Aparecido Vicente Tesis MÚSICA EM SURDINA
Aparecido Vicente Tesis MÚSICA EM SURDINA
Aparecido Vicente Tesis MÚSICA EM SURDINA
MSICA EM SURDINA:
SONORIDADE E ESCUTAS NOS ANOS 1950
CAMPINAS
2014
i
ii
MSICA EM SURDINA:
SONORIDADE E ESCUTAS NOS ANOS 1950
defendida
pelo
aluno
Rodrigo
___________________________________
CAMPINAS
2014
iii
iv
vi
Resumo
A dcada de 1950 um dos momentos-chave da histria da msica popular brasileira. Nesse
perodo, diferentes ramos da incipiente indstria cultural se modernizam e comeam a se articular
de modo mais orgnico. Alm disso, recrudesce a segmentao da produo musical, formandose audincias especficas para cada gnero e estilo em circulao nos principais meios de
comunicao. nesse contexto que surge o Trio Surdina, conjunto ligado num primeiro instante
a um programa de rdio que tencionava reproduzir a sonoridade e o ambiente intimista das
pequenas boates que ento proliferavam na zona sul do Rio de Janeiro. Sua produo se insere na
chamada era da Alta Fidelidade - traduo literal de High-Fidelity, mais conhecida pela
abreviao Hi-Fi -, um momento marcado pela introduo de novos suportes, equipamentos e
tcnicas de gravao no mbito da indstria fonogrfica. A partir do estudo dos elementos e
procedimentos constituintes das performances registradas nos LPs do Trio Surdina, este trabalho
investiga em que medida a sonoridade do conjunto informa a existncia de uma nova
sensibilidade auditiva, de um novo ouvido social que se configura entre as dcadas de 1940 e
1950, ligado no caso a uma frao da classe mdia que esteve no centro da vida sociocultural da
zona sul carioca. Conforme indicam os discursos da poca, certos agentes sociais estavam em
busca de um tipo de msica mais intimista, moderna e de bom gosto, pautada pela economia
de elementos, pelo tratamento suave e por uma tcnica aprimorada de interpretao. A
sonoridade concebida pelo Trio Surdina parecia corresponder a tais expectativas, destacando-se
no segmento dos chamados conjuntos de bote. Em sntese, procurou-se compreender de que
modo as obras musicais traduzem e condensam em suas estruturas experincias estticas, sociais
e histricas mais amplas. Nessa direo, destacou-se, ao mesmo tempo, o contedo propriamente
original e especfico da produo do Trio Surdina, isto , aquilo que, nas msicas, escapa tanto
aos padres e convenes de estilo, quanto aos valores e juzos intrnsecos aos discursos do seu
tempo, permanecendo em estado de potncia como possibilidades expressivas elaboradas a partir
da linguagem da msica instrumental.
Palavras-chave: msica popular brasileira; dcada de 1950; sonoridade; ouvido social; Trio
Surdina.
vii
viii
Abstract
The 1950s are one of the key moments in the history of Brazilian popular music. At that time,
different branches of the incipient cultural industry modernize and begin to articulate in a more
organic way. Moreover, there is an increased segmentation of music production, emerging
specific audiences for each style in the main media. It is in that context that is formed Trio
Surdina, a musical group associated initially to a radio program that intended to reproduce the
sonority and the atmosphere of small nightclubs which then proliferated in the southern area of
Rio de Janeiro. The groups production is closely associated with an innovation of the recording
industry at that time, the "High Fidelity", better known by the abbreviation Hi-Fi. From the
formal study of the Trio Surdinas work, this thesis investigates how the sonority of this musical
group reflects a new social listening, which seems to emerge between the 1940s and the 1950s
linked to a fraction of the middle class that was in the center of social and cultural life of the
southern area of Rio de Janeiro. As indicated by discourses of that time, certain social agents
were looking for a kind of more intimate, "modern" and "tasteful" music, characterized by the
economy of elements, "soft" treatment and a "refined technique" of interpretation. The sonority
conceived by Trio Surdina seemed to correspond to such expectations, especially in the segment
of the so-called "bote groups. In short, this research aims to understand how the music of Trio
Surdina translates and condenses into its structures aesthetics, social and historical experiences.
At the same time, we emphasize the original and specific content of the production of Trio
Surdina; in other words, the content that goes beyond the standards and stylistic conventions, as
well as the intrinsic values and judgments to the discourses of that time, remaining as potential
expressive possibilities elaborated from instrumental musics language.
Keywords: Brazilian popular music; 1950s; sonority; social listening; Trio Surdina.
ix
Sumrio
Introduo
15
15
28
47
2 Msica em Surdina
2.1 O incio de uma nova era
47
53
59
69
78
113
113
132
3.2.1 Ternamente
132
3.2.2 Risque
152
176
184
199
Consideraes Finais
217
Referncias
221
xi
xii
xiii
xiv
Agradecimentos
xv
xvi
Profa. Dra. Ana Paula Cavalcanti Simioni, ao Prof. Dr. Walter Garcia, Dra.
Michele Asmar Fanini e a todos os colegas do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, que
contriburam com suas crticas e sugestes quando da discusso, em sala de aula, do projeto que
originou esta tese.
Aos professores do curso de Filosofia da UNICAMP: Enias Forlin, Yara Frateschi,
Marcos Nobre e Oswaldo Giacoia pelas aulas, palestras e conferncias simplesmente incrveis.
Profa. Dra. Maria Elisa Cevasco pelo curso sobre as fortunas crticas de Roberto
Schwarz e Fredric Jameson oferecido no primeiro semestre de 2013, na FFLCH/USP.
Aos companheiros do grupo de pesquisa Msica Popular Brasileira: histria,
produo e linguagem, ligado ao Instituto de Artes da UNICAMP: Ismael de Oliveira, Bia
Cyrino, Gabriel Rezende, Adelcio Machado, Priscila Akemi, Leandro Barsalini, Almir Crtes,
Thas Nicodemo, Sheila Zagury, Daniela Vieira, Sheyla Diniz, Renato Pedro, Elo Gonalves e
Vinicius Muniz.
querida amiga Amanda Dias de Souza pela transcrio da entrevista com o msico
Z Menezes.
Aos amigos e familiares que sempre me apoiaram e me inspiraram ao longo desses
nove anos de UNICAMP: Lucilaine Silva, Geni Del Col, Jos Emlio Gobbo Jnior, Marco
Antonio Santos, Neusa Azevedo, Daniel Villas-Boas, Fbio Lima, Maria Martins, Fbio
Augustinis, Gabriel Romeiro, Renata Gomes, Carlos Sesti, Danilo Ramalho, Lilian Costa, Felipe
Brito, Brulio Vilhena, Maria Lcia Vilhena, Andr Batiston, Marcelo Rocha, Thales Mairesse,
Gilson Cardoso, Helena Cury Cunha e Jlio Melo.
Por fim, devo agradecer o incentivo, o companheirismo, a amizade e, principalmente,
o amor sincero e irrestrito de uma pessoa muito importante e mais que especial: minha me,
Cleide Del Col, fonte inesgotvel de inspirao, portadora de um sentimento profundo de
humanidade. Foi por pouco (por muito pouco) que ela no pde acompanhar a finalizao deste
trabalho e o encerramento de mais esta etapa da minha vida. Embora no esteja sua altura, este
trabalho dedicado sua memria.
xvii
xviii
/em surdina:
Em voz muito baixa, ou quase sem rudo (para no chamar ateno).
xix
xx
Introduo
Realizar uma pesquisa que se estende por, no mnimo, quatro anos implica criar uma
rotina pautada por leituras, fichamentos, discusses com colegas e professores e, no caso deste
trabalho, em especfico, por escutas, apreciaes musicais, transcries e anlises de fonogramas.
No obstante essas atividades, o objeto que norteia o presente estudo acabou gerando uma rotina,
digamos, paralela a essa medida que eu estabelecia novos contatos com pesquisadores em
situaes variadas: a de apresentar e descrever brevemente quem foi, em que poca atuou, que
repertrio tocou e o que representa o conjunto musical Trio Surdina para a histria da msica
popular brasileira do sculo XX. Esta a precondio para que eu finalmente comeasse a
explicitar os objetivos da pesquisa de doutorado cujos resultados se encontram expostos a seguir.
Devido a uma srie de razes que esta tese procura esclarecer, o trio formado pelos
msicos Garoto (Anbal Augusto Sardinha), Faf Lemos (Rafael Lemos Jnior) e Chiquinho do
Acordeon (Romeu Seibel) permaneceu em surdina ao longo dos ltimos decnios, exceto,
claro, para alguns poucos msicos e entusiastas da msica popular instrumental produzida na
dcada de 1950 que, invariavelmente, acabaram tomando conhecimento da existncia do
conjunto por meio dos dados biogrficos e das obras que esses instrumentistas renomados e
admirados desde aquela poca inscreveram nas pginas da nossa histria.
Embora esse cenrio permeado por lacunas e esquecimentos histricos venha se
modificando com o aumento do nmero de pesquisas sobre a msica popular brasileira, ainda
evidente o desequilbrio que existe entre certos temas, produes e perodos abordados pelos
estudiosos dessa rea. Basta comparar, por exemplo, o volume de publicaes que tratam da
Bossa Nova ou do Tropicalismo (ambos ligados, em essncia, dcada de 1960) com os
trabalhos j realizados sobre a msica popular concentrada na passagem dos anos 1940 e 1950. O
descompasso notvel. No que as produes bossa novistas e tropicalistas tenham se tornado
objetos esgotados em virtude dos inmeros livros, artigos, dissertaes e teses que lhes foram
dedicados longe disso. O fato que, at o momento, poucos foram os trabalhos acadmicos que
se concentraram nos artistas e conjuntos ligados de alguma forma a gneros e estilos musicais
como o baio, o samba-cano, o chamado samba-de-fossa, a msica caipira, entre outros, os
quais alcanaram importante repercusso no Brasil em meados do sculo passado ao lado de
1
quando da execuo do acompanhamento harmnico etc. Esses e outros procedimentos que sero
apresentados e discutidos nas prximas pginas acabaram gerando um tipo de sonoridade
peculiar, classificada por crticos da poca como suave, lmpida, despretensiosa e
moderna, em contraste com certas produes do perodo que se notabilizaram em outro
segmento ao propor um tipo de interpretao ou tratamento marcado, segundo os mesmos
crticos, por excessos, estrangeirismos e artificialismos. Tais adjetivos integram um
conjunto mais amplo de cdigos que a chamada crtica especializada dos anos 1950 consolidou
no meio artstico, informando a existncia de modos de escuta especficos. Uma srie de
publicaes dirigidas msica popular circulou em jornais, revistas e programas de rdio,
contribuindo para a formao de um campo de debates simblicos relativamente denso e
dinmico, que se tornou inseparvel da produo musical propriamente dita - os sentidos e
significados dos valores e representaes em disputa nesse contexto foram discutidos na segunda
parte deste trabalho.
Ainda que o repertrio reiterasse em grande medida as tendncias dominantes no
campo do entretenimento, o estilo interpretativo que caracteriza as performances do Trio Surdina
destoa dos padres de execuo e arranjo mais recorrentes entre os conjuntos e orquestras da
poca. Isso pde ser percebido ao longo da pesquisa, pois, medida que os fonogramas iam
sendo analisados e cotejados com produes contemporneas do conjunto, notou-se que o estilo
concebido por Garoto, Faf e Chiquinho explora consideravelmente certas possibilidades
intrnsecas msica instrumental, uma linguagem potencialmente crtica em relao aos
elementos e procedimentos disponveis aos artistas num determinado contexto. Esta a relevncia
esttica e importncia histrica do Trio Surdina. Este tambm o argumento central desta tese.
Antes de passar aos objetivos especficos que orientam o presente estudo, vale
ressaltar que, assim como os discursos e conflitos simblicos latentes no meio sociocultural em
que o Trio Surdina esteve inserido auxiliam na interpretao e compreenso da sua obra, as
condies materiais e sociais que tornaram possveis a sua formao, trajetria, criao de uma
concepo esttica e de uma sonoridade peculiares foram igualmente investigadas e discutidas
neste trabalho, haja vista, por exemplo, o papel decisivo assumido pelas inovaes tcnicas
introduzidas no mbito da indstria fonogrfica dos anos 1950 para a configurao das
linguagens musicais emergentes no perodo.
***
mercado de msica popular que, em ltima anlise, acabam por informar estratgias de distino
social,1 bem como a imposio de uma hierarquia de legitimidades e gostos no interior do campo.
A ltima parte desta tese dedicada anlise do repertrio do Trio Surdina. Em
linhas gerais, investigou-se a sonoridade do conjunto a partir do estudo dos elementos e
procedimentos constituintes das performances registradas nos fonogramas, inserindo-as no
contexto sociocultural particular em que foram produzidas. Dito de outro modo, procurou-se
compreender at que ponto as obras musicais traduzem e condensam experincias estticas,
sociais e histricas mais amplas em suas estruturas.
No obstante, enquanto obras de arte, tentou-se destacar, sobretudo, o contedo
propriamente original e especfico da produo do Trio Surdina, ou seja, aquilo que, nas msicas,
escapa tanto aos padres estticos quanto aos valores e juzos implcitos nos discursos do seu
tempo. Em sntese, procurou-se demonstrar como as performances do conjunto concentraram,
naquele contexto, novas possibilidades expressivas ao explorar o potencial crtico da linguagem
da msica instrumental.
Sobre a noo de distino, ver: BOURDIEU, Pierre. O senso da distino. In: __________. A Distino: crtica
social do julgamento de gosto. So Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008. p. 241-247.
Conforme ser apresentado e discutido ao longo deste trabalho, o contexto sciohistrico em que se insere a produo musical do Trio Surdina revela uma efervescncia cultural
significativa. Ao mesmo tempo, esse cenrio concentra disputas simblicas intensas entre
intelectuais e artistas ligados ao campo da msica popular brasileira, as quais se pautavam em
uma srie de cdigos, parmetros, juzos e valores nem sempre homogneos, mas que eram
atribudos a temas e noes comuns como, por exemplo, tradio, modernidade, ao
elemento nacional, ao estrangeiro, ao comercial etc. Considerando a importncia desses
conflitos esttico-ideolgicos para a constituio dos modos de pensar e agir dos indivduos,
parece-nos imprescindvel uma abordagem que contemple a relao dialtica entre representaes
e prticas, entre imaginrio e aes sociais.
Essa problemtica foi amplamente discutida no campo dos estudos culturais, dentre
os quais se destacam os trabalhos de Raymond Williams. Para dar conta dessa mediao a partir
da literatura e da arte, o intelectual ingls props a noo de estrutura de sentimentos que, grosso
modo, objetiva os significados e valores tal como so vividos e sentidos ativamente num
determinado momento histrico.2 Em outras palavras, trata-se de compreender o pensamento tal
como sentido e o sentimento tal como pensado: a conscincia prtica de um tipo presente, numa
continuidade viva e inter-relacionada.3
Como afirma Beatriz Sarlo, a noo de estrutura de sentimentos central na obra de
Williams, embora seja quase to inapreensvel quanto o que busca definir-se por intermdio
dela.4 Mas essa dificuldade no destitui a sua pertinncia para os estudos da cultura, conforme
sublinha a prpria autora. Afinal, nas tentativas de reconstruo do passado, o mais difcil de
captar, em qualquer perodo, o sentido e a qualidade de vida em um determinado momento e
lugar: o sentido e os modos como as aes se combinaram numa maneira de pensar e de viver.5
2
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 134.
Idem, ibidem.
4
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginrias: Intelectuais, Arte e Meios de Comunicao. So Paulo: Edusp, 1997. p.
90.
5
WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. Harmondsworth: Penguin Books Ltd., 1971 [1961]. p. 63 apud
SARLO, Beatriz. op. cit. 1997. p. 89.
3
por tentar apreender esse fenmeno de modo dialtico, sem incorrer anlises reducionistas ou
deterministas, que o referencial de Williams se mostra relevante. Nos termos do autor,
A idia (sic) de uma estrutura de sentimento pode estar especificamente relacionada com
a evidncia de formas e convenes - figuras semnticas - que, na arte e literatura, esto
entre os primeiros indcios de que essa nova estrutura est se formando. (...) uma
maneira de definir formas e convenes na arte e literatura como elementos inalienveis
do processo social material - no pela derivao de outras formas e pr-formas sociais,
mas como formao social de um tipo especfico que pode, por sua vez, ser considerada
como a articulao (com frequncia, a nica articulao plenamente existente) de
estruturas de sentimentos que, como processos vivos, so experimentados de forma
muito mais ampla.6
Suas palavras tornam evidente a tentativa de investigar as formas e convenes de obras literrias
e artsticas do passado enquanto formas e convenes constitudas socialmente no processo
histrico, permanecendo, portanto, indissoluvelmente ligadas vida material e social. Da o
interesse do autor em identificar esses domnios a partir da experincia, ou melhor, da
conscincia prtica, conforme vivida e sentida num presente especfico, numa continuidade
viva e inter-relacionada.
Ao mesmo tempo, a noo de estrutura de sentimentos revela-se uma hiptese
cultural passvel de captar os deslizamentos entre ideologias sistematizadas e os discursos
estticos, por um lado; entre as idias sistematizadas e sua presena mais fluida quando informam
as prticas, por outro.7 Aqui reside mais claramente a busca pela mediao do simblico e do
social, ou seja, pela inscrio do social no esttico. Essas conotaes parecem estar implcitas no
prprio termo estrutura de sentimentos: to firme e definida como sugere a palavra estrutura,
embora opere nos espaos mais evanescentes e menos tangveis de nossa prtica.8
Uma das questes que surgem nas leituras e tentativas de compreenso dessa noo
saber se a estrutura de sentimentos diz respeito aos tons gerais de uma poca, que poderiam ser
pensados como aspectos hegemnicos,9 ou se ela mais apropriada ao estudo do que no
completamente articulado, tudo que aparece como um distrbio, uma tenso, (...) precisamente
uma fonte para as grandes mudanas nas relaes entre significncia e significado, seja na
6
linguagem literria [e artstica] seja nas convenes.10 No entanto, como esclarece Maria Elisa
Cevasco a partir de passagens do prprio Williams, a noo de estrutura de sentimentos engloba
tanto a modalidade de relaes histricas e sociais que era ainda totalmente interior obra [de
arte ou literria], e no dedutvel atravs de uma ordenao ou classificao externa,11 quanto
as conexes, as correspondncias, e at mesmo as semelhanas de poca que mais saltam
vista.12
So essas dimenses que se mostram mais compatveis com os resultados obtidos ao
longo desta pesquisa, haja vista a recorrncia em diversas obras e discursos da poca de questes
relativas modernidade, identidade nacional, tradio, ao internacional, ao
comercial, ao autntico etc. Diferentes instituies e meios de comunicao - Estado, rdio,
jornais, revistas, gravadoras concentram e propagam valores e sentidos similares e contrastantes
acerca dos mesmos temas. Isso pode estar apontando, em ltima anlise, para a existncia de uma
estrutura de sentimentos operando num sentido mais amplo e profundo da sensibilidade e do
pensamento humanos no cenrio sociocultural do Rio de Janeiro na dcada de 1950, orientando
as atividades artsticas e os conflitos simblicos aflorados no perodo.
Como se pretende mostrar, as prprias obras musicais revelam indcios da formao
dessa estrutura de sentimentos, medida que engendram tanto as semelhanas de poca que
mais saltam vista, quanto o contedo no dedutvel atravs de uma ordenao ou
classificao externa.
***
O mtodo adotado neste trabalho procura demonstrar como determinadas escolhas e
procedimentos situados no plano musical so orientados por padres, referncias, cdigos e
valores intimamente ligados ao processo de formao social do Brasil. Essa perspectiva se inspira
em grande medida nos estudos do crtico literrio Antonio Candido, cuja produo evidencia a
tentativa de compreender como determinadas expresses artsticas transfiguram e formalizam
10
WILLIAMS, Raymond. Politics and Letters: interviews with the New Left Review. London: New Left Books,
1979b. p. 167-168 apud CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. So Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 155.
11
WILLIAMS, Raymond. op. cit. 1979b, p. 164 apud CEVASCO, Maria Elisa. op. cit. 2001. p. 152-153.
12
WILLIAMS, Raymond. Drama from Ibsen to Brecht. London: The Hogarth Press, 1968. p. 18-19 apud
CEVASCO, Maria Elisa. op. cit. 2001. p. 153.
numa linguagem especfica dados de uma realidade social historicamente localizada e que, uma
vez concebida, capaz de apresentar um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade
originria.13 Portanto, a ateno s correspondncias e interaes mais sutis e menos
tangveis entre as criaes estticas e a vida social que figura no centro de sua produo crtica.
No campo da sociologia da arte, um dos autores que atuaram no sentido de explicitar
as imbricaes entre obras e contextos scio-histricos o socilogo Howard Becker, em
especial, no ensaio Art as a collective action (1974). Segundo o autor, mesmo o msico, o
poeta ou o pintor que produz individualmente e se ope aos padres estticos ou ao mercado de
arte, no deixa de se opor a algo e, portanto, de dialogar com algo. Constries e relaes de
cooperao penetram todo o processo criativo.14 Da a importncia das convenes artsticas
enquanto elementos constituintes das prticas e representaes dos agentes, tenham estes
conscincia ou no desse fato. Erigidas socialmente, as convenes se manifestam em sistemas
de ensino e de notao; no trato com equipamentos, instrumentos e materiais disponveis aos
artistas; em circuitos e segmentos de produo e circulao de arte etc. Embora no encerrem
construes imutveis, sendo, deste modo, suscetveis a transgresses em maior ou menor medida
dependendo do contexto, as convenes se acham distribudas, em suma, num complexo formado
por sistemas interdependentes - a sociedade.15
Acredita-se que o trabalho de Becker fornece alguns subsdios para que se possa
encontrar nas obras o contedo propriamente scio-histrico, isto , considerar as manifestaes
artsticas enquanto manifestaes de um tempo e espao especficos. Em outras palavras, uma
anlise dessa espcie no se limita a estabelecer relaes entre os resultados obtidos pelos
estudos especificamente musicais e as discusses de cunho histrico e sociolgico.
Uma vez levados em considerao, esse conjunto de fatores torna as pesquisas sobre
as atividades artsticas tarefas tensionadas permanentemente por particularidades oriundas de
diferentes reas e disciplinas. No entanto, autores importantes j contriburam, atravs de
perspectivas distintas, para o refinamento de um quadro terico e metodolgico pautado nas
relaes de interdependncia entre expresses musicais e fenmenos histricos. Nesse contexto,
destaca-se a noo de mediao, proposta na rea de estudos musicais, sociolgicos e filosficos
13
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. 4 edio. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010b, p. 9.
BECKER, Howard S. Art as a collective action. American Sociological Review, Vol. 39, n. 6, p. 767-776, 1974. p.
770.
15
Ibidem, p. 772.
14
10
por Theodor Adorno, e que se encontra desenvolvida de modo mais conciso em sua Introduo
Sociologia da Msica (2011). Em linhas gerais, Adorno defende o carter infinitamente mediado
do fazer e da experincia esttica. decisivo, portanto, em sua crtica dialtica a relao
inextricvel entre materiais musicais e processos sociais. Para o autor,
As questes estticas e sociolgicas da msica acham-se indissolvel e
constitutivamente mescladas entre si. No, com efeito, tal como poderia calhar a vulgar
concepo sociolgica, de acordo com a qual apenas aquilo que se imps socialmente
sobre uma base mais ampla deixa-se qualificar em termos estticos; ao contrrio, pelo
fato de que o estatuto esttico e o contedo de verdade social dos prprios objetos
artsticos tm a ver essencialmente um com o outro, por menos que ambos sejam
imediatamente idnticos. Na msica, no haveria nada esteticamente apropriado que
tambm no fosse, ao mesmo tempo, socialmente verdadeiro, mesmo que seja enquanto
negao do falso; nenhum contedo social da msica tem valor se no se objetiva do
ponto de vista esttico.16
Como se pode observar, o autor enfatiza a relao de interdependncia entre o estatuto esttico e
o contedo social inscritos nas obras musicais. No se trata, portanto, de uma relao de
intermediao ou comunicao entre polos distintos. Como explica Raymond Williams, a
partir de Adorno, a mediao est no objeto em si, e no em alguma coisa entre o objeto e aquilo
a que levado.17
Ao sopesar essas reflexes, o estudioso se depara com a dificuldade de distinguir, no
material propriamente musical, aquilo que se aproxima mais de uma ao individual - uma
tentativa de ruptura ou uma idiossincrasia - do contedo social - uma conveno, um padro ou
um estilo. O musiclogo Leonard Meyer tambm reconhece essa tenso permanente no estudo
do repertrio erudito do sculo XIX, a qual pode ser depreendida das prprias partituras. De
acordo com o autor, a despeito da remisso a um ato consciente ou deliberado que a palavra
escolha traz em sua etimologia, frequentemente empregada nas anlises de obras individuais,
ela no deixa de carregar uma sucesso quase ininterrupta de aes aprendidas e interiorizadas na
prxis da vida, como informam as convenes.18 Essas escolhas devem ser interpretadas,
16
ADORNO, Theodor W. Introduo Sociologia da Msica: doze prelees tericas. So Paulo: Editora Unesp,
2011. p. 366-367.
17
WILLIAMS, Raymond. op. cit. 1979. p. 101-102. Ver tambm: ADORNO, Theodor W. Teses sobre sociologia
da arte. In: ___________. Sociologia - COHN, Gabriel (Org.). So Paulo: tica, 1986. p. 114.
18
MEYER, Leonard B. Style and Music: theory, history, and ideology. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1989. p. 4-5.
11
***
19
ELIAS, Norbert. Escritos e Ensaios, 1: Estado, Processo e Opinio Pblica. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 26.
Ver tambm: NEIBURG, Federico (et alii.). Dossi Norbert Elias WAIZBORT, Leopoldo (Org.). So Paulo:
Edusp, 2001. p. 91-92.
20
COOK, Nicholas. Fazendo msica juntos ou improvisao e seus outros. Revista Per Musi, Belo Horizonte, n. 16,
p. 7-20, 2007. p. 18; COOK, Nicholas. Entre o processo e o produto: msica e/enquanto performance. Revista Per
Musi, Belo Horizonte, n.14, p. 5-22, 2006.
21
BOURDIEU, Pierre. Sociologia ORTIZ, Renato (Org.). So Paulo: tica, 1983. p. 10-19; BOURDIEU, Pierre. A
Economia das Trocas Simblicas MICELI, Srgio (Org.). 6 edio. So Paulo: Perspectiva, 2006. p. 349.
12
agentes, prticas, enfim, situaes nunca antes vividas; b) a noo de figurao,22 de Norbert
Elias, que procura dar conta das formaes sociais que os indivduos constituem em razo da
inextricvel relao de interdependncia que estabelecem uns com os outros, ou seja, uma vez
que as pessoas so mais ou menos dependentes entre si, inicialmente por ao da natureza e
mais tarde atravs (...) da educao, socializao e necessidades recprocas socialmente geradas,
elas existem, portanto, apenas como pluralidades, apenas como figuraes; e c) a noo de
processo social,23 tambm de Elias, que se refere s transformaes amplas, contnuas e de longa
durao das figuraes, contemplando assim o dinamismo inerente a todo meio social.
Em suma, pretende-se investigar a produo do Trio Surdina considerando os habitus
de seus integrantes, sendo imprescindvel retomar suas trajetrias artsticas e os espaos nos quais
atuaram. Esses fatores so igualmente relevantes para a anlise de suas obras enquanto prticas
sociais inscritas em figuraes particulares, que permanecem indissoluvelmente ligadas a um
processo social mais amplo.
Ao mesmo tempo, apreender a relao de interdependncia entre as prticas musicais
e as condies materiais e scio-histricas de produo do Trio Surdina tornou possvel avaliar
em que medida a sua obra tensiona os padres e convenes sedimentados em certos gneros e
estilos em circulao no campo fonogrfico dos anos 1950, sinalizando a configurao de novas
formas de expresso musical no meio sociocultural em que os instrumentistas do conjunto
estiveram inseridos.24
22
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma histria dos costumes. 2 edio. Rio de Janeiro: Zahar,
2011. p. 240.
23
ELIAS, Norbert. op. cit. 2006. p. 27-33.
24
Uma srie de noes e referncias tericas igualmente relevantes para o estudo da produo do Trio Surdina e do
perodo aqui abordado foram incorporadas e devidamente citadas no corpo do texto.
13
14
25
Paulo Tapajs, dpm., PN - Anurio do Rdio, set. de 1956. p. 55 apud SAROLDI, Luiz Carlos & MOREIRA,
Snia Virginia. Rdio Nacional: o Brasil em sintonia. 3 edio. Rio de Janeiro: Zahar, 2005 [1984]. p. 135.
15
Em poucas palavras, o produtor alude a uma gama ampla e complexa de transformaes por que
atravessaram o rdio, a indstria fonogrfica e a msica popular brasileira entre as dcadas de
1920 e 1950. Ao mesmo tempo, sua fala ressoa aspectos das relaes sociais e das construes e
conflitos simblicos que marcaram o campo de produo cultural, os quais mantiveram relaes
com as esferas poltica e econmica. Constituindo, portanto, algo mais significativo que simples
ilustraes ou reflexos de uma poca, as representaes inscritas nessas linhas iluminam
algumas aes concretizadas em diversos setores naquele contexto, bem como os referenciais
esttico-ideolgicos que orientaram as manifestaes artsticas emergidas nesse processo
histrico. Em ltima anlise, o discurso de Paulo Tapajs parece representar o iderio que pautou
diferentes grupos sociais ligados s classes dominantes: o desejo de civilizar o elemento
popular.
Ao relembrar o tempo em que a msica popular brasileira recebia um tratamento que
no condizia com a sua riqueza, Paulo Tapajs se refere aos primeiros anos do rdio no Brasil,
em especial, ao perodo que vai do final dos anos 1920 a meados de 1930, momento em que a
msica popular urbana conquistava mais espao nesse meio de comunicao, que aos poucos se
aprimorava tecnicamente, estreitava suas relaes com o setor publicitrio/comercial e ampliava
seu alcance e popularidade no territrio brasileiro. Simultaneamente e em relao ntima com
esse fenmeno, a indstria fonogrfica ento emergente se modernizava com a chegada do
sistema eltrico de gravao (1927) e, a exemplo do rdio, impulsionava a produo de msica
popular a partir da instalao de novas fbricas no pas.26 Trata-se de uma fase de transformaes
estruturais importantes na esfera da comunicao e do entretenimento que, de acordo com Joo
Baptista Borges Pereira, associam-se a trs fatores mais amplos:
(...) crescente urbanizao, acentuada industrializao, estruturao e expanso de
mercados internos e externos. Cada uma destas coordenadas bsicas constitui-se em
complexos elencos de necessidades novas, manifestas ou no, que ampliam de maneira
considervel o contedo do evento civilizatrio com os mais diferentes fenmenos. So
tais fenmenos, basicamente estruturais, que surpreendidos na vida brasileira fornecem
ndices demonstrativos do desenvolvimento do processo atravs da realidade nacional.27
26
ZAN, Jos Roberto. Do Fundo de Quintal Vanguarda: contribuio para uma histria social da msica popular
brasileira. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997. p. 38-41.
27
PEREIRA, Joo Baptista Borges. Cor, Profisso e Mobilidade: O Negro e o Rdio de So Paulo. So Paulo:
Livraria Pioneira Editora, Universidade de So Paulo, 1967. p. 40-41.
16
CANDIDO, Antonio. A Revoluo de 1930 e a Cultura. In: _______. A educao pela noite e outros ensaios. 6
edio. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 219.
29
Ver, por exemplo, a crtica de Vagalume indstria do samba, dirigida especialmente aos cantores e
compositores que protagonizaram o primeiro momento de insero e divulgao em grande escala do samba carioca
via indstria fonogrfica e rdio, fenmeno ocorrido na viragem das dcadas de 1920 e 1930. Pioneiro da
historiografia do samba, ao lado de Orestes Barbosa, o jornalista Vagalume opunha o chamado samba comercial,
em destaque no campo do entretenimento daquela poca, ao samba antigo, o de morro, que supostamente
representava a tradio. Sobre esse assunto, ver: SANDRONI, Carlos. Feitio decente: transformaes do samba
no Rio de Janeiro (1917-1933). 2 edio. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 136-137.
17
30
Para um estudo mais bem circunstanciado do cenrio musical do inicio do sculo XX, no Brasil, em que
enfatizado o carter cosmopolita e transnacional da produo ligada incipiente indstria da cultura na cidade do Rio
de Janeiro, ver: MAGALDI, Cristina. Cosmopolitanism and World Music in Rio de Janeiro at the turn of the
Twentieth Century. The Musical Quartely, Oxford, v.92, p. 329-364, 2009.
31
Por residual entende-se o elemento que foi constitudo no passado e que, porm, permanece ativo no processo
cultural na forma de memria, enquanto elemento efetivo do presente, embora no hegemnico. Ver: WILLIAMS,
Raymond. op. cit. 1979. p. 124-127.
32
Sobre as relaes entre intelectuais brancos e msicos populares de origem afro-brasileira nos anos 1920 e 1930,
ver: VIANNA, Hermano. O Mistrio do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; Ed. UFRJ, 1995; SANDRONI,
Carlos. op. cit. 2002. p. 113-119.
33
Destacam-se, por exemplo, Mrio de Andrade, Manuel Bandeira, Heitor Villa-lobos e, como uma espcie de
intermedirio cultural, o poeta e compositor Jaime Ovalle, que transitava livremente entre as esferas culta e popular.
Ver: NAVES, Santuza Cambraia. O Violo Azul: Modernismo e Msica Popular. Rio de Janeiro: Ed. Fundao
Getlio Vargas, 1998. p. 24-25. Sobre a noo de intermedirio cultural, ver: VOVELLE, Michel. Ideologias e
Mentalidades. Traduo de Maria Julia Cottvasser. So Paulo: Brasiliense, 2004. p. 207-224.
34
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradio Brasileira: cultura brasileira e indstria cultural. 5 edio. So Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 25-26.
18
Ibidem, p. 17.
Ibidem, p. 32-35.
37
Silvio Romero um dos intelectuais que pertencem chamada gerao 1870, embora tenha trilhado uma
trajetria bastante singular se comparado com seus contemporneos. Um estudo sociolgico sobre essa gerao de
intelectuais, que reatualizou no contexto brasileiro teorias como o positivismo, o darwinismo e o liberalismo, e na
qual figuram nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Quintino Bocaiuva, por exemplo, pode ser lido em:
ALONSO, ngela. Idias em Movimento: a gerao 1870 na crise do Brasil-Imprio. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
38
SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Complexo de Z Carioca: notas sobre uma identidade mestia e malandra. Revista
Brasileira de Cincias Sociais, n. 29, ano 10, outubro de 1995. p. 5-6. Disponvel em:
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_03. Acesso em: 21 de maro de 2012.
39
FERNANDES, Florestan [1945]. Sobre o Folclore, In: _________. O Folclore em Questo. So Paulo: Hucitec,
1978. p. 42 apud VILHENA, Lus Rodolfo. Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro 1947-1964. Rio de
Janeiro: Funarte; Fundao Getlio Vargas, 1997. p. 135. Como lembra Vilhena, o prprio Silvio Romero acreditava
36
19
relaes de fora inerentes a uma sociedade de classes hierarquizada, ou seja, acabavam por
dissimular os conflitos sociais intensos que pautam a histria do pas.
Nesse processo, a msica popular urbana, que conquistava espaos mais
significativos no rdio e no disco, foi considerada por alguns intelectuais como sendo mais
vulnervel aos modismos e estrangeirismos. Em contrapartida, a msica folclrica, que era
entendida como msica popular num sentido mais romntico, de inspirao oitocentista
imanente s classes populares, irredutvel s influncias trazidas pelos novos meios de
comunicao -, foi privilegiada, pois, era a que supostamente exprimia a identidade brasileira,
alm de constituir fonte indispensvel para os novos compositores nacionais - leia-se, os
compositores eruditos nacionais.40
Os discursos e as representaes que entraram em conflito nessa poca produziram
ressonncias na produo cultural. Ao entrevistar um msico negro que iniciou sua carreira por
volta de 1920, o pesquisador Joo Baptista Borges Pereira pde registrar um exemplo
significativo da circularidade 41 dessas representaes naquele contexto:
Eu era msico desde 1919, mas quase no tinha trabalho. Um dia, em 1925, um
compadre meu que tambm era msico, veio a minha casa me avisar que uma orquestra
famosa da cidade, que s tocava em danas, estava precisando de um msico. Fui
procurar o maestro. le (sic) me perguntou o que eu sabia tocar: violo, bandolim,
pandeiro e tamborim, respondi. Ento le (sic) me perguntou: o que que eu vou fazer
com voc? Preciso de um pianista e de um violonista, e dos bons. Quando eu ia saindo,
le (sic) me chamou e disse: d uma demonstrao do que voc sabe fazer. Dei. le (sic)
gostou mas repetiu as mesmas palavras. Trs anos depois, eu fui procurado por esse
que, apesar do sincretismo entre negros, ndios e brancos, eram estes ltimos os nicos capazes de conduzir a
civilizao e o progresso no Brasil, dada a sua superioridade nas ideias (p. 150).
40
ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 48; Mrio de Andrade foi, sem dvida, o intelectual brasileiro que mais se
destacou na pesquisa e nas discusses acerca das msicas folclrica, popular e popularesca conforme o termo
cunhado pelo prprio autor entre as dcadas de 1920 e 1940. Sobre as contradies e ambiguidades que pautaram
as tentativas de definio das manifestaes musicais interpretadas a partir desses conceitos, ver: GONZLEZ,
Juliana Prez. Da msica folclrica msica mecnica: uma histria do conceito de msica popular por
intermdio de Mrio de Andrade. 276 f. Dissertao (Mestrado em Histria Social) - Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2012. p. 168 e ss.
41
A noo de circularidade ou circularidade cultural ser empregada neste trabalho conforme a acepo do
historiador Carlo Ginzburg que, por sua vez, apoiou-se nos escritos de Mikhail Bakhtin. Este, ao estudar a cultura
popular na Idade Mdia e no Renascimento, centrando-se na produo literria de Franois Rabelais, identifica a
interpenetrao entre as culturas erudita e popular, relativizando assim a oposio entre esses domnios, a qual
supe uma relao hierrquica que obscurece a compreenso do processo criativo para alm da posio social
ocupada pelos agentes em determinado contexto scio-histrico. Ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o
cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 189-190;
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. So
Paulo: Hucitec, 2010.
20
mesmo maestro que foi logo perguntando: Voc ainda quer trabalhar comigo? Eu disse:
quero (...). No comeo eu ficava esperando a vez da orquestra tocar msica nossa. Ela
tocava muita valsa. Quando ela entrava com samba ou chro (sic) ou ento algum ritmo
americano eu entrava tambm. Algum tempo depois, eu ficava mais tempo trabalhando
do que esperando a minha vez, porque os danarinos queriam eram samba. Depois disso,
toquei em orquestra de rdio; fiquei conhecido e cheguei a tocar durante muitos anos no
Cassino da Urca.42
42
Citado por: PEREIRA, Joo Baptista Borges. op. cit. 1967. p. 230-231. Por se tratar de um trabalho acadmico
pautado em dezenas de depoimentos e entrevistas, o antroplogo Joo Baptista Borges Pereira, em respeito tica
inerente ao campo cientfico, no divulga os nomes dos entrevistados, a no ser daqueles que possivelmente
permitiram a publicao de seus nomes, como o caso de Pixinguinha, por exemplo.
43
GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificao da cultura no teatro de revista
dos anos 1920. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. p. 81-85.
21
Voltar-se ao elemento afro-brasileiro e tambm ao universo rural, como revela a febre sertaneja
em voga entre as dcadas de 1910 e 1920.45 Inmeros conjuntos musicais se apresentavam em
capitais j urbanizadas, como So Paulo e Rio de Janeiro, com os trajes do sertanejo e com um
repertrio igualmente pautado pela temtica regional.46 Isso no significa que todos esses artistas
haviam nascido em cidades do interior. Em pesquisa sobre Pixinguinha (msico carioca),
Virginia de Almeida Bessa reconstri esse contexto a partir das mudanas ocorridas na sua
trajetria artstica. Um exemplo paradigmtico o da sua atuao frente do clebre grupo Oito
Batutas que, aps a viagem Paris, em 1922, ento patrocinada pelo empresrio Arnaldo Guinle,
abandonaram as vestimentas caractersticas do sertanejo e passaram a se apresentar com terno e
gravata, nos moldes dos msicos das jazz bands, com os quais puderam estabelecer contato
durante a temporada no exterior. Alis, assim como os chamados conjuntos regionais, as jazz
bands tambm estavam em grande evidncia na poca.47
Outro dado revelador trazido pela autora que boa parte do repertrio produzido e
divulgado tanto pelos conjuntos tpicos ou regionais quanto pelas jazz bands era composto por
msicas originais, ou seja, tratava-se, em muitos casos, de composies dos prprios integrantes
desses conjuntos ou de autores citadinos. Em outras palavras, muito do que se consagrou
posteriormente enquanto temas quase folclricos, como Luar do Serto e Cabca de
Caxang, por exemplo - ambas de autoria de Catulo da Paixo Cearense e Joo Pernambuco -,
foram compostas no contexto urbano, em que a lgica de mercado j se fazia sentir no campo da
produo cultural.48 No por acaso, referindo-se ao conjunto Oito Batutas, o jornalista e crtico
44
22
musical Lcio Rangel se perguntaria dcadas depois: Como poderiam exprimir a poesia dos
sertes homens cem por cento urbanos, que se reuniam nos cafs e botequins da Praa Onze?.49
Alm disso, a msica norte-americana no representava a maior parte do repertrio
das jazz bands brasileiras at os anos 1910 - vale lembrar, a msica ligeira europeia e os gneros
brasileiros a superavam -, fato que revela as estratgias de insero e legitimao dos artistas e
agentes da emergente indstria cultural num mercado em expanso, apropriando-se de termos
estrangeiros que se constituram em signos50 de modernidade ou simplesmente de novidade, o
que resultou em ressignificaes diversas.51
No entanto, apesar da voga dos chamados conjuntos tpicos entre as dcadas de
1910 e 1920, sobretudo no Rio de Janeiro - mas tambm em So Paulo -, os quais eram formados
em boa parte por msicos de origem afro-brasileira, uma parcela significativa dos setores
intelectualizados viam tais manifestaes populares como simples exotismos ou curiosidades
adequadas diverso, destituindo-os de valores ou qualidades estticas, tal como identificavam
na chamada msica sria - leia-se, erudita, europeia e branca.52 Alm disso, o apoio e at
mesmo o financiamento de espetculos e excurses de conjuntos populares que buscavam
representar os universos afro-brasileiro e rural, como o caso dos Oito Batutas, muitas vezes se
49
RANGEL, Lcio. As primeiras chapas de gramofone. In: _________. Samba, Jazz & outras notas
AUGUSTO, Srgio (Org.). Rio de Janeiro: Agir, 2007. p. 138.
50
Emprega-se a noo de signo neste trabalho no sentido proposto por Mikhail Bakhtin em seu estudo sobre a
linguagem, o qual fora aproveitado, posteriormente, por Roger Chartier em sua investigao sobre as inter-relaes
entre prticas e representaes. Levando em conta que toda representao constituda pela relao entre um signo
visvel e o referente significado, e entendendo que todo signo constitudo social e ideologicamente no processo
histrico - nos termos de Bakhtin, todo signo socioideolgico -, expressando-se, sobretudo, atravs da mediao
do discurso, parece til buscar quais eram os valores e sentidos atribudos a diferentes signos nos discursos e prticas
daquele perodo, e como eles se constituram a partir da assimilao e ressignificao de matrizes socioideolgicas.
Ver: BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico
da linguagem. 13 edio. So Paulo: Hucitec, 2009; CHARTIER, Roger. Histria Cultural: entre prticas e
representaes. Lisboa: Difel, 1990.
51
Como exemplo de ressignificao, alm do uso do termo jazz band, pode-se citar o caso do futurismo nos anos
1920. Diferentemente do seu significado no contexto das vanguardas artsticas europeias, esse termo fora empregado
no contexto brasileiro muitas vezes para designar manifestaes e eventos como os espetculos da Companhia Negra
de Revista e o filme A epidemia do Jazz, ambos causadores de certo estranhamento no pblico da poca. Ver:
VIANNA, Hermano. op. cit. 1995. p. 22. Sobre as diferentes jazz bands brasileiras da poca, ver: BESSA, Virginia
de Almeida. op. cit. 2010. p. 132-140.
52
Esse mesmo problema identificado e discutido por Antonio Candido no mbito da histria literria brasileira.
Segundo o autor, o regionalismo (...) entrou em voga nos anos de 1890 atravs do conto e teve at o decnio de
1920 um momento de xito avassalador, que no fundo afinava com a literatura mundana. Como esta, era superficial e
meio leviano, pois se baseava no interesse elitista pelo homem do campo, visto maneira de um objeto pitoresco e
caricatural, podendo nos cultores menores chegar a uma vulgaridade folclrica tola e degradante. CANDIDO,
Antonio. op. cit. 2010c. p. 83.
23
davam em funo do carter moderno que o elemento extico assumiu nos anos 1920,53 um
fenmeno impulsionado pelas vanguardas artsticas europeias que buscavam romper com a
concepo romntica da arte-pela-arte consagrada no sculo XIX.54 o registro de um cronista
da poca que ilustra esse aspecto ao se referir a um espetculo teatral da Companhia Negra de
Revista da qual Pixinguinha participou -, chamada Tudo Preto:
53
24
comum a produo de tipos extremos, que, por sua vez, produzem maneiras muito discrepantes
dos grupos sociais se verem e se avaliarem.57
Considerando a relevncia dos discursos e representaes para a prtica artstica em
si, e vice-versa, torna-se fundamental conhecer as posies sociais dos agentes que compem o
complexo sociocultural de determinados contextos, por constiturem ndices valiosos a respeito
dos referenciais estticos que podem estar orientando o imaginrio e as aes desses grupos.
No caso citado anteriormente, que ilustra at certo ponto o discurso hegemnico da
elite carioca da poca, nota-se que o modelo esttico do autor parte das manifestaes artsticas
das naes mais avanadas de ento: Frana e Estados Unidos. Permanece implcito no seu
discurso, mesmo ao atenuar a selvageria dos integrantes da Companhia Negra de Revista, um
alinhamento com os padres de civilizao estrangeiros, os quais no se restringem ao plano
artstico - caracterizado aqui pela moderna esttica das vanguardas europeias e norte-americana
-, mas que se estendem ao nvel do comportamento: sua selvageria passou pelo cadinho
colonizador, falando ingls; os comediantes que tomam parte nela reduzem-se a uns indivduos
corretos, de pele escura, que ensaiam conscienciosamente seus nmeros.
Mrio de Andrade quem vai revelar, no plano esttico-musical, seu alinhamento a
certos padres de civilizao ao descrever o desfile de uma escola de samba do Rio de Janeiro
ocorrido nos anos 1930:
Ah, no me esquecerei jamais daquella (sic) noite de janeiro, faz dois annos (sic) em que
vi descer do morro uma escola, cantando aquelle (sic) admirvel samba que em seguida
Francisco Mignone aproveitou na sua Quarta Fantasia para piano e orquestra. O cu
estava altssimo e a noite parra exhausta (sic) de tanto calor. E o pessoal veio do morro,
cantando a sua linha de tristeza, to violenta, to ntida, que era de matar passarinho. O
negro da estiva fazia o solo mais ou menos, e logo o cro (sic) largava a se desesperar.
As vozes das mulheres, quando ento subiam nas quatro notas do arpejo ascendente
inicial, vozes abertas, contradictoriamente (sic) alviareiras, como que ainda
empurravam mais o espao dos grandes ares, deixando mais amplido para a desgraa.
Uma desgraa real, nascida por certo de inconscincias tenebrosas, que quasi (sic)
impedia a contemplao da musica bellissima (sic), de to irrespirvel tornava esta vida.
Sei que no pude agentar (sic). 58
57
25
Eis uma imagem que parece revelar, de modo paradoxal, a face brbara e, ao mesmo tempo,
encantadora do populrio. Essa contradio ilustra um modo de pensar comum a alguns
intelectuais ligados ao movimento Modernista de 1922, que conjuga a vontade de modernidade
com a busca, no passado colonial, rural e escravista, de uma identidade brasileira. Dizendo de
outra forma, trata-se de uma contradio histrica evidenciada, no por acaso, num momento de
transio do modelo poltico-econmico do pas e de reestruturao da sociedade de classes,
informando impasses mais amplos e profundos do processo civilizatrio ento em curso.
Alis, sabido que civilizao e progresso so palavras recorrentes no Rio de Janeiro
de princpios do sculo XX. Em seu estudo sobre a belle poque carioca, Jeffrey Needell revela
como os referenciais de modernidade franceses e ingleses orientaram uma srie de aes
concretizadas na ento capital federal, onde se destacaram, pela magnitude e violncia, as
reformas urbanas do governo Pereira Passos (1903-1906), as quais foram inspiradas, por sua vez,
nas reformas promovidas por Haussmann na Paris das dcadas de 1850 a 1870.59 Para alm das
transformaes no plano da infraestrutura, as quais encerram inmeras contradies no contexto
tropical e ainda meio colonial do comeo do sculo passado, os modelos de civilizao
europeus adentraram os espaos pblicos e privados da sociedade de elite carioca, fazendo-se
sentir na educao formal; nos comportamentos nos sales, clubes e espaos privados; nas
carreiras polticas dos membros da elite; no fetichismo do consumo; e, claro, na produo
artstica e literria.60
Alm disso, nesse contexto que se esboa a associao entre os bairros da zona sul
do Rio de Janeiro e os novos hbitos e padres de civilidade cultivados pelos setores de elite. De
acordo com Julia ODonnell, praias como Copacabana e Ipanema, por exemplo, tornaram-se
alvos da especulao imobiliria e dos agentes interessados na habitao e desenvolvimento
daquela regio. Estes, na verdade, estavam preocupados em se distanciar do centro da cidade, que
havia se tornado sinnimo de insalubridade. Em outras palavras, no auge dos discursos e
campanhas higienistas, que desejavam transformar a capital das epidemias em uma cidade
moderna e civilizada, a zona sul emerge como o locus potencial de uma elite pretensamente
aristocrtica, que aos poucos se deslocava para as praias desertas e se instalava em palacetes
59
NEEDELL, Jeffrey D. Belle poque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do sculo.
Traduo de Celso Nogueira. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 50-57.
60
Idem, ibidem.
26
***
De origem inglesa, a expresso classes perigosas era empregada por parlamentares em processos e inquritos
para se referir populao que vivia em situao de misria na cidade do Rio de Janeiro, os quais se aglomeravam
nos inmeros e insalubres cortios da regio central. Como afirma o historiador Sidney Chalhoub, esse termo
cumpria a funo de identificar as classes pobres ao mundo do crime, do vcio e da ociosidade, ou seja, aqueles que
no pertenciam ao mundo do trabalho eram considerados nocivos sociedade, embora o acesso a este mundo lhes
fosse cerceado. Um estudo crtico sobre as classes populares cariocas no incio do sculo de XX pode ser lido em:
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle poque. 3
edio. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 77-78. Alis, a literatura traduziu de modo sui generis os conflitos e
contradies que marcaram as mudanas em curso nesse contexto scio-histrico, como revelam, por exemplo,
certas obras de Lima Barreto, Euclides da Cunha e Machado de Assis. Ver, nesse sentido: SEVCENKO, Nicolau.
Literatura como Misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. 2 edio. So Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
62
ODONNELL, Julia. A inveno de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro (18901940). Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 19-38.
63
Idem, ibidem.
64
Em seu trabalho, Carlos Sandroni destaca o volume significativo de sambas produzidos na passagem dos anos
1920 e 1930, um momento marcado tanto pela consagrao do chamado samba do Estcio perante o pblico
consumidor, quanto pelo novo impulso da indstria fonogrfica nacional, que se expandia, ao lado do rdio, a partir
do registro e da disseminao de um repertrio cada vez mais pautado na cano popular brasileira de origem urbana.
Ver: SANDRONI, Carlos. op. cit. 2002. p. 189 e 219.
27
65
mencionou em tom nacionalista o produtor Paulo Tapajs no depoimento citado no inicio deste
captulo, ir sublimar e traduzir esteticamente as transformaes culturais, sociais e ideolgicas
ocorridas com certa intensidade na chamada Era Vargas (1930-1945), ao passo que o rdio, a
indstria fonogrfica e a prpria sociedade se desenvolviam em ritmos e em propores distintas,
no sem encontrar dificuldades e evidenciar contradies estruturais do processo de formao
social e histrica do pas.
Cabe agora mapear esse processo scio-histrico mais amplo, que culminou no
tratamento digno (e condizente com a sua riqueza) ao qual a msica popular brasileira foi
sendo submetida em determinados ramos do entretenimento. E mais: em que o samba se tornou
sinnimo de msica popular brasileira.
65
Esse termo foi proposto pela sociloga Beatriz Sarlo na tentativa de resumir um dos temas centrais da fortuna
crtica de Raymond Williams, a saber, a noo de estrutura de sentimentos, que ser discutida nos prximos
captulos deste trabalho. Ver: SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginrias: Intelectuais, Arte e Meios de Comunicao.
So Paulo: Edusp, 1997. p. 95.
66
Tais inovaes proporcionaram uma melhora considervel na qualidade sonora dos discos de 78 rotaes. Ao
mesmo tempo, tornou possvel o registro de vozes e instrumentos at ento incompatveis com o sistema mecnico,
como nos casos dos cantores com potncia vocal limitada e dos instrumentos com intensidade excessivamente baixa
ou elevada.
28
constituiu uma via de mo dupla ao impulsionar tanto o comrcio e indstria locais, quanto a
arrecadao das emissoras, que antes dependiam quase que exclusivamente das contribuies de
associados. Tais aes foram decisivas num momento em que a industrializao e a urbanizao
avanavam no pas, bem como para a configurao de uma sociedade de consumo, a qual se
consolidaria em meados dos anos 1960.
Esses acontecimentos so ndices significativos da crescente racionalizao e
profissionalizao dos diferentes ramos da esfera cultural. Alm disso, apoiando-se em Walter
Benjamin, pode-se dizer que o conjunto de transformaes tcnicas verificadas no campo do
entretenimento foi responsvel pela emergncia de um novo estgio de treinamento do sensrio
humano, impulsionando o aprimoramento da sensibilidade auditiva do pblico.67
Aos poucos, novos agentes entraram para o campo da msica popular, contribuindo
para a sua configurao e consolidao no ramo do entretenimento. O samba, por exemplo, que
antes se encontrava predominantemente restrito aos msicos dos morros e subrbios cariocas, foi
conquistando o interesse do pblico e de artistas oriundos de outros espaos e classes sociais. Na
verdade, como aponta Carlos Sandroni, nesse perodo que o meio sociocultural ao qual o samba
se encontrava associado comea a se expandir e a se profissionalizar, isto , compositores,
intrpretes e produtores ligados ao rdio e indstria fonogrfica foram reconhecendo o potencial
de mercado que o samba e outros gneros populares possuam, passando a pensar e a agir de um
modo mais racional. Da o surgimento de novas relaes sociais envolvendo sambistas de
morro e artistas e profissionais j integrados ao ramo do entretenimento. Esse o caso, por
exemplo, da aproximao ocorrida entre os cantores Francisco Alves e Mrio Reis e os
compositores Ismael Silva, Cartola, Bide, Paulo da Portela, entre outros, os quais estiveram no
centro do competitivo embora pouco profissionalizado mercado de produo e de
67
Para uma reflexo filosfica sobre as transformaes da sensibilidade humana em conexo com o desenvolvimento
dos suportes tcnicos no mbito da produo cultural, sobretudo na primeira metade do sculo XX, ver: BENJAMIN,
Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. In: __________. Magia e Tcnica, Arte e Poltica:
ensaios sobre literatura e histria da cultura. Traduo de Sergio Paulo Rouanet. 7 edio. So Paulo: Brasiliense,
1994. p. 165-196. Uma abordagem mais sinttica dessa temtica, fundamentada no pensamento benjaminiano e
ligada histria, filosofia da arte e, em especial, esttica, pode ser encontrada num breve ensaio de Jeanne Marie
Gagnebin a respeito do papel da imagem na Idade Moderna. Para a autora, h uma relao recproca entre as
transformaes histrico-sociais da percepo, transformaes estticas no sentido amplo e etimolgico de aisthsis,
as transformaes das concepes estticas no sentido restrito de doutrinas sobre a(s) arte(s) e as transformaes
sobre as prticas artsticas. GAGNEBIN, Jeanne Marie. O olhar contido e o passo em falso. In: _________.
Limiar, aura e rememorao: ensaios sobre Walter Benjamin. So Paulo: Editora 34, 2014. p. 121-130.
29
comercializao de sambas.68 Ainda que os frutos desse contato entre membros de classes
sociais antagnicas tenham sido numerosos e determinantes para a histria da msica popular
brasileira do sculo XX, os prejuzos materiais foram experimentados apenas pelos sambistas de
morro, que viram muitos de seus sambas alcanarem ndices elevados de vendas no mercado sem
por isso receberem qualquer fatia dos direitos autorais.
Outro caso paradigmtico das novas relaes sociais estabelecidas nessa fase o do
compositor Noel Rosa,69 de Vila Isabel, que se constituiu numa espcie de intermedirio cultural
entre o morro e os setores mdios da sociedade carioca - leia-se, aqueles que viviam na cidade,
qual os morros e favelas supostamente no pertenciam, segundo o imaginrio das classes
dominantes da poca.70 Sua obra, que articula o estilo composicional e a temtica da
malandragem caractersticos dos sambistas de morro com um tratamento potico e musical mais
condizente com o gosto da classe mdia,71 contribuiu para a divulgao do samba, ainda que
estilizado e reinventado, entre um pblico mais heterogneo, num contexto de ampliao do
mercado de bens culturais.72 Em poucas palavras, como se Noel Rosa estivesse atuando no
sentido de civilizar o samba ao operar uma transfigurao esttica que, ao mesmo tempo,
deslocava-o do seu meio social de origem. Uma entrevista concedida pelo compositor ilustra de
modo mpar sua conscincia e postura crtica no que diz respeito esttica do samba dessa poca:
O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa
autntica expresso artstica... A poesia do nosso povo levou a melhor na luta contra o
feitio do academismo a que os intelectuais do Brasil viveram muitos anos ingloriamente
escravizados. (...) O gosto do pblico foi-se aprimorando. Outros poetas vieram dizer,
em linguagem limpa e bonita, coisas maravilhosas... preciso, porm, acentuar que
esses poetas tiveram, tambm, que se modificar, abandonando uma poro de
preconceitos literrios. Influram sobre o pblico mas foram, tambm, por ele
influenciados. Da ao recproca dessas duas tendncias, resultou a elevao do samba,
68
SANDRONI, Carlos. O passarinho e a mercadoria. In: __________. op. cit. 2002. p. 145 e 157.
Nesse sentido, poderamos citar tambm, como casos igualmente exemplares, artistas como Braguinha (Joo de
Barro), Almirante, Mrio Reis, Lamartine Babo, Ary Barroso, Custdio Mesquita, entre outros.
70
O processo de favelizao no Rio de Janeiro ganha flego a partir de 1890, ou seja, no momento em que o pas se
torna uma Repblica. Fenmenos como as reformas urbanas empreendidas na gesto Pereira Passos e o crescimento
e concentrao da populao pobre no centro da capital federal, numa poca em que inexistia um mercado de
trabalho no pas e tampouco polticas pblicas voltadas para a distribuio de renda, enfim, foram decisivos para a
segregao social e espacial de amplos contingentes no permetro urbano. Em seu estudo sobre Copacabana, Julia
ODonnell identifica nas prticas, nos discursos e no imaginrio da elite carioca desse perodo esforos contundentes
no sentido de firmar o distanciamento e a segregao sociais via transformao do espao urbano - em favor, claro,
dos grupos dominantes. Ver: ODONNELL, Julia. op. cit. 2013. p. 67 e ss.
71
ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 55.
72
Ibidem, p. 57-61.
69
30
73
Citado por: MXIMO, Joo & DIDIER, Carlos. Noel Rosa - uma biografia. Braslia: UnB, 1990. p. 246 apud
SANDRONI, Carlos. op. cit. 2002. p. 177.
74
CANDIDO, Antonio. A Revoluo de 1930 e a Cultura. In: __________. A educao pela noite. 6 edio. Rio
de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 240.
75
MXIMO, Joo & DIDIER, Carlos. op. cit. 1990; ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 54.
31
Mardade de cabocla
L no morro da Mangueira
Bem em frente ribanceira
Uma cruz a gente v
L no morro
Uma luz somente havia
Era lua que tudo assistia
Mas quando acabava o samba se escondia
Na segunda batucada
Disputando a namorada
Foram os dois improvisar
E como em toda faanha
Sempre um perde e outro ganha
Um dos dois parou de versejar
E perdendo a doce amada
Foi fumar na encruzilhada
Passando horas em meditao
Quando o sol raiou
Foi encontrado
Na ribanceira estirado
Com um punhal no corao
L no morro uma luz somente havia
Era Sol quando o samba acabou
De noite no houve lua
ningum cantou.
32
Morro da Mangueira
Si Chiquita
Rosinha
Cabca
Cabrocha
Festa do Arrai
Batucada
Cabocos
Malandros
Repentes
Samba
76
FERNANDES, Dmitri Cerboncini. A Inteligncia da Msica Popular: a autenticidade no samba e no choro. 414
f. Tese (Doutorado em Sociologia) Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. p. 16.
33
conscincia prtica
77
O termo conscincia prtica fora formulado por Raymond Williams para tentar precisar o modo como entendia a
noo de experincia, por ser esta passvel de adquirir uma conotao ligada to somente ao passado, quilo que
fora adquirido num tempo outro que no tambm no presente. Alm disso, conscincia prtica contempla tanto a
dimenso objetiva quanto a subjetiva da experincia, ou seja, pressupe a interdependncia entre razo,
sensibilidade, representaes e aes sociais. Ver: WILLIAMS, Raymond. op. cit. 1979. p. 134-135.
78
SANDRONI, Carlos. op. cit. 2002. p. 145 e ss.
79
Ao contrrio da concepo antiga que, embora reconhecesse a mestiagem como particularidade do brasileiro,
defendia o branqueamento do povo em detrimento do atraso que o elemento afro-brasileiro representava, a partir
dos anos 1920 e, principalmente, com a obra de Gilberto Freyre, esse contingente passou a ser igualmente
valorizado. No entanto, como alerta Hermano Vianna, no se pode perder de vista o carter igualmente
homogeneizador que a nova teoria comportava. Ver: VIANNA, Hermano. op. cit. 1995. p. 71-73. Vale destacar
ainda que, a despeito do discurso oficial de carter democrtico, durante o Estado Novo o governo elaborou uma
poltica eugnica, racista e discriminatria para tratar dos imigrantes que solicitavam permanncia no Brasil,
reacendendo com isso uma discusso polmica que pautou o contexto da Abolio da Escravatura (1888). Com o
34
samba e do carnaval. Dito de outra maneira, a questo da mestiagem desloca-se do vis racial,
ainda marcado por teorias e ideologias europeias oitocentistas, para o vis cultural, alinhandose, portanto, corrente terica florescente em segmentos da antropologia norte-americana dos
anos 1920.80
A esta concepo aparentemente mais democrtica quanto ao papel e importncia
do mestio e do elemento popular na formao histrica do pas, contrapunha-se, at certo ponto,
o pensamento poltico e social de Francisco de Oliveira Vianna, autor de obra vasta e de grande
repercusso no meio intelectual ligado ao governo Vargas. De acordo com Stella Bresciani,
Oliveira Vianna tambm reconhecia, a exemplo de Gilberto Freyre e outros, a heterogeneidade do
territrio e o carter mestio do povo brasileiro, o que constitua a especificidade do pas ante as
naes europeias, por exemplo. Porm, opondo-se defesa de uma democracia liberal nos
moldes dos pases avanados, esse intelectual propunha uma democracia autoritria,
supostamente mais adequada tamanha falta de coeso social e ao analfabetismo da maioria da
populao, sendo esta incapaz de conduzir o progresso e a civilizao com as prprias mos.
Amparando-se em ideias de inspirao hobbesiana, Oliveira Vianna argumentava que o poder
poltico deveria se concentrar num chefe de Estado acima dos partidos e grupos de qualquer
natureza, de modo a poder dirigir a Nao do alto, num sentido totalitrio, agindo como uma
fora de agregao e unificao.81 Partindo desse princpio de centralizao, seria possvel
transpor os obstculos impostos pela disperso geogrfica e extenso territorial do Brasil pensamento que, diga-se de passagem, ressoa aspectos da corrente positivista brasileira de finais
do sculo XIX.82
auxlio do Ministrio da Justia, o Itamaraty dava demonstraes claras de que ainda vigorava o projeto de
branqueamento da populao entre os grupos dirigentes, os quais classificavam como indesejveis, por
exemplo, imigrantes negros e japoneses, bem como judeus, deficientes e idosos. A esse respeito, ver: KOIFMAN,
Fbio. Imigrante ideal. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2012.
80
Em sua temporada de estudos nos Estados Unidos, Gilberto Freyre teve contato com a chamada escola
culturalista da antropologia social, liderada poca por Franz Boas (1858-1942). Os interesses deste intelectual se
voltavam antes para a compreenso de como determinadas culturas se desenvolviam, do que propriamente em saber
como os indivduos organizavam a vida em sociedade. Ver: MAIR, Lucy. Introduo Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1969. p. 32.
81
VIANNA, Francisco de Oliveira. Evoluo do povo brasileiro [1929]. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Nacional, 1939. p. 43 apud BRESCIANI, Stella. Forjar a Identidade Brasileira nos anos 1920-1940. In:
HARDMAN, Francisco Foot (Org.). Morte e Progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros. So Paulo:
Fundao Editora da Unesp, 1998. p. 54-55.
82
Ibidem, p. 56.
35
***
83
Ibidem, p. 60.
36
84
85
37
(...) o samba, que traz em sua etimologia a marca do sensualismo, feio, indecente,
desarmnico e arrtmico. (...) Enquanto no dominarmos esse mpeto brbaro, intil e
prejudicial combatermos no broadcasting o samba, o maxixe, a marchinha e os demais
ritmos selvagens da msica popular. Seria contrariarmos as tendncias do povo. (...) A
marchinha, o samba, o maxixe, a embolada, o frevo, precisam, unicamente, de escola.86
89
uma gerao de msicos que inclui, entre outros, o violonista Garoto, Chiquinho do Acordeon e o
contrabaixista Vidal, futuros integrantes do Trio Surdina.
86
SALGADO, lvaro F. Radiodifuso, fator social. Revista Cultura Poltica, Rio de Janeiro, n 6, agosto de 1941. p.
84-86 apud ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 74-75.
87
SAROLDI, Lus Carlos & MOREIRA, Snia Virgnia. op. cit. 1984. p. 30-31.
88
Idem, ibidem.
89
ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 74.
38
ANSIO, Pedro. Samba de casaca. Rdio Nacional, boletim informativo dos servios de transmisso, ano I, n 2
apud BARBOSA, Valdinha & DEVOS, Anne Marie. Radams Gnattali: o eterno experimentador. Rio de Janeiro:
Funarte, 1984. p. 54.
91
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. A Cano no Tempo vol. 1. 5 Edio. So Paulo: Editora 34,
2002. p. 177.
92
ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 79.
39
***
93
BESSA, Virginia de Almeida. op. cit. 2010. p. 235. Vale conferir tambm, nessa direo, a pesquisa de Joo
Baptista Borges Pereira, j mencionada anteriormente, em que se discute os limites, as dificuldades e os conflitos que
permeiam a trajetria social de artistas negros no meio radiofnico da cidade de So Paulo entre as dcadas de 1920
e 1960. Ver: PEREIRA, Joo Baptista Borges. op. cit. 1967.
94
Um estudo detalhado dos arranjos elaborados por Pixinguinha nessa fase foi empreendido pelo violonista e
pesquisador Paulo Arago. A partir dos fonogramas da poca, o autor destaca a importncia dos procedimentos
utilizados pelo compositor carioca na definio de um estilo ou padro de escrita para orquestras populares no Brasil,
logo consagrado nos mbitos radiofnico e fonogrfico. Ver: ARAGO, Paulo. Pixinguinha e a gnese do arranjo
musical brasileiro (1920 a 1935). 135 f. Dissertao (Mestrado em Msica) Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
40
orquestrais foram se tornando cada vez mais escassos em princpios de 1940, conforme indicam
os nmeros relativos aos seus registros fonogrficos.95
Embora fosse um nome consagrado como instrumentista, compositor e autor de
arranjos tipicamente brasileiros para suas orquestras, a esttica musical que Pixinguinha
representava parecia no se adequar aos ideais de modernizao e civilizao que alguns setores
da intelligentsia nacional sustentavam naquele momento. Em outras palavras, a sonoridade de
seus arranjos era, a um s tempo, valorizada e confinada a um passado supostamente portador
da verdadeira identidade nacional, mas que ainda guardava resduos de um estgio primitivo
e no civilizado da histria do pas - ainda que seus arranjos muitas vezes apontassem, na
prtica, para outra direo, revelando tcnicas e procedimentos alinhados ao que havia de mais
original entre as orquestraes das dcadas de 1930 e 1940, sem contar a constante renovao
que Pixinguinha apresentava no mbito da composio, transgredindo de tempos em tempos os
padres formais e estilsticos consolidados na histria do choro.
Alguns crticos e agentes ligados ao campo da msica popular brasileira
consideravam seu padro de sonoridade orquestral incompatvel com um perodo em que se
buscava, nos dizeres de Pedro Ansio, dar um tratamento digno e elegante ao samba. O prprio
maestro Radams Gnattali compartilhava, de certa forma, esse ponto de vista, chegando a
afirmar, anos mais tarde, que o conjunto Oito Batutas, por exemplo, ento liderado por
Pixinguinha nos anos 1920, era uma esculhambao em termos de performance: Tinha trs
violes, no tinha? Cada um fazendo um baixo diferente. Tava (sic) todo mundo l de cana e
achando muito bom. Mas no era, p!96
95
BESSA, Virginia de Almeida. op. cit. 2010. p. 302-313. Encontra-se aqui um levantamento dos registros
fonogrficos de Pixinguinha como arranjador no perodo citado. Alm deste, vale a pena consultar um pequeno
grfico elaborado por Dmitri Cerboncini Fernandes em sua tese, em que se encontra exposta a curva da produo de
sambas e choros gravados por Pixinguinha entre 1913 e 1961. Aps uma fase bastante expressiva entre o final dos
anos 1920 e meados dos anos 1930, os nmeros caem abruptamente por volta de 1940, tomando novo flego por
volta de 1947 - os motivos dessa viravolta sero discutidos mais adiante. Ver: FERNANDES, Dmitri Cerboncini.
op. cit. 2010. p. 114.
96
Com a batuta, Radams Gnattali. Rio de Janeiro, Pasquim, 06/07/1977. p. 13 apud BESSA, Virginia de
Almeida. op. cit. 2010. p. 256. Em entrevista concedida para o autor deste trabalho a 7 de julho de 2011, o msico Z
Menezes parece endossar o discurso de Radams: O Pixinguinha era um cara de banda de msica, ele era mestre de
banda de msica. Os arranjos do Pixinguinha era aquela coisa que mal chegava a uma tera, ele no era um cara
assim de harmonias, como era no caso... Quando apareceu o Radams, todo mundo s queria o Radams, porque o
Radams foi um cara que veio na frente, ele era um cara que vivia cem anos na frente. (Cf. entrevista completa no
CD em anexo).
41
Sem embargo, vale lembrar que o maestro Radams chegou a utilizar combinaes
instrumentais anlogas a essa na sesso rtmica da Orquestra Brasileira da Rdio Nacional.
Garoto, Z Menezes e Bola Sete eram os multi-instrumentistas de cordas dedilhadas (violo,
violo tenor, bandolim, cavaquinho, banjo etc.) que integravam a clebre orquestra, atuando
sempre em conjunto. A diferena, contudo, que esses msicos executavam arranjos escritos, em
que as funes de cada um eram previamente definidas ou seja, o problema, na verdade, no
residia na instrumentao, mas no tratamento, na vestimenta orquestral ou, numa palavra, no
estilo interpretativo.
O fato que a associao com o alcoolismo se tornou um lugar-comum na
historiografia da msica popular brasileira para explicar o relativo afastamento do arranjador
Pixinguinha do cenrio artstico na primeira metade dos anos 1940.97 No entanto, retomando os
casos discutidos por Virgnia de Almeida Bessa, Joo Baptista Borges Pereira e, principalmente,
os dados que informam o momento de falsidade das tentativas de se forjar uma identidade
nacional na Era Vargas a partir das camadas populares tentativas que ocultavam, por
exemplo, polticas racistas e discriminatrias no trato com os imigrantes -, ento trazidos pela
historiadora Stella Bresciani, o problema que parece cercar a trajetria de Pixinguinha nesse
perodo mais amplo e complexo, envolvendo fatores externos que produziram, contudo,
ressonncias na prtica e no cotidiano de muitos artistas de origem afro-brasileira. Afinal, tudo
indica que as dificuldades enfrentadas pelo msico nessa poca no constituem um mero acaso, e
tampouco podem ser explicadas apenas do ponto de vista de sua trajetria individual. Trata-se de
um problema histrico e social muito bem fundado na realidade do pas poca do Estado Novo.
Pixinguinha apenas encontraria uma sada na parceria proposta pelo flautista
Benedito Lacerda que, em troca da ajuda financeira e do novo impulso prometidos sua carreira,
exigiu a coautoria em diversos choros de sua lavra, bem como o papel de solista nas dezenas de
gravaes que iriam realizar em conjunto nos prximos anos.98 Foi dessa parceria ou desse
contrato eticamente frgil que Pixinguinha se consagrou com os seus clebres contrapontos99
97
Um autor que se apoia nesse argumento um de seus bigrafos, o jornalista Srgio Cabral. Ver: CABRAL, Srgio.
Pixinguinha, vida e obra. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997.
98
BESSA, Virginia de Almeida. op. cit. 2010. p. 244-245.
99
O termo contraponto, neste caso, diz respeito aos contracantos caractersticos da linguagem do choro,
elaborados, sobretudo, por instrumentos como o violo de sete cordas (responsvel pelas baixarias) e, no caso de
Pixinguinha, o saxofone tenor. Portanto, embora seja corrente seu emprego na msica popular, o uso das aspas em
42
contraponto necessrio para que este no seja confundido com o sistema contrapontstico ligado msica de
concerto europeia do perodo barroco, em especial.
100
A expresso inveno das tradies ser empregada neste trabalho segundo a acepo dos historiadores Eric
Hobsbawm e Terence Ranger. Ver: HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (Orgs.). A Inveno das Tradies.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 9-23.
101
NAPOLITANO, Marcos. A sncope das idias: a questo da tradio na msica popular brasileira. So Paulo:
Editora Fundao Perseu Abramo, 2007. p. 61.
43
***
102
SEYFERTH, Giralda. Os paradoxos da miscigenao. Estudos Afro-Asiticos, n 20, junho de 1991. p. 171 apud
VIANNA, Hermano. op. cit. 1995. p. 73.
103
GARCIA, Walter. De A preta do acaraj (Dorival Caymmi) a Carioca (Chico Buarque): cano popular e
modernizao capitalista no Brasil. Msica Popular em Revista, Campinas, v.1, p. 30-57, jul-dez 2012. p. 31.
44
pautam a histria social e cultural brasileira, no sem considerar a mediao dos suportes tcnicos
de produo e reproduo de msica.
45
46
2 Msica em Surdina
Uma das principais crticas dirigidas ao Trio Surdina foi publicada em maio de 1953,
quando do lanamento do primeiro long-playing do conjunto:
Analisamos, no ensejo, o recente lbum em long-playing, da etiqueta Musidisc, de n
M-007 (slo negro, de 33 e 1/3 rpm), que assinala a estria (sic) em disco do notvel
Trio Surdina. Na face A, temos: Ternamente (beguine) de Jack Lawrence e Walter
Gross - O Relgio da Vov (chro) do Trio Surdina - Duas Contas (samba) de
Garoto - Felicidade (beguine) de Garoto e Haroldo Barbosa. Apresentando essas
quatro primeiras composies, os solistas de acordeon, violo e violino, oferecem
maravilhosos instantes de deleite espiritual. Suas criaes artsticas atingem nvel
tcnico excepcional! As gravaes impem a mais lmpida emisso sonora, deixando
transparecer a tima qualidade do material de fabricao, constitudo de vinilite de classe
superior. O vocalista do samba Duas Contas, a nica composio que cantada, nesta
face, agrada plenamente. Os trs instrumentistas surpreendem pelo apuro tcnico. Na
face B, temos: Ningum me Ama (samba-cano) de Antonio Maria e Fernando Lobo
- Na Madrugada (samba) de Nilo Srgio - Ns trs, um interessante baio do Trio
Surdina - e, finalmente, a conhecida pgina Malaguea. Nos dois primeiros sambas,
destacamos suas linhas meldicas, a exuberncia tcnica das interpretaes, e as
intervenes felizes do assoviador que nos fez recordar uma gravao memorvel de Les
Paul. Ns trs pgina de feio originalssima, ritmicamente, quer nas belas nuances
meldicas que tira partido o excelente violo, ou nos maravilhosos graves do exmio
acordeonista, secundados, ambos, pela tcnica muito pessoal do violino. Trata-se, pois,
de lanamento que orgulha a indstria do disco brasileiro na atualidade, constituindo o
incio de uma nova era, das mais brilhantes, para a fonografia do Brasil! Uma linda e
artstica capa, do desenhista Rodolfo, valoriza, igualmente, o long-playing Trio
47
Deleite espiritual, apuro tcnico, belas nuances, lmpida emisso sonora, valor
artstico, valor comercial... Eis alguns cdigos da crtica musical dos anos 1950, empregados
aqui em sentido positivo e distintivo para enfatizar o carter moderno e a feio
originalssima do disco, em oposio (indireta) a outras produes contemporneas do Trio
Surdina que procuravam se distinguir e se legitimar sob as insgnias da tradio, do passado, do
autntico etc. Destaca-se ainda a presena do termo long-playing associado a uma gravadora
nacional, a saber, a estreante Musidisc, haja vista o recente desenvolvimento desse formato nos
Estados Unidos (1948), e cujos discos chegavam ao Brasil apenas via importao. Alis, pode
parecer estranho e mesmo desnecessrio para o leitor comum encontrar, numa apreciao
musical, menes aos detalhes tcnicos do material de fabricao do LP; assim tambm, por se
tratar de uma produo indita, que acabara de entrar para o mercado de discos, as palavras de
Claribalte Passos - poeta, crtico musical e colunista da revista Carioca - possivelmente
suscitaram dvidas ou, no mnimo, a curiosidade dos leitores da poca ao omitir o nome dos
integrantes do elogiado conjunto. Longe de ser um mero deslize do autor, esse fato apenas um
dos inmeros mistrios que circundam o Trio Surdina.105
Para esclarecer esses e outros pontos, bem como os sentidos e significados do
contedo dessa crtica, ser preciso retomar o momento de formao e a trajetria do Trio
Surdina luz das informaes relativas ao contexto scio-histrico que envolve a sua produo.
Tudo indica que o conjunto se reuniu pela primeira vez em meados de 1951, no
programa Msica em Surdina, idealizado e produzido poca por Paulo Tapajs, na Rdio
104
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 917, 2 de maio de 1953. p. 62.
Esta crtica encontra-se reproduzida tambm, ainda que de forma parcial, em: ANTONIO, Irati & PEREIRA, Regina.
Garoto, sinal dos tempos. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982. p. 61-62.
105
A escassez de informaes acerca da origem e trajetria do Trio Surdina foi uma das principais dificuldades
encontradas no decorrer da pesquisa. At o momento, quem melhor esclareceu uma srie de interrogaes existentes
em torno do conjunto foi o pesquisador Jorge Mello que, embora no seja um acadmico da rea de msica (
professor do departamento de Fsica da UFRJ), nutre grande interesse pelo assunto. Atravs de seu blog, publicou
diversas matrias que reconstituem a breve e nebulosa histria do trio, todas pautadas em fontes privilegiadas a que
teve acesso como, por exemplo, os contratos dos msicos com a gravadora de Nilo Srgio, a Musidisc, os quais
foram
disponibilizados
pelo
atual
proprietrio
da
empresa,
Nilo
Srgio
Filho.
Ver:
http://jorgecarvalhodemello.blogspot.com/2009/04/desvendando-o-misterio-trio-surdina.html. Acesso em: 16 de
junho de 2010
48
Nacional. Como o prprio nome sugere, a inteno desse musical era reproduzir uma sonoridade
mais intimista, opondo-se tanto estridncia dos populares programas de auditrio, quanto s
formaes instrumentais mais numerosas, como a da Orquestra Brasileira da Rdio Nacional, por
exemplo. Para tanto, Paulo Tapajs arregimentou uma srie de solistas da emissora, a fim de
compor conjuntos menores.106 Foi assim que Garoto (Anbal Augusto Sardinha, 1915-1955),
multi-instrumentista que gozava de amplo prestgio no meio artstico e que estava na emissora
desde 1942,107 uniu-se aos recm-contratados Faf Lemos (Rafael Lemos Jnior, 1921-2004),
violinista que transitou em orquestras sinfnicas e populares ao longo da dcada de 1940,108 e
Chiquinho do Acordeon (Romeu Seibel, 1928-1993), jovem gacho que havia se transferido para
a capital federal naquele mesmo perodo,109 atuando inicialmente como msico contratado na
boate Monte Carlo e na gravadora Todamrica.110
Um dado que informa a condio de existncia do programa, esclarecendo a sua
origem e o seu formato, a faixa de horrio que o mesmo ocupava: os fins de noite do rdio,
logo aps o concorrido horrio nobre - ocupado poca pelas radionovelas, audies
humorsticas e programas de auditrio, principalmente. Isso significa que o pblico ao qual o
Msica em Surdina se dirigia no era exatamente o mesmo que ouvia os programas mais
populares. Nesse sentido, sua esttica se coadunava com a das pequenas boates em voga,
sobretudo, na zona sul do Rio de Janeiro,111 que eram frequentadas predominantemente por
membros de uma frao da classe mdia que esteve no centro da vida noturna e boemia de bairros
como Copacabana e Ipanema no segundo ps-guerra.
Esses espaos eram restritos e restritivos: adequados aos pocket shows e s
formaes instrumentais reduzidas; eram amide refinados, marcados pelos preos altos de seus
servios e produtos, acessveis apenas a um pblico seleto.112 Em sntese, pode-se dizer que,
alm da busca pela insero e consagrao num segmento em formao no campo da msica
106
SAROLDI, Lus Carlos & MOREIRA, Snia Virgnia. op. cit. 1984. p. 75.
Com exceo de um breve perodo em que se desligou da Nacional para atuar na Rdio Record, entre 1949 e
1951. ANTONIO, Irati & PEREIRA, Regina. op. cit. 1982.
108
Informaes disponveis em: http://www.dicionariompb.com.br/fafa-lemos. Acesso em: 3 de maro de 2010.
109
Informaes disponveis em: http://www.dicionariompb.com.br/chiquinho-do-acordeom. Acesso em: 3 de maro
de 2010.
110
Solistas de Orquestras. Revista do Disco, ano 1, n 1, fevereiro de 1953. p. 22.
111
SAROLDI, Lus Carlos & MOREIRA, Snia Virgnia. op. cit. 1984. p. 76.
112
MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: experincias bomias em Copacabana nos anos 50. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
107
49
popular, o referencial esttico do programa no deixa de revelar as marcas de uma classe social
que procurava se distinguir atravs do gosto e dos novos hbitos de consumo institudos num
espao sociocultural elitizado.
Ocorre que o Trio Surdina no atuou somente no programa de Paulo Tapajs. Em
agosto de 1952, o apresentador Paulo Gracindo anunciou a seguinte atrao num de seus
programas de auditrio:
E chamamos agora, em Noite de Estrelas, trs grandes artistas... Trs grandes
instrumentistas que fazem a delcia da cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro, com
um nmero tambm feito para a pouca luz, a media luz [sotaque espanhol] das boates.
um nmero muito bonito, The Breeze and I - (...) A brisa e eu. Esses trs grandes
artistas so: no violino, Faf Lemos; na sanfona, Chiquinho; e Garoto, no violo. Vamos
aplaudir (aplausos), so trs grandes instrumentistas! (...).113
Noite de Estrelas era patrocinado pela moderna e cientfica pasta dental Phillips, e contava com
atraes que iam desde as grandes estrelas do rdio na poca, como as cantoras Marlene e
Emilinha Borba, passando por nmeros humorsticos conduzidos por Pagano Sobrinho
(Fioravante Pagano Sobrinho) e o imitador Wellington Botelho (Wellington Grigorowsky
Botelho), at apresentaes de msica instrumental, reunindo solistas e conjuntos da Rdio
Nacional, como o prprio Trio Surdina. O animador de Noite de Estrelas - ou mestre de
cerimnia, conforme preferia ser chamado Paulo Gracindo, tencionando deixar a animao do
programa nas mos do pblico presente -, buscava estabelecer uma relao de intimidade e
cordialidade com os artistas e com o auditrio, interagindo e acatando por vezes sugestes da
plateia.114 A msica executada pelo Trio Surdina, no caso mencionado, uma cano norteamericana que fazia muito sucesso naquele perodo, sobretudo em funo da gravao de Jimmy
Dorsey e sua Orquestra (Decca, 1940). Trata-se, na verdade, de uma adaptao de Andalucia,
da autoria do compositor cubano Ernesto Lecuona, que fora interpretada pelo trio como um
bolero, diferentemente do fox-trot apresentado pela big band de Jimmy Dorsey. Conforme se
discutir mais adiante, as verses de msicas estrangeiras estavam em alta entre os anos 1940 e
1950, prtica nem sempre vista com bons olhos pelos crticos locais.
113
114
Programa Noite de Estrelas, 9 de agosto de 1952, primeira parte. Acervo Rdio Nacional, MIS-RJ.
Idem, ibidem.
50
Note-se que, para o crtico, o comportamento na sala de estar burguesa devia ser anlogo ao das
salas de concerto. Essas linhas ressoam o ideal de escuta e fruio desinteressada tpicos dos
setores de elite, apontando para conflitos sociais mais amplos,116 que se traduziram na
segmentao e na configurao de uma hierarquia de legitimidades e gostos no campo da msica
popular. So conhecidos, nesse sentido, casos mais extremos, em que chegaram a definir o
pblico feminino, negro, mestio e de baixa renda como macacas de auditrio, as quais
atingiam, segundo esse julgamento, os princpios mnimos do rdio.117 No por acaso, tais
princpios vo ao encontro dos padres de comportamento, civilidade e dos valores morais
115
Ver: Auditrios viciados. Revista Rdio Viso, n 2, 15 de maio de 1947 apud TINHORO, Jos Ramos.
Msica Popular: do gramofone ao rdio e TV. So Paulo: tica, 1981. p. 83-84.
116
GOLDFEDER, Miriam. Por trs das ondas da Rdio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
117
O termo macacas de auditrio foi cunhado pelo jornalista Nestor de Hollanda. Ver: TINHORO, Jos Ramos.
op. cit. 1981. p. 75-76.
51
Sobre essa fase embrionria da radiofonia brasileira, em que o novo meio de comunicao emerge como um
instrumento potencialmente importante para o progresso e civilizao do pas, ver: MURCE, Renato. Bastidores
do Rdio. Rio de Janeiro: Imago, 1976; CABRAL, Srgio. A MPB na Era do Rdio. So Paulo: Editora Moderna,
1996; TAVARES, Reynaldo C. Histrias que o Rdio no contou. So Paulo: Editora Harbra, 1999.
119
Acervo Rdio Nacional, MIS-RJ.
120
As informaes sobre esses programas esto disponveis no acervo da Collectors, empresa privada que
comercializa os registros sonoros de dezenas de produes radiofnicas dessa poca.
52
LENHARO, Alcir. Cantores do Rdio: a trajetria de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artstico de seu tempo.
Campinas: Editora da Unicamp, 1995. p. 23-24.
122
Vide entrevista concedida pelo msico ao autor deste trabalho, realizada no dia 7 de julho de 2011, na cidade de
Guapimirim-RJ. (Cf. entrevista completa no CD em anexo).
53
desejo dos grupos interessados em transformar essas praias cariocas no locus do divertimento
aristocrtico
123
54
medida em que os traos da sua origem popular, tanto negra ou mestia quanto rural e urbana,
estavam desaparecendo com os novos hibridismos - samboleros, sambajazz, samba sessions
etc.127 No plano social, o autor associa essa decadncia ascenso da nova gerao da classe
mdia que se concentrou na zona sul, em virtude da inexistncia de uma ligao orgnica entre
esses grupos e a populao de baixa renda, sendo esta a suposta portadora do verdadeiro carter
nacional e popular.128
O que Tinhoro talvez tenha negligenciado que no somente o Rio de Janeiro, mas
o pas todo atravessava uma fase de transformaes sociais e infraestruturais importantes a partir
da dcada de 1940. Ao lado das importaes de bens de consumo durveis dos Estados Unidos, a
indstria nacional se modernizava e se expandia num ritmo acelerado, passando a concorrer ao
longo dos anos em diversos setores de produo com os artigos importados. A este processo se
somam o crescimento das cidades e a consequente reestruturao da sociedade de classes, uma
vez que o movimento migratrio para os centros urbanos se acentua num espao de tempo
relativamente curto. A maior parte da populao que se dirigia s grandes cidades pertencia s
classes menos favorecidas, que se deslocavam do meio rural e de regies de extrema pobreza
do norte e nordeste do Brasil, principalmente em direo aos estados do Centro-Sul. Em funo
da falta de planejamento urbano e do esforo dos grupos dirigentes em manter a hierarquia social
h muito estabelecida, entre outros fatores, tem-se a marginalizao vertiginosa desses
contingentes nas metrpoles em formao, haja vista a sua baixa escolaridade, no especializao
profissional, taxa de natalidade elevada etc.129 Assim, o acesso ao mercado de trabalho e ao
consumo se dava de forma gradual e parcial entre as classes subalternas.
nesse momento que a indstria, o comrcio e o campo de produo cultural
comeam a se articular de maneira cada vez mais orgnica, acabando por transformar a nova
massa em consumidores, procurando criar e atender s suas expectativas nos planos material
e simblico, por mais ilusrias e mistificadoras que fossem as relaes que comeavam a se
instituir, corroborando a espoliao dos trabalhadores, uma vez que, no contexto de
127
TINHORO, Jos Ramos. Histria Social da Msica Popular Brasileira. So Paulo: Editora 34, 1998. p. 307309.
128
Idem, ibidem.
129
MELLO, Joo Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e Sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). Histria da vida privada do Brasil: contrastes da intimidade contempornea. So
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 560-586.
55
130
Para uma anlise histrica e sociolgica dos momentos decisivos da formao de uma indstria cultural no Brasil
dos anos 1950 e 1960, em conexo com as mudanas sociais ento em curso nas grandes cidades, ver: MICELI,
Srgio. A noite da madrinha e outros ensaios sobre o ter nacional. So Paulo: Companhia das Letras, 2005. Vale
consultar, especialmente, o terceiro captulo, O campo simblico dependente (p. 125-156), bem como as
Concluses, em que se l: Os meios de comunicao de massa constituem, no interior de uma formao social
como a brasileira, cujo mercado material e simblico no se encontra unificado, os instrumentos estratgicos a
servio de uma segunda ao pedaggica, que consiste em ressocializar amplos contingentes pela imposio de um
habitus de classe dominante e, ao mesmo tempo, consolidando o universo cultural dos contingentes, como, por
exemplo, os setores mdios, j integrados nesse mercado (p. 177).
131
ORTIZ, Renato. op. cit. 1994. p. 88.
132
Essa reconfigurao urbana da zona sul, em que se destacam os novos edifcios de apartamento, esteve
diretamente ligada ao esprito moderno que acometeu o pblico aristocrtico e fino - conforme se intitulavam
membros da alta sociedade carioca - entre 1920 e 1940. Para a antroploga Julia ODonnell, a concentrao dos
arranha-cus entre a regio central e os bairros atlnticos deixava claro que, ao contrrio do que acontecia em outros
pases (onde a verticalizao se difundia como soluo tcnica para a questo da habitao), no Rio de Janeiro o
edifcio de apartamentos emergia como a moradia das elites e das classes mdias ascendentes. Erguidos com
materiais nobres e divulgados atravs de estratgias voltadas para um pblico de alto poder aquisitivo, os primeiros
prdios altos do Rio primavam pelo esforo de oposio s antigas habitaes coletivas, o que ficou mais explcito
aps a crise de 1929, quando, a despeito do decrscimo de investimentos na construo civil, os arranha-cus
continuaram a se disseminar pela cidade. Ver: ODONNELL, Julia. op. cit. 2013. p. 190 e 199.
56
Ambiente de bom gosto e discreto; tratamento corts e atencioso; msica suave e delicada:
eis alguns cdigos que informam um ideal de civilizao especfico, para alm das estratgias de
promoo do LP intrnsecas a esse discurso.
Conforme aponta Gilberto Velho, entre as dcadas de 1930 e 1960, o bairro de
Copacabana, por exemplo, cresceu num ritmo sete vezes maior que o da prpria cidade do Rio de
Janeiro, devido migrao intensa de habitantes oriundos de bairros como Botafogo, Tijuca,
Ipanema etc., isso sem contar o contingente significativo advindo de outras cidades e estados
brasileiros.133 Esse processo se intensificou entre 1940 e 1950 e, de acordo com o autor, sob a
alegao de que estavam procura de um lugar moderno, com divertimentos e facilidades,
a maioria das pessoas se deslocava para Copacabana, na verdade, em funo do prestgio social
e status que essa mudana implicava. Em outras palavras, no imaginrio de certas fraes da
classe mdia, a simples mudana para o bairro significava uma forma de ascenso social,
mesmo no havendo alteraes na ocupao ou na renda das pessoas
134
- ou seja, mobilidade
VELHO, Gilberto. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 2 edio. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1975. p. 21-24.
134
Ibidem, p. 89.
57
Confrontando
as
representaes
dessa
elite
cosmopolita
pretensamente
aristocrtica com os dados concernentes situao econmica e social do pas nos anos 1950,
tornam-se mais claras e legtimas as crticas de esquerda, como as de Tinhoro, acerca do
momento de falsidade da ideologia que povoa o imaginrio dos seletos moradores da zona sul
do Rio de Janeiro, em especial, da nova gerao de cilenses. Afinal, como afirmam Joo Manuel
Cardoso de Mello e Fernando Novais numa anlise mais bem circunstanciada e de orientao
marxista,
Essa forma de conscincia social, que identifica progresso a estilos de consumo e de vida
[estrangeiros], oculta os pressupostos econmicos, sociais e morais em que se assentam
no mundo desenvolvido. Forma reificada de conscincia, acrescentemos, peculiar
periferia, onde possvel consumir sem produzir, gozar dos resultados materiais do
capitalismo sem liquidar o passado, sentir-se moderno mesmo vivendo numa sociedade
atrasada.136
58
Em suma, este o cho histrico e social, que cobre uma parte do breve interregno
democrtico que vai de 1946 a 1964, em que se desenrolaram as mudanas estticas e as
transformaes tcnicas operadas no campo da msica popular brasileira discutido neste trabalho.
59
2005.
Disponvel
em:
agulhas mais sensveis e velocidade de rotao varivel - mudanas que, diga-se de passagem,
foram responsveis pelo encarecimento desses aparelhos.138
A exemplo do que ocorrera com a introduo do sistema eltrico de gravao, em
1927, e com o aperfeioamento das transmisses e dos aparelhos de rdio a partir da dcada de
1930, possvel dizer que o conjunto de inovaes tcnicas reunidas sob o signo Hi-Fi tambm
representou o incio de um novo estgio de treinamento do sensrio humano. Apurava-se a
percepo de sutilezas antes ofuscadas tanto pelos registros resultantes de processos de gravao
antigos, quanto pelos aparelhos reprodutores dos discos de 78 rpm. Em suma, ao mesmo tempo
em que novas tcnicas e suportes eram introduzidos, a sensibilidade auditiva do pblico tambm
se transformava novos modos de escuta estavam se formando.
Embora alguns desses novos equipamentos e procedimentos de gravao tivessem
chegado ao Brasil apenas em 1951,139 os long-playings j circulavam por aqui, ainda que de
modo restrito, desde a dcada anterior, quando do aumento das importaes de produtos norteamericanos. Prova disso o programa Disc-Jockey alis, mais um dos termos que se tornou um
signo de modernidade na ocasio -, lanado pela Rdio Globo, em 1948, e que se resumia
audio e apreciao de LPs de jazz. Seu idealizador e apresentador, o radialista Lus Serrano,
trouxe esse formato dos Estados Unidos, acreditando no seu potencial junto aos admiradores
locais da msica popular norte-americana. Ao mesmo tempo, sugeriu a formao de fan-clubs
especializados em artistas divulgados nas suas transmisses, a fim de promover o seu programa e
de facilitar a circulao de notcias e dos discos por ele importados, chegando mesmo a prometer
o fornecimento dos mesmos aos aficionados que encampassem o projeto. E esta ideia no
demorou a se concretizar: foi criado, no mesmo ano, o Sinatra-Farney Fan Club - dedicado aos
cantores Frank Sinatra e Dick Farney (Farnsio Dutra e Silva) -, reunindo diversos jovens de
classe mdia, como o violinista Faf Lemos, por exemplo, alm de alguns nomes que se
consagrariam somente com o advento da Bossa Nova (1958), como os intrpretes e compositores
Johnny Alf (Alfredo Jos da Silva) e Joo Donato.140
138
LAUS, Egeu. Capas de Discos: os primeiros anos. In: CARDOSO, Rafael (Org.). O design brasileiro antes do
design: aspectos da histria grfica. So Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 300.
139
Ibidem, p. 304.
140
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a histria e as histrias da Bossa Nova. So Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 36-45.
60
importante destacar a parceria entre Nilo Srgio e alguns milionrios. Cientes do potencial
de mercado do LP, que vinha se consolidando nos Estados Unidos e na Europa, empresrios
ligados ao ramo do entretenimento no Brasil no hesitaram em investir no novo formato de discos
frente, sero apresentados e discutidos outros exemplos de gravadoras voltadas a este
segmento em formao.
Conhecido at ento como crooner e compositor, o proprietrio da gravadora havia
atuado ao lado de Garoto na orquestra do maestro Carioca em meados da dcada de 1940.142 O
convite para a gravao de um disco surgiu na poca em que o trio havia assumido uma formao
fixa, em razo do considervel reconhecimento dos ouvintes da Rdio Nacional que os
acompanhavam em diversos programas, coincidindo tambm com o momento em que Nilo
Srgio comeava a estruturar a Musidisc. Entretanto, para lev-los ao estdio, o ento empresrio
se deparou com um verdadeiro imbrglio: os msicos possuam contratos com gravadoras
diferentes e bastante consolidadas no mercado, e se viam, portanto, legalmente impedidos e
profissionalmente inseguros para assinar com a estreante Musidisc. A soluo encontrada, na
ocasio, foi omitir os nomes dos instrumentistas nos crditos dos LPs, prtica nada incomum para
a poca, haja vista as inmeras participaes no registradas de Garoto em fonogramas da
141
142
Novidades em Long-Playing. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 894, 22 de novembro de 1952. p. 62.
MELLO, Jorge. Gente Humilde: Vida e Msica de Garoto. So Paulo: Edies SESC-SP, 2012.
61
Continental, Sinter e Todamrica entre 1951 e 1953, por exemplo, sendo que, nessa fase, seu
contrato era de exclusividade com a prestigiada Odeon.143
Sem embargo, o nome Trio Surdina se tornou uma espcie de propriedade de Nilo
Srgio. Isto porque o formato do grupo se mostrava promissor em termos de mercado - afinal, era
a poca das pequenas boates, dos nightclubs, e as prprias emissoras de rdio j estavam
procurando atender o novo pblico que ali emergia -, sem contar que esta medida evitaria
futuros problemas contratuais envolvendo os msicos. Da as diversas formaes que o trio
acumulou ao longo de aproximadamente dez anos de existncia sem alterar, contudo, o nome e a
ligao com a Musidisc - incluindo o Trio Surdina em Bossa Nova, de 1963, lanado oito anos
aps a morte de Garoto.144
De acordo com Jorge Mello, pesquisador que teve acesso aos contratos da Musidisc, a
formao inicial do conjunto - leia-se, Garoto, Faf Lemos e Chiquinho do Acordeon -, registrou
apenas quatro discos: Trio Surdina, Trio Surdina Interpreta Noel Rosa e Dorival Caymmi (ou
Trio Surdina n 2), Trio Surdina e Orquestra Lo Peracchi (LP dedicado obra de Ary Barroso)
e Trio Surdina n 3. Embora os LPs tenham sido lanados gradativamente ao longo de 1953, a
maior parte das gravaes foi realizada em dezembro de 1952, quando a Musidisc sequer havia se
oficializado enquanto empresa. No entanto, esse adiantamento foi motivado pela tourne que
Faf Lemos faria, no incio do ano seguinte, pelos Estados Unidos.145
Outro dado importante omitido nos discos do Trio Surdina o da participao do
contrabaixista Vidal (Pedro Vidal Ramos) em algumas gravaes, bem como a do percussionista
conhecido como Bicalho. O primeiro, que atuou durante muitos anos ao lado do maestro
Radams Gnattali, tanto na Rdio Nacional quanto em seu conjunto de cmara instrumental - o
Quinteto/Sexteto Radams, formado tambm por Chiquinho do Acordeon, Z Menezes, Luciano
Perrone e Ada Gnattali -, desempenha um papel fundamental nos fonogramas do Trio Surdina,
143
Ibidem, p. 120-150. Como mostra o bigrafo Jorge Mello, esse fato s pde ser descoberto graas s anotaes do
dirio de Garoto.
144
Alm da formao inicial, que contava com Garoto, Faf Lemos e Chiquinho do Acordeon, o Trio Surdina foi
integrado por msicos como Irany Pinto, Nestor Campos, Waltel Branco, Gacho (Auro P. Thomaz), Al Quincas
(Joaquim
Gonalves
Oliveira
Filho),
Patan,
entre
outros.
Ver:
http://jorgecarvalhodemello.blogspot.com/2009/04/desvendando-o-misterio-trio-surdina.html. Acesso em: 16 de
junho de 2010.
145
Idem, ibidem.
62
63
havia visto, os lbuns 78 da Columbia comearam a sair com capas ilustradas, em papis
impressos colados aos cartes das capas. Em 1948, no lanamento do long-play nos
Estados Unidos, o mesmo Steinweiss projetou o ovo de colombo: uma folha de carto
impressa, aberta e depois dobrada ao meio que se tornou definitivamente o modelo da
capa de LP.148
148
Ibidem, p. 309.
64
Figura 1: Detalhe da contracapa do LP Boleros em Surdina, que traz orientaes tcnicas para o ajuste dos novos
aparelhos reprodutores de discos Hi-Fi.
149
150
A imprensa sensacionalista e a cincia. Revista Pesquisa Fapesp, n 207, maio de 2013. p. 78-80.
Idem, ibidem.
65
Num sentido mais amplo, esse fato ressoa os referenciais e os valores de progresso
tcnico e modernidade prprios de uma classe mdia ligada incipiente indstria nacional, que
toma forma e impulso no cenrio brasileiro a partir de 1930, marco simblico do relativo
declnio das antigas oligarquias rurais, cujo sistema poltico e econmico representava um
entrave para o desenvolvimento do pas ao menos segundo o libi da nova classe dirigente
que ascende ao poder: a burguesia. De acordo com Roberto Schwarz, esse iderio chegou a
orientar a arquitetura e a produo literria ligada ao modernismo. A associao entre beleza e
racionalidade, por exemplo, era essencial para alguns arquitetos dos anos 1920 e 1930: o
modelo a mquina, construda por um engenheiro (...).151 Segundo o autor,
(...) razo, capitalismo de fbrica e beleza esto de mos dadas, e anunciam a nova era.
Nessa acepo, a revoluo modernista bate-se pela sintonia do gosto com os princpios
da grande indstria, o que representa uma ruptura profunda com a tradio cultural, sem
prejuzo de atualizar e reafirmar a hegemonia burguesa.152
***
SCHWARZ, Roberto. O progresso antigamente. In: ________. Que horas so? - ensaios. 2 edio. So Paulo:
Companhia das Letras, 1987. p. 108.
152
Idem, ibidem.
153
CHARTIER, Roger. O mundo como representao. Estudos Avanados, So Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191,
janeiro/abril 1991. p. 178.
66
propriamente musical, um todo orgnico, uma forma particular que aos poucos se consolidaria e
se autonomizaria enquanto expresso esttica: o LP.154
Todavia, embora os novos equipamentos e tcnicas de gravao surgidos no final da
dcada de 1940, nos Estados Unidos, tenham adquirido sentidos de progresso e modernidade,
representando o incio de uma nova era da indstria fonogrfica, importante ressaltar que, no
Brasil, as limitaes tcnicas do antigo formato (78 rpm) no haviam sido plenamente superadas os chiados, por exemplo, diminuram, mas no desapareceram por completo, conforme
destacavam alguns crticos.155 Assim, se no apogeu do rdio como meio de divulgao da msica
popular, perodo que Valter Krausche definiu como a fase de hegemonia do ouvido,156 criavase a iluso de imediaticidade ou proximidade entre msica e ouvinte,157 o Hi-Fi, na fase do culto
cincia e tecnologia, constituiu-se em um novo mito,158 ao transmitir a ideia de que a
msica produzida e reproduzida pelos novos suportes era idntica performance ao vivo,
como se no houvesse um complexo de mediaes entre a emisso e a escuta. Nesse processo de
transio, alis, o potencial imagtico dos LPs assume importncia decisiva para a construo de
novos sentidos em torno da produo fonogrfica, ou seja, estendendo a definio de Valter
Krausche, pode-se dizer que o ouvido e o olho passam a mediar cada vez mais as
experincias estticas da nova fase da msica popular que se iniciava na dcada de 1950 - o
advento da TV impulsionaria esse fenmeno.
Em estudo sobre a histria do LP no Brasil, Egeu Laus afirma que, at 1956, os
lanamentos fonogrficos no novo formato no representavam, do ponto de vista da produo,
avanos to importantes em relao aos discos de 78rpm. Embora o design grfico e as
estratgias de promoo no mercado j se mostrassem mais racionalizados, muitos LPs apenas
154
Sobre a autonomia esttica do LP, ver: MAMM, Lorenzo. O LP no foi apenas um suporte, mas uma forma
artstica. Revista Piau, n 89, fevereiro de 2014. Confira tambm a anlise e comentrios sobre a arte grfica dos
discos e o repertrio do Trio Surdina presente no prximo captulo, em que nos baseamos no ensaio de Lorenzo
Mamm.
155
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 917, 2 de maio de 1953. p. 62.
156
KRAUSCHE, Valter. A Rosa e o Povo: arte engajada nos anos 60 no Brasil. 355 f. Dissertao (Mestrado em
Histria) - Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 1984. p. 85.
157
CARONE, Iray. A face histrica de On popular music. Constelaciones, Revista de Teoria Crtica, n 3, p. 148178, diciembre de 2011. p. 158-159.
158
Vide estudo de Michel Chion sobre os mitos tecnicistas que marcaram a histria da msica industrializada no
sculo XX. CHION, Michel. Msicas, Media e Tecnologias. Lisboa: Coleo Bsica de Cincia e Cultura, 1994. p.
81-86.
67
relanavam msicas que j haviam sido gravadas nos padres antigos.159 Essa informao trazida
pelo autor vai ao encontro do que se constata atravs da audio dos fonogramas desse perodo,
pois, a diferena entre a qualidade sonora dos discos de 78rpm e dos LPs dessa fase inicial
pouco perceptvel. O que pode explicar essa indistino o fato de que as alteraes mais
significativas na sonoridade dos LPs seriam notadas a partir da introduo da gravao em fita
magntica, o que se deu no final dos anos 1950, conforme indicam alguns msicos que atuaram
nos estdios da poca.160
Diante desses dados, importante avaliar os LPs enquanto produtos em que se
inscrevem, ao mesmo tempo, projetos esttico-ideolgicos.161 Dito de outra maneira, no se deve
negligenciar as estratgias de promoo e insero no mercado de msica popular, tampouco a
inteno que essas produes revelam no sentido de comunicar uma esttica ou uma ideologia
especficas, trazendo consigo as marcas de uma classe social que busca se legitimar e se
distinguir no seu prprio contexto. As palavras de Sebastio Fonseca, o autor da resenha presente
na contracapa do LP Boleros em Surdina, sintetizam de modo sui generis essa inter-relao:
(...) a eletrnica avanou a passos de gigante a caminho de uma tcnica cada vez mais
aprimorada, at que o prodgio da alta fidelidade surgiu e, como um DDT de fulminante
poder, aniquilou de uma vez por todas a mosca do chiado. Pode, portanto, agora, o Trio
Surdina, (...) reeditando as magnficas performances que tanto renome lhe deram, faz-lo
dentro de um clima tcnico absolutamente propcio ao seu estilo. Sim, porque a msica
desse esplndido conjunto - como o seu nome est sugerindo - a msica-suavidade, a
msica-meiguice, a msica que brota do disco como uma carcia sonora, como um quase
silncio a afagar o nosso ouvido. (Grifos nossos).162
159
68
Esse discurso refora a hiptese de que emerge uma nova sensibilidade auditiva na dcada de
1950; ou melhor, adotando os referenciais de Michael Baxandall163 e Pierre Bourdieu,164 pode-se
dizer que emerge um novo ouvido social nesse perodo, que conjuga os modos de escuta, o
aprimoramento tcnico e a qualidade sonora e esttica dos LPs.
Outra amostra, nesse sentido, pde ser lida na primeira crtica dirigida ao Trio
Surdina, citada no incio deste captulo, quando o autor se referiu mais lmpida emisso
sonora das gravaes, que deixavam transparecer a tima qualidade do material de gravao,
constitudo de vinilite de classe superior. Alis, o autor em questo, Claribalte Passos, destaca
este aspecto em diversos momentos, revelando a importncia deste critrio em suas apreciaes.
Por constiturem dados relevantes e pouco conhecidos do pblico leitor, vale a pena dedicar
ateno especial a alguns de seus textos, avaliando-os sob a tica das mudanas tcnicas e
estticas operadas no campo da msica popular brasileira nos anos 1950, a fim de ilustrar a
complexidade dos cdigos, valores e representaes que circulavam no imaginrio social dos
grupos de classe mdia naquele perodo.
2.4 Artstico, tcnico, comercial: os cdigos da crtica especializada dos anos 1950
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experincia social na Itlia da Renascena. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 37-45.
164
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gnese e estrutura do campo literrio. So Paulo: Companhia das Letras,
1996. p. 353.
165
PASSOS, Claribalte. Julgamentos da Semana. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 939, outubro de 1953. p. 35.
166
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 901, 10 de janeiro de 1953. p.
46.
69
167
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 155-156.
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 936, 12 de setembro de 1953. p.
35.
169
PASSOS, Claribalte. Comentando Long-Playing. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 945, 14 de novembro de
1953. p. 35.
170
PASSOS, Claribalte. Disc-Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 947, 28 de novembro de 1953.
p. 34.
168
70
Apreciamos, hoje, o novo lanamento da etiqueta Musidisc (slo preto), n M-006, sob
o ttulo Elvira Rios n 1, num belo lbum em long-playing. (...) As criaes vocais
esto a cargo da personalssima intrprete mexicana (...). Artisticamente, no poderamos
desejar coisa melhor; a cantora, por exemplo, d nvel de superior relvo (sic) s
melodias de ambas as faces. Sua emisso bela, aveludada, impregnada de romantismo
e densidade emocional. Mas, tecnicamente, discordamos do gravador responsvel. O
plano de equilbrio entre a artista e o acompanhamento dos dois pequenos conjuntos
instrumentais surge em cada faixa do disco, com ntidos deslizes motivados pela m
colocao dos microfones em prejuzo de solos isolados e que bem poderiam ter outro
rendimento. Alis, sse (sic) defeito notrio em tdas (sic) as gravaes da Rdio e
da Musidisc. Cotao: Bom. Valor artstico: timo. Comercial: Promissor. - C. P.171
(Grifos nossos).
Avaliando um disco de boleros da elogiada cantora Elvira Rios e da gravadora que outrora
constitua o incio de uma nova era, das mais brilhantes, para a fonografia do Brasil, Claribalte
Passos distingue o que pertence aos planos artstico e tcnico. O primeiro diz respeito
qualidade das composies e da interpretao vocal da artista mexicana - bela, aveludada,
impregnada de romantismo e densidade emocional. J o segundo se restringe dimenso
material da gravao, em que se releva o processo produtivo e, por vezes, conforme citado em
casos anteriores, o tipo de material empregado na fabricao do disco. Nesse quesito, observa-se
o incmodo do autor ao notar a falta de organicidade entre a voz e o acompanhamento, recebendo
ambos um tratamento diferenciado que resultou na sobreposio do volume sonoro dos conjuntos
em detrimento de solos isolados - que podem ser tanto da cantora quanto dos instrumentistas.
De acordo com o crtico, esse problema tcnico teria sido causado pela disposio dos
microfones no estdio, um defeito no muito raro nas produes das gravadoras mencionadas.
Alis, uma queixa similar pode ser lida na apreciao do disco Msica de Champagne n 1, de
Lo Peracchi e Orquestra (Musidisc, M-005):
Artisticamente, ambas as faces nos agradaram; mas, tcnicamente (sic), temos a observar
ntidos deslizes. Ausncia de relvo (sic) em determinados slos (sic) instrumentais,
situando-os os responsveis pela tcnica, num mesmo plano do todo orquestral. Sob tal
ponto de vista, achamos ser ste (sic) o mais fraco lanamento desta nova etiqueta
nacional, pois o mnimo aumento de volume no contrle (sic) tcnico da electrola (sic),
provoca imediata distoro. Cotao: Aceitvel. C. P.172
171
PASSOS, Claribalte. Disc-Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 906, 14 de fevereiro de 1953. p.
62.
172
PASSOS, Claribalte. Disc-Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 906, 28 de fevereiro de 1953. p.
42.
71
Numa fase em que se tentava aprimorar a sonoridade dos discos com o emprego
gradativo de equipamentos mais modernos, as gravaes se tornaram mais limpas e os
ouvintes, por consequncia, mais exigentes. Na dcada anterior, talvez fosse difcil encontrar
uma crtica que dedicasse especial ateno ao trabalho dos responsveis pela tcnica nos
estdios, bem como ao plano do todo orquestral em relao voz, pois no havia outra
referncia sonora que no fosse a das transmisses radiofnicas ou dos discos de 78 rpm, os quais
sempre destacavam os solistas, evidentemente, dada a escassez e precariedade dos microfones e
demais suportes. Em outras palavras, com o desenvolvimento do Hi-Fi e dos LPs, instituem-se
parmetros antes inexistentes para os ouvintes, tornando-os mais criteriosos nas escolhas e na
percepo de detalhes antes ofuscados pelos mtodos e suportes antigos. assim que os
acompanhadores passaram a receber maior ateno, ao menos por parte da chamada crtica
especializada, que parece reproduzir na sala de estar burguesa um comportamento tpico das
salas de concerto aristocrticas do sculo XIX, mostrando-se sensvel s mnimas distores.
Ocorre que o progresso frequentemente sublinhado por Claribalte Passos e outros
intelectuais da poca no se restringe ao domnio da tcnica, conforme aponta uma crnica
publicada em janeiro de 1953:
devras (sic) animador, para todos ns militantes da crtica especializada, constatar
(...) o ascendente progresso da indstria fonogrfica no Brasil. As modificaes tm sido
operadas, benficamente (sic), no apenas no concernente ao mbito da qualidade de
fabricao, mas, sobretudo, tornando maior a procura do disco brasileiro no exterior,
atravs do adequado tratamento que se vem dispensando msica nacional prpriamente
(sic) dita. No s evoluiu a mentalidade dos responsveis pelas nossas diversas empresas
do ramo, como ainda os tcnicos encarregados da feio puramente artstica, ou sejam
(sic), os maestros arranjadores buscaram novas e promissoras formas de
aperfeioamento na vestimenta orquestral das nossas melodias. Inicialmente, como que
apalpando o terreno, surgiram os chamados conjuntos de bote. Isto , pequenos
grupos de instrumentos, porm, capazes de criar um interesse e entusiasmo
absolutamente novos no mbito da composio indgena, que no momento ultrapassa
todas as expectativas, graas ao talento e recursos dos mencionados tcnicos. (...) Houve,
portanto, o perfeito enlace entre o progresso industrial e a ascenso tcnica no domnio
artstico. Pesquisas as mais minuciosas, complexas anlises em laboratrios foram
mostrando a necessidade de apurar a qualidade da massa de fabricao do disco
nacional, at atingir o que hoje nos dado (...). Por outro lado, surgiu a modalidade
tcnica da gravao em long playing, cujo primeiro exemplar fabricado na Amrica do
Sul se deve ao esprito patritico e empreendedor de Paulo Duprat Serrano. Atualmente,
outras marcas lanadas no mercado, graas argcia e dinamismo de brasileiros como
Nilo Srgio [Musidisc] e Ovdio Grottera [Radio], vieram solidificar em definitivo a
posio do disco de longa durao no mbito da msica brasileira. O grande mrito,
72
alis, dessa tarefa o de criar grandes possibilidades de divulgao em larga escala das
obras de autores nacionais nos seus diferentes ritmos (...).173 (Grifos nossos).
O crtico fornece um panorama amplo das transformaes operadas naquele perodo no campo da
msica popular. Note-se que, para ele, o marco desse processo evolutivo a emergncia dos
pequenos conjuntos de bote, que trouxeram novas e promissoras formas de vestimenta
orquestral para as melodias nacionais. Claribalte Passos no deixa dvidas de que suas
referncias eram as novas formaes instrumentais que aos poucos foram se consolidando no
cenrio musical brasileiro, inspiradas nos pequenos conjuntos de jazz ento em voga nos Estados
Unidos, cuja seo rtmica contava com a bateria, o contrabaixo, o piano e/ou o violo eltrico,
sendo este substitudo, s vezes, pela guitarra eltrica. As diferenas entre essas formaes, que
emergem na esteira do samba-cano no Brasil, e a dos antigos conjuntos regionais ainda
predominantes nos anos 1950 nas sees rtmicas das gravaes nacionais de samba e de choro
so bastante evidentes.
Acompanhando a ascenso tcnica no domnio artstico, destaca-se a evoluo da
mentalidade dos responsveis pelas nossas diversas empresas do ramo, dentre os quais se
encontravam o pioneiro Paulo Serrano, proprietrio da gravadora Sinter (Sociedade
Interamericana de Representaes), uma subsidiria da norte-americana Capitol; Ovdio Grottera,
dono da ento recm-inaugurada Radio (Petrpolis-RJ), gravadora especializada em longplaying; e o j citado Nilo Srgio, da Musidisc.
No incio dos anos 1950, essas trs gravadoras concentravam boa parte da produo
de LPs do Rio de Janeiro. Mas coube Sinter, fundada em 1945 e instalada em um prdio
projetado por Oscar Niemeyer no Alto da Boa Vista, o lanamento do primeiro LP produzido no
Brasil, sob o ttulo Capitol carnaval em long playing (1951). Alm disso, a empresa de Paulo
Serrano foi pioneira tambm no design grfico das capas dos discos, tendo contratado cartunistas
e desenhistas conceituados como Lan (Lanfranco Cortelline Rossi), Nssara (Antonio Gabriel
Nssara) e Micio Caff, entre outros, para ilustrar seus produtos.174
173
PASSOS, Claribalte. Discoteca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 902, 17 de janeiro de 1953. p. 62.
LAUS, Egeu. op. cit. 2005. p. 313. Uma discusso detalhada acerca das capas dos LPs pode ser lida no incio do
prximo captulo, mais precisamente, no item O LP enquanto produto e projeto esttico-ideolgico.
174
73
PASSOS, Claribalte. O melhor compositor de 1952. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 905, 7 de fevereiro de
1953. p. 62.
176
Sobre a noo de ressentimento, ver: ANSART, Pierre. Histria e Memrias dos Ressentimentos. In:
BRESCIANI, Stella & NAXARA, Mrcia (Org.). Memria e (res)sentimento: indagaes sobre uma questo
sensvel. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
177
SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtrao. In: ________. op. cit. 1987. p. 30.
178
Idem, ibidem.
74
depois de quase 6 anos teve um acrscimo de 25% (...).179 Ou seja, essas informaes apontam
para a racionalizao desse setor como tambm, numa escala ampliada, a da prpria indstria
brasileira -, ento em pleno desenvolvimento no incio da dcada de 1950, haja vista a
necessidade de se investir nos suplementos impressos, ao lado das novas capas, rtulos e
embalagens etc., a fim de apresentar aos discfilos gravaes cada vez melhores tanto do ponto
de vista artstico como tcnico,180 acrescenta o entrevistado, lanando mo dos mesmos cdigos
usados por Claribalte Passos. Ao lado de fotografias das novas e modernas instalaes de sua
fbrica, Paulo Serrano menciona ainda transformaes estruturais de maior flego a serem
concludas na Sinter: Atualmente, por exemplo, estamos construindo um estdio que dever ser
equiparado aos melhores dos E.U.A., pois est sendo feito nos moldes dos da Capitol Records,
considerado o melhor da Amrica do Norte.181 A gravadora elogiada, no por acaso,
exatamente a matriz norte-americana que provia a Sinter no Brasil. Alm disso, possvel que o
estreitamento das relaes comerciais entre as duas empresas tenha se estendido ao mbito
radiofnico. Isto porque o irmo de Paulo Serrano, o j citado radialista Lus Serrano, vinha
divulgando, desde 1948, discos de jazz importados em suas transmisses no programa DiscJockey, distribuindo-os tambm aos f-clubes locais.182
Muito do otimismo e entusiasmo presentes nesses documentos se devem ao fato de
que as gravaes propriamente nacionais de discos de longa durao constituam uma novidade
bastante recente, haja vista a inaugurao das gravadoras Musidisc e Radio entre 1952 e 1953,
perodo em que as duas ltimas matrias supracitadas foram publicadas, coincidindo igualmente
com o lanamento da Revista do Disco (fevereiro de 1953). Em outras palavras, o volume de
produo de LPs de artistas brasileiros ainda era exguo, restringindo-se at ento s gravaes
pioneiras e isoladas da Sinter. Este cenrio comea a mudar significativamente a partir de 1953,
conforme indicam as diversas crticas dirigidas aos modernos discos nacionais publicadas pela
revista Carioca. Tanto que no ms de dezembro, num retrospecto do mundo fonogrfico do
ano que se encerrava, esse peridico divulga numa matria no assinada - embora esteja presente
179
Ser justo o aumento no preo do disco?. Revista do Disco. Ano 1, n 2, 1953. p. 38-39.
Idem, ibidem.
181
Idem, ibidem.
182
A Capitol Records reuniu em seu cast alguns dos principais msicos e conjuntos de jazz dos Estados Unidos nas
dcadas de 1940 e 1950, como Frank Sinatra, Nat King Cole, Les Paul, Stan Kenton, Benny Goodman, Miles Davis,
entre outros, consolidando-se como a primeira major da costa oeste (West Coast) americana.
180
75
na coluna mais ampla dirigida por Claribalte Passos (Discoteca) -, certa insatisfao de um
annimo para com os discos da etiqueta do Sr. Paulo Serrano:
Notas e Comentrios. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 949, 12 de dezembro de 1953. p. 35.
Como afirma Renato Ortiz, a interpenetrao entre a esfera de produo restrita e a ampliada num pas
subdesenvolvido como o Brasil uma necessidade histrica. Nesse caso, o trnsito entre o erudito e os meios de
massa transfere para esse ltimo um capital simblico que adere cultura popular de massa que produzida. Para
uma anlise mais ampla desse assunto e de sua relao com os empreendimentos voltados esfera cultural no Brasil
dos anos 1940 e 1950 - ligados ao cinema, imprensa, ao teatro e televiso -, bem como do carter muitas vezes
paternalista e aventureiro de seus proprietrios, ver: ORTIZ, Renato. Cultura e Sociedade. In: _______. A
moderna tradio brasileira. op. cit. 1994. p. 65-74. Ver tambm o estudo pioneiro de Srgio Miceli sobre o campo
simblico dessa fase em: MICELI, Srgio. O campo simblico dependente. op. cit. 2005. p. 125-156.
184
76
***
Esse breve panorama da crtica especializada dos anos 1950 apontou alguns
parmetros e cdigos que compem o esquema mais amplo de percepo e fruio da msica
popular brasileira do perodo. preciso ressaltar, entretanto, que tais parmetros e cdigos no se
explicam e tampouco se restringem ao plano da superestrutura. Em outras palavras, os
esquemas de percepo e fruio interiorizados por determinados grupos sociais num contexto
185
ADORNO, Theodor W. A Indstria Cultural. In: _________. Sociologia - COHN, Gabriel (Org.). So Paulo:
tica, 1986. p. 11-12, 94-97.
186
LAUS, Egeu. op. cit. 2005. p. 324-325. Crticos musicais como Lcio Rangel, Sylvio Tllio Cardoso, Marcelo F.
de Miranda, Srgio Porto e o poeta Vinicius de Moraes, por exemplo, seriam alguns dos eventuais cronistas de
discos atuantes nos anos 1950 vide discusso presente no prximo item desta tese.
187
Ibidem, p. 320-321.
77
78
disputas simblicas suscitadas em torno da msica popular brasileira entre as dcadas de 1940 e
1950, inscritas, sobretudo, na imprensa, relacionando-as com algumas aes concretizadas no
campo do entretenimento. Os debates se encontram essencialmente polarizados entre temas como
modernidade x tradio, nacional x internacional e comercial x autntico. Essa anlise ser
imprescindvel para se avanar no estudo do Trio Surdina, na medida em que as mltiplas
representaes erigidas no perodo estabelecem uma relao de interdependncia com a prtica
musical propriamente dita.
De incio, vale apresentar um discurso ctico ante a modernizao da indstria
fonogrfica nacional:
A Musidisc, empresa brasileira que se chama agora, pomposamente, Hi-Fi Masterpiece,
vem lanando no mercado discos de boa qualidade tcnica e artstica, mas no hesitando
em mistificar o pblico, dando nomes norte-americanos a artistas e conjuntos nacionais.
O excelente sax tenor Moacir Silva virou Bob Fleming e os ttulos dos seus eleps, em
ingls, no deixam dvidas de que a gravadora do sr. Nilo Srgio quer, evidentemente,
fazer passar gato por lebre: Sax Spectacular e Sax in Hi-Fi. (Grifos nossos).189
RANGEL, Lcio. Brasil x Alemanha. Revista Mundo Ilustrado, setembro de 1958. In: __________. op. cit.
2007. p. 106.
79
Andrade, sua grande referncia na poca.190 Esse grupo nutria grande interesse pelas
manifestaes populares, incluindo as urbanas, como o samba e o choro. Todos, em maior ou
menor intensidade, aproximaram-se de alguma forma desse universo, tornando-se amigos de
msicos como Pixinguinha, Donga, Ismael Silva, Cartola etc. Tais experincias e inspiraes
foram determinantes para a consolidao de um novo grupo de intelectuais que se reuniria em
torno de uma das principais publicaes especializadas em msica popular dos anos 1950: a
Revista da Msica Popular (doravante RMP), editada e dirigida por Lcio Rangel em parceria
com o jornalista e cronista Prsio de Moraes entre 1954 e 1956.191
Com o objetivo precpuo de eleger e defender a msica que julgavam ser a
verdadeiramente popular, tradicional e nacional, em detrimento das modas efmeras e dos
ritmos estranhos ao nosso populrio,192 a orientao intelectual e esttica aparentemente
hegemnica do peridico se alinhava a uma concepo folclrica da msica popular urbana e
carioca. De acordo com Tnia da Costa Garcia, essa perspectiva seria uma ressonncia do
pensamento de Mrio de Andrade, o qual reconhecia a existncia de uma fronteira porosa e
elstica entre a msica originada na cidade e aquela oriunda do meio rural,193 a despeito de sua
conhecida concepo que distingue o folclrico e o popular (ou o populrio) do popularesco
- sendo este influenciado pelas modas internacionais.
Em nveis mais amplos, a suposta inveno de uma tradio da msica popular
urbana, ou ainda, de uma espcie de folclore urbano,194 restrito predominantemente s
manifestaes da cidade do Rio de Janeiro, diga-se de passagem, no deixa de ser um sintoma
das transformaes estruturais pelas quais o pas atravessava nos anos 1950, em que se destacam
a acelerada industrializao, urbanizao e internacionalizao da economia e da cultura.
190
o prprio Lcio Rangel quem relembra, em uma crnica de 1957, o tempo em que conviveu com o intelectual
paulista: Mrio sustentava que o samba rural paulista, sob o ponto de vista folclrico, sociolgico, etnolgico, etc.,
era um milho de vezes mais importante que o samba carioca, urbano, deturpado pelo cinema, pelos discos que vm
da estranja (...). Mas, quando, na Taberna da Glria ou no Bar da Brahma, ponto em que nos encontrvamos durante
sua estada no Rio, tomvamos mais de cinco chopes, o que cantvamos, invariavelmente, era o urbanssimo
Mangueira, samba de Assis Valente, que ele achava lindo. RANGEL, Lcio. Amigos e inimigos da msica
popular. Revista Lady, junho de 1957. In: ________. op. cit. 2007. p. 85.
191
FERNANDES, Dmitri Cerboncini. op. cit. 2010. p. 138-140.
192
Coleo Revista da Msica Popular. Rio de Janeiro: FUNARTE: Bem-Te-Vi Produes Literrias, 2006. p. 25.
193
GARCIA, Tnia da Costa. A folclorizao do popular: uma operao de resistncia mundializao da cultura,
no Brasil dos anos 50. Revista ArtCultura, Uberlndia, v. 12, n. 20, p. 7-22, jan. - jun. de 2010. p. 12.
194
O termo folclore urbano foi cunhado pelo pesquisador Enor Paiano. Ver: PAIANO, Enor. O berimbau e o som
universal: lutas culturais e indstria fonogrfica nos anos 60. 241 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social)
Universidade de So Paulo, So Paulo, 1994.
80
Conforme se discutiu, novos padres de consumo, valores e produtos culturais oriundos de pases
estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos, passaram a dividir o mesmo espao no cotidiano
e imaginrio dos brasileiros que habitavam os centros urbanos, embora tenham assumido sentidos
e significados especficos entre as diferentes classes sociais. Os responsveis e a maior parte dos
colaboradores da RMP pertenciam aos grupos que se sentiram desenraizados num tempo de
mudanas estruturais rpidas e profundas.195 Nesse sentido, conceber uma narrativa esquemtica
que tendia a enrijecer a cultura popular e urbana ou, nos termos de Tnia da Costa Garcia, uma
narrativa que tencionava obstruir sua perenidade foi a estratgia adotada a fim de evitar fuses e
hibridismos que pudessem comprometer sua autenticidade.196
Isso explica, em partes, iniciativas como a do programa O pessoal da Velha Guarda,
por exemplo, idealizado e produzido por Almirante, na Rdio Tupi, em 1947. Contando com a
direo musical de Pixinguinha e sua Orquestra, o repertrio privilegiava os gneros populares
em voga em princpios do sculo XX, como a valsa, o maxixe, o choro etc. Por meio das
performances dos autnticos representantes dessa tradio, Almirante dava sinais claros de
que estava agindo, talvez inconscientemente, no sentido de congelar as msicas e, porque no,
os msicos que conduziam o programa:
Cantores e cantoras de msica popular, o maior benefcio que vocs podem fazer
msica brasileira cantar o samba como samba, a marcha como marcha, a valsa como
valsa, etc., etc.! Nada de andar imitando Bing Crosbys e Frank Sinatras! Os efeitos que
eles fazem nos fox-trots podem ser bons nos fox-trots, mas no para as nossas msicas.
Nesse ponto, honra seja feita ao Pessoal da Velha Guarda, que toca as nossas msicas
com a maior exatido e maior respeito s suas caractersticas incompungveis (sic)!197
(Grifo nosso).
Esta e outras respostas modernizao em curso no parecem encerrar apenas aes deliberadas
ou conscientes, como fazem supor algumas anlises. Isso porque a retomada e a (re)inveno
do passado popular brasileiro no ficaram restritas ao campo musical. importante lembrar que,
entre os anos de 1947 e 1964, vigorou um movimento folclrico organizado e relativamente
195
Para o historiador Eric Hobsbawm, comum encontrar tradies inventadas em lugares e pocas em que tenha
ocorrido uma transformao rpida da sociedade, que debilita ou destri os padres sociais para os quais as
velhas tradies foram feitas, produzindo novos padres para os quais essas tradies so incompatveis. Ver:
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (Orgs.). op. cit. 1997. p. 12.
196
GARCIA, Tnia da Costa. op. cit. 2010. p. 9.
197
O Pessoal da Velha Guarda, programa n 2, 15 de outubro de 1947. Acervo Radiofnico Collectors.
81
consistente no pas. Intelectuais de renome como Renato Almeida e dison Carneiro estiveram,
em momentos distintos, frente de um grupo de estudiosos do folclore que buscavam tanto a
consolidao de um espao autnomo no incipiente campo acadmico das cincias sociais,
quanto um lugar nos rgos do governo federal. Ao contrrio do primeiro, este ltimo intento se
concretizou, haja vista as criaes da Comisso Nacional de Folclore (1947) e da Campanha de
Defesa do Folclore Brasileiro (1958), bem como os diversos congressos, eventos e publicaes
produzidos ao longo desse perodo. O movimento permaneceria ativo at 1964, quando o golpe
militar interrompeu suas atividades.198
Para fazer coro ao discurso de Almirante, Lcio Rangel no hesitou em se manifestar,
em crnica publicada na Revista Long Playing, em 1957, sobre a atuao de Pixinguinha frente
do Grupo da Velha Guarda, elogiando-o e, ao mesmo tempo, enquadrando-o como um
representante da msica popular do passado:
Sentindo as mos trmulas, Pixinguinha passou da flauta para o saxofone tenor (...).
Sendo um msico completo, e mais, tendo o verdadeiro esprito de brasilidade em suas
orquestraes, sabendo o tempo certo e a execuo certa, o repertrio certo e
representativo de nossa msica popular, sua fama s faz aumentar, com o correr dos
anos.199 (Grifos nossos).
Num sentido mais amplo, a concepo de Lcio Rangel acerca da importncia e do papel
quase que um dever moral de Pixinguinha na histria da msica popular brasileira vlida
tambm para gneros musicais como, por exemplo, o samba:
que o samba o mesmo, hoje ou amanh. um gnero substantivo, ao contrrio do
jazz, que verbo. Um samba (composio) vale pelo que , uma composio que pode
ser ou no jazz, ficando sua grandeza dependendo unicamente dos msicos que a
tocam.200
198
Sobre as iniciativas, mobilizaes e conflitos intelectuais e polticos que permearam o movimento folclrico
brasileiro entre 1947 e 1964, ver: VILHENA, Lus Rodolfo. op. cit. 1997.
199
RANGEL, Lcio. Pixinguinha. In: ________. op. cit. 2007. p. 94-95.
200
Ibidem, p. 119.
82
201
GARCIA, Tnia da Costa. op. cit. 2010. p. 18; SAROLDI, Lus Carlos & MOREIRA, Snia Virgnia. op. cit.
1984. p. 74-75.
202
Ouvindo Trio Surdina vol. 1 (Musidisc, DL - 1006).
203
GARCIA, Tnia da Costa. op. cit. 2010. p. 15.
204
HOLANDA, Nestor de. O Rdio em 30 dias. In: Coleo Revista da Msica Popular. op. cit. 2006. p. 89.
83
O tom irnico do cronista no oculta o significado que o termo folclore assumiu para a cantora
distrada. Sinnimo de autenticidade, brasilidade, enraizamento, tradio, enfim,
apropriar-se da palavra implicava talvez, no seu entendimento, imprimir legitimidade sua
composio, constituindo um acesso possivelmente mais fcil a determinado segmento do
mercado de msica popular numa poca em que o passado e o nacional estavam em grande
evidncia, principalmente entre a chamada crtica especializada, instncia de legitimao e
consagrao simblica de hierarquias estticas.205
No menos irnico, porm mais crtico, o comentrio de Millr Fernandes -
poca, um jovem jornalista que se identificava como Emmanuel Vo Ggo -, a respeito do
folclorismo: Do jeito que vai a pretenso dos eruditos, dentro em breve eles estaro ensinando
msica folclrica ao povo 206 - eis outra amostra da heterogeneidade das representaes erigidas
no perodo em torno de um nico tema. Nesse caso, um colunista assduo e pertencente ao
mesmo grupo social que produzia a RMP que tece uma crtica na qual ressoam problemas sociais
mais amplos, a despeito do teor humorstico de seus escritos. No fundo, Millr identifica a
relao de tutela que alguns intelectuais interessados na cultura popular brasileira estavam
tentando estabelecer com as camadas economicamente menos favorecidas.
***
Vale citar, nesse sentido, o relativo sucesso que obteve a compositora e pianista conhecida como Tia Amlia (ou
TiAmlia) entre os tradicionalistas das dcadas de 1950 e 1960 no Rio de Janeiro. A pernambucana Amlia
Brando Nri, nascida em 1897, havia sido redescoberta pela cantora Carmlia Alves naqueles anos. Isso porque
Tia Amlia chegou a construir carreira nacional e internacional entre 1920 e 1930 - atuou durante cinco meses nos
Estados Unidos -, tendo se afastado dos palcos por questes pessoais. A artista era conhecida por suas msicas de
carter folclrico, bem como pelos choros e valsas que compunha ao estilo antigo - leia-se, do incio do sculo
XX, com fortes traos do maxixe, da polca etc. Dentre os admiradores confessos de Tia Amlia, destacava-se o ento
poeta e diplomata Vinicius de Moraes, que chegou a lhe dedicar uma crnica. Ver: MORAES, Vinicius de. A
bno, TiAmlia. In: _______. Samba falado: crnicas musicais. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 4950. Informaes biogrficas sobre Tia Amlia podem ser lidas em: http://www.dicionariompb.com.br/tia-amelia.
Acesso em: 15 de maio de 2012.
206
VO GGO, Emmanuel. Sete Notas Musicais. In: Coleo Revista da Msica Popular. op. cit. 2006. p. 185.
84
como Jos Sanz, Jorge Guinle, Marcelo F. de Miranda, Sylvio Tllio Cardoso e o prprio Lcio
Rangel foram alguns dos autores que contriburam para a (re)inveno e ressignificao da
tradio jazzstica em territrio brasileiro. Com exceo de Sylvio Tlio e Jorge Guinle - este um
milionrio e tambm entusiasta do chamado jazz moderno, isto , do bebop -, a perspectiva
hegemnica da revista era amide folclorizante, uma vez que considerava ser o verdadeiro
jazz to somente aquele concebido pelos msicos negros nascidos ou intimamente ligados
cidade de New Orleans.207 Ou seja, de acordo com essa orientao, o verdadeiro jazz no
constitua um signo de modernidade, sendo antes portador do elemento puro e autntico que
constitui o passado, ou melhor, a verdadeira tradio do povo norte-americano. As semelhanas
entre esse discurso e a concepo folclorista que esses mesmos intelectuais formularam para a
msica popular brasileira urbana e carioca so evidentes, haja vista a valorizao do universo
afro-brasileiro e rural pr-capitalista.
O que incomodava esses autores eram algumas prticas musicais ento em voga entre
os anos 1940 e 1950 que incorporavam o jazz, principalmente o moderno, msica popular
brasileira, destituindo-a assim da suposta pureza ou autenticidade que lhe era intrnseca. De
acordo com Joana Saraiva, a fuso entre o samba e o jazz, consagrada posteriormente como
sambajazz, bem como as jam sessions que se tornavam cada vez mais frequentes nas boates e fclubes daquela poca, eram condenadas pelos defensores do elemento puro e autntico da
msica popular, seja esta o jazz verdadeiro, privilgio do negro de New Orleans, ou o samba
carioca e urbano dos anos 1920 e 1930.208 Assim, conclui-se que o jazz poderia constituir
tambm um signo de modernidade, mas em sentido negativo - uma espcie de ameaa cultura
popular tradicional, dado o seu potencial de descaracterizao do populrio.
No obstante, havia quem aprovasse, ainda que parcialmente, as misturas entre o
jazz e o samba. Sylvio Tllio Cardoso, um dos colaboradores da RMP, teceu alguns elogios a
respeito da atuao do cantor e pianista Dick Farney no disco Jazz Around Midnight - J.A.M.
(Columbia, 1956), gravado ao vivo no Teatro de Cultura Artstica de So Paulo. Este foi um dos
primeiros lanamentos dedicados exclusivamente ao jazz produzido por msicos brasileiros. Na
207
As colunas dedicadas exclusivamente ao jazz se encontram concentradas ao final de quase todos os nmeros do
peridico. Ver: Coleo Revista da Msica Popular. op. cit. 2006.
208
SARAIVA, Joana Martins. A inveno do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos
anos de 1950 e incio dos anos 1960. 109 f. Dissertao (Mestrado em Histria) - Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 42-43.
85
ocasio, a performance foi valorizada por estar altura do conjunto de Dave Brubeck, pianista
e compositor norte-americano que representava o jazz moderno. Alis, Sylvio Tllio chegou
mesmo a reconhecer certa superioridade de Dick Farney em funo do seu swing brasileiro.209
Ou seja, embora fosse jazz, ainda era possvel reconhecer um elemento caracterstico do
msico popular nacional: o ritmo ou o swing que distingue os artistas locais dos norteamericanos, tese esta que conjuga, a um s tempo, signos de tradio, modernidade e
brasilidade. Ademais, no deixa de ser interessante notar na expresso swing brasileiro a
dimenso e profundidade do impasse identidade nacional x cultura estrangeira, sempre presente
na tentativa de definio da singularidade da msica e dos msicos brasileiros.210
Dick Farney, alis, era um dos representantes do outro extremo da dicotomia
tradio x modernidade, a saber, o dos adeptos do jazz moderno, que chegavam a depreciar
certos aspectos da msica popular brasileira. Filho da alta classe mdia carioca, o cantor e
pianista revela numa longa entrevista para a revista Flan, publicada em 1953, suas opinies,
preferncias e argumentos acerca dos debates em torno do jazz e do samba:
Diante dos insofismveis sucessos obtidos pelo primeiro conjunto de jazz puro
organizado no Brasil, que o de Dick Farney, (...) Flan no poderia omitir um contato a
fim de ouvir (...) a figura to discutida de lder (...). Perguntamos: Admite que no seu
estilo, que novo entre ns, tenha havido alguma influncia norte-americana ou de
algum cantor norte-americano. Ou considera prprio o seu estilo? Dick sorriu e, sem
titubear, respondeu: - No me considero detentor de nenhum estilo prprio, e devo
esclarecer que propositadamente deixei-me influenciar - quanto msica - no atual
conjunto de George Shearing. Quanto ao canto, do mesmo modo, procuro faz-lo
maneira de Frank Sinatra e King Cole, em virtude da admirao que a les (sic)
dedico.211
At aqui, nenhuma novidade a respeito do msico que havia atuado nos Estados Unidos durante a
segunda metade dos anos 1940, onde conheceu pessoalmente alguns dos artistas que o
influenciaram a saber, Frank Sinatra e Nat King Cole -, e tampouco surpreende a aura de
modernidade assumida pelos pequenos conjuntos de jazz no Brasil. Mais significativa, contudo,
209
Ibidem, p. 39-41.
Palavras como gingado, balano, bossa e jeitinho seriam outras tentativas de traduo desse aspecto
inominvel da cultura brasileira, que conjuga a personalidade, a racionalidade, a sensibilidade e, porque no, a
histria de um (in)determinado povo.
211
Entre os instrumentos de seu Quinteto, Dick Farney acusa: O pandeiro um instrumento ridculo. Revista
Flan, Caderno Mulher, mundanismo, arte e passatempo, n 14, 12 a 18 de julho de 1953. p. 2.
210
86
a identificao do estilo moderno de seu quinteto com o jazz puro, assunto que ser retomado
adiante. Antes, porm, vale citar outros fragmentos dessa entrevista, a fim de obter dados mais
precisos a respeito dos cdigos, valores, critrios e referncias da figura to discutida de lder:
Desejamos de Dick sua opinio no sentido de saber se a msica (brasileira ou norteamericana) tinha evoludo ou involudo. Para Farney, o processo francamente de
evoluo: - Devido ao meu conhecimento musical bsico, acho que os conjuntos
musicais brasileiros deveriam ter os mesmos instrumentos que os americanos, como a
trompa, o obo, a harpa, muitos violinos e abolir o pandeiro, que considero inteiramente
ridculo! Isso evoluo, tal como se vem fazendo.212
Idem, ibidem.
O pandeiro, vale lembrar, j havia se constitudo em smbolo nacional por volta dos anos 1950, ao lado do samba,
do carnaval, da mulata etc. O prprio repertrio popular corroborou a construo desse imaginrio vide, por
exemplo, os sambas Coisas nossas, de Noel Rosa (1932) e, claro, Brasil pandeiro, de Assis Valente (1941),
lanado no auge do samba-exaltao no pas.
213
87
Os alvos principais do cantor e pianista so, talvez, os msicos citadinos, brancos e at mesmo os
eruditos que pareciam querer ensinar msica folclrica ao povo, conforme j havia criticado
Millr Fernandes noutra parte. E, uma vez mais, Dick Farney refora sua posio social e seu
capital cultural quando afirma que todo bom msico capaz de reconhecer a suposta
superioridade esttica do jazz em relao msica popular brasileira. Note-se que sua busca pela
distino se orienta pelos mesmos signos que esto em disputa nos conflitos simblicos da
dcada de 1950, como o nacional, o internacional, a tradio, a modernidade etc., embora
apaream, na sua leitura, com sinais trocados.
No menos contrastantes so as conotaes que o jazz assumiu para a intelligentsia
da msica popular ligada vida sociocultural da zona sul carioca. Cindidos entre o jazz puro e
o clssico negro, os crticos deixam transparecer que o elemento balizador desse debate era o
carter folclrico. Nesse sentido, as msicas podiam ser valorizadas ou depreciadas em funo
da proximidade ou do afastamento em relao a esse universo. A matria da revista Flan
dedicada a Dick Farney ilustra sensivelmente essa questo:
No mundo dos entendidos do jazz e de seus cultores, que lhe conhecem os detalhes
histricos desde os spirituals at Louis Armstrong, como Vinicius de Morais (sic),
Jorge Guinle, Silvio Tllio Cardoso ou Marcelo Miranda, nunca deixou de haver puristas
ou eclticos. Para uns o purismo, levado a rigor em suas remotas origens nos work
songs, os induz a ficar apenas no clssico negro. Outros, porm, ultrapassando as
conquistas instrumentais da Guerra de Secesso [1861-1865], consideram o clssico, ao
que alguns entendem como sendo o jazz puro, posterior ste (sic) ao Dixie Land que
o jazz adotado e melhorado pelos conjuntos dos brancos. E foi assim nesta embrulhada
de blues, prison songs ou de toadas de vieux carr de Nova Orleans, que
perguntamos a Dick Farney se le era pelo clssico negro. A resposta foi negativa. Ele
gosta daquilo que chama de jazz puro, ou seja, o da fase j civilizada.215 (Grifos
nossos).
214
215
Revista Flan, Caderno Mulher, mundanismo, arte e passatempo, n 14, 12 a 18 de julho de 1953. p. 2.
Idem, ibidem.
88
Vistos de hoje, os termos utilizados e os sentidos que ento adquiriram podem parecer
contraditrios ou confusos, mas o prprio autor tenta esclarecer: os puristas se identificam com
o clssico negro, estilo que se restringe ao jazz conforme praticado pelos negros da regio sul
dos Estados Unidos entre os sculos XIX e XX, antes da chamada Era do Swing; j os
eclticos cultivam o chamado jazz puro, que abrange estilos mais recentes - dcadas de 1930
a 1950 - como o swing, o bebop e o cool jazz.216 No possvel saber os motivos exatos que
levaram esses agentes a associar pureza com modernidade. Talvez, por ter sido supostamente
melhorado pelo conjunto dos brancos, o estilo situado no perodo posterior ao Dixieland tenha
eliminado as impurezas ainda presentes no clssico negro, processo que tornou o jazz uma
manifestao musical mais civilizada.
Marcelo F. de Miranda, um dos representantes da crtica especializada dos anos
1950, revela num longo artigo intitulado O Jazz de New Orleans uma viso anloga a esta
acerca dos instrumentos e da sonoridade dos antigos conjuntos norte-americanos, situando-os
como que num estgio primitivo ou no civilizado da histria do jazz:
(...) o trombone com sua voz rouca e gutural apresenta geralmente um lado pitoresco da
improvisao de New Orleans com seus contracantos humorsticos ou suas exclamaes
enraivecidas. (...) o som do clarinete de New Orleans lmpido, puro, possuindo uma
qualidade lrica de grande beleza, em contraste com a sonoridade violenta do trumpete
(sic) e as interjeies mal humoradas do trombone. Estas partes meldicas
desenvolvendo-se independentemente integram-se num complexo polifnico de grande
polirritmia devido aos deslocamentos e mudanas de acentuao dos instrumentos de
spro (sic), agravadas pela constante variao rtmica dos instrumentos de percusso.217
216
Esses mesmos parmetros (eclticos, puristas, clssico etc.) so utilizados com frequncia pelos colunistas
de jazz da RMP - como Jos Sanz, Marcelo F. de Miranda, Jorge Guinle, por exemplo. Ver: Coleo Revista da
Msica Popular. op. cit. 2006.
217
MIRANDA, Marcelo F. de. Coleo Revista da Msica Popular. op. cit. 2006. p. 114.
89
popular brasileira e a estrangeira fosse superado, tornando-a apta a visitar os lares do mundo
inteiro - tornando-a, em suma, mais civilizada.
significativo observar que esse modo de pensar e analisar a msica popular
brasileira guarda certas analogias com os referenciais de alguns estudiosos do jazz dos anos 1950,
como o do historiador Eric Hobsbawm, embora este seja mais imparcial e mais bem
fundamentado historicamente. De qualquer forma, em seu livro sobre o assunto, escrito entre
1959 e 1961, no deixam de constar anlises que ressoam ideais e valores de evoluo e
refinamento promovidos pelos msicos brancos no processo scio-histrico:
O estilo negro de Nova Orleans foi adotado pelas bandas brancas da cidade, que o
tocavam de maneira menos comovente e pouco acrescentavam a ele (o estilo Dixieland).
Nos anos 20, sob a influncia do ambiente musical e social do norte [branco], o estilo
evoluiu em direo a uma maior finesse instrumental e rtmica e a um maior
individualismo.218
Em seguida, ao comentar o estilo branco do Leste, o autor o define como uma espcie de jazz de
msica de cmara, uma linha que parece muito apropriada para msicos brancos, revelando
elegncia e acabamento: suas conquistas mais interessantes encontravam-se na tcnica
instrumental, e significativo que os tons suaves, leves e bem-educados de seus instrumentos
tenham influenciado os msicos cool modernos (Grifos nossos).219
Para encerrar, pode-se dizer que Dick Farney e seus contemporneos tocam
involuntariamente num ponto nevrlgico do debate intelectual e da formao cultural do pas: o
mal-estar da cpia, ou seja, o incmodo sentido pelos grupos dominantes ao constatarem que
seus modelos polticos e esttico-ideolgicos, oriundos, em geral, dos pases avanados,
contrastam com a realidade social brasileira, que se lhes revela bastante desigual. Esse dado
histrico geralmente o responsvel por denunciar a desfaatez tanto das atitudes nacionalistas
e tradicionalistas quanto das aes modernizadoras e civilizadoras levadas a cabo em
diferentes contextos por membros das classes mdias.220 No entanto, enquanto ideologias, essas
aspiraes resultam de experincias e sentimentos aflorados no processo scio-histrico, ou seja,
218
HOBSBAWM, Eric. Histria social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 115-117.
Idem, ibidem.
220
o crtico literrio Roberto Schwarz quem chama ateno para a dimenso social dos conflitos simblicos
suscitados em torno da questo da identidade nacional. Ver: SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtrao. In:
________. op. cit. 1987. p. 46-48.
219
90
ainda que jamais tenham sido realizadas, so legtimas enquanto dados que informam problemas
reais da sociedade, sendo igualmente formativas dos modos de pensar o Brasil.
***
Se verdade que o Brasil est com a tendncia a perder a sua velha posio de primeiro
pas produtor de caf do mundo, em compensao est caminhando rpido para
conquistar a dianteira como pas produtor de boleros. A bolerizao, como diria
Machado de Assis, geral. Abre-se o rdio e l vem o nostlgico ritmo-de-bacia (...) que
para mim, que j tenho andado muito por essas Amricas, no me estranho: lembro-me
de t-lo ouvido muito no Mxico, por exemplo, de onde no sei se oriundo, mas onde
tem privilgios certos de nacionalidade. No haja dvida, os ritmos ouvidos so do
melhor bolero: tristezas mil nos bares do Brasil; grandes d.d.c. [dores de cotovelo] no
mais puro estilo [Andre] Kostelanetz, com centenas de violinos mofinos comendo soltos
Au Clair de lune. (...) E os msicos brasileiros vo metendo los pechos, porque,
evidentemente, o negcio deve estar rendendo. Mas a verdade, se que me permitem um
aparte, que esto xaviercugando a msica popular brasileira.221
Amigo ntimo de Lcio Rangel e de outros intelectuais e artistas que frequentavam os espaos
mais refinados da zona sul carioca, Vinicius de Moraes critica as produes musicais brasileiras
que estavam incorporando elementos e procedimentos do bolero. O alvo neste caso o sambacano, talvez um dos gneros mais disseminados naquele momento (ao lado do baio), seja no
meio radiofnico ou no mercado fonogrfico. A presena do bolero se fazia sentir em diversos
aspectos: no repertrio dos pequenos conjuntos de boate, muitas vezes em forma de verses; na
221
MORAES, Vinicius de. A bolerizao. In: _________. op. cit. 2008. p. 51.
91
temtica das letras, que enfatizavam um amor platnico ou o sofrimento interminvel causado
por relaes amorosas mal sucedidas; na instrumentao, sobretudo em virtude do emprego do
bong e das maracas na seo rtmica; na conduo lenta, mais prxima do ritmo quaternrio,
ento mais suave e arrastado que o ritmo binrio do samba etc. A vertente que revela essas
caractersticas de modo mais acentuado foi denominada pejorativamente como samba-de-fossa
(ou samba-cano depressivo)
222
O compositor e jornalista Antonio Maria, assim como a cantora Nora Ney, seriam alguns dos representantes de
maior repercusso desse segmento nos anos 1950. Ver: SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit.
2002. p. 241 e ss.
223
O compositor e intrprete Carlos Lyra, um dos protagonistas da jovem gerao bossa novista dos anos 1950,
enftico nesse sentido: Porque eu acho que tem dois tipos de sambas-canes: o samba-cano de alta categoria, de
grande classe, e o samba-cano de fossa, que vem com aquele negcio de edredom azul, abajur lils, exatamente
aquelas coisas de apaga essa luz, garom, que eu quero encher a cara e vou ficar aqui no bar, caindo aos pedaos.
(...) parece aqueles boleros mexicanos em que a mulher a desgraa do homem. Ver: NAVES, Santuza Cambraia
(et alii.). A MPB em Discusso: entrevistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 89.
224
Alguns msicos que se consagrariam com a Bossa Nova, como Wanda S, Roberto Menescal e Joo Donato, por
exemplo, reconhecem tambm a existncia de um bolero de alta categoria nos anos 1950. Ver, a esse respeito, as
entrevistas reunidas em: NAVES, Santuza Cambraia. op. cit. 2006. p. 24 e 118.
92
monocultura de exportao, com as relaes de trabalho correspondentes [escravista e semiescravista], era sua base de eminncia nacional e participao internacional.225 Quando Vinicius
faz referncia a esse contexto para falar das mudanas em curso nas dcadas de 1940 e 1950, as
quais apontavam para a industrializao, urbanizao e internacionalizao da economia e da
cultura, bem como para a ascenso e participao de uma nova gerao da classe mdia na vida
social do pas, seu discurso no deixa de ressoar certo rano aristocrtico, traduzindo
simbolicamente, ainda que de maneira remota, o mal-estar de uma classe dirigente secular ante os
novos tempos.
Dizendo de outra forma, como se a velha racionalidade da oligarquia cafeeira
tivesse adquirido uma sobrevida, transferindo-se e compatibilizando-se com as novas relaes de
fora em via de configurao numa sociedade capitalista perifrica, protagonizada agora por uma
burguesia urbano-industrial em ascenso nos quadros poltico, econmico e social, ao passo que
uma nova massa de trabalhadores (e consumidores) ganhava corpo e se concentrava nas periferias
das grandes cidades.
Na campanha contra a bolerizao e em consonncia com seus pares, Vinicius
defende, em uma crnica publicada a 16 de agosto de 1953, a chamada linha pura e orgnica da
msica popular brasileira, que seria formada por artistas como Pixinguinha, Sinh, Ismael Silva,
Ary Barroso, Noel Rosa e Ataulfo Alves, por exemplo. Para o poeta, eram esses os integrantes da
cortina do samba (...) a chamar permanentemente a ateno dos samboleristas, dos
santanguistas e dos sanfadistas (...) para a descaracterizao crescente desse grande
patrimnio do Rio e do Brasil, (...) cuja vitalidade carioca preciso defender custe o que custar
(Grifo nosso).226 Em suma, o autor corrobora a orientao folclorizante que parecia agir no
sentido de enrijecer a msica e os msicos brasileiros - leia-se, a msica e os msicos populares
cariocas.
Mas, a despeito da decadncia em curso, Vinicius parece rever suas posies
esttico-ideolgicas logo no ms subsequente, numa crnica intitulada O novo samba:
Est certo que se critique, no novo samba, o contingente de estrangeirismos musicais que
trouxe para a nossa msica popular; mas h que ir com calma e ver a coisa com umas
fumaas de sociologia, com perdo do mestre de Apipucos [Gilberto Freyre]. O Novo
225
226
SCHWARZ, Roberto. A carroa, o bonde e o poeta modernista. In: _________. op. cit. 1987. p. 22.
MORAES, Vinicius de. op. cit. 2008. p. 53-54.
93
Longe de encerrar uma contradio do autor, suas crnicas revelam alguns ndices da pluralidade
de representaes que permearam o imaginrio social dos agentes ligados msica popular
brasileira nos anos 1950. Ao situar os compositores Ary Barroso e Dorival Caymmi,
representantes do passado musical nacional, ao lado de Stan Kenton, Frank Sinatra e Peres Prado,
Vinicius de Moraes chama ateno para a importncia da origem social dos artistas e do contexto
cultural mais amplo para a configurao de suas obras. Nesse sentido, a atmosfera
existencialista das pequenas boates no deixava de refletir, tambm, certo mal-estar de uma
nova gerao da classe mdia que experimentava as transformaes profundas que o pas
conhecia desde o perodo da Segunda Guerra. As tenses causadas pelo recrudescimento da
urbanizao; pelo modo de vida cada vez mais individualista num espao social cosmopolita;
bem como pela autorreflexo em torno de novos e antigos valores que passaram coexistir
repentinamente, apresentando-se lhes na forma de mltiplas temporalidades e experincias
(arcaico x moderno, rural x urbano, sociabilidade comunitria e familiar x individualismo),
enfim, esse conjunto de elementos muitas vezes se traduziam em crises existenciais
227
228
que
Revista Flan, 27 de setembro de 1953 apud MORAES, Vinicius de. op. cit. 2008. p. 57-58.
No por acaso, obras de escritores como Jean Paul Sartre e Clarice Lispector alcanaram certa repercusso no
Brasil entre as dcadas de 1940 e 1960. Como observa o filsofo e crtico literrio Benedito Nunes, seus textos so
permeados por temas caros filosofia da existncia, segmento filosfico que alcanou autonomia terica no sculo
XIX, justamente no perodo em que se consolida o modelo de sociedade burguesa moderna centrada no indivduo,
cuja experincia prtica e sensvel marcada pela crescente fragmentao, tenso e contradio do ser-no-mundo
228
94
95
Note-se que Lcio Rangel se baseia em argumentos igualmente sociolgicos para apontar o
divrcio formal entre a burguesia e o povo cristalizado com a eminncia da msica dos
pequenos conjuntos de boate e da vida sociocultural da zona sul carioca. Popular, para ele,
sinnimo de popularidade perante as camadas economicamente menos favorecidas. Em outra
ocasio, vale mencionar, o clebre crtico refora ainda mais a sua defesa do populrio ao
lembrar que nas gafieiras (...) exibiam-se e exibem-se (...) alguns dos melhores msicos
populares. O choro e o samba so tocados sem surdinas e o tempo lento usados nas boates dos
gr-finos ou nos clubes aristocrticos (Grifos nossos).231
***
RANGEL, Lcio. Carta a Vinicius de Moraes. In: _______. op. cit. 2007. p. 119.
Ibidem, p. 79.
232
BARROSO, Ary. Decadncia. In: Coleo Revista da Msica Popular. op. cit. 2006. p. 463.
231
96
233
O historiador ingls Arnold Toynbee (1889-1975) se notabilizou por sua obra monumental, Um Estudo de
Histria, dividida em doze volumes e que enxerga um movimento curvilneo na histria das civilizaes, cujas
existncias seriam sempre marcadas por trs etapas: ascenso, apogeu e declnio.
234
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 85-89.
235
Para uma perspectiva crtica acerca do entre-lugar a que essa fase da msica popular brasileira foi relegada pela
historiografia, ver: NAPOLITANO, Marcos. A msica brasileira na dcada de 1950. Revista USP, So Paulo, n.
87, p. 56-73, setembro/novembro 2010.
236
Alm disso, criticava-se tambm a prtica da compra e venda de parcerias em composies, ento plenamente
disseminada e especializada no meio musical desde, pelo menos, a dcada de 1920. Sobre esse assunto, ver:
SANDRONI, Carlos. O passarinho e a mercadoria. In: _______. op. cit. 2012. p. 145-157.
97
etrias, haja vista que a maior parte j havia ultrapassado a casa dos quarenta anos quando da
veiculao da RMP (1954-1955).237
Relevar este detalhe imprescindvel, principalmente quando se toma conhecimento
do ponto de vista de msicos pertencentes a geraes distintas sobre esse mesmo contexto, como
o caso, por exemplo, de Z Menezes. Em entrevista concedida para este trabalho, o multiinstrumentista afirmou que a poca de Ouro da msica brasileira foi os anos 50 (...) At 60,
coisa e tal, foi a grande poca de Ouro da msica brasileira. Nascido em 1921, Z Menezes se
mudou para o Rio de Janeiro no incio da dcada de 1940, aps receber uma proposta de trabalho
da Rdio Mayrink Veiga para substituir ningum menos que Garoto, que havia acabado de se
transferir para a Rdio Nacional. Embora tenha enfrentado algumas dificuldades financeiras em
virtude do fechamento dos cassinos, em 1946, Z Menezes logo conquistou posies importantes
no cenrio artstico: no ano seguinte, assinou contrato com a Nacional, emissora que detinha a
maior e melhor infraestrutura do rdio brasileiro; alm disso, passou a integrar o prestigiado e
concorrido cast da gravadora Continental, uma das mais prolficas dessa fase.
Entre os trabalhos no rdio e no disco, Z Menezes atuou diariamente ao lado de
msicos mais experientes como o maestro Radams Gnattali, seu amigo e orientador nas prticas
orquestral e composicional, e o multi-instrumentista Garoto, sua grande referncia no que dizia
respeito performance em instrumentos como o violo e o violo tenor. Segundo o pesquisador
Eduardo Visconti, a convivncia com esses artistas, sobretudo na Rdio Nacional, levou Z
Menezes a desenvolver uma disciplina rgida de estudo e trabalho numa poca em que o
amadorismo ainda predominava no campo da msica popular.238 Essa busca pela insero e
profissionalizao num mercado emergente um indcio de que a racionalidade capitalista j se
fazia sentir na esfera do entretenimento nos anos 1940, bem como uma possvel ressonncia da
ideologia trabalhista erigida e propagada durante o governo de Getlio Vargas.239 Por outro
lado, o prprio fato de esses msicos atuarem como multi-instrumentistas (solistas ou
acompanhadores), arranjadores e compositores em diversos ramos do entretenimento (rdio,
237
Essa informao se baseia num levantamento feito pelo autor deste trabalho a partir dos diversos nomes que
publicaram na revista de Lcio Rangel. Os sites consultados foram: www.dicionariompb.com.br/;
www.releituras.com/releituras.asp. Acessos em: 14 de abril de 2012.
238
VISCONTI, Eduardo de Lima. A guitarra eltrica na msica popular brasileira: os estilos dos msicos Jos
Menezes e Olmir Stocker. 304 f. Tese (Doutorado em Msica) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2010. p. 85.
239
Idem, ibidem.
98
gravadoras, boates etc.) revela a dificuldade de profissionalizao da classe artstica nessa fase,
como que seguindo uma tendncia mais ampla de uma sociedade em que o chamado mercado de
trabalho conforme prescreve o modelo das sociedades capitalistas modernas, com suas
especialidades, ramificaes e estruturas necessrias - era incipiente. Da ser possvel encontrar,
com frequncia, artistas polgrafos pertencentes a essa gerao vide as trajetrias de Radams
Gnattali, Garoto, Z Menezes, Bola Sete (Djalma de Andrade), Tom Jobim, Joo Donato, Waltel
Branco, entre outros.
Z Menezes atuou intensamente em programas como Um milho de Melodias, Ao
som das violas, Nada alm de dois minutos, Quando canta o Brasil e Gente que brilha, por
exemplo, apresentando-se com os diversos instrumentos de cordas dedilhadas que dominava.
Dentre os trabalhos na noite carioca, o msico destaca o tempo em que integrou o conjunto do
organista Djalma Ferreira e seus Milionrios do Ritmo, na boate Casablanca, cujo repertrio
inclua boleros, mambos, sambas-canes, fox-trot, rumbas, beguines etc.240 J no plano da
msica semierudita, alm de integrar o Quinteto/Sexteto Radams, conjunto de cmara que
teve passagens no exterior, chegou a executar um concerto para violo e orquestra do compositor
Villa-Lobos, que esteve presente, segundo conta o instrumentista, na primeira fila do teatro na
ocasio do espetculo, tendo lhe dirigido alguns elogios ao trmino da apresentao.
Em suma, os contrastes entre as carreiras de Ary Barroso, compositor plenamente
consagrado, e Z Menezes, jovem msico de origem humilde241 que estava em busca de
reconhecimento, insero e profissionalizao no campo de produo da msica popular, so
bastante evidentes e lanam luz para a compreenso das diferenas de opinio acerca da fase em
que ambos estavam inseridos: de um lado, decadncia; de outro, poca de Ouro. Alis, esta
percepo de Menezes vai ao encontro de um fenmeno verificado no prprio campo
radiofnico, que conheceu o seu perodo ureo justamente entre os anos de 1946 e 1954,
perdendo fora, contudo, medida que a televiso foi se consolidando e se popularizando.
Segundo Miriam Goldfeder, ao menos para a Rdio Nacional, esta foi a fase mais prolfica,
concentrando a produo que alcanou maior destaque e disseminao no pas como, por
exemplo, os programas de auditrio, de humor, as radionovelas e os famosos concursos para
240
Alis, em 1954, Z Menezes gravou um disco solo instrumental pela Sinter, intitulado A voz do violo, o qual
inclui os mais variados gneros como, por exemplo, o choro, a valsa, o jazz, a msica folclrica e o samba.
241
Z Menezes nasceu em Jardim (CE), cidade muito pequena e pouco desenvolvida localizada no serto do Cariri.
99
Rainha do Rdio, em torno dos quais se mobilizavam produtores do rdio e do disco, artistas,
empresas patrocinadoras, jornais e revistas especializadas no ramo do entretenimento.242
Evidentemente, a posio social, o capital cultural, a trajetria artstica e o meio
sociocultural de cada um desses artistas so fatores igualmente relevantes. Mas a questo das
geraes, raramente considerada nos estudos que se dedicam aos conflitos simblicos erigidos em
torno da msica popular brasileira, mostra-se pertinente quando esses fatos so cotejados. O
socilogo Karl Mannheim esclarecedor nesse sentido:
Uma pessoa velha, em primeiro lugar, na medida em que passa a viver dentro de um
quadro de referncias especfico, individualmente adquirido e baseado em experincias
passadas utilizveis, de modo que toda experincia nova tem sua forma e situao
determinadas em grande parte antecipadamente. Na juventude, por outro lado, onde a
vida nova, as foras formativas esto comeando a existir, e as atitudes bsicas em
processo de desenvolvimento podem aproveitar o poder modelador de situaes
novas.243
Situaes novas que no entraram em conflito com as antigas, no caso de Z Menezes, pois ele
havia se inserido h pouco tempo no mercado de msica popular, poca em via de expanso e
segmentao. Ary Barroso, por sua vez, passou por experincia semelhante numa fase anterior,
entre os anos 1920 e 1930, quando teve a ousadia, tpica nos jovens de classe mdia com
esprito bomio, de abandonar a carreira no Direito para se dedicar msica popular, ao Teatro
de Revista e ao incipiente meio radiofnico, exaurindo em pouco tempo uma herana milionria
da famlia.244 J o cenrio social e culturalmente segmentado e internacionalizado dos anos 1950,
este sim entrou em conflito com o seu quadro de referncias solidificado nas dcadas
anteriores.
No entanto, invertendo os sinais, possvel encontrar tanto integrantes da velha
guarda da msica popular que viam com bons olhos a produo dos anos 1950, ainda que com
algumas restries, quanto artistas ligados nova gerao que permaneciam cticos ante,
principalmente, os gneros e estilos estrangeiros que haviam supostamente invadido o Brasil
naquele contexto. No primeiro caso, pode-se citar o clebre autor de Curare e Da cor do
242
100
pecado: Boror (Alberto de Castro Simoens da Silva), nascido em 1897, no Rio de Janeiro. Ao
ser entrevistado por Lcio Rangel para uma matria da revista A Cigarra (1957), o compositor
carioca foi enftico:
A msica popular brasileira no parou. No sou saudosista! Lembro-me do passado
apenas para fixar o que ele tem de bom. Mas h muita gente nova de valor, como o Tom
[Jobim], compositor de se lhe tirar o chapu, Billy Blanco, [Luiz] Bonf, excelente, e
Radams [Gnattali], j veterano, mas sempre em forma. Como bons cantores, cito Cauby
[Peixoto], Francisco Carlos, Carlos Augusto, embora colocando na frente deles os
velhos Slvio Caldas, Orlando [Silva] e [Carlos] Galhardo.245
245
RANGEL, Lcio. Boror: cinquenta anos de boemia e msica popular. In: ________. op. cit. 2007. p. 80-81.
Idem, ibidem.
247
PASSOS, Claribalte. Noite brasileira em Copacabana. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 919, 16 de maio de
1953. p. 62.
246
101
como Garoto, Chiquinho do Acordeon e Laurindo Almeida, sem contar o veterano (e anfitrio)
Radams Gnattali.248
A fala de Sivuca traz tona um problema candente entre a classe musical brasileira
dos anos 1950 e, sobretudo, no meio sociocultural carioca, que pode ser resumido na seguinte
questo: em qual referencial esttico se apoiar para corroborar a legitimao da sua produo? Na
msica de concerto de matriz europeia e esencialmente oitocentista, ou no jazz, a msica popular
norte-americana que havia se disseminado pelo mundo ocidental graas, em grande parte,
vigorosa indstria cultural daquele pas? Em tempos marcados pelo sentimento nacionalista e
todos os impasses e ressentimentos que esse tema engendra em nveis histricos, sociais e
culturais num pas perifrico, bem como pela crescente influncia dos Estados Unidos na poltica
econmica do Brasil naquele perodo, pode-se concluir que o jazz ocupou uma posio mais
ambgua e de difcil soluo entre os artistas locais, adquirindo por vezes o incmodo estatuto de
invasor, estrangeiro, ao passo que a msica de concerto europeia parece no ter passado pelo
crivo nacionalista, e nem sequer considerada estrangeira. Da a longevidade da produo
musical erudita enquanto norteadora dos parmetros estticos a serem incorporados pelos
msicos brasileiros. Da tambm as interminveis e pouco produtivas discusses em torno da
influncia (ou no) do jazz na msica popular nacional, as quais se inflamariam na dcada
seguinte (1960) com a repercusso internacional da Bossa Nova.
***
Idem, ibidem.
102
verses de msicas estrangeiras etc. Ruy Castro, por exemplo, estudioso da Bossa Nova e
membro da gerao e grupo social que protagonizou os desdobramentos desse fenmeno artstico
no Rio de Janeiro a partir de 1960, refere-se (em tom pejorativo) passagem dos anos 1940 e
1950 como a grande quermesse, na qual imperavam baies e sanfonas.249 Na mesma linha, o
maestro Jlio Medaglia repudiaria, em ensaio publicado no incio da dcada de 1960, o repertrio
da fase pr-Bossa Nova, que seria pautado majoritariamente por sambas-canes abolerados
que exploravam os recursos fceis, tornando-os sinnimos de passionalidade, teatralidade
e excesso. A gerao de Joo Gilberto e companhia representavam, em contrapartida, uma
retomada da linha evolutiva da MPB - sigla que, diga-se de passagem, transformou-se numa
instituio sociocultural, um modo de pensar toda a msica popular brasileira.250
Conforme se observou, intelligentsia e agentes diretamente ligados ao campo de
produo da msica popular nem sempre coincidiam em suas prticas e representaes. O caso
do Trio Surdina, cuja sonoridade tida por alguns autores como precursora da Bossa Nova,251
significativo nesse aspecto. Seu repertrio composto tanto por gneros consagrados perante as
classes mdias, como o samba, o samba-cano e o choro, quanto por msicas pertencentes ao
chamado segmento massivo e comercial, como o baio, o samba-de-fossa, o bolero e o
beguine - uma espcie de rumba lenta -, por exemplo. Essa aparente indistino entre
manifestaes que foram classificadas e reduzidas mais tarde em termos de bom gosto e mau
gosto resultou na incluso de uma variedade considervel de compositores nos discos do
conjunto: Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Antonio Maria, Lupicnio Rodrigues,
Charles Trenet, Walter Gross, Jack Lawrence, Augustin Lara, Ernesto Lecuona etc. - sem contar
o LP contendo apenas temas folclricos. Ou seja, os sambas consagrados na poca de Ouro se
juntavam aos sambas-canes (depressivos ou no), boleros, fox-trot e canes francesas em
voga nas rdios e no mercado fonogrfico dos anos 1950.
Esse dado se torna relevante especialmente quando se considera o meio sociocultural
intelectualizado que os integrantes do Trio Surdina tambm frequentavam. Garoto e Chiquinho
do Acordeon, por exemplo, eram discpulos e amigos do maestro Radams Gnattali, que se
249
CASTRO, Ruy. op. cit. 1990. p. 60-61. Citado tambm por NAPOLITANO, Marcos. op. cit. 2010. p. 59.
MEDAGLIA, Jlio. Balano da bossa. In: CAMPOS, Augusto de (org.). Balano da Bossa e outras bossas. 4
edio. So Paulo: Perspectiva, 1986; Sobre a instituio MPB, portadora de uma tradio, de cnones
estticos e valores ideolgicos, ver: NAPOLITANO, Marcos. op. cit. 2007. p. 109 e ss.
251
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 314.
250
103
consagrou como um dos renovadores da msica popular brasileira. Ambos gozavam de amplo
prestgio na poca, sobretudo Garoto, seja em razo da sua virtuosidade nos diversos
instrumentos que tocava, ou da temporada que passou ao lado de Carmen Miranda, nos Estados
Unidos, entre 1939 e 1940.
Faf Lemos, por sua vez, j havia conquistado o epteto de o violinista da Nacional
por essa poca. O msico circulava livremente nos espaos elegantes e bomios da zona sul do
Rio de Janeiro, chegando a abrir sua prpria boate, em 1956.252 Alm disso, participou
ativamente de alguns debates surgidos no perodo em torno da msica popular brasileira, como
mostra uma matria publicada na RMP:
Em uma das ltimas audies de Club da Crtica, programa que Pascoal Longo
apresenta todas as segundas-feiras, na Rdio Ministrio da Educao, reuniram-se
diversas figuras ligadas nossa msica popular, para discutir sobre a sua divulgao no
estrangeiro. reunio compareceram Ary Barroso, o internacionalmente famoso
compositor brasileiro; Faf Lemos, do Trio Surdina e que se prepara para excursionar
pelo Oriente em companhia de Carmen Miranda; Alceu Bocchino, maestro das rdios
Nacional e Mundial, e Paulo Medeiros, cronista de ltima Hora e presidente do
Clube dos Amigos do Samba. Com muita propriedade, o compositor de Aquarela do
Brasil mostrou os principais motivos que impedem uma melhor divulgao da nossa
msica popular no estrangeiro, indicando solues. E Paulo Medeiros, no final da
audio, declarou que o seu Clube iria iniciar uma campanha para a exportao dos
nossos ritmos, geralmente to mal apresentados em outros pases.253 (Grifos nossos).
As atividades dos clubes de nacionalistas e tradicionalistas no eram muito distintas das que
se verificavam nos f-clubes dos jovens de classe mdia da zona sul. O mencionado Clube dos
Amigos do Samba, por exemplo, havia se originado a partir de encontros musicais promovidos
por amigos de Garoto, como Georges Andr e o jornalista Paulo Medeiros, diletantes que abriam
suas casas para receber a elite da msica popular brasileira nas chamadas samba sessions ironicamente, uma verso brasileira das jam sessions muito em voga entre os adeptos do jazz
moderno. s reunies compareciam msicos como Radams Gnattali, Dolores Duran,
Chiquinho do Acordeon, Billy Blanco, Waldir Azevedo, Tom Jobim, entre outros. Esses
ambientes eram elitizados, haja vista a localizao da residncia de Georges Andr: Avenida
252
253
104
105
pelo tempo! Tambm o Bequinha, nos brindou com seus chorinhos diferentes, e o genial
Agnelo Pereira, reviveu uma valsa dolente e profundamente romntica. (...) os demais
instrumentistas apresentaram o moderno samba-cano, os chorinhos saltitantes, as
cantigas de roda. (...) O acordeo do lourssimo Sivuca, recortando o maracatu, o frevo
trepidante, o regionalssimo baio. Radams no se conteve diante do ritmo contagiante
do maracatu (...). Laurindo executou maravilhas ao violo, em choros e sambas e alguns
sucessos atuais do pas de Gershwin. (...) Garoto e Laurindo, em duo, rememoram
criaes de ambos, antes da ida do segundo para os Estados Unidos (...).258
Cotejando esse episdio com alguns dados citados e discutidos pela antroploga Julia ODonnell
em seu estudo sobre Copacabana fica evidente o modo como os hbitos, os costumes e o
imaginrio da aristocracia moderna carioca possuam razes profundas e duradouras,
apresentando alteraes sutis ao longo do tempo, como que para reatualizar seus cdigos e
valores de acordo com as mudanas sociais e culturais. Note-se, por exemplo, as semelhanas
entre a matria anterior e o relato de um cronista a respeito de uma festa promovida pela
sociedade cilense 259, em 1908, a partir do qual se pode identificar o embrio dos futuros clubs:
Imagine o leitor que domingo passado diversos cavalheiros e senhoritas de nossa
sociedade (...) improvisaram um baile que, pela sua intimidade, foi a delcia da noite.
Todos incorporados, ligados pelos laos da mais cordial intimidade, reuniram-se sob o
teto da antiga penso Coronel Silva (...). tambm muito digno de registro o nome do
sr. Romulo Braga, que substituiu, com muita distino e arte, a ausncia do pianista,
proporcionando a todos... belas valsas, polkas, scotisch (sic). Oxal que todos os bairros
civilizados seguissem esse belo exemplo de solidariedade, lanado pela aristocracia
moderna de Copacabana.260 (Grifos nossos).
PASSOS, Claribalte. Noite brasileira em Copacabana. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 919, 16 de maio de
1953. p. 62.
259
Em referncia CIL, sigla para Copacabana, Ipanema e Leme. Esse termo (cilense) era frequentemente usado
pelos habitantes da zona sul nas primeiras dcadas do Sculo XX, constituindo-se num signo de distino social.
ODONNELL, Julia. op. cit. 2013.
260
O Copacabana, fevereiro de 1908 apud ODONNELL, Julia. op. cit. 2013. p. 73-74.
106
contradies, parece til relevar a lgica de mercado enquanto elemento balizador das produes
dos artistas atuantes no cenrio musical dos anos 1950. Seja em funo de suas estratgias de
insero e consagrao num campo em via de profissionalizao,261 ou pelo simples fato de que
eles prprios muitas vezes no faziam julgamentos de valor to rgidos e irredutveis quanto os da
intelligentsia acerca do repertrio, importante acatar as ambivalncias existentes entre os
discursos e as prticas dessa poca, a despeito dos estudos que propem imagens unvocas e
generalizantes que acabam por ofuscar sua complexidade. As anlises musicais da produo do
Trio Surdina, concentradas no prximo captulo, vo aprofundar essa discusso.
H ainda que se considerar o fato de que a diversidade de posies estticoideolgicas evidenciadas em grande medida por membros da classe mdia - sejam estes
integrantes da antiga ou da nova gerao que emerge no segundo ps-guerra - est relacionada
tambm a uma caracterstica particular desse segmento social: a inexistncia de uma
homogeneidade entre seus interesses materiais, polticos e ideolgicos, em razo da posio
intermediria e historicamente desenraizada que ocupam em algumas sociedades ocidentais no
sculo XX.262 Nem todos os segmentos da classe mdia esto diretamente ligados aos setores
produtivos da cidade moderna, tal como a classe proletria e a burguesia industrial.263 No
contexto focalizado neste trabalho, no possvel sequer falar em burguesia conforme os
modelos dos pases industrializados, pois a heterognea classe mdia brasileira dos anos 1940 e
1950, situada neste caso na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, era formada em grande parte
por profissionais que atuavam em altos e mdios cales do funcionalismo pblico, bem como nos
setores imobilirio, hoteleiro, turstico, de informao, entretenimento e servios de um modo
geral.
***
Antes de encerrar este captulo, deve-se ressaltar que os conflitos simblicos expostos
at aqui s podem ser mais bem avaliados quando inseridos no processo scio-histrico ao qual
esto vinculados. Isso porque os valores e as representaes em disputa na dcada de 1950
261
A Rdio Nacional era, talvez, a maior exceo nesse contexto de amadorismo do campo da produo cultural.
MILLS, Wright. Introduo Nova classe mdia e Poltica de Retaguarda. In: _______. Sociologia FERNANDES, Helosa Rodrigues (Org.). So Paulo: tica, 1985. p. 131.
263
Ibidem, p. 119.
262
107
remetem invariavelmente a problemas sociais mais amplos. Furtar-se a esta dimenso o mesmo
que negligenciar a histria de uma sociedade profundamente hierarquizada.
Um aspecto ilustrativo, nesse sentido, o fato de que as discusses sempre acabam se
restringindo ao mbito dos grupos sociais intelectualizados que de alguma forma se aproximaram
ou fizeram do campo da msica popular seu prprio campo de atuao, seja enquanto crticos
especializados, produtores musicais ou artistas. Ainda que isso possa sugerir certo monoplio
de classe em torno de uma prtica indissolvel do cenrio musical brasileiro daquele perodo (a
crtica), as posies esttico-ideolgicas, bem como as posies sociais desses agentes, revelamse heterogneas. Conforme se apontou pginas atrs, o valor adquirido pelo progresso tcnico
material, por exemplo, orientou discursos e aes de crticos, empresrios e msicos que
protagonizaram a emergncia de novos equipamentos e procedimentos de gravao e reproduo
de discos. Por outro lado, especialmente entre os integrantes das geraes mais antigas, como
Lcio Rangel, Ary Barroso e, porque no, Vinicius de Moraes, verificou-se resistncias srias
ante a incorporao dessas novidades - resistncias que se estendiam s chamadas modas
efmeras, como os gneros e estilos (estrangeiros) que estavam sendo amplamente assimilados
pelos msicos brasileiros.264 O ponto nevrlgico dessas crticas parece ser o carter comercial
ou de mercado que assumiram tais adeses, as quais acompanharam invariavelmente as
mudanas estruturais por que passava o Brasil entre os anos 1940 e 1950 - importaes em massa
de bens de consumo e culturais norte-americanos, crescimento acelerado e desordenado das
cidades, modernizao e expanso da indstria nacional etc. Concomitantemente, ainda que a
configurao de uma sociedade de consumo se revelasse incipiente, a prpria indstria cultural
brasileira dava sinais mais claros de sua formao nesse perodo, uma vez que se fortaleciam as
inter-relaes entre os campos radiofnico, fonogrfico, cinematogrfico e editorial, medida
que cada um desses ramos se modernizava e a mentalidade empresarial de seus provedores se
mostrava mais compatvel com os modos de gesto dos pases capitalistas avanados.
264
So conhecidas, por exemplo, as crticas de cinema de Vinicius de Moraes que denunciavam o aprofundamento
do comercialismo do cinema falado em detrimento do carter potico ainda presente na fase heroica do
cinema mudo, medida que novos recursos tcnicos eram desenvolvidos e incorporados nas produes. Ver:
MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos CALIL, Carlos Augusto (Org.). So Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
108
esta nova realidade que entra em conflito com os valores, critrios e referenciais
esttico-ideolgicos dos membros das classes dominantes vindos de outra gerao, os quais
mantinham certo distanciamento - ao menos no plano das aparncias - em relao ao elemento
popularesco ou s atividades concernentes ao campo cultural que tivessem o lucro material
como fim. Noutra parte, salientou-se que esse distanciamento encerra um mecanismo de distino
social que apenas refora simbolicamente - portanto, dissimuladamente - o divrcio, ou melhor,
o distanciamento socioeconmico dessa elite ante as demais classes, trao marcante de
sociedades desiguais como a brasileira. Como afirma Bourdieu, a recusa do valor econmico dos
produtos culturais e a consequente valorizao do seu capital simblico, que muitas vezes
traduzido em termos de pureza, autonomia e desinteresse, uma atitude cara aos grupos
sociais que pertencem ou ainda carregam consigo hbitos mentais das antigas elites aristocrticas,
que procuravam se distinguir da classe burguesa ao denegar tudo o que dizia respeito ao plano
econmico, s relaes de mercado, enfim, tudo o que trazia as marcas do interesse e da lgica
comercial
265
eficaz de distino social. Trata-se, no caso do campo da msica popular brasileira dos anos 1940
e 1950, de um aspecto residual de um imaginrio social particular.
Sob esta tica, fcil identificar o carter postio das prticas e representaes das
camadas mdias que se mostravam receptivas s novidades trazidas pelo progresso tcnico
material que se avolumava em meados do sculo XX. Todavia, no menos postios eram as
posturas dos tradicionalistas ou saudosistas presos aos valores e referenciais das classes
dirigentes pr-republicanas, que trataram de (re)inventar o passado popular e folclrico, uma
vez que estes, no por acaso, apresentavam-se enquanto reservas no burguesas da vida
nacional, constituindo os alicerces da identidade brasileira.266 No primeiro caso (o dos
265
Sobre esse assunto, vale conferir os captulos A emergncia de uma estrutura dualista e O mercado de bens
simblicos, presentes em: BOURDIEU, Pierre. op. cit. 1996. p. 133-199.
266
SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtrao. In: _______. op. cit. 1987. p. 43-46. Nessa direo, Antonio
Candido identifica em Razes do Brasil um prognstico significativo acerca das consequncias sociais e ideolgicas
da crise das velhas instituies agrrias. Segundo Srgio Buarque de Holanda, contra [a ruptura do predomnio
das oligarquias, com a emergncia de novas camadas sociais], provvel que se erga, e cada vez mais obstinada, a
resistncia dos adeptos de um passado que a distncia j vai tingindo de cores idlicas. Essa resistncia poder,
segundo seu grau de intensidade, manifestar-se em certas expanses de fundo sentimental e mstico limitada ao
campo literrio, ou pouco mais. No impossvel, porm, que se traduza diretamente em formas de expresso social
capazes de restringir ou comprometer as esperanas de qualquer transformao profunda. CANDIDO, Antonio. O
significado de Razes do Brasil. In: HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das
Letras, 26 edio, 1995. p. 19-20.
109
progressistas), a adeso aos novos hbitos, costumes e produtos culturais estrangeiros podia at
representar uma forma de se criar a iluso de progresso na periferia, mas o que esta perspectiva
oculta o fato de que esse fenmeno informa um contexto de transformaes estruturais intensas
por que passava a sociedade brasileira, em que uma nova gerao da classe mdia emerge no
cenrio cultural, bem como no poltico e econmico, medida que a sociedade de classes se
reestruturava com o crescimento desordenado das grandes cidades e com o avano da
industrializao. J na segunda situao (a dos tradicionalistas), pode-se dizer que o iderio
remanescente das elites antigas levou determinados agentes a se oporem, no plano simblico, s
prticas e representaes dos novos atores sociais que se apresentaram enquanto frao de classe
no perodo em questo, instituindo assim um conflito que , no fundo, social, embora este dado
seja dissimulado por discursos identitrios e esttico-ideolgicos.
Em sntese, e para falar com Roberto Schwarz, o que antigos e modernos
apresentam em comum no cenrio sociocultural abordado anteriormente o mal-estar e o
ressentimento dos grupos de elite no difcil processo civilizatrio brasileiro, ou seja, o
sentimento aflitivo daqueles que se percebem estrangeiros em seu prprio pas, uma vez que
seus modelos estticos, polticos e ideolgicos contrastam tanto com a sua realidade presente,
quanto com o seu passado. Numa palavra, o que parece insustentvel a ambos a estrutura
social do Brasil, cuja disparidade entre as classes acaba por salientar o momento de falsidade
das ideologias totalizantes nao, identidade nacional, brasilidade - que ganharam
corpo entre 1940 e 1950,267 perodo em que a estratificao da sociedade de classes se acentua.
No por acaso, a inveno de uma tradio, ou ainda, de uma histria da msica
popular brasileira urbana e industrializada, tal qual propuseram artistas e intelectuais ligados ao
crculo da RMP, por exemplo, se d num momento e num espao em que o distanciamento social
entre as camadas mdias e subalternas aumenta: no caso, no Rio de Janeiro do segundo psguerra, quando a zona sul se consolida enquanto espao privilegiado de uma elite cosmopolita,
moderna e pretensamente aristocrtica, em oposio zona norte. A idealizao, a nostalgia e,
por vezes, o modo caricatural, sentimental e mstico de tratar o elemento popular e o passado
267
SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtrao. In: ________. op. cit. 1987. p. 46-48. No se deve esquecer que
as ideologias em disputa nesse contexto encerram tambm seu momento de verdade, ou seja, so falsas apenas
no que afirmam ter realizado, mas no pelo que aspiram realizar. Sobre a noo de ideologia, ver: ADORNO,
Theodor W. A Indstria Cultural. In: _______. Sociologia - COHN, Gabriel (Org.). So Paulo: tica, 1986. p. 9396.
110
pr-capitalista so alguns dos sintomas desse processo scio-histrico mais amplo, os quais
representam, nos termos de Srgio Buarque de Holanda, formas de expresso social capazes de
restringir ou comprometer as esperanas de qualquer transformao profunda.268
268
CANDIDO, Antonio. O significado de Razes do Brasil. In: HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil.
op. cit. 1995. p. 19-20. A propsito, o tratamento idealizado e nostlgico do passado pr-capitalista identificado
tambm, num contexto muito diferente e numa escala ampliada, pelo socilogo Norbert Elias em sua pesquisa sobre
a sociognese do romantismo aristocrtico na Idade Moderna. Esta parece ser uma tendncia em sociedades que
passam pela transio do mundo rural para o urbano de maneira relativamente rpida. Ver: ELIAS, Norbert. A
sociedade de corte: investigao sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
p. 239-240.
111
112
113
269
Integram este LP composies como O Relgio da Vov (Garoto, Faf Lemos e Chiquinho do Acordeon),
Three coins in the fountain (Jule Styne e Summy Cahn), Cano do vaqueiro (Luiz Bonf), Na baixa do
sapateiro (Ary Barroso), Amendoim torradinho (Henrique Beltro), Stranger in paradise (Robert Wright e
George Forrest) e Estatutos de gafieira (Billy Blanco).
270
Lado A: pot-pourri de Feitio da vila (Noel Rosa - Vadico), No rancho fundo (Ary Barroso - Lamartine
Babo), Sinceridad (Gaston Perez), Peguei um ita no norte (Dorival Caymmi), Felicidade (Lupicinio
Rodrigues), Cano da volta (Ismael Netto - Antonio Maria) e Fita amarela (Noel Rosa). Lado B: Baio na
Espanha (Victor Canella), Copacabana (Joo de Barro - Alberto Ribeiro), Mano a mano (Carlos Gardel - J.
Razzano - E.C.Flores), Duas rotaes (Victor Canella).
271
Lado A: In the still of the night (Cole Porter), Love is a many splendored thing (Fen/Webster), Silbando
mambo (Pres Prado), Um poquito de tu amor (Xavier Cugat/ R. Soler/ F. Aguirre), T de snooker (Bola Sete)
e Quitandinha (Djalma Ferreira). Lado B: When lights are low - variaes em samba (Willians Carter),
Variaes sobre tema Bop Tura (Charlie Ventura), Mariasinha (Garoto/ A. Ribeiro), Balanceado (Carlos
Esprito Santo/Walgton Silva), Samba do Arnesto (Adoniran Barbosa), Dinorah (Benedito Lacerda) e AufWiederschein (S. Storch).
272
Neste LP podem ser ouvidas composies como, por exemplo, Ningum me ama (Antonio Maria e Fernando
Lobo), Baio das velhas cantigas (Jair Amorim), No tem soluo (Dorival Caymmi e Carlos Guinle) e Lullaby
of Birdland (George Shearing e B. Y. Forster), sendo a maior parte interpretada como fox-trot - com exceo do
baio.
273
As duas faces deste LP apresentam pot-pourris, em que os diferentes gneros se alternam: no lado A, ouve-se
Ruby (Heinz Roemheld e Mitchell Parish), If I give my heart to you (J. Crane, A. Jacobs e J. Brewster),
Contigo en la distancia (C. Portillo de La Luz), Este amor selvagem (Miguel Angel Valladares), Quase
(Mirabeau e Jorge Gonalves) e Coisas do amor (Waldir Rocha e Jorge Gonalves); no lado B, There goes my
heart (A. Silver e B. Davis), Three coins in the fountain (Sammy Cahn e Jule Styne), Sinceridad (Rafael Gaston
Perez), No other love (O. Hammerstein II e R. Rodgers), Ocultei (Ary Barroso) e Brigas de amor (Antnio
Almeida).
114
Como observa Joana Saraiva, um aspecto marcante de muitos conjuntos que atuaram
no cenrio da zona sul do Rio de Janeiro nessa fase o seu carter danante, ento compatvel
com o ambiente das pequenas boates, fato que explica tambm a diversidade de ritmos no
repertrio, assim como a recorrncia de pot-pourris ou de sequncias praticamente ininterruptas
de msicas registradas nos LPs.274 Alm disso, a presena macia de composies estrangeiras de
autores como Peres Prado, Xavier Cugat, Gaston Perez, Cole Porter, Julie Styne e Sammy Cahn,
por exemplo, atribui-se em partes ampla repercusso que seus fonogramas tiveram no Brasil
entre os anos 1940 e 1950.275 Muitos desses sucessos compunham as trilhas sonoras de filmes
norte-americanos que estiveram em cartaz no perodo.
Mas a variedade do repertrio no permanece circunscrita a trabalhos isolados. A
produo fonogrfica da Musidisc durante os anos 1950 revela, de um modo geral, um
ecletismo acentuado que, diga-se de passagem, no era estranho s outras gravadoras,
principalmente as de grande porte, como a Odeon, RCA Victor e Continental, por exemplo.
Diante de um mercado de msica popular razoavelmente consolidado e segmentado, era
imperativo conquistar diferentes faixas do pblico consumidor. Para tanto, muitos LPs da
Musidisc promoviam, em suas contracapas, o catlogo ecltico da gravadora:
274
possvel mesmo notar certa preocupao por parte dos produtores em alternar os fonogramas de acordo com os
andamentos e gneros musicais, adequando os discos dinmica das pistas de dana. Ver: SARAIVA, Joana
Martins. op. cit. 2007. p. 26-29.
275
As msicas desses compositores figuram entre as mais executadas no Brasil entre os anos 1940 e 1950, de acordo
com o levantamento estatstico feito por Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano a partir de produes estrangeiras.
Ver: SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002, p. 245-336.
115
Figura 2: Contracapa do primeiro LP do Trio Surdina (1953), provavelmente quando do seu relanamento em
meados da dcada de 1950, dada a quantidade significativa de discos acima listados.
Este catlogo no se restringe aos gneros de msica popular que os pesquisadores costumam
abordar quando comentam a produo desse perodo, a saber, o samba-cano, o baio, o tango e
o bolero. Contemplava-se tambm a msica infantil; as canes de datas comemorativas; msicas
folclricas - presentes no disco Ouvindo Trio Surdina vol. 1, citado no captulo anterior e que
figura na srie deluxe no catlogo acima; msicas tpicas de pases como Itlia, Portugal e
116
Frana, bem como um segmento que parecia emergir naqueles anos: a msica de fundo, sem
dvida uma produo difcil de classificar, mas cuja proposta criar uma espcie de trilha
sonora para determinadas ocasies como sugere, por exemplo, o LP Msica de Champagne,
apropriado aos jantares romnticos - ou mesmo cumprir funes especficas no cotidiano,
conforme indica o disco Msica para Adormecer. Esse tipo de produo conquistou uma faixa do
pblico consumidor ainda nos anos 1950, tendo sido favorecida pela durao estendida
inaugurada pelo LP. Prova disso uma propaganda da loja de eletrodomsticos Glria,
anunciando suas ltimas novidades em discos numa das pginas da quinta edio da Revista da
Msica Popular:
Msica para Repousar: Berceuse de Jocelyn, Autumn Leaves, While were
Young, Stardust, Portrait of a lady, Valse Bluette, Sleepy Largoon, La
Golondrina, Serenata (Braga) e Moonlight Serenade; Msica para Leitura: Clair
de Lune, Greensleeves, Festival, Dream of Olwen, Song of my love,
Mattinata, Amoureuse, Valsa em d sustenido menor (Chopin), Serenata
(Drigo) e Flirtation; Msica para Jantar: Diane, Too Young, September
Song, Clopin Clopant, Concerto de Varsvia, Domin,
Charmaine,
Faithfully Yours e Ternamente.276 (Grifo nosso).
Esses discos foram produzidos por George Melachrino e Sua Orquestra de Cordas, arranjador
ingls nascido em 1909 que, na verdade, chamava-se George Miltiades. Seu repertrio se
enquadra no mesmo ramo em que atuava o arranjador russo Andre Kostelanetz, cujas
orquestraes exploravam consideravelmente a famlia das cordas, empregadas de modo a obter
um carter suave, sentimental e romntico.
Conforme se mencionou no captulo anterior, a produo do Trio Surdina se insere
numa poca em que novas tecnologias e novas escutas esto emergindo no campo do
entretenimento. O seu estilo interpretativo estabelece uma relao de interdependncia tanto com
os novos meios de registro sonoro, quanto com o ambiente e os modos de escuta caractersticos
das pequenas boates do Rio de Janeiro, apontando para uma tendncia conteno e ao
intimismo, apropriada a uma recepo mais individualizada, em contraposio estridncia e
recepo coletiva que ento caracterizavam os programas de auditrio, por exemplo.277 No
276
117
entanto, discutiu-se tambm que o Trio Surdina se apresentava diante do ruidoso pblico de
Noite de Estrelas, bem como o fato de o seu repertrio contemplar gneros e estilos musicais que
no se limitavam aos gostos e preferncias de fraes da classe mdia. Essas ambivalncias se
tornam mais evidentes desde que se relacione a fragmentao do repertrio do conjunto, ento
potencializada pelos LPs - os quais registravam um nmero quatro vezes maior de msica se
comparado com o antigo formato -, com a fragmentao da prpria escuta, uma vez que a
concentrao de um repertrio numeroso e variado num nico disco corrobora um tipo de fruio
mais desatenta.278 Isso porque se torna difcil apreender as composies de uma forma
contextualizada, como no caso em que se ouve um disco contendo um nico gnero ou estilo,
como nos chamados discos conceituais, tornando possvel, alm da escuta, associar o contedo
sonoro a enredos, imagens, ambientes, personagens, gestos e smbolos que caracterizam uma
situao mais precisa ou um cenrio facilmente construdo com o auxlio da imaginao.
Essa descontextualizao, que pode ser traduzida em termos de atemporalidade e
ubiquidade espacial intrnsecas produo musical na era da reprodutibilidade tcnica,
tambm fora destacada por Adorno em suas pesquisas sobre o rdio.279 Assim, se por um lado o
Trio Surdina era valorizado pelo virtuosismo de seus integrantes e pelo carter camerstico de
suas performances, pressupondo uma escuta interessada e individualizada,280 por outro, o seu
repertrio, caracterizado pela variedade e sonoridade contida e suave em termos de dinmica
e interpretao, parece apontar, em certos momentos, para um tipo de recepo dispersiva,
aproximando-se da chamada msica de fundo, ou ainda, nos termos de Umberto Eco, da
msica gastronmica,281 bastante apropriada s pequenas boates. Essa ambivalncia parece no
se restringir produo do conjunto, mas se estender da prpria gravadora Musidisc.
inicialmente pelo estilo interpretativo de Joo Gilberto, pelas composies de Tom Jobim e letras de Vinicius de
Moraes. A conteno de excessos e o intimismo so algumas das caractersticas centrais da msica bossa
novista. MAMM, Lorenzo. Joo Gilberto e o projeto utpico da bossa nova. Novos Estudos, Cebrap, n 34, p. 6370, 1992.
278
importante lembrar que a diminuio da ateno e concentrao do ouvinte no momento da escuta recrudesce
com o advento dos meios de registro e reproduo sonora, pois, sabendo de antemo que poder ouvir um fonograma
quando e o nmero de vezes que quiser, o consumidor de msica gravada se v dispensado do esforo de
acompanhar um nico concerto em vrias ocasies ou, no caso dos msicos, de comprar a partitura da pea para
estud-la no seu instrumento. MAMM, Lorenzo. op. cit. 2014.
279
CARONE, Iray. A face histrica de On popular music. Constelaciones, Revista de Teoria Crtica, n 3, p. 148178, diciembre de 2011. p. 159.
280
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 917, 2 de maio de 1953. p. 62.
281
ECO, Umberto. Apocalpticos e Integrados. So Paulo: Perspectiva, 1998. p. 295.
118
***
119
Figura 3: Capa do primeiro LP do Trio Surdina (1953). Vale destacar a tentativa de reproduo do ambiente noturno,
ao fundo.
A imagem acima corresponde linda e artstica capa, do desenhista Rodolfo que, segundo a
apreciao de Claribalte Passos, citada no captulo anterior, valoriza, igualmente, o long-playing
Trio Surdina.284
A ateno ao contedo propriamente visual dos LPs constitui um aspecto novo no
incio da dcada de 1950, uma vez que os discos de 78 rotaes recebiam, em geral, envelopes,
etiquetas e rtulos meramente descritivos ou, no mximo, ilustraes que pouco ou nada tinham
que ver com o contedo musical. O desenvolvimento grfico e sonoro protagonizado pelo novo
formato de discos acompanhou o prprio desenvolvimento da produo do setor fonogrfico que,
por sua vez, integra um movimento mais amplo de crescimento da indstria brasileira. Segundo
desencontros dessa histria visual (LPs da Elenco, 1963). 133 f. Dissertao (Mestrado em Histria) - Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.
284
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 917, 2 de maio de 1953. p. 62.
120
as estatsticas da poca, entre 1950 e 1960 o PIB saltou de 3,2% para 7,3%, ao passo que a
indstria grfica cresceu 143%. No mesmo perodo, por exemplo, a ento diminuta gravadora
Rdio, de Ovdio Grottera, inaugurada em 1951, cresceu a tal ponto que alcanou a marca de 25
mil LPs produzidos por ms no ano de 1957,285 ou seja, um nmero bastante expressivo para um
selo especializado em discos de longa durao, sobretudo numa poca em que o acesso a esses
produtos ainda era restrito.
Nesse nterim, a contratao de artistas plsticos agregava certo valor e prestgio aos
produtos da Musidisc, os quais no se limitavam a reproduzir as imagens dos msicos nas capas.
Essa hiptese se apoia, em partes, nas diversas menes de Claribalte Passos dimenso visual
285
121
dos LPs em suas crticas, como a que se dirige ao disco Trio Surdina e Orquestra Lo Peracchi
(M-008, 1953), LP dedicado obra de Ary Barroso: Nvel de sonoridade das gravaes,
convincente, com atributos merecedores dos mais justos elogios. (...) H a salientar, com justia,
a capa artstica desenhada pelo talentoso Rodolfo (cf. figura 4).287
O elogiado desenhista Rodolfo era um dos responsveis pela arte grfica de alguns
LPs da gravadora de Nilo Srgio. O crtico Claribalte Passos estava sempre atento aos seus
trabalhos, como aponta a apreciao do disco Baio n 2 (M-004), lanado em janeiro de 1953:
Trata-se de um primoroso lbum em long-playing, com capa de expressiva ilustrao em quatro
cres (sic), apresentando belo trabalho artstico de Rodolfo (cf. figura 5).288
Figura 5: Capa do LP Baio n 2 (M-004, 1953), que conta com interpretaes do pianista Leal Brito, do conjunto
vocal Trs Marias e do cantor Catulo de Paula.289
287
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 918, 9 de maio de 1953. p. 63.
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 905, 7 de fevereiro de 1953, p.
62.
289
Seu repertrio composto pelas seguintes msicas: Onda do Mar (Leal Brito / Paulo Soledade), Chuveu to
Vortando (Catulo de Paula / Carlos Galindo), Celeste no Baio (Nilo Srgio), Concerto no Baio (adapt. Nilo
Srgio / Leal Brito), Ciranda no Baio (adapt. Nilo Srgio), Tico Tico de Campina (Jorge Faraj / Leal Brito),
Mania do Man (Catulo de Paula / Carlos Galindo), Baio Moreno (Barriguinha / Caco Velho).
288
122
Em sua pesquisa sobre a histria do design grfico dos LPs no Brasil, Egeu Laus
destaca a atuao pioneira de artistas plsticos e ilustradores de renome na elaborao de capas de
discos, como Lygia Clark, Darcy Penteado e Di Cavalcanti. Alguns trabalhos desses artistas
podem ser vistos nos LPs produzidos pelo selo Festa, cujo objetivo era registrar poemas de
autores consagrados Drummond, Pablo Neruda, Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida e
Ceclia Meireles foram alguns dos poetas que registraram uma parcela de obras em LPs.290
Voltado, portanto, a um pblico bastante restrito e intelectualizado, o selo se distinguia
igualmente pelo tratamento dispensado ao design grfico dos discos, cuja esttica se alinhava s
correntes artsticas de vanguarda, sobretudo europeias (cf. figura 6).
Figura 6: Ilustrao de Di Cavalcanti para a capa do LP Poesias Ceclia Meireles e Guilherme de Almeida (Festa).
290
123
Figura 7: Ilustrao de Darcy Penteado para a capa do LP Jograis de So Paulo Moderna Poesia Brasileira (Festa,
1958).
291
Ibidem, p. 320-322.
124
292
Ibidem, p. 317.
PASSOS, Claribalte. Novidades em Long-Playing. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 948, dezembro de 1953.
p. 34.
293
125
Figura 8: Capa do disco instrumental Danando Suavemente, Nilo Srgio e sua Orquestra. No h informaes no
LP acerca da atuao de Nilo Srgio, mais conhecido como crooner de orquestras entre 1940 e 1950, uma vez que
constam apenas nmeros instrumentais. Os arranjos e a conduo da orquestra ficaram a cargo do Maestro Carioca
(Ivan Paulo da Silva).
O desenho acima da autoria de Aldemir Martins (1922 - 2006), um dos artistas plsticos
brasileiros mais premiados no Brasil e no exterior na segunda metade do sculo XX. Na dcada
de 1950, Martins comps uma srie de obras retratando a figura do cangaceiro e de animais como
galos, gatos, pssaros e peixes - o desenho anterior uma amostra dessa fase.294 Foi reservado um
espao significativo na contracapa desse LP para divulgar o seu nome e o seu trabalho:
(...) cearense de Ingazeiras, nascido em 1922, um pintor que no precisa de cores. Sabe
us-las, naturalmente, e com mo de mestre, mas o campo ideal que escolheu para a
manifestao de seu vigoroso talento criador foi o preto-e-branco, foi a difcil
simplicidade da linha. Cada um de seus desenhos, se comparado a um outro anterior,
294
Essas informaes foram obtidas no site do artista: http://www.estudioaldemirmartins.com/home/aldemirmartins.html. Acesso em: 23 de junho de 2012.
126
295
WISNIK, Guilherme. Em torno da ideia de beleza sem esforo: Arquitetura e Bossa Nova. In: GARCIA, Walter
(Org.). Joo Gilberto. So Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 166-189; CAMPOS, Augusto de (Org.). op. cit. 2008.
296
MELLO, Joo Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). op. cit. 1998.
Para uma melhor compreenso dos diversos valores, sentidos e significados assumidos pelos fenmenos ligados
modernidade nos planos social, cultural, intelectual e artstico no Brasil dos anos 1950, ver os artigos reunidos em:
BOTELHO, Andr, BASTOS, Elide Rugai e VILLAS BAS, Glucia (Orgs.). O moderno em questo: a dcada de
1950 no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2008.
127
Figura 9: Capa do disco Ouvindo Trio Surdina Vol. 2 (1956), um dos lanamentos posteriores formao inicial. Se
comparado aos anteriores, verifica-se uma acentuada economia de cores e elementos grficos, dando relevo especial
sensualidade ento representada pelos olhos e lbios femininos.297
O repertrio deste LP composto pelas seguintes composies: Jealousie (Jacob Gade), Comigo Assim
(Luiz Bittencourt e Jos Menezes), Charmaine (E. Rapee, L. Pollack), Linda Flor (Henrique Vogeler), Marial- (Ernesto Lecuona), Iracema na Esccia (Pernambuco), Moonlight Serenade (M. Parish, G. Miller) e Voc
No Gosta (Al Quincas).
128
Carioca, aquelas msicas suaves e romnticas que lhe deram imensa popularidade. (...)
Mas uma idia assim, por tanto tempo acalentada, no poderia ser posta em prtica sem
mais nem menos. (...) Era preciso que a orquestra que interpretasse as msicas
selecionadas tivesse uma sonoridade diferente, capaz de empolgar o ouvido do mais
apurado bom-gosto. E Nilo Srgio conseguiu criar essa orquestra. (Grifos nossos).
Figura 10: Capa do LP Trio Surdina n 3 (M-017, 1953), que integra a fase inicial da produo do conjunto e da
gravadora Musidisc.
129
Esse desenho de inspirao abstracionista contraria duas tendncias verificadas em muitas capas
da poca: a que privilegiava as linhas retas, formas retangulares, cores contrastantes e com pouca
gradao o cubismo, em especial, era uma importante referncia para os designers e
ilustradores brasileiros; e os discos que se limitavam a reproduzir fotos ou imagens dos cantores
ou representar a temtica do LP (carnaval, dana, folclore etc.). Contrastando, at certo ponto,
com a concepo esttica evidenciada pela arte grfica, o repertrio do disco apresenta em novas
verses algumas msicas identificadas com a chamada cultura de massa, que alcanaram
grande sucesso nos anos 1950 como, por exemplo, o samba-de-fossa Vingana, de Lupicnio
Rodrigues; o fox-trot Cow-Cow Boogie, de Don Raye, G. de Paul e B. Carter; o mambo Canto
Karabali, do clebre compositor cubano Ernesto Lecuona; a cano francesa Verlaine, de
Charles Trenet; alm do baio Meu corao e do choro Amoroso, temas assinados por
Garoto o compositor Luiz Bittencourt, alis, divide a parceria desse choro com o violonista do
Trio Surdina.
***
130
299
Um dos casos mais reveladores dessa profissionalizao difcil dos artistas atuantes no ramo fonogrfico
brasileiro o de Csar Villela, principal responsvel pelas ilustraes das capas do selo/gravadora Elenco, de
Aloysio de Oliveira, que concentrou a maior parte da produo bossa novista dos anos 1960. Segundo Egeu Laus,
Villela atuou primeiramente na Odeon na segunda metade de 1950, tambm sob a direo de Aloysio, mas ainda
como um freelance fixo (!), ou seja, uma espcie de contratado no contratado que intervinha sempre que
solicitado, o que ocorria com frequncia. LAUS, Egeu. op. cit. 2005. p. 329-330.
300
Apoiamo-nos aqui no conceito de Rodrigo Naves presente em sua pesquisa sobre a arte visual brasileira dos
sculos XIX e XX. NAVES, Rodrigo. Da dificuldade de forma a forma difcil. In:_______. A forma difcil: ensaios
sobre arte brasileira. So Paulo: tica, 1996. p. 9-40.
301
Para Lorenzo Mamm, no sculo XX, o trabalho que representa o paradigma do LP como forma artstica
autnoma, em que arte grfica e msica integram um projeto nico que assume relevncia esttica e poltica sem
precedentes nos anos 1960 o disco Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, dos Beatles (1967). MAMM, Lorenzo.
op. cit. 2014.
302
FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasil. 23 edio. So Paulo: Editora Nacional, 1989. p. 238-242.
131
3.2.1 Ternamente
132
cano do bolero, contrastando sensivelmente com o fox-trot ou com o jazz waltz verificados em
gravaes norte-americanas.
Na adaptao do Trio Surdina, prtica que, alis, era recorrente nesse perodo - bem
como o procedimento inverso, ou seja, interpretar sambas-canes e boleros como fox-trot -,303
manteve-se o andamento lento tpico das msicas com temticas romnticas e suaves. O
aspecto que se alterou sensivelmente, contudo, a distribuio e as intensidades dos acentos nos
compassos. Para fins de anlise, considerar-se- a diviso quaternria (4/4) na conduo rtmica
deste fonograma. No entanto, reconhecem-se as ambivalncias existentes entre os modos de
estruturao rtmica de determinados gneros musicais, sobretudo quando se trata do sambacano em voga entre os anos 1940 e 1950, cuja conduo por vezes se confunde com a do bolero
(e vice-versa). Em ambos os casos, observa-se em geral um acento mais forte no tempo 1 e outros
dois menos intensos nos tempos 3 e 4 - isto , levando-se em conta um compasso dividido em
quatro tempos iguais. Em outros momentos, pode-se verificar ainda uma acentuao restrita aos
tempos 1 e 3, indicada geralmente pelo contrabaixo, modelo que se aproxima mais do samba que
do bolero. Seja como for, no toa que alguns autores empregaram o termo sambolero,
mencionado na maioria das vezes em tom depreciativo, como um quase sinnimo de sambacano depressivo ou samba-de-fossa. O que distingue essas variantes aboleradas do
samba concebido nos moldes consagrados nos anos 1920 e 1930 a ausncia de uma pulsao
ancorada em dois acentos mais incisivos - s vezes, com uma nfase no segundo ataque -,
dispostos simetricamente num compasso simples do tipo binrio.304
Outro fator relevante na identificao de semelhanas e diferenas entre esses gneros
e estilos a instrumentao, principalmente na base rtmica. O jazz, por exemplo, facilmente
reconhecido em razo da presena da bateria nessa seo. J o samba-cano e o bolero dos anos
1950 muitas vezes se confundem devido ao emprego de uma percusso formada basicamente por
maracas (e/ou ganz) e bong, instrumentos recorrentes na msica popular mexicana e cubana de
ampla circulao na poca, bem como entre inmeros conjuntos brasileiros. Esses instrumentos
303
o que realiza, por exemplo, o pianista e cantor Dick Farney no disco Dick Farney Simonetti Histria do Jazz
em So Paulo (Bandeirantes, 1956), ao reinterpretar o samba-cano Risque, de Ary Barroso, ao estilo dos
conjuntos de hard-bop.
304
Para uma discusso mais detalhada a respeito das diferenas nas condues rtmicas do samba e do samba-cano
nos anos 1950, vale consultar o estudo de Walter Garcia sobre Joo Gilberto, em especial, os captulos que se
encontram na primeira parte do trabalho. GARCIA, Walter. Bim Bom: a contradio sem conflitos de Joo Gilberto.
So Paulo: Paz e Terra, 1999.
133
podem ser ouvidos, juntos ou separadamente, em alguns fonogramas presentes no primeiro disco
do Trio Surdina: Ternamente, Duas Contas, Ningum me ama e Na Madrugada.305
Essa no a nica ambivalncia passvel de ser identificada nos discos do conjunto.
Para alm da conduo rtmica, h elementos e procedimentos em toda a performance do Trio
Surdina que tensionam qualquer tentativa de classificao mais precisa. Por exemplo: ouvindo e
transcrevendo os fonogramas, difcil afirmar se se tratam de execues de arranjos escritos,
combinados formalmente, ou de arranjos no escritos, ou seja, de uma performance pautada em
indicaes ou cdigos menos restritivos, combinados muitas vezes oralmente e aprendidos por
meio da prtica ordinria e da audio, abrindo assim amplos espaos para interpretaes ou
variaes da melodia, harmonia, conduo rtmica etc.
No plano harmnico, a ambivalncia se evidencia quando se verifica tanto a
utilizao de estruturas essencialmente tridicas, ento muito comuns no samba, choro, baio etc.,
quanto tetrdicas acrescidas de extenses por vezes alteradas - por exemplo, com a fundamental
e, a partir dela, a tera maior, stima menor, nona maior e dcima primeira aumentada.
Um primeiro caso digno de nota a Introduo de Ternamente (cf. o exemplo 1).
Dos compassos 1 ao 5, verifica-se apenas o violo executando acordes ora com o rasgueado, ora
em forma de arpejos, bem como o violino, que constri uma melodia baseada em notas de longa
durao pertencentes harmonia subjacente. Ambos os instrumentos permanecem em tempo
rubato (literalmente, tempo roubado). Considerando a tonalidade da composio, Mi bemol
maior, destaca-se de sada o modo como Garoto disps os dois primeiros acordes, a saber,
Ebmaj7/Bb e Dbmaj7/Ab, utilizando todas as cordas do seu instrumento e invertendo os
respectivos baixos, apoiando-os na quinta justa. A estes se somam, claro, as fundamentais (Eb e
Db) executadas pelo contrabaixo uma oitava abaixo. Alm disso, vale ressaltar a prpria
localizao do segundo acorde, considerando-se uma harmonia tonal: bVIImaj7, um grau
incomum at mesmo entre os chamados acordes de emprstimo modal (AEM) - neste grau, em
especfico, mais frequente o emprego do bVII7, oriundo da tonalidade homnima menor.
305
Em funo do chiado dos LPs e da posio secundria a que a percusso foi relegada no momento da gravao em
estdio, evitar-se- registr-la na partitura. Todavia, cabe ao menos informar quais so os instrumentos mais usados:
bong, maracas, ganz e caixeta.
134
306
Foram ouvidas as verses de Rosemary Clooney (1952), Nat King Cole (1954), Chet Baker (1956) e Sarah
Vaugham (1961).
135
tampouco a partitura original da composio307 apresentam o grau bVIImaj7 tal como se verifica
na introduo de Ternamente, muito menos com o acrscimo de uma dcima primeira
aumentada na voz mais aguda, levando-se em conta a nota Sol executada pelo violino no
fragmento correspondente (cf. o compasso 3). Entretanto, esse acorde no parece destoar na
malha sonora da Introduo. Isso porque sua estrutura e seu modo de execuo se mostram
idnticos aos do acorde precedente (Ebmaj7/Bb), permanecendo distncia de apenas um tom.
Alm do mais, as vozes que o compem ora coincidem, ora se movimentam minimamente para o
acorde seguinte, Db7(9)(13), constituinte da prpria composio. Tais fatores acabam por conferir
um grau razovel de coerncia e fluidez passagem como um todo.308
Os resultados indicam que essa Introduo foi planejada. No somente em virtude da
relao entre violino (melodia) e violo (harmonia), em que as notas do primeiro, sobretudo as de
longa durao, enfatizam via dobramentos (em oitavas) uma das vozes dos acordes executados
pelo segundo. Mas, especialmente, em razo da frase que ambos os instrumentos executam em
sincronia rtmica entre os compassos 6 e 9 (cf. o exemplo 1), constituindo, inclusive, um nico
sentido meldico - em termos mais precisos, trata-se de um movimento paralelo. Neste
fragmento, ao contrrio do anterior, estabelecido um andamento fixo. A outra novidade a
entrada efetiva do contrabaixo, que realiza, grosso modo, a conduo rtmica frequentemente
observada em sambas-canes e boleros dos anos 1950 - com acentos nos tempos 1, 3 e 4 -, sobre
o qual se comentou pginas atrs. A frase em questo construda a partir das notas que
compem os acordes correspondentes, a saber, Eb (I) e B (bVI ou sub V/V), permanecendo as
melodias de cada instrumento (violino e violo) separadas por intervalos de quintas e sextas.
Vale ressaltar ainda a variao de articulaes neste fragmento, procedimento
responsvel por conferir diferentes cores ao tecido sonoro. No espao de praticamente oito
compassos, o violino emprega os seguintes golpes de arco: dtach, tremoli e pizzicato. O violo,
307
Consultou-se a partitura presente no New Real Book, vol. 1 (1988: 353), cujo copyright data de 1946. Ed. Sher
Music Co, USA.
308
No decorrer das anlises musicais, procurar-se- articular as estruturas verticais geradas pelos acordes com os
modos atravs dos quais eles se apresentam e se relacionam com outros elementos e procedimentos no contexto da
performance, como a melodia, o acompanhamento, as tcnicas de execuo dos instrumentistas etc. Isso se justifica
na medida em que as anlises convencionais, que isolam e tomam um determinado acorde como se ele estivesse em
estado fixo e no como em processo, ou seja, relacionando-se constantemente com mltiplos elementos, contribuem
para a atomizao da compreenso de uma obra musical, bem como para a construo de hierarquias, as quais
elegem, por exemplo, acordes mais importantes que outros em funo da complexidade apresentada por sua
estrutura vertical.
136
por sua vez, emprega o rasgueado, o arpejo e, ao se aproximar da entrada da seo A, as cordas
simultneas - quando as cordas so tocadas ao mesmo tempo e de forma independente por cada
dedo da mo direita. Essas variaes so recorrentes nas performances do Trio Surdina,
incluindo-se aqui o acordeon. Alm de revelar o apuro tcnico dos msicos, esse aspecto um
ndice do conhecimento que os integrantes do conjunto possuam acerca das diversas formas de
tornar uma performance mais dinmica, ainda que a formao instrumental fosse bastante
reduzida. Alis, a entrada gradativa dos instrumentos - primeiro o contrabaixo, depois o acordeon
j no incio da seo A - no deixa de reforar essa dinmica, apontando tambm para o senso de
forma e proporo dos instrumentistas.
As Introdues do Trio Surdina so momentos em que se podem constatar estruturas
previamente combinadas e relativamente fixas, as quais remetem execuo de arranjos
escritos. Isso se verifica tambm, por exemplo, no samba Inquietao, de Ary Barroso, presente
no disco Trio Surdina e Orquestra Lo Peracchi (M-008, 1953), LP dedicado produo do
clebre compositor de Aquarela do Brasil. Embora o ttulo sugira a parceria entre o conjunto e
a orquestra do arranjador Lo Peracchi, suas atuaes se encontram divididas: no lado A, ouve-se
apenas o Trio Surdina; no outro, a Orquestra Lo Peracchi. No foi possvel descobrir a razo
exata dessa separao. Como os discos foram lanados alguns meses aps as gravaes,
provvel que Nilo Srgio tenha tomado tal deciso ao constatar que os quatro fonogramas, cuja
unidade era garantida pelas composies de Ary Barroso, poderiam integrar um nico trabalho,
sendo, no entanto, insuficientes para um LP. Da a incluso, na face B, da orquestra de Lo
Peracchi.309
309
Essas mesclas, que podem soar um tanto foradas para os ouvintes mais exigentes, no eram to incomuns
nos anos 1950. Graas ao novo processo de produo de disco, que introduziu a gravao em fita magntica, tornouse possvel acrescentar a posteriori outros fragmentos a um mesmo fonograma. Isso foi realizado, por exemplo, no
LP Garoto Revive em Alta Fidelidade (Odeon, 1957), lanado dois anos aps a morte do multi-instrumentista
Garoto. Na ocasio, foram encontradas fitas antigas que o msico havia gravado na Odeon, em meados de 1955, com
o intuito de testar alguns equipamentos isso ocorreu pouco antes de seu falecimento. Uma vez encontradas pelo
diretor Alosio de Oliveira, em 1957, decidiu-se por seu lanamento. Como a durao das faixas era bastante
reduzida - a maior parte no passava de um minuto -, foi inserido um acompanhamento orquestral, ento elaborado e
conduzido por Lo Peracchi, estendendo consideravelmente a durao dos fonogramas. Sobre esse episdio, ver:
CABRAL, Srgio. No Tempo de Ari Barroso. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1993. p. 366; Sobre o estudo
musicolgico desses fonogramas, ver: VICENTE, Rodrigo Aparecido. O erudito e o popular na produo do
violonista Garoto. 68 f. Relatrio Final de Iniciao Cientfica - Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2010.
137
310
310
Como se sabe, a escrita convencional do violo pressupe sua transposio para a oitava superior em relao ao
que realmente est soando. Sendo assim, se a sua parte fosse registrada em som real no fragmento em questo
(exemplo 2), sua escrita seria idntica do acordeon.
311
Para esta anlise, consultaram-se as seguintes gravaes: Silvio Caldas e Orquestra Simon Bountman (Odeon,
1935) e Orlando Silva (Copacabana, 1953). Ambas podem ser ouvidas no acervo musical do Instituto Moreira Salles:
http://ims.uol.com.br/.
312
A partitura dessa composio integra o songbook do violonista Garoto. Ver: BELLINATI, Paulo. The Guitar
Works of Garoto, vol. 1. San Francisco: GSP, 1991. p. 26-27. Vale conferir ainda a frase de carter virtuosstico
presente no compasso 8 do choro Jorge do Fusa, cuja partitura integral se encontra no segundo volume dessa
mesma coletnea editada por Paulo Bellinati (p. 30-31).
313
BARBOSA, Valdinha & DEVOS, Anne Marie. op. cit. 1984. p. 15 e ss.
138
139
inclusive por sua atuao ao lado do violinista francs Stphane Grappelli (1908-1997)314 - cuja
sonoridade, alis, foi por vezes identificada com a do Trio Surdina315 -, Django Reinhardt
emprega em diversas performances a escala de tons inteiros ou acordes formados com as notas
que a estruturam.
Outro procedimento recorrente nos fonogramas desse guitarrista a execuo de
escalas cromticas, nas formas ascendente ou descendente, por meio de figuras rtmicas de curta
durao (fusas e semifusas), revelando o virtuosismo do seu estilo interpretativo.316 Alis, na
partitura anterior (cf. o exemplo 2), verifica-se que Garoto lana mo do mesmo procedimento
logo aps a progresso inicial. Assim como o seu contemporneo, o violonista brasileiro faz uso
extensivo das escalas cromticas virtuossticas, enfatizando seu apuro tcnico. A imagem
seguinte fornece mais uma amostra desse recurso (cf. o compasso 22 do exemplo abaixo),
presente num dos fonogramas do LP dedicado a Ary Barroso:
Exemplo 3: Compassos que precedem o incio da seo B do samba Risque (Ary Barroso).
314
140
141
Ao contrrio dos casos discutidos anteriormente, o andamento desta Introduo fixo - est
localizado por volta de 60 bpm (batidas por minuto). O acordeon permanece no
acompanhamento, assumindo, grosso modo, a funo de sustentao dos acordes que formam a
progresso central. Sua atuao permanece num plano secundrio, criando uma espcie de fundo
harmnico na regio mdia - carter que acentuado tanto pela dinmica em pianssimo (pp),
quanto pelos movimentos mnimos na conduo de vozes dos acordes no decorrer da progresso,
os quais raramente ultrapassam o intervalo de segunda maior. O contrabaixo, por sua vez,
tambm cumpre a funo de acompanhamento nesta passagem. A linha meldica criada por
Vidal se limita execuo das fundamentais dos respectivos acordes, variando apenas sua
figurao rtmica.
Uma atividade rtmica e meldica mais intensa verificada apenas no pentagrama do
violo. Garoto elabora sua interveno a duas vozes, formando intervalos de teras. Nos
compassos 1 e 3, o par meldico no se distancia muito das estruturas dos acordes subjacentes, a
saber, C (I) e Ebm7 (bIIIm7). Por outro lado, nos compassos 2 e 4, a frase de carter virtuosstico
construda por alguns dos intervalos pertencentes escala octatnica, conhecida tambm como
escala diminuta - composta pela fundamental e, a partir dela, segunda maior, tera menor, quarta
142
justa, quinta diminuta, sexta menor, stima diminuta e stima maior. A progresso harmnica
nesses compassos formada pelos acordes de Dm7 (IIm7) e G7 (V7). Considerando-se a
fundamental da escala diminuta as notas R, para Dm7, ou Sol, para G7 - que ir resultar na
escala dominante-diminuta (ou dom-dim), uma simples inverso da forma anterior -, observa-se
que em ambos os casos as notas que compem a frase vo coincidir com a estrutura octatnica.
importante ressaltar as extenses geradas a partir do emprego da escala diminuta
sobre os acordes citados acima, ainda que suas duraes breves impea que o estudioso as
identifique enquanto notas constituintes (ou estruturais) desses acordes. No obstante, vale
conhecer as extenses geradas: sobre Dm7, obtm-se a segunda maior, quarta justa, quinta
diminuta, sexta menor, stima diminuta e stima maior; sobre G7, a segunda menor, quarta
aumentada e sexta maior. No foi possvel encontrar um caso anlogo em outras verses da
poca.317 Por se tratar de uma cano popular de carter romntico e intimista, a presena de
recursos relativamente sofisticados, tcnica e esteticamente falando, confere certo grau de
tenso performance e composio de Dorival Caymmi, ao mesmo tempo que as valoriza em
funo do carter moderno ou de novidade que so passveis de assumir.
***
Uma vez discutidas algumas Introdues do Trio Surdina, cabe retomar a anlise de
Ternamente. Nesta, o segundo aspecto que se destaca a relao harmonia-melodia (cf. o
exemplo 5).
317
Foram consultadas as gravaes de Dorival Caymmi (Odeon, 1952), Dick Farney e Orquestra Lrio Panicalli
(Sinter-Capitol, data indefinida), Nozinho (Copacabana, data indefinida) e Erwin Wiener (Odeon, 1957). Os
fonogramas com datas indefinidas possuem qualidade sonora equivalente a dos outros lanamentos, o que nos
permite inferir que foram registrados em meados da dcada de 1950. Todos podem ser ouvidos no site do Instituto
Moreira Salles: http://ims.uol.com.br/.
143
144
318
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 314.
145
Exemplo 6: Incio da seo A do samba-cano Duas Contas (Garoto). O acordeon no foi transcrito aqui em
virtude da intensidade excessivamente baixa da execuo de Chiquinho. No entanto, percebe-se que o instrumentista
procurou criar uma espcie de fundo harmnico, a exemplo do ocorrido em No tem soluo (cf. o exemplo 4),
sustentando os acordes por meio de figuras rtmicas de longa durao (semnima e mnima) e conduzindo suas vozes
atravs de movimentos mnimos.
146
319
Ao transcrever este samba-cano, optou-se pela diviso binria (2/4) na escrita de sua conduo rtmica. Isto
porque o contrabaixo se ope, neste caso, figurao comumente observada no bolero e em outros sambas-canes,
que se apoia em trs acentos mais regulares - nos tempos 1, 3 e 4, isto , considerando-se um compasso quaternrio com uma nfase no primeiro. Em Duas Contas, ao contrrio, os acentos se encontram simetricamente divididos em
dois tempos, geralmente precedidos por figuras (notas) de curta durao - semicolcheia, para o compasso binrio, ou
colcheia, para o compasso quaternrio -, aproximando-se, portanto, mais do samba que do bolero.
147
320
Esses resultados apenas reforam uma percepo igualmente compartilhada por Z Menezes, msico que atuou ao
lado dos integrantes do Trio Surdina em diversas ocasies: O Faf era maravilhoso (...) O Faf no era um violinista
de tocar na estante. O Faf era aquele cara (...) de bossa, quer dizer, ele era verstil, de improvisos. Ele improvisava
bem, tocava bem. Quer dizer, ento, mas ele no era aquele leitor... Ele era um solista de violino popular. Solista
popular, com muito gosto. (Cf. entrevista com Z Menezes no CD em anexo).
148
Exemplo 7: Fragmento da terceira exposio do tema. A melodia principal executada pelo violino.
149
321
321
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca, Seo Nacional. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 918, 9 de maio
de 1953. p. 63.
150
Para alm de uma tentativa de contornar os problemas impostos pelas condies tcnicas dos
estdios brasileiros dos anos 1950 - preocupao que, diga-se de passagem, revela um grau
elevado de autoconscincia do compositor e arranjador ante o seu contexto de atuao -,
permanece implcito o fato de que a sua concepo esttico-musical no se coadunava, ao menos
do ponto de vista tecnicista, com os padres interpretativos ento vigentes no campo da msica
popular, os quais sofriam de excessos. Parece que a limpeza nos arranjos acabou por se
tornar um aspecto distintivo da Bossa Nova, um signo de modernidade e bom gosto.
Parafraseando a crtica ao artista plstico Aldemir Martins citada anteriormente,
pode-se dizer que Jobim tambm estava procura da difcil simplicidade da forma tanto
pelo lado tcnico como pelo sentido esttico. No entanto, igualmente significativa a meno ao
suposto afastamento que o padro interpretativo dessa expresso musical representou em
relao ao samba, ao passado, tradio, enfim, fato que chegou a ser visto como um pecado
por alguns agentes alinhados ao nacionalismo de esquerda como, por exemplo, o jornalista Jos
Ramos Tinhoro. Ao hesitar, ainda que ironicamente, entre o pecado e a qualidade, Tom
Jobim mostra que no permaneceu inclume s disputas simblicas suscitadas entre as dcadas
de 1950 e 1960 no campo da msica popular brasileira, perodo em que dicotomias como tradio
x modernidade, nacional x internacional, autntico x comercial parecem ter aflorado com maior
vigor entre setores da intelligentsia.
Sem embargo, alguns dos elementos e procedimentos que seriam consagrados pelo
estilo bossa novista so tambm constituintes da sonoridade do Trio Surdina. Afinal, a remisso
conteno no se restringe ao nome do conjunto. Suas performances revelam uma inter-relao
particular entre os instrumentos no que se refere conduo rtmico-harmnica, interpretao da
melodia principal, contracantos, tecido sonoro etc., em que a espontaneidade no resulta em
322
151
3.2.2 Risque
Outra performance que encerra uma interao significativa entre os msicos do Trio
Surdina a reinterpretao do samba-cano Risque (Ary Barroso), apresentada em verso
instrumental pelo conjunto no LP Trio Surdina e Orquestra Lo Peracchi. Essa composio
alcanou um sucesso expressivo na voz de Linda Batista (RCA Victor), em 1953, embora tenha
sido gravada e lanada originalmente pela cantora Aurora Miranda, no ano anterior.325 Um
323
PASSOS, Claribalte. Disc Jockey Carioca. Revista Carioca, Rio de Janeiro, n 917, 2 de maio de 1953. p. 62.
Tomamos de emprstimo aqui termos empregados pela sociloga Santuza Cambraia Naves em seu estudo sobre a
Bossa Nova e Tropiclia. Ver: NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova Tropiclia: conteno e excesso na
msica popular. Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v.15, n.43, junho de 2000.
325
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 298.
324
152
detalhe que chama ateno o fato de que o acompanhamento desse registro fonogrfico fora
realizado pelo prprio Trio Surdina, aos quais se somaram um piano, um contrabaixo e uma
percusso. Embora no figurem nos crditos do disco, o padro do estilo interpretativo do
conjunto facilmente identificado, haja vista, por exemplo, os contracantos do violino de Faf
Lemos, que explora diferentes registros, golpes de arco etc.
A temtica da letra desse samba-cano (cf. tabela 2) vai ao encontro do que se ouvia
nos chamados sambas-de-fossa ento em evidncia no meio fonogrfico da poca, os quais
manifestavam o sofrimento de um sujeito que enfrenta as consequncias de um amor
fracassado - sentimento que, alis, corroborado pela tonalidade menor da cano. O desejo do
narrador seguir novos caminhos, buscar outros carinhos, a fim de superar o inferno
causado pela ruptura da relao amorosa. Entretanto, ainda que procure esquecer o passado, o
sofrimento acaba imperando e ele como que fatalmente conduzido aos copos de um bar, o
lugar-comum por excelncia do estilo samba-de-fossa.
153
326
326
ZAPATA, Rafael Castillo. Fenomenologa del bolero. 2 ed. Caracas: Monte Avila Editores, 1991. p. 132-133.
154
Exemplo 8: Primeira exposio da seo A de Risque. A melodia principal executada pelo acordeon.
155
Lembrando que, nesse confronto entre o acordeon e o violo, est-se levando em conta que o instrumento de
cordas se encontra escrito uma oitava acima do som real.
156
157
coincidem, alis, com a linha meldica do acordeon. Dito de outra maneira, ambos os
instrumentistas concluem da mesma forma e em oitava, passando pelas notas R, R bemol e D,
sendo esta a tera menor (b3) do acorde de resoluo (Am). A ligeira diferena entre suas
intervenes, nesse instante, fica por conta das figuraes rtmicas, pois, embora se assemelhem,
o violo apresenta fusas, enquanto que o acordeon se baseia em tercinas de fusas.
158
na voz aguda secundada por blocos de acordes. Em Risque, o caminho que Garoto constri se
baseia, na maior parte, em intervalos de segunda, tanto na melodia quanto na conduo das vozes
internas dos acordes, raramente ultrapassando distncias superiores a uma tera maior. No
tocante ao movimento dos acordes, a interveno do violonista pouco se afasta da progresso
harmnica subjacente, a saber, Dm - Em7(b5) - A7. E quando as notas da melodia so
confrontadas com as estruturas dos acordes, verifica-se a passagem por extenses como a nona
maior (para o Dm) e a quinta aumentada (para o A7).
Mas o aspecto que merece ser destacado nesse contexto o carter sincopado da
interveno de Garoto e, principalmente, o fato de o violino reforar esse carter ao construir uma
linha descendente que caminha por intervalos de segunda, articulando-se com o violo. Embora
suas melodias no sejam idnticas, ambas sublinham notas estruturais dos acordes em alguma
medida - no caso de Faf, constata-se a tera menor de Dm (nota F), a stima menor de Em7(b5)
(nota R) e a tera maior de A7 (nota D sustenido), incidindo sempre em notas de longa
durao.
Alguns elementos dessa composio tonalidade menor, dissonncias, notas de longa
durao etc. - contribuem para que a densidade emocional intrnseca cano de Ary Barroso
seja acentuada, principalmente se se considerar, por exemplo, a verso de Linda Batista, cuja
interpretao vocal explora com vigor o prolongamento das vogais e a intensidade da emisso
sonora. A performance do Trio Surdina, por outro lado, permanece num registro intermedirio,
mais suave e intimista, raramente ultrapassando a dinmica mezzo forte. Os nicos instantes em
que isto se verifica se concentram nas duas exposies da seo B, momento em que se acentua,
no prprio original, a dramaticidade da composio - quando se ouve os versos Mas se algum
dia, talvez, a saudade apertar// No se perturbe, afogue as saudades nos copos de um bar. Na
reinterpretao do conjunto, essa expressividade valorizada pelos solistas (acordeon e violo,
respectivamente), os quais passam dinmica forte. Contudo, mesmo nessas situaes, percebese que o acompanhamento rtmico-harmnico pouco se altera em termos de intensidade, bem
como na construo do tecido sonoro que d suporte aos solistas, visto que h sempre um
instrumento executando acordes, em dinmica piano ou mezzo piano, enquanto os outros se
limitam a preencher, com notas de apoio, os breves espaos da melodia principal.
159
160
161
162
segundo tempo a estrutura gerada pelo arpejo. Alm disso, a exemplo do caso anterior, cada
instrumentista constri seu prprio caminho, ou seja, no h dobramentos meldicos em sentido
estrito, dado que aponta, mais uma vez, para a espontaneidade da performance, situando-a no
campo do fluido, na fronteira entre o escrito e o improvisado.
Note-se que esses procedimentos ocorrem sempre num espao de tempo muito curto
e de modo sempre dinmico, indo ao encontro do que se identificou em Ternamente. A anlise
da reinterpretao de Risque ilustra tambm a relativa ausncia de conflitos entre as funes
e articulaes dos instrumentos encarregados do acompanhamento, tanto o harmnico (acordes)
quanto o meldico (contracantos). Um confronto entre os compassos 17 e 19 da partitura anterior
pode ilustrar essa constatao: no primeiro caso, Garoto e Chiquinho do Acordeon percorrem, em
essncia, as notas do acorde de F (bIII), iniciando a interveno no mesmo sentido (ascendente),
embora apenas o segundo instrumentista continue a frase em direo contrria durante o tempo 2,
pois o violonista opta por sustentar a estrutura harmnica gerada pelo arpejo executado no
primeiro tempo; j no compasso 19, observa-se o movimento oposto, ou seja, o acordeon
permanece na sustentao harmnica no tempo 2, concedendo ao violo o espao para concluir a
frase em sentido descendente. Em ambos os casos no h uma sincronia exata entre as estruturas
meldico-harmnicas executadas pelos msicos. No entanto, tampouco se verifica a ocorrncia
de dobramentos que estariam incorretos do ponto de vista terico-musical. Cabe destacar ainda
o fato de o acordeonista repousar na sexta menor (b6) do acorde de Dm (compasso 19),
conferindo um grau razovel de tenso passagem como um todo, bem como a concomitncia
rtmico-meldica entre o violo e o contrabaixo na transio entre os compassos 19 e 20 (cf. as
notas circuladas).
Todos os pontos comentados at aqui revelam a inter-relao sui generis entre as
performances de cada instrumentista do Trio Surdina, aproximando-se muitas vezes da
sonoridade dos conjuntos regionais de choro em funo, por exemplo, da recorrncia de
contracantos nas mudanas de acordes, procedimento orientado mais pela lgica prtica e
intuitiva que pelas leis terico-musicais. No menos significativos so os momentos em que
alguns desses msicos coincidem nas pausas e repousos, a fim de dar relevo a uma interveno
especfica. Na partitura anterior (exemplo 10), esse procedimento pode ser visto no ltimo
compasso, quando o violo realiza a transio para a seo B por meio de uma escala cromtica
163
ascendente, cuja execuo assume um carter virtuosstico, dada a brevidade das figuras rtmicas
que compem a frase. Alis, este fragmento fora mencionado pginas atrs (cf. o exemplo 3)
como uma demonstrao do apuro tcnico dos integrantes do conjunto. No caso atual,
entretanto, destaca-se a simultaneidade dos espaos concedidos pelo violino, acordeon e
contrabaixo durante boa parte do compasso, fazendo com que a ateno do ouvinte se concentre
no violonista, no por acaso, o responsvel pela melodia principal da prxima seo.
Uma srie de mudanas marca este novo momento da performance (cf. o exemplo
11): Faf Lemos retoma o violino e atua no preenchimento harmnico, lanando mo do tremoli
de arco em boa parte desta seo, sublinhando os acordes por meio de notas que lhes so
estruturais; o violo, conforme j se adiantou, assume a melodia principal, executando-a na
verdade com o apoio de acordes, maneira da tcnica jazzstica do chord-melody; o acordeon,
por sua vez, cria uma espcie de fundo harmnico, sustentando as estruturas verticais atravs
de figuras de longa durao, priorizando os movimentos mnimos nas condues de vozes. Essas
mudanas de funes j vinham, at certo ponto, sendo preparadas desde a seo anterior, na
medida em que o violo se concentrava no aspecto propriamente meldico da harmonia e o
acordeon, ao contrrio, abandonava aos poucos a execuo dos arpejos em favor da sustentao
dos acordes (cf. os compassos finais do exemplo 10).
Tais procedimentos atenuam o carter de transio entre as sees, apontando assim
para o esforo de manuteno da unidade da performance. Em outras palavras, a construo do
tecido sonoro, as escolhas e a ordenao das funes dos instrumentos em cada uma das sees
da msica, bem como os recursos tcnico-interpretativos de que lanam mo os instrumentistas
corroboram o aspecto anticontrastante da sonoridade do conjunto.
Essa caracterstica pode ser notada tambm nos momentos em que os
acompanhadores dialogam com o solista atravs de contracantos. Ou ento, quando se ouve
concomitncias rtmicas, meldicas e harmnicas, conforme ilustram as atuaes do violino,
acordeon e contrabaixo no fragmento seguinte (exemplo 11). Note-se que, entre os compassos 23
e 25, esses instrumentos coincidem ritmicamente, reforando os tempos fortes do compasso
binrio; alm disso, verifica-se a ocorrncia de movimentos contrrios entre o violino e o
contrabaixo, procedimento que se altera entre os compassos 27 e 29, ocasio em que ambos
estabelecem movimentos paralelos.
164
Exemplo 11: Segunda exposio da seo B de Risque. A melodia principal executada pelo violo.
165
***
Diante desses resultados, cabe retomar uma discusso iniciada pginas atrs, quando
se afirmou que os momentos emocionalmente mais densos de Risque se concentram na seo B
da composio, em que tudo se acaba nos copos de um bar. Observando o pano de fundo
contido e suave criado por Chiquinho do Acordeon e, em especial, a funo de preenchimento
harmnico assumida por Faf Lemos por meio do tremoli de arco, em dinmica piano e na regio
grave do violino, tem-se um enfraquecimento significativo do teor melodramtico associado a
esta cano de Ary Barroso, dado o sentido anticontrastante que esse conjunto de procedimentos
imprime sonoridade. Alis, esse mesmo recurso empregado pelo violinista na reinterpretao
de um dos maiores sucessos dos anos 1950: Ningum me ama, composio de Antonio Maria e
Fernando Lobo lanada pela cantora Nora Ney, em 1952 (RCA Victor).
Para alguns estudiosos, essa msica o paradigma do chamado samba-de-fossa,
denominao provavelmente atribuda em virtude da interpretao dramtica de Nora Ney, da
orquestrao de carter grandiloquente e, claro, da letra um tanto quanto depressiva que a
acompanha: Ningum me ama, ningum me quer// Ningum me chama de meu amor// (...) E
hoje, descrente de tudo, me resta o cansao// Cansao da vida, cansao de mim// Velhice
chegando, e eu chegando ao fim.328 Estes ltimos versos, diga-se de passagem, so cantados em
sentido descendente, ou seja, o caminho meldico da composio refora a dramaticidade e o
sentimento de derrota intrnsecos letra, bem como a repetio das palavras cansao e
chegando, o que provoca a sensao de alargamento (ou distenso) do tempo e se o tempo, no
caso, de sofrimento, esse recurso o apresenta como interminvel. Em suma, como se esse
momento da composio estivesse representando o declnio da prpria vida daquele que canta.
Da a eficcia esttica da cano.
328
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 293.
166
Exemplo 12: Compassos iniciais da seo A do samba-cano Ningum me ama. A melodia principal executada
pelo acordeon.
167
Exemplo 13: Fragmento do interldio instrumental de Duas Contas, presente no disco de estreia do Trio Surdina.
Neste caso, o violino sustenta as stimas dos acordes do tipo m7 e as teras maiores dos acordes
dominantes, enquanto o violo procede na conduo rtmico-harmnica atravs de figuraes
entrecortadas por sincopes. J o acordeon se encarrega da melodia principal, sem deixar de
adicionar diversas notas de passagem, como se estivesse improvisando sobre o tema de Duas
Contas. Ao contrrio do que se constatou em Ningum me ama, a interveno de Faf Lemos
no se baseia nas extenses dos acordes subjacentes, mas em notas que lhes so estruturais.
Todavia, isso se deve, provavelmente, ao fato de a melodia principal j apresentar algumas
329
Ibidem, p. 314; O arranjo para violo solo de Duas Contas pode ser visto no songbook de Garoto, em que
classificada, anacronicamente, como bossa nova, e no como um samba-cano a composio de 1952, e o
termo Bossa Nova seria associado a um tipo especfico de msica por volta de 1959. Ver: BELLINATI, Paulo. The
Guitar Works of Garoto, vol. 1. San Francisco: GSP, 1990. p. 9-10.
168
Exemplo 14: Progresso harmnica executada pelo violo em Duas Contas (compassos 27 e 28). A parte do
acordeon no foi reproduzida nessa partitura em funo da intensidade excessivamente baixa da execuo de
Chiquinho, fato agravado pela m qualidade da gravao.
169
***
170
171
certa tenso a alguns fragmentos. No entanto, esse tipo de tenso (a musical, no verbal), ao
contrrio da outra (a emocional, expressada verbalmente), era at bem-vinda na opinio de alguns
crticos, dado o carter moderno que ento podia assumir, conforme se identificou no sambacano Duas Contas - que antecipa caractersticas da Bossa Nova.330
Num sentido mais amplo, as ambivalncias musicais identificadas durante as anlises
dos fonogramas so mais bem compreendidas quando interpretadas luz das ambivalncias
relativas trajetria e posio social dos msicos do Trio Surdina. Numa fase de
profissionalizao difcil do artista, um dos traos comuns apresentados por esses instrumentistas
a experincia que adquiriram no trnsito constante entre tradies artsticas dotadas de
racionalidades distintas: a da msica de concerto, a qual exige o conhecimento da teoria e escrita
musical, a capacidade de leitura etc.; e a da msica popular, mais prxima da tradio oral, em
que opera a lgica da improvisao, dos modos prtico, intuitivo, fluido e espontneo de
assimilao e criao. As figuraes nas quais os integrantes do conjunto estiveram inseridos
entre as dcadas de 1930 e 1950, como o cenrio formado pelas primeiras gravadoras e emissoras
de rdio instaladas no pas, por exemplo, a proximidade e a inter-relao entre artistas oriundos
dos universos erudito e popular eram intensas, resultando em apropriaes e redefinies
recprocas por parte desses agentes. Em poucas palavras, a prpria estrutura social desse contexto
era ambivalente, medida que conjugava estgios e experincias distintas do processo de
formao histrica de uma sociedade capitalista perifrica e de colonizao europeia.
Contudo, ainda que a hierarquia de legitimidades e gostos no campo musical se
fizesse presente nesse processo scio-histrico, como que traduzindo no plano simblico os
conflitos sociais inerentes a uma sociedade de classes hierarquizada, assumindo diferentes
matizes em cada poca e espao sociocultural, difcil afirmar que havia uma esfera erudita
consolidada no Brasil, sobretudo se se tomar como modelo o contexto europeu.331 Isto , a
hierarquizao evidenciada de certa forma pelos valores e representaes intrnsecos aos
discursos orientados pelos ideais de modernizao e civilizao, por exemplo, os quais
preconizavam a necessidade de um tratamento digno e elegante msica popular brasileira,
no implicava a existncia de uma ciso rgida e clara, na conscincia dos prprios agentes, entre
as msicas sria e popular. Conforme se discutiu no captulo anterior, um dos fatores que
330
331
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 314.
ZAN, Jos Roberto. op. cit. 1997. p. 78-83.
172
reforam a porosidade entre essas fronteiras a relao estreita e complexa entre, de um lado, os
iderios nacionalistas, que se voltavam ao elemento popular e tradio como resposta aos
estrangeirismos e s modas efmeras e, de outro, os projetos esttico-ideolgicos
modernizadores e civilizadores, orientados em grande medida pelos modelos dos pases
avanados. Esse problema secular e perpassa a histria cultural brasileira, balizando de
inmeras maneiras e em diferentes graus prticas e discursos. Isso pode estar ligado ainda a uma
caracterstica singular dos anos 1930 a 1950, quando diferentes grupos e classes se reconheciam e
se diferenciavam sob a tica da nao, um filtro ideolgico comum que parece se pulverizar
com os avanos da modernizao e da reestruturao da sociedade de classes.
Nacional e internacional, antigo e moderno, espontneo e organizado, comercial e
autntico... Esses pares de oposio reforam a ambivalncia da sonoridade e da produo do
Trio Surdina de um modo geral, mostrando que algumas representaes em circulao no
imaginrio social de determinados grupos se traduziram em criaes artsticas que, por sua vez,
cumpriram a funo de tornar evidentes esses conflitos, impasses e contradies.
No entanto, se por um lado a msica do conjunto permanece marcada por essas
dicotomias e circunscrita a esse contexto scio-histrico (o campo musical popular do Rio de
Janeiro das dcadas de 1940 e 1950), por outro, seu estilo interpretativo peculiar, pautado pelo
carter ldico e improvisado, acaba assumindo uma importncia especial em meio pluralidade
de referncias esttico-ideolgicas que, embora respondam pelo aspecto dinmico e pulsante da
atividade e produo artsticas, podem restringir essas obras a um conjunto de padres, a um
tempo e a um espao demasiado estreitos.
Dito de outra forma, enquanto obras de arte e, portanto, algo que sublima ainda que
no reproduza ou reflita de modo imediato fenmenos histricos e sociais ligados ao e ao
pensamento humanos de um espao e de uma poca -, as performances do Trio Surdina,
consideradas naquilo que concentram de mais espontneo e improvisado, transcendem at certo
ponto os limites impostos pelos modelos estticos e conceituais mais rgidos e irredutveis,
conforme se apresentavam nos discursos e conflitos simblicos dos anos 1950. Embora a
ludicidade e o impulso experimentador intrnsecos ao estilo interpretativo do conjunto sejam em
certa medida anulados pelo prprio fato de integrarem um produto industrializado que visa
repetio uma mercadoria que, como tal, objetiva invariavelmente a prpria reproduo e de
173
174
***
relaes mais do que o cultivo duradouro. A insistncia de boleros e sambas-de-fossa na temtica do sofrimento
amoroso no passa de um modo especfico de permanecer na zona de (des)conforto de um problema cujo objeto
apenas parece ser evidente quele que o enuncia (a perda do ente amado). O que esse repertrio oculta,
possivelmente, so problemas situados numa camada mais profunda da sensibilidade e pensamento humanos na
modernidade, ento atados a um momento grave das transformaes estruturais por que passaram a sociedade
brasileira e, claro, muitas sociedades latino-americanas em meados do sculo XX, as quais conheceram a transio
abrupta entre os modos de vida rural e urbano-industrial. Tradio e modernidade, cultura popular e cultura de
massa, famlia nuclear e individualismo, tempo estendido e fragmentao da experincia temporal... Resumindo,
essas dicotomias indissolveis orientaram de maneiras distintas as percepes e criaes estticas que marcaram as
dcadas de 1940 e 1950, moldando a sensibilidade e o pensamento humanos, ora se manifestando na forma de
resistncias ante as mudanas (folclorizao do samba e do choro; a postura egosta que leva ao aprisionamento do
indivduo no universo de problemas que ele prprio fomenta ou retroalimenta, conforme expressam muitos boleros e
sambas-de-fossa), ora na forma de tentativas de se alinhar ao impulso modernizador e promover mudanas
(tentativas de renovao das linguagens artsticas, via reelaborao dos materiais e incorporao de novos elementos
e procedimentos de estilo) - Em tempo: essas reflexes se baseiam no livro de Rafael Castillo Zapata,
Fenomenologia del bolero, bem como no estudo da filsofa Jeanne Marie Gagnebin a respeito dos modos e sentidos
da escrita sobre a perda, o trauma e o passado na modernidade, em que as noes freudianas de trabalho de luto e
melancolia so reavaliadas. Ver: ZAPATA, Rafael Castillo. op. cit. 1991; GAGNEBIN, Jeanne Marie. O que
significa elaborar o passado?. In: ___________. Lembrar escrever esquecer. 2 edio. So Paulo: Editora 34, 2009.
p. 103-105.
175
176
palavras, pode-se dizer que a tentativa de enrijecimento de formas musicais no deixa de ser uma
reao s mudanas nas formas de sociabilidade invariavelmente ocorridas no processo sciohistrico.
A referncia produo de msicos e compositores negros e mestios era constante
na Revista da Msica Popular, conforme apontam os textos e crnicas de Lcio Rangel, Srgio
Porto, Mariza Lira, Nestor de Hollanda, Claudio Murilo e Almirante. Este, alis, dedicava-se
tambm preservao dos inmeros gneros e estilos que marcaram a msica ligeira de
princpios do sculo XX, perodo em que vigorou no incipiente circuito do entretenimento sales, cinemas, cafs-cantantes, chopes-berrantes, teatro de revista etc. - manifestaes como a
valsa, a polca, a schottisch, a habanera, o maxixe, o tango brasileiro, o choro etc. Da as
frequentes menes e homenagens, em seu programa O pessoal da Velha Guarda, a artistas como
Ernesto Nazar, Chiquinha Gonzaga e Anacleto de Medeiros, por exemplo, que estavam mais
prximos do contexto urbano e de classe mdia do Rio de Janeiro. Todavia, Almirante e outros
agentes engajados na preservao desse passado musical pareciam negligenciar, talvez
involuntariamente, o carter cosmopolita e transnacional que aquele repertrio possua, conforme
aponta Cristina Magaldi em seu estudo sobre composies para piano que alcanaram
significativa repercusso na belle poque carioca.337
O peridico de Lcio Rangel e Prsio de Moraes promoveu uma srie de iniciativas
especificamente voltadas ao cultivo do folclore musical e da msica popular produzida pelas
camadas mais pobres da populao e nas regies mais afastadas da civilizao, (...) fonte de todo
o (...) patrimnio musical brasileiro.338 Dentre as principais, destacam-se a coluna Estes so
raros..., dedicada apreciao de fonogramas antigos, bem como a Antologia da Msica
Brasileira, que visava reunio do maior nmero possvel de registros que estavam fora de
circulao no mercado a fim de relan-los em novos volumes, gravados em discos long
playing de 12 polegadas, com slo (sic) e notas explicativas.339 Igualmente significativo o fato
fundamentado na teoria literria e na filosofia da linguagem, ver: NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. So
Paulo: Edies Loyola, 2013.
337
MAGALDI, Cristina. op. cit. 2009.
338
Antologia da Msica Brasileira. In: Coleo Revista da Msica Popular. op. cit. 2006. p. 49.
339
Como recorda Egeu Laus, num primeiro momento, as gravadoras dos anos 1950 destinaram os LPs de 12
polegadas para o registro de msica de concerto, que eram prensados em tiragens reduzidas em funo de sua baixa
procura, reservando os discos de 10 polegadas para a msica popular. Esse padro de produo seria alterado por
177
de que esses discos seriam vendidos de forma limitada a duzentos scios que pagariam Cr$
200,00 (duzentos cruzeiros) por LP, ou seja, seus idealizadores tencionavam reunir um grupo de
pessoas que no tivesse qualquer interesse comercial com esta iniciativa, mas to somente o de
adquirir grandes criaes de (...) msica folclrica e popular, poca inteiramente esquecidas
e pelas quais as grandes firmas gravadoras no se interessavam, dada a exiguidade do pblico
consumidor do gnero.340 Alm disso, as edies a que os estudiosos e interessados no que
havia de mais genuno e importante no terreno do folclore musical teriam acesso seriam
organizadas por uma comisso composta do musiclogo Prof. Mozart Arajo e dos crticos
Lcio Rangel e Jos Sanz.341
A retomada e a (re)inveno da tradio da msica popular brasileira nascida na era
da produo e circulao em massa dos produtos culturais no ficou restrita s prticas e
discursos de intelectuais da poca. Tendo em vista o potencial de mercado dessa tendncia,
inmeros lanamentos fonogrficos dos anos 1950 se dedicaram exclusivamente ao repertrio de
algum artista ou gnero que marcou a fase urea da msica brasileira. Nessa direo, o Trio
Surdina chegou a gravar LPs contendo apenas obras de compositores consagrados como Ary
Barroso, Dorival Caymmi e Noel Rosa, ou seja, trs dos principais protagonistas da chamada
poca de Ouro - construo simblica emergente entre as dcadas de 1940 e 1950. Com
exceo do compositor de Vila Isabel, falecido em 1937, os outros estavam em plena atividade
naquele perodo, embora o reconhecimento e prestgio que haviam adquirido no meio artstico
ainda estivessem fortemente associados aos seus antigos sucessos.
J o caso de Noel Rosa merece uma ateno especial. O interesse por suas
composies vinha aumentando desde o final da dcada de 1940, graas a iniciativas de pessoas
como Almirante, ex-integrante do Bando de Tangars que vinha realizando programas de rdio
em sua homenagem;342 e, claro, de Aracy de Almeida, cantora que acabou se consagrando
como a intrprete de Noel, haja vista o nmero expressivo de sambas do poeta da Vila que
ela registrou ao longo de sua carreira.
volta de 1957/58, quando se fixou o formato de 12 polegadas para todos os gneros. LAUS, Egeu. op. cit. 2005. p.
304-305.
340
Ibidem, p. 151.
341
Ibidem, p. 49.
342
Alis, Almirante lanaria, em 1963, uma importante biografia do compositor de Vila Isabel. Ver: DOMINGUES,
Henrique Foris (Almirante). No tempo de Noel Rosa: o nascimento do samba e a poca de Ouro da msica
brasileira. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1963.
178
343
SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. op. cit. 2002. p. 122.
179
Quando eu morrer,
No quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela
Quando eu morrer,
No quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela
Se existe alma,
Se h outra encarnao
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixo
Quando eu morrer,
No quero choro nem nada,
Quero ver raiar o samba
Ao romper da madrugada
(Refro)
(Refro)
No quero flores,
Nem coroa com espinho
S quero choro de flauta,
Violo e cavaquinho
No quero choro,
Nem coroas com espinho
S quero choro de flauta,
Violo e cavaquinho
(Refro)
(Refro)
Estou contente,
Consolado por saber
Que as morenas to formosas
A terra um dia vai comer.
(Refro)
No tenho herdeiros,
No possuo um s vintm
Eu vivi devendo a todos
Mas no paguei a ningum
(Refro)
Meus inimigos que hoje
Falam mal de mim
Vo dizer que nunca viram
Uma pessoa to boa assim.
Tabela 3: Letra do samba Fita amarela (Noel Rosa) em sua forma original e na verso do Trio Surdina.
180
181
182
344
representar a personagem, o espao e o tempo aos quais a temtica da composio de Noel Rosa
344
Sobre a noo de alegoria, ver: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e Narrao em Walter Benjamin. 2 edio.
So Paulo: Perspectiva, 2011. p. 32.
183
permanece circunscrita em outras palavras, uma forma diferente de dizer porque ligada agora
a outro espao, a outro tempo e, por consequncia, a outra concepo da figura do
malandro.
Embora as duas verses constituam transfiguraes musicais distintas de um mesmo
contedo (o malandro e o seu meio social), na reinterpretao do Trio Surdina que esse aspecto
se evidencia com mais fora, uma vez que o distanciamento histrico permitiu aos
instrumentistas do conjunto fazerem escolhas que acabaram redefinindo e reatualizando a forma
original, extraindo-lhe a maior parte do contedo potico no sem apresentar um novo tratamento
do material musical, constituindo uma representao centrada no plano instrumental, apontando
novas possibilidades estticas no mbito do samba e, em ltima instncia, da cano popular
comercial esta a sua relevncia histrica.
184
claro, o importante e papel decisivo desempenhado pelo cinema que, na poca, contava com
trilhas sonoras executadas ao vivo nas salas de exibio.
Neste item sero analisadas duas verses de Conversa de Botequim, a saber, a de
Noel Rosa (Odeon, 1935) e a do Trio Surdina (Musidisc, 1953). Acredita-se que este caso no
apenas reitera os resultados apresentados no estudo sobre o samba Fita amarela, como ainda
amplia o campo de sentidos revelado pelo cotejamento dos fonogramas. Resumindo, em
Conversa de botequim fica mais explcito o modo como cada interpretao traduz
musicalmente aspectos relacionados ao meio sociocultural e ao perodo histrico em que foram
produzidas. Isso porque essas performances so paradigmticas por tornarem mais evidentes
elementos e procedimentos musicais dotados de historicidade, portanto, de caractersticas que as
diferenciam no tempo e no espao e que, simultaneamente, apontam para mudanas mais amplas
ocorridas no processo de formao histrica e social do pas entre as dcadas de 1930 e 1950.
***
De incio, imprescindvel destacar a letra deste samba (cf. a tabela 4), marcada pela
diversidade de imagens e informaes a respeito do malandro e do ambiente do botequim,
constituindo uma espcie de cena cinematogrfica em que os elementos que compem o todo vo
sendo incorporados de modo fragmentado, formando ao final um painel rico e plural. A narrao
se d em trs estrofes relativamente longas e sem repeties de versos, tempo suficiente para que
o sujeito da narrao, o malandro que fala em primeira pessoa, expresse a sua bossa peculiar a
partir de um monlogo disfarado de dilogo estabelecido com o garom do botequim, embora
este no tenha voz na cena.
185
Tabela 4: Conversa de botequim (Noel Rosa e Vadico) em sua forma original e na verso do Trio Surdina.
186
187
e clulas sincopadas. Alm disso, fica claro nessa interpretao a chamada forma clssica do
samba dos anos 1930, dividido em duas partes de 16 compassos cada, com os centros tonais
fixados nas regies de tnica (parte A, localizada na tonalidade de Si bemol Maior) e
subdominante (parte B) as quais podem aparecer, em muitos casos, nos seus respectivos modos
relativos menores (cf. o exemplo 15).
A progresso harmnica central apresenta uma estrutura recorrente na histria do
samba, a saber, o ciclo de acordes formado pelos graus I VI7 II7 V7 (ou Bb G7 C7 F7,
no caso de Conversa de botequim), os quais ocupam, em geral, um tempo do compasso binrio
cada. O interessante, porm, que o incio das frases se d sempre em anacruse, incidindo no
segundo grau, ou seja, como se a exposio do tema comeasse em pleno desenvolvimento da
cano, caracterstica que refora o dinamismo e o movimento inerentes performance. A
resoluo no primeiro grau, em que este permanece soando por todo o compasso, ocorre, de fato,
a cada dezesseis compassos, isto , somente aps o trmino das sees A e B.
A estrutura dos acordes vai ao encontro dos padres mais comuns do samba e do
choro praticados nas dcadas de 1920 e 1930, revelando basicamente trades e ttrades, sem o
acrscimo de extenses, ainda que as inverses dos baixos sejam frequentes, contribuindo para
que determinados acordes assumam funes mais ambguas. Este o caso, por exemplo, do
Eb/G, o IV grau (maior) que, uma vez disposto com a tera maior no baixo (nota Sol), aproximase da sonoridade do Gm, o VIm grau (relativo menor).
O conjunto regional que realiza o acompanhamento na primeira gravao composto
pelos seguintes instrumentos: flauta, violo, violo de sete cordas, cavaquinho, pandeiro e pratoe-faca. importante ressaltar que todos tocam ao mesmo tempo durante a maior parte da
performance, dado que constitui uma das principais diferenas em relao reinterpretao do
Trio Surdina, conforme ser discutido adiante.
Alm de executar a melodia da Introduo e do final que, por sinal, idntica da
Introduo -, a flauta atua na elaborao de contracantos, tanto ao lado quanto nos espaos da
voz. Suas linhas consistem em variaes do tema principal, ora reproduzindo-o, ora sustentando
notas de apoio. O violo de sete cordas, por sua vez, bastante ativo nas baixarias. Embora no
coincida com as linhas da flauta, o fato de se situar no registro grave, oposto ao do instrumento
de sopro, acaba evitando eventuais conflitos meldico-harmnicos.
188
189
Exemplo 15: Exposio da Introduo e da seo A do samba Conversa de Botequim (Noel Rosa e Vadico),
conforme a gravao original (Odeon, 1935). A melodia inicial executada por uma flauta em d.
realizada neste caso pelo violinista Faf Lemos de maneira igualmente contida, porm, ainda
mais suave que a de Noel Rosa, no passam de elementos que participam, entre outros, da
construo de sentidos da cano.
A formao instrumental apresentada pelo trio , como se sabe, bastante econmica,
no se diferenciando tanto em termos quantitativos do conjunto regional que figura na primeira
verso. No entanto, a sonoridade concebida pela combinao entre violino, acordeon, violo,
contrabaixo e, no caso deste fonograma, da frigideira tocada com escovinha, afastam-se
consideravelmente da roupagem caracterstica do regional de choro, ou seja, o ambiente
coletivo das rodas de samba e de choro que a gravao original ainda capaz de remeter o
ouvinte desaparece por completo na releitura do Trio Surdina. Distante do clima festivo e
descontrado do botequim e do subrbio, o ambiente enfumaado da pequena boate da zona sul
carioca emerge como o espao social implcito na reinterpretao do conjunto.
Harmonicamente, no se verificam contrastes muito acentuados entre as duas verses
alis, o mesmo pode ser dito a respeito da melodia. O que chama ateno o acrscimo de
extenses nos acordes, sobretudo, no acompanhamento rtmico-harmnico realizado pelo
violonista Garoto as dcimas terceiras maior e menor, bem como a nona maior, so empregados
de modo extensivo nos acordes do tipo dominante (cf. exemplo 16).
191
Exemplo 16: Exposio da Introduo e do incio da seo A do samba Conversa de Botequim na verso do Trio
Surdina (Musidisc, 1953).
192
contrabaixo na base rtmica; na seo A, Faf Lemos assume a interpretao vocal, enquanto o
acordeon passa para o acompanhamento, executando-o por meio da sustentao de acordes e
eventuais arpejos, ao passo que o violo permanece no apoio rtmico-harmnico entrecortado por
sncopes e o contrabaixo na conduo meldica (e rtmica) no registro grave; ao iniciar a seo B,
Chiquinho do Acordeon assume a melodia principal, interpretando-a de maneira razoavelmente
livre e improvisada, sendo secundado por intervenes breves do violino, que emprega cordas
duplas em staccato em diversos momentos, sublinhando notas estruturais dos acordes subjacentes
violo, contrabaixo e percusso permanecem na funo de acompanhamento nesse instante.
Em suma, esse conjunto de procedimentos permite que o tecido sonoro e a dinmica
da performance apresentem variaes significativas, criando bastante interesse atravs das
interaes entre solistas e acompanhadores e das interpretaes do tema principal, como que
compensando a excluso de duas das trs estrofes que compem a letra da composio. O
resultado final uma sonoridade mais suave e intimista, ainda que a espontaneidade e
naturalidade intrnsecas verso original tenham sido mantidas.
Uma das principais consequncias do novo tratamento musical apresentado pelo Trio
Surdina a partir da reinterpretao de um samba da dcada de 1930 a relativizao da
hegemonia do contedo potico em relao ao plano instrumental. Conforme se adiantou
anteriormente, a representao do malandro e da sua personalidade sui generis, bem como a do
botequim na sua pluralidade semntica constituem, na verso do conjunto, elementos que
integram, entre outros, uma performance e uma sonoridade cuja nfase aponta para a linguagem
no verbal, isto , para o material propriamente musical. como se o distanciamento no tempo e
no espao em relao ao contexto scio-histrico sedimentado - de modo transfigurado - em
Conversa de botequim tivesse permitido aos msicos do Trio Surdina alterar a pessoa
gramatical deste samba; em outras palavras, se o protagonista do episdio jocoso que se passa
no botequim o malandro-narrador que fala em primeira pessoa, mostrando-se soberano na cena
em questo, a gravao do conjunto, registrada em 1953, parece propor uma releitura em terceira
pessoa desse mesmo episdio. Nesta, as mltiplas faces e a bossa tpica da personagem
retratada tolhida em favor das inter-relaes e variaes dinmicas estabelecidas pelos
instrumentistas no decorrer da performance.
193
Acho que j vi esse sujeito. Paro um pouco na porta do bar a observ-lo. (...) Sem
dvida, j o vi, no sei onde. Mulato alto, desempenado, magro se bem que forte. O ar
um pouco de arrogncia, um pouco de zombaria, um pouco de condescendncia
superior. Terno largo, bamboleante, autntico panam beige. (...) No seu passo
cadenciado e gil, aproximou-se da mesa, puxou uma cadeira com reverncia. (...)
Aguardou, com um pequeno sorriso, o garon que se aproximava e que se abaixou sobre
a mesa para tomar o pedido. Com voz pausada e muito bem audvel, o mulato pediu:
um cafezinho e um copo dgua bem gelada (...). Pronto! J sei onde vi esse sujeito.
Foi no samba de Noel Rosa e Vadico. No tinha dvida. Ali estava o personagem de
Noel com toda a sua folga. E, pela pinta, iria dar um espetculo completo. (...) Depois do
cafezinho e da gua gelada, haviam de vir as mais incrveis exigncias tais como palitos,
telefonemas para amigos de ambos os sexos, guardanapo, resultado do futebol, cigarro
inseticida, o diabo. E se o garon cometesse a imprudncia de ficar limpando a mesa,
numa atitude de flagrante insinuao, ele se levantaria, ofendido, e no pagaria a
despesa. Pois o garon no fez outra coisa. Limpou a mesa, pachorrento, e disse (...):
caf s em p! Esta informao bruta e totalmente inesperada para o mulato deixou-o
apalermado, como se no tivesse compreendido direito. (...) S ento passou a estudar o
ambiente, disfaradamente, enquanto acendia o cigarro. Mesas esquisitas equilibradas
milagrosamente sobre ps feitos de cano niquelado e com tampos de matria plstica
colorida. Cadeiras do mesmo tipo, cada qual de uma cor. (...) Junto ao balco da copa,
vrios banquinhos, parecidos com bancos de piano, porm, estupidamente altos e
tambm recobertos com o raio da matria plstica colorida. Enfim, um bar que at agora
s vira em cinema. Mancada! Na falta de outro gesto, pegou um cardpio da mesa ao
lado e passeou os olhos com falso interesse. Surpreendeu-se tambm com os nomes.
Puxa vida! Nem com um dicionrio trocaria aquilo em midos. No sabia como sair
daquela sinuca sem perder a classe, quando ento entrou no bar um casal tpico da
regio. O rapaz vistoso, queimado de praia, de sapatos esporte, cala fininha, bluso
idem e todo estampado escandalosamente, culos artsticos e escuros e topete. Sim,
senhor, topete! (...) O casal encomendou coisas daquele cardpio que o mulato no
conseguira ler. (...) Para a moa veio um sorvete policrmico servido numa jarra de
vidro. Para o rapaz veio um refresco de garrafa que ele passou a mamar, muito infantil,
por um canudo. O mulato estava derrotado. Via-se em sua cara que ele estava deslocado
naquele bar da zona sul. Sua bossa no podia funcionar naquele cenrio. Mesmo assim,
ainda manteve sua velha classe. Meteu entre os lbios um palito de fsforo, derrubou o
chapu verde sobre os olhos e levantou-se j, de novo, com alguma pose. Concedeu um
194
olhar de cima para o garon, fez uma meia volta aceitvel e gingou o passo para a rua.
Um nibus vinha chegando. Era exatamente o 104. Fez sinal. (...) Com uma corridinha
para trs, o mulato pegou-o em movimento, como convinha. E l se foi para Vila Isabel.
Ou melhor, voltou para a sua Vila Isabel.345 (Grifos nossos).
Prsio de Moraes, o autor da crnica, era um dos editores-chefes da RMP. Seu texto vai ao
encontro de uma tendncia verificada nas publicaes do peridico durante o tempo em que
permaneceu em circulao (1954-1956), a saber, a de homenagear, via crtica, conto, crnica,
entrevista, artigo ou relato pessoal, algum expoente da chamada poca de Ouro da msica
popular brasileira. Todavia, a narrativa acima ultrapassa a inteno comemorativa ou
memorialstica, traduzindo em certa medida uma transformao social e histrica por que
atravessou o pas naquele perodo, quando a vida sociocultural carioca ligada msica popular,
em cujo cerne figuravam o samba, o morro e o subrbio, foi se deslocando dos bairros perifricos
e do centro velho em direo zona sul, locus por excelncia das pequenas e sofisticadas boates e
dos grupos sociais pertencentes classe mdia (e mdia alta), bem como do samba-cano, do
sambajazz e da futura bossa nova.
Nessa criao literria, o narrador se posiciona enquanto observador externo da cena
que se passa na moderna lanchonete da zona sul, onde o mulato se v deslocado, haja vista
a quantidade significativa de informaes novas e desconhecidas que o ambiente, as pessoas, o
idioma e os cdigos do local lhes apresentavam. A narrativa em terceira pessoa sintetiza o
encontro entre o arcaico e o moderno, o antigo e o novo, bem como os conflitos e
contradies suscitados a partir desse choque de realidades e temporalidades distintas. A
novidade, no caso, fica por conta da posio do malandro nesse episdio, pois, de forma irnica e
um tanto quanto trgica, sua malcia, bossa e gingado tpicos, constituintes da sua
personalidade e comportamento - isto , alguns dos traos responsveis por sua fama e
autoridade no universo do subrbio e do botequim -, j no podia funcionar naquele cenrio.
como se, de repente, ele assumisse a condio de um estrangeiro que no consegue se
comunicar e tampouco se fazer entender no contato com o outro. Da o sentimento de derrota e
a necessidade de voltar para a sua Vila Isabel,
345
MORAES, Prsio de. Conversa de botequim. In: Coleo Revista da Msica Popular, Edio n.5, fevereiro de
1955. op. cit. 2006. p. 252-253.
195
Onde cadeira e botequim quer dizer conforto. Onde o cafezinho d direito a informaes
comerciais como o resultado do bicho, do futebol, das corridas de cavalos e de outros
animais. Onde o cafezinho d direito a couvert de gua gelada, palito, jornal e
guardanapo. Onde o garon tem cuidado com a sade, encostando a porta por causa do
sol ou de um golpe de ar. Onde, alm de tudo, o gerente seu e ele pode pendurar a
conta com dignidade. (...) [Pois] L (na Vila) quem se sentiria off-side era o casalzinho
cinematogrfico com suas roupas estranhas, seus sorvetes coloridos e refrescos de
criana. Sim, porque l a turma era francamente do cafezinho com conforto.346
Ibidem, p. 253.
NUNES, Benedito. Msica, Filosofia e Literatura. In: ____________. Crivo de Papel. 2 edio. So Paulo:
tica, 1998. p. 83.
348
WILLIAMS, Raymond. op. cit. 1979. p. 134.
349
Idem, ibidem.
347
196
informar as maneiras de sentir e pensar nas condies de experincia esttica de uma poca, j
que partem de um comum reservatrio de possibilidades expressivas gerais.
Os indcios de que a produo do Trio Surdina est ligada a uma estrutura de
sentimentos particular se tornaram evidentes a partir das anlises anteriores, haja vista as
afinidades entre a sua sonoridade e as expectativas e gostos de uma frao de classe que fez da
zona sul carioca e, em especfico, das pequenas boates noturnas seu espao de convvio social,
lazer e entretenimento. A esta estrutura de sentimentos permanecem ligados determinados modos
de percepo esttica e de pensamentos constitudos no mbito da msica popular e da indstria
fonogrfica, que podem ser traduzidos em termos de um novo ouvido social que emerge entre
1940 e 1950, alinhado no caso aos padres de sonoridade introduzidos pelos pequenos conjuntos
instrumentais e pelos LPs, bem como aos ideais de modernidade e civilizao alimentados pelas
classes economicamente favorecidas.
Retomando a anlise de Conversa de botequim, conclui-se que a verso do Trio
Surdina no uma simples reproduo do samba de Noel Rosa e Vadico, um samba composto
em outra poca e em outro espao social. No contexto da zona sul do Rio de Janeiro dos anos
1950, a releitura proposta pelo conjunto adquire sentidos distintos, pois, as escolhas estticas dos
instrumentistas apontam para novas concepes e padres musicais - apontam, principalmente,
para um novo estilo interpretativo no mbito da msica popular brasileira e da indstria
fonogrfica. Portanto, mais do que uma releitura, a performance do trio uma reinterpretao de
Conversa de Botequim, em que o material musical transformado, retrabalhado letra,
harmonia, arranjo, instrumentao etc. Esse processo de reinterpretao e de recriao revela uma
postura crtica desses msicos em relao a uma composio do passado; uma postura crtica que
tem alcance esttico e histrico.350
Como se viu, entre 1940 e 1950, havia uma tendncia no campo da msica popular
brasileira que visava recuperao e preservao de gneros e estilos musicais do passado como o choro, a valsa e o samba, por exemplo. O radialista e produtor Almirante foi um dos
representantes dessa tendncia, que culminou numa construo simblica que sobrevive at os
350
Baseamo-nos aqui no estudo de Santuza Cambraia Naves sobre a cano popular brasileira. Neste, a autora
prope as noes de crtica textual, relativa s mudanas operadas no plano esttico, e crtica contextual,
referente ao contedo potico ou lingustico diretamente ligado a um contexto scio-histrico especfico. Ambas as
crticas, vale ressaltar, so passveis de adquirir sentidos polticos mais amplos. NAVES, Santuza Cambraia.
Cano Popular no Brasil: a cano crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010.
197
dias atuais: a poca de Ouro da msica popular brasileira, qual pertenciam, entre outros, Noel
Rosa. O objetivo, no caso, era resgatar e reproduzir um conjunto de obras tal como eram
executadas nas dcadas anteriores execut-las corretamente, nos tempos certos e com os
msicos certos.351 Essa postura revela uma tentativa de congelar, de enrijecer determinadas
formas musicais. Em ltima anlise, buscava-se tambm enrijecer certas formas de sociabilidade
do passado, das quais surgiram os gneros e estilos que formavam a tradio da msica popular
brasileira tentar recriar no mbito do rdio e do disco (atitude problemtica por si s) o
ambiente do msico popular das primeiras dcadas do sculo XX.
Atuando num sentido oposto, o Trio Surdina recupera uma composio e um autor
da chamada poca de Ouro no para enrijec-los, mas para reatualiz-los no contexto da zona
sul do Rio de Janeiro dos anos 1950, em que novas formas musicais e novas formas de
sociabilidade haviam se constitudo. Considerando que as duas verses so dotadas de
historicidade a primeira informando um meio sociocultural carioca dos anos 1930, em que
samba, botequim e malandragem permaneciam intimamente ligados; a segunda, apontando para a
chamada msica de boate dos anos 1950, surgida numa regio elitizada e cosmopolita do Rio
de Janeiro, habitada por grupos da classe mdia -, pode-se dizer que o Trio Surdina no reproduz,
mas (re)historiciza a cano de Noel, devolvendo-a ao tempo presente, conferindo-lhe novos
sentidos atravs de um tratamento musical especfico, pautado pela conteno, economia de
elementos e pelo registro intimista. Ou seja, se a poca e o meio social so diferentes nos dois
casos, os filtros estticos, sociais e histricos pelos quais passaram as escolhas desses artistas
tambm o so. Da a atitude crtica do Trio Surdina diante do samba Conversa de Botequim:
reproduzi-lo numa poca e num espao social em que o samba e a malandragem dos anos 1930
pareciam deslocados j no fazia mais sentido. Foi preciso reatualiz-lo, reinseri-lo na
dinmica viva e pulsante da histria.
A excluso de duas estrofes, que corresponderiam parte B, representam
metaforicamente a auto-excluso do malandro naquele bar moderno da zona sul, pois, ele se
viu obrigado a se retirar antes mesmo de poder desfilar toda a sua bossa, de poder dar um
espetculo completo. Ningum o obrigou a tomar essa atitude de forma direta e truculenta; foi
351
198
o prprio clima de tenso ali instaurado, de modo (in)visvel, que lhe pareceu insuportvel esta
a fora das presses sociais.
Antes de concluir, preciso ressaltar que, mesmo na primeira verso desse samba,
no o malandro quem se pronuncia de fato, ou seja, trata-se tambm de uma representao, de
uma leitura especfica sobre essa personagem. A crnica de Prsio de Moraes e a reinterpretao
do Trio Surdina parecem apenas, vinte anos depois e num espao distante do subrbio, tornar
mais evidente um aspecto latente na composio de Noel Rosa e Vadico: a viso que o artista de
classe mdia desenvolve a partir de seu contato com o elemento ou com a cultura popular,
constituindo representaes caricaturais, expressando-se sempre em terceira pessoa, embora
consiga dissimular sua posio atravs de recursos de linguagem. Em outras palavras, ainda que a
direo da sua leitura seja realizada, por vezes, de dentro para fora, seu movimento , quase
sempre, de cima para baixo.
3.3.2 Que horas so? 352 ou a difcil simplicidade do choro O relgio da vov
Parafraseamos aqui o ttulo do livro Que horas so?, de Roberto Schwarz. Ver: SCHWARZ, Roberto. op. cit.
1987.
199
s 17h45min, oferecer aos seus ouvintes uma srie de arranjos modernos. Como se
sabe, os componentes do Clube da Bossa somos eu, Zimbres, Vidal, Sebastio, Bide,
Bonf e, como crooner exclusivo, Lcio Alves.353 (Grifo nosso).
353
ZARUR, Alziro. Garoto o Senhor Violo - Coluna Rdio, Jornal A Noite, 09/11/1946. p. 7. Acervo
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Reproduzido parcialmente em: MELLO, Jorge. op. cit. 2012. p. 98.
200
esttica de uma poca 354 e, mais especificamente, de um meio sociocultural particular, lanando
luz sobre o processo criativo dos artistas por se traduzir nas obras musicais e se manifestar de
modo inter-relacionado nos valores, sentidos e significados erigidos em torno dos diversos signos
que pautaram os anos 1940 e 1950, como a prpria ideia de modernidade.
Outro caso paradigmtico dessa tentativa de conceber uma msica moderna e, ao
mesmo tempo, popular pode ser encontrado no LP de estreia do Trio Surdina (1953): o choro O
relgio da vov, ento assinado por todos os integrantes do conjunto. Esta uma das raras
composies autorais registradas nos discos que contam com a formao original do trio isto ,
com Garoto, Faf Lemos e Chiquinho do Acordeon.
O ttulo curioso dessa msica j indica a inspirao dos autores no momento de sua
criao. Isso porque a melodia de O relgio da vov se baseia no motivo inicial do ballet
Dana das horas (Danza delle ore, no original), que integra a pera La Gioconda (1875), do
compositor italiano Amilcare Ponchielli. Alis, a Introduo elaborada pelo trio, aproveitada
parcialmente em diversos momentos da performance, tambm faz referncia Introduo da obra
italiana. Assim como a Marcha fnebre de Chopin, citada anteriormente, o tema de Dana das
horas ganhou ampla repercusso graas indstria cultural norte-americana e, mais
especificamente, a Walt Disney, que aproveitou o tema de Ponchielli num de seus filmes mais
famosos da dcada de 1940: Fantasia, uma das inmeras animaes estreladas pelo camundongo
Mickey.
Embora tenha sido classificada na ocasio como um choro, a composio apresenta
uma estrutura bastante incomum para o gnero, a saber, A-A-B. Como lembra Mrio Sve,355 a
forma mais usual no choro a A-A-B-B-A-C-C-A, uma forma rond que predominou na histria
desse gnero at a dcada de 1950, ento consolidada por compositores como Ernesto Nazar,
Pixinguinha, Zequinha de Abreu, entre outros. Aos poucos, esse padro passou a coexistir com
formas binrias, medida que novos compositores foram adotando estruturas do tipo A-B e
similares, como apontam vrias msicas de Garoto, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo, por
exemplo. Alis, uma tendncia moderna os choros diminurem o nmero de partes e
apresentarem modulaes distantes,
356
354
201
mesmo obras antigas e j consagradas que contam com duas partes, como os choros Lamentos
(A-A-B-B-A) e Ingnuo (A-B-A), ambos de Pixinguinha, distanciam-se do modelo
apresentado nesse tema do Trio Surdina.
As modulaes ocorridas entre as sees reforam a singularidade dessa composio
face aos padres mais recorrentes nos choros dos anos 1940 e 1950. Isso porque O relgio da
vov apresenta os centros tonais de F Maior (seo A), L Maior e D Maior (ambos na seo
B), ou seja, as mudanas esto separadas por intervalos de teras, portanto, distintas do que se
observa com maior frequncia na histria desse gnero, a saber, as modulaes homnimas,
relativas ou vizinhas de quarta justa.357 Vale ressaltar tambm o modo de transio entre cada
tonalidade, especialmente entre as tonalidades de L Maior e D Maior, pois, neste caso, no
realizado nenhum tipo de preparao para esse ltimo tom - o acorde de C (I) precedido por E7
(V7), dominante de L Maior.
Em nveis harmnicos, recorrente o uso da progresso do tipo I - bIII - IIm7 - V7,
presente em todas as sees, em que o acorde diminuto no cumpre a funo de dominante, uma
vez que seu movimento descendente na tonalidade de F Maior, por exemplo, tem-se a
passagem Ab - Gm7(9).
Ainda que haja a predominncia de acordes compostos por notas estruturais de trades
e ttrades, algumas extenses so empregadas em momentos especficos, sendo que as
dissonncias mais acentuadas aparecem sempre em acordes dominantes. Nesse sentido, ao longo
da performance, verifica-se que o violo procura dialogar com os solistas por meio do acrscimo
de algumas dessas extenses no acompanhamento rtmico-harmnico, intervindo em certos
espaos da melodia principal (cf. o exemplo 17).
357
Idem, ibidem.
202
Exemplo 17: Compassos 15 e 16 (seo A) de O Relgio da Vov. O violo se encontra transcrito no pentagrama
inferior. A linha meldica do pentagrama superior executada pelo violino.
358
(Liberty
Records, 1955), em que a cantora Julie London acompanhada pelo guitarrista Barney Kessel e
pelo contrabaixista Ray Leatherwood, e que se tornou referncia para muitos msicos brasileiros
da poca. Abaixo, segue um fragmento que se aproxima em muitos aspectos do caso anterior (cf.
o exemplo 18).
358
Como afirma Ruy Castro, esse disco causou grande impacto na jovem gerao de violonistas dos anos de 1950.
Carlos Lyra e Roberto Menescal, que pouco depois se consagrariam como msicos da Bossa Nova, so alguns dos
instrumentistas que reconhecem a importncia desse LP, que ficou mais conhecido pela interpretao de Julie
London em Cry me a river (Arthur Hamilton). CASTRO, Ruy. op. cit. 1990. p. 128-130.
203
Exemplo 18: Voicings utilizados por Barney Kessel na faixa Cant Help Lovin That Man Of Mine, localizado por
volta do minuto 042. Os acordes da verso original so Abm7(9) e Db7(b9), mas foram transpostos neste caso para
facilitar o seu confronto com o exemplo 17.
Mamadeira Atonal era tocada frequentemente nos encontros realizados por esses
jovens modernos no famoso apartamento de Nara Leo.360 significativo notar como a
estrutura harmnica de O relgio da vov se tornou um signo de modernidade para essa
gerao de msicos identificados com as linguagens e estilos musicais mais avanados da
poca. Igualmente ilustrativo nesse caso a associao entre dissonncia e atonalismo, pois,
como se sabe, esses termos pertencem a domnios absolutamente distintos: o sistema atonal a
anttese do sistema tonal, sobre o qual se assenta quase toda a msica ocidental (erudita, popular
etc.) desde o sculo XVII at meados do sculo XX; dissonncia, por sua vez, o oposto de
consonncia, e ambos formam um par conceitual que s faz sentido no mbito da msica tonal.
359
204
Todavia, de acordo com Ruy Castro, quando comearam os primeiros shows oficiais
da Bossa Nova, por volta de 1959, a composio de Mrio Castro Neves e Ronaldo Bscoli j
tinha sido esquecida, pois havia outra no mesmo estilo, s que melhor: Desafinado,361 uma das
obras paradigmticas do estilo bossa novista. Coincidncia ou no, a melodia inicial desse
clssico de Tom Jobim e Newton Mendona, que seria lanado em 1958, possui praticamente a
mesma relao intervalar do motivo presente na segunda parte de O relgio da vov (cf. o
exemplo 19).
Exemplo 19: Confronto entre a melodia inicial de Desafinado (pentagrama superior) e a primeira frase da seo B
de O relgio da vov (pentagrama inferior).
205
20). Tal combinao ocorrer somente na ltima exposio do tema - o fonograma apresenta trs
exposies, no total. Em suma, cotejando o incio e o final de O relgio da vov, nota-se que
h uma unidade e coerncia na performance, o que permite inferir que foi elaborado um arranjo
para a composio, ainda que de modo informal (possivelmente no escrito, combinado apenas
verbalmente).
Introduo
Seo A
206
207
208
Exemplo 21: Incio da segunda exposio de O relgio da vov (seo A). A melodia principal interpretada pelo
violinista Faf Lemos.
Exemplo 22: Reexposio da seo A de O relgio da vov. A melodia principal interpretada por Chiquinho do
Acordeon.
Isso posto, resta observar mais atentamente dois momentos especficos do fonograma
O relgio da vov, a saber, os compassos finais de cada exposio da seo B que, a um s
tempo, cumprem a funo de assinalar o trmino da segunda parte e de preparar a retomada da
seo A.
Nesses
instantes,
cada
instrumentista
assume
uma
funo
determinada,
predominantemente meldica e no coincidentes entre si. No primeiro caso (cf. o exemplo 23),
localizado ao final da primeira exposio do tema, o violino executa um pequeno motivo baseado
em duas notas (L e D) situadas no contratempo dos compassos (no espao do primeiro tempo),
tecendo um caminho descendente, transposto em oitavas; o acordeon tambm apresenta um
padro meldico baseado em um par de notas (D e Sol), tocando-as, porm, de forma
simultnea (em oitavas) e por meio de uma figurao rtmica mais regular (colcheias),
deslocando apenas o momento inicial de cada interveno, o que gera a sensao de ruptura com
209
os tempos fortes do compasso binrio; a linha do violo, por sua vez, assemelha-se do
instrumento anterior, contudo, o motivo em ostinato que este sustenta se inicia na nota Sol, e no
em D, mantendo a primeira na voz aguda, como nota pedal, durante todo o fragmento; o
contrabaixo, por fim, contrasta sensivelmente com os padres apresentados pelos demais
instrumentos ao construir uma linha ascendente que caminha, na maior parte do tempo, por graus
conjuntos.
Diante desse quadro, em que cada instrumento parece representar os fios de uma
trama complexa que sugere a ideia de movimento embora permanea estvel; ou ainda, no qual
as diferentes funes exercidas pelos integrantes do conjunto se apresentam como partes
constituintes de uma sonoridade mais ampla, diversa e integrada, que os msicos tencionaram
conceber, conclui-se que, na tentativa de remeter ao ttulo da composio, o Trio Surdina buscou
mimetizar, a exemplo da composio de Ponchielli (Dana das horas), o funcionamento interno
de um relgio, em que cada instrumento representa uma engrenagem, dotadas de tamanhos e
formatos distintos, mas cuja dinmica e eficincia se assenta justamente nas suas inter-relaes e
interdependncias. Em outras palavras, o conjunto tentou traduzir para a linguagem da msica
210
Neste caso, entretanto, apenas o contrabaixo mantm a maior parte do padro que havia
apresentado no exemplo anterior. Os demais instrumentos alteram significativamente suas linhas:
o violo se limita execuo das notas Sol e D nos contratempos; o acordeon, por outro lado,
permanece nas cabeas de tempo dos compassos, tocando essas mesmas notas (Sol e D) de
forma simultnea; o violino, finalmente, parece elaborar uma variao a partir do pequeno motivo
executado na primeira exposio desse tic-tac intrincado mimetizado pelo conjunto.
Ao construir uma sonoridade que tenciona remeter ao funcionamento do objeto que
d nome composio, seguindo o exemplo do ballet Dana das horas, o Trio Surdina no se
limitou a propor uma nica forma, apresentando possibilidades distintas, fato que corrobora o
211
***
Esses resultados mostram mais uma vez que a sonoridade do Trio Surdina no se
explica apenas pela instrumentao econmica, que remete tanto aos conjuntos de boate quanto
cano francesa - impresso que, neste caso, atribui-se principalmente presena do acordeon.
Vale lembrar, outros nomes associados msica moderna da dcada de 1950 empregaram
formaes muito semelhantes em seus trabalhos como, por exemplo, o ento jovem compositor e
arranjador Tom Jobim no samba-cano Por Causa de Voc (1957), composto em parceria com
Dolores Duran, cujo acompanhamento inclui o acordeon, o violo, o violino, o contrabaixo e a
percusso.362
De acordo com as anlises, h elementos musicais constituintes do processo criativo e
da performance do Trio Surdina que caracterizam a sua sonoridade e a aproximam da msica
362
212
vista como sinnimo de modernidade naquele perodo, hiptese que parece ser reforada, por
exemplo, pela forma incomum do choro O relgio da vov; pelas modulaes relativamente
distantes; pelo uso de acordes acrescidos de extenses; e, claro, pela variedade significativa de
combinaes timbrsticas no decorrer da msica. Por outro lado, a composio e a performance
do conjunto reiteram alguns procedimentos verificados com frequncia no choro como, por
exemplo, as progresses harmnicas centradas, em essncia, no padro IIm V7 I; a melodia
sincopada; as variaes/improvisaes sobre o tema; e, obviamente, os dilogos constantes entre
solistas e acompanhadores, para alm das convenes.
Sendo assim, cabe retomar uma discusso apresentada no incio deste captulo,
quando se analisou os LPs enquanto produtos portadores, ao mesmo tempo, de projetos estticoideolgicos. Na ocasio, destacou-se que alguns lanamentos pioneiros da dcada de 1950
concentravam tanto o desejo de modernizar ou renovar as linguagens artsticas, conforme
expressavam muitas ilustraes presentes nas capas dos discos de vinil, pautadas pela criao
artesanal e experimental, quanto a tentativa de se consolidar no campo do entretenimento da
poca, alinhando-se para tanto s tendncias em circulao nos meios radiofnico e fonogrfico,
ou seja, quilo que se identificava com a chamada cultura de massa. Da a busca pela difcil
simplicidade da forma redundar antes em dificuldades de forma, uma vez que os trabalhos
arrojados e coerentes com as estticas mais avanadas no ramo das artes visuais muitas vezes no
se harmonizavam com o contedo propriamente musical, que, em alguns casos, apenas
reproduzia os sucessos do momento dentro dos padres mais conhecidos e explorados pelos
artistas j integrados indstria fonogrfica.
Ocorre que o choro O relgio da vov se situa no cruzamento entre a tradio e a
modernidade, ou seja, entre duas referncias temporais distintas. A partir de um gnero musical
popular e antigo (o choro), cuja forma e cujos materiais j possuam uma histria e pareciam bem
consolidados, o Trio Surdina apresenta uma srie de elementos e procedimentos que,
contraditoriamente, acabam tensionando a histria desse gnero, abalando a sua tradio. E o
principal deles, sem dvida, a prpria forma. Como se destacou anteriormente, alm da
estrutura baseada em apenas duas partes e das modulaes em teras, a msica apresenta um final
peculiar, medida que deixa em suspenso a ltima frase, sem apresentar seu possvel
desenvolvimento - conforme apresentariam, anos depois, Tom Jobim e Newton Mendona em
213
363
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Ateno e disperso: elementos para uma discusso sobre arte contempornea a
partir de Adorno e Benjamin. In: ____________. op. cit. 2014. p. 118.
214
215
366
sociocultural do Rio de Janeiro nos anos 1950; uma estrutura de sentimentos que engloba tanto a
modalidade de relaes histricas e sociais que era ainda totalmente interior s obras e no
dedutvel atravs de uma ordenao ou classificao externas
367
- ou seja, justamente o
contedo que escapa aos padres, convenes e conceitos j consolidados num determinado
contexto -, quanto as conexes, as correspondncias, e at mesmo as semelhanas de poca que
mais saltam vista
368
permitem identificar a sua sonoridade com a chamada msica de boate, segmento em formao
mas plenamente reconhecvel naquele perodo.
365
216
Consideraes finais
Uma das motivaes iniciais desta pesquisa foi a constatao da escassez de trabalhos
acadmicos sobre a msica popular brasileira situada entre as dcadas de 1940 e 1950. Afinal,
qualquer pesquisador que se dedica a esse campo de estudos nota como a historiografia preteriu a
produo desse perodo em favor de momentos e manifestaes musicais ento vistos como mais
importantes ou superiores esttica e historicamente, como a chamada poca de Ouro, a
Bossa Nova, a cano de protesto, o Tropicalismo, entre outros.369
Ocorre que, longe de ser um processo natural, a sucesso de escolhas operadas nos
ltimos decnios por pesquisadores e entusiastas da msica popular, que responde tanto pelo
contedo esquecido quanto pelo consagrado (porque sempre rememorado), revela que tais
selees so histrica e socialmente orientadas, portanto, so passveis de crtica e reavaliao
somente nesses nveis, de modo que os juzos de gosto e valores morais implcitos nas narrativas
e discursos sejam historicizados e desnaturalizados caso contrrio, incorrer-se- nos mesmos
erros de diagnstico e anlise.
Ampliando o campo de viso e observando as atividades artsticas afloradas durante o
interregno democrtico que vai de 1946 a 1964 constata-se que a msica popular dita
industrializada ou comercial e, em especfico, as prticas musicais que precedem o surgimento da
Bossa Nova (1958) representam uma exceo na tradio crtica que se debruou sobre a
produo cultural dessa fase. Muitos estudos apontam a efervescncia criativa e a atmosfera
favorvel s experimentaes estticas nas obras literrias, nas artes visuais, na arquitetura e no
cinema dos anos 1950, por exemplo.370 No campo musical, entretanto, parece ter vigorado a
leitura e os juzos como os do jornalista e bigrafo Ruy Castro, que tentou depreciar o repertrio
369
217
do samba-cano, baio, bolero etc., gneros que alcanaram importante repercusso na poca,
associando-os s quermesses populares como se, alis, uma quermesse tambm fosse algo
desprezvel.371
Atuando em direo oposta, o estudo da produo do Trio Surdina apresentado neste
trabalho contradiz em muitos sentidos os discursos ideolgicos generalizantes e carregados de
preconceitos de classe que corroboraram o esquecimento da msica popular brasileira da fase
pr-Bossa Nova; discursos que, portanto, acabaram relegando inmeras manifestaes
artsticas surdina da histria.
Seguindo a tendncia das pequenas formaes instrumentais que comearam a figurar
no circuito musical da zona sul do Rio de Janeiro entre 1940 e 1950, ento reconhecidos e
denominados como conjuntos de bote, a msica do Trio Surdina, avaliada em seus aspectos
intrnsecos, revela que, no interior da indstria fonogrfica e do meio radiofnico isto , no
interior dos modernos meios de comunicao de massa -, novas linguagens musicais e
possibilidades expressivas vinham se manifestando, rompendo em partes os padres e
convenes sedimentados em gneros e estilos j consagrados ou identificados com uma
determinada tradio como nos casos do choro e do samba, por exemplo.
Enquanto conjunto de msica essencialmente instrumental, o Trio Surdina soube
explorar o potencial crtico dessa linguagem artstica, lanando mo de elementos e
procedimentos que, conforme apontaram as anlises, contribuiriam para renovar a prpria formacano, sem dvida a forma hegemnica da msica popular brasileira do sculo XX. O mesmo
pode ser dito a respeito de seu estilo interpretativo, que caraterizado pelo impulso ldico; pelos
tecidos sonoros variados e anticontrastantes; pela organizao das funes de cada instrumentista
ao longo das exposies dos temas; pela improvisao e interao constante entre solistas e
acompanhadores etc. No se trata, obviamente, de um potencial crtico no sentido panfletrio ou
poltico-partidrio, mas no sentido esttico ou, para falar com Santuza Cambraia Naves, textual:
uma crtica concentrada na reelaborao do material musical disposio dos artistas num
determinado contexto scio-histrico.
Foi esse cenrio culturalmente efervescente e esse tipo de produo musical que
permaneceram em surdina ao longo dos ltimos decnios, ao menos para muitos estudiosos da
371
218
msica popular brasileira. Num momento em que a indstria cultural se encontrava em via de
estruturao no pas, visto que era ainda incipiente a configurao de uma sociedade de consumo
nas dcadas de 1940 e 1950, embora os diferentes ramos do entretenimento e de comunicao de
massa j houvessem constitudo relaes mais orgnicas e integradas, constatou-se a existncia
de um ambiente propcio experimentao e interseco entre diferentes linguagens artsticas.
Isso pde ser ilustrado de maneira mais sinttica no item dedicado aos LPs produzidos na poca,
por exemplo, cujos contedos musicais, visuais e textuais revelaram a articulao da criao
esttica artesanal com os novos formatos, recursos tcnicos e equipamentos introduzidos no
campo da indstria fonogrfica. Ou seja, tudo se deu no mbito da chamada cultura de massa,
produtora de mercadorias culturais; mas, talvez em funo do estgio pouco desenvolvido da
indstria cultural brasileira, bem como do clima de modernizao instaurado na mentalidade de
amplos setores da sociedade, os espaos para a experimentao existiam e foram explorados por
alguns artistas, ainda que estes estivessem, por vezes, situados s margens do grande mercado.
Tensionando e escapando parcialmente padronizao condicionada pelos meios
tcnicos, os fonogramas do Trio Surdina investigados neste estudo revelaram que, nas condies
materiais e sociais de produo existentes no Brasil dos anos 1950, certas obras foram capazes de
concentrar um potencial ldico e criativo, indicando a possibilidade de elaborao de novas
experincias estticas no interior da indstria fonogrfica. Em outras palavras, suas composies
e reinterpretaes para msicas que alcanaram ampla repercusso naquela fase transcendem em
muitos aspectos os limites preconizados pelos padres e convenes de certos estilos, bem como
os parmetros e modelos conceituais pretensamente irredutveis que pautaram os debates
simblicos do perodo.
preciso ressaltar, contudo, que essas tentativas de ruptura no representam o trao
dominante da produo do conjunto. Na verdade, os fonogramas indicam antes a articulao entre
diferentes referenciais, ligados tanto ao passado da msica popular brasileira (samba e choro) e
tradio musical europeia, quanto aos gneros em evidncia no plano da chamada cultura de
massa, como o bolero, o fox-trot, o baio, o samba-cano, entre outros. Foi a partir desse
conjunto de materiais que o Trio Surdina pde conceber uma linguagem potencialmente nova,
centrada no plano instrumental; uma experincia musical que, a um s tempo, dialoga e rompe
219
372
Sobre o processo de racionalizao na msica ocidental, que se projeta nos materiais, instrumentos e meios
expressivos, ver: WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociolgicos da msica. So Paulo: Edusp, 1995.
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Trio Surdina Interpreta Noel Rosa e Dorival Caymmi (ou Trio Surdina n 2) Musidisc, 1953
(M-014).
Trio Surdina e Orquestra Lo Peracchi Musidisc, 1953 (M-008).
Trio Surdina n 3 Musidisc, 1953 (M-017).
Ouvindo Trio Surdina Volume 1 - Musidisc, 1953 (DL - 1006).
Ouvindo Trio Surdina Volume 2 - Musidisc, 1953 (DL - 1009).
Boleros em Surdina - Musidisc, 1958 (HI-FI 2016).
Trio Surdina em Bossa Nova - Musidisc, 1963 (ST. XPL - 32).
Jazz After Midnight, Dick Farney - Columbia, 1956 (LPCB 41.001).
Cano do Amor Demais - Festa, 1958.
Uma noite no Plaza - Radio, 1955.
Norberto Baldauf, Ritmos da Madrugada - Odeon, 1955 (LDS 3016).
Uma noite no Arpje - Rdio, 1956.
Erwin Wiener, piano com ritmo - Odeon, 1957 (MODB 3035).
Para Ouvir Amando... Waldir Calmon, piano e ritmo - Copacabana, 1955 (CLP 3003).
Faf Lemos e Sua Orquestra, Jantar no Rio - RCA Victor, 1954 (BKL-2).
Nilo Srgio e Sua Orquestra, Danando Suavemente - Musidisc, 1959 (Hi-Fi XLP3).
Chega de Saudade - Odeon, 1959 (MOFB 3073).
O amor, o sorriso e a flor - Odeon, 1960 (MOFB 3151).
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Peridicos
Coleo Revista da Msica Popular (1954-1956). Rio de Janeiro: FUNARTE: Bem-Te-Vi
Produes Literrias, 2006.
Revista Carioca. Rio de Janeiro, 1951-1954.
Revista do Disco. Rio de Janeiro, 1953.
Revista Pesquisa Fapesp, n 207, maio de 2013.
Revista Flan. Rio de Janeiro, 1952-1953.
Revista Long Playing. Rio de Janeiro, 1956-1960.
Entrevista
www.ims.uol.com.br
www.dicionariompb.com.br
www.estudioaldemirmartins.com
www.releituras.com
www.youtube.com
http://abracadabra-br2.blogspot.com.br/
http://bossa-brasileira.blogspot.com.br/
http://jorgecarvalhodemello.blogspot.com.br/
http://loronix.blogspot.com.br/
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