Documentário-Dispositivos e Vídeo-Cartas
Documentário-Dispositivos e Vídeo-Cartas
Documentário-Dispositivos e Vídeo-Cartas
CAMPINAS
2009
R859d
ii
iii
AGRADECIMENTOS
Muito obrigada ao meu orientador, Prof. Dr. Fernando Cury de Tacca, por ter
sido companheiro na viagem, acolhendo os desejos de investigao e de realizao e
ajudando a encontrar os caminhos.
Fapesp, pela bolsa de mestrado, e ao Instituto de Artes, pelo apoio
institucional.
Aos professores Francisco Elinaldo Teixeira e Gilberto Sobrinho, pelas
crticas
consideraes
na
banca
de
qualificao,
fundamentais
para
desenvolvimento da pesquisa.
Aos amigos: Hidalgo Romero, pela parceria no Laboratrio Cisco e pelos
preciosos comentrios durante a edio do vdeo; Luiza Fag, pela parceria na
montagem do vdeo, pelas contribuies nas discusses e tambm pelo livro A
inveno de Morel; Alik Wunder e Alice Villela, pelas leituras e conversas, sempre
muito inspiradoras.
Aos meus pais, Lena Bartman e Adilson Ruiz, pelo incentivo que desde
sempre me impulsionou; Marema e Renato, pelo apoio afetivo e logstico familiar, e
tambm pelo apoio da Kinostudio ao vdeo; ao Eli, pela correo do texto do projeto e
apoio familiar; Leila Ferraz, pela reviso da dissertao.
equipe que realizou o vdeo: Paula Ferro, que criou e interpretou a
musica; Ricardo Zollner, que fez a mixagem de som; Thas de Souza, que fez a
produo executiva; Ana Muriel, que fez a ilustrao da capa.
Aos colegas Caetano Biasi, Chico Caminatti, Thas de Souza e Auna Landi
pelo olhar atento e os ricos comentrios sobre o vdeo durante a edio.
Aos que contriburam com o levantamento de documentrios com vdeocartas: Julio Wainer, Manoela Ziggiatti, Pedro Silveira e Anne Lewis.
equipe do projeto Olhos Negros: compartilhando imagens, semente desta
pesquisa: Allan Monteiro, Alik Wunder, Julio Matos e Pedro Castelo Branco Silveira.
Jeca (Anglica Silva), que nos ajuda a cuidar da casa e das crianas.
Violeta e Mart, meus companheirinhos.
Aos personagens do vdeo: Laura, Gustavo, Guel e Geize.
vii
viii
ix
Resumo
Esta dissertao investiga as linhas de aproximao entre o conceito de
documentrio-dispositivo e algumas experincias com vdeo-cartas. Em outras
palavras, busca compreender como a troca de mensagens videogrficas entre pessoas
transformadas em personagens no e pelo filme, considerando que o documentarista
tambm pode se tornar um deles pode se configurar como estratgia de realizao de
documentrios.
O vdeo Outra Cidade parte da pesquisa, a um s tempo fruto das
investigaes e objeto de reflexo. Mais do que a obra em si, interessa como matria
de estudo seu processo de realizao, que, totalmente imbricado com o percurso do
curso de Mestrado em Artes, passou por diversas transformaes ao longo de seus
dois anos e meio de durao e produo. Estas transformaes tornam-se a
problemtica que une o texto e o vdeo.
Os conceitos de dinmica fabuladora e cinema indireto so as bases para a
construo da idia de um cinema documental que no se relaciona com um real dado
nem com identidades estagnadas, que no busca a verdade e que no tem certezas.
Este cinema deseja falar de processos e transformaes, de encontros e relaes.
O conceito de documentrio-dispositivo trata de um documentrio criado a partir
de artifcios, jogos, delimitaes e brincadeiras, que engendram, para os atores
envolvidos (documentarista, equipe, personagens) novas relaes, situaes inditas e
deslocamentos de posies: uma realidade flmica que no existe antes do filme e que
deixa de existir depois que ele acaba.
xi
Abstract
This dissertation investigates the similarities between the concept of devicedocumentary and some experiences with video-letters; in other words, it seeks to
understand the process in which the exchange of videographic messages between
people transformed into characters by and in the film (considering that the
documentarist can become one of them) may become a strategy to make
documentaries.
The vdeo Another City is part of the research, at one time a result of the
investigations and the object for reflection. More than the work itself, the point of interest
for study has been the process film making, which, completely entwined with the course
of Master Degree in Arts, has gone through several transformations along the two and a
half years of this production. These transformations became the problematics that links
together text and film.
The concepts of fable dynamic and indirect cinema are the basis for the
construction of an idea of a documental cinema that does not relate to the real, neither
to frozen identities; a cinema that does not seek the truth and has no certainties. This
cinema wants to talk about processes and transformations, encounters and relations.
The concept of device-documentary is about a documentary that is made from
artificials, games, delimitations and plays that give rise to new relations, situations,
changing of positions among the actors (documentarist, team, characters). A filmic
reality that does not exist before the film, and that ceases to exist once it is finished.
xiii
Sumrio
Antecedentes ....................................................................................................... 01
Captulo 1 ............................................................................................................ 03
1.1.
1.3.
1.4.
1.5.
Captulo 2 ............................................................................................................ 31
2.1. SEIS OBRAS QUE UTILIZAM VDEO-CARTA ............................................ 35
2.1.1. Na rota dos orixs ...................................................................................... 35
2.1.2. In the air and the sun ................................................................................. 37
2.1.3. From Beirut... to thouse who love us ......................................................... 39
2.1.4. I de ndia .................................................................................................... 40
2.1.5. So Paulo / Nova Iorque ............................................................................ 42
2.1.6. Como voy a olvidarte? ............................................................................... 44
2.2. VDEO-CARTA INDGENA ........................................................................... 47
2.3. EXPERINCIAS EM REALIZAO ............................................................. 55
2.3.1. Primeira experincia Olhos Negros: compartilhando imagens ............... 55
2.3.2. Desdobramento Saudade, vdeo-cartas para Cuba ............................... 59
xv
Captulo 3 ........................................................................................................... 69
3.1. RELATO DO PROCESSO DE REALIZAO DO DOCUMENTRIO OUTRA
CIDADE ............................................................................................................. 71
3.1.1. Projeto inicial ........................................................................................... 73
3.1.2. As filmagens dos personagens ............................................................... 75
3.1.3. Propostas de estrutura ............................................................................ 80
3.1.4. O primeiro corte da edio ...................................................................... 82
3.1.5. A segunda verso da edio ................................................................... 85
3.2. UMA CONVERSA ATEMPORAL ............................................................... 89
Bibliografia ......................................................................................................... 97
Filmes e vdeos consultados ............................................................................. 101
Apndice: DVD com o documentrio Outra Cidade ........................................ 103
xvi
ANTECEDENTES
Esta pesquisa nasce da atividade de documentarista que eu, pesquisadora,
desenvolvo desde o ano 2000. Ainda como aluna do curso de Dana da Unicamp, no
qual me graduei, iniciei os estudos sobre fotografia, com a Iniciao Cientfica
Metapoesia no verbal: um olhar fotogrfico sobre a dana1, e sobre vdeo, com o
projeto de extenso Olhos Negros: compartilhando imagens2 e o trabalho de
concluso de curso, o video-dana Rastreando a Mulher dos Ps de Curupira. Alguns
anos depois, j formada, ao participar de um curso de aperfeioamento em Cuba, na
EICTV Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baos, realizei o
documentrio Saudade, vdeo-cartas para Cuba3.
Tanto Olhos Negros quanto Saudade foram estruturados pela troca de
vdeo-cartas entre os personagens. Esta estratgia, elaborada intuitivamente4, veio a
engendrar o projeto de pesquisa que tem como fruto esta dissertao de mestrado e o
vdeo documentrio Outra Cidade. Assim, foi a necessidade de sistematizao de
experincias que j vinham sendo realizadas que deu forma a esta pesquisa; portanto,
as reflexes aqui suscitadas advm de questionamentos nascidos durante experincias
de realizao, ou seja, trazem uma inquietao que nasce a partir do interior da
produo documental.
O projeto Olhos Negros, compartilhando imagens foi concebido no final de
1999, quando cursava graduao na Unicamp. Conversando com colegas5 sobre a
vontade que tnhamos de conhecer a Amaznia e a falta de recursos para realizar tal
desejo, nos propusemos a criar um projeto que, unindo a viagem produo de uma
revista com ensaios fotogrficos e textos, nos proporcionasse a oportunidade de pisar
Realizada entre 2001 e 2002, orientada pelo Prof. Dr. Fernando Cury de Tacca e com o apoio de uma bolsa da
Fapesp.
2
Realizado entre 1999 e 2003, vinculado Pr-Reitoria de Extenso e Assuntos Comunitrios da Unicamp e com
diversos apoios.
3
Realizado em 2005 em parceria com Julio Matos.
4
Na poca no conhecamos outros trabalhos que utilizassem esta estratgia de realizao de documentrios.
5
Alik Wunder (na poca, formada em Biologia e mestranda em educao), Allan Monteiro e Pedro Castelo Branco
Silveira (na poca, ambos formados em Biologia e mestrandos em Antropologia).
17
na regio norte de nosso pas. Alguns dias depois, com a entrada de uma quinta
pessoa6 no grupo, incorporamos o vdeo em nossa empreitada.
Em pouco mais de dois meses, depois de reunirmos apoios dentro e fora da
Unicamp, embarcamos rumo regio do Rio Negro (AM) para concretizar o projeto, que
culminou no primeiro documentrio do qual participei, Olhos Negros: compartilhando
imagens7 (direo coletiva), e na primeira experincia com vdeo-carta que realizamos.
O desdobramento deste trabalho foi a realizao do documentrio Saudade,
vdeo-cartas para Cuba8. Em 2005, eu e Julio Matos fomos a Cuba fazer o workshop
Taller de Realizacin de Documentales na EICTV Escuela Internacional de Cine y
TV de San Antonio de Los Baos. A viagem e o curso serviram de base para as
gravaes desta experincia em que amigos cubanos e brasileiros, que h muito tempo
no se viam, se comunicaram pelo vdeo, intermediados por ns.
Aps o trmino deste documentrio, a proposta de trazer a questo para um
projeto de dissertao de mestrado ganhou corpo. Fazer um estudo de outras
experincias com vdeo-cartas e realizar, como parte constituinte da pesquisa, um novo
documentrio, foi a possibilidade que se mostrou mais profcua para o aprofundamento
de nossas reflexes.
18
CAPTULO 1
19
reflexes suscitadas durante as leituras de textos e anlises de filmes. Esta reflexo vai
dialogar com o livro A Inveno de Morel (CASARES, 2006).
1.1.2. vdeo ou cinema?
Troca de vdeo-cartas e dispositivo documental. Estas duas palavras, num
primeiro momento, podem remeter a dois campos distintos no terreno audiovisual: o
cinema e o vdeo.
Durante o processo que deu origem produo de vdeos no mbito das
artes visuais (videoarte) no Brasil, iniciado oficialmente em 1974 (MACHADO, 2003,
p.14), houve diferentes fases na relao entre este campo e o cinema. Num primeiro
momento, estabeleceu-se uma hostilidade mtua, o que resultou numa desvalorizao
tanto do vdeo, encarado como mero suporte e no um meio capaz de elaborar uma
linguagem prpria, como do cinema, tomado como senil e fadado ao desaparecimento
(BENTES, 2003, p.114).
Porm, com o passar do tempo, com o desenvolvimento da tecnologia do
vdeo digital de alta resoluo e com as geraes de artistas se sucedendo, estas
fronteiras foram se diluindo. Hoje, a percepo da hibridao entre os meios
dominante, assim como sua dupla potencializao. essa linha de continuidade que
nos interessa. O vdeo aparecendo como potencializador do cinema e vice-versa
(BENTES, 2003, p.114). A percepo de que os dois suportes engendravam estticas e
pensamentos que poderiam dialogar, intercambiar e se autocomplementar foi aos
poucos ganhando corpo, e estas fronteiras acabavam muitas vezes no sendo muito
bem delineadas.
Investigando as possibilidades do uso da vdeo-carta como dispositivo
documental, consideramos que, por um lado, as experincias realizadas so
decorrentes do uso da tecnologia do vdeo: custos baixos, rapidez de processamento e
edio, leveza de equipamentos. Assim, podemos dizer que a troca de vdeo-cartas
descendente direta do campo do vdeo. Por outro lado, se considerarmos que ao nos
apoiarmos no conceito de dispositivo documental estamos no terreno da crtica
cinematogrfica sobre documentrio, que vem de uma longa tradio fundada em todas
22
24
1. 2. FUNO FABULADORA
AUTO-RETRATO
Ao nascer eu no estava acordado, de forma que
no vi a hora.
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu j morri 14 vezes.
S falta a ltima.
Escrevi 14 livros.
E deles estou livrado.
So todos repeties do primeiro.
(Posso fingir de outros, mas no posso fugir de mim).
J plantei dezoito rvores, mas pode que s quatro.
Em pensamentos e palavras namorei noventa moas,
mas pode que nove.
Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze.
Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um
abridor de amanhecer, uma fivela de prender silncios,
um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc etc.
Tenho uma confisso: noventa por cento do que
escrevo pura inveno; s dez por cento que mentira.
Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas
Na boca descampada!
Manoel de Barros
Discorrendo
sobre
as
relaes
travadas
entre
documentarista
25
27
quais defendia que seus filmes podiam captar a realidade tal qual ela usavam a
metfora da mosca na parede, que presencia os acontecimentos sem que ningum se
d conta, sem interferir em seu entorno. Pensando estarem livres de cdigos e
elaboraes, se pretendiam pura objetividade: vendo os documentrios, diziam, era
como se o espectador estivesse presenciando os acontecimentos filmados, sem
nenhum tipo de filtro ou conveno cinematogrfica.
Parente faz uma severa crtica ao Cinema Direto, pois em sua linha de
pensamento no existe a possibilidade de captar a realidade tal qual ela , e isto
porque essa realidade simplesmente no existe a priori, ela vai se construindo e se
transformando a todo momento.
A impresso de realidade e a justeza da imagem so,
independentemente da tcnica ou do mtodo utilizado,
proporcionais idia que se tem do real, e a imagem a
expresso no do real, e sim da significao que lhe
pressuposta. Nesse sentido, consideramos que o cinema da
realidade (= o direto) no aquele que apreende o real, mas o
que endossa os clichs da pura representao. Para os tericos
da esttica do real, se o direto se ope s convenes
cinematogrficas pr-formadas, porque eles tm a iluso de que
existiria uma realidade em si que o cinema evocaria de maneira
justa (PARENTE, 2000, p.114).
Mas no a sua crtica ao cinema direto que vem contribuir com nossas
reflexes sobre o dispositivo documental de troca de vdeo-cartas. Esta crtica,
fundamentalmente, nos ajuda a compreender a elaborao da idia de Cinema Indireto,
que tem como um de seus expoentes o cineasta Jean Rouch e o movimento que
conhecemos como Cinema Verdade.
O Cinema Indireto quando nos referimos s suas produes documentais,
pois podemos pensar tambm em fices indiretas, o que no vem ao caso aqui o
documentrio que incorpora, em sua prpria estrutura, as alteraes que causa na
realidade. Mais do que isto, ele objetiva captar exatamente estas interferncias.
Estes filmes partem do pressuposto que a realidade que vo captar no est
dada e acabada, mas se constri concomitantemente a eles, conforme relaes e
30
outro
(Parente,
2000:37).
uma
indiscernibilidade
tanto
dos
papis
no
real,
assume
que
totalmente
construda
pela
elaborao
32
No documentrio, a diretora tenta obter um passaporte hngaro, pas de origem de sua famlia.
Em 33 o documentarista, que filho adotivo, cria um jogo em que, aos 33 anos, tem 33 dias para encontrar a
me biolgica.
11
Neste documentrio, o autor forma 3 duplas de pessoas que no se conhecem, na cidade de Belo Horizonte, e
que, munidas de uma cmera filmadora digital, devem trocar de casa por 24 horas; nesse tempo, cada um filma a
casa do outro e tenta formar uma idia daquele morador; no final, do uma entrevista sobre o que sentiram e
imaginaram sobre o outro durante a experincia.
12
Em Acidente, os diretores criam um poema a partir de nomes de cidades de Minas Gerais; estas cidades so o
roteiro de uma viagem na qual compem um outro poema, visual.
13
Em Edifcio Mster o cineasta delimita um campo de atuao, o edifcio, onde vai buscar pessoas interessantes
para filmar, que vo se transformar nos personagens do filme.
14
O filme, que mostra a passagem do ano de 1999 para 2000 numa favela carioca, foi inteiramente gravado no morro
da Babilnia no dia 31 de dezembro de 1999, por cinco equipes simultneas.
15
Neste documentrio Coutinho parte para uma cidade do serto paraibano, escolhida por sorteio, e nela deve achar
seu filme, seja o que for.
10
33
*****
Consuelo Lins define o documentrio-dispositivo com a afirmao de que ele
no busca a autenticidade do real e das pessoas, mas gerado por um artifcio criado
pelo documentarista (LINS, 2007, p.47). Desta maneira, exemplifica como dispositivo as
prises que norteiam os filmes de Eduardo Coutinho:
Os filmes de Coutinho povoam-se de temas, mas so, antes
de qualquer coisa, produtos de certos dispositivos que no so a
forma de um filme, tampouco sua esttica, mas impem
determinadas linhas captao do material (LINS, 2004, p.12).
Assim, o dispositivo, traando uma rota de fuga do que autntico e
espontneo, pode ser, por exemplo, um jogo proposto pelo cineasta, como em Rua de
Mo Dupla, que retira os personagens de seus cotidianos criando uma situao nova
na qual o filme se d; ou uma brincadeira com as palavras, como em Acidente, em
que um poema criado pelos documentaristas gera um roteiro de viagem e filmagem; ou
uma delimitao espacial e/ou temporal, como acontece nas prises que norteiam o
trabalho de Eduardo Coutinho; ou uma busca, como no caso de 33 e Passaporte
Hngaro etc. De maneira geral, o documentrio-dispositivo tem como caracterstica
essencial a criao de uma situao que no pr-existe ao filme: O que est para ser
documentado uma contingncia, ou seja, algo que pode ou no ocorrer. O que o
filme-dispositivo se prope a fazer criar mecanismos para eventualmente captar o que
contingente (MIGLIORIN, 2005, p.149).
Analisando o filme Santo Forte, Lins constata que pode haver, em alguns
casos, uma tenso entre o dispositivo as regras elaboradas para o filme acontecer e
as presses do real, ou seja, o acaso. Neste documentrio, por exemplo, a regra dizia
que s seriam filmadas pessoas previamente entrevistadas e escolhidas a partir da
pesquisa. No entanto, a filha de uma mulher que estava sendo entrevistada d um
depoimento forte que acaba sendo incorporado na montagem.
Ao inserir a seqncia no documentrio, Coutinho expe a
fragilidade e a contingncia do seu dispositivo, sob o risco
34
16
A tese de Migliorin, concluda em 2008 e realizada no Brasil e Frana, investiga como o dispositivo pode ser compreendido no
mbito do documentrio de maneira a estabelec-lo como um propositor poltico.
36
metaestabilidade,
acontecimento,
imagem-experincia,
individuao,
17
No filme de Sandra Cogut, Passaporte Hngaro (2001), por exemplo, o acaso fundamental para os rumos que o
filme toma e para a tenso que mantm o espectador conectado com a obra. A contingncia, o acaso e o descontrole
fazem parte das filmagens. O filme opera, ento, uma diviso radical entre uma ordem que se d na montagem no
mais atravessada pela contingncia e o verdadeiro entrelaamento de heterogneos e mltiplios vetores que vo
aparecendo na filmagem; uma multiplicidade de aberturas para histrias, pessoas, pases sotaques e poderes. A
montagem olha de fora do dispositivo, se libera da contingncia e organiza o que o acaso proporcionou. Ento, como
falar em dispositivo em uma obra em que o sistema se impe? (MIGLIORIN, 2008, p.31).
37
O processo de individuao um conceito do campo da psicologia que no cabe aqui aprofundar. Assim , o
empregamos de forma breve e simplificada para sintetizar o pensamento de Migliorin.
39
40
processos
transformadores,
por
tais
imagens
sons
impregnados
de
41
42
duplo: a outra
Olhos Negros: compartilhando imagens (2003), Saudade, vdeo-cartas para Cuba (2005) e Outra Cidade
(2009).
43
por exemplo, a comunicao entre amigos que h muito tempo no se viam trouxe ao
material uma qualidade intimista e carinhosa falas confessionais, brincadeiras e um
tom muitas vezes emocionado; em Outra Cidade, a maneira didtica com que as
crianas Ikpeng apresentavam sua aldeia trouxe uma qualidade de estranhamento, de
problematizao do cotidiano para o material as explicaes detalhadas do vdeo
Ikpeng geraram explicaes detalhadas dos personagens e enquadramentos
detalhistas para as imagens pessoais da casa da documentarista, tambm ela
personagem. O interlocutor se torna, ento, modulador do processo de individuao
que ocorre; ele estimula os personagens a atualizarem distintas possibilidades de si
mesmos.
44
CAPTULO 2
45
47
49
Bernadet, ao analisar o curta-metragem Viramundo, descreve o uso da cartela que abre o filme: Ela nos informa
que o filme recebeu a colaborao de diversos socilogos, professores da Universidade de So Paulo. A cartela
fornece um atestado de autenticidade cientfica fala do locutor (BERNADET, 2003, p.18). Os entrevistados
especialistas, acompanhados de suas identificaes escritas na tela sobre suas imagens, funcionam ao mesmo
tempo como a cartela de Viramundo, dando ao filme uma legibilidade cientfica, e tambm como locutores auxiliares,
fornecendo o mesmo tipo de informao que a voz em off, porm com a credibilidade do especialista intelectual.
21
No mesmo texto, o autor faz uma descrio da voz em off que se assemelha ao uso que se faz dela em Na rota
dos orixs: Voz de estdio, sua prosdia regular e homognea, no h rudos ambientes, suas frases obedecem
gramtica e enquadram-se na norma culta. Outra caracterstica: o emissor dessa voz nunca visto na imagem. (...)
a voz do saber, de um saber generalizante que no encontra sua origem na experincia, mas no estudo de tipo
sociolgico (BERNADET, 2003, p.16/17).
22
Ainda no mesmo texto, Bernadet d a este tipo de entrevista o nome de voz da experincia (BERNADET, 2003,
p.16), na qual os entrevistados falam de suas vivncias particulares em primeira pessoa, sem generalizaes.
50
comunicao, por mais que seja fruto de um artifcio, tem a funo de corroborar a tese
proposta, que afirma que houve muitos intercmbios culturais entre o Brasil e o Benin, e
que a identificao mtua latente em ambos os pases, pelo menos em alguns
segmentos sociais/culturais.
Assim, o conceito de documentrio-dispositivo, com base na tenso entre
abertura para o acaso e escritura do autor, que privilegia processos de transformao,
no tem nenhuma aproximao com este filme, que , acima de tudo, informativo.
2.1.2. In the air and the sun (The Morristown Project), 2007.
Documentrio, 60 minutos; direo: Anne Lewis.
Este um documentrio de cunho poltico e social que trata da problemtica
de trabalhadores norte-americanos e mexicanos, ambos afetados pela globalizao da
economia. Quando fbricas dos EUA se mudaram para o Mxico, favorecidas por
acordos fiscais, deixaram trabalhadores estadunidenses sem emprego e iniciaram a
explorao dos trabalhadores mexicanos, pagando salrios baixssimos e negando
direitos trabalhistas.
51
52
53
54
de Super-8, dois projetores e dois gravadores de udio; um dos kits ele guarda consigo,
e envia o outro sua famlia que permanecera na ndia.
Assim, inicia-se um longo perodo de comunicao via filmes em Super-8,
onde os parentes distantes vo mostrando ao outro como esto, o crescimento dos
filhos, as festas, as ruas das cidades. A comunicao por meio destas cartas filmadas
dura mais de 40 anos.
documentrio
consiste
em
uma
troca
de
vdeo-cartas
entre
56
57
de vdeo-cartas, para terminar como um filme engajado, poltico, que vai denunciar uma
situao de precariedade de uma determinada populao.
O documentrio no homogneo. Na primeira parte a estrutura aberta: os
personagens se apresentam por meio do vdeo, apropriados do dispositivo proposto,
dirigindo-se aos interlocutores nova-iorquinos ou paulistanos. Os captulos so
independentes, suas estticas lhes so prprias; a tenso entre a proposta do
documentarista a troca de vdeo-cartas , o acaso das filmagens as opes
tomadas pelos prprios personagens para mostrar seus universos aos interlocutores ,
e a escritura realizada na montagem se mantm, o que aproxima esta primeira parte a
muitos aspectos do conceito de documentrio-dispositivo.
J na segunda parte, o documentrio muda de tom com a escolha de um
tema central moradores de rua em torno do qual toda a narrativa vai se estruturar.
Neste
momento,
aparecem
as
figuras
dos
especialistas,
que
vo
explicar
58
O documentrio inicia expondo a questo a ser tratada. Para isso, utiliza uma
fuso sonora entre a voz chorosa de uma mulher que l uma carta para seu filho refm
diz que est com saudade e que espera que a guerrilha respeite sua vida e sons de
guerra como tiros e gritos. Depois vemos uma entrevista com um guerrilheiro que
explica que o governo, com ajuda dos americanos, investe muito na guerra, com
helicpteros, delatores, e pouco na rea social; diz que a crise econmica e moral.
Em seguida, o documentrio comea a apresentar seus personagens.
Vemos imagens de uma passeata que pede a libertao dos refns, e sobre ela surge a
voz de uma mulher que envia uma mensagem, via emissora de rdio, para o marido
prisioneiro; vemos este homem ouvindo rdio. Numa missa, o padre faz uma prece para
este mesmo homem e, em seu sermo, somos informados quem o personagem
principal: Coronel Mendieta, preso h 3 anos.
Na prxima seqncia, adentramos no universo cotidiano da famlia do
coronel. A mulher prepara uma lasanha, e depois ela e seus filhos do uma entrevista
sobre a falta que sentem do marido/pai, como a vida na sua ausncia. A famlia vai
para a cidade natal de Mendieta e explica que essas viagens para o povoado que
significa muito para ele, faz com que se sintam mais prximos dele.
A mulher l uma poesia que fez para o marido. Aproximadamente na metade
do documentrio, o filho, olhando para a cmera, manda uma mensagem para o pai
uma vdeo-carta. A irm tambm manda sua mensagem ao coronel. A me no se
relaciona diretamente com a vdeo-carta. Ela canta a msica Como voy a olvidar-te e
tambm d uma entrevista, conversando com o diretor, onde mostra um dirio que fez
59
para o marido e outras relquias sentimentais que guarda para ele em caixas de
papelo.
Vemos que a equipe do vdeo se deslocou at a floresta: imagens de uma
estrada de terra, feitas de dentro de um carro, e depois de pessoas numa trilha na
mata. Em seguida vemos o coronel se aproximando, acompanhado por muitos homens
de trajes militares e portando armas. Mendieta d ento uma entrevista na qual narra o
episdio de sua priso. Em seguida, assiste s mensagens enviadas por sua famlia.
No final, olhando para a cmera, e sempre com um guerrilheiro de guarda ao fundo,
responde as mensagens dos trs esposa e filhos e manda tambm uma mensagem
para as autoridades, na qual pede que tomem uma deciso, uma atitude em relao
sua situao. Depois se afasta da cmera, indo embora escoltado pelos homens que o
acompanharam em sua chegada, at acenar para a cmera e sumir na mata.
O vdeo usa fundamentalmente dois recursos para abordar o tema escolhido:
a troca de vdeo-cartas e as entrevistas. Usa tambm imagens da guerra civil,
provavelmente de arquivo, o som de uma rdio local, e em alguns momentos utiliza o
recurso de uma cmera observadora, como na ocasio em que a mulher faz a lasanha,
ou quando a famlia visita a vila onde o coronel nasceu, ou a missa na igreja.
Utilizando mais uma vez a classificao de Bill Nichols, podemos dizer que o
documentrio mistura elementos do modo participativo e observativo. A troca de vdeocartas uma estratgia adotada pelo diretor, mas no a espinha dorsal da estrutura
narrativa; funciona como um pretexto para explorar o assunto em foco, ou seja, se o
drama que envolve a questo dos refns a separao da famlia, o isolamento e a
insegurana, realizar uma troca de vdeo-cartas se tornou uma maneira de se acercar
do drama da famlia separada e torn-lo vivo. O uso da trilha sonora vem contribuir com
esta aproximao sentimental com o tema e os personagens, pois constri caminhos de
identificao a serem seguidos pelo espectador, em direo ao melodrama.
60
Este documentrio foi realizado por trs jovens indgenas da etnia Ikpeng
que passaram pela formao de videoasta promovida pelo projeto Vdeo nas Aldeias23.
Os realizadores propuseram para quatro crianas, dois meninos e duas meninas, que
mandassem uma vdeo-carta destinada ao mundo onde eles se apresentam, mostram
sua aldeia, seus costumes e cotidiano, sempre se dirigindo cmera e perguntando
como os espectadores realizam esta ou aquela tarefa em sua comunidade,
transformando-os assim em interlocutores. No final, um dos jovens realizadores
aparece e pede que os espectadores respondam mostrando suas aldeias.
Na sinopse do documentrio h a informao de que a vdeo-carta foi feita
em resposta a uma outra, enviada a eles por crianas de Sierra Maestra (Cuba), mas
23
O projeto Vdeo nas Aldeias, a mais ousada e profunda experincia em nosso pas na procura de uma endogenia
visual da cultura indgena por meio da imagem tcnica, tem uma vasta produo audiovisual. Planejado e
desenvolvido por Vicent Carelli e Virgnia Valado, em parceria com pesquisadores nas suas reas especficas de
atuao, entre eles Dominique T. Gallois e Regina P. Muller, e vinculado inicialmente ao Centro de Trabalho
Indigenista, o projeto introduziu o fazer e a reflexo sobre a imagem do ndio na mdia, proporcionando uma
produo endgena a partir da formao de realizadores indgenas. Nesta experincia o vdeo concebido como um
instrumento de expresso da identidade indgena, permitindo-lhes compor uma nova viso de mundo e de si
mesmos. O projeto estimula o intercmbio de imagens entre os povos indgenas, veiculando informaes sobre cada
grupo tnico.
61
meninos
apresentam a
arma
de
guerra de
seus
antigos, que usavam um cip chamado timb, desde o momento em que pegam o cip
na mata at pescar os peixes na lagoa (h uma montagem paralela com o prximo
tema);
11.
cho e como a processam para comer (montagem paralela com o tema anterior);
62
12.
uma espcie de brincadeira de casinha, fingindo que as meninas mais novas so suas
filhas;
14.
17.
18.
64
66
24
Imagens, por exemplo, uma palavra que vemos a pequena menina gaguejar para pronunciar, o que demonstra
que, apesar de no ser em portugus, uma nova palavra para ela.
67
68
Conseguimos diversos apoios culturais para o projeto, que foi realizado com recursos da Pr-Reitoria de Extenso
e Assuntos Comunitrios da Unicamp, apoio de transporte da Fora Area Brasileira, apoio de hospedagem,
alimentao e projeo do vdeo da Prefeitura da cidade de Iranduba (AM), apoio de hospedagem da FOIRN
(Federao da Organizaes Indgenas do Rio Negro), apoio de edio em ilha linear (analgica) do Centro de
Comunicao da Unicamp e apoio de impresso de fotos e coquetel de lanamento da pizzaria Santa F, em Baro
Geraldo, alm do uso de recursos prprios dos integrantes do grupo.
69
71
72
2.3.2. desdobramento:
O documentrio Saudade, vdeo cartas para Cuba foi dirigido por mim e por
Julio Matos no ano de 2005. Para sua realizao, foram selecionadas quatro pessoas
no Brasil que j haviam visitado Cuba e criado laos de amizade com famlias de
Havana. A partir de nossa proposta, elas gravaram mensagens videogrficas
destinadas aos amigos cubanos.
Estas mensagens foram levadas num laptop para Cuba pela equipe. Em
Havana, todas as famlias foram visitadas, ocasio na qual puderam assistir as
mensagens (situao que foi filmada) e respond-las. Alm disso, foram filmados
diversos momentos de seus cotidianos e realizadas entrevistas sobre suas histrias de
vida.
73
jornalistas e cineastas. No
queramos, de maneira nenhuma, expressar uma opinio sobre o regime de Fidel, sob
o risco de simplificarmos a situao.
Nossa deciso ento foi tentar, como era a nossa predileo enquanto
documentaristas, conhecer pessoas. Mas com pouco tempo de estadia, e ainda com a
complicao da lngua espanhola que no dominvamos por inteiro, comeamos a
pensar solues para nos aproximarmos dos cubanos. Um ms antes de nossa partida
(e com a experincia do Olhos Negros: compartilhando imagens na bagagem)
tomamos a deciso: vamos procurar, entre nossos amigos, algumas pessoas que j
estiveram em Cuba e que tenham um amigo l para mandar uma mensagem.
Desta maneira encontramos as nossas personagens brasileiras: Ire, irm do
Julio, que j havia nos feito muitos relatos de sua estadia de seis semanas em Havana,
74
quando se tornou amiga da famlia de Juana; Alik, nossa amiga, que havia estado na
Ilha para um congresso e conhecido a famlia de Ileana; e Paola, nossa colega de
trabalho e amiga, que havia estudado na EICTV e depois vivido em Havana, quando
passou um perodo na casa de Martica.
A proposta mande uma carta quela pessoa, ou grupo de pessoas, atravs
do vdeo, transforma o personagem em, antes de tudo, um interlocutor, algum em
processo de comunicao. A possibilidade de enviar uma mensagem a um amigo
cubano foi altamente estimulante para as pessoas que contatamos, e cada uma teve
liberdade de escolher como e onde gostaria de gravar sua vdeo-carta.
Ire optou por grav-la em seu quarto, sentada em sua cama, num ambiente
to intimista quanto foi a sua mensagem para Juana (Ire foi a que abraou de maneira
mais calorosa a oportunidade de comunicar-se com os amigos distantes, fornecendo
um relato espontneo e carinhoso); Paola decidiu gravar na sala de sua casa, dando
um relato sobre as transformaes que sofreu em sua estadia em Cuba e
especificamente na relao com Martica; e Alik, na poca grvida de nove meses,
optou por ir a um supermercado comprar alguns presentes para seus interlocutores e
depois gravar uma mensagem na varanda de sua casa.
Uma vez gravadas as mensagens e os depoimentos, ns os editamos. Com
as mensagens num laptop, viajamos Havana, onde permanecemos por uma semana
antes do incio do curso em San Antonio de Los Baos. Este era o tempo de que
dispnhamos para procurar as trs famlias (na verdade quatro, pois uma dupla foi
abandonada na edio final), mostrar as mensagens e recolher as respostas.
A recepo foi calorosa em todos os casos. A relao que estabelecemos
com os personagens cubanos foi, antes de tudo, como amigos de um amigo; em
segundo lugar, como portadores de uma mensagem e tambm de presentes deste
amigo distante; e em terceiro lugar, finalmente, como documentaristas. Assim,
ganhamos de antemo uma intimidade com os personagens cubanos que
possivelmente demoraramos semanas para construir se no fosse pela intermediao
das personagens brasileiras. Isto nos aproximou enormemente de nosso objetivo de
fazer um filme focado em pessoas e histrias de vida.
75
terminar num clipe de imagens fotogrficas de Havana sob a msica de Cibel, agora
tocada no piano.
4. Fim: alguns personagens falam de seu dia-a-dia ou fazem planos para o
futuro (por exemplo, Ire diz que est em busca de um marido para ter um filho). As
personagens respondem diretamente mensagem de Ire, dirigindo-se a ela. Na
maternidade, aparece Alik que acaba de ter seu filho, enquanto Ileana e sua famlia
assistem a esta cena no laptop. Martica fala para Paola como est, diz que tem
saudade, pede para que nunca desista de seus objetivos e que no se deixe comer
pelo comrcio. Juana canta a msica Besame Mucho e se despede de Ire.
O dispositivo que gera o documentrio est claro: amigos brasileiros
mandam mensagens em vdeo aos amigos cubanos, que as assistem e respondem; os
documentaristas aparecem por breves momentos, e estas imagens, somadas ao
telefonema de Ire para Juana logo no incio, fazem com que o jogo se torne claro para
o espectador.
Muitas das falas dos personagens so direcionadas aos interlocutores, em
forma de perguntas e respostas ou histrias que so contadas para o amigo distante
vdeo-cartas; outras falas no acontecem desta maneira, mas se do como entrevistas
nas quais as personagens, principalmente as cubanas, contam suas histrias de vida
diretamente para os documentaristas.
Percebe-se que havia uma preocupao, ou um desejo, de contar as
histrias de vida, de contextualizar as personagens, de tocar na histria de Cuba por
meio da vida daquelas pessoas. Sob este ponto de vista o dispositivo foi, nesses
momentos, deixado de lado: para ns, diretores, no s as conversas travadas entre
nossos personagens eram importantes; queramos ouvir determinadas histrias que,
no contadas por meio do dispositivo, deveriam ser perguntadas por ns.
O dispositivo, nas filmagens, no era em si algo importante de ser
preservado. Ele era, assim como para Coutinho, um detonador de uma situao,
provocador de um encontro. O dispositivo fez com que nossos personagens passassem
a existir. Depois disso, nossa relao com eles e os rumos do encontro no eram
79
determinados apenas pelo dispositivo, mas tambm por outros caminhos que a relao
apontava e criava.
Na montagem, podemos perceber que h uma estrutura na qual os
personagens e a situao de conversa so explicitados num primeiro momento, por
meio de uma rodada de apresentaes: as pessoas, o sistema em que as vdeo-cartas
provenientes do Brasil eram exibidas em Cuba, as primeiras reaes dos Cubanos;
num segundo momento, as conversas derivam para as entrevistas, e cada personagem
cubano aprofundado por uma histria em particular, todas de alguma maneira
articuladas ao regime socialista.
Juana conta a histria de sua vida e como ela est imbricada com a
revoluo socialista em seu pas o modo como se alfabetizou e conquistou um
trabalho que a orgulha; a me de Ileana narra o episdio em que, na infncia, viu os
revolucionrios passarem na porta de sua casa; e Martica d um depoimento sobre o
sentimento de ser vermelha desde que nasceu. Esta srie de depoimentos otimistas
sobre o regime rompida pela fala de Jorge, marido de Ileana, que declara estar louco
para deixar a Ilha e convoca os documentaristas a fazerem um convite oficial que
permita sua partida.
A parte final do documentrio costurada por um tema que aparece
espontaneamente entre os interlocutores. A partir da fala da Ire e do nascimento do
filho de Alik, da figura maternal que Juana evoca, da me e das filhas de Ileana que
fazem parte do video e da relao entre Martica e Paola, a maternidade se torna um
assunto transversal durante todo o documentrio, e ele que o fecha.
Assim o documentrio tem, como tema central, seu prprio dispositivo: a
troca de mensagens entre as personagens. Porm, permeado de outros assuntos,
como a histria da revoluo cubana, a histria de vida particular dos personagens e a
maternidade.
O dispositivo , ento, aquilo que engendra o filme, que seleciona os
personagens e retira-os por alguns momentos de seus cotidianos, e que se torna o fiocondutor da montagem. Mas o dispositivo no levado s ltimas consequncias, o
documentrio abre brechas para que outras lgicas, provenientes do encontro entre
80
81
CAPTULO 3
83
OUTRA CIDADE
O documentrio Outra Cidade26 uma vdeo-carta em resposta vdeocarta Das crianas Ikpeng para o mundo. Realizada como parte e no decorrer de uma
pesquisa de mestrado no Instituto de Artes da Unicamp, o objetivo de sua produo
contribuir, por meio de uma criao artstica, com as reflexes suscitadas durante a
pesquisa bibliogrfica e a anlise das obras audiovisuais que constam no primeiro e no
segundo captulo desta dissertao.
A opo de realizar o vdeo num momento avanado da pesquisa, ou seja,
nos ltimos dois semestres, teve a inteno de permitir que as leituras permeassem o
trabalho artstico e trouxessem para ele novas possibilidades, entendimentos e
descobertas. Esta opo faz sentido se considerarmos que o tema o uso da troca de
vdeo-cartas na produo documental fruto de uma trajetria desenvolvida tambm
fora da universidade, e que no trazia consigo, de antemo, a carga e o amparo da
pesquisa acadmica. A inteno de aprofundar a investigao por meio de um estudo
disciplinado determinou que o processo se encerrasse com a produo artstica, e no
o contrrio.
Assim, como numa via de mo dupla, num primeiro momento formatei como
um projeto de pesquisa de ps-graduao uma investigao j iniciada anos antes, que
at ento se desenvolvia de maneira intuitiva; e num segundo momento lancei mo da
criao artstica intuitiva e pessoal para colaborar com um pensamento que vinha
se desenvolvendo no universo terico do documentrio.
******
O conceito de dimenso fabuladora, apresentado no primeiro captulo, traz a
idia de que as identidades no so estagnadas, mas em constante transformao. O
devir estado de coisas onde se misturam os tempos da existncia (eu fui, eu sou, eu
26
O vdeo tem aproximadamente 15 minutos, foi gravado com a cmera HDV Sony Z7, e o formato de captao foi
24P. Nas filmagens, usamos os seguintes equipamentos: trip, steady-cam, microfone de lapela sem fio, microfone
direcional, mixer e vara de boom.
85
fabuladora,
cinema
indireto
e individuao,
inevitvel que
tais
88
todas as etapas num nico dia, de forma que eles pudessem assistir ao vdeo Ikpeng e
imediatamente responder. Isto porque no poderamos garantir que os meninos
compareceriam a um encontro marcado, por exemplo, para o dia seguinte. A exibio
do vdeo Ikpeng e a gravao da resposta ocorreram no dia 27 de janeiro de 2009.
Naturalmente, dentre os que assistiram ao vdeo, alguns envolveram-se mais
com a proposta. Nas gravaes, contamos com dois meninos, o Gustavo e o Guel. De
maneira bastante espontnea, saram conosco andando pelo centro e, tambm
apropriados do dispositivo, conversavam com a cmera como se fossem as crianas
Ikpeng. Mostraram todo o centro da cidade, refletindo sobre o que bom e o que
ruim, pessoas boas e pessoas ms, ensinando como pedir coisas para os
transeuntes, alertando sobre o perigo da polcia, que associaram imagem de um leo
fomeado etc.
Surpreendeu-me bastante essa filmagem com os meninos. Como nunca
havia tido contato com o universo dos meninos de rua, no meu imaginrio o tom da
conversa seria tenso, tudo tenderia para a depresso, a grande dificuldade da
sobrevivncia, o desamparo e talvez a agressividade. Mas, ao propor que fossem os
protagonistas de uma filmagem, apontando a cmera e o microfone para eles e
propiciando uma situao para que se colocassem da maneira que quisessem, sem
perceber os imbu de um poder, o que nos gerou um material alegre, apesar de duro.
Digo poder porque, com uma cmera a segui-los, sentiram uma grande
liberdade de agir. Brincaram com o segurana do Mercado Municipal de maneira
irnica, paqueraram todas as meninas (que retriburam seus sorrisos), fizeram
comentrios sobre a polcia em frente aos policiais (fotografando-os inclusive) etc. As
imagens e falas tornaram-se muito mais ricas e complexas do que eu havia previsto. Os
personagens tornaram-se mais profundos do que meu preconceito permitiu-me
imaginar. Se, por um lado, o material filmado pode ser forte e difcil, por exemplo com a
imagem de um adolescente (Gustavo) fumando cigarro ou a declarao de que a
polcia os espanca; por outro, eles demonstram, na filmagem, bastante alegria,
autoconfiana e articulao.
O contexto indgena foi a base para que pudessem expressar sua relao
com o prprio espao. Algumas frases exemplificam bem esse efeito: Aqui no como
91
na sua aldeia, aqui pior; Aqui no como na sua floresta, que s sair andando,
aqui se atravessar o carro bate, e se ele bate, di; Ns somos como vocs, mas ns
precisamos trabalhar... vocs no, s caar que j tm. Todas essas aproximaes,
assim como a metfora da polcia como leo fomeado, demonstram o esforo dos
meninos em construir seu universo a partir do vdeo que haviam assistido.
Para o documentrio que realizei, no importa se aqueles meninos, como se
apresentam, so um exemplo generalizante de meninos de rua; tampouco importa se
seu comportamento diante da cmera corresponde ao seu comportamento na ausncia
dela; e menos ainda se verdade o que disseram. O que interessa, acima de tudo, a
intensidade dos personagens que se criaram na relao travada durante as filmagens.
Alm disso, nos interessa a maneira como eles podem determinar a narrativa a ser
desenvolvida no documentrio por meio da relao a ser travada com os outros
personagens e elementos imagticos e sonoros no momento da edio.
*****
A Geize foi a ltima menina a ser filmada. Tem 15 anos e mora no bairro 7
de Setembro, no subdistrito de Nova Aparecida, Campinas. Sua participao no
documentrio aconteceu por intermdio de Daphne Menezes, que realizou o contato
com o CPTI, instituio freqentada por ela. A filmagem foi acompanhada por uma
professora do CPTI, Maria Ins, e por uma amiga da Geize, Ingrid, ambas excludas
durante a edio.
Com sua boina, uma roupa justa, curta e decotada e jeito de garota
descolada, Geize nos levou para um passeio pelo bairro. Falou mal dos vizinhos, a
quem chamou de preguiosos e fofoqueiros, mostrou o posto de sade, um fusca, um
burro, o campo de futebol etc. Irnica, apontava para o bairro com distanciamento,
como se no pertencesse a ele, num tom de superioridade.
O percurso nos conduziria at sua casa, onde mora com o tio. E na medida
em que nos aproximvamos de sua morada, nos acercvamos tambm de sua
intimidade, que compartilhou conosco. A relao com a me, com quem ela no mora
(e, no momento da filmagem, nem ao menos conversava), foi ganhando corpo. Se num
92
27
A princpio, deu a entender que era dela mesma, mas depois descobrimos ser do poeta Mrio Quintana.
93
28
Julio Matos, alm de codirigir os dois documentrios anteriores, Olhos Negros e Saudade, participou deste trabalho
tanto com contribuies na concepo e estimulador constante, quanto como parte da equipe, operando o
equipamento de captao de som, o steady-cam, assessorando a edio e fazendo a coordenao de ps-produo.
95
96
97
Um
processo
interessante
havia
se
dado:
os
sonora original em algum vdeo que viesse a fazer. A questo de haver uma carga
pejorativa sobre as crianas da Escola Curumim tambm j era para mim um ponto de
preocupao, e optamos por excluir as crianas da festa de aniversrio e ficar apenas
com as do supermercado.
Mas havia um ponto fundamental e de difcil resoluo: a macro estrutura do
documentrio no estava funcionando, no sentido de haver uma introduo muito
diferente de todo o resto. De certa forma, eu tambm j sabia e sentia isto, e a exibio
s veio reforar essa sensao.
Portanto, a questo central, naquele momento, era perceber se o projeto
estava fadado a no abarcar o meu desejo de ser pessoal e potico, pois havia sido
concebido sob outra perspectiva, ou se havia uma maneira de integrar os diferentes
momentos do processo num nico produto.
3.1.5. A SEGUNDA VERSO DA EDIO
Em longas conversas com meus dois companheiros de viagem, Julio e Luiza,
me convenci de que um caminho possvel seria, de alguma maneira, me colocar no
vdeo. Mas como? Esta pergunta se tornou uma obsesso, at que consegui elaborar
uma nova estrutura. Todo o documentrio seria uma (vdeo)carta minha para as
crianas Ikpeng, de maneira que as filmagens com os personagens pudessem ser
incorporadas nessa moldura. E, para isto, eu deveria lanar para a minha cidade o
mesmo olhar distanciado, ou desnaturalizado, que meus personagens tiveram, um olhar
renovado para o meu prprio cotidiano. Mas deveria fazer isto por meio de imagens, e
no verbalmente como eles. Reproduzo aqui o roteiro de edio que escrevi na
ocasio:
Todos os textos (menos o inicial, o ttulo e os crditos finais) so colocados
sobre imagens longas da cidade ou de minha casa.
1. Texto: em 2001 trs jovens da etnia Ikpeng realizaram o
documentrio das crianas ikpeng para o mundo.... (no preto);
99
11.
nossa cidade foi para dentro (sobre imagens planos longos da minha vdeo
carta);
12.
Captulo da Geize;
13.
cidade foi (extra)ordinria (sobre imagens planos longos da minha vdeo carta);
14.
Captulo supermercado;
15.
cidade foi boa e ruim (sobre imagens planos longos da minha vdeo carta);
16.
17.
19.
100
A partir deste roteiro fui, com a cmera, passar uma manh na minha casa.
Percorrendo um caminho que ia desde a rea externa, at os espaos mais ntimos,
comecei pelo quintal, passando pela cozinha, sala, banheiro e quarto, procurando
sempre encontrar maneiras novas de olhar para os objetos cotidianos. Fiz imagens de
meus dois filhos, Violeta e Mart, da cadela Florisbela e de meu companheiro, Julio,
numa foto tirada no dia de nosso casamento.
Todas as imagens foram feitas com a cmera no trip, fixa. Planos longos.
Alguns deles sem nenhum tipo de movimento; em outros, algum objeto balanava ao
vento, ou uma das crianas se movimentava. Mas todas elas esto muito prximas a
imagens fotogrficas.
Estas imagens e o roteiro acima copiado serviram de base para que
elaborssemos a nova estrutura narrativa do documentrio, que se tornou, afinal,
literalmente uma vdeo-carta. O roteiro no foi seguido risca, e o vdeo hoje no
exatamente como est descrito nele, mas bem parecido. Fundamentalmente,
trocamos a ordem de apario dos personagens, comeando com as crianas, em
seguida Gustavo e Guel e, por ltimo, a Geize.
Depois de inserir estas novas imagens, surgiu a necessidade de incorporar
no s a minha casa, mas tambm a cidade. Assim, mais uma vez munida de cmera e
trip, sa a campo. As imagens da cidade, realizadas sob a mesma proposta esttica
com a qual filmei minha casa, entraram no vdeo antes da casa em si, alongando o
caminho que leva intimidade do quarto, no fim do documentrio. Para finalizar, inseri
mais uma cartela de texto no incio, falando sobre o tempo que se passou entre a
vdeo-carta Ikpeng e a produo desta resposta, oito anos depois31. E a ltima imagem
que realizei e inseri foi a minha, no espelho, atrs da cmera, para assinar a carta.
Esta a estrutura que prevaleceu e que est presente no documentrio. A
busca, afinal, foi pela simplicidade, que talvez pudesse ser traduzida tambm pela
palavra honestidade. A conotao intimista provocou a sensao de exposio,
desconfortvel por um lado, encorajadora por outro. Acima de tudo, esta se mostrou a
nica opo para dar unidade a um projeto que havia passado por tantas etapas e
formas.
31
101
102
104
105
A noo de acontecimento para Deleuze, criada a partir da filosofia estica, sugere que no se confunda o
acontecimento com sua efetuao espao-temporal em um estado de coisas (2003, p.34). Em seus escritos trata dos
acontecimentos que pertencem vida incorprea da linguagem, que no so os fatos, os encontros de corpos, mas
o incorpreo, os expressos, como ressonncias e dissonncias das lgicas corpreas.
106
107
108
109
BIBLIOGRAFIA
filme-dispositivo
no
documentrio
brasileiro
114
115
PASSAPORTE Hngaro. Direo: Sandra Cogut, 2003. DVD (71 min), son.,
color.
RUA DE mo dupla. Direo: Cao Guimares, 2002. DV (75 min), son., color.
SO PAULO / New York. Direo: Suzana Aikin, 1994. VHS (57 min). VHS, son.
Color.
SAUDADE, vdeo-cartas para Cuba. Direo: Coraci Ruiz e Julio Matos, 2005.
DVD (25 min), son., color.
THE MORRISTOWN Project. Direo: Anne Lewis, 2007. DVD (60 min), son.,
color.
33. Direo: Kiko Goifman, 2004. DVD (74 min), son., p&b
116
117
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