Camões e Os Contemporâneos
Camões e Os Contemporâneos
Camões e Os Contemporâneos
e os
contemporneos
Organizadores
Maria do Cu Fraga
Jos Cndido de Oliveira Martins
Joo Amadeu Carvalho da Silva
Maria Madalena Teixeira da Silva
Manuel Ferro
BRAGA 2012
Este trabalho financiado por Fundos FEDER atravs do Programa Operacional Fatores
de Competitividade COMPETE e por Fundos Nacionais atravs da FCT Fundao
para a Cincia e a Tecnologia no mbito do projeto PEST-C/ELT/UI0150/2011
(Ref. COMPETE FCOMP-01-0124-FEDER-022684).
UNIO EUROPEIA
Fundo Europeu
de Desenvolvimento Regional
Ficha tcnica
Organizadores: Maria do Cu Fraga . Jos Cndido de Oliveira Martins . Joo Amadeu Carvalho da Silva
Maria Madalena Teixeira da Silva . Manuel Ferro
Edio: Centro Interuniversitrio de Estudos Camonianos (CIEC)
Universidade dos Aores / DLLM
Universidade Catlica Portuguesa / CEFH
Tiragem: 600 exemplares
dezembro 2012
9 789899 809239
Canto Nono
Hlio J. S. Alves
Universidade de vora Centro Interuniversitrio de Estudos Camonianos
[email protected]
Abstract
This paper is divided into three sections.
1. A quick overview of the last one hundred years of reading The Lusads Ninth Canto, especially an
overview of the place and role of the feminine in the text itself and among its readers.
2. A definition of that which is preventing nowadays an authentic, unencumbered, philologically and
interpretively fair study of Camess contemporary poets as Camess contemporaries.
3. The presentation of a contemporary, alternative Ninth Canto, of an alternative model of the feminine
and of educating the reader.
Keywords: antonomasia, exceptionalism, the feminine, the reader
s discursos sobre o Canto Nono dOs Lusadas constituem das instncias caracterizadoras mais flagrantes da histria intelectual portuguesa do sculo XX.
O trao mais vincado quanto mais alto est o autor do discurso nas hierarquias
anglicas do camonismo. como se entre o camonista e o Canto Nono ocorresse um
choque, um choque de sensibilidades morais, que importa ser imediatamente resolvido por morigerao. s vezes, uma resoluo ligada a tentaes censrias (algumas
tornadas efectivas);1 outras vezes, mediante a translao do erotismo para o nvel do
smbolo, incorporando-o no transcendente e garantindo-lhe a elevao;2 outras ainda,
mais primaveris ou liberais, na observao de que o sentido literal conta, mas de forma
pura, inocente e santa.3 Estas verses, estas formas de contornar o incmodo, fizeram
furor nos ltimos dois teros do sculo, direita e esquerda.
1
Recordem-se as verses dOs Lusadas destitudas das partes mais erticas do Canto Nono
impressas para o ensino escolar durante o Estado Novo salazarista.
2
Hernni Cidade e Vtor Aguiar e Silva, com timbres diferentes, representam esta tendncia.
Para o primeiro, a Ilha o ltimo dos smbolos no poema destinados a exprimir o significado transcendente do descobrimento (Cidade, 1985, pp. 106 e 113). Para o segundo, Voltaire, ao chamar a ateno
para o meretriciado latente no Canto Nono dOs Lusadas, teria incorrido na mais grave falta que pode
cometer um leitor do trecho: a assimbolia (Aguiar e Silva, 1994, p. 138).
3
Jacinto do Prado Coelho reconhece o carcter sensual do episdio, mas afirma que nessa ilha o
amor inocente, sincero, autntico, anterior ao pecado (1985, pp. 61 e 67).
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Por isso, Lopes de Mendona concebe falar sobre o Canto Nono dOs Lusadas nos
seguintes termos, por sinal bem pitorescos:
Ah, portuguesinho valente! Jorra-me da boca esta comezinha apstrofe, que sintetiza na
sua eloquncia plebeia as proezas dos meus compatriotas nas duas modalidades dominantes da sua energia vital, a combativa e a amorosa. Perdoem-me. No me acusem de
menos respeitoso pela grandeza tradicional do assunto. Mas que no sei de linguagem mais adequada a familiarizar-nos [...] com um dos vultos mais grandiosos do
sculo XVI. (Ibid., p. 113)
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O Canto Nono arrecadou assim uma reputao. Uma reputao que a perturbao
moral com a festa ertica e a libertao de fluidos no encontro dos sexos foi insuficiente
para abater. As indulgncias, se no os prazeres gratificados, superaram os reparos.
Culpado ou desculpado, o Canto Nono salvou-se. Pelo sensualismo libertado da culpa,
pelo simbolismo que exautora a carnalidade, ou at pela identificao mais ou menos
fantasiosa de um porto de mar em que se vem talvez demasiado bem, mulheres
com marinheiros, as autoridades camonianas modernas jamais abandonaram o longo
episdio sua sorte. Bem pelo contrrio, incensaram-no como momento nico e
excepcional em toda a poesia portuguesa: o Canto Nono por antonomsia.
*
O problema fundamental em estudar Cames por relao com os seus contemporneos , em larga medida, um problema de antonomsia. Independentemente das
intenes de um projecto como aquele que aqui nos rene, a considerao dada aos
autores e textos classificados como contemporneos de Cames depende desta figura
do discurso.
A antonomsia consiste na colocao dum nome (noma) em vez de (anti) outro,
de tal forma que, no sendo exactamente nem uma metfora, nem uma sindoque, nem
uma perfrase, nem uma metonmia, participa da natureza de todas estas figuras ou
tropos. A antonomsia metafrica quando substitui o nome por outro que possui pelo
menos uma das caractersticas atribudas ao anterior (ex: um tigre homem corajoso e
feroz em combate; um paraso lugar que suscita sentimentos de perfeio); sinedquica quando um indivduo servido por um termo genrico ou vice-versa (exemplos:
o Filsofo; um vndalo); perifrstica quando envolve uma forma de circunlocuo
(exemplos: a Stima Arte; o Cames do Rossio) e metonmica quando se forma por contiguidade semntica (exemplo: os Verdes).
Apesar da sua complexa variedade, a antonomsia , contudo, restritiva. Ela traduz
uma realidade apenas no cdigo cultural respectivo; fora dele, desliga-se e perde o sentido. Sob este aspecto, a antonomsia est naturalmente limitada pela relevncia histrica e pelo desgaste do tempo. No entanto, so frequentes os casos de antonomsia de
longa durao. Os exemplos de sindoque, como o Filsofo e um vndalo, mantm-se
desde a Idade Mdia. Outros no-sinedquicos conservam uma surpreendente resistncia,
apesar das condies que os proporcionaram terem desaparecido h muito. o caso de
Santo Ofcio: apesar de muitos ofcios poderem ser qualificados de santos, a fora
da antonomsia faz com que h quase quinhentos anos haja apenas um sentido para a
expresso em lngua portuguesa. Outros ainda tm origem remota, mas s se consagraram
depois duma acumulao de discursos repetidos sobre eles: o caso de Canto Nono.
Passemos provisoriamente da abstraco historieta pessoal. Esta bem menos
picante do que a de Lopes de Mendona... H uns largos anos, tendo apresentado
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uma comunicao sobre Cames num congresso como este, fui interpelado no debate
que se seguiu por um acadmico muito prestigiado, j falecido, que considerou muito
estranhas, at abstrusas, certas referncias que eu tinha feito a actividades comerciais e
polticas de Vasco da Gama nOs Lusadas. L expliquei onde tinha encontrado as indicaes no texto de Cames. Creio no estar a atraioar a memria do momento se disser
que, em reaco minha resposta, o meu interlocutor afirmou:
Ah, bom, que o senhor falou no Canto Nono...
Efectivamente, tinha falado sim, mas, infelizmente para mim, havia-o feito
para localizar certas passagens no texto camoniano e no por efeito de antonomsia.
Verifiquei, assim, que o tropo prevalece absolutamente na linguagem acadmica e que o
recurso indicao das fontes no texto fica forosamente secundarizado face ao poder
da antonomsia. Estes anos passados mostraram-me, com cada vez maior evidncia,
que os estudos literrios e histricos em Portugal andam determinados por esse poder e
que ele constitui um impedimento formidvel, provavelmente o maior, ao progresso
desses estudos.
No famoso dilogo da Corte na Aldeia, Rodrigues Lobo reala, j em 1619, uma
qualidade da antonomsia que merece a mxima ateno: o facto de ela s ser aceite
facilmente por pessoas ou partes do mesmo reino (1992, p. 186). O primeiro exemplo
dado pelo escritor de Leiria , precisamente, o Poeta, como antonomsia de Lus
de Cames. Alm-fronteiras, um tropo como esse desmorona-se e desaparece: dizer
o Poeta em Badajoz... A internacionalizao e a globalizao modernas ferem este
tropo de morte. Tambm as Humanidades, pela natureza supranacional das suas origens e desenvolvimento, so, portanto, arruinadas pela antonomsia. Quando esta predomina, o discurso converte a histria literria em justificao e a filologia em ideologia.
As Humanidades em Portugal, porm, continuam na dependncia da antonomsia. Medite-se sobre o exemplo seguinte. A designao o Infante, s vezes sob a
variante o Infante de Sagres, preserva ainda a sua fora antonomstica, apesar de todas
as indicaes documentais que propugnam a relativa menoridade da personagem histrica e a inexistncia pura e simples duma escola nutica naquele lugar que j deu
nome principal vedeta da Marinha portuguesa, a uma auto-estrada portuguesa, a
uma equipa de hquei-em-patins portuguesa, mais conhecida cerveja portuguesa, etc.
Alis, a Literatura que se ensina na Escola secundria portuguesa, ao apresentar (como
faz h j largos anos) a Mensagem de Fernando Pessoa em paralelo com Os Lusadas,
refora e canoniza a antonomsia o Infante na percepo histrica dos alunos (pois o
ttulo dum dos poemas obrigatrios do livro pessoano), quando, na epopeia de Cames,
D. Henrique personagem que passa quase despercebida, pois nem sequer merece aparecer no vasto rol dos heris que, no exrdio, o poema pretende celebrar, e surge como
infante apenas em meio a seus irmos (nclita gerao, altos infantes). Vantajosa
para a preservao de mitos, a antonomsia prejudicial investigao cientfica nas
Humanidades.
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*
Vimos j o que traduz a antonomsia Canto Nono em portugus. No vimos
ainda com ateno suficiente, porm, que ela importa determinada viso do sexo feminino. Uma viso absolutamente preponderante nOs Lusadas, uma viso sob o domnio
total de Vnus. Nem Ins de Castro, nem a formosssima Maria lhe escapam, pois
a primeira tem as obras com que Amor matou de amores (III,132) e a segunda tem
lindo o gesto, cabelos anglicos e ebrneos ombros (III,102).
No entanto, nas figuras femininas que Oliveira Martins viu na epopeia de Cames
(nOs Lusadas h trs mulheres, escreveu) est a meiguice, a abnegao e at a mulher
inteira (1986, pp. 37-38). No podia deixar de ser assim na obra do poeta que representava uma literatura inteira, na famosa expresso de August-Wilhelm Schlegel.
Uma literatura inteira, a nao inteira, o mundo inteiro, a mulher inteira. Que restava
aos demais poetas e artistas da palavra seno a rendio e anulao dos seus poderes
mimticos? Acto contnuo, a antonomsia camoniana eliminou-os tambm como cantores da mulher. Escreveu Tefilo Braga: Todos os outros poetas, que foram seus contemporneos ou lhe sucederam, no alcanaram este segredo da expresso apaixonada,
da melancolia humana, do ideal profundo do Amor, do pantesmo, e ficaram prosaicos,
cantando as impresses de um estreito personalismo e os pequenos interesses burgueses. (1911, p.26).
gues na poca tambm no adquirem cunho excepcionalista. Veja-se o exemplo de elegncia. Se o adjectivo
elegante representa, para Fernando de Herrera, uma apreciao superlativa de Cames (vd. Aguiar e Silva,
2008, pp. 63-65), que dizer do termo elegantssimo que Pedro de Mariz atribui a Corte-Real nos Dilogos
de Varia Histria? E que dizer do epteto elegantssimos com que o espanhol Solrzano Pereira qualifica
no seu tratado De Indiarum Jure, quer a pica de Cames, quer a de Corte-Real? E que dizer ainda do
emprego de elegante e elegancia por parte de Diego dvalos y Figueroa na peruana Miscelanea Austral, pois
as duas palavras aparecem a qualificar pelo menos Cames, Corte-Real, Juan de Mena e Jorge Manrique,
num elenco que inclui o louvor equnime de muitos outros poetas modernos (vd. Porqueras Mayo 1986,
pp. 248-253)?
6
Introduzi o conceito e apliquei-o na reviso histrica da recepo da poesia portuguesa clssica
num artigo publicado no Brasil (Alves, 2010); Marcia Arruda Franco (2011) recuperou-o em verbete do
Dicionrio de Lus de Cames.
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E contudo, as ditas trs mulheres de Cames so fundamentalmente efgies erticas. Ins e Maria aparecem, nOs Lusadas, como Vnus: as trs suplicam a reis, as trs
comovem-nos e seduzem-nos. O povo pertinaz e os matadores so brutos
porque no se deixam convencer pela beleza fsica de Ins (III,130 e 132) estamos
aqui a milhas das cuidadosas motivaes morais e polticas desenvolvidas por Antnio
Ferreira na coeva Castro. A segunda mulher, a princesa D. Maria, filha de D. Afonso IV,
no por acaso comparada directamente Vnus que seduzira o pai Jpiter no Canto
anterior (III,106 e II,42). A prpria Vnus , nOs Lusadas, um retrato ao nvel ertico
da Vnus contempornea de Urbino, de Tiziano, mais o carcter suplicante que a da tela
no tem. O Canto Nono representa, por conseguinte, a confirmao e a apoteose destes
retratos femininos de Cames: elas ainda mais belas, ainda mais sedutoras, e gratificando finalmente o desejo masculino insatisfeito nos Cantos anteriores.
No seria de todo possvel aos poetas contemporneos representar mulheres de
corpo inteiro sem ser, para aludir de novo a Tefilo Braga, por um mope personalismo
ou por mesquinhos interesses burgueses? Desde que seja possvel abater a antonomsia
que tudo reduz a Cames e reconhecer que h Cantos Nonos na poesia portuguesa sua
contempornea de teor obviamente feminino, verifica-se que se celebraram mulheres
sem que estas constitussem forosamente efgies de beleza ertica ou objectos de cariz
sexual.
Habituados por antonomsia a olhar para as mulheres atravs dos decasslabos
sensuais do Canto Nono, os meus leitores e ouvintes perguntar-se-o, certamente com
estranheza, o que ter acontecido para mulheres jovens aparecerem em versos de outro
Canto Nono como os seguintes:
Ouvindo este rumor, abre h a porta
H a molher, por ver que era o que ouvira,
E como conheceu que eram imigos,
Congela-se-lhe o sangue nas entranhas,
Foge-lhe a cor do rostro, e j querendo
Alevantar um grito, fica muda,
Cortado o corao, e a voz pegada
No meio da garganta, como aquele
Que metido em priso por graves culpas,
Por casos que prometem certa morte,
Afrontada e medrosa de contino
A msera alma tem, sempre temendo
A hrrida, final, dura sentena.
[...]
Vai com tal sobressalto atribulada
A casa de h a amiga, que ali junto
Era vezinha sua; com voz baixa
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causado pela guerra, mas no sendo destrudas por isso, antes fazendo dilatar-lhes o
corao e a vida:
Estas, quanto durou o estreito cerco
(Trazendo cada a ali consigo
Os mais pequenos filhos e criados
Que nas casas havia) trabalhavam,
Trazendo muitas delas nas cabeas
Louras, cestos de cal, de pedra e terra.
E do grande trabalho, aqueles rostos,
Que a natureza mostra em tenra idade
Em cor de alexandrina rosa acesos,
Causavam piedade em quem os via
De espesso p, de grosso suor cheios.
(Segundo Cerco de Diu, Canto Nono; Ibid., pp. 128-129)
A tpica do louvor da beleza feminina cabelos louros, cor rosada dos rostos
surge mesclada com elementos ausentes da tradio e at antitticos. A idealizao no
passa pela cristalizao mtica; passa pela construo de novo modelo. A superlatio,
o exceder, o sobrepujar no poema de Corte-Real supe o levantamento de virtudes
modernas, mulheres ao vivo, de carne e osso:
E como a luz do Sol, nestes combates
Impedida ficasse, turva e cega,
De grandes e fumosas, negras nuvens,
Per antre as quais voavam duras setas:
Mil vezes se encravavam tenros braos,
Mil vezes alvos peitos se tingiam
Com sangue puro e quente das entranhas.
Dalg as eram tais estas feridas
Que a suas almas davam liberdade;
Outras, que tanto mal no recebiam,
Tiravam as cruis, ligeiras setas,
E, apertando as feridas, se tornavam
Ao lugar trabalhado e perigoso.
Quando a terra e os ares rebramavam
Co um estrondo medonho de bombardas,
Com gritos e alaridos de ambas partes,
Alg as empeavam nos maridos
Carissimos, que ali de mil feridas
Traspassados, defuntos se estendiam.
Outras, que ante seus olhos derrubados
Aqueles corpos viram, que escondidos
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Referncias
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