Os Ingovernáveis Silvio Munari Ufscar

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

SILVIO RICARDO MUNARI MACHADO

OS INGOVERNVEIS

2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS


CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

SILVIO RICARDO MUNARI MACHADO

OS INGOVERNVEIS

Dissertao apresentada ao Programa


de Ps-Graduao em Educao da
Universidade Federal de So Carlos,
para obteno do ttulo de Mestre em
Educao, na rea de Educao.
Orientao: Prof Dr Anete Abramowicz

SO CARLOS
2013

Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da


Biblioteca Comunitria da UFSCar

M149in

Machado, Silvio Ricardo Munari.


Os ingovernveis / Silvio Ricardo Munari Machado. -- So
Carlos : UFSCar, 2013.
97 f.
Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So
Carlos, 2013.
1. Educao. 2. Arquivo. 3. Resistncia. 4.
Governamentalidade. I. Ttulo.
CDD: 370 (20a)

RESUMO
A partir de um arquivo constitudo por vinte cadernos de campo, que registraram
uma experincia em coordenao pedaggica no projeto social Po & Beleza (entre
2007 e 2010), realizado pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis RJ, o presente trabalho buscou pensar em modos de resistncia ao governamento
da vida na contemporaneidade, tendo como referncia os modos de vida de um
grupo de moradores de rua atendidos pelo projeto acima mencionado, os quais
foram denominados ingovernveis. Trabalhamos com este arquivo utilizando
ferramentas tericas forjadas pela filosofia da diferena, principalmente os autores
Michel Foucault e Gilles Deleuze, buscando realizar uma cartografia conceitual. Esta
cartografia tem os afetos como primeiro passo para a elaborao conceitual, ou seja,
primeiro deixa-se afetar pelas foras presentes na pesquisa. So esses afetos que
nos foram a pensar e, desse modo, criar meios para tornar visveis e dizveis estas
foras prprias do campo das sensaes. Tomamos, ento, os conceitos de
inconstncia, recusa e coragem da verdade para traar os contornos do nome
comum ingovernveis. A inconstncia, que est entre a aceitao de um certo modo
de governo dos outros sobre si mesmo e a afirmao do governo de si sobre si
mesmo; a recusa, como gesto fundador de um modo de vida ingovernvel; e a
coragem da verdade, de inspirao Cnica, que um desdobramento e um
complemento da recusa.

Palavras-chave: Arquivo Resistncia Ingovernveis

ABSTRACT
The present study aimed to consider ways of government resistance in contemporary
life. The study has started from an archive consisting of twenty field notebooks, which
registered an experience of pedagogic coordination in a social project called Po &
Beleza (between 2007 and 2010), realized by Centro de Defesa dos Direitos
Humanos de Petrpolis RJ. As reference of life a group of homeless, people
served by the project mentioned above, which in this study were called
ungovernable, has been taken. To work with this archive the conceptual tools forged
by the philosophy of difference and its authors Michel Foucault and Gilles Deleuze
has been used seeking to draw a conceptual cartography. This cartography has the
affections as a first step towards the conceptual elaboration, ie, first let themselves
be influenced by the forces present in the research. These affects force us to think
and thereby to create means to make visible and sayable these forces that belongs
to the field of sensations. The inconstancy, refusal and courage or truth are the
concepts used to outline the common name ungovernable. The inconstancy, which is
between the acceptance of a certain mode of government of others over himself and
the government of the self over the self; refusal, founding gesture of an ungovernable
way of life, and the courage of truth, inspired by cynical, which is an offshoot and a
complement of refusal.

Key-words: Archive Resistance Ungovernable

SUMRIO

Introduo ....................................................................................................

08

Parte I ............................................................................................................

12

Maurcio ............................................................................................................

13

Pr-histria .......................................................................................................

15

Primeira fase do projeto Po & Beleza: Espao Cidado ................................

16

Segunda fase Espaos de Cidadania ............................................................ 19


Observao: ininstitucionalizveis .................................................................

22

Limites da escrita .............................................................................................

23

Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis CDDH ..................... 26


Direitos Humanos, direitos dos pobres ............................................................

28

Das Comisses de Justia e Paz aos Centros de Defesa de Direitos


Humanos ..........................................................................................................

30

Grito da Terra, grito dos pobres: a presena de Leonardo Boff ......................

32

Marcas polticas e pedaggicas .......................................................................

34

Parte II ...........................................................................................................

35

Arquivando o prprio eu ...................................................................................

36

Arquivos ............................................................................................................

38

Privatizao do comum ....................................................................................

41

Paixes tristes ..................................................................................................

49

Andr ................................................................................................................

52

Animal Arisco ....................................................................................................

53

... Domesticado esquece o risco ....................................................................... 56


Parte III .......................................................................................................... 57
Do afeto ao pensamento ..................................................................................

58

Nem todos so ingovernveis ..........................................................................

60

Punks ingovernveis ........................................................................................

62

Ingovernveis enquanto pesquisa acadmica .................................................. 63


A arte de no ser governado ............................................................................

65

Governo ............................................................................................................

67

Implicaes para pensar os ingovernveis ....................................................... 70

Tcnicas mendicantes ......................................................................................

71

Constantes em sua inconstncia ......................................................................

72

Recusa .............................................................................................................. 76
Coragem da verdade ........................................................................................

79

Sintetizador .......................................................................................................

81

Final ................................................................................................................

83

Pedagogo-militante ...........................................................................................

84

Pedagogo-esgotado .........................................................................................

86

Pedagogo-pesquisador ..................................................................................... 87
Ingovernveis como nome comum ...................................................................

89

Ingovernveis como composio .....................................................................

90

ltima pgina ....................................................................................................

91

Referncias ..................................................................................................

92

INTRODUO

No fundo, esta dissertao de mestrado nasceu h sete anos,


quando pisei pela primeira vez no Centro de Defesa dos Direitos Humanos de
Petrpolis (CDDH). Foi na noite de trs de julho de 2006, quando eu ainda era
estudante de um curso de pedagogia e estava escrevendo meu trabalho de
concluso de curso: uma monografia sobre a pedagogia do cuidado no projeto
Po & Beleza Espao Cidado1.
Pretendo dar um carter diferente ao trabalho ora apresentado,
considerando que naquela monografia quis compreender uma dimenso muito
especfica do projeto Po & Beleza: as atividades socioeducativas conhecidas
como Grupos de Referncia. Agora tenho a inteno de pensar outras questes a
partir dos quatro anos em que atuei como coordenador pedaggico deste mesmo
projeto.
Evoco

monografia

no

porque

ela

traga

informaes

indispensveis para a redao deste texto, mas sim por uma frase em especial,
escrita ao final do primeiro captulo, que traduz um pouco do esprito que toma
conta de mim quando revisito o material utilizado para realizar a pesquisa de
mestrado. A frase foi escrita a propsito de minha viagem a Petrpolis ainda em
2006, quando estava elaborando a j referida monografia, e tentava registrar em
palavras o quanto os dez dias desta viagem produziram memrias em meu corpo.
Eis a frase: Retornei. Sem nunca ter sado de l.
De certo modo ainda uma frase potente, j que para escrever este
texto, esta dissertao, tenho a proposio de explorar um arquivo constitudo por
vinte cadernos, cadernetas, agendas, blocos de notas, produzidos ao longo dos
anos em que l trabalhei entre maro de 2007 e setembro de 2010. Trata-se, de
certo modo, de tecer algumas narrativas. A histria da prpria organizao, a
1

MACHADO, Silvio Ricardo Munari. A Pedagogia do Cuidado no projeto Po & Beleza. 1996.
52f. Monografia (Licenciatura em Pedagogia). Universidade Estadual Paulista, UNESP, Rio Claro,
1996.

histria do prprio projeto. Ao mesmo tempo, trata-se de tentar pensar a partir de


encontros que se fizeram ao longo de minha atuao no projeto e, talvez mais
importante, a partir de meu prprio encontro com este arquivo, com estas
memrias.
Nesse sentido, ao pesquisar meu arquivo no busquei pensar o
quanto a trajetria de uma organizao como o CDDH pode colaborar com
respostas s perguntas que o presente nos coloca hoje, quando, passadas trs
dcadas desde o fim da ditadura civil-militar, o Brasil figura como um dos Estados
que mais torturam e mais matam no mundo. A pesquisa deste arquivo quer
pensar sobre modos de governo da vida e sobre modos de governo de si mesmo.
A motivao inicial da pesquisa era retomar a Pedagogia do
Cuidado, eixo central do projeto Po & Beleza, e produzir uma anlise da mesma
a partir dos estudos que Michel Foucault realizou em torno da Antiguidade GrecoRomana, tomando como chave de leitura a noo de cuidado de si. Contudo, a
leitura do arquivo orientou minha pesquisa para uma direo diferente: a categoria
governo tornou-se a principal chave de leitura.
Esta reorientao ocorreu em funo da recorrncia, em diversas
pginas dos cadernos que compem meu arquivo, dos nomes de algumas
pessoas atendidas pelo projeto. Eram poucas pessoas, tidas como loucas,
drogadas, vagabundas, mendigas, bandidas, etc., e que nunca deixaram de ser
mencionadas, ao longo daqueles quatro anos, em reunies de equipe, em fruns
e redes de atendimento, em audincias pblicas, em jornais e programas de rdio
e TV.
Alm dessa insistente presena em meus registros, existe a fala
muito potente de um morador de rua, que sempre colocou em xeque os objetivos
e metas do projeto e, em algumas ocasies, os prprios modos de vida dos
trabalhadores da organizao. Este homem, negro, de 31 anos, desde criana
vivendo nas ruas, dizia que era muito grato ao atendimento oferecido pelo CDDH
e pelo projeto Po & Beleza, mas que preferia no ter acesso a este projeto em
caso de ser obrigado a abandonar seu modo de vida para, ento, viver do mesmo
modo que ns, os trabalhadores da organizao.

10

A recorrncia destas questes em meus escritos, muitas vezes


breves menes numa ou noutra pgina, no apenas referentes a acontecimentos
internos ao projeto, como tambm em relao cidade como um todo, levou-me a
considerar seriamente a possibilidade de extrapolar a prpria vivncia registrada
em meu arquivo e realizar uma experincia de pensamento, a partir destas vidas
insistentes e sempre incmodas aos poderes constitudos. E, para levar isto
adiante, passei a trabalhar a partir de um nome comum: ingovernveis.
Assim como esto por todas as partes os modos massivos de
governo, tambm esto por todas as partes as iniciativas, individuais ou coletivas,
de experimentar outras formas de governo. Penso nas crianas que no passam
os dias inteiros docilmente sentadas nas carteiras das salas de aula e tem sido
largamente medicalizadas por essa recusa. Penso na assim chamada epidemia
de crack e na violenta cruzada que vem se alastrando pelo pas pedindo pela
internao compulsria daqueles que recusam a sade dominante. Penso nos
adolescentes e jovens em conflito com a lei e o clamor da sociedade pela reduo
da maioridade penal. Nos artistas de rua frequentemente barbarizados pela
polcia e pelas prefeituras do pas. Outros? Possivelmente!
Este estudo parte ento dos encontros que tive durante os anos de
trabalho no projeto Po & Beleza com pessoas, categorizadas como velhas,
malucas, vadias, putas, vagabundas, bandidas, drogadas, hippies, etc. Pessoas
que tem outros modos de governo ou desgoverno de suas vidas, e mesmo outros
modos de vida, em relao quilo que pode ser definido como normal, legal,
saudvel, bonito, educado.
A Parte I procura desenvolver uma narrativa sobre a organizao no
ponto em que se cruzam a teologia da libertao, os direitos humanos e a
presena de Leonardo Boff, presidente de honra da organizao e grande
expoente no Brasil contemporneo de uma obra sobre o cuidado.
Na Parte II o desafio foi criar um texto a partir dos 20 cadernos que
compem meu arquivo, enumerados de 001 a 020. nesta parte que procuro
trazer tona a experincia vivida em Petrpolis e os modos pelos quais toda uma

11

cidade pode ser mobilizada a partir do mais abjeto, do indesejado, do


ingovernvel.
A Parte III um exerccio de pensamento. Pensar a partir das
narrativas das duas partes precedentes e tentar realizar uma composio em
torno do nome comum ingovernveis. No se trata de fazer o papel da filosofia e
criar conceitos, j que nem sequer trata-se de um trabalho na rea da filosofia.
Trata-se de pensar a partir de ferramentas forjadas nas lutas que se
desenrolaram na interface entre direitos humanos, educao popular e
assistncia social e sua composio com outras ferramentas conceituais e, assim,
tentar forjar uma nova ferramenta para potencializar estas e outras lutas.
Este exerccio de pensamento culmina na ltima parte, onde procuro
demonstrar a composio conceitual em torno do nome comum ingovernveis.
Nesta ltima parte tambm busquei explicitar uma hibridizao entre a pedagogia
e a militncia. As figuras subjetivas do pedagogo-militante, do pedagogo-esgotado
e do pedagogo-pesquisador foram meios de tentar trazer ao primeiro plano uma
relao que atravessa todo o texto, mas que no se faz de imediato perceptvel: a
relao entre a pedagogia e os ingovernveis.

PARTE I

13

MAURCIO

Em 2007 Maurcio contava 31 anos de idade. No era difcil localizlo nas imediaes do centro histrico da cidade de Petrpolis/RJ, desde que
fornecidas cinco informaes: mendigo, homem, negro, que no tem os dentes
da frente e cheira cola de sapateiro.
Maurcio relatava viver nas ruas da cidade desde a infncia, ter tido
famlia adotiva, e muitos outros detalhes que, possivelmente, sejam os detalhes
das vidas de outros tantos que vivem pelas ruas do Brasil contemporneo.
H algo no modo como Maurcio vivia que, talvez, no possa ser
considerado uma caracterstica pessoal. Este algo diz respeito ao modo como
se relacionava com as muitas instituies de natureza pblica ou privada, que o
procuravam pelas ruas por motivos muito dspares: fornecer alimentao, doar um
cobertor, oferecer uma orao, garantir seus direitos, oferecer internao em uma
clnica para viciados, retir-lo das ruas.
Maurcio, assim como tantos outros que estavam nas ruas, aceitava
os alimentos, as oraes, a ajuda para conseguir seus direitos, at mesmo dar
uma volta nas peruas e vans que conduziam as pessoas que estavam nas ruas
at o abrigo municipal ou s comunidades teraputicas dos arredores. Aceitava
isso e talvez mais coisas no sabemos.
O que Maurcio no aceitava era que tentassem conduzir suas
condutas. Conduo que acompanhava as muitas ofertas que recebia: se no
cheirasse mais cola hoje, amanh receberia mais sopa; se tomasse um banho
hoje, receberia roupas limpas; se deixasse sua lata de cola na rua, poderia passar
a noite no abrigo; se aceitasse realizar um tratamento de desintoxicao,
receberia um emprego.
Maurcio tinha modos mais ou menos cordiais de responder a cada
uma destas promessas e condies que tinham como premissa a necessidade de
mudana. A forma das respostas dependia de critrios conhecidos somente por

14

ele, aprendidos consigo mesmo ou com outros, com o objetivo de preservar seu
modo de vida em relao s instituies que lhe assediavam e lhe propunham
que renunciasse a si mesmo.
No projeto social onde trabalhei, estes modos de recusa foram
diversos: algumas vezes gritos, outras ausncias prolongadas; outras vezes,
ainda, um simples no, eu agradeo, mas estou bem assim ou olha, agora no
posso falar com a assistente social porque preciso fazer minha caminhada, cuidar
da minha sade, n?.
Outras vezes, contudo, esta recusa assumiu a forma de uma
resposta muito bem elaborada, capaz de colocar em xeque no apenas nossos
mtodos pedaggicos e nossos honrados princpios, mas tambm nosso prprio
modo de vida. Mais ou menos assim: olha, sr. Silvo, eu agradeo a oportunidade
que vocs me do aqui, de poder tomar um banho, de me alimentar, os pessoal
aqui so muito gente fina comigo mas, com todo respeito, eu no quero mudar de
vida para ter que pagar aluguel, pagar conta de gua, conta de luz, para ter que
ficar escutando uma mulher me enchendo a pacincia o tempo inteiro, entende?
Se no der mais pra ser atendido aqui eu vou entender, mas eu prefiro continuar
vivendo assim e garanto para o senhor que no sou nem mais nem menos feliz
que o senhor, entende?.
Assim, Maurcio estabelecia uma relao at certo ponto clara com
as diferentes instituies que, por motivaes diversas, procuravam por ele:
aceitaria sopas, oraes, roupas, dinheiro e qualquer outra coisa, contanto que
esta aceitao no implicasse na renncia de si mesmo e na concesso para que
outros pudessem conduzir e governar sua vida.
Obviamente os efeitos deste tipo de relao de um morador de rua
com os demais moradores da cidade eram desconcertantes. No caso de Maurcio,
isto lhe custou os dentes da boca, um ano na priso, constantes duras das
polcias e pode ter-lhe custado a vida, pois desde 2010 no houve quaisquer
notcias sobre ele.

15

PR-HISTRIA

Meu encontro com Maurcio ocorreu pela primeira vez em julho de


2006, ocasio em que havia viajado a Petrpolis para conhecer o projeto social
Po & Beleza Espao Cidado, realizado pelo Centro de Defesa dos Direitos
Humanos de Petrpolis (CDDH) desde 2004.
A visita no era fortuita. Estudante do curso de licenciatura em
pedagogia da UNESP de Rio Claro SP, eu vivia o processo de elaborao de
meu trabalho de concluso de curso um estudo sobre a dimenso pedaggica
do projeto Po & Beleza e esta era minha sada ao campo.
Inicialmente, seria realizada uma pesquisa em torno do projeto
pedaggico da organizao como um todo. Mas algo aconteceu: quanto mais eu
pesquisava as aes realizadas pela organizao, mais e mais vezes era levado
a pensar no prprio projeto Po & Beleza. Fiquei praticamente sem escolha, pois
queria mesmo pesquisar este projeto!
Foi muito impactante estar l. E no exagero algum afirmar que a
sada ao campo modificou todo o projeto, j transcorrido um ano de trabalho, e
que todas essas mudanas devem ser atribudas aos encontros que tive por l.
Encontros com a cidade de Petrpolis, fria, montanhosa, histrica, imperial. Com
a prpria sede da organizao, que me hospedou por 15 dias. Com a equipe de
trabalho do projeto, que me mostrou uma face da pobreza que at ento eu
desconhecia. Principalmente, encontros com os participantes do projeto, com
quem pude experimentar a alegria que pode emergir da mais precria forma de
existir.
A pesquisa resultou na j referida monografia intitulada A Pedagogia
do Cuidado no Projeto Po & Beleza. Nela, compreendi o trabalho realizado pelo
projeto justamente como um espao capaz de propiciar a seus participantes
encontros, no sentido spinozista do termo, ou seja, encontros que lhes
oferecessem possibilidades de aumentar ou diminuir a sua potncia de vida.

16

Nesse sentido, o cuidado como uma tica, e a tica como a possibilidade mesma
dos encontros.

PRIMEIRA FASE DO PROJETO PO & BELEZA:


ESPAO CIDADO

deste perodo minha primeira lembrana de Maurcio. Ele estava


parado no jardim do projeto e conversava com algum. Por um instante procurei
por seu interlocutor e no encontrei. Sabe-se l quem era, pois Maurcio
certamente conversava com algum que somente ele conseguia enxergar!
Maurcio cheirava cola de sapateiro, mas uma cena como essas no era comum
dentro do espao do projeto, j que os moradores de rua que dele participavam
mantinham uma espcie de pacto e evitavam ir ao espao quando estavam muito
loucos.
Penso que este modo de conduzir-se no espao no tenha sido fruto
de alguma conscientizao ou algo do gnero. Penso que a forma como se
acolhia essas pessoas no projeto e os vnculos que esta acolhida produzia eram
os principais responsveis para que essas pessoas respeitassem o espao,
como diziam.
Naquela ocasio o projeto j funcionava h quase trs anos. Foi
inaugurado em maio de 2004 e vivia o auge do que chamarei aqui de sua primeira
fase, quando atendia cerca de 300 pessoas diariamente em seu refeitrio.
Fora criado para oferecer um conjunto de atividades sociais e
educativas, constitudas por um refeitrio que servia uma refeio diria (almoo)
por R$ 1,00; um espao para banho, acompanhado de toalha, sabonete e doao
de roupas usadas; corte de cabelo semanal; sesso de cinema; cursos
profissionalizantes; e atividades dirias conhecidas como grupos de referncia.
No

cotidiano,

os

participantes

do

projeto

(chamados

pela

organizao beneficirios e tambm usurios) precisavam contribuir com R$

17

1,00 pelo almoo e participar, semanalmente, de um desses grupos de referncia.


Nos grupos aconteciam atividades diversas, envolvendo rodas de conversa,
elementos de teatro, msica, dana, brincadeiras, passeios.
Participavam do projeto, alm dos ditos moradores de rua, idosos,
doentes mentais, desempregados, trabalhadores precrios, homens e mulheres,
todos maiores de 18 anos e considerados excludos socioeconmicos. De fato, o
projeto reunia em seu espao uma diversidade incrvel de pessoas que no
encontravam outros espaos em que fossem bem acolhidas na cidade. Talvez o
ponto comum fosse a experincia da anormalidade, ainda para alm da
problemtica socioeconmica.
possvel vislumbrar o conjunto de pessoas atendidas por meio de
uma pesquisa realizada em Maio de 20082, quando buscou-se sistematizar o
perfil dos participantes. Neste perodo j no eram servidas as 300 refeies
dirias e o nmero de pessoas entrevistadas (cento e cinco pessoas) certamente
no representativo de todos os anos do projeto. Ainda assim, permite situar um
tanto melhor quem eram as pessoas atendidas. Vejamos os dados:

Gnero: 19% dos atendidos eram mulheres e 81% eram


homens;

Faixa etria: 18% estavam entre os 20 e os 29 anos; 16% entre


os 30 e 39 anos; outros 16% entre os 40 e 49 anos; 20% entre
os 50 e 59 anos; 17% entre os 60 e 69 anos; 9% entre os 70 e
79 anos; 4% entre os 80 e 89 anos;

Etnia3: 50% brancos; 30% negros; 16% pardos; 4% no


declararam;

Escolaridade:
fundamental

8%

no

completo;

escolarizados;
71%

com

14%
ensino

com

ensino

fundamental

CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DE PETRPOLIS. Perfil dos beneficirios:


maio de 2008. Petrpolis, 2008, 4 p.
3

Mantivemos a nomenclatura original. Entendemos que aqui deveria ser raa, e no etnia.
Quanto ao nmero de brancos, na pesquisa ocorreu a autodeclarao.

18

incompleto; 3% com ensino mdio completo; 4% com ensino


mdio incompleto;

Estratgia de sobrevivncia: 50% faziam biscate; 15 % eram


aposentados;

13%

estavam

desempregados;

4%

eram

ambulantes; 4% viviam de Benefcio de Prestao Continuada;


4% guardavam carros; 4% eram pedintes; 4% no declararam;
1% tinha carteira assinada; 1% era pensionista; 1% declarou-se
vendedor;

Moradia: 71% no pagavam aluguel; 15% pagavam aluguel; 8%


viviam nas ruas; 5% no declararam; 1% vivia em penso;

Religio: 63% eram catlicos; 19% eram evanglicos; 12%


declararam no ter religio; 2% eram protestantes; 2% eram
kardecistas; 1% no soube dizer; 1% declarou-se messinico.

Penso que no cabe aqui interpretar os dados acima descritos. Eles


pouco podem dizer do cotidiano do espao. O movimento era intenso e existiam
situaes to diversas que seria impossvel elencar todas. O fato que durante o
horrio de funcionamento do projeto, entre 10 e 16 horas, de segunda a sextafeira, a cidade de Petrpolis sabia onde estavam seus infames.
Entre os anos 2004 e 2007, foram servidas 300 refeies dirias. Em
2007 esse nmero foi reduzido para 150 refeies. Progressivamente, o nmero
de refeies foi reduzido para 75, depois para 50, at que finalmente mudanas
no contexto municipal levaram a organizao a redirecionar o projeto e
interromper o fornecimento de refeies na prpria sede.
Tudo o que ocorre a partir do fechamento do refeitrio constitui a
segunda frase do projeto. O fechamento do refeitrio , efetivamente, um divisor
de guas na histria do Po & Beleza, considerando que durante algum tempo
tentou-se manter somente as atividades pedaggicas no interior da instituio.
Sem a refeio, entretanto, isso no funcionou.
Ao cunhar o nome do projeto unindo, por meio do dito e comercial
(&) as palavras Po & Beleza, a organizao parece efetivamente ter atribudo

19

uma determinao definitiva para o projeto. No poderia haver po sem beleza,


no poderia haver beleza sem po.

SEGUNDA FASE ESPAOS DE CIDADANIA

Mas o projeto no foi encerrado pela organizao. Tal como


mencionado acima, iniciou-se uma nova fase e o Po & Beleza multiplicou-se em
Espaos de Cidadania. Desdobrou-se em duas frentes: a implementao das trs
cozinhas comunitrias existentes em Petrpolis e a coordenao pedaggica do
abrigo municipal para a populao em situao de rua.
As mudanas foram tensas, sobretudo no mbito dos prprios
participantes do projeto, j que o Po & Beleza era considerado por eles o nico
espao onde eram reconhecidos como cidados.
Um elemento de contexto representou o limite absoluto para a
continuidade do refeitrio dentro do espao, enquanto outro elemento representou
a oportunidade para que o projeto continuasse em outras bases, sem desperdiar
a experincia acumulada.
O limite absoluto foi a inaugurao, em oito de julho de 2008, de um
Restaurante Popular no centro da cidade.4 O restaurante passou a servir mil
refeies dirias, pelo preo de R$ 1,00, sendo capaz de absorver tambm a
demanda do projeto, que naquela ocasio servia 75 refeies dirias. O limite
dizia respeito prpria questo do financiamento da proposta do projeto Po &
Beleza. No era possvel justificar a existncia de um refeitrio paralelo para um
municpio daquele porte (cerca de 300 mil habitantes), ainda que o projeto Po &
Beleza no se limitasse oferta de refeies.

Parte de um programa nacional do governo federal na frente de combate fome, os


Restaurantes Populares so espaos amplos, com capacidade para servir no mnimo mil refeies
dirias para trabalhadores, estudantes, aposentados, pessoas em situao de rua e demais
pessoas que se disponham a almoar pelo preo de R$ 1,00.

20

Quanto oportunidade: surgiu aps tomar posse um novo governo


municipal. A equipe que assumiu a Secretaria de Assistncia Social procurou pelo
CDDH com o objetivo de estabelecer uma parceria. Nesta parceria o CDDH, por
meio do projeto Po & Beleza, atuaria em dois programas municipais: as cozinhas
comunitrias e o abrigo municipal voltado ao atendimento da populao em
situao de rua5. Eram trs cozinhas comunitrias que existiam, mas no
funcionavam, e um abrigo para a populao em situao de rua, que existia mas
resumia-se a um depsito de pessoas.
Para a organizao pareceu um desdobramento importante de suas
aes, j que desde o ano de 2007 liderava uma rede de instituies que
articulava diversos grupos atuantes junto populao em situao de rua e outros
grupos considerados vulnerveis do ponto de vista da assistncia social
(desempregados, desabrigados, famintos, etc.). Em ambos os casos, a proposta
do projeto Po & Beleza apresentava-se como ideal, considerando que o mesmo
foi concebido para aliar a questo alimentar (Po) e a questo social (Beleza).
Acordos feitos, convnios assinados, mos obra?
No foi to simples. A Secretaria queria que fossem realizados
trabalhos de formao cidad. Contudo, quando ouviram as primeiras
reivindicaes, tanto das pessoas abrigadas quanto das pessoas frequentadoras
das

cozinhas,

tornaram-se

refratrias

prpria

cidadania

que

haviam

demandado. Uma coisa dizer durante a campanha: este ser um governo para

Populao em situao de rua o termo usado hoje pelo Ministrio do Desenvolvimento Social
para referir-se s pessoas que tem nas ruas sua vida cotidiana, em termos de moradia,
sobrevivncia, etc. Utilizo mendigos, moradores de rua ou populao em situao de rua ao longo
da dissertao para referir-me a estas pessoas que vivem nas ruas. O termo mendigo ou
utilizado em contextos onde h referncia pejorativa a essas pessoas, ou uma liberdade potica.
Prefiro o termo moradores de rua porque designa uma situao absolutamente paradoxal: morar
em um lugar que no uma moradia. Alm disso, tambm exprime as prprias condies
precrias das polticas pblicas brasileiras. J o termo populao em situao de rua
considerado progressista porque a expresso em situao quer designar que uma condio
transitria e que pode mudar desde que atendidas, adequadamente, as demandas apresentadas.
Foi um termo muito utilizado pela equipe do projeto em instncias em que era preciso insistir na
transitoriedade da condio de morador de rua. Nesta dissertao, aparecer quando o texto
expressar situaes vividas, sobretudo, na esfera governamental.

21

os mais pobres. Outra coisa estar em contato com os mais pobres e perceber
que no so pura carncia, mas tambm muita potncia.
No mbito das cozinhas comunitrias, pode-se afirmar que foi
possvel garantir refeies que saram de acordo com o projeto da instituio
(saborosas, nutritivas e de qualidade) para os frequentadores das trs unidades.
A dimenso do Po. Contudo, o trabalho referente dimenso da Beleza no
deslanchou. Quer dizer, no houve atividades educativas de qualquer espcie. A
prefeitura parecia entender a importncia de que as mesmas acontecessem, mas
esta compreenso no se traduzia em aportes financeiros que viabilizassem as
mesmas.
No mbito do abrigo municipal, as pessoas em situao de rua que
eram ento atendidas foram organizadas em grupos e estes grupos funcionaram
moda de conselhos populares que, por meio de rodas de conversa, partilhavam
suas inquietaes quanto sua prpria vida, quanto vida no cotidiano do abrigo
e quanto s perspectivas de futuro. Cada grupo constitua dois representantes
que, numa outra instncia, reuniam-se junto aos representantes da prefeitura para
levar as reivindicaes comuns a todos os abrigados. Prontamente estas pessoas
propuseram modificaes de diversas ordens para o cotidiano do abrigo, as quais
incluam os horrios de funcionamento do refeitrio, dos banheiros, da recepo
de novos abrigados, etc.
A reao da prefeitura foi ambgua: aceitaram as reivindicaes e,
ao mesmo tempo, iniciaram uma espcie de perseguio aos representantes dos
abrigados que encaminhavam as discusses das assembleias. Esta perseguio
era perversa: os funcionrios do abrigo passaram a valorizar as pessoas
abrigadas que no participavam de qualquer atividade e, ao mesmo tempo,
insinuar que os participantes das atividades eram alcaguetes dos demais.
Em pouco tempo as assembleias tornaram-se vazias, nossas
atividades foram suspensas e alguns dos abrigados, que eram lideranas, viramse impelidos a sair do abrigo, mesmo em condies totalmente desfavorveis (em
outras palavras: no havia qualquer programa que pudesse acompanha-los ou

22

apoi-los com moradia e emprego, por exemplo: saiam do abrigo com uma mo
na frente e outra atrs, como tantas vezes nos disseram).
Estas e outras situaes ocorreram ao longo de todo o processo e,
salvo engano, continuaram ocorrendo at o final do ano de 2012, quando a
organizao decidiu fechar o projeto para balano, considerando novamente
alteraes do contexto poltico municipal (agora exclusivamente em funo das
eleies).
Esta guinada da primeira para a segunda fase foi tambm
importante para o prprio Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis
porque, de certa maneira, marcava um retorno a uma dimenso que atravessou a
prpria organizao at meados da dcada de 1990, qual seja, a realizao de
aes permanentes fora da prpria sede da organizao, sobretudo no que diz
respeito ocupao das prprias ruas da cidade e da atuao no interior de
comunidades perifricas, as quais encontram-se nos primrdios de suas aes.

OBSERVAO: ININSTITUCIONALIZVEIS

Comecei escrevendo sobre Maurcio e alguns outros moradores de


rua que participavam do projeto e gostaria de finalizar esta etapa escrevendo
sobre eles. Ao escrever sobre este ltimo perodo em que participei do projeto
parece-me claro que existem dois grandes grupos de pessoas que viviam nas
ruas naquele perodo: os que mantinham um tipo de relao amigvel com as
instituies e aqueles que eram tidos pelas prprias instituies como inimigos.
Isso no significa que elas tinham a instituio como inimiga. Inmeras vezes
haviam concordado em ser abrigadas e receber o atendimento dentro do espao.
Em contrapartida, sua permanncia era sempre transitria e no
tolerada. Maurcio, por exemplo, foi preso junto com outro rapaz que vivia nas
ruas. Acusao: roubaram a mochila de outro morador de rua tambm acolhido
no prprio abrigo. Haveria que se pensar seriamente em como estas pessoas
eram produzidas como inimigas pelas prprias instituies. Obedincia absoluta

23

s regras, o entendimento de que a poltica pblica um favor, e, mais do que


tudo, a necessidade de abdicar de si mesmo em funo de regras arbitrariamente
decididas para aderir aos programas parecem-me alguns elementos da produo
desta inimizade institucional.

LIMITES DA ESCRITA

Todas as sextas-feiras aconteciam no projeto as Oficinas de


Eletrotcnica. O professor era dos mais dedicados. Vestindo um jaleco branco,
chegava sempre antes do almoo para preparar a sala de aulas. Apoiando-se
numa muleta e carregando com dificuldade sua mala repleta de materiais que
usaria durante as aulas, Sr. Carlos mantinha uma disciplina rigorosa.
Numa sexta-feira de data ignorada, Sr. Carlos chamou-me em sua
sala para mostrar uma novidade: havia encomendando um crach para identificlo como mestre daquela turma e o crach finalmente havia sido entregue. Era
feito em um plstico slido de cor preta e, ao centro, podia-se ler em letras
brancas: Professor Eletrnico.
Ainda hoje imagino que teria desejado escrever Professor de
Eletrnica, ou algo que o valha. Mas pouco importa. Para aquele senhor, prximo
de completar 90 anos, aquelas aulas de sexta-feira eram sagradas. Fazia questo
de realiz-las na ltima sala do imvel, pois soube que l, um dia, as freiras
faziam suas oraes.
Suas aulas ainda eram sobre rdios e TVs valvulados. Algumas
noes sobre instalaes prediais e manuteno de equipamentos como
chuveiros e ferros de passar. Seria possvel contedo mais anacrnico? Pouco
importava para seu grupo de 25 alunos que, sempre fiis, faziam questo de
chegar no horrio, com a barba feita e o banho tomado, para receber aquela
instruo.

24

Pura paixo!
Foi tambm com a mesma intensidade que o Sr. Carlos recebeu a
notcia sobre o fechamento do projeto. Como fariam para manter as aulas de
eletrnica? Como fariam para alimentar aquelas pessoas pobrezinhas que no
recebiam ajuda nem das igrejas? Talvez tenha feito tantas outras perguntas. No
anotei nenhuma delas, mas impossvel no encontrar estas palavras registradas
no meu corpo intensivo.
E se realizo este relato, para tentar tornar menos burocrticas as
pginas anteriores, impregnadas de um relato quase higinico. Como se os
processos que levaram de uma fase a outra do projeto no tivessem sido
extremamente angustiantes e repletos de paixes tristes. Incomoda, igualmente, a
incapacidade de poder realizar os relatos, realizar a escrita mesma do texto, de
modo que estas tenses possam estar evidentes na prpria superfcie do texto.
Talvez isso seja prprio do contexto em que agora nos encontramos,
quando devo apresentar um texto acadmico para obter o ttulo de mestre. Talvez
isso seja fruto de minha prpria inabilidade para transpor os registros existentes
em meu arquivo para a tela em branco do computador. Talvez, ainda, sejam as
prprias lacunas dos arquivos que falem sem nada dizer num momento como
este.
Fato que ao terminar este histrico pude lembrar-me de muitos
encontros com os participantes do projeto enquanto este sustentou o seu
refeitrio e recordar muitas histrias tristes, tensas, angustiantes. No relatrio
entregue no ms de Maio de 20096 para a Secretaria Municipal de Assistncia
Social do Municpio de Petrpolis (SETRAC), pode-se ler:

No que diz respeito s atividades desenvolvidas pelo projeto Po &


Beleza nas dependncias do CDDH, prosseguimos com um grupo de
beneficirios, mesmo sem a oferta do almoo. Tal como mencionado no
ltimo relatrio, o projeto segue oferecendo todos os demais servios,
inclusive as oficinas de cinema e eletrotcnica.
6

CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DE PETRPOLIS. Relatrio de atividades.


Petrpolis, 2009. 4 p.

25
O nmero de beneficirios caiu drasticamente, oscilando entre 20 e 25
beneficirios, que se dividem entre a Oficina de Cinema (segunda-feira),
o Grupo de Referncia (quarta-feira) e a Oficina de Eletrotcnica (sextafeira).
Ressaltamos que as discusses realizadas no Grupo de Referncia
giram em torno da qualidade dos servios oferecidos pelo Restaurante
Popular. Os beneficirios comparam incessantemente o servio que
tiveram no refeitrio do projeto ao dia-a-dia do Restaurante Popular.
Suas consideraes so positivas no que diz respeito higiene e
organizao espacial do local. Contudo, so bastante negativas no que
diz respeito ao atendimento (no humanizado), quantidade de alimento
servido (principalmente no que diz respeito aos homens), qualidade da
refeio (padro industrial).
Com o passar das semanas, foi-se dissipando o medo que os
beneficirios tinham de que o projeto chegasse ao fim. Ao mesmo
tempo, esperam que o CDDH possa auxili-los a alcanar melhorias no
Restaurante Popular, de modo que este possa ter a cara do povo, e no
da empresa que o administra.

O clima era realmente tenso e os afetos eram de tristeza.


Acompanhamos os beneficirios durante algum tempo ao Restaurante Popular e
os impactos de estar naquele espao apenas como coadjuvantes, sem que
pudessem opinar de qualquer modo que fosse, nos levou a prolongar a existncia
do projeto por trs meses alm do planejado, a fim de garantir aquele espao de
acolhimento, sobretudo a quem no podia adaptar-se ao novo restaurante.
Conseguimos sustentar algumas atividades que promoviam o seu
encontro com a prpria equipe, e ao mesmo tempo o prprio encontro da equipe
com eles, considerando que os afetos no tinham lugar delimitado e circulavam
por todos os lados. Assistir a um filme, na assim chamada Oficina de Cinema, era
oportunidade para cinco ou seis pessoas passarem suas tardes de segunda-feira.
Uma roda de conversa, s quartas-feiras no tradicional Grupo de Referncia, um
meio de proporcionar a partilha do cotidiano por meio de palavras. E a assim
chamada Oficina de Eletrotcnica, uma forma de trocar experincias sobre
biscates diversos nas tardes de sexta-feira.
Ainda que o projeto no tenha terminado, mas reorientado suas
aes em relao ao contexto do prprio municpio, foi um momento de grande
tenso e que, ao longo da escrita, no cessa de me torcer os nervos. Havia
situaes muito duras e poucas foras para conseguir reorientar os caminhos.

26

Por exemplo, a histria de Dona Regina e sua filha. Ambas


diagnosticadas como esquizofrnicas, que comeavam a cantar plenos pulmes
em qualquer lugar e em qualquer tempo, de forma absolutamente imprevisvel. No
refeitrio do Po & Beleza, esses momentos eram tratados por meio de conversas
com Dona Regina, dando suporte para que desse vazo s suas canes.
Segundo seus relatos, a primeira vez em que isso aconteceu nas dependncias
do Restaurante Popular, os seguranas do local colocaram-na para fora do
espao, junto com sua filha, agarrando-as pela cintura e carregando-as para fora.
Todo este momento foi trgico, in-tenso.

CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS


DE PETRPOLIS CDDH

A histria do CDDH ainda no foi contada por inteiro. Desde fins de


2012 est em andamento um projeto que busca faz-lo, por meio do registro
audiovisual de entrevistas com pessoas consideradas chave para entender de
forma mais completa o processo de sua constituio.
De todo modo, h trs dimenses de base na constituio desta
organizao e delas no se pode passar ao largo. A primeira a prpria guinada
das lutas por direitos humanos no Brasil no fim dos anos setenta, quando
acontece a reabertura poltica no Brasil. Depois, a maneira como estas lutas so
atravessadas por foras progressistas no interior da igreja catlica, impulsionadas
pela teologia da libertao. Por fim, e certamente atravessando de ponta a ponta
todas as demais dimenses, a presena intelectual e militante de Leonardo Boff,
hoje presidente de honra da organizao.
No se trataria, ento, de contar aqui uma histria que no est
contada; ao mesmo tempo, trata-se de fazer algo alm do que j est feito. E o

27

comeo disso pode ser o que a prpria organizao disponibiliza em seu website7
como sendo seu histrico:

Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis uma


organizao no-governamental, fundada em 1979. Sua finalidade
realizar, apoiar, assessorar e orientar iniciativas que contribuam para a
concretizao dos Direitos Humanos em todas as sociedades do
Planeta. Trabalhamos a partir dos eixos denncia, defesa e formao
para a cidadania. A educao a base a partir de onde desenvolvemos
nossos diversos programas.
H 28 anos o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis
ensaiava as suas primeiras experincias. Nasceu inspirado por um
pequeno grupo de cristos, em aes cotidianas, sem infraestrutura, mas
reunindo o compromisso e a vontade de articular f e compromisso
social.
Nascemos em uma poca de grande fecundidade dos Movimentos
Populares no Brasil e na Amrica Latina, como as centrais sindicais,
central de movimentos populares, CEB's, entre outros. Embora o
contexto fosse o da reabertura poltica e da afirmao dos direitos civis e
polticos, o CDDH nasce com o lema "Servir Vida" e se preocupa,
desde os primrdios, com os excludos scio-econmicos. Mobiliza-se
nas enchentes de Petrpolis e acompanha desabrigados, mobiliza-se
tambm diante das famlias dos trabalhadores em greve, bem como no
Servio de Intercmbio (nacional e internacional) como multiplicador de
denncias de pessoas vtimas de violncia tanto no campo quanto nos
centros urbanos. O Centro de Defesa foi crescendo, sempre consciente
de no ser apenas uma instituio de denncia, mas, sobretudo de
assessoria e formao para a cidadania. Esteve presente na formao
de vrios grupos, dos movimentos sociais e associaes diversas.
Os anos 90 chegaram, trazendo o desafio de desenvolver os nossos
projetos a partir de dois eixos-paradigmas: a Ecologia, que nos inspira a
repensar as nossas prticas e valores de forma alternativa, tendo em
vista uma economia do suficiente e a superao do antropocentrismo
(que coloca o ser humano no centro de toda a criao), atravs da
compreenso de que, partindo dos direitos humanos, tudo o que existe
tem direitos e necessita de defesa; a Cultura da Paz, que mais do que a
ausncia de guerra, desafia-nos a desenvolver metodologias que
contribuam para a emergncia de uma nova lgica includente, que se
comprometa com o repensar da linguagem, com a promoo de prticas
e reflexes que dialoguem com o diferente e a ambiguidade, e ensaiar,
na prtica cotidiana, formas outras de se resolver conflitos.
SERVIR VIDA continua sendo o nosso maior lema. O CDDH no quer
substituir a populao, mas estar com ela na caminhada por uma vida
melhor. Queremos VIDA PARA TODOS!

CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DE PETRPOLIS. Histria. Disponvel em:


<http://cddh.org.br/historia.html>. Acesso em: 02/01/2013.

28

DIREITOS HUMANOS, DIREITOS DOS POBRES

Do prprio texto da organizao, destaco o seguinte perodo:


Embora o contexto fosse o da reabertura poltica e da afirmao dos direitos civis
e polticos, o CDDH nasce com o lema "Servir Vida" e se preocupa, desde os
primrdios, com os excludos socioeconmicos. Destaco porque a palavra
embora sempre chamou minha ateno nesta apresentao, por tratar-se de um
tipo de palavra que exprime uma contradio. Que contradio poderia haver
entre estarmos vivendo a reabertura poltica e a luta pela afirmao dos direitos
civis e polticos e a preocupao com os excludos socioeconmicos?
Em alguns dos encontros pedaggicos realizados pelo CDDH para
formao poltica de seus funcionrios, foi possvel ouvir que, at fins dos anos
1970, as lutas por direitos humanos no Brasil eram voltadas para enfrentar os
efeitos da violncia promovida pela ditadura civil-militar, instaurada no pas em
1964. Nesse sentido, as aes estavam focadas nas lutas pela manuteno da
vida e pela liberdade e pela libertao dos militantes que eram alvo da represso
levada a cabo pela ditadura e seus agentes.
A essa ao focada e direcionada contra os efeitos da violncia
ditatorial sobre a militncia, vinham sendo somadas as lutas por direitos humanos
que progressivamente assumiam o carter de uma luta contra a pobreza. As
questes relacionadas ao racismo, dizimao indgena, concentrao de
renda, fome e misria, violncia no campo e violncia urbana, mobilizaram
a sociedade e alguns setores dentro da Igreja.

No interior desta surgiram dezenas de grupos de defesa dos direitos


humanos, articulados com outros, de cunho autnomo, da sociedade
civil. Juntos deram origem ao Movimento Nacional de Defesa dos
Direitos Humanos (MNDH). Esses grupos tm trabalhado em conjunto
com entidades e pastorais especiais, imbudas do mesmo ideal,
inserindo-se dentro do vasto movimento popular. E foi a que
comearam, a partir da reflexo sobre sua prtica, a elaborar uma nova
viso dos direitos humanos na perspectiva dos pobres, propiciando aos

29
prprios pobres serem eles mesmos o sujeito de sua prpria luta pelos
8
direitos a serem garantidos e defendidos. (MIRANDA, 1991, p.40-41)

Reflexo semelhante havia ouvido pela primeira vez da prpria


Mrcia Miranda, autora do texto acima, e um novo horizonte se abriu para mim.
Em conversa recente com Leonardo Boff, o mesmo diria que as questes que
mobilizaram a formao do CDDH de Petrpolis e do prprio MNDH foram duas:
a Terceira Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada no ano
de 1979 em Puebla, no Mxico e o elemento poltico da represso da ditadura
civil-militar.9
Assim, na perspectiva dos grupos que se articularam neste contexto,
os direitos humanos so as exigncias bsicas e no satisfeitas de um povo que
tem um destino, e de cada um dos indivduos desse povo. Os direitos humanos
so prioritariamente os direitos dos pobres. (BOFF, 1991, p.198)
Durante minha estadia e minhas andanas pelo estado do Rio de
Janeiro, pude manter contato com grupos militantes dos direitos humanos que
produziram reflexes fundamentais acerca desta transformao do carter das
lutas, demonstrando como a ameaa comunista demonizada durante a ditadura
civil-militar foi paulatinamente redirecionada para a construo do mito das
classes perigosas10.

Da mesma forma que se construram perigosos inimigos da Ptria nos


anos 60 e 70, em nosso pas e em muitos momentos da histria da
humanidade, foram sendo concebidos por diferentes equipamentos
sociais os perniciosos, os indesejveis [...] , tambm hoje,
principalmente via meios de comunicao de massa, esto sendo
produzidos novos inimigos internos do regime: os segmentos mais
pauperizados; todos aqueles que os mantenedores da ordem

MIRANDA, Mrcia. Panorama do Brasil. In: BOFF, Leonardo et al. Direitos humanos, direitos
dos pobres. So Paulo: Vozes, 1991.
9

Conversa com Leonardo Boff. Dezembro de 2012.

10

COIMBRA, Ceclia. Operao Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violncia
urbana, a mdia impressa e os discursos de segurana pblica. Rio de Janeiro: Oficina do Autor;
Niteri: Intertexto: 2001.

30
consideram suspeitos e que devem, portanto, ser evitados e, mesmo,
eliminados. (COIMBRA, 2001, p. 57-58)

Em So Paulo, por exemplo, estudo recm-publicado demonstrou


que 93% das mortes ocorridas em supostos confrontos armados com a polcia
militar ocorreram na periferia. A mesma pesquisa ainda verificou que 99,6% das
vtimas so homens; 60% possuem entre 15 e 24 anos; 54% do total de mortos
declaram-se negros ou pardos.11
J no estamos mais vivendo defronte mesma paisagem, ao
mesmo tempo em que estamos vivendo exatamente as mesmas questes. A
leitura que fizeram, ainda em 1982, quando fundou-se o Movimento Nacional dos
Direitos Humanos no por acaso fundado na cidade de Petrpolis, em 1982,
com a presena de Leonardo Boff, Mrcia Miranda de que a atuao do
movimento deveria acontecer a partir do lugar ocupado pelo pobre, ou seja, a
causa dos pobres, sua existncia sacrificada, sua luta, seus interesses por vida,
trabalho, dignidade e prazer (BOFF, 1986, p. 9)12 faz-se atualssima.

DAS COMISSES DE JUSTIA E PAZ AOS


CENTROS DE DEFESA DE DIREITOS HUMANOS

A dedicatria da reedio de Igreja: carisma e poder13 livro pelo


qual Boff foi submetido a processo doutrinrio pela Congregao para a Doutrina
da F (a Santa Inquisio dos dias de hoje) d o tom acerca dos caminhos
trilhados pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis (CDDH) em
seus primrdios. Podemos ler:

11

93% das mortes cometidas por PMs de So Paulo ocorrem na periferia. Spresso SP: o site de
So Paulo. Disponvel em: <http://www.spressosp.com.br/2012/07/93-das-mortes-cometidas-porpms-de-sao-paulo-ocorrem-na-periferia/>. Acesso em: 15/01/2013.
12
BOFF, Leonardo. Do lugar do pobre. Petrpolis: Editora Vozes, 1986.
13
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. So Paulo: Editora tica, 1994.

31
Dedico este texto aos membros do grupo Justia e Paz de Petrpolis.
Tiveram que andar sozinhos e compreenderam que no basta que a
Igreja exista. Ela precisa ser continuamente construda, no contra, mas
apesar daqueles que a querem reduzir antiga sinagoga. (BOFF, 1994)

Oficialmente, o CDDH foi fundado em 01 de novembro de 1979. Mas


os movimentos que deram origem organizao so anteriores a essa data. Os
relatos orais do conta de que um grupo de pessoas ligadas s questes sociais
e polticas da cidade reunia-se clandestinamente no poro de um seminrio de
frades franciscanos, os chamados frades mineiros, e nestas reunies buscavam
constituir estratgias para lidar com uma Igreja e uma cidade ultraconservadoras.
Nem todas estas pessoas eram catlicas, nem todas elas sequer
eram crists, tal como d conta o histrico veiculado no site da instituio. Mesmo
assim, o grupo estava alinhado s Comisses Justia e Paz da Igreja catlica,
com antecedentes que podem ser localizados ainda em 1963, numa encclica do
Papa Joo XXIII; depois na Encclica do Papa Paulo VI, de 1967, sobre o
Desenvolvimento dos Povos; mas talvez o texto mais importante seja o da II
Conferncia do Episcopado Latino-Americano (CELAM), realizada em Medelln
entre Agosto e Setembro de 196814.
Em Petrpolis, cada vez mais a Comisso Justia e Paz passou a
encontrar dificuldades para movimentar-se no interior da Igreja. Os membros da
Comisso de Petrpolis, at mesmo a fim de diferenciar-se da face que vinha
assumindo a Igreja naquele contexto e com vistas a marcar sua diferena em
relao temtica dos direitos humanos, optam por cunhar seu novo nome:
deixam de apresentar-se como Comisso Justia e Paz de Petrpolis e passam a
ser o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis (CDDH): Grupo de
Ao, Justia e Paz de Petrpolis.

14

Fester, Antonio Carlos Ribeiro. Justia e Paz: memrias da Comisso de So Paulo. So


Paulo: Edies Loyola, 2005.

32

GRITO DA TERRA, GRITO DOS POBRES: A


PRESENA DE LEONARDO BOFF

Mas nada disso teria nascido a partir do interior da Igreja, mas sim a
partir de seu contato com o mundo. Se os documentos produzidos por papas,
bispos, leigos, foram inspiradores de movimentos como estes que deram origem
ao CDDH, os prprios documentos teriam sido inspirados no a partir do alto,
como se tivessem cado dos cus. E, se pensarmos neste pedao do mundo que
era a Amrica Latina dos anos 1960 - 1970, podemos vislumbrar grandes pases
espoliados e grandes massas de pobres entregues muito cedo foice da morte.
Em fins dos anos 1960, o telogo peruano Gustavo Gutirrez havia
sido ordenado sacerdote e enviado a uma parquia do bairro pobre de Rimac, em
Lima, e l defrontou-se com um problema que o atormentava: como dizer ao
pobre que Deus o ama? Em 1971, Gutirrez formularia parte desta resposta no
livro que intitulou Teologia da Libertao. Perspectivas.15 Ao mesmo tempo, um
outro telogo formulava reflexes semelhantes no Brasil, publicadas em formato
de artigos numa revista religiosa, a fim de driblar a ditadura civil-militar. O
conjunto destas reflexes mais tarde seria publicado no formato de um livro, o
Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff.
No centro de suas publicaes estava (esto) o pobre concreto,
suas opresses, a degradao de suas vidas e o padecimento sem conta que
sofre16. A racionalidade que atravessava toda esta teologia tomava o pobre no a
partir daquilo que lhe falta (como o fizeram os grupos paternalistas e
assistencialistas), no a partir daquilo que ele tem (como o fizeram os grupos que
o tomaram como fora de trabalho a ser includa), mas sim como aqueles que tm
fora histrica para mudar o seu prprio tempo e o sistema que o faz pobre.

15

VALENTE, Gianni. Operao Gutirrez. Instituto Humanitas Unisinos. Disponvel em:


<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/505277-operacao-gutierrez>. Acesso em: 04/01/2013.
16

BOFF, Leonardo. Quarenta anos da Teologia da Libertao. Disponvel em:


<http://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao/>. Acesso
em: 04/01/2013

33

Assim, no se tratava de dizer ao pobre o que fazer, mas colocar-se junto e ao


lado dele para faz-lo.
Leonardo Boff no foi o fundador do CDDH Gustavo Friaa, j
falecido, seria o motor e aglutinador das pessoas em torno da organizao , mas
seu pensamento e sua ao atravessaram a histria da organizao de outras
maneiras. Nos primeiros tempos, Leonardo oferecia um seminrio regular em
Petrpolis para pessoas da prpria cidade, do Rio de Janeiro, de Juiz de
Fora/MG. Tambm assessorou por anos o prprio Movimento Nacional de
Direitos Humanos, inclusive durante sua fundao, realizada em Petrpolis no
ano de 1982. Uma das formas com que sua presena se faz sentir com mais
intensidade no CDDH no direcionamento dos projetos da organizao.
Os primeiros aconteciam prioritariamente no interior das prprias
comunidades, organizando junto das mesmas eleies para associaes de
moradores,

traando

estratgias

para

ocupao

de

terrenos

ociosos,

intermediando processos de regulao fundiria. O Projeto Assessoria Jurdica,


em atividade at os dias de hoje, continua atuando desta maneira.
Outros projetos passaram a ser realizados no interior da prpria
organizao, como o caso do prprio projeto Po & Beleza. Este projeto o que
opera uma espcie de sntese deste princpio da teologia da libertao que
confere centralidade ao pobre na leitura do evangelho.
Por fim, a organizao tambm estaria implicada na realizao de
projetos voltados para as questes urgentes da ecologia, caminho assumido pelo
pensamento de Leonardo a partir de seu entendimento de que seres humanos e
planeta Terra so faces da mesma moeda da explorao e da devastao
provadas pelo capitalismo. Projetos como Filhos da Terra, em que jovens da
periferia de Petrpolis fazem artes plsticas com elementos da prpria natureza
estariam neste caminho.

34

MARCAS POLTICAS E PEDAGGICAS

Linhas que se cruzam: os atendidos pelo projeto Po & Beleza so,


ao mesmo tempo, os pobres da teologia da libertao e alguns dos principais
alvos das violaes de direitos humanos no Brasil dos dias de hoje. A prpria
criao do projeto Po & Beleza uma expresso, dentre outras possveis, do
cruzamento destas linhas.
Agora ser preciso avanar no sentido de dar visibilidade ao modo
como estas expresses maiores se estenderam ao dia a dia do projeto, tanto no
que diz respeito sua ao poltica e aos conflitos que tomam palco na cidade em
torno dos ingovernveis, como tambm no que diz respeito sua ao
pedaggica, quando este histrico se atualiza no contado direto com estes
moradores de rua.
Ser importante, por fim, tentar mostrar o quanto a atuao da
organizao marcada pelas proposies de Leonardo Boff. As aes polticas e
pedaggicas so atravessadas, principalmente, pela concepo dos direitos
humanos como direitos dos pobres, e pela perspectiva a partir da qual se deve
orientar estas aes a partir do lugar do pobre.
Assim, na segunda parte da dissertao buscaremos estender estas
linhas, conectando-as com outras mais moleculares de nosso arquivo. Com estes
traos, buscaremos tambm avanar em direo aos ingovernveis como
experincia e como pensamento.

PARTE II

36

ARQUIVANDO O PRPRIO EU
Imaginemos por um instante um lugar onde tivssemos conservado
todos os arquivos das nossas vidas, um local onde estivessem reunidos
os rascunhos, os antetextos das nossas existncias. Encontraramos a
passagens de avio, tquetes de metr, listas de tarefas, notas de
lavanderia, contracheques; encontraramos tambm velhas fotos
amarelecidas. No meio da confuso, descobriramos cartas:
correspondncias administrativas e cartas apaixonadas dirigidas bemamada, misturadas com cartes postais escritos num canto de mesa
longe de casa ou ainda com aquele telegrama urgente anunciando um
nascimento. Entre a papelada, faramos achados: poderia acontecer de
esbarrarmos com nosso dirio da adolescncia ou ainda com algumas
pginas manuscritas intituladas "Minhas lembranas de infncia".
(ARTIRES, 1998, p. 9)

As palavras acima constituem o primeiro pargrafo do texto de


Philippe Artires, intitulado Arquivar a prpria vida17. Delas no pude fugir, pois
dizem de uma velha prtica minha: arquivar. O qu? Um pouco de cada coisa
descrita no pargrafo e ainda alm.
Desta prtica de (em geral) arquivar coisas inteis que resultou o
arquivamento de vinte cadernos de campo, produzidos durante os quatro anos de
coordenao pedaggica no CDDH de Petrpolis. Lacunares, irregulares, de certo
modo inteis, este material que mobilizo para produzir esta dissertao. Por que
os arquivei, por que os guardei, como os utilizo?
Artires escreve que arquivamos nossas vidas para responder a
uma injuno social, uma resposta ao mandamento Arquivars a prpria vida! o
que nos diferencia do homem perigoso, j que o anormal o sem papis. No
que o faamos [o arquivamento] de qualquer maneira. Fazemos um acordo com a
realidade,

manipulamos

existncia:

omitimos,

rasuramos,

riscamos,

sublinhamos, colocamos em exergo certas passagens. Mas tambm arquivamos


numa inteno autobiogrfica, no sentido de que escrever um dirio, guardar
papis, assim como escrever uma autobiografia, so prticas que participam mais
daquilo que Foucault chamava a preocupao com o eu (ARTIRES, 1994, p.1011).
17

ARTIRES, Philippe. Arquivar a prpria vida. estudos histricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21.
1998. Disponvel em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061/1200>.
Acesso em: Agosto/2012.

37

Ao analisar este meu pequeno arquivo vejo-me, antes de mais nada,


respondendo tambm a este estranho mandamento, o de arquivar a prpria vida,
j que no registrei coisas nestes cadernos com fins de constituir um arquivo e
transform-lo em material para uma pesquisa. Inicialmente foram produzidos
como instrumento: para lembrar do que se discutia em reunies, para apoiar uma
prtica de estudos, para guardar matria-prima para mais tarde escrever textos,
documentos.
Sempre arquivamos nossas vidas em funo de um futuro leitor
autorizado ou no (nossa famlia, nossos amigos ou ainda nossos colegas).
Sempre? No esperava que estes cadernos pudessem, de algum modo,
tornarem-se pblicos. Causava-me, inclusive, pavor que algumas de suas pginas
pudessem ser lidas. Seria somente uma prtica ntima? Dir Artires que, mesmo
ntima, est prtica muitas vezes tem uma funo pblica. Pois arquivar a prpria
vida definitivamente uma maneira de publicar a prpria vida, escrever o livro
da prpria vida que sobreviver ao tempo e morte (ARTIRES, 1998, p.11).
De certo modo, sinto-me em situao semelhante a Nouguier, cujos
arquivos so longamente analisados por Artires em seu texto. Nouguier, um
jovem ladro, que em funo do tdio que lhe causava a priso havia decidido
inaugurar um dirio, passa a registrar sua vida de forma planejada, projetada e
refletida aps o pedido de um mdico que lhe visitara. Enquanto seus dirios so
irregulares, rasurados, lacunares, a escritura que produz para o mdico possui
uma estrutura narrativa, um fio condutor, e no so vistos nestes textos erros ou
rasuras de qualquer espcie.
Ao realizar a leitura dos textos que integram meus prprios cadernos
vejo-me prestes a seguir os rastros deste jovem ladro e produzir uma escrita que
busca coerncia, lucidez, quem sabe at mesmo algo extraordinrio, em algo que
originariamente no passava de instrumento, suporte, apoio.
Gostaria de proceder de outro modo. Embora premido pelo dever de
produzir a dissertao e desse modo concluir um curso de ps-graduao,
gostaria de proceder na organizao desses arquivos por afeco. o mundo tal
como entendido por Spinoza, ou seja, de que maneira minha relao com o outro

38

(inclusive com as palavras) compe o meu prprio corpo, quais relaes so ou


no convenientes, quais as noes comuns que vale conjugar. A afeco diz
respeito, principalmente, aos efeitos que um corpo que afeta provoca sobre um
corpo afetado18. Efeitos. Eis o que buscarei.
Ainda pensando com Artires. Ao final do texto, aps realizar a
anlise dos arquivos de Nouguier, Artires escreve que possvel ver nas
prticas de arquivamento da vida restrio e circunscrio. Mas, para alm disso,
ele v nestas prticas algo formidavelmente produtivo. Enquanto alguns poderiam
crer que essa prtica participa de um processo de sujeio, ela provoca na
realidade um processo notvel de subjetivao. O discurso que Nouguier produziu
seria um dispositivo de resistncia. (ARTIRES, 1998, p.32)

ARQUIVOS

Ao reler este arquivo que produzi penso que os cadernos


funcionaram como instantneos de momentos de uma prtica profissional,
militante, educacional. Foram tambm algo mais, quando funcionaram como
munio para combates e enfrentamentos de guerras e lutas que sobreviveram
minha pessoa.
Esto agrupados e numerados de 001 a 020, sendo que: 001 a 006
cobrem o ano 2007; 007 a 012 cobrem o ano 2008; 013 a 019 cobrem o ano
2009; e 020 cobre o ano 201019.
No proponho aqui interpretao ou anlise dos cadernos, mas, tal
como mencionei acima, traz-los a pblico pelas vias da sensao e da afeco.
Isso quer dizer reler tudo e todas as palavras com as tripas e trabalhar com aquilo
18

DELEUZE, Gilles. Aula sobre Espinosa em 24/01/78. Disponvel em


<http://www.webdeleuze.com>. Acesso em: 13/01/2013.
19

Houve a perda de um caderno importante, que cobriu um ano de experincia, entre o final de
2009 e final de 2010. Que pena!

39

que as violentou e forou o pensamento. Pois, como disse Deleuze em algum


lugar, s se pensa quando se forado a pensar!
Ento, realizaremos esta escrita por Afeco: aqui haver um clima,
uma ambincia, diferente da primeira parte. Dobrando os arquivos dobra-se a si
mesmo e se faz cincias humanas. Da sujeio subjetivao. Em seu ndice de
conceitos fundamentais da obra de Spinoza, Deleuze dir que a afeco (affectio)
remete ao estado do corpo afectado e implica a presena do corpo afectante.
(DELEUZE, 1970, p. 50)20 o momento de trabalhar a partir dos efeitos que
esses pequenos corpos, esses cadernos, produziro sobre meu corpo.
Este mtodo de leitura tomou corpo pela primeira vez num exerccio
acadmico, quando produzi um texto para uma disciplina do programa de psgraduao em educao da UFSCar. Um texto escrito em apenas um dia, uma
semana aps a morte de uma pessoa crucial para a minha vida. Para escrev-lo,
havia realizado a leitura de todo meu arquivo. Quanto mais eu lia, menos eu
encontrava a pedagogia do cuidado ou o prprio termo cuidado, descobrindo um
tema relativamente novo para mim: governo.
Ao chegar ao final de todos os cadernos, havia compreendido que
poderia organiz-los em cinco categorias.

O material escrito abundante e considera-se delimitar a pesquisa


somente nele. So apenas 20, constituindo algumas centenas de
pginas. Todos os meses, de 2007 a 2010, esto registrados. E podemse reunir estes enunciados em cinco grandes grupos: anotaes
autobiogrficas; anotaes do cotidiano dos projetos e da organizao;
anotaes bibliogrficas, incluindo estudos, palestras, etc.; anotaes do
relacionamento externo entre a organizao e seus financiadores;
anotaes referentes ao poltica da organizao.

Biografia. Instituio. Bibliografia. Cooperao. Poltica. Cinco


categorias. Talvez a prpria estrutura da dissertao. Mas uma surpresa surgiria,
ainda neste mesmo texto: o ponto fulcral da pesquisa, os ingovernveis.

20

DELEUZE, Gilles. Espinoza e os signos. Porto: Rs Editora, Lda., 1970.

40

A questo no surgiria como uma inveno do tipo transcendental. A


anlise dos cadernos de campo levou-me inicialmente a propor uma anlise do
cuidado em um campo hbrido, formado pela interseco entre o social e o
educacional. O nome ingovernveis surgiria somente no penltimo pargrafo do
texto, quando eu descrevia o funcionamento de uma rede intersetorial de
instituies que atendem moradores de rua.
Eu escreveria: Vale destacar: a grande questo que pauta os
debates desta rede diz respeito a como lidar com os ingovernveis, ou seja,
aqueles que concebem um modo prprio de organizar sua existncia e recusam
as ofertas de uma vida fora das ruas21.
Aps esta atividade da ps-graduao a ideia de lidar com os
ingovernveis tornou-se muito atraente e foi para ela que direcionamos todos os
nossos esforos.
As pessoas atendidas pelo projeto que levaram ao nome
ingovernveis esto nos cadernos de campo de ponta a ponta e atravessam
todas as categorias que criamos a partir de nossas leituras. Na questo
autobiogrfica os ingovernveis nos faziam desesperar, sentir culpa, nos
questionar sobre o nosso prprio modo de vida. Na questo institucional eram
eles que nos faziam sofrer alteraes dirias em tudo o que era projetado,
planejado, pactuado, tornado consenso. Na questo bibliogrfica a pergunta
permanente era: devo me esforar para torn-los um de ns se eu quero me
tornar um deles? Na relao de cooperao com financiadores, parceiros, etc.,
sustentar a tenso quanto a essas pessoas que tinham um modo singular de
estar no mundo, considerando que os resultados quase nunca eram alcanados.
E, quanto poltica na cidade, a participao da organizao e do projeto numa
rede que envolvia vrios setores e vrias organizaes que atendiam a populao
em situao de rua a participao era sempre tensa quando os nomes e as
prticas destes que chamamos ingovernveis surgiam.

21

MACHADO, Silvio Ricardo Munari. Pedagogia do Cuidado: um estudo sobre a dimenso


tica e biopoltica do projeto pedaggico do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de
Petrpolis (RJ). So Carlos: UFSCar/PPGE. 9 p.

41

PRIVATIZAO DO COMUM

Penso que este atravessamento nos cadernos pode ser sentido com
mais intensidade nos registros realizados por conta de uma Audincia Pblica
convocada pelo Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro, em funo de
denncia apresentada por moradores de uma das principais ruas da cidade de
Petrpolis.
s vsperas da audincia um dos jornais impressos da cidade de
Petrpolis, a Tribuna de Petrpolis, divulgaria a seguinte nota22:

Abandono da Vila Macedo tema de audincia pblica


O Ministrio Pblico Estadual convocou para uma audincia pblica, no
dia 2 de abril, no Centro de Cultura. O objetivo foi analisar o problema e
encontrar solues para moradores de rua e usurios de drogas que
perambulam pela Rua Marechal Deodoro e, principalmente, pela Vila
Macedo, no Centro, e tambm o destino do terreno onde funcionava o
23
antigo Sandu tambm deve ser abordado.
A convocao, da promotora Vanessa Kaaps, responsvel pela 2
Promotoria de Justia e Tutela Coletiva de Petrpolis, foi feita com base
em denncia de moradores e comerciantes da regio, que assinaram um
abaixo-assinado pedindo providncias. Mais de 600 assinaturas, entre
elas a de mdicos, dentistas, advogados e empresrios de diferentes
ramos, foram entregues no Ministrio Pblico Estadual.

Alm do abaixo-assinado, os moradores elaboraram um dossi


contendo fotos e vdeos de mais ou menos dez pessoas que viviam por ali:
trabalhavam como flanelinhas (estacionando, guardando e lavando carros),
realizavam pequenos furtos, cheiravam cola de sapateiro, jogavam cartas,
tomavam bebida alcolica, dormiam sobre caixas de papelo, faziam sexo.

22

ABANDONO da Vila Macedo tema de audincia pblica. Portal Dados Municipais.


Disponvel em:
<http://www.dadosmunicipais.org.br/index.php?pg=exibemateria&secao=7&subsecao=21&id=871
&uid=>. Acesso em: 23/12/2012.
23

O extinto SANDU foi um sistema de assistncia mdica do tambm extinto INAMPS.

42

Aps a Audincia Pblica, o sndico de um dos edifcios da rea


disse ao mesmo jornal: A reunio foi excelente, tivemos a participao de vrias
autoridades. Tratamos das questes primordiais: as pessoas que ficam por ali
(drogados e moradores de rua), o trnsito, o abandono do terreno e a proliferao
de ratos e pombos24.
A rua onde estas pessoas dormiam era uma espcie de beco.
Ficava entre os fundos de um supermercado e a frente de um grande terreno
baldio, pertencente ao governo federal. Era mal iluminada, sem trnsito e, aps o
trmino do horrio comercial, tornava-se um espao adequado para o carteado
das ruas e tudo o que lhe fosse associado.
De um lado, seres inanimados: terreno abandonado, trnsito
problemtico. De outro, seres vivos: moradores de rua, ratos, pombos. Difcil seria
no lembrar das imagens veiculadas pela propaganda nazista no documentrio
O eterno judeu, que associa de forma grotesca as imagens de ratos e de pessoas
vivendo nos guetos.
A comparao, infelizmente, no esdrxula nem totalmente
deslocada. A audincia pblica deveria tratar de trs assuntos em simultaneidade:
o terreno abandonado, o trnsito, os moradores de rua. No tratou.

24

AUDINCIA traz esperanas para a Vila Macedo. Portal Dados Municipais. Disponvel em:
<http://www.dadosmunicipais.org.br/index.php?pg=exibemateria&secao=2&subsecao=9&id=897&
uid=>. Acesso em: 23/12/2012.

43

Transcorrida mais da metade da Audincia, realizei uma interveno


que est anotada em um de meus cadernos e que cobria trs pontos da questo.

Figura 1 Caderno 014 (2009): 3 pontos: 1 a questo mltipla: terreno, trnsito, mas est centrado na populao de
rua; 2 em 2007: CDDH instituio da sociedade civil tomou iniciativa, questo poltica negligenciada, articular; 3
criminalizao da pobreza: do desemprego, da pobreza complexa e extrema e com relao ao terreno[?]

Esta interveno foi seguida de falas de outras instituies que


realizavam trabalhos em torno da populao em situao de rua que habitava o
municpio. Tambm de falas indignadas de alguns moradores e comerciantes da
regio, os quais diziam que defendamos os moradores de rua porque eles no
estavam em nossas portas. E esta foi a toada at o final do evento.
A constante orientao da Audincia Pblica para os moradores de
rua e suas condutas, deixando para segundo plano as condies que
transformavam aquele espao em um local muito adequado para este tipo de
ocupao urbana, deixava claro que se tratava prioritariamente de uma questo
de propriedade. Quem poderia de fato ocupar aquele espao? Quais prticas
eram ou no permitidas naquele local? Como proceder com aqueles que
encontraram ali um local para viver suas vidas? Para mim no havia dvidas:
tratava-se do sequestro do comum.

44

Numa entrevista concedida em 2009, impressa e grampeada no


caderno 015, Michael Hardt assim definia o comum:

a Terra e tudo o que pertence a ela terra, gua, ar, florestas e assim
por diante. Por outro lado, o comum o resultado do trabalho humano
que dividimos, como ideias, imagens, conhecimento, linguagens, cdigos
e afetos. Parte do desafio apresentado pelo conceito de comum
relacionar esses dois domnios comuns. Se deve chamar o primeiro de
comum natural e o segundo de comum artificial, mas a diviso entre o
natural e o artificial rapidamente se desfaz. Um fator importante que une
esses dois domnios que devemos dividir o comum com livre acesso a
ele para que sobreviva e seja produtivo Os dois domnios so muito
diferentes, principalmente pelo fato de que o comum "natural" limitado,
25
enquanto que o comum artificial reprodutvel. (HARDT, 2009)

E como se produz o comum? Antonio Negri diria em uma aula que


dois elementos esto sempre presentes na construo do comum: a fora da
pobreza e o amor. No apenas a pobreza como simplesmente indigncia fsica e
material, uma simples condio de privao, mas sim aquela por meio da qual as
pessoas desenvolvem relaes e cooperam para superar faltas e privaes.
Sozinha ela no pode produzir o comum, mas pode faz-lo a partir do amor. O
comum como ao do amor a partir da pobreza 26.
No posso afirmar que nada disso interessava maioria das
pessoas presentes na ocasio. Contudo, onde vamos potncia, as pessoas viam
a falta em seu estado absoluto.
O encaminhamento final foi o seguinte: constituiu-se uma comisso,
formada por representantes da Prefeitura Municipal, das instituies da sociedade
civil, dos moradores, alm da representao do Tribunal Regional do Trabalho
(TRT) e da Companhia Petropolitana de Transportes (CP-Trans). Sob
coordenao do Ministrio Pblico, tal comisso deveria elaborar um plano de

25

HARDT, Michael. Crise abre espao para a poltica do comum. IHU Online. Rio Grande do Sul,
n. 287, Ano IX. 2009. Disponvel em:
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2441&secao=2
87>. Acesso em: 15/01/2012.
26
NEGRI, Antonio. La fbrica de porcelana. Barcelona: Ediciones Paids Amrica S.A., 2008.

45

trabalho para encaminhar as questes em trs aspectos: destino do terreno,


reordenao do trnsito, atendimento social aos moradores de rua.
A comisso foi efetivamente formada e desde 30 de Abril de 2009
registramos os seus primeiros encontros. Faria eco a uma movimentao que
realizvamos na mesma poca: uma srie de encontros com diversas instituies
que cuidavam da populao em situao de rua no municpio e que buscavam
definir as linhas de uma poltica municipal de atendimento. As diretrizes do
trabalho a ser realizado pela comisso seriam as mesmas discutidas por este
coletivo. Vejamos:

Figura 2 Caderno 014 (2009) "Abordagem de rua: sensibilizar,


coleta de dados; Socio-Educatvo: oficinas, atividades
culturais; Psico-Social: famlia, dep. qumica, sade mental;
Gerao de Trabalho e Renda: profssionalizao, emprego."

Essas quatro abordagens seriam realizadas pelo CDDH, via equipe


do projeto Po & Beleza, em parceria com a Secretaria Municipal de Assistncia
Social e representantes de moradores dos prdios residenciais e dos
comerciantes da Vila Macedo. O trabalho nas ruas seria feito por todos, incluindo
os moradores dos prdios e comerciantes. O trabalho SocioEducativo seria feito
pelo CDDH, nas dependncias do abrigo municipal para a populao em situao
de rua. O trabalho psico-social seria feito pela equipe da prpria Secretaria,
enquanto o trabalho de Gerao de Trabalho e Renda seria realizado por uma
outra instituio, no definida pela Prefeitura at aquele momento.

46

Seria maravilhoso relatar que os trabalhos realizados pela comisso


transcorreram de forma harmoniosa. Desde o incio a metodologia pactuada foi
apenas parcialmente implementada, realizando-se to somente os trabalhos de
abordagem de rua e psicossocial. A introduo do primeiro e nico relatrio
elaborado pela comisso demonstra de que modo o planejamento foi
operacionalizado27:

Os trabalhos realizados junto a populao em situao de rua no Brasil


vem ganhando contornos cada vez mais definidos. Em 2007, por
exemplo, o Governo Federal publicou o resultado da Pesquisa Nacional
sobre a Populao em Situao de Rua; um ano depois, em 2008,
tornado pblico o documento Poltica Nacional para Incluso Social da
Populao em Situao de Rua; documentos retomados em 2009,
quando o Governo Federal promove o II Encontro Nacional sobre
Populao em Situao de Rua.
No que diz respeito a nossa realidade local, o qual forneceu presente
relatrio tem o objetivo de descrever as atividades realizadas junto
populao em situao de rua que se encontra nas imediaes da Vila
Macedo. Tais aes vm sendo desenvolvidas por uma comisso,
definida em reunio intersetorial realizada na SETRAC, composta por
representantes dos moradores/trabalhadores da Vila Macedo, da
SETRAC e do CDDH.
Ao longo do relatrio esto registradas as aes realizadas e os
encaminhamentos decorrentes das mesmas. Entendemos ser importante
atender os moradores conforme seu grau de relao. Por exemplo, Fbio
e William Gomes Pereira, sendo irmos, foram atendidos em conjunta,
assim como Marcos Vincius e Dbora (Francilea).
Ressaltamos, ainda, que as aes buscam ser estendidas at as famlias
dos moradores em situao de rua. Em virtude de j conhecermos parte
do histrico de cada um dos atendidos, consideramos as questes
familiares como uma das condicionantes para que os mesmos possam
deixar a vida nas ruas.
Para alm das questes familiares, estamos tambm lidando com a
excluso socioeconmica dos indivduos e suas famlias; a dependncia
qumica dos indivduos e suas consequncias para a relao familiar,
trabalhista, e a prpria sade (fsica e mental) de cada um dos
moradores.

27

RELATRIO de acompanhamento do grupo de moradores em situao de rua da Vila Macedo.


Petrpolis, 2009, 6 p.

47

Por motivos que, penso, no cabe julgar, havia uma paisagem


conceitual completamente diversa em jogo entre os grupos que compuseram tal
comisso. Tal paisagem pode ser vislumbrada por uma frase retirada do mesmo
caderno de campo, anotada em reunio com representante do Ministrio do
Desenvolvimento Social a respeito das aes que vinham sendo pensadas junto a
catadores de material reciclvel.

Figura 3 Caderno 014 (2009). Um cidado que, antes de tudo, tem direitos

Nenhuma daquelas pessoas, pensvamos enquanto projeto Po &


Beleza, eram vagabundas, drogadas e ladras. Eram antes cidados com direitos.
E, embora no fosse um privilgio de nossa equipe operar a partir deste lugar, os
outros membros da comisso tinham outras prioridades, j que o poder pblico
lidava com as presses da sociedade local e os moradores/comerciantes dos
prdios ao redor conviviam cotidianamente com aquela situao que parecia
imutvel.
Tratando da questo das internaes compulsrias na cidade de
So Paulo, Antonio Lancetti diria em entrevista algo semelhante, ancorando seu
discurso nos anos de trabalho clnico e na prpria passagem do tempo em
relao Reforma Psiquitrica:

O que aprendemos nesses anos de Reforma Psiquitrica que a clnica


tem que ser pautada pelo conceito do direito. Voc olha para uma
pessoa e voc no fala assim: esse aqui um esquizofrnico, esse aqui
um drogado. Voc olha para ela e fala assim: esse a um cidado.

48
Embora ainda ele no esteja capacitado para exercer seus direitos, e
28
muito menos seus deveres. (LANCETTI, 2011)

Assim, lidando com urgncias e prioridades diferentes, a questo de


permanecer ou no nas ruas tornou-se motivo de intenso conflito durante o
trabalho da comisso. De um lado, a representao dos moradores sendo
pressionada e pressionando ao mesmo tempo; de outro, o poder pblico com sua
burocracia interminvel, atravancando os processos; entre ambos um acordo
tcito que se foi firmando: se essas pessoas no deixarem o local... a questo
passar a ser policial.
Em artigo recente, a respeito da deciso do governo do Estado de
So Paulo de promover a internao compulsria de dependentes qumicos,
Lancetti demonstra o quanto estas prticas trazem para o presente dispositivos
arcaicos para lidar com as questes referentes queles que usam as ruas.

As cracolndias so os manicmios ps-modernos e os craqueiros, os


loucos do sculo XXI. E esto a, nas regies degradadas das cidades
para mostrar nosso fracasso, nossa misria existencial consumista. O
modo como vamos enfrentar a questo expressar nossa sabedoria e
29
tica. (LANCETTI, 2013)

Foram cinco meses.


A ltima anotao nos dirios de campo de 21 de setembro de
2009, quando ainda estavam em pauta quase todos os mesmos moradores de
rua em questo.
Entre esses meses ocorreram aproximaes e reaproximaes entre
eles e seus familiares; internaes em clnicas de recuperao e sada das
28

LANCETTI, Antonio. Entrevista ao vereador talo Cardoso. Programa Sala de Visitas. 2011.
Disponvel em <http://www.youtube.com/watch?v=ewvEr1iamRE>. Acesso em: 05/01/2013.
29

LANCETTI, Antonio. Os riscos ocultos do crack. Revista Brasileiros, edio 49, ago. 2011.
Disponvel em: <http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/49/textos/1664/>. Acesso em
05/01/2013.

49

clnicas; migrao para outros espaos da cidade; gente que saa da rua e gente
que retornava. O interessante que estas pessoas aderiram s propostas
elaboradas pela Comisso. Suas famlias colaboraram, mudaram suas crenas
em relao a estes moradores de rua e estes em relao a si mesmos.
Fato que o espao voltou a ser ocupado pelo grupo. Algumas
vezes o grupo todo. Outras vezes apenas um ou outro morador. Bastava
arrefecer com os atendimentos e l estavam eles outra vez no espao.

PAIXES TRISTES

Havia, certamente, muita frustrao. Penso que para todos os


envolvidos: poder pblico, moradores dos prdios, moradores das ruas, pessoal
dos direitos humanos. Era de fato uma guerra, uma guerra composta de
batalhas, as quais eram em geral perdidas.
Ao final de meu primeiro ms de trabalho frente do projeto Po &
Beleza eu escreveria:

Figura 4 Caderno 002 (2007). "03/04/07. Faz um ms que


estou participando do Projeto e, neste ms, sinto que pouca
coisa, ou mesmo nada, foi feito. necessrio que eu
trabalhe melhor este sentimento, no sentido mesmo de
modific-lo."

Possivelmente um afeto produzido por algo mais do que a no


consecuo de um objetivo. A distncia, a saudade, a solido. Alm da prpria
dureza de ver dia-a-dia o intolervel: homens e mulheres cotidianamente
dispensando algumas horas de seu dia em um local onde lhes era permitido

50

realizar coisas elementares, que todos realizamos em nossos prprios lares: usar
um vaso sanitrio, tomar um banho, fazer uma refeio.
Lembrava-me frequentemente de Allen Ginsberg e seu Uivo para
Carl Solomon:

Eu vi os expoentes de minha gerao destrudos pela loucura, morrendo


de fome, histricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de
madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, hipsters
com cabea de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dnamo
estrelado da maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e olheiras
fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escurido dos
miserveis apartamentos sem gua quente, flutuando sobre os tetos das
30
cidades, contemplando jazz, [...] (GINSBERG, 1984, p.41)

No eram os expoentes de minha gerao, embora alguns


certamente fossem. No eram exatamente hipsters, embora alguns fossem
artesos de rua e de estrada. No eram os junkies pobres dos mticos bairros
pobres dos Estados Unidos, embora muitos fossem dependentes qumicos. No
viajavam ouvindo jazz, mas certamente arrastavam os ps em forrs clandestinos
aos finais de semana.
Essas sensaes de fracasso eram, de fato, despotencializaes
quase absolutas de nossas potncias de agir. Diante, por exemplo, da realidade
da morte, quase sempre uma pessoa da equipe sentia-se culpada e realizava
uma severa autocrtica buscando encontrar as faltas em suas aes que
contriburam para que mais uma vida fosse perdida.
Cada derrota nos atingia como o sol atingia a cera (que faz velas,
por exemplo) e a argila. Derrete aquela, endurece esta. Uma combinao mortal,
dir Deleuze. Pois os corpos nada mais so do que relaes entre corpos e todas
as vezes que desconhecemos os efeitos que um corpo, uma vez misturado ao
nosso, capaz de provocar, somos passveis de morrer.

30

GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984.

51

Em outro nvel de relaes, Deleuze tambm diria que no se trata


de misturas, mas daquilo que nos convm e daquilo que no nos convm. A
relao entre o corpo do arsnico e a do corpo humano, por exemplo:

se eu soubesse o bastante sobre a relao caracterstica do corpo


chamado arsnico e sobre a relao caracterstica do corpo humano, eu
poderia formar uma noo a respeito do que faz com que essas duas
relaes no convenham entre si, chegando o arsnico, sob sua relao
caracterstica, a destruir a relao caracterstica do meu corpo: eu sou
31
envenenado, eu morro. (DELEUZE, 1978)

Assim, o corpo chamado arsnico absolutamente desfavorvel s


relaes intrnsecas ao corpo humano. Somente o corpo-arsnico pode extrair
alegria desta relao, somente para ele esta relao favorvel, somente a
potncia de vida dele aumentada. O corpo humano afetado de tristeza, a
relao lhe desfavorvel, ele fica absolutamente afastado de sua potncia de
vida.
No h nada na tristeza para ns e todas as vezes que somos
afetados de tristeza morremos um pouco. Por isso importante chegar a um outro
nvel, que o nvel das noes comuns, ou seja, conhecer o que comum ao
meu corpo e aos demais corpos. Conhecendo isso podemos ser ativos na
produo de nossos afetos, de nossa alegria ou de nossa tristeza, na proximidade
ou distanciamento de nossa potncia de agir.
O desafio, ento, antecipar-se ao contato com estes outros corpos.
No caso dos contatos com os poderes, ento, o desafio pode ser definidor de uma
srie de questes, j que os poderes tem necessidade de que seus sditos sejam
tristes, passivos em seus jogos e meros espectadores de suas estratgias. E no
se trata de teoria. mesmo uma filosofia prtica32.

31

DELEUZE, Gilles. Aula sobre Espinosa em 24/01/78. Op. cit.

32

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prtica. Escuta, 2002.

52

ANDR

Um exemplo. Em 19 de setembro de 2009 foi assassinado um rapaz


chamado Andr. O crime foi macabro. Seu corpo foi encontrado no cemitrio
municipal, com o crnio esmagado por uma cruz, a qual fora arrancada de uma
das sepulturas. Duas pessoas da equipe reconheceram seu corpo no IML. A
Prefeitura Municipal providenciou o sepultamento.
Andr tinha cerca de 23 anos de idade. Cerca de pois nunca havia
sido registrado. Sabia o nome de sua me, sabia o nome de seu pai, fora criado
por uma pessoa que chamava de sua av. Passou a infncia entre as ruas e a
casa desta pessoa. Seu pai era um temido matador de um dos morros
considerados perigosos em Petrpolis. Sua me, no se sabe.
Nas ruas era conhecido como Lpis. Talvez por ser magro, negro,
alto, andar sempre de cabea raspada. Nunca perguntei. Mas passvamos vrias
horas por dia sentados em uma sala, espera do almoo, enquanto Andr fazia
peas de artesanato para vender. Entrvamos com a matria-prima e ele com a
mo-de-obra. O dinheiro das vendas era todo seu.
Ainda hoje me sinto entristecido pela histria. Andr foi a primeira
pessoa que atendi como profissional da organizao. Havia cumprido pena em
uma penitenciria do estado do Rio de Janeiro e pleiteava sua reinsero no
projeto Po & Beleza. Estvamos ento em 2007 e os coordenadores gerais da
organizao pensaram em dificultar tal reinsero, em funo de Andr
desestabilizar todo o espao em questo de segundos.
O projeto acompanhou Andr durante quatro anos. Muitos encontros
se produziram, mas deste terrvel encontro com a morte uma das pessoas de
nossa equipe jamais se recuperou. Fora de tal maneira afetada que durante
meses no pode realizar atividades com outros moradores de rua. Sequer podia
dormir, visualizando o rosto do jovem rapaz sempre que fechava os olhos.

53

Esta pessoa temia cometer um novo erro, pois acreditava ter tido
muita responsabilidade para com a morte de Andr. Dentre todas as questes
que ela enumerava para sustentar essa crena, uma delas no me parecia
despropositada na ocasio e, ao longo deste tempo de afastamento, ganhou
apenas mais fora.

ANIMAL ARISCO...

De fato, pouco antes de sua morte, Andr havia retornado de um


longo perodo encarcerado no presdio de Bangu/RJ. Chegou a Petrpolis e sua
primeira parada foi no CDDH. Sustentava um discurso comum a muitos egressos:
encontrei uma religio, deixei as drogas e quero mudar de vida. Entre este dia e
o dia de sua morte pouco mais de um ms havia transcorrido e Andr j havia
entrado e sado do abrigo municipal para populao de rua, bem como de outros
espaos mantidos por igrejas. Em todos os espaos Andr havia causado
problemas.
Andr oscilava do cu ao inferno e alm em vrios momentos do dia,
embora mantivesse o propsito da mudana. E uma das mudanas que fizera
durante este perodo foi livrar-se de sua arma de fogo, coisa que a pessoa de
nossa equipe compreendeu ter sido somente responsabilidade dela, quando
realizou atividades educativas que o haviam domesticado.
Embora discorde radicalmente desta concluso, o argumento como
um todo pareceu-me deste ento crucial para pensar qualquer tipo de trabalho
realizado no interior disto que se chama o social. Tal como colocado em um de
meus cadernos, durante a leitura de um texto definitivo de Deleuze 33 sobre o
tema:

33

DELEUZE, Gilles. A ascenso do social. Prefcio. In: DONZELOT, Jacques. A polcia das
famlias. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1980.

54

Figura 5 Caderno 004 (2007) O social: no o conjunto


de fenmenos que so objeto da sociologia. Tem por
referncia: setor particular, classificam problemas
bastante diversos (casos especiais, instituies
especficas, pessoal qualificado - assistentes sociais,
trabalhadores sociais).

De fato, tambm lidvamos com questes que Deleuze descreve


neste mesmo texto, inclusive com profissionais semelhantes:

Figura 6 Caderno 001 (2007) Chagas sociais - alcoolismo droga. Programas sociais: reproduo, controle de natalidade.
Desadaptaes ou adaptaes sociais: pr-delinquente,
distrbios de carter, deficiente, diversos tipos de promoo"

Mas o que o social? Lazzarato34, analisando as lutas dos


trabalhadores intermitentes na Frana a partir de dois seminrios de Michel
Foucault, define o social como um modo de governo que introduzido quando a
relao entre a economia capitalista e a poltica se torna problemtica. (Lazzarato,
2011, p.16).
Suas origens remontam ao sculo XVIII e tem dois personagens: de
um lado o homem econmico e, de outro, o sujeito de direitos. Este ltimo possui
direitos, enquanto que o primeiro possui interesses. Mas as figuras no se

34

LAZARATTO, Maurizio. O governo das desigualdades: crtica da insegurana neoliberal.


So Carlos: EdUFSCar, 2011.

55

sobrepem: o sujeito de direitos integra-se comunidade dos sujeitos de direitos


por meio de uma dialtica de renncia, enquanto o homem econmico integra-se
ao conjunto econmico por meio de seus interesses aos quais no renuncia.
(Idem, p. 16-17)
Como conciliar tal heterogeneidade? Cria-se um conjunto que
engloba, que combina uns e outros, e que permite governamentalidade manter
seu carter global, sem que as artes de governar economicamente e
juridicamente sejam separadas. Esse conjunto que se chama sociedade civil,
sociedade, social. sobre esta sociedade, produto desta interface, que o
liberalismo governa. (Idem, p.17)
Robert Castel, por fim, sintetizar este processo da seguinte
maneira:

Esse hiato entre a organizao poltica e o sistema econmico permite


marcar, pela primeira vez com clareza, o lugar do social: desdobrar-se
nesse entremeio (entre-deux), restaurar ou estabelecer ligaes que no
obedeam nem a uma lgica estritamente econmica nem a uma
jurisdio estritamente poltica. O social consiste em sistemas de
regulaes no mercantis institudos para tentar tapar essa fenda.
35
(CASTEL, 1998, p. 19, apud NEVES, 2004, 17)

Mas so as maneiras de operar neste hiato que podem nos dar


pistas sobre os processos vivenciados pelo projeto. Pois no tnhamos dvidas de
que no queramos realizar to somente um governo das desigualdades, tal como
Lazzarato intitulou seu livro. No queramos mas... no realizvamos?

35

SILVA, Rosane Neves. Notas para uma genealogia da Psicologia Social. Psicologia &
Sociedade; 16 (2): 12-19; maio/ago.2004. Disponvel em:
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v16n2/a03v16n2.pdf. Acesso em: 15/01/2013.

56

... DOMESTICADO ESQUECE O RISCO

E se a perspectiva de ao neste lugar denominado o social o


controle das desigualdades; ainda que os clculos e planejamentos tenham sido
realizados sob o signo deste controle; que moradores, comerciantes, ONGs,
poderes pblicos tenham interpenetrado suas aes ao mximo; as vidas que
nomeamos ingovernveis insistiram em arriscar-se pela urbe, desafiando o bem
que, de forma abundante, lhes era oferecido.
Nesta segunda parte buscamos tornar visveis alguns encontros que
mantivemos com estes ingovernveis. Indubitavelmente h uma fora que nos
atrai nestas vidas, uma paixo. Mas temos tentado ouvir Deleuze e Foucault:
compartilho do horror de Michel por aqueles que se dizem marginais: acho cada
vez menos suportvel o romantismo da loucura, da delinquncia, da perverso,
da droga (DELEUZE, 1996, p. 21)36.
Assim, desejamos fugir tanto da romantizao quanto da anlise de
suas vidas e pensar o que h se singular neste modo de relacionar-se com os
poderes constitudos. O que d a pensar estas vidas que, como num piscar de
olhos, submetem-se e escapam ingerncia sobre suas vidas? Qual o ponto
que estabelece uma ruptura entre recursar o governo dos outros e afirmar o
governo de si? O que est implicado nesta deciso?
A terceira parte de nosso trabalho buscar habitar o espao
colocado por estas questes e deslocar a potncia dos ingovernveis para o
plano do conhecimento. No tentaremos compor algo sobre os ingovernveis,
mas a partir deles. E, no limite, pensar acerca de nossa prpria relao com as
formas de controle sobre nossas vidas no contemporneo.

36

DELEUZE, Gilles. Desejo e prazer: carta de Deleuze a Foucault. Cadernos de Subjetividade,


So Paulo, nmero especial, p. 13-25, jun. 1996.

Parte III

58

DO AFETO AO PENSAMENTO

Uma filosofia uma espcie de sintetizador de conceitos, criar um


conceito no uma questo de ideologia. Um conceito um bicho.
Gilles Deleuze

A partir dos encontros com estas pessoas e com seus modos de


vida, em situaes to diversas quanto as descritas na Parte II deste trabalho,
chegou-se a um nome: ingovernveis. Ao nome-las deste modo assumimos
tambm o desafio de pensar sem que haja um conceito de ingovernveis, que
possa nos servir como pedra de toque, como referncia. A referncia o prprio
conceito de governo. Teremos que pensar o governo ao avesso. E chegado o
momento de nos determos neste ato de pensamento.
Mas nesta dissertao no queremos analisar as vidas dessas
pessoas. Talvez j tenhamos lanado luzes demais sobre elas e sobre suas
formas de resistir... Lembranas de Foucault e daquilo que escreveu acerca das
vidas de homens infames.

Para que alguma coisa delas [das vidas infames] chegue at ns, foi
preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante,
viesse ilumin-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da
noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer
o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem
dvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. O poder que
espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou ateno, ainda
que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que
as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que
disso nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denunciar,
queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir e tenha, em
poucas palavras, julgado e decidido. Todas essas vidas destinadas a
passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem
sido faladas s puderam deixar rastros breves, incisivos, com
frequncia enigmticos a partir do momento de seu contato
instantneo com o poder. De modo que , sem dvida, para sempre
impossvel recuper-las nelas prprias, tais como podiam ser em estado
livre; s podemos baliz-las tomadas nas declamaes, nas

59
parcialidades tticas, nas mentiras imperativas supostas nos jogos de
37
poder e nas relaes com ele. (FOUCAULT, 2010, p. 207-208)

Estamos tentando pensar a partir destas vidas infames. Elas e seus


ilustres personagens so inspiradores deste estudo. Afetaram meu corpo de tal
modo que j no podia pensar minha prpria vida cotidiana, quer fosse em casa,
no trabalho ou na academia sem t-los em conta. Assim, aqui se est sendo
forado a pensar e s se pensa porque se forado, como escreveu Deleuze. E o
que ele quer dizer com isso? O que que nos fora a pensar?, pergunta Suely
Rolnik (1996)38 a partir desta afirmao.

O que nos fora o mal-estar que nos invade quando foras do


ambiente em que vivemos e que so a prpria consistncia de nossa
subjetividade, formam novas combinaes, promovendo diferenas de
estado sensvel em relao aos estados que conhecamos e nos quais
nos situvamos. Neste momento como se estivssemos fora de foco e
reconquistar um foco, exige de ns o esforo de constituir uma nova
figura. aqui que entra o trabalho do pensamento: com ele fazemos a
travessia destes estados sensveis que embora reais so invisveis e
indizveis, para o visvel e o dizvel. O pensamento, neste sentido, est a
servio da vida em sua potncia criadora. (ROLNIK, 1996, p. 245)

E isso diz tanto do processo de produo desta dissertao! No


desejo, nem de longe, querer colocar palavras nas bocas destes homens e
mulheres com quem convivi, na realizao de um trabalho-militante, durante
aproximadamente quatro anos. Seus modos de vida falam por si prprios.
No que me diz respeito, tenho buscado fazer composies nesta
dissertao, e assim encontrar outras referncias que possam potencializar os
afetos e os efeitos destes afetos. Talvez por isso o carter processual do trabalho
esteja tambm no primeiro plano da escrita. Trata-se de encontrar aliados para a

37

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Manoel de Barros da Motta (org.).
Estratgia, Poder-Saber. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. p. 203-222. (Coleo
Ditos & Escritos Volume, 4)
38

ROLNIK, Suely. Despedir-se do absoluto. Cadernos de Subjetividade, So Paulo, nmero


especial, p. 244-256, jun. 1996.

60

travessia destes estados sensveis que embora reais so invisveis e indizveis,


para o visvel e o dizvel.

Quando este o trabalho do pensamento, o que vem primeiro a


capacidade de nos deixar afetar pelas foras de nosso tempo e de
suportar o estranhamento que sentimos quando somos arrancados do
contorno atravs do qual at ento nos reconhecamos e ramos
reconhecidos. A inteligncia vem sempre depois, outra ideia de
Deleuze, que ele toma a Proust, e que continua assim: a inteligncia s
boa quando vem depois, isto , quando ela vem dar suporte para a
construo desta cartografia conceitual. (ROLNIK, 1996, p. 245)

Ento chegado o momento de tentar dar consistncia a esse


termo, a esse nome, que pensamos a partir dos modos de vida daquelas
pessoas: ingovernveis.
Para tanto, vamos proceder da seguinte maneira: rememorar o que
j sabemos sobre os moradores de rua em geral e sobre os moradores de rua
que denominamos ingovernveis. A seguir, rememorar o trajeto que percorremos
desde o momento em que pensamos o nome at o momento em que o levamos
para dentro da academia. Por ltimo, e a partir dos elementos reunidos nestas
duas primeiras etapas, buscaremos realizar o trabalho de elaborao conceitual,

moda

dos sintetizadores

musicais,

que

fazem

com

que

elementos

essencialmente heterogneos acabem por se converter um no outro de algum


modo39.

NEM TODOS SO INGOVERNVEIS

Sabemos, em primeiro lugar, que h uma caracterstica comum a


todos os moradores de rua com quem mantivemos contato: viviam nas ruas
(acordavam, comiam, se relacionavam, faziam suas necessidades, dormiam).
39

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats. So Paulo: Editora 34, 1995. V. 2.

61

Sabemos tambm que alguns deles aceitavam viver dentro de instituies (o


abrigo municipal, os abrigos das igrejas), enquanto outros aceitavam apenas
atendimentos na prpria rua ou em servios-dia (como era o caso do projeto Po
& Beleza, onde se podia utilizar o servio sem institucionalizao).
Sabemos tambm que as instituies (do poder pblico ou da
sociedade civil, incluindo as igrejas e as ONGs) imprimiam condicionalidades para
o atendimento destes moradores de rua (por exemplo: caso tomasse banho,
receberia roupas limpas; caso no estivesse embriagado, dormiria no abrigo). Os
moradores

de

rua

que

encontramos

podiam

aceitar

ou

no

essas

condicionalidades41. Era um trao comum a aceitao inicial de todas essas


propostas e essa aceitao poderia repetir-se indefinidamente.
Mas aqui poderia instaurar-se uma ruptura, uma diviso entre o que
era comum a todos os moradores de rua e o que era comum apenas a uma
pequena parte deles, e esta ruptura acontecia quando as instituies impunham
uma condicionalidade definitiva: para que voc possa continuar recebendo nosso
atendimento preciso que voc realmente queira mudar de vida.
Ento, ou os moradores de rua seguiam as instituies e
ingressavam nos muitos tratamentos, procedimentos, cursos, etc. proporcionados
e l permaneciam por tempo indefinido (alguns, efetivamente, mudavam
completamente seus modos de vida), ou os moradores de rua recusavam tudo,
ainda que inicialmente tivessem aceitado as regras do jogo e, durante algum
tempo, jogado de acordo com estas regras (o caso de Maurcio, Andr e daqueles
que habitavam a Vila Macedo).
Interessa-me pensar a partir deste segundo grupo de pessoas. Um
grupo numericamente reduzido, constitudo por moradores de rua que procediam
da seguinte maneira em relao s instituies que lhes atendiam: 1) aceitavam
as condicionalidades inicialmente propostas; 2) durante algum tempo pareciam
realmente participar e aceitar a interferncia em suas vidas; 3) isto mudava
41

Por vezes ramos informados de abordagens da prefeitura municipal monitoradas pela guarda
municipal ou polcia militar. No era regra, no era costumeiro no naquele perodo em que a
atuao das instituies da sociedade civil era forte.

62

quando recebiam o ultimato de que deveriam realmente querer mudar de vida


para continuar a ser atendidos.

PUNKS INGOVERNVEIS

Nada disso, contudo, havia sido pensado quando a ideia e o nome


ingovernveis me ocorreram, ainda em 2011, quando finalizei a primeira leitura de
meu arquivo processo que descrevi na segunda parte do trabalho.
Havia intudo que um nmero reduzido de moradores de rua
recusava o governo dos outros em nome de um governo de si, e isso foi
totalmente influenciado pelas leituras dos ltimos cursos de Michel Foucault,
precisamente intitulados O governo de si e dos outros42.
Mas e quanto ao termo ingovernveis? De onde veio? Eu queria um
termo que pudesse expressar esta lgica: uma recusa da conduo das condutas,
isto , do governo dos outros em prol de um governo de si. E, forando o
pensamento, lembrei-me de uma banda punk, chamada Ingovernveis, que atuou
na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, em meados do ano 2000! A bem da
verdade, os meninos que tocavam eram conhecidos, alguns eram amigos, mas
nunca ouvi qualquer msica deles, no assisti a nenhuma apresentao ao vivo,
nada.
A ingenuidade de tentar pensar possibilidades de no ser governado
a partir da experincia profissional que busquei descrever at o momento, pareceme guardar relao com minha trajetria dentro do movimento punk (eu
participava ativamente de uma subdiviso do movimento punk, chamada straight
edge): letras de protesto, artigos (no-acadmicos) escritos por punks em
fanzines (uma espcie de revista prpria do movimento) e toda uma disposio de
viver de acordo com a tica do it yourself, a tica do faa-voc-mesmo (ainda hoje

42

FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2010-b.

63

um valor dentro do movimento punk, mas tambm j explorada pelo capital na


forma de autoajuda e de um modo cool de viver).
Muitos conceitos caros ao anarquismo circularam e circulam
amplamente pela rede mundial que o movimento punk: autogesto, autonomia,
autodidatismo, etc. Durante os anos em que participei ativamente deste cenrio
estas ideias influenciariam diretamente em minhas condutas, sempre no sentido
de agir de modo contrrio ao Estado e todos os seus tentculos.

INGOVERNVEIS
ACADMICA

ENQUANTO

PESQUISA

No mbito acadmico, que potencialmente pode formar uma


comunidade to interessante quanto a comunidade punk, o nome ingovernveis
escasso. Talvez pela prpria inviabilidade atribuda ideia de permanecer
ingovernvel. Veremos.
Quando me ocorreu (ou... me tomou de assalto!) a ideia estava
intensamente afeccionado43 pelas pesquisas de Michel Foucault em torno da
noo de governamentalidade, em fins dos anos 1970, e que se desdobraria nas
pesquisas realizadas nos anos 1980 que buscavam traar uma genealogia do
sujeito moderno, a partir de estudos das prticas de si das escolas filosficas
gregas e romanas e as mutaes que o cristianismo exerceria sobre estas
prticas, produzindo tcnicas de si que ecoam no mundo contemporneo.
Contudo, no h exatamente um texto que possa servir como pedra
de toque para que pensar nestes ingovernveis. Giorgio Agamben utiliza o termo,
de modo semelhante ao que tentamos fazer, em duas conferncias realizadas em
momentos distintos e que colocam a ideia de um elemento Ingovernvel como
nico meio de arrebentar com os dispositivos de poder e de governo.
43

Na leitura que Deleuze faz de Spinoza, a afeco [affectio] definida como uma mistura de
corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza do corpo afeccionado [affectionn] ou
afetado [affect].

64

Vejamos os pargrafos finais destas conferncias, nicos momentos


em que o termo e a ideia aparecem:

Quanto mais os dispositivos difundem e disseminam o seu poder em


cada mbito da vida, tanto mais o governo se encontra diante de um
elemento inapreensvel, que parece fugir a sua presa quanto mais se
submete docilmente a ela. Isto no significa que ele represente em si
mesmo um elemento revolucionrio nem que possa deter ou tambm
somente ameaar a mquina governamental. No lugar do anunciado fim
da histria, assiste-se, com efeito, ao incessante girar em vo da
mquina, que, em uma espcie de desmedida pardia da oikonomia
teolgica, assumiu sobre si a herana de um governo providencial do
mundo, que, ao invs de salv-Io, o conduz fiel, nisto, originria
vocao escatolgica da providncia catstrofe. O problema da
profanao dos dispositivos - isto , da restituio ao uso comum daquilo
que foi capturado e separado de si - , por isso, tanto mais urgente. Ele
no se deixar parar corretamente se aqueles que se encarregarem
disto no estiverem em condies de intervir sobre os processos de
subjetivao no menos que sobre os dispositivos, para leva-los luz
daquele Ingovernvel, que o incio e, ao mesmo tempo, o ponto de
44
fuga de toda poltica. (AGAMBEN, 2005, p. 16)
Parece-me que um verdadeiro confronto com os dispositivos
metropolitanos ser possvel somente quando penetrarmos nos
processos de subjetivao, que naqueles esto implicados, de um modo
mais articulado e mais profundo. Isso, porque creio que o xito dos
conflitos depender exatamente disso: da capacidade de intervir e agir
sobre os processos de subjetivao, justamente para atingir o ponto que
eu chamaria de ingovernabilidade. O ingovernvel sobre o qual pode
fracassar o poder na sua figura de governo; e este ingovernvel
tambm para mim o incio e o ponto de fuga de toda poltica.
45
(AGAMBEN, 2006, p.4)

Ainda que seja uma referncia mnima, espantoso o quanto sua


leitura da ideia de ingovernvel dialoga com aquilo descrito acerca da experincia
em Petrpolis. Naquele cenrio, as intervenes das instituies constitudas
(sem julgar suas intenes, etc.), que materializavam o poder na forma do
governo (conduo das condutas), fracassavam quando se deparavam com
aquelas figuras ingovernveis. Mas, ao mesmo tempo, era a partir destas figuras
que as aes deveriam ser repensadas, replanejadas, reconstitudas.
44

AGAMBEN, Giorgio. O que um dispositivo. Outra travessia, nmero 5, Florianpolis, Santa


Catarina, Brasil. 2005.
45

AGAMBEN, Giorgio. Metropolis. Sopro, Florianpolis, n. 26, p. 1-4, abri. 2010.

65

O Ingovernvel de Agamben est entre o incio e o fim de toda


poltica, e o elemento capaz de profanar os dispositivos e fazer fracassar o
poder na sua forma de governo. Sua constituio, enquanto elemento capaz de
operar deste modo, est diretamente relacionada com os processos de
subjetivao e a interveno que, os encarregados de profanar os dispositivos,
podem realizar sobre estes processos, a fim de fracassar o poder na sua forma de
governo.

A ARTE DE NO SER GOVERNADO

Mas em nossas pesquisas topamos com uma conferncia de


Michel Foucault, realizada em 1978, e que nos levaria ao corao de nossa
questo. uma palestra que tematiza o governo, entendido como conduo de
condutas, em relao ao que foi chamado de atitude crtica, uma espcie de limite
arte de governar.
de nosso maior interesse porque Foucault vai estudar a questo
da recusa ao governo das condutas perguntando-se, justamente, como no ser
governado. E tudo parte da abordagem histrica que faz a respeito daquilo que
chamou de atitude crtica, por meio da qual avana em direo ao tema do
governo. Assim, dentre as possveis maneiras de traar a histria dessa atitude
crtica, Foucault prope a que se segue:
A pastoral crist, ou a igreja crist, enquanto ostentava uma atividade
precisamente e especificamente pastoral, desenvolveu esta ideia
singular, creio eu, absolutamente estranha cultura antiga que cada
indivduo, quais sejam sua idade, seu estatuto, e isso de uma
extremidade a outra de sua vida e at no detalhe de suas aes, devia
ser governado e devia se deixar governar, isto , conduzir salvao,
por algum que o ligue numa relao global e, ao mesmo tempo,
46
meticulosa, detalhada, de obedincia. (FOUCAULT, 1978, p.2)
46

FOCAULT, Michel. O que a crtica? Crtica e Aufklrung. Bulletin de la Socit franaise de


philosophie, Vol. 82, n 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferncia proferida em 27 de maio de
1978). Disponvel em: <http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/critica.pdf>. Acesso em:
25/01/2013.

66

Ainda no mbito da igreja, grega e latina, Foucault fala em uma arte


de governar (a direo de conscincia), que ficaria restrita, ainda na Idade Mdia,
existncia conventual, prtica espiritual de grupos relativamente restritos.
(FOUCAULT, 1978, p. 3)
Mas, segundo acredita Foucault, houve uma exploso da arte de
governar os homens entre o sculo XV e a Reforma [protestante]. Exploso
entendida em dois sentidos: uma espcie de laicizao das artes de governar e
seu espraiamento pela sociedade como um todo e, num segundo sentido,
exploso que consistiu na

multiplicao dessa arte de governar em domnios variados: como


governar as crianas, como governar os pobres e os mendigos, como
governar uma famlia, uma casa, como governar os exrcitos, como
governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como governar
seu prprio corpo, como governar seu prprio esprito. Como governar,
acredito que esta foi uma das questes fundamentais do que se passou
no sculo XV ou no XVI. Questo fundamental a qual respondeu a
multiplicao de todas as artes de governar arte pedaggica, arte
poltica, arte econmica, se vocs quiserem e de todas as instituies
de governo, no sentido amplo que tinha a palavra governo na poca.
(FOUCAULT, 1978, p.3)

Na

mesma

medida

em

que

estas artes

de

governar se

generalizaram, (e agora nos encontramos face a face com a questo dos


ingovernveis!) Foucault dir que tambm se generalizou pela Europa um certo
tipo de atitude crtica que pode ser chamada de a arte de no ser governado, e
que perguntava: como no ser governado? No ser governado desse modo, por
isso, em nome desses princpios, em vista destes objetivos e por meio de tais
procedimentos, no assim, no para isso, no por eles. (FOUCAULT, 1978, p.3)
Assim, a questo da atitude crtica no era como no ser absolutamente
governado, como viver sem ser de modo algum governado, mas sim como no
ser governado de qualquer maneira.
Esta atitude crtica, como limite da governamentalizao, se d em
trs pontos: em relao religio, em relao ao direito natural e em relao
verdade: a Bblia, o direito, a cincia; a escritura, a natureza, a relao a si; o

67

magistrio, a lei, a autoridade do dogmatismo. Ento, em relao generalizao


desta arte de governar, a crtica enfocava o feixe de relaes que amarra, um ao
outro, a trade poder, verdade e sujeito:

E se a governamentalizao mesmo esse movimento pelo qual se


tratasse na realidade mesma de uma prtica social de sujeitar os
indivduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade,
pois bem, eu diria que a crtica o movimento pelo qual o sujeito se d o
direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder
sobre seus discursos de verdade; pois bem, a crtica ser a arte da
inservido voluntria, aquela da indocilidade refletida. A crtica teria
essencialmente por funo a dessujeio no jogo do que se poderia
chamar, em uma palavra, a poltica da verdade. (FOUCAULT, 1978, p.5)

No haveria, ento, uma vontade decisiva de no ser governado, um


modo de vida que fosse absolutamente ingovernvel? Uma questo, colocada ao
trmino da conferncia, pede a Foucault uma maior preciso quanto a esse ponto:
possvel no ser governado de forma alguma, ou seja, no ser absolutamente
governado?; ou a atitude crtica se manifesta apenas nesse limite
governamentalizao, manifestando-se na vontade de no ser governado
relativamente a um determinado modo de governo?
Por um lado a resposta de Foucault decisiva: a vontade de no ser
governado sempre relativa (no ser governado assim, dessa forma, etc.). Por
outro lado, Foucault levanta uma suspeita: no acredito naquilo que seria um
anarquismo fundamental, que seria como a liberdade originria absolutamente
indcil e ao fundo de toda governamentalizao (FOUCAULT, 1978, p. 25). Eu
no disse isso, prossegue Foucault, mas isso no quer dizer que eu o exclua
absolutamente.

GOVERNO

Eis que Foucault nos d uma parte do que precisamos! Mas no


tudo. Dois anos mais tarde, estas questes seriam recolocadas e ampliadas na

68

primeira aula de um curso realizado nos Estados Unidos, quando Foucault


desmembraria uma vez mais o tema do governo como conduo das condutas.
Agora j no se trata de perguntar como no ser governado de forma absoluta ou
relativa, mas sim de entender o governo como tcnicas em que esto implicadas
coero e, ao mesmo tempo, liberdade.
Eis, ento, uma definio de governo que amplia aquela com que
tivemos contato na seo anterior:

O encontro entre as maneiras pelas quais os indivduos so dirigidos por


outros e os modos como conduzem a si mesmos, o que se pode
chamar, creio, de governo. Governar pessoas, no sentido geral da
palavra no um modo de for-las a fazer o que o governo quer;
sempre um ponto de equilbrio, com complementaridades e conflitos
entre tcnicas que garantem a coero e os processos pelos quais o
sujeito construdo e modificado por ele mesmo. (Foucault, 2011-b, p.
47
155-156).

O governo passa a ser entendido aqui como a articulao entre dois


tipos de tcnicas: as tcnicas de dominao e as tcnicas de si, que Foucault
definir da seguinte maneira:

tcnicas que permitem aos indivduos realizarem, por eles mesmos, um


certo nmero de operaes sobre seus prprios corpos, suas prprias
almas, sobre seus prprios pensamentos, suas prprias condutas, e isso
de maneira a transformarem a si mesmos, de modificarem a si mesmos
e a atingirem um certo estado de perfeio, de felicidade, de pureza, de
poder sobrenatural e assim por diante (Foucault, 2011-b, p. 155).

Esta perspectiva pode ser ampliada pela leitura que Maurizio


Lazzarato48 faz do trabalho tardio de Foucault, que teria colocado sob o conceito
de poder trs diferentes categorias: as relaes estratgicas, as tcnicas de
47

FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collge de France, 1979-1980: excertos.

2. Ed. So Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiam, 2011-b.


48

LAZZARATO, Maurizio. As revolues do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,


2006.

69

governo e os estados de dominao. Em todas elas o que est em jogo a


mobilidade das relaes e do exerccio do poder.
As relaes estratgicas no dizem respeito a uma estrutura poltica,
um governo, uma classe social dominante, estando mais diretamente no interior
das relaes humanas. A marca aqui a mobilidade do exerccio de poder, no
sentido de que sempre possvel mudar uma situao existente. So, portanto,
relaes de poder entre sujeitos livres, que podem constantemente reverter
situaes de poder e governo das condutas49.
J os estados de dominao esto frequentemente ligados a
instituies (os sindicatos, os partidos polticos, a instituies estatais) que
limitam, congelam e bloqueiam a mobilidade, a reversibilidade e a instabilidade da
ao sobre uma outra ao. A possibilidade de inverter uma situao de
dominao quase impossvel. Estaramos no oposto do que so as relaes
estratgicas.
Entre ambos que esto as tcnicas ou tecnologias de governo, ou
seja, o conjunto das prticas atravs das quais se pode constituir, definir,
organizar, instrumentalizar as estratgias que os indivduos, em sua liberdade,
podem traar, em relao uns aos outros. Aqui temos Lazzarato, citando
Foucault, para esclarecer a centralidade destas tcnicas em relao mobilidade
ou cristalizao do exerccio do poder. O que essas tcnicas regem consigo e
com os outros.
O poder e as relaes de poder estariam, assim, por toda parte e
atravessando todas as relaes: de cada um relao a si mesmo, dos outros
sobre cada um, das instituies sobre todos e cada um. Seria ilusrio crer que
possam existir relaes sociais sem relaes de poder, mas no se pode da
mesma forma acreditar que os estados de dominao sejam inevitveis
(LAZZARATO, 2006, p. 253).

49

Exercer o poder sobre o outro no interior de uma relao sexual ou amorosa, por exemplo, na
qual se tenta ditar a conduta do outro, em que se age sobre as aes possveis do outro, no
interior de um jogo estratgico aberto, no qual as coisas podem reverter, faz parte do amor, da
paixo, do prazer. (LAZZARATO, 2006, p. 251)

70

IMPLICAES
INGOVERNVEIS

PARA

PENSAR

OS

Esta pacincia do conceito da maior importncia para o que


estamos tentando realizar aqui. Poderamos, inclusive, encerrar a dissertao
neste ponto, caso fosse de nosso interesse aplicar a potncia do pensamento
foucaultiano sobre nossa vivncia, sobre aquilo que escavamos em nossos
arquivos. Mas estamos tentando seguir outro caminho e pensar algo a partir de
baixo, do cho mesmo de nossa experincia. E, para tanto, a atualidade destas
conferncias de Foucault impressionante.
Primeiro porque ainda vivemos, de modo ampliado e intensificado, o
espraiamento de formas de governo da vida que pouco conhecem qualquer limite.
O como governar, enquanto tcnica e tecnologia, no faz outra coisa seno
proliferar: como governar as crianas, como governar os pobres e os mendigos,
como governar uma famlia, uma casa, como governar os exrcitos, como
governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como governar seu
prprio corpo, como governar seu prprio esprito. So questes que
incessantemente atravessam nosso cotidiano.
Em segundo lugar porque Foucault diz muito sobre a recusa ao
governo

das

condutas,

tal

como

vnhamos pensando

questo

dos

ingovernveis. Quando narramos, no incio deste trabalho, o encontro entre um


morador de rua e diversas instituies, tentamos demonstrar de que modo
recusava-se a permitir a ingerncia de outros sobre seu prprio modo de vida. O
intolervel para pessoas como Maurcio que tenham que renunciar ao modo
como conduzem suas prprias vidas (em outras palavras, ao governo de si) em
funo de um outro modo de se conduzir, um modo de conduzir que ditado por
outros (governo dos outros). Isto nos ajuda a entender que, mesmo entre nossos
amigos, no se trata tanto de no ser absolutamente governado, mas de no ser
governado de qualquer maneira, por qualquer pessoa, por qualquer instituio.
ltimo ponto destas implicaes das ferramentas de Foucault para
nossa cartografia: o governo, enquanto conduo das condutas, produzido no

71

ponto em que se cruzam tcnicas de dominao e tcnicas ou tecnologias de si.


Foucault explorou amplamente estas tcnicas de si na Antiguidade grega e
romana, tal como abordada pelos filsofos pagos, sobretudo, mas tambm na
assimilao que o cristianismo faria delas desde seus primrdios50.
Nosso plano inicial era dissertar amplamente sobre estes estudos de
Foucault. Contudo, ao longo desse processo de elaborao conceitual, pudemos
compreender que os moradores de rua que chamamos ingovernveis possuem,
eles mesmos, algumas tcnicas que lhes permitem enfrentar os poderes
constitudos e, desse modo, afirmar sua diferena e sua singularidade.
Tentaremos, agora, avanar nesse sentido.

TCNICAS MENDICANTES

De onde partimos, dos encontros com moradores de rua em


Petrpolis, nomeamos alguns pontos comuns entre todos os moradores de rua
para, a seguir, nomear alguns pontos comuns entre um nmero reduzido de
moradores de rua, os quais nomeamos ingovernveis. Isto nos levou a dizer que
todos eram moradores de rua, mas nem todos eram ingovernveis.
Enumeramos, ento, trs procedimentos destes ltimos em relao
ao governo dos outros: 1) aceitavam as condicionalidades inicialmente propostas;
2) durante algum tempo pareciam realmente participar e aceitar a interferncia em
suas vidas; 3) isto mudava quando recebiam o ultimato de que deveriam
realmente querer mudar de vida para continuar a ser atendidos.
Assim, podemos dizer que neste modo ingovernvel de proceder
frente aos estados de dominao atuam, simultaneamente, trs foras distintas,
porm complementares: a inconstncia, que est entre a aceitao de um certo
modo de governo dos outros e a afirmao do governo de si; a recusa, o gesto
50

FOUCAULT, Michel. A hermenutica do sujeito. 3 Ed. So Paulo: Editora WMF Martins


Fontes, 2010-c.

72

fundador de um modo de vida ingovernvel; a coragem da verdade, que um


desdobramento e um complemento da recusa. Inconstncia, recusa, coragem da
verdade, trs foras que passaremos a explorar agora.
Sobre a inconstncia no dissemos nada. Talvez tenhamos dito algo
a seu respeito, mas sem nome-la, quando exploramos nossos cadernos de
campo. De todo modo, trata-se de retomar algo que os jesutas haviam
identificado em alguns povos indgenas residentes no Brasil em torno do modo
como lidavam com o ensino da f: os brasis eram cordiais e aceitavam de pronto
tudo aquilo que lhes era ensinado; viravam as costas os jesutas e estes mesmos
brasis voltavam a viver como selvagens. Aqui, isto no ser considerado uma
falha, mas uma potncia.
Sobre a recusa tambm pouco dissemos. Ela o ato fundamental da
ciso entre os dois grupos de moradores de rua que definimos por meio de
aproximaes entre o que comum a cada grupo. o prprio kairs: o momento
da deciso, onde o ser se abre ao evento e ao porvir. A recusa aqui ser tratada
como um dizer no fundamental mas, diferente da recusa crist, que uma
recusa de si mesmo, esta recusa ser uma afirmao da prpria singularidade.
A coragem da verdade um desdobramento e um complemento da
recusa. o momento de afirmar a vida outra, maneira dos filsofos cnicos que
Foucault estudou e que experimentavam a coragem da verdade de duas
maneiras: um dizer a verdade, toda a verdade, implicando nisso o risco de perder
a vida (parresa); mas tambm dizer a verdade por meio de seus prprios modos
de vida, sem palavras, apenas pelo seu modo de viver.

CONSTANTES EM SUA INCONSTNCIA

Imaginemos um impossvel encontro entre o Padre Antonio Vieira e


aqueles moradores de rua de Petrpolis. Imaginemos, tambm, que o jesuta
tomasse contato com algumas das descries que atravessam esta dissertao,

73

especialmente em sua segunda parte. Seria impossvel imagin-lo escrevendo o


que se segue?

Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de


prncipes, vereis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois
gneros de esttuas muito diferentes, umas de mrmore, outras de
murta. A esttua de mrmore custa muito a fazer, pela dureza e
resistncia da matria; mas, depois de feita uma vez, no necessrio
que lhe ponham mais a mo: sempre conserva e sustenta a mesma
figura; a esttua de murta mais fcil de formar, pela facilidade com que
se dobram os ramos, mas necessrio andar sempre reformando e
trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir,
em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe
descompe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e
o que pouco antes era homem, j uma confuso verde de murtas. Eis
aqui a diferena que h entre umas naes e outras na doutrina da f.
H umas naes naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais
dificultosamente recebem a f e deixam os erros de seus antepassados;
resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a
vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, do grande trabalho
at se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a f,
ficam nela firmes e constantes, como esttuas de mrmore: no
necessrio trabalhar mais com elas. H outras naes, pelo contrrio
e estas so as do Brasil , que recebem tudo o que lhes ensinam, com
grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem
duvidar, sem resistir; mas so esttuas de murta que, em levantando a
mo e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam
bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. necessrio
que assista sempre a estas esttuas o mestre delas: uma vez, que lhes
corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que no vem; outra
vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que no dem
ouvidos s fbulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o
que vicejam as mos e os ps, para que se abstenham das aes e
costumes brbaros da gentilidade. E s desta maneira, trabalhando
sempre contra a natureza do tronco e humor das razes, se pode
conservar nestas plantas rudes a forma no natural, e compostura dos
ramos. (ANTONIO VIEIRA, apud, VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 183)

Imagino que o encontro seria espantoso! Posto que, conforme


estabelecemos no incio desta terceira parte, havia um modo de experimentar as
relaes com as instituies que era comum a todos os moradores de rua: a
aceitao de grande parte daquilo que lhes era proposto pelas instituies que
lhes saiam oferecendo ajuda. Aceitavam roupas, banhos, oraes e at mesmo
coisas que desconhecemos51. E, como foi o caso dos moradores de rua atendidos
51

Maurcio, assim como tantos outros que estavam nas ruas, aceitava os alimentos, as oraes, a
ajuda para conseguir seus direitos, at mesmo dar uma volta nas peruas e vans que conduziam as
pessoas que estavam nas ruas at o abrigo municipal ou s comunidades teraputicas dos
arredores. Aceitava isso e talvez mais coisas no sabemos.

74

na chamada Vila Macedo, embora os atendimentos tentassem abarcar sua vida


como um todo (a pessoa, a famlia, o comrcio local, os proprietrios de
apartamentos), eles sempre retornavam. Se, por um lado, isso pode significar
somente o fracasso das polticas de atendimento destinadas a este pblico, por
outro lado h que considerar que a constncia de sua inconstncia era um trao
potente no que diz respeito resistncia s intervenes que se faziam sobre
seus modos de vida.
O tema parece ter sido abundante no apenas entre os missionrios.
De todo modo, fazemos aqui uma espcie de trfico e bricolagem 52 do artigo de
Eduardo Viveiros de Castro, que procurou elucidar o que os jesutas e demais
observadores chamavam de inconstncia dos Tupinamb. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p.190)53

Tratava-se sem dvida de alguma coisa bem real, mesmo que se lhe
queira dar outro nome; se no um modo de ser, era um modo de
aparecer da sociedade tupinamb aos olhos dos missionrios. preciso
situ-la no quadro mais amplo da bulimia ideolgica dos ndios, daquele
intenso interesse com que escutavam e assimilavam a mensagem crist
sobre Deus, a alma e o mundo. Pois, repita-se, o que exasperava os
padres no era nenhuma resistncia ativa que os brasis oferecessem
ao Evangelho em nome de uma outra crena, mas sim o fato de que sua
relao com a crena era intrigante: dispostos a tudo engolir, quando se
os tinha por ganhos, eis que recalcitravam, voltando ao vmito dos
antigos costumes (Anchieta 1555: II,194). (VIVEIROS DE CASTRO,
2002, 190)

Esta mobilidade, amorfia, labilidade, instabilidade que perturbava os


padres, e certamente perturbava os trabalhadores sociais envolvidos com os
moradores de rua (falo tambm em meu nome!), parece-nos no apenas compor
de modo adequado com a experincia que nos levou a pensar no termo
ingovernveis, mas, sobretudo, parece-nos uma ferramenta extremamente
potente para enfrentar o governamento de nossas condutas.
52

Designa o aproveitamento de coisas usadas, partidas, ou cuja utilizao se modifica adaptandoas a outras funes.
53

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstncia da alma selvagem e outros ensaios de


antropologia. So Paulo: Cosac & Naify, 2002.

75

H, ainda, na leitura feita por Viveiros de Castro, aquilo que pode ser
chamado da questo da alteridade. No pensamento amerndio e na sociedade
Tupinamb o outro no era ali apenas pensvel ele era indispensvel. H que
se compreender esse interesse pelo outro, este vvido interesse pelas porcarias
trazidas pelo outro, era justamente algo prprio de pessoas que tinham como
(in)fundamento a relao com os outros e no a coincidncia consigo mesmas.
O valor a ser afirmado pelos amerndios no era o de uma
identidade substancial, mas sim o de uma afinidade relacional:

Se europeus desejaram os ndios porque viram neles, ou animais teis,


ou homens europeus e cristos em potncia, os Tupi desejaram os
europeus em sua alteridade plena, que lhes apareceu como uma
possibilidade de autotransfigurao, um signo da reunio do que havia
sido separado na origem da cultura, capazes portanto de vir alargar a
condio humana, ou mesmo de ultrapass-la. Foram ento talvez os
amerndios, no os europeus, que tiveram a viso do paraso, no
desencontro americano. Para os primeiros no se tratava de impor
maniacamente sua identidade sobre o outro, ou recus-lo em nome da
prpria excelncia tnica; mas sim de, atualizando uma relao com ele
(relao desde sempre existente, sob o modo virtual), transformar a
prpria identidade. A inconstncia da alma selvagem, em seu momento
de abertura, a expresso de um modo de ser onde a troca, no a
identidade, o valor fundamental a ser afirmado, para relembrarmos a
profunda reflexo de Clifford (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206).

Lanar-se aos movimentos propostos pelo outro no apenas porque


se trata de uma estratgica de sobrevivncia (expresso muito comum em
trabalhos com os moradores de rua, e que quer dizer que dentre as coisas que
eles fazem para viver est a adeso aos programas de atendimento propostos),
mas tambm porque se quer de fato realizar trocas e partilhas com o outro.
H que se considerar, neste nosso trabalho para pensar os
ingovernveis, algumas implicaes desta breve colagem: a inconstncia como
um modo de ser e/ou um modo de parecer; a genial bulimia ideolgica,
consistindo em tudo aceitar, voluptuosamente, para depois dispensar; a alteridade
que pode-se fazer sentir por esta afinidade relacional e no identidade
substancial, buscar o outro para diferenciar-se.

76

H, entretanto, uma transio a ser feita e ela diz respeito


ausncia de resistncia ativa que pudemos ver nesse modo de ser/parecer dos
Tupinamb. Esta transio est expressa naquilo que chamamos recusa.

RECUSA

Assim, a inconstncia est entre a aceitao de um certo modo de


governo dos outros e a afirmao do governo de si. Ela ao mesmo tempo
aceitao e afirmao. Mas esta aceitao e esta afirmao so expressas sem
nenhuma resistncia ativa.
Em nosso caso, havia um momento em que a resistncia ativa
surgia e ela era marcada por um dizer no, algo que definimos como o gesto
fundador de um modo de vida ingovernvel: a recusa. A recusa como ruptura, a
abertura de uma linha de fuga, a afirmao de uma diferena, a coragem de
abrir-se ao devir e singularidade. Se a inconstncia est entre os polos da
dominao e da inveno de si, a recusa a afirmao deste ltimo.
Encontramos eco em Maurizio Lazzarato (2006), que entende a
recusa como uma das formas de resistncia experimentada por movimentos
polticos e por singularidades aps 1968. De l para c, ambos passaram a
operar em dois planos simultneos:

o plano imposto pelas instituies constitudas, no qual tudo se passa


como se houvesse um s mundo possvel; e o plano escolhido pelos
movimentos e pelas singularidades, que o mundo da criao e da
efetuao de uma multiplicidade de mundos possveis (LAZZARATO,
2006, p. 203-204).

Operando sob a lgica da diferena, os conflitos ou as lutas passam


a acontecer em dois planos assimtricos. No primeiro, movimentos e
singularidades se constituem a partir da lgica da recusa, do ser-contra, da

77

diviso. E o no desta recusa dito de duas maneiras: por um lado, uma ruptura
radical com as regras de representao; por outro, a condio de necessidade
de abertura a um devir, a uma bifurcao de mundos e sua composio
conflitual, embora no unificadora. (LAZARRATO, 2006, p. 204)
No primeiro plano a luta se desenrola tambm como fuga: todos
partem como partiram do socialismo real, cruzando fronteiras ou recitando, sem
sair do lugar, a frmula eu preferiria no, de Bartleby. No segundo plano a luta
se desenrola como constituio criao e atualizao de mundos, onde se
desenvolve uma dinmica de subjetivao que , ao mesmo tempo, afirmao da
diferena e composio de um comum no totalizvel. (LAZZARATO, 2006, p.
205)
Ainda no campo da resistncia e da criao, Peter Pl Pelbart
(2009)54 pensa que outros modos de conflitualidade so criados no contexto psmoderno, que suscita posicionamentos mais oblquos, diagonais, hbridos e
flutuantes, diferente do que se dava na modernidade, quando a resistncia
obedecia a uma matriz dialtica, de oposio direta das foras em jogo
(PELBART, 2009, p. 136).
Peter exemplifica uma mudana na lgica da resistncia elencando
algumas dinmicas urbanas (nomadismos sociais, novos corpos ps-humanos,
redes sociais de autovalorizao, devires minoritrios, xodo e evacuao de
lugares de poder) que permitem que a resistncia v para alm das figuras
clssicas da recusa. E pergunta algo que de nosso maior interesse: mas como
elas funcionam no contexto das novas segmentaes, sobretudo num pas como
o Brasil, com sua herana histrica, em que regimes diversos de excluso e
segmentao se sobrepem? (PELBART, 2009, p. 137)
Peter tambm mobilizaria Antonio Negri para pensar como pode ser
dar a resistncia nessa passagem do moderno ao ps-moderno, quando a
resistncia se d como

54

PELBART, Peter Pl. Vida capital: ensaios de biopoltica. So Paulo: Iluminuras, 2009.

78
a difuso de comportamentos resistentes e singulares. Se ela se
acumula, ela o faz de maneira extensiva, isto , pela circulao, a
mobilidade, a fuga, o xodo, a desero: trata-se de multides que
resistem de maneira difusa e escapam das gaiolas sempre mais estreitas
da misria e do poder. (Negri, apud, Pelbrt, 2006)

E por meio de Negri e Hardt (2001)55 que nos reencontramos com


o escriturrio de Herman Melville, Bartleby, e sua clebre frmula: Eu preferiria
no fazer (ou preferiria no, uma traduo original I would prefer not to, que
talvez expresse o vcuo infernal que a sua recusa produzia em quem a ouvia).
Hardt e Negri inserem Bartleby e sua frmula na tradio da recusa
ao trabalho, mas vo alm. Veem em sua recusa uma deciso to intensa que
tornam absoluta a recusa. Veem tamanha firmeza que Bartleby parece
completamente vazio, um homem sem qualidades ou, como diriam os filsofos
renascentistas, humo tantum, apenas um homem e nada mais (HARDT; NEGRI;
2001, p. 222).
Hardt e Negri entendem que a recusa de Bartleby, entretando,
apenas o comeo da poltica libertadora, j que, em si mesma, a recusa vazia,
[...] so linhas de fuga completamente solitrias e caminham continuamente
beira do suicdio. A recusa, ento, tem a ver com um passo alm:

O que precisamos criar um novo corpo social, projeto que vai alm da
recusa. Nossas linhas de fuga, nosso xodo precisam ser constituintes e
criar uma alternativa real. Alm da simples recusa, ou como parte desse
recusa, precisamos construir um novo modo de vida e, acima de tudo,
uma nova comunidade. (HARDT; NEGRI, 2001, p.224)

Em todas estas leituras da recusa encontramos outros traos que


podem dar consistncia ao que estamos chamando de ingovernveis: fuga,
abertura de um devir, afirmao da diferena, movimento, construo de um novo
modo de vida, composio de novos mundos, uma nova comunidade.

55

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Imprio. Rio de Janeiro: Editora. Record, 2001.

79

Aqui aproximam-se Bartleby e os Tupinamb em um modo de


recusar que puro movimento. Ao mesmo tempo, lidamos com o elemento da
recusa como um dizer no, num processo de resistncia e criao caracterstico
da ao poltica de grupos e singularidades ps-1968. O que os liga? O que os
torna

complementares neste

processo?

Para finalmente encerrarmos a

composio do nome comum ingovernveis nos aproximaremos de alguns pontos


abordados por Foucault em torno dos cnicos.

CORAGEM DA VERDADE

Em 1983 Foucault realizaria o curso O governo de si e dos outros


(FOUCAULT, 2010-b), onde iniciaria uma sria de estudos histricos sobre a
noo de parrhesia (palavra dicionarizada em portugus brasileiro e grafada
parrsia; traduzida, em curso de Foucault, por parresa).
Estes estudos seriam aprofundados no ano seguinte, uma espcie
de prolongamento do curso de 1983, denominado A coragem da verdade: O
governo de si e dos outros II (FOUCAULT, 2011)56. um curso consagrado ao
estudo da parresa e marcado sobretudo pelos estudos que faz da parresa a
partir da figura de Scrates e pelo encontro de Foucault com os filsofos cnicos.
Este ltimo encontro, que ocorre a partir do meio do curso, faria com que Foucault
desdobrasse os estudos da parresa para o prprio modo de vida cnico.
Uma descrio, que ele cuida para que no seja estereotipada, de
pronto poder esclarecer por que os cnicos: A emblemtica do cinismo [...] o
homem de manto curto, barba hirsuta, ps descalos e sujos, com a mochila, o
cajado, e que est ali, nas esquinas, nas praas pblicas, na porta dos templos,
interperlando pessoas para lhes dizer algumas verdades. (Foucault, 2011, p.171)

56

FOUCAULT, Michel. A coragem de verdade: o governo de si e dos outros II. So Paulo: WMF

Martins Fontes, 2011.

80

Isso no quer dizer que os cnicos tenham sido mendigos, como so


os moradores de rua em geral, com quem cruzamos nas praas, semforos e
esquinas de nossas cidades. Eram mesmo filsofos, mas tinham um modo de
vida canino (a palavra cnico deriva de kunikos, co), no sentido de que viviam
como ces: sem pudor, sem vergonha, uma vida que se vivia em pblico, onde
nada se esconde; uma vida indiferente a tudo que possa acontecer, que conhece
apenas necessidades que podem ser imediatamente satisfeitas; uma vida que
ladra contra os inimigos; uma vida dedicada a salvar os outros e proteger a vida
dos donos. (FOUCAULT, 2009, 214-215)
Vamos nos limitar a falar de uma certa articulao entre a parresa,
entendia como o dizer-a-verdade, e o modo de vida cnico, entendido como
sendo, ele mesmo, uma forma de parresa. O modo de vida cnico (o cajado, a
mochila, a pobreza, a errncia, a mendicidade) [...] tem funes precisas em
relao a essa parresa, em relao a esse dizer a verdade (FOUCAULT, 2009,
149).
Foucault elencar trs caractersticas do modo de vida cnico que
so instrumentais parresa. Para ns, interessa especialmente a ltima, de
modo que iremos to somente citar as demais.
Primeiro, o modo de vida cnico instrumental parresa na medida
em que o cnico no tem vnculos, notadamente os familiares: como poderia atuar
em prol de toda a humanidade se no pode dedicar-se inteiramente a ela?
Depois, uma funo redutora: reduzir todas as convenes e as crenas, de sorte
que restem aos cnicos aquelas fundadas na natureza e na razo ( o que
permite, por exemplo, que Digenes masturbe-se em pblico para ele, um
gesto semelhante a comer em pblico). O terceiro modo de vida importante para
ns porque, aqui, a manifestao da verdade acontece pelo prprio modo como a
vida conduzida:

o cinismo vincula o modo de vida e a verdade a um modo muito mais


estrito, muito mais preciso. Ele faz da forma da existncia a prtica
redutora que vai abrir espao para o dizer-a-verdade. Ele faz enfim da
forma da existncia um modo de tornar visvel, nos gestos, nos corpos,

81
na maneira de se vestir, nas maneiras de se conduzir e de viver, a
prpria verdade. Em suma, o cinismo faz da vida, da existncia, do bos
o que podemos chamar de uma aleturgia, uma manifestao da verdade.
(Foucault, 2011, p. 150)

Na verdade, para Foucault o prprio cinismo se apresenta


essencialmente como um certa forma de parresa, de dizer-a-verdade, mas que
encontra seu instrumento, seu lugar, seu ponto de emergncia na prpria vida
daquele que deve assim manifestar a verdade ou dizer a verdade, sob a forma de
manifestao da existncia (FOUCAULT, 2011, p. 191).
tambm em seu modo de vida que o cnico expe sua coragem da
verdade. Nos cursos anteriores, a parresa enquanto coragem da verdade
consistia em arriscar a vida dizendo a verdade. A coragem da verdade cnica est
no fato de que arrisca-se a vida no simplesmente dizendo a verdade, por diz-la,
mas pela prpria maneira como se vive.
E, para mim, aqui est o ponto de interseco entre as foras que
podem compor o que vimos chamando de ingovernveis. Dissemos no incio da
dissertao: Pessoas que, por seu prprio modo de vida, experimentam outros
modos de governo ou outros modos de vida em relao quilo que pode ser
definido como normal, legal, saudvel, bonito, educado. (p.3, desta dissertao)
Reencontramos estas pessoas aqui. O nome comum ingovernveis no pode
prescindir de um modo de vida que se faz, ele mesmo, coragem da verdade.

SINTETIZADOR

Percorremos um longo caminho at aqui. Tentamos mobilizar


diferentes elementos para pensar em como constituir algo como um nome
comum: ingovernveis. Tentamos trabalhar moda dos sintetizadores, tal como
Deleuze e Guattari escrevem em Mil Plats.

82
Um sintetizador coloca em variao contnua todos os parmetros e faz
com que, pouco a pouco, "elementos essencialmente heterogneos
acabem por se converter um no outro de algum modo". H matria
comum desde que haja essa conjuno. E somente ento que se
alcana a mquina abstrata, ou o diagrama do agenciamento. O
sintetizador assumiu o lugar do juzo, como a matria assumiu o da
figura ou da substncia formada. (Deleuze; Guattari, 1995, p.23)

Buscamos, assim, deslocar os ingovernveis de nossa experincia


imediata em Petrpolis, Rio de Janeiro, entre 2007 e 2010, para pensar a
resistncia ao poder, em sua forma de governo, que se espraia, de modo quase
ilimitado, pela sociedade contempornea.
Chegamos ao momento de ver para onde nos levaram as
composies que pudemos realizar at agora: ingovernveis como composio,
como nome comum.

Final

84

PEDAGOGO-MILITANTE

Na noite de 13 de Setembro de 2010 eu repetiria um trajeto


realizado incontveis vezes: tomaria o nibus que parte, s 23 horas, da
rodoviria de Petrpolis rumo ao terminal rodovirio do Tiet, em So Paulo. A
grande diferena que, naquela noite, guardava em meu bolso somente a
passagem de ida...

Figura 7 Caderno 020 - "Segunda, 13 de Setembro,


Homologao no Ministrio do trabalho, 23:00 Retorno SP"

As sensaes eram confusas e penso que no poderia ser de outro


modo. Durante os anos de licenciatura em pedagogia procurei por todos os lados,
entre prticas e bibliotecas, um ponto em que poderiam convergir o pedagogo e o
militante. E o trabalho na coordenao pedaggica de um projeto social que
conjugava direitos humanos, educao popular e assistncia social havia me
permitido, durante os anos em Petrpolis, experimentar este lugar do pedagogomilitante de forma intensa.
Nos tempos do movimento punk, nossas canes e nossos escritos
dirigiam-se para um inimigo comum O Sistema. No meio em que eu circulava,

85

o punk era entendido como um estilo de vida e isso significava outro jeito de se
alimentar, de produzir, de circular os produtos. ramos rebeldes, mas eram
poucos os momentos em que percebamos o quanto O Sistema estava dentro
de ns. Fora do espao de relaes do prprio movimento estvamos
aprisionados a empregos e relacionamentos afetivos que em quase nada eram
minoritrios.
Depois a universidade. Ao longo dos quatro anos de curso fui
lentamente me afastando do convvio com o movimento punk e me envolvendo
com o movimento estudantil, projetos de extenso universitria e grupos de
estudo. Era nestes movimentos que procurava uma relao entre a pedagogia e a
rebeldia.
Um destes grupos de estudo me permitiu manter contato direto e
prolongado com autores que poucas vezes eram mencionados no curso de
pedagogia (Deleuze, Foucault, Guattari, Negri) e tambm realizar intervenes,
no mbito da prpria comunidade acadmica, que buscavam conjugar tica,
esttica e poltica.
O movimento estudantil, por sua vez, colocou-me em contato com
um modo de realizar a ao poltica datado, que no considerava, sob hiptese
alguma, as questes da ps-modernidade, como eles diziam. Seu repertrio de
prticas e estratgias mobilizava muitas palavras de ordem contra O Capital,
entretanto, limitavam-se a pregar para os convertidos, pois no encontravam
ouvidos nos estudantes que consideravam alienados.
Enfim, os projetos de extenso levaram-me a manter contato com
bairros muito pobres da cidade onde estudava. A sensao de que a ao poltica
deveria ser muito diferente daquela praticada pelos colegas do movimento
estudantil intensificou-se ao mximo. Sem levar em conta a problemtica da
subjetividade parecia-me que estaramos condenados mera pregao
ideolgica.
Em Petrpolis a rebeldia, a pobreza e a ao poltica formavam algo
como um amlgama, quase indiferenciado. Para lidar com as situaes
apresentadas pelo projeto no bastava somente a pedagogia (e suas tcnicas

86

mobilizadas para a coordenao do projeto), mas tambm a ao poltica


(mobilizada aqui na forma da militncia).
Estava forjada a figura de um pedagogo-militante.

PEDAGOGO ESGOTADO

Um ms antes desta derradeira viagem, na noite de 11 de Agosto de


2010, eu anunciaria minha sada do CDDH (e meu retorno ao estado de So
Paulo), numa reunio com representantes de instituies parceiras no trabalho
com a populao em situao de rua.

Figura 8 Caderno 020: "Silvio informa sada; Rosane fala que sua presena
foi importante, deixou semente. Pe. Quinha: deixou frutos. Jonas:
humildade".

Foi uma noite importante. O estado da arte da poltica de proteo e


ateno populao em situao de rua parecia slido e eu tinha uma forte
sensao de ter contribudo com todas as minhas foras para isso. De certo
modo, aquela noite selava minha vivncia de quase quatro anos na realizao de
aes que aconteciam na interface entre direitos humanos, educao popular e
assistncia social.
E eu estava esgotado. No apenas j no podia realizar nada, como
tambm no existia mais qualquer possvel para mim. E isso muito mais do que

87

estar cansado, pois o cansado algum que por um momento no pode realizar
algo possvel, mas o possvel ainda est l para ser realizado. O cansado apenas
esgotou a realizao, enquanto o esgotado esgota todo o possvel 57. (DELEUZE,
2012, p.67-69)
J no havia para mim qualquer objetivo, projeto e preferncia: a
realizao do possvel procede sempre por excluso, pois ela supe preferncias
e objetivos que variam, sempre substituindo os precedentes isto produz
cansao, mas ainda h o possvel. Mas eu estava esgotado e o que contava era
em que ordem fazer o que deve e segundo quais combinaes fazer duas coisas
ao mesmo tempo, quando ainda necessrio, s por fazer (DELEUZE, 2012, p. 68
- 71).
E no havia qualquer meio de conciliar as duas figuras: pedagogomilitante, pedagogo-esgotado. So de natureza diferente: o primeiro
inteiramente movido por alegria, cheio de potncia, at mesmo em suas aes
mais loucas e apaixonadas; o outro movido pela tristeza, no h qualquer
potncia, suas aes so apenas reaes, ressentimento venenoso para si
mesmo e para o mundo.

PEDAGOGO PESQUISADOR

Alguns meses depois desse retorno eu estava inscrito no programa


de ps-graduao, com o projeto de mestrado em andamento. Meses se
passaram at que efetivamente eu pudesse revisitar o material onde estas tramas
estavam arquivadas. Era esse esgotamento operando neste novo devir: entre o
pedagogo militante e esgotado e pesquisador.
Contudo, no seria possvel construir esta memria sem submergir a
estes diferentes lugares e tempos acima relacionados e emaranhados. Por meio
57

DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto a menos; o esgotado. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2012.

88

dos cadernos foi possvel acessar todo tipo de sensaes e rememorar solides,
brigas, bebedeiras; leituras, notas, projetos ambiciosos; mobilizaes, embates;
fracassos, tristezas, mortes, impotncias.
As sensaes no tm passado, presente ou futuro; esto sempre
ali, espera de serem acessadas para o que est sob as fissuras da cartografia
em curso, e que elas anunciam, possa tomar corpo e levar sua reconfigurao
(ROLNIK, 2011, p.57)58.
Ao chegar ao fim desta escrita, deste processo, nos damos conta de
que no apenas rememoramos estas sensaes ao longo da realizao da
pesquisa, mas tambm estivemos em contato e conflito direto com a atualidade,
quando ganham fora problemas que se desenvolvem em torno da questo de
pessoas que chamamos ingovernveis.
No era nossa pretenso, como anunciamos no princpio, a de
oferecer respostas perguntas dos dias de hoje. Mas elas esto face a face com
o que pensamos, pesquisamos, com a nossa prpria experincia. Estados de
dominao que proliferam em todas as instncias da vida.
Pensamos aqui no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
SINASE, tornado lei h quase um ano, e que regulamenta a execuo das
medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional59.
Tambm os recentes arbtrios em torno da internao compulsria e na recente
parceria firmada entre o Governo do Estado de So Paulo, o Ministrio Pblico e
a Ordem dos Advogados do Brasil para realizao da internao compulsria de
dependentes qumicos60.
58

ROLNIK, Suely [org]. Arquivo para uma Obra-Acontecimento. So Paulo: SENAC, 2011.

59

BRASIL. Lei n 12.594, de 18 de Janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento


Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execuo das medidas socioeducativas destinadas a
adolescente que pratique ato infracional. <Disponvel em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>. Acesso em: 30 jan 2013.
60

GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO. Entenda o que a internao compulsria para


dependentes qumicos. Disponvel em:
<http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=225660&c=558&q=entenda-o-que-u-ainternauuo-compulsuria-para-dependentes-quumicos>. Acesso em 30 jan 2013.

89

INGOVERNVEIS COMO NOME COMUM

Assim, ao longo desta dissertao, tentei demonstrar, no sentido de


tentar fazer ver, uma experincia e suas aes, buscando tambm recortar os
acontecimentos que me levaram a pensar na ideia de ingovernveis. No foi tanto
o projeto Po & Beleza e tambm no foi o CDDH. Foram os encontros com
alguns moradores de rua. Alguns nomeados individualmente (Maurcio, Andr) e
outros apenas em coletivo (aqueles atendidos pela Comisso da Vila Macedo).
Quisemos ento pensar os ingovernveis como um nome comum.
Partamos da noo de cuidado de si foucaultiana como chave para ler todo este
processo. Mas no deu, no funcionou, outros afetos foram mobilizados. E
fomos, pouco a pouco, tentando operar com o dispositivo do sintetizador para
encontrar as categorias que pudessem nos fazer construir este nome comum, ou
seja, trazer existncia coisas que acontecem e de dar a elas, em base emprica,
um significado mais ou menos geral, procurando assim qualificar a extenso da
generalidade qual chega a definio. (NEGRI, 2003, p.10)61
O ingovernvel como nome comum, e no como conceito, para
permitir a abertura aos novos eventos que se produziro como resistncia s
incessantemente renovadas tecnologias de governo. Caber a cada um, a partir
daquilo que viveu e dos afetos que pode experimentar, realizar a cartografia
conceitual que permita potencializar as resistncias singulares e coletivas que
emergem dos processos e rumam criao.

61

NEGRI, Antonio. 5 Lies sobre Imprio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

90

INGOVERNVEIS COMO COMPOSIO

nome

comum

que

atribumos

nossa

experincia

foi

ingovernveis e com isso quisemos nomear aquelas pessoas que mobilizam a


inconstncia, a recusa e a coragem para afastar as foras que querem governar
suas condutas (governo dos outros) e, deste modo, afirmarem sua prpria
singularidade (governo de si).
Quanto recusa: aqueles poucos moradores de rua que
consideramos ingovernveis efetivamente recusavam o atendimento, dizendo o
que no queriam e por que no queriam sempre que eram postos contra a
parede. A recusa como "eu preferiria no", tal como em Bartleby, tambm
acontecia, mas no era to definitiva quanto a recusa frontal, parrsica.
Quanto

coragem:

entra

nesta

composio

porque

estes

ingovernveis arriscam a vida no apenas porque dizem uma verdade (eu


recuso), mas principalmente porque seu prprio modo de vida expressa a
verdade que dizem: no vivo de acordo com estes preceitos, com esta moral,
com estas regras. Dizer a verdade mas, principalmente, mostrar a verdade no
prprio modo de vida.
Quanto inconstncia: o ponto mais forte da inconstncia destes
ingovernveis diz respeito mobilidade do desejo, na aceitao irrestrita do que
era oferecido para, depois, retornar ao modo de vida anterior ao contato e ao
contrato. Ao mesmo tempo, havia um desejo genuno de conhecer alguns dos
educadores, seus mundos, seus modos de vida, que se expressava at mesmo
em paixo amorosa, em amizade, etc.

91

LTIMA PGINA

Chegamos a algum lugar. Precrio, certamente. Tambm imperfeito.


Mas, sobretudo, provisrio, considerando que foi um trabalho forjado a partir de
lutas que tiveram lugar em determinado espao e tempo. O grande desejo que
algumas palavras, algumas pginas, sejam capazes de potencializar outras lutas:
ocorram

elas

nas

ruas

ou

no

pensamento.

Ambos

so

lugares

de

experimentao. Coragem!
E, quando se reala a provisoriedade do trabalho como um todo,
justamente em funo de outras lutas que ocorrero. Comeamos esta ltima
parte com uma pgina de nosso arquivo que marcou a derradeira viagem e no
quisemos terminar com ela porque outros caminhos tm sido percorridos, outras
lutas, outras centenas de pginas anotadas em cadernos, agendas, cadernetas.
Outras lutas, outro arquivo!
Certamente encontraremos problemas ditos tericos neste trabalho
e com eles teremos que nos entender. Mas, para alm disto, o nome comum
ingovernveis carrega em si uma potncia e uma alegria: dizer-se e sentir-se
ingovernvel, ainda que por um segundo, d uma alegria e uma potncia dos
diabos. E a alegria... esta a prova dos nove!
Que prolifere!

92

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SP:

site

de

So

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<http://www.spressosp.com.br/2012/07/93-das-mortes-cometidas-por-pms-desao-paulo-ocorrem-na-periferia/>. Acesso em: 15/01/2013.

ABANDONO da Vila Macedo tema de audincia pblica. Portal Dados


Municipais.

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<http://www.dadosmunicipais.org.br/index.php?pg=exibemateria&secao=7&subse
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