Otakismo 2.0 - Novos Textos
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Otakismo 2.0 - Novos Textos
0 Novos Textos
20 de Agosto, 2012
Sem exagero, posso dizer que metade dos textos que tive de escrever era totalmente ftil, material sem
utilidade. Um desperdcio de papel e tinta. Evitei parar para refletir sobre isso e fui apenas arrematando
trabalhos mecanicamente. [...] No tinha nenhuma ambio nem esperana. Apenas ia arrematando
sistematicamente, de ponta a ponta, tudo o que aparecia. Para ser franco, at cheguei a pensar se isso no
seria uma vida desperdiada. Mas, se at mesmo o papel e a tinta podem ser desperdiados, no havia
razo para que eu ficasse me lamentando. Essa foi a concluso a que cheguei. Ns vivemos numa sociedade
altamente capitalista. Nela, o desperdcio a maior das virtudes. Os polticos chamam isso de requinte da
demanda domstica. Eu chamo de desperdcio sem sentido. So divergncias de pensamento. Apesar delas,
a nossa realidade indiscutivelmente assim. Os incomodados que se retirem para Bangladesh ou para o
Sudo.
Espere um minuto voc intervm -,
um
sentimento
generalizado
de
desamparo fez sucesso no Japo?
Ento a segunda economia do
mundo, um bolso de prosperidade,
segurana pblica e respeito social?
Exato. E justamente nesse ambiente
que um pessimismo e um mal estar
existencial poderiam florescer com
mais intensidade. Se voc quer
entender a razo dessa situao
aparentemente
contraditria,
me
acompanhe nesse texto! Murakami
um bom anfitrio ao dar voz aos
tmidos japoneses que sucederam os
samurais corporativos do Milagre
Japons a partir dos anos 80.
O livro
Por favor, no me deixe mais tempo aqui sozinho, fiz mentalmente esse pedido. Eu preciso de voc. No
quero mais ficar s. Sem voc, sinto que sou expelido para os confins do universo por uma fora centrfuga.
Por favor, aparea e prenda-me em algum lugar. Quero que voc me prenda neste mundo real. No quero
fazer parte do clube dos fantasmas. Sou apenas um homem extremamente comum e simples de trinta e
quatro anos.
O hotel ser o ponto de partida fsico da sua procura pelas coisas que foram caindo do seu
bolso enquanto vagava por a, assoviando sem perceber. A partir de l, encontrar uma srie de
personagens exticas, cada uma com sua prpria dor, sua prpria histria; e como um Hamlet
ps-moderno, rechear os dilogos com reflexes sobre os mais diversos assuntos. Dos mais
complexos, como o amor, a morte e as ideologias, aos mais banais como a cultura pop e a
culinria. Nesse meio tempo, o mundo real dilui aos poucos as barreiras com o universo onrico,
ao ponto de ficar difcil distinguir onde, de fato, as personagens esto com a cabea.
Que absurdo! Perdi a autoconfiana. Ser que irei apodrecer, falando sozinho, dessa forma, nesse lugar
que parece um cemitrio de elefantes da sociedade altamente capitalista?
O Japo oitentista de Murakami
Como no fazia havia tempos, liguei o rdio e segui para o oeste ouvindo rock. A maioria das msicas era
sem graa. Fleetwood Mac, Abba, Melissa Manchester, Bee Gees, KC & Sunshine Band, Donna Summer,
Eagles, Boston, Commodores, John Denver, Chicago, Kenny Rogers Essas msicas apareciam e
desapareciam como bolhas de espuma na gua. Que droga! Um lixo de msica de consumo para arrancar o
dinheiro da garotada, pensei. De repente bateu uma melancolia. Os tempos mudaram. Era s isso.
O Imprio Japons derrotado na Segunda Guerra pelas tropas norte-americanas deu espao
para um governo parlamentar pacifista e progressista. Com auxlio do capital americano, o
Japo rapidamente se reconstruiu e orientou sua economia industrial para as exportaes. Nas
dcadas de 60 e 70 o pas entrou no processo chamado de Milagre Japons com uma
economia em plena ascenso (as Olimpadas de Tquio em 64 foi, grosso modo, o que Rio 2016
ser para ns). Os anos 80 foram o auge absoluto desse processo. Economistas diziam que a
superao da economia americana pela japonesa no era mais discutida em termos de se (no
sentido de possibilidade), mas sim em termos de quando. Sony, Toyota e Nintendo invadiram o
mundo. O pas concentrava riqueza e a distribua de modo igualitrio. Aps muito sofrimento,
finalmente chegara a hora da bonana.
O Japo tinha se tornado
o exemplo maior do
sucesso
capitalista
e
posou como modelo ao
mundo, de como um pas
sem
recursos
poderia
construir
seu
prprio
caminho de sucesso com
muito trabalho rduo. No
entanto, as coisas no
eram
to
simples
e
maravilhosas assim, conforme denunciaram os jovens japoneses dessa poca, aqueles que
nunca passaram pelas privaes da guerra e da reconstruo do pas.
As pessoas reverenciam a dinmica que o capital possui. Idolatram seu carter mitolgico. Adoravam o
preo do terreno em Tquio e o que simboliza o Porsche que brilha reluzente. Pois, alm dessas coisas,
neste mundo j no resta mitologia nenhuma. () Neste mundo, a filosofia vai se assemelhando a uma
teoria econmico-administrativa.
As jornadas de trabalho eram desumanas (resultando em inmeras mortes por excesso de
trabalho e fragmentao do ncleo familiar); o clima de competio instaurado tornou a
atmosfera escolar rarefeita demais (e disso ganhou fora o ijime [bullying] e o alarmante ndice
de suicdios infanto-juvenis); as corporaes japonesas sustentavam seu crescimento com ampla
degradao dos recursos naturais, entre outros fatores. O clima geral, claro, era de otimismo
bobo e consumismo desenfreado, mas parte dos estudantes japoneses passou a olhar para esse
Japo quase irreconhecvel, responsvel por exigir demais de todos os cidados, e a se
questionar: O que estamos fazendo? Estamos realmente trilhando um caminho saudvel?
Falamos de um Japo apartado de suas razes religiosas e morais, tendo como nica referncia
o Deus Mercado Livre e a Princesa Economia. Pas maduro at demais, j comeava a
apresentar os primeiros pontos de bolor. Prometeram-lhes a felicidade com o desenvolvimento
econmico. Eles correram atrs e se tornaram mais ricos do que qualquer um poderia supor,
para, enfim, perceber que felicidade no algo assim to fcil de ser encontrado
coletivamente. Pior, toda essa riqueza estava cobrando um preo indignante. Se a economia
era a nica referncia reforada pela sociedade, se eles j tinham alcanado o topo do mundo
nesse sentido, e ainda assim continuavam incomodados, em qual direo correr? Sem dvidas
os ndices sociais do Japo davam inveja a quase todos, mas no pensem que fcil dar
sentido uma vida momentaneamente sem objetivos claros. No caso japons, a crise de
perspectiva ainda mais grave por questes naturais. Eles tm conscincia da destruio de
tudo o que foi erigido suando sangue. O Grande terremoto de Tquio um fato, hoje ele
esperado a qualquer momento.
Expliquei-lhe que o desperdcio era uma grande virtude das sociedades altamente capitalistas. O Japo,
ao adquirir os Phantoms dos Estados Unidos com misturadores nada econmicos, movimentava um volume
maior no comrcio de combustveis, e esse adicional repercutiria na economia global, que
consequentemente alimentaria cada vez mais o capitalismo global. Se todas as pessoas, de uma s vez,
deixassem de desperdiar, ocorreria um colapso geral e a economia global se desestruturaria [...] ele
admitiu que eu poderia estar com a razo. E continuou dizendo que tinha muita dificuldade em entender
essa nova estrutura social capitalista por ser de uma gerao que sofreu muitas privaes materiais na
infncia durante a guerra.
Esse o Japo que serve de cenrio para Dance, Dance, Dance. Jovens apticos e indiferentes
ouvindo Phil Collins e comendo frango frito no KFC; freelancer sem perspectiva de futuro
entregando trabalhos descartveis para sobreviver, funcionrias neurticas, abandono familiar,
entre outros.
As relaes entre a juventude japonesa oitentista e o discurso da ps-modernidade
Deitado na minha cama, odiei o mundo. Odiei mesmo, profunda e intensamente. O mundo estava repleto
de mortes sem graa e ilgicas. Eu era impotente e estava atolado na sujeira desse mundo-co. As pessoas
chegavam pela porta de entrada e partiam pela porta de sada. As que saam jamais retornavam. O que
mais estou para perder? Como voc disse, talvez eu no possa mais ser feliz. Isso no importa, mas essa
situao terrvel demais.
Alm do contexto especfico da realidade japonesa, das inseguranas tpicas da idade e
inerentes da condio humana, Murakami produz uma obra global, bastante antenada com a
situao do mundo quela poca. Voc j deve ter ouvido o termo ps-modernidade.
Entend-lo essencial para sentir a textura que se esconde por trs dos textos pop do japons.
No se preocupe, no ficarei com intelectualismos, mas tentarei faz-los entender essa
atmosfera pessimista e imediatista que varre o mundo desde os anos 80 sob essa tica.
A conscincia ps-moderna o reconhecimento de um fracasso. Qual? A derrocada da
Modernidade, que fracassou nas utopias que nos prometeram. Pessoas com essa conscincia
estariam despertando de um sonho em tons pastis para um pesadelo cinzento; perceberam
que todas as flores so, na verdade, de plstico e que o perfume sinttico. Calma, eu explico
melhor.
A Modernidade o nome dado para algo que se iniciou na Europa por volta de 1500, quando o
homem foi colocado no centro do mundo (antropocentrismo do Renascimento); os rumos do
planeta foram colocados nas mos da racionalidade, ou melhor, da cincia (a partir do cogito
cartesiano); e as religies pouco a pouco ganharam status de superstio barata. Os Estados
nacionais seriam os responsveis por produzir segurana no mundo, na condio de produtor de
justia social e esforos para melhorar a qualidade de vida (esse discurso em tempos de guerras
consecutivas e fome muito atraente). Em concluso, a Modernidade tinha um objetivo futuro,
uma linha de chegada para um lugar onde permanecer, enfim, a promessa de um mundo
melhor.
-Voc gosta do Dalai Lama?
-O que isso?
- o monge mais importante do Tibete.
- Nunca ouvi falar.
O Japo seguiu essa cartilha com afinco a partir do sculo XIX, durante o processo de
ocidentalizao. Justamente na poca em que intelectuais europeus, como Nietzsche e Freud,
esse
projeto
racionalista que alou o
Japo
ao
topo
do
mundo, isso que fez a
Toyota engolir a General
Motors e dominar o
mercado
americano.
Dedicao absoluta ao
trabalho. Mas isso trouxe
segurana no mundo
apenas em partes.
verdade que no havia
mais guerras ou fome. Por
outro lado, as pessoas
foram aceleradas ao ritmo das mquinas que operavam. Horas extras interminveis marcam o
mundo empresarial japons. Tudo precedido por inacabveis horas de estudo para entrar nos
melhores colgios, que determinavam quem ia para as melhores universidades, que por sua vez,
decidiam os poucos aptos a uma vaga numa grande corporao. Estavam todos correndo, mas
no ao local prometido pelo projeto moderno, corriam a esmo. E ao correr para colocar
Walkman nas mos de todos os adolescentes do mundo que podiam pagar por um, os
japoneses esqueceram-se dos seus prprios filhos.
A perspectiva ps-moderna aquela que no acredita mais em noes de progresso, mundo
melhor, linha de chegada. Na verdade, ps-moderno aquele que no consegue acreditar em
nada. Ele v o mundo como um palco em branco. No h aonde chegar, no h direo
correta, qualquer direo vai dar em algum lugar que no melhor do que os outros possveis.
Quando se acredita nisso, fica complicado traar planos para o futuro [No tinha nenhuma
ambio nem esperana], trabalhar por um amanh [fui apenas arrematando trabalhos
mecanicamente], no? Isso fica claro em vrios trechos de Dance, Dance, Dance (eu poderia
citar outros tantos):
Eu estava bem no meio de um espao em branco. Era um branco que preenchia todos os espaos e, por
mais que caminhasse, essa brancura me acompanhava. No chegava a concluso nenhuma. [...] Eu estava
sozinho e com medo. Sentia-me sozinho como se fosse uma criana perdida na floresta.
Enquanto observo a chuva cair, reflito sobre o que sentir-se fazendo parte de algo. Penso tambm no
que ter algum chorando por mim. Tenho a sensao de que tudo isso faz parte de um mundo muito, mas
muito distante.
Durante algum tempo, senti um vazio sem fim. Eu, no final das contas, no ia a lugar algum. Todos que
iam partindo sucessivamente, e somente eu permanecia no estado de incubao.
Estou me perdendo e deixando-me perder. Estou confuso. No estou ligado a lugar algum.
Por onde, afinal, devo comear? No consigo alcanar nada. Estou totalmente perdido.
Como minha ex-mulher dizia, enquanto for capaz, s irei magoar mais e mais pessoas.
Os adolescentes japoneses dos anos 80 confrontados com o distanciamento familiar, com as
cobranas escolares asfixiantes, com a ausncia de vida espiritual, em suma, com um futuro
nada promissor em termos de felicidade foram o hardware perfeito para a instalao desse
software mental na forma de um mal estar cnico. No queriam sair de uma infncia rica e
mimada para a competio carnvora pelas melhores universidades, empresas e, por que no,
parceiros afetivos (homens herbvoros mandam lembrana).
Amarrando esse raciocnio com o livro, Murakami nos mostra o que acontece quando toda uma
gerao, gozando de uma condio scio-econmica privilegiada, se depara com a falta de
perspectivas. Todas as principais doenas sociais do pas (karoshi, hikikomori, ijime, enjo kosai,
otaku) nasceram ou foram intensificadas no auge da acelerao dessa dinmica (anos 80) ou
no estouro da bolha financeira e conseqente recesso econmica (anos 90 e 2000), quando
eles j eram um pas prspero (nos termos da Modernidade). O clima do livro pesado do incio
ao fim, Murakami no parece descartar a possibilidade de uma vida findada em tragdia, mas
convoca o leitor, durante toda a jornada, a se manter de p:
Enquanto a msica estiver tocando, voc deve continuar a danar. Entende o que quero dizer? DANAR,
CONTINUAR DANANDO. No deve pensar no motivo ou no sentido disso, pois eles praticamente no
existem. Se ficar pensando nessas coisas, seu p ficar imvel. Uma vez parado, j no serei mais capaz de
agir. VAI SE ACABAR PARA SEMPRE, ENTENDEU? Da, s lhe restar viver unicamente neste mundo
[da fantasia]. Cada vez mais ser sugado por ele. Por isso, no deve parar de mover os ps. Por mais que
lhe parea uma tolice, no deve ligar. Deve continuar danando, dando passos () Ainda deve haver algo
que no esteja perdido. Use tudo o que puder usar. D o mximo de si. No h o que temer. Voc deve estar
mesmo cansado. Cansado e com medo. Qualquer pessoa passa por esses momentos. Sente que tudo est
errado. Por isso ficam inertes
Da o ttulo Dance, Dance, Dance. Nomeando o livro com o clssico dos Beach Boys, Murakami
testemunha de inmeras pessoas que esto paralisadas pelo medo de agir, ou ento j esto
desesperadamente em queda livre no abismo relembra o projeto de homem desenhado por
Nietzsche: Aquele que cai no abismo danando!
Observao: Parafraseei e usei trechos literais da palestra O Diagnstico de Zygmunt Bauman
para a ps-modernidade: uma agenda para o inverno do filfoso Luiz Felipe Pond, pois achei
muito clara, didtica e conceitualmente coerente.
Comentrios Relevantes
anachan2010 - 21 de agosto de 2012
> uma gerao de pessoas morrendo de trabalhar
> prxima gerao de foda-se essa merda
, faz sentido o ser humano campeo em combater um extremo com o outro.
Me lembra tambm o filme Beleza Americana, quando o pai deles pega o emprego de
atendente no Mc Donalds procurando um trabalho com a menor responsabilidade possvel.
Talvez seja um movimento necessrio para equilibrar a balana. Estando no meio do furaco
dificl dizer. S espero que no percam a capacidade de feitos admirveis como a solidariedade
demonstrada no evento do terremoto ano passado. Que outro lugar do mundo no haveriam
saques e veramos comerciantes distribuindo comida de graa?
(, apesar de tudo eu gosto de ver o melhor do ser humano)
otakismo2 - 21 de agosto de 2012
Como voc citou Beleza Americana, podemos fazer uma analogia das produes japonesas
com o cinema americano em 1999.
Nesse ano, a Amrica produziu, entre outros bons filmes, Beleza Americana, Matrix e Clube da
Luta. O primeiro, a exposio de um fracasso bem mascarado; O segundo, um convite sada
da caverna; O ltimo, a tentativa de desestabilizao de um sistema tomado como podre. Na
mesma dcada que o Japo teve seu Murakami, seu Evangelion, seu Aum Shinrykyo.
O Bauman, que citei no final do texto, olha esse mal estar generalizado com certo otimismo. A
partir da percepo de que algo est muito errado, talvez seremos capazes de desenvolver
uma nova tica, um novo modo de viver, mais humano, menos asfixiante. A tal agenda para o
inverno em que vivemos.
09 de Setembro, 2012
24 de Novembro, 2012
Psy apenas o pico de sucesso de um acontecimento crnico conhecido como Hallyu, a onda
coreana. O termo classifica a rpida popularizao internacional da cultura sul-coreana a partir
dos anos 90, primeiro no continente asitico, depois no Oriente Mdio e norte da frica, e por
fim, ainda timidamente, na Amrica e Europa. S em 2011, a Coreia movimentou US$ 4,2 bilhes
em exportaes de produtos culturais. O governo sul-coreano j investiu quase US$ 1 bilho em
medidas de promoo e proteo da propriedade intelectual na construo de centros de
estudo e divulgao da cultura coreana mundo afora. Internamente, centenas de milhares de
empregos diretos ou indiretos so sustentados por esse mercado.
O pop coreano, filho da globalizao que permitiu a livre circulao de bens, apenas um dos
braos com os quais governo e empresas da pennsula asitica esto internacionalizando sua
economia nacional para enriquecer. No foi coincidncia que tantos brasileiros assistiram ao
Ronaldo danando Gangnam Style em seus televisores LG. Os coreanos tm planos ambiciosos e
metas agressivas. Nesse post, pretendo demonstrar como a onda coreana na esfera cultural
est ganhando o mundo e as projees para o futuro deste movimento to atual, que ainda
no conseguimos olhar em perspectiva e sobre o qual s podemos especular. No existem
frmulas para criar um sucesso pop garantido, mas ele s chega aos que esto preparados para
criar e receber, como muito bem ensinaram os filmes americanos, as msicas britnicas e os
games japoneses no sculo XX. A Coreia do Sul quer entrar neste seleto grupo de exportadores
culturais. Quer saber como? Vem comigo! O texto grande, favorite e leia aos poucos se achar
mais confortvel.
A PRIMEIRA
HALLYU 1.0
ONDA
muito
pequeno.
Qualquer empresrio que
espera ganhar quantias
significativas de dinheiro
na Coreia precisa olhar
para mercados externos. assim com celular Samsung e com CD do Big Bang. Financiar a Hallyu
no foi um luxo, e sim uma necessidade comercial. Como afirma Bernie Cho, lder de um selo de
distribuio musical: Muitos artistas de alto nvel fazem mais dinheiro em uma semana no Japo
do que em um ano inteiro na Coreia. Isso ajuda a explicar por que o pop japons encontra hoje
dificuldades de exportao (seu mercado interno ainda grande o bastante, muitos
empresrios se agarram nesse porto seguro e produzem produtos s para pblico japons a
indstria de animes d tiros de canho no p com essa postura), enquanto o coreano cresce de
modo substancial (o imperativo da exportao obriga os coreanos a considerarem as
demandas dos mercados internacionais saibam, Super Junior foi criado sob medida para
agradar o pblico chins).
A crise no apenas abriu os olhos dos coreanos, mas tambm implodiu a economia dos pases
vizinhos, que, ainda incapazes de produzir cultura de qualidade internamente, tambm no
tinham dinheiro para gastar com o caro pop americano ou japons. O terreno estava
pavimentado para a invaso de Seul e os pioneiros dessa empreitada foram os doramas!
A onda comeou na
China com a exibio de
What is Love em 1997 e
Wish Upon a Star em 1999,
grandes
sucessos
de
audincia. Na cola deles,
grupos musicais coreanos
como H.O.T., NRG, BABY
V.O.X.
e
S.E.S.
conquistaram no s a
China,
mas
tambm
Taiwan, Hong Kong e
Vietn. O prprio termo Hallyu nasceu na mdia chinesa. Algumas verses dizem que o nome
veio de uma coletnea de msicas coreanas lanada no mercado chins no perodo. Outras
dizem que o termo apareceu em 1999 num jornal chins quando o H.O.T. fez uma apresentao
em Beijing. Detalhe: o termo, nessa verso, teria na verdade um tom cnico, numa aluso
lingstica que brinca com o termo Onda fria.
e
governantes
para
transformar a cultura do
pas, nacional e industrial,
em um produto a mais a
ser
ofertado
nos
mercados externos para
incrementar a economia
do pas como um todo.
Isto , o mundo mudou e
os coreanos souberam
surfar na onda gerada
pelo
abalo
ssmico
causado pela queda da
Unio Sovitica. Outro abalo aconteceu nos ltimos anos e mudou o pop coreano de modo
estrutural: a democratizao da internet pelo mundo. Apresento-lhes a Hallyu 2.0.
A SEGUNDA ONDA HALLYU 2.0
Se na primeira onda os pioneiros foram os doramas (apenas seguidos pela msica pop), na
segunda onda a ordem se inverte. O entusiasmo maior est sendo gerado por grupos de msica
pop como KARA, Girls Generation, Big Bang, SHINee, Super Junior, 2NE1, f(x), Wonder Girls, 2PM e
MBLAQ, para citar alguns dos principais; todos agenciados por grupos empresariais como as trs
irms S.M. Entertainment, J.Y.P. Entertainment e Y.G. Entertainment. Alm disso, a Hallyu 2.0
tipificada pela participao da internet e das redes sociais no processo de divulgao,
ferramenta essencial na manuteno e crescimento da onda, principalmente do Kpop. Qual a
importncia da internet?
Primeiro, a internet deu
maior poder de escolha
ao pblico. At um
passado muito recente,
ainda com o predomnio
das mdias tradicionais
(TV,
rdio,
cinema,
revista, jornal), o capital
tinha muito poder na
hora de decidir o que o
pblico iria consumir. No
era
fcil
para
uma
indstria cultural perifrica como a coreana bater de frente com estdios e gravadoras de EUA,
Inglaterra e Japo, no s pela qualidade indiscutvel destes concorrentes, mas tambm pelos
mtodos de sustentao do poder econmico que o capital acumulado deles proporcionava
(jab, controle acionrio dos grupos miditicos e etc.). Alm disso, mdias tradicionais precisam
de produtos culturais que movimentem altos volumes de dinheiro, logo, que sejam consumidos
por um nmero grande de pessoas, deixando pouco ou nenhum espao para os nichos. Na
internet o usurio busca e compartilha de modo legtimo o que lhe agrada, sem pretenses
comerciais. Voc, leitor do ChuNan, consumidor compulsivo de animaes japonesas que ,
deve entender o que estou falando se dependesse da Globo, voc no assistiria animes da
temporada. Nem mesmo ttulos de primeira grandeza como Evangelion ou Hunter x Hunter. Teria
que se contentar com Naruto e olhe l.
O principal jornal coreano, JoongAng Ilbo, publicou um artigo em Janeiro de 2011 analisando um total de
923 vdeos de cantores coreanos das trs maiores agncias de entretenimento que foram postados no
Youtube () De acordo com a anlise, usurios de internet de 229 pases assistiram aos vdeo 793.57
milhes de vezes em 2010. Por continente, o nmero bateu a marca de 566.27 milhes na sia, 123.47
milhes na Amrica do Norte e 55.37 milhes na Europa. Por nao, o Japo vem em primeiro com 113,53
milhes, seguido pela Tailndia com 99.51 milhes e os Estados Unidos com 94.87 milhes. (No Brasil,
pouco mais de 6 milhes, nmero superior ao alemo, mas inferior ao saudita)
A
FORA
COREANO
DO
POP
Os K-doramas oferecem entrelaados temas de famlia, romance, amizade, artes marciais, guerras e
negcios, e so vistos como capazes de lidar com os seguros: eles so menos explcitos comparados aos
americanos, e aderem relacionamentos de um modo mais afetivo e significativo, mais emocional do que
sensual () Um olhar mais atento mostra que diferentes novelas so populares em diferentes pases por
razes diversas. Americanos acham os doramas coreanos relaxantes e alegres; europeus acham os roteiros
descomplicados
e
romnticos. Asiticos, por
sua vez, descobrem estilos
de vidas e tendncias que
pretendem
imitar.
A
represso sutil das emoes
e intensa paixo romntica
sem excesso de sexualidade
ressoa entre os espectadores
do Oriente Mdio.
Os doramas mostraram
um estilo de vida moderno e prspero, alm de vender o povo coreano como sofisticado,
educado e digo de respeito. Em pases como Japo e China, potncias regionais, serviu para
quebrar um pouco os preconceitos e esteretipos. Em pases mais pobres ou com
passado/presente comunista, como o Vietn, venderam um padro de vida prspero e
saudvel, logo, desejvel, aspiracional.
O Kpop, por outro lado, sustentado por uma indstria fonogrfica muito boa em vender
sensaes, algo que combina com o hedonismo contemporneo (ou com a viso ps-moderna
de alguns):
Na Coreia ns usamos msicas e performances muito poderosas. Tudo deve ser perfeito. A msica pop
japonesa no tem movimentos adorveis nem performances poderosas, mas na Coreia voc deve ser o
maior e se voc quer ser adorvel, voc tem que ser muito adorvel. Se quer ser sexy, tem que ser muito
sexy (Joy, do grupo Rania)
As agncias buscam
talentos cedo, e no s
na Coreia, mas na China,
Japo, Tailndia, EUA e
Canad, principalmente.
Artistas coreanos so
espartanamente
selecionados e treinados
para no apenas cantar
e danar, mas aprender
lnguas
e
culturas
estrangeiras, como se expressar, como se portar em pblico, como atuar. Rain, por exemplo,
alm de cantar, tambm atuou em filmes como Speed Racer e Ninja Assassin. O stardom sulcoreano muito seletivo, e com tanto treinamento holstico, dificilmente erra em atender as
demandas do seu pblico.
Mas ser que tudo so flores?
GANGNAM STYLE: PSY UM ICONOCLASTA?
Qualquer ocidental que
acompanhou a traduo
de Gangnam Style bateu
o martelo: essa letra tem
a profundidade de um
pires. Analistas coreanos,
em
contrapartida,
observaram nuances que
qualquer pessoa que
nunca esteve na Coreia
jamais poderia captar.
Com o clipe, Psy estaria
parodiando o estilo de vida de Gangnam, pequeno bairro dos endinheirados de Seul, sede de
empresas e lojas de grife, local criador de tendncias. 7% do PIB nacional concentrado em
poucos km. Mais do que isso, Psy estaria ridicularizando as pessoas que aspiram ao estilo de
Gangnam, isto , que querem fazer parte dele, mas no tem poder financeiro nem status social
para tal. Da no vdeo ele se veria numa hpica de um campo de polo (junto com o golfe, o
esporte smbolo dos ricos), mas depois percebe que est apenas dando voltas num cavalinho de
carrossel. Ou que ele est se bronzeado numa praia, para depois perceber que est bancando
o ridculo num playground. Estaria Psy marretando dolos?
O Kpop uma cria de Gangnam. As principais agncias de entretenimento que engendraram o
estilo esto sediadas l. HyunA, membro do 4minute, a ruivinha do metr que cavalga em cima
do Psy, contratada da Cube Entertainment de Gangnam-gu. Juntos, gravaram uma verso da
msica pelo ponto de vista feminino, e oppa Gangnam style foi substitudo por oppa is just my
style. O estilo juvenil e fashion de Gangnam que ela de fato faz parte e ajuda a propagar. Nessa
nova verso sai do palco o humor bufo e entra a seduo ao tempero asitico, pernas finas de
fora, aegyo no refro e um estilo infantilide de provocar. Sobre a participao dela no clipe
original, Psy relata sem falsa modstia:
Ela super no fazia esse tipo de coisa antes. Ela perguntou: Por qu? Por qu? Por que eu fiz isso?
Estava se perguntando o que isso? Ele fica me pedindo para fazer essa merda idiota. Eu no fao ideia.
Do que voc est falando? Em certo ponto ela percebeu o que estava acontecendo e disse: Ah, Psy, seu
idiota! Isso genial, demais! Foi isso que ela me disse no meio do clipe. E a ela fez certo.
Onde eu quero chegar?
A avacalhao de Psy
pode
no
estar
direcionada apenas de
modo geral ao estilo de
vida
glorificado
pela
regio de Seul, mas ao
prprio
sistema
de
manufatura de dolos do
qual ele faz parte. Park
[seu nome verdadeiro]
uma espcie de ovelha
desgarrada desse sistema; na casa dos 30, gordo, com pouco a oferecer em termos de capital
esttico, j foi detido por porte de maconha, fugiu do servio militar obrigatrio do pas e
testemunhou lbuns seus sendo censurados e banidos na Coreia. 1/5 disso seria mais do que
justificativa para a resciso contratual de uma estrela do stardom coreano. Falemos um pouco
dele.
Preciso e conformidade diferenciam o Kpop. Para a criao dos grupos, as agncias [diferente
do Ocidente, onde msicos so cuidados ou produzidos pelas gravadoras] precisam investir
alguns anos e milhes de dlares em treinamento. Grupos atuais com sete membros inicialmente
tinham 40 ou 50 jovens (alguns muito jovens) que foram pr-selecionados, mas acabaram
excludos um a um, sobrando apenas os mais aptos. A rotina de treinamento normalmente
ultrapassa 12 horas dirias, impedindo contato com famlia e amigos. Relaes amorosas so
proibidas por fora de contrato. Membros do grupo Rania, por exemplo, no podiam ter
telefone celular antes da estreia.
Apesar
da
rotina
sobrecarregada,
as
celebridades
mais
proeminentes costumam
ser
relativamente
respeitadas
por
suas
agncias, no apenas
pela exposio miditica
a qual esto expostas,
mas pela fonte de renda
que representam. Por
outro
lado,
inmeras
agncias menores so acusadas de propor contratos fusticos para jovens iludidos pelo sonho
da fama que ainda nem teriam condies de julgar a validade de clusulas to amarradas
presentes nos contratos que fecham ainda na adolescncia. So pactos com durao superior a
10 anos, com termos invasivos em suas vidas pessoais.
O Strait Times, jornal de Singapura, denunciou que a Alpha Entertainment veta contratualmente
a ingesto de alimentos e gua aps as 19h, bem como probe que seus pupilos saiam sem
superviso. De vez em quando os conflitos atingem at os grupos mais famosos. Han Geng, exSuper Junior de origem chinesa, processou o Grande Arquiteto do Kpop, empresrio Lee, por ser
forado a trabalhar dois anos seguidos sem um nico dia de folga, ter ficado doente por conta
disso, e no ter sido recompensado proporcionalmente de acordo com a lucratividade que
ajudou a gerar tudo baseado num contrato com durao de 13 anos assinado aos 18. O
tribunal sul-coreano deu ganho de causa para o jovem.
De modo curioso, Psy foi
o primeiro coreano a
genuinamente
bombar
nos Estados Unidos, e
conseguiu isso justo com
uma chacota sobre o
estilo
ao
qual
ele
supostamente
est
servindo como porta-voz.
No final do clipe, ele
canta triunfante em seu
trono hip hop estilo to
emulado pelos cantores da Coreia para depois compreender que ele est pagando de
bacana em uma privada. Ainda no comeo, ele dana contra o vento com uma beldade sob
cada brao, mas a sequncia pitoresca. Lixo arremessado na cara deles e as moas
demonstram evidente desconforto com a situao, enquanto um Psy impassvel se deleita com
seu momento de gangsta, totalmente desconectado do que acontece ao seu redor. Ludibriado.
Encantado demais para olhar em volta.
No s uma zombaria com as coreanas que andam de costas para perder peso e perseguem o
padro de beleza do mainstream, ou com aquelas que economizam no almoo para se
sentirem elegantes e superiores bebendo caf no Starbucks com o dinheiro (!) como enumera
Jea Kim, responsvel pelo blog Dear Korea. Talvez o estilingue do Psy mire tambm as pessoas
(os dolos pop juvenis) que ajudam a construir esse arqutipo de glamour que almeja a eterna
juventude, elas prprias vtimas do mito que arquitetam; afinal, os dois lados dessa moeda
dolos e fs, ou se preferir, produtores e consumidores esto dispostos a passar pelo crivo do
bisturi para se adequarem a ele (a Coreia do Sul o pas onde mais se faz, proporcionalmente,
cirurgias plsticas).
Requisitei a imagem do
estilingue
porque
obviamente Psy no usou
nenhuma arma letal. Sua
crtica no tem qualquer
pretenso destrutiva ou
reformista, ao contrrio,
sua inteno foi fazer as
pessoas darem risada
com o clipe, entreter. Est
aproveitando
como
ningum
o
sucesso
proporcionado por essa indstria de dolos. O rolo compressor de Gangnam Style no est
destruindo dolos, ao contrrio, de bom grado est na dianteira abrindo caminho para eles. No
sem um trao de deboche.
HALLYU NA COREIA DO NORTE
A onda coreana hoje consegue banhar at os lugares mais improvveis do mundo, como o
regime ditatorial norte-coreano, talvez o pas no mundo que mais controla o fluxo de
informaes. Doramas entram de forma clandestina, principalmente via China, ajudados pela
corrupo generalizada dentro do pas. Num verdadeiro processo de escambo, onde pessoas
trocam arroz por mdias com novelas gravadas, informao do Sul est penetrando aos poucos
no vizinho do norte. Lideranas de Pyongyang tem motivos suficientes para se preocupar, pois as
novelas servem como uma divulgao de um estilo de vida mais prspero do que aquele
fornecido populao pela dinastia Kim. No pas, ter posse, alugar ou emprestar contedo
visual de origem sul-coreana crime passvel de punies como prestao de servios forados
ou mesmo cadeia. A resposta do Estado para a produo e/ou divulgao massiva desse tipo
de material pode ser mesmo a Execuo em pblico.
A gerao Jangmadang
[pessoas que esto na
faixa dos 20-30 anos] no
parece se importar como
as passadas. Passaram
sua juventude durante a
Marcha da Tribulao
[perodo entre 94 e 98
onde a Coreia do Norte
sofreu com uma crise de
abastecimento
alimentcio, e centenas
de milhares - outros dizem milhes morreram de fome ou por problemas dela decorrentes] e
muitos j no nutrem a mesma simpatia pelo Estado ou pelo Juche [a ideologia oficial do Partido
Comunista criada por Kim Il Sung, que, segundo eles, seria uma evoluo do prprio pensamento
marxista]. Escaldados pela fome de outrora, tendo como prioridade o acesso seguro
alimentao, e conhecendo clandestinamente o estilo de vida dos irmos do sul, essa gerao
j apresenta focos de resistncia passiva ao sistema retrgrado dos Kim. No hesitam em optar
pelo mercado do contrabando para garantir sua subsistncia e alguns luxos. H relatos de jovens
norte-coreanos imitando cortes de cabelo e dana dos doramas do sul. O governo de Seul no
poderia ficar mais feliz.
ANTI-HALLYU?
No Japo, um dos principais mercados para a Hallyu, est acontecendo uma movimentao no
sentido oposto: a anti-Hallyu. Tudo comeou quando o ator Takaoka Sasuke foi demitido pela
sua agncia por criticar no Twitter a predominncia de programas de origem coreana
transmitidos pela Fuji TV. A discusso fomentada pelo caso ganhou tons de rivalidade poltica. No
dia 21 de Agosto, em torno de seis mil japoneses se reuniram na sede da emissora para protestar.
A acusao de que no existe onda coreana alguma no Japo, que no seria nada alm de
uma coqueluche artificial parida pela mdia, que fraudaria nmeros e informaes, interessados
em renovar a imagem da Coreia do Sul no pas. Teorias e evidncias pipocam por boards da
internet como o 2chan, onde investigaram e relataram que a Fuji TV acionista de inmeros
grupos ligados ao Kpop e teria interessa na fabricao do seu sucesso situao que fere a
constituio japonesa, pois estariam camuflando propaganda como mdia jornalstica.
Crticos dessa postura a
condenam
como
fanatismo
nacionalista.
Um modo antiquado de
enxergar o mundo e a
participao do Japo
na era globalizada. Essa
repulsa ao diferente seria
um suicdio para um pas
j em crise que demanda
com urgncia, na viso
deles,
medidas
de
reforma e abertura poltica. Os criticados respondem que nada tm contra coreanos ou contra
a Coreia, mas que no vlido fabricar uma febre que desvaloriza a cultura nacional e desloca
capital para outro pas. No protesto, um depoimento dizia: O Japo est passando por um
perodo difcil, e no h necessidade de assistir a um canal que apoia outros pases.
Independente de quem tenha razo nessa discusso, focos de resistncia na terceira economia
e no segundo maior mercado fonogrfico do mundo no uma boa notcia para os
empresrios coreanos e para a sobrevivncia do seu pop.
CONSIDERAES FINAIS
Muitos fs jovens ao redor do mundo experimentam a onda coreana como uma unificao, um
mecanismo de cura para suas almas feridas, e como uma sada para a auto-realizao. H alguns, no
entanto, que consideram a onda coreana como algo a ser combatido, porque eles a reconhecem como uma
invaso cultural (Park, Chang)
Gostaria de iniciar minhas consideraes finais com uma advertncia necessria. Por favor, no
superestimem a Hallyu. Falemos um pouco tambm a respeito de suas fragilidades. A indstria do
entretenimento coreana conseguiu se infiltrar entre gigantes e, como um todo, movimentar mais
de US$ 4 bilhes nos mercados externos durante o ano passado. Uma quantia notvel, mas
ainda insignificante quando comparada s indstrias nacionais que de fato mandam na
produo cultural do mundo. Em termos de comparao, um nico jogo de videogame
americano Call of Duty: Black Ops II arrecadou US$ 500 milhes em 24 horas. A alegoria de
uma briga entre Davi e Golias nesse momento indevida por sua inadequao, no existe a
menor possibilidade de Davi ameaar Golias, nem mesmo no longo prazo. O mximo que eles
conseguiro incomodar um pouco em certos momentos, e justamente neste ponto reside uma
ameaa para a onda coreana. Enquanto se pequeno, os grandes no se incomodam com
sua existncia. A partir do momento em que os coreanos comearem a morder alguma fatia do
mercado alheio, retaliao e protecionismo por parte das empresas concorrentes podem fechar
as portas para a Coreia em mercados essenciais. E acreditem, o impacto financeiro da Coreia no
Ocidente ainda insignificante, eles so grandes na sia, mas sequer arranham o Oeste. Mesmo
aparecendo na MTV. Mesmo bombando no Youtube.
Protecionismo pode existir no apenas em termos de concorrncia mercadolgica, mas
envolver protecionismo nacional. No Japo j h movimentos de tom nacionalista contrrios
invaso dos produtos coreanos, enquanto na China o Partido Comunista j baixou leis limitando
a transmisso de produes estrangeiras, enquanto estudam meios deles mesmos criarem uma
Dez ou vinte anos atrs, estvamos preocupados com os efeitos sociais das culturas americana e japonesa
no nosso pas. Ns repreendemos os jovens que se satisfaziam com elas e tomamos medidas para proteger
nossa cultura [coreana]. Quando as invases americana e japonesa se converteram em invaso econmica
por meio da venda de produtos culturais, ns nos irritamos e levantamos nossas vozes. Agora que o sapato
est em outro p, ns no pensamos seriamente sobre o que a Onda Coreana significa para as pessoas do
outro lado (Won Yong-jin, crtico cultural)
Uma limitao estrutural do pop coreano sua pouca diversidade e baixa criatividade. A
indstria ainda est muito refm do Kpop e dos doramas, sem nada muito significativo para
combater em outras frentes. Alm disso, praticamente todos os grupos musicais esto criando
sob a mesma frmula de origem americana e os empresrios das agncias admitem que o
Kpop apresenta uma lacuna em inovao; apenas com dana competente, a onda no ir
longe. Enquanto eles apenas emularem invenes e estilos americanos com o acrscimo de
uma alma coreana, eles nunca conquistaro os mercados ocidentais que no enxergam isso
como algo legtimo. Tampouco conseguem reconhecer o que seria um verniz coreano.
Uma ala de crticos
culturais defende que a
Coreia precisa seguir o
exemplo do Japo e
vender melhor a cultura
nacional do pas como
um todo. O Japo se
beneficiou
do
seu
exotismo perante o olhar
ocidental e desde o
sculo XIX espalhou seus
tentculos pelo mundo.
Da apropriao da arte
pictrica nipnica pelos artistas impressionistas europeus at a propagao das artes marciais,
da literatura, do vesturio entre outros tantos exemplos (o anime Ikoku Meiro no Croise se passa
nesse contexto). Cultura pop descartvel por definio. Seria necessrio fazer com que
pessoas de todos os cantos do planeta se apaixonem pela cultura do pas para a indstria no
ficar refm da fugacidade dos seus produtos. Para o futuro da onda, seria preciso que as pessoas
queiram se sentir um pouco coreanas, invejem os coreanos, sonhem em fazer parte e
compartilhar alguns elementos dessa cultura como meninos colombianos fazem com a
americana.
No uma opinio unnime. Maxwell Coll, jornalista residente em Seul, cr justamente no
oposto. O esforo governamental concedido popularizao da cultura coreana, que ajudou
financeira e legalmente o crescimento da Hallyu em seus primrdios, hoje se apresentaria como
seu principal gargalo e ameaa. Os polticos de Seul, no interessados apenas no impacto
econmico, mas sobretudo na imagem e identidade do pas, estariam matando a
espontaneidade do pop produzido na Coreia. Ao se esforar para melhorar a imagem do pas
no exterior e aumentar a autoestima dos cidados, o governo estaria se intrometendo no
mercado e forjando produtos com uma coreanidade artificial. Com uma agenda poltica por
trs, a Hallyu estaria negligenciando as demandas dos fs ou seja, o mercado e
superestimando o aspecto nacional de produtos que fazem sucesso justamente por seu perfil
global. Nas suas palavras: o governo, com suas iniciativas culturais e comentaristas
nacionalistas, esto prejudicando os artistas coreanos e limitando o potencial da Hallyu. Eles
esto fazendo um desservio aos atores, cantores, produtores e diretores.
No s fragilidades e
ameaas esperam os
coreanos no futuro. Um
papel interessante que a
Hallyu j est fazendo, e
impulsionar ainda mais,
a
renovao
da
imagem
interna
e
externa
da
nao
coreana. Historicamente
tratados e vistos como
inferiores por vizinhos e
dominadores, os coreanos esto conseguindo renovar essa identidade na aldeia global apesar
das suas limitaes sociais e geogrficas.
A Hallyu tambm tem potencial para atacar em novas frentes. O cinema coreano hoje um dos
mais respeitados do mundo. Filmes pipoca como Oldboy e Shiri ganharam projeo
internacional, ao passo que na ala cult, Kim Ki-duk faturou o Leo de Ouro no Festival de Veneza
deste ano, entrando de vez para a seleo dos principais diretores da atualidade. Na literatura,
escritores como Shin Kyung-sook e Kim Young-ha j esto sendo editados em mercados
internacionais e podem render frutos num mdio-longo prazo.
Enfim, resta-nos observar os prximos passos da Hallyu para saber se a onda ganhar fora e se
tornar um tsunami a encharcar mercados resistentes, ou se perder vitalidade e findar como
uma marolinha no mar do Japo.
14 de Junho, 2013
japons
em
internacionalizar
sua
cultura nacional. Por fim,
investigar o que a arte
contempornea
do
Japo
produziu
nas
ltimas duas dcadas,
seus principais artistas e
movimentos
(Superflat,
Zero Zero Generation,
ChimPom e etc.), suas
implicaes
e
provocaes
direcionadas ao povo
japons
e
ao
mundo/mercado da arte, bem como descobrir as vozes que no compactuam com esse
universo pop, mas foram abafadas pela onipotncia do discurso Superflat dentro e fora do
Japo enquanto tentam demonstrar que o pas no apenas composto de Hello Kittys. Nas
consideraes finais, o texto passar pelo que podemos esperar da produo artstica japonesa
no futuro, tendo em vista que ela foi profundamente modificada em propsito pelos desastres
naturais e atmico de Fukushima, alm de encarar a desleal concorrncia por ateno e
financiamento com a emergente produo artstica da China (China Mania). Espero poder
levantar questes relevantes durante a leitura deste artigo!
Antes de falar de arte
japonesa, eu preciso falar
um pouco do ambiente
japons. Ah, o texto
grande, leia aos poucos
se julgar mais confortvel.
~COOL JAPAN~
Cool Japan celebrou o
Japo quando no havia
muito o que celebrar. Ao
contrrio.
Polticos
estagnados,
negcios
internacionais
vacilantes,
m relao com o resto da sia, uma crise demogrfica iminente, um monte de jovens trancados em seus
quartos com problemas psicolgicos. Apesar disso, depois do 11 de Setembro nos EUA, houve uma
demanda por imagens de brilhantes torres prateadas com flores e dinossauros felizes [Roppongi Hills], e
no de uma colapsando com fumaa e chamas ao redor [World Trade Center]. (Adrian Favell)
Nenhum pas no mundo apresentou durante o sculo passado crescimento econmico e
progresso material de forma to vertiginosa quanto o Japo. O pas emergiu da 2 Guerra
fisicamente em frangalhos, militarmente ocupado e moralmente arruinado. Quatro dcadas
depois as corporaes japonesas solapavam colossos industriais dos Estados Unidos e Europa
enquanto economistas apostavam na inevitvel superao da economia americana pela
nipnica. Isso no aconteceu, ao contrrio, desde o incio dos anos 90, quando estourou a bolha
imobiliria do pas, o Japo se encontra estagnado, sofrendo h mais de 15 anos com uma
economia deflacionria que perde dia aps dia a relevncia e a competitividade que possua
nas dcadas passadas.
Como afirmou o prprio governo japons em um relatrio oficial: J no podemos mais contar com
A crescente popularidade do contedo da Coreia do Sul est causando um declnio na imagem do Japo
ente os jovens que determinam o que popular em Singapura e em outras naes asiticas. Para reverter
esta tendncia, este projeto vai trabalhar como um consrcio composto principalmente por empresas
japonesas
que
esto
alarmadas com a situao
presente, para garantir
oportunidades de exposio
regular de contedo japons
e para que os membros do
consrcio adquiram ganhos
no exterior (METI)
Adrian Favell classifica o
Cool Japan como um
Neo-Japonisme,
um
renascimento do encanto
ocidental pelo Japo
(em
referncia
ao
O que eles falavam a respeito, enquanto a economia permanecia estagnada e a influncia do Japo no
mundo diminua, era cultura: como ressignificar e remontar a imagem internacional do Japo. E assim eles
colocaram mangs e animes em folhetos oficiais. Videogames e personagens de brinquedo substituram
carros e computadores como os smbolos principais da indstria exportadora japonesa (Adrian favell)
evidente, apenas o lobby poltico de Tquio no seria capaz de criar uma mentalidade
voltada para a arte, a realidade mundana do Japo ps-industrial foi um excelente combustvel
para movimentar esta mquina. A economia degringolou, o Imperador Hiroito morreu (em 1989)
e o perodo Showa terminou levando consigo os tempos ureos do pas. O capital internacional
migrou para outras regies da sia, como a China e a Coreia do Sul, e o sonho japons
terminou. Sem esperanas de encontrar ou construir um futuro melhor para si e para o Japo,
muitos jovens perderam a referncia e passaram a apresentar srios problemas de socializao.
A sociologia japonesa a
partir dos anos 90 criou ou
intensificou o uso de uma
infinidade de termos para
tipific-los,
como
hikikomori
(isolamento
domstico
extremo),
parasaito singuru (adultos
solteiros
que
vivem
eternamente na casa dos
pais), make inu (mulheres
que no se casam), enjo
kosai
(meninas
quase
sempre menores de idade
que
participam
de
SUPERFLAT
O que aparentemente era entendido apenas como entretenimento ou depravao acabou por revelar
espao importante para reflexo e manifestao de ideias. Quando o artista Takashi Murakami lanou seu
manifesto Superflat, em 2001, o mundo passou a compreender as experincias otaku ou o mundo dos nerds
sob um vis politizado. A exposio de suas obras em Nova York (Little Boy: the arts of Japan exploding
subculture, 2005) retomou a Segunda Guerra e as bombas atmicas, identificando os japoneses, desde
ento, como portadores de membros fantasmas que no seriam propriamente braos e pernas amputados,
mas princpios dilacerados. Little Boy era codinome da bomba atmica que explodiu em Hiroshima ().
Desde ento a questo mais complicada passou a ser como olhar para frente sem tentar erradicar a histria
ou como conviver com a noo de sujeito individual, importada do Ocidente, sem perder o sentido da
coletividade Christine Greiner
Superflat [supercompactao/supernivelamento/superachatamento] no apenas um estilo
artstico do criador Murakami, ou o nome de uma exposio em particular, mais do que isso (j
que abarca tambm esses fatores), uma teorizao sobre a produo e o consumo de arte no
mundo globalizado que surgiu com a queda da URSS. Movimento esttico ps-moderno nascido
nas artes plsticas japonesas, parte do pressuposto de que o mundo est bidimensional.
O Superflat, em termos
estticos, uma criao
que faz ponte entre a
arte clssica japonesa (j
que perspectiva e outras
tcnicas
desenvolvidas
na
Europa
medieval
ainda
no
eram
conhecidas) e a cultura
pop do Japo. Dito de
outra forma, ela faz
construes
com
o
imaginrio otaku (animes,
mangs
e
games),
utilizando algumas tcnicas e estticas que consagraram a arte japonesa pr-ocidentalizao
(no exclusivamente, j que os mangs foram imensamente influenciados pelas tcnicas
ocidentais). Suas obras so propositalmente artificiais, sem profundidade aparente. Parecem
ilustraes publicitrias criadas por designers grficos. Atraente e de fcil consumo, a arte
Superflat, nas palavras da curadora Catherine Taft, tem muita fora por dar a impresso de que
oculta algo do espectador. Por trs das suas imagens pop e descartveis, s vezes grosseiras e
de mau gosto, esconde-se algo perturbador e provocativo. Porque realmente tem. Como
defendeu o curador na exposio de Los Angeles, Michael Darling, Murakami ficou famoso por
colocar sentido em produtos comerciais superficiais e vender isso aos adultos por milhes de
dlares.
O mundo do futuro pode ser como o Japo hoje Superflat. Sociedade, costumes, arte, cultura: todos
esto extremamente bidimensionais (T. Murakami)
O Superflat, em termos
conceituais, turvou as
fronteiras entre a alta
arte e a cultura popular,
entre local e global,
Japo
e
EUA,
modernismo
e
psmodernismo, real e virtual,
capitalismo e arte, leste e
oeste, analgico e digital.
Todas
estas
coisas
estariam
niveladas,
supercompactadas
e
indistinguveis no mundo
contemporneo, como um hambrguer cultural. Tudo no mundo est processado, prontamente
disponvel para ser digerido com igual facilidade, mas tambm est achatado e sem
profundidade. Carregam consigo apenas odores daquilo que um dia lhes caracterizavam. Assim
a provocativa arte de Murakami: flat, como a tela do computador que produz arte no mundo
de hoje. Flat, como ficaram as cidades de Hiroshima e Nagasaki aps os ataques nucleares. Isso
fica muito claro quando ele coloca suas esculturas plsticas multicoloridas em exposio no
opulento Palcio de Versailles na Frana, smbolo da realeza e da alta cultura europeia.
Murakami um terico da arte, publicou livros como The Art Entrepreneurship Theory e Art Theory
Battle, e tem muito a dizer sobre o atual estado da sociedade japonesa.
Quando os produtos e
costumes pop saram do
Japo,
tornaram-se
independentes do contexto
em que foram concebidos, e,
na maioria das vezes,
passaram a ser embalados
na
esttica
da
mera
diverso. Murakami far
uma crtica sociedade
japonesa consumista, e ao
mesmo tempo mostrar
como uma nova gerao de
artistas poderia valer-se do
prprio mercado e dos meandros da poltica cultural para construir um novo pensamento, aliando arte e
consumo (Christine Greiner)
Ao crescer junto a outros artistas que foram identificados como representantes do neo-pop,
Murakami, segundo leitura de Noi Sawagiri, parodiou o infantilismo da cultura de consumo
japonesa do ps-guerra. Eles remixavam e faziam sampling (atitude 100% ps-moderna, no?)
usando as referncias da cultura junk com a qual os japoneses preencheram suas vidas pacficas
e dependentes dos EUA. Os americanos criaram o novo Japo com a cultura pop fazendo o
papel do cimento que pavimentava o futuro e amaciava os nativos (outrora ensinados pela
lgica militarista do Imprio Japons). Inundaram a vida dos japoneses com seus enlatados
culturais. Os japoneses gostaram. No s gostaram como aprenderam a fazer o mesmo. Com o
Superflat sendo apresentado no exterior, Murakami devolveu a cria aos criadores. Ele pegou
todo o entulho cultural que despejaram no Japo, reprocessou, prensou tudo at deix-lo flat
como fazem os caminhes de lixo, e enfiou num container destinado aos Estados Unidos. Sua
exposio encheu Nova Iorque com imagens de menininhas pr-pberes perigosamente
seminuas, sugestivos cogumelos (atmicos), flores sorridentes e uma gigantesca esttua de um
jovem ejaculando. Foi a vez dos americanos. Eles adoraram. Gastaram fortunas comprando as
obras e os produtos confeccionados nos estdios do Murakami. E a cobra acabou mordendo o
prprio rabo.
do ps-guerra e a dependncia geral em relao aos EUA teriam ajudado a criar uma
mentalidade mimada, dependente, frgil e pueril no Japo amplamente disseminada pela
cultura pop e agora ironizada pelo Superflat. Os artistas ligados ao movimento no vivenciaram
a guerra ou seus momentos de reconstruo, mas so testemunhas vivas de um processo radical
de ocidentalizao e a conseqente dificuldade de fixar uma identidade numa atmosfera to
fluida.
Renderizar um pas atravs de uma figura bidimensional fofinha tambm proporciona uma forma de
mascarar o cadver ensangentado do cachorro que o Japo Imperialista [referncia ao personagem
Maromi do anime Paranoia Agent]. Experincias com humanos (incluindo vivisseces sem anestesias),
rapto de mulheres para servirem de escravas sexuais, e o infame Massacre de Nanquim; todas essas coisas
escondidas debaixo do olhar tolo da Hello Kitty. O Japo foi tambm um participante extra-oficial na
Guerra do Vietn, Guerra da Coreia e nas Guerras do Iraque. Ainda sim o Japo visto como inocente e
pacfico. (Ben Hamamoto)
Essa ideia poderosa. A
arte criada nos tempos
do
Cool
Japan
frequentemente remete
cultura das garotas.
Seja ao dar espao para
a criao delas prprias,
seja ao pintar a fantasia
do que a cultura
infanto-feminina
que
brotava das cabeas dos
homens otaku envolvidos
com
o
Superflat
(obcecados
pela
juventude e frescor delas). Cores chapadas, meninas virginais e vulnerveis, mas ao mesmo
tempo um pouco ressentidas e violentas um quadro freqente na arte contempornea
japonesa. Murakami reuniu algumas dessas meninas (Aya Takano, Chiho Aoshima e Mahomi
Kunikata) sob a sua bandeira Superflat na exposio Tokyo Girls Bravo, que foi levada da capital
japonesa costa oeste americana. No catlogo, artes pueris, fotos das artistas remetendo
mocidade (ainda que algumas delas j beirassem os 30 anos), mas com descries textuais
duras: relatos de angstias existenciais, perverses sexuais e violncia. Kunikata levou isso alm e
foi mais direta na explorao destes elementos. Essas meninas eram, sob qualquer perspectiva
crtica, amadoras. Murakami as empacotou como o melhor da arte contempornea japonesa.
O mundo comprou a ideia.
Em sua escola de arte
(GEISAI), Murakami trouxe
para baixo de sua tutela
esses jovens insatisfeitos
com o intuito de destruir o
sistema de arte vigente
no Japo. Em seus
estdios KAIKAI KIKI, em
Tquio e no Brooklyn
(EUA), a produo de arte
e
dos
artigos
colecionveis
com
a
marca MURAKAMI, como
chaveiros e camisetas,
funciona em regime fordista. Seu papel na histria da arte mundial ficar marcado pela forma
como ele trabalhou o branding (a gesto da marca pessoal) da sua produo criativa, unindo
conceito artstico e sanha comercial. Foi um dos precursores, no mundo, da arte na era da
internet 2.0 (banda larga, 3G, blogging, wiki, redes sociais, fruns de discusso, scanner pessoal e
proliferao dos softwares de edio de imagens). Sua arte funciona bem, talvez at melhor,
fora das galerias. Pode ser consumida e distribuda na tela do PC. Vendida em chaveiros,
cadernos e bolsas mesmo as Louis Vuitton (afinal, o mundo est flat). A reprodutibilidade
tcnica elevada potncia mxima.
Localmente,
ser
lembrado
pela
sua
tentativa de desconstruir
o sistema de produo e
comercializao de arte
no Japo. L, a arte
clssica ainda muito
forte, conta com mode-obra
qualificada,
amplo
financiamento,
escolas conceituadas e
orientao
terica
voltada
ao
domnio
absoluto
da
tcnica.
Murakami, um conceitualista, d espao e notoriedade para a inovao mesmo que nas mos
de amadores. Ser reconhecido tambm por tecer uma crtica esttica ao contexto social que
gerou essa superficialidade no Japo, e ao mesmo tempo como um oportunista que se
aproveita dessa falta de fronteiras. Alguns crticos mais temerosos se questionam se Murakami
est nos guiando ao futuro da arte ou terminando de destru-la.
Em parte porque Murakami sim um conceitualista (que pode talvez estar guiando muita gente
ao caminho errado), mas muitos dos artistas contidos no guarda-chuva do seu Superflat no so!
Na verdade alguns so otaku que vivem de reproduzir seus fetiches estticos grotescos, e a ideia
do Takashi pode acabar se diluindo lado a lado com outras obras que esto l contribuindo
apenas com o choque pelo choque, no com o choque via distoro do real para escancarar
o ridculo de algo em termos crticos. Exemplifico:
Maio
de
2008
foi
certamente um momento
histrico para a arte
japonesa. Milhares de anos
de histria da arte nipnica,
com a sua sensibilidade
esttica
refinada
e
requintada; bem como o
desenvolvimento
urbano
dramtico do ps-guerra e
mudanas culturais sem
paralelos em qualquer lugar
durante o sculo XX, de
alguma forma, se concentraram nisto: uma estatueta plstica de oito ps de altura se masturbando na frente
de uma multido de magnatas da classe executiva e estrelas das passarelas, a aplaudindo, no corao de
Nova Iorque (Adrian Favell)
My Lonesome Cowboy vendido para um colecionador europeu por US$ 15 milhes (no
postarei aqui sem censura) parodia, na leitura de Sharp, a noo de autonomia e da
expresso subjetiva da Modernidade Ocidental, claramente expressa em artistas como Jackson
Pollock. A esttua era apresentada a frente de uma tela chamada Milk, onde o estilo splash de
Pollock emulado (Expressionismo Abstrato), mas os traos caticos so feitos referenciando o
smen da esttua. A obra tambm faz escrnio com os otaku (acusados de praticar o ato com
muita freqncia), faz referncias ao ukiyo-e de Katsushika Hokusai e aos animes (dinamismo
esttico), alm de brincar com os clichs do pop japons (cabelo estilo Goku, o jato simulando a
energia emanada por um personagem do gnero shonen, a confiana do protagonista etc).
YOSHITOMO NARA
Se h no Japo algum
artista que compartilha com
Murakami o mesmo faro
comercial, ele se chama
Yoshitomo Nara. Com uma
distino.
Diferente
de
Murakami,
que
alcana
cifras inditas para um
japons,
mas
cujo
faturamento flutua muito de
acordo
com
as
especulaes no mundo da
arte e as crises econmicas, Nara obteve um slido reconhecimento financeiro com a chegada
de sua maturidade artstica. Suas produes esto ficando progressivamente mais caras, de
forma consistente, sem flutuaes. Antenado, produz o que sabe vender, sobretudo nos
mercados asiticos.
Iniciou
sua
carreira
artstica na Alemanha,
mas alcanou sucesso
nos EUA, Japo e Coreia
do Sul (onde um
fenmeno e constante
vtima
de
pirataria).
Ganhou
notoriedade
primeiro com um livro
ilustrado, In the Deepest
Forest, mas se tornou um
dos grandes com suas
pinturas de crianas (olha
elas aqui de novo).
Geralmente pequenas, indefesas, por vezes com aspecto tristonho. Em alguns quadros, elas
esto armadas ou com feies de raiva e medo. Sua obra costuma ser interpretada como o
registro do sentimento de desesperana e frustrao que os jovens japoneses degustam,
isolados, numa sociedade hiper-conectada pela tecnologia.
Ele desconversa. Diz que
as crianas so apenas
auto-retratos
(de
um
homem que j passou
dos 50 anos). Brinca que
as pessoas entendem
mais da arte dele do que
ele prprio. Nisso difere
muito de Murakami, no
um conceitualista, no
pretende reformar nada,
apenas quer viver de sua
arte. De todo modo, a
esttica rgida de uma
eterna adolescncia, que ele continua pintando por incontveis anos, foi um prato cheio para
os pblicos sul-coreano e japons. Geralmente associado ao movimento Superflat, Nara foi
tambm um dos principais nomes do Micropop, do qual se desvinculou posteriormente.
MARIKO MORI
Mariko Mori seguiu um caminho muito diferente daquele galgado por Murakami e Nara, alis,
por quase todos os aspirantes ao mundo da arte, com suas intrnsecas dificuldades financeiras.
Ela pertence a uma das famlias mais ricas do Japo. Estudou moda em Tquio (Bunka Fashion
College de Shinjuku) e arte em Londres e Nova Iorque. Sua posio social lhe garantiu contatos
privilegiados e condies materiais raras para um iniciante.
Obteve sucesso ainda nos anos 90 com seus trabalhos fotogrficos, nos quais atuou como
modelo. Em Love Hotel (1994, quando o Japo comeava a discutir sobre o enjo kosai) ela se
metamorfoseou em uma ciborgue Vestida de colegial numa cama de motel. No mesmo ano
se fotografou como uma idol em Birth of a Star. Na poca sua obra discutia o papel da mulher
na modernidade das metrpoles japonesas.
Sua arte uma sntese de opostos: realidade e fantasia, seriedade e humor, homem e mquina, tecnologia
e natureza, cincia e religio. Assim como o Xintosmo e o Budismo coexistem no Japo, essas
bipolaridades, como uma sntese entre Oriente e Ocidente, tambm se manifestam nas obras de Mariko
Mori (Kunsthaus Bregenz, galeria austraca)
Na
sequncia
sua
preocupao
terica
abraa
o
conceito
budista de conexo entre
os elementos do universo,
trabalhando o contraste
entre
a
investigao
lgica, tpica do cenrio
japons atual, com a
espiritualidade
to
esquecida em nossos
tempos ou, nas palavras
de
Gwen
Kuo
a
justaposio
de
modernidade tecnolgica com mitologia tradicional. Essa ideia permeou obras como Burning
Desire (1996-98), Dream Temple (1997) e Kumano (1998). Dream Temple, para comentar uma
obra, um templo multimiditico de aspecto high-tech, onde os visitantes aproveitam sensaes
audiovisuais muito elogiadas.
artstico de Mori, bem como o faro comercial de Murakami e Nara, foi o que lhes possibilitou
renome internacional, defende Favell. Conforme a arte extrapolou a tela para abraar formas
arquitetnicas e digitais, envolvendo toda uma variedade de profissionais, impossvel para um
artista se tornar proeminente sem apoio financeiro e organizao logstica (Kaikai Kiki funciona,
literalmente, como uma empresa). No a toa so os nicos trs japoneses capazes de ainda
competir com artistas chineses, americanos e ingleses.
cultura. No querem retornar ao sucesso do passado, pois ele continha falhas inerentes, nem
querem dar de ombros, pois um futuro os aguarda. Sintonizados com os novos tempos, so
artistas que querem construir algo novo nos escombros daquilo que ficou para trs. Com tal
misso, usam e abusam de materiais e ideias ligadas ao conceito de sustentabilidade. Aps o
desespero do No Future propagado por vozes como Superflat e Aum Shinrikyo, eles querem
plantar rvores no hambrguer do Murakami e lutar para viver suas vidas no Post-No Future.
No Japo no h uma tradio de arte contempornea, isso no faz parte do nosso mundo artstico. As
grandes galerias s se interessam pela arte tradicional japonesa e o sistema l tambm diferente. S os
artistas consagrados conseguem exibir, pois as galerias tm que ser alugadas e funcionam como
um showroom (Takahiro Ueda)
Medida semelhante foi
tomada em Berlim com
The Echo Embora eu
ainda esteja vivo. A
proposta a mesma:
declarar a multiplicidade
de vises, posies e
estilos da arte japonesa e
internacionaliz-la.
Mentalidade
esperada
de
uma
gerao
globalizada (10 dos 17
artistas
dessa
mostra
nasceram no Japo e
moram na Alemanha). Como afirma Michiko Ogura, um dos organizadores: Os artistas so
jovens, originais, versteis e da mesma gerao. Queremos mostrar que temos orgulho de sermos
japoneses, mas somos pessoas do mundo.
Eu queria que fosse uma fuso de trs imagens: a fofura da cultura pop japonesa do ps-guerra,
simbolizada por personagens como Hello Kitty; um pnis ereto; e a capacidade de destruio em massa da
bomba atmica. Eu pensei que essa combinao iria simbolizar o infantilismo distorcido que caracteriza o
Japo contemporneo. (Makoto Aida, sobre Mokomoko)
Agora que o discurso Superflat perdeu vigor e a poeira comeou a cair, alguns curadores esto
revisitando a histria da arte para devolver ao Makoto o lugar que dele por direito, finalmente
reconhecendo sua importncia para o perodo. Mais do que reescrever os livros de histria, existe
uma preocupao em apontar novos caminhos, e nessa observao descobriram uma prolfera
ninhada de novos artistas diretamente ligados ao Makoto Aida. Entre eles, destaca-se o grupo
ChimPom.
ChimPom, nome derivado de chimpo (uma forma de dizer pnis em japons), um grupo
artstico sem treinamento formal em artes, composto por cinco homens e uma garota na faixa
dos 20-30 anos de idade, que se comportam quase como uma banda de J-rock (Ellie, Ryuta
Ushiro, Yasutaka Hayashi, Masataka Okada, Toshinori Mizuno e Motomu Inaoka). A tnica do
grupo se d em intervenes urbanas provocativas, irnicas e cmicas. Suas interferncias so
gravadas em vdeo enquanto fazem troa com o absurdo da vida contempornea,
principalmente a toquiota. Vale a pena descrever algumas das divertidas aes de guerrilha
artstica do grupo.
Em Super Rat (2005) os
jovens caaram alguns
ratos ariscos e resistentes
ao veneno desenvolvido
pelos
humanos
que
povoavam uma regio
central de Tquio. Eles
mataram as ratazanas,
submeteram os corpos ao
processo de taxidermia e
os pintaram de Pikachu.
O Pokmon kawaii, mas
ainda um rato, alerta o
ChimPom. Esto ironizando as meninas que freqentam o Center Gai vestidas de Pikachu, e por
tabela toda a moda urbana japonesa.
Black of Death (2007) tinha um alvo mais geral. Nesta interveno os artistas saram s ruas antes
da coleta de lixo, com megafones para amplificar o som que os corvos (abundantes no Japo)
usam para se reunir em bandos. Fizeram isso em locais como o Shibuya 109 (famoso local de
compras), o Parlamento e a Torre de Tquio. A ideia era fotografar uma revoada de corvos
circulando logo acima de construes simblicas do Japo. A mensagem? Excesso de riqueza
tambm atrai corvos que chafurdam os lixos em busca dos restos.
Se esses dois exemplos parecem mais uma brincadeira adolescente, com Pika (2008) o
ChimPom revolveu a memria histrica dos habitantes de Hiroshima. Com um avio, eles
picharam no cu (Pika!, flash em japons), em cima do Memorial da Paz de Hiroshima,
uma das poucas construes que permaneceram de p aps a exploso da Little Boy. Fizeram
isso sem permisso ou consentimento dos habitantes de Hiroshima que se revoltaram, sobretudo
os hibakusha, aqueles que sobreviveram bomba e classificaram a ao como desrespeitosa e
insensvel. Curiosamente, Hiroshima recebeu muito bem os fogos de artifcio do chins Cai Guo
Qiang, cujo Black Fireworks (2008) simulou, ao lado do Memorial, primeiro um cogumelo atmico;
Depois, ao se dissipar, deu a impresso da chuva negra, lembrando o p dgua radiativo que
caiu horas depois da exploso em 1945. Voc pode assistir a impactante queima de fogos no
youtube.
Aps as catstrofes de Fukushima, o grupo se voltou para a problemtica nuclear caseira, a
discusso sobre a fonte energtica do pas e a vida daqueles diretamente afetados pela
radiao em 2011: No h como ns continuarmos a viver como antes. Ns devemos trabalhar
para fornecer oportunidades de reflexo sobre o que aconteceu, afirmou Ellie. Criaram novas
intervenes para falar do assunto, como Real Times, mas tambm ressignificaram obras antigas.
Ao reeditar Super Rat em 2011, o ChimPom fotografou os ratos em Shibuya. Ratos e humanos
convivem em harmonia na cidade ou tolerncia, por falta de opo. Do mesmo modo que os
cidados
japoneses
so
obrigados a coexistir em casa
com usinas nucleares mal
administradas e com alimentos
contaminados pela radiao.
O crtico Yoshitaka Mouri, em
contato com as intervenes
da cria do Makoto Aida, se
questiona a respeito do papel
da arte no mundo atual,
quando
os
artistas
mais
parecem dolos pop praticando
um
J-Jackass
de
vapor
politizado e provocao vazia.
A AMEAA DO CONTINENTE:
CHINA MANIA
O Japo entrou no sculo XX
crente que seria o curador e
porta voz da arte asitica ao
mundo. Hoje percebe que a
arte chinesa o deixou na sarjeta
do mercado internacional. A
China atualmente o que o
Japo foi nos anos 60, o mundo
olha para l com a curiosidade
de
conhecer
uma
nova
alternativa de modernidade
com tempero asitico. Se Neuromancer fosse escrito hoje, Gibson no situaria seu cyberpunk nas
ruas marginais japonesas, mas sim nas vielas de Pequim ou Xangai. Os olhares que antes se
deslocavam para a China com desdm ou mesmo nojo hoje j contm traos de curiosidade e
mesmo temor. At onde o Drago recm-desperto capaz de chegar?
Quando falamos em arte, os criativos chineses recebem muito mais financiamento pblico do
que os japoneses, principalmente quando falamos de arte contempornea. A favorvel
condio econmica do pas permitiu o surgimento de empresrios milionrios que patrocinam
artistas locais como legtimos mecenas, enquanto os ricos japoneses apertam os cintos para no
perder ainda mais ienes para as naes emergentes da sia. A numerosa classe mdia chinesa
(os novos ricos) e o recrudescimento do interesse ocidental pelo pas criaram uma verdadeira
bolha de especulao no mercado da arte chins e onde tem dinheiro, tem museu
interessado. Claro, sem ignorar o perodo rduo e recente do Maosmo e o tema do pscomunismo
que
com
freqncia alimentam a
imaginao dos criadores
chineses (ao contrrio do
pacificado Japo que se
abriu tolice pop em
tempos de paz extrema).
Tudo isso, evidente,
sustentado
por
uma
tradio milenar herdada
do Imprio Chins que
confere
consistncia
artstica s obras atuais.
No podemos esquecer
tambm
que
o
contrabando ilegal de obras chinesas que foram censuradas pelo Partido tambm d mais
dinmica ao comrcio de quadros.
Ufa! Motivos e tanto para o Japo temer a concorrncia chinesa. Alis, no h o que temer, j
aconteceu, o Japo ficou para trs. A arte chinesa hoje mais criativa, fresca e dinmica que a
nipnica. Em termos comerciais, as obras dos chineses movimentam quantias muito maiores de
dinheiro comparadas aos japoneses; mesmo Murakami virou caf pequeno.
Numa diviso simplista, os
chineses
podem
ser
separados entre aqueles
que so apoiados pelo
governo, seja por fazerem
arte despolitizada ou a
favor
do
regime,
e
aqueles que usam a arte
para atacar as lideranas
polticas
da
China,
principalmente em temas
como
a
falta
de
liberdade de expresso e
a tortura. Caio Guo
Qiang (do Black Fireworks citado acima) o principal nome do grupo apoiado por Pequim, ele
no entende a arte como ferramenta poltica e sempre se cala quando questionado sobre
temas espinhosos da realidade chinesa. Zou Cao, por outro lado, compra briga quando associa
o Maosmo ao leninismo em East is Red quadro onde o rosto de Mao Ts-Tung aparece como
digitais sobre a bandeira da Unio Sovitica.
O artista mais miditico da China sem dvidas Ai Weiwei. Crtico ferrenho do regime comunista,
ele cumpre priso domiciliar desde 2012 por suposta fraude fiscal (e tambm por isso tem muita
visibilidade no ocidente, arrematando o 3 posto entre os mais influentes da arte, segundo a
revista Art Review). No clipe Dumbass ele retrata ao som de heavy metal o perodo em que ficou
encarcerado. Brincalho, em 2012 entrou na onda viral de Gangnam Style e gravou sua verso:
em certo ponto no passinho do cavalo ele no segura rdeas imaginrias, e sim algemas. Voc
pode ver o vdeo no Youtube.
Remembering (2008)
sua obra mais visceral. Em
exposio na Alemanha,
Weiwei empilhou 9 mil
mochilas escolares num
paredo. Usando cores
diferentes,
a
muralha
virou um grande painel
onde se podia ler em
chins Ela viveu feliz
neste mundo por sete
anos. Frase de uma me
que perdeu a filha no
terremoto de Sichuan,
responsvel por matar mais de 80 mil pessoas. Weiwei avana contra os oficiais corruptos do
Partido que desviaram dinheiro das obras e construram escolas com fundaes fracas,
incapazes de suportam o abalo ssmico (diferente do Japo, onde as escolas eram os prdios
mais seguros para se abrigar durante o terremoto/tsunami de 2011). A pilha de mochilas uma
homenagem aos milhares de estudantes soterrados nas escolas, e uma lembrana macabra das
cenas do terremoto, onde mochilas se misturaram aos escombros e corpos enquanto os
bombeiros lutavam para resgatar os sobreviventes.
O Japo deixou de ser interessante quando se tornou menos Cool e deixou de movimentar
dinheiro no mercado da arte. Favell conclui que isso uma perda lamentvel, pois o mundo
desenvolvido tem mais a aprender com um pas que vive uma realidade mais prxima do
decadente welfare state europeu do que com a locomotiva mandarim.
CONSIDERAES FINAIS
O Cool Japan foi soterrado pelo terremoto e contaminado pela radiao de Fukushima. Como
conseqncia o Superflat foi afogado pelas guas do tsunami e virou histria, no h mais
espao para suas ideias e estticas. O projeto de se autodenominar legal do governo japons
est fracassando como o Cool Britannia, que j virou motivo de piada na Inglaterra. A viso do
Japo perante o mundo se alterou profundamente em 11 de Maro de 2011. O impacto do
terremoto, tsunami e acidente nuclear fez o mundo olhar com mais ateno para um pas que
patina na deflao h quase duas dcadas e no mais visto como vanguarda do mundo
tecnolgico, da modernidade ou do Sculo Asitico, como alguns definem o atual.
O mundo descobriu que o Japo est com a economia e com as lideranas governamentais
estagnadas no paroquialismo poltico, que a populao envelhece rapidamente e no se
renova, que os ndices de
suicdio so alarmantes,
que a presso escolar
ainda insustentvel, e
que o pas como um todo
est sendo derrotado, em
vrios
setores,
pelas
sociedades chinesa e
coreana. O interesse pelo
Japo perdeu fora, e o
Cool Japan d pinta de
que ser esquecido e
jogado na lixeira junto
com a Dcada Perdida
que o pariu.
O Japo encontra dificuldades de transformar sua cultura pop em Soft Power e, mais ainda,
numa poltica industrial capaz de substituir a manufatura de bens de consumo que serviu de
locomotiva no ps-guerra. O atual governo do Shinzo Abe j percebeu isso e est fazendo
esforos pela revitalizao da manufatura japonesa. Novamente reconhecer que a vantagem
competitiva do Japo a excelncia tcnica (ateno aos detalhes). Alguns destes projetos
voc pode conhecer no site do governo Made in New Japan.
Hoje, tenho o prazer de fazer um anncio: As pessoas que sofreram tremendamente no perderam a
esperana. Em Watari, os produtores de morango se recuperaram. Eu comi o produto deles, aqueles
morangos grandes e vermelhos. Eles estavam deliciosos. Na verdade, at mais saborosos, j que a fruta
agora cresce com uma nova tecnologia de controle de temperatura, uma tecnologia de ponta. Este o novo
Japo: O resultado da determinao do povo somado ao conhecimento avanado. Um pas que enfrentou
um desafio inimaginvel e renasceu. A nao, uma vez auxiliada por sua boa vontade, est agora beira de
um novo futuro (Shinzo Abe, Primeiro Ministro do Japo)
verdade que mangs so lidos no mundo inteiro e eventos otaku acontecem por a, mas o pas
est se mostrando incapaz de rentabilizar seriamente isso (d lucro, mas no substitui nem serve
como complemento). A esttica japonesa se desvinculou do pas. O clich da dialtica
tradio-modernidade j no seduz como antes. O mundo se cansou de olhos grandes,
uniformes de colegial, meninas ingnuas e tons pastel. No h mais espao para a
Akihabarizao das galerias de Arte.
Tquio novamente est saindo da rota global de circulao da arte. Porm, os artistas (no
necessariamente apenas os jovens) esto percebendo seu papel na criao de novas diretrizes
que norteiem o futuro do Japo ps-crise e ps-desastre, o tal Post-no future. Este o trabalho
de gente como Tabaimo, Kumi Machida e de curadores como David Elliott (e seu projeto Bye Bye
Kitty!!!). Alguns artistas esto abandonando Tquio e as instituies consagradas da produo
artstica para se instalar em escolas abandonadas do interior. Outros esto visitando as zonas
afetadas pela radiao para se inspirar e inspirar as pessoas que ainda sofrem com o desastre.
Enfim, muita gente no mundo da arte, dos negcios e da poltica est lutando por um novo
Japo. E esse novo Japo no se pretende um hambrguer de pelcia, sarin e menininhas
prensados, como pregam
os
apocalpticos
do
Superflat e da seita Aum
Shinrikyo, e sim um pas
mais plural, dinmico,
otimista e integrado com
a
comunidade
internacional.
Fontes:
Before and after Superflat A short history of Japanese Contemporary Art 1990-2011 (Adrian Favell)
SUPERFLAT WORLDS: A Topography of Takashi Murakami and the Cultures of Superflat Art (K Sharp)
Os corpos do J-pop (Christine Greiner)
Taboos in Japanese postwar art: mutually assured decorum (Ashley Rawlings)
Entertainment Re-oriented: Atomic Pop Pt. II: Hello Kitty and the Rape of Nanking (Ben Hamamoto)
Superflat: A Reao do Ps-Modernismo Japons ao Boom Otaku (Alexandre Soares)
After the Gold Rush: Japans new post-bubble art and why it matters (Adrian Favell)
Bye Bye Little Boy (Adrian Favell)
Bye Bye Kitty: The Dark Side of Art in Japan (Lucy Birmingham)
Cool is not enough (Christopher Graves)
Escape from Galapagos (Waichi Sekiguchi)
Cool Japan Strategy (Modified version of the Interim Report submitted to the Cool Japan Advisory Council)
(METI/2012)
Cool Japan Strategy: Singapore Program (METI)
Generation Superflat: Fashion Fusions and Disappearing Divisions in the 21st Century (Cindy Lisica)
Micropop, and what it says about Japan (iMomus)
Ai Weiweis Remembering and the Politics of Dissent (Khan Academy)
Exposio em Berlim desmistifica a jovem arte contempornea japonesa (Marco Sanchez)
Nihilist Moralists for a Traumatized Japan: Chim Poms Real Times (Alan Gleason)
Mariko Mori: Digital Deity of Technology and Spirituality (Gwen Anes Kuo)
Mariko Mori: Dream Temple (autor desconhecido)
http://chimpom.jp/index.html (site oficial do ChimPom)
http://english.kaikaikiki.co.jp/ (site oficial do Superflat)
01 de Agosto, 2013
Rashomon
(
,1950)
Ouvi
dizer
que
o
demnio vive aqui em
Rashomon, fugindo com
medo da ferocidade do
homem
Rashomon,
de
Akira
Kurosawa, um ttulo
fundamental por dois
motivos. Apesar de ter
sido produzido h mais de
60 anos, continua atual (e genial) em argumento e esttica. Alm disso, foi o filme que abriu as
portas do mundo ao cinema japons. Foi o primeiro ttulo do pas a faturar um prmio
internacional de prestgio, o Leo de Ouro em Veneza, menos de uma dcada aps o trmino
da Segunda Guerra, perodo no qual os japoneses ainda eram odiados por muitos e o Japo
como um todo era visto sob um vu de desconfiana.
Baseado em dois contos de Ryunosuke Akutagawa, um dos principais nomes da literatura
japonesa moderna, Rashomon mostra a histria de um crime. No Japo do sc. XII, o bandido
Tajomaru violenta uma mulher e assassina o marido dela. A ocorrncia contada por quatro
pessoas diferentes: o criminoso, a viva, o marido assassinado (por intermdio de um xam) e um
lenhador que observava a cena de longe, no papel de testemunha no envolvida.
- Se os homens no puderem confiar nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o inferno.
Certo. O mundo uma espcie de inferno.
No! No quero acreditar nisso!
Ningum vai ouvir voc, no importa o quanto voc berre. Pense: em qual dessas verses da histria
voc acredita?
Nenhuma delas faz sentido.
No se preocupe com isso. Os homens no fazem sentido.
Hana-Bi
,
(Fogos de artifcio,
1997)
Oscilante
entre
a
impiedosa hiperviolncia
kitaniana e as nuanas
mais delicadas do amor e
da
amizade
Maria
Roberta Novielli
Kurosawa abriu os olhos
do Ocidente para o
cinema japons com
Rashomon, mas levou 46
anos para outro nipnico conquistar a mesma premiao na Itlia. O mrito cabe a Takeshi
beat Kitano, que em 1997 foi reconhecido por Hana-Bi. O termo em japons significa fogos de
artifcio, mas formado pelos ideogramas de flor e fogo, metforas escolhidas pelo comediante
para falar de vida e morte.
Kitano conhecido no Japo como comediante de televiso e usualmente trabalha com os
dois ps no humor negro. No cinema, as coisas so diferentes. Hana-Bi pendula entre a ternura
extrema e a violncia exacerbada. Na histria, Nishi um detetive da Polcia que perde o
horizonte da vida quando testemunha a desolao de muitas pessoas que lhe so caras. Sua
esposa descobre ter uma doena terminal. Seu amigo fica paraltico aps uma emboscada da
mfia e abandonado pela famlia, sendo drenado pela solido. Fatigado, Nishi radicaliza sua
vida e no medir esforos, mesmo ao custo de inmeros crimes, em nome da vingana.
Intercalando com momento de intenso carinho com sua esposa.
No se preocupe. Voc muito amvel. Depois de tudo, meu marido morreu cumprindo o seu dever. Por
causa da recesso, muito difcil conseguir um bom trabalho, mas estou trabalhando em uma
lanchonete. O mais difcil quando meu filho me diz que sente saudades do papai.
Hana-Bi uma repaginao pop de elementos dos filmes de Yakuza, e pode tranquilamente
agradar uma audincia que aprecia a violncia de Quentin Tarantino (Kill Bill, Bastardos Inglrios,
Pulp Fiction). Mais do que isso, acredito que pode ser uma boa porta de entrada para o gnero
dos filmes de mfia japonesa (Yakuza Eiga), como Sangue de Vingana (Meiji Kyokyakuden
sandaime shumei, 1965) e Luta Sem Cdigo de Honra (Jingi Naki Tatakai, 1973). Com o diferencial
de ter tambm uma sensibilidade apurada e no ficar restrito a um festival de sangue e tiroteios.
O silncio em Kitano, que pouco fala nesse filme, muitas vezes diz mais do que a verborragia
tarantinesca.
Mais de quatro dcadas separaram o Leo de Ouro de Kurosawa e Kitano, mas isso no significa
que o Japo no produziu nada de estrondoso nesse intervalo. Ao contrrio. japons um dos
filmes mais debatidos, talvez o mais polmico da dcada de 70, conhecido no Brasil como
Imprio dos Sentidos (ou Tourada do amor, numa traduo literal). Tem o mrito de ser
considerado, sem maiores contestaes, o melhor filme ertico de todos os tempos. Na
narrativa, baseada em fatos reais, vemos o amor obsessivo desperto pelo patro Kichi na
empregada e ex-prostituta Sada Abe. A relao, que a princpio era apenas uma
inconsequente diverso afetiva, logo evolui numa escalada de prticas sadomasoquistas que
culminam com a morte do homem por estrangulamento. Pessoas to profundamente
apaixonadas que terminam consumidas pelo sentimento, um conceito que os franceses
chamam de lmour fou.
A pelcula tem uma explorao subversiva que vai muito alm da mera pornografia. Na cena
mais clssica, tropas do Exrcito Imperial marcham rumo guerra, apoiadas pela populao,
enquanto o amante ruma no sentido oposto em direo amante, numa aluso queles que
no se integram na sociedade e no se comportam segundo os valores vigentes. A prpria
relao do casal virada de cabea para baixo; ele, o patro que a conquistou com sua
posio social, sumariamente dominado pelos anseios da amante, numa sociedade com
valores abertamente masculinos como a japonesa. Alguns enxergam no filme uma negao ao
Japo consumista dos anos 70.
O filme tem vrias cenas de sexo explcito e uma infinidade de outras situaes erticas. De
modo curioso, ele censurado at hoje no Japo. Enquanto Nagisa Oshima se tornou o
segundo diretor japons mais lembrado no Ocidente por conta deste filme (atrs apenas do
Kurosawa), no Japo ele um semi-desconhecido e sua morte passou em branco na Terra do
Sol Nascente esse ano. Acho imprescindvel que voc saiba da existncia desse filme, mas s
recomendo se for um entusiasta do Cinema. Se voc procura justamente a sacanagem pela
sacanagem, advirto que este no o melhor material para as suas intenes. Filme disponvel
oficialmente em DVD no Brasil. Voc acha o trailer com facilidade no Youtube.
Kwaidan
(
,
1965)
Um osis de beleza
perdido dentro do gnero
comumente
conhecido
como horror ou terror
At o momento citei o
reconhecimento
ocidental
por
obras
japonesas
mais
intelectualizadas, todavia,
nas ltimas duas dcadas,
os filmes do Japo que mais se destacaram por aqui foram do gnero terror; Principalmente
aps adaptaes americanas de produes nipnicas, como O Chamado (adaptado de
Ringu), O Grito (adaptado de Ju-On) e gua Negra (adaptado de Honogurai Mizu no Soko
Kara). Os filmes de terror japoneses se diferenciam pela prpria forma como asiticos e
ocidentais imaginam e interpretam a existncia do sobrenatural.
A onda do J-horror muito mais antiga do que as pessoas imaginam. Sua primeira grande obra
cinematogrfica Kwaidan, dirigido por Masaki Kobayashi quase quatro dcadas antes de
Ringu. Financiado pela Toho, foi o filme mais caro produzido no Japo at aquela poca. Ele
conta quatro histrias sobrenaturais procedentes da tradio oral do folclore japons, trazendo
para a linguagem cinematogrfica elementos estticos advindos dos teatros Kabuki e Bunraku
(teatro de bonecos). Segue a sinopse do DVD:
O Cabelo Negro (Kurogami) Samurai desolado com a pobreza e com o sofrimento abandona
a esposa para se casar com uma moa mais rica e galgar algumas escadas sociais. Anos
depois, arrependido, ele retorna aos braos dela no meio da noite.
A Mulher da Neve (Yuki Onna) Dois lenhadores so pegos de surpresa durante uma nevasca e
so obrigados a passar a noite numa cabana abandonada. O mais jovem deles presencia o
momento em que uma plida figura feminina entra no casebre e tira a vida do colega mais
idoso, passando a conviver com este segredo durante anos.
Hoichi, o Sem Orelhas (Mimi-nashi Hoichi) Novio cego residente em um monastrio, que possui
raros talentos musicais, abordado pelo fantasma de um guerreiro assassinado h sculos
durante uma das grandes batalhas que ele retrata em suas msicas. No entanto, suas sadas
noturnas para atender ao chamado do morto no passam despercebidas de seus superiores.
Em uma Xcara de Ch (Chawan no Naka) Oficial de um destacamento militar surpreendido
pela imagem de um homem na gua de sua xcara. Aps beber a gua com hesitao, ele
passa a ser assombrado pela presena do homem da xcara.
Kwaidan foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e faturou uma Palma de Ouro em
Cannes. Para uma audincia acostumada aos filmes extremos com cenas de tortura explcita e
exorcismo da atualidade, Kwaidan pode parecer datado e no assustar como na poca em
que foi concebido, cumprindo mais um papel de suspense do que terror. No entanto, uma
obra me de todo um gnero que ajudou a disseminar o cinema japons pelo mundo,
merecendo a recomendao. Foi publicado no Brasil como Kwaidan as quatro faces do medo
e distribudo pela Continental Home Video.
Ran
(
, 1985)
O
homem
nasce
chorando. Quando ele
chorou o suficiente, ele
morre.
Antes que os desavisados
de planto protestem
contra as adaptaes
americanas de histrias
japonesas, apropriado
lembrar que este uma
via de mo-dupla. Prova disso Ran de Akira Kurosawa, uma releitura da obra Rei Lear do ingls
William Shakespeare, transposta ao Japo feudal. Na histria ambientada no sculo XVI, o
senhor feudal Hidetora, com a idade avanada e antevendo seu fim, resolve dividir seu reino
entre os trs filhos Tar, Jir e Sabur. Ele no imaginava a disputa pelo poder que a deciso
dele resultaria, gerando guerras e fragmentao do ncleo familiar. Ran um olhar oriental
sobre a obra do maior dramaturgo que este mundo j conheceu.
em preto e branco, com um ritmo um pouco diferente do que estamos acostumados. Ran, ao
contrrio, colorido, tem uma direo mais moderna, mas ainda conta com a destreza
impecvel do Kurosawa na direo. Acredito ser uma introduo mais adequada ao chanbara.
Aposto que aps assisti-lo, voc ficar com vontade de ver mais filmes de espada (chanbara
na verdade uma subcategoria do jidaigeki do qual Ran faz parte). Distribudo em DVD no Brasil
pela Universal Pictures.
Maborosi
(Maboroshi no Hikari,
,
1995)
Yumiko: Eu apenas Eu
no entendo! Por que ele se
matou? Por que ele estava
caminhando ao longo dos
trilhos? Essa dvida vai e
volta na minha cabea. Por
que voc acha que ele fez
isso?
Tamio: O mar tem o poder
de seduzir. Lembre quando o pai estava pescando, certa vez ele viu um maborosi uma luz estranha
longe no mar. Algo que estava acenando para ele Isso acontece com todos ns.
Uma pelcula japonesa multipremiada com uma pegada parecida com Okuribito Maborosi,
primeira fico do documentarista Hirozaku Kore-eda. Nela, Yumiko uma mulher com um
casamento feliz, amada pelo marido e com um filho recm-nascido. Certo dia ela recebe a
notcia de que seu cnjuge faleceu na linha do trem, num suposto suicdio. O choque se
alimenta de um antigo trauma e Yumiko abandona a cosmopolita Osaka, dominada pela
apatia e melancolia de se sentir responsvel por trazer desgraa queles que ama. Tem um
ritmo mais lento e a expresso das emoes so bem japonesas, enquanto A Partida ainda flerta
com o humor de vez em quando. No h muito que descrever nesse filme, melhor assistir.
HELTER SKELTER
(
,
2012)
A coisa mais fascinante
sobre o estrelato [stardom]
que um tipo de
deformidade,
como
o
cncer.
Um
rosto
fascinante, beira do
colapso. A pele e os
movimentos
musculares
no
correspondem
estrutura ssea. Parece bom, mas est desbalanceado. Est prestes a ruir (). Bonita por fora, mas
como uma fruta devorada por insetos por dentro.
importante quando um filme japons toca temas humanos universais e extrapola suas
fronteiras, como A Partida, tornando pequenas as diferenas culturais entre as naes.
igualmente significativo, por outro lado, quando os japoneses miram seus problemas caseiros e
falam de problemas que dizem respeito ao modo de vida da sociedade deles. o caso de
Helter Skelter, adaptao cinematogrfica do mang homnimo de Kyoko Okazaki, dirigido por
Mika Ninagawa.
A temtica do filme no novidade. Lilico a grande idol do momento no sistema de
entretenimento japons ou, a melhor idol de todos os tempos da ltima semana. Seu rosto
estampa todas as capas de revistas. As mulheres querem ser como ela, os homens querem ela.
Toda a sua beleza, contudo, est assentada em diversos procedimentos cirrgicos insustentveis.
Aos poucos seu corpo comea a ruir e uma nova idol com tudo no lugar, ao menos por
enquanto toma-lhe inteiramente o fugaz destaque miditico. Da para frente testemunhamos a
derrocada do corpo e da sanidade de Lilico, cuja auto-estima estava inteiramente escorada por
sua beleza fsica e notoriedade pblica. O assunto no novo, mas relevante para a sia. Em
pases como Japo, China e Coreia do Sul, mais do que aqui, padres de beleza surreais esto
gerando uma epidmica crise de ansiedade sem precedentes.
H uma voz dentro de mim. Tic tac, tic tac, ela diz. Dizendo-me para que eu me apresse. A voz dentro de
mim diz que algo vai acabar em breve Lilico
O filme tambm irnico, pois usa a tima atriz Erika Sawajiri para representar Lilico. A vida
pessoal da Sawajiri no mundo real se assemelha muito vida de Lilico na fico. Comeou
como uma esperanosa e nnfica idol fazendo vdeos de biquni (foi Visual Queen da Fuji TV em
2002), virou uma respeitosa atriz de doramas (Ichi Rittoru no Namida e Taiyou no Uta), e hoje faz
Helter Skelter, com encenaes de nudismo, beijo homossexual e sexo enquanto sua vida
pessoal rodeada de boatos sobre consumo de drogas, alm da demisso da agncia de
talentos por comportamento indevido. Em outras palavras, o ciclo de vida de uma idol japonesa,
com sua ascenso e queda, se turva entre real e fico. No h mais fronteiras entre intrprete e
interpretado. Diferente de alguns dos filmes citados acima, a direo muito moderna e
Otoko Wa Tsurai Yo
( Duro Ser Homem, )
inegvel que h algo de mesmice e previsibilidade nos filmes de Otoko wa Tsurai Yo, mas muito
do que atraiu o pblico japons aos cinemas ao longo das dcadas para ver as histrias de Tora-san
est na familiaridade e na saudade de um estilo de vida que seus filmes inspiram. Diferente dos atuais
estilos de vida urbanos do Japo, no qual vizinhos mal se falam e salarymen e Office ladies viciados
em trabalho vivem em endinheirada solido Cristiane Sato
Otoko Wa no um filme, um colosso cinematogrfico. Segundo o Guinness, a mais longa
srie de filmes j produzida por um nico diretor (Yoji Yamada). So 48 longas realizados em 27
anos pela Shochiku. Comdia de costumes tradicionalmente lanado no dia do ano novo,
tornou-se um habitual compromisso das famlias japonesas nas frias viradas de ano. Seu
protagonista, Torajirou Kuruma (Tora-san) de longe o personagem mais famoso do pas. Assim
como no anime Sazae-san, os autores foram mantidos por dcadas, e as histrias
acompanhavam a evoluo de vida deles.
A srie de filmes segue
uma frmula batida e
insistentemente
reproduzida (talvez nisso
resida
o
valor
da
franquia). Tora-san, como
define a Sato, tmido
com as mulheres ainda
que romntico, impulsivo
e
irresponsvel,
mas
honesto.
Pressionado
pela vida, resolve viajar
para algum canto do
Japo (viajou para todas
as provncias!). L encontra uma bela mulher, se apaixona, se ilude, acaba envolvido em algum
problema, se desilude e volta pra casa, sozinho e resignado. Tora-san no encontra o seu
amor. A srie, que buscava mostrar o cotidiano, acabou sendo um retrato da evoluo histrica
de Tquio. Doces, vesturio, arquitetura, penteados e relacionamentos pessoais de um mundo
suburbano que foi soterrado por ao e concreto. Inexplicavelmente desconhecida fora do
Japo.
*****
Voc deve ter sentido falta de muitos ttulos essenciais ou bacanas, mas a inteno aqui passou
longe de esgotar a histria do cinema japons. Quem sabe em uma parte 2?
10 de Outubro, 2013
Battle Royale
(
,
2000)
- Por que est fazendo
isso?
A culpa toda de vocs.
Vocs
zombam
dos
adultos. Podem faz-lo
vontade, mas no se
esqueam. A vida um
jogo. Ento, lutem pela
sobrevivncia e descubram se so dignos dela.
Distopia, Takeshi Kitano, armas e colegiais japonesas. O responsvel pela obra precisaria ser
muito talentoso para conseguir produzir algo ruim com tais ingredientes. No o caso de Kinji
Fukasaku na feliz adaptao cinematogrfica de Battle Royale. A verso foi feita em cima do
livro homnimo escrito por Koushun Takami em 1999, que ser lanando oficialmente no Brasil
pela Globo Livros em 2014. Tem como mrito ser a obra que, segundo muitos, foi a fonte capital
de inspirao para no acusar de plgio na criao da franquia americana Jogos Vorazes.
tambm o filme favorito de Quentin Tarantino e uma das referncias na criao do roteiro de Kill
Bill (Chiaki Kiriyama, a Go Go de Kil Bill, interpreta a Chigusa em Battle Royale).
Na virada do milnio a Grande Nao do Leste (uma referncia ao hipottico governo
totalitarista que tomou o poder no Japo) se encontra em um estado de absoluta anomia social.
As taxas de desemprego so alarmantes e a evaso escolar se tornou uma constante indigesta.
O smbolo da autoridade no impe mais respeito em um pas de milenar tradio patriarcal e
hierrquica. Os adultos, temendo a desintegrao social derivada da postura anrquica destes
jovens, aprovam o Ato BR para coloc-los na linha: a lei consiste num reality show anual onde
um grupo de estudantes da mesma classe escolhido aleatoriamente no pas para matar uns
aos outros em uma ilha deserta e isolada, at que sobreviva apenas um. Caso isso no acontea
dentro do perodo de trs dias, todos so sacrificados e o jogo termina sem um vencedor (se
que essa palavra faz sentido em BR).
Escutem! por culpa de gente como o Kuninobu que este pas no presta mais. Por causa disso, os
figures se reuniram e aprovaram esta lei. Battle Royale. Ento a lio de hoje Matarem uns aos
outros at sobrar apenas um. Vale tudo.
Battle Royale captou o sentimento dos japoneses quando caiu a ficha de que o pas estava
numa crise no mais temporria e sim crnica, a sensao generalizada de ver todas as portas
se fecharem para o Japo a aceitao do fim do Milagre Econmico Japons. Os mais velhos
sabiam que o pas no seria mais a potncia que tinha sido no seu tempo e no toleravam a
postura desleixada dos mais jovens (e algumas radicais mudanas culturais provenientes da
ocidentalizao); estes respondiam com o ressentimento de viver em um pas sem oportunidades
e carente de perspectivas de futuro para alimentar suas esperanas (crise econmica, bomba
demogrfica, a possibilidade da chegada do temido Terremoto de Tquio, perda da
competitividade industrial).
Como filme, no uma obra de arte, um produto de entretenimento. A atuao ao estilo
japons pode incomodar alguns e existem alguns problemas de adaptao. Mesmo assim vale
muito a pena assistir. Takeshi Kitano rouba a cena no papel do professor que comanda o
programa. A histria tambm feliz em captar a cornucpia dos tolos anseios adolescentes.
Um misto de desejo de sobreviver, com vontade de proteger os amigos e sua amada, passando
at mesmo pela resignao com a morte, contanto que lhe seja concedido a chance de
desvirginar a coleguinha de classe no momento derradeiro. Na iminncia da morte, todos os
sentimentos desconfiana, amabilidade, apetites, carinhos e dios -, escondidos pela hipocrisia
ou vergonha do convvio social, deixam de se esconder e mostram a face. A conscincia da
finitude expe o que o ser humano tem de melhor e de pior. Paixes so declaradas, lealdades
demonstradas e acertos de conta so colocados em prtica. Uma boa recomendao para
assistir comendo pipoca, mas tambm possvel penetrar algumas camadas mais profundas na
anlise.
No temos alternativa a no ser seguir em frente. No importa a distncia, corra em busca do que voc
merece CORRA!
Kokuhaku
(
,
Confessions, 2010)
Os fracos de corao magoam os ainda mais fracos. Tero eles alguma escolha para alm da
resistncia ou da morte? Sim, vocs habitam um mundo mais amplo do que isso. Se a vida difcil
onde esto, por que no se refugiam em outro lugar?
Kokuhaku, de Tetsuya
Nakashima, foi a escolha
japonesa para concorrer
ao Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2011. No
foi
selecionado
pela
Academia, mas basta
assistir ao ttulo para
compreender a opo
do Japo. Kokuhaku
uma histria de vingana
contada de uma forma
muito
peculiar.
A
professora Yuko Moriguchi
anuncia aos alunos que deixar de lecionar e faz uma declarao inusitada. Ela proclama que,
a despeito da investigao policial ter registrado o caso como um acidente, a morte de Manani,
sua filha de quatro anos, no foi uma fatalidade, e sim um assassinato. Detalhe: cometido por
dois alunos daquela turma. A primeira meia hora do filme combina o relato da professora com
flashbacks. Sem mencionar os nomes dos alunos, os detalhes fazem com que todos os demais
descubram quem so os dois suspeitos. E, j que o sistema penal japons no capaz de punir
os menores infratores, ela decidiu preparar justia com as prprias mos. Yuko injetou o vrus do
HIV no leite ingerido pelos dois. Ao trmino desse depoimento, o filme se desdobra nas
implicaes da ao vingativa da professora.
Manami est morta, mas no foi um acidente. A Manani foi assassinada por alunos desta turma. Qual
a proteo mais efetiva de vocs? So os seus pais? Uma arma? O aliado mais protetor e fidedigno de
vocs o cdigo civil juvenil. Sob o Artigo 41 do cdigo penal os menores no so criminalmente
responsabilizados. Vocs no podem ser presos. No maravilhoso? () Vocs podem assassinar e
sarem impunes.
Os fs de Kokuhaku costumam ser apaixonados pelo filme. Isto porque ele tem fora em vrios
sentidos. As revelaes da trama so oferecidas em plulas, aos poucos, mantendo o espectador
num clima permanente de tenso, sem entedi-lo. Nakamura usa tons frios, com filtros de cores
para atribuir ao filme uma atmosfera nevoenta. A direo muitas vezes flerta com a estrutura
narrativa dos videoclipes e a trilha sonora usa msicas da cultura pop, como Radiohead, AKB48
e KC & Sunshine Band. Alm disso, aborda temas contemporneos como Ijime (bullying),
violncia juvenil, transtornos mentais, apologia ao crime e a reviso da legislao do pas. Se
voc gosta do jeito japons de produzir suspense, este um must watch, mas assista Kokuhaku
preparado. Esta no uma histria de redeno. E assim como Battle Royale, outra vendeta
adulta contra a juventude japonesa. A letra da infantilesca Milk que abre o filme j te mostra o
sarcasmo com o qual ela pintada [now come inside me].
No retribua dio com dio. Isso nunca trar paz de esprito. Algum dia eles iro se redimir. Acredite
neles. Isso tambm trar a tua salvao. Foi o que Sakuramiya me disse. At o ltimo momento ele no
parou de dizer a coisa certa. Mas eu fui em frente.
Kids Return
(
,
1996)
- Ma-chan, voc acha que est tudo acabado para ns?
Idiota! A gente ainda nem comeou
Quando falamos de Takeshi Kitano no papel de diretor, Hana-Bi, Dolls e Zatoichi aparecem como
ttulos obrigatrios. No Japo, entretanto, toda a filmografia do beat tem reconhecimento e,
entre estes ttulos pouco conhecidos fora do arquiplago, est o timo Kids Return. O cenrio
inicial do filme me lembra muito os primeiros captulos de Yu Yu Hakusho. Uma escola decadente
comandada por professores acomodados e um milharal de alunos flertando com a delinqncia
Vendam pelo menos a soma dos salrios de vocs! Caso contrrio, vocs so uns ladres. Vocs no
esto envergonhados? Se continuarem assim a empresa vai ir bancarrota, mas primeiro, eu vou ser
demitido. Se vocs no esto dispostos a tentar, demitam-se. Vocs podem encontrar qualquer emprego
que queiram se procurarem bem.
A atmosfera depressiva de Kids Return com freqncia recortada pelo humor negro
caracterstico dos trabalhos do Kitano, ento, apesar da moldura fria, o filme poder diverti-lo
em vrios momentos (o humor tambm lembra MUITO as piadas do Togashi em YYH). O percurso
da histria no maante e ele ainda deixa um sabor prolongado aps o consumo da
narrativa. Ah, a trilha sonora foi criada pelo Joe Hisaishi, autor das msicas de vrias animaes
do Estdio Ghibli, como Nausica, Chihiro, Laputa e Totoro. Um grande achado!
Ns no esperamos que vocs dois estudem. Tudo o que pedimos que vocs no incomodem os outros.
Se vocs no conseguem parar com isso, no precisam se incomodar em voltar s aulas.
Norwegian Wood
(
,
2010)
O mito de Andrmeda
fala sobre um amor
indestrutvel
e
suas
trgicas conseqncias
A Universidade de
Waseda
protesta.
Exigimos um fim para a
base americana e
Guerra do Vietn. Ns
exigimos que esta leitura
seja interrompida. Temos problemas mais srios do que as tragdias gregas.
No acho que haja problemas mais srios neste mundo do que as tragdias gregas. Faam o que
quiserem
Haruki Murakami o escritor que representa os adolescentes japoneses da atualidade. Seus livros
fazem com que ele seja apontado como o favorito ao Prmio Nobel da Literatura de 2013 nas
casas de aposta britnicas. Sua obra faz sucesso por ter encontrado um nicho de mercado
robusto e pouco explorado: jovens em transio entre a adolescncia e a vida adulta. Murakami
descreve com certo lirismo o desamparo aflitivo das personagens ainda em processo de
descobertas, com seus temores, esperanas e queixas. O livro que o alou ao estrelato no Japo
foi Norwegian Wood de 1987, que vendeu quase cinco milhes de cpias no arquiplago. A
adaptao cinematogrfica do vietnamita Tran Anh Hung foi muito honesta e fiel ao texto
original, transmitindo com eficcia o clima encontrado nas pginas do Murakami.
Inspirado na cano dos Beatles, Norwegian Wood apresenta um trgico tringulo amoroso. No
tumultuado final dos anos 60 as universidades japonesas estavam um caos com as revoltas
estudantis. Conservadores, comunistas e nacionalistas degladiavam entre si e todos contra as
foras policiais. Neste cenrio, um jovem de 19 anos, Toru Watanabe, estuda teatro na
Universidade de Waseda e enfrentar uma luta que no ocorre no campo poltico. Solitrio,
conduz sua vida sem maiores ambies, apenas devorando clssicos da literatura um atrs do
outro. Essa letargia sofre um chacoalho com o suicdio do seu melhor amigo, Kizuki. Watanabe
se encontrar dividido entre o amor da ex-namorada do amigo, a psicologicamente fragilizada
Naoko, e da liberal Midori, conhecida da universidade que possui hbitos modernos para a
poca, como o corte de cabelo e a naturalidade ao falar sobre sexo.
Que aniversrio quieto. to estpido quando voc entra nos 20 sem estar pronto para tudo. Sabe,
estranho. Como se algum te empurrasse
Recomendo Norwegian Wood por uma srie de motivos. uma ambientao competente de
um perodo importante do sculo XX no Japo. Geralmente vemos a revolta estudantil retratada
na Frana, EUA e Tchecoslovquia (Primavera de Praga), mas o Japo tambm tremeu na
poca e seu governo emitiu mais de mil autorizaes para a invaso policial das universidades
entre os anos 60 e 70 (o Japo era usado como base para os americanos atacarem o Vietn).
Vesturios, cortes de cabelo, dilogos e hbitos so bem reconstrudos nessa pelcula as
locaes so belssimas. Alm disso, acho bacana pensar como, independente da poca e da
situao poltica, os dramas pessoais da humanidade seguem semelhantes. Claro, tambm
pode ser uma boa introduo para voc que nunca leu nada do Murakami e gostaria de
conhecer uma histria do escritor japons que est conquistando o mundo com sua prosa psmoderna. Quem sabe isso no te anima a pegar o livro depois?
Yankees, caiam fora de Okinawa! Fim Guerra do Vietn! Saiam com a sua Declarao de Segurana!
Vo embora, vo embora, vo embora!
Suicide Club
(Jisatsu
Club,
Suicide
Circle, ,
2002)
de storyboard (garranchos em preto e branco). A exemplo de mangaks como Inio Asano, ele
gosta de fotografar paisagens reais do Japo para captar com detalhes o ambiente
circundante e reproduzi-los em suas criaes. Esmero tcnico e sensibilidade esttica
caractersticas quase sempre presentes na produo cinematogrfica japonesa so suas
marcas registradas, acessveis mesmo aos olhares mais leigos. A reproduo animada de
cenrios reais parece
esconder a inteno de
se mostrar mais autntica
do
que
a
prpria
realidade, tamanha a
profuso de cores e jogos
de luzes. Personagens
esteticamente genricos,
por vezes indistinguveis,
contrastam
com
paisagens exuberantes.
verdade que isto lhe
rende algumas crticas,
como a afirmao de
que em certos momentos
sua arte se torna kitsch devido aos excessos.
Obsesso seria sua terceira caracterstica. Shinkai obcecado por certos assuntos, por alguns
simbolismos e por determinadas construes visuais. H trens em TODAS as suas animaes,
geralmente em movimento e interrompendo o caminho dos personagens. A linha frrea com
frequncia fechada para pedestres obstrui a passagem e cega o horizonte. O transcorrer do
tempo e as mudanas psicolgicas so expressas pelo ciclo de transio das estaes. Pingos
de chuva e poas dgua marcam presena constante, assim como lanamentos espaciais,
cus estrelados e personagens interessados em assuntos astronmicos. Ligaes telefnicas,
marcas e referncias ao universo do consumo, pssaros voando (muitas vezes no sentido
contrrio ao do personagem) e mos apoiadas na porta do trem completam a lista de fixaes
imagticas do japons. Alm disso, ele gosta de finalizar suas animaes com uma msica ela
geralmente ajuda a amarrar o texto, elementos essenciais so trabalhados j nos crditos -, e de
vez em quando opta por trabalhar com ambientes beligerantes, onde fala sobre a condio
humana em ambientes desumanizados.
Mais do que um padro visual, toda a obra do Makoto est amarrada a um fio condutor, isto ,
de uma forma ou de outra, todos os seus ttulos parecem contar a mesma histria, sempre
relacionada a algum tipo de relacionamento interpessoal marcado pela distncia e pela
ausncia. Suas criaes costumam ter um clima depressivo, uma atmosfera de renncia. Ele
geralmente trabalha com
o ciclo do luto, onde h a
insatisfao
por
uma
perda,
seguida
da
aceitao do mundo tal
qual ele se apresenta,
mas no sem o pesar de
precisar abrir mo de
coisas que so to caras
aos personagens. Muitas
vezes este ciclo (que nem
sempre se completa, o
que torna Hoshi no Koe
uma
animao
mais
soturna) acompanhado
de um sentimento de inadequao, ora espacial (insatisfao com o lugar em que se est), ora
temporal (flerte com a nostalgia). Isso o distancia muito dos ttulos frequentemente positivos do
Miyazaki, que gostava de energizar a juventude com uma abordagem mais otimista. Esprito
auto-suficiente, Shinkai declara que sua obra toda a criao daquilo que ele gostaria de assistir
para se animar ou consolar.
Creio ter passado por cima das caractersticas que saltam aos olhos no Makoto Shinkai. Abaixo,
pretendo empregar uma anlise que buscar pontos de convergncia e divergncia destes
padres em cada um das suas animaes, e, claro, apontar as fragilidades de sua obra. Na
concluso, trarei a ideia de que, goste voc ou no, Shinkai ajudou a mudar a indstria do
anime em dois momentos e por isso merece um pouco de ateno. No mnimo.
Curtas: Tooi
Kanojo to
Neko
Sekai
Kanojo
/
no
A neve absorve todo o som do mundo, mas apenas o som do seu trem alcana minhas orelhas
ouriadas. Eu, e talvez ela tambm, provavelmente gostamos desse mundo.
Quanto mais longe a Mikako ia da Terra, mais tempo as mensagens demoravam a chegar. E se eu
acabar me tornando algum que apenas espera pelas mensagens dela?
Mesmo que eu tenha escrito o roteiro, desenhado os quadros e dublado as falas em Hoshi no Koe, eu
no me sentia como um diretor, eu era apenas um cara na minha, fazendo algo para o meu prprio
prazer. Ento eu estranhei quando as pessoas se dirigiam a mim como diretor (Makoto Shinkai)
Hoshi no Koe apresenta
uma realidade futurista
onde a humanidade j
havia
iniciado
a
colonizao do Sistema
Solar
e
tinha
a
capacidade de explorar
dobras
espaciais.
Tamanho
avano
tecnolgico colocou o
Homem em rota de
coliso com uma espcie
aliengena
chamada
Tarsian,
contra
quem
trava
duelos
interplanetrios fazendo
uso
dos
famigerados
mechas. Para combatlos, as Naes Unidas
convocou uma srie de
pilotos, entre os quais
figura a garota Mikako
Nagamine.
O motor do plot a troca
de mensagens de texto
entre Mikako e seu amigo
Noboru Terao, que ficou
na Terra. Quanto maiores
as distncias intergalcticas, maiores as dificuldades. A comunicao ficava limitada pela
velocidade da luz e de meses passou a levar anos para alcanar seu destino. Sem ignorar o risco
da mensagem sequer chegar. Enquanto Noboru seguia sua vida provinciana no Japo, Mikako
se encontrava presa em uma cpsula do tempo, condenada a ser uma eterna adolescente
pela falta de interao com os seus semelhantes (como Shinkai ficou solitrios oito meses em seu
apartamento s trocando mensagens com a esposa). Ambos, no entanto, amarrados um ao
outro.
O OVA talvez a obra mais pessimista do autor. Seu final ligeiramente aberto, mas d amplas
margens para uma interpretao pouco feliz. Um carto de visitas e tanto, seja no aspecto
tcnico, seja no artstico. Suficiente para chamar a ateno da indstria do anime. A partir de
agora Shinkai seria um profissional contratado, com verba e equipe.
Kumo no Mukou, Yakusoku no Basho (2004)
(
/ The Place Promised in Our Early Days)
Byousoku 5 centimeters
(2007)
(5
Centmetros
por
Segundo / 5
)
Tquio
Entendo.
Pensei que seria o que
faria.
Por qu?
De alguma forma sempre
soube que voc iria a algum
lugar distante
5cm/s a velocidade
com que a flor de
cerejeira cai, e nomeia o
ponto mais alto da
carreira do Shinkai. Esta
animao de 1h
dividida em trs atos. No
primeiro,
Flor
de
Cerejeira,
acompanhamos
a
amizade construda entre
os toquiotas Takaki Tono e
Akari Shinohara. Ela
apartada quando Akari
se muda com a famlia
para
Tochigi
e
intensificada
quando
Takaki fixa residncia no
sul
do
Japo,
em
Kagoshima. O primeiro
tero
da
animao
focaliza no reencontro
entre os dois aps longa
viagem e na sensao
de que algo nunca mais
seria
o
mesmo.
O
segundo
arco,
Cosmonauta,
se
preocupa com a vida de
Takaki em Kagoshima e
insere
uma
nova
personagem,
Kanae
Sumida. O terceiro e
ltimo, 5cm/s, conclui a
histria anos depois, mas
no entrarei em detalhes
para no estragar a
experincia.
Este o ttulo onde aquelas caractersticas enumeradas no incio do texto melhor encontram
execuo. A insatisfao com a atual situao (Akari seguia vendo a previso do tempo de
Tquio mesmo morando em outra provncia); o fluxo do tempo caracterizado pela troca de
estaes; o dilogo sempre comprometido pela passagem de um trem, por uma carta no
entregue ou ligaes telefnicas nunca completadas; e a corrida espacial usada como
metfora para os personagens: quando uma revista folheada entrega a manchete Finalmente
achou seu caminho alm do Sistema Solar, pode-se entender claramente quem a sonda e
quem era o Sol.
namorada falecida no
terremoto de Kobe em
1995. Caso exista um
interesse no processo
tcnico
do
Shinkai,
recomendo assistir ao
primeiro ato no formato
storyboard.
Curiosamente sua histria
mais famosa antecipa a sua pior criao
Hoshi Wo O Kodomo (2011)
(Children Who Chase Lost Voices / )
- E assim, sua esposa morreu. Devastado pela tristeza, Izanagi decidiu viajar para a terra de Yomi,
muito abaixo da terra, para buscar do mundo dos mortos sua falecida esposa, Izanami. Ao chegar l ele
finalmente encontrou sua esposa e ela lhe disse: eu j me tornei moradora do mundo dos mortos.
Finalmente um longa metragem de duas horas. O incio promete uma experincia espetacular.
Logo de cara o espectador se depara com belssimas imagens naturais. Uma cmera fixa na
residncia da protagonista acompanha, em segundos, a mudana dos horrios do dia e das
estaes.
Da
noite
primaveril ao ardor de um
dia ensolarado de vero.
Paranicos detalhes com
cores, troca de folhagens
e trabalhos de luz
mesmo na incidncia de
uma lmpada no piso de
madeira podem ser
definidos como Scenery
Porn. Infelizmente, da pra
frente a coisa desanda e
este filme se torna a
grande
bomba
na
carreira do Shinkai.
Parece que a Aa-chan velha demais para apreciar uma refeio com seus pais
Aps levar muita paulada da crtica especializada, Shinkai retornou ano passado em grande
estilo com esse curta de sete minutos. Se destaca um ganho de maturidade em dois aspectos.
Primeiro no visual, ele mantm seu estilo, mas est um pouco mais econmico, entende que em
certos momentos menos mais. Em termos de narrativa, ele abandona os relacionamentos
amorosos de adolescentes e descortina uma sensvel histria entre pais e filha. Ele continua fiel
ao seu fio condutor relacionamentos e distncia -, mas apresenta um novo olhar sobre o tema.
Voc pode assistir na ntegra, em ingls, no Youtube. (COLOCA EM HD!!)
O conto, encomendado
por uma empresa de
empreendimentos
imobilirios,
demonstra
como as atribulaes do
dia
a
dia
podem
desgastar
os
afetos.
Alexandre
Nagado,
pesquisador de cultura
pop
japonesa
que
escreve no blog Sushi
Pop, fez uma interessante
observao:
normalmente,
filmes
publicitrios de projetos
residenciais
mostram
famlias
felizes
e
idealizadas. Este mostra
uma famlia que poderia ser
a de qualquer um, com
qualidades e defeitos, altos e
baixos. De modo curioso,
Shinkai
achou
seu
caminho de volta para
casa
numa
pea
publicitria
de
uma
incorporadora.
Honestamente, h apenas
duas coisas que eu sei com
certeza. Um: ela deve pensar
que um garoto de quinze
anos como eu no passa de
uma criana. Dois: fazer
sapatos a nica coisa que
pode me levar para longe
daqui.
O
relacionamento
amoroso volta no ttulo
mais recente da criao
Shinkaiana, mas dessa
vez
envolvendo
um
adolescente de 15 anos,
Takao Akizuki, cujo sonho
ser um designer de
sapatos, e uma mulher
misteriosa,
certamente
mais velha, mas esquiva
em
todas
as
outras
informaes. Takao o
smbolo
da
nova
juventude
japonesa,
hesitante em relao ao
mtodo escolar da era
industrial, com sonhos de
criar um negcio que lhe
d prazer e seja menos
estressante (o lado noradical do herbivorismo
japons). Em dias de
chuva ele no suporta
pegar o metr para ir
escola, ento ele vai a
um parque em Shinjuku
para desenhar sapatos
nesse oasis verde em
meio selva de pedra da capital japonesa. Esprito livre, ele contraria o senso comum e se sente
melhor em dias chuvosos. O Sol a Deusa Amaterasu que deu origem ao povo japons e sua
tradio, segundo a mitologia lhe passa a ideia de caminho ditado por outrem, no
necessariamente o seu. Dias ensolarados apenas no lhe dizem respeito.
Em meio poca de chuvas no Japo (junho), ele passa a ir quase diariamente ao parque,
onde sempre encontra uma mulher que tambm mata o seu trabalho, no para desenhar, mas
para beber cerveja e comer chocolate. Algo se desenvolve entre os dois tendo como plano de
fundo a chuva, que segundo o Shinkai um personagem do filme, mesmo no tendo alma (em
termos visuais, minha obra favorita dele).
Makoto defende que essa a obra mais incompreendida no Ocidente. Isso porque todo o filme
foi criado sob o conceito de amor. Mas no o amor que conhecemos por aqui, e os japoneses
descrevem como Ai (), mas sim o amor escrito com o ideograma Koi (), que estaria mais
relacionado
a
um
sentimento de tristeza e
desejo na solido, uma
necessidade fsica de
afeto. Tanto Ai quanto
Koi so traduzidos como
amor, mas h sutilezas
nas entrelinhas do idioma
japons
que
os
diferenciam e os fazem
ser
aplicados
em
momentos diferentes (e o
Japons a lngua do
discurso no dito, das
sutilezas, do subentendido). Sinceramente, mesmo pesquisando eu no entendi direito a
diferena, me peguei lost in translation, aceitei que uma obra japonesa feita para o pblico
japons e azar o meu se posso apenas subaproveit-la enquanto no sou fluente na lngua.
Por outro lado, uma coisa clara. Os sapatos que ele desenha so os passos que usar para
construir seu futuro, caminho, faro seguir em frente apesar dos pesares. a representao
simblica da mobilidade, do eterno fluxo, da inexorvel impermanncia, noes filosficas caras
ao pensamento japons, originrias do budismo moda chinesa. Tudo passa, tudo sempre
passar
Ok,
mas
comear?
por
onde
Consideraes finais
Makoto Shinkai uma montanha russa. Oscila entre o notvel e o descartvel. Costuma reunir
fs fervorosos e detratores raivosos. indiscutvel sua excelncia tcnica, bem como sua
mesmice. Makoto me parece um exmio executor que tinha uma boa histria para contar, e a
remodelou de vrias formas em diferentes ttulos. Precisar se reinventar e se afirmar de modo
mais assertivo como criador de narrativas se no quiser perecer como a eterna promessa da
animao japonesa. Fs mais exaltados costumam valorizar demais a beleza visual e s vezes
ignoram fraquezas evidentes no resto do processo de criao.
Por outro lado, ele carrega o peso das expectativas nas costas. Obras iniciais boas e a sombra
de Miyazaki so um fardo pesado demais para um iniciante. Pessoas tentam, injustamente,
demolir suas criaes
para
demolir
as
comparaes com um
mestre da animao
mundial. No estar no
nvel do Miyazaki no
um demrito, na verdade
uma condio normal.
No gostar, consider-lo
superestimado e abaixo
do nvel do Hayao
compreensvel
(e
eu
concordo); achar que
por
conta
disso
o
trabalho inteiro dele de
se jogar no lixo um
exagero dos crticos. Seus
filmes esto trazendo
uma
mensagem
importante para um povo
vitimado pelos desastres
naturais, como os de
Fukushima em 2011: o
desespero adolescente
de Hoshi no Koe cedeu
espao aceitao da
impermanncia
dos
ttulos mais recentes.
Todo mundo precisa reconhecer: ele arregaa as mangas e d a cara tapa. Shinkai escreve,
anima, dirige, dubla, concentra vrias atividades da criao nas prprias mos e faz acontecer.
Quando acerta colhe os louros, mas quando peca, assina o erro. Isso admirvel em um
profissional. Sem ignorar o esprito empreendedor de abandonar o emprego para produzir
animao independente (num pas onde os animadores profissionais tm condies de trabalho
precrias).
Por tudo isso, Shinkai marcou a indstria do anime em dois momentos. Primeiro, ele mostrou que
era possvel criar contedo CG pessoal ainda nos anos 90, alterando a percepo dos
profissionais da rea. Quem diz isso Yutaka Kamada da Doga: eu tambm estava convencido que
isto marcou a consolidao da animao pessoal como um genuno meio de expresso. Uma vez
contratado, Shinkai demonstrou, com seu know-how adquirido no mundo dos jogos, todas as
possibilidades que a computao grfica poderia trazer para a indstria da animao japonesa,
que naquela poca ainda prezava por um modelo de animao analgico ou misto. Em outras
palavras, ele ajudou a inovar a narrativa no cenrio independente, e a tcnica no cenrio
profissional. No estamos falando de qualquer um!
Resta saber se ele ser capaz de se livrar deste cordo umbilical e dar a guinada em uma
carreira de diretor capaz de trabalhar com temas diversos, ou se, como pensam os mais cticos,
ser apenas mais um. Uma coisa certa. Ele pode no ser um gigante, mas est sentado nos
ombros de um. Se voc gosta de Shinkai, agradea ao Miyazaki e lamente sua ausncia. Mas
siga em frente, pois como diz Shinkai em todas as suas obras, o show deve continuar, no
importa quo grande a perda.
17 de Junho, 2014
Para
aqueles
que
mergulham abaixo da
superfcie, Godzilla no
um
mero
filme
de
monstro. Ele uma espcie
de paradoxo uma
realizao horrvel da
bomba que o criou, e
ainda uma penosa vtima dela; um smbolo dos arrependimentos ps-guerra e temores nucleares do
Japo, e, alternadamente, a raiva e a retaliao da nao (Steve Ryfle)
A discusso sobre o uso da energia nuclear
se confunde com a histria recente do
Japo. Primeiro, o pas amargou os nicos
ataques intencionais com ogivas nucleares
em
contexto
de
guerra,
agora,
experimenta a intranquilidade de viver nas
redondezas de uma usina danificada
regurgitando
toneladas
de
gua
contaminada diariamente. Em virtude da
gravidade destas experincias, de se
esperar
que
o
assunto
paute
a
mentalidade, a existncia e a produo cultural recente dos nipnicos.
Da produo pop ao cinema documental, a cortina nuclear direta ou indiretamente alterou boa
parte da cultura japonesa do ps-guerra, desfigurando seu cdigo gentico. Artistas plsticos
contemporneos como Takashi Murakami e Makoto Aida acusaram a responsabilidade das
bombas de Hiroshima e Nagasaki como pivs de infantilizao da mentalidade japonesa e do
esvaziamento da memria histrica do pas (por ser vtima, se permitiu esquecer que por tanto
tempo foi agressor).
Na cultura pop, a temtica ps-apocalptica marcou a ferro os animes e mangs, casos de Gen
(Keiji Nakazawa), Akira (Katsuhiro Otomo) e Paranoia Agent (Satoshi Kon), entre tantos outros
exemplos possveis. Como bem definido
por Freda Freiberg: Akira foi concebido por e
com
acidez
direcionada aos seus conterrneos os jovens do Japo Little Boy, nome codificado da
bomba estourada em Hiroshima, dia 6 de Agosto de 1945.
O cinema tambm teve sua cota. Gneros inteiros foram dedicados ao tema. O Hibakusha Eiga
( gnero de filmes sobre a histria dos sobreviventes das bombas atmicas) e o Kaiju
Eiga ( filmes de monstros como Godzilla) so exemplos mrbidos, pelas suas
similaridades e origens em comum, de como o retrato dos sequelados com suas quelides
tranquilamente se confundia com a histria de monstros, para aterrorizar o status quo do novo
Japo, prspero e pacificado aps a guerra. A semelhana inicial tamanha que possvel
citar pontos literais de interseco entre os gneros, como o filme The H-man, da trilogia
mutante produzido pela Toho, mas comecemos pela gnese:
GODZILLA E O HIBAKUSHA EIGA
entretenimento
barato,
na
poca
dialogou com os receios mais profundos
da Guerra Fria. Aps os ataques no Japo
e ao quase uso de outra bomba atmica
na Guerra da Coreia um ano antes do
lanamento do filme, esta pelcula
conseguiu reunir entretenimento e crtica
social, jogando luz sobre um assunto ainda
restrito nas telonas. Justamente numa
poca em que, aps dcadas de
sofrimento com as guerras mundiais e o
Terremoto de Tquio, o povo japons s queria se divertir.
O insight para o conceito do filme partiu de um evento real. Um teste americano com a bomba
H foi mal calculado e a rea contaminada se expandiu alm do previsto. Um barco pesqueiro
japons foi pego pela cortina e o operador do rdio morreu, situao que justifica a cena inicial
do filme, na qual o Gojira ataca uma embarcao pesqueira e o operador do rdio engolido
pelas guas aps enviar o sinal de socorro.
A ideia de partida para essa bem-sucedida produo era que houvesse um grande ser que devastasse
tudo o que encontrasse na sua passagem, porque dotado de uma fora no movida pela razo, mas sim
pela brutalidade no estgio mais selvagem, gerada pelos erros humanos, e pronta a voltar-se contra os
prprios homens, em particular os japoneses, aqui novamente vtimas (Maria Roberta Novielli)
Godzilla teve um oramento alto para os padres japoneses da poca, e s no foi maior
porque Akira Kurosawa quase faliu o estdio com a produo do clssico Os Sete Samurais. Os
resultados financeiros agradaram e Gojira foi transformado numa franquia com continuaes
bizarras, como quando enfrentou o King Kong ou virou mecha, dando incio a um dos gneros
mais rentveis e distinguveis da cultura pop japonesa. Virou um caa-nquel desmiolado
reproduzido exausto at por estdios de cinema americanos, totalmente drenado de sua
substncia original, mas ainda fiel ao seu papel como entretenimento. O que no se pode
perder de vista o que estava por trs da gnese do gnero.
Eu no posso acreditar que Godzilla era o nico membro sobrevivente de sua espcie. Se ns
continuarmos conduzindo testes nucleares, possvel que outro Godzilla possa aparecer em algum lugar
do mundo, novamente.
curioso, mas o sucesso de Godzilla, como o dos videogames, surgiu dos medos inconscientes
da Guerra Fria para se transformar num cone do entretenimento global. Esta, porm, no foi a
abordagem principal do tema no cinema japons. As bombas, os testes, as usinas e as
conseqncias foram trabalhados de modo mais direto em outros filmes no decorrer da segunda
metade do sculo. Ora em tom de denncia, ora em clima de propaganda; ora com crueza,
ora pincelado com sutil indiferena.
A abordagem mais bvia a exposio
direta e didtica dos fatos. No h ttulos
relevantes cujo pice ou concluso da
trama seja a exploso, todos eles partem
do desastre para escancarar o que veio
em seguida com o cessar da guerra. Um
exemplo antigo Genbaku no Ko
(Children of Hiroshima/
,
1952) de
Kaneto Shindo. No filme, uma professora
de Hiroshima que fugiu para uma ilha resolve voltar cidade natal, onde perdeu toda a sua
famlia, para reencontrar seus alunos e talvez a si mesma. Com intenes educativas, o filme
aborda, a partir dos casos de trs alunos, alguns dos problemas enfrentados pelos sobreviventes,
sobretudo as crianas: misria, carncia, doenas, fatalismo e a vontade louca de reconstruir a
vida nos escombros do que sobrou, ou, ao menos, encontrar na f a paz para deixar esse mundo
com a mente serena, j que a radiao no oferece clemncia (caso da menina crist com os
Houve ainda uma terceira forma de abordar o tema: a explorao indireta. Enquanto uns
esgoelaram urros de protesto e outros partiram da bomba para fazer um registro histrico da
condio humana das vtimas, alguns apenas resvalaram na bomba, no a citando
nominalmente, ou tirando-a do centro das atenes, tornando-as personagens significativos,
mas no mais centrais. A princpio porque a censura americana no governo de ocupao
impedia qualquer meno indecorosa ao ocorrido, mas posteriormente (com o fim da
ocupao) devido prpria cultura
japonesa, regrada pela conformidade.
Esta cultura da consonncia se reflete na
lngua japonesa e sua preveno do
afrontamento, sendo ela marcada pelas
entrelinhas, pelo subentendido, pela leitura
daquilo que no foi dito, apenas ficou
implcito. Um idioma onde a palavra no
em diversos contextos sociais um tabu,
para evitar a coliso e preservar o
princpio confucionista de harmonia social.
Arthur Dapieve cita no prefcio de uma coleo de contos de Kenzaburo Oe o caso do escritor
japons (pretensamente britnico) Kazuo Ishiguro e seus romances Os Vestgios do Dia e Uma
Plida Viso dos Montes, onde a guerra mundial e o bombardeio nuclear formam um pano de
fundo essencial s tramas, mas no so concretamente elaborados, so, ao contrrio, nas
palavras dele, centros vazios, simultaneamente ausentes e presentes (ah, a ambivalncia da
cultura japonesa). No cinema h ttulos assim, como Junai Monogatari (A Story of Pure Love/
, 1957) de Tadashi Imai. Com uma pitada de James Dean na construo, a histria do
casal influenciada pela bomba, mas o artefato no o argumento do filme. Interfere
diretamente no desenvolvimento da narrativa, mas tratada com naturalidade e
imparcialidade.
Por fim, dentro dessas trs subdivises existiu tambm uma tentativa de sublimar o trauma da
bomba a partir da reconciliao com o passado, em filmes que adotaram um tom
propagandista de um novo Japo, progressista e democrtico. No negam os conflitos militares
da Segunda Guerra, mas entendem que essa foi uma conseqncia natural do choque entre o
mundo e a mentalidade militarista do Japo Imperial. O importante seria cicatrizar as feridas e
seguir em frente.
Por parte dos americanos esta tentativa vista em pelculas como Sayonara (do Joshua Logan,
1957), que conta com atuao do Marlon
Brando, um militar americano que busca a
aceitao do at ento condenado amor
por uma artista japonesa (aceitao da
unio simblica entre o militarismo
americano e a tradio milenar
japonesa aps anos de dio). No Japo, o
filme No Esqueo as Canes de
Nagasaki (Nagasaki no Uta wa Wasureji,
1952), do diretor Tomotaka
Takasaka, vtima pessoal da radiao, que
o afastou do trabalho por cinco anos:
sua abordagem sobre a questo da bomba no foi nem crtica nem acusatria. a histria de uma
mulher, vtima das radiaes, que se apaixona por um jovem americano. Com esse relacionamento
sentimental, declarava-se o perdo Amrica e, o mais importante, perdoavam-se as atrocidades
perpetradas pelos prprios japoneses, absolvidos e redimidos justamente por terem sofrido as duas
exploses atmicas. Era um pressuposto necessrio para deixar tudo para trs e arregaar as mangas
para a reconstruo, enquanto pelo arquivo da histria deslizava a maior de todas as tragdias
experimentadas por esse povo (Novielli)
CYBERPUNK JAPONS Fico cientfica bebeu na fonte contaminada pela Little Boy
um
subgnero
da
fico
cientfica
criado
nos
Estados Unidos e sintetizado no aforismo High Tech, Low Life, cujo auge foi alcanado na
dcada de 80. De modo muito resumido, a temtica dele gira em torno do medo crescente em
relao corporatocracia, vigilncia digital, intervenes tecnolgicas no corpo e na mente
humana (trans-humanismo) e diluio da fronteira entre realidade e o universo virtual. So
clssicos do gnero os livros de William Gibson (Neuromancer) e Bruce Sterling, alm de filmes
muito populares, Blade Runner e Matrix.
O Japo se tornou, do outro lado do mundo, o segundo ninho criativo do gnero. Referncia em
tecnologia eletrnica e robtica, Tquio era a capital esttica do Cyberpunk, com sua
metrpole apinhada de gente, arranha-cus e luzes de non. A originalidade do cyberpunk
japons, todavia, se deu pela indita influncia da sua bagagem cultural na criao dos ttulos
o que inclui as bombas. verdade que temas mais abstratos relacionados ao ciberespao
conduzem ttulos de anime, casos de Serial Experiments Lain e Ghost in the Shell, mas as obras
mais veementes do cinema se aliceram no trans-humanismo (enquanto os americanos
preferem a temtica do ciberespao). Sendo mais preciso, se assentam num olhar censor e
crtico s possibilidades de modificao/aperfeioamento humano. As deformaes fsicas dos
hibakusha serviram de argumento suficiente para manter o Japo com um p atrs diante das
novas possibilidades surgidas na poca.
Enquanto algumas obras
globais
encararam
o
trans-humanismo
como
possibilidade o aumento
artificial da capacidade
fsica e mental que pode
fazer o mal tambm
pode ser ferramenta para
combat-lo
-,
os
japoneses
tendem
a
revelar os perigos da
ausncia de barreiras
morais
a
partir
da
dissoluo de tudo o que
slido. O clssico Akira ( , 1988) de Katsuhiro Otomo fundamentalmente isso. Tetsuo
vtima de um experimento do governo que foge do controle das autoridades e do seu prprio
manejo. Tetsuo e a capital japonesa so engolidos pela manipulao de uma energia que
sequer plenamente compreendida. O corpo de Tetsuo marcado por mutaes bizarras. O
Cyberpunk japons quase sempre reporta o trans-humanismo de maneira traumtica, isto , a
interveno (seja ela mecnica, psicotrpica, comportamental ou gentica) no se funde ao
homem, mas o possui, o transforma e o domina, levando-o danao. A fuso dolorida, o
resultado inesperado e o final, trgico.
No acha que os sonhos e a internet so semelhantes? Ambos so lugares para se liberar o consciente
reprimido.
Respeito esttica anime no implica servido aos seus clichs. No possvel ver em suas
animaes homens com cabelos azuis pontiagudos nem meninas com olhos aquosos a ocupar
40% do rosto. Os personagens so apresentados com aspectos realistas, dotados de traos
humanos e no raro claramente asiticos. No h espao para personalidades laboratoriais
como Tsundere ou Imouto Kawaii. Todas as suas histrias acontecem em cenrios urbanos
japoneses (s vezes destrudos no final) e apontam pessoas, locais e situaes de fcil
assimilao, principalmente do pblico japons, mas no exclusivamente. Isso facilita a projeo
do espectador no drama.
Essa opo tem um propsito e aqui o texto sai da tcnica para entrar nas caractersticas
propriamente narrativas. Satoshi Kon foi reconhecido como um animador apto a trabalhar sem
maiores problemas na Stima Arte, com atores e locaes reais. Ele usou a animao como
meio de tratar assuntos e abordagens cinematogrficos. Cisne Negro sublinha essa tese, como
aprofundarei mais para frente. Em outras palavras, Kon, mais do que fazer cinema animado,
fazia cinema com animao, e espero que essa sutil diferena seja compreendida. E, para
esclarecer qual era o pblico-alvo dele, o seu desejo era oferecer entretenimento aos adultos.
Todas as suas produes podem ser inicialmente compreendidas como extenses de um mesmo
tema: o Homem duplo. Divididos, a exercer dois papeis dentro de um conflito que ope e
mescla as perspectivas objetiva e subjetiva. H separaes entre realidade e universo
psicolgico (Perfect Blue e Paranoia Agent); realidade e fico (Perfect Blue e Millennium
Actress) e realidade e sonhos (Paprika e Perfect Blue). Todos trabalhados de modo muito
inteligente para gerar desorientao,
turvar essas fronteiras e desnortear o
pblico de modo que, no meio da
experincia, o espectador j no consiga
mais distinguir a iluso das situaes
concretas dos personagens.
Kon gosta de estilhaar o senso de
continuidade sonolenta ao qual o
pblico est acostumado para confundi-lo
no meio e s desatar o n da trama na
concluso, onde tudo ganha sentido
novamente. Um mtodo de trabalho que seria pouco comercial se mal trabalhada, mas
justamente a se revela a percia tcnica do diretor. Parece confuso, mas tudo ficar
descomplicado quando eu exemplificar em cada filme.
Para algum de fora, os sonhos e o filme dentro do filme so fceis de distinguir do mundo real, mas
para a pessoa que est passando pela experincia, tudo real (Satoshi Kon)
Satoshi, natural de Hokkaido, gozou oportunidades profissionais mpares ao ter contato com
profissionais renomados e qualificados antes de tomar a batuta de maestro para si. Aps estudar
design grfico na Universidade de Artes de Musashino, foi assistente de Katsuhiro Otomo, artista
de animao em Roujin Z, trabalhou com Mamoru Oshii e depois fez roteiro de um dos curtas da
trade animada Memories. Ao lado deles lapidou seus senso crtico afiado, original e antenado.
S ento ele dirigiu sua primeira animao autoral: Perfect Blue.
PERFECT BLUE (
, 1997)
Ns fizemos uma edio rpida de um ponto a outro como se fosse uma cena de luta, mesmo quando
no havia nenhuma cena de ao envolvida. Isso ajudou a enfatizar o senso de confuso da Mima
(Satoshi Kon)
MILLENNIUM ACTRESS (
,
2001)
A premissa central deste filme que uma idosa que fora uma grande atriz fale sobre sua histria de
vida. Enquanto ela conta, os filmes nos quais ela participou se entrelaam com sua prpria vida. O
presente e o passado se cruzam e a histria dela se torna tempestuosa. Esta a essncia deste filme e
minha ideia original em Millennium Actress (Satoshi Kon)
Millennium Actress um tributo ao cinema
nipnico, uma animao abarrotada de
referncias
histricas
ao
trabalho
cinematogrfico do Japo e histria do
pas.
Na
trama,
Tachibana,
um
entrevistador
da
televiso,
est
preparando um documentrio a respeito
de uma estrela aposentada do cinema
japons,
Chiyoko
Fujiwara,
voluntariamente afastada da sociedade.
Ao conseguir a rara oportunidade de
entrevist-la, ganha a chance de
conhecer a histria de vida da idosa atriz
e os bastidores do trabalho. No
desenvolvimento do filme, as experincias
pessoais da intrprete se emaranham com
os papis por ela representados.
A
carreira
da
Chiyoko
atravessa
importantes pginas da histria japonesa.
Passa de maneira breve pelo Perodo
Sengoku e se assenta no auge do Imprio
Japons,
a
campanha
militar
na
Manchria, a devastao da guerra e a
reconstruo em parceria com os
americanos, acompanhada de todas as
mudanas culturais trazidas por elas. Filme
sobre
o
fazer
cinematogrfico,
homenageou grandes nomes da Stima
Arte, casos de Akira Kurosawa (Trono
Manchado de Sangue), os filmes familiares
do Yasujiro Ozu, alm de gneros, como o
Jidaigeki e o Kaiju (de
Godzilla).
Chiyoko
Fujiwara
foi
inspirada na vida da diva
do
cinema
japons
Setsuko Hara, a Eterna
Virgem, protagonista de
filmes monumentais, a
exemplo de Era uma Vez
em Tquio e Pai e Filha
do Ozu, o mais japons
dos
cineastas.
Ela
subitamente se aposentou aos 43 anos, aps confessar nunca ter gostado de atuar e ter
construdo carreira de atriz apenas para sustentar a famlia nos turbulentos anos que circularam a
Segunda Guerra. Depois de aposentada, viveu dcadas num local afastado, sem conceder
entrevistas, apenas flagrada pelos paparazzi de vez em nunca.
TOKYO GODFATHERS (
,
2003)
PAPRIKA (
,
2006)
Em um mundo de
realidade inumana, o nico
santurio humano que
resta o sonho. A parada
est cheia de refugiados
afugentados da realidade
contra a vontade deles.
Paprika
retoma
a
estrutura que consagrou
o Satoshi Kon, mas
radicaliza a experincia.
A temtica tira o p da
realidade para se infiltrar nos domnios dos
sonhos. O processo tcnico de criao do
roteiro e storyboards, em uma perigosa
experimentao, foi alterado para se
adequar proposta do filme.
Em um futuro no muito distante, cientistas
inventaram uma mquina psicoterpica
capaz de visualizar os sonhos dos pacientes,
o DC Mini. Ainda em fase de testes, um dos
aparelhos roubado do laboratrio antes
do desenvolvimento das barreiras de
restrio, o que possibilita a entrada de
terceiros
nos
sonhos
alheios.
Imediatamente aps o roubo, um dos
cientistas, aps proclamar frases sem nexo,
tenta o suicdio ao pular na janela num
evidente estado de inconscincia sobre
seus atos. O detetive Konakawa da Polcia
envolvido, mas ele um dos que esto
fazendo tratamento ilegal com o DC Mini
roubado, em posse de uma mulher que se
identifica como Paprika. Sonhos e
realidade se misturaro enquanto o
pblico tenta entender quem roubou a
mquina e com quais intenes.
Que castigo recair sobre o plebeu ignorante que tentar entrar em um sonho sagrado?
Implantar sonhos
terrorismo
na
cabea
alheia
Quando se sabe o final, tende-se a forar tudo na histria para a direo do clmax. Normalmente fao
a maior parte da histria de modo simples e seguro, de modo que eu possa us-la de suporte para o final,
sem complicar as coisas. Eu decidi experimentar um mtodo diferente neste projeto (Satoshi Kon)
O trabalho da equipe na Madhouse foi rduo. 614 pginas de storyboard executadas em 1046
tomadas. Muita densidade informativa na tela para diferenciar sonhos de realidade
cuidadosamente remodelada para aparentar desenhos feitos mo. Quando se analisa os
detalhes, possvel ver que alguns confetes da parada caem atrs de algum objeto, enquanto
outros caem pela frente. Um zelo, definido por alguns como preciosismo, pouco provvel de ser
detectado por um olhar leigo espontneo, mas que faz diferena na experincia final. Assim
como Perfect Blue influenciou Aronofsky em Cisne Negro, Paprika foi um dos ttulos que inspirou
Nolan na criao do filme Inception.
DREAMING MACHINE (
,
sem data)
Dreaming Machine o nome do trabalho
que ficou incompleto pelo adoecimento
do Kon. A preparao de outra ruptura
com sua filmografia, pois seria um filme
para crianas totalmente protagonizado
por robs. O Estdio Madhouse lhe
prometeu nos momentos finais que
terminaria o filme usando suas anotaes
como um tributo sua carreira, mas
recentemente paralisou a labuta por falta
de financiamento. Eles esperam conseguir
fundos para a concluso do projeto derradeiro at o final de 2015.
Considerao final
Satoshi Kon desfrutou de muita notoriedade no Ocidente por demonstrar que a animao no
obrigatoriamente precisa ser infanto-juvenil e desmiolada, e, mais especificamente, a animao
japonesa no precisa necessariamente ser de pancadaria entre adolescentes de cabelos
coloridos ou reinos mgicos com simbolismos orientais indecifrveis. Ela um meio com
caractersticas prprias que pode ser usado para contar histrias boas ou nem tanto, como
qualquer outra mdia (em qualquer uma a mediocridade o padro). Uma grande herana que
ele deixou para o pop japons foi justamente a desmistificao de alguns clichs que afastavam
o pblico no iniciado dos produtos culturais japoneses.
No, no acho que o anime precisa ser elevado categoria de produto adulto ou maduro
para ganhar respeito, apenas acredito que a animao pode abranger todos os pblicos, e
para isso precisa de pioneiros. preciso abrir espao para boas histrias animadas direcionadas
s crianas, aos adolescentes e tambm aos adultos. Kon ajudou a difundir essa perspectiva
com histria originais, universais e contemporneas. Foi um sopro de originalidade no cenrio
mundial dos filmes animados, muito refm daquela eterna e batida frmula Disney/Pixar do
engraadinho para as crianas, com uma mensagem positiva para os pais, j que a famlia
toda precisa assistir para a bilheteria justificar os altos custos de produo.
Dentro de uma perspectiva japonesa,
Satoshi Kon no foi nenhum revolucionrio,
apenas contribui com seu quinho de
boas produes, sem grandes oscilaes
qualitativas.
Ainda
no
temos
a
perspectiva histrica suficiente para
afirmar, mas acredito que Kon no dever
ser colocado no mesmo patamar de
Tezuka ou Miyazaki no mundo dos homens.
Se existe outro mundo alm do nosso,
entretanto, tenho certeza que Tezuka o
recebeu com um bom trabalho, sensei.
(Ah, ele tambm dirigiu esse curta de um minuto chamado Ohayo [bom dia], que voc pode
assistir pela internet)
Ento, a todos que permaneceram comigo atravs deste longo documento, obrigado.
Com meu corao cheio de gratido, por tudo de bom no mundo, soltarei minha caneta.
Agora, com licena; eu preciso ir
(Satoshi Kon, em sua carta de despedida, Agosto de 2010)
18 de Setembro, 2014
enclausurado por 15 anos em um quarto, onde pode desfrutar apenas da companhia de uma
televiso. Suas namoradas so as cantoras dos programas musicais, suas refeies so
invariavelmente compostas por bolinhos chineses entregues por uma portinhola. Detalhe: no lhe
dado qualquer esclarecimento para o crcere e ele tampouco se recorda de ter feito algo
que justifique o confinamento. Certo dia ele liberado tambm sem explicao. Enfim livre, 15
anos mais velho, Dae-su corre atrs de vingana e compreenso dos motivos que levaram
algum a prend-lo por tanto tempo.
,
2003), baseado numa lenda folclrica coreana, no qual duas irms retornam ao lar aps
passarem um tempo internadas. Recebidas por uma madrasta tirnica e um pai passivo, imersas
em um pssimo clima familiar, as meninas descobriro que uma alma atormentada vive sob o
mesmo teto. E esse s o comeo de um enredo com vrias reviravoltas
A Coreia proporciona, com mais ou menos
qualidade, uma infinidade de opes
subsequentes no terreno assombrado:
Arang, Bunshinsaba, the Red Shoes,
Cinderella, Cello, Phone, Hansel and Gretel,
R-point, The Wig. No mbito do cinema
slasher, o mais distinto Bloody Reunion.
No assisti a todos os enumerados acima,
no sou f de terror, mas o terreno frtil.
O K-horror ganhou autoridade nos ltimos
anos, mas tudo comeou com a franquia Whispering Corridors (
,
entre 1998 e 2009).
Cinco filmes com uma temtica central - garotas na escola - mas sem relao de continuidade
entre eles, permitem aleatoriedade na ordem de assistir. No terror extremo, pendulam entre o
horror soft e o suspense sobrenatural. Franquia ganhou muito prestgio na sia por trabalhar com
suicdio juvenil, homossexualidade e os excessos do sistema educacional coreano (conivente
com castigos fsicos na poca), entre outros temas polmicos.
O segundo filme, Memento Mori, o mais
popular da franquia, pois no tem como
prioridade assustar ou amedrontar o
espectador, mas sim trabalhar, com o
acrscimo de subsdios fantasmagricos, o
drama de um casal homossexual impedido
de ficar junto pela presso no ambiente
educativo e cultural sul-coreano. Vale a
meno por ser a mais clebre franquia
coreana do gnero, mas tenha em mente
que voc no vai sentir calafrios assistindo
a eles, principalmente se j for perito em outros clssicos da categoria.
SUSPENSE:
A temtica da vingana incessantemente explorada pelo cinema da Coreia. A Trilogia de Park
Chang-wook apenas a mais ilustre dentro de uma ampla gama de suspenses que abordam o
mesmo argumento: cidados ordinrios vtimas de alguma injustia se revoltam, tomam uma
deciso extrema e optam pela vendeta, se possvel com uso de violncia mais enrgica do que
a aplicada sobre si. O pblico coreano , segundo alguns especialistas, muito sensvel ao assunto
devido aos milnios de opresso e aculturao arbitrria de invasores diversos: chineses,
japoneses, mongis, russos Outros ligam a fixao do coreano pela vingana ao turbulento
processo de democratizao do pas, cravejado de casos de corrupo e impunidade.
Eu Vi o Diabo (
,
2010) talvez
o melhor da espcie. Um psicopata
decapita a mulher de um agente da
polcia coreana. Atormentado, o oficial
resolve achar o criminoso e faz-lo sentir
um desespero igual ao seu. Psicopatas,
porm, tm algumas disfunes cerebrais
que os fazem imunes a certos estmulos e
apresentam diferente capacidade de
sentir e expressar medo, ansiedade, culpa
ou desalento quando a possui. O policial
cria um jogo de perseguio com sua presa para tentar extrair dela a humanidade que nele
transborda em saudade da mulher. Mas o psicopata no um inofensivo camundongo disposto
a brincar de gato e rato para sempre e decide ele ser gato tambm.
O Homem de Lugar Nenhum (
,
2010)
apresenta o proprietrio de uma miservel
loja de penhores, dono de um passado
nebuloso e impressionantes habilidades em
artes marciais, amigo de uma menina
vizinha no conjunto habitacional. A vida
banal se transforma quando a me viciada
da garota mexe com as pessoas erradas. A
polcia coreana e mafiosos da Coreia e da
China se colocam entre a improvvel
amizade construda por um homem de
lugar algum e uma menina maltratada, ambos sozinhos no mundo. A truculncia deles seria
capaz de romper o lao entre os dois? Se gostar do gnero, assista The Chaser (, 2008)
tambm.
Aos que apreciam o escopo vingativo,
provvel que se delicie tambm com a
crueza de Bedevilled (
,
2010) e com o tom desesperanado
de Piet (, 2012). Uma coisa a ser
notada ao acompanhar filmes de suspense
e ao coreanos a menor proporo de
armas de fogo nas pelculas, comparado
s americanas. S 2% das mortes na
pennsula so com arma de fogo, logo, muitas vezes objetos do cotidiano viram armas nas mos
dos personagens que resolveram partir para a violncia: faca, serrote, corrente, garrafa
quebrada, fogo, caneta, martelo, alicate e outros objetos alternativos capazes de tornar as
cenas de violncia bem diferentes do padro. E doentias.
DRAMA:
Se por acaso voc vislumbrar sua carne nua atravs das dobras da saia suja e rasgada dela, vire a
cabea e passe por ela como se nada tivesse visto. Mesmo que ela puxe seu cotovelo ou manga,
gentilmente livre-se dos seus dedos. Se voc a ver seguindo-o algum dia, no tenha medo dela nem
proclame palavras ameaadoras. Apenas dedique um pouco de tempo a olh-la com alguma
considerao.
Os coreanos produziram bons dramas politizados, dos quais A petal (
,
1996) de Jang Seonwoo um dos dois mais importantes exemplares. Sombrio, acompanha a vida de uma garota de
15 anos enlouquecida aps fazer parte de modo involuntrio do Levante de Gwangju. Seus
surtos alucinados, no papel de mendiga,
so mesclados com estupros sofridos e
flashbacks que revelam aos poucos sua
experincia traumtica no campo de
batalha da represso militar em 1980. O
filme politicamente proeminente, pois foi
o primeiro a levantar debate na Coreia
democrtica sobre o passado poltico
recente do pas. O presidente do pas na
poca, general Chun Doo-Hwan, foi
condenado morte no ano do
lanamento do filme, tambm pelas medidas repressivas descabidas tomadas em Gwangju
(mas recebeu perdo presidencial em 97).
A Single Spark (
,
1996), o segundo principal drama de relevncia poltica,
interessante por exibir as dificuldades da luta por melhores condies trabalhistas em um pas
capitalista, ainda pobre e perifrico, opositor de uma (outra) ditadura comunista. O filme se
passa em dois recortes temporais: um pesquisador que estuda a vida de um ativista morto por
autoimolao em protesto s condies de trabalho desumanas e instituies
inoperantes reinantes na Coreia do Sul da poca, em alternncia com as memrias spias desse
militante enquanto trabalhador do setor
txtil, at hoje uma rea responsvel por
manejar mo-de-obra escrava na sia.
Considero o filme forte por ter passado
meses estudando o desenvolvimento
econmico da Coreia durante o meu TCC
e conhecer de perto a realidade
fustigante dos trabalhadores no perodo. E
a impossibilidade de reclamar melhorias
sob a sombra da Coreia do Norte e o
temor de uma infiltrao vermelha no Sul.
Drama o gnero mais prolfero do cinema coreano por conta da verba diminuta. Com budget
quase sempre limitado, estdios conseguem contar boas histrias sem depender de muito alm
de um bom roteiro. Intrigas conjugais e suas traies amorosas so bem encenadas em O Dia Em
Que o Porco Caiu no Poo (
, 1996) e A Mulher de um Bom
Advogado (
,
2003). Em caso de
desejo por aprofundamento no gnero
dramtico, corra atrs de A Virgem
Desnudada Por Seus Celibatrios (Oh, SooJong!, 2000), Samaria (, 2004)
Crying Fist ( , 2005), Christmas in
August (8 , 1998) e The
Contact (, 1997).
COMDIA:
Muitos filmes de humor coreanos no apelam ao pastelo, preferem a criao de uma
atmosfera cmica s risadas fceis. So estes os recomendados aqui (desculpo-me de antemo
aos que buscam incessantes gargalhadas). o caso do curioso The Quiet Family (
,
1998). A ambientao e a sinopse do filme predispe a plateia a crer se tratar de uma histria de
terror ou suspense. A famlia Kang adquire
um terreno em uma rea remota da
cidade e constri uma hospedaria para
abrigar os viajantes das montanhas. O
negcio um fracasso e ningum se
acolhe no alojamento. Eis que finalmente
chega um primeiro cliente, mas o objetivo
dele era suicidar-se no local. A runa do
fregus inaugural leva a famlia Kang a um
caminho sem volta. E sim, uma comdia,
no como American Pie, mas uma
comdia, assim como o prximo ttulo:
transformam
os
sequestrados em bobos
da corte, obrigando-os a
cantar, brigar ou jogar
com eles. Cada atitude
tomada
gera
uma
conseqncia imprevista
e de maior proporo,
at que o local vira um
campo
de
batalha
catico e surreal (existe
uma
continuao,
certifique-se de assistir ao
primeiro).
O posto de gasolina na verdade um
criativo microcosmo da sociedade sulcoreana durante a Crise Asitica do fim do
sculo XX, com jovens rebeldes e sem
limites, polcia corrompida e instituies
falidas. Um dos delinquentes destri uma
placa que incentiva a produtividade do
trabalhador coreano. Em outra cena um
policial ridiculariza a qualidade dos
veculos nacionais e a forma como so
produzidos. Quando andam no carro,
visvel a semelhana com os delinquentes de Laranja Mecnica. O filme mexeu com os jovens
coreanos e, no perodo do lanamento, vrios postos de gasolina reais foram depredados na
Coreia. Mas no se preocupem, essas so apenas camadas, o filme no pretensioso, uma
comdia acima de tudo, mas uma comdia com alguma textura.
O
famoso
Minha
Mulher
Mafiosa
(
,
2001) apresenta Eun-jin, a
nmero dois na hierarquia de uma
associao mafiosa. Apesar de bela, no
possui traquejos de feminilidade, vive como
os trogloditas do bando. Com um passado
duro em comum, a irm doente seu
nico porto seguro no mundo. Para realizar
o desejo da irm de v-la casada, Eun-jin
vai atrs de um matrimnio de fachada. A
frigidez da mafiosa colocada prova
quando ela se v obrigada a comportar-se de acordo com os cdigos de conduta da
sociedade. uma trilogia, da qual s assisti ao primeiro. Com acrscimo de ao baseada nos
filmes de kung fu chineses, uma comdia descompromissada, no espere nada marcante,
mas um ttulo realmente popular.
AO!
garonete , procura atalhos para o dinheiro fcil e acaba por se envolver com o crime
organizado, pior, com a mulher do chefe, mudando sua vida para sempre. Bittersweet um filme
de ao dramtico, Green Fish se escora mais no drama.
ROMANCE:
- Estou indo a um encontro! Voc est precisando se divertir. domingo, mas est preso aqui! Voc
no tem nenhum encontro! Mas que falta de sorte!
Lee Chang-dong, paralelamente ao seu
papel como cineasta, ocupou o cargo de
Ministro da Cultura da Coreia do Sul entre
2003 e 2004. Em seu filme mais
contundente, Oasis (
,
2002),
desaparece e remodela seu rosto base do bisturi, em uma das incontveis clnicas que
pipocam em Gangnam e outros bairros dos endinheirados da Coreia. Armada com sua nova e
irreconhecvel face, Sae-hee tentar conquistar novamente o parceiro que se julgou
abandonado. Como ele reagir? Assista para saber. O filme tem um olhar artstico e extremo
sobre a louca crise de identidade das coreanas que acreditam precisar do rosto de uma estrela
do Kpop, geralmente 15 ou 20 anos mais nova, para manter ou conquistar algum valor na
sociedade.
indiscutvel o pioneirismo das novelas
coreanas na Hallyu. Suas tramas saturadas
de situaes dramticas ou mesmo
fnebres conquistaram multides na sia e
ganharam adeptos na internet por todo o
mundo. No tanto a minha praia, mas
aos fs dos dramalhes ao estilo coreano,
a pedida More than Blue (
,
2009). O produtor fonogrfico K e a
compositora Cream passam a morar juntos, ambos com um passado atribulado nas costas e
largados no mundo, um acalentando a solido do outro. Uma doena terminal, no entanto, se
intromete entre os dois e introduz um terceiro elemento no trgico tringulo amoroso. Um legtimo
K-drama compactado no espao de um filme. A trilha sonora est nas mos do famoso cantor
de baladas Kim Bum-soo, com trabalhos em Stairway to Heaven e Secret Garden, populares
novelas da SBS.
O romance Il Mare (, 2000) foi popularizado pelo remake americano. Conta a histria da
trocas de cartas atravs de uma caixa de correio mgica entre um homem e uma mulher,
solitrios e separados pela dimenso temporal (ele vive no passado). Eu no gosto, mas existem
tambm as comdias romnticas sob uma frmula absolutamente americanizada. My Sassy Girl
( , 2001) uma comdia finalizada em drama, enquanto 100 Days With Mr. Arrogant
( , 2004) mantm o tom descontrado at o trmino e faz algumas piadinhas mais
picantes.
CINEMA ~CULT~:
Havia gente que pensava como voc em 1950. Lembra da dor que a guerra causou a este pas?
Lembro muito bem. Ficamos 50 anos merc destes polticos. Infelizmente, eles no querem a
reunificao. como se eu visse uma pea muito bem articulada.
No se engane. No o nico que deseja a unificao. Temos que esperar o momento certo.
Esperamos pela unificao. Sonhamos com ela. Enquanto vocs cantam essa cano, nosso povo no
Norte est morrendo nas ruas. Sobrevivem com razes e cascas de rvores. Nossos filhos esto sendo
vendidos. J viu pais comerem a carne dos seus filhos mortos? Com Coca-Cola e hambrgueres vocs
no saberiam
Titanic obteve um desempenho de pblico
que fez jus ao seu nome em todos os
pases, exceto em um, na Coreia do Sul,
onde foi superado em bilheteria pelo filme
local Shiri (
,1999).
Nele, uma tropa de
Voc ainda no aprendeu muito sobre Panmunjeom. Aqui, a paz preservada pela ocultao da
verdade. O que os dois lados realmente querem que essa investigao acabe em nada.
Outro igualmente relevante que d
ateno problemtica atual das Coreias
Joint Security Area (
,
2000).
Na zona desmilitarizada que fraciona os
dois pases, um incidente culmina na morte
de dois soldados norte-coreanos. Entre
acusaes conflitantes das motivaes do
incidente, uma junta diplomtica neutra
formada por integrantes da Sua e da
Sucia tenta reconstituir a cena do crime
com base em evidncias que os militares
de ambos os lados aparentemente preferem ocultar. Um ttulo com menos ao que Shiri, mas
com um roteiro mais sofisticado. Bom para refletir sobre a necessidade de diferenciar o
desmembramento poltico de dois governos e a separao fsica do mesmo povo. Novamente
os coreanos dos dois lados so apresentados como bons irmos abatidos por uma tragdia
poltica parida e alimentada por naes exgenas.
Essa a fraqueza do homem. Uma montanha alta o desafia a escal-la. Um lago profundo leva-o a
atirar uma pedra nele. Uma bela garota desperta seus desejos mais primitivos (1960).
A Empregada (
,
1960) o filme mais
importante da histria da Coreia e est
para os criadores do Tae Kwon Do como
Cidado Kane est para os americanos.
Um remake foi feito em 2010 e as
diferenas
entre
as
duas
verses
possibilitam um estudo de caso perfeito
para compreender a evoluo do fazer
cinematogrfico na pennsula coreana. Em
comum entre os dois est o esqueleto da
trama, no qual uma empregada em condies materiais desfavorecidas vai trabalhar na casa
de uma famlia e se entrega a um relacionamento proibido com o chefe da famlia, com
conseqncias inesperadas e trgicas. A semelhana acaba a.
Na verso original o chefe da famlia um pai honrado e moralista, de posses materiais
medianas, que se v encruzilhado em um jogo psicolgico perverso promovido pela empregada
manipuladora, uma vil que desmonta uma famlia estruturada. mais antigo e realista, com
mais tons de cinza na construo do roteiro. O comportamento da empregada felino, mas o
Este trabalho revoltante, feio, nauseabundo e vergonhoso! Desperdicei a minha vida inteira nesta
casa. Quanto tempo mais pensa ficar aqui? (2010)
A nova verso a cara das atuais produes audiovisuais do pas. Contm locaes lindas,
elenco idem, cenas de erotismo, direo explcita e um final surrealmente bizarro. Nesta,
adotaram uma perspectiva maniquesta e contrria ao visto no filme original. Aqui, a nova
empregada pintada como uma boa pessoa, inocente, vtima dos desmandos de uma famlia
milionria e apenas superficialmente coesa. Ela se entrega ao relacionamento proibido coagida
pelo patriarca sedutor, a princpio contra sua vontade. Depois se v presa em um circo de
intrigas de uma famlia composta por psicopatas sociais. O remake pega o cinza do original e
separa preto do branco. Entretenimento bizarro, muito bem dirigido. Uma aula das diferenas
entre o cinema coreano na era de ouro para o da era do entretenimento. Esta a minha leitura
das duas verses, recomenda que assista ambas. Eu prefiro o original.
CONSIDERAES FINAIS
O cinema da Coreia do Sul ainda um
nanico quando colocado ao lado de
potncias que iniciaram a produo
audiovisual h mais de um sculo, mas
um caso de sucesso a ser estudado por
todos os coadjuvantes que esperam um
dia ganhar dinheiro com exportao
cultural e reforar seu soft power, uma
prtica dominada com maestria por
naes como os EUA e o Japo. Este post
introdutrio a ponta do iceberg
composto quase exclusivamente por ttulos
pop, mas a tradio cinematogrfica coreana mais ampla. O Korean Film Archive faz o
trabalho de curadoria e recomenda dezenas de filmes em listas como estas: 50 independent
films, 100 korean films (at 1996) e 100 korean films (inclui os mais recentes). Como estratgia de
divulgao, eles hospedam vrios destes filmes no canal KoreanFilm do Youtube com legendas
em ingls para assistir de modo legal.
Com um trabalho presente nas redes
sociais,
muitas
informaes
sobre
novidades e histria do cinema coreano
so compartilhadas com os anglfonos,
por profissionais da rea ou fs, no site
KoBiz e nas pginas do Facebook Korean
Film Council, Modern Korean Cinema,
Korea on the Couch, HanCinema, entre
outras. Fora a infinidade de blogs dos
fanticos pela Kculture. Os coreanos
sabem se vender muito bem, tornam o contedo deles acessvel a todos que dominam a
lngua de Shakespeare. Os caminhos existem, basta querer viajar.
Para
finalizar,
devo
humildemente
reconhecer que eu sou um iniciante no
assunto e h um pouco de pretenso em
escrever um texto inicial a respeito de toda
a produo cinematogrfica de um pas
sem ter assistido nem uma centena de
exemplos. Ainda no consumi diversos
clssicos ou ttulos famosos que o leitor
possivelmente sentiu falta. Tambm tenho
pouca quilometragem nas produes mais
recentes e no cenrio indie, e sequer
resvalei no assunto do cinema produzido pela Coreia do Norte (sim, existe). Meu objetivo aqui
foi introduzir o tema aos que desconhecem, estabelecer dilogo e aprender com os
comentrios dos fs do cinema da Coreia.
29 de Dezembro, 2014
objetos, plantas, animais ou modos de agir. Kawaii tambm um modo de falar, um estilo de
vida, um comportamento jovem. Exato, o kawaii no se expressa apenas no design, nas artes
plsticas, na publicidade e nos produtos de consumo que vo de material escolar a produtos
bancrios , mas testemunhado na conduta e mesmo na sexualidade dos nipnicos. Um
cachorro fofinho? kawaii. Uma menina tmida? Kawaii. Uma personagem de mang
atrapalhada? Kawaii. Um chapu bonito? Kawaii. Um sorvete de tutti-frutti? Kawaii. Com o
tempo os japoneses esto abrindo cada vez mais o leque de possibilidade de uso do termo.
Meninas de comportamento kawaii aparentam (no necessariamente possuem!) a maioria
dessas caractersticas: passividade, vulnerabilidade, carncia, desamparo, impotncia e
inexperincia. So doces, GENUNAS essa palavra importante -, reservadas, obedientes e
irresponsveis. Em casos mais srios, entortam os joelhos, fazem biquinho, olham de baixo para
cima desnorteadas, batem o p e falam com voz doce, beirando a tolice. Mesmo no colgio,
onde so foradas ao processo de padronizao com os uniformes de marinheira, do um
toque infantilizado numa presilha, num modo de amarrotar a meia.
Diferente da beleza, caracterizada pela raridade, distncia e inacessibilidade, o kawaii
interpretado pelos apreciadores como prximo, cotidiano e material. Ele atrai afeio
em vez de admirao. O kawaii rejeita pedestais, por isso os membros de grupos femininos como
AKB48 e Morning Musume so escolhidos a dedo para aparentar como garotas ordinrias que
poderiam estar sentadas ao nosso lado na escola. Dentes tortos e franjinha so festejados. O
kawaii tambm mutvel e possui nichos. Nos anos 80, por exemplo, ele era puramente infantil.
Na dcada de 90 passou a ser mais
andrgino e cmico, atualmente ele
mais street fashion. H subdivises, casos
do erokawaii, busukawaii, kimokawaii, mas
nisso no me alongarei. Na cultura kawaii,
o lado mais perverso da infncia tambm
emulado em casos extremos, como a
automutilao. De modo geral, o oposto
do usualmente praticado pela indstria
cultural dos EUA e a noo de diva, e
em parte pelas agncias de K-pop na
Coreia do Sul.
A atrao pelo infantilismo transcultural e j explicada pela Psicologia Evolutiva. A ateno
antes dada proteo da prole saudvel hoje expressa pela afeio por eles, j que no
precisamos mais escond-los de ursos e cobras nas cavernas. Estudos sugerem que observar
traos desproporcionais capazes de remeter lembrana de bebs, mesmo em coisas ou vidas
inumanas, estimulam a mesma regio cerebral responsiva ao sexo, alimentos saborosos e drogas
viciantes. Os americanos de fato criaram o Snoopy e os coreanos a Pucca, personagens
essencialmente kawaii. No Japo, todavia, a proporo outra. O bonitinho no restrito s
crianas. Exemplifico:
O Partido Comunista de Nagoya adotou uma girafa kawaii como logo nas eleies nacionais de
1993. As poderosas Foras de Autodefesa do Japo usam uma mascote kawaii chamado Prince
Pickles para promover suas atividades, assim como quase todas as provncias possuem suas
mascotes. O Partido Conservador usa as
meninas do AKB48 para propagandear
poltica em Tquio. Bancos e seguradoras
vendem servios financeiros sob esta
esttica. Mecanismos kawaii so usados
em placas informativas de assuntos srios
(risco de incndio ou cartazes de busca de
terroristas), protestos contra as bases
militares americanas, ou mesmo em
situaes de repugnncia, como em casos
de estupro de menores.
Tamanha a simplicidade da concepo desta personagem, que chega a ser difcil descrever a Hello
Kitty. Seu desenho to bsico, to sem efeito de volume, que qualquer criana capaz de desenh-la.
Kitty uma gatinha branca, de pequenos olhos, sem boca, e com um lao do lado direito da cabea. Foi
com tal aparncia zen que ela conquistou o mundo, e permitiu que a empresa Sanrio construsse um
imprio internacional (Cristiane Sato)
Kitty-chan uma gata antropomorfizada
criada em 1960 pela designer Yuko Shimizu,
ento funcionria da japonesa Sanrio, com
o objetivo de estampar artigos de
papelaria. Hoje a marca Hello Kitty
movimenta US$7 bilhes de dlares
anualmente em mais de 110 pases, com
dezenas
de
milhares
de
produtos
licenciados (fora a pirataria). Apesar de
conhecida apenas pela Kitty-chan no
Ocidente, a Sanrio possui mais de 450
personagens, muitos deles populares no Japo, como Chococat, Keroppi, Tuxedo Sam,
Pochacco, My Melody e Badtz-Maru. Entre os produtos licenciados, alm dos bvios cadernos,
existem:
parques
temticos,
cafeterias,
carros,
jornal,
preservativos
e
bebidas
alcolicas. Detalhe: diferente dos personagens Disney, no havia gibi, desenho animado ou
filme para alavancar o sucesso dela. Ela construiu essa fama global com a sua imagem esttica
nos produtos.
Como uma personagem embasbacante de to simples, virou um Embaixador literalmente, pois
ela foi Embaixatriz da Unicef em 1983 bilionrio da cultura japonesa? Personagens kawaii
possuem ingredientes fundamentais. Devem ser fofos, pequenos, tingidos em tons pastel,
arredondados, macios, leves, amveis, preferencialmente mamferos, sem apndices ou orifcios
corporais (nariz, brao), inseguros, perdidos, desesperanados. Confeccionados em materiais
simples e infantis, como pelcia ou plstico. Desenvolvidos sob encomenda para emular as
pessoas mais fracas da sociedade.
Sob uma perspectiva tcnica, um design minimalista, sem detalhes ou relevo, facilita a
reproduo industrial a custo baixo. O minimalismo importante na criao de um personagem
Na raiz dessa afeio h uma sensibilidade esttica tradicional e singular que traduzida por meio de
uma receptividade e predileo pela planicidade, abreviao, simbolismo e simplificao. intrigante
pensar que possa efetivamente haver uma base histrica comum entre a sensibilidade da Era Edo (16031868), que estava preocupada com os aspectos plano e raso do Ukiyo-e [xilogravura japonesa], e a do
japons contemporneo, que v os personagens de anime e mang como entidades surpreendentemente
reais (Hiroyuki Aihara)
A histrica afinidade japonesa pelo bonitinho pode ser monitorada por suas manifestaes
artsticas. Na literatura, h mais de um milnio, Sei Shonagon descreveu com clareza esse
Maturidade, que no Ocidente tem sido associada autoridade e direitos individuais, ainda tende a ser
pensada de acordo com o modelo confuciano no Japo moderno. Ou seja, a maturidade geralmente
vista como a capacidade de cooperar bem dentro de um grupo, aceitar compromissos, cumprir obrigaes
com os pais e funcionrios, e assim por diante (Sharon Kinsella)
Essa infantilizao da aparncia que causa espanto no ocidente justamente o que atrai o
japons. A criana, o assexuado ou a virgem livre de responsabilidades e papeis sociais
complexos e exigentes. Um adulto que,
numa sociedade coletivista, se entrega
aos seus desejos e fraquezas pode ser visto
como moralmente fraco e egosta. A
cultura kawaii representa a vontade de
criar uma sociedade horizontalmente
estruturada, mais amigvel e guiada pelas
emoes, em detrimento da nsia
racional, expansionista, hierarquizada e
baseada no poder que caracterizou o
Japo do passado.
A sociedade e a famlia japonesa, tendo conscincia do espinhoso cotidiano dos adultos
japoneses, consideram a infncia um momento da vida absolutamente idealizado, portanto
permitem aos seus rebentos momentos de felicidade idlica antes que eles cresam e encarem o
quase desumano estilo de vida japons. Cria-se um ciclo vicioso, onde algumas crianas, aps
uma infncia artificialmente aucarada, sucumbem quando encaram a dura realidade da vida
adulta, e, sofrendo sndrome de Peter Pan, consideram que ser adulto intolervel, criando para
seus prprios filhos a mesma tenda idlica para que eles aproveitem os nicos anos da vida que
supostamente valem pena. A ideia de que o comportamento kawaii natural da pessoa, foi
suprimido pelos deveres sociais e urge achar rachadura por onde pode liberar a tenso.
Diferente do uso da insinuao sexual por parte da juventude ocidental como meio de
afirmao de maturidade que elas ainda no possuem (Miley Cyrus, Vanessa Hudgens), os
jovens japoneses caminham no sentido oposto, enfatizando sua imaturidade e incapacidade de
lidar com as responsabilidades da vida adulta, mesmo quando j as possuem. Meninas querem
casar por amor, e no mais por compromisso. Adultos querem a pureza perdida. Polticos
desejam de afastar do passado expansionista do pas, a oposio quer condenar o status quo.
Cada um encontra um uso particular para a mesma esttica.
Comportamento infantilizado foi considerado genuno e puro [pelos entrevistados japoneses] o que
implica que as experincias e relaes sociais adquiridas aps a maturidade foram consideradas como
formadoras de uma falsa superfcie externa () embora, ironicamente, o bonitinho seja extremamente
artificial e estilizado (Sharon Kinsella)
Kawaii mais do que os seus diplomatas (Hello Kitty, Pikachu, Sailor Moon, etc.) que resumem a
perspectiva global sobre a cultura popular japonesa. Sob a superfcie de seu uso superficial como uma
ferramenta de capitalismo consumista, [o conceito] kawaii atua como um lubrificante social onipresente.
Otaviano Medeiros
Ocidentais santinhos, Ocidente, uma sociedade saudvel, onde no h drogas e nem fugas de realidade. Me
poupe. Entre uma realidade de fuga kawaii, pureza e afins e uma realidade de fuga pelas drogas, e afins. Eu
sou 300000000000000000000000x a cultura japonesa kawaii. Tpico do Ocidente querer se meter na cultura
alheia, j fizeram e obrigaram o Japo a ser imperialista, e ainda querem obrigar que os japoneses se
comportem e tenha a mesma filosofia que os ocidentais. Mais uma vez, me poupem. E ah, drogados o
caraio.
otakismo2
Ok e quem disse que o Ocidente no tem suas prprias vlvulas de escape? No abordar um problema no
significa negar a existncia dele. O texto diferencia o Japo do Ocidente APENAS no tocante ao
infantilismo enquanto esttica. O texto s aponta a opinio de estudiosos que defendem as condies atuais
do Japo como predisponentes do infantilismo cultural, no que essa seja a nica vlvula de escape do pas,
nem que o pas o nico a ter vlvulas de escape. Fora que destacar diferenas e tentar entender a cultura
alheia muito diferente de exigir ou desejar que os japoneses adotem os mesmos comportamentos dos
ocidentais (situao defendida em nenhum momento do post).
No mais, no me parece justo comparar os casos radicais do ocidente os toxicmanos com os casos
brandos/moderados do Japo. preciso lembrar que o Japo tem uma das mais altas taxas de suicdio do
mundo (quase 30 mil/ano, o 7 pas com a maior taxa per capita de suicdios), possui uma quantidade
enorme de reclusos sociais extremos (hikikomori) e alguns dos foragidos da realidade japoneses j partiram
at mesmo para o terrorismo domstico (Aum Shinrikyo e o infame atentados com gs sarin contra a prpria
populao). Toda sociedade possui esqueletos no armrio.
Tambm pouco razovel defender que o Ocidente OBRIGOU o Japo a ser Imperialista. At porque o
Japo j tinha invadido a pennsula coreana e o reino de Ryukyu (atual Okinawa) sculos antes da
ocidentalizao e da anexao formal dessas regies.
19 de Abril, 2015
negligenciadas. Abusadas por parentes distantes ou tutores, inmeras fugiram de casa e viveram
de mendicncia ou pequenos crimes. O filme as mostra como vtimas no apenas da guerra,
mas da estrutura social insensvel do perodo de guerra. As privaes materiais revelaram o pior
do lado humano no s entre inimigos.
Ultrajado pela perseguio promovida
pela tia, Seita pega as economias
bancrias da me e vai viver com a irm
em um tipo de gruta, na rua. L, estariam
protegidos das bombas e tambm dos
adultos entorpecidos. L, viveriam como
bem entendessem. L, poderiam comer
quanto arroz branco pudessem comprar
com as economias da famlia, no mais o
mingau ou o caldo ralo servido pela
megera da tia.
A realidade passou um rolo compressor
nessa escolha. Os parcos alimentos
produzidos no Japo eram prioritariamente
enviados para os soldados em batalha.
Dinheiro e objetos caros no tm valor em
um contexto de fome e comida passa a
ser a nica moeda de troca possvel. Os
irmos precisam improvisar e passam a
comer rs, estratgia insuficiente para
prevenir a desnutrio da pequena
Setsuko.
Ela morre. A me j havia falecido. O pai
deles encontrou seu fim no mar. O Japo
perdeu a guerra e a Constituio Imperial
foi substituda por uma redigida pelo
inimigo. Parentes, pas e ideologia, tudo o
que atribua sentido vida de Seita
naufragou em 1945. Restou a ele se
entregar tambm morte, como os
samurais de quem falavam na escola.
O foco infantil de Hotaru no Haka no foi
escolhido com o nico intuito de
sensibilizar. A motivao ainda mais triste.
O escritor do livro, Nosaka, sobreviveu
guerra por comer todos os alimentos que
deveria ter compartilhado com a irm
Keiko. Ela morreu por m nutrio e o
autor, consumido pela culpa, escreveu o
livro como uma espcie de exorcismo
desse sentimento e homenagem
falecida irm, que pagou com a vida a
sobrevida do irmo.
Uma anlise mais acurada de Hotaru no
Haka fomenta uma ideia perturbadora: Seita, a pessoa que mais sofreu no decorrer do filme,
tanto vtima quanto vilo. A concluso no pode ser diferente, Seita matou a irm Setsuko. Ou
melhor, a ideologia que implantaram na cabea de Seita custou a vida de Setsuko. Que
ideologia era essa? O cdigo do guerreiro samurai, junto ao nacionalismo, divindade do
Imperador e ideia de superioridade da raa japonesa. Vamos desenvolver essa ideia.
Aps a Restaurao Meiji de 1868, o sistema de classes no Japo foi abolido, o que significou a extino
do samurai enquanto classe. No entanto, o Bushido no desapareceu, mas teve seu segundo turno como
uma Moral Nacional. Na poca do sentimento pblico de dominao militarista e nacionalista no Japo
(1930-45), o Bushido foi um poderoso instrumento de impacto ideolgico na sociedade japonesa.
Aps passar 250 anos completamente
isolado sob o comando militar da classe
guerreira (o Shogunato Tokugawa), o
Japo foi forado a abrir suas fronteiras
para o comrcio, extinguiu a diviso social
por classes e instituiu o Estado Moderno no
final do sculo XIX. Com medo de ser
colonizado
por
alguma
potncia
ocidental, como aconteceu com quase
todos os pases da sia na poca, o Japo
buscou a rpida modernizao industrial,
militar, cientfica e financeira. Em um pas
pequeno e de recursos escassos, isso resultou em expansionismo e colonizao. O Japo se
tornou aquilo que temia nos outros. Invadiu, dominou e barbarizou a China, a Coreia, a Malsia,
Cingapura, entre outros.
Alguns dos fundamentos ideolgicos que justificavam a agresso eram a superioridade da raa
e do projeto civilizador japons e a manuteno e viabilizao da divindade do Imperador e do
Japo tradicional, que seriam garantidos pelo progresso tcnico. Alguns dos burocratas da
educao e todos os militares dessa poca eram antigos samurais. Eles trouxeram o Cdigo do
Guerreiro dos samurais (Bushido) para os quartis e salas de aula de todo o Japo.
Nas escolas, todos os estudantes liam sobre os modos dos samurais, sobre Bushido (o draconiano cdigo
do samurai), sobre o ritual seppuku (ou harakiri, ritual suicida) () Durante o conflito no Pacfico,
Um fato crucial a se lembrar sobre o Bushido que, a partir de 1615, o Japo tinha vivido em paz
ininterrupta por mais de 250 anos (no existe paralelo na histria mundial). Os samurais,
frequentemente estereotipados como ferozes guerreiros, tornaram-se burocratas, enquanto, com suas
canetas, registravam o caminho do samurai. Por causa do longo perodo de paz ininterrupta, o cdigo do
Bushido comeou a ser registrado de modo idealista, metafsico e romntico
Durante o perodo Tokugawa, o Japo
passou por mais de dois sculos de paz
interna e externa. Os Daimiyo (senhores
feudais) e o Shogun gastavam amplos
recursos para sustentar uma classe
guerreira que simplesmente no tinha mais
utilidade.
O
samurai,
que
vivia
exclusivamente em funo da guerra,
entrou em crise existencial. Ele se
preparava durante toda a vida para
combates que no aconteciam. O samurai
do perodo Tokugawa era um guerreiro
Buzzatiano. Muitos viraram burocratas, poetas, filsofos, professores de artes marciais,
comerciantes. Foi nessa poca que alguns desses samurais sistematizaram no papel o cdigo do
guerreiro, louvando o valor do sacrifcio, a beleza e a inefabilidade do perecimento, a
preferncia da morte honrada rendio aviltante.
Ou seja, muitos dos valores pelos quais reconhecemos os samurais, dentro e fora do Japo, so
uma inveno (ou amplificao) intelectual do sculo XVII! O conceito de que o samurai, como
classe, prefere a morte fuga foi escrito e disseminado por samurais que nunca participaram de
guerras e viviam da pena (ainda que existam casos reais anteriores, no era regra). O Hagakure,
obra maior do Bushido, foi escrito oito dcadas aps a pacificao do Japo. H vrios registros
histricos mais antigos de samurais que escreviam em suas memrias fugas despudoradas
quando a situao era desfavorvel, como afirma o historiador Thomas Conlan. A prpria
resistncia japonesa Primeira Invaso Mongol no sculo XIII contm episdios tticos de fuga
samurai.
O Bushido, de certa forma, foi criado mais pela pena que pela espada. No digo que no existia
um cdigo moral oral anterior ou que atos radicais de sacrifcio no existiram antes, estou
falando que eles foram idealizados e amplificados quando transcritos no papel. Os samurais que
vieram depois, no entanto, tomaram essa verso esttica como uma constante histrica.
O suicdio planejado de samurais no Levante de Satsuma a ltima grande rebelio samurai
da histria prova disso, quando eles avanaram de peito aberto e espadas em punho contra
as armas modernas do ocidentalizado exrcito japons, aps passarem a noite escrevendo
poesia sobre a moralidade e o encanto da morte honrada. Algo assim seria bem menos
provvel nos perodos Kamakura (1185-1333) ou Muromachi (1336-1573). Quando se luta por
arroz, poder e terras frteis, e no por uma identidade em si, a morte encarada como
consequncia inevitvel do combate justo, no com desejo suicida.
Outro detalhe, o Bushido foi sistematizado como um cdigo que diferenciava os samurais do
resto dos japoneses, quando as classes sociais foram estabelecidas por Toyotomi Hideyoshi (um
dos trs unificadores do Japo), numa condio hierrquica de superioridade. Samurais cerca
de 10% da populao japonesa na poca tinham privilgios legais sobre os demais. O Exrcito
e as escolas japonesas distorceram completamente o conceito j idealizado de um samurai e o
generalizaram. Esperava-se um samurai de cada japons. Foi um processo de absoluto
doutrinamento que transformou o soldado japons em um guerreiro medieval romantizado o
problema foi que esse soldado era real e portava armas modernas. O resultado conhecido:
kamikazes, Massacre de Nanquim, Unidade 731, recusa de Rendio mesmo quando j era
sabido que a guerra estava
perdida, sacrifcio intil de
japoneses
em
reas
perifricas em relao
capital
Tquio
(como
Okinawa), e etc.
A explorao do cdigo do
guerreiro ia de encontro ao seu
objetivo original. O Exrcito
Japons moderno era composto
basicamente por camponeses e
mercadores, e o Cdigo do
Guerreiro sempre fora um meio
de definir como os samurais se
diferenciavam
das
outras
classes. Durante a luta no
Pacfico, a nfase que o Cdigo do Guerreiro dava ao auto-sacrifico revelava-se na falta de considerao
dos soldados japoneses pela prpria vida. Acreditando que a morte era melhor que a rendio, os
soldados do Exrcito Imperial, em diversas batalhas, incluindo Guadalcanal e Iwo Jima, realizavam
ataques suicidas quando a derrota tornava-se iminente. E havia os Kamikaze, pilotos que embarcavam
em misses suicidas jogando os avies contra navios Aliados. Usando o termo kamikaze, o vento divino
que destruiu a Armada Mongol no sculo XIII, os pilotos modernos sentiam-se ligados a um passado
glorioso.
fcil constatar o resultado de uma educao militarista nas aes dos soldados em guerra,
mas isso menos evidente no comportamento dos civis japoneses que no lutaram diretamente
no front, mas foram criados pela mesma mentalidade. disso que se trata Hotaru no Haka. Seita
matou Setsuko porque seguiu o Hagakure, e no a razoabilidade da situao. O fazendeiro de
quem tentou comprar alimentos o orientou, engula seu orgulho, pea desculpas sua tia e
reconhea que em tempos de guerra duas crianas nada podem fazer. Seita teimou em
carregar o fardo da criao de Setsuko nas prprias costas, orgulhosa e decididamente. Oras, foi
o que lhe ensinou o Hagakure, a mais famosa cartilha samurai: A pessoa no precisa de vitalidade
nem de talento. Em suma, basta ter vontade de carregar sozinho sobre os ombros todo o cl.
A percepo dele da guerra era
infantilizada e ingnua. Mesmo enquanto
sofria as agruras e privaes do conflito,
antes de dormir ele imaginava o glorioso
navio do pai, os fogos de artifcio, a
grandeza do Imprio Japons. Nem por
um momento ele parou para pensar nas
conseqncias das agresses promovidas
pelo pai militar, ou para reconhecer a
difcil condio na qual se encontravam
como resultado disso. E que simbolismo
melhor para essa militarizao da infncia
que um dos psteres do filme? A menina
Setsuko, de quatro anos, batendo
continncia, simulando um capacete com
um utenslio domstico na cabea e
usando fralda.
Aqui retomo a metfora dos vaga-lumes.
Eles no referenciam apenas as bombas
incendirias americanas, mas a brevidade
da vida das crianas no perodo. Vagalumes, que apenas por um breve perodo
emprestam sua luminosidade ao mundo.
Vaga-lumes que foram sepultados, na guerra ou nas cidades, por um fervor nacionalista,
militarista e racista que felizmente foi derrotado, infelizmente ao custo de milhes de vidas
inocentes (ou politicamente condicionadas).
O ltimo frame do filme
a cereja do bolo. Os
espritos dos irmos esto
sentados em um banco,
cercados de vaga-lumes,
enquanto
olham
ternamente para uma
moderna
metrpole
japonesa.
Prspera
e
pacfica. Como que para
lembrar aos espectadores
japoneses dos anos 80, o
auge
do
progresso
econmico do pas, o preo que os antepassados pagaram por isso. Nos fundamentos de cada
um desses prdios esto os tmulos de muitos vaga-lumes. Setsuko, Seita, o pai deles, as vtimas
militares do pai deles, os filhos dessas vtimas espalhados pela sia e Amrica. Isso no pode ser
esquecido.
Fontes:
Som e sentido na lingstica dos kanji (Leonardo Boiko)
KAMIKAZE Japans Suicide Gods (Albert Axell e Hideaki Kase)
Peace education through the animated film Grave of the Fireflies Physical, psychological, and structural
violence of war (Daisuke Akimoto)
Transcending the victims history: Takahata Isaos Grave of the Fireflies (Wendy Goldberg)
Grave of the Fireflies and Japans Memories of World War II (Masako N. Racel)
Forming nationalistic mentality of Japanese youth by Japanese ruling circles with use of bushido ideology
(Andrei Vasilevich Golomsha)
Comentrios Relevantes
responsabilidade. Esses traos so compartilhados por Grave of the Fireflies e Barefoot Gen. Centrados
nos anos 1940, os dois filmes se encaixam no termo histria de vtima de formas bastante bvias.
Primeiramente, os filmes provocam uma descomplicada resposta emocional de simpatia por parte dos
espectadores ao se focarem em crianas inocentes devastadas pela destruio da guerra. Como resumem
dois crticos de anime [a saber, Trish Ledoux e Doug Ranney, no livro The Complete Anime Guide]:
francamente impossveis assistir essa produo sem ser drenado emocionalmente. O uso de convenes em
geral realistas (Grave of the Fireflies, em particular, tem um tom orgnico, naturalista, e ambos os longas
so efetivos em recriar um perodo de guerra por meio de representaes arquitetnicas e de vestimentas
tradicionais [o que, a meu ver, tambm colabora com o distanciamento histrico]), e de uma estrutura
narrativa direta tambm ajudam o espectador a se identificar com as histrias de partir o corao
mostradas em tela
T, eu sempre abuso das citaes.
Em suma, se um discurso distorcido que os militares e educadores japoneses fizeram da histria e da
cultura nipnicas, sobretudo a respeito do legado dos samurais foi utilizado para justificar a guerra e
indiretamente vitimar seu prprio povo, um discurso igualmente construdo a posteriori parece estar sendo
perpetuado, e aqui endossado, para eximir o Japo da responsabilidade por travar tal guerra. Isso nos leva a
aberraes como o fato do sistema educacional japons, um dos melhores do mundo, omitir as atrocidades
que caracterizam determinado perodo da histria da nao, servindo tambm para alienar o arquiplago do
restante da sia, a qual ele insiste no dever coisa alguma. Enfim, me parece chegada a hora de parar de
comprar essa histria de vtima individualizante, invariavelmente ludibriada e indefesa. O Japo, enquanto
nao, precisa assumir a responsabilidade pelo que fez e tem feito.
P.S: Parando para pensar, parece que eu s comento nos seus textos para discordar. Hahaha. Foi mal a. No
d ateno e continue com o bom trabalho.
otakismo2
sempre um prazer ler seus comentrios, principalmente com contrapontos que me ajudam a pensar melhor.
Permita-me ampliar meu ponto de vista. A distoro histrica da figura do samurai no usada aqui para
justificar o esforo de guerra em si, o colonialismo, a poltica racial ou a viabilizao do projeto pan-asitico
liderado pelo Japo, ou seja, a moldura maior do perodo. Nem esse o propsito dos historiadores que
denunciam essa mistificao. Na verdade, eu nem me atrevi a desdobrar esses assuntos no post e sempre
peguei no p da alienao histrica japonesa (nos posts sobre Paranoia Agent, Superflat, etc).
Nesse texto, o objetivo nico entender o radicalismo mpar empregado por soldados japoneses rasos e civis
na poca militarista, uma tentativa de entender o que particulariza o caso japons num contexto de barbrie
global generalizada. No h paralelos para o que os kamikaze faziam, no h outros exemplos de resistncia
civil to fervorosa ao conceito de rendio e isso custou muitas vidas. No defendo que TODO o mindset
japons foi formatado em meio sculo por burocratas, mas alguns atributos antigos como a divindade do
Imperador, trabalhados de forma distorcida pelas instituies modernas e pela mdia de massas controlada,
geraram seus efeitos. No me parece uma anlise errada.
Agora, se algum estendeu esse argumento para querer explicar todo o perodo, eximir por completo a nao
de qualquer culpa, se colocar no papel exclusivo de vtima, a eu no assino embaixo de forma nenhuma.
No acho, todavia, que preciso ser ausente de culpas para ser tambm muito vtima, principalmente
quando se d poder para que as ordens do Hideki Tojo determinem o destino de milhes de pessoas.
totalmente possvel ser vtima do monstro que ajudou a criar, e esse me parece o caso japons da poca.
Sobre o argumento da Napier, no tenho certeza se o conluio do Japo liberal com os EUA o motivo
principal que faz o pas esconder HOJE seu passado recente. H aspectos culturais e tambm estratgicos em
jogo que distinguem o caso japons da Alemanha ou da Itlia. E tambm o Japo atual estvel, prspero e
convictamente democrtico do Japo dos anos 50, humilhado e militarmente ocupado na Guerra Fria. A
prpria Alemanha, de tradio monrquica, passado genocida e financiada pelos EUA, teve uma relao
com sua memria histrica bem diferente durante a reconstruo do pas, dentro de um contexto
semelhante
Portanto, novamente, um colosso: Cento e vinte pginas de Otakismo, com anlises acuradas,
sugestes de filmes e plulas histricas de primeira categoria.
Agradeo, e me repito neste ponto, ao Kau/Otakismo pela satisfao que seus textos me
proporcionaram, a estranha inspirao que me fez criar as duas copilaes destes contedos, e
dedico este trabalho, mais uma vez, a todos seus futuros leitores.
At algum dia!
Elrik de Melnibon