BARBA, Eugênio - A Canoa de Papel PDF
BARBA, Eugênio - A Canoa de Papel PDF
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A Canoa de Papel
TRATADO DE ANTROPOLOGIA TEATRAL
Traduo de
PATRlCIA ALVES
EDITORA HUCITEC
Humanismo, Cincia, Tecnologia
So Paulo, 1994
TEATRO
TITULOS EM CATLOGO
A Canoa de Papel
TRATADO DE ANTROPOLOGIA TEATRAL
Copyright 1993 by Eugenio Barba. Direitos de publicao e de traduo (da edio italiana La
Canoadi Carta- Trattato di Antropologia Teatrale, Societ Editrice iI Mul ino, 1993 ) reservados pela
Editora de Humanismo, Cincia e Tecnologia HUC1TEC Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042
So Paulo, Brasil. Telefones : (011)530-9208 e 543 -0653. Fac-smile: (011)535-4187.
ISBN 85-271-0267-6
Foi feito o depsito legal.
sUMRIO
PREMISSA
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2 DEFINIO. . . . . . . . .
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5 A ENERGIA, OU SEJA, O PENSAMENTO . . . . . .
"Nunca mais esta palavra". Sete dcimos - a energia da ao absorvida.
"Sats" - a energia pode ser suspensa. Intermezzo: o urso que l o pensamento, ou seja, decifra os "sats". Animus e Anima - temperatura da
energia. Pensamento em ao - a energia nos seus percursos. Volta
casa.
6 CORPO DILATADO. NOTAS SOBRE A PESQUISA DO SENTIDO 119
Ao teatro com minha me . Um dia se reencontra uma menina. O sentido
e as teorias. Um ritual vazio e ineficaz. Os espectadores adormecidos. O
corpo-mente. Pensamento e pensamentos. O Holands Errante. Crculos
quadrados e lgicas gmeas. O guru no sabe nada. Shakespeare, prlogo
de "The Life of Henry the Fifth". Voc sempre muito belo. A princesa
que controlava os ventos. A metade feminina de Shiva, lua e escurido.
Um punhado d'gua.
7 UM TEATRO FEITO SEM PEDRAS E TIJOLOS . . . . . . .
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Teatro e drama. Pr-expressividade e nveis de organizao. A deriva dos
exerccios. A lua e a cidade. O sorriso da me. Viver segundo a preciso
de um desenho.
8 CANOAS, BORBOLETAS E UM CAVALO . . . . . . . . . . . 193
Apenas a ao viva mas s a palavra permanece. Quipu. O povo do
ritual. Palavras-sombra. Cavalo de prata. Uma semana de trabalho.
NDICE ANALTICO . . . . . .
. . 245
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PREMISSA
II
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PREMISSA
Captulo 1
E.B.
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BARBA, Alla ricerca dei teatro perduro (Em busca de um teatro perdido.
Grotowski, uma proposta da vanguarda polonesa), Pdua, Marsilio, 1965. Este foi o
ptimeiro livro sobre Grotowski e foi publicado na Itlia e na Hungria. A traduo
francesa circulou como manuscrito nos crculos teatrais, e extratos desse manuscrito
foram editados em revistas francesas, alems e escandinavas - fragmentos em ingls
foram publicados por Richard Schechner no Tulane Drama Review antes de 1964.
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do corpo, uma tcnica especfica - e logo sair deste. Este "desvestirse" e "vestir-se" da tcnica cotidiana tcnica extracotidiana e da tcnica pessoal a uma tcnica formalizada asitica, latino-americana ou
europia, obrigou-me a formular a mim mesmo uma srie de perguntas
que me conduziram a um novo territrio.
~
Para conhecer mais, aprofundar e controlar a pragmaticidade destes
princpios comuns, devia estudar tradies teatrais distantes da minha.
As duas formas espetaculares codificadas ocidentais que pudera analisar
(o bal clssico e o mimo) estavam muito prximas de mim e no me
puderam ajudar a fixar a transculturalidade dos princpios-que-retornam.
Em 1979 fundei a ISTA, International School of Theatre Antropology. Sua primeira sesso foi realizada em Bonn em 1980 e durou um
ms inteiro'. Participaram como professores artistas de Bali, Taiwan,
Japo e ndia. O trabalho e a pesquisa confirmaram a existncia de
princpios que, no nvel pr-expressivo, permitem gerar a presena teatral, o corpo-em-vida do ator capaz de fazer perceptvel aquilo que
invisvel: a inteno. Notei que a artificialidade das formas do teatro e
da dana que passam de um comportamento cotidiano a um "estilizado"
a premissa necessria para produzir um novo potencial de energia,
resultado de um excesso de fora que se encontra com uma resistncia.
Na ISTA de Bonn verifiquei nos atores bailarinos asiticos a presena
dos mesmos princpios que tinha visto nos atores do Odin Teatret.
s vezes se afirma que eu sou um "perito" em teatro oriental, que
estou influenciado por ele, que adaptei suas tcnicas e procedimentos
minha prxis. Atrs da verossimilhana desses lugares-comuns se esconde o contrrio: atravs do conhecimento do trabalho de atores
ocidentais - os do Odin Teatret - pude olhar alm da superfcie
tcnica e dos resultados estilsticos de tradies especficas.
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Captulo II
Definio
ntro p ologia Teatral o estudo do comportamento cnico prexpressivo que se encontra na base dos diferentes gneros, estilos
e papis e das tradies pessoais e coletivas. Por isso, lendo a palavra
" ato r", dever-se- entender "ator e bailarino", seja mulher ou homem;
e ao ler "teatro" dever-se- entender "teatro e dana".
Em uma situao de representao organizada, a presena fsica e
mental do ator modela-se segundo princpios diferentes dos da vida
cotidiana. A utilizao extracotidiana do corpo-mente aquilo a que
se chama "tcnica".
As diferentes tcnicas do ator podem ser conscientes e codificadas:
ou no conscientes, mas implcitas nos afazeres e na repetio da prtica
teatral. A anlise transcultural mostra que nestas tcnicas se podem
individualizar alguns princpios-que-retornam. Estes princpios aplicados ao peso, ao equilbrio, ao uso da coluna vertebral e dos olhos,
produzem tenses fsicas pr-expressivas. Trata-se de uma qualidade
extracotidiana da energia que torna o corpo teatralmente "decidido",
"vivo", "crvel"; desse modo a presena do ator, seu bioscnico, consegue
manter a ateno do espectador antes de transmitir qualquer mensagem.
Trata-se de um antes lgico, no cronolgico.
A base pr-expressiva constitui o nvel de organizao elementar do
teatro. Os diferentes nveis de organizao do espetculo so, para o
espectador, incindveis e indistinguveis. Podem ser separados somente
por abstrao em uma situao de pesquisa analtica, ou por via tcnica,
no trabalho de composio do ator. A capacidade de concentrar-se no
nvel pr-expressivo possibilita uma ampliao do saber, com conseqncia sobre o plano prtico ou sobre o plano crtico e histrico.
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D EFINIO
D EFINIO
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2. A p articularidade da tradio cnica e do contexto histrico-cultural atravs dos quais a irrepetivel personalidade do ator se manifesta;
3. A utilizao do corpo-mente segundo tcnicas extracotidianas
baseadas em princpios-que-retornam transculturais. Estes princpiosque-retornam constituem o que a Antropologia Teatral define como
o campo da pr-expressividade.
Os primeiros dois aspectos determinam a passagem da pr -expressividade representao. O terceiro o que no varia sob as individualidades pessoais, estilsticas e culturais. o nvel do bios cnico, o
nvel "biolgico" do teatro sobre o qual se fundam as diversas tcnicas,
as utilizaes particulares da presena cnica e do dinamismo do ator.
A nica afinidade que une a Antropologia Teatral aos mtodos e
campos de estudo da antropologia cultural o saber que o que pertence nossa tradio e aparece como uma realidade bvia pode, em
vez disso, revelar-se como um n de problemas inexplorados. Isto implica o deslocamento, a viagem, a estratgia do dtour que permite
individualizar o " n osso" atravs da confrontao com o que experimentamos como o "ou t ro". O' desarraigamento educa o olhar a participar e a distanciar-se, dando nova luz a seu "pas" profissional.
Entre as diferentes formas de etnocentrismo teatral que velam nossos olhos, existe uma que no concerne a reas geogrficas e culturais
mas que depende da relao cnica. o etnocentrisrno que observa o
teatro do ponto de vista do espectador, isto , do resultado. Omite-se
assim o ponto de vista complementar: o processo criativo de cada ator
e do conjunto do qual toma parte, com toda a rede de relaes, conhecimentos, maneiras de pensar e adaptar-se do qual o espetculo
o fruto.
A compreenso histrica do teatro torna-se freqentemente superficial ou se qloqueia por omisso da lgica do processo criativo e pela
incompreenso do pensamento emprico dos atores, ou seja, pela in. capacidade de superar os confins estabelecidos pelo espectador.
O estudo das prticas espetaculares do passado essencial. verdade, a histria do teatro no s a cisterna do antigo, tambm a
cisterna do novo, do conhecimento que uma e outra vez permitiu e
permite transcender o presente. Toda a histria das reformas teatrais
do Novecentos, tanto no Ocidente quanto no Oriente, mostra a es-
ro r e para o ator.
la n d o por meio dela
e quando, durante
r.
I .
Fategorias de atores
icam corno "Teatro
errada. Para evitar
> concretas, mverteirio falando de um
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DEFINIO
Captulo 3
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derivam dos textos que representar, das observaes do comportamento cotidiano, da imitao no confronto com outros atores, do
estudo dos livros e dos quadros, das indicaes do diretor. O ator do
Plo Sul aparentemente mais livre, mas encontra maiores dificuldades ao desenvolver, de modo articulado e contnuo, a qualidade de
seu artesanato cnico.
Ao contrrio do que parece primeira vista, o ator do Plo Norte
que tem maior liberdade artstica ao passo que o ator do Plo Sul
permanece facilmente prisioneiro da arbitrariedade de uma excessiva
falta de pontos de apoio. A liberdade do ator do Plo Norte mantida
no interior do gnero ao qual pertence, e- seu preo uma especializao que torna difcil a sada do territrio conhecido.
Sabe-se que abstratamente no existem regras cnicas absolutas. Estas so convenes e uma "conveno absoluta" seria em si mesma uma
contradio. Mas isso correto somente no abstrato. Para que uni
experimentado complexo de regras possa ser verdadeiramente til na
prtica para o ator, este deve ser ~ceito como se fosse um complexo de
regras absolutas. Para realizar esta fico explcita, freqentemente se
considera til permanecer distncia de estilos diferentes.
Muitas anedotas contam como quase todos os mestres asiticos e
alguns grandes mestres europeus (como por exemplo Etienne Decroux)
probem que seus alunos se aproximem de outras formas espetaculares
mesmo como simples espectadores. Sustentam que somente desse modo
se preserva a pureza e a qualidade da prpria arte, e s assim o aluno
demonstra dedicao ao caminho que escolheu.
Este processo de defesa tem a vantagem de evitar a tendncia patolgica que, freqentemente, deriva da .conscincia da relatividade
das regras: o passar de um caminho a outro com a iluso de acumular
experincias e ampliar o horizonte da prpria tcnica. verdade que
um caminho vlido tanto quanto o outro, mas somente se percorrido at o fim. necessrio um compromisso tal que, por longo
tempo, no permita pensar em nenhuma outra possibilidade. "Impor-se regras simples, que no devem ser tradas jamais" afirmava
Louis Jouvet l , sendo ele tambm consciente de que os princpios de
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partida de um ator devem ser defendidos como seu bem mais precioso, e que um processo de sincretismo muito rpido o contaminaria
irremediavelmente.
Hoje o ambiente teatral , por um lado, reduzido, mas por outro
ilimitado. Freqentemente os atores viajam fora de sua prpria cultura, hospedam estrangeiros, teorizam e divulgam a especificidade de
sua arte em contextos estranhos, vem outros teatros, ficam fascinados
e portanto com desejo de incorporar em seu trabalho alguns dos resultados que os interessaram ou os comoveram. s vezes, inspirando-se em tais resultados podem surgir mal-entendidos. Alguns podem
ser criativos; basta pensar no passado, Bali para Artaud, China para
Brecht e o teatro ingls para Kawagami. Porm a sabedoria que se
encontra atrs desses resultados, a tcnica oculta e a viso artesanal
que os an ima, continuam sendo ignoradas.
Esta fascinao pelo aspecto exterior, que hoje, por causa da intensidade dos contatos, corre o risco de submeter a evoluo das tradies
a bruscas aceleraes, pode conduzir promiscuidade que homogeniza.
Como "comer", tendo tambm o tempo e a qumica para digerir
os resultados dos demais? O oposto de uma cultura colonizada ou seduzida no uma cultura que se isola, mas uma cultura que sabe
cozinhar do seu modo e comer o que traz ou chega do exterior.
Entretanto os atores e bailarinos (no esqueamos que falamos sempre de um e de outro), servem-se e serviram-se de alguns princpios
comuns pertencentes a cada tradio em cada pas. Em torno desses
princpios podemos reunir-nos sem perigo de praticar alguma forma
de promiscuidade.
Descobrir estes princpios-que-retornam a primeira tarefa da Antropologia Teatral.
"As artes" - escreveu Decroux - "se parecem em seus princpios,
no em suas obras">, Poderamos acrescentar que tambm os atores
no se assemelham ~m suas tcnicas, mas em seus princpios.
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Cotidiano e extracotidiano
Os bons atores do Plo Norte (bailarinos, mmicos da escola de
Decroux, atores modelados pela tradio de um pequeno grupo e que
elaboraram sua codificao pessoal, atores dos teatros clssicos asiticos
modelados por poderosas tradies) possuem uma qualidade de presena que estimula a ateno do espectador quando realizam uma
demonstrao tcnica, a frio. No querem expressar nada em tais situaes, e entretanto existe neles um ncleo de energia, uma irradiao
sugestiva e sbia, mesmo que no premeditada, que captura nossos
sentidos.
Poder-se-ia pensar em uma "fora" do ator, adquirida por anos de
experincia e de trabalho, e em um dote tcnico particular. Entretanto
a tcnica uma utilizao particular do corpo. O nosso corpo utilizado de maneira substancialmente diferente na vida cotidiana e nas
situaes de representao. No contexto cotidiano, a tcnica do corpo
est condicionada pela cultura, pelo estado social e pelo ofcio. Em
uma situao de representao existe uma diferente tcnica do corpo.
Pode-se ento distinguir uma tcnica cotidiana de uma tcnica extracotidiana.
As tcnicas cotidianas so muito mais funcionais quando no pensamos muito nelas. Por isso nos movemos, nos sentamos, carregamos
peso, beijamos, indicamos, assentimos e negamos com gestos que acreditamos "naturais" e que, em vez disso, so determinados culturalmente. As d iferentes culturas possuem diferentes tcnicas do corpo
dependendo de que se .caminhe ou no com os sapatos, que se leve
peso na cabea ou na mo, que se beije com a boca ou com o nariz.
O primeiro passo para descobrir quais podem ser os princpios do bios
cnico. do ator, a sua "vida", consiste em compreender que s tcnicas
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o equilbrio em
ao
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Existem laboratrios cientficos especializad os em analisar o equilbrio medindo os diferentes tipos de presso que realizam os ps sobre
o cho. Nos diagramas obtidos podemos ler o quanto so complicados
e trabalhosos os movimentos realizados para ficar parado. Essa experincia foi realizada com atores profissionais. A simples imaginao
causada, ao pedir-lhes que imaginem que esto carregando um peso,
correndo, caminhando, caindo ou saltando, produz uma modificao
imediata de seus equilbrios, ao passo que no o produz em outras
pessoas, para as quais a imaginao se fixa no mundo das idias sem
conseqncias fsicas perceptveis>.
Tudo isso pode dizer~nos muito sobre a relao entre processos mentais e tenses musculares. Entretanto no nos diz nada de novo sobre
o ator. Dizer que um ator est acostumado a controlar sua presena
e traduzir em impulsos fsicos as imagens mentais quer dizer, simplesmente, que um ator um ator. Porm as madeixas de micrornovimentos reveladas por laboratrios cientficos onde se mede o equilbrio,
nos coloca sobre outra pista: elas so a fonte de vida que anima a
presena do ator.
Retornemos ao teatro N . A espiritualidade que caracteriza seus
espetculos colorida segundo os estilos das principais famlias de
atores. Essas diferenas estilsticas esto relacionadas com as diferentes
solues dadas ao problema da composio de um equilbrio "de luxo".
Um especialista em teatro japons escreve:
Minha impresso, depois de ter visto muitos atores de diferentes famlias N ,
que o corpo se inclina ligeiramente para frente. Mas Shiro me disse que entre
as famlias Kanze e Kong existem muitas diferenas individuais, pelo qual no
se pode generalizar; na famlia H sh o corpo tende a apoiar-se ligeiramente na
parte posterior; e nas famlias Kita e Komparu, a flexo acentuada nos joelhos
de modo que o corpo parece ir para baixo em vez de ir para frente ou para trs.
Como regra geral, me disse Shiro, a inclinao excessiva para frente faz o corpo
parecer instvel e reduz a presena cnica do ator, ao passo que apoiar-se excessivamente para trs impede que a energia seja projetada para frente. Para mim
De uma conversa entre Pierre Verry e a bailarina Lulli Svedin. LuIli SVEDIN,
Den klassiska ballettens bygg.rtenar, Estocolmo, Rabn e Sjgren, 1978, p. 84.
dell'espressione sportiva e tearrale ", em La scuola degli attori; organizado por Franco
Ruffini, Florena, La Casa Usher, 1981; um ensaio que explica as experincias com
o starokinesmetro.
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isso significa que cada ator deve enc on t rar o ponto c n n co de in clin ao e~~a
para sua postura de base. Normalmente quando .um~ pessoa est em pOSI~O
ereta, o peso do corpo est distribudo em partes Iguais so bre a pla~ta dos .pes.
Isso no acontece no teatro N . Kita -Nagayo , um ator da fam lia Ki ra, explico u
em uma palestra reali zada em 198 1 no V C LA Su m mer. In~titl~te, que. ~ pe~o
d everia concentrar-se sobre a parte anterior do p, uma in dica o que p havia
esc utado de outros atores, tanto de N como de Kyogen . N omura Shiro m e
di sse, porm, que quando est de p o seu pe so se ap ia nos ca kan hares (...). O
modo particular de distribuir o peso so bre os p s tambm pode ser o resultado
do porte que cada ator considera mais eficaz6 .
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418-28.
V. MEYERHOLD, Ecrits sur le thtre, tomo Il, traduo, prefcio e notas de
Batrice Picon-Vallin, Lausanne, La Cir-I.:Age d'Homme, 1975,p. 7 2.
9 Batrice PICON-VALLIN , Meyerhold, Paris, CNRS, "Les vaies de la cr ation th trale", 17 , 1990 , p. 106.
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\0
11
12
Ibid, p. 116.
Charles DULLIN~ Souoenirs et notes de travail d'un acteur; Paris, Odette Lieutier,
1946, p. 114-5.
]erzy GROTOWSKI, Towards a Poor Theatre, Holstebro, Odin Tearrets Forlag,
1968, p. 143.
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pai jamais dizia: use mais koshi. Me ensinou do que se tratava fazendo-me caminhar enquanto ele me puxava pelos quadris". Para vencer
a resistncia, o torso obrigado a dobrar-se ligeiramente para frente,
os joelhos se flexionam, os ps pressionam o cho e se arrastam mais
do que se levantam em um passo normal: um modo artesanal para
obter o andar de base do N. A energia como koshi no o resultado
de uma simples e mecnica alterao de equilbrio, mas de uma tenso
entre foras contrapostas.
Na escola de N da famlia Kita usa-se um outro procedimento
artesanal. O ator deve imaginar que sobre ele existe um aro de ferro
que o puxa para cima ao qual necessrio opor resistncia para manter-se com os ps no cho. O termo japons para designar estas foras
contrapostas hippari hai, que significa: puxar para ti algum que por
sua vez te puxa. No corpo do ator o hippari hai encontra-se entre a
parte superior e a ,inferior e entre a anterior e a posterior. H tambm
hippari hai entre o ator e a orquestra. Na realidade, estes procedem
em discordante harmonia tentando divergir um do outro, surpreendendo-se mutuamente, rompendo um o tempo do outro, mas sem
distanciar-se at o ponto de perder o contato e a particular ligao
que os ope.
Podemos dizer, ampliando o conceito, que as tcnicas extracotidianas do corpo esto em relao hippari hai, trao antagnica, com as
tcnicas de uso cotidiano. Vimos, com efeito, que se distanciam destas,
mas mantendo a tenso; ou seja, sem que se separem completamente
tornando-se estranhas.
O corpo do ator revela a sua vida ao espectador em uma mirade
de tenses de foras contrapostas. o princpio da oposio. Em torno
deste princpio-que-retoma, usado por todos os atores, ainda que algumas vezes de forma inconsciente, algumas tradies construram elaborados sistemas de composio.
Na pera de Pequim, o sistema codificado dos movimentos do
ator rege-se por este princpio: cada ao deve ser iniciada na direo
oposta qual se dirige. Todas as formas de teatro tradicional balins
esto construdas estruturando uma srie de oposies entre keras e
manis. Keras significa forte, duro, vigoroso; manis, delicado, suave,
terno. Os termos manis e keras podem ser aplicados a vrios movi-
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mente no
contra'>,
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1'
Outro exemplo significativo constitudo pelos olhos e pela maneira de dirigir o olhar. Nossos olhos olham, em g~ral, para frente,
trinta graus para baixo. Se levantamos o olhar trinta graus para cima,
a cabea se mantm na mesma posio, porm cria-se uma tenso nos
msculos da nuca e da parte superior do tronco que repercute sobre
o equilbrio alterando-o.
O ator Kathakali segue com os olhos as mos que compem os
mudras ligeiramente acima de seu campo tico habitual. Os atores
balineses dirigem o olhar para o alto. Todos os lian shan, as posies
de deteno brusca dos atores da Opera de Pequim presumem um
olhar para o alto. Os atores N contam como perdem o sentido do
espao e como difcil conservar o equilbrio devido s estreitas fissuras das mscaras que os impedem de enxergar. Da outra das interpretaes de seu modo de caminhar, um pouco como os cegos,
que deslizam os ps no cho explorando com prudncia o terreno,
prontos a deterem-se em caso de obstculos imprevistos.
Todos estes atores mudam o ngulo do olhar habitual da vida cotidiana. Como conseqncia a postura fsica varia, assim como varia
o tnus muscular do torso, o equilbrio e a presso dos ps sobre o
cho. Atravs da incoerncia coerente do olhar extracotidiano, eles
produzem uma transformao qualitativa de sua energia.
Os comportamentos cnicos que parecem uma trama de movimentos muito mais complexos do que os cotidianos so, na realidade, o
resultado de uma simplificao: constituem momentos nos quais as
oposies que regem a vida do corpo aparecem em seu estado mais
simples. Isso acontece .porque um nmero bem delimitado de foras
- de oposies - isolam-se, eventualmente amplificam-se, e montam-se simultaneamente ou em sucesso. Uma vez mais, trata-se de
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The Actors Analects, organizado por Charles J. Dunn and Bunzo Torigoe, University
of Tokyo Press, 1969, p. 94.
Citado ernFrank HOFF, Killing the Self. How the Narrator Acts, Asia Theatre
fournal; voI. 2: n.? 1, primavera 1985, p. 5.
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Equivalncia
Colocamos flores em um vaso para que mostrem sua beleza, para
que alegrem a viso e o olfato. Podemos transform-las em mensagem:
piedade filial ou religiosa, amor, reconhecimento, respeito. Porm, por
mais belas que sejam, possuem um defeito: arrancadas de seu contexto
representam somente a si mesmas. So como o ator do qual fala Decroux:um homem condenado a parecer um homem, um corpo que
imita um corpo. Pode ser prazeroso mas insuficiente para a arte.
Para que seja arte, acrescenta Decroux, preciso que a idia da coisa
seja representada por uma outra coisa", As flores em um vaso, em vez
disso, so irremediavelmente flores em um vaso, algumas vezes sujeitos
de obras de arte, mas jamais obras de arte em si.
Imaginemos usar as flores cortadas para representar a luta da planta
para crescer, para distanciar-se da terra na qual quanto mais se afundam suas razes mais seu talo se eleva em direo ao cu. Imaginemos
querer representar a passagem do tempo, como a planta nasce, cresce,
murcha e morre. Se alcanamos nosso propsito, as flores representaro
algo diferente das flores e vio compor uma obra de arte. Haveramos
feito um ikebana.
Ikeband significa - se o valor do ideograma seguido - "fazer
as flores viverem".
A vida das flores, precisamente porque foi tirada, pode ser representada. O procedimento claro: algo foi arrancado de suas regras
normais de vida (neste estado se detm nossas flores cotidianas dispostas em um vaso) e estas regras foram substitudas e reconstrudas
com outras regras equivalentes.
As flores, por exemplo, no podem agir no tempo, no se pode
representar em termos temporais o seu florescer e o seu murchar. Mas
a passagem no tempo se pode sugerir com um paralelismo no espao.
Pode aproximar-se, isto , comparar um boto com uma flor aberta;
podem sublinhar-se as direes nas quais se desenvolve a planta - a
com dois ramos
fora que a une terra e a que a distancia dela que se empurram mutuamente, um para cima e outro para baixo. Um
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Tage lARSEN, "Dalla parte degli attori",em Eugenio BARBA, li Brecbt dell'Odin,
Milo, Ubulibri, 1981, p. 109.
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Um corpo decidido
"A verdadeira expresso" - disse Grotowski em uma conferncia
da ISTA de Bonn em 1980 - " a da rvore". E explicava: "se um
ator quer expressar-se encontra-se ento dividido, h uma parte que
quer e uma que expressa, uma parte que ordena e uma que executa
a ordem".
Em muitas lnguas europias existe uma expresso que se poderia
escolher para condensar o que essencial para a vida do ator. uma
expresso gramatical paradoxal, na qual uma forma passiva chega a
assumir um significado ativo e na qual a indicao de uma enrgica
disponibilidade para a ao se mostra como velada por uma forma de
passividade. No uma expresso ambgua mas hermafrodita, que
soma em si ao e paixo, e que apesar de rara uma expresso da
linguagem comum. Se diz, efetivamente, "estar decidido", "tre dci-
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d", "to be decided" . No quer dizer que algo ou algum nos decide,
que nos submetamos a uma deciso ou que sejamos objetos desta.
Nem sequer quer dizer que estejamos decidindo, que sejamos ns os
que conduzem a ao de decidir.
Entre essas duas condies opostas corre uma veia de vida que a
lngua parece no poder indicar, mostrando sobre a qual revolve com
im agens. Nenhuma explicao exceto a experincia direta mostra o que
quer dizer "estar decidido". Para explic-lo em palavras deveremos recorrer a inumerveis associaes de idias, a exemplos, a construo de
situaes artificiais. Entretanto, cada um de ns acredita saber muito
bem o que indica a expresso "estar decidido". Todas as imagens complexas, as sries de regras obscuras que se entrelaam em torno do ator,
a elaborao de preceitos artsticos e suas estticas sofisticadas, so
cambalhotas e acrobacias para indicar experincias. Tentar explicar a
experincia do ator significa criar artificialmente, com uma complicada
estratgia, as condies nas quais esta experincia possa reproduzir-se.
Imaginemos penetrar mais uma vez na intimidade do trabalho que se
desenvolvia em Tquio entre Katsuko e sua mestra Tokuho Azuma.
Quando terminar de transmitir-lhe sua experincia, transmitir tambm
seu nome aluna. Azuma diz ento futura Azuma: "Encontra seu ma".
Para um arquiteto ma significa espao, para um msico tempo, ou ainda
intervalo, pausa, repouso, ritmo. E aqui o que significa para o ator: "Para
encontrar seu ma deve matar o ritmo, ou seja encontrar o seu jo-ha-kyu".
A expresso jo-ha-kyu designa as trs fases nas quais se subdivide
cada ao do ator. A primeira fase determinada pela oposio entre
uma fora que tende a desenvolver-se e outra que a retm (jo, reter);
a segunda fase (ha, romper, quebrar) constituda pelo momento em
que se libera desta fora, at chegar na terceira fase (kyu, rapidez) na
qual a ao atinge seu ponto culminante, desdobrando todas as suas
foras para depois deter-se repentinamente como diante de uma nova
resistncia, um novo jo pronto para partir.
Para ensinar Azuma a mover-se segundo o jo-ha-kyu, sua mestra a
retm pela cintura e a solta de repente. Azuma tem dificuldade em
dar os primeiros passos, dobra os joelhos, aperta a planta dos ps no
cho, inclina ligeiramente o busto; depois, abandonada a si mesma,
se solta, avana velozmente at o limite previamente fixado, em frente
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Esse brilhante jogo de palavras foi o resultado de uma engenhosa comprovao emprica; Bohr e seus assistentes dirigiram-se a uma loja de
jogos, compraram pistolas d'gua, e de volta a seu laboratrio, por
horas e horas, realizaram duelos".
Captulo 4
fterm tele significa, literalmente, "o que se dir depois". Para traduzir apropriadamente esta palavra norueguesa, necessitaramos de
duas palavras brasileiras: reputao e honra, ou concretamente sentido
e valor.
a tempo decidir o sentido e o valor de nossas aes. a tempo,
na verdade, so os outros que viro depois de ns. Isto um paradoxo,
o teatro a arte do presente.
Quem faz teatro responsvel tambm perante os espectadores que
no vero seu trabalho?
A sua identidade profissional, criada e vivida no presente faz parte
de uma herana?
*
Na idade da memria eletrnica, do filme, da reproduo, o espe.tculo teatral se dirige memria viva, que no museu mas sim
metamorfose. Esta relao o define.
Podemos deixar de herana somente o que no consumimos totalmente. Um testamento no transmite tudo, nem transmite a todos.
intil perguntar-se quem sero os seus herdeiros. Mas essencial
no esquecer que existiro herdeiros.
24
George GAMO"W; Tredive Aar der rystede Fysikken, Copenhague, Gyldendal, 1968,
p.59.
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mesmo. Porm valores diferentes so injetados neste resduo arqueolgico que perdeu a sua utilidade imediata. Podemos adotar os valores
do esprito do tempo e da cultura em que vivemos. Podemos, em vez
disso, buscar os nossos valores.
*
A palavra "honra" parece pertencer a pocas passadas e indicar constries sociais arcaicas. Mas tambm indica a existncia de um valor
superior. Implica um dever para com o que nos transcende e no para
conosco mas para com o que nos circunda.
As constries, at mesmo a de atuar no efmero, podem ser um
trampolim de lanamento. Podemos falar com os herdeiros desconhecidos somente por meio dos que hoje nos circundam.
Alguns imaginam a "mensagem" a ser transmitida aos outros como
uma verdade que descobrimos atravs da nossa histria, nossa tradio,
nossa experincia e cincia pessoal e que queremos comunicar.
Eu a imagino como um quadro pintado por um pintor cego cuja
mo hbil faz danar sobre a tela movimentos que no v. Por meio
das tcnicas que dominamos, das histrias que nos atraem, das nossas
feridas ntimas e iluminaes, devemos alcanar algo que j no
nosso, que j no leva nosso nome e no se deixa possuir nem pelo
que o faz, nem pelo que o v.
A verdadeira mensagem o resultado no previsto, no programado, de uma viagem numa consciente escurido: o anonimato.
Efterm~le, honra, reputao. O bom nome e o anonimato podem
coincidir?
*
As generalizaes prevalecem nos livros que recapitulam a histria
do teatro. Ali se fala de encontros e choques de estilo, de gneros, de
tendncias, de poticas, de culturas e naes. Os verdadeiros protagonistas dessas histrias so frmulas que se transformam em personificaes como "Teatro Francs", "Teatro Espanhol", "Teatro Chins",
"Commedia deU'Arte", "Kathakali", "Teatro Naturalista", "Teatro Romntico", "Mtodo deStanislavski", Teatro Brechtiano", "Teatro Gro-
61
*
Existe um anonimato fruto da aquiescncia aos espritos dos tempos. o anonimato do todo. A nossa voz est sufocada por tudo o
que nos foi derramado pelos outros, pela cultura, pela sociedade, pela
tradio que nos circunda. Neste caso, somos annimos porque as
idias recebidas nos batizaram e nos deram um nome.
Mas existe um outro anonimato, o do vazio; obtido na primeira
pessoa, feito no do que se sabe mas sim do que eu sei.
o resultado da revolta pessoal, da nostalgia, da recusa, da vontade
de encontrar a si mesmo e de perder-se. a necessidade de cavar
fundo at encontrar as cavernas subterrneas, cobertas de pedras e
centenas de metros de terra compacta.
Para realizar todas essas intenes existe uma tcnica, a tcnica do
lanamento do barco ao mar e do naufrgio.
necessrio projetar o prprio espetculo, saber constru-lo e pilot-lo em direo ao redemoinho onde ele se rompe ou ento assume
uma nova natureza: significados no pensados anteriormente, que seus
prprios "autores" observaram como enigmas.
No possvel usar esta tcnica sem uma interveno sobre o tecido
vivo que o nvel pr-expressivo. Para faz-lo, necessrio neutralizar
uma das antenas do crebro, no perceber todas as mensagens, os
62
significados, os contedos, os nexos e as associaes enviadas pela m atria espetacular com a qual se trabalha. Uma parte do crebro, do
sistema crtico, deve descobrir o silncio. A outra parte trabalha com
seqncias microscpicas como se estivesse perante uma sinfonia de
detalhes de vida, impulsos, descargas, dinamismos fsicos e nervosos,
mas num processo ainda sem a preocupao de narrar e representar.
Desse silncio vibrante emerge um sentido inesperado, to profundam ente pessoal que annimo.
Essas metforas redundam em palavras sem sentido quando privadas de tcnica, de ateno aos detalhes e s minsculas tenses, quando
no existe conscincia das aes fsicas e mentais. Porm, sem metforas e obsesses como estas, a tcnica, a cincia, o perfeccionismo e
a preciso dos detalhes so teatro sem sentido.
*
Zeami, Stanislaoslei, Appia, Meyerhold, Copeau, Craig, Artaud, Brecht,
Eisenstein, Decroux... Podemos considerar seus escritos como experincia deixada como herana?
como quando algum vive muito tempo em um p as estrangeiro,
do qual ign ora completamente a lngua. Milhares de sons desconhecidos
penetram em seus ouvidos e a se depositam. Em pouco tempo possui
o grammelot daquela lngua, poderia imit-la. No a entende, mas a
reconhece. uma massa confusa de sons, salpicada aq ui e ali com algumas
palavras inteligveis. Depois recebe uma gramtica e um dicionrio. Por
meio dos sinais escritos reconhece os sons familiares e confusos. Estes
encontram, lentamente, uma ordem, uma classificao e uma razo.
Agora tem condies de aprender por si mesmo. Sabe como deve ser
ajudado. Sabe a qu deve prestar ateno se quiser aprender.
Os livros dos rebeldes, dos reformadores, dos visionrios do teatro
podem ser compreendidos somente se chegarmos a eles carregados de
uma experincia ;\ qual ainda no sabemos dar um nome. Suas palavras
sacodem o nosso grammelot opaco e conduzem-nos claridade de um
con h ecim en to articulado.
A herana, como uma cincia oculta, pesca os seus herdeiros.
63
*
A Antropologia Teatral tem carter cientfico?
No executa mensuraes, no usa mtodos estatsticos, no tenta
deduzir as conseqncias para o comportamento do ator com base no
conhecimento da medicina. .biologia, psicologia, sociologia ou da cincia das comunicaes.
Baseia-se na pesquisa emprica da qual extrai princpios gerais. Desenvolve-se numa dimenso operativa . submetida eficcia da ao
cnica. Define um campo de perguntas e forja os instrumentos tericos
para explor-lo. Individualiza leis pragmticas.
. Em suma, uma cincia?
*
Muitas dvidas nascem da linguagem que se escolhe p ara transmitir
algumas experincias precisas, tcnicas, claras e concretas na .ao.
Artaud parece um visionrio. Craig um dndi sedutor e viciado.
Decroux um poeta um pouco pedante. Stanislavski um vagabundo no
. sutil pas da alma.
64
*
Sabe-se / Eu sei.
Conta-se que perguntaram a Niels Bohr como chegou, to jovem,
descoberta da periodicidade dos elementos que lhe deu o Prmio
Nobel. Respondeu que no partiu do que 'se sabia", mas sim do que
"ele sabia";
Reflito sobre o que eu sei, sobre o que as contingncias me fizeram
tocar com as mos e descubro que ao longo de todo o meu trabalho
teatral, a partir de 1964, me bastaram duas palavras norueguesas: kraft
e sats.
Usei esses dois termos para explicar aos meus atores o que no
funcionava no trabalho deles.
Kraft quer dizer fora, potncia.
Dizia aos atores: "No tem kraft'. Ou ento: "Mostra mais o seu
kraft' Ou ainda: "O kraft desta ao muito parecido com o da ao
anterior".
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Sats pode ser traduzido com as palavras "impulso", "p rep arao" ,
ou ento "estar pronto para... ". Na nossa linguagem de trabalho, indica
o momento no qual se est a ponto de agir, o instante que precede a
ao no espao, quando toda a energia j est a, preparada para intervir, porm suspensa, ainda presa ao punho, borboleta-tigre pronta
a alar vo.
Dizia aos atores: "No tem sats', Ou ento: "Seu sats no est preciso". Ou ainda "Marque mais os sais',
Essas duas palavras guiaram o trabalho e bastariam para explicar o
resultado obtido por mim e meus companheiros. Poderamos reduzir
a isso o "mtodo" do Odin Teatret. No fundo, toda a Antropologia
Teatral um modo para desenvolver, em termos objetivos, os conhecimentos para os quais, na prtica de nosso grupo, no necessitamos
mais que de duas palavras vagas.
Reencontro o mesmo contedo tcnico, com a mesma preciso operativa, na terminologia de outros mestres, em palavras aparentemente
muito diferentes tais como "segunda natureza", "biomecnica", "crueldade", "ber-Marionette"...
*
A histria da cultura mostra que cada vez que se avana em territrios pouco explorados, inicialmente cunham-se imagens, termos 'm etafricos e evocativos, invenes lingsticas, ns atrevidos de palavras
como "corrente eltrica", "ondas eletromagnticas", "fora de inrcia",
"complexo de dipo". Depois, estas extravagantes aproximaes lingsticas sedimentam-se em convenes partilhadas com um nmero
cada vez maior de pessoas e parecem indicar coisas precisas de maneira
direta, ao p da letra. A linguagem pessoal torna-se linguagem de trabalho, e esta, por sua vez, linguagem comum.
pequeno o nmero de pessoas que compartilham a mesma terminologia no teatro. A prtica do ator no muito discutida. A linguagem de trabalho que caracteriza a comunicao de um grupo e
que muito til para seus membros parece prosaica, insignificante ou
metafrica quando encontrada fora do contexto do grupo.
No possvel escrever ou falar fora desse contexto com as convenes da prpria linguagem de trabalho.
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Ao mesmo tempo, quando se quer mostrar uma experincia-concreta, no conhecida por todos, necessrio evitar as definies prefabricadas, as redes verbais que so somente uma imitao parasitria
da linguagem precisa de outras cincias e de outros conhecimentos.
A linguagem precisa da cincia, quando transferida para obter um
efeito de concretude ou para ungir sobre o prprio argumento a seriedade aparente da preciso dos outros, transforma-se numa tela ainda
mais opaca do que as imagens lricas, sugestivas, emotivas e intuitivas.
Na real idade, o maior perigo no est no inevitvel risco de equvoco, mas sim na contnua apelao a uma suposta clareza cientfica
que explora o que j conhecido e evita ao que busca um dos esforos
mais fecundos: o . de buscar tambm as suas palavras.
*
Wer sich selbst und andre kennt,
Wird auch hier-erkennen:
Orient und Okzident
Sind nicht mehr zu trerin en .
Sinnig zwischen beiden Welten
Sich zu wiegen, lass' ich gelten;
Also zwischen Ost und Westen
Sich bewegen sei zum Besten!
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Todo o meu aprendizado teatral desenvolveu-se na regio constituda do movimento entre Este e Oeste, a que agora chamo teatro
eurasiano. O Kathakali e o teatro N , o onnagata e o Barong, Rukmini
Devi e Mei Lanfan, Zeami e o Natya Shastra estavam prximos aos
livros dos mestres russos, franceses, alemes, prximos de Grotowski,
meu mestre polons.
No era somente a memria de suas criaes teatrais que me fascinava, mas sobretudo a detalhada artificialidade de seus atores-em-vida.
Em 1963, as longas noites do Kathakali me fizeram enxergar os
limites que o ator pode atingir. Entretanto, foi a alvorada no Kalamandalam em Cherutturuthy, em Kerala, que me revelou o segredo
daqueles atores. A, adolescentes, em uma obstinada repetio de exerccios, passos, cantos, preces, ginstica, dana dos olhos e oferendas,
cristalizavam seu ethos como comportamento artstico e atitude tica.
Eu confrontava nosso teatro .com o deles.
Hoje, este termo "confronto" me parece inadequado; vale para a
epiderme dos diferentes teatros, para suas diferentes convenes e estilos.
Mas atrs das peles brilhantes e sedutoras vislumbro os rgos que
os mantm vivas, e os plos do confronto fundem-se em um perfil
sem fronteiras nem fissuras. Ainda uma vez, teatro eurasiano.
*
possvel pensar no teatro em termos de tradies tnicas, nacionais, de grupo ou mesmo individuais. Mas se com isso se tenta compreender a prpria identidade, essencial uma postura contrria e complementar: pensar no prprio teatro numa dimenso transcultural, no
fluxo de uma "tradio das tradies".
Por que, ao contrrio do que acontece em outros pases, o nosso
ator-cantor especializou-se separadamente do ator-bailarino e este ltimo, por sua vez, do ator-... como cham-lo? Aquele que fala? Ator
de prosa? Intrprete de texto?
Por que o ator tende a limitar-se a apenas um personagem num
espetculo?
Por que raramente se explora a possibilidade do ator de tornar-se
o contexto de uma histria inteira, com muitos personagens, com
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*
Alguns ficam perplexos e dizem: como possvel estudar os processos criativos do ator sem examinar seu contexto histrico e social?
70
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*
E Songlines, os caminhos dos cantos? E a Austrlia? a Polinsia?
a frica? E todas as culturas aborgines da Amrica? Quanto teatro e
quanta dana exclui a expresso "teatro eurasiano"!
Teatro eurasiano no significa os teatros compreendidos num espao
geogrfico, no continente do qual a Europa uma pennsula. Sugere
uma dimenso mental, uma idia ativa na cultura teatral moderna.
72
*
No contexto da, atividade da 1STA e das discusses sobre Antropologia Teatral, os teatros asiticos chamam particularmente a ateno
por que so pouco conhecidos. Em alguns casos, porm, monopolizam
a ateno; da o equvoco de quem acredita que os teatros clssicos
da sia sejam o objeto da Antropologia Teatral. O equvoco reforado pela pluralidade de significados do termo "antropologia" que
muitos entendem como "antropologia cultural", estudo do que culturalmente diferente.
A Antropologia Teatral no prope uma "orientalizao" do teatro
ocidental. O seu campo de estudo no o Oriente, mas sim a tcnica
do ator. Cada arteso pertence prpria cultura, mas pertence tambm
da sua atividade artesanal. Tem uma identidade cultural e uma identidade profissional. Pode encontrar-se como "compatriota" com os arteses que praticam seu ofcio em diferentes pases. Por isso, no passado, o Wanderfehre, a "viagem de instruo" alm dos confins do pas
natal, fazia parte da aprendizagem at mesmo do mais humilde dos
arteses.
A profisso tambm um pas ao qual pertencemos, ptria eletiva,
sem fronteiras geogrficas. Hoje, aceitamos como algo normal que um
fillogo mexicano discuta com um fillogo indiano, que um arquiteto
japons troque experincias de igual para igual com um arquiteto sueco, assim como sentimos como uma insuficincia cultural o fato que
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*
A Antropologia Teatral quer analisar o comportamento cnico que
existiu e existe nas diferentes culturas? Ou quer fornecer regras para
a eficcia do comportamento cnico? Dirige-se aos estudiosos ou aos
atores?
As duas perspectivas podem ser equivalentes. Tanto individualizar
modelos como princpios-que-retornam significa fornecer um leque de
orientaes teis prtica teatral.
*
A dialtica entre a ordem, nem sempre decifrvel, dos acontecimentos (ou seja, do contexto) e a ordem linear e simplificada da historiografia (que transforma o contexto em texto) est presente nas
reflexes de qualquer um que se ocupe de histria. Deveria ser .p articularmente relevante para ns que trabalhamos numa prtica arte-
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sa n al que deixa poucos rastros visveis e cujas obras se dissolvem velozmente no tempo. To velozmente que nosso ethos profissional no
pode conquistar uma identidade prpria sem uma robusta conscincia
dos prprios antepassados.
O culto ao passado no importante. Mas a memria guia nossa
ao. a memria que permite penetrar embaixo da pele da poca e
encontrar os mltiplos caminhos que nos levam origem, ao primeiro
dia.
Louis jovet afirmou uma vez algo fulminante e enigmtico: "E xi ste
uma herana de ns para ns mesmos" .
A escolha de um fio em vez de outro, para contar a intricada trama
.dos acontecimentos, primeiro uma responsabilidade tica, e depois
um problema cientfico.
tica e cincia. Os antigos usavam uma s palavra: d isciplina.
*
Uma a triz folheia as pginas deste volume e me pergunta: Para que
me servem todas estas anlises, todos estes exem p lo s, os mesmos nomes
que sempre voltam? E acrescenta: rid o. Trabalho sozinha numa sala
vazia, o que voc chama de Terceiro Mundo ou Terceiro Teatro. Me
debato todos os dias com a minha aridez, no isso que espero de
um livro sobre atores.
Respondo: Aqui esto os canos, canais, alguma cisterna; tudo seco.
A tua gua ningum pode oferecer-te.
Me pergunta: Quer dizer que, sem tudo isso, a minha gua, se
existe, transforma-se num pntano?
*
fcil banalizar a palavra "ofcio" ou "tcn ica" repetindo que estas
no so as coisas mais importantes.
Entretanto, com exceo de uma pequena parte, encontrar o prprio
sentido do teatro quer dizer inveno pessoal do ofcio.
verdade que o . que chamo de "p eq u en a parte" essencial. Est
conectada com uma parte de ns sujeita a contnuas obnubilaes,
a perodos de silncio, de cansao, de aridez, de desencorajamento.
um mar vivo e tenebroso que s vezes nos parece inundado de
75
*
Algumas vezes, o caminho mais simples entre dois pontos um
arabesco, a rota de uma canoa obstruda pelas correntes. A canoa de
papel este livro. As correntes so a matria em movimento da multiplicidade dos teatros e de seus atores, experincias e memrias. A
canoa navega por linhas tortas mas segundo um mtodo.
*
Se no pode morder, no mostre os dentes.
Devo concentrar-me sobre a preciso tcnica. Posso colaborar somente com quem sabe a arte da autodisciplina.
Acredito somente nos teimosos.
Para eles escrevo este "tratado".
No acreditem que lhes servir. No acreditem que possam prescindir dele.
Captulo 5
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ator ao representar percebe direes, sente as mudanas. Sente-se continuamente orientado. Neste sentido, o personagem uma sucesso de impulsos, de
movimentos do sentir. O ator posto prova quando deve parar estes movimentos como conseqncia da fala do outro .atol.
Para um ator, ter energia significa saber como model-la. Para ter
uma idia e viv-la. como experincia, deve modificar artificialmente
os percursos, inventando represas, diques e canais. Estes constituem
resistncias contra os quais -pressiona a inteno - consciente ou intuitiva - e que permitem a sua expresso. O corpo todo pensa/age
com uma outra qualidade de energia. Um corpo-mente em liberdade
afrontando as necessidades e os obstculos predispostos, submetendose a uma disciplina que se transforma em descobrimento.
A inteligncia de um ator a sua vitalidade, o seu dinamismo, a sua ao, a
sua tendncia, a sua energia. Um sentimento que vive e provoca nele, a um cerro
-ponto, por um certo costume, um olhar profundo, uma condensao da sua sensibilidade, uma conscincia de si mesmo. o pensamento-ao':
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Sete dcimos -
a energia da ao absorvida
mestre move os dedos. Se us olhos claros brilham. Tem na mo uma marionete de Java. As m os de ouro do mestre fazem movimentar as mozinhas
douradas do boneco (...). Repen tinamente o mago corta o fio do encantamento.
Aparecem das suas ~os bastezinhos dourados e um trapo colorido (.. .). As suas
aulas eram miragens e son hos. Dava muito trab alho anotar tudo febrilmente. Ao
de spert ar lia-se no caderno: "O diabo sabe do que se trata".
p. 76- 7. uma seleo de trechos do primeiro volume (Memorie) das Obras Escolhidas em seis volum es de Eisenstein publicadas na URSS entre 1964 e 1971.
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movimento. O essencial numa ponte no o ornamento que embeleza seu parapeito, mas sim a tenso que o exprime. O mesmo ocorre com o ator em cena'',
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"Sats " -
Um termo da linguagem de Meyerhold otkaz, que significa recusa, ou - n a linguagem musical - , a alterao d a nota em . um
ou dois sernitons que interrompe a evoluo da melodia e a faz voltar
ao seu tom natural:
O princpio do otkaz implica a precis a definio dos pontos nos quais termina
um movimento e. inicia outro, um stop e um go ao mesmo tempo. Otkaz 'um
corte ntido que suspende o movimento anterior e prepara o seguinte. Permite
assim reunir dinamicamente dois segmentos de um exerccio, releva o segmento
subseqente, lhe d impulso, como um trampolim. O otkaz serve tambm pa~a
mostrar ao parceiro que se est pronto a passar para a fase seguinte do exerccio.
uma ao brevssima no tempo, no sentido contrrio, oposta ao total do
movimento: o ato de recuar antes de andar para a frente, o impulso da mo que
se levanta antes de golpear, a flexo antes de erguer-se',
li
On the Art o[N Drama. The Major Treatises ofZeami, traduo do original japons
de J. Thomas Rimer e Yamazaki Masakazu, Princeton, Princeton University Press,
1984, p. 75. o ponto 2 do tratado Kaky (O espelho da flor).
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pode ser realizado em diferentes nveis, como uma esp cie d e siln cio antes do
movimento, uma esp cie de siln cio cheio de potencial, o u pode ser real izado
, . de suspe nsao
- da aao
- num momento pteCiso
. 14 .
como uma especie
Imploso no deve fazer pensar necessariamente numa sucessiva exploso, numa ao impetuosa, dilacerante e veloz.
No quer dizer que os sa ts devem ser to m arc ados a ponto de dar
ao do ator carter de um staccato, de um proceder por saccades,
por solavancos e ' arrebatamentos. Se os sats so marcados, tornam-se
inorgnicos, isto , reprimem a vida do ator e tornam-se enfadonhos
para os sentidos do espectador.
Ingemar Lindh reformula d a seguinte maneira a " im o b ilid ade em
movimento" de Decroux: executar a inteno na imobilidade. a isso
que os etlogos chamam de MI, Movements of Intention: o gato no
faz nada no momento, mas entendemos que quer ag arrar uma mosca.
O sa ts no algo que pertence somente ao "e sculto r que esculpe
o corpo interiormente" : No est ligado somente imobilidade dinmica. Numa seqncia de aes, uma pequena descarga de energia
que faz mudar o curso e a intensidade da ao ou a suspende improvisadamente. um momento de transio que desemboca numa nova
postura bem precisa, uma mudana de tonicidade do corpo inteiro.
Se nos sentamos, por exemplo, podemos individuar um ponto alm
do qual no conseguimos mais sustentar o peso e o corpo cai. Se
paramos imediatamente antes daquele ponto, estamos em posio de
sats: podemos voltar posio ereta ou podemos sentar-nos. Para en 'contrar a vida dos sats, o ator deve jogar esgrima com o sentido ci-
O ator sabe o que est por fazer mas no deve antecip-lo. O sats
a explicao tcnica daquele lugar-comum, segundo o qual o dom
do ator consiste em saber repetir o espetculo de tal maneira que a
ao brote to decidida como pela primeira vez.
O trabalho sobre os sats o caminho para penetrar no mundo
celular do comportamento cnico, e eliminar a separao entre pensamento e ao fsica, que freqentemente caracteriza, por economia,
o comportamento na vida cotidiana: essencial, por exemplo, saber
V. MEYERHLD, Ecrits sur thtre, tomo Il, traduo, prefcio e notas de Batrice
Picon-Vallin, Lausanne, La Cit -L'Age d 'Hornme, 1975, p. 128 e 141.
17 '
E outra das frase de Meyerhold anotadas por Alexander Gladkov e traduzida no
livro a cargo de Gourfinkel, cit. na nota 6, p. 255.
16
Jerzy GRTWSKI, Leggi pragmatiche, em La scuola degli attori. Rapporti organizados por Franco Ruffini, Florena, La Casa Usher, 1981 , p. 3 1.
15 Etienne DECRUX, Paroles sur fe mime, Paris, Gallimard, 1963, p. 7 1.
14
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89
Kunio KOMPARU, The Noh Theatre, Principies and Perspectiues, N ova York-Tquio, WeatherhilllTankosha, 1983, p. 216.
19 No seu livro sobre Vachtangov publicado em Moscou em 1926, Boris Zachava
recorda que em 1921, trabalhando em O Milagre de Santo Antnio, Vachtangov
"estabelece que ningum tinha o direito de movimentar-se no palco quando algum
falava: logo que um ator comeasse a falar, todos os outros deviam permanecer
petrificados, numa imobilidade absoluta, sem fazer nenhum gesto, nem mesmo um
nico movimento dos msculos, para no atrair a ateno do espectador sobre si,
pois a ateno naquele momento deveria concentrar-se no .personagem que devia
representar.
"Esta imobilidade no deveria atingir o espectador como algo artificial. Bastava
que cada ator justificasse por conta prpria a deteno de seu movimento, encontrasse a causa que necessariamente (organicamente) provocasse a deteno. A imo. bilidade deveria ser justificada interiormente.
"A imobilidade exterior no deveria ser a imobilidade interior: a esttica exterior
deveria ser dinmica interior. Vachtangov exigia que cada ator fizesse que a rplica
do partner chegasse exatamente no momento em que o movimento no estivesse
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Permite intervir com preciso tcnica tambm quando se trabalha segundo o procedimento do "se mgico" e da "m em ria emotiva".
Aqui est Stanislavski, durante um ensaio, nos ltimos anos de
sua vida, tentando despertar o bios cnico de um ator com grande
experincia no ofcio.
Stanislavski o ajuda usando o termo "ritmo", que pertence sua
linguagem comum de trabalho. Mas coloca este termo no contexto
de uma frase que o faz irreconhedvel.
- Voc no mantm o ritmo certo quando est parado!
Vassili Toporkov, o ator, pensa:
.- Parado mantendo o ritmo! Como estar parado no ritmo? Caminhar, danar,
cantar no ritmo certo eu entendo, mas estar parado!
E pergunta:
- Perdo, Konstantin Sergueievitch, mas eu no tenho idia de que ritmo
se trata.
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No importa. Naquele canto tem um rato. Pega um basto e fica ali pronto
a esper-lo. Mate-o assim que sair... No, des se modo o deixar escapar. Olha
com mais ateno mais ateno. Assim que eu bater as mos, d um golpe
com o basto... Ah , olha como chega atrasado! Mais uma vez. Concentre-se melhor. Tente dar o golpe ao mesmo tempo que eu bato as mos. Assim! Bem!
Percebe . a diferena? Estar em p, atento a um rato - este um ritmo; estar
atento a um tigre que se levante de frente para voc um ritmo bem diferente'.
Se eliminssemos a palavra "ritmo" das ltimas palavras de Konstantin Sergueievitch Stanislavski e a substitussemos pela palavra
"emoo", o sentido de base das suas indicaes no mudaria. Entretanto, ficaria oculto o fato mais importante para ns: a eficcia
do "se mgico", ou da "memria emotiva" suscitada pelo exterior,
operando sobre o sats. Por esse caminho, o ator libera-se da dificuldade de "decidir a agir" . Reage, est decidido.
Stanislavski destaca, durante os ensaios, todo o trabalho sobre o sats
e .sobre a imobilidade em movimento nas 25 fases que incorporam o
Mtodo das Aes Fsicas. Os pontos 18 e 19 dizem:
Sentados ao redor da mesa, os atores lem o texto em voz alta. Tratam de
executar as aes Fsicas ao mesmo tempo sem se mover. Sempre sentados e lendo
o texto, indicam as aes movendo somente a cabea e as mos22
Intermezzo:
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Animus e Anima -
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temperaturas da energia
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ou feminina inevitvel e necessria. No entanto, prejudicial quando se torna dominante tambm num terreno que no lhe pertence,
o pr-expressivo.
Durante a aprendizagem, a d iferenciao individual passa pela negao da diferenciao dos sexos. O campo da complementaridade
se dilata; isso pode ser visto quando o trabalho com o nvel pr-expressivo no leva em conta o masculino ou o feminino (como na
dana moderna ou no treinamento de vrios grupos de teatro); ou
tambm quando o ator explora indiferentemente papis masculinos
ou femininos (teatros clssicos da sia) . Neste momento, o carter
bifrontal da sua energia peculiar aflora com maior evidncia. O equilbrio entre os dois plos, a energia-Anima e a energia-Animus, preservado.
Tambm na tradio indiana trabalha-se no interior da polaridade
da energia e no da coincidncia entre personagem e sexo do ator. Os
estilos da dana i~diana esto divididos em duas categorias, lasya (delicados) e tandava (vigorosos), com base na maneira em que so executados os movimentos e no no sexo dos executores.
Entre essas duas vertentes da mesma unidade de senvolve-se o mundo
da dana indiana; no s os estilos mas tambm cada elemento de um
estilo (movimento, ritmo, figurino, msica) , se forte , agitado e vigo- .
raso define-se como tandaua, e se leve, delicado e gentil define-se
como lasya.
Bayu, "ven to, respirao" , define normalmente a energia do ator
para os balineses, e a expresso pengunda bayu afirma que esta bem
distribuda. O bayu balins interpreta literalmente o crescer e o decrescer de uma fora que eleva o corpo todo cuja complementaridade keraslvigoroso e manis/suave reconstri as variaes e as matizes
da vida.
Na terminologia adotada neste livro, Anima e Animus indicam uma
concordia discors, uma interao entre opostos que leva a pensar nos
plos de um campo magntico, na tenso entre corpo e sombra. Seria
arbitrrio dar-lhes conotaes sexuais.
Keras e manis, tandaua e lasya, Animus e Anima no indicam conceitos totalmente equivalentes. semelhante, em diversas culturas, a
exigncia de definir, por uma oposio, os plos extremos da gama
97
98
99
Lendo esses .trs versos como se fossem uma quase-poesia, fui golpeado pela diferena entre os dois primeiros e o terceiro. No estou
tentando interpretar, estou fazendo um comentrio livre sobre o tema
de que estou tratando, no sobre Zeami.
Ora, enquanto no primeiro e no segundo verso a complementaridade ou a coincidncia dos opostos evidente, no terceiro verso esta
velada por uma imagem fundamentalmente monocromtica, que se
mantm viva graas s diferentes graduaes entre a candura da neve
e a fascinante e clida luminosidade da prata. Sublinho clida; num
verso sucessivo, aparece outro esplendor do metal, do qual se indica
explicitamente o carter frio ("Move-se a sombra do malho glido
esplendor da espada") . A imagem da neve no clice de prata, pelo
contrrio, distancia a noo natural do frio numa luz serena. Digamos
que d uma sensao primaveril, mas no corao do inverno. Portanto
aqui tambm encontramos a complementaridade dos opostos, mas dissimulada pela absoluta falta de dissonncias.
Zeami usa a imagem da neve e da prata para falar da imperturbvel
presena de um ator que atinge o inslito sem nenhuma dramaticidade
visvel. Ns a usaremos para concluir o discurso sobre diferentes temperaturas da energia.
Uma das armadilhas mais traioeiras abertas nas pginas dedicadas
ao procedimento da arte deriva da diferena radical entre as ttica~
que conduzem compreenso conceitual e as que conduzem compreenso prtica atravs da experincia da ao.
Para que a existncia de uma gama de diferentes possibilidades seja
compreendida racionalmente, conveniente acentuar os pontos extremos (assim como fizemos h pouco: Animus e Anima; assim como
fizemos desde o incio deste livro: atores do Plo Norte e atores do
Plo Sul). necessrio recordar que"essa insistncia nos extremos existe
24
100
pode representar neste contexro, o antdoto para a tendncia em direo aos extremos. Lembro que a mise-en-uision do bios depende das
imperceptveis matizes do ritmo, das particularidades de cada onda,
uma distinta da outra, que so a corrente viva entre as margens.
Mas no se esquea que a suavidade da neve e a consistncia da
prata na qual est recolhida so tambm dois extremos que condensam
num paradoxo a ao simultnea de duas foras divergentes. Para Zeami, o segredo do inslito, a "flor" do ator, o seu bios cnico, reside
nesta capacidade de dar vida a uma oposio.
No tratado Fushikaden lemos:
So infinitas as coisas nas quais se deve prestar ateno quando se representa
um espetculo N . Por exemplo, quando o ator. quiser exprimir a emoo da
raiva, no deve deixar de manter um corao terno. Este o nico modo de
desenvolver a ao seja qual for o tipo de raiva que se represente. Parecer bravo
mantendo um corao terno um modo de dar vida ao princpio do inslito.
Por um outro lado, num espetculo que requer graa, o ator no deve esquecer
de manter-se forte. Dessa maneira, todos os aspectos de seu espetculo - dana,
movimento, interpretao - sero genunos e semelhantes vida. Existem outros
princpios alm destes sobre o usado corpo do ator em cena. Quando o ator
se movimenta de modo poderoso, deve bater o p de maneira gentil. E quando
bale os ps com fora, deve manter quieta a parte superior do corpo. Todos
101
Um outro escrito de Zeami, o tratado Shikado (O verdadeiro caminho para a Flor), nos introduz a estes matizes que se encontram
entre os extremos. Devemos l-lo paralelamente a outro tratado: Nikyoku Santai Ezu (Duas artes e trs tipos ilustrados) .
Zeami indica aos atores a importncia de trs figuras: A Mulher, o
Guerreiro e o Velho. Aparentemente trs papis diferentes. Escreve:
Um ator que inicia sua aprendizagem no deve esquecer-se das Duas Artes
(Nikyoku) e dos Tr s Tipos (Santai). Com Duas Artes entendo a dana e o canto.
Com os Trs Tipos me refiro s formas humanas que constituem a base para
personificar o rotai, um velho, o nyotai, uma mulher e o guntai, um gu erreiro-'',
Nzkyoku Santai Ezu (Duas artes e trs tipos ilustrados), ZEAMI, La tradition secrte
du N, traduo e comentrios de Ren Sieffert, Paris, Gallimard, 1960, p. 151 -61.
Zeami define de maneira lapidria os trs tipos:
'Tipo do Velho: serenidade de esprito e olhar distante.
"Tipo da Mulher: a sua essncia constituda pelo esprito. A violncia no lhe
pertence.
"Tipo do Guerreiro: sua essncia a violncia. O esprito aplica-se a detalhes
.
(delicadeza na fora)" .
Ao lado dessas definies Zeami coloca o desenho dos trs tai: trs figuras nuas
para que se possa reconhecer claramente a arquitetura dos trs semblantes.
102
I
\
II
i
!
Pensamento em ao -
28
II
I}
103
Mas no estamos nem mesmo no incio da compreenso desse princpio regulador. O fato de esse princpio se aplicar a todos os nveis
do teatro, da representao dramaturgia, da composio do programa
de uma jornada N msica, torna difcil a sua compreenso. Concentremo-nos somente na ao fsica do ator.
O terceiro momento caracterizado por uma interrupo imprevista.
D ao espectador a impresso de algum que interrompe sua corrida
beira de um barranco. Os ps do ator param repentinamente, o tronco
oscila ligeiramente para frente enquanto as costas se distendem e o ator
parece aumentar de tamanho. Na realidade, o momento da interrupo
uma fase de transio. Alguns atores dizem que na fase do kyu no
expiram totalmente e conservam o ar necessrio para retomar a ao
sem inspirar. O movimento ininterrupto mas a energia suspensa.
O ator da pera de Pequim poderia repetir aqui a sua indicao sinttica e eficaz: "Movement stop, inside no stop" . Em outras palavras, o
momento final da fase na qual o ator se interrompe um sats, o ponto
de partida de um novo jo. Resumindo, o jo-ha-kyu cclico.
um passo avante, mas ainda estamos longe.
Podemos pensar que o jo-ha-kyu funciona como o "cnone infinito"
ou "perptuo" da tradio musical ocidental. No assim. Quando
citado nos livros, pode parecer uma mtrica baseada em trs segmentos
dotados de distintas velocidades. Na realidade, cada uma das trs fases
subdivide-se em jo, ha e kyu. Se um ator clssico japons analisa a
estrutura da sua ao, depois que explicou os primeiros rudimentos
do jo-ha-kyu, comea a falar de um jo do ha; de um ha do kyu, de
um kyu do jo e assim por diante. O ator pode executar uma dana
inteira indicando para seus interlocutores em voz alta as diversas fases
e as subfases de cada fase.
O interlocutor comea ento a perder-se. Na tentativa de encontrar
um ponto firme leva o interrogatrio s raias do absurdo: "Mas ento
existe tambm um kyu do jo do ha?". "Isso mesmo", lhe responde o
ator. Mas depois de um certo ponto ele tambm comea a perder-se.
Notamos que o jo-ha-kyu no propriamente uma estrutura rtmica
mas sim um pattern do pensamento e da ao. Em nvel macroscpico uma clara articulao tcnica, mas, superado um certo limiar,
transforma-se num ritmo do pensar.
104
105
Comprava um jornal quando ainda faltava uma hora para a partida do trem
e no sabia como matar o tempo ou quando foi dado o primeiro ou o segundo
106
sinal de aviso da partida ou, enfim, quando o trem estaria pronto para partir.
As aes eram sempre as mesmas mas com um ritmo completamente diferente
e Konstantin Sergueievitch era capaz de executar estes exerccios em qualquer
. 29.
ordem: aumentando ou diminuindo o ritmo, mudan d o-o dee IImprovIso
Vasi1y TOPORKOV, Stanislavski in Rehearsal (1949), Nova York, The Arts Book,
1979, p. 63 .
107
Volta casa
Um dos melhores manuais prticos para a aprendizagem do ator
"realista" Ta the Actor, publicado por Mikhail Tchecov em 1953
em Nova York na Editora Harper & Brothers. Tem um subttulo:
On the Technique
Acting, e acompanhado por alguns desenhos
explicativos de Nicolai Remisoff.
um tpico manual para atores do Plo Sul. Assim, enquanto a
Antropologia Teatral freqentemente nos leva lon ge, com Mikhail
T checov, nos encontramos a dois passos de casa: o ator a quem se
dirige hoje a espcie mais difundida no teatro, no cine~a e na
televiso. As tradies do teatro codificado, tanto as asiticas quanto
as euro-americanas, no encontram lugar no seu livro.
oi
I
!
I
,
30
l OS
A Segunda Guerra Mundial tolheu qualquer possibilidade de sobrevivncia aos pequenos teatros de arte. Mikhail T checov forado
a colocar seu conhecimento disposio dos atores da Broadway e de
Hollywood. Ao publicar o livro deve apresentar suas credenciais pela
ensima vez e lembra aos leitores que esteve em contato com artistas
com Chaliapin, Moissi, jouvet, Gielgud. Entre seus alunos - alm
de Gregory Peck - est Yul Brynner, que exatamente nesse perodo,
quase com quarenta anos de idade, se torna uma estrela. Por esse
motivo, Mikhail T checov pede-lhe que escreva o prefcio.
P1CON-VALLIN, M eyerhold, Paris, C N RS, Les voies de la cr ation th trale, 17, 1990, p. 275.
Mikhail T CH ECOV, All'attore, Florena, La C asa Usher, 1984, p. 3.
3 1 B atrice
32
10 9
110
111
35
112
sem se tornarem indefinidos" revela a vontade de salvaguardar a pulsao secreta da vida cnica, os impulsos, contra-impulsos, os sats.
"No formas, mas miolo de forma", corno disse Garca Lorca. "E o
que parece flor, na realidade mel".
Exerccio 6. Comecem este exerccio como sempre com movimentos am plos;
em segu ida p assem a movimentos simples e naturais como o s que vou sugerir:
levantem um brao, abaixem -n o , estiq u em -n o para o lado, para frente; caminhem
pela sala, deitem -se , sentem-se, levantem-se; sem interrupes enviem, antecipadamente, os raios de fora que emanam de seus corpos ao espao circundante,
na direo do movimento que faam , primeiro precedendo e depois sucessivamente prolongando todos os seus movimentos.
Talvez se perguntem como podem continuar sentando-se , por exemplo,quan_do na realidade j esto sentados. A resposta simples: pensando no quanto
estavam cansados e exten u ados quando se sentaram. De fato, seus corpos fisicos
assumiram aquela posio final, mas psicologicamente ainda continuam realizando
o ato de "sentar-se", pois irrad ia m os seus estarem sentados. Tornamo-nos conscientes dessa irradiao quando temos a sensao de gozar o relaxamento obtido.
O mesmo acontece se se levantarem imaginando estarem cansados e extenuados:
o corpo ope resistncia, e, muito antes que efetivamente se levan tem , j o esto
fazendo internamente; esto irr adian d o o "ato de levantar-se", e continuam a
levantar-se quando j esto em p39.
Exerccio 7 Quando houverem adquirido todos esses quatro movimentos (modelar, flutuar, voar e irradiar) e forem capazes de os executarem com facilidade,
experimentem reproduzi-los somente na imaginao. Repitam os movimentos at
que saib am reproduzir exatamente o mesmo estado psicolgico e a mesma sensao fsica que experimentaram enquanto realmente faziam os movimentost",
Exerccio 5. (...) Imaginem que o corpo possa voar no espao. Como nos
exerccios anteriores, os movimentos devem estar ligados sem se tornarem indefinidos. Neste exerccio a fora fsica empregada pode aumentar e diminuir
vontade, -mas no deve nunca desaparecer completamente; devem manter constantemente esta fora dentro de vocs; externamente podem assumir uma posio
esttica, mas internamente devem conservar a sensao de alarem vo. Imaginem
que o ar os convide a voar. O desejo deve ser o de anular o peso do corpo, de
vencera fora da gravidade. Mudem o ritmo enquanto se movern-".
12-3.
113
39
40
Ibidem, p . 14-5.
Ibidem, p . 16.
114
115
A explorao das diversas temperaturas da energia um princpio-que-retorna no apenas atravs de tcnicas mentais baseadas em
imagens pessoais mas tambm atravs de distines codificadas como
A concepo comum do ritmo cnico no permite distinguir entre suas variantes interiores e exteriores. Na realidade, o ritmo interior pode ser definido como
uma mudana rpida ou lenta do pensamento, das imagens, dos sentimentos,
dos impulsos, da vontade etc. O ritmo exterior exprime-se em aes e em raciocnios rpidos ou lentos. Em cena, d-se a conjuno do ritmo interior com o
exterior.
Por exemplo, pensemos em uma pessoa que espera algum ou alguma coisa
com impacincia: na sua mente as imagens se sucedem, aparecem e desaparecem;
est tensa ao mximo, e, ao mesmo tempo, pode controlar-se de modo que seu
comportamento exterior, os seus movimentos e seu modo de falar mantenham-se
aparentemente calmos e lentos. Um ritmo exterior lento pode escorrer juntamente
a um ritmo interior bastante vivaz e vice-versa. Geralmente, em cena, o efeito
dos dois tempos contrastantes que escorrem contemporaneamenteencontram uma
ressonncia muito forte no pblico.
No devem confundir um tempo lento com a passividade e a falta de energia
no ator. Embora seja lento o ritmo utilizado em cena, o ator deve sempre estar
ativo. Do outro canto, o ritmo veloz que escolherem para suas interpretaes no
deve ser traduzido, forosamente, em pressa e em tenses psicolgicas e fsicas
desnecessrias. Um corpo flexvel, bem treinado, pronto e uma boa tcnica vocal
lhe faro evitar estes erros e os ajudaro na utilizao desses dois ritmos contrastantes42.
,;
42
377-8.
116
43
Ibidem, p . 71.
117
103-4.
118
Captulo 6
o corpo dilatado.
Notas sobre a pesquisa do sentido
a riqueza de casa.
Neste paradoxo esto encerrados o mtodo e o objetivo da Antropologia Teatral.
*
Um dia se reencontra uma menina - A memria . a cano que
cantamos para ns mesmos. uma vereda de hierglifos e perfumes
com os quais nos aproximamos de ns mesmos.
O cavalo deixado livre para voar e saltar seguindo as suas vises.
s vezes, quando partimos, deixamos atrs de ns uma menina
. vivaz e graciosa. Depois, em poucos anos, a reencontramos e um
45 V.
te
119
120
*
. O sentido e as teorias - O teatro pode ser uma expedio antropolgica. O que uma contradio de termos, j que o antroplogo
escolhe um lugar, se estabelece e faz pesquisa de campo.
Deixei a Noruega e fui Escola de Teatro de Varsvia para estudar
direo. Abandonei-a. Fiquei na Polnia, em Opole, uma cidadezinha
de sessenta mil habitantes, com Grotowski, no seu teatrinho "das treze filas". A se realizou uma de minhas duas viagens mais longas e
imprevisveis. A ourra realizar-se- em Holstebro, Dinamarca.
O teatro pode ser uma espcie de expedio antropolgica que
abandona os territrios bvios, os valores conhecidos por mim e por
121
todos, os lugares onde estender a mo sinal de saudao, onde levantar a voz sintoma de irritao, onde comdia significa espetculo
alegre e tragdia significa espetculo que fere.
Na Polnia, no incio dos anos sessenta, as autoridades impunham
normas de produo, um nmero mnimo de estrias e de espetculos
por temporada. Era a quantidade que constitua um sinal de reconhecimento e de sade artstica e social. Este frenesi da produo e da
quantidade, esta iluso dos nmeros e da estatstica chamavam-se "poltica cultural", ' "cultura democrtica", "teatro popular". .
Grotowski no queria fazer oito, sete, trs estrias por ano. Queria
preparar apenas uma, mas bem. Dar o mximo. Apresent-la a um
nmero restrito de espectadores para que a comunicao fosse mais
profunda. Estabelecer desorientantes relaes espaciais e emocionais
de encontto com esses espectadores, de dilogos consigo mesmo, de
meditao sobre a poca. Para realizar sua necessidade pessoal encontrou-se lutando contra a sua poca. Em 1961, 62 e 63 algumas
vezes vinham a seus espetculos apenas trs ou quatro pessoas. Nos
trs anos durante os quais estive com ele fui testemunha da sua resistncia feita para apenas um punhado de espectadores. Trabalhava
para indivduos especficos, para sua particularidade e unicidade, no
para o pblico. O "teatro pobre" de Grotowski no era uma teoria,
nem uma tcnica, nem um como fazer teatro. Era o seu porque fazia
teatro.
Em 1960, com vinte e quatro anos, cheguei por acaso quela cidadezinha de Opole e a encontrei Grorowski, um rapaz com dois
anos a mais do que eue que me olhava com olhos sorridentes irnicos ou compreensivos? - quando lhe falava do teatro para o
povo, do teatro poltico, da funo social do teatro. O seu teatro era
uma sala de 80m2 , seis ou sete atores e a mesma quantidade de espectadores leais e motivados.
Foi um dos lderes da juventude rebelde anti-stanilisra na Polnia.
Em 1956, em Poznan, os operrios rebelaram-se e os estudantes universitrios ficaram ao lado de Gomulka, que chegou ao poder e iniciou o famoso Outubro Polons. Pela primeira vez teve-se a sensao
de que as coisas poderiam mudar em um pas socialista. Em 57 e
58 comeou o que os poloneses chamaram de "poltica do salame":
122
123
tirar fatia por fatia do que foi concedido. Grotowski no estava mais
na cena poltica. Desaparecera num teatrinho em Opole.
Eu lhe falava de Brecht e de suas teorias. Ele escutava com aquele
sorriso que me incitava a falar.
Meu primeiro encontro com Brecht havia ocorrido justo naquele
momento, cinco anos depois da sua morte e cinco anos depois do
Outubro Polons. Foi um encontro com sabor de nusea.
Cheguei Polnia em 1960 com a cabea cheia de teorias brechtianas, e com estas comecei a estudar direo na Escola de Teatro de
Varsvia. A encontrei Tadeusz Kulisiewicz, um artista grfico que colaborou com Brecht. dele o cartaz para Vida de GaLiLeu no qual
Galileu est desenhado com traos sutis, como um homem j curvado
e encerrado em um mundo parte, pronto para saltar como uma
mola de ferro. Kulisiewicz deu-me uma carta de apresentao para a
mulher de Brecht, Helene Weigel, e com esta carta no bolso parti
para Berlim.
Era duro chegar a Berlim (Berlim Ocidental) vindo de Varsvia.
Varsvia ainda conservava os traos da guerra. A reconstruo polonesa
procedia lentamente, mas em certos ambientes, .d e noite, explodia a
alegria de viver. Depois dos espetculos os atores iam ao Club Spatif
que ficava aberto at s duas da manh. Estavam alegres pela vodca,
pela comida, por aquela particular exaltao que vem aps o cansao.
Freqentemente queriam continuar durante toda a noite e ento iam
ao Bristol, o nico clube que ficava aberto at o amanhecer. Na entrada
uma velha senhora sentada num degrau vendia flores de papel. Os
atores davam-lhe com prazer algumas moedas e ofereciam uma flor
artificial a um colega.
De noite, a luz dos lampies era vencida pela luz de centenas e
centenas de velas que as mulheres acendiam ao longo das runas bombardeadas. Podiam-se ler nos muros, iluminados por essas velas, os
nomes dos poloneses fuzilados pelos alemes durante a ocupao.
Varsvia era ttrica com suas compridas filas fora das lojas de mercadorias de primeira necessidade. As escavadeiras revolviam os escombros encontrando ossos. Os caminhes os levavam embora, uma carga
depois da outra. Dessa Varsvia cheguei a Berlim Ocidental. Todo .
aquele non, aquelas lojas transbordando de frutas e de flores, de cho-
124
125
126
o CORPO
127
128
*
Pensamento e pensamentos - John Blacking, no seminrio "Teat ro,
Antropologia, Antropologia Teatral" do Centre for Performance Research em Leicester, no outono de 1988, fala de um pensamento que
no se Jaz conceito. Antroplogo e etnomusiclogo de fama mundial,
129
explica como "pen sa" com preciso de detalhes o sistema circular mente-mo-pedra-mente de um homem "prim itivo" que est afiando um
pedao de slex para fazer a ponta de uma arma. Descreve como "pensamento" a ao das mos que fazem girar um pauzinho para acender
o fogo ou que tocam um tambor. Fala do corpo que " pensa" com a
dana. No incio as frmulas de Blacking parecem apenas sugestivos
modos de falar. Depois, a idia de que sejam algo mais abre caminho.
Um modo de falar "ao p da letra".
Blacking conclui propondo a polaridade thinking in motion-thinking
in concepts. Como traduzir motion? No "movimento" nem sequer
"ao". Melhor no tfaduzir.
Pergunto-me se thinking in motion no seria a melhor maneira para
definir o ensinamento sobre "aes fsicas " que Stanislavski tentava
transmitir aos atores, aquele ensinamento do qual Grotowski hoje o
verdadeiro mestre.
Mas tambm o pensamento conceitual e analtico pode construir
polaridades, tenses, posies e oposies que o obrigam a estar in
motion, fora da sua rbita.
Nos meus anos de trabalho com Grotowski, falava da polaridade
wishful thinking-concrete thinking. Wishful thinking iiJ.dica uma fase
particular no processo de criao teatral: dar passe livre s vises que
nos obsessionam, sonhar de olhos abertos, crer e deixar-se seduzir pela
sugesto exercida pelo tema do espetculo, deixar o mythos vencer.
Concrete thinking: profanar com uma anlise fria o fascnio do terna,
dissec-lo com ceticismo e esprito custico, trespass-lo com a nossa
experincia da realidade, no o que se sabe mas o que eu sei.
Durante a segunda sesso da ISTA, em Volterra, em 1981, trabalhamos com o texto de Edward Bond, Narrow Road to the Deep North.
Por razes didticas separei os dois momentos. A primeira parte foi
um trabalho de mesa: cortes, reconstrues e interpretaes do texto.
A segunda parte foi um esboo de apresentao do espetculo. Foi
difcil fazer compreender por que o trabalho sobre o palco consistia
em uma contnua polmica com o trabalho de mesa que eu mesmo
conduzi. Thinking in concepts thinking in motion, wishful thinking concrete thinking.
O termo "con creto " derivado de cum-crescere, crescer Junto com
130
o Holands
Errante -
Os saltos do pensamento podem ser definidos como peripcias. Peripcia uma trama de acontecimentos que
faz uma ao desenvolver-se de maneira imprevista ou que a faz terminar de modo oposto a como comeou.
A peripcia age por negao. Isto sabemos pelo menos desde o
tempo de Aristteles.
O comportamento do pensamento visvel nas peripcias das histrias, nas suas mudanas imprevistas, quando passam de mo em
mo, de uma mente a outra. Desse modo acontece no processo criativo
teatral, tambm neste caso as mudanas imprevistas no vm da cabea
de um artista solitrio mas sim comprometem muitos indivduos que
interagem tendo um ponto de partida comum.
. O Holands Errante era o capito Van der Decken. Quando tentava
dobrar o cabo da Boa Esperana o capito Van der Decken blasfemou
contra Deus e o Inferno: no cederia s foras da tempestade e do
destino, continuaria tentando at o fim de seus dias. E foi assim que
escutou uma voz vinda do cu que repetia suas palavras como uma
condenao: "At o ltimo dia. .. ltimo dia" .
Forma-se, assim, o n fundamental de uma histria: um capito
que permanece no mar sem nunca morrer. Um navio que continua a
navegar. Este n salta para outros contextos quando abandona o contexto original.
A fantasia popular sobrepe a figura do Capito e seu eterno peregrinar de Ahasverus, o Judeu Errante, que no encontra paz. Desse
modo a histria de Van der Decken muda. Conta-se que foi condenado porque levava uma vida imoral, atia, tanto que ordenou zarpar
na sagrada Sexta-Feira Santa, o dia em que mataram o Salvador.
Ou ento a figura do Capito desbota-se e o seu navio aparece em
seu lugar na imaginao. O Navio Fantasma aparece de repente aos
navegadores, preto, tem' as velas cor de sangue, amarelas ou furta-cor
e enfeitiadas, que podem mudar at dez vezes em uma hora.
131
O tempo passa e o tema do Capito e da sua condenao se entrelaa com o da mulher que salva. Esta mudana ocorre nos mesmos
anos em que tambm muda a histria de dois outros proverbiais adeptos do Inferno: Don Giovanni e Fausto - que so salvos pelo amor
de uma mulher.
Heine foi provavelmente o primeiro a entrelaar este novo motivo
saga do Holands Errante e seu Navio Fantasma. De vez em quando
Van der Decken atraca numa cidade onde tenta encontrar o amor.
Ser salvo quando encontrar uma mulher que lhe seja fiel at a morte.
No vero de 1839, Richard Wagner viajava de Riga a Londres acompanhado por sua mulher Mina. Wagner j conhecia a histria do Holands mas somente veio a entend-la realmente quando o navio no
qual viajava foi colhido por uma tempestade nas costas da Noruega.
Os marinheiros falavam sobre o Navio Fantasma que anuncia os naufrgios. Finalmente atracaram entre as altas bordas de um fiorde em
Sandvik a poucas milhas de Arendal.
No final da viagem Wagner chegou a Londres e transferiu-se para
Paris onde narrar a viagem nas costas norueguesas; dir que o vento
soprava demonaca e sinistramente entre as sartas; contar que viu
uma vela surgir da escurido e que acreditou ter visto o navio do
Holands.
Os amantes de histrias contam que, provavelmente, em Sandvik,
hospedado na casa de um capito noruegus, Wagner interessou-se
pela jovem que servia a mesa. Escutou que a chamavam "jenta" (moa,
servente) e acreditou ser um nome prprio. Mais tarde modifica esse
nome para Senta, um nome que no existe na Noruega, ou que existe
somente naquela Noruega imaginada por Wagner para Der Fliegende
Hollnder.
Wagner aceita o tema do amor que redime o Holands, mas o faz
passar por seu oposto. Aceita a verso de Heine e ao mesmo tempo
nega-lhe o sentido. Senta ama o Holands de fato e a ele jura fidelidade
at a morte. Mas o Holands escutou, no viu, uma conversa entre
Senta e Erik, a quem Senta tambm jurou fidelidade at
morte.
Agora, presa do destino, ligada indissoluvelmente ao Holands, ela
constrangida a renegar a fidelidade jurada a Erik. O Holands decide
retornar ao mar, a salvao lhe parece impossvel, impossvel uma
132
133
latado por uma cpia espiritual e o marinheiro que chegou a ser igual
ao Judeu Errante, a Fausto, a Don Giovanni, volta a ser um marinheiro
solitrio abandonando uma mulher em cada porto.
O Holands Errante exemplar. Os saltos do pensamento, as metamorfoses que turbam nosso modo de crer e argumentar, deveriam
caracterizar o comportamento da "mente coletiva" constituda pelo
ensemble que trabalha em um espetculo.
*
Crculos quadrados e lgicas gmeas - Um fsico caminha pela praia
e v um menino de cinco ou seis anos que lana pedras planas ao
mar tentando faz-las resvalar. Cada pedra no d mais do que um
ou dois saltos. O fsico recorda que tambm ele era muito bom nesse
jogo quando era criana e mostra ao menino como deve fazer. Lana
as pedras, uma depois da outra, indicando como devem saltitar, com
que inclinao e a que altura d'gua devem ser lanadas. Todas as
pedras lanadas pelo adulto resvalam sete, oito, at dez vezes.
"Sim" - diz o menino - "resvalam muitas vezes. Mas no era
isso que eu tentava. Fazem crculos redondos n' gua ao passo que o
que eu quero que faam crculos quadrados".
Conhecemos esse episdio porque o fsico Piet Hein estava a caminho para visitar o velho Einstein e porque Einstein reage de maneira
imprevista quando o seu jovem amigo conta-lhe o encontro: "D meus
comprimentos a esse menino, e diga-lhe que no se preocupe se as
pedras no fazem crculos quadrados n'gua. O importante pensar
o pensamento".
A dialtica no uma relao que existe por si s. Nasce do desejo
de dominar foras que abandonadas no fariam mais que combater-se
e degradar-se.
Quando um adulto tenta reproduzir o modo de desenhar de uma
criana, geralmente limita-se a desenhar mal, tenta renunciar lgica
do seu modo de ver, a emprobrece, abandona a mo ao acaso, evita
a preciso, imita as maneiras do desenho infantil. Isto , infantiliza-se.
De fato, os desenhos de uma criana parecem imperfeitos, livres,
malfeitos, ou rabiscos fantasiosos para um adulto. Mas na realidade
134
135
Uma das armadilhas mais malignas que esto escondidas sem querer
nos livros de exerccios e conselhos para atores deriva do fato de que
em um livro as coisas devem ser colocadas uma depois da outra. No
podem estar entrelaadas, transformarem-se em texto, mas constituem
livros de texto que remetem a um contexto, o nico a dar-lhes sentido.
Absurdamente, alguns cursos de estudo das mais desprovidas escolas
teatrais so organizados no como um contexto mas como se fossem
um livro de texto. Estabelecem um tempo (e s vezes um professor)
para cada um dos "captulos", separando os diversos fios com os quais
a experincia deveria ser tecida.
A experincia do ofcio forma-se atravs de uma qualidade de tempo
que pode ser organizada, composta a frio, mas que no pode ser aquela
linear da escritura ou dos bons programas no papel. um tempo feito
de intermitncias e de cruzamentos, de impulsos e contra-impulsos.
um tempo orgnico, no fraturado pela geometria de horrios e
calendrios.
A ao do pensamento funciona como funciona na situao criativa
e no bios cnico: atravs da dialtica entre ordem e desordem. Ordem
sem ordem.
Ainda uma vez Meyerhold, que falava de fico pedaggica. Nos
seus lbios de rebelde dedicado ao teatro, "fico" no poderia significar "duplicidade" mas sim presena simultnea de mais lgicas,
mise-en-oision da simultaneidade.
{.
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137
Entra o
ator e se pergunta:
... Can this cock-pir hold
T he vasty fields of France? ar may we eram
Within this wooden a the vety casques
That did affrightthe air at Agincourt?
[Pode esta arena de galos/Conter os vastos campos da Frana?/Podero amontoar-se neste a de madeira os elmos/que aterrorizaram o ar em Agineourt?]
138
139
o.
140
141
qu. Todos os que estudaram com ele tm uma tcnica refinada, alguns
extraordinria. Mas uma tcnica fria . Apenas Decroux conseguia comover-me. Tinha um leo dentro de si e a tcnica o controlava".
Na Dinamarca e no sul da
Sucia encontram-se singulares vestgios arqueolgicos: pedras espalhadas pelo terreno seguindo um desenho que primeira vista parece o
esqueleto de um animal gigantesco e pr-histrico. Alguns arquelogos
sustentam que representem as sendas de um labirinto. Associam a sua
origem lenda de Trella, uma princesa norueguesa cujo barco navegava
em direo Dinamarca e era permanentemente desviado de sua rota
por ventos glidos. Trella desembarcou numa costa deserta, construiu
um intricado palcio sem muros e conseguiu embolsar os ventos nos
seus meandros, control-los e seguir seu caminho, A histria de Trella
inspirou outras pessoas, na Antiguidade, a criar novos trellaborg borg significa fortaleza - para exorcizar as foras da natureza.
Meu teatro um trellaborg. Pedras que disseminei sabiamente para
construir um labirinto-fortaleza, sem bastes mas presente, vulnervel
mas eficaz, onde afronto os ventos do esprito do tempo.
Meu sonho saber construir um trellaborg.
Uma outra verso da lenda conta que, enquanto Trella tentava resistir, os ventos do tempo a capturaram no palcio que ela construa
e fizeram-na danar segundo sua vontade e fria .
O corpo dilatado
do ator um corpo quente, mas no no sentido sentimental e emotivo. Sentimento e ao so reaes, conseqncias. um corpo vermelho vivo, no sentido cientfico do termo. As partculas que compem o comportamento cotidiano so excitadas :e produzem mais
energia. Sofreram uma incrementao de movimento, distanciam-se,
atraem-se, opem-se com mais fora e mais velocidade em um espao
mais amplo.
.
142
143
*
A ti me inclino
que tens forma de macho e de fmea
duas divindades em uma
que na metade feminina tem a cor vvida da flor de Champak
e na metade masculina tem a plida cor da flor de cnfora.
A metade feminina faz tinrinar pulseiras de ouro
a metade masculina est adornada de pulseiras de serpentes.
A metade feminina tem olhos de amor,
a metade masculina tem olhos de meditao.
A metade feminina tem uma grinalda de flores de amndoas,
a metade masculina uma grinalda de caveiras.
De trajes cintilantes est vestida a metade feminina,
nua est a metade masculina.
A metade feminina capaz de todas as criaes,
a metade masculina capaz de todas as destruies.
Dirijo-me a Ela,
unida ao Deus Shiva, seu esposo.
Dirijo-me a Ele,
unido Deusa Shiva, sua esposa.
,.
I
144
que aconteceria se "isto" devesse procurar testemunhas, deslocar-se e no permanecer no seu feneiro?
O que resultaria "isto" em um ginsio, em uma escola de periferia,
na entrada de um museu, no barraco de uma fbrica abandonada?
Olho "os que agem". Alguns vm de grupos de teatro que conheo.
O que os impulsionou a deixar os refletores para mover-se entre as
sombras das velas? O que levaro consigo quando voltarem vivacidade do trabalho teatral? No sei por que me aperta o corao. Envergonho-me, irrito-me e penso em mim mesmo em Opole quando
todos repetiam que era louco em deixar a escola teatral e ficar meses
e meses com um charlato que fazia espetculos insensatos. Toda a
minha atividade foi uma busca da liberdade no teatro. Agora sou testemunha da liberdade do teatro.
Impressiona-me a qualidade das aes. Mas permaneo fora, como
se um vidro meimpedisse de sentir a energia dos corpos que esto a "
minha frente . a mesma sensao de quando vi Dziady. Afundo no
mistrio, no sem-sentido, na incapacidade de orientar-me, reconhecer,
de conectar. "Isto" provoca apenas perguntas.
O ritmo "dos que agem" no se empena, no se agita, no acelera
nem cala. um rio cuja corrente flui impecvel e no entanto parece
imvel aos meus olhos atentos. Esta imobilidade move pensamentos
e lembranas, a vida adormecida da memria, dos sentidos. Encontro-me profundamente em outro lugar dentro de mim, ausente do
que sucede. Uma alterao do estado de conscincia habitual. este
o sacrum secular ao qual Grotowski desejava dar vida no seu livro Em
Busca de um Teatro Pobre? No o teatro nem "ist"o" o que sacrum.
o ato, o trabalho que pode tornar-se.
A corrente continua. Mergulho a minha mo para agarrar. Retiro-a
vazia a cada vez. Um punhado d'gua. Porque me iludo, agora, que
Captulo 7
o rico
construra templos a Shiva.
E eu que sou pobre,
que farei?
Respondia:
compreendi o sentido?
O rico volume de Georges BANU, Le rouge et ar, Paris, Flammarion, 1989, est
146
Conclua:
Escuta, senhor dos rios que se encontram,
as coisas estveis cairo
mas o movimento perdu-rar sempre.
Basavanna foi o fundador de uma religio rebelde na ndia do sculo XII. Outros pobres, rebeldes e religiosos expressaram em outras
pocas e em outras regies pensamentos similares. Se aplicamos tudo
isso aos templos de arte nos vem memria Gordon Craig que se
levanta e fala aos participantes de um congresso",
147
senhor D 'Amico citou uma frase de Mr. Bernard Shaw que remonta a
provavelmente cinqenta anos e que talvez uma das mentiras mais difundidas
desde que o mundo dos negcios existe. Trata-se da afirmao: o drama faz nascer
teatros, mas o teatro no faz nascer dramas", O senhor D'Amico citou a frase de
Shaw indicando com o dedo um modelo arquitetnico para um grande teatro,
um teatro de tijolos, de madeira e pedras. provvel que os edificios teatrais
tenham sid o produzidos (talvez com alguma ajuda dos arquitetos) por obra dos
dramaturgos. Mas o teatro que vem antes do drama, e que o nico que conta,
no era e no um edifcio, o som da voz, a expresso do rosto, os movimentos
do corpo, da pessoa , isto , o ator, if you like! 5
148
Grandes atores "modernos" como Ceorges Proeff e Mikhail Tchekov desafiavam o gosto do pblico e a incompreenso dos crticos
compondo suas interpretaes segundo um desenho ntido, como inciso por um buril, artificial e premeditado em cada detalhe. Estas
Cf. George FUCH5, Die Sezession in der dramatiscben Kunst und das Volksftstspiel,
Munique, Georg Mller Verlag, 1911, p. 55.
9 Gordon Craig havia afirmado num escriro de 1907: "D evemos rirar da cabea a
idia que a forma humana possa ser usada como instrumenro apto a traduzir o
que chamamos o Movimento" .
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6
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Nesse ponto surge uma pergunta essencial: como conectar o trabalho sobre a pr-expressividade com os outros campos do trabalho teatral?
As respostas comprovadas historicamente so trs:
1. um trabalho que prepara o ator para o processo criativo para
o espetculo;
2. o trabalho por meio do qual o ator incorpora o modo de
pensar e as regras, do gnero de teatro ao qual escolhe~ pertencer;
3. um valor por si mesmo - uma finalidade, no um meio que encontra uma de suas possveis justificativas sociais at~avs da
profisso teatral.
Obviamente, na realidade da histria do teatro, todas essas trs
respostas esto presentes cada vez que uma investigao tcnico-cientfica conduzida a fundo. No se trata de contraposies, mas sim
de uma diferena de graduaes que emerge somente quando observamos os fatos de cima, abraando-os com um olhar geral. Formuladas
assim, estas trs respostas so um esquema para fazer com que nosso
raciocno prossiga, no para cunhar juzos histricos.
Existe uma quarta possibilidade, como veremos: pensar em nveis
de organizao sobrepostos.
Mas detenhamo-nos ainda um pouco mais em nosso esquema. Para
faz-lo mais claro (sem procupar-nos excessivamente com o seu aspecto
esquemtico) poderamos personificar as trs possibilidades com trs
nomes escolhidos entre os que investigaram com maior experincia e
rigor cientfico o territrio que chamo pr-expressivo: Stanislavski, Decroux e Grotowski.
Stanislavski explora este territrio como uma via de acesso ao personagem. Trata-se de inventar os procedimentos poticos (poiein = fazer)
prprios do ator para que este seja capaz de encarnar a poesia do autor.
153
10
154
as respectivas linguagens se confundem. s vezes, por exemplo, surpreendemo-nos a pensar: Zeami fala de zen atravs do teatro ou de
teatro atravs do zen? A resposta no seria sempre fcil se no se
conhecesse a biografia do autor e seu contexto histrico.
Mas existe um outro modo de relacionar o trabalho sobre a prexpressividade com outros campos de trabalho teatral.
Quando vemos um organismo em vida, devido aos conhecimentos
da anatomia, da fisiologia e da biologia, sabemos que este organismo
est organizado em distintos nveis. Tal como no corpo humano existe um nvel de organizao das clulas, dos rgos e dos vrios sistemas (nervoso, arterial etc.) , desse modo podemos pensara totalidade do comportamento de um ator constituda de distintos nveis
de organizao.
O espectador v o resultado: atores que exprimem sentimentos,
idias, pensamentos, aes, ou seja, qualquer coisa que tem uma inteno e um significado. Acredita, portanto, que tal inteno e tal
significado sejam a origem do processo. Mas uma coisa analisar o
resultado e outra coisa compreender como foi alcanado, mediante
que uso do corpo-mente.
A compreenso do como pertence a uma lgica complementar
lgica do resultado: a lgica do processo. Segundo esta lgica, possvel
distinguir e trabalhar separadamente os nveis de organizao que constituem a expresso do ator.
O substrato pr-expressivo est includo no nvel da expresso global
percebida pelo espectador. Mas, se o mantiver separado durante o
processo de trabalho, o ator; nesta fase, . pode intervir em nvel prexpressivo como se o objetivo principal fosse a energia, a presena, o
bios das suas aes e no seu significado.
O nvel pr-expressivo , portanto, um nvel operativo; no um
nvel que possa ser separado da expresso mas uma categoria pragmtica, uma prxis que, durante o processo, tem como objetivo desenvolver e organizar o bios cnico do ator assim como fazer aflorar novas
relaes e inesperadas possibilidades de significados.
O pr-expressivo, como nvel de organizao do bios cnico, aparece
dotado de uma coerncia independente da coerncia do nvel de organizao ulterior, o do sentido. Independente no quer dizer privado de
155
like.
Mas no to interessante reconhecer que existe este nvel de organiiao no trabalho do ator. O interessante perguntar-se para que
pode servir a sua coerncia interna.
156
15'
No nos deteremos nos aspectos gerais deste fenmeno. Limitarnos-ernos a considerar algumas de suas conseqncias concernentes ac
nosso tema. Se os exerccios no serviam para preparar o repertric
mas sim para formar o corpo cnico, compreende-se por que no s<
limitaram a ser uma introduo ao teatro mas converteram-se, do pon
to de vista dos atores, no prprio corao do teatro, uma sntese di
seus valores.
Isso explica o fenmeno da studijnost na Rssia do Novecentos, c
surgimento de numerosos estdios constitudos por estudantes e joven
intelectuais que viam no teatro uma didtica artstica e espiritual par
desenvolver a prpria personalidade.
Uma rede de "seminrios", "laboratrios", "stages", "ralleres", "ate
lis", "workshops" desenvolve-se aps a segunda metade do Novecer:
tos. Assemelha-se em certos aspectos ao costume das classes culta:
tanto da sia quanto de pases ocidentais, de aprender msica, cant
ou dana para fins no profissionais. Mas diferentemente do que acor
tece nesses casos, em que os exerccios so feitos com o intuito
executar as obras pelas quais se est apaixonado, o centro daquela nov
maneira de ser da pedagogia teatral no a execuo Iutura de fral
mentos teatrais concludos (espetculos ou cenas de espetculos) e si]
O prprio ensinamento dos exerccios como experincia ativa do teatr
um exemplo - no plano psicolgico - da tendncia paradox
dos exerccios de viver com vida prpria. Tendncia paradoxal porql
nunca foi afirmada teoricamente, sendo, pelo contrrio, muito cor
batida como uma forma de estrago cultural e ineficincia profission:
Um caso sintomtico diverso constitudo da vicissitude de u
mestre cujo nome ,apareceu muitas vezes nestas pginas: Etienne D
croux. O 'mimo que ele define como arte pura e autnoma, era ]
incio uma constelao de exerccios da escola do Vieux Colombier
Jacques Copeau. Decroux desincorporou os exerccios do contexto ,
boratorial e, desenvolvendo-os, os fez independentes como gnero ;
tstico autnomo.
autnomo. Sobre essa dinmica cultural, veja-se o livro de Fabrizio CRUCIA
Teatri nel Nouecento. Registi pedagoghi e comunit teatrali nel XX secolo, Florer
Sansoni, 1985.
158
159
do espectador.
treinamento , em outras palavras, uma das maneiras na qual a
metfora de Craig se concretiza: um teatro antes do drama, uma arquitetura em movimento.
A deriva dos exerccios; sua progressiva e nunca definitiva separao
do continente dos ensaios e do espetculo; o treinamento como partitura de aes concluda em si mesma e provisria, relacionada a um
momento particular da investigao e d a experincia do ator; o seu
personalizar-se. Tudo isso, e no o teatro asitico, constitui o contexto
histrico da gnese da Antropologia Teatral.
No constitui porm o seu nico objeto. A relativa autonomia dos
exerccios de trabalho em relao ao espetculo foi a experincia que
levou a pensar o pr-expressivo como um nvel de organizao autnomo. Essa maneira de pensar leva a outro lugar.
Vejamos o que acontece nos exerccios. Cada exerccio um padro
definido em si mesmo, um desenho de movimentos. Executa-se um
e depois executa-se outro. Uma vez aprendidos, os exerccios repetemse seguidamente em um fluxo contnuo.
que faz o ator agora? Est
danando? Est representando alguma coisa?
seu "dirio fsico" est
se transformando num "dirio ntimo", numa espcie de confisso
pessoal sem palavras? No, est simplesmente seguindo uma cadeia de
exerccios. Mas quem os observa no pode deixar de interpretar, projetar imagens, estrias, cenas, lampejos de supostas revelaes internas
em uma ao que para o ator , talvez, somente exercitao, como a
de um pianista ou de um cantor que executa as escalas musicais para
exercitar os dez dedos ou a voz: S que as escalas que o ator sobe ou
desce so vivas. Assumem uma fora emotiva, um significado aos olhos
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162
vida: sou eu quem projeta as minhas imagens sobre o que ele/ela est
fazendo ou ele/ela quem as projeta?
No so muitos os atores que tm sorte de possuir um treinamento
pessoal. O exemplo tem o defeito de referir-se a uma situao de
trabalho da qual poucos tm experincia mesmo os que praticam teatro
profissionalmente. Mas a utilidade do exemplo deriva da sua capacidade em indicar a zona intermediria, uma espcie de limbo ou de
alvor entre o puro exerccio tcnico e a vida de uma ao real.
Um inciso: o ator pode mover-se durante muito tempo neste territrio das potencialidades. Porm, a tenso-ateno do espectador no
se mantm por muito tempo. A relao observador-ator pode relaxar-se
e perder-se no caso de no' aparecer uma inteno que permita que a
imaginao e as perguntas do espectador sejam canalizadas em uma
direo precisa. A ateno dissociada e toma seu lugar o tdio.
A psicotcnica, a tcnica mental que Stanislavski sintetizou no termo perezhivanie, no se reduz identificao do ator com sentimentos e com supostos estados de nimo dos personagens. Certamente
pode ser usada com a finalidade de produzir um "efeito de verossimilhana" que d ao espectador a iluso de assistir a um trecho da
vida real. Entretanto concerne a um problema geral e essencial: qualquer que seja a esttica da realizao de um espetculo deve existir
uma relao entre a partitura das aes fsicas e a "subpartitura" , os
pontos de apoio; a mobilizao interna do ator. Em outras palavras
o problema do corpo-mente, da totalidade psicofsica da ao.
Isso explica por que Grotowski pode ser um profundo seguidor de
Sranislavski ao passo que como diretor se oriente sempre na direo
oposta ao "sranislavskismo", buscando uma rigorosa artificialidade da
forma expressiva, negando a justificao psicolgica do personagem e
evitando os "efeitos de verossimilhana" nos seus espetculos.
A expresso "co rpo-m ente" no uma expresso para evitar a inseparabilidade entre Um e outro. Indica um objetivo difcil de atingir
quando se passa do comportamento cotidiano ao extracotidiano que
o ator deve saber repetir e manter vivo noite aps noite. O ator que
parte da via interior deve afrontar o risco de um desenho de movimentos acidental que tende a sucumbir a entropia e, com o tempo,
a converter-se em execuo mecnica.
O ator que parte da via externa, que usa um desenho de movimentos
ou o que os japoneses chamam de kata, modelado por ele ou por outros,
desde o princpio corre o risco de submeter-se a uma trama de puro
dinamismo em vez de viver nele. Isso quer dizer que as duas vias so
equivalentes? No. mais provvel que 'de um leata bem executado e
incorporado se condense um movimento interior do que de um movimento interior surja um leata, um desenho de movimentos com formas
e detalhes precisos e repetveis. A ao no pode ser fixada sem a preciso
do desenho externo e a seguir repetida independentemente do estado
A lua e a cidade
Quatro anos antes de sua interveno naquele congresso em Roma,
Craig publicou um livro sobre o grande ator-manager Henry Irving'".
Craig o viu de perto, acompanhou seu modo de compor os personagens.
Muitos anos depois daquela experincia e da morte de Irving, explicou
que ele construa seus papis mediante um desenho de movimentos,
uma dana microscpica que atravessava as suas representaes desde
o incio at o fim. Irving o realista - demonstrou Craig - tinha uma
tcnica pessoal parecida com a que Meyerhold formularia posteriormente com profundo conhecimento atravs da sua escola e de seus
livros.
No existe uma relao obrigatria de causa e efeito entre procedimentos tcnicos e formas expressivas. Edifcios profundamente diferentes esto apoiados no mesmo terreno. A iluso que de um terreno explorado por Stanislavski no possa crescer outra coisa seno
um ator "realista" fundada, na sua maior parte, sobre o stanislavskismo americano influenciado pelas exigncias do cinema.
14
E. G. CRAIG, Henry Irving, Nova York, Longmans, Green and Co., 1930 .
163
de nimo do ator.
Entretanto compreenssvel que as duas vias sejam equivalentes
quando um ator trabalha para o espetculo cinematogrfico; a a ao
deve ser fotografada uma vez por todas no seu melhor momento. O
mais importante a intensidade e a fotogenia da ao e no a sua
164
E acrescentava:
A ao fsica deve' apoiar-se e fundar-se sobre associaes pessoais, ntimas do
, .
ator, so b re suas bateri
arenas pSlqulcas,
so b re seus acumu Ia dores
ores iinternos 15.
Alguns anos mais tarde reencontramos a mesma obsesso tcnicaartificialidade, partitura e empenho interior -- expressada com maior
determinao:
A pesquisa da artificalidade exige uma srie de exerccios particulares: a criao
de partituras em miniatura para cada parte do corpo. Em cada modo, o princpio
decisivo permanece o seguinte: quanto mais imergimos naquilo que est escondido em ns, no excesso, no expor-se, na autopenetrao, tanto mais rgida dever
ser a disciplina externa, ou seja, a forma, a artificialidade, o ideograma, o signo.
. , . d a expresslvl
. id a d e 16.
Sobre isso apia-se to d o o pnnCipiO
15 Jerzy GROTOWSKI, Mozliwosc teatru, Opole, Materialy warsztatowe Teatru 13
Rzed6w, fevereiro 1962. Opsculo de 24 pginas no numeradas. A citao encontra-se na pgina 22. Este texto constitui a primeira tentativa de Grotowski de
apresentar o pensamento que o guiava e o sentido de sua atividade no Teatr 13
Rzedw que dirigia desde 1959. Dois teros do opsculo constituem-se de citaes
de Ludwik Flaszen (dramaturgo e grande colaborador de Grotowski) e de fragmentos de recenses. interessante sublinh-lo uma vez que Grotowski escolhe entre
formulaes alheias as, mais eficazes para construir a pr6pria terminologia. Cf. tambm as notas 5 e 6 do captulo "Canoas, Borboletas e um Cavalo".
16 Jerzy GROTOWSKI, Twards a Poor Tbeatre, Holstebro, Odin Teatrets Forlag,
1968, p. 39.
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168
- a
21
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o sorriso da me
A este ponto a pergunta a seguinte: como o ator trabalha em
relao a um futuro espetculo, concentrando-se, no momento correto,
apenas no plano pr-expressivo?
Esquecendo do que quer que suas aes digam, aquilo que devero
representar.
Trabalhar as aes do espetculo, tratando cada uma separada-
170
mente, quase como se fossem micro-seqncias de dana. Isto , concentrar-se- no desenho dos movimentos, na segmentao, no escandimento dos sats, na temperatura da energia, no dnamo-ritmo, protegendo os detalhes que fazem a ao real
til pensar em categorias de forma-contedo no decorrer do processo? No. A polaridade fecunda no processo criativo aquela entre
forma e preciso, entre desenho de movimento e detalhe.
O "momento correto", no qual essencial trabalhar sobre a prexpressividade, quando, no processo criativo, surge a nossa pretenso de converter-nos em autores do sentido, em seus donos. Essa pretenso manifesta-se atravs de duas vias opostas e equivalentes: saber
muito/ter medo de saber muito pouco; conhecer antecipadamente os
resultados que se querem obter/ser completamente desorientado, ter
perdido o fio que guia no labirinto, e portanto sentir a exigncia impor um esquema, definitivo ao trabalho.
O "momento correto" aquele no qual necessrio desorientar
uma ordem muito evidente ou introduzir um fio de ordem na desorientao que ameaa pulverizar o trabalho.
o momento no qual devemos trabalhar minunciosamente com
cada detalhe at abrir espao para um novo colaborador: o acaso.
Louis Jouvet indica alguns procedimentos empricos para colaborar
com o acaso. Diz que o trabalho deve atravessar duas fases: um perodo
de dissoluo da ordem, dos conhecimentos adquiridos, das certezas; e
depois um momento de recomposio. A fase que ele chama de "dissociation" consiste na consciente queda na desordem, no fracionamento
dos materiais, no abandono dos planos de interpretao, no refutar dos
princpios tcnicos e estilsticos experimentados at chegar a uma "indeterminao mvel", a uma incerteza que ele define como "necessria
para liberar a inteligncia" . este estado de confuso voluntria que
permite "o multiplicar-se das idias, das tentativas, dos pontos de vista
at ao paradoxo". o momento de lutar contra tudo o que se sabe,
no pelo simples gosto do diverso, mas "para criar a dvida em si,
suscitar o mistrio". uma runa voluntria, uma deteriorao e destruio sistemtica que lembram o modo de pensar dos alquimistas,
mas que em jouver so precisas indicaes de trabalho.
A fase seguinte o trabalho de "associarion", de sntese dos ele-
171
Aqui temos Brecht durante os ensaios de O Crculo de Giz Caucasiano, um dia de setembro de 1954. o nonagsimo quarto dia' de
ensaio. Hans-Joachim Bunge anota no seu dirio:
Brecht ensaia a cena da ponte ininterruptamente por quase duas horas, Recomea sempre do incio. Os dilogos so mudados de lugar, cancelados, rein- ,
troduzidos, ajustados, para: ao final serem colocados no mesmo lugar de antes.
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24 Claudio MELDOLE5I, Laura OUVI,
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complementaridade: a forma geral da ao suave, delicada, introvertida, e a voz (ou os olhos, as mos...) encarrega-se de manter uma
relao extrovertida com o exterior; ou
contraste: passo delicado mas a voz intervm com prepotncia no
espao; mos tranqilas e seguras - ps nervosos...
(No esquecer o carter traioeiro dos exemplos; indicam um caso
entre 'cem, mas correm o risco de transformar aquele caso em um
modelo particularmente aconselhvel. A riqueza do processo criativo
no deriva da capacidade de aplicar um exemplo mas sim da explorao da lgica encontrada na base do exemplo e que permite outras
cem possibilidades que deveriam ser exploradas.)
No captulo "A Energia, ou Seja, o Pensamento" vimos um caso
de orquestrao particularmente sutil durante um exerccio de Mikhail
T checov: a oposio entre ritmo interno e ritmo externo.
Assim como as distintas partes do corpo nas suas relaes recprocas
e simultneas, a partitura em seu conjunto tambm pode ser montada
numa relao de consonncia, complementaridade ou contraste com
o sentido das palavras, do dilogo, da situao cnica. Uma pgina de
Meyerhold nos fornece um exemplo particularmente claro de uma
montagem complementar entre dilogo e partitura fsica.
uma pgina de 1906. Desde seus primeiros anos de trabalho
como diretor e mestre de atores, Meyerhold tratou a partitura (que
na sua terminologia indicava com a expresso risunok dvizheni, desenho de movimentos) como um todo coerente e virtualmente aut-
nomo, comparvel msica da pera em relao com o livreto. Wagner explorou e levou a limites extremos um dos usos tradicionais da
orquestra (a sua disponibilidade de comentar os acontecimentos, revelar os pensamentos escondidos, os sobressaltos emocionais dos personagens). Meyerhold potencializou de maneira similar a autonomia
da partitura fsica com relao ao texto escrito.
Wagner confia orquestra a tarefa de revelar sentimentos e tudo o que est
escondido debaixo das palavras. Eu confio esta tarefa aos movimentos plsticos.
176
boca aberta pela refinada composio plstica com a qual dava vida
aos personagens de Otelo ou Hamlet. Mas aquela arte plstica, dizia
Meyerhold, estava rigorosamente em harmonia com as palavras, e ele,
ao contrrio, interessava-se por uma expresso plstica que no corresp on d esse s palavras.
que permite ao observador individuar as relaes entre os personagens, independentemente do contedo de seus dilogos, uma
srie de detalhes (pequenos movimentos das mos, modo de olhar-se,
de regular a distncia, de assumir determinadas posies) que dependem da qualidade de suas relaes e que no ilustram as palavras que
esto dizendo. Segundo Meyerhold o diretor deve fazer que os atores
ajam de maneira a permitir que o espectador no apenas compreenda
as palavras escritas pelo autor mas que tambm penetre no dilogo
interior pressuposto pela situao:
Gestos, posies, olhares, silncio, determinam a verdade das relaes entre
os homens. As palavras no dizem tudo. Isto significa que no palco necessrio
um desenho de movimentos que permita ao espectador tornar-se um espectador
perspicaz (...). Desse modo, a fantasia do espectador trabalha sob o impacto de
duas impresses, uma visua l e outra auditiva. O que distingue o velho teatro do
novo que neste ltimo a expresso plstica e a das palavras esto submetidas a
seu prprio ritmo e podem at se divorciar'''.
177
do Oitocentos, cf. Ferdinando TAVIANI, La danse occulte, Enseignements d 'acteurs disparus, em BoujJonneries, 22/23 (1989), p. 105; Id ., Linguagem energtica,
em Eugenio BARBA e Nicola SAVARESE, A arte secreta do ator, So Paulo, Hucitec-Unicarnp-Edusp, 1994, p . 144; Claudio MELDOLESI e Ferdinando TAVIANI, Teatro e spettacolo nel primo Ottocento, Rorna-Bari, Laterza, 1991.
178
179
28
Se' se entende dramaturgia como a arte de entrelaar aes, pode-se falar de uma
dramaturgia do arar para indicar o modo pelo qual ele entrelaa as suas composies
no quadro geral do texto e da construo d espetculo. Ver Eugenio BARBA,
Dramaturgia, em A arte secreta do ator, cit ., p. 68 .
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29
181
Dario FO, Manuale minimo dell'attore, Turim, Einaudi, 1987, p. 146. Mas refiro-me sobretudo ao Dario Fo oral, durante as suas sesses de trabalho no Odin
Teatret (a partir de 1968) e depois na 15TA
o simples esquema das aes, cena por cena, situao por situao.
Stanislavski comea a dirigir o trabalho dos atores sobre este esboo.
A ao de cada personagem, assim como resultava do "canhamao"
extrado do texto, poderia dar lugar a uma pantomima convencional.
Mas era dividida e subdividida nos seus diversos fragmentos para que
fosse desenvolvida e ap ro fun dada. As mais simples didasclias (entrar
numa sala fechando a porta; conversar sentados num sof; apresentar-se civilizadamente a um estranho...) geravam inumerveis segmentos, indicavam dezenas de possveis microaes. O ator
.... devia decidir
a cada momento quais microaes seu personagem devia executar,
porque e como. Decidia e propunha aos companheiros e a Stanislavski mediante aes cnicas, no palavras.
Pode-se notar que, comparado ao processo mental de um escritor
que traduz em pginas de romance o "canhamao" sumrio de uma
trama, o ator usa instrumentos artesanais diferentes mas critrios anlogos. A analogia concernente ao processo. No resultado, no momento de compor o espetculo, apenas um nmero exguo daquelas
microaes deveria atingir uma evidncia descritiva aos olhos do espectador. A maior parte dessas microaes funcionar como uma flora
bacteriana apenas perceptvel, cuja pulsao (dnamo-ritmo) dar consistncia vida e preciso da ao .
Quando os personagens dialogam, os atores - aos quais Stanislavski recomendou energicamente que no aprendessem as palavras
do texto - improvisam, repetindo a seu modo o contedo dosdilogos escritos pelo autor. Todo o trabalho de ourivesaria sobre a lngua
realizado pelo autor aflorar apenas no final do processo.
O texto um resultado pronto que espera encontrar-se no momento correto com o outro resultado atingido autonomamente atravs
do denso trabalho de tecimento das diversas partituras dos atores.
Stanislavski sustentava que com esse mtodo o princpio da perezhivanie (revivescimento) no se perde; ele dizia que traar a linha das aes fsicas tambm quer dizer traar a linha da perezhivani'0. J vimos o testemunho de Grotowski com relao a esse ponto.
30 Sobre o mtodo de aes fsicas de Stanislavski, ver suas pginas sobre o Inspetor
Geral (1936-1937) no livro inacabado dedicado ao trabalho do ator sobre o personagem. Trad. italiana em C. Stanislavski, li lavara dell'astore sul personaggio, or-
182
183
seu apoio e salvaguarda. Graas ao ofcio podemos nos abandonar porque graas
a ele saberemos reencontrar-nos (...).
A este ponto do trabalho uma sinceridade germina, amadurece e desenvolve-se,
uma espontaneidade conquistada, obtida, da qual se pode dizer que age como
uma segunda natureza, inspirando por sua vez as reaes fsicas e dando-lhes a
autoridade, a eloqncia, a natureza e a liberdade-' '.
Cada gerao teatral parece destinada a repetir a pergunta de Meyerhold alongando o tempo: possvel que trs sculos...
Voltemos s palavras de Lekain: Meyerhold que inverte a ordem
hierrquica dos dotes necessrios ao ator segundo Lekain? Ou este
que pe uma condio primria e imprescindvel em primeiro lugar,
descendendo, como era usual, do espiritual ao material?
De qualquer maneira, aos olhos de Meyerhold o desenho dos movimentos a conditio sine qua non para ser ator. Meyerhold indaga os
critrios dessa condio durante todo o decorrer de sua carreira. Torna-lhe sempre mais independente em relao ao trabalho sobre o texto,
modelando a partitura atravs do conhecimento musical e no mais
com o instrumento do pensamento dramatrgico. Sua linguagem de
31 Jacques COPEAU, Reflxions sur le "paradoxe" de Diderot, 1929, in ]acques Copeau, Registres, vol. I, Appels, Paris, Gallimard, 1974, p. 208-13.
32 V MEYERHOLD, Ecrits sur le thtre, tomo Il, 1891-1917, traduo, prefcio e
notas de Batrice Picon-Vallin, Lausanne, La Cit-LAgc d'Hornme, 1973, p . 179.
184
"perezhivanie'33.
Em 1925 escreve:
s vezes nos censuram por no fazer psicologia. E efetivamente alguns de ns
se aborrece com esta palavra e a teme. Mas, uma vez que nos baseamos na
psicologia objetiva, ns tambm fazemos psicologia. S que no nos deixamos
governar pela perezhivanie, mas sim por uma f constante na nossa tcnica de
represenrao".
34
156.
35 Fragmento do captulo sobre a biomecnica citado em V. MEYERHOLD, Le th-
185
36
37
186
187
38
188
189
lavski. E pode transmitir um desenho de movimentos simblico, fazendo que o pensamento que corre buscando analogias e recorrncias
pare sobre uma daquelas frases pelas quais Craig sustenta que os ator~s
devem criar uma interpretao feita de gestos simblicos para evadirem-se da situao de submisso na qual se encontram.
Hoje eles personificam e interpretam; amanh devero representar e interpretar;
. d e aman h-a d everao
- cnar
. 43.
e d epOlS
190
44
James BRANboN, FOTm in Kabuki Acting, Music and Historical Context, Honolulu, The University Press of Hawaii, 1978, p. 124. Sempre a esse propsito ver
a descrio detalhada das interpretaes dos kata de "O campo de batalha de Kumagai", executado por Danjuro IX (1839-1903) e Nakamura Shikan (1830-1899),
eII1 Samuel L. Leiter, Kumugai's Battle Camp: Form and Tradition in Kabuki
.
Acting, Asian Tbeatre [ournal, vol. 8, n." 1, primavera de 1991.
191
45
Captulo 8
1,
193
"
194
Bitsi.
Holstebro, 1.0 de junho de 1991.
Caro Jurek,
aqui o vento sopra, escurece a meia-noite, chega o vero.
Me contaram que voc se diz ser igual a Aramis, que quando era
mosqueteiro falava sempre em tornar-se monge e quando ingressou
na vida religiosa falava da vida das armas. Hoje voc analisa com
freqncia seus espetculos de vinte, trinta anos atrs. H muito tempo
no quer mais fazer espetculos. Quem viu seu mais recente trabalho
sabe que os poderia fazer maravilhosos.
Voc, porm, 't ece outros fios . Diz que levou a cabo aquela tarefa
que lhe foi dada.
No meu teatro os espetculos crescem com maior freqncia que
antes. Voc os deixou escorregar de sua vida como as vestes daquela
mulher que na alba correu ao encontro da voz de seu deus. E na
corrida as vestes desprenderam-se, escorregaram dos ombros e ficaram
beira do caminho como uma lembrana do tempo que passou.
Explicou a sua escolha muitas vezes. Mas no para ns que deve
prestar contas. Formula novas perguntas. Me formula ainda as minhas
perguntas?
Escrevo-lhe 'para apresentar o espetculo meu e de Iben. Me pergunto: "O que um espetculo para mim? Por que me necessrio?" .
A resposta veio quase sozinha: " um fio feito de astcias e de
enganos. Estire-o, . mas no orampa ao estirar".
Iben representa a sua biografia. Na palavra "biografia" existe a idia
de um grfico, de um desenho, de um fio. representao e no
confisso.
No que acreditvamos naquele tempo quando voc tecia os seus
espetculos e eu imaginava aprender teatro e em vez disso descobriame de'scobrindo voc? Voc seguramente j acreditava naquilo em que
acredita
ainda hoje.
.
~
195
196
da Espanha. Na ndia em 1968, o baixinho de topete vermelho engoliu seu veneno solitariamente.
Voc e seus atores (eram sete, quatro no esto mais) ainda trabalhavam na sala de tijolos de Wroclaw sobre um espetculo que levaria
o nome de um livro figurado de Drer. Ns, na sala negra de Holstebro, trabalhvamos sobre Alceste e pensvamos em Jan Palac. Iben
era uma jovem sem palavras. Eu a vi crescer, cair e voar, sete vezes ao
cho, oito vezes de p.
Me seguia. Nos seguia. Depois vimos outros a seguirem. E at voc,
apesar da distncia, de vez em quando comenta suas etapas.
Agora, no teatro, sustenta o direito dos mortos de manterem-se
vivos: nem pranteados nem esquecidos.
Diz-se que um espetculo imagem e metfora. Tenho algumas
certezas sobre este ponto. Sei que no verdade. ao real. Por isso
no permito que o fio seja esticado at romper-se.
A verdadeira carta que lh e mando no esta sobre o papel e sim
a exgua tela branca sobre a qual Iben e seus dois colegas, Jan e Kai,
danam estilhaos de vida para impedir que sejam sepultados.
Uma vez mais me pergunto: por que enviar-lhe um espetculo?
Alm do passado, alguma coisa mais nos une: a aguda experincia
da discrdia entre ao e palavra e o saber que apenas a ao est viva
mas apenas a palavra permanece, no espetacular deserto das cidades
sujas e dos museus demasiadamente grandes.
197
Meyerhold. Palavras de asas leves so tambm biomecnica e grotesco. Devemos aprender a deix-Ias voar. Posso imaginar Meyerhold
seguindo-as no ar com olhar e aquele sorriso irrisrio (ou arrogante?)
do qual s vezes se servia para eludir as perguntas - tanto que, como
dizia Eisenstein, vinha a vontade de cuspir-lhe num olho.
Meyerhold, no entanto, observa outras borboletas:
E Craig? Foi posto na berlinda porque uma vez ousou comparar os atores s
marionetes!
Eugenio
E nos adverte:
Quipu
Queremos palavras slidas? Ou queremos romper a solidez das palavras?
As teorias so macabras quando sujeitam um pensamento a conceitos e palavras que foram veculos provisrios, canoas.
Provisrio no quer dizer casual nem incerto. Quer dizer que o
fluir da terminologia segue afluir do pensamento na mudana das
circunstncias.
,.
I
j
198
Continuemos a ler:
No busque uma base cientfica atrs destas palavras. Temos nosso lxico e o
nosso jargo de atores formado por nossa prpria biografia. claro que tambm
usamos termos cientficos, como por exemplo "inconsciente" e "intuio", mas
os usamos nas suas acepes mais simples, como na lngua de todos os dias, no
com sentido filosfico.
xv.
199
Cf. Stanislauskis Preface to ':4n Actor Prepares'; traduzido e publicado sob cuidados
de Brunet M. Hobgood, no Theatre [ournal, 43, 1991, The Johns Hopkins University Press,p. 229-32.
200
20 1
.~
202
o povo
203
do ritual
pSIque e falou de um certo ponto em diante de "aes fsicas". Meyerhold chamou um mesmo campo de trabalho primeiro "dana", depois
"g~ot:sco" e depois "biomecnica". Uma linguagem sempre mais materialista que entretanto no indica nenhuma transformao substancial
nas perspectivas de trabalho.
Existe uma volubilidade no uso das palavras que no deriva da
incoerncia ou do temperamento extravagante do artista. o nico
modo apto a evocar a experincia tcnica: por sombras e reflexos.
Qualquer coisa de ausente deve projetar sua sombra na tela de palavras
que apresentam conselhos tcnicos, polticas artsticas, vises poticas
e hipteses cientficas.
Um ramo de uma rvore em flor vibra sob a brisa do entardecer
e projeta seu perfil sobre um pano de fundo. O pano de fundo oferece amparo a dois namorados clandestinos. No tem borboleta no
ramo mas eu vejo a sombra de urna borboleta pousar na sombra do
ramo:
. Um livro de Antropologia deve concluir-se declarando a prpria
atitude com relao s palavras.
\"
Querido Richard,
o que mais vale em qualquer um de ns no pode entrar em contato
com o outro por via direta. As vidas interiores no se comunicam.
No a tcnica que me interessa. Mas para atingir o que mais me
interessa devo concentrar-me em problemas tcnicos essenciais. O que
busco est na outra margem do rio. Por isso me ocupo de canoas.
Ontem a noite foi o ltimo dia do Festuge de Holstebro. Festuge
em dinamarqus quer dizer "semana de festa". Demos a esta semana
o ttulo "Cultura sem fronteiras". E para sublinhar que a ausncia de
fronteiras est ligada liberdade mas tambm labilidade, recolhemos
todas as aes dos atores - nove dias e nove noites - em um nico
espetculo ininterrupto chamado Vandstier, "caminhos d'gua".
O ttulo "Cultura sem fronteiras", que pode parecer otimista, tem
um fundo maligno. Quando se perde a demarcao das fronteiras,
corre-se o risco de se perder tambm a identidade. E quando a identidade se torna incerta, o rigor nasce por reao, a desesperada tentativa
de dar-se um prefil opondo-se aos outros. Compare a intolerncia, a
xenofobia, o racismo.
Por outro lado, as fronteiras so puras iluses impostas algumas
vezes. E ento sufocam.
Durante o Festuge tivemos um simpsio cujo tema era a poltica
cultural dinamarquesa. Falaram os polticos, os administradores, alguns
jornalistas, uma antroploga, um professor de literatura. Discutiam a
cultura como meio para conservar e conquistar uma identidade numa
Europa que est abolindo as fronteiras.
Um dos relatores disse: "Olhem o que acontece quando os contornos de um Estado so anulados. Olhem a Iugoslvia onde no se sabe
mais o que ser iugoslavo; ressurgem os velhos particularismos, os
nacionalismos, o fundamentalismo das diversas etnias". Um outro responde: "Isto acontece justamente por razes opostas, no porque se
204
perdeu um nico perfil, mas porque aquele perfil era artificial. Era
uma camisa-de-fora imposta em nome de uma ideologia abstrata para
comprimir a realidade que agora explode. A exploso violenta porque
a unio era violenta".
Alguma coisa parecida aconteceu com o teatro do sculo que est
por terminar: eroso dos grandes limites que conferiam identidade ao
teatro de origem europia; inveno de pequenas tradies; crescimento de "culturas" separadas.
Para compreender o teatro do Novecentos necessano saber que
alguns grupos funcionaram e funcionam no apenas como conjunto,
como ensemble, mas tambm como tribo. Porm, esta uma palavra
equivocada porque evoca imagens arcaicas. Melhor falar de teatros que
inventam pequenas tradies.
A inveno de tradies pode levar a formas de sectarismo e de
intolerncia ideolgica. Tambm o teatro teve seus fundamentalismos
(stanislavskiano, brechtiano, grotowskiano...). Os fundamentalismos
so substancialmente incuos quando no podem reger-se pela fora;
quando so constrangidos a usarem armas ex.clusivamente culturais,
so lbeis pela sua prpria rigidez; basta que mude a moda para que
acabem em fumaa.
Quando pensamos em interculturalismo temos a tendncia de ocu~ar-nos com as divises culturais de tipo escolstico (Europa, sia,
Africa, culturas populares, culturas dos povos estudadas pelos antroplogos, hebrasmo, isl, hindusmo...) Esquecemos, porm, que o termo abstrato "Teatro" indica na realidade fenmenos no homogneos,
cada um com os limites criados por ele e por seu contexto. Algumas
vezes os estreitos limites geram um complexo de superioridade; em
outros casos levam ao intercmbio, determinam a necessidade de apro-'
fundar-se e de avanar no diferente.
Voc gostaria de ter estado aqui em Holstebro nestes dias porque
voc gosta de mover-se naquela terra de ningum que existe entre a
vida cotidiana e a situao de espetculo organizado, entre a representao e o ritual..
Estivemos nesta terra de ningum por nove dias e nove noites,
fundindo o teatro na cidade e absorvendo a realidade da cidade no
teatro. Mas misturar-se pe prova a consistncia dos prprios con-
I'
., ~.
205
206
de preto e o capacete coberto de folhas at a imagem de um extraterrestre com o rosto apagado por uma mscara antigs. Ao lado, um
ator de Kathakali, engrandecido pelo seu figurino e por sua coroa,
dedicava-se a dilatar seu rosto com a maquilagem verde e branca de
um personagem do mito.
Vieram os cavalos da escola de equitao, os tocadores de chifre
apaixonados pela caa raposa. E vieram os centauros, esses rapazes
de motocicleta, vestidos de couro preto que sentimos como uma ameaa quando atravessam a nossa cidade. Exibiram seu estrondo e dialogaram com um violino. Sufocaram o seu som e deixaram que ressurgisse desligando seus motores repentinamente. Exibiram sua ameaa
de violncia transformando-a em vitalidade e abertura. Rapazes e moas de pijamas brancos paravam de falar dinamarqus e emitiam gritos
e sinais em uma lngua desconhecida, coreano, movendo-se segundo
o bal marcial do taekwondo.
Era interessante notar o desconcerto e o estupor dos espectadores.
Seguramente sabiam que existem essas atividades em Holstebro assim
como podem saber que existem homens com quatro mulheres ou pessoas que queimam seus mortos para depois fazer uma sopa com as
cinzas e com-la. As subculturas que viam eram reconhecveis. Desconhecida era a razo, o porqu de descobrirem-se e invadirem o tempo e o espao desse estacionamento, dia e noite, com ou sem observadores, at embaixo de chuva.
No centro desse estacionamento construa-se um barco de quinze
metros, segundo o elegante desenho de um arquiteto, de madeira leve
e imprpria navegao (no possvel construir um barco adequado
navegao em apenas nove dias e nove noites). Tudo o que acontecia
parecia no levar em conta os espectadores mas sim ser feito apenas
em honra daquele barco. As numerosas subculturas de Holstebro mostravam que o extico seu vizinho do lado.
Aqui comea a fazer frio na metade de setembro. Nas primeiras
noites no tinha muita gente no teto do supermercado. Mas, com o
passar do tempo, aquele lugar onde o longo barco incapaz de navegar
crescia lentamente, 'tornou-se o centro da cidade, uma espcie de templo leigo do qual depois desta semana no restar nada, s a memria. . Neste "templo" ao ar livre e asfaltado, a cada meia-hora do
-,
207
208
209
Querido Richard,
no quero uma ptria constituda de uma nao ou de uma cidade.
No acredito nisso. E no entanto necessito de uma ptria. Este, em
simples palavras, o meu porqu de fazer teatro.
Repito-me a pergunta que Jean Amry, um dos grandes sem terra
do nosso tempo, fazia a si mesmo: "De quanta ptria um homem
necessita?". Tive sorte: a minha ptria cresceu. No feita de terra,
de geografia. feita de histria, de pessoas.
Quando se fala, se usa com freqncia generalizaes que servem
para abreviar o discurso. Assim, algumas vezes falo do meu interesse
pelo teatro indiano, do aporte que a dana Odissi tem dado ISTA,
Internacional School of Theatre Anthropology. Na realidade no colaboro com a dana Odissi nem com o teatro indiano mas com Sanjukta Panigrahi e a sinto como uma compatriota. Assim como, h
trinta anos, me reconhecia naqueles meninos do Kathakali Kalamandalam de Cherutturuthy, que queimavam incenso perante a fotografia
do fundador da escola de manh antes do amanhecer. Alguns daqueles
meninos eu revi homens maduros e atores afirmados. Eles se recordam
de mim, eu me recordo deles como eram h trinta anos, delgados,
com um sorriso um pouco travesso e um pouco melanclico e os
grandes olhos exercitados pelo Kathak:ali. Por que no deverei pensar
que somos concidados?
Sanjukta no "uma indiana", Sanjukta. Depois de tantos anos
que trabalhamos . juntos muito difcil para mim lembrar que ela
uma indiana. Assim como ela apenas raramente, quase que com um
sobressalto, se recorda que eu sou "um europeu".
O que isso? Interculturalismo? Humanismo? Cultura do trabalho?
No s amor pelo outro. . necessidade de conhecer a mim mesmo.
Uma noite, em Bellagio, perguntei a sua definio de interculturalismo. Me respondeu que no lhe interessava defini-lo, que preferia
que permanecesse um campo gravitacional, uma perspectiva aberta,
um buraco negro. Enquanto dizia isso sorria. quele sorriso que me
dirijo agora.
Os deuses se foram. Ns somos baixis sem tripulao, baixis brios
levados por correntes escuras. E no entanto tenho uma crena: apenas
210
medindo-me com os outros posso dar sentido rota, encontrar a minha identidade.
Me interessa uma especfica perspectiva intercultural: investigar o
nvel pr-expressivo do comportamento do ator. Algumas vezes voc
participa desse meu interesse. Afirma que o bilogo que existe em
voc est de acordo, mas que o poltico refuta. s vezes partilha comigo a descoberta desta terra comum da qual se nutrem as razes
das diferentes prticas dos atores. Outras vezes sacode a cabea priorizando seus estudos preferidos dirigidos descrio das interaes
211
SOCIaIS.
no nvel "biolgico" do ator, no territrio dos impulsos e contra-impulsos, dos sats, da partitura fsica e vocal que a minha investigao e minhas necessidades individuais puderam tornar-se polticas,
entrelaando-se com as igualmente profundas e incomunicveis dos
que so meus companheiros. Apenas aprendendo a navegar estas guas
tcnicas, de frias superfcies, eles tornaram-se "meus" atores e eu o
"seu" diretor. Juntos agimos mudando algo nossa volta.
No centro de cada discurso, quando falamos de cultura, ou seja,
relaes, existe o tema da id entid ad e.
A nossa identidade tnica estabelecida pela histria. No somos
ns .q u e a modelamos.
A identidade pessoal construda por cada um de ns, mas sem
que o saibamos. A chamamos "d est in o ".
O perfil sobre o qual podemos agir conscientemente, como seres
racionais, o da nossa identidade profissional.
Nos sentimos arcaicos quando olhamos nossa volta e confrontamos nosso ofcio com a tecnologia do tempo ou quando confrontamos
nosso pequeno cerco de espectadores com o pblico da mdia. O teatro
aparece como os vestgios de uma outra poca.
Se comparamos esses vestgios assim como so com as imagens do
que foram, a angstia aumenta. O ritual vazio.
O que quer dizer "ritual vazio"? Quer dizer que insensato? Caracterizado pela falta de valores? Qualquer coisa de degradado?
. O vazio ausncia, Mas tambm potencialidade. Pode ser a escurido de um barranco. Ou a imobilidade do lago profundo do qual
emergem sinais de vida inesperada.
212
Palavras-sombra
213
214
Tenho que admitir que no recuo quando necessano usar frmulas "de
curandeiro", "de charlato". O que soa inusitado e mgico estimula a imaginao
tanto do ator quanto do diretor?
Assim me dizia Grotowski, h trinta anos, em 1963. Era auto-ironia? Era um convite para tratar as palavras como sombras, borboletas
de asas velozes que nos podem levar longe?
Algumas palavras so estmulos. Mas, ateno, o estmulo carburante, funciona se queimado. Um "estmulo" algo profundamente
diferente de uma descrio ou de uma definio. Deve-se, sobretudo,
saber como transform-lo em carburante.
Fui testemunha do momento no qual foram introduzidos no Teatr
13 Rzedw os primeiros exerccios que depois se desenvolveram no
"famoso treinamento" do Teatr Laboratoriurn".
Grotowski estava trabalhando em Akropolis de Wyspianski. Havia
ambientado a ao num lugar oposto ao previsto pelo autor, no no
castelo de Wawel, .santurio da nao polonesa, mas no santurio do
extermnio - Auschwitz.
Existe sempre um desnvel entre as intenes do diretor e a realidade
que os atores apresentam. Durante os ensaios, Grotowski se deparou
com o rosto de uma atriz caracterizado por excesso de expressividade.
Pensou escond-lo com uma mscara mas esta soluo no funcionava.
Experimentou ento transformar o rosto em mscara, bloqueando-o
numa s expresso. Sua justificativa evocou os rostos petrificados dos
"muulmanos", como eram chamados os internados em Auschwitz
que chegavam ao mais baixo estado de sobrevivncia.
? Jerzy GROTOW5KI, Touiards a Poor Theatre, Holstebro, Odin Tearrers Forlag,
1968, p. 38. O fragmento existe na entrevista Theatres New Testament na qual se
.recolhem os pontos salientes de uma srie de conversaes com Grotowski no
perodo em que passei no seu teatro, em Opole, de 1961 at 1964. O texto,
revisado por Grotowski, foi publicado pela primeira vez no livro Alla ricerca del
teatro perduro. cito (o fragmento se encontra na p. 97) e com alguns cortes, na
verso definitiva, em Towards a Poor Tbeatre.
8 O teatro de Grorowski assume o nome de Teatr Laboratoriurn a partir do outono
de 1962 (Teatr Laboratorium 13 Rzedw). O primeiro espetculo apresentado sob
o novo nome foi Akropolis. Em 1967, depois de mais de um ano que o teatro
tinha a sua sede em Wroclaw, o nome tornou-se Teatr Laboratorium. Instytut
Badan Metody Aktorskiej (Instituto de Pesquisa sobre o Mtodo do Ator).
215
Refora:
Esta lngua feita para os sentidos deve ocupar-se antes de tudo de satisfaz-los.
Isso no impede de desenvolver em seguida todas as conseqncias no plano
216
intelectual, sobre rodos os planos possveis, em rodas as direes. Isso faz com
que a poesia da lngua seja substituda por uma poesia no espao.
9 Antonin ARTAUD, Le thtre et son double, cito p. 47. o captulo "La mise en
scne et la mtaphysique", que vem de uma conferncia dada por Artaud na 50rbonne em 10 de dezembro de 1931, publicada em La Nouvelle Revue Franaise de
1.0 de fevereiro de 1932 com o ttulo Peinture.
10 Antonin ARTAUD , L'atelier de Charles Dullin (1921), in Comptes rendus, Oeuvres
completes, Il, Paris, Gallimard, 1%1, p. 153-9. Ver tambm a carta de 1921 a
Max Jacob, em Oeuvres complres. .Hl, 1961, pp. 117-8. .
217
218
II
219
Dentro de uma sala de trabalho as palavras voam com uma intensidade particular, criam ns que parecem indissolveis e reveladores.
E o so, naquele momento.
Deve-se criar uma lngua dentro de uma sala de trabalho. Lngua
da situao, no de um sistema, de uma teoria. Lngua autnoma e
fugitiva.
Repetir as palavras da Antropologia Teatral com rigidez pode ser
traioeiro e danoso. Mas repetir as palavras do "Cavalo de prata" seria
somente ridculo.
Por que ento esto aqui e concluem o livro?
Justamente aquela linguagem que para voc, leitor srio, pode parecer inutilmente "lrica", "emotiva", "sugestiva", e que por isso a refuta, ao invs lngua que foge das definies prefabricadas que aumentam a confuso e a escondem atrs de uma tela de falsa preciso.
Aqui no fazemos "poesia". A poesia est no espao.
SEGUNDA-FEIRA
Vocs foram treinados a calar danando. Escutemos agora um escritor, Robert Louis Stevenson:
A causa e fim de toda arte construir uma estrutura; uma estrutura que pode
ser de sons. de cores. de movimentos. de figuras geomtricas, de gestos imitveis;
mas sempre uma estrutura (...). A verdadeira tarefa de um artista literrio tecer
ou entrelaar o significado ao redor de seu prprio eixo , assim que cada frase
aparea em um primeiro momento como uma espcie de n. e logo, depois de
um segundo de suspenso do sentido. o n de desfaz tornando-se compreensvel.
Deve-se observar este n em todas as frases . o ncleo, de modo que o leitor seja
conduzido sutilmente a prever e a esperar. O prazer do leitor torna-se mais intenso
graas ao fator da surpresa (...). O nico preceito categrico justamente o que
impe a criao de uma variedade infinita: de interessar. de desconcertar. de
surpreender. gratificando ao mesmo tempo (...) . O estilo sinttico.
220
Do sangue
pele
cor
12
Estar em vida
um passo?
um latido?
uma imagem?
Robert Louis STEVENSON, The Art ofWrtng. Techncal Elements ofStyle, Londres ,Chatto and Winds, 1908, p. 8-14.
221
Acima
e abaixo do mar
Noto duas tendncias: agir como corrente marinha escondida embaixo da superfcie do mar ou mover-se como ondas.
TAREFA: Os que pertencem espcie de correntes marinhas traba'lh aram agora acelerando trs vezes mais o ritmo. Os que pertencem
s "ondas de superfcie" devero reter o ritmo trs vezes.
,
COMENTRIO:
Quando se trabalha lentamente existe a tendncia de perder a respirao do ritmo. Este torna-se uniforme, montono. A respirao do
ritmo uma alternncia contnua - inspirao, expirao uma
variao contnua e assimtrica, perceptvel em cada ao-clula da seqncia.
222
COMENTRIO:
223
A transformao
da prosa em poesia...
Se pego um balo de gs e reduzo um tero do seu invlucro externo, aumento a tenso interna. Vocs tambm podem reduzir as
dimenses de suas aes e ao mesmo tempo aumentar a tenso do
sangue. Podem "absorver" suas aes at a imobilidade conservando
porm o impulso que as modela com preciso no espao. Em etologia
isto se chamaria um "movimento de inteno": uma pessoa sentada
mas pronta para levantar-se.
O ator/bailarino capaz de reduzir a ao ao seu ncleo, ao seu
impulso. Sabe destilar cada seqncia, conservando apenas as aes
essenciais, elaborando fase por fase, transformando - para usar termos
literrios - a prosa em poesia.
TAREFA: Absorver pela metade as aes da seqncia precedente.
COMENTRIO:
A presena celular
ou o feitio do mosaico...
Quando vemos um organismo vivente o percebemos na sua totalidade. Mas essa totalidade apresenta diferentes nveis de organizao.
Assim como no corpo humano existe o nvel de organizao das clulas, dos rgos, dos sistemas, tambm uma situao cnica contm
trs nveis distintos de organizao.
O primeiro o nvel da ao que . Como uma clula vivente.
O segundo o nvel da ao em relao, sem necessariamente significar alguma coisa para o espectador.
O terceiro nvel, a ao no contexto, o da totalidade, do qual so
desenvolvidas funes e tambm distintos significados.
O trabalho que realizamos at agora pertence ao primeiro nvel, o
da ao que , sem nenhuma relao com O contexro. o nvel da
presena, o da pr-expressividade. Constitui o fundamento do segundo
nvel (o da ao em relao) e do terceiro nvel (da ao no contexto)
que desperta a energia do espectador sob forma de imagens, de refle-
xes, de reaes afetivas.
224
'rAREFA:
Um didlogo de cores
e de sangue...
225
um sentido e a interpretar o que v . O ator/bailarino trabalha manipulando duas rbitas paralelas: uma invisvel, o sangue (imagens, ritmos, sons, conceitos, sensaes), a outra externa, que modela com
preciso as aes, absorvendo-as e dilatando-as para segu ir o fio de
um tema selecionado.
TAREFA: Elaborem a relao fortuita que obtiveram e a justifiquem
COMENTRIO:
Entre o visvel
e o invisvel..
PERIGO! A pele (a forma) muda e a ao perde a sua tenso interna, sofre uma hemorragia (falta de preciso). Pausas inertes sufocam
a dinmica ao/reao.
As pausas-transies criam um outro dinamismo, uma nova fluidez/variao quando alteram o dinamismo original da seqncia individual. A relao que deriva do encontro fortuito entre duas seqncias individuais suscita associaes no espectador que comea a projetar
. Entre lealdade
e traio
226
TERA-FEIRA
227
Um tecido
de saltos...
Um n
de luz...
Um idioma
de lealdade...
"
228
Um idioma
no espao...
Vocs se movimentaram no espao segundo uma seqncia dinmica na qual cada passo diferente do outro, como em uma frase
cada palavra diferente da outra. Inventaram uma dana, o tango-rock
Caualo de prata.
TAREFA: Sigam esta sequencia em relao com a msica. Tenham
o cuidado de desenh~r um perfil particular para cada passo. necessrio estabelecer uma relao com o parceiro (nesse caso a msica)
mas sempre respeitando o dinamismo e o desenho dos passos que criaram.
COMENTRIO:
Uma lngua
em perigo...
COMENTRIO:
229
A contnua
vibrao da vida...
Olho suas mos e seus dedos e penso em marionetes. Freqentemente no teatro e na dana as mos e os dedos so rgidos de tenses
inorgnicas e no manifestam impulsos precisos. Cada ao deveria
construir um labirinto de mltiplas tenses em cada parte de seus
corpos. Quando observo suas mos no vejo isso.
TAREFA: Traduzam Cavaw de prata na lngua do "torso". O espectador deve sentir o fluxo ininterrupto das aes absorvidas, das tenses,
dos impulsos, dos "movimentos de inteno", como se os percebessem
no torso sem brao"da escultura de Rodin.
COMENTRIO:
Sem a fluidez
do leite que adormenta...
No os muros
de cimento, mas...
as melodias
da tua temperatura...
230
No quero ver dana. No quero ver teatro. Quero ver o que "estem-vida" e que desperta ecos e silncios. Observo-os e apesar de suas
tcnicas refinadas parecem muros de cimento. Mas eu tenho saudades
de um espelho no qual poderia penetrar, como Alice, para encontrar
o universo das suas e das minhas experincias.
Admiro-os. Vejo no seu virtuosismo anos de disciplina, de trabalho
e de investigao. Mas no escuto suas melodias porque no encontro
nuanas, detalhes, micro-ritmos.
Quando criarem uma seqncia de aes devem proteg-la como
um neonato que pode ser lesado por uma presso mnima. Devem
ter conscincia que existem dois tipos de tenses: uma que ajuda a
vida e outra que a sufoca. s vezes suas aes so muito rpidas e
violentam as transies. Do a sensao de fazerem um esforo no
motivado e redundante. Fazem aes indiferentes.
O processo artstico um processo de seleo. Os espectadores podem compreender ou no a lgica das suas aes, mas devem ser
capturados sensorialmente por elas . Esta lgica deve ser radicada no
seu espaoltempo interior. Estas razes, estes vnculos com o que est
debaixo de nossas aes "individualizam" o que tcnico e revelam a
melodia das suas temperaturas. So as tenses mais imperceptveis da
ao que manifestam o temperamento, a biografia, as nostalgias.
A nossa primeira obrigao enquanto seres sociais e enquanto seres
profissionais aprender a ver, a no nos deixar deslumbrar pelo que
est na superfcie mas trazer luz as foras escondidas.
QUARTA-FEIRA
TAREFA: Cantar uma cano que lhes seja querida.
COMENTRIO:
Quem perdeu
a sua alma? ..
O fluxo da nossa energia como processo fsico e mental concretiza-se na ao de falar e cantar. Existem aes vocais exatamente como
existem aes Hsicas. O nosso "estar-em-vida" manifesta-se no canto.
231
Existem povos que acreditam que a alma esteja na garganta: o indivduo que no pode cantar perdeu a sua alma.
TAREFA: Traduzam as aes fsicas do Cavalo de prata em aes
vocais. Encontrem o equivalente do tnus das aes fsicas nos tons
da cano. Evitem as pausas inertes. A pausa-silncio uma transio
no processo contnuo do bios. Executem a ao vocal com todo o
corpo tal como uma ao fsica. necessrio cantar com o fgado e
com as vsceras, com o sexo, com a espinha dorsal. Quando cantarem
reencontrem todas as tenses do Cavalo de prata, mesmo as menores.
COMENTRIO:
Quem perdeu
os prprios antepassados?..
232
Cantando no espao
existem encontros
e me transformo...
233
Porque esquecendo
recupero a memria...
234
Vr a luz
apagando...
Negar/agindo. necessrio aplicar este princpio tambm na terminologia que aprendemos. Devemos neg-la inventando, forjando a
nossa prpria definio de cada conceito essencial para o trabalho.
Deve ser uma terminologia feita de nossas imagens pragmticas e ao
rnesmo tempo poticas. Improvisaes. Ritmo. Relao. Tenso. Contexto. Sangue. Pele. O dever de vocs refutar, negar/agindo. Neguem
as minhas definies inventadas aqui com vocs nestes dias. Neguem
agindo, criando as de vocs.
QUINTA-FEIRA
Cu
mar ou
terra...
Renascimento ou .transio?
235
Chove
uma charpe...
e me molho
236
pectador.
COMENTRIO:
Navegando
na matria vivente
a pele no sujca
o sangue...
237
o itinerrio e as veredas que o escritor traa com suas frases . O imprevisvel labirinticamente sinuoso nas suas oposies, um dinamismo que "move" o leitor ou o espectador, experincia.
Paul Klee descreve no seu dirio a refinada estratgia e os calculados
meandros de suas pinturas; o modo com o qual dirige o olhar do
observador mediante as linhas e as cores, rupturas e deformaes, para
criar na estrutura pictrica um percurso visvel que guia os saltos do
olhar do observador.
O objetivo do coregrafo/diretor similar ao do escritor e do pintor:
dirigir a ateno do espectador. Dirigir ou coreografar significa guiar
a percepo do espectador atravs das aes do ator/bailarino.
Os conselhos artesanais de Stevenson valem para todas as disciplinas
artsticas: as duas ou mais perspectivas com base nas quais o tema se
desenvolve e cujos contrastes geram "saltos" de viso. So como as
mudanas ou "saltos" de funo de um objeto quando um ator o
transforma imprevistamente em alguma coisa diferente da que o espectador esperava.
A diferena substancial entre ator e bailarino que o primeiro freqentemente trabalha servindo-se de uma lgica narrativa com justificativas que se relacionam com um texto ou com uma situao concreta. Mas as suas reaes permanecem com freqncia no mbito
cotidiano sem chegar qualidade de energia extracotidiana.
Os bailarinos trabalham com "temas", "emoes", sensaes vagas
e abstratas apoiando-se porm em modelos codificados, em uma tcnica extracotidiana explcita. No caso do ator somente uma temperatura pessoal pode romper o estertipo cotidiano. No casa do bailarino,
a codificao apreendida, que um esteretipo tcnico, no suficiente
para dar uma vida pessoal s danas "temticas" ou "puras". Seguindo
uma lgica narrativa o bailarino pode a dar um perfil e personalizar
cada ao. Mas existe o risco de "fazer teatro", de ilustrar as situaes,
de perder a fora da sua tcnica extracotidiana.
A luta do bailarino similar do ator; o primeiro combate contra
os esteretipos tcnicos, o segundo contra os esteretipos da cotidianidade (que chamamos "espontaneidade").
Um esquema terico, que seja possvel repetir perfeitamente no
negativo em si mesmo. como a palavra de uma lngua que dorni-
1-38
massacre
nunca surpreende...
239
COMENTRIO:
E a menina
nunca cresce...
240
SEXTA-FEIRA
TAREFA: Os quatro grupos, Norte, Sul, Leste e Oeste preparam o
espetculo Velario en la Navidad (Velrio no Natal).
COMENTARIO :
Nesta
proximidade distante
241
Onde as pausas
so esclarecimentos
Para alguns de vocs esta experincia provocou uma espcie de paralisia e uma desorientao. Obviamente nenhum de ns deseja sofrer,
expor-se insegurana ou viver em estado de crise. Mas uma nova
orientao s possvel como conseqncia de uma desorientao. Na
nossa vida, uma crise pode ser uma pausa-transio na qual a nossa
experincia se prepara para saltar numa nova rbita que revitaliza as
nossas energIas.
Estar desorientado significa que as solues e respostas que possuamos antes j no nos satisfazem. o nascimento de algo novo, "nove
meses" de gestao, com as nuseas, o vmito, a sensao de que o
corpo fsico e psquico est se deformando. Neste perodo de desorientao toda a nossa experincia "anterior trabalha para buscar um
242
243
ou revelar a prpria vulnerabilidade. Entre os bailarinos a energia ofusca com freqncia a transparncia, a vulnerabilidade. o anonimato
da tcnica.
Quando os observo me pergunto se as suas reaes so o equivalente
da liberdade que vivem quando esto com algum que amam, que
.lhes inspira confiana, segurana. o momento no qual se manifesta
a polaridade que somos, e que as nossas energias, doces e fortes, no
"masculinas" ou "femininas" mas "vigorosas" e "suaves", se encarnam
em aes e se transformam em destino individual e histria.
ndice analtico
'i
Adiparwa, 137 .
agama, 158
agem, 43, 88, 158
Ahasverus, 130
Akadenwa, 207
Akropolis, 201, 201 n, 214, 214n
alus, 88
Amry, Jean, 209
Angarov, Alexei Ivanovitch, 198
angsel; 88
Anima/Animus, 93, 95, 96, 97, 98 ,
99, 100, 102, 105, 161,218
Antgona, 124
Apocalypsis cum figuris, 143
Appia, Adolphe, 62, 148
aragoto,34
Aramis,194
Archer, William, 69
Ardhanarishwara, 142
Ariosto, Ludovico, 168
Arist6teles, 130
Arlequim, 208 .
Artaud, Antonin, 18,29,62,63,64,
66,72, 197n,211,215,216,216n,
217
Auschwitz, 214
Azurna, Katzuko, 43, 53, 54, 55, 56,
109, 11ln, 213
Azuma,Tokuho,43,55,56
Bach, J. Sebastian, 148, 149
bal clssico, 21, 27, 35,41,43,48,
72,104
Bandem, I Made, 88, 109,213
Banu, Georges, 145n
Barba, Eugenio, 19n, 21n, 53n, 177n,
179n, 184n, 196,201n,212
Baris,20
Barong,67
Barrymore, John, 116
Basavanna, 145, 146, 172, 173, 173n
bathin,137
Baty, Gaston, 153n
Baudelaire, Charles, 63, 216
Bausch, Pina, 82
bayu, 33, 88, 96
Beacham, Richard c., 148n
Beck, J ulian, 66
Beijer, Agne, 146
Benedetti,Jean, 156n, 185n
Berliner Ensemble, 123, 124, 165,
165n, 172n
Bhima,126
Bijeljac-Babic, Ranka, 37n
biomecnica, 34,39,41,65,72, 150,
184, 184n, 197,202,217
245
246
NDICE ANAlTICO
NDICE ANAlTICO
dalem, 137
Damayanti, 126
D'Arnico, Silvio, 146, 147
Danjuro IX, 190n
D'Annunzio, Gabriele, 148
Dante, 97
Decroux, Etienne, 18, 28, 29, 29n,
30, 35n, 38, 41n, 43, 43n, 48,
48n, 51, 51n, 52, 62, 63, 66, 72,
77n, 82, 82n, 86, 86n, 109, 114,
139, 140, 141, 150, 152, 153,
153n, 157, 160, 174, 187, 187n,
188
De Filippo, Eduardo, 82
Delsarte, Franois, 72
Desdmona, 177, 178
Devi, Rukmini, 67
247
213
Francisco, So, 169
Fuchs, Georg, 149, 149n, 183
Fundao Rockefeller, 136, 207
Fushikaden, 100, 101n, 102n
Galileu, 69, 122, 124
Gallipoli, 14, 22
Gamow, George, 58
gangene, 40
Garbo, Greta, 116
Garca Lorca, Federico, 193
Gielgud, john, 108
Gladkov, Alexandr, 82n, 87n, 197n
Goethe, Johann Wolfgang, 44, 66,
151
Gogol, Nicolai, 81
Gomulka, Wladislaw, 121
Gordon, Mel, 91n
Gourfinkel, Nina, 82n, 87n, 184n,
197n
grammelot, 62
.
Granowski, Alexei, 83
Grasso, Giovanni, 187
Gropius, Walter, 146
Grotowski, Jerzy, 18, 19, 19n, 40n,
48,54,66,67,85,86n, 120, 121,
122,123,129,143,144,152,153,
163, 164, 164n, 174, 181, 185,
186, 194, 200, .200n, 201, 211,
213, 214, 214n, 215, 216, 217,
242
guntai, 101
Haltung, 158
Hamlet, 108, 176
bana, 102
248
NDICE ANALTICO
hasta, 46
Hegel, Georg W . F., 68
Hein, Piet, 133
Heine , Heinrich, 131, 132
Hellerau, 148
Hijikata, Tatsurni, 106, 113
hikinuki, 22
hippari hai, 42, 161
Hobgood, M. Brunet, 199
Hoff, Frank, 50n
Holands Errante, O, 130, 131, 132,
133
H lstebro, 11, 12,20, 21n, 120, 194,
196,203,204,205,206,207
Hsh,37
Hotel Pro Forma, 207
Howard,151
H-jeh,52
Humphrey, Doris, 40
i-guse, 50, 114, 116
ikebana, 51, 52, 53
Ilinski, Igor, 184
interculturalismo, 204, 205, 207, 208,
209,212
io-in, 33,89, 110, 139
Inspetor Geral, 0, 81, 108, 182n
Irving, Henry, 41,82, 162, 187
ISTA, 12, 21, 21n, 54, 72, 88, 104,
106, 129, 136, 158n, 180n, 209,
211,239
Itsi Bitsi, 194, 195
Jacob, Max, 216
Jan (Ferslev), 196
jangama, 173
Jacques-Dalcroze, Emile, 148
NDICE ANALTICO
Korzeniewski, Bogdan, 80
koshi, 33, 41, 42, ll ln
Ktei,46
Kott, Jan, 211
kraft, 64
Kudlinski, Tadeusz, 200, 201
Kuei-fei, 46
Kulisiewicz, T adeusz, 122
kundalini, 137
kung-j,33,43, 78, 79
Kyogen, 32,33, 38, 104
jo-ha-kyu, 55,56,102,103,104,140,
141, 142, 166, 190,213
jouvet, Louis, 28, 28n, 43n, 74, 79,
79n, 108, 170, 171, 171n
Jung, Carl Gustav, 93
Kabuki, 22, 32 , 33, 34 , 41, 49, 50,
72, llln, 189, 190
Kai (Bredholt), 196
Kalamandalam, 67, 209
Kanze, 37, 38n
Kanze, Hideo, 41, 109,213
Kanze, Hisao, 50, 114
Karenina, Ana, 207
kata, 105, 163, 188, 189, 190, 190n,
191
Kathakali, 20, 35, 47, 60, 67, 72 ,
125,206,207,208,209
Kattrin, 142
Kawagami, Otoj iro, 29
Keaton, Buster, 85
keras, 42, 43 , 46, 56, 88, 96, 100,
105, 114,218
ki-ai,33
Kichizaemon, Kaneko, 50
Kita, 37, 42
Kita, Nagayo, 38
KIee, Paul, 237
KIeist, Heinrich von, 92n
Koestler, Arthur, 126, 127
kokken,32
kokoro, 33
Komparu,37
Komparu, Kunio, 89 , 89n
Kong,37n
Kong Iwao, 46n
Konorak, 125
ma, 55
Me, A, 123
Me Coragem, 143
Maeterlinck, Maurice, 146
Malcovati, Fausto, 182n, 198n
Mallarm, Stphane, 216
manis, 42, 46, 56,88, 96,100, 105,
114,218
Marceau, Marcel, 36
Marinetti, Filippo T ommaso, 146
Marotti, Ferruccio, 187n
Masakazu, Yamazaki, 84n
249
Matisse, Henry, 82
Matsumoto, Nazaemon, 50
Mei Lanfan, 67
Meldolesi, Claudio, 165n, 172n, 177n
menjiwai, 137
Meyerhold, V. 18, 34, 39, 39n, 41 ,
62, 66, 80, 81, 82n, 85, 85n, 87,
87n, 117, 118n, 135 , 139, 146,
150, 162, 167, 175, 176, 176n,
178, 183, 183n, 184 , 184n, 1$5,
185n, 187, 188! 188n, 189, 197,
197n,199,202,216,217
Mickiewicz, Adam, 200
Milagre de Santo Antnio, O, 88n
mimo, 21, 27, 30, 38, 43 , 72, 150,
153, 153n, 157, 158, 160
Moissi, Alexander, 108
Mollica, Fabio, 90n, 156n
mudra, 46, 47
Mysteries and Smaller Pieces, 158
Nagel Rasmussen, Iben, 142, 194,
195, 196
Nakajima Natsu, 106, 113
Nakamura, Shikan, 190
Nala,126
Nambudiri, Krishna, 213
Narrow Road to the Deep Nortb, 129
Natya Shastra, 67
Nemirvich-Dnrchenko, 108
Nikyoku Santai Ezu, 10 1, 10 1n
N, 32, 33, 34, 37, 38n,41,42,43,
47, 49, 50, 56, 67, 72, 83, 89,
100n, 103, ll1n, 139, 190
Nomura, Kosuke, 104
Nomura, Shiro, 38, 38n
nritta, 151
250
NDICE ANALTICO
nyotai, 101
239
Odissi, 34, 40, 140
Ohno, Kazuo, 106
OIivi, Laura, 165n, 172n
Open Theatre, 157
pera de Pequim, 31, 40, 42, 43, 47,
72,88,103
Opole, 18, 119, 120, 121, 122, 123,
143, 144, 195, 199, 211, 212,
214n
Orlando, 143
Osterwa, JuIiusz, 153
Ostrovski, Aleksandr, 165
Otelo, 176, 177, 178
otkaz, 85, 217
otsukarasama, 31
Paixo de Oberammergau, A, 149
Paixo Segundo So Mateus, A, 148
PaIac, Jan, 196
Panigrahi, Sanjukta, 12,40,43, 109,
136, 142,209,213
panisar, 137
partitura, 105, 107, 107n, 115, 159,
161,163,164,165,168,174,175,
176,177,178,179,180,181,183,
184,185,186,188,189,190,210,
213,232 (veja "subpartitura")
Pasek Tempo, I Made, 43, 56, 109,
135, 136, 137, 158,213
Pavis, Patrice, 158, 158n
Peck, Gregory, 108
114
87n,108n,176n,183~,184n,185n
Rma,97
Ramanujan, A. K., 173n
Rame, Franca, 213
Reinhardt, Max, 146, 149
Remisoff, Nicolai, 107
Rimbaud, Arthur, 216
Rimer, J. Thomas, 84n
risunok dvizheni, 175
rotai, 101
NDICE ANALTICO
251
252
NDICE ANALTICO
Virgem (Maria) , 14
V oltaire, 188
Wagner, Richard , 131, 132, 175
wagoto, 34
waki,32
Wanderlehre, 7 2, 7 3
Wayne, John , 85
Weideli, Walter, 201
Weigel, Helene, 82, 122, 123
Wilson, Bob, 213
Winther, Frans, 207
Woolf, Virgnia, 143
Wyspianski, Stanislaw, 214
r,
vou
aJ