Memória 1-Roland-Walter PDF
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Roland Walter
(UFPE)
Il nest frontire quon noutrepasse
(Edouard Glissant, 2006).
To survive the Borderlands/you must live sin
fronteiras/be a crossroads
(Gloria Anzalda, 1987).
Resumo
Baseando-se nas noes que giram em torno da passagem de limite nos planos fsico e
cultural (transcultura, heterotopia, crioulizao, glocal, transfronteirio), este texto relata o
dilogo apaixonante que travam em suas obras com seus hspedes/seus outros, escritores da
dispora americana, em particular uma pliade de autores antilhanos, chicanos, haitianoquebequenses e brasileiros.
Rsum
En se basant sur des notions qui tournent autour du passage des limites sur les plans physique
et culturel (transculture, htrotopie, criolisation, glocal, transfrontalier), ce texte rend
compte du dialogue passionnant que les crivains de la diaspora amricaine,- en particulier
une pliade dauteurs antillais, chicanos, haitiano-qubcois, brsiliens,- tablissent dans
leurs oeuvres avec leurs htes et leurs autres.
Resumen
Basndose em las nociones que dicen respecto al paso de limite em los planos fsico e
cultural, este texto relata el dilogo apasionante que traban em sus obras com sus
huspedes/sus otros, escritores de la dispora americana, em particular una pliade de autores
antillanos, chicanos, haitiano-quebequenses y brasileos.
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico, Brasil
seu
cronotopo
heterotpico)
mediante
dinmica
dinmica das formas e prticas culturais moldadas de maneira fractal, ou seja sua
natureza transcultural.
A trans-cultura e os diversos processos de transculturao nela implcito
determinam a globalizao. A globalizao, seja ela definida como a intensificao das
relaes sociais mundiais que ligam locais distantes de tal maneira que acontecimentos
locais so moldados por eventos que ocorrem a muitas milhas de distncia e viceversa ( Giddens, 1990: 64) ou como fluxos disjuntivos de pessoas, capital, tecnologia,
imagens e ideologias (Appadurai, 1996) ou ainda como conglomerao de foras e
prticas em luta contra o aumento de controle corporativo sobre educao, gua,
pesquisa cientfca (Klein, 2002: 126) as polticas neoliberais do dumping social
introduz as noes de desterritorializao, disperso e hibridismo dentro de uma cultura
global de certa maneira sem razes e contextos fixos.1 Esta disseminao global da
economia e cultura baseada num paradigma liberal, porm, tem que ser visto junto com
as razes culturais
renovarem no espao glocal. Como que figura a identidade do sujeito e sua cidadania
nesta encruzilhada transcultural?
Em sociedades multi-tnicas, a questo da identidade traduz como diversos
fatores socialmente determinados e atribudos interagem para definir o epistme (ethos e
cosmoviso) de um povo, ou seja, a ordem do saber enquanto base de como uma
comunidade v-se a si mesmo e o mundo. Isto inclui a posio do sujeito dentro da
sociedade num dado tempo e lugar. Portanto, pode-se destacar as seguintes
identificaes identitrias significativas: raa, etnicidade, gnero, idade, classe e
sexualidade. Em nossos tempos de mobilidade diasprica estas identificaes traduzem
uma identidade em processo porque constituda por posies glocais, ou seja uma
pertena translocal e transcultural. O que significa isto em termos de cidadania?
Segundo Gibbins, Youngman e Stewart-Toth (1996: 271) "a cidadania [] o
status do indivduo em relao com seu pas, o Estado e eles mesmos. Ela refletiu a
emergncia do individualismo liberal e uma crescente nfase democrtica sobre a
liberdade e igualdade. Enquanto construo legal e formal ela significa que os cidados
desfrutam de direitos e tm obrigaes dentro dos limites territoriais dos seus Estadosnaes. A construo formal de cidadania desenvolveu e pode ser conferida hoje em
dia com base no lugar de nascimento ou tempo de residncia. O reconhecimento
formal, porm, no garante a aceitao social ao cidado na comunidade. A
discrepncia entre cidadania formal e cidadania informal tem implicaes significativas
para a construo de identidade e a afeio pela comunidade. Ou seja, nas palavras de
Hall e Held (1989: 175), a poltica da cidadania comea com a questo de quem
pertence e quem no pertence. Ento, cabe se perguntar como e em que circunstncias
se estabelece a cidadania numa era na qual migraes glocais criam identidades
hifenizadas e/ou diaspricas ancoradas entre comunidades, lugares, regies, naes,
continentes e culturas? O que significa, de fato, uma cidadania transcultural,
multicultural, diasprica, cosmopolita e transtnico-racial entre razes e rotas e em
sociedades ditas democrticas nas quais alguns grupos so hifenizados e outros no, e
onde a distncia entre a democracia real e a democracia formal est crescendo enquanto
que a liberdade poltica do indivduo est diminuindo?2 Se fronteiras enquanto lugares
de passagem e transformao so necessrias para se relacionar (Glissant, 2006), resta
saber como podemos tornar fcil e justa a passagem das fronteiras e limites? Como
2
Ver, Isin and Wood (1999), Kymlicka (1995), Laguerre (1998) , Ong (1999, 2006) e Joseph (1999)
designa
um
entre-lugar
carcterizado
por
desterritorializao
fronteiria/diasprica/transnacional/transcultural,
portanto,
envolve
chicana Gloria Anzalda: To survive the Borderlands/you must live sin fronteras/be a
crossroads. Viver sem limites e fronteiras, tornar-se uma encruzilhada diasprica
significa que a subjetividade evocada nesta existncia constituda por mltiplas
trajetrias histricas, lingsticas, etnoraciais, culturais. Significa abrir-se para os outros
fora e dentro de si, ou seja, aceitar e respeitar diferenas. Ou seja, a construo social de
lugares em espaos transnacionais e transculturais informa a episteme. Portanto,
crucial lembrar que noes de identidade, ethos, cosmoviso, lugar, espao, fronteira,
tempo e o agir interagem, se interpenetram e se caracterizam mutuamente.
O conceito da dispora contempornea, portanto, oferece no seu discurso uma
crtica dos discursos de origens fixas enquanto leva em conta aqueles que ficaram atrs
ou encontraram razes fixas ou rizomticas em um lugar ou entre lugares. A ptria
enquanto autntico lugar de pertena cultural nostlgicamente lembrado suplementado
pelo que Avtar Brah (1996: 180) chama de um desejo por um lar (que difere de um
desejo por uma ptria). Esta distino importante no sentido de que nem toda dispora
sustenta uma ideologia de volta mesmo que as condies de vida dificultem se sentir em
casa no novo pas volta esta que no caso da dispora africana era impossvel. Desta
forma, a teorizao na/da encruzilhada diasprica transcultural pode fornecer uma
compreenso anti-essencialista de formaes identitrias e de cidadanias interculturais e
transnacionais.
Inscrita na idia da dispora a noo da fronteira. Como linhas divisrias de
diferenciao espacial, temporal e cultural, fronteiras distanciam a identidade interna da
alteridade externa, e como entre-espaos compartilhados ligam-nas. Estabelecem
hierarquias entre o interior e o exterior e dentro destes. Assim, elas contm as diferentes
formas de diferena ao transformar os sujeitos em estrangeiros e/ou ilegais (perigosos),
fora do real inteligvel, normal e/ou humano. Simultaneamente, as fronteiras e seus
entre-espaos so reproduzidos e re-imaginados para subverter esta conteno no
processo da resistncia subalternizao e marginalizao. As fronteiras e os espaos
fronteirios, portanto, constituem o terreno onde as identidades so vividas e
imaginadas numa interao tensiva de estase cultural (diferena enquanto separao) e
transgresso cultural (diversidade enquanto relao). Fronteiras conotam estase cultural
ao canalizar a identidade cultural para epistmes nacionalmente identificadas enquanto a
transgresso destas fronteiras revela espaos intersticiais onde as diferenas culturais
so traduzidas para relaes interculturais de uma pluralidade simbitica e/ou sinttica.
justapostas,
contestadas,
afirmadas
negadas
onde
aquilo
que
207) observou de maneira convincente, deve ser entendida menos como uma
transmisso de uma memria intacta de uma gerao para outra ou mesmo como um
processo constante dentro de um grupo tnico, do que como um processo contnuo de
negociao entre os atos de rememorizao e de esquecimento. Alm disso, a memria,
como JanMohamed e Lloyd (1990: 6) alegam, um dos mais importantes meios contrahegemnicos para a auto-afirmao no discurso contemporneo das minorias: "Um
aspecto da luta entre a cultura hegemnica e as minorias a recuperao e mediao de
prticas culturais que continuam estar sujeitas ao 'esquecimento institucional' que, como
uma forma de controle da memria e histria, uma das mais graves formas de prejuzo
impostas s culturas minoritrias". O esquecimemento institucional as vrias formas
de falsificao e distoro intencional das histrias de dominao e resistncia (ps)coloniais deve ser visto em conexo com o esquecimento individual por parte do
sujeito subalterno. A tentativa de assimilar na cultura dominante ou de cruzar as
fronteiras entre comunidades minoritrias pode implicar um esquecimento de razes
culturais e resultar em conflitos sociais e psicolgicos. Dado o fato que as estruturas
estveis de padres culturais esto desaparecendo e que as comunidades tnicas se
moldam mutuamente num processo de transculturao, a memria tnica evoca a
relao dinmica entre a identidade individual e coletiva na interface temporal, espacial
e cultural de uma sociedade. Na literatura multi-tnica contempornea, essa memria
muitas vezes utilizada como um artifcio contra-hegemnico de retificao histrica, de
"insurreio do saber subjugado" (Foucault, 1972: 81) que revela aqueles elementos que
foram esquecidos ou falsificados. Essa duplicao dos signos culturais dominantes via a
memria subalterna a reinscrio do passado no presente a partir de uma perspectiva
tnica especfica acrescenta algo 'novo'. Nesse processo, ela cria simultaneamente o
prprio espao que fornece o terreno para uma articulao da diferena cultural. Se
segundo Gayle Greene (1991: 298), "... o processo de esquecimento o obstculo
principal mudana", ento a memria funciona como um motor de transformao,
"uma poderosa fora insurgente" (Singh, Skerrett, Hogan, 1996: 14) que traz, mesmo
que somente por momentos transitrios, possibilidades de relocalizao individual e
coletiva em resposta ao desenvolvimento global desigual. Essa forma produtiva de usar
a memria enquanto campo de luta contra o esquecimento e para um acesso igualitrio
significao que serve para iluminar e transformar o presente deve ser distinguida
segundo bell hooks (1990: 147), "da nostalgia, aquele anseio por algo que foi uma vez,
um ato intil". Ademais, a narrativizao de acontecimentos traumticos, muitas vezes
escrita esboa possveis caminhos de cura tanto das fissuras e vazios produzidos pela
no-incluso das experincias locais nos processos mitopoticos e discursivos quanto da
concomitante internalizao do sistema de valores da cultura dominante.
No seu romance La Brlerie (2004), o escitor afro-canadense mile Ollivier
continua focalizar a temtica que imbui toda a sua obra; a saber: o exlio, a existncia
entre lugares, tempos e culturas. Em contraposio ao romance Passages, onde a trama
estruturada mediante as viagens fsicas de seus personagens, em La Brlerie o leitor
acompanha a viagem mental do narrator. Sentado no caf La Brlerie no distrito Ctedes-Neiges de Montral, onde se encontra com compatriotas da dispora haitiana, o
narrador v no fluxo dos transeuntes o smbolo de uma vida annima em Montral,
esta terra de passagem, e da existncia intervalar dos haitianos, estas personagens
annimas no meio do anonimato, transparentes e visveis no seio de um mundo
invisvel (12). Esta imagem nos apresenta (um lugar especfico em) Montral enquanto
no-lugar de passagem no sentido de Aug, onde os fluxos culturais so justapostos em
vez de entrelaados e/ou sobrepostos. Estamos longe, portanto, de um Canad enquanto
mosaico multicultural caracterizado por compromisso, harmonia e igualdade (Adams,
2004: 123); o primeiro pas do mundo que desde 1971 e especialmente desde 1988
(Multicultural Act), faz do multiculturalismo a plataforma poltica para o convvio dos
seus cidados.
Para Cecil Foster o Canad um pioneiro, um farol da paz na viagem
utpica em direo a um pas e mundo onde a raa no importa. Este novo esprito
expressa a esperana, os sonhos e o idealismo
uma desterritorializao a outra dentro de uma sociedade que tem medo de tudo o que
diferente (70-71, 123, 142). Contrrio opinio de Foster, o Canad sombrea num
mundo global de medo onde atrs dos slogans tipo sem fronteira esto espreita
novas e antigas muralhas e limites: Que bom paradoxo! Fazemos voluntariamente o
elogio da mundializao; celebramos ad nauseam o levantamento das fronteiras;
apelamos com todos os nossos votos o espao aberto, a mistura das culturas, o ar da
grande amplitude. Entretanto somos incomodados por estes viagantes, estes homens
desabrigados (153). Montral, na obra de Ollivier, aparece como lugar annimo (se
no racista) de difcil adaptao para os imigrantes haitianos.3 O que o narrador de
Ollivier busca a unio-em-diferena multicultural que no existe (ou que ele incapaz
de encontrar e/ou praticar?): No se pode ficar vrios ... receber em ns a diversidade
que deveras ns constitui? (130). Aqui as diferenas culturais so fissuras de excluso
e separao que no constituem uma diversidade relacional.
Como que esta delineao da sociedade canadense combina com o que
Patrick Imbert (2005: 36) chama a capacidade do Canad de blend [misturar] as
diferenas culturais nas relaes sociais do dia-a-dia por meio da qual compreende
compartilhar seu saber com os outros? Ele alega que o que caracteriza a sociedade
canadense consensual disagreement (desacordo consensual), ou seja, sua
capacidade de realizar-se com base nas contradies no-resolvidas ... ao contectar ...
tendncias opostas numa tenso eficiente que leva em conta uma maneira original de
promover expanso cultural, social e econmica (Imbert, 2005: 10, 7). Sem querer
negar esta capacidade capacidade terica e prtica que serve como base para o
pensamento de Foster me incomodam duas coisas. Primeiro, a generalizao destas
declaraes: ser que esta capacidade existe em todo o Canad ou especificamente em
Toronto, Montral eVancouver? Segundo, o verbo blend (misturar) que Imbert usa.
Ao escolher este e no outro verbo para expressar mistura, Imbert conota a fuso das
fissuras culturais. Como que este processo funciona e com que efeitos concretos
dentro do multiculturalismo canadense? No que as fissuras culturais e suas tenses
racismo, sexismo e outras formas de violncia explodem qualquer tipo de consenso
cultural? Estamos aqui confrontados com a trans-cultura enquanto limen, um processo
cultural de apropriao, desapropriao e reapropriao enquanto passagem para a to
desejada multi-cultura? Ou, pelo contrrio, ser que este objetivo sempre diferido, em
3
Na obra da escritora Dionne Brand, tambm Toronto aparece longe do ideal multicultural. Em Brand
e Ollivier, portanto, o Canad carece da capacidade de fuso cultural.
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