UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

FICO BRASILEIRA CRISTINA PRATES

GOTLIB, Ndia Battella. Macaba e as mil pontas de uma estrela. In: Mota, Loureno Dantas; Abdala Jr., Benjamin
Personae: grandes personagens da literatura brasileira. So Paulo: SENAC So Paulo, 2001. p.285

Macaba e as mil pontas de uma estrela

Ndia Battella
Battella Gotlib
A primeira histria
Macaba nasce no sero de Alagoas. Passa fome quando criana. Perde os pais bem cedo e
criada por uma tia, que a trata mal e com quem vai para o Rio de Janeiro. Mas a tia morre. E
Macaba, sozinha, passa a morar num quarto de penso, no subrbio, com mais quatro moas
balconistas das Lojas Americanas. Trabalha como datilgrafa num escritrio, mas, por ser
incompetente, encontra-se prestes a ser despedida pelo seu chefe, seu Raimundo. Vive a rotina de
uma vida miservel, sem se dar conta dessa misria, achando, naturalmente, que a vida era assim
mesmo. E tem alguns poucos prazeres: recortar retratos de artistas de cinema e anncios de jornais
velhos, ouvir msicas sentimentais e ensinamentos, alis, inteis, transmitidos pela Rdio Relgio.
Certo dia Macaba conhece um paraibano, chamado Olmpico, que se torna seu namorado.
Metido a valente, era tambm ladro, ambicioso e tinha o firme objetivo de vencer na vida e ser
deputado. Mas Glria, colega de trabalho de Macaba, moa bem alimentada, sensual e esperta,
rouba-lhe o namorado. Tentando amenizar a culpa, convida-a para um lanche em sua casa, onde
Macaba come demais e passa mal. Por causa dessa indisposio e tambm porque sente uma dor
por todo o corpo, ao receber o salrio a nordestina procura um mdico, alis, frustrado, por ser
mdico de pobre e no ganhar dinheiro. O mdico constata-lhe a magreza de subnutrida e um incio
de pneumonia, receitando-lhe o que ela nunca poderia comprar: boa alimentao. tambm Glria
que, com boas intenes no sentido de que Macaba tenha vida melhor, indica-lhe uma cartomante,
Madame Carlota, graas qual conseguira arranjar o namorado, Olmpico.
A cartomante, ex-prostituta e cafetina, l a sorte de Macaba e, comerciante sagaz, vendelhe a iluso de um futuro feliz, anunciando-lhe casamento com um estrangeiro bonito e rico.
Macaba sai de l cheia de esperana. Mas justamente ao sair dali, atropelada por um carro
estrangeiro, um Mercedes-Benz. Estendida no cho, como se fosse perfurada por uma estrela de mil
pontas que explode suas entranhas, ela tenta vomitar, vomitando um pouco de sangue. tambm
seu momento de brilho e glria, pois pela primeira vez notada pelas pessoas que dela se
aproximam, quando atinge a plenitude daquilo que sempre quis ser, uma estrela de cinema.

Neste

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momento, Macaba morre. E consegue ser Macaba, ou seja, ela mesma, na sua grandeza de brilho,
olhada ento por todos que a rodeiam, e na sua misria de ser sempre nada e ningum, jogada perto
da sarjeta e do capim que nasce entre as pedras de um beco.
Esta poderia ser uma histria de Macaba, a partir da seleo de alguns poucos dados
biogrficos seus, que aparecem no romance. A hora da estrela, escrito pro Clarice Lispector e
publicado em 1977. S que tais fatos, embora faam parte da histria de Macaba, so insuficientes
para traduzir sua histria. Macaba no apenas resultado da soma da sequncia de fatos. O que faz
do romance no bem o que acontece, mas o que circunda este acontecer, tal como na linha do
romance moderno de Virgnia Woolf conforme o entendeu o crtico Erich Auerbach. Ou seja, no
so apenas os fatos que fazem a personagem. H toda uma matria narrativa que a envolve para
tentar desvend-la e atingi-la no seu mago. Afinal, quem Macaba? Esta a pergunta que ns,
leitores do romance, fazemos. E a pergunta que a todo momento o narrador da histria, Rodrigo
M.S., se faz, e que o leva a escrever esta histria.

A segunda histria
Macaba ento um produto do seu narrador. Alis, toda personagem , de fato, o produto
de um narrador que lhe conta a histria, seja este narrador quem for. Mas neste romance h uma
situao especial: Macaba nasce mesmo do narrador que faz parte da histria enquanto
personagem. Ele o autor do romance em que nos conta como ele cria Macaba. Ele o criador e
Macaba sua criatura. Macaba existe como projeo dele, como parte dele e existe em funo
dele. Ou seja: Macaba existe na sua relao com o narrador, o personagem Rodrigo M.S. ele
quem nos conta a histria de como ele, escritor, inventa Macaba, explicando, a todo momento,
como este trabalho, difcil, de lidar com as palavras e escrever um romance, acontece.

______________________________
Erich Auerbach, A meia marrom, em Mimesis, trad. George Bernard Sperber ( So Paulo: Perspectiva, 1971 ).

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Alm da histria de Macaba, a personagem, h pois uma outra histria paralela: a histria
de como o romance se faz. Parece, alis, que Macaba acha-se entranhada no narrador e aos poucos
vai dele se desgarrando. H, na verdade, um parto ficcional no apenas no sentido de que se trata
de fico um autor gera um livro - , mas no sentido de que esta a histria de que se compe, na
verdade, o romance. Ele nos conta como inventa a personagem de seu romance, Macaba, que
nasce, cresce, trabalha, namora, sonha e morre.
O nascimento
Macaba nasce logo no incio do romance. Alis, quando o narrador narra como todo
incio acontece, com a passagem do caos forma. o comeo do mundo e da vida do mundo
ficcional do romance e, com ele, da vida de Macaba: Tudo no comeo comeou com um sim.
Uma molcula disse sim a outra molcula e nasceu a vida.
Nesse mesmo momento, em que as molculas se juntam num estrondo de tomos, d-se o
incio das perguntas, inclusive a respeito deste prprio incio, inatingvel: Como comear pelo
incio, se as coisas acontecem antes de acontecer?. E d-se o incio das frustraes de se conseguir,
pela palavra, contar a verdade das coisas: A verdade sempre um contato interior e inexplicvel.
Mas o narrador insiste: Enquanto eu tiver perguntas e no houver respostas, continuarei a
escrever. Macaba a execuo de tal questionamento. a personificao das perguntas possveis.
Nesse incio aparece tambm pela primeira vez a meno quela que est nascendo a como
personagem, e que, por enquanto, integra uma espcie de gente, as nordestinas, que acreditam na
palavra felicidade: Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por a
aos montes.

Segundo depoimento do autor-narrador, sua personagem uma nordestina que ele

viu numa rua do Rio de Janeiro, quando pegou no ar de relance o sentimento de perdio no
rosto de uma moa nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Tambm no sei
das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que5 sabe. Assim nasce a
nordestina que, que ainda no tem nome, pela pena de Rodrigo.
___________________________

Notar que o filme A hora da estrela, dirigido por Suzana Amaral e baseado no romance de Clarice Lispector, detm-se numa s

histria a histria de Macaba desmanchando, pois, esse entrecruzamento de histrias que caracterstica bsica da construo do
romance.

Clarice Lispector, A hora da estrela (4 Ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1978). P.15
4 Ibid.,p.16
5

Ibid.,p.16

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Ora, essas duas linhas narrativas ou duas histrias que aqui nascem juntas, tambm
caminham juntas, ao longo de todo o romance. De um lado, a histria de Macaba, personagem
caracterizada pela falta, pela misria, e com certa dose de ingenuidade, ao acreditar que tal
felicidade possa existir. De outro lado, paralelamente, a histria de Rodrigo escrevendo seu
romance, inventando Macaba, e sobre ela se manifestando, por comentrios, crticas,
autoexigncias, ansiedades, titubeios, medos, frustraes, num depoimento ao vivo, enquanto
escreve, desta sua experincia profissional de escritor. De um lado, a falta de conscincia de
Macabe, sua personagem. Do outro, a histria de conscincia que dela tem o escritor, seu criador.
Esse jogo de modos de ver e construir essa histria importante como marca da narrativa: o assunto
do romance a prpria execuo do romance. Trata-se, por essa razo, de um metarromance.
Macaba nasce assim, misturada ao seu narrador, com um ou outro dado despontando em
meio s consideraes que ele vai fazendo sobre a sua escrita, tendo diante de si poucos dados com
que construir sua personagem e muitos a comentar sobre este seu difcil trabalho. De qualquer
forma, Macaba nasce da dor, a dor que a misria, ou, de modo geral, o lado feio da vida provoca, e
que to difcil enfrentar, a que o narrador prope dar vida para, expelindo-o de si, poder ento a
se enxergar e se reconhecer. Tambm Macaba, ao final da histria, vomita sua prpria dor, ou
verdade interior, sob a forma de estrela que a tortura nas entranhas, em mil pontas dilacerantes.
Nesse incio, Macaba obra em via de ser executada, na iminncia de, enquanto narrador
esquenta o motor para fazer deslanchar sua personagem. Da a aproximao que se faz aos poucos,
pelo narrador e por ns, leitores, que o acompanhamos nesse processo, em etapas sucessivas, numa
viso gradual, e num contato difcil, perigoso, sofrido, decisivo, irremedivel. Mas por que tanta
dificuldade e tanto sofrimento? Por ser Macaba quem .
A infncia
Filha do serto, nasce menina raqutica. Fica rf logo aos dois anos, quando os pais morrem
de febres ruins, no interior de Alagoas. Vem para Macei com a tia, sua nica parenta, tia
solteirona, que lhe batia muito e lhe dava tambm como castigo no comer goiaba com queijo, a
nica paixo na sua vida.
Infncia sem bola nem boneca, no podia nem mesmo brincar com bicho seria mais uma
boca para comer , e brinca ento com pulgas. Trabalhava com a tia, varria o cho. Ouvia cantiga
de roda. E no se sabe bem por qu, vm as duas para o Rio de Janeiro

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Vivia, pois, sem saber, sem perguntar e sem reclamar. Vivia apenas como um dia haveria de
morrer, e torturada, ainda que sem saber. esse modo naturalmente instintivo de aderir vida que
d consistncia personagem. E que alimenta a inquietao do narrador, vido e temeroso, neste
seu percurso de retratar Macaba.
O chefe: seu Raimundo
A tia, que lhe arrumara emprego, morre. E ela, sozinha, vai morar numa penso no subrbio,
na rua do Acre, num quarto com mais quatro moas balconistas das Lojas Americanas, as quatro
Marias: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria Jos e Maria apenas. Mora a, perto das
prostitutas, dos depsitos de carvo e de cimento e do cais do porto. Falava muito pouco. Estava
resfriada h um ano. E tossia. noite, tinha fome, pensava em coxa de vaca e mastigava e engolia
papel. Se tomava um gole frio de caf antes de dormir, acordava com azia. Quando comia ovo,
passava mal do fgado, porque a tia lhe ensinara que assim era e ela obedecia. Para ela no havia
Deus, nem o outro. De vez em quando ia para a zona sul ver lojas.
pois no s uma moa que vive no rio de Janeiro, mas que vive numa cidade feita contra
ela. A moa, que por enquanto uma nordestina, ainda sem nome, vai assim se formando a
partir do que ela : a que no tem.
Diferentemente das moas que vendem o corpo, por exemplo, corpo que lhes a nica
posse real, a personagem nem isso tem: mal tem corpo para vender. Vive sob a rejeio: [...]
ningum a quer, ela virgem e incua, no faz falta a ningum. E annima, como milhares de
outras moas, espalhadas por cortios, vagas de cama num quarto, atrs de balces trabalhando at
a estafa, como objetos substituveis que tanto existiriam como no existiriam. No se dava conta
6

de que vivia numa sociedade tcnica onde ela era um parafuso dispensvel.

E imediatamente o

narrador faz associao consigo mesmo: Alis descubro eu agora tambm eu no fao a menor
falta, e at o que escrevo um outro escreveria. Ao se reconhecer em Macaba, reconhece-se
tambm como um nmero, perfeitamente substituvel.
Mas enquanto o narrador escritor e romancista que manipula os recursos de
linguagem de modo a mobilizar o seu leitor, Macaba datilgrafa que simplesmente copia, e mal,
letra por letra, os textos que lhe do para datilografar, ensinada pela tia, j que havia estudado
apenas at o terceiro ano primrio. Copiava, por exemplo, a letra linda e redonda do amado chefe a
7 desiguinar.
palavra designar de modo como em lngua falada diria:

______________________________
6

Ibid., p. 36

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Ibid, p.20

Da o cuidado do narrador em tocar essa pobreza, correndo o risco, irremedivel, de

transform-la numa outra coisa, j que ele, como escritor tem erudio, embora afirme no ser um
intelectual porque escreve com o corpo. Teme desfigurar a pobreza da moa, que ignorante,
enriquecendo-a com seus prprios bens intelectuais e artsticos de escritor. Nesse caso, a palavra
enfeitada no condiz com a coisa que ela representa: [...] no vou enfeitar a palavra pois se eu
tocar no po da moa esse po se tornar em ouro e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem
no poderia mord-lo, morrendo de fome. Tenho ento de falar simples para captar a sua delicada e
vaga existncia. 8

O escritor tenta assim alcanar Macaba ou seja, esse falar simples e

despojado de cnones de um outro para isso implodindo a sua prpria tradio das
significaes. Esta experincia de linguagem suicida o trunfo revolucionrio desse romance.
E o narrador prope, a todo momento, esse projeto como no sendo apenas dele, mas de
todos ns. Eis o carter poltico-militante dessa experincia da linguagem de Macaba, que por
enquanto no tem nome, que nasce da lama e cujo destino o narrador nos delega, a ns, leitores:
Cuidai dela porque meu poder s mostr-la para que vs a reconheais na rua, andando de leve
por causa da esvoaada magreza. 9 Defrontar-se com o outro lado de cada um de ns e que de
todos ns parece ser a inteno do narrador, ao se expor nesse cotejo, difcil, com esta sua face ao
mesmo tempo desprezvel e sedutora.
Porque no contato com a personagem, h o contato com o insosso, o no esquematizvel. E
o narrador precisa armar-se de coragem para enfrentar esse estado de risco diante do que ainda lhe
desconhecido, ao abandonar sentimentos antigos j confortveis.

10

Da o poder desmitificador

da escrita, que, neste romance, lida com essa coisa que a personagem sem valor de mercado,
fora de qualquer sistema, inslita. Afirma o narrador: Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. 11 Sem o
repertrio dos valores consagrados pelo meio social, ausente da conscincia desse repertrio, a
moa vive como quem imersa em si mesma. E age como se fosse tola.

________________________________________
8 Ibid, p.19
9 Ibid, p.24
10 Ibid, p.25
11 Ibid, p.31

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Assim na primeira vez em que aparece em cena dialogando com o seu amado chefe, seu
Raimundo Silveira. Quando este lhe manda embora, porque era datilgrafa incompetente errava
demais e sujava o papel -, ela ainda lhe pedia desculpas. Tanto que o chefe fica surpreendido com
a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilgrafa. Ameniza ento a
deciso, dizendo que a despedida poderia no ser para j, poderia demorar um pouco. quando a
moa, atordoada, vai ao banheiro, olha ao espelho e no v imagem nenhuma ou v imagem
deformada pelo espelho ordinrio, com nariz enorme, como se fosse de palhao.
Essa incompetncia incomoda. Antes ignor-la, que tentar toc-la, entend-la, consert-la.
Por isso Macaba a ferida em carne viva, que se v a cada esquina. como uma palavra fora do
esquadro de um determinado cdigo, ausente de seu campo de atuao, em que nada significa,
deslocada, sem se dar conta disso e de nada. a funcionria de um escritrio, mas sem funo. Este
confronto instiga o questionamento. Como possvel existir ainda ali a vida, em meio a tanta
pobreza? Por isso afirma o narrador: [...] existir coisa de doido, caso de loucura. Porque parece.
Existir no lgico. 12

O romance conta a histria de um autor que se defronta, pois, como

absurdo da vida de Macaba.

Os prazeres
No domingo, acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.

13

O cio seu

grande prazer: o nada fazer. E num determinado domingo teve uma alegria: viu um arco-ris. E logo
quis ver fogos de artifcio, como em Macei. Tinha luxos: pintar de vermelho as unhas das mos e
ir ao cinema uma vez por ms. E pedia emprestado da amiga do quarto o aparelho de rdio para
ouvir, diariamente, bem baixinho, de madrugada, pela Rdio Relgio, o programa hora certa e
cultura. 14
Mas o mais importante era o modo como vivia, sem pensamento: Nunca pensara em eu
sou eu. 15

_____________________________________
12 Ibid, p.26
13 Ibid, p.43
14 Ibid, p.47
15 Ibid, p.45

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O narrador, que constantemente pensa, e que confessa certo puder seu talvez tambm
fingindo de falsear a realidade da moa, parece comandar o processo narrativo. No entanto, a
certa altura ele atribui tal processo criativo ao deus-dar. Ocasio e acaso se misturam. E o leitor
fica sem saber, ao certo, quem domina esta situao o autor da obra; ele ou ela, Macaba, que vai
adquirindo consistncia e poder.
Porque Macaba vai ganhando fora medida que preenche o espao da narrativa, com
grande dimenso justamente de sua leveza magra e incipiente, no pensante, quando se impe ao
autor, ainda que involuntariamente, mediante o seu silncio, em cuja memria no mora nem os
nomes do pai e da me, os quais a tia nunca mencionou, e ela esqueceu. Algumas marcas, no
entanto, permanecem. Porque comera gato frito em criana, s vezes tinha enjoo, quando comia. E
nunca fora a restaurante, s comia no botequim da esquina, de PE. Mas vivia na ingenuidade de
confiar na afirmao de que quem espera sempre alcana.
Essa plena aceitao de tudo, sem questionamento, leva-a a uma espcie de devaneio, com
deslumbrantes sonhos, ainda que sem xtase. No era santidade. Era apenas uma longa
meditao sobre o nada.

16

Os anncios que recortava de jornais velhos do escritrio, ela colava

num lbum. Nessa coleo de resduos do consumo, o mais precioso era a imagem de um pote de
creme, que a leva a uma concluso: se tivesse um, comeria, a colheradas. E o narrador explica: [...]
que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada
esfarelada. 17
E quando v um homem to, to, to bonito, sente vontade de t-lo em casa. 18
A srie de ingredientes que o romancista vai recortando faz parte de um repertrio
descartado da tradio da arte compromissada com a contemplao do que belo. E a reao do
leitor de certo desconforto e mal-estar. No agradvel conhecer Macaba. No agradvel ler
esse romance. D repulsa. s vezes enjoo. Pode-se, pois, afirmar que o mesmo no com que
compe a personagem, o autor usa para compor esse livro que se faz contra si mesmo, que se mata a
cada pgina, pela carga de dados negativos que vai somando, de modo a no deixar que nenhum
valor se sustente. Sob este aspecto, o livro mesmo uma exploso que tudo desmonta e desmitifica.
Da, no entanto, a razo tambm do seu valor artstico, criando uma espcie de magnetismo de
atrao do narrador e do leitor por essa personagem, a mais abjeta.
______________________________________
16 Ibid, p.47
17 Ibid, p.48
18 Ibid, p.50

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Tal magnetismo no s nos fisga pelo estranhamento dessa figura, Macaba, como pelo
estranhamento do seu narrador, que assim se descobre, estranho entre todos, atravs dela. Centrado
na conscincia do seu papel profissional de escritor e de sua classe social mais favorecida, o
romancista conta com patrimnio intelectual. Mas sabe que a leitura do romance suprflua para
quem tem fome: analfabeto no l. Sabe que para a mdia burguesia, o romance apenas vlvula
pela vida massacrante que tal classe leva, sem perspectivas mais concretas de mudanas. E sabe que
a classe alta o ignora ou o tem como um monstro esquisito.

19

Tem um livro e no conta com

possveis leitores. Tal como Macaba, o narrador, atravs dela, ironicamente, descobre-se tambm
deslocado.
O namorado: Olmpico
Era um namoro ralo. Nem poderia ser diferente, sendo Macaba quem .
E comea no ms de maio, tido tradicionalmente como o ms das noivas. Teve at certa
preparao, ainda que involuntria. A moa nordestina mente ao patro que arrancar um dente e
consegue um dia de folga, quando pode desfrutar do quarto todo para ela. Justamente no ms de
maio, quando encontra a primeira espcie de namorado de sua vida, pela primeira vez Macaba
fala no romance. Conversa- se a isto se pode chamar de conversa com o moo que encontra, no
meio da chuva.
A primeira reao do namorado, quando ele lhe pergunta seu nome e ela responde, de
estranhamento. Ele no entende: Maca o qu?. E comenta que esse nome at parece doena,
doena de pele. 20

Configura-se a esquisitice de Macaba agora a partir do seu prprio nome.

S num outro encontro que ela se lembra de lhe perguntar o nome e ele responde: Olmpico de
Jesus Moreira Chaves, encobrindo o nome que era apenas Olmpico de Jesus, levando o de Jesus
tpico dos que no tm pai.

___________________________________
19 Ibid, P.24
20 Ibid, P.53

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A realidade dos dois parecida: ambos nordestinos, deslocados na cidade grande. Eram,
como afirma o narrador dessa histria, bichos da mesma espcie que se farejam. 21 Mas h uma
grande diferena entre os dois: ele acha que sabe; ela no acha nada. Ele tem ambies: livrar-se
dessa vida pela ascenso social, ainda que atravs de recursos ilcitos, como o roubo, o assassinato,
o casamento com parceira de posio social mais elevada. Por isso no admite que no sabe
certas coisas, como o prprio significado de seu nome, Olmpico. Por isso afirma ser metalrgico,
no simplesmente operrio. Ela, por sua vez, acha que no precisa vencer na vida. 22
Durante o namoro, h coincidncias desagradveis: quando se encontram, chove sempre. E
nas conversas, h falta de assunto. Impossvel haver troca de ideias, emoes, pensamentos, j
que o sentido no caminha, fica esttico, na tautologia, isto : uma coisa sempre essa coisa mesma
e no uma outra. Tal tendncia natural em Macaba para ela as coisas so o que so e pronto.
Para ele, a coisa ser apenas o que uma opo adotada por esperteza, para assim se safar de
situaes embaraosas.
Por isso Macaba responde ao p da letra, sem atentar para os outros sentidos de qualquer
palavra. Ou responde com sentido aproximado: para ela, amor um no-se-o-qu.

23

Ou

dizer qualquer coisa, como quando param em rente a uma loja de pregos, parafusos, canos e latas:
-Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?. 24 s vezes, pressionada por Olmpico que a
recrimina por no dizer nada diz frases que ouve na Rdio Relgio, ensinamentos inteis do tipo
e voc sabia que..., como esta: E voc sabia que a mosca voa to depressa que se voasse em linha
reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias? 25

________________________________________
21 Ibidem
22 Ibid, p.60
23 Ibidem
24 Ibid, p.54
25Ibid, p.68

10

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Quando Macaba lhe pergunta coisa que no sabe, j o malandro Olmpico tem outras
sadas: agride Macaba, repreendendo-a por fazer tanta pergunta; ou recrimina-a porque

faz

perguntas para as quais no h resposta. durante um passeio no Jardim Zoolgico que Macaba
lhe pergunta: Na Rdio Relgio disseram um apalavra que achei meio esquisita: mimetismo.
As palavras, aqui, so coisas, quase personagens, que fazem parte do repertrio do que o romance
discute:a linguagem e o universo da representao. Olmpico no sabe responder, olha para ela
desconfiado e a repreende, usando a fora de macho: - Isso l coisa para moa virgem falar? E
para que serve saber demais? O mangue est cheio de raparigas que fizeram perguntas demais .
Numa s fala, para camuflar a prpria falha (ele no sabe o que mimetismosignifica), o homem
atribui mulher uma moralidade ( h coisas que ela no pode fazer ), a ignorncia (ela no precisa
saber demais) e dirige-lhe uma ameaa ( o castigo para a mulher desobediente seria viver no
mangue, como prostituta, lugar s pra homem ir) 26 .
A reao de Olmpico, em relao a Macaba, pode ser a de ns leitores, diante dela. Em
meio a um dilogo sem nexo j que habitam diferentes universos e no conseguem se entender
ele lhe faz pergunta crucial: [...]Escuta aqui: voc est fingindo que idiota ou idiota mesmo?
Esta talvez seja a afirmao que mais propriamente traduza o modo de ser de Macaba e nosso, de
leitor, que diante dela temos uma reao dbia: ela provoca em ns o riso, seguido de uma certa
culpa de haver rido. Ela e no idiota. E ns rimos e no rimos dela.
A resposta de Macaba tambm significativa, no contexto do livro, quando ela lhe
responde: No sei bem o que sou, me acho um pouco...de qu?...Quer dizer no sei bem quem
eu sou. Ou seja: o que ela , para ela, indefinvel.Ela personaliza, sob tal aspecto, a verdade que
nunca se atinge, a representao pela palavra que nunca fiel coisa representada, j que o
mimetismo (a representao) sempre uma imagem do real, nunca a coisa em si. Essa coisa
inexplicvel. Como Macaba inexplicvel e acaba sendo construda pela seu criador por tentativas
de aproximao do que talvez ela seja.
Tanto que, logo em seguida comprova-se a diferena entre os dois personagens, no dilogo
em que Olmpico lhe pergunta se ela sabe pelo menos que se chama Macaba. E ela responde: -
verdade. Mas no sei o que est dentro do meu nome. S sei que eu nunca fui importante [...] a que
o Olmpico namorado responde: - Pois fique sabendo que meu nome ainda ser escrito nos jornais
e sabido por todo o mundo.27 Ela, vivendo naturalmente a falta ou o oco de si mesma num
eterno presente. Ele, projetando um futuro promissor, pela exibio e propagao das aparncias.
_____________________________________
26Ibid, p67

27Ibid, p.68

11

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Nessa altura, o narrador, que deixara os seus dois personagens dialogando, volta a assumir a
narrativa, um tanto surpreso por estar ali, apenas registrando os fatos, sem falar de si. Por isso
indaga,intercalando-se na histria, entre parnteses: Mas e eu? E eu que estou contando esta
histria que nunca me aconteceu e nem a ningum que eu conhea?. Trata-se de ironia do autor,
que sabe que histrias como esta esto acontecendo a cada instante. E ao mesmo tempo em que
afirma que faz fico a histria inveno volta-se para si mesmo justamente para mostrar que
ele sabe, ou seja, fica abismado consigo mesmo por saber tanto a verdade, sendo este o seu
ofcio de escritor, o de adivinhar na carne a verdade que ningum quer enxergar.

28

Mais uma

ironia desse narrador, ao afirmar a fora da sua ao ficcional, quando a verdade abafada por ele
desvelada, nesse seu universo ficcional.
Mas o tal namoro s poderia no dar em nada. A vida de Macaba era insossa, que nem po
velho sem manteiga. E ele era um diabo premiado e vital e dele nasceriam filhos. 29 Se ele tinha
o smen, ela tinha ovrios murchos. Dito e feito. O namoro tem um fim.
A colega: Glria
quando o narrador de repente descobre que Olmpico no estava satisfeito com o namoro e
se interessa pela colega de escritrio de Macaba, Glria. Enquanto Macaba era subproduto,
Glria tinha classe e, apesar de feia, era bem-alimentada. Tinha me, pai, comida na hora certa. E
o pai ainda trabalhava num aougue...
Quando se desfaz o namoro, Macaba, que esperava ficar noiva e se casar, que tinha desejo
e sensualidade, ainda sem saber que tinha, no chora. Reage como sempre: aceita, sem choro. At
ri, sem saber bem por que razo. No sente nem tristeza porque tristeza tambm era coisa de
rico, era para quem podia, para quem no tinha o que fazer. Tristeza era luxo.30
E compensa a falta com algo que lhe dava prazer:j que os outros no lhe faziam festa
nenhuma, ela promove para si uma festa particular, no dia seguinte ao do final do namoro. Compra
batom novo, bem vermelho, pinta os lbios, mas quando olha no espelho, o vermelho mais parece
grosso sangue brotando-lhe dos lbios. E Glria, surpresa, achando que mais parecia
endemoniada e prostituta, mulher de soldado, lhe faz uma pergunta terrvel: - Ser feia di?31
Alis , Macaba toma aspirina porque ela se di o tempo todo. 32
____________________________________________________
28 Ibid,p.69
29 Ibid,p.71
30 Ibid,p.74
31 Ibid,p.75
32 Ibid,p.77

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Nessa altura, Macaba se encontra mais prxima de Glria, que era estengrafa, ganhava
mais e no se atrapalhava com as palavras difceis. Para Macaba, Glria era um estardalhao de
existir.33 Tem o que Macaba sempre desejou: a gordura. E o eu tentou ter, fazendo tia o nico
pedido da sua vida: tomar leo de fgado de bacalhau, que vira em um anncio, o que lhe foi
negado, porque era um luxo. Glria tinha tambm sensualidade, com seus plos oxigenados,
pintinha junto da boca, buo forte que parecia bigode, traseiro alegre, ar de ningum manda em
mim.
Combinava, ento, com Olmpico, que para impression-la e conquistar posio de macho,
mastigara pimenta malagueta sem nem beber gua depois. Olmpico tentaria continuar escondendo,
envergonhado, seu corao solitrio para subir na vida e entrar nesse mundo dos outros. E o
narrador perdoa essa ambio desenfreada, que surge por injuno social, um tipo de massacre da
espcie indefesa. O sertanejo antes de tudo um paciente. Eu o perdoo.,

34

afirma o narrador-

leitor de Os sertes, de Euclides da Cunha, que parodia a frase em que o escritor afirma que o
sertanejo antes de tudo, um forte.

35,

pardia que a funciona como um libelo poltico de defesa

do povo to explorado, que tem de se armar para sobreviver, e que ainda no consegue esperar pela
sua hora.
Se Macaba no chega a ser amiga de Glria, nem esta, dela, Glria tinha no entanto
atenes para com Macaba. Conversava com ela, no escritrio. Dava-lhe aspirina, quando
precisava. Ria-se dela, sem maldade. Era uma safadinha esperta, mas tinha fora de corao. Mas
no era amiga, era apenas colega. Afinal, afirma o narrador: Ningum pode entrar no corao de
ningum.36
Macaba tinha em Glria uma conexo com o mundo, ainda que leve, como j tivera, no
passado, com a tia, seu Raimundo, Olmpico e as moas com que repartia o quarto. No campo dos
sonhos havia ainda presenas constantes, como o retrato de Greta Garbo, que Macaba admirava,
embora quisesse ser mesmo Marilyn Monroe. Este mundo de leves conexes iria contar ainda com
mais dois elos: o mdico e a cartomante.

________________________________________________
33 Ibid,p.74
34 Ibid,p.79
35 Euclides da Cunha, Os sertes, edio crtica por Walnice Nogueira Galvo (So Paulo: Brasiliense/Secretaria do Estado da Cultura, 1985) p.179
36 Clarice Lispector, A hora da estrela, cit., p.78

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O mdico de pobre
Convidada por Glria para tomar lanche em sua casa, no subrbio carioca, Macaba bebe e
come demais. E passa mal. Mas no vomitou para no desperdiar o que havia comido. Dois dias
depois, com o dinheiro do salrio, procura o mdico barato indicado por Glria. E a consulta
mostra mais uma situao de calamidade, quando a pobreza a grande doena, pois o mdico lhe
pergunta se faz regime (pois era to magra), o que ela comia (era cachorro-quente e s vezes
sanduche de mortadela) e o que bebia (s caf e refrigerante).
O que faz um mdico de pobre que detesta ser mdico de pobre? D o mnimo de si, j que
no ganha o dinheiro que gostaria de ganhar. Finge que no percebe nada dessa misria. E lhe
recomenda procurar um psicanalista, porque comer s cachorro-quente era pura neurose. Depois de
lhe tirar um raio X, constata comeo de tuberculose pulmonar, ao que ela responde: -Muito
obrigada, sim? E lhe recomenda um bom prato de espaguete bem italiano.37 Ao final, depois de
lhe recomendar que no tomasse lcool, e ela no entender o que significa , ela explode: - Sabe de
uma coisa? V para os raios que te partam!. Se por um lado o mdico assume atitude cnica,
misturada com certo sadismo e grosseria, por outro lado parece tambm vtima das circunstncias,
deixando explodir sua prpria impotncia diante das adversidades.
O narrador se insere novamente na histria para manifestar a Macaba a sua paixo: Sim,
estou apaixonado por Macaba, a minha querida Maca, apaixonado pela sua feira e anonimato
total pois ela no para ningum.

38

nesse momento que o narrador, empolgado por sua pobre

criatura amada, praticamente resume o que Macaba:

Maca, porm, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser

de parca palavra.
E acontece que no tinha conscincia de si e no reclamava
nada, at pensava que era feliz.
No se tratava de uma idiota, mas tinha a felicidade pura
dos idiotas. E tambm no prestava ateno em si mesma:
ela no sabia. 39

____________________________
38 Ibid,p.82
39 Ibid,p.83

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Inspirado por seu objeto artstico e continuando o processo da intertroca, o narrador age com
sua matria narrada tal como Macaba, que no pensa. Afirma o narrador, entre parnteses: (Esta
histria so apenas fatos no trabalhados de matria-prima e que me atingem direto antes de eu
pensar. sei muita coisa que no posso dizer. Mas pensar o qu?) 40 Ser que diz ele a verdade? Ou
mente, como tambm mente Macaba, infantilmente, pois achava que boa educao saber
mentir? 41
quando Glria, talvez por remorso, sugere a Macaba procurar tambm uma cartomante.
Afinal, ela arrumara um namorado, Olmpico, porque a cartomante lhe anunciara que assim seria.
Macaba lhe pergunta se caro. Nesse exato momento, o narrador mais uma vez interrompe o
dilogo para se inserir na histria.
Afirma que est cansado de literatura, cansado talvez da companhia de seus personagens.
E no escreve por trs dias. Sozinho, sem personagens, despersonalizo-me, como se tirasse uma
roupa, afirma ele. E quando volta, sente falta de Macaba. E d sequncia ao dilogo. Este intervalo
incontrolvel, desfazendo-se por momentos da experincia to intensa que a de criar essa histria,
seria mais uma estratgia narrativa do autor, manifestando medo, apreenso, ansiedade diante do
que ainda ter de contar, tentando, assim, mais uma vez, adiar o andamento da sua histria. E dessa
forma habilmente cultiva uma espcie de suspense, aumentando a ansiedade do leitor.
Macaba, com dinheiro emprestado pela colega Glria, rumou para Olaria, de txi, achou
facilmente o apartamento trreo, e, enquanto tocava a campainha, notou que entre as pedras do
cho crescia capim, e que capim to fcil e simples. 42 Alis, to fcil e simples como a prpria
Macaba. E como Rodrigo gostaria de ser. Pelo menos o que ele nos afirma a cada passo do
romance, o que no entanto tambm pode ser mais um recurso de que se vale para nos seduzir,
provocando em ns a paixo por Macaba, paixo que ele prprio afirma sentir pela sua pobre
Maca. Esta tambm de amor do autor por sua criatura.

_______________________________
40 Ibid,p.84
41 Ibid,p.83
42 Ibid,p.86

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A cartomante
Com a cartomante ser dada a ltima cartada na vida de Macaba, no sentido de retir-la
desse vazio, inserindo-a naquilo que se acredita ser felicidade. Mas o que Macaba recebe mais
um no, disfarado de sim, atravs da aparncia fingida da eficincia da cartomante que tenta
seduzi-la com encenaes e mentiras. Macaba, encantada, admira a sala, onde tudo era de pltico:
poltronas, sofs, flores. E depois que de l sai uma moa com olhos vermelhos de tanto choro,
finalmente recebida por Madame Carlota, maquiada com exagero e mau gosto.
Enquanto fala, a cartomante come bombons, que no oferece a Macaba, que, por sua vez,
no estranha, j que aprendera que as coisas so dos outros.

43

E enquanto a cartomante conta

vantagens, fica patente tambm a sua misria, pois passa pela prostituio, pega doenas, sofre
decadncia fsica, vtima de violncias e exploraes. E ao ver as cartas, intercala comentrios de
mulher experiente, como por exemplo: cheiro de homem bom e faz bem para a sade;entre
mulheres o carinho muito mais fino.44
Quando Macaba corta as cartas com a mo trmula, o leitor percebe que a personagem
efetivamente colocada em cena caminha para um momento de grandiosidade: pela primeira vez ia
ter um destino. 45 Cria-se um certo suspense, diante da revelao que lhe ia ser dada.
H dramaticidade na fala da cartomante, com o objetivo de impressionar sua cliente,
quando lhe conta como foi e a sua vida, alis, to fcil de adivinhar. E, de repente, muda o curso
da sua verso em relao vida de Macaba: promete-lhe a felicidade. E prev mudana a partir do
momento em que ela sair daquela casa: ter o namorado de volta, haver casamento, o emprego
estar garantido pelo atual chefe, haver dinheiro trazido por homem estrangeiro, alis, o casamento
ser com um estrangeiro que parece se chamar Hans e que alourado e tem olhos azuis ou
verdes ou castanhos ou pretos. 46 e tem muito dinheiro, e vai lhe vestir com veludo e cetim e at
casaco de pele. 47
A charlatanice da cartomante fica patente. moa que de l sara chorando e que seria feliz,
a cartomante anunciara infelicidade. Macaba, anuncia a concretizao de sonhos que a moa
experimenta numa espcie de torpor. Sente-se tonta, o corao bate-lhe forte, fica bbada,
desorientada, assume que est apaixonada pelo gringo que nem conhece: Hans. E parte de
encontro ao seu maravilhoso destino 48
_______________________________________________________
43 Ibid,p.88
44 Ibid,p.89
45 Ibid,p.91
46 Ibid,p.92
47 Ibid,p.93
48 Ibid,p.94

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A morte
Agradecida, Macaba d um beijo na cartomante, ela que s beijava a parede, quando
pequena, porque no tinha a quem beijar. E consegue ver que sua vida era uma misria. Ao sair
dali, no final da tarde, sabe que houve mudana e por palavras. Assim como havia sentena de
morte, a cartomante lhe decretara sentena de vida. 49 Comeou a atravessar a rua. E foi atropelada
por um carro amarelo, um Mercedes-Benz enorme como um transatlntico, carro que tem
justamente uma estrela como smbolo.
Essa outra queda, Macaba tambm no lamenta. Nem se d conta do que realmente lhe
estava acontecendo, quando um fio de sangue lhe escorre da cabea, a cara voltada para a sarjeta,
onde viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperana humana.
Hoje, pensou ela, hoje o primeiro dia de minha vida: nasci. 50
O narrador faz breves comentrios que vai encaixando na narrativa, ora tendendo a
recomear a histria, antes do atropelamento, ora constatando que a verdade irreconhecvel para
os homens e, portanto, no existe, ora indagando, to aflito, se toda histria que j se escreveu no
mundo histria de aflies.
Macaba lutava ali, muda, sem gritar, perto da sarjeta e do capim entre as pedras do beco,
quando comeou a garoar. E pela primeira vez as pessoas que se aproximam olham para ela.
Ela no morre logo. Pelo contrrio, o narrador indaga, ainda se ela vai mesmo morrer, como
que lutando contra este destino, ainda que algum j tenha posto ao lado do corpo uma vela acesa. E
indaga a respeito desta sua narrativa: assim que se escreve? No, no acumulando e sim
desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela a palavra final.
Nesse final, Macaba est prxima de ser o que ela : Macaba desnuda pelo narrador, reduzida ao
que na realidade : Macaba. Ou: Nada. Por isso afirma o narrador: Enquanto isso, Macaba no
cho parecia se tornar cada vez mais uma Macaba, como se chegasse a si mesma. 51
O narrador ainda tateia o tempo e indaga se chegou a hora: Acho com alegria que ainda no
chegou a hora de estrela de cinema de Macaba morrer. Se poderia j matar Macaba, adia, porque
quer o pior, que a vida, a qual lega a ns, leitores, como um soco no estmago. quando v
Macaba abraada a si mesma, em posio fetal, repetindo eu sou, sem saber quem era: Era uma
maldita e no sabia.

52

Ela, ali, espera da morte, como ns todos: porque ela est como ns na

vspera de morrer.
Nessa agonia ltima, em que a morte se confunde com o desejo e o gozo, de forte apelo
sensual, Macaba descobre-se tambm mulher: [...] pois s agora entendia que a mulher nasce

17

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mulher desde primeiro vagido. O destino de uma mulher ser mulher

53

E pronuncia as palavras

que ningum entendeu, apenas o narrador: Quanto ao futuro.54 E que parecem como um dos treze
ttulos do livro, que fica vibrando no leitor, em suspenso, como uma porta aberta para o nada.
nessa hora que Macaba transpassada pela tortura interior, tenta expelir o seu mago:
Nesta hora exata Macaba sente um fundo enjoo de estmago e quase vomitou, queria vomitar o
que no corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. 55 E vomitou um pouco de sangue.
O narrador conta como se deu este derradeiro momento da morte por algumas imagens, sendo, cada
uma, uma tentativa de traduo dessa devorao, a morte como ato selvagem e instintivo de luta
pela sobrevivncia: E ento ento o sbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a guia
voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraalhando um rato sujo e
qualquer, a vida come a vida. O narrador mata sua personagem, para que sua histria acabe, ele
tambm bicho devorando sua presa. Mas tambm ocorre o contrrio. Macaba me matou, afirma
ele.
Macaba uma parte do autor, com a qual ele, finalmente, se encontra, aps tensionar, at as
ltimas consequncias, o fio de tal defrontao, ele morrendo com ela. A morte um encontro
consigo, afirma ele. S resta ao narrador acender um cigarro e ir para casa, quando manifesta o
que todos ns, leitores, sentimos, nessa gradual aproximao da Macaba, que a essa altura,
tambm nossa: Meu Deus, s agora me lembrei que a gente morre. Mas mas eu tambm?! 56
O narrador acompanha assim Macaba nas suas incurses pela vida passando pelos vrios
espaos possveis: o campo profissional do trabalho, o campo sentimental das relaes afetivas, o
campo fsico da sade, o campo religioso das crenas e seitas msticas. Mas em nenhum deles h
uma porta de sada. No entanto, a viso que se tem de Macaba no uma viso negativa.
Por um lado ela encarna o no ter, num mundo regido pela premncia do ter, concluindo-se
que neste nosso pas, pobre no tem vez. Mas ela tambm encarna o milagre da sobrevivncia como
espcie arcaica que resiste, na sua fora instintiva de bicho forte, enquanto matria viva pulsando,
imune violncia dos agravos que a vida lhe prepara a cada instante.
__________________________________________
49 Ibid,p.95
50 Ibid,p.96
51 Ibid,p.98
52 Ibid,p.100
53 Ibid,p.101
54 Ibid,p.102
55 Ibid,p.101
56 Ibid,p.103

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A Terceira histria
Macaba tambm imagem positiva de certo encanto que se tenta agarrar. Sob tal aspecto,
encarna o gosto pela palavra, que tambm coisa inatingvel. Da sua paixo pela palavra
efemrides, ainda que sem saber o que significa. E pela coisa-livro. Ouve na rdio que h um
livro chamado Alice no pas das maravilhas. E se sente atrada por um livro que o chefe deixara em
cima da mesa e que se chama...Humilhados e ofendidos. 57 Mais ironias, cruis, do autor.
Macaba , que nunca recebera nem carta nem telefonema, sonha em ser artista de cinema, s
ia ao cinema quando o chefe lhe pagava o salrio, e em cinema poeira que era mais barato. Adoro
as artistas. Sabe que Marilyn era toda cor-de-rosa? Gostava de musicais. E de filmes de terror.
Com a ingenuidade de quem acredita em tudo que lhe dizem ou que v, acredita em anjos.
Essa ingenuidade inofensiva e indefesa causa consternao enternecida, por parte do
narrador e do leitor. Porque apesar de toda a sua pobreza, ou misria, no havia nela misria
humana. que tinha em si mesma uma certa flor fresca. De fato, nessa reduo a si mesma,
consegue ser, ainda que involuntariamente ou inadvertidamente, matria vivente em sua forma
primria. E se basta a si, no pouqussimo quase nada de que se compe, j que tem apenas a
pequena flama indispensvel: um sopro de vida. 58
E no seria essa a ambio, escondida, do narrador? Nesse processo todo de aproximao da
sua personagem, o que ele quer justamente atingi-la, atingindo-se no seu mais de dentro possvel,
encarando a falta. Quando pensa que poderia ter nascido ela, estremece e sente culpa. Mas ao
conseguir matar Macaba, com ela morrendo, enquanto autor, no teria ele atingindo o mago de si
tanto do ponto coletivo, social, de classe? Em ambos os casos, emerge uma intimidade at ento
resguardada, abafada, camuflada, diante desse seu lado o mais miservel e desprezvel.
A espinha dorsal de Macaba como persona ficcionalreside numa constatao: H os que
tm. E h os que no tm. muito simples: a moa no tinha. No tinha o qu? apenas isso
mesmo: no tinha.
Esse aparente fatalismo de Macaba apenas reala por contraponto, o permanente estado de
crise e disponibilidade de grito e revolta por parte do narrador, que sente por Macaba o que
Macaba no tem condio de experimentar por si mesma: o direito ao grito, mediante o
compromisso srio com a reivindicao.
O leitor tem uma misso, pois, a cumprir, que nos delega, a ns, como leitores-cmplices
deste destino: ([...] se houver algum leitor para esta histria quero que ele se embeba da jovem
assim como um pano de cho todo encharcado. A moa uma verdade da qual eu no queria saber.
No sei a quem acusar mas deve haver um ru.) 59
19

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Tal como outras tantas personagens da fico de Clarice Lispector, como Joana, Virgnia,
Lucrecia, Lori, G.H, ngela, ou Ana e Laura, Macaba integra-se num circuito de mulherespersonagens desestabilizadoras da ordem e instauradas de questionamentos pela prpria palavra,
num bombardeio da linguagem que inaugura uma nova postura diante do processo do sentido e da
significao. 60
Macaba o nome ou a palavra que a gente no precisa entender. Mas perceber. o que
tais personagens femininas e algumas masculinas como Martim, por exemplo de A ma no
escuro conseguem traduzir, ao longo dessa fico. Macaba afirma, quando no entende o que
Olmpico: [...] a gente no precisa entender o nome.

61

Ironicamente, acaba-se desprezando

tambm o olmpico, coisa de homem que sabe e que quer vencer na vida.
Por isso Macaba musical. Ultrapassa a carnadura da palavra. Sob este aspecto, a
personagem como um som que se soma aos outros. E o livro pode ser lido ou ouvido como se
fosse uma partitura. O narrador grita no incio uma msica de dor, melancolia sincopada e
estridente, 62 sua histria tem ritmo descompassado e lhe falta melodia cantabile, num alegro
com brio, tendo como contratom o baixo grosso da dor.
grosso e baixo , grave e terra,

64

ou mesmo a flauta doce,

63
65

Quer alcanar o trombone mais

acompanhado pelo rufar enftico

de um tambor batido por um soldado, que cessar quando comear a contar a histria,

66

com

acompanhamento de violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina, 67 enquanto
conta a histria de Macaba, ou toca nela. A nica coisa belssima na vida de Macaba ter
ouvido Uma furtiva lacrima, cantada por Caruso. E a leitura do livro um mergulho na vastido do
mundo musical que no carecia de se entender. 68

___________________________________________
57 Ibid,p.50
58 Ibid,p.48
59 Ibidem
60 Desenvolvo essas propostas em: Clarice, uma vida que se conta (So Paulo: tica, 1995)
61 Ibid,p.55
62 Ibid,p.15
63Ibid,p.21
64 Ibid,p.25
65 Ibid,p26
66 Ibid,p.28
67 Ibid,p30
68Ibid,p62

20

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Se os fatos so sonoros, entre eles h o sussurro, tal como o sopro de vida de Macaba. E na
hora da morte, como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.
hora da sua morte,

70

quando os sinos badalam, sem som.

71

69

H o tocador de violino na

Enfim, o substrato ltimo da msica

era a sua nica vibrao.72

Se a msica domina, esparramando-se entre as palavras, favorecendo a leitura como uma
percepo de sensaes mltiplas, outras artes concorrem, no sentido de dar conta de quem
Macaba, que transfigurada pela pintura, ora figurativa, ora mais abstrata; pelo desenho, quando
se quer alcanar uma sensao fina e que esse finssimo no se quebrasse em linha perptua; pela
fotografia, nas inmeras fotos que o narrador tira dessa personagem; por um evento , que conta com
patrocnio de refrigerante clebre, a coca, e como se fosse um espetculo de teatro, com um
narrador que se encontra mais ator, e que, com malabarismo de entonao, obriga o respirar
alheio a lhe acompanhar o texto. E amarrando as vrias sequncias de experincias de Macaba
e do narrador, surgem, repetidamente, nos momentos mais efusivos, as exploses, entre
parnteses, como marcao cnica da reao da personagem.
E acorrem tambm diferentes vozes, de diferentes lugares, numa mistura tambm
descentrada, sem o poder de centro classificador e hierrquico. como se a preocupao erudita de
usar os recursos do metarromance, que o narrador manipula com requintes de apurada sofisticao,
fosse se abrindo aos recortes extrados do repertrio oral das frases feitas, de sabedoria popular,
como por exemplo: Um meio de no obter no procurar, um meio de ter o de no pedir. 73 A
voz do documento oficial aparece, quando escreve como se fosse por motivo grave de fora
maior, ou por fora de lei.

74

E do imaginrio nordestino vem a imagem da literatura de cordel,

explicitamente mencionada nesta espcie de folhetim melodramtico, com encaixe de histrias

ouvidas na infncia a histria do velho que montou nas costas do jovem e depois que atravessa o
rio, no o abandona mais e de cantigas de roda: Quero uma de vossas filhas de marr-marrdeci.
E h o discurso de declarao amorosa: [..] que que voc me pede chorando que eu no
lhe d cantando.
As vozes dos meios de comunicao de massa emergem nos programas de rdio a Rdio
Relgio com as msicas sentimentais, marcao do tempo, ensinamentos tpicos da chamada
cultural de almanaque, absolutamente inteis, do tipo: [...] o nico animal que no cruza com filho
era o cavalo

75

e anncios comerciais. Os recortes de anncios extrados de jornais e revistas

compem o lbum da memria dessa moa alijada do consumo, peas da cultura de sucata reciclada
e guardada por Macaba.

E o mundo hollywoodiano do cinema est presente nas paredes do seu

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quarto de penso, onde prega retratos de Greta Garbo e Marilyn Monroe, modelos de beleza e
gostosura que alimentam a fantasia inocente de Macaba.
O autor implcito parece se servir de todas as artes e de todas as vozes para querer preencher
a falta que a sua Macaba lhe faz sentir. Mas todo o esforo intil. O arsenal das representaes
lhe deixa apenas a constatao de que tudo isso nada vale a no ser como moeda que se contesta, e
que se destri, para, mediante o uso desse repertrio, destruir sua prpria eficcia de representao,
num processo suicida da palavra e da arte em geral. A palavra s vale quando dela no se precisa
mais, atingindo o sentido pleno na nudez do silncio.
A quarta histria
Se Macaba nasce de pais cujos nomes se perdem na memria, e se tem como pai tambm o
narrador, que a pariu, ao longo da sua narrativa, tem tambm uma relao de maternidade forte com
a autora, que Clarice Lispector.
E a histria de Macaba, em certos aspectos, na sua relao com Clarice Lispector, se repete.
Clarice Lispector conta, em fevereiro de 1977, em entrevista para a TV Cultura de So Paulo, que
passeava pela feira dos nordestinos do bairro de So Cristvo, no Rio de Janeiro, quando apreende
o olhar de uma moa nordestina meio que perdida na cidade grande. E faz anotaes sobre
personagens do romance. Informa: a histria de uma moa nordestina, de Alagoas, to pobre que
s comia cachorro-quente. E complementa: A histria no s isso, no. A histria de uma
inocncia pisada, de uma misria annima.
Nessa mesma entrevista no conta o nome da nordestina, Macaba. Nem o ttulo do livro,
que seria publicado nesse mesmo ano de 1977, A hora da estrela. Mas anuncia, nessa entrevista,
que o livro tinha treze nomes, treze ttulos, mantidos, alis, desde a primeira edio em coluna
vertical, e com seu nome prprio de autora, Clarice Lispector, inscrito entre eles, sob a forma de
assinatura. A lista dos ttulos do livro, antecedendo o incio da histria, pelas muitas sugestes que
traz ao leitor, funciona com uma espcie de guia de possveis leituras, como fossem pontas de uma
estrela que projetam em vrias direes, fios de sentido que podem ser puxados pelo leitor, ao
escolher algum ou alguns desses ttulos, se quiser.
O nome da personagem, Macaba, nos remete ainda a tempos mais remotos, dos macabeus,
gente forte que resistiu aos gregos defendendo o templo no Monte Sio e recusando-se a
desobedecer as leis judaicas. Impossvel deixar de remeter a outro dado biogrfico de Clarice
Lispector, descendente de judeus russos que vieram da Ucrnia para o Nordeste, justamente para
Alagoas, s depois para Recife, no incio da dcada de 1920. Convm lembrar tambm que a
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famlia, para fugir da misria, emigra pra o Rio de Janeiro, na dcada de 1930, perfazendo assim um
trajeto semelhante ao da sua personagem, Macaba.
As implicaes da autora com sua personagem so evidenciadas pela prpria Clarice. Na tal
entrevista Clarice, que naquela altura morava no Rio de Janeiro, afirma que morou em Recife, foi
criada no Nordeste e ainda teve uma cartomante, que funcionou tambm como motor da histria do
seu romance: [...] fui a uma cartomante e imaginei...que seria muito engraado se um txi me
pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Ento foi
nascendo tambm a trama da histria.
Essa entrevista foi concedida por Clarice Lispector no seu ltimo ano de vida, quando ento
solicitou ao seu entrevistador, Jlio Lerner, o compromisso de s lev-la ao ar depois de sua morte.
Clarice Lispector morreu no dia 9 de dezembro de 1977. E o entrevistador manteve seu
compromisso. 76
Se Clarice Lispector acaba presente na nossa leitura pelas inevitveis associaes entre os
dados biogrficos da autora e de suas personagens Macaba e Rodrigo -, ela se faz tambm
explicitamente presente enquanto autora da novela num texto de dedicatria, publicado antes da
lista de ttulos da novela e intitulado Dedicatria do autor (Na verdade Clarice Lispector). A
evoca nomes de pessoas, na maioria de msicos, aos quais dedica esta sua obra, A hora da estrela,
pessoas em nome das quais ela escreve, j que precisa dos outros e sem esses outros ela no vive,
ou melhor, em funo dos outros ela tenta saber quem . Por isso escreveria a novela, para saber,
atravs de Macaba, e de Rodrigo, quem seria ela mesma, Clarice?

__________________________________________
76 Essa entrevista foi publicada, com texto introdutrio de Jlio Lerner intitutulado A ltima entrevista de Clarice Lispector, em Shalom, ano 27,
n296, So Paulo,PP.62-69

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No s. Diria que Clarice Lispector no se confina numa identidade nica, mas se desdobra
nas muitas vozes de que povoa a sua narrativa, numa espcie de orquestrao ficcional que tende,
como tudo, para o silncio. E abre novas perspectivas de sentido nossa Macaba, ao anunciar por
exemplo, que esta histria, tambm transfigurada nessa coisa a, tambm inexplicvel, acontece
em estado de emergncia e de calamidade pblica e que se trata de livro inacabado porque lhe
falta a resposta. Espera que algum lhe d essa resposta, quem sabe ns, leitores, inseridos assim
nessa trama, logo na primeira pgina do livro. E abre o leque para os cmplices de uma situao,
estimulando os nossos olhos crticos, procurando culpados.
Clarice, que tem nome na capa do livro, que tem assinatura entre os ttulos, que assume a
autoria do texto da dedicatria do romance, autora que se faz presente tambm de modo implcito
na histria, embora desaparea a enquanto autora. Ou melhor: ali permanece, mas travestida de
Rodrigo, a quem ela cedeu a voz, a escritor-homem, para fugir do lacrimejar piegas de mulher. E
teria conseguido? Ou o resultado seria justamente o oposto? Finge que o homem, Rodrigo, o que
conta sem sentimentalismo, para justamente mostrar o contrrio e escrever o que escreveria, como
mulher que e como, na realidade, escreve.
Considerando que Macaba a criao de Rodrigo, que, por sua vez criao de Clarice
Lispector, a autora implcita no romance, num jogo de identidades intercambiveis, segundo
expresso de Benedito Nunes, 77 podemos considerar tanto Macaba quanto Rodrigo tambm com
uma imagem da prpria autora Clarice Lispector, como se a existisse um tringulo: a escritora (da
dedicatria) e o escritor (o narrador do romance) defrontam-se com o seu objeto (o romance, a
palavra, Macaba), desprezvel e atraente, que encanta e repugna, e que afinal inenarrvel: o seu
sentido vazio e nunca se alcana.

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77 Benedito Nunes, O jogo da identidade, em O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector (So Paulo: frica, 1989), p.165

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

FICO BRASILEIRA CRISTINA PRATES

No se esquecer ainda de que esse ser romanesco tambm alimento do artista. Afinal, ao
desmontar os papis, desmonta-se a tradio do romance social dos anos 1930 no Brasil, que tinha
como um dos temas a misria do nordestino. A literatura de Clarice insurge-se contra a tradio do
realismo histrico e do marxismo terico, tal como observou Silviano Santiago, ao considerar o
romance como literatura poltica a partir da revoluo que se faz na prpria linguagem.78
Acrescente-se, no entanto, que tal romance, j flagrando o nordestino radicado na cidade grande,
no s no confia mais no suporte de tradio realista, que usa tambm, entre tantos outros suportes,
como matria-prima para ser, aos poucos, desmontada pelo narrador, quanto submete o prprio
papel do escritor a tal desmontagem: o escritor tambm usa o pobre como objeto de romance. S
atravs da ironia o narrador poderia levar adiante, como, alis, leva, tal situao de conflito suicida
da criao romanesca.
A quinta histria
A derradeira histria de Macaba s possvel absorver lendo o texto, do incio ao fim, para
se saber que, afinal, ela aparece apenas a partir de determinados detalhes, que sempre remetem ao
nada que ela e que se tenta tocar, agarrar, preencher, nessa busca de sentido, incurso inglria
atravs da leitura da ova de arte literria. E que nos traz, pelo menos, uma constatao: Macaba,
na verdade, Macaba, essa podemos perceber, apenas vez ou outra, de leve, e por alguns
instantes, antes que de novo se nos escape.
Macaba , assim, um objeto a ser tocado, mas para mostrar que intocvel, ou seja, que sua
realidade est to imanentemente grudada na sua condio, que no h o que consiga essa
separao, ou representao. Ela . Ela a coisa desprezvel que rejeitamos: cabelo na sopa.
Mas tambm o ser imune s adversidades que gostaramos de ser: flor fresca.
E se nos escapa, no pela transcendncia: ela no est alm de. Mas pela imanncia: est
inculcada em si. Resguardada na sua prpria maneira de ser, intangvel ao que a cerca, imune ao
magnetismo das relaes sociais, Macaba, essa coisa, permanece sempre num lugar neutro,
utpico, insustentvel, num vcuo, que ao mesmo tempo o lugar da excluso fora dos sistemas,
ser rejeitado; e o lugar em que, enquanto ser vivo, se basta enquanto pulso vital, na vida primria
que respira, respira, respira. Por isso nos causa, ao mesmo tempo, indignao e encantado espanto.

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