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DESREGULAMENTAO, CONTRADIES
ESPACIAIS E SUSTENTABILIDADE URBANA
Henri Acselrad*
RESUMO
ABSTRACT
*Economista, doutor em Economia pela Universit Paris I - Frana. Professor-adjunto do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). e-mail: [email protected]
Artigo recebido para publicao em maro/2005. Aceito para publicao em maio/2005.
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1 INTRODUO
Nas ltimas dcadas explodiram os discursos negativistas sobre a cidade: cidades
em crise, sede de crime, violncia, degradao paisagstica e ambiental, decadncia de
infra-estruturas, carncia habitacional, declnio do emprego formal, estrangulamento da
mobilidade e poluio atmosfrica. Disseminaram-se tambm, em paralelo, discursos sobre
mudanas observveis no quadro urbano emergem novos modelos de poltica urbana, a
cidade vista como ator e ao mesmo tempo objeto de uma ao estratgica, de uma
gesto de corte empresarial, voltada para a atrao de investimentos numa competio
interurbana que pontuada pelas prticas simblicas do marketing de cidades. O urbano
ganha assim um novo cenrio de enunciao (MICOUD, 1996): ante o que alguns
entendem por crise identitria das cidades, so acionadas tecnologias do esprito voltadas
para uma recomposio das subjetividades urbanas. A cidade redescoberta como espao
de ao dramtica1, onde as best practices (as boas prticas, propugnadas pelas agncias
multilaterais) constituem um enredo para a mobilizao apaixonada dos cidados (com os
indicadores de sustentabilidade urbana servindo a orientar metaforicamente a marcao
dos movimentos dos atores no palco deste drama). A identidade das cidades torna-se
assim, cada vez mais, um instrumento de legitimao dos operadores polticos que pretendem
resgat-la no mais como circunscrita a seu tempo presente, mas como referente a um
passado de glria e a um futuro radioso (LUSSAULT, 1997). Para alguns, estaria em curso
uma mudana na natureza da identidade simblica das cidades, marcada pela competio
crescente entre lugares e pela maior importncia que a representao estaria assumindo
em relao ao prprio objeto que representa (PEIXOTO, 2000, p.102). D-se assim, de
forma questionvel, um grau de autonomia esfera simblica que dificulta o entendimento
de suas articulaes com a esfera das prticas espaciais urbanas. Suporemos aqui, ao
contrrio, que entre o jogo das representaes e a reconfigurao prtica do prprio objeto
no h uma hierarquia de importncia. Tentaremos, antes, entender a natureza das relaes
que hoje podem explicar, ao mesmo tempo, o sentido da reconstruo simblica da identidade
das cidades movimento este que compreende a prpria proposta de cidades sustentveis
e os processos sociais e materiais que lhe esto subjacentes.2
O debate sobre sustentabilidade est marcado por uma diversidade muito grande de perspectivas de abordagem.
Tal como aparece, em meio a uma questo ambiental construda progressivamente ao longo dos ltimos trinta anos, a noo
de sustentabilidade uma inovao discursiva, certamente emprestada s cincias biolgicas. Estas ltimas, por sua vez, j
a haviam formulado sob uma concepo fortemente economicista dos sistemas vivos, ou seja, luz de uma analogia entre
os processos biolgicos e aqueles de determinadas economias, mais especificamente de economias produtoras de excedentes.
Nesta perspectiva, a noo de sustentabilidade da Biologia pensou os sistemas vivos como compostos de um capital/
estoque a reproduzir e de um excedente/fluxo de biomassa, passvel de ser apropriado para fins teis sem comprometer
a massa de capital originrio. Podemos observar toda uma trajetria desse conceito de uma para outra disciplina cientfica
at o mesmo aparecer no final do sculo XX como uma noo relativamente corrente no debate pblico. Neste mbito,
tratar-se- de uma construo discursiva que colocar em pauta os princpios ticos, polticos, utilitrios e outros, que
orientam a reproduo da base material da sociedade. Ao faz-lo, essa noo, nos seus mltiplos contedos em discusso,
pressupe um processo de redistribuio de legitimidade entre as prticas de disposio da base material das sociedades.
Em funo do tipo de definio que prevalea e se estabelea como hegemnica, as prticas sociais sero divididas em mais
ou menos sustentveis, entre sustentveis e insustentveis; portanto, sero legitimadas ou deslegitimadas, retirando-se e
atribuindo-se respectivamente legitimidade a essas diferentes formas de apropriao.
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Verifica-se que tal expediente cria uma barreira de proteo com relao ao outro que torna-se uma armadilha
para si prprio; cria-se, no sentido de Agamben, uma zona de indistino, da qual ningum est livre priso para todos.
(DIKEN; LAUSTEN, 2002).
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Ao interrogar-se sobre o bilingismo hierrquico conhecido por diversas sociedades, o historiador Marc Bloch,
citado por Depaule e Topalov, afirma: [...] esta oposio entre duas lnguas, forosamente diferentes, configura, de fato,
apenas o caso limite de contrastes comuns a todas as sociedades. At mesmo nas naes mais unificadas, cada pequena
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(adeso social e estabilizao poltica por neutralizao dos conflitos), tendo o planejador
o papel de promotor do multilingismo negocial. Ao Estado restaria a mediao dos
conflitos, os quais no passariam, porm, pela esfera poltica, sendo resolvidos caso a
caso, privatizados. Como sugere, segundo lgica similar, Sabatini: a filosofia de fundo
que o melhor compatibilizar interesses, por certo dentro dos limites ambientais e polticos
fixados por lei (normas ambientais e direitos cidados). Assim, prossegue ele, o planejador
poderia desempenhar importante papel quando um projeto que interessa ao municpio
rechaado por poderosas organizaes de moradores (SABATINI, 1999, p.32). Poderia
tambm evitar o risco de que a eventual realizao de um Estudo de Impacto Ambiental
e o cumprimento das instncias de participao contempladas na legislao favoream a
ocorrncia de um conflito ambiental aberto (SABATINI, 1999, p.33). Caberia ao planejador,
portanto, neste esboo de instituio reguladora, evitar a ecloso de conflitos e favorecer
a estabilizao poltica dos mesmos. A norma fordista agora flexibilizada atravs de
mecanismos de legitimao aos quais o planejador o Estado chamado a colaborar.
Neste contexto, os conflitos mais difceis de resolver, segundo Sabatini (1999, p.34),
sero justamente aqueles relativos aos usos do solo localmente indesejveis, porque
neles a oposio local tende a ser total, excluindo o espao necessrio de negociao
para superar o conflito (SABATINI, 1999, p.34). Como solues sero apresentadas as
tcnicas de participao em negociao supralocal (onde, dependendo da natureza dos
mecanismos de participao, o processo pode politizar-se ou, em caso de
profissionalizao das tecnologias de consenso, despolitizar-se) ou negociao de
compensaes (ou seja, sua privatizao, com pagamento da anuncia dos indivduos
prejudicados/ monetizao das perdas) (SABATINI, 1999, p.34-35).
CONSIDERAES FINAIS
A atual crise urbana tambm uma crise de constituio de um novo modo de
regulao para as cidades modo este que se quer compatvel com as dinmicas de um
capitalismo flexvel. Esta crise tem-se alimentado das novas contradies espaciais
verificadas na cidade, seja por via de processos infra-polticos (da chamada violncia
urbana), seja por via de processos polticos aqueles pelos quais se vem crescentemente
denunciando e resistindo dualizao funcional da cidade entre reas ricas e relativamente
mais protegidas e reas pobres submetidas a todo tipo de risco urbano. A busca de
cidades sustentveis, inscritas no metabolismo de fluxos e ciclos de matria-energia,
simbitica e holstica remete, por certo, pretenso de se promover uma conexo
gestionria do que , antes de tudo, fratura poltica.
Em cada definio da sustentabilidade urbana encontraremos, por certo, o
embrio de diferentes projetos de futuro para as cidades (ACSELRAD, 2001). Tem-se
observado, com efeito, a pretenso dos atores hegemnicos de fazer do discurso da
coletividade profissional, cada grupo caracterizado pela cultura ou pela fortuna possui seu sistema de expresso particular.
Com efeito, completam Depaule e Topalov, nestes casos as lnguas devem comunicar e as solues a este problema sero
marcadas por uma negociao desigual entre os locutores (DEPAULE; TOPALOV, 2004).
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