel de mendiga,
so mesclados com estupros sofridos e
flashbacks que revelam aos poucos sua
experincia traumtica no campo de
batalha da represso militar em 1980. O
filme politicamente proeminente, pois foi
o primeiro a levantar debate na Coreia
democrtica sobre o passado poltico
recente do pas. O presidente do pas na
poca, general Chun Doo-Hwan, foi
condenado morte no ano do
lanamento do filme, tambm pelas medidas repressivas descabidas tomadas em Gwangju
(mas recebeu perdo presidencial em 97).
A Single Spark (
,
1996), o segundo principal drama de relevncia poltica,
interessante por exibir as dificuldades da luta por melhores condies trabalhistas em um pas
capitalista, ainda pobre e perifrico, opositor de uma (outra) ditadura comunista. O filme se

passa em dois recortes temporais: um pesquisador que estuda a vida de um ativista morto por
autoimolao em protesto s condies de trabalho desumanas e instituies
inoperantes reinantes na Coreia do Sul da poca, em alternncia com as memrias spias desse
militante enquanto trabalhador do setor
txtil, at hoje uma rea responsvel por
manejar mo-de-obra escrava na sia.
Considero o filme forte por ter passado
meses estudando o desenvolvimento
econmico da Coreia durante o meu TCC
e conhecer de perto a realidade
fustigante dos trabalhadores no perodo. E
a impossibilidade de reclamar melhorias
sob a sombra da Coreia do Norte e o
temor de uma infiltrao vermelha no Sul.
Drama o gnero mais prolfero do cinema coreano por conta da verba diminuta. Com budget
quase sempre limitado, estdios conseguem contar boas histrias sem depender de muito alm
de um bom roteiro. Intrigas conjugais e suas traies amorosas so bem encenadas em O Dia Em
Que o Porco Caiu no Poo (
, 1996) e A Mulher de um Bom
Advogado (
,
2003). Em caso de
desejo por aprofundamento no gnero
dramtico, corra atrs de A Virgem
Desnudada Por Seus Celibatrios (Oh, SooJong!, 2000), Samaria (, 2004)
Crying Fist ( , 2005), Christmas in
August (8 , 1998) e The
Contact (, 1997).
COMDIA:
Muitos filmes de humor coreanos no apelam ao pastelo, preferem a criao de uma
atmosfera cmica s risadas fceis. So estes os recomendados aqui (desculpo-me de antemo
aos que buscam incessantes gargalhadas). o caso do curioso The Quiet Family (
,

1998). A ambientao e a sinopse do filme predispe a plateia a crer se tratar de uma histria de
terror ou suspense. A famlia Kang adquire
um terreno em uma rea remota da
cidade e constri uma hospedaria para
abrigar os viajantes das montanhas. O
negcio um fracasso e ningum se
acolhe no alojamento. Eis que finalmente
chega um primeiro cliente, mas o objetivo
dele era suicidar-se no local. A runa do
fregus inaugural leva a famlia Kang a um
caminho sem volta. E sim, uma comdia,
no como American Pie, mas uma
comdia, assim como o prximo ttulo:

Por que eles assaltaram um posto de gasolina? Por diverso


Attack The Gas Station (
,
1999) causou enorme impacto na Coreia do Sul. Um
quarteto de ladres decide assaltar novamente o mesmo posto de gasolina para aplacar o
tdio. Incapazes de retirar o dinheiro, eles fazem os funcionrios de refns e dominam o
estabelecimento para embolsar a grana que brota das bombas de combustvel. Com prticas
comerciais heterodoxas como lavar o carro do fregus com combustvel ou completar o
tanque do cliente que pediu para encher apenas a metade e extorqui-lo ao trmino da
prestao do servio , o grupo se envolve em confuses cada vez maiores. Compra briga com
a polcia, com uma gangue de motoqueiros e com os mafiosos da regio. Quando enfadados,

transformam
os
sequestrados em bobos
da corte, obrigando-os a
cantar, brigar ou jogar
com eles. Cada atitude
tomada
gera
uma
conseqncia imprevista
e de maior proporo,
at que o local vira um
campo
de
batalha
catico e surreal (existe
uma
continuao,
certifique-se de assistir ao
primeiro).
O posto de gasolina na verdade um
criativo microcosmo da sociedade sulcoreana durante a Crise Asitica do fim do
sculo XX, com jovens rebeldes e sem
limites, polcia corrompida e instituies
falidas. Um dos delinquentes destri uma
placa que incentiva a produtividade do
trabalhador coreano. Em outra cena um
policial ridiculariza a qualidade dos
veculos nacionais e a forma como so
produzidos. Quando andam no carro,
visvel a semelhana com os delinquentes de Laranja Mecnica. O filme mexeu com os jovens
coreanos e, no perodo do lanamento, vrios postos de gasolina reais foram depredados na
Coreia. Mas no se preocupem, essas so apenas camadas, o filme no pretensioso, uma
comdia acima de tudo, mas uma comdia com alguma textura.
O
famoso
Minha
Mulher
Mafiosa
(
,
2001) apresenta Eun-jin, a
nmero dois na hierarquia de uma
associao mafiosa. Apesar de bela, no
possui traquejos de feminilidade, vive como
os trogloditas do bando. Com um passado
duro em comum, a irm doente seu
nico porto seguro no mundo. Para realizar
o desejo da irm de v-la casada, Eun-jin
vai atrs de um matrimnio de fachada. A
frigidez da mafiosa colocada prova
quando ela se v obrigada a comportar-se de acordo com os cdigos de conduta da
sociedade. uma trilogia, da qual s assisti ao primeiro. Com acrscimo de ao baseada nos
filmes de kung fu chineses, uma comdia descompromissada, no espere nada marcante,
mas um ttulo realmente popular.
AO!

- Por que comprar terras quando seu pas roubado?


Para pessoas como ns, tanto faz viver sob o comando da nobreza ou dos japoneses.
O clssico italiano de Western Spaghetti O bom, o Mau e o Feio de Sergio Leone inspirou os
coreanos na execuo da verso asitica do gnero, O Bom, o Mau e o Estranho (
,
, , 2008), filme que encabea o sub-gnero Western Kimchi, os caubis que apreciam
muita pimenta na comida. Aqui no temos o Oeste selvagem dos EUA e sim a Manchria
ocupada pelos japoneses no perodo entreguerras. Um bandido coreano rouba um mapa de
um figuro japons. Outro pago para recuperar o papel. Um terceiro est atrs do pescoo do

segundo. Trs foras da lei coreanos,


gangues chinesas e o Exrcito imperial do
Japo se envolvero numa caa ao
tesouro e s cabeas no deserto da
Manchria.
A abordagem bebe na fonte da Trilogia
dos Dlares do italiano e deixa de lado a
dicotomia bandido-mocinho. Um banguebangue muito bem realizado, com belas
cenas de ao e picos de comdia nas
cenas do Estranho, interpretado com
maestria pelo onipresente Kang-ho Song. Um dos maiores oramentos da histria do cinema
coreano.
(os filmes de suspense e vingana trabalhados acima, e os de mfias abaixo possuem muita
ao, recomendo-os aos fs do gnero tambm).
MFIA:
O SUBGNERO GEONDAL, O CRIME ORGANIZADO DA COREIA
Estados Unidos e Japo produziram prolas cinematogrficas ao romantizar a atuao do crime
organizado na Amrica e a Yakuza. O Poderoso Chefo, Scarface e os cinco filmes da Batalha
sem Honra nem Dignidade de Kinji Fukasaku so exemplos inesquecveis. A frmula usada com
menos notoriedade pelos chineses, filipinos e tambm pelos coreanos, que expem a verso
kimchi do crime, a mfia coreana, em filmes do gnero geondal (Kkangpae). Jogam luzes sobre
os grupos mafiosos do pas, suas ligaes corruptas com o governo, seus mtodos de violncia
explcita e muitas traies, em roteiros elaborados e de execuo invejvel. um subgnero dos
filmes de ao, mas podem ocupar-se de elementos dramticos ou suspense, como
exemplificarei.
Novo Mundo (
,
2013), o primeiro de
uma programada trilogia, conta a histria
de Ja-sung, um policial infiltrado no maior
sindicado criminoso da Coreia do Sul. Ao se
deparar com a morte do chefe do bando,
a Polcia aproveita o caos momentneo
para influenciar com seus laranjas a
sucesso no grupo e toca o projeto
chamado New World. O policial, dividido
entre a vida dbia e o risco de ser
descoberto, tenta conciliar sua vida afetiva
enquanto galga degraus na hierarquia do crime. Um filme excelente, com final surpreendente e
clara influncia de Godfather. Um legtimo must watch, boa porta de entrada para o gnero.
Outros filmes reconhecidos so: A Dirty Carnival ( , 2006) e Nameless Gangster (
, 2012).
Em uma noite de outono, o discpulo acordou
chorando. Ento o mestre lhe perguntou
Voc teve um pesadelo?
No.
Um sonho triste?
No. Eu tive um sonho doce.
Ento por que chorava?
Porque o sonho que tive nunca vai se realizar
H outros filmes de prestgio que envolvem
a mfia mas no fazem dela o centro da
narrativa. Um timo exemplo A Bittersweet Life (
,
2005). O chefe de um grupo
criminoso desconfia do comportamento da jovem namorada e coloca um homem de

confiana para vigi-la enquanto viaja China a negcios. O co do chefe testemunha a


infidelidade, mas solitrio, fraqueja diante dos atraentes trejeitos da moa e esconde o fato do
seu lder. Furioso, o patro decide cortar seu brao direito no sindicato criminoso, condenando-o
por uma desobedincia menor. O guarda no gostou do descarte aps anos de servido e vai
atrs de claro, vingana.
Outro bom filme com argumento
semelhante Green Fish (
,

1997), com o jovem Mak-dong a caminho


de casa aps cumprir o servio militar
obrigatrio.
Ao
testemunhar
a
degradao da sua famlia enquanto
esteve fora em seu compromisso com a
sociedade o irmo virou um bbado
briguento, a me passou a trabalhar de
empregada
domstica,
a
irm

garonete , procura atalhos para o dinheiro fcil e acaba por se envolver com o crime
organizado, pior, com a mulher do chefe, mudando sua vida para sempre. Bittersweet um filme
de ao dramtico, Green Fish se escora mais no drama.
ROMANCE:

- Estou indo a um encontro! Voc est precisando se divertir. domingo, mas est preso aqui! Voc
no tem nenhum encontro! Mas que falta de sorte!
Lee Chang-dong, paralelamente ao seu
papel como cineasta, ocupou o cargo de
Ministro da Cultura da Coreia do Sul entre
2003 e 2004. Em seu filme mais
contundente, Oasis (
,
2002),

apresenta a histria de Hong Jong-du a


partir do dia em que foi libertado da
cadeia aps deteno por atropelamento
e fuga. Rechaado pelos parentes, ele vai
atrs da famlia vitimada pelo acidente,
quando conhece Gong-ju, filha da vtima,
portadora de paralisia cerebral por quem se apaixona. Testemunha-se o desenvolvimento
altamente improvvel do amor, no entre pessoas de alto capital esttico, bem articuladas e
italianamente bem vestidas, como tpicos personagens das novelas coreanas, e sim o amor
desperto entre prias da sociedade, um ex-presidirio e uma deficiente mental.
Em Oasis h cenas muito bonitas, como naquelas quando, na imaginao, a deficiente fica
normal e imita o comportamento dos casais vistos ao redor, a despeito de na prtica continuar
gerando afastamento. Expe o teor subjetivo do amor e suas relaes com o mundo objetivo,
externo s perspectivas dos amantes, que vivem uma iluso a dois. Segundo o autor, um filme
sobre fronteiras. Mas um filme duro, incmodo, mexe com algo na natureza humana que est
silenciosamente presente para repugnar qualquer ameaa perpetuao e evoluo da
espcie. O final, uma cacetada.

Perdoe-me por te obrigar a ver sempre o


mesmo rosto
Time (Shi Gan, 2006) um filme muito forte
acerca da febre coreana pelas cirurgias
plsticas. A insegura e ciumenta Sae-hee
no suporta os olhares reais ou
imaginados? do namorado Jin-woo
direcionado s outras mulheres e a idia
de poder perd-lo. Aps uma crise, ela

desaparece e remodela seu rosto base do bisturi, em uma das incontveis clnicas que
pipocam em Gangnam e outros bairros dos endinheirados da Coreia. Armada com sua nova e
irreconhecvel face, Sae-hee tentar conquistar novamente o parceiro que se julgou
abandonado. Como ele reagir? Assista para saber. O filme tem um olhar artstico e extremo
sobre a louca crise de identidade das coreanas que acreditam precisar do rosto de uma estrela
do Kpop, geralmente 15 ou 20 anos mais nova, para manter ou conquistar algum valor na
sociedade.
indiscutvel o pioneirismo das novelas
coreanas na Hallyu. Suas tramas saturadas
de situaes dramticas ou mesmo
fnebres conquistaram multides na sia e
ganharam adeptos na internet por todo o
mundo. No tanto a minha praia, mas
aos fs dos dramalhes ao estilo coreano,
a pedida More than Blue (

,
2009). O produtor fonogrfico K e a
compositora Cream passam a morar juntos, ambos com um passado atribulado nas costas e
largados no mundo, um acalentando a solido do outro. Uma doena terminal, no entanto, se
intromete entre os dois e introduz um terceiro elemento no trgico tringulo amoroso. Um legtimo
K-drama compactado no espao de um filme. A trilha sonora est nas mos do famoso cantor
de baladas Kim Bum-soo, com trabalhos em Stairway to Heaven e Secret Garden, populares
novelas da SBS.
O romance Il Mare (, 2000) foi popularizado pelo remake americano. Conta a histria da
trocas de cartas atravs de uma caixa de correio mgica entre um homem e uma mulher,
solitrios e separados pela dimenso temporal (ele vive no passado). Eu no gosto, mas existem
tambm as comdias romnticas sob uma frmula absolutamente americanizada. My Sassy Girl
( , 2001) uma comdia finalizada em drama, enquanto 100 Days With Mr. Arrogant
( , 2004) mantm o tom descontrado at o trmino e faz algumas piadinhas mais
picantes.
CINEMA ~CULT~:

A luxria leva ao sentimento de posse, e o sentimento de posse leva morte.


Kim Ki-duk um caso emblemtico. Semidesconhecido na Coreia do Sul, o mais
famoso dos diretores do pas nos crculos
acadmicos e nas salas de cinema cult do
Ocidente. O estilo do diretor em alguns
filmes justifica a fama, com o uso
prolongado do silncio em tramas quase
ausentes de falas, simbolismos orientais,
escolha por locaes espetacularmente
belas, bem como os seus ngulos. Alm de
uma boa dose de pretenso artstica, ora
muito bem usada, ora nem tanto. De certo modo ele incorpora caractersticas que estereotipam
o cinema oriental e isso abriu certas portas para ele na Europa. O mais curioso que, diferente
dos outros diretores coreanos, de formao tcnica escolarizada, Ki-duk filho de operrios
pobres e saiu da massa trabalhadora, sem treinamento, para representar a alta cultura
coreana fora de casa, ainda que tenha predileo pelo uso de personagens marginalizados.
Sua obra maior Primavera, Vero, Outono, Inverno e Primavera (
,
2003). Nesta parbola do pensamento budista, um monge e seu discpulo vivem em um templo
flutuante em meio s montanhas. Os ciclos das estaes marcam o amadurecimento do
aprendiz e a imbatvel impermanncia de tudo. imprescindvel para o real entendimento do
filme ter conhecimento do significado por trs dos simbolismos nele usados, por isso recomendo
que leia alguns textos explicativos ao trmino da exibio.

Por exemplo, ocidentais em geral desconhecem o galo como representao do desejo, do


apego e da posse, um dos trs venenos da mente na concepo do budismo Mahayana. Ki-duk
faz isso durante a maior parte do filme,
comunica com smbolos, signos, raramente
com palavras. Ele joga um galo na cena e
voc que se vire para saber o seu sentido.
Minha dica : sinta o filme, intelectualize
depois com a ajuda de algum, uma vez
que fica impossvel sem repertrio budista.
Um Filme dele muito semelhante em
execuo O Arco (
, 2005).
A tradio puramente nacional tambm
representada no cinema. Pansori um gnero de msica folclrica coreana responsvel pela
transmisso da tradio oral da nao atravs da narrao melodiosa de histrias clssicas.
Executado por um cantor e um acompanhante no tambor, o Pansori canaliza as vibraes da
histria da Coreia, suas glrias e tambm suas muitas dores. Os americanos via de regra
classificam essa tradio, tombada como Patrimnio Imaterial da Humanidade, como o
correspondente coreano ao seu Blues, pela interpretao entristecida e carregada de
sentimentos das canes mais consagradas. Im Kwon-taek resgatou esse monumento da cultura
coreana, desprezada e esquecida pela juventude globalizada, em filmes que tragaram
multides ao cinema.

Durante a colonizao, o enka japons.


Agora com a libertao, a msica pop dos
yankees. No h futuro para o Pansori.
Sopyonje (
,
1993) o mais celebrado
deles. Relata as privaes materiais de
uma famlia dedicada a manter viva a
tradio oral do pas na dcada de 50,
aps a domesticao promovida pelo
Imprio Japons e em meio invaso
cultural americana. Na misria, profanam a tradio e atrelam a msica venda de produtos e
festanas alcolicas de engravatados, mas nem assim os coreanos parecem ter olhos para o seu
passado. A dedicao do mestre ao Pansori, porm, se ala a nveis doentios e germina uma
tragdia, como dita a cartilha do gnero. Durante o percurso do filme, so apresentadas as
nuances da performance e a profundidade terica do Pansori.
Em 2000 o mesmo diretor lanou
Chunhyang (
),
a mais trgica e

popular histria de amor da Coreia,


transmitida oralmente desde o reinado de
Sukjong, entre o herdeiro de um
governador, jovem aspirante a burocrata,
e uma bela filha de cortes. Em ambos os
filmes o espectador v uma histria dentro
de outra histria, apresentada com a
esttica pansori, e a narrativa dentro da
narrativa ajuda a explicar o filme. As
passagens clssicas das msicas se harmonizam com as situaes vividas. ADVERTNCIA: os dois
filmes possuem muitas, mas muitas partes cantadas sob um ritmo adestrado, parecem durar o
dobro do tempo. Apesar de bons, preciso pacincia com eles e com o Pansori. Para a grande
maioria, bem provvel que o jeito de cantar encher o saco. Recomendo s aos
entusiasmados pela cultura tradicional do pas. Ou que assista aos poucos.
A RELAO COM A COREIA DO NORTE:
SHIRI, JOINT SECURITY AREA E A IRMANDADE DA GUERRA

Havia gente que pensava como voc em 1950. Lembra da dor que a guerra causou a este pas?
Lembro muito bem. Ficamos 50 anos merc destes polticos. Infelizmente, eles no querem a
reunificao. como se eu visse uma pea muito bem articulada.
No se engane. No o nico que deseja a unificao. Temos que esperar o momento certo.
Esperamos pela unificao. Sonhamos com ela. Enquanto vocs cantam essa cano, nosso povo no
Norte est morrendo nas ruas. Sobrevivem com razes e cascas de rvores. Nossos filhos esto sendo
vendidos. J viu pais comerem a carne dos seus filhos mortos? Com Coca-Cola e hambrgueres vocs
no saberiam
Titanic obteve um desempenho de pblico
que fez jus ao seu nome em todos os
pases, exceto em um, na Coreia do Sul,
onde foi superado em bilheteria pelo filme
local Shiri (
,1999).
Nele, uma tropa de

elite treinada no Norte se infiltra no Sul com


o objetivo de cometer um atentado
terrorista a servir de gatilho para o incio da
Segunda Guerra da Coreia. O objetivo era
forar um conflito que desse incio ao processo de Unificao. Para tal, os norte coreanos
infiltrados roubam uma arma secreta do governo de Seul. O gatilho inicia uma corrida entre os
objetivos dos homens do Norte e a inteligncia policial do Sul, em uma histria de ao
hollywoodiana com MUITA ao, mesclada com um romance, o blockbuster coreano inaugural.
Shiri foi o primeiro de muitos filmes que exploraram a traumtica diviso do pas na nova fase da
criao audiovisual coreana. Ao contrrio das pelculas de propaganda do perodo militar, que
expunham o povo do Norte como comunistas desalmados e traioeiros, a nova onda prefere se
referir a eles como irmos do norte, vitimados pela ditadura hereditria dos Kim e separados por
influncia de foras polticas forasteiras, como os EUA e a China, responsveis por tratar as
Coreias como torres no tabuleiro geopoltico. Esse filme usa dois peixes como metfora. O
Kissingumi representa as Coreias como so hoje. Se separados dos seus pares, morrem, mas seus
beijos so na verdade lutas territoriais (dois projetos distintos de unificao). J o Shiri, que
nomeia o filme, um peixe exclusivo das guas coreanas e simboliza aqui o desejo de
unificao sem interferncias de potncias estrangeiras. Assistam ao filme com isso em mente.

Voc ainda no aprendeu muito sobre Panmunjeom. Aqui, a paz preservada pela ocultao da
verdade. O que os dois lados realmente querem que essa investigao acabe em nada.
Outro igualmente relevante que d
ateno problemtica atual das Coreias
Joint Security Area (
,
2000).
Na zona desmilitarizada que fraciona os
dois pases, um incidente culmina na morte
de dois soldados norte-coreanos. Entre
acusaes conflitantes das motivaes do
incidente, uma junta diplomtica neutra
formada por integrantes da Sua e da
Sucia tenta reconstituir a cena do crime
com base em evidncias que os militares
de ambos os lados aparentemente preferem ocultar. Um ttulo com menos ao que Shiri, mas
com um roteiro mais sofisticado. Bom para refletir sobre a necessidade de diferenciar o
desmembramento poltico de dois governos e a separao fsica do mesmo povo. Novamente
os coreanos dos dois lados so apresentados como bons irmos abatidos por uma tragdia
poltica parida e alimentada por naes exgenas.

- Este Yong-seok, ele era como seu prprio


irmo!
-Tudo o que eu vejo agora um comunista.
Nenhum amigo meu mata o seu prprio povo.
Se fizer isso, relatarei que voc matou
soldados desarmados. Voc age como os
comunistas. Vocs esto loucos, eles so
refns!
Voc viu o que eles fizeram. So animais!
Se os matarmos tambm seremos animais!
Foram eles que comearam a guerra!
Somos iguais, nem melhores nem piores.
Sucesso absoluto de bilheteria, A Irmandade da Guerra ( ,
2004) nos leva de volta
dcada de 50. Dois irmos sul-coreanos so convocados para lutar na Guerra da Coreia. O
mais velho crente que o futuro da famlia depende do mais novo, estudioso, firma um pacto com
o lder do batalho: se ele conseguisse uma medalha de honra em combate, permitiriam o
retorno do seu irmo. E assim uma famlia arrastada para a insanidade do conflito civil armado.
O ttulo segue a cartilha cinematogrfica dos filmes de guerra americanos, com muita ao,
personagens milagrosamente invencveis no campo de batalha (estilo Rambo) e a conduo da
narrativa direcionada ao lado emotivo. Uma megaproduo com tima reconstituio dos
cenrios do certame.
Foi o primeiro filme coreano a expor o
tema com nudez visual, ao produzir cenas
de
amputao,
espancamentos
e
imolao dentro de um cenrio que
optou por apresentar a guerra como uma
barbrie lamentvel e no como
publicidade da superioridade moral e
material de um ou outro sistema
econmico, a exemplos dos filmes antigos,
caso de Wildflowers of the Battlefield de
1974.
A EMPREGADA:
ERA DE OURO VERSUS NOVO CINEMA COREANO

Essa a fraqueza do homem. Uma montanha alta o desafia a escal-la. Um lago profundo leva-o a
atirar uma pedra nele. Uma bela garota desperta seus desejos mais primitivos (1960).
A Empregada (
,
1960) o filme mais
importante da histria da Coreia e est
para os criadores do Tae Kwon Do como
Cidado Kane est para os americanos.
Um remake foi feito em 2010 e as
diferenas
entre
as
duas
verses
possibilitam um estudo de caso perfeito
para compreender a evoluo do fazer
cinematogrfico na pennsula coreana. Em
comum entre os dois est o esqueleto da
trama, no qual uma empregada em condies materiais desfavorecidas vai trabalhar na casa
de uma famlia e se entrega a um relacionamento proibido com o chefe da famlia, com
conseqncias inesperadas e trgicas. A semelhana acaba a.
Na verso original o chefe da famlia um pai honrado e moralista, de posses materiais
medianas, que se v encruzilhado em um jogo psicolgico perverso promovido pela empregada
manipuladora, uma vil que desmonta uma famlia estruturada. mais antigo e realista, com
mais tons de cinza na construo do roteiro. O comportamento da empregada felino, mas o

filme no absolve o comportamento


adultero do pai. O chefe da famlia
inclusive quebra a quarta parede e fala
diretamente com o pblico (o trecho
acima um fragmento), para depois
transmitir lies de moral e valores
familiares e cumprir seu papel de
propaganda dos valores sul-coreanos, pois
aqui o cinema ainda era uma extenso da
propaganda estatal. A mesma mensagem
ideolgica embutida est presente em
outros clssicos da poca, como A Flower in Hell, de que a vida vivida longe da famlia o
caminho para a perdio (simbolizado numa meretriz que separa dois irmos).

Este trabalho revoltante, feio, nauseabundo e vergonhoso! Desperdicei a minha vida inteira nesta
casa. Quanto tempo mais pensa ficar aqui? (2010)
A nova verso a cara das atuais produes audiovisuais do pas. Contm locaes lindas,
elenco idem, cenas de erotismo, direo explcita e um final surrealmente bizarro. Nesta,
adotaram uma perspectiva maniquesta e contrria ao visto no filme original. Aqui, a nova
empregada pintada como uma boa pessoa, inocente, vtima dos desmandos de uma famlia
milionria e apenas superficialmente coesa. Ela se entrega ao relacionamento proibido coagida
pelo patriarca sedutor, a princpio contra sua vontade. Depois se v presa em um circo de
intrigas de uma famlia composta por psicopatas sociais. O remake pega o cinza do original e
separa preto do branco. Entretenimento bizarro, muito bem dirigido. Uma aula das diferenas
entre o cinema coreano na era de ouro para o da era do entretenimento. Esta a minha leitura
das duas verses, recomenda que assista ambas. Eu prefiro o original.
CONSIDERAES FINAIS
O cinema da Coreia do Sul ainda um
nanico quando colocado ao lado de
potncias que iniciaram a produo
audiovisual h mais de um sculo, mas
um caso de sucesso a ser estudado por
todos os coadjuvantes que esperam um
dia ganhar dinheiro com exportao
cultural e reforar seu soft power, uma
prtica dominada com maestria por
naes como os EUA e o Japo. Este post
introdutrio a ponta do iceberg
composto quase exclusivamente por ttulos
pop, mas a tradio cinematogrfica coreana mais ampla. O Korean Film Archive faz o
trabalho de curadoria e recomenda dezenas de filmes em listas como estas: 50 independent
films, 100 korean films (at 1996) e 100 korean films (inclui os mais recentes). Como estratgia de
divulgao, eles hospedam vrios destes filmes no canal KoreanFilm do Youtube com legendas
em ingls para assistir de modo legal.
Com um trabalho presente nas redes
sociais,
muitas
informaes
sobre
novidades e histria do cinema coreano
so compartilhadas com os anglfonos,
por profissionais da rea ou fs, no site
KoBiz e nas pginas do Facebook Korean
Film Council, Modern Korean Cinema,
Korea on the Couch, HanCinema, entre
outras. Fora a infinidade de blogs dos
fanticos pela Kculture. Os coreanos

sabem se vender muito bem, tornam o contedo deles acessvel a todos que dominam a
lngua de Shakespeare. Os caminhos existem, basta querer viajar.
Para
finalizar,
devo
humildemente
reconhecer que eu sou um iniciante no
assunto e h um pouco de pretenso em
escrever um texto inicial a respeito de toda
a produo cinematogrfica de um pas
sem ter assistido nem uma centena de
exemplos. Ainda no consumi diversos
clssicos ou ttulos famosos que o leitor
possivelmente sentiu falta. Tambm tenho
pouca quilometragem nas produes mais
recentes e no cenrio indie, e sequer
resvalei no assunto do cinema produzido pela Coreia do Norte (sim, existe). Meu objetivo aqui
foi introduzir o tema aos que desconhecem, estabelecer dilogo e aprender com os
comentrios dos fs do cinema da Coreia.
29 de Dezembro, 2014

Otakismo O fenmeno kawaii: por que o Japo o Imprio da fofura?


Moe moe kyun!

Assim como Disney romantizou a natureza em


relao sociedade industrial, os japoneses
romantizaram a infncia em detrimento da idade
adulta. Por idolatrar a infncia e seus resqucios, os
jovens japoneses implicitamente amaldioaram seus
futuros como indivduos adultos na sociedade
(Sharon Kinsella)
No Japo, a atrao pelo kawaii (, l-se caua) uma fora neo-romntica onipresente e
poderosa. Os japoneses nascem e crescem observando uma paisagem saturada de algodo
doce. Publicidade, mascotes, displays digitais, embalagens Tudo est contaminado pela
esttica kawaii. O Japo de Imprio dos Sentidos rapidamente se converteu em Imprio do
Kawaii. Mas afinal, o que significa isso? Traduzir conceitos do japons sempre uma tarefa
ingrata. Cute ou bonitinho apenas resvalam a superfcie do termo. So necessrios
pargrafos para explicar o real significado dessa palavra no imaginrio japons, com a certeza
de no esgot-la. No h lxico correspondente nas lnguas ocidentais. Neste texto procuro
definir de modo profundo o significado do termo, introduzir o estudo de caso da Hello Kitty,
rastrear brevemente sua histria, e amarrar isso tudo a partir de algumas explicaes
sociolgicas a respeito de sua disseminao na sociedade japonesa.
DEFINIO: O QUE SIGNIFICA KAWAII?
Kawaii um conceito amplo, ele
permeia o bonitinho, pequenininho,
simples, mesmo tolo. algo pueril, que
remete infncia. A apreciao do
kawaii celebra comportamentos sociais
e aparncia fsica que tendem
doura, adorabilidade, genuinidade,
inocncia,
pureza,
gentileza,
vulnerabilidade, fraqueza, carncia e
inexperincia. Mais do que aparncia,
tem
a
ver
com
empatia
e
comportamento. O significado do
termo ambguo e seu uso, variado.
empregado para descrever pessoas,

objetos, plantas, animais ou modos de agir. Kawaii tambm um modo de falar, um estilo de
vida, um comportamento jovem. Exato, o kawaii no se expressa apenas no design, nas artes
plsticas, na publicidade e nos produtos de consumo que vo de material escolar a produtos
bancrios , mas testemunhado na conduta e mesmo na sexualidade dos nipnicos. Um
cachorro fofinho? kawaii. Uma menina tmida? Kawaii. Uma personagem de mang
atrapalhada? Kawaii. Um chapu bonito? Kawaii. Um sorvete de tutti-frutti? Kawaii. Com o
tempo os japoneses esto abrindo cada vez mais o leque de possibilidade de uso do termo.
Meninas de comportamento kawaii aparentam (no necessariamente possuem!) a maioria
dessas caractersticas: passividade, vulnerabilidade, carncia, desamparo, impotncia e
inexperincia. So doces, GENUNAS essa palavra importante -, reservadas, obedientes e
irresponsveis. Em casos mais srios, entortam os joelhos, fazem biquinho, olham de baixo para
cima desnorteadas, batem o p e falam com voz doce, beirando a tolice. Mesmo no colgio,
onde so foradas ao processo de padronizao com os uniformes de marinheira, do um
toque infantilizado numa presilha, num modo de amarrotar a meia.
Diferente da beleza, caracterizada pela raridade, distncia e inacessibilidade, o kawaii
interpretado pelos apreciadores como prximo, cotidiano e material. Ele atrai afeio
em vez de admirao. O kawaii rejeita pedestais, por isso os membros de grupos femininos como
AKB48 e Morning Musume so escolhidos a dedo para aparentar como garotas ordinrias que
poderiam estar sentadas ao nosso lado na escola. Dentes tortos e franjinha so festejados. O
kawaii tambm mutvel e possui nichos. Nos anos 80, por exemplo, ele era puramente infantil.
Na dcada de 90 passou a ser mais
andrgino e cmico, atualmente ele
mais street fashion. H subdivises, casos
do erokawaii, busukawaii, kimokawaii, mas
nisso no me alongarei. Na cultura kawaii,
o lado mais perverso da infncia tambm
emulado em casos extremos, como a
automutilao. De modo geral, o oposto
do usualmente praticado pela indstria
cultural dos EUA e a noo de diva, e
em parte pelas agncias de K-pop na
Coreia do Sul.
A atrao pelo infantilismo transcultural e j explicada pela Psicologia Evolutiva. A ateno
antes dada proteo da prole saudvel hoje expressa pela afeio por eles, j que no
precisamos mais escond-los de ursos e cobras nas cavernas. Estudos sugerem que observar
traos desproporcionais capazes de remeter lembrana de bebs, mesmo em coisas ou vidas
inumanas, estimulam a mesma regio cerebral responsiva ao sexo, alimentos saborosos e drogas
viciantes. Os americanos de fato criaram o Snoopy e os coreanos a Pucca, personagens
essencialmente kawaii. No Japo, todavia, a proporo outra. O bonitinho no restrito s
crianas. Exemplifico:
O Partido Comunista de Nagoya adotou uma girafa kawaii como logo nas eleies nacionais de
1993. As poderosas Foras de Autodefesa do Japo usam uma mascote kawaii chamado Prince
Pickles para promover suas atividades, assim como quase todas as provncias possuem suas
mascotes. O Partido Conservador usa as
meninas do AKB48 para propagandear
poltica em Tquio. Bancos e seguradoras
vendem servios financeiros sob esta
esttica. Mecanismos kawaii so usados
em placas informativas de assuntos srios
(risco de incndio ou cartazes de busca de
terroristas), protestos contra as bases
militares americanas, ou mesmo em
situaes de repugnncia, como em casos
de estupro de menores.

Usados sem hesitao por adultos e crianas,


em espaos pblicos e privados, antes mesmo
de nos darmos conta, esses personagens se
tornaram parte de nossa paisagem diria.
Pode-se encontr-los, por exemplo, impressos
em cadernetas de movimentao bancria, em
passes de trem, e, como indica a presena
normal e aparentemente natural de bichinhos
de pelcia em estaes policiais, eles se
incorporaram vida diria do Japo de um
modo que seria inimaginvel em outros
pases (Fundao Japo)
Existem infinitas estampas kawaii em preservativos usados no ato sexual, ltimo momento no qual
um ocidental gostaria de transparecer infantilidade. Na pornografia japonesa, mulheres mais
velhas invariavelmente emulam o comportamento de meninas inbeis e ingnuas, enquanto os
animes, mangs e jogos eletrnicos erticos com freqncia ilustram crianas claramente prpberes praticando atos sexuais (tolerado pela legislao do Japo). O uso irrestrito na
publicidade evidncia da penetrao dessa esttica na sociedade, pois a propaganda tende
a adotar discursos, valores e trends j consagrados pelo status quo vigente. E nada melhor para
exemplificar a divulgao do conceito kawaii que ela, a Kitty-chan.
ESTUDO DE CASO:
A MARCA BILIONRIA CHAMADA HELLO KITTY

Tamanha a simplicidade da concepo desta personagem, que chega a ser difcil descrever a Hello
Kitty. Seu desenho to bsico, to sem efeito de volume, que qualquer criana capaz de desenh-la.
Kitty uma gatinha branca, de pequenos olhos, sem boca, e com um lao do lado direito da cabea. Foi
com tal aparncia zen que ela conquistou o mundo, e permitiu que a empresa Sanrio construsse um
imprio internacional (Cristiane Sato)
Kitty-chan uma gata antropomorfizada
criada em 1960 pela designer Yuko Shimizu,
ento funcionria da japonesa Sanrio, com
o objetivo de estampar artigos de
papelaria. Hoje a marca Hello Kitty
movimenta US$7 bilhes de dlares
anualmente em mais de 110 pases, com
dezenas
de
milhares
de
produtos
licenciados (fora a pirataria). Apesar de
conhecida apenas pela Kitty-chan no
Ocidente, a Sanrio possui mais de 450
personagens, muitos deles populares no Japo, como Chococat, Keroppi, Tuxedo Sam,
Pochacco, My Melody e Badtz-Maru. Entre os produtos licenciados, alm dos bvios cadernos,
existem:
parques
temticos,
cafeterias,
carros,
jornal,
preservativos
e
bebidas
alcolicas. Detalhe: diferente dos personagens Disney, no havia gibi, desenho animado ou
filme para alavancar o sucesso dela. Ela construiu essa fama global com a sua imagem esttica
nos produtos.
Como uma personagem embasbacante de to simples, virou um Embaixador literalmente, pois
ela foi Embaixatriz da Unicef em 1983 bilionrio da cultura japonesa? Personagens kawaii
possuem ingredientes fundamentais. Devem ser fofos, pequenos, tingidos em tons pastel,
arredondados, macios, leves, amveis, preferencialmente mamferos, sem apndices ou orifcios
corporais (nariz, brao), inseguros, perdidos, desesperanados. Confeccionados em materiais
simples e infantis, como pelcia ou plstico. Desenvolvidos sob encomenda para emular as
pessoas mais fracas da sociedade.
Sob uma perspectiva tcnica, um design minimalista, sem detalhes ou relevo, facilita a
reproduo industrial a custo baixo. O minimalismo importante na criao de um personagem

kawaii. Deve-se excluir tudo o que


descartvel
na
transmisso
da
amabilidade do personagem. Braos,
boca, pescoo, qualquer coisa que dilua
aspectos kawaii. Reduz o desnecessrio
para estourar aquele trao simples e
redondinho
que
faz
as
japonesas
suspirarem kawaaaaaiiii, naquele misto
de derretimento e desejo de posse.
Pensando por uma tica de mercado,
menos mais. A Hello Kitty tem de caber
at na presilha de cabelo. Os caras
entendem de design
Alguns analistas superficialmente acusam
uma completa apropriao de estticas
ocidentais enquanto ignoram o que
realmente aconteceu: uma simbiose
Japo-Oeste. A Hello Kitty, apesar de ter
inspiraes artsticas ocidentais, est
enraizada com os dois ps no conceito
japons de Muhyo-Kyara, ou seja, de
personagem
sem
expresso.
Em
contraste
s
afirmativas
mascotes
ocidentais, de expresses fortes, esse
conceito prega feies inexpressivas
capazes de levar a pessoa que se
relaciona com o personagem a projetar
suas prprias emoes nele. Por exemplo,
a ginasial japonesa que no consegue
dormir por no ter seus sentimentos
correspondidos pelo amado pode se
consolar com a compreensiva Kitty-chan.
J numa segunda tentativa, dessa vez exitosa, ela poder compartilhar sua alegria com a
mesma pelcia, a amiga de todas as horas. A Sanrio, segundo Sato, recebeu uma carta de
uma garota com cncer. Nela, ela explicava que gostava da (inexpressiva) Kitty-chan por
consider-la doce e afetuosa e por ela ser algum com quem se podia conversar. A
simplicidade mpar da Hello Kitty encerra em si mesma uma profundidade difcil de
intelectualizar, mas muito fcil de sentir.
Mas de onde veio a fora do kawaii? Por que a onipresena no Japo? No af de
compreender essa questo, primeiro preciso mapear rapidamente a histria do sculo XX no
Japo, depois penetrar na mentalidade cultural que moldou a nao japonesa (confucionismo,
zen-budismo, etc.), onde eu precisarei ser um pouco mais acadmico. Essa anlise
surpreendente e voc s ver aqui, no Chuva de Nanquim!
DIFUSO DO KAWAII NO JAPO:
UMA BREVSSIMA HISTRIA

Na raiz dessa afeio h uma sensibilidade esttica tradicional e singular que traduzida por meio de
uma receptividade e predileo pela planicidade, abreviao, simbolismo e simplificao. intrigante
pensar que possa efetivamente haver uma base histrica comum entre a sensibilidade da Era Edo (16031868), que estava preocupada com os aspectos plano e raso do Ukiyo-e [xilogravura japonesa], e a do
japons contemporneo, que v os personagens de anime e mang como entidades surpreendentemente
reais (Hiroyuki Aihara)
A histrica afinidade japonesa pelo bonitinho pode ser monitorada por suas manifestaes
artsticas. Na literatura, h mais de um milnio, Sei Shonagon descreveu com clareza esse

paladar pelo frgil no livro Makura no Soshi.


O mesmo pode ser observado na literatura
moderna do sculo XX, em livros do genial
Osamu Dazai. O conceito Kawaii contm
em si similaridades com a tradio
visual japonesa, de acordo com Peek,
caso
do
ukiyo-e,
plano
e
sem
profundidade.
Alm
disso,
dialoga
diretamente com as sensibilidades do povo
japons. Esse olhar kawaii enxerga trejeitos
positivos em objetos ordinrios (baratos,
industriais, plsticos) ou de beleza questionvel (dentes tortos ou coluna levemente vergada que
humanizam a mulher), assim como o antigo conceito japons de mono no aware cobra uma
sensibilidade de apreciao em relao s coisas efmeras, imperfeitas, simples e transitrias da
vida, uma herana do pensamento zen-budista. A esttica kawaii com bidimensionalidade
estaria em comunho com a sensibilidade esttica japonesa tradicional.
Entretanto o kawaii propriamente dito foi
criado no fim da Era Meiji (1868-1912) e
incio do Perodo Taisho (1912-1926), dentro
da shoujo bunka (cultura das garotas),
ou seja, quando as mulheres do Japo
passaram a absorver contedo ocidental e
a interpret-los a partir das lentes do
repertrio esttico-cultural japons. Esse
choque Leste-Oeste encontrou uma
atmosfera poltico-cultural favorvel a sua
proliferao.
Com a ocupao do Japo pelos EUA no fim da Segunda Guerra, os produtos comerciais
americanos rechearam o Japo e influenciaram a produo cultural e industrial dos asiticos. As
garotas do pas de modo paulatino e espontneo abraaram as criaes infantilizadas de
ambos (mais para frente explicarei as razes mais aceitas para isso). Para a loucura dos
professores, elas inventaram uma incompreensvel forma de escrever, com adoo de
estrangeirismos, desenvolvimento de traos arredondados e incluso aleatria de emojis no texto
cursivo. A lngua oral tambm foi afetada, Kakkoii, por exemplo, passou a ser pronunciado
propositalmente errado como katchoii, dico de um beb incapaz de dizer a palavra
corretamente. Uniformes escolares viraram item de guarda-roupa mesmo aps a formatura.
As empresas japonesas perceberam esse
momento e, sabendo do poder de compra
das japonesas, adotaram essa esttica
como norte corporativo. Apesar da cultura
kawaii no ter sido criada pelo universo
business, foi por ele logo descoberta e
rapidamente assimilada no incio do boom
consumista dos anos 70 o auge da
economia japonesa. Anualmente as
japonesas gastam US$15 bilhes em
cosmticos, sendo que US$2,5 bilhes so
desembolsados por alunas ginasiais. O mercado abraou a ideia e lojas como a 6% doki doki
fizeram fortunas. Companhias areas pintaram a fuselagem de avies 747 com temas de
Pokmon e Mickey. Propagandas, embalagens, mangs, games, softwares de design
incorporaram a esttica. A Sanrio, detentora da marca Hello Kitty, j negociou seus personagens
com mais de 20 instituies bancrias incapazes de diferenciar suas ofertas.
Na condio de pas coletivista, o Japo tende a fomentar mais a gerao de coqueluches
culturais porque todos querem e precisam fazer parte de um grupo. A conformidade faz parte

da adeso esttica. Mas ser que s


questes mercadolgicas dariam conta de
explicar a singularidade do caso japons?
Acredita-se que no

O consumo de muitos produtos de estilo


bonitinho, com poderosas propriedades de
induo emocional, pode ironicamente
disfarar e compensar a grande alienao dos
indivduos em relao s outras pessoas na
sociedade contempornea (Sharon Kinsella)
O QUE EST ESCONDIDO NAS SOMBRAS DA HELLO KITTY
Analistas feministas no tardaram a acusar no conceito kawaii uma ferramenta patriarcal do
Japo para manter a mulher subjugada, conformada com os valores antigos no mundo
moderno. Afinal, a fmea atraente seria aquela passiva, obediente e imatura. Novos estudos
culturais de vises menos paradigmticas esto sugerindo exatamente o oposto: a cultura kawaii
uma rebelio juvenil, uma recusa de cooperao aos valores sociais vigentes e realidade
japonesa (no que no exista uma disparidade de gneros no Japo, apenas que essa
explicao sozinha no d conta da realidade). Sua popularizao revela um escapismo
passivo e consciente em relao s expectativas da sociedade e dos distintos papis de gnero,
muito mais marcantes no Japo que no Ocidente. A ala masculina demonstra o mesmo malestar de outros modos, como os hikikomori, majoritariamente homens. Vamos explicar isso com
calma. Em um livro clssico da antropologia americana sobre o Japo (hoje contestado em
alguns pontos, mas a meu ver ainda real em outros tantos), Ruth Benedict afirma:

[o arco da vida no Japo] uma grande


curva em U pouco acentuada, com a mxima
liberdade e indulgncia concedidas aos bebs e
aos velhos. As restries so lentamente
aumentadas aps a primeira infncia, at que
a satisfao da prpria vontade atinge uma
baixa logo antes e depois do casamento. Nesta
linha prossegue por muitos anos, durante o
vigor da mocidade, ascendendo gradualmente
o arco de novo at que, aps os sessenta,
homens
e
mulheres
acham-se
to
desimpedidos pela vergonha quanto as criancinhas. Nos Estados Unidos viramos de cabea para baixo
esta curva. As disciplinas severas so dirigidas para a criana e aos poucos relaxadas, medida que esta
cresce em fora, at passar a dirigir a prpria vida ao arranjar um emprego que lhe garanta a
subsistncia e constituir lar prprio. O vigor da mocidade para ns [americanos] coincide com o ponto
alto de liberdade e iniciativa. As restries comeam a aparecer quando os homens perdem o domnio, a
energia, ou se tornam dependentes. difcil para os americanos sequer imaginar uma vida arranjada de
acordo com o padro japons. Parece-nos fugir em face da realidade. (Ruth Benedict)
Envelhecer para o japons no parece muito saudvel: o homem estudar e trabalhar
incontveis horas, incluso horas extras e as culturais idas ao bar aps o expediente (essenciais
para garantir as desejadas promoes profissionais). A mulher no possui perspectivas de
trabalho e est destinada ao papel de dona de casa com marido ausente. Jovens japoneses
prestes a entrar na vida adulta, em sua maioria, classificam essa nova fase da vida como um
perodo desanimador, rido demais. Temem mais que tudo o peso das responsabilidades com a
famlia, sociedade, espao pblico e poltica. Possuem uma viso muito nebulosa tanto do futuro
quanto da sociedade japonesa. A vida adulta, diferente do Ocidente, no vista como um
perodo de liberdade e emancipao pessoal, muito pelo contrrio, a fase vista como
dcadas de claustro que limita as potncias individuais, apagam os sonhos e fora o indivduo a
aceitar o destino imposto por outrm. Em pesquisas no Japo, a populao atribuiu vida

adulta valores fundamentalmente vistos como negativos: solido, responsabilidade, falta de


tempo livre, excesso de trabalho, desaparecimento dos sonhos.
O que d suporte cultura kawaii a noo romntica da infncia como perodo puro,
intocvel, sem maldade. Yuuko Yamaguchi, gerente geral do departamento de characterdesign da Sanrio, diz que a esttica kawaii
cristaliza a vontade do japons de nunca
querer crescer, de permanecer no estgio
infantil, de no abrir mo da candura,
uma vez que a vida de adulto no Japo,
mais do que em qualquer outra cultura,
um tempo extremamente penoso, de
muitas responsabilidades e presses (um
pas do tamanho do Mato Grosso do Sul,
sem recursos naturais, que por muito
tempo foi a 2 maior economia do
mundo).

Maturidade, que no Ocidente tem sido associada autoridade e direitos individuais, ainda tende a ser
pensada de acordo com o modelo confuciano no Japo moderno. Ou seja, a maturidade geralmente
vista como a capacidade de cooperar bem dentro de um grupo, aceitar compromissos, cumprir obrigaes
com os pais e funcionrios, e assim por diante (Sharon Kinsella)
Essa infantilizao da aparncia que causa espanto no ocidente justamente o que atrai o
japons. A criana, o assexuado ou a virgem livre de responsabilidades e papeis sociais
complexos e exigentes. Um adulto que,
numa sociedade coletivista, se entrega
aos seus desejos e fraquezas pode ser visto
como moralmente fraco e egosta. A
cultura kawaii representa a vontade de
criar uma sociedade horizontalmente
estruturada, mais amigvel e guiada pelas
emoes, em detrimento da nsia
racional, expansionista, hierarquizada e
baseada no poder que caracterizou o
Japo do passado.
A sociedade e a famlia japonesa, tendo conscincia do espinhoso cotidiano dos adultos
japoneses, consideram a infncia um momento da vida absolutamente idealizado, portanto
permitem aos seus rebentos momentos de felicidade idlica antes que eles cresam e encarem o
quase desumano estilo de vida japons. Cria-se um ciclo vicioso, onde algumas crianas, aps
uma infncia artificialmente aucarada, sucumbem quando encaram a dura realidade da vida
adulta, e, sofrendo sndrome de Peter Pan, consideram que ser adulto intolervel, criando para
seus prprios filhos a mesma tenda idlica para que eles aproveitem os nicos anos da vida que
supostamente valem pena. A ideia de que o comportamento kawaii natural da pessoa, foi
suprimido pelos deveres sociais e urge achar rachadura por onde pode liberar a tenso.
Diferente do uso da insinuao sexual por parte da juventude ocidental como meio de
afirmao de maturidade que elas ainda no possuem (Miley Cyrus, Vanessa Hudgens), os
jovens japoneses caminham no sentido oposto, enfatizando sua imaturidade e incapacidade de
lidar com as responsabilidades da vida adulta, mesmo quando j as possuem. Meninas querem
casar por amor, e no mais por compromisso. Adultos querem a pureza perdida. Polticos
desejam de afastar do passado expansionista do pas, a oposio quer condenar o status quo.
Cada um encontra um uso particular para a mesma esttica.

Comportamento infantilizado foi considerado genuno e puro [pelos entrevistados japoneses] o que
implica que as experincias e relaes sociais adquiridas aps a maturidade foram consideradas como
formadoras de uma falsa superfcie externa () embora, ironicamente, o bonitinho seja extremamente
artificial e estilizado (Sharon Kinsella)

Muitos intelectuais que estudam o Japo


chamam a atmosfera kawaii do ps-guerra
de uma contracultura passiva e paradoxal.
Passiva porque, apesar de rejeitar o status
quo, no tem a menor inteno de
desconstruir o sistema social e colocar algo
diferente no lugar, apenas pede que no
solicitem sua colaborao. Os adeptos
dessa cultura, em maior ou menor grau,
so crticos da autodisciplina, da tolerncia
ao destino e das condies severas
impostas pelo jogo social (que, fao
questo de ressaltar, podem ser extremas
no Japo). Paradoxal porque mantm
estreitos laos estticos e comerciais com
a cultura que parece rejeitar. Como afirma
Kinsella, negam a falsidade do convvio
social, mas adotam como expresso da
pureza algo ainda mais artificialmente
arquitetado, idiossincrasias naturais de um
termo to abrangente. necessrio
tambm deixar claro que essa postura no
consciente. Ningum ou praticamente
ningum no Japo adota traquejos infantis com essa lucidez. No um ato poltico dessa
juventude, longe disso, at porque eles esto muito mais para a alienao absoluta do que para
uma conscincia superior. uma tentativa de compreenso de uma postura comportamental
abstrata.
A esttica kawaii tambm possui outras
funes
sociais
secundrias
e
generalizadas. um fluido lubrificante da
comunicao, sobretudo quando envolve
assuntos desagradveis, ainda que isso
possa ser usado de modo perigoso. Afinal,
se o jovem no se interessa por poltica, a
figura muda de cena quando o assunto
pautado pelo grupo AKB48 em Akihabara.
A aparncia pode se sobressair essncia.
Outro uso social a anulao do self,
como uma mscara. Muitos japoneses se
escondem socialmente atrs do vu
socialmente aceito do kawaii para no
mostrar seu verdadeiro eu. Inclusive alguns
estudos de cultura organizacional (a
cultura praticada dentro das empresas)
demonstram que a manifestao kawaii,
no comportamento profissional ou na
customizao do ambiente de trabalho,
maior em empresas pequenas, onde o relacionamento e a exposio pessoal maior (logo,
precisam de maior proteo do olhar alheio), do que em grandes multinacionais, onde a tarefa
de tornar as relaes impessoais toda guiada por processos e sistemas (horrio, crach, porta
automtica, relatrios padronizados, etc). Muitas mulheres inclusive afirmam fingir fragilidade
kawaii para evitar broncas dos superiores.

Kawaii mais do que os seus diplomatas (Hello Kitty, Pikachu, Sailor Moon, etc.) que resumem a
perspectiva global sobre a cultura popular japonesa. Sob a superfcie de seu uso superficial como uma
ferramenta de capitalismo consumista, [o conceito] kawaii atua como um lubrificante social onipresente.

uma forma de expresso que permite que o


indivduo japons, mesmo que apenas por uma
pequena frao, viva fora da exigente natureza
de presses sociais de uma forma nocombativa e socialmente aceitvel. (Cameron
Peek)
Por fim, a esttica kawaii pode ser usada
inclusive para desconstru-la de dentro.
Muitos publicitrios usam esse conceito
como pardia de si mesmo em suas
criaes, com recortes e spoofs. Nas artes plsticas, o movimento Superflat do Takashi Murakami
aponta violentamente seus dedos para a obsesso pelo kawaii que impregnou por toda a
cultura japonesa ainda que ele lucre milhes de dlares com essa massificao, numa postura
to dbia quanto a das adolescentes japonesas que rejeitam certos valores da sociedade
pagando fortunas pelas vlvulas de escape que ela oferece.
Fontes:

Um dia na vida do Japo, o Kingdom of Characters (Hiroyuki Aihara)


Japan, Kingdom of Characters (Exposio da Fundao Japo)
Cuties in Japan (Sharon Kinsella)
Japop O poder da cultura pop japonesa (Cristiane Sato)
Kawaii as represented in scientific research: the possibilities of kawaii cultural studies (Kyoko Koma)
Capitalizing on cuteness: the aesthetics of social relations in a new postwar japanese order (Leila
Madge)
Kawaii Aesthetics: the role of cutiness in Japanese society
Exploring kawaii in a sample of Japanese college women: a mixed-methods study (Stephanie Klapper)
Tokyo Girls (Patrick Macias/Izumi Evers)
O Crisntemo e a Espada Padres da cultura japonesa (Ruth Benedict)
Japanese schoolgirls: how teenage girls made a nation cool (Shoko Ueda/Brian Ashcraft)
Expression of kawaii: gender reinforcement of youth Japanese female school children (Yuko AsanoCavanagh)
Exploring Japanese art and aesthetics as inspiration for emotionally durable design (Pui Ying Kwan)
Comentrios Relevantes

Otaviano Medeiros
Ocidentais santinhos, Ocidente, uma sociedade saudvel, onde no h drogas e nem fugas de realidade. Me
poupe. Entre uma realidade de fuga kawaii, pureza e afins e uma realidade de fuga pelas drogas, e afins. Eu
sou 300000000000000000000000x a cultura japonesa kawaii. Tpico do Ocidente querer se meter na cultura
alheia, j fizeram e obrigaram o Japo a ser imperialista, e ainda querem obrigar que os japoneses se
comportem e tenha a mesma filosofia que os ocidentais. Mais uma vez, me poupem. E ah, drogados o
caraio.
otakismo2
Ok e quem disse que o Ocidente no tem suas prprias vlvulas de escape? No abordar um problema no
significa negar a existncia dele. O texto diferencia o Japo do Ocidente APENAS no tocante ao
infantilismo enquanto esttica. O texto s aponta a opinio de estudiosos que defendem as condies atuais
do Japo como predisponentes do infantilismo cultural, no que essa seja a nica vlvula de escape do pas,
nem que o pas o nico a ter vlvulas de escape. Fora que destacar diferenas e tentar entender a cultura
alheia muito diferente de exigir ou desejar que os japoneses adotem os mesmos comportamentos dos
ocidentais (situao defendida em nenhum momento do post).
No mais, no me parece justo comparar os casos radicais do ocidente os toxicmanos com os casos
brandos/moderados do Japo. preciso lembrar que o Japo tem uma das mais altas taxas de suicdio do

mundo (quase 30 mil/ano, o 7 pas com a maior taxa per capita de suicdios), possui uma quantidade
enorme de reclusos sociais extremos (hikikomori) e alguns dos foragidos da realidade japoneses j partiram
at mesmo para o terrorismo domstico (Aum Shinrikyo e o infame atentados com gs sarin contra a prpria
populao). Toda sociedade possui esqueletos no armrio.
Tambm pouco razovel defender que o Ocidente OBRIGOU o Japo a ser Imperialista. At porque o
Japo j tinha invadido a pennsula coreana e o reino de Ryukyu (atual Okinawa) sculos antes da
ocidentalizao e da anexao formal dessas regies.
19 de Abril, 2015

Otakismo Clssicos: Tmulo dos Vaga-lumes (Studio Ghibli)


Um dos maiores clssicos do Ghibli chega na
coluna Otakismo.

- Ns j trocamos todos os quimonos da nossa me


por arroz, voc costumava aceitar dinheiro
No uma questo de quimonos ou dinheiro. Sou
um fazendeiro, mas mesmo eu no tenho comida
sobrando para compartilhar.
Em abril de 1988, o Studio Ghibli lanou duas animaes de maneira simultnea no Japo. A
estratgia era diminuir o risco financeiro do estdio, j que o eventual fracasso de um projeto
poderia ser amortecido pelo sucesso do outro. A aposta encarada como a mais arriscada era a
dirigida por Hayao Miyazaki, o alegre e aconchegante Meu Vizinho Totoro (Tonari no Totoro). O
ttulo visto como a vaca leiteira daquela primavera foi o sbrio e soturno Tmulo dos Vagalumes (Hotaru no Haka), sobre as vtimas civis japonesas da Segunda Guerra Mundial.
Totoro acabou sendo um sucesso financeiro, enquanto Hotaru no Haka fracassou em bilheteria.
Todavia, aps o filtro do tempo, este segundo ganhou respeito pela sua qualidade e teor
educativo. A despeito de ser uma animao, unnime a opinio de que Hotaru no Haka
uma das obras japonesas anti-guerra mais pesadas e significativas j criadas.
A animao como mdia, mesmo a japonesa, costuma apresentar uma abordagem ldica,
explorar
o
fantstico
e
entregar
entretenimento ao pblico. Hotaru no
Haka, porm, um filme animado realista,
cru e cruel. comum os espectadores
relatarem choro ou que seus humores
foram lanados ao cho aps assistirem.
Corpos carbonizados cobertos de larvas e
moscas, espancamentos infantis, fome e
destruio urbana so apenas as formas
de impacto visual. Outro golpe, igualmente
profundo e pouco palpvel, a
desintegrao do tecido social em tempos
de guerra. Os bombardeios nucleares
monopolizaram a ateno do mundo a
respeito das vtimas japonesas, o que torna
pouco conhecido do pblico mdio o
horror vivido em todo o Japo, no s em
Hiroshima e Nagasaki, durante os dois
ltimos anos do embate.
a partir da interpretao desse anime
(meu favorito) que gostaria de desenvolver
uma ideia bastante discutida entre os
historiadores de Japo: a percepo de

que centenas de milhares de japoneses


talvez milhes morreram na primeira
metade do sculo XX vtimas no apenas
da guerra, mas tambm da cultura
japonesa. Sendo mais preciso, vtimas da
distoro que os militares e educadores
japoneses fizeram da histria e da cultura
nipnicas, sobretudo a respeito do legado
dos samurais.
Mas o que os samurais tm a ver com a
Segunda Guerra? Tudo, e esse espetacular
filme do Ghibli vai te ajudar a entender essa escondida e perversa conexo. O texto contm
todos os spoilers, pois desenvolverei uma anlise em cima dos elementos do filme. Encare-o, caso
no tenha assistido, como um convite ao ato (ainda que, por ser baseado em fatos reais, o
andamento j previsvel).
Tmulo dos Vaga-lumes, dirigido por Isao Takahata, foi inspirado no premiado livro homnimo e
semi-autobiogrfico de Akiyuki Nosaka, lanado em 1967. Narra a histria dos irmos Seita (14
anos) e Setsuko (quatro anos) em Kobe entre os anos de 1944 e 1945, durante a guerra. O pai
deles est fora de casa enquanto luta no Pacfico junto Marinha japonesa, j a me foi vtima
de um ataque areo americano.
Um adolescente e uma criana, ento, so largados prpria sorte durante o perodo mais difcil
da guerra para os civis japoneses: quando as Foras Aliadas realizaram inmeras investidas
areas indiscriminadas (do mesmo modo que o Japo fazia no resto da sia, que fique claro) e
despejaram quase duas mil toneladas de bombas incendirias nas principais cidades, com o
objetivo de queimar as casas de madeira dos japoneses e minar a mo-de-obra do inimigo.
Alimentos e recursos foram severamente racionados, moradias queimadas e muitas pessoas
morreram ou ficaram anos desaparecidas.

Hotaru no Haka () cemitrio


dos vaga-lumes pelo padro seria escrito
, com o kai para vaga-lume. Mas
aqui hotaru est escrito como gotas de
fogo, em referncia aos bombardeiros
americanos que desencadeiam a trama. O som
idntico mas h dois sentidos paralelos, um
deles ilustrado visualmente. (Leonardo
Boiko)
Seita e Setsuko a princpio vo morar com
uma tia distante, mas l se deparam com
outro lado perverso e pouco difundido
sobre
os
tempos
de
guerra,
a
insensibilidade humana em relao aos
seus prprios conterrneos. Por no poder
trabalhar pela nao, j que tinha de
cuidar da pequena irm, Seita era
constantemente hostilizado pela tia, com
broncas, insinuaes e privao de
alimentos.
Neste ponto do filme torna-se claro o
argumento tanto do livro quanto da
prpria animao. A noo de que o tecido social descosturou em seu ponto mais fraco, as
crianas. Hotaru no Haka joga luz na histria das mais de 120 mil crianas japonesas tornadas
rfs por conta do conflito mundial. Muitas foram prostitudas, escravizadas, agredidas e/ou

negligenciadas. Abusadas por parentes distantes ou tutores, inmeras fugiram de casa e viveram
de mendicncia ou pequenos crimes. O filme as mostra como vtimas no apenas da guerra,
mas da estrutura social insensvel do perodo de guerra. As privaes materiais revelaram o pior
do lado humano no s entre inimigos.
Ultrajado pela perseguio promovida
pela tia, Seita pega as economias
bancrias da me e vai viver com a irm
em um tipo de gruta, na rua. L, estariam
protegidos das bombas e tambm dos
adultos entorpecidos. L, viveriam como
bem entendessem. L, poderiam comer
quanto arroz branco pudessem comprar
com as economias da famlia, no mais o
mingau ou o caldo ralo servido pela
megera da tia.
A realidade passou um rolo compressor
nessa escolha. Os parcos alimentos
produzidos no Japo eram prioritariamente
enviados para os soldados em batalha.
Dinheiro e objetos caros no tm valor em
um contexto de fome e comida passa a
ser a nica moeda de troca possvel. Os
irmos precisam improvisar e passam a
comer rs, estratgia insuficiente para
prevenir a desnutrio da pequena
Setsuko.
Ela morre. A me j havia falecido. O pai
deles encontrou seu fim no mar. O Japo
perdeu a guerra e a Constituio Imperial
foi substituda por uma redigida pelo
inimigo. Parentes, pas e ideologia, tudo o
que atribua sentido vida de Seita
naufragou em 1945. Restou a ele se
entregar tambm morte, como os
samurais de quem falavam na escola.
O foco infantil de Hotaru no Haka no foi
escolhido com o nico intuito de
sensibilizar. A motivao ainda mais triste.
O escritor do livro, Nosaka, sobreviveu
guerra por comer todos os alimentos que
deveria ter compartilhado com a irm
Keiko. Ela morreu por m nutrio e o
autor, consumido pela culpa, escreveu o
livro como uma espcie de exorcismo
desse sentimento e homenagem
falecida irm, que pagou com a vida a
sobrevida do irmo.
Uma anlise mais acurada de Hotaru no
Haka fomenta uma ideia perturbadora: Seita, a pessoa que mais sofreu no decorrer do filme,
tanto vtima quanto vilo. A concluso no pode ser diferente, Seita matou a irm Setsuko. Ou
melhor, a ideologia que implantaram na cabea de Seita custou a vida de Setsuko. Que
ideologia era essa? O cdigo do guerreiro samurai, junto ao nacionalismo, divindade do
Imperador e ideia de superioridade da raa japonesa. Vamos desenvolver essa ideia.

Aps a Restaurao Meiji de 1868, o sistema de classes no Japo foi abolido, o que significou a extino
do samurai enquanto classe. No entanto, o Bushido no desapareceu, mas teve seu segundo turno como
uma Moral Nacional. Na poca do sentimento pblico de dominao militarista e nacionalista no Japo
(1930-45), o Bushido foi um poderoso instrumento de impacto ideolgico na sociedade japonesa.
Aps passar 250 anos completamente
isolado sob o comando militar da classe
guerreira (o Shogunato Tokugawa), o
Japo foi forado a abrir suas fronteiras
para o comrcio, extinguiu a diviso social
por classes e instituiu o Estado Moderno no
final do sculo XIX. Com medo de ser
colonizado
por
alguma
potncia
ocidental, como aconteceu com quase
todos os pases da sia na poca, o Japo
buscou a rpida modernizao industrial,
militar, cientfica e financeira. Em um pas
pequeno e de recursos escassos, isso resultou em expansionismo e colonizao. O Japo se
tornou aquilo que temia nos outros. Invadiu, dominou e barbarizou a China, a Coreia, a Malsia,
Cingapura, entre outros.
Alguns dos fundamentos ideolgicos que justificavam a agresso eram a superioridade da raa
e do projeto civilizador japons e a manuteno e viabilizao da divindade do Imperador e do
Japo tradicional, que seriam garantidos pelo progresso tcnico. Alguns dos burocratas da
educao e todos os militares dessa poca eram antigos samurais. Eles trouxeram o Cdigo do
Guerreiro dos samurais (Bushido) para os quartis e salas de aula de todo o Japo.

Nas escolas, todos os estudantes liam sobre os modos dos samurais, sobre Bushido (o draconiano cdigo
do samurai), sobre o ritual seppuku (ou harakiri, ritual suicida) () Durante o conflito no Pacfico,

incontveis discursos e registros mencionavam a dvida do guerreiro moderno ao Bushido. Escritos


japoneses centenrios aconselhavam a disciplina ao guerreiro, reduzido ao seu componente fundamental,
a prontido para a morte. A imagem do valente guerreiro feudal apresentada no Hagakure, sem dvida
a mais influente obra samurai (Axell e Kase)
Princpios como a fidelidade cega, a preservao da honra pessoal e o valor social do autosacrifcio, entre outros que caracterizam os antigos samurais, passaram a nortear os sistemas
educacional e militar do pas. Obras de conduta e etiqueta samurai como o Hagakure (de
Yamamoto Tsunemono) e o Livro dos Cinco Anis (escrito por Miyamoto Musashi, sim, aquele de
Vagabond) viraram cartilha moral dos japoneses nos perodos Meiji e Taisho.
Confundir o comportamento do guerreiro medieval com o que se espera de um cidado no
mundo moderno j no seria pouco equivocado, mas o problema foi mais srio. O estandarte
do samurai escolhido no foi o do samurai histrico, foi o do samurai idealizado pela literatura.

Um fato crucial a se lembrar sobre o Bushido que, a partir de 1615, o Japo tinha vivido em paz
ininterrupta por mais de 250 anos (no existe paralelo na histria mundial). Os samurais,
frequentemente estereotipados como ferozes guerreiros, tornaram-se burocratas, enquanto, com suas
canetas, registravam o caminho do samurai. Por causa do longo perodo de paz ininterrupta, o cdigo do
Bushido comeou a ser registrado de modo idealista, metafsico e romntico
Durante o perodo Tokugawa, o Japo
passou por mais de dois sculos de paz
interna e externa. Os Daimiyo (senhores
feudais) e o Shogun gastavam amplos
recursos para sustentar uma classe
guerreira que simplesmente no tinha mais
utilidade.
O
samurai,
que
vivia
exclusivamente em funo da guerra,
entrou em crise existencial. Ele se
preparava durante toda a vida para
combates que no aconteciam. O samurai
do perodo Tokugawa era um guerreiro
Buzzatiano. Muitos viraram burocratas, poetas, filsofos, professores de artes marciais,
comerciantes. Foi nessa poca que alguns desses samurais sistematizaram no papel o cdigo do
guerreiro, louvando o valor do sacrifcio, a beleza e a inefabilidade do perecimento, a
preferncia da morte honrada rendio aviltante.
Ou seja, muitos dos valores pelos quais reconhecemos os samurais, dentro e fora do Japo, so
uma inveno (ou amplificao) intelectual do sculo XVII! O conceito de que o samurai, como
classe, prefere a morte fuga foi escrito e disseminado por samurais que nunca participaram de
guerras e viviam da pena (ainda que existam casos reais anteriores, no era regra). O Hagakure,
obra maior do Bushido, foi escrito oito dcadas aps a pacificao do Japo. H vrios registros
histricos mais antigos de samurais que escreviam em suas memrias fugas despudoradas
quando a situao era desfavorvel, como afirma o historiador Thomas Conlan. A prpria
resistncia japonesa Primeira Invaso Mongol no sculo XIII contm episdios tticos de fuga
samurai.
O Bushido, de certa forma, foi criado mais pela pena que pela espada. No digo que no existia
um cdigo moral oral anterior ou que atos radicais de sacrifcio no existiram antes, estou
falando que eles foram idealizados e amplificados quando transcritos no papel. Os samurais que
vieram depois, no entanto, tomaram essa verso esttica como uma constante histrica.
O suicdio planejado de samurais no Levante de Satsuma a ltima grande rebelio samurai
da histria prova disso, quando eles avanaram de peito aberto e espadas em punho contra
as armas modernas do ocidentalizado exrcito japons, aps passarem a noite escrevendo
poesia sobre a moralidade e o encanto da morte honrada. Algo assim seria bem menos
provvel nos perodos Kamakura (1185-1333) ou Muromachi (1336-1573). Quando se luta por

arroz, poder e terras frteis, e no por uma identidade em si, a morte encarada como
consequncia inevitvel do combate justo, no com desejo suicida.

Outro detalhe, o Bushido foi sistematizado como um cdigo que diferenciava os samurais do
resto dos japoneses, quando as classes sociais foram estabelecidas por Toyotomi Hideyoshi (um
dos trs unificadores do Japo), numa condio hierrquica de superioridade. Samurais cerca
de 10% da populao japonesa na poca tinham privilgios legais sobre os demais. O Exrcito
e as escolas japonesas distorceram completamente o conceito j idealizado de um samurai e o
generalizaram. Esperava-se um samurai de cada japons. Foi um processo de absoluto
doutrinamento que transformou o soldado japons em um guerreiro medieval romantizado o
problema foi que esse soldado era real e portava armas modernas. O resultado conhecido:
kamikazes, Massacre de Nanquim, Unidade 731, recusa de Rendio mesmo quando j era
sabido que a guerra estava
perdida, sacrifcio intil de
japoneses
em
reas
perifricas em relao
capital
Tquio
(como
Okinawa), e etc.

A explorao do cdigo do
guerreiro ia de encontro ao seu
objetivo original. O Exrcito
Japons moderno era composto
basicamente por camponeses e
mercadores, e o Cdigo do
Guerreiro sempre fora um meio
de definir como os samurais se
diferenciavam
das
outras
classes. Durante a luta no
Pacfico, a nfase que o Cdigo do Guerreiro dava ao auto-sacrifico revelava-se na falta de considerao
dos soldados japoneses pela prpria vida. Acreditando que a morte era melhor que a rendio, os
soldados do Exrcito Imperial, em diversas batalhas, incluindo Guadalcanal e Iwo Jima, realizavam

ataques suicidas quando a derrota tornava-se iminente. E havia os Kamikaze, pilotos que embarcavam
em misses suicidas jogando os avies contra navios Aliados. Usando o termo kamikaze, o vento divino
que destruiu a Armada Mongol no sculo XIII, os pilotos modernos sentiam-se ligados a um passado
glorioso.
fcil constatar o resultado de uma educao militarista nas aes dos soldados em guerra,
mas isso menos evidente no comportamento dos civis japoneses que no lutaram diretamente
no front, mas foram criados pela mesma mentalidade. disso que se trata Hotaru no Haka. Seita
matou Setsuko porque seguiu o Hagakure, e no a razoabilidade da situao. O fazendeiro de
quem tentou comprar alimentos o orientou, engula seu orgulho, pea desculpas sua tia e
reconhea que em tempos de guerra duas crianas nada podem fazer. Seita teimou em
carregar o fardo da criao de Setsuko nas prprias costas, orgulhosa e decididamente. Oras, foi
o que lhe ensinou o Hagakure, a mais famosa cartilha samurai: A pessoa no precisa de vitalidade

nem de talento. Em suma, basta ter vontade de carregar sozinho sobre os ombros todo o cl.
A percepo dele da guerra era
infantilizada e ingnua. Mesmo enquanto
sofria as agruras e privaes do conflito,
antes de dormir ele imaginava o glorioso
navio do pai, os fogos de artifcio, a
grandeza do Imprio Japons. Nem por
um momento ele parou para pensar nas
conseqncias das agresses promovidas
pelo pai militar, ou para reconhecer a
difcil condio na qual se encontravam
como resultado disso. E que simbolismo
melhor para essa militarizao da infncia
que um dos psteres do filme? A menina
Setsuko, de quatro anos, batendo
continncia, simulando um capacete com
um utenslio domstico na cabea e
usando fralda.
Aqui retomo a metfora dos vaga-lumes.
Eles no referenciam apenas as bombas
incendirias americanas, mas a brevidade
da vida das crianas no perodo. Vagalumes, que apenas por um breve perodo
emprestam sua luminosidade ao mundo.
Vaga-lumes que foram sepultados, na guerra ou nas cidades, por um fervor nacionalista,
militarista e racista que felizmente foi derrotado, infelizmente ao custo de milhes de vidas
inocentes (ou politicamente condicionadas).
O ltimo frame do filme
a cereja do bolo. Os
espritos dos irmos esto
sentados em um banco,
cercados de vaga-lumes,
enquanto
olham
ternamente para uma
moderna
metrpole
japonesa.
Prspera
e
pacfica. Como que para
lembrar aos espectadores
japoneses dos anos 80, o
auge
do
progresso
econmico do pas, o preo que os antepassados pagaram por isso. Nos fundamentos de cada
um desses prdios esto os tmulos de muitos vaga-lumes. Setsuko, Seita, o pai deles, as vtimas

militares do pai deles, os filhos dessas vtimas espalhados pela sia e Amrica. Isso no pode ser
esquecido.

Fontes:
Som e sentido na lingstica dos kanji (Leonardo Boiko)
KAMIKAZE Japans Suicide Gods (Albert Axell e Hideaki Kase)
Peace education through the animated film Grave of the Fireflies Physical, psychological, and structural
violence of war (Daisuke Akimoto)
Transcending the victims history: Takahata Isaos Grave of the Fireflies (Wendy Goldberg)
Grave of the Fireflies and Japans Memories of World War II (Masako N. Racel)
Forming nationalistic mentality of Japanese youth by Japanese ruling circles with use of bushido ideology
(Andrei Vasilevich Golomsha)

Comentrios Relevantes

Alexandre Arajo (@Noots_)


Antes de dizer o que quero realmente dizer, vou fazer uma ressalva. Esse filme uma obra-prima, afirmao
que est alm de qualquer contestao. A imagtica imprimida nele pelo Takahata, capaz de fazer o
espectador sentir novamente sensaes vivenciadas h mais de trs anos (no meu caso) apenas ao olhar
algumas imagens deste post, mpar na histria da animao. E o trabalho tcnico de animadores brilhantes
como Reiko Okuyama, pioneira em se tratando a mulheres no meio do anime, faz dele um espetculo visual
at para os padres de hoje.
Dito isso, [===////=== ALERTA DE COMUNISMO===////===],o meu ponto o seguinte: no concordo
com o discurso ideolgico que impregna a obra, traduzido e reproduzido por esse belo artigo seu. A idia de
que todo o mindset do povo japons durante a guerra era resultado da construo cultural realizada pelo
governo e pelos militares tem implicaes perigosas que, uma vez escondidas, foram muito benficas para o
governo liberal que sucedeu o imprio. A ideia geral que procuro sustentar foi muito bem resumida pela
Susan J Napier no 11 captulo do livro Anime: From Akira to Howls Moving Castle, do qual reproduzo
dois pargrafos a seguir (a traduo livre e os comentrios entre colchetes so meus):
As razes por trs do tratamento subalterno dado guerra so complexas, mas bastante compreensveis e
comuns a outras representaes miditicas. Como muitos acadmicos j pontuaram, a verso japonesa da
Segunda Guerra Mundial pode ser descrita, em termos gerais, como uma histria de vtima, na qual o
povo japons visto como vtima desamparada de uma corrupta e maligna conspirao entre seu governo e
suas foras militares. Essa histria de vtima advm parcialmente do esforo mtuo de americanos e
japoneses durante a Ocupao para criar a imagem de um Japo democrtico no ps-guerra, o que
libertaria os japoneses do inescapvel passado fascista e militarista. Ao transferir o fardo da
responsabilidade por uma guerra devastadora para os militares e o governo, foi sentido que o quadronegro poderia ser completamente apagado e o Japo poderia empreender a tarefa da reconstruo,
liberado das sombras da culpa e da recriminao. Consequentemente, tanto as verses oficiais quanto
culturais [do conflito] reduziram o envolvimento dos cidados no mecanismo de combate e agresso, a tal
ponto que estes ignoram ou omitem a investida do Japo contra a China, iniciada em 1931. Como
alternativa, veculos oficiais, como livros didticos e cerimoniais do governo, enfatizam o perodo que vai
de Peral Harbor at Hiroshima, o qual, na colocao certeira de Carol Gluck, estabelece um calculo
moral equilibrado, essencialmente permitindo que o bombardeio atmico cancele a responsabilizao por
Pearl Harbor, simplesmente encobrindo a colonizao da Coreia e os dez anos anteriores de agresso
contra a China.
Produtos culturais aliados a essa histria de vtima so numerosos. Eles incluem escritos de sobreviventes
da bomba atmica e filmes anti-guerra como Harp of Burma e Fires on the Plain, que compartilham um
forte sentimento anti-guerra, porm mostram pouca inclinao a penetrar temas como culpa ou

responsabilidade. Esses traos so compartilhados por Grave of the Fireflies e Barefoot Gen. Centrados
nos anos 1940, os dois filmes se encaixam no termo histria de vtima de formas bastante bvias.
Primeiramente, os filmes provocam uma descomplicada resposta emocional de simpatia por parte dos
espectadores ao se focarem em crianas inocentes devastadas pela destruio da guerra. Como resumem
dois crticos de anime [a saber, Trish Ledoux e Doug Ranney, no livro The Complete Anime Guide]:
francamente impossveis assistir essa produo sem ser drenado emocionalmente. O uso de convenes em
geral realistas (Grave of the Fireflies, em particular, tem um tom orgnico, naturalista, e ambos os longas
so efetivos em recriar um perodo de guerra por meio de representaes arquitetnicas e de vestimentas
tradicionais [o que, a meu ver, tambm colabora com o distanciamento histrico]), e de uma estrutura
narrativa direta tambm ajudam o espectador a se identificar com as histrias de partir o corao
mostradas em tela
T, eu sempre abuso das citaes.
Em suma, se um discurso distorcido que os militares e educadores japoneses fizeram da histria e da
cultura nipnicas, sobretudo a respeito do legado dos samurais foi utilizado para justificar a guerra e
indiretamente vitimar seu prprio povo, um discurso igualmente construdo a posteriori parece estar sendo
perpetuado, e aqui endossado, para eximir o Japo da responsabilidade por travar tal guerra. Isso nos leva a
aberraes como o fato do sistema educacional japons, um dos melhores do mundo, omitir as atrocidades
que caracterizam determinado perodo da histria da nao, servindo tambm para alienar o arquiplago do
restante da sia, a qual ele insiste no dever coisa alguma. Enfim, me parece chegada a hora de parar de
comprar essa histria de vtima individualizante, invariavelmente ludibriada e indefesa. O Japo, enquanto
nao, precisa assumir a responsabilidade pelo que fez e tem feito.
P.S: Parando para pensar, parece que eu s comento nos seus textos para discordar. Hahaha. Foi mal a. No
d ateno e continue com o bom trabalho.
otakismo2
sempre um prazer ler seus comentrios, principalmente com contrapontos que me ajudam a pensar melhor.
Permita-me ampliar meu ponto de vista. A distoro histrica da figura do samurai no usada aqui para
justificar o esforo de guerra em si, o colonialismo, a poltica racial ou a viabilizao do projeto pan-asitico
liderado pelo Japo, ou seja, a moldura maior do perodo. Nem esse o propsito dos historiadores que
denunciam essa mistificao. Na verdade, eu nem me atrevi a desdobrar esses assuntos no post e sempre
peguei no p da alienao histrica japonesa (nos posts sobre Paranoia Agent, Superflat, etc).
Nesse texto, o objetivo nico entender o radicalismo mpar empregado por soldados japoneses rasos e civis
na poca militarista, uma tentativa de entender o que particulariza o caso japons num contexto de barbrie
global generalizada. No h paralelos para o que os kamikaze faziam, no h outros exemplos de resistncia
civil to fervorosa ao conceito de rendio e isso custou muitas vidas. No defendo que TODO o mindset
japons foi formatado em meio sculo por burocratas, mas alguns atributos antigos como a divindade do
Imperador, trabalhados de forma distorcida pelas instituies modernas e pela mdia de massas controlada,
geraram seus efeitos. No me parece uma anlise errada.
Agora, se algum estendeu esse argumento para querer explicar todo o perodo, eximir por completo a nao
de qualquer culpa, se colocar no papel exclusivo de vtima, a eu no assino embaixo de forma nenhuma.
No acho, todavia, que preciso ser ausente de culpas para ser tambm muito vtima, principalmente
quando se d poder para que as ordens do Hideki Tojo determinem o destino de milhes de pessoas.
totalmente possvel ser vtima do monstro que ajudou a criar, e esse me parece o caso japons da poca.
Sobre o argumento da Napier, no tenho certeza se o conluio do Japo liberal com os EUA o motivo
principal que faz o pas esconder HOJE seu passado recente. H aspectos culturais e tambm estratgicos em
jogo que distinguem o caso japons da Alemanha ou da Itlia. E tambm o Japo atual estvel, prspero e
convictamente democrtico do Japo dos anos 50, humilhado e militarmente ocupado na Guerra Fria. A

prpria Alemanha, de tradio monrquica, passado genocida e financiada pelos EUA, teve uma relao
com sua memria histrica bem diferente durante a reconstruo do pas, dentro de um contexto
semelhante

Apresentao do Redator Otakismo no Chuva de Nanquim


Novo espao. Novo pblico. Nova abordagem. A estreia do Otakismo no Chuva de Nanquim.
Costumo brincar que em 1989 a cegonha foi fazer uma entrega no Japo. Ela acabou acertando o pacote
em algum vulco e, por um colossal engano, acabei atravessando o planeta por dentro para aparecer no
outro lado do mundo, no Brasil. No sei bem a razo, mas desde criana j me encantava por toda e
qualquer porcaria da televiso que terminasse com casinhas subindo nos crditos. Cresci consumindo
quantidades homeopticas de cultura pop japonesa. Por outro engano extraordinrio acabei formado em
Publicidade. Durante o tdio do curso, comecei a estudar cultura japonesa e asitica com um vis
acadmico. Descobri que as casinhas da infncia eram ideogramas carregados de sentido. Descobri uma
poro de outras coisas. Resolvi compartilhar algumas delas em um blog de ttulo sugestivo Otakismo.
Um terceiro engano fatal fez com que meus textos conseguissem uma mnima notoriedade. Um convite, e
hoje estou no Chuva de Nanquim. Minha misso compartilhar um Japo alm dos esteretipos. Minha
vontade ser capaz de fazer o mesmo com Coreia, China, Singapura e etc. Mas por trs de toda essa
pretenso ainda existe uma criana de 6 anos correndo para no perder mais uma reprise dos Cavaleiros
do Zodaco.

Apresentao do Redator Otakismo pela editora do Chuva de Nanquim


Quem nunca leu um post inteiro do Otakismo levanta a mo! \o/ Brincadeira, K (chamando assim, porque
sim, ningum precisa saber seu nome qq). Antes de conhecer o Otakismo eu tinha uma viso engraada
sobre ele; eu achava que ele era do tipo quieto, magrelo, que deveria se trancar no quarto e se voc
tentasse conversar com ele os assuntos seriam cult demais para o seu Q.I. Algo assim. Desculpa, K. O
Otakismo realmente muito inteligente, mas tambm engraado, consegue ter assuntos diversificados
mas acho que o assunto que ele mais deve gostar japinhas, suspeito e que eu acho que merece uma
namoradinha kawaii desu, de preferncia com os olhinhos puxados e que parece uma idol. Mais
informaes, s ir no Twitter dele: @AntonioLeeDesu. K, no me mata. Obrigada.

OTAKISMO 2.0 - NOVOS TEXTOS


Textos e imagens - Kau - Otakismo
Armazenagem dos Arquivos e Edio em formato Livro - Elrik de Melnibon
Outras ltimas palavras: E l vamos ns outra vez.
Bem, para aqueles que porventura no tenham tido contato com o Otakismo antes, tivemos
aqui alguns dos mais brilhantes materiais sobre a cultura pop e sociedade japonesa, assunto que
me atrai desde que, como o Kaue, corria para assistir as reprises de Cavaleiros. No tenho
palavras para descrever quo relevante que o Volume um desta coleo tambm seja lido e
apreciado por aqueles que nunca o fizeram.
Tenho, no entanto, muito a descrever sobre minha satisfao pessoal em terminar esse projeto
de cunho puramente pessoal. No estou assumindo nenhum dos textos, todos so obra do
Kau/Otakismo, mas fico muito feliz em manter esse material acessvel nessas Internets que
navegamos. Mas, e novamente, passar esse perodo de tempo (24 de Agosto de 2016 at 16 de
Setembro) burilando neste material, e buscando a melhor forma de transformar contedos feitos
para exibio em sites se tornar algo que possa, na vontade do futuro leitor, ser impresso... Estou
exausto, e muito satisfeito tambm.

Portanto, novamente, um colosso: Cento e vinte pginas de Otakismo, com anlises acuradas,
sugestes de filmes e plulas histricas de primeira categoria.
Agradeo, e me repito neste ponto, ao Kau/Otakismo pela satisfao que seus textos me
proporcionaram, a estranha inspirao que me fez criar as duas copilaes destes contedos, e
dedico este trabalho, mais uma vez, a todos seus futuros leitores.
At algum dia!
Elrik de Melnibon

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