Profecia Poética e Tradução
Profecia Poética e Tradução
Profecia Poética e Tradução
Juliana Steil
FLORIANPOLIS
Maro / 2007
Juliana Steil
FLORIANPOLIS
Maro / 2007
ii
Meus agradecimentos:
Ao Prof. Walter, pela exigncia, pela orientao paciente, pelos Sete Livros Iluminados e por
confiar no meu trabalho;
Ao Prof. Gledson, exemplo de pesquisador a ser seguido, pela ateno, incentivo e leituras;
Ao Prof. Markus, pelo incentivo, disponibilidade e aulas de traduo;
Ao Prof. Mark Ridd, por aceitar o convite para compor minha banca;
Ao Prof. Philippe, por me encorajar quando eu quis desistir;
Ao Lenidas, que generosamente dividiu comigo as vrias tradues de Blake de sua
biblioteca pessoal;
Ao Prof. Marco Lucchesi, por suas palavras inspiradas;
A Jaqueline, Ricardo e rica;
Prof. Beth;
Ao Prof. Rafael;
A Karla, Malu, Mone e Pati, pela recepo na Ilha;
Wanessa, pelo companheirismo e discusses tradutolgicas;
A Adriana, Anatlia, Luciana e colegas da PGET;
Ao Juliano, pelo apoio e amizade, pelas aulas de Histria, de msica e de viver;
Ao Pablo, colega e amigo, pela ajuda em tarefas de computador e pelas conversas com mate;
Prof. Cludia, por sua leitura crtica, ensinamentos e confiana em meu trabalho;
Ane, por seu nimo e leveza num ambiente de trabalho agradvel;
Luana, pela gentileza de suas sugestes,
Ao Jlio, por sua valiosa leitura deste trabalho;
Ao Prof. Paulo Henriques Britto, pelas observaes mtricas;
famlia, pelo apoio e pacincia;
Alessandra & famlia Martins;
Ao mestre Rodrigo, por me indicar o caminho da poesia e da traduo.
iii
iv
ABSTRACT
This dissertation consists of a translation with commentary of the book America A Prophecy
(1793), by the English poet William Blake (1757-1827). It contextualizes America in the
ensemble of Blakes work and presents a summary of the published translations of his work in
Brazil. It also discusses some aspects of translation theory concerning poetical texts, which
are then used in the study of the elements of America which are most important for the new
translation rhythm (accentual scheme, anaphora, rhythmic parallelism and assonance,
rhythmic correspondence), alliterations, Blakean collocations, symbols, names of historical
characters , which is systematically confronted with a Portuguese version of the poem, by
Manuel Portela.
RESUMO
vi
SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................................................1
BLAKE, AMERICA E AS TRADUES DE BLAKE AO PORTUGUS .............................3
1.1 Blake.................................................................................................................................3
1.2 Posterior edio e reconhecimento da obra blakeana.....................................................19
1.3 America...........................................................................................................................23
1.4 Tradues de Blake no Ocidente ....................................................................................29
1.4.1 Blake em lngua portuguesa ....................................................................................32
1.4.2 Leituras de Blake.....................................................................................................37
A TRADUO DO POEMA ..................................................................................................41
2.1 Traduo .........................................................................................................................41
2.2 Traduo de poesia .........................................................................................................44
2.2.1 Traduo de poesia em poesia .................................................................................48
2.2.2 Traduo de poesia em prosa ..................................................................................55
2.3 Notas de tempo, lugar e tradio ....................................................................................57
ANLISE DA TRADUO DE AMERICA A PROPHECY..................................................60
3.1 Ritmo ..............................................................................................................................60
3.1.1 Esquema acentual ....................................................................................................60
3.1.2 Paralelismo verbal: anfora .....................................................................................73
3.1.3 Paralelismo rtmico e assonncias ...........................................................................75
3.1.4 Correspondncia rtmica..........................................................................................80
3.2 Aliteraes ......................................................................................................................82
3.3 Colocaes blakeanas .....................................................................................................84
3.4 Smbolos .........................................................................................................................91
3.5 Nomes de personagens histricas ...................................................................................94
CONCLUSES ......................................................................................................................103
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................105
ANEXO ..................................................................................................................................112
vii
INTRODUO
No raro encontrar-se nos livros sobre literatura inglesa a proposio de que o leitor
das obras mais complexas de Blake ser um apreciador persistente, disposto a internalizar seu
difcil universo simblico, sugerindo, em algumas ocasies, que no vale a pena considerlas. Por outro lado, o poeta Yeats, que descobriu Blake para os tempos modernos, diz que:
quando se l Blake, como se o jato de uma inexaurvel fonte de beleza
fosse soprado em nossas faces. No apenas quando se l as Canes da
Inocncia, ou os versos a que ele quis chamar Idias do Bem e do Mal,
mas quando se l os livros profticos, onde ele falou confusa e
obscuramente, pois falou coisas para as quais no podia achar modelos no
mundo sua volta (1984: 15).
Juzos como o de Yeats indicam que a poesia de Blake no se restringe s Canes e aO
Matrimnio do Cu e do Inferno, e merece ser lida e discutida entre ns atravs da traduo.
America A Prophecy constitui um marco na formao do mito de Blake e esta uma
das razes de sua escolha para esta traduo. Neste livro, Blake analisa a personagem Orc, o
esprito da revoluo, que nasce na Amrica. No universo de Blake, a Amrica representa o
Corpo e seus cinco sentidos, especialmente o sexo, o mais elevado e menos corrupto deles.
Assim como o Corpo est separado do resto do indivduo por sua forma material, a Amrica
est separada dos outros trs continentes pelo oceano (Damon, 1988).
A outra razo que motivou a escolha de America o fato de ainda no existir uma
traduo brasileira do poema.
Meu primeiro contato com a poesia de William Blake aconteceu atravs da
contracultura, que celebrava o Blake libertrio dos beat e dos hippies. Mais tarde, na
graduao, no curso de uma pesquisa sobre E. E. Cummings, travei contato com um texto de
Srgio Bellei (Bellei, 2002) que discutia o uso de bibliotecas virtuais na pesquisa literria.
Existia ali a referncia a um acervo virtual de Blake, amplo e confivel, com cpias de todos
os livros do poeta de acordo com as edies originais.
O texto utilizado neste trabalho foi extrado da ltima edio eletrnica dos escritos
completos de Blake: Electronic edition of The Complete Poetry and Prose of William Blake
organizada em formato eletrnico por David V. Erdman (Erdman, 1988), autor de Blake:
Prophet against Empire (Erdman, 1991), e as pginas ilustradas pertencem cpia guardada
pela Biblioteca Pierpont Morgan. As duas fontes esto disponveis em The William Blake
Archive (<www.blakearchive.org>) um arquivo hipermdia patrocinado pela Biblioteca do
Congresso, com apoio do Departamento de Preservao e Acesso do Incentivo Nacional para
as Humanidades, do Instituto para o Avano da Tecnologia em Humanidades da Universidade
da Virgnia, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, da Sun Microsystems e da
Inso Corporation (Eaves, Essick & Viscomi, 2006) indicado em Bellei, 2002. O acervo
reconhecido como um modelo de prtica editorial pela Modern Language Association, que
lhe outorgou o MLA Prize for a Distinguished Scholarly Edition 2003, por sua clareza,
beleza e erudio.
A dissertao est dividida em trs captulos. O primeiro captulo apresenta Blake e
sua obra, situando America no conjunto da produo do autor. Na ltima seo do captulo
apresento uma relao das obras de Blake traduzidas ao portugus.
No segundo captulo, abordo alguns problemas de traduo de textos poticos. No
terceiro captulo, estudo America no que se refere aos elementos mais relevantes na sua
traduo, analisando como America foi traduzido ao portugus lusitano por Manuel Portela
(Blake, 2005) e explicando, simultaneamente, as escolhas empreendidas na minha traduo de
America. O original ingls e o texto traduzido por mim so reproduzidos no anexo.
CAPTULO 1
BLAKE, AMERICA E AS TRADUES DE BLAKE AO PORTUGUS
1.1 Blake
emprica, que possibilita a sensao dos objetos externos e a reflexo sobre esses objetos,
como idias simples e complexas. As idias complexas surgem dos processos de combinao
e abstrao das idias simples, que so o teste e o padro da realidade. Identificando a
realidade com a idia simples, o discurso de Locke sugere, em ltima anlise, que a existncia
objetiva produzida na mente humana sem qualquer interferncia desta, de modo natural.
Assim, atravs da faculdade das idias abstratas (impessoais, gerais), o homem pode agir
sobre os objetos reais organizando-os racionalmente conforme a sua necessidade. Uma vez
que propunham uma poltica que garantisse a liberdade do homem, pela Razo, tais preceitos
ajudaram a formar a postura das classes burguesas tanto quanto foram formados pelo
ambiente burgus , que agora reorganizavam a sociedade, tendo como base o interesse
individual (Uzgalis, 2001).
Nas artes, a reao contra essa postura veio com os romnticos. Inevitavelmente, os
artistas deste perodo estavam envolvidos pelos assuntos polticos:
Se fssemos resumir as relaes entre o artista e a sociedade nesta poca em
uma s frase, poderamos dizer que a Revoluo Francesa inspirava-o com
seu exemplo, que a revoluo industrial com seu horror, enquanto a
sociedade burguesa, que surgiu de ambas, transformava sua prpria
experincia e estilos de criao (Hobsbawm, 2003: 354).
Um desses artistas foi William Blake. Na opinio de Hobsbawm (2003: 354), poucos homens
antes de Blake na dcada de 1790 compreenderam o terremoto social causado pela mquina
e pela fbrica.
Blake expressou em sua poesia todo o seu dio em relao ao racionalismo
mecanicista de Bacon, Newton e Locke. Com a idia de reflexo, esses filsofos abstratos
separam sujeito e objeto; para eles, things do not cease to exist when we stop looking at
them, and therefore there must be some kind of nonmental reality behind our perception of
them (Frye, 1995: 17): a separao sujeito vs. objeto o ponto central da causa blakeana
contra Locke (Frye, 1995).
Blake insiste que tudo depende da atitude mental do observador. Para ele, nas palavras
de Frye (1995: 17), If you cannot accept what you see as real, the fact that you see it in a
microscope or test tube makes no difference. inaceitvel, para Blake, o pensamento de que
o homem material a ser moldado por um mundo externo e no um criador ou (imaginador)
do mundo material (Frye, 1995: 23). Segundo Blake, no somos passivamente estimulados
maturidade, mas crescemos para ela, e o ambiente no altera a nossa natureza (Frye, 1995:
23). J em Locke, idias inatas no existem, e ver as imagens, por exemplo, t-las impressas
na mente pelo objeto, automaticamente; em Blake, a mente dirige-se atravs do olho para o
objeto, criativamente (Frye, 1995: 22). Blake toma a percepo como um ato mental, e no
como algo passivamente percebido pelos sentidos. Na ilustrao de Frye (1995: 19), the legs
do not walk, but (...) the mind walks the legs.
No surpreenderia, assim, que Blake dissesse que uma rvore mais real para um
sbio do que para um tolo (Frye, 1995: 21). A imaginao de um homem a sua vida (Frye,
1995: 19) e o mais verdadeiro produto da vida imaginativa a obra de arte. Dessa forma,
arte organizao imaginativa da experincia sensorial, como a composio de msica a
organizao imaginativa da experincia sensorial do som (Frye, 1995: 24). Este poder
perceptivo do artista, Blake denomina viso, que seria o objetivo de toda liberdade, energia
e sabedoria (Frye, 1995: 25).
Liberdade, energia e sabedoria so defendidas como qualidades do homem de
Imaginao. A Imaginao infinita e eterna; a imagem divina da Unidade original. A arte
torna-se, em Blake, o caminho da salvao espiritual, como sintetiza Yeats (1984, 14):
[Blake deduziu que] as artes imaginativas eram a maior das revelaes
divinas, e que a compaixo por todas as coisas vivas, boas ou ms, que as
artes imaginativas despertam, o perdo dos pecados ordenado por Cristo.
A razo, e por razo ele concebia as dedues vindas da observao dos
sentidos, leva-nos mortalidade, pois nos restringe aos sentidos; separa-nos
uns dos outros, mostrando nossos interesses conflitantes. (...) Paixes,
porque mais vivas mais sagradas (um escandaloso paradoxo para sua
poca), e levado por suas asas que o homem entrar na eternidade.
5
Um pensamento que prioriza um olhar artstico sobre as coisas. Por exemplo, as abordagens
religiosas, filosficas e cientficas da realidade so, para Blake, formas de arte, e
desempenham uma funo necessria na cultura se julgados nos termos da imaginao
criativa do artista; de outra maneira, so doenas nocivas sociedade (Frye, 1995: 27).
Limitar e generalizar, seguir a Razo abstrata, fechar as portas da percepo, cultuar a
morte.
Blake acreditava, assim, que o esprito social de seu tempo o povo ingls
personificado em sua obra como o Gigante lbion estava doente. Esta a chave de sua
passagem sobre dark Satanic Mills, o preldio ao livro Milton. O poeta refere-se, aqui, s
leis mecanicistas de Bacon, Newton e Locke, das quais a paisagem industrial era reflexo e
expresso:
Man has made his machines in the image of his ideology. So, always, Blake
seeks to discover the source of social and private ills within man. Only a
change of the heart and mind of the nation can create a new society and new
cities less hideous than those created by an atheist and mechanistic
rationalism (Raine, 2000: 72-4).
O poeta, que viveu sua primeira juventude em tempo de relativa paz, no deixava de confiar
na mudana da conduta espiritual de seu pas, muito menos na responsabilidade que
acreditava ter com Deus e a sociedade em continuar produzindo obras de Imaginao (Frye,
1995: 04).
Blake mostrou-se dono de uma imaginao incomum j na infncia, tendo, inclusive,
vises. Suas habilidades artsticas tornaram-se evidentes quando ainda era criana, e foram
encorajadas pelos pais (Ackroyd, 1995; Cazamia, 1983; Vultee, Eaves, Essick & Viscomi,
2005).
Segundo Valent (in Blake, 1977: 28), Su padre tom la precaucin de no mandarle a la escuela, aduciendo
que el nio tena el carter difcil.
sus ilustraciones (Cazamia, 1983: 09-10). Na oficina de Basire, Blake aprendeu a tarefa da
cpia-gravao, tal como era praticada na Inglaterra no fim do sculo XVIII (Vultee, Eaves,
Essick & Viscomi, 2005), e fez seus primeiros trabalhos comerciais. Tornando-se gravador,
ele was part of the first great period of commercialism and mass manufacture in English
history, and he was one of its first casualties (Ackroyd, 1995: 79).
Em 1780, acontecem the Gordon Riots em Londres, de que Blake teria participado
(Eaves, Essick & Viscomi, 2005). Em 1782, casou-se com Catherine Boucher, jovem simples
e analfabeta, que foi sua companheira por toda a vida. Blake ensinou Catherine a ler e a
escrever, a gravar e a pintar; ela o ajudava no lento e minucioso trabalho de impresso dos
livros iluminados (Vizioli, 1993: 12; Cazamia, 1983: 11).
Ao mesmo tempo em que trabalhava para editoras da poca, Blake preparava-se para
ser pintor. Em 1779, admitido como aluno nas Royal Academy of Arts Schools of Design.
L teve oportunidade de expor alguns trabalhos, como uma srie em aquarela, com desenhos
sobre a histria da Inglaterra, bem como desenhos sobre temas bblicos (Vultee, Eaves, Essick
& Viscomi, 2005).
Blake publicou Poetical Sketches no incio de 1783, coletnea de poemas que ele
havia escrito nos ltimos catorze anos, financiado por John Flaxman e com a ajuda de outros
dois amigos, o reverendo Anthony Stephen Mathews e sua esposa Harriet. Poetical Sketches
traz poemas variados e um drama, King Edward the Third.
Escreve An Island in the Moon, stira inacabada cujo ponto de partida parece ter sido a
sociedade que se reunia na casa do seu amigo A.S. Matthews. Em An Island in the Moon, que
ter sido escrito por volta de 1784-85, as principais correntes do pensamento religioso,
filosfico, cientfico e artstico da sua poca surgem, ainda que implicitamente, nas vrias
situaes e dilogos de uma trupe de personagem meio amalucada (Portela, 1996: 11), e seu
alcance satrico parece no se ter perdido de todo, em grande parte porque a educao e a
cincia continuam a ser as nossas obsesses (Portela, 1996: 32).
Em 1784, Blake abriu uma casa de impresso e publicao, em sociedade com seu
colega James Parker. A casa de impresso no se manteve aberta por muito tempo. O irmo
preferido do poeta, Robert Blake, morreu em seguida, em 1787, aos 19 anos.
Blake esteve sempre muito prximo de seu irmo mais novo, a quem ensinara a
desenhar, e com quem dividia seus interesses e entusiasmos (Ackroyd, 1995: 84). Robert teria
lhe dado, numa viso, as instrues da tcnica da gravao em relevo, por volta de 1788. Esta
descoberta foi esteticamente importante para Blake, pois o mtodo possibilitava juntar
inveno e produo, que se tornou um dos seus princpios centrais como artista (Vultee,
Eaves, Essick & Viscomi, 2005; Ackroyd, 1995: 112).
Blake empregou a tcnica da gravao em relevo nos seus dois primeiros livros
iluminados, All Religions are One e There is No Natural Religion, ambos confeccionados em
1788. Em All Religions are One, Blake defende a unidade essencial de todas as religies
como manifestaes do Gnio Potico inerente a todos os seres humanos, sugerindo a
unidade da imaginao artstica e religiosa (Eaves, Essick & Viscomi, 2005):
PRINCIPLE. 5.
The Religions of all Nations are derived from each Nations different reception of the Poetic
Genius which is every where calld the Spirit of Prophecy.
(Erdman, 1988: 01)
There Is No Natural Religion, por sua vez, est dividido em dois grupos de proposies,
sendo que no primeiro o poeta parodia princpios bsicos da filosofia de John Locke, sobre a
percepo fsica, a razo e os limites do conhecimento:
I Man cannot naturally Percieve, but through his natural or bodily organs
II Man by his reasoning power can only compare & judge of what he has already percievd.
(Erdman, 1988: 02)
Johann Kaspar Lavater (1745-1801), poeta, dramaturgo, mstico e fisionomista suo, conselheiro espiritual de
milhares de Protestantes, entre eles Goethe, que registrou suas impresses sobre Lavater em Dichtung und
Wahrheit. Lavater fugiu para a Inglaterra com seu amigo e colega de universidade, o pintor Henry Fuseli, por
terem denunciado um oficial corrupto; quando retornou a Zurique, escreveu seu Aphorisms on Man, dedicando-o
a Fuseli, que fez uma traduo inglesa, impressa por Joseph Johnson em 1788. Blake gravou o frontispcio para a
traduo de Fuseli e ficou fascinado pelo livro (Damon, 1988: 136). As anotaes de Blake para Aphorisms on
Man encontram-se em Erdman, 1988, disponvel no Arquivo Blake: <www.blakearchive.org>.
10
The Marriage of Heaven and Hell ficou pronto em 1790. O livro chama a ateno pela
combinao de vrios gneros e por suas perspectivas heterodoxas. A energia e a paixo so
valorizadas, enquanto a razo e a temperana so mostradas como represso do senso
espiritual e da auto-expresso (Eaves, Essick & Viscomi, 2005). Segundo Vultee, Eaves,
Essick & Viscomi (2005), The Marriage of Heaven and Hell parece ter surgido da desiluso
do poeta com Emanuel Swedenborg, o mstico sueco.
Foi, provavelmente, John Flaxman quem apresentou as obras de Swedenborg a Blake.
Swedenborg era o filsofo que podia dar sustentao s vises do poeta (Ackroyd, 1995:
101). Graas a suas supostas conversas com anjos e espritos, Swedenborg pde construir sua
doutrina das correspondncias, na qual toda forma material reflete ou contm sua fonte
espiritual (Ackroyd, 1995: 101). Ele teria sido seguido na rua por Jesus Cristo, que teria
entrado em sua casa e lhe teria encarregado da misso de criar a Igreja de Jerusalm. Para
cumprir essa misso, teria tido a permisso de visitar o outro mundo, el mundo de los
espritus, con sus innumerables cielos e infiernos (Borges, 1985: 52). Das suas visitas ao
outro mundo, Swedenborg conta que o livre arbtrio no termina no instante da morte, mas
que os homens continuam vivendo e vo se tornando anjos ou demnios conforme sua prpria
vontade e afinidades. Diz ainda que tudo no outro mundo mais vvido, mais concreto e
tangvel do que neste. Para Swedenborg, a salvao no se d apenas pela tica, mas tambm
intelectualmente;
Y luego vendr William Blake, que agrega uma tercera salvacin. Dice que
podemos que tenemos que salvarnos tambin por medio del arte. Blake
explica que Cristo tambin fue un artista, ya que no predicaba por medio de
palabras sino de parbolas. Y las parbolas son, desde luego, expresiones
estticas. Es decir, que la salvacin sera por la inteligencia, por la tica y
por el ejercicio del arte (Borges, 1985: 60).
Mais tarde, porm, Blake rejeitou e criticou vrios aspectos da doutrina
swedenborgiana. A nova Igreja de Swedenborg foi se tornando mais ritualizada e
institucionalizada, o que ia totalmente contra as idias de Blake. Este foi um dos motivos que
11
fizeram o poeta voltar-se para os escritos de Paracelso e Bhme, que passou a considerar
muito mais profundos que os de Swedenborg (Ackroyd, 1995: 147):
os escritos de Swedenborg so uma recapitulao de todas as opinies
superficiais, e uma anlise das mais sublimes e nada mais. (...) Qualquer
homem de talento mecnico pode, a partir das obras de Paracelso ou Jacob
Bhme, produzir dez mil livros com o mesmo valor dos de Swedenborg, e a
partir dos de Dante ou Shakespeare, um nmero infinito (Blake, 2001: 49).
Blake expressou tambm suas crticas a Swedenborg nas notas marginais dos livros que
estudara do visionrio sueco. Nessas notas, Blake se exalta contra visiones que implican
predestinacin y seala sin mansedumbre errores y contradicciones (Cazamia, 1983: 26).
Em 1790, William e Catherine Blake instalam-se no bairro londrino de Lambeth, onde
Blake pde dispor de mais espao para seus experimentos com os livros iluminados. Nessa
poca, Lambeth era conhecida por seus vinhedos (Ackroyd, 1995: 127). From Lambeth / We
began our Foundations; lovely Lambeth: em Lambeth, o poeta entrou no perodo mais
produtivo da sua vida (Ackroyd, 1995: 133).
The French Revolution, epopia histrica, impressa em 1791. O subttulo A Poem,
in Seven Books sugere que esta uma obra incompleta, uma vez que se conhece apenas o
primeiro livro (Vultee, Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
Blake produzia seus prprios livros, sem deixar de gravar ilustraes para os livreiros
de Londres, nesse tempo, especialmente para Joseph Johnson, que foi o primeiro editor a
contrat-lo como ilustrador. Johnson era um dissidente liberal interessado em detalhes do
progresso cientfico e industrial, ao mesmo tempo em que apoiava a causa da tolerncia
religiosa; por isso tinha preferncia em publicar material religioso, educativo e mdico, em
detrimento de poesia ou fico (Ackroyd, 1995: 86-7). Do crculo de Joseph Johnson, Blake
teve a oportunidade de conhecer William Godwin, autor de Political Justice, e Thomas Paine,
um dos mais importantes pensadores da revoluo americana, autor de The Rights of Man,
alm de Mary Wollstonecraft, entre outros.
12
Blake tambm gravou ilustraes para o The Botanic Garden, o mais importante livro
de poesia de Erasmus Darwin3, a partir dos modelos de Fuseli4, pintor de formao clssica
admirado por Blake. Para Original Stories from Real Life de Mary Wollstonecraft, comps e
gravou seis ilustraes.
Voltou para a impresso iluminada em 1793, com Visions of the Daughters of Albion,
publicando em seguida America A Prophecy. No poema Visions of the Daughters of Albion,
Oothoon a figura central. Ela colhe a flor da sexualidade feminina, mas estuprada por
Bromion. Theotormon, seu amante, responde com silncio ou abstraes inteis. Oothoon
passa a questionar a moralidade convencional, e a insistir na sua pureza interior. a crtica de
Blake ao colonialismo, escravido, represso sexual e condio da mulher na sua poca
(Eaves, Essick & Viscomi, 2005). O poema uma espcie de anttese e preparao ao
tratamento do tema da liberao americana, desenvolvido em America.
Depois veio, tambm em 1793, For Children: The Gates of Paradise pequena
coleo de emblemas com palavras ou aforismos curtos sobre a trajetria da vida humana, do
nascimento morte gravado segundo o mtodo tradicional (Vultee, Eaves, Essick &
Viscomi, 2005).
Publicou Europe A Prophecy em 1794, continuando a combinar sua mitologia pessoal
com os acontecimentos do seu tempo, nas suas Profecias Continentais (Vultee, Eaves, Essick
& Viscomi, 2005). Em Europe, Blake discute as posies filosficas em conflito na sua era
revolucionria (Eaves, Essick & Viscomi, 2005). A narrao se desenvolve como um sonho:
Enitharmon slept,
Eighteen hundred years: Man was a Dream!
The night of Nature and their harps unstrung:
3
Erasmus Darwin (1731-1802), av paterno de Charles Darwin, era mdico e escreveu muito sobre medicina e
botnica, alm de ter sido poeta. Sua poesia foi admirada por Coleridge e Wordsworth, e seus experimentos em
galvanismo inspiraram Mary Shelley a escrever o Frankenstein (Parker, 2006).
4
Henry Fuseli (em alemo Johann Heinrich Fssli) (1741-1825), pintor e crtico de arte nascido em Zurique.
Seu pai destinou-o igreja, e assim recebeu uma educao clssica. Estudou pintura na Itlia e foi membro da
Academia Real inglesa. Como pintor, gostava de temas do sobrenatural, acreditando necessria certa dose de
exagero na grande pintura histrica (Parker, 2006).
13
sua prpria nascente mitologia. Aqui, Ado, No, Scrates, Brama, Los, Urizen, representam
tanto perodos como estados de conscincia (Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
Nesse ano, 1794, iniciou um grande projeto para o livreiro e editor Richard Edwards:
ilustrar o poema Night Thoughts, de Edward Young. Blake produziu 537 imagens em dois
anos; gravou 43 delas para o primeiro dos projetados quatro volumes. Edwards, no entanto,
desistiu do negcio e o projeto foi abandonado (Vultee, Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
Influenciado pelo Night Thoughts, comeou a trabalhar no livro que originalmente
intitulou Vala, e tornou-se depois The Four Zoas. Neste longo poema, Blake expe sua
concepo da qudrupla diviso da conscincia, que teria ocorrido com a queda. A obra
permaneceu manuscrita, mas rendeu material para Milton e Jerusalem (Vultee, Eaves, Essick
& Viscomi, 2005).
Em 1800, por intermediao de Flaxman, Blake muda-se para Felpham, no condado
de Sussex, para trabalhar com William Hayley, poeta e bigrafo (Ackroyd, 1995: 215).
Blake mostrou entusiasmo nos primeiros tempos em Felpham: La paz, la belleza del
lugar le impresionaron profundamente y le proporcionaron una renovada inspiracin. Sus
visiones se hicieron ms frecuentes (Cazamia, 1983: 11). Ademais, comeara a aprender
lnguas e literaturas com Hayley mas logo caiu em profunda melancolia, pois percebeu que
seu tempo estava resumindo-se a encomendas de natureza trivial, simplesmente por dinheiro.
Hayley criticou o trabalho do artista, reclamou modificaes, discutiu sua inspirao. Isso
para Blake era poner en duda lo que tena por ms sagrado (Cazamia, 1983: 12). Sentia-se
impedido de continuar sua obra: His great fear was always that he was being forced to betray
his own gifts (Ackroyd, 1995: 233). Pois ele deveria ser um artista, no um arteso. Apesar
de reconhecer a generosidade de Hayley e seu apoio s artes, Blake passou a consider-lo seu
inimigo espiritual. Essa mudana de atitude teve conseqncias importantes diretamente na
sua obra, com a representao de Hayley na figura de Sat, ou como Hyle, the bad artist, em
15
Milton (Mark well my words! Corporeal Friends are Spiritual Enemies [Erdman, 1988: 98]) e
Jerusalem (Damon, 1988: 178).
De volta a Londres, Blake fez ilustraes para The Grave, de Robert Blair5, e comeou
sua maior gravura em placa separada, Chaucers Canterbury Pilgrims, feita em gravao de
entalhe. Exps este trabalho com outras 15 pinturas na loja de seu irmo James em 1809,
acompanhados de um Descriptive Catalogue, que era mais um manifesto esttico do que
propriamente um catlogo (Vultee, Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
No man can believe that either Homers Mythology, or Ovids, were the production of
Greece, or of Latium; neither will any one [P 5] believe, that the Greek statues, as they are
called, were the invention of Greek Artists; perhaps the Torso is the only original work
remaining; all the rest are evidently copies, though fine ones, from greater works of the
Asiatic Patriarchs.
(Erdman, 1988: 531)
Cazamia (1983: 41) conta que, a ponto de triunfar sobre a indiferena do pblico, quando
organizou esta exposio de suas obras, Blake teve de enfrentar violentos ataques dos jornais:
El Examiner de Leigh Hunt trat, sin ningn tipo de rodeos, de ambicioso exaltado e
ignorante y de loco cuyos escritos, cuadros y grabados no merecan ser tomados en serio.
Este episdio o feriu profundamente; afinal de contas, se senta inspirado por el cielo y, por
tanto, igual a los ms grandes (Cazamia, 1983: 41). Como resposta, escreveu um longo
ensaio, hoje conhecido como Public Address:
The manner in which my Character <has been blasted these thirty years> both as an artist &
a Man may be seen particularly in a Sunday Paper cald the Examiner Publishd in Beaufort
Buildings. <We all know that Editors of Newspapers trouble their heads very little about art
Robert Blair (1699-1746), sacerdote escocs, de famlia refinada. A publicao de seu nico poema, The
Grave, aconteceu no ano seguinte ao bem sucedido Night Thoughts (1742), de Edward Young. Em 1805, Robert
Hartley Cromek contratou Blake a fazer quarenta ilustraes para The Grave. Apesar do entusiasmo inicial com
o trabalho de Blake, Cromek tornou-se apreensivo em relao a seu estilo enrgico e, vido pelo sucesso do
livro, contratou o popular ilustrador Louis Schiavonetti para fazer as gravuras. O retrato que saiu como
frontispcio do livro, o poema que serviu de dedicatria e algumas das ilustraes eram do prprio Blake, mas
tudo foi atribudo ao nome de Schiavonetti. O livro foi um sucesso. Rudolph Ackermann, famoso por seus livros
ilustrados, reeditou a obra em 1813. As biografias de Blair, Schiavonetti e Cromek foram adicionadas, mas no
havia nenhuma informao sobre Blake. Em 1963, uma reproduo das gravuras foi publicada sem o texto de
Blair, sugerindo a condio de Livro Proftico srie de gravuras de Blake (Damon, 1988: 47-9). Atualmente, as
ilustraes de Blake para The Grave de Robert Blair podem ser vistas no Arquivo Blake (Eaves, Essick &
Viscomi, 2006).
16
& science & that they are always paid for what they put in [P 53] upon these ungracious
Subjects>
()
but the Public will know & Posterity will know
(Erdman, 1988: 572)
Blake trabalhou na gravao do livro Milton de 1804 (a data da pgina-ttulo) a 1810.
Essa obra grandiosa comea com John Milton retornando dos cus ao mundo mortal, unindose imaginao na pessoa de William Blake (Eaves, Essick & Viscomi, 2005). O poema que
serve de prefcio a Milton, musicado por Barry, foi adotado na Inglaterra como segundo hino
nacional:
I will not cease from Mental Fight,
Nor shall my Sword sleep in my hand:
Till we have built Jerusalem,
In Englands green & pleasant Land
(Erdman, 1988: 94-95)
Ainda mais tempo para ficar pronto levou Jerusalem The Emanation of The Giant
Albion, de 1804, mas que s terminou de ser impresso em 1820. seu maior livro iluminado;
constitui uma recapitulao de seus temas ranging from his own mythology to biblical
history, from sexuality to epistemology, and from the Druids to Newton, concluindo com
uma viso da conscincia humana em um universo ps-apocalptico (Eaves, Essick &
Viscomi, 2005).
Enquanto preparava Milton e Jerusalem, ilustrava obras do prprio Milton: Paradise
Lost, Nativity Ode; mais tarde, LAlegro, Il Penseroso e Paradise Regained, para Joseph
Thomas e Thomas Butts (Vultee, Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
Em 1820, Blake revisa seu For Children: The Gates of Paradise, dando-lhe novo
ttulo, For the Sexes: The Gates of Paradise, e adicionando-lhe trs pginas ao final (Eaves,
Essick & Viscomi, 2005).
Apesar de seus esforos, porm, Blake continuava na obscuridade, e enfrentava dias
difceis. Foi quando conheceu John Linnel: Linnel, then a twenty-six-year-old landscape
17
painter, won Blake friendship both by bringing him work which he desperately needed
and by attempting to understand him on his own terms (Vultee, Eaves, Essick & Viscomi,
2005).
Por intermdio de John Linnel, Blake conheceu John Varley, artista e astrlogo.
Varley encorajou Blake a desenhar as figuras que apareciam ao poeta durante suas vises.
Assim comeou a srie Visionary Heads, em 1819. Por volta de 1825, Blake j tinha
esboado mais de 100 delas, sendo a mais famosa The Ghost of a Flea, posteriormente
gravada por Linnel, para ilustrar Treatise on Zodiacal Phisiognomy de Varley, publicado em
1828 (Vultee, Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
Em 1820, os Blake mudaram-se para Fountain Court, onde o poeta passaria o resto da
sua vida (Ackroyd, 1995: 337). Em Fountain Court, Blake foi descoberto por um grupo de
jovens artistas, que se chamavam The Ancients, identificados com o lema Poetry and
Sentiment. Finalmente havia ali uma gerao que o admirava (Ackroyd, 1995: 338).
Publica, em 1822, The Ghost of Abel, curto drama dirigido a Lord Byron (cujo Cain, a
Mystery apareceu em 1821), e On Homers Poetry [and] On Virgil, dois brevssimos tratados
sobre arte. Laocon publicado em 1826, uma reinterpretao da famosa escultura grega
como a cpia de um original hebraico. Em torno do desenho central, Blake inscreveu suas
opinies sobre temas como dinheiro, imprio, moralidade e arte (Eaves, Essick & Viscomi,
2005).
Linnel foi responsvel pelos trabalhos mais importantes que ocuparam os ltimos anos
da vida de Blake: as ilustraes para o Livro de J e para a Divina Comdia de Dante, obra
interrompida por sua morte, em 12 de agosto de 1827.
Depois da morte de Blake, Catherine foi amparada por Linnell, at 1828, e depois por
Frederick Tatham, do crculo The Ancients. Ela continuou vendendo os trabalhos de Blake,
at sua morte, em 1831. Os trabalhos restantes ficaram com Tatham, que supostamente
18
destruiu muitos deles, por se ter convertido doutrina de Irving (Cazamia, 1983: 39-40;
Ackroyd, 1995; Vultee, Eaves, Essick & Viscomi, 2005).
Blake no participava de crculos intelectuais, e costumava rejeitar as idias que no
confirmassem a sua viso de mundo (Ackroyd, 1995: 88). As circunstncias e o seu prprio
temperamento isolaram-no, mas tambm lhe deram liberdade para criar a sua obra,
considerada genial por alguns, entre eles Yeats, e de certa maneira limitada e ingnua, por
outros, como Eliot.
21
22
bright, comenta, Mas sua obra vasta e seu objetivo imenso (Burgess, 1999: 181).
Parece que os livros considerados difceis de Blake comeam a atrair a ateno de um grupo
mais amplo do que o crculo dos especialistas. Frye (1990: 03) assinala, a propsito, que, se
os poemas que vemos nas antologias indicam que devemos levar Blake a srio como artista
consciente e deliberado, devemos estudar as chamadas profecias, corpo principal de sua
obra.
1.3 America
23
Esta pgina semelhante Gravura 4 nas ilustraes. A Gravura C tambm foi cancelada. Segundo
Erdman (1988), ela viria entre as Gravuras 8 e 9. justo mencionar tambm que a terceira estrofe da Gravura
3 aparece apenas em alguns exemplares da obra, como na cpia A, da Biblioteca Pierpont Morgan. J a
Gravura d foi encontrada, o texto coberto por pigmento, em duas cpias entre os impressos coloridos reunidos
em A Large Book of Designs, com o nmero 9 em caligrafia de Blake. O texto foi impresso na parte inferior
de uma placa do mesmo tamanho e estilo de letra de America. A traduo de America feita por Manuel Portela
no traz os versos cancelados; em minha traduo, foram dispostas ao final do poema, respeitando a edio de
Erdman (1988).
24
impressa em branco sobre fundo preto (Ting, 2005: 02). nesse momento que o processo de
criao dos livros iluminados de Blake chega sua maturidade.
Este processo consistia em submeter a chapa a um banho de cido ntrico (Portela,
2005: 09), fazendo os traos das imagens e palavras em relevo (o mtodo mais freqente) ou
em oco. Para isto, era necessrio ainda um verniz de betume, usado como base sobre a placa
de cobre uma vez aquecida a chapa, esta base endurecia e podia receber os traos; ou um
verniz de lcool resinoso (...), usado para escrever e desenhar diretamente na chapa (Portela,
2005: 09). Para a gravura em relevo, Blake traava as imagens com penas e pincis usando
esse verniz. A gravao ficava em oco quando eram usados buris e agulhas sobre a base
(Portela, 2005: 09). O trabalho era submergido o tempo necessrio para a gravao, isto ,
para que o cido mordesse a superfcie descoberta da placa de cobre (Portela, 2005: 09).
Eram ento impressas as gravuras, com tinta de cor escura, para serem depois acabadas mo
com aquarelas, por William e Catherine Blake, gerando variaes significativas na atmosfera
final das pginas (Portela, 2005: 09-10).
Reconstituindo o processo de gravao e iluminao em sua oficina, Joseph Viscomi
(2003) demonstrou que Blake gravava imagem e texto sobre a placa de cobre, e que essa
gravao no resultava da simples transferncia de um modelo previamente acabado, isto ,
inveno e execuo estavam integrados no momento de gravar o desenho e o texto sobre a
placa de cobre, usando geralmente a tcnica da gua-forte, por vezes com trabalho adicional
de buril sobre placa (Portela, 2005: 08). Portela (2005) percebe o processo de criao dos
livros iluminados de Blake como um nvel da criao de mundos, a oficina de gravao
tornando-se uma espcie de forja da divindade.
Est mais do que claro que a funo das ilustraes dos livros iluminados no pode ser
ignorada. Sem dvida, Blake considerara inaceptable publicar a sus obras, especialmente
sus libros profticos, sin sus grabados y pinturas (Valent in Blake, 1977: 48-49), pois stos
25
son parte integrante de la obra no ya como ilustraciones grficas de la palabra escrita, sino
como visiones de importancia igual a las partes literrias, aunque expresadas a travs de otro
medio (Valent in Blake, 1977: 49).
Para Preminge & Brogan (1993: 1361),
William Blake, generally agreed to be the greatest poet-painter, created a
startlingly wide range of compositions that vary from engraved poems with
little illustrative accompaniment to ambitious visual images with minimal
verbal reinforcement. Even when word and image are closely intertwined
(as in some of the most successful Songs of Innocence and Songs of
Experience), the precise function of this composite form is not necessarily
consistent. The illustration may reinforce the meaning of the poem, or it
may complicate or undermine it (as in many states of The Tyger); it is
also possible that the poem will make little sense without the visual images
that penetrate and frame it. In their interdependence of word an image,
Blakes designs represent a provocative reworking of the traditional
emblem, in which motto, verse, and engraving all serve to illuminate the
same idea (Preminge & Brogan, 1993: 1361).
No livro America, s vezes h mais ilustrao do que texto no espao da pgina (alis,
Blake decide tambm aumentar o tamanho da pgina, fazendo America duas vezes maior que
os livros anteriores: suas dezoito pginas medem 28,86cm x 9,04cm), e, na opinio de
Ackroyd (1995: 163-5), no ilustram de fato o texto, mas formam uma seqncia separada,
constituindo um texto icnico necessrio parte verbal do poema. Por exemplo, na terceira
pgina do livro (object 3 in Eaves, Essick & Viscomi, 2006), as duas primeiras estrofes do
Preludium apresentam Orc e Shadowy Female; Orc acorrentado, porm liberto em esprito,
pairando sobre paisagens mundanas, sob as formas de guia (ar), Leo (terra), Baleia (gua) e
Serpente (fogo). A ilustrao traz, por sua vez, Orc preso nas correntes do cime, debaixo da
rvore do Mistrio; Los e Enitharmon aterrorizados pela viso de seu filho em degradao. A
forma das razes da rvore, arranjadas na borda esquerda da pgina, lembram um casal em
cena de sexo. Orc, de novo, sob as razes, reprimido, com a imagem de uma Serpente
completando o quadro. Assim, a ilustrao adiciona parte verbal outros temas e smbolos.
26
Ackroyd (1995: 163) afirma que, a partir de America, os smbolos comeam a ser
representados de maneira sistemtica nos livros iluminados, ganhando propores de mito
organizado:
Here [in America] for the first time appears Orc, who together with Urthona
and Urizen will soon comprise the complex system of action and impulse
that makes up Blakes mature vision. For the moment, however, their roles
remain simple Orc, the principle of energy and rebellion, stands against
Urizen, who is tyrant, priest and lawgiver.
Para Frye, America no s mais bem integrado e menos experimental que seu
antecessor, The French Revolution, como mais importante para o prprio Blake (Frye, 1990:
205).
America certamente teve maior importncia para o poeta porque neste livro que ele
comea a estudar Orc, o primeiro Gigante ou personagem simblica da sua srie de
profecias. A base do enredo de America o duelo entre Orc e Urizen Amrica e Inglaterra
George Washington e George III (Ewen, 2004: 54). A histria de America, diz Ackroyd
(1995: 163), simples, consistindo na rebelio das treze colnias americanas e no fracasso da
resposta britnica. George Washington e The Guardian Prince of Albion envolvem-se num
conflito csmico que se estende por plancies de desespero, regies perdidas de Atlntida,
desertos de pedra e florestas de aflio.
A Revoluo Americana recebe, aqui, segundo Eaves, Essic & Viscome (2005), um
tratamento altamente imaginativo, combinando personagens histricas, tais como Washington
e Paine, e figuras mitolgicas inventadas pelo prprio poeta, que incluem Albions Angel,
Londons Guardian, Urizen e Orc. Eaves, Essic & Viscome (2005) sugerem que Blake
estuda a Revoluo Americana como manifestao da revoluo universal, tanto
epistemolgica quanto poltica. O conflito torna-se um impulso maior em direo ao
renascimento e revelao, opina Ackroyd (1995). Blake estaria, nesse ponto, tentando criar
uma profecia popular com smbolos prprios (Ackroyd, 1995: 163).
27
28
precisa em America, mas o final do livro mostra a Imaginao irrompendo atravs dos
sentidos a dissolver o caos de terra e gua em fogo (Frye, 1995: 205), ou seja, Orc em
vantagem sobre Urizen a superao da tirania, ou a Razo, pelo poder revolucionrio, ou a
Energia.
Num momento posterior, Blake deixaria mais claro que Orc e Urizen no so
prncpios separados. Se Orc representa a fora renovadora para um novo ciclo, tanto da
alvorada, como da primavera ou da histria, ele deve crescer e morrer no fim deste ciclo:
quando Orc envelhece, ele se torna Urizen (Frye, 1995: 110). Segundo Frye, a simbologia de
Blake busca explicar que a histria da humanidade tem um ritmo cclico de declnio e
renovao, que a histria toma a forma de uma srie de culturas e civilizaes, cada uma delas
com seu prprio movimento de ascenso, maturidade e queda.
a primeira vez que Blake denomina um de seus livros a prophecy expressamente
no ttulo (Damon, 1988: 20; Eaves, Essick & Viscome, 2005).
29
O exame das tradues um dos modos privilegiados de termos uma idia mais precisa do
quanto e de como a poesia de William Blake foi sendo recebida fora de seu pas de origem.
Por razes prticas, restringi-me a dar um breve panorama das tradues de Blake no
Ocidente, como introduo ao quadro das tradues de sua obra ao portugus.
Ao que parece, os franceses foram os primeiros a traduzir Blake, e os que mais
traduziram sua poesia at agora7. A primeira traduo, intitulada Le mariage du ciel et de
lenfer (1923) foi feita por Andr Gide. Chants dinnocence et dexprience, em traduo de
Marie-Louise e do poeta surreliasta Philippe Soupault, apareceu em 1927. Estas duas obras,
principalmente a primeira, foram bastante retraduzidas. As uvres de William Blake,
traduzidas por Pierre Leyris, compreende 5 volumes e contm at mesmo a marginlia. O
primeiro volume data de 1974.
H uma srie de tradues de Blake ao espanhol. A primeira, El Matrimonio del Cielo
y del Infierno / Cantos de inocencia y de experiencia, foi feita por Soledad Capurro e
publicada em 1979, tendo sido reeditada duas vezes. Songs of Innocence and of Experience
tem outras duas tradues a de Jos Luis Carams (1984) e a de Elena Valent (1984) e
The Marriange of Heaven and Hell tem as tradues de Fernando Castaedo (2002) e de Jos
Luis Palomares (2002), alm do fragmento Proverbios del Infierno (1992), traduo do
poeta e dramaturgo mexicano Xavier Villaurrutia, autor dos Autos Profanos (1943). H ainda
vrias tradues disponveis na internet. Registrem-se as tradues de Jerusaln (1997), Tiriel
y El Libro de Thel (2006) e vrias antologias. Mas a principal traduo de Blake ao espanhol
a Poesa Completa, publicada em 1986, trabalho do tradutor Pablo Ma Ganzn; tem sido
reeditada periodicamente desde ento. A traduo mais recente El Evangelio Eterno,
mexicana, de Evelio Rojas Robles, que assinala que, no Mxico, Blake ha sido um poeta mal
ledo y mal comprendido (Garca, 2006).
7
As informaes a seguir sobre os ttulos de Blake em vrias lnguas foram extradas do site:
http://databases.unesco.org/xtrans/xtra-form.shtml, exceto sobre a traduo mexicana El Evangelio eterno, cuja
fonte est referenciada no texto.
30
31
32
The Marriage... e Milton, traduzidos por Paulo Quintela e publicados na revista Biblos em
1981.
Em 1983, publica-se Primeiro Livro de Urizen, traduo de The [First] Book of
Urizen por Joo Almeida Flor. No ensaio introdutrio, William Blake e a questo das
origens, Almeida Flor, que afirma pretender fazer apenas uma sntese interpretativa do
livro em questo, justificada pela complexidade da rede simblica patente na escrita de
William Blake (Flor in Blake, 1993: 10-11), apresenta uma sntese da mensagem total do
autor.
Depois da traduo de Almeida Flor, aparecem as de Manuel Portela, responsvel pela
maior quantidade de obras traduzidas de William Blake em Portugal. Portela professor da
Universidade de Coimbra, autor de Cras! Bang! Boom! Clang! (1991), Pixel Pixel (1992) e
Rimas Fodidas e Outros Textos Escolares (1994). Publica artigos e profere comunicaes
sobre poesia, traduo, msica, arte moderna, cinema de animao, tipografia e histria do
livro. A obra dos irmos Campos um tema freqente no seu trabalho acadmico. Fez
tradues de Tony Harrison, Edwin Morgan, e tambm do romancista Laurence Sterne. Pela
obra de Sterne A Vida e Opinies de Tristram Shandy, Portela ganhou o Prmio Nacional de
Traduo Literria relativo ao ano de 1997. Como tradutor de Blake, tem quatro livros
publicados: Cantigas da Inocncia e da Experincia mostrando os dois estados contrrios
da alma humana [Songs of Innocence and of Experience Shewing the Two Contrary States
of the Human Soul] (1994); Uma ilha na lua [An Island in the Moon] (1996); Poemas do
Manuscrito Pickering / Os portes do Paraso [Pickering Manuscript / For the Sexes: The
Gates of Paradise] (1996) e Sete Livros Iluminados [All religions are one; There is no natural
religion; The book of Thel; America; Europe; The Song of Los; The Book of Los] (2005)8
(Portela, 2007).
Portela tambm traduziu The Book of Ahania, O Livro de Ahania (no prelo).
33
34
Pequeno glossrio simblico de William Blake. Sete Livros Iluminados exibe fac-smilies
de algumas das pginas iluminadas dessas obras, num total de 32 iluminuras.
A antologia de Hlio Osvaldo Alves, A guia e a toupeira: poemas de William Blake
(1996), que, segundo o tradutor, permite-se a ousadia de querer ser um pequeno e humilde
dedo indicador num emaranhado de muitos caminhos (Alves in Blake, 1996: xxiii), guarda
certa semelhana com Escritos de William Blake, a coletnea de Marsicano e G (Blake,
1984). A guia e a toupeira, porm, um pouco mais abrangente; rene poemas das Canes
e fragmentos de A Unio do Cu e do Inferno, Livro de Notas, Vises das Filhas de Albion,
Amrica, Europa, Para os Sexos: Os Portais do Paraso, Vala, Jerusalm e Milton. Alves,
que no esconde seu entusiasmo profundo de traduzir, mesmo que fugazmente, um poeta,
um homem, como William Blake (in Blake, 1996: xxv), na introduo Poeta, Pintor e
Visionrio: William Blake no seu tempo e no nosso, d ateno especial ao poema America,
do qual traduz trs passagens, comentadas no final do livro, como os outros poemas e
fragmentos. Sua traduo de America mantm as quebras de versos originais e preza por uma
clareza do sentido.
As Npcias do Cu e do Inferno (1956) o primeiro livro de Blake em portugus
brasileiro, uma traduo anotada de Oswaldino Marques. Escritos de William Blake, por sua
vez, antologia preparada por Alberto Marsicano, msico e ensasta da contracultura e de
poesia japonesa, coreana e indiana, e por Regina de Barros Carvalho (G), foi publicado em
1984. Esta interessante antologia parcialmente bilnge faz, como A guia e a topeira, um
passeio pela obra completa de Blake. Traz fragmentos de O Casamento do Cu e do Inferno,
O Livro de Urizen, Milton, Jerusalm e tambm de Amrica, com um pequeno texto
explicativo precedendo cada um desses fragmentos. Esses pequenos textos introdutrios
foram preparados pelos tradutores, que se identificam ao final de cada traduo. Vm-se, alm
disso, na parte bilnge do volume, vrios poemas das Canes, fragmentos do Manuscrito
35
10
Disponvel em <http://www.rizoma.net/interna.php?id=35&secao=hierografia>.
Parece que o mesmo acontece em Portugal. No artigo Traduzir no acaba: 1 tigre, 2 tigres, 3 tigres, n tigres
(in Relmpago, N17 (Outubro 2005), pp. 74-91), Manuel Portela analisa as tradues de The Tyger feitas por
Paulo Quintela, Antnio Herculano de Carvalho, Jorge de Sena, David Mouro Ferreira, Gasto Cruz, Manuel
Portela e Hlio Osvaldo Alves e tambm pelo brasileiro Augusto de Campos (http://um-buraco-nasombra.netsigma.pt/e_sombra/index.asp?op=6&ano=2006&mes=3).
11
36
Tambm traduziu The Tyger o poeta, tradutor, ensasta, crtico de literatura e msica
Augusto de Campos. Sua traduo para The Sick Rose (de Songs) reinventa o aspecto
visual do poema ao estilo concretista.
Outro dos tradutores de The Tyger Jos Paulo Paes. Para este ensasa, poeta e
tradutor, traduzir poesia um exerccio de aprendizagem como poeta: (...) nem acredito em
poeta que no aprenda com outros poetas, principalmente de outras lnguas que no a sua
prpria: da o [Paes] tradutor (Paes in Leo, 1998: 02). Paes considera a sua traduo de
The Tyger uma tentativa e adverte que foi escrita no para contrap-la criativa verso
de Augusto de Campos (Machado, 2005: 02).
Songs of Innocence and of Experience finalmente aparece traduzido integralmente no
Brasil em 2005, em dose tripla, trabalhos de Mrio Alves Coutinho e Leonardo Gonalves
(Canes da Inocncia e da Experincia Revelando os dois lados opostos da alma
humana), de Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho (Canes da Inocncia e Canes da
Experincia Os dois lados contrrios da alma humana) e de Renato Suttana (Canes da
Inocncia e da Experincia, traduo experimental disponvel na pgina do tradutor).
mesmo tempo, centrados na explorao dos significantes (Bosi, [...]: 530). Uma riqueza que,
para Bosi ([...]: 530), deve-se em parte Ao lastro neo-simbolista e surrealista, influncia de
Blake, Rimbaud, Nietzsche, Dylan Thomas e do nosso Jorge de Lima, somados, na segunda
fase da sua produo, presena do imagismo de Pound e de Cummings (Bosi, [...]: 530).
Como na poesia concreta o material significante assume o primeiro plano, parece natural
que os tradutores direta ou indiretamente envolvidos pela tendncia concretista se sentissem
atrados pela primeira fase de Blake, na qual ele, afirma T.S. Eliot, se interessa pela beleza
verbal (in Blake, 1984: 19), em poemas tecnicamente admirveis (Eliot in Blake, 1984:
18).
Minha breve pesquisa sobre as tradues de Blake mostra que uma tendncia geral
no Ocidente os livros The Marriage e Songs serem preferidos para as primeiras (re)tradues
do poeta. Percebendo esta tendncia, a tradutora espanhola Elena Valent sugere que Blake
vinha sendo recebido de duas maneiras. Ela afirma que
Al contrario del entusiasmo con que Yeats acogi la poesa de Blake, la
opinin ms corriente hasta hace poco entre los pocos que le han ledo es
que fue buen poeta lrico en sus tres primeros libros y en los poemas breves
que quedaron en manuscrito, pero se ha considerado sus libros profticos
como confusos e inteligibles (Valent in Blake, 1977: 49).
Por outro lado, nota Valent, entre los ambientes de la contracultura anglosajona (Valent in
Blake, 1977: 49) os mesmos ambientes que Willer (2005) menciona se le ha vuelto a
revalorizar, de nuevo por su anticientifismo, por su peculiar modo de protesta social y,
sobretodo, por su conviccin de que el hombre posee una capacidad visionaria que le pone en
contato con un nivel ms autenticamente real que el de la realidad objetiva (Valent in Blake,
1977: 49-50). Por essas caractersticas, diz Valent (in Blake, 1977: 50), Blake serviu para
justificar a veia psicodlica de certos artistas contemporneos, apoiando-se eles nas suas
palavras sobre a arte como expresso de um nvel superior do esprito.
38
Assim, diz-se que Recently, Blake had a particularly marked influence on The Beat
Generation and the English poets of the Underground movement, hailed [] as a liberator
(Drabble & Stringer, 1996: 60). Um desses artistas , sem dvida, Allen Ginsberg (19261997), que inclusive musicou as Songs of Innocence and of Experience. A gravao contou
com a participao de Bob Dylan na faixa A Dream12.
Outro poeta beat declaradamente influenciado pela poesia blakeana Michael
McClure (Foley, 2001). Atualmente envolvido em vrios projetos, de cinema a recitais, com
Ray Manzarek, tecladista da banda The Doors, McClure foi amigo de Jim Morrison, a quem
incentivou a publicar seu The Lords: Notes on Vision (McClure, 2004).
Morrison teria se tornado leitor de Blake atravs de Michael McClure (Lopes, 2006).
O nome de sua banda, The Doors, foi inspirado no livro The Doors of Perception (1954) de
Aldous Huxley, no qual ele conta sua experincia com mescalina, por sua vez inspirado na
agora famosa mxima de Blake:
If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite.13
Sites (2007) considera que It is probably not surprising that, among romantic poets,
Blake has been especially popular with rock musicians. Entre os muitos artistas de rock que
fizeram leituras de Blake, destaco o projeto do cantor e compositor Bruce Dickinson, que
lanou um disco, The Chemical Wedding (1998), inteiramente dedicado ao poeta. O disco foi
um estmulo traduo de Sorbini & Carvalho (Blake, 2005), conforme consta na pgina de
agradecimentos: Os autores gostariam de agradecer a Paul Bruce Dickinson, por ter neles
despertado o desejo de traduzir William Blake (Sorbini & Carvalho in Blake, 2005: 19).
Para Valent, no so os artistas da contracultura os que
12
As Canes de Blake musicadas por Ginsberg, includas no seu Holy Soul Jelly Roll: Poems And Songs, 19491993, podem ser ouvidas online: <http://www.english.uga.edu/wblake/SONGS/>. Existe um registro em vdeo,
Ginsberg Sings Blake: Songs of Innocence and Experience, de Ginsberg apresentando suas composies com
Steven Taylor e Heather Hardy (violino eltrico) (Sites, 2007).
13
Na traduo de Jos Antnio Arrantes (Blake, 2001: 36): se as portas da percepo estivessem limpas, tudo
se mostraria ao homem tal como , infinito.
39
40
CAPTULO 2
A TRADUO DO POEMA
2.1 Traduo
sabido que uma traduo14 que preserve todas as caractersticas do original coisa
impossvel. Para comear, nenhuma palavra de uma lngua perfeitamente igual a de uma
outra, como afirma Humboldt (in Shulte & Biguenet, 1992: 55; Heidermann, 2001: 91).
Janheiz Jahn, citado por Heidermann (2001: 09), afirma que uma traduo perfeita, por assim
dizer, somente seria possvel se as lnguas no tivessem diferenas, no tivessem uma alma,
o que anularia a necessidade da traduo. por isso que Jahn diz que na impossibilidade de
tradues perfeitas residem as possibilidades para o tradutor (Heidermann, 2001: 09).
DAlembert alerta que a impossibilidade em que o tradutor se encontra de reproduzir
exatamente o texto original lhe d uma liberdade perigosa. Para ele, o tradutor no podendo
dar cpia uma semelhana perfeita, deve temer no dar a ela toda a semelhana que pode
ter (in Faveri & Torres, 2004: 65). Dizer que impossvel reproduzir o texto no significa
negar qualquer lao de semelhana das expresses ou dos textos entre si: As semelhanas
existem, e por fora dessas semelhanas que as obras de arte podem ser includas neste ou
naquele grupo (Croce in Arrigoni & Guerini, 2005: 205). Nos traos comuns que o tradutor
pode reproduzir do original o esprito de uma obra que pode ser transportado de uma lngua
a outra , Nessas semelhanas se fundamenta a possibilidade relativa das tradues; no
enquanto reprodues das mesmas expresses semelhantes e mais ou menos prximas
daquelas (Croce in Arrigoni & Guerini, 2005: 205). Nesses termos, como afirma Benedetto
14
Croce, o trabalho do tradutor ser uma aproximao, que tem valor no original de obra de
arte, e pode subsistir por si (Croce in Arrigoni & Guerini, 2005: 205).
As possibilidades do tradutor, portanto, seguem em direo ao texto original; se assim
no o fosse, os traos comuns caractersticos dos dois textos se perderiam, e o texto traduzido
seria uma outra obra, e no a traduo de um modelo preexistente. E o que so esses traos
comuns entre o original e uma traduo? Para Benjamin, o contedo essencial, transmitido
com maior ou menor exatido na traduo; o significado inerente ao original que se exprime
na sua traduzibilidade. Assim, a traduo no pode significar algo para o original, mas
encontra-se numa relao de grande proximidade com ele (Benjamin in Heidermann, 2001:
193), que ser, esta relao, tanto mais ntima quanto nada mais significar para o prprio
original. Isto , se a traduo acrescenta algo que a essncia do original no comporta, assim
ela se mostrar mais imperfeita. Esta essncia, ou esprito do original, pode ser entendido
como a interseco de uma variedade de tradues de um mesmo texto. De maneira que,
eliminadas as imperfeies naturais de cada traduo permaneceriam somente as
coincidncias entre estas diferentes tradues, que remeteriam ao seu original. J
Schopenhauer notava que Quase nunca se consegue transpor uma frase caracterstica,
concisa, significativa de uma lngua para outra de modo que ela surta exata e integralmente o
mesmo efeito (Schopenhauer in Heidermann, 2001: 167-169). Teramos, ento, o verdadeiro
esprito daquele texto, na forma da pura lngua de Benjamin.
Entre as possibilidades do tradutor, Schleiermacher aponta dois mtodos de traduzir:
ou o tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor at ele; ou deixa o leitor em paz e leva o
autor at ele (in Heidermann, 2001: 43). No primeiro caso, o tradutor deve esforar-se para
transmitir aos leitores a mesma imagem, a mesma impresso que ele prprio teve atravs do
conhecimento da lngua de origem da obra, de como ela , e tenta, pois, lev-los posio
dela, na verdade estranha para eles (p. 43-45). Este mtodo de traduzir teria o efeito de
42
43
que Bousoo, na sua, separa em mundo real e o mundo imaginrio; porque, na verdade, o
mundo real o mundo imaginrio e vice-versa (Erdman, 1988: 702).
Poetry admits not a Letter that is Insignificant de algum modo este juzo de Blake
aproxima-se do que observa Jakobson sobre o potico. Diz ele que em poesia
as equaes verbais so elevadas categoria de princpio construtivo do
texto. As categorias sintticas e morfolgicas, as razes, os afixos, os
fonemas e seus componentes (traos distintivos) em suma, todos os
constituintes do cdigo verbal so confrontados, justapostos, colocados
em relao de contigidade de acordo com o princpio de similaridade e de
contraste, e transmitem assim uma significao prpria. A semelhana
fonolgica sentida como um parentesco semntico. O trocadilho, ou, para
empregar um termo mais erudito e talvez mais preciso, a paronomsia, reina
na arte potica (Jakobson, 2001: 72).
Um poema deve criar a iluso de uma composio indissolvel de som e de sentido, ainda
que no exista nenhuma relao racional entre esses dois constituintes da linguagem (Valry
in Faveri & Torres, 2004: 195). Assim, form and content are inseparable (are, in fact, one
and the same thing within the reality of the poem) (Holmes, 1970: 98). Sendo, uma
combinao de som e sentido, um fato muito particular da lngua na qual foi produzida, a
poesia, por definio, intraduzvel (Jakobson, 2001: 72).
Sob esta perspectiva do potico, poderamos afirmar que na traduo que os
elementos constitutivos da poesia tornam-se mais perceptveis, pois a se v que a fidelidade
rtmica e meldica e a dialtica e a gramatical estaro em luta implacvel uma contra a outra
(Schleiermacher in Heidermann, 2001: 55). por isso que Haroldo de Campos afirma que o
tradutor o melhor leitor (Campos, [...]: 31).
Pois bem, se, ao traduzir um poema a outra lngua, o tradutor atentar somente para o
contedo, perde a msica, e se contentar sempre mais com uma traduo que entra cada vez
no mais fcil, por assim dizer, no parafrstico (Schleiermacher in Heidermann, 2001: 55).
Ao contrrio, se o tradutor preocupar-se unicamente com a forma mtrica ou musical, h de
surgir uma impresso completamente diferente (Schleiermacher in Heidermann, 2001: 55).
45
46
47
noutra lngua do que outros gneros nos quais no sejam to importantes os laos entre som e
sentido.
49
50
meio, e de que aspira abertamente ser um poema por si s, sobre o qual um novo leque de
metaliteratura pode se acumular.
A traduo, o poema de efeito anlogo na lngua de chegada (Paz) ou metapoema
(Holmes),
is a nexus of a complex bundle of relationships converging from two
directions: from the original poem, in its language, and linked in a very
specific way to the poetic tradition of that language; and from the poetic
tradition of the target language, with its more or less stringent expectations
regarding poetry which the metapoem, if it is to be successful as poetry,
must in some measure meet (Holmes, 1970: 92).
Assim, o tratamento dos efeitos poticos no processo de traduo estar sempre vinculado s
permisses e restries atuantes nas tradies poticas das lnguas, a comear pela escolha da
forma geral do texto de chegada.
Observando o trabalho dos tradutores de textos poticos, Holmes (1970) identifica
quatro tipos possveis de traduo da forma. O primeiro tipo a traduo em mimetic form:
that usually described as retaining the form of the original (Holmes, 1970: 95). O efeito da
forma mimtica reenfatizar a estranheza que ao leitor da traduo aparece inerente
mensagem semntica do poema original. O metapoema mimtico, explica Holmes, exige que
o leitor amplie os limites de sua sensibilidade literria, estenda sua viso para alm das
fronteiras do que tido como aceitvel na sua prpria tradio literria. Em alguns casos, a
traduo mimtica pode resultar num enriquecimento da tradio literria que a recebe, com
novas formas. Por esta razo, a forma mimtica tende a figurar num perodo em que os
conceitos de gnero esto enfraquecidos, as normas literrias so questionadas e a culturaalvo como um todo est aberta a impulsos exteriores (Holmes, 1970: 97-98).
O segundo tipo de traduo da forma segundo Holmes a analogical form:
[translators] looked beyond the original poem itself to the function of its form within its
poetic tradition, then sought a form that filled a parallel function within the poetic tradition of
the target language (in Holmes, 1970: 95). A forma analgica, por sua vez, tem o efeito de
51
rtmicos, ou modificar o padro, substituindo o ritmo original por um outro, neste caso,
transpondo para uma forma de verso diferente (Kochol, 1970: 106). Numa substituio de
ritmo, Kochol observa que o tradutor pode preservar certos fatores rtmicos enquanto altera
outros. Se o tradutor preserva os fatores essenciais e altera os subsidirios, ele alcana o que
Kochol chama de substituio rtmica adequada. Aderindo aos elementos subsidirios e
deixando de lado os elementos essenciais, o tradutor faz uma substituio rtmica inadequada
(Kochol, 1970: 106). Depois de identificar esses dois tipos de substituio, Kochol distingue
trs modos de traduo rtmica: 1) cpia rtmica do original identidade; 2) substituio
rtmica adequada substituio e 3) substituio rtmica inadequada inadequao. Kochol
afirma que o primeiro modo, que supe um respeito escrupuloso pela forma do verso original
como ideal supremo da traduo em verso, no depende do fator subjetivo da habilidade do
tradutor, mas de fatores objetivos de lngua.
Alm da forma geral do poema, h outras qualidades poticas que devem ser levadas
em considerao. o caso da rima, que faz parte da linguagem da poesia (Vizioli, 1991:
145). Vizioli considera que [t]oda vez que sua presena esquecida, o seu nmero cortado,
alguma coisa se perde na traduo. Por isso, diz ele, quem realmente procura recriar o
poema deve, dentro de certos limites, esforar-se por conserv-la, mesmo que, para isso,
tenha, s vezes, que distorcer ligeiramente o significado de um ou de outro verso (Vizioli,
1991: 145). No basta, porm, que o tradutor as preserve em nmero e, se possvel, no
esquema originais, mas tambm em sua natureza, porque as rimas podem igualmente
reforar uma idia ou exprimir um sentimento (Vizioli, 1991: 146). Se so rimas imperfeitas,
o ideal, para Vizioli, que continuem imperfeitas na traduo (1991: 146).
Outras qualidades sonoras nem sempre recebem a mesma ateno dos tradutores,
afirma Vizioli (1991). o caso da repetio (de vocbulos e frases), da assonncia (que
a presena dos mesmos sons voclicos em palavras diferentes), da consonncia (que a
53
54
etimolgica do termo original (Lefevere, 1975: 43-44). O tradutor tambm pode compensar o
valor de certas palavras do original pelo exagero ou pela adio de modificadores. Todas
essas possibilidades, porm, podem produzir confuso ou um efeito ridculo quando mal
utilizadas na traduo, segundo Lefevere.
Outro meio que Lefevere aponta de traduo de poesia em prosa a adio de toques
poticos ao texto traduzido. Nesse caso, a aliterao, por exemplo, usada em ingls para
poeticizar o texto-alvo (Lefevere, 1975: 46). Para tentar captar algo do ritmo do original
pois o controle sobre o ritmo da traduo em prosa muito menor que o do poeta,
precisamente porque ele abandona a forma em verso (Lefevere, 1975: 47) , o tradutor pode
aproximar a sintaxe do seu texto da sintaxe do texto-fonte. No entanto, este procedimento
pode causar sentenas que paream distorcidas aos olhos do leitor. The result, analisa
Lefevere, is fairly accurate, but not elegant, when the prose translator tries to superimpose
the source languages syntax on the target language; it is elegant, but not accurate, when he
decides to build long and carefully balanced periods (1975: 47).
Examinando tradues de poesia em prosa, Lefevere conclui que a traduo em prosa
distorce o sentido, o valor comunicativo e a sintaxe do original, e, principalmente, It fails to
make that source text available as a literary work of art in the target language (Lefevere,
1975: 49).
Kochol (in Holmes, 1970) refere-se traduo potica em prosa como o quarto
mtodo, marginal, de se traduzir um ritmo de verso (os outros mtodos que ele aponta so as
j mencionadas tradues por cpia idntica, por substituio adequada e por
substituio inadequada). O mtodo de substituio do ritmo versificado por um ritmo nomtrico deve ser considerado, segundo o terico, um caso extremo de substituio inadequada
(Kochol in Holmes, 1970: 107).
56
atravs da adio de uma palavra ou de um grupo de palavras (1975: 88-90). Lefevere nota
que a maioria dos tradutores mostra-se relutante tcnica da explicao dentro do texto
quando esses elementos de tempo, ou de lugar, ou de tradio requerem algum tipo de
expanso verbal do texto. Isto , os tradutores normalmente usam esta tcnica quando podem
limitar a explicao a uma palavra, ou a poucas palavras, de modo que a expanso ou a
supresso do original geralmente sejam feitas em favor de um padro mtrico ou de um
esquema de rima. O terico reprova esta postura dos tradutores, argumentando que a traduo
no deve levar em conta apenas o elemento lingstico, negligenciando os outros elementos
em diferentes graus, mas deve atentar para todos os elementos do original (1975: 91-92).
Um outro modo de traduzir elementos de tempo, lugar e tradio do original usado por
alguns tradutores de poesia a parfrase (Lefevere, 1975: 92). Dos mtodos de traduo
desses elementos, Lefevere conclui que apenas a reinterpretao e a explicao no interior do
texto oferecem resultados satisfatrios, e que ignorar o problema, deixar de lado o termo
problemtico, ou parafrasear o original de maneira que a parfrase acabe to obscura quanto o
original, no resolve o problema.
Poemas no podem ser traduzidos, mas apenas repoetizados, o que sempre
delicado, no entender de Schopenhauer (in Heidermann, 2001: 169). Se pensssemos na
traduo como um texto completamente independente das suas razes no autor que o escreveu,
no nos preocuparamos com a semelhana ou com as diferenas em relao ao texto de
partida. Preocuparamo-nos, talvez, somente com o valor esttico do texto em si, como
esperava Borges (Borges, 2001: 94): Llegar un da en que a los hombres les importen poco
los accidentes, las circunstancias de la belleza; les importar la belleza misma. Puede que ni
siquiera les interesen los nombres ni las biografas de los poetas. Mas pensa-se no autor e no
valor da obra original quer-se ler Blake em portugus; quer-se que a traduo lembre o
mximo possvel as qualidades poticas de Blake. E, se Madame de Stal estiver certa,
58
Espera-se muito mais desfrutar de um prazer de mesmo tipo do que de traos perfeitamente
semelhantes (in Faveri & Torres, 2004: 149).
59
CAPTULO 3
ANLISE DA TRADUO DE AMERICA A PROPHECY
3.1 Ritmo
Para entender a organizao potica de America, til partir das noes de profeta e
de profecia como mensagem de redeno. Estas noes remetem ao contexto bblico, no
qual o profeta um mensageiro da palavra divina (Bblia de Jerusalm, 2002: 1230). A
mensagem do profeta sua profecia, e no apenas suas palavras, mas suas aes, sua vida,
tudo profecia (2002: 1231), e sua mensagem dirigida ao povo todo (2002: 1231).
Alguns utilizam o termo mstico para o indivduo excepcional no campo cientfico,
religioso, artstico ou outro. O profeta um indivduo excepcional no campo religioso, ento
pode ser, sob este ponto de vista, um mstico. A relao que o mstico estabelece com o
establishment sempre uma relao tensa: o mstico ou gnio, portador de uma idia nova,
sempre perturbador para o grupo institucionalizado, e o establishment trata de proteger o
grupo dessa disrupo (Grinberg et al, 1973: 40). Interessa-nos a seguinte questo: A fora
disruptiva do mstico-gnio fica limitada pelo meio de comunicao atravs do qual se
transmite sua mensagem; e depender da linguagem de xito sua qualidade criativa e
promotora de mudanas (Grinberg et al, 1973: 40). A linguagem que Blake, indivduo do
campo das artes, utiliza para codificar sua mensagem em direo ao establishment a poesia,
por ele identificada com a profecia.
15
Lembrando as palavras de Blake, Passion & Expression is Beauty Itself (Erdman, 1988: 652).
61
De acordo com Preminge & Brogan (1993: 516), o metro utilizado por Blake em
America incomum na tradio literria inglesa, e identificado como verso heptmetro:
the term [heptameter] is applicable mainly to the long line of William
Blakes later Prophetic Books, a line which Blake said avoided a
monotonous cadence like that of Milton and Shakespeare by achieving a
variety in every line, both in cadence and number of syllables. Syllable
count actually ranges as high as 21. Blakes sources would seem to be the
Bible, Macpherson, and late 18th-c. Ger. experiments in long-lined verse
such as those in Hlderlins Hyperion, but Blake himself claimed the form
was given him in automatic writing.
Blake evitou o ritmo miltoniano porque precisava de uma linha espaosa o suficiente to carry
the roll and thunder of apocalyptic vision (Frye, 1995: 185). Alm do mais, Blake recusavase a adotar um metro preexistente, no qual devesse enquadrar as suas idias, pois
in all genuine art the finished product is the exact shape of the conception
(...). The artist cannot achieve complete control of his medium without
complete freedom to do so. The only free verse worth regarding is a verse
that is free to reproduce with perfect accuracy every detail of the content in
the form (Frye, 1995: 95).
Como dizem Preminge & Brogan (1993: 04),Knowing the meter will elucidate the sense, e
vice-versa. Blake viu que, para seus propsitos, o verso teria de dispensar a unidade prosdica
recorrente: it would have to be treated as a line of seven beats rather than of seven feet
(Frye, 1995: 185). Estamos diante de um metro acentual: sometimes called strong stress
metre, is the type of metre based on an equal number of stresses per line, without respect to
the exact number of syllabes per stress (Leech, 1974: 118). Assim, o verso acentual pode
explorar todas as possibilidades de estrutura rtmica, de medidas de uma slaba a medidas de
quatro ou cinco slabas (embora na prtica as medidas de uma e de quatro slabas sejam raras)
(Leech, 1974: 118).
Por America ter um esquema acentual, abandono o termo metro e passo a falar em
ritmo, no sentido de Candido (1988: 76): o ritmo formado pela sucesso, no verso, de
unidades rtmicas, constitudas por uma alternncia de vogais, longas e breves, ou tnicas e
62
tonas. Pela mesma razo, utilizarei a medida16 para analisar o verso de Blake, e no o
p da escanso tradicional.
Optando por um verso mais longo, Blake fugia dos limites dos padres de verso que
permitiam um nmero menor de possibilidades rtmicas, e logo tornava montono um poema
longo, com o risco de perda da fora expressiva e distrao do leitor17:
The shadowy daughter of Urthona stood before red Orc,
x
/ x
/ x x x / x /
x / / /
When fourteen suns had faintly jorneyd oer his dark abode;
x
/ x /
x / x / x \
x / x /
His food she brought in iron baskets, his drink in cups of iron;
x / x /
x / x / x x / x / x / x
Crownd with a helmet & dark hair the nameless female stood;
/
x x / x x /
/ x /
x / x
/
A quiver with its burning stores, a bow like that of night,
x / x \ x / x
/
x / x / x /
When pestilence is shot from heaven; no other arms she need:
x / x x x
/
x
/
/ / x /
x
/
Invulnerable tho naked, save where clouds roll round her loins,
x / x x x
/ x /
x
/
/
/
x /
Their awful folds in the dark air; silent she stood as night;
x / x / x x / / / x x /
x /
For never from her iron tongue could voice or sound arise;
x / x \ x / x
/
x / x
/ x /
But dumb till that dread day when Orc assayd his fierce embrace.
x /
/ x /
/
x / x / x / x /
(Gravura 1, Preludium)
16
() MEASURES, each of which begins with a stressed syllable (Leech, 1974: 106).
Smbolos de marcao rtmica de acordo com Leech (1974).
18
Realidade no sentido mais convencional do termo; no me refiro aqui realidade como concebida por
Blake.
17
63
conta duas pequenas pausas (indicadas com o sinal |), dividindo-se em trs membros19; o
quinto, est dividido em dois membros:
When fourteen suns had faintly jorneyd oer his dark abode;
x
/ x / | x / x / x |\
x / x /
A quiver with its burning stores, a bow like that of night,
x / x \ x / x
/
| x / x / x /
A seqncia do incio do segundo verso est dividida em dois membros de dois acentos cada
um, fazendo um ritmo simtrico entre si.
Os versos 2 e 9 tm o mesmo nmero de acentos e de membros. Os dois primeiros
membros de cada verso tm ritmo paralelo. Porm, realizam finais com andamentos
diferentes:
When fourteen suns had faintly jorneyd oer his dark abode;
x
/ x / | x / x / x |\
x / x /
For never from her iron tongue could voice or sound arise;
x / x \ |x / x /
| x
/ x / x /
Com uma slaba tona no incio do ltimo membro e vogal aberta no final, o verso 9 termina
com uma seqncia mais veloz que o verso 2, e realiza uma entoao crescente, quando o
verso 2 termina com entoao decrescente e fechada.
Os versos quinto e nono so perfeitamente simtricos no nmero de slabas e acentos:
A quiver with its burning stores, a bow like that of night,
x / x \ x / x
/
x / x / x /
For never from her iron tongue could voice or sound arise;
x / x \
x / x /
x / x
/ x /
mas o incio do nono verso tem paralelismo rtmico (Leech, 1974: 111) com a seqncia
inicial do dcimo verso (usando, neste exemplo, a barra invertida, \, para dar uma melhor
visualizao do andamento rtmico):
For never from her iron tongue could voice or sound arise;
x \ x / | x \ x / | x / x
/ x /
But dumb till that dread day when Orc assayd his fierce embrace.
x \
/ | x \
/ | x \ x / |x \ x /
19
64
Se atentarmos um pouco mais para as seqncias de finais de versos desta estrofe (isto
, as seqncias que vm depois da ltima pausa de cada verso), perceberemos que seis delas
contam trs acentos:
The shadowy daughter of Urthona stood before red Orc,
x
/ x
/ x x x / x| /
x / / /
When fourteen suns had faintly jorneyd oer his dark abode;
x
/ x / | x / x / x | \
x / x /
His food she brought in iron baskets, his drink in cups of iron;
x / x /
x / x / x | x
/ x / x / x
Crownd with a helmet & dark hair the nameless female stood;
/
x x / x x /
/ | x /
x / x /
A quiver with its burning stores, a bow like that of night,
x / x \ x / x
/ | x / x / x /
When pestilence is shot from heaven; no other arms she need:
x / x x x
/
x
/
| / / x /
x
/
Invulnerable tho naked, save where clouds roll round her loins,
x / x x x
/ x| /
x
/
/
/
x /
Their awful folds in the dark air; silent she stood as night;
x / x / x x / / | / x x /
x /
For never from her iron tongue could voice or sound arise;
x / x \ |x / x / | x
/ x / x /
But dumb till that dread day when Orc assayd his fierce embrace.
x /
/ | x /
/ | x / x / |x / x /
Os trs acentos em cada ltimo membro de metade dos versos da estrofe tm o efeito de
resolver a tenso inicial desses versos. Quando h encadeamento, como acontece no verso
quinto para o sexto, por exemplo:
A quiver with its burning stores, a bow like that of night,
x / x / x / x
/ | x / x / x /
When pestilence is shot from heaven; no other arms she need:
x / x/ x /
x / x | / x
/ x
/
aqui h um acmulo de tenses, do primeiro membro do quinto verso (A quiver with its
burning stores,) at o primeiro membro do verso seguinte (When pestilence is shot from
65
heaven;), para finalmente resolver-se no segundo e ltimo membro do sexto verso (no other
arms she need:).
Um dos versos que representam exceo do esquema predominante de trs acentos no
ltimo membro envolve um acmulo de tenses:
But dumb till that dread day when Orc assayd his fierce embrace.
x /
/ | x /
/ | x / x / |x / x /
Trs impulsos entoativos, interrompidos pelas pausas, que s se resolvem no ltimo membro
(his fierce embrace.). Este verso parece-me um exemplo bem claro da predominncia dos
acentos sobre o nmero total de slabas do verso ou a organizao em ps: o verso tem sete
ps, mas seus oito acentos, alm das trs pausas, so perceptveis o bastante para provocar a
sensao de ser um verso mais longo que os anteriores.
Seqncias acentuais diferentes de um verso a outro; simetrias de seqncias de
acentos num verso ou entre dois versos; as pausas em nmero e posies diferentes ou no;
um esquema regular de acentos nos ltimos membros dos versos de uma estrofe fazendo o
conjunto obedecer a uma mdia de sete medidas por verso: assim que o poeta mantm um
estilo entoativo, ao mesmo tempo em que varia o ritmo em cada verso. Isto tem a ver com o
fato de que o profeta antes de tudo um orador, pregador. A mensagem proftica, em sua
origem, falada (Bblia de Jerusalm, 2002: 1236).
Acreditando que o nmero de acentos segura a entoao caracterstica do poema,
inclinei-me a traduzir seguindo a forma mimtica, citada por Holmes (1970: 95) como that
usually described as retaining the form of the original20:
The morning comes, the night decays, the watchmen leave their stations;
x / x
/
| x / x / | x /
x
/ x / x
Chega a manh, decompe-se a noite, os vigias deixam seus postos;
/ x x / | x x / x / x| x x /x / x
x /
20
Nos exemplos que se seguem, utilizarei a letra S entre parnteses (S) para indicar a minha traduo, e
para a traduo de Portela, P entre parnteses (P).
66
The grave is burst, the spices shed, the linen wrapped up;
x / x / | x / x / | x / x /
/
A sepultura est arrombada, os aromas derramados, o linho enrolado;
xx x / x / x / x| xx / x x x / x|x / x x /
The bones of death, the covring clay, the sinews shrunk & dryd.
x / x / | x / x
/ | x x /
/
x /
Os ossos da morte, o barro que os cobre, msculos contrados & secos.
x / x x / x| x / x
x / x | / x x \ x / x x /
(Gravura 6)
Assim, procurei seguir os acentos em cada verso e a organizao dos membros. Fui levada, na
verdade, a tentar captar na traduo as mesmas medidas ou clulas mtricas percebidas do
original. As clulas mtricas so os tipos de combinaes de tonas e tnicas que, isoladas
ou agrupadas, podem estruturar o ritmo dos versos. De maneira mais ampla, so essas
combinaes ou clulas que estabelecem o ritmo da poesia tradicional ou livre, e at da prosa
lrica (Cavalcanti Proena, 1955: 17). Cavalcanti Proena mostra que So as tnicas, por
sua distribuio no verso, que determinam a natureza das clulas mtricas (Cavalcanti
Proena, 1955: 23). Prefiro cham-las clulas rtmicas em vez de clulas mtricas,
concordando com Chociay (1974: 07), para evitar que o termo de Cavalcanti possa provocar
algum tipo de confuso interpretao essencialmente acentual que fao do verso de
America.
Diante de um esquema predominantemente acentual, acredito que uma tentativa de
adaptao para um esquema silabo-mtrico produziria um outro modo de formao das
clulas rtmicas, desfigurando o estilo declamatrio do texto. Por exemplo, traduzindo
rapidamente os versos num esquema de catorze slabas:
Firme, a Filha de Urthona, // em face do rubro Orc,
Plidos sis passados // por sua casa escura;
Coroada de elmo negro, // firme, a Fmea Sem Nome
Dava-lhe de comer // do po dos frreos cestos.
Suas setas flamantes, // um arco igual o da noite,
Quando cada a peste, // no precisa de outra arma;
Pura mesmo que nua, // mas obscuras suas partes
Por cruis nuvens no ar negro, // ela foi noite muda,
Pois jamais se ouviu som // da sua lngua de ferro,
At sofrer de Orc // seu abrao de fogo.
67
Na traduo de Portela (Blake, 2005: 79), o maior nmero de acentos sem pausa,
praticamente um nico membro na linha (note-se a sinalefa em Urthona^estava), fazem o
andamento do verso consideravelmente mais rpido (um tempo mais acelerado, porm com
mais batidas) que o original (um tempo mais lento, com menos batidas). O que alonga o verso
de Portela , podemos de pronto notar, o item stood. A dificuldade est no fato de que no
parece haver equivalente em portugus para stood, que expresse todo o seu significado.
Aqui, o tradutor, procurando alcanar todo o detalhe da imagem, e no encontrando a palavra
que compreendesse o sentido de stood, ou melhor, optou por um conjunto de quatro itens:
stood estava de p diante de. Para quem compara o original e a traduo, a traduo traz
um efeito explicativo. Para o leitor da traduo, a sentena d uma impresso semelhante
68
prosa. Preferi traduzir o item problemtico por firme, procurando afastar a semelhana com
a prosa, apesar do risco de no reproduzir totalmente o sentido de stood, o que certamente
prejudica o detalhe da imagem contido no original.
Observa-se o mesmo problema de traduo em alguns outros pontos do texto, que teve
solues diferentes nas duas tradues:
Heads deprest, voices weak, eyes downcast, hands work-bruisd
/
x / | / x
/ | /
/
\ | /
/
\
(P) Cabeas abatidas, vozes vacilantes, olhos cabisbaixos, mos maceradas do trabalho
x / x x x/ x| / x x x/ x |/ x x x / x | / x x / x x x /
(S) Cabeas desalentadas, vozes caladas, olhos abatidos, mos calejadas,
x / x x\ x / x | / x x / x|/ x x x/ x | / x x/
(Gravura 3)
Aqui, Portela (Blake, 2005: 87) novamente alonga o verso para deixar bem claro o sentido:
run out traduzido por corra l para fora, o que certamente d um efeito mais prosaico que
o original.
Rise and look out. his chains are loose, his dungeon doors are open
/
x \ / | x
/ x
/ | x / x /
x / x
(P) Se erga e olhe l para fora, as cadeias soltas, as portas do calabouo abertas
/ x / x / x x / x| x x / x / x | x / x x \ x / x / x
(S) Levantar e ver. Suas correntes esto soltas, e as portas da priso abertas
xx / x / | x x / x x x / x | x / x x x / x / x
(Gravura 6)
69
Analisando o exemplo acima, e o anterior, percebemos que o tradutor portugus teve uma
tendncia a alongar na traduo dos phrasal verbs. Tnhamos visto corra l para fora para o
ingls run out; agora vemos look out, olhe l para fora, na traduo de Portela (Blake,
2005: 87). Preferi traduzir simplesmente ver, que preserva o nmero de acentos, embora
no enfatize a imagem da liberdade do escravo (o complemento l para fora sem dvida
destaca que o escravo encontra-se dentro do calabouo).
J na traduo deste verso:
Blasfemous Demon, Antichrist, Hater of Dignities;
/ x x
/ x | / x \ | / x x / x \
(P) Demnio Blasfemo, Anti-Cristo, tu que odeias Dignidades
x / x x / x| / x / x| /
x / x x x /
(S) Blasfemo Demnio, Anticristo, inimigo das Dignidades;
x / x x / x| / x / x|xx/ x x \ x /
(Gravura 7)
Chociay dedica uma seo de sua Teoria do Verso anlise dos processos de acomodao, que so meios de
se alcanar a harmonia meldica de um poema, atravs da assimilao do acervo meldico da lngua por
parte de quem constri o verso: A feitura do verso pressupe o conhecimento e domnio tcnico de uma srie de
processos de acomodao silbica e acentual, para que se atinja o esquema desejado. A juno ou a separao de
vogais em contato, o acrscimo ou a supresso de slabas, o recuo ou o avano do acento forte vocabular so
algumas dessas solues que, atuantes ou latentes na fala, ganham no versejar valor operatrio (Chociay,
1974:14).
70
O verso acima est na passagem que revela ao leitor que o conflito at ento descrito acontece
nos cus:
So cried he, rending off his robe & throwing down his scepter.
In sight of Albions Guardian, and all the thirteen Angels
Rent off their robes to the hungry wind, & threw their golden scepters
Down on the land of America. indignant they descended
Headlong from out their heavnly heights, descending swift as fires
(Gravura 12)
O poeta refere-se, provavelmente, posio elevada, do ponto de vista do poder, que os Anjos
ocupam enquanto aliados do rei (aqui vemos os Anjos, ou os governantes das treze colnias
americanas, rebelando-se contra o rei), ou refere-se a um outro plano, batalha intelectual
entre as partes, agora em confronto. Aqui, embora Portela (Blake, 2005: 95) tenha conseguido
71
o mesmo nmero de acentos que o verso original, alonga a primeira parte do verso,
desdobrando-o em duas (L para baixo, | para a terra da Amrica;), quando no original
h uma seqncia de trs medidas dactlicas antes da primeira pausa intraversal. O
tradutor alonga o verso aparentemente porque sente a necessidade de marcar a
situao de conflito nesta altura do texto. Quando traduzi esta passagem, preferi
manter a construo do original, onde a situao de conflito nos cus est apenas
sugerida neste verso, para revelar-se propriamente no verso seguinte (Headlong from
out their heavnly heights, descending swift as fires / Das alturas celestiais, descendo velozes
como chamas). Alm de antecipar informao, a traduo de Portela inclui uma interferncia
do narrador: l para baixo sugere que o narrador est l em cima, quando no original o
narrador no participa dos fatos narrados.
In black smoke thunders and loud winds rejoicing in its terror
x /
/
/ x | x /
/ x/ x x x / x
(P) Em estrondos de fumo negro, os ventos atroavam rejubilando com o seu terror,
x x / x
x / x /
x / x x / x x \ x / x x x / x /
(S) Com troves de fumaa negra e ventos jubilantes de terror
x x / x x / x / x / x x x / x x x /
(Gravura 12)
Neste verso, Portela (Blake, 2005: 95) prefere seguir mais ou menos a ordem do original,
dando um movimento mais prosaico, enquanto optei por condensar o verso. A seguir, o
tradutor portugus procura seguir o sentido original, no verso cuja dificuldade o possessivo
de Bristols, que vai completar-se apenas no verso seguinte (And the Leprosy Londons
Spirit, sickening all their bands:):
Across the limbs of Albions Guardian, the spotted plague smote Bristols
x / x /
x / x
/ x | x / x /
/
/ x
(P) Aos membros do Guardio de Albion, a praga bexigosa atacou o Esprito de Bristol
x
/ x
x x
/
/ x |x / x x x / x x / x
/ xx x / x
(S) Pelo corpo do Guardio de Albion, a praga das manchas ganha Bristol
xx / x x x
/
/
x | x / x x / x
/ x / x
(Gravura 15)
72
Portela (Blake, 2005: 99) prefere explicitar em sua traduo (Esprito de Bristol),
quando opto por no acrescentar acentos, com prejuzo do sentido de Spirit, que personifica
a cidade de Bristol, como usual em Blake.
O verso de America ainda faz aproximao com o versculo de certos livros profticos,
no que se refere ao recurso do paralelismo verbal, especialmente a anfora. De Isaas, por
exemplo:
13And upon all the cedars of Lebanon, that are high and lifted up, and upon all the oaks of Bashan,
14And upon all the high mountains, and upon all the hills that are lifted up,
15And upon every high tower, and upon every fenced wall,
16And upon all the ships of Tarshish, and upon all pleasant pictures.
[Isaiah, Chapter 02, King James Version (Gospel Communications International, 2006)]
Como se v, o efeito rtmico parecido com o do original. Eu dei a seguinte traduo aos
mesmos versos:
No podem arrasar o trigo, nem assolar a fartura da terra.
No podem arrasar com tristezas, nem reprimir o arado e a enxada.
No podem muralhar a cidade, nem proteger o castelo com fosso.
No podem devolver s colinas os carvalhos decepados.
(Gravura 9)
Como Portela, tambm procurei trazer a anfora e o ritmo do original para a traduo.
Podemos identificar outras passagens que lembram o ritmo do livro de Isaas, mas
destacamos esta outra apenas:
Let the slave grinding at the mill, run out into the field;
Let him look up into the heavens & laugh in the bright air;
Let the inchained soul shut up in darkness and in sighing,
Whose face has never seen a smile in thirty weary years;
Rise and look out, his chains are loose, his dungeon doors are open.
And let his wife and children return from the opressors scourge;
They look behind at every step & believe it is a dream.
(Gravura 6)
Traduo de Portela:
Que o escravo a labutar no engenho corra l para fora para os campos,
Que olhe para os cus & ria no resplendor do ar;
Que a alma agrilhoada encerrada em escurido e mgoa,
Cujo rosto no conheceu sorriso em trinta penosos anos,
Se erga e olhe l para fora, as cadeias soltas, as portas do calabouo abertas.
E que a mulher e os filhos se libertem do ltego do opressor;
Olham para trs a cada passo & julgam que sonho.
(Blake, 2005: 87)
Minha traduo:
Deixai o escravo que se esgota no moinho; correr para o campo;
Deixai-o olhar para os cus & rir no ar brilhante;
Deixai a alma acorrentada calada no escuro aos suspiros,
Cujo rosto no viu sorriso durante tristes trinta anos;
Levantar e ver. Suas correntes esto soltas, e as portas da priso abertas
E deixai sua esposa e filhos retornarem do castigo dos tiranos;
Eles olham para trs a cada passo & acreditam que um sonho.
(Gravura 6)
74
A anfora de Portela apresenta-se mais como a expresso de um desejo, Que tal situao
acontea, o que no deixa de representar de alguma forma a anfora original. Porm, o
original, marcado com o verbo let, mais imperativo, mais urgente. Assim, preferi seguir a
anfora com o verbo deixar. De maneira geral, como vimos, um recurso que pode ser
reproduzido sem dificuldade, seguindo-se a ordem do original.
No mais, o verso de America segue mais enftico que o versculo ingls de Isaas,
devido maior freqncia das grandes pausas: a cada sete acentos. A dificuldade surge
quando h paralelismo rtmico das clulas num determinado verso ou membro de verso. Eis
alguns exemplos:
Meet on the coast glowing with blood from Albions fiery Prince.
/
x x / | / x
x
/ |
(Gravura 3)
O mximo que consegui foi uma simetria por meio da rima interna luzente-ardente, que talvez
lembre o par coast-blood do original:
Renem-se na praia luzente do sangue ardente do Prncipe de Albion.
x / x x | x / x x / x| x /
x / x|
(Gravura 3)
75
Acredito que, do ponto de vista rtmico, a traduo de Portela (Blake, 2005: 87), neste
verso, foi mais feliz que a minha:
The morning comes, the night decays, the watchmen leave their stations;
x / x
/ | x /
x / |
(P) Chega a manh, a noite esmorece, os vigias deixam os postos;
/ x x / | x / x x / x|
(S) Chega a manh, decompe-se a noite, os vigias deixam seus postos;
/ x x / | x x /
x / |
(Gravura 3)
Neste outro exemplo, Portela (Blake, 2005: 87) opta por clarificar o sentido enquanto eu
produzo uma simetria rtmica parcial:
Let the slave grinding at the mill, run out into the field:
/
/
x / x / | /
/ x/ x /
Que o escravo a labutar no engenho corra l para fora para os campos,
/ x x x /
x / x | / x / x / x
x
/
Deixai o escravo que se esgota no moinho; correr para o campo;
x / x x
/ x| x / x x / x
(Gravura 6)
O tradutor portugus deixou sem traduzir as pginas canceladas do original. O verso seguinte
pertence a uma dessas pginas:
And Earth conglobd, in narrow room, rolld round its sulphur Sun.
x
/
x
/ | x / x
/ |
E a Terra em globo, num quarto estreito, girou em torno do sulfreo Sol.
x / x
/ x| x / x / x |
(Gravuras Canceladas)
onde tentei acompanhar o movimento do paralelismo rtmico, como se pode ver acima; mas
poderia traduzido E a Terra em globo, numa cmara estreita, girou em torno do sulfreo
Sol, por exemplo, o que talvez esteja mais prximo do sentido original.
Para produzir o efeito desses movimentos rtmicos nos versos, as posies dos acentos
so reforadas pelas assonncias, que aparecem consideravelmente em America: o verso Let
the slave grinding at the mill, run out into the field:, acima exposto, um exemplo desses
movimentos rtmicos assonantes. Neste caso em particular, o recurso utilizado para marcar a
oposio mill-field, que importante na poesia de Blake. O poeta refere-se freqentemente s
fbricas the dark satanic mills (Milton, Erdman, 1988: 95) , como uma sntese da
76
77
Soai! soai! estridentes trombetas de guerra & alertai os meus Treze Anjos!
Alto uiva o Lobo eterno! Estala a cauda o Leo eterno!
(Blake, 2005: 91)
lembrando o ritmo do original no primeiro verso, com vive-vida-vida. O par prazer-ser recebe
menos destaque, pelo fato de os vocbulos estarem distantes um do outro.
Pois tudo o que vive sagrado, a vida tem prazer na vida;
Porque a alma de doce prazer no pode jamais ser maculada.
(Gravura 8)
78
importante observar tambm as palavras onde caem os acentos, pois elas podem
estar recebendo um peso maior na construo das imagens, como no primeiro verso do
poema:
The shadowy daughter of Urthona stood before red Orc.
(Gravura 1)
no qual Orc, personagem central do poema, recebe todo o destaque, sendo o ltimo acento,
o que est disposto logo antes da pausa de fim de verso, normalmente o que fica mais vivo na
memria do leitor. Por esse motivo, deixei Orc no final do verso:
A filha sombrosa de Urthona firme ante o rubro Orc,
(Gravura 1)
Portela preferiu:
A filha sombria de Urthona estava de p diante de Orc vermelho,
(Blake, 2005: 79)
No sempre que encontramos este problema, a exemplo do verso Let the slave
grinding at the mill, run out into the field:, onde a posio dos acentos nas palavras por ele
destacadas no original foram mantidos sem esforo, tanto em minha traduo como na de
Portela, com prejuzo da assonncia mill-field, conforme j mencionado.
Paulo H. Britto, em seu Para uma avaliao mais objetiva das tradues de poesia
(2002), formula o seguinte parmetro para a anlise do ritmo em traduo de poesia,
exemplificando com o caso do pentmetro jmbico ingls22:
x /|x/|x/|x/|x/
pentmetro jmbico
Pentmetro
verso longo
x /|x/|x/|x/|x/
decasslabo jmbico
decasslabo
verso longo
De acordo com esse parmetro, a medida que mais corresponde ao pentmetro jmbico seria o
decasslabo jmbico, considerando o ritmo de modo bem preciso. Passando gradativamente da
preciso para um tratamento geral do problema, consideraremos o mesmo pentmetro jmbico
um pentmetro apenas, traduzindo-o por um decasslabo, e no daremos importncia
natureza das clulas rtmicas. Se tomarmos o pentmetro jmbico simplesmente como um
verso longo, a traduo ser um verso longo, perdendo, assim, cada vez mais a preciso do
ritmo, correspondendo cada vez menos ao ritmo do original. Considerando a funo e a
configurao do ritmo em America, podemos reescrever o esquema da seguinte maneira:
22
80
Analisando o ritmo de America e sua traduo com base nos parmetros acima, temos
os seguintes resultados:
- As tradues apresentam um efeito entoativo prximo do original, por terem um nmero
parecido de acentos.
- Minha traduo mantm mais vezes o mesmo nmero de pausas intraversais do texto
original do que a traduo de Portela.
- Mostro uma preocupao maior com as seqncias dos membros de versos, ou nmero de
clulas rtmicas numa seqncia intraversal, fazendo aproximao com o ritmo original de
cada verso, tanto quanto me foi possvel.
- As seqncias de slabas nas clulas rtmicas no so perfeitamente idnticas s originais,
nas duas tradues. Na verdade, no h uma necessidade absoluta de equiparar perfeitamente
as clulas rtmicas, uma vez que o original explora todas as possibilidades de clulas rtmicas,
o que nos permite fazer clulas de cinco slabas (uma acentuada e trs tonas, que o limite
mximo de uma clula rtmica em portugus) sem destoar do efeito rtmico geral do poema;
no desejvel, porm, que se acumulem clulas longas numa seqncia, o que dilui o ritmo
e o torna prosaico. As clulas mais longas que as do original tambm dificultam seguir os
movimentos de cada verso. Holmes (1970) nota que a similaridade rtmica neste nvel
depende do quo parecidas sejam as estruturas das lnguas envolvidas na traduo. No caso da
traduo do ingls para o portugus, possvel reduzir o tamanho das clulas na lngua de
chegada, escolhendo-se palavras curtas. Embora desejasse obter na traduo clulas idnticas
s do original, para captar os mesmos movimentos de cada verso, estou segura de que o
procedimento de reduzir o nmero de tonas entre as tnicas repetido de maneira exagerada
neste poema produz um ritmo artificial, distante do que seria uma dico proftica em
81
portugus. America precisa de uma linha mais livre para comportar the roll and thunder of
apocalyptic vision (Frye, 1995: 185).
3.2 Aliteraes
(Gravura 1)
onde os pares aproximados pelas assonncias clouds-round, where-her e roll-loins mais as
aliteraes em r (where-roll-round) e em l (clouds-roll-loins), que aproxima os dois
objetos da imagem, clouds e loins, enfatizam ou tornam mais visvel o movimento das
nuvens em torno dos quadris da Fmea Sombrosa. Tericos da traduo de poesia (Campos,
[...]; Britto, 2004, 2006; Vizioli, 1991) sugerem que, para preservar o potico, preciso
refazer a aliterao onde existe aliterao e refazer tambm os outros recursos similares
usados pelo poeta. Entende-se, porm, que no basta pr na traduo uma aliterao onde ela
ocorre no original, nem simplesmente compensar a aliterao do original com a aliterao em
outra passagem da traduo quando no for possvel coloc-la no lugar escolhido, quando a
aliterao mais que um ornamento; preciso que a aliterao seja relevante naquela
passagem, e que estabelea um lao entre o significante e o significado, como o caso no
verso 7 da gravura 1 de America. Examine-se a minha traduo da passagem aliterativa de
Blake em questo:
Invulnervel mesmo nua, salvo onde as nuvens envolvem seus rins,
(Gravura 1)
82
A aliterao em v no parece corresponder imagem que o poeta quis destacar, e teria sido
melhor evit-la no fosse a aproximao que provoca entre salvo e envolvem, que, junto do
som de
Pude repetir, no par de versos acima com aliteraes em r, que se repete dez vezes
quatro vezes o som R e cinco vezes o r. Poderia ter feito um r mais, usando a palavra
mirades, como foi a opo de Portela (Blake, 2005: 85), mas preferi manter o jogo
assonante incontveis-estandartes / terrores-torres, para lembrar o original cloudy-terrors /
dark-towers.
Como ltimo exemplo de aliterao, temos o verso de encerramento do poema:
And the fierce flames burnt round the heavens, & round the abodes of men
(P) E as chamas ardentes cercaram os cus, & as moradas dos homens.
(S) E as flamas ferozes arderam em torno dos cus, & em torno das moradas dos homens
(Gravura 16)
83
A questo de traduzir uma aliterao exige cuidado, pois uma escolha pode
ridicularizar o texto traduzido, como diz Lefevere (1975), sendo prefervel, como ltima
alternativa, ignorar o recurso.
Para Blake, era importante delinear suas imagens, que elas aparecessem aos olhos do leitor de
um modo muito vivo e claro, pois suas obras da Imaginao se caracterizam justamente pela
vivacidade. A obra de arte, segundo Blake, o melhor meio de mostrar que as formas mentais
so mais reais que a realidade percebida pelos sentidos (em contraste com a realidade
percebida atravs dos sentidos) (Erdman, 1988: 492).
84
Analisando a poeticidade a partir do conceito de colocao, Costa & Guerini (2006) afirmam
que A combinao das colocaes idiossincrticas e expressivas nos causam um certo
estranhamento motivado, ou seja, no apenas o estranhamento por ser diferente do uso normal
da lngua mas um estranhamento que vem carregado de informao (emotiva, imaginativa,
intelectual). Para levantar dados sobre esse tipo de uso colocacional, pode ser til a
ferramenta de busca Google, que, embora
no seja um instrumento cem por cento fidedigno como indexador das
pginas disponveis na internet, certamente um dos mais eficientes e
confiveis para explorar o conjunto de pginas online em portugus que
formam o mais completo corpus da lngua no momento. To confivel que o
WebCorp (http://www.webcorp.org.uk/), um site mantido pela School of
English, da University of Central England, Birmingham, Reino Unido, usa o
Google como seu motor de busca padro (Costa & Guerini, 2006: 04).
Assim, uma pesquisa simples no Google, alm de contribuir para um conhecimento mais
refinado do texto, pode oferecer bases para uma avaliao da traduo. Analise-se a minha
traduo dos sintagmas dos versos acima apresentados:
85
ocorrncias Google
19 (de America e
The Four Zoas)
18 (15 de Blake)
(S)
mudos como amor desesperante
ocorrncias Google
0
681
(vrios
contextos)
35 (32 de Blake)
23 (America)
28 (21 de Blake)
839.000
(vrios
contextos)
16.800
(vrios
contextos)
braos peludos
2 (texto informativo,
resenha)
295
(vrios
contextos)
0
3
1 (prosa potica)
52.400
(vrios
contextos)
2
rins alarmantes
ventre convulso
primognito sorriso
Nuvem negra
mudo abismo
86
ocorrncias Google
19 (de America e
The Four Zoas)
18 (15 de Blake)
681
(vrios
contextos)
35 (32 de Blake)
23 (America)
28 (21 de Blake)
839.000
(vrios
contextos)
16.800
(vrios
contextos)
(P)
Silenciosos como
desesperado
fortes como o cime
ombros peludos
amor
terrveis rins
ventre ofegante e convulsivo
sorriso primognito
nuvem negra
abismo silente
ocorrncias Google
0
0
5 (vrios contextos)
0
0
0
52.400
contextos)
0
(vrios
87
e em minha traduo:
Os Cus derreteram de norte a sul; e Urizen que sentou-se para alm
De todos os cus em troves envolto, emergiu sua cabea leprosa
Para fora do seu templo sagrado, suas lgrimas em trgico dilvio
Caindo no sublime abismo! Revestido de neve cinzenta
E de aparncia trovejante, suas asas ciumentas voaram sobre o abismo;
Gritando em descomunal desgraa escuro desceu uivando
Em torno das tropas arrasadas, vestido de lgrimas & tremendo estremecendo frio.
Sua neve acumulada verteu, e seus depsitos gelados
Abriu sobre o abismo, e sobre o mar Atlntico tiritando branco.
Leproso o seu corpo, todo branco, grisalha de gelo sua aparncia.
(Gravura 16)
88
in
thunders
wrapd
Leprous head
holy shrine
Deluge piteous
deep sublime
grey-browd
snows
thunderous
visages
Jealous wings
dismal howling
woe
dark descended
howling
Smitten bands
G
3 (todas de
Blake, America)
34 (13 de
Blake,
America)
191.000
(contextos
variados)
16
(15
de
Blake,
America)
2.700 (maioria
de
contexto
sexual)
17
(16
de
America)
65
(Blake,
algumas de A
Song of Liberty)
(P)
envolto
em
troves
cabea leprosa
G
1 (Pokmon)
templo sagrado
templo sagrado
triste dilvio
58.800
(contextos
variados)
1 (poesia)
abismo sublime
sublime abismo
neves de frontes
cinzentas
rostos
trovejantes
neve cinzenta
aparncia
trovejante
1.540 (maioria
de
Milton,
LAllegro)
20 (Blake e
sobre Blake)
asas ciumentas
1 (traduo de
A
Song
of
Liberty,
por
Denis Urgal)
1 (Uma Cano
de Liberdade,
Urgal)
0
(dor
lancinante:
541, contextos
diversos)
0
17 (contextos
variados)
0
11 (todas de
America)
21 (4 de outros
contextos)
6 (5 de Blake, 1
de
outro
contexto
potico)
16 (Blake)
Stored snows
11
(10
Blake)
icy magazines
white shivring
clothed in tears
trembling
shuddring cold
leprous his
limbs
all over white
Hoary was his
visage
pranto de dor
lancinante
desceu negro a
gritar
hostes
desbaratadas
de
lgrimas
vestido
(S)
em troves
envolto
cabea leprosa
trgico dilvio
asas ciumentas
descomunal
desgraa
escuro desceu
uivando
tropas arrasadas
vestido de
lgrimas
a tremer de frio
481 (contextos
diversos)
neves
armazenadas
tremendo
estremecendo
frio
neve acumulada
10 (7 de Blake)
paiol de gelo
87
(vrios
contextos)
11 (s Blake)
calafrio branco
Membros
leprosos
inteiramente
brancos
encanecido
rosto
17.200
(diversos)
9 (todos
Blake)
de
de
446 (diversos)
o
depsitos
gelados
tiritando branco
leproso o seu
corpo
todo branco
grisalha de gelo
sua aparncia
G
0
0
58.800
(contextos
variados)
1 (contexto
bblico)
1 (Uma Cano
de Liberdade,
Urgal)
1 (teatro)
0
4 (texto
informativo)
32 (msica
popular, poesia)
0
1.370
(contextos
diversos)
3 (texto
informativo)
0
0
32.900
(diversos)
0
tradues do original. Holy shrine, de uso corrente, permaneceu nas duas tradues templo
sagrado, que tambm uma colocao usual.
No entanto, comparando o nmero de ocorrncias, v-se que o efeito das colocaes
nos dois textos traduzidos nem sempre corresponde s do original. Para smitten bands, que
no pode ser considerada propriamente uma colocao blakeana, visto que foram encontradas
ocorrncias em outros contextos, Portela usou hostes desbaratadas, que no existe na
pesquisa Google, o que, sob o princpio da originalidade, parece mais efetivo que a
construo original, embora no faa uma boa acomodao rtmica na linha.
Minha opo para clothed in tears que na rede ocorre uma vez fora do contexto
blakeano , vestido de lgrimas, aparece vrias vezes em contexto de msica popular ou
poesia, mas, por considerar uma bela imagem, nessa exata seqncia lxico-sinttica, preferi
mant-la assim. A colocao de Portela, com a inverso, nica.
J com relao ao sintagma trembling shuddring cold, muito blakeana, no abri
mo de procurar algo que pudesse lembr-la, tentando a colocao tremendo estremecendo
frio. No portugus lusitano de Portela, a tremer de frio, que d muitas ocorrncias na rede
em contextos variados, provavelmente est mais longe de representar o original.
Foi encontrado um resultado para stored snows fora do contexto de Blake, nenhum
para neves armazenadas, traduo de Portela, e muitas ocorrncias para neve acumulada,
a minha opo. Icy magazines aparece dez vezes na pesquisa, a maioria em America de
Blake. A escolha de Portela, paiol de gelo, no aparece nenhuma vez, enquanto depsitos
gelados, minha traduo, traz alguns resultados.
White shivring no uma colocao idiossincrtica, que Portela transformou numa
bela traduo: calafrio branco, dando a mesma idia. tiritando branco a minha escolha,
que aparentemente tampouco uma colocao comum.
90
Portela traduz a usual all over white, por inteiramente branco, menos usado que
minha colocao todo branco, a qual talvez transmita melhor a inteno do original.
As diferentes tradues parecem sugerir, para esse texto, que o tradutor pode explorar
formas variadas de adjetivos, no necessariamente tendo de recorrer ao equivalente sugerido
pelo original, desde que o item escolhido faa parte do mesmo campo semntico. Afinal, o
leitor precisa ser situado e gradativamente acostumado a identificar que, quando a imagem
traz um adjetivo como branco ou velho, a situao est relacionada a Urizen.
No h dvida de que a colocao idiossincrtica em poesia um dos elementos
marcantes em America. Porm, a pesquisa das colocaes nos confirma que uma colocao
estranha na traduo no garantia de se atingir um efeito anlogo ao original. Ainda que a
traduo de Portela para smitten bands (hostes desbaratadas) seja uma combinao
incomum na lngua, talvez tropas arrasadas cause mais efeito no verso 8 da gravura 16. Ou
seja, a originalidade pode ser apenas um dos aspectos de uma colocao potica, aspectos
estes que nem sempre so fceis de se descrever objetivamente.
Para mostrar alguns detalhes do estilo blakeano de discurso, isolei colocaes que
correspondessem do original s tradues. Esta me pareceu a nica maneira de analisar, uma
vez que as duas tradues no se afastam do original nesse sentido, talvez por causa dos
smbolos de Blake.
3.4 Smbolos
A poesia simblica blakeana vem de uma tradio que remete doutrina das
correspondncias, cuja principal influncia o misticismo do alemo Jakob Bhme (15751624) e do sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), que viam o mundo externo como um
sistema de smbolos a revelar o mundo espiritual na forma material (Preminge & Brogan,
91
1993: 1251). Na poca de Blake, a idia de que a natureza a linguagem visual de Deus, ou
Esprito, tornou-se um dos pilares da poesia, com duas transformaes fundamentais: os
mundos material e espiritual agora esto fundidos, no sendo mais vistos simplesmente como
a representao e a coisa representada; e, em conseqncia, os sentidos dos smbolos
tornaram-se menos fixos e mais ambguos (Preminge & Brogan: 1251). Segundo Damon
(1985: 17), a simbologia, para Blake, um recurso literrio no qual realidades psicolgicas
surgem do subconsciente e assumem formas sensoriais. Blake parece antecipar os Novos
Crticos na teoria de que poetry gives us another and higher kind of truth, a truth of human
existence which is more complex and profound than that of mere fact and science (Preminge
& Brogan, 1993: 1251-2).
Dentre as abordagens modernas do conceito de smbolo, a que se adequa melhor a este
trabalho aquela segundo a qual os smbolos podem derivar de imagens literais ou figurativas
ou ambas, as a kind of figurative language in which what is shown (normally referring to
something material) means, by virtue of some sort of resemblance, suggestion, or association,
something more or something else (normally immaterial) (Preminge & Brogan, 1993). Com
base em Damon (1988), refiro-me aos smbolos de Blake como itens que realizam sentido
para alm da linguagem comum. Recorrentes nos diferentes livros, compem um sistema
prprio do poeta e significam mais do que seu significado aparente.
Apesar de se tornarem termos especiais (cloud, por exemplo) dentro do contexto de
sua obra, reconhecveis de um poema a outro, os smbolos de Blake como os termos
filosficos are also parts of anyones unreflective vocabulary. (...) words that anyone knows
how to use, at least as long as they do not stop to think about them (Re, 2001: 230). Essa
dupla referncia do termo simblico blakeano remeter ao mesmo tempo a alguma coisa
conhecida e a alguma coisa desconhecida da linguagem corrente que impe a necessidade
de uma traduo exata desses itens, quer esta necessidade seja ilusria ou no. Assim, o
92
tradutor levado a escolher equivalentes diretos dos itens originais, por meio da traduo
literal. Como os termos simblicos de Blake so universais (isto , nuvem pode funcionar
como smbolo mais ou menos da mesma forma que cloud), no h maiores dificuldades em
traduzi-los dessa maneira para que continuem smbolos. por isso que, ao traduzir America,
tomei cuidado na escolha das palavras, principalmente dos substantivos, um cuidado
excessivo, talvez, mas justificvel pela natureza da obra. Acredito que Portela tambm tenha
se sentido desconfortvel para fazer combinaes mais ousadas, como tentar traduzir uma
aliterao, por exemplo, por causa da complexa rede simblica do texto.
Procurei esclarecer os smbolos em notas de rodap; por meio delas, podemos ter uma
idia da simbologia de Blake em America. S na gravura 1 (Erdman, 1988; object 3 in Eaves,
Essick & Viscomi, 2006), por exemplo, identifiquei 19 smbolos23:
Shadowy Female
Urthona
Orc
fourteen
Sun
Iron
Bow
Night
Cloud
Loins
Air
Tongue
tenfold
Serpent
Eagle from Mexico
Lion from Peru
Whale from the South-sea
Serpent from Canada
Cavern
A lista ilustra a dificuldade que o tradutor enfrenta em fugir dos equivalentes imediatos desses
itens em favor de algum outro elemento potico do texto. Assim, procurei equivalentes que
julguei adequados para cada um dos itens simblicos:
23
Considerando, claro, apenas o texto escrito da pgina. Se considerasse o texto pictrico, distinguiria mais
smbolos, como a rvore do conhecimento, Los e Enitharmon.
93
Shadowy Female
Urthona
Orc
fourteen
Sun
Iron
Bow
Night
Cloud
Loins
Air
Tongue
tenfold
Eagle from Mexico
Lion from Peru
Whale from the South-sea
Serpent from Canada
Cavern
(S)
Fmea Sombrosa
Urthona
Orc
Catorze
Sol
Ferro
Arco
Noite
Nuvem
Rins
Ar
Lngua
Decuplas
guia do Mxico
Leo do Peru
Baleia do Mar do Sul
Serpente do Canad
Caverna
(P)
Mulher Sombria
Urthona
Orc
Catorze
Sol
Ferro
Arco
Noite
Nuvem
Rins
Ar
Lngua
--guia do Mxico
Leo do Peru
Baleia dos Mares do Sul
Serpente do Canad
Caverna
e confesso que, em alguns casos, no consegui uma traduo que me deixasse satisfeita, como
o caso de rins.
Portela tambm procurou seguir os equivalentes diretos dos termos simblicos de
Blake, e este talvez seja o motivo de sua traduo ser um pouco menos cuidadosa na questo
do ritmo. No entanto, percebemos a omisso de tenfold, do dcimo segundo
verso/Preludium. Como se trata de uma referncia aos Dez Mandamentos recebidos por
Moiss, achei importante mostr-la na traduo, atravs do equivalente direto dcuplas.
94
95
96
Washington
Franklin
Paine
Warren
Gates
Hancock
Green
Bernard
Allen
Lee
George the third
Ariston
(P)
Washington
Franklin
Paine
Warren
Gates
Hancock
Green
Bernard
Allen
Lee
--Arston
(S)
Washington
Franklin
Paine
Warren
Gates
Hancock
Green
Bernard
Allen
Lee
George terceiro
Ariston
Estes nomes certamente ainda circulavam pela Inglaterra na poca em que o texto foi
publicado, mas provavelmente muitas destas personagens no so familiares para o leitor
portugus ou brasileiro de hoje. Por isso, em minha traduo, esses nomes foram esclarecidos
em notas de rodap.
Os nomes George Washington e George the third so s vezes traduzidos em
portugus: Jorge Washington e Jorge terceiro; contudo, optei por tambm transferir
George Washington (em nota 25 da traduo) e George terceiro (nas Gravuras
Canceladas), j que,
Modernamente, los antropnimos ya no se suelen naturalizar: simplemente
se transfieren aunque en traduccin no hay absolutos (...) , tengan o no
correspondencia en nuestra lengua. Pero es ms, no slo se transfieren los
antropnimos actuales, sino que se adivina tambin cierta tendencia a
transferir tambin nombres que se adaptaron en el pasado (Moya, 2000: 38).
Pudemos observar que Manuel Portela tambm usou a transferncia, com a diferena
de no ter dado as referncias histricas das personagens reais, apenas para a personagem
mtica Arston, que aparece em seu Pequeno glossrio mitolgico de William Blake, no
final da traduo dos Sete Livros Iluminados.
No caso dos topnimos, em geral observou-se a tradio, nas duas tradues:
97
Canada
Africa
Mexico
Peru
Albion
South-sea
America
Atlantic sea
England
Mars
Boston
New-York
Pensylvania
Virginia
London
York
Ireland
Scotland
Wales
France
Spain
Italy
Thames
Saint James
Vale of Leutha
(P)
Canad
frica
Mxico
Peru
Albion
Mares do Sul
Amrica
oceano / mar Atlntico
Inglaterra
Marte
Boston
Nova Iorque
Pensylvania
Virginia
Londres
Iorque
Irlanda
Esccia
Gales
Frana
Espanha
Itlia
-------
(S)
Canad
frica
Mxico
Peru
lbion
Mar do Sul
Amrica
Mar Atlntico
Inglaterra
Marte
Boston
Nova York
Pensilvnia
Virgnia
Londres
York
Irlanda
Esccia
Gales
Frana
Espanha
Itlia
Tmisa
Saint James
Vale de Leutha
98
(P)
Mulher Sombria
Urthona
Orc
Enitharmon
Urizen
-----
(S)
Fmea Sombrosa
Urthona
Orc
Enitharmon
Urizen
Sotha
Thiralatha
99
poeta, foi traduzido; na traduo de Portela ficou Mulher Sombria, e em minha traduo,
Fmea Sombrosa.
Ainda sobre a traduo dos nomes, temos os ttulos polticos:
King
Governors
[House of] Lords
[House of] Commons
(P)
Rei
Governadores
-----
(S)
Rei
Governadores
Lordes
Comuns
100
Leutha
Lngua
Nuvem
Olho
Orc
Sotha
Urizen
Urthona
Podemos excluir da lista os itens Diralada ou Thiralatha, Leutha e Sotha que aparecem
nas Gravuras Canceladas de America, no traduzidas por Manuel Portela. O glossrio para
os Sete Livros Iluminados assumidamente pequeno; mesmo assim, fica disponvel uma
interpretao de alguns smbolos que talvez no paream claros para o leitor num primeiro
momento. um material que o leitor consulta se quiser, ao passo que as notas de rodap
explicam o texto de um modo um tanto autoritrio. Contudo, numa verso para estudo, as
anotaes de p de pgina so teis, esclarecendo lances importantes do texto que, de outra
maneira, o leitor poderia esquecer.
Manuel Portela certamente evitou as notas de rodap no curso dos poemas pensando
em sua forma original como livros iluminados: pintura e escrita indissociveis em uma
realizao una. Como o prprio tradutor faz questo de enfatizar, Gravao, impresso e
iluminao constituem portanto o todo da forma que Blake tentou afeioar sua imaginao
(Portela, 2005: 10). E assim, seu esforo para que o leitor passe alm das limitaes da edio
do seu conjunto de tradues inicia j no ttulo. Para manter o leitor sempre consciente do
aspecto visual da poesia de Blake, o tradutor deixa os textos livres de notas e mostra a
distribuio dos textos nos livros iluminados, anotando os nmeros das pginas onde
aparecem, alm de ter selecionado 32 gravuras para a edio, procurando aproximar os
leitores da materialidade grfica das obras originais. Seu prefcio explica detalhadamente o
processo de confeco dos livros, afirmando a importncia das edies modernas de facsmiles das obras iluminadas, como o ambicioso projeto da Tate Gallery na dcada de 90 e,
sobretudo, o Arquivo Blake (<www.blakeachive.org>):
101
102
CONCLUSES
104
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ANEXO