Os Ingovernáveis Silvio Munari Ufscar
Os Ingovernáveis Silvio Munari Ufscar
Os Ingovernáveis Silvio Munari Ufscar
OS INGOVERNVEIS
2013
OS INGOVERNVEIS
SO CARLOS
2013
M149in
RESUMO
A partir de um arquivo constitudo por vinte cadernos de campo, que registraram
uma experincia em coordenao pedaggica no projeto social Po & Beleza (entre
2007 e 2010), realizado pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis RJ, o presente trabalho buscou pensar em modos de resistncia ao governamento
da vida na contemporaneidade, tendo como referncia os modos de vida de um
grupo de moradores de rua atendidos pelo projeto acima mencionado, os quais
foram denominados ingovernveis. Trabalhamos com este arquivo utilizando
ferramentas tericas forjadas pela filosofia da diferena, principalmente os autores
Michel Foucault e Gilles Deleuze, buscando realizar uma cartografia conceitual. Esta
cartografia tem os afetos como primeiro passo para a elaborao conceitual, ou seja,
primeiro deixa-se afetar pelas foras presentes na pesquisa. So esses afetos que
nos foram a pensar e, desse modo, criar meios para tornar visveis e dizveis estas
foras prprias do campo das sensaes. Tomamos, ento, os conceitos de
inconstncia, recusa e coragem da verdade para traar os contornos do nome
comum ingovernveis. A inconstncia, que est entre a aceitao de um certo modo
de governo dos outros sobre si mesmo e a afirmao do governo de si sobre si
mesmo; a recusa, como gesto fundador de um modo de vida ingovernvel; e a
coragem da verdade, de inspirao Cnica, que um desdobramento e um
complemento da recusa.
ABSTRACT
The present study aimed to consider ways of government resistance in contemporary
life. The study has started from an archive consisting of twenty field notebooks, which
registered an experience of pedagogic coordination in a social project called Po &
Beleza (between 2007 and 2010), realized by Centro de Defesa dos Direitos
Humanos de Petrpolis RJ. As reference of life a group of homeless, people
served by the project mentioned above, which in this study were called
ungovernable, has been taken. To work with this archive the conceptual tools forged
by the philosophy of difference and its authors Michel Foucault and Gilles Deleuze
has been used seeking to draw a conceptual cartography. This cartography has the
affections as a first step towards the conceptual elaboration, ie, first let themselves
be influenced by the forces present in the research. These affects force us to think
and thereby to create means to make visible and sayable these forces that belongs
to the field of sensations. The inconstancy, refusal and courage or truth are the
concepts used to outline the common name ungovernable. The inconstancy, which is
between the acceptance of a certain mode of government of others over himself and
the government of the self over the self; refusal, founding gesture of an ungovernable
way of life, and the courage of truth, inspired by cynical, which is an offshoot and a
complement of refusal.
SUMRIO
Introduo ....................................................................................................
08
Parte I ............................................................................................................
12
Maurcio ............................................................................................................
13
Pr-histria .......................................................................................................
15
16
22
23
28
30
32
34
Parte II ...........................................................................................................
35
36
Arquivos ............................................................................................................
38
41
49
Andr ................................................................................................................
52
53
58
60
62
65
Governo ............................................................................................................
67
71
72
Recusa .............................................................................................................. 76
Coragem da verdade ........................................................................................
79
Sintetizador .......................................................................................................
81
Final ................................................................................................................
83
Pedagogo-militante ...........................................................................................
84
Pedagogo-esgotado .........................................................................................
86
Pedagogo-pesquisador ..................................................................................... 87
Ingovernveis como nome comum ...................................................................
89
90
91
Referncias ..................................................................................................
92
INTRODUO
monografia
no
porque
ela
traga
informaes
indispensveis para a redao deste texto, mas sim por uma frase em especial,
escrita ao final do primeiro captulo, que traduz um pouco do esprito que toma
conta de mim quando revisito o material utilizado para realizar a pesquisa de
mestrado. A frase foi escrita a propsito de minha viagem a Petrpolis ainda em
2006, quando estava elaborando a j referida monografia, e tentava registrar em
palavras o quanto os dez dias desta viagem produziram memrias em meu corpo.
Eis a frase: Retornei. Sem nunca ter sado de l.
De certo modo ainda uma frase potente, j que para escrever este
texto, esta dissertao, tenho a proposio de explorar um arquivo constitudo por
vinte cadernos, cadernetas, agendas, blocos de notas, produzidos ao longo dos
anos em que l trabalhei entre maro de 2007 e setembro de 2010. Trata-se, de
certo modo, de tecer algumas narrativas. A histria da prpria organizao, a
1
MACHADO, Silvio Ricardo Munari. A Pedagogia do Cuidado no projeto Po & Beleza. 1996.
52f. Monografia (Licenciatura em Pedagogia). Universidade Estadual Paulista, UNESP, Rio Claro,
1996.
10
11
PARTE I
13
MAURCIO
Em 2007 Maurcio contava 31 anos de idade. No era difcil localizlo nas imediaes do centro histrico da cidade de Petrpolis/RJ, desde que
fornecidas cinco informaes: mendigo, homem, negro, que no tem os dentes
da frente e cheira cola de sapateiro.
Maurcio relatava viver nas ruas da cidade desde a infncia, ter tido
famlia adotiva, e muitos outros detalhes que, possivelmente, sejam os detalhes
das vidas de outros tantos que vivem pelas ruas do Brasil contemporneo.
H algo no modo como Maurcio vivia que, talvez, no possa ser
considerado uma caracterstica pessoal. Este algo diz respeito ao modo como
se relacionava com as muitas instituies de natureza pblica ou privada, que o
procuravam pelas ruas por motivos muito dspares: fornecer alimentao, doar um
cobertor, oferecer uma orao, garantir seus direitos, oferecer internao em uma
clnica para viciados, retir-lo das ruas.
Maurcio, assim como tantos outros que estavam nas ruas, aceitava
os alimentos, as oraes, a ajuda para conseguir seus direitos, at mesmo dar
uma volta nas peruas e vans que conduziam as pessoas que estavam nas ruas
at o abrigo municipal ou s comunidades teraputicas dos arredores. Aceitava
isso e talvez mais coisas no sabemos.
O que Maurcio no aceitava era que tentassem conduzir suas
condutas. Conduo que acompanhava as muitas ofertas que recebia: se no
cheirasse mais cola hoje, amanh receberia mais sopa; se tomasse um banho
hoje, receberia roupas limpas; se deixasse sua lata de cola na rua, poderia passar
a noite no abrigo; se aceitasse realizar um tratamento de desintoxicao,
receberia um emprego.
Maurcio tinha modos mais ou menos cordiais de responder a cada
uma destas promessas e condies que tinham como premissa a necessidade de
mudana. A forma das respostas dependia de critrios conhecidos somente por
14
ele, aprendidos consigo mesmo ou com outros, com o objetivo de preservar seu
modo de vida em relao s instituies que lhe assediavam e lhe propunham
que renunciasse a si mesmo.
No projeto social onde trabalhei, estes modos de recusa foram
diversos: algumas vezes gritos, outras ausncias prolongadas; outras vezes,
ainda, um simples no, eu agradeo, mas estou bem assim ou olha, agora no
posso falar com a assistente social porque preciso fazer minha caminhada, cuidar
da minha sade, n?.
Outras vezes, contudo, esta recusa assumiu a forma de uma
resposta muito bem elaborada, capaz de colocar em xeque no apenas nossos
mtodos pedaggicos e nossos honrados princpios, mas tambm nosso prprio
modo de vida. Mais ou menos assim: olha, sr. Silvo, eu agradeo a oportunidade
que vocs me do aqui, de poder tomar um banho, de me alimentar, os pessoal
aqui so muito gente fina comigo mas, com todo respeito, eu no quero mudar de
vida para ter que pagar aluguel, pagar conta de gua, conta de luz, para ter que
ficar escutando uma mulher me enchendo a pacincia o tempo inteiro, entende?
Se no der mais pra ser atendido aqui eu vou entender, mas eu prefiro continuar
vivendo assim e garanto para o senhor que no sou nem mais nem menos feliz
que o senhor, entende?.
Assim, Maurcio estabelecia uma relao at certo ponto clara com
as diferentes instituies que, por motivaes diversas, procuravam por ele:
aceitaria sopas, oraes, roupas, dinheiro e qualquer outra coisa, contanto que
esta aceitao no implicasse na renncia de si mesmo e na concesso para que
outros pudessem conduzir e governar sua vida.
Obviamente os efeitos deste tipo de relao de um morador de rua
com os demais moradores da cidade eram desconcertantes. No caso de Maurcio,
isto lhe custou os dentes da boca, um ano na priso, constantes duras das
polcias e pode ter-lhe custado a vida, pois desde 2010 no houve quaisquer
notcias sobre ele.
15
PR-HISTRIA
16
Nesse sentido, o cuidado como uma tica, e a tica como a possibilidade mesma
dos encontros.
cotidiano,
os
participantes
do
projeto
(chamados
pela
17
Escolaridade:
fundamental
8%
no
completo;
escolarizados;
71%
com
14%
ensino
com
ensino
fundamental
Mantivemos a nomenclatura original. Entendemos que aqui deveria ser raa, e no etnia.
Quanto ao nmero de brancos, na pesquisa ocorreu a autodeclarao.
18
13%
estavam
desempregados;
4%
eram
19
20
cozinhas,
tornaram-se
refratrias
prpria
cidadania
que
haviam
demandado. Uma coisa dizer durante a campanha: este ser um governo para
Populao em situao de rua o termo usado hoje pelo Ministrio do Desenvolvimento Social
para referir-se s pessoas que tem nas ruas sua vida cotidiana, em termos de moradia,
sobrevivncia, etc. Utilizo mendigos, moradores de rua ou populao em situao de rua ao longo
da dissertao para referir-me a estas pessoas que vivem nas ruas. O termo mendigo ou
utilizado em contextos onde h referncia pejorativa a essas pessoas, ou uma liberdade potica.
Prefiro o termo moradores de rua porque designa uma situao absolutamente paradoxal: morar
em um lugar que no uma moradia. Alm disso, tambm exprime as prprias condies
precrias das polticas pblicas brasileiras. J o termo populao em situao de rua
considerado progressista porque a expresso em situao quer designar que uma condio
transitria e que pode mudar desde que atendidas, adequadamente, as demandas apresentadas.
Foi um termo muito utilizado pela equipe do projeto em instncias em que era preciso insistir na
transitoriedade da condio de morador de rua. Nesta dissertao, aparecer quando o texto
expressar situaes vividas, sobretudo, na esfera governamental.
21
os mais pobres. Outra coisa estar em contato com os mais pobres e perceber
que no so pura carncia, mas tambm muita potncia.
No mbito das cozinhas comunitrias, pode-se afirmar que foi
possvel garantir refeies que saram de acordo com o projeto da instituio
(saborosas, nutritivas e de qualidade) para os frequentadores das trs unidades.
A dimenso do Po. Contudo, o trabalho referente dimenso da Beleza no
deslanchou. Quer dizer, no houve atividades educativas de qualquer espcie. A
prefeitura parecia entender a importncia de que as mesmas acontecessem, mas
esta compreenso no se traduzia em aportes financeiros que viabilizassem as
mesmas.
No mbito do abrigo municipal, as pessoas em situao de rua que
eram ento atendidas foram organizadas em grupos e estes grupos funcionaram
moda de conselhos populares que, por meio de rodas de conversa, partilhavam
suas inquietaes quanto sua prpria vida, quanto vida no cotidiano do abrigo
e quanto s perspectivas de futuro. Cada grupo constitua dois representantes
que, numa outra instncia, reuniam-se junto aos representantes da prefeitura para
levar as reivindicaes comuns a todos os abrigados. Prontamente estas pessoas
propuseram modificaes de diversas ordens para o cotidiano do abrigo, as quais
incluam os horrios de funcionamento do refeitrio, dos banheiros, da recepo
de novos abrigados, etc.
A reao da prefeitura foi ambgua: aceitaram as reivindicaes e,
ao mesmo tempo, iniciaram uma espcie de perseguio aos representantes dos
abrigados que encaminhavam as discusses das assembleias. Esta perseguio
era perversa: os funcionrios do abrigo passaram a valorizar as pessoas
abrigadas que no participavam de qualquer atividade e, ao mesmo tempo,
insinuar que os participantes das atividades eram alcaguetes dos demais.
Em pouco tempo as assembleias tornaram-se vazias, nossas
atividades foram suspensas e alguns dos abrigados, que eram lideranas, viramse impelidos a sair do abrigo, mesmo em condies totalmente desfavorveis (em
outras palavras: no havia qualquer programa que pudesse acompanha-los ou
22
apoi-los com moradia e emprego, por exemplo: saiam do abrigo com uma mo
na frente e outra atrs, como tantas vezes nos disseram).
Estas e outras situaes ocorreram ao longo de todo o processo e,
salvo engano, continuaram ocorrendo at o final do ano de 2012, quando a
organizao decidiu fechar o projeto para balano, considerando novamente
alteraes do contexto poltico municipal (agora exclusivamente em funo das
eleies).
Esta guinada da primeira para a segunda fase foi tambm
importante para o prprio Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis
porque, de certa maneira, marcava um retorno a uma dimenso que atravessou a
prpria organizao at meados da dcada de 1990, qual seja, a realizao de
aes permanentes fora da prpria sede da organizao, sobretudo no que diz
respeito ocupao das prprias ruas da cidade e da atuao no interior de
comunidades perifricas, as quais encontram-se nos primrdios de suas aes.
OBSERVAO: ININSTITUCIONALIZVEIS
23
LIMITES DA ESCRITA
24
Pura paixo!
Foi tambm com a mesma intensidade que o Sr. Carlos recebeu a
notcia sobre o fechamento do projeto. Como fariam para manter as aulas de
eletrnica? Como fariam para alimentar aquelas pessoas pobrezinhas que no
recebiam ajuda nem das igrejas? Talvez tenha feito tantas outras perguntas. No
anotei nenhuma delas, mas impossvel no encontrar estas palavras registradas
no meu corpo intensivo.
E se realizo este relato, para tentar tornar menos burocrticas as
pginas anteriores, impregnadas de um relato quase higinico. Como se os
processos que levaram de uma fase a outra do projeto no tivessem sido
extremamente angustiantes e repletos de paixes tristes. Incomoda, igualmente, a
incapacidade de poder realizar os relatos, realizar a escrita mesma do texto, de
modo que estas tenses possam estar evidentes na prpria superfcie do texto.
Talvez isso seja prprio do contexto em que agora nos encontramos,
quando devo apresentar um texto acadmico para obter o ttulo de mestre. Talvez
isso seja fruto de minha prpria inabilidade para transpor os registros existentes
em meu arquivo para a tela em branco do computador. Talvez, ainda, sejam as
prprias lacunas dos arquivos que falem sem nada dizer num momento como
este.
Fato que ao terminar este histrico pude lembrar-me de muitos
encontros com os participantes do projeto enquanto este sustentou o seu
refeitrio e recordar muitas histrias tristes, tensas, angustiantes. No relatrio
entregue no ms de Maio de 20096 para a Secretaria Municipal de Assistncia
Social do Municpio de Petrpolis (SETRAC), pode-se ler:
25
O nmero de beneficirios caiu drasticamente, oscilando entre 20 e 25
beneficirios, que se dividem entre a Oficina de Cinema (segunda-feira),
o Grupo de Referncia (quarta-feira) e a Oficina de Eletrotcnica (sextafeira).
Ressaltamos que as discusses realizadas no Grupo de Referncia
giram em torno da qualidade dos servios oferecidos pelo Restaurante
Popular. Os beneficirios comparam incessantemente o servio que
tiveram no refeitrio do projeto ao dia-a-dia do Restaurante Popular.
Suas consideraes so positivas no que diz respeito higiene e
organizao espacial do local. Contudo, so bastante negativas no que
diz respeito ao atendimento (no humanizado), quantidade de alimento
servido (principalmente no que diz respeito aos homens), qualidade da
refeio (padro industrial).
Com o passar das semanas, foi-se dissipando o medo que os
beneficirios tinham de que o projeto chegasse ao fim. Ao mesmo
tempo, esperam que o CDDH possa auxili-los a alcanar melhorias no
Restaurante Popular, de modo que este possa ter a cara do povo, e no
da empresa que o administra.
26
27
comeo disso pode ser o que a prpria organizao disponibiliza em seu website7
como sendo seu histrico:
28
29
prprios pobres serem eles mesmos o sujeito de sua prpria luta pelos
8
direitos a serem garantidos e defendidos. (MIRANDA, 1991, p.40-41)
MIRANDA, Mrcia. Panorama do Brasil. In: BOFF, Leonardo et al. Direitos humanos, direitos
dos pobres. So Paulo: Vozes, 1991.
9
10
COIMBRA, Ceclia. Operao Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violncia
urbana, a mdia impressa e os discursos de segurana pblica. Rio de Janeiro: Oficina do Autor;
Niteri: Intertexto: 2001.
30
consideram suspeitos e que devem, portanto, ser evitados e, mesmo,
eliminados. (COIMBRA, 2001, p. 57-58)
11
93% das mortes cometidas por PMs de So Paulo ocorrem na periferia. Spresso SP: o site de
So Paulo. Disponvel em: <http://www.spressosp.com.br/2012/07/93-das-mortes-cometidas-porpms-de-sao-paulo-ocorrem-na-periferia/>. Acesso em: 15/01/2013.
12
BOFF, Leonardo. Do lugar do pobre. Petrpolis: Editora Vozes, 1986.
13
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. So Paulo: Editora tica, 1994.
31
Dedico este texto aos membros do grupo Justia e Paz de Petrpolis.
Tiveram que andar sozinhos e compreenderam que no basta que a
Igreja exista. Ela precisa ser continuamente construda, no contra, mas
apesar daqueles que a querem reduzir antiga sinagoga. (BOFF, 1994)
14
32
Mas nada disso teria nascido a partir do interior da Igreja, mas sim a
partir de seu contato com o mundo. Se os documentos produzidos por papas,
bispos, leigos, foram inspiradores de movimentos como estes que deram origem
ao CDDH, os prprios documentos teriam sido inspirados no a partir do alto,
como se tivessem cado dos cus. E, se pensarmos neste pedao do mundo que
era a Amrica Latina dos anos 1960 - 1970, podemos vislumbrar grandes pases
espoliados e grandes massas de pobres entregues muito cedo foice da morte.
Em fins dos anos 1960, o telogo peruano Gustavo Gutirrez havia
sido ordenado sacerdote e enviado a uma parquia do bairro pobre de Rimac, em
Lima, e l defrontou-se com um problema que o atormentava: como dizer ao
pobre que Deus o ama? Em 1971, Gutirrez formularia parte desta resposta no
livro que intitulou Teologia da Libertao. Perspectivas.15 Ao mesmo tempo, um
outro telogo formulava reflexes semelhantes no Brasil, publicadas em formato
de artigos numa revista religiosa, a fim de driblar a ditadura civil-militar. O
conjunto destas reflexes mais tarde seria publicado no formato de um livro, o
Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff.
No centro de suas publicaes estava (esto) o pobre concreto,
suas opresses, a degradao de suas vidas e o padecimento sem conta que
sofre16. A racionalidade que atravessava toda esta teologia tomava o pobre no a
partir daquilo que lhe falta (como o fizeram os grupos paternalistas e
assistencialistas), no a partir daquilo que ele tem (como o fizeram os grupos que
o tomaram como fora de trabalho a ser includa), mas sim como aqueles que tm
fora histrica para mudar o seu prprio tempo e o sistema que o faz pobre.
15
33
traando
estratgias
para
ocupao
de
terrenos
ociosos,
34
PARTE II
36
ARQUIVANDO O PRPRIO EU
Imaginemos por um instante um lugar onde tivssemos conservado
todos os arquivos das nossas vidas, um local onde estivessem reunidos
os rascunhos, os antetextos das nossas existncias. Encontraramos a
passagens de avio, tquetes de metr, listas de tarefas, notas de
lavanderia, contracheques; encontraramos tambm velhas fotos
amarelecidas. No meio da confuso, descobriramos cartas:
correspondncias administrativas e cartas apaixonadas dirigidas bemamada, misturadas com cartes postais escritos num canto de mesa
longe de casa ou ainda com aquele telegrama urgente anunciando um
nascimento. Entre a papelada, faramos achados: poderia acontecer de
esbarrarmos com nosso dirio da adolescncia ou ainda com algumas
pginas manuscritas intituladas "Minhas lembranas de infncia".
(ARTIRES, 1998, p. 9)
manipulamos
existncia:
omitimos,
rasuramos,
riscamos,
ARTIRES, Philippe. Arquivar a prpria vida. estudos histricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21.
1998. Disponvel em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061/1200>.
Acesso em: Agosto/2012.
37
38
ARQUIVOS
Houve a perda de um caderno importante, que cobriu um ano de experincia, entre o final de
2009 e final de 2010. Que pena!
39
20
40
21
41
PRIVATIZAO DO COMUM
Penso que este atravessamento nos cadernos pode ser sentido com
mais intensidade nos registros realizados por conta de uma Audincia Pblica
convocada pelo Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro, em funo de
denncia apresentada por moradores de uma das principais ruas da cidade de
Petrpolis.
s vsperas da audincia um dos jornais impressos da cidade de
Petrpolis, a Tribuna de Petrpolis, divulgaria a seguinte nota22:
22
42
24
AUDINCIA traz esperanas para a Vila Macedo. Portal Dados Municipais. Disponvel em:
<http://www.dadosmunicipais.org.br/index.php?pg=exibemateria&secao=2&subsecao=9&id=897&
uid=>. Acesso em: 23/12/2012.
43
Figura 1 Caderno 014 (2009): 3 pontos: 1 a questo mltipla: terreno, trnsito, mas est centrado na populao de
rua; 2 em 2007: CDDH instituio da sociedade civil tomou iniciativa, questo poltica negligenciada, articular; 3
criminalizao da pobreza: do desemprego, da pobreza complexa e extrema e com relao ao terreno[?]
44
a Terra e tudo o que pertence a ela terra, gua, ar, florestas e assim
por diante. Por outro lado, o comum o resultado do trabalho humano
que dividimos, como ideias, imagens, conhecimento, linguagens, cdigos
e afetos. Parte do desafio apresentado pelo conceito de comum
relacionar esses dois domnios comuns. Se deve chamar o primeiro de
comum natural e o segundo de comum artificial, mas a diviso entre o
natural e o artificial rapidamente se desfaz. Um fator importante que une
esses dois domnios que devemos dividir o comum com livre acesso a
ele para que sobreviva e seja produtivo Os dois domnios so muito
diferentes, principalmente pelo fato de que o comum "natural" limitado,
25
enquanto que o comum artificial reprodutvel. (HARDT, 2009)
25
HARDT, Michael. Crise abre espao para a poltica do comum. IHU Online. Rio Grande do Sul,
n. 287, Ano IX. 2009. Disponvel em:
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2441&secao=2
87>. Acesso em: 15/01/2012.
26
NEGRI, Antonio. La fbrica de porcelana. Barcelona: Ediciones Paids Amrica S.A., 2008.
45
46
27
47
Figura 3 Caderno 014 (2009). Um cidado que, antes de tudo, tem direitos
48
Embora ainda ele no esteja capacitado para exercer seus direitos, e
28
muito menos seus deveres. (LANCETTI, 2011)
LANCETTI, Antonio. Entrevista ao vereador talo Cardoso. Programa Sala de Visitas. 2011.
Disponvel em <http://www.youtube.com/watch?v=ewvEr1iamRE>. Acesso em: 05/01/2013.
29
LANCETTI, Antonio. Os riscos ocultos do crack. Revista Brasileiros, edio 49, ago. 2011.
Disponvel em: <http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/49/textos/1664/>. Acesso em
05/01/2013.
49
clnicas; migrao para outros espaos da cidade; gente que saa da rua e gente
que retornava. O interessante que estas pessoas aderiram s propostas
elaboradas pela Comisso. Suas famlias colaboraram, mudaram suas crenas
em relao a estes moradores de rua e estes em relao a si mesmos.
Fato que o espao voltou a ser ocupado pelo grupo. Algumas
vezes o grupo todo. Outras vezes apenas um ou outro morador. Bastava
arrefecer com os atendimentos e l estavam eles outra vez no espao.
PAIXES TRISTES
50
realizar coisas elementares, que todos realizamos em nossos prprios lares: usar
um vaso sanitrio, tomar um banho, fazer uma refeio.
Lembrava-me frequentemente de Allen Ginsberg e seu Uivo para
Carl Solomon:
30
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984.
51
31
32
52
ANDR
53
Esta pessoa temia cometer um novo erro, pois acreditava ter tido
muita responsabilidade para com a morte de Andr. Dentre todas as questes
que ela enumerava para sustentar essa crena, uma delas no me parecia
despropositada na ocasio e, ao longo deste tempo de afastamento, ganhou
apenas mais fora.
ANIMAL ARISCO...
33
DELEUZE, Gilles. A ascenso do social. Prefcio. In: DONZELOT, Jacques. A polcia das
famlias. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1980.
54
Figura 6 Caderno 001 (2007) Chagas sociais - alcoolismo droga. Programas sociais: reproduo, controle de natalidade.
Desadaptaes ou adaptaes sociais: pr-delinquente,
distrbios de carter, deficiente, diversos tipos de promoo"
34
55
35
SILVA, Rosane Neves. Notas para uma genealogia da Psicologia Social. Psicologia &
Sociedade; 16 (2): 12-19; maio/ago.2004. Disponvel em:
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v16n2/a03v16n2.pdf. Acesso em: 15/01/2013.
56
36
Parte III
58
DO AFETO AO PENSAMENTO
Para que alguma coisa delas [das vidas infames] chegue at ns, foi
preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante,
viesse ilumin-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da
noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer
o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem
dvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. O poder que
espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou ateno, ainda
que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que
as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que
disso nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denunciar,
queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir e tenha, em
poucas palavras, julgado e decidido. Todas essas vidas destinadas a
passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem
sido faladas s puderam deixar rastros breves, incisivos, com
frequncia enigmticos a partir do momento de seu contato
instantneo com o poder. De modo que , sem dvida, para sempre
impossvel recuper-las nelas prprias, tais como podiam ser em estado
livre; s podemos baliz-las tomadas nas declamaes, nas
59
parcialidades tticas, nas mentiras imperativas supostas nos jogos de
37
poder e nas relaes com ele. (FOUCAULT, 2010, p. 207-208)
37
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Manoel de Barros da Motta (org.).
Estratgia, Poder-Saber. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. p. 203-222. (Coleo
Ditos & Escritos Volume, 4)
38
60
moda
dos sintetizadores
musicais,
que
fazem
com
que
elementos
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats. So Paulo: Editora 34, 1995. V. 2.
61
de
rua
que
encontramos
podiam
aceitar
ou
no
essas
Por vezes ramos informados de abordagens da prefeitura municipal monitoradas pela guarda
municipal ou polcia militar. No era regra, no era costumeiro no naquele perodo em que a
atuao das instituies da sociedade civil era forte.
62
PUNKS INGOVERNVEIS
42
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2010-b.
63
INGOVERNVEIS
ACADMICA
ENQUANTO
PESQUISA
Na leitura que Deleuze faz de Spinoza, a afeco [affectio] definida como uma mistura de
corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza do corpo afeccionado [affectionn] ou
afetado [affect].
64
65
66
Na
mesma
medida
em
que
estas artes
de
governar se
67
GOVERNO
68
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collge de France, 1979-1980: excertos.
69
49
Exercer o poder sobre o outro no interior de uma relao sexual ou amorosa, por exemplo, na
qual se tenta ditar a conduta do outro, em que se age sobre as aes possveis do outro, no
interior de um jogo estratgico aberto, no qual as coisas podem reverter, faz parte do amor, da
paixo, do prazer. (LAZZARATO, 2006, p. 251)
70
IMPLICAES
INGOVERNVEIS
PARA
PENSAR
OS
das
condutas,
tal
como
vnhamos pensando
questo
dos
71
TCNICAS MENDICANTES
72
73
Maurcio, assim como tantos outros que estavam nas ruas, aceitava os alimentos, as oraes, a
ajuda para conseguir seus direitos, at mesmo dar uma volta nas peruas e vans que conduziam as
pessoas que estavam nas ruas at o abrigo municipal ou s comunidades teraputicas dos
arredores. Aceitava isso e talvez mais coisas no sabemos.
74
Tratava-se sem dvida de alguma coisa bem real, mesmo que se lhe
queira dar outro nome; se no um modo de ser, era um modo de
aparecer da sociedade tupinamb aos olhos dos missionrios. preciso
situ-la no quadro mais amplo da bulimia ideolgica dos ndios, daquele
intenso interesse com que escutavam e assimilavam a mensagem crist
sobre Deus, a alma e o mundo. Pois, repita-se, o que exasperava os
padres no era nenhuma resistncia ativa que os brasis oferecessem
ao Evangelho em nome de uma outra crena, mas sim o fato de que sua
relao com a crena era intrigante: dispostos a tudo engolir, quando se
os tinha por ganhos, eis que recalcitravam, voltando ao vmito dos
antigos costumes (Anchieta 1555: II,194). (VIVEIROS DE CASTRO,
2002, 190)
Designa o aproveitamento de coisas usadas, partidas, ou cuja utilizao se modifica adaptandoas a outras funes.
53
75
H, ainda, na leitura feita por Viveiros de Castro, aquilo que pode ser
chamado da questo da alteridade. No pensamento amerndio e na sociedade
Tupinamb o outro no era ali apenas pensvel ele era indispensvel. H que
se compreender esse interesse pelo outro, este vvido interesse pelas porcarias
trazidas pelo outro, era justamente algo prprio de pessoas que tinham como
(in)fundamento a relao com os outros e no a coincidncia consigo mesmas.
O valor a ser afirmado pelos amerndios no era o de uma
identidade substancial, mas sim o de uma afinidade relacional:
76
RECUSA
77
diviso. E o no desta recusa dito de duas maneiras: por um lado, uma ruptura
radical com as regras de representao; por outro, a condio de necessidade
de abertura a um devir, a uma bifurcao de mundos e sua composio
conflitual, embora no unificadora. (LAZARRATO, 2006, p. 204)
No primeiro plano a luta se desenrola tambm como fuga: todos
partem como partiram do socialismo real, cruzando fronteiras ou recitando, sem
sair do lugar, a frmula eu preferiria no, de Bartleby. No segundo plano a luta
se desenrola como constituio criao e atualizao de mundos, onde se
desenvolve uma dinmica de subjetivao que , ao mesmo tempo, afirmao da
diferena e composio de um comum no totalizvel. (LAZZARATO, 2006, p.
205)
Ainda no campo da resistncia e da criao, Peter Pl Pelbart
(2009)54 pensa que outros modos de conflitualidade so criados no contexto psmoderno, que suscita posicionamentos mais oblquos, diagonais, hbridos e
flutuantes, diferente do que se dava na modernidade, quando a resistncia
obedecia a uma matriz dialtica, de oposio direta das foras em jogo
(PELBART, 2009, p. 136).
Peter exemplifica uma mudana na lgica da resistncia elencando
algumas dinmicas urbanas (nomadismos sociais, novos corpos ps-humanos,
redes sociais de autovalorizao, devires minoritrios, xodo e evacuao de
lugares de poder) que permitem que a resistncia v para alm das figuras
clssicas da recusa. E pergunta algo que de nosso maior interesse: mas como
elas funcionam no contexto das novas segmentaes, sobretudo num pas como
o Brasil, com sua herana histrica, em que regimes diversos de excluso e
segmentao se sobrepem? (PELBART, 2009, p. 137)
Peter tambm mobilizaria Antonio Negri para pensar como pode ser
dar a resistncia nessa passagem do moderno ao ps-moderno, quando a
resistncia se d como
54
PELBART, Peter Pl. Vida capital: ensaios de biopoltica. So Paulo: Iluminuras, 2009.
78
a difuso de comportamentos resistentes e singulares. Se ela se
acumula, ela o faz de maneira extensiva, isto , pela circulao, a
mobilidade, a fuga, o xodo, a desero: trata-se de multides que
resistem de maneira difusa e escapam das gaiolas sempre mais estreitas
da misria e do poder. (Negri, apud, Pelbrt, 2006)
O que precisamos criar um novo corpo social, projeto que vai alm da
recusa. Nossas linhas de fuga, nosso xodo precisam ser constituintes e
criar uma alternativa real. Alm da simples recusa, ou como parte desse
recusa, precisamos construir um novo modo de vida e, acima de tudo,
uma nova comunidade. (HARDT; NEGRI, 2001, p.224)
55
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Imprio. Rio de Janeiro: Editora. Record, 2001.
79
complementares neste
processo?
CORAGEM DA VERDADE
56
FOUCAULT, Michel. A coragem de verdade: o governo de si e dos outros II. So Paulo: WMF
80
81
na maneira de se vestir, nas maneiras de se conduzir e de viver, a
prpria verdade. Em suma, o cinismo faz da vida, da existncia, do bos
o que podemos chamar de uma aleturgia, uma manifestao da verdade.
(Foucault, 2011, p. 150)
SINTETIZADOR
82
Um sintetizador coloca em variao contnua todos os parmetros e faz
com que, pouco a pouco, "elementos essencialmente heterogneos
acabem por se converter um no outro de algum modo". H matria
comum desde que haja essa conjuno. E somente ento que se
alcana a mquina abstrata, ou o diagrama do agenciamento. O
sintetizador assumiu o lugar do juzo, como a matria assumiu o da
figura ou da substncia formada. (Deleuze; Guattari, 1995, p.23)
Final
84
PEDAGOGO-MILITANTE
85
o punk era entendido como um estilo de vida e isso significava outro jeito de se
alimentar, de produzir, de circular os produtos. ramos rebeldes, mas eram
poucos os momentos em que percebamos o quanto O Sistema estava dentro
de ns. Fora do espao de relaes do prprio movimento estvamos
aprisionados a empregos e relacionamentos afetivos que em quase nada eram
minoritrios.
Depois a universidade. Ao longo dos quatro anos de curso fui
lentamente me afastando do convvio com o movimento punk e me envolvendo
com o movimento estudantil, projetos de extenso universitria e grupos de
estudo. Era nestes movimentos que procurava uma relao entre a pedagogia e a
rebeldia.
Um destes grupos de estudo me permitiu manter contato direto e
prolongado com autores que poucas vezes eram mencionados no curso de
pedagogia (Deleuze, Foucault, Guattari, Negri) e tambm realizar intervenes,
no mbito da prpria comunidade acadmica, que buscavam conjugar tica,
esttica e poltica.
O movimento estudantil, por sua vez, colocou-me em contato com
um modo de realizar a ao poltica datado, que no considerava, sob hiptese
alguma, as questes da ps-modernidade, como eles diziam. Seu repertrio de
prticas e estratgias mobilizava muitas palavras de ordem contra O Capital,
entretanto, limitavam-se a pregar para os convertidos, pois no encontravam
ouvidos nos estudantes que consideravam alienados.
Enfim, os projetos de extenso levaram-me a manter contato com
bairros muito pobres da cidade onde estudava. A sensao de que a ao poltica
deveria ser muito diferente daquela praticada pelos colegas do movimento
estudantil intensificou-se ao mximo. Sem levar em conta a problemtica da
subjetividade parecia-me que estaramos condenados mera pregao
ideolgica.
Em Petrpolis a rebeldia, a pobreza e a ao poltica formavam algo
como um amlgama, quase indiferenciado. Para lidar com as situaes
apresentadas pelo projeto no bastava somente a pedagogia (e suas tcnicas
86
PEDAGOGO ESGOTADO
Figura 8 Caderno 020: "Silvio informa sada; Rosane fala que sua presena
foi importante, deixou semente. Pe. Quinha: deixou frutos. Jonas:
humildade".
87
estar cansado, pois o cansado algum que por um momento no pode realizar
algo possvel, mas o possvel ainda est l para ser realizado. O cansado apenas
esgotou a realizao, enquanto o esgotado esgota todo o possvel 57. (DELEUZE,
2012, p.67-69)
J no havia para mim qualquer objetivo, projeto e preferncia: a
realizao do possvel procede sempre por excluso, pois ela supe preferncias
e objetivos que variam, sempre substituindo os precedentes isto produz
cansao, mas ainda h o possvel. Mas eu estava esgotado e o que contava era
em que ordem fazer o que deve e segundo quais combinaes fazer duas coisas
ao mesmo tempo, quando ainda necessrio, s por fazer (DELEUZE, 2012, p. 68
- 71).
E no havia qualquer meio de conciliar as duas figuras: pedagogomilitante, pedagogo-esgotado. So de natureza diferente: o primeiro
inteiramente movido por alegria, cheio de potncia, at mesmo em suas aes
mais loucas e apaixonadas; o outro movido pela tristeza, no h qualquer
potncia, suas aes so apenas reaes, ressentimento venenoso para si
mesmo e para o mundo.
PEDAGOGO PESQUISADOR
DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto a menos; o esgotado. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2012.
88
dos cadernos foi possvel acessar todo tipo de sensaes e rememorar solides,
brigas, bebedeiras; leituras, notas, projetos ambiciosos; mobilizaes, embates;
fracassos, tristezas, mortes, impotncias.
As sensaes no tm passado, presente ou futuro; esto sempre
ali, espera de serem acessadas para o que est sob as fissuras da cartografia
em curso, e que elas anunciam, possa tomar corpo e levar sua reconfigurao
(ROLNIK, 2011, p.57)58.
Ao chegar ao fim desta escrita, deste processo, nos damos conta de
que no apenas rememoramos estas sensaes ao longo da realizao da
pesquisa, mas tambm estivemos em contato e conflito direto com a atualidade,
quando ganham fora problemas que se desenvolvem em torno da questo de
pessoas que chamamos ingovernveis.
No era nossa pretenso, como anunciamos no princpio, a de
oferecer respostas perguntas dos dias de hoje. Mas elas esto face a face com
o que pensamos, pesquisamos, com a nossa prpria experincia. Estados de
dominao que proliferam em todas as instncias da vida.
Pensamos aqui no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
SINASE, tornado lei h quase um ano, e que regulamenta a execuo das
medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional59.
Tambm os recentes arbtrios em torno da internao compulsria e na recente
parceria firmada entre o Governo do Estado de So Paulo, o Ministrio Pblico e
a Ordem dos Advogados do Brasil para realizao da internao compulsria de
dependentes qumicos60.
58
ROLNIK, Suely [org]. Arquivo para uma Obra-Acontecimento. So Paulo: SENAC, 2011.
59
89
61
90
nome
comum
que
atribumos
nossa
experincia
foi
coragem:
entra
nesta
composio
porque
estes
91
LTIMA PGINA
elas
nas
ruas
ou
no
pensamento.
Ambos
so
lugares
de
experimentao. Coragem!
E, quando se reala a provisoriedade do trabalho como um todo,
justamente em funo de outras lutas que ocorrero. Comeamos esta ltima
parte com uma pgina de nosso arquivo que marcou a derradeira viagem e no
quisemos terminar com ela porque outros caminhos tm sido percorridos, outras
lutas, outras centenas de pginas anotadas em cadernos, agendas, cadernetas.
Outras lutas, outro arquivo!
Certamente encontraremos problemas ditos tericos neste trabalho
e com eles teremos que nos entender. Mas, para alm disto, o nome comum
ingovernveis carrega em si uma potncia e uma alegria: dizer-se e sentir-se
ingovernvel, ainda que por um segundo, d uma alegria e uma potncia dos
diabos. E a alegria... esta a prova dos nove!
Que prolifere!
92
REFERNCIAS
93% das mortes cometidas por PMs de So Paulo ocorrem na periferia. Spresso
SP:
site
de
So
Paulo.
Disponvel
em:
Disponvel
em:
<http://www.dadosmunicipais.org.br/index.php?pg=exibemateria&secao=7&subse
cao=21&id=871&uid=>. Acesso em: 23/12/2012.
em:
<http://www.dadosmunicipais.org.br/index.php?pg=exibemateria&secao=2&subse
cao=9&id=897&uid=>. Acesso em: 23/12/2012.
em:
Acesso
93
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>.
94
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats. So Paulo: Editora 34, 1995. V.
2.
proferida
em
27
de
maio
de
1978).
<http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/critica.pdf>.
Disponvel
em:
Acesso
em:
25/01/2013.
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Manoel de Barros da Motta
(org.). Estratgia, Poder-Saber. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria,
2010. P. 203-222. (Coleo Ditos & Escritos Volume, 4)
95
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collge de France, 19791980: excertos. 2. Ed. So Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro:
Achiam, 2011-b.
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984.
para
dependentes
qumicos.
Disponvel
em:
<http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=225660&c=558&q=ent
enda-o-que-u-a-internauuo-compulsuria-para-dependentes-quumicos>.
Acesso
em 30 jan 2013.
HARDT, Michael. Crise abre espao para a poltica do comum. IHU Online. Rio
Grande
do
Sul,
n.
287,
Ano
IX.
2009.
Disponvel
em:
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id
=2441&secao=287>. Acesso em: 15/01/2012.
2011.
Disponvel
<http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/49/textos/1664/>.
05/01/2013.
em:
Acesso
em
96
97
SENAC, 2011.
VALENTE,
Gianni.
Operao
Gutirrez.
Instituto
Humanitas
Unisinos.