POVOS INDÍGENAS EM MATO GROSSO DO SUL História, Cultura e Transformações Sociais

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POVOS INDGENAS

EM
MATO GROSSO DO SUL
Histria, cultura e transformaes sociais

POVOS INDGENAS
EM

MATO GROSSO DO SUL


Histria, cultura e transformaes sociais

GRACIELA CHAMORRO & ISABELLE COMBS


(ORGS.)

2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS


Gesto 2011/2015

Gesto 2015/2019

Reitor: Damio Duque de Farias


Vice-Reitora: Marlene Estevo Marchetti

Reitora: Liane Maria Calarge


Vice-Reitor: Marcio Eduardo de Barros

Equipe EdUFGD / 2012


Coordenao editorial: Edvaldo Cesar Moretti
Administrao: Givaldo Ramos da Silva Filho
Reviso e normalizao bibliogrfica:
Raquel Correia de Oliveira
Programao visual:
Marise Massen Frainer

Equipe EdUFGD / 2015


Coordenao editorial: Rodrigo Garfallo Garcia
Administrao: Givaldo Ramos da Silva Filho
Reviso e normalizao bibliogrfica:
Cynara Almeida Amaral, Raquel Correia de Oliveira,
Tiago Gouveia Faria e Wanessa Gonalves Silva
Programao visual: Marise Massen Frainer

CONSELHO EDITORIAL
Rodrigo Garfallo Garcia - Presidente
Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi
Luiza Mello Vasconcelos
Marco Antonio Previdelli Orrico Junior
Marcio Eduardo de Barros
Rogrio Pereira Silva
Thaise da Silva

Edvaldo Cesar Moretti - Presidente


Clia Regina Delcio Fernandes
Luiza Mello Vasconcelos
Marcelo Fossa da Paz
Paulo Roberto Cim Queiroz
Rozanna Marques Muzzi
Wedson Desidrio Fernandes
Conselho Editorial | 2012.

A reviso textual e a normalizao bibliogrfica deste livro so de


responsabilidade das organizadoras, dos autores e das autoras. A presente
obra foi aprovada de acordo com o Edital 01/2011/EdUFGD.
Diagramao: Amanda Moreira e Thiago Vieira
Reviso textual final: Luiza Mello Vasconcelos
Normalizao Bibliogrfica: Mrcia B. Gomes
Capa: Thiago Vieira | Ilustrao da capa: Arami Marschner
E-mail: [email protected]

P879
Povos indgenas em Mato Grosso do Sul: histria,
cultura e transformaes sociais. / Organizadores: Graciela
Chamorro, Isabelle Combs -- Dourados, MS: Ed. UFGD,
2015.
934p.

ISBN: 978-85-8147-132-7
Possui referncias

1. Cultura indgena. 2. Histria indgena. 3. Mato


Grosso do Sul. I. Graciela Chamorro. II. Isabelle
Combs. III. Ttulo.

CDD 980.4171

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central UFGD.


Todos os direitos reservados. Conforme lei n 9.610 de 1998

COMIT CIENTFICO
Antnio Jac Brand (In memoriam)
Thiago Leandro Vieira Cavalcante
Graciela Chamorro
Isabelle Combs
Maria de Ftima Costa
Manuela Carneiro da Cunha
Paulo Augusto Mrio Isaac
Pilar Garca Jordn
Protasio Paulo Langer
Adelina Rosario Pusineri de Madariaga
Bartomeu Meli
John Manuel Monteiro (In memoriam)
Levi Marques Pereira
Pedro Igncio Schmitz

Agradecimentos
Escrever sobre as histrias, as culturas e
as transformaes sociais concernentes aos
povos indgenas em Mato Grosso do Sul
uma tarefa que s pode ser feita unindo muitas mos, potyv, em mutiro. Nesse sentido, como organizadoras desta obra, fomos
agraciadas com 46 pessoas que assumiram
a autoria dos 42 captulos e nos prestaram
uma espcie de assessoria nos 42 meses que
levamos desde o incio do projeto desta obra
at a sua entrega para publicao, passando
por um seminrio e um simpsio que reuniram muitas dessas pessoas. Agradecemos de
corao a todas elas por suas contribuies,
sua pacincia e amizade.
Sabemos que por trs de cada artigo sobre
os povos indgenas contemporneos em nosso
estado est a contribuio de muitos ndios e
ndias. Uma parte do que os autores e as autoras desses captulos escreveram repousa sobre
a memria e os saberes indgenas. Aos autores
e s autoras indgenas que participaram com
suas experincias na seco de testemunhos,
assim como s pessoas e comunidades que enriquecerem com sua memria este livro, lhes
dizemos: aguyje (Kaiowa), hegrefuara (Ofai),
anapo ykoe (Terena), atim (Guarani), ainapuiakw (Kinikinau), elee-nioagode/elee
nioagodo (Kadiwu), acaranipise (Ayoreo),
hnechyt dych (Chamacoco), gracias, obrigado!
(Atikum, Camba, Guat). Que estas palabras
de gratido gerem respeito e ateno para com
as suas lnguas e culturas, para com seus modos de vida passados e seus desafios recentes!
Agradecemos tambm aos colegas da
UFGD Andrbio Mrcio Silva Martins,
Andr Luis Freitas, Eudes Fernando Leite,
Grazielle Acolini, Jones Dari Goetter, Levi
Marques Pereira, Neimar Machado de Souza,
Protasio Paulo Langer, Paulo Cim Queiroz,
Rodrigo Luis Simas de Aguiar, Thiago Leandro
Vieira Cavalcante, Andr Geraldo Berezuck,
Flaviana Gasparotti Nunes, Lisandra Pereira

Lamoso e Nomia Moura que cederam os


valores destinados pela universidade s suas
pesquisas, para a publicao deste livro.
Universidade Federal da Grande Dourados, especialmente Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisa e aos colegas do Programa
de Ps-Graduao em Histria que acreditaram neste livro quando ainda era apenas um
projeto, empenhando-se depois conosco pela
sua publicao com os recursos da universidade , nosso muito obrigado. Destacamos
o empenho de Ariane Rigotti, Olga Bachega,
e Cludio Vasconcelos. Na Editora da UFGD,
nossos agradecimentos vo para Givaldo Ramos, Marise Frainer, Raquel Correia e Tiago
Faria; no Centro de Documentao Regional
(CDR), para Carlos Barros Gonalves e Ivanir
Martins de Souza.
A Joana Aranha Moncau, Layla Cristina Iapechino Souto e Natlia Cim, agradecemos
pelas tradues para o portugus e pelas correes dos textos escritos em lngua portuguesa; tambm a Luiza Vasconcelos, pela reviso
de todo o livro. Gratido a Leszek Lech e Monika Ottermann; Thiago L. V. Cavalcante, Levi
M. Pereira e Protasio P. Langer; Thiago Vieira,
Diego Villar, Maria de Ftima Costa e ao pessoal do Museo Etnogrfico Andrs Barbero,
pela assessoria tcnica e todo apoio durante
a produo deste livro.
Aos mais de quarenta pareceristas, cujos
nomes no podemos mencionar aqui, assim
como ao Comit Cientfico desta obra, nosso muito obrigado por ter-nos acompanhado
na rdua tarefa de avaliao dos textos. Duas
pessoas deste comit faleceram enquanto este
livro estava sendo elaborado: Antnio Jac
Brand (1950-2012) e John Manuel Monteiro
(1956-2013). Ambos saudaram com otimismo
o projeto deste livro e deram sua contribuio
para que ele se tornasse realidade. Recebam
esta obra tambm como fruto de um sonho
que esses companheiros sonharam junto.

SUMRIO
PREFCIO ..................................................................................................................15
Memria, histria e futuro dos povos indgenas ...................................................................... 15
Bartomeu Meli S. J.

INTRODUO ..........................................................................................................19
Graciela Chamorro
Isabelle Combs

PARTE 1
PANORAMA ARQUEOLGICO ................................................................................25
Arqueologia em Mato Grosso do Sul ...................................................................................... 27
Pedro Igncio Schmitz

8.400 anos de ocupao indgena nas margens do rio Paraguai.............................................. 39


Pedro Igncio Schmitz
Jairo Henrique Rogge

A Arte rupestre em Mato Grosso do Sul .................................................................................. 51


Rodrigo Luiz Simas de Aguiar

Os antigos caadores do planalto de Mato Grosso do Sul


de 10.500 a 6.700 anos atrs.................................................................................................. 61
Pedro Igncio Schmitz
Marcus Vinicius Beber
Ellen Veroneze

Levantamento arqueolgico e histria indgena na aldeia Lalima, Miranda/MS ...................... 73


Eduardo Bespalez

Arqueologia da bacia do Alto Paran em Mato Grosso do Sul ................................................ 93


Emlia Mariko Kashimoto
Gilson Rodolfo Martins

PARTE 2
MARCO HISTRICO ...............................................................................................101
Uma esquina nos confins da Amrica: encontros e desencontros
nos processos de povoamento e ocupao do territrio do atual Mato Grosso do Sul .......... 103
Paulo Roberto Cim Queiroz

PARTE 3
ANTIGOS POVOS....................................................................................................127
Orejones e Xaray nas fontes coloniais ............................................................................... 129
Isabelle Combs

Payagu ................................................................................................................................ 147


Chiara Vangelista

Os Boe Bororo...................................................................................................................... 157


Chiara Vangelista

Boe Bororo: A riqueza cultural de um povo e as frentes de colonizao ............................... 165


Antnio H. Aguilera Urquiza

Renascido das cinzas: Um histrico da presena dos Cayap-Panar em


Gois, Minas Gerais e Mato Grosso: sculos XVIII ao XX ..................................................... 177
Odair Giraldin

PARTE 4
HISTRIA DOS ATUAIS POVOS INDGENAS .........................................................197
Guat: povo das guas ......................................................................................................... 199
Anna Maria Ribeiro F. M. Costa

A ltima fronteira ofai: a resistncia de um povo indgena .................................................. 217


Carlos Alberto dos Santos Dutra

OS QUE CHEGARAM DO CHACO ....................................................................................................229

O complexo alto-paraguaiense: Do Chaco a Mato Grosso do Sul......................................... 231


Nicols Richard
Isabelle Combs

Os Terena em Mato Grosso do Sul ........................................................................................ 249


Nomia Moura
Graziele Acolini

Os Kinikinau: persistncia e percepes ............................................................................... 267


Ira Quelho de Castro

De Mbay-Guaikur a Kadiwu: uma sociedade de artistas e guerreiros .............................. 277


Giovani Jos da Silva

Notas sobre os Chamacoco e os Ayoreo e sua presena em terras sul-mato-grossenses ........ 287
Giovani Jos da Silva

POVOS GUARANI-FALANTES: ENTRE E PARA


ALM DOS DOIS GRANDES RIOS .....................................................................................................291

Povos indgenas guarani falantes no atual Estado de


Mato Grosso do Sul (sculos XVI-XXI) .................................................................................. 293
Graciela Chamorro

Historiografia e antropologia guarani em Mato Grosso do Sul (sculo XIX) ........................... 323
Pablo Antunha Barbosa

Os Deuses, os homens e suas escolhas: cosmologia, organizao social,


conflitos territoriais e outras histrias kaiowa ........................................................................ 339
Katya Vietta

A mo de obra kaiowa e guarani na colonizao no antigo sul de Mato Grosso ................... 359
Eva Maria Luiz Ferreira
Gustavo Costa do Carmo

O territrio Kaiowa e Guarani Documentos ....................................................................... 369


Eva Maria Luiz Ferreira
Antnio Brand
Fernando Augusto Azambuja de Almeida
Rosa Sebastiana Colman

OS POVOS RECM-CHEGADOS ........................................................................................................389

Os Camba: relaes e construes identitrias na fronteira Brasil-Bolvia ............................. 391


Ruth Henrique

Atikum: processos de territorializao de um grupo indgena do Nordeste


em Mato Grosso do Sul ........................................................................................................ 405
Gabriel Ulian

ILUSTRAES .........................................................................................................423
PARTE 5
REPRESENTAES DOS INDGENAS NAS FONTES HISTRICAS ..........................517
O mapeamento dos indgenas rio-platenses na cartografia
da conquista militar e espiritual ............................................................................................ 519
Protasio Paulo Langer

Os indgenas do antigo sul de Mato Grosso segundo os viajantes do sculo XIX .................. 535
Mrcia Campos
Sonia Maria Couto Pereira

PARTE 6
EXPERINCIAS MISSIONAIS....................................................................................553
Misses jesuticas no Itatim .................................................................................................. 555
Graciela Chamorro
Isabelle Combs
Andr Freitas

Misses de Chiquitos e povos indgenas de Mato Grosso do Sul ........................................... 571


Roberto Tomich Charup

Misso Evanglica Caiu: um iderio de f e civilizao nos


confins de Mato Grosso (1929-1970) ................................................................................ 587
Carlos Barros Gonalves
Renata Loureno

O processo de terenizao do cristianismo na Terra


Indgena Taunay/Ipegue no sculo XX ................................................................................... 613
Nomia Moura
Graziele Acolini

Misses Pentecostais na Reserva Indgena de Dourados RID:


origens, expanso e sentidos da converso ........................................................................... 631
Levi Marques Pereira
Graciela Chamorro

Misses catlicas contemporneas em Mato Grosso do Sul:


dilemas e tenses entre a Pastoral Indigenista e o Conselho Indigenista Missionrio ............. 655
Meire Adriana da Silva

PARTE 7
BANDEIRANTES E SERTANISTAS .............................................................................677
O devassamento bandeirante nos sertes do oeste: anotaes acerca da construo
do protagonismo dos desbravadores e da relevncia do papel dos ndios ............................. 679
Manuel Pacheco Neto
Ana Cludia Marques Pacheco

A conquista do serto de Mato Grosso no sculo XVIII ......................................................... 691


Glria Kok

PARTE 8
ARTE ........................................................................................................................707
A universalidade da arte e a pesquisa da produo artstica
entre os povos indgenas em Mato Grosso do Sul ................................................................. 709
Rodrigo Luiz Simas de Aguiar
Levi Marques Pereira

PARTE 9
LNGUAS .................................................................................................................727
Diversidade lingustica em Mato Grosso do Sul ................................................................... 729
Andrbio Mrcio Silva Martins
Graciela Chamorro

PARTE 10
POLTICAS INDIGENISTAS......................................................................................745
A poltica indigenista imperial na provncia de Mato Grosso
at o incio da dcada de 1850 ............................................................................................ 747
Lucio Tadeu Mota

A poltica indigenista em Mato Grosso (1845-1889) ............................................................. 765


Cludio Alves de Vasconcelos

A Reserva Indgena de Dourados: a atuao do Estado brasileiro


e o surgimento de figuraes indgenas multitnicas ............................................................ 781
Levi Marques Pereira

Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowa e guarani:


Os indgenas de Mato Grosso do Sul e a luta pela redemocratizao do pas ....................... 795
Spensy K. Pimentel

PARTE 11
TESTEMUNHOS INDGENAS ..................................................................................815
Testemunho do massacre: .................................................................................................... 817
Atade Francisco Xehit-ha Ofai

Testemunho terena de luta pela terra .................................................................................... 821


Isac Pereira Dias Hopuotx Turumo

Testemunho kaiowa sobre a Mate Laranjeira......................................................................... 827


Joo Aquino

Testemunho kaiowa sobre o espalhamento ........................................................................... 831


Tito Vilhalva

Testemunho indgena Atikum ............................................................................................... 837


Aliano Jos Vicente

Testemunhos de indgenas vivendo em contexto urbano ...................................................... 843


Dario Massi de Morais
Elizena Lima Velasque
Eulalia Lima Ramos
Marcia Ribeiro de Souza
Santa Leme da Silva

ANEXOS ...........................................................................................................................................859
Siglas de arquivos ................................................................................................................. 861
Bibliografia ........................................................................................................................... 863
ndice de Etnias, Nacionalidades, Lnguas e Tradies Arqueolgicas ................................... 911
Lista das ilustraes .............................................................................................................. 917
As autoras e os autores ......................................................................................................... 925

Prefcio
Memria, histria e futuro dos povos indgenas
Bartomeu Meli S. J.

Mato Grosso um estado indgena, no


pelo volume de sua demografia, mas pela
quantidade de povos indgenas que nele habitaram e cultivaram formas de vida prprias,
sendo cada uma delas um modo de enfrentar
a vida, de intentar viv-la de forma digna, boa
e livre. A soma das solues que esses povos
deram aos problemas do seu tempo e que
to facilmente hoje em dia so consideradas
descartveis por muitos constitui, no entanto,
uma resposta aos grandes problemas de uma
colonialidade que vai de crise em crise.
Nessa histria, entra tambm Mato Grosso do Sul que, ao se separar de sua me,
herdou muitas de suas deformaes, com um
ritmo de mudana ainda mais acelerado e
traumtico. Os colonos instalados no territrio so de outra origem e mentalidade.
H tambm nesse Mato Grosso do Sul,
que preferiu concentrar sua populao em
poucos centros para deixar livres grandes extenses de terra para o agronegcio de gado,
soja e cana, uma histria que tem caracterizado e prejudicado a relao da populao
no indgena com os primeiros habitantes
da regio, despojando-os, em menos de um
sculo e meio, de seu ser primitivo, enquanto primeiro e primordial, para reduzi-los a
uma condio secundria e dependente, tida
como irrelevante e como resto. Estas consideraes, que formuladas assim de antemo paBARTOMEU MELI S. J.

receriam superficiais e vazias de objetividade,


mais emocionais que racionais, deveriam encontrar provas histricas e sociais aceitveis.
As histrias ou crnicas dos chamados
pioneiros, sobretudo dos sculos XIX e XX, fazem passar a ideia de uma entrada heroica
num territrio virgem e desabitado, em que
tudo estava por fazer, onde, por trs dos grandes taquarais, na densa selva ou no longnquo
horizonte dos campos abertos, assomavam,
entre curiosos e estupefatos, outros homens e
mulheres, desconhecidos e temveis.
Mas, na verdade, os recm-chegados j
tinham um destino para eles: integr-los a
novas formas de colonialidade e de trabalho
colonial ou fazer com que eles fugissem para
o mais longe possvel. Obviamente, essas histrias, que nunca deixaram de ser coloniais,
tm muitas variveis e matizes. mais perniciosa delas se aplicam as palavras de Rafael
Chirbes (2013, p. 161), quando escreve: o
que melhor suporta a passagem do tempo
a mentira.
Os novos moradores gostaram das mentiras que acompanhavam e justificavam seus
interesses. Em pouco tempo, ningum mais
sabia nada dos primeiros moradores da regio. Haviam sido reduzidos a um denominador comum de gente suspeita, que, ao mesmo
tempo, era aproveitada para fazer os trabalhos
mais pesados e desagradveis.
15

As historias e situaes desenvolvidas nas


pginas deste livro, num cenrio que abarca todo o estado de Mato Grosso do Sul, vo
alm de suas fronteiras e penetram nos pases
e estados vizinhos; embora no tenham sido
projetadas nem desenhadas para reclamar e
reivindicar direitos violados, convergem numa
espcie de afinidade eletiva, como diria Goethe, em favor do direito dos povos a ter sua
prpria memria, como tm sua cultura, sua
economia e suas formas diferentes de governo.
essa perspectiva afim, na qual se situam os
autores e as autoras dos diversos trabalhos, que
d uma grande unidade a esta obra.
Esta enciclopdia de histrias indgenas
contadas ou escritas responde a uma necessidade urgente e ineludvel dos tempos modernos. simplesmente a afirmao racional
e cientfica de que a histria de Mato Grosso
do Sul no comea no momento de sua criao como estado em 1977. Ela possui uma
profundidade milenria da qual no pode
prescindir, por manter no seu seio, como raiz
e continuidade, populaes histricas anteriores entrada dos desbravadores e colonos.
Os diversos captulos desta obra chegam, na
realidade, bem na hora. So a oportunidade
de saldar as dvidas com o passado com o
nico meio, que a verdade. A questo no
comparar povos grafos, supostamente sem
histria, e povos letrados com histria.
Cada povo tem direito a sua memria e
a seu futuro, e este direito fundamental no
vai contra o desenvolvimento. A ideia no
nova, porm havia que dar-lhe corpo e visibilidadeem cada povo e em cada cultura.
Marshall Sahlins (1988, p. 12), em Islas de
historia, mostra que a diversas culturas correspondem diversas historicidades, porque
diferentes ordens culturais tm seus modos
distintivos, prprios, de produo histrica.
Tentar acercar-se de outras vises do mundo
e outras culturas e historicidades no um
exerccio de contemplao externa, seno
uma maneira de conhecermos a ns mesmos
mediante a relao que mantemos com os outros. Contar histrias falsas e sem fundamento

16

mais prejudicial, no decurso do tempo, para


quem as relata que para quem, nesses relatos,
fica com sua figura deformada e reduzida.
H uma histria de Mato Grosso do Sul
que insiste repetidamente que no h histria
de povos indgenas na regio, ou seja, que essas populaes, se alguma vez existiram, ou
j no esto ali, ou delas s ficaram alguns
restos cujo destino seria sua dissoluo num
conjunto maior que se chama populao sul
mato-grossense. Estariam condenados a no
ser. De outro lado, os povos indgenas afirmam o contrrio: que querem ser o que so e
que precisamente por isso ainda o so.
Os outros no indgenas chegaram terra
que se tornaria Mato Grosso do Sul seguindo
pautas tipicamente coloniais, como em outras
pocas e partes do continente. Para eles, o
ndio era aquele que devia morrer, no necessariamente como indivduo, mas como
pessoa, como ser diferente e livre. Neg-lo
como povo implica sua destruio como
homem e mulher diferentes. Estas populaes, que permanecem ainda entre ns e
conosco, para muitos so inexplicveis. E
pretendem neg- las de uma maneira ou de
outra; fazem-nas vir de um nebuloso lugar de
origem, distante e alheio, e enviam-nas a um
lugar sem lugar, a um lugar que no lugar.
No que toca aos povos guarani falantes,
que se definem, sobretudo, pelo tekoha o
lugar onde eles so o que so, lugar que promete e faz possvel o que sero , desde sculos se insiste em deix-los sem um lugar onde
possam pr os ps. Ento, d-se a dramtica
situao de que sem tekoha no h teko, sem
lugar onde ser, no h ser. E o mesmo acontece com os demais povos indgenas que vivem em Mato Grosso do Sul: suas identidades
transformam-se numa questo de territorialidade tambm, que no a possesso de uma
propriedade privada, mas uma terra comunitria onde se possa viver e ser. Nesse contexto,
os recm-chegados frequentemente so tidos
como de origem, enquanto os povos que lhes
precederam por sculos e milnios na regio
so considerados estranhos e intrusos, estran-

PREFCIO

geiros na sua prpria terra. Ideias to singulares como essas no s se pretende estender
como verdade indiscutvel entre a populao
recente de Mato Grosso do Sul, mas tambm
so difundidas como dogma incontroverso e,
o pior, tenta-se faz-las engolir e assimilar s
prprias comunidades indgenas.
Uma parte da populao guarani desapareceu atravs de um processo desse tipo.
Expulsaram-na de seus tekoha, roubaram-na
sem que se desse conta, foraram-na a menosprezar sua memria e seu ser e arrebataram-lhe a liberdade, empobrecendo-a no s
de bens, mas tambm do tesouro de ser diferente em igualdade de direitos com os outros.
Estas pginas, sem dvida, serviro s comunidades indgenas para conhecer-se e darse

BARTOMEU MELI S. J.

a conhecer, alimentaro sua memria. Elas lhes


faro conhecer tambm as coisas boas que se
tem dito delas e as falsidades nas quais foram
envolvidas por ignorncia, s vezes, mas sobretudo pelo interesse em torn-las irreconhecveis.
Os povos indgenas no esto no fim da
histria, seno no incio de um futuro diferente. Quem tem tido a oportunidade de
estar com eles sabe de sua sabedoria e dos
horizontes que ela nos tem aberto para pensarmos o bem viver; sabe da esperana de
que outro mundo foi e possvel. Se os povos indgenas no existissem, teramos que
invent-los. Mas no necessrio, eles reinventam-se a cada dia e amanhecem de novo
a cada manh.

17

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