2012 WalterMendesDosSantos

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS,
LITERRIOS E TRADUTOLGICOS EM FRANCS

WALTER MENDES DOS SANTOS

O Intertexto Balzaquiano em
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha

SO PAULO
2012

WALTER MENDES DOS SANTOS

O Intertexto Balzaquiano em
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Estudos Lingusticos, Literrios


e Tradutolgicos em Francs do Departamento
de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de
So Paulo como requisito para a obteno do
grau de Doutor em Letras - Lngua e Literatura
Francesa.

Observao: este um exemplar revisado da


tese original apresentada banca de defesa.
De acordo:

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos

SO PAULO
2012

Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho,


por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e
pesquisa, desde que citada a fonte.

Ficha Catalogrfica

Santos, Walter Mendes dos.


O Intertexto Balzaquiano em Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha / Walter Mendes dos Santos; orientador Gilberto
Pinheiro Passos. So Paulo, 2012.
271f.

Tese (Doutorado) Universidade de So Paulo, 2012.

1. Romance. 2. Lima Barreto. 3. Honor de Balzac. 4.


Intertextualidade. 5. Relaes Frana-Brasil. I. Passos, Gilberto
Pinheiro. II. Ttulo. III. Ttulo: O Intertexto Balzaquiano em
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha.

Nome: SANTOS, Walter Mendes dos.


Ttulo: O Intertexto Balzaquiano em Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha
Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Estudos Lingusticos,
Literrios e Tradutolgicos em Francs do
Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo
como requisito para a obteno do grau de
Doutor em Letras - Lngua e Literatura
Francesa.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr.: ________________________________________________


Instituio: _________________ Assinatura: __________________

Prof. Dr.: ________________________________________________


Instituio: _________________ Assinatura: __________________

Prof. Dr.: ________________________________________________


Instituio: _________________ Assinatura: __________________

Prof. Dr.: ________________________________________________


Instituio: _________________ Assinatura: __________________

Prof. Dr.: ________________________________________________


Instituio: _________________ Assinatura: __________________

A todos os leitores, pesquisadores


e admiradores da obra de Lima Barreto
.

AGRADECIMENTOS

A Deus, meu querido Pai e maravilhoso Amigo, pois Ele bom,


Seu amor dura para sempre e sem Ele nada do que se fez teria sido
feito;

Ao Professor Doutor Gilberto Pinheiro Passos, por sua paciente


orientao, por seu exemplo como professor e pesquisador e por seu
elevado senso de excelncia, que fizeram enorme diferena entre o
projeto inicial e o resultado final desta tese de doutorado;

Ao Professor Doutor M. Jos-Luis Diaz, pela orientao


acadmica durante o doutorado-sanduche e pelo curso "Culture
littraire 2 - XIXme sicle : Reprsentations de lcrivain et de la vie
littraire au XIXe sicle", realizados no primeiro semestre de 2011 na
Universit Paris 7 (Paris-Diderot);

Fundao Capes, pela concesso da Bolsa Demanda Social


(que me permitiu dedicao integral aos estudos de doutorado na
Usp) e da Bolsa Programa de Doutorado com Estgio no Exterior (que
me permitiu a realizao do doutorado-sanduche na Universit Paris
7 [Paris-Diderot] no primeiro semestre de 2011);

Professora Doutora Glria Carneiro do Amaral, por seu


desempenho como cicerone do universo balzaquiano na disciplina
Balzac: Em Torno da Comdia Humana (ministrada no 1 Semestre
de 2008) e pelas sugestes de bibliografia, foco e abordagem
apresentadas durante a banca de qualificao;

Aos professores lvaro Silveira Faleiros e Vernica Galndez-Jorge


(Usp); a M. Claude Maron (Cit Internationale Universitaire de Paris)
e Mme. Ccile Le Dilly (Universit Paris 7); aos amigos feitos em
Sampa: Maruen Mehana, Edvaldo Mximo, Leandro Lima e Evanildo
Lacerda; e aos amigos feitos em Paris: George Popov, Florian Kniffka,
Magnus Ingvard, Helena Gyllenhammar Schill e Robson Costa da
Silva pessoas queridas conhecidas graas ao doutorado e que foram
importantes para que eu me tornasse um homem, um profissional e
um pesquisador melhor, ajudando-me a enfrentar os desafios deste
curso de ps-graduao com mais segurana, inspirao e felicidade.

As homenagens prestadas memria de Lima Barreto,


os estudos crticos que lhe dedicam prestigiosos escritores
da nova gerao que no chegou a conhec-lo,
ainda me parecem inferiores ao mrito real do grande artista,
que tantos anos viveu esquecido ou odiado
por uma sociedade cujas fraquezas e procedimentos ele,
corajosamente, timbrava em estigmatizar.

Jos Mariano apud Jos Lins do Rego,


Ainda sobre Lima Barreto, pg. 432.

RESUMO

SANTOS, Walter Mendes dos. O Intertexto Balzaquiano em


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. So Paulo, 2012. Tese
de Doutorado em Letras - Lngua e Literatura Francesa.
Departamento de Letras Modernas, Doutorado em Letras - Lngua e
Literatura Francesa, Universidade de So Paulo.

Esta tese de doutorado pretende fazer uma releitura do romance de


estreia de Lima Barreto, Recordaes do Escrivo Isaas Caminha.
Dividida em quatro captulos, o presente trabalho questiona a viso
da crtica literria tradicional que analisa o livro como mero romance
de chave com traos autobiogrficos, uma leitura vlida porm
incompleta. Em seu lugar, o autor prope uma interpretao
intertextual do romance barretiano com Illusions Perdues, de Honor
de Balzac, do qual Lima Barreto faz um aproveitamento criativo da
trajetria do protagonista e de temas como o mito de Napoleo, o
homem de provncia na Capital e a crtica imprensa industrial
moderna. Tambm se apontam a presena de elementos de outras
obras da literatura francesa e ocidental em Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha, num grau menor que o do intertexto balzaquiano, e
o processo de articulao dessas conexes usado por Lima Barreto
para denunciar as contradies sociais da Primeira Repblica
Brasileira (1889-1930).

Palavras-chave: romance; Lima Barreto; Honor de


Balzac; intertextualidade; relaes Frana-Brasil.

10

ABSTRACT

SANTOS, Walter Mendes dos. The Balzatian Intertext in


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, by Lima Barreto. So
Paulo, 2012. Tese de Doutorado em Letras - Lngua e Literatura
Francesa. Departamento de Letras Modernas, Doutorado em Letras Lngua e Literatura Francesa, Universidade de So Paulo.

This PhD thesis aims to stablish a new approach for the first Lima
Barretos novel Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. Divided into
four chapters, this work discusses the traditional view of literary
criticism that analyzes the book as a mere roman clef with
autobiographical traits, an important but incomplet reading. Instead,
the author proposes an intertextual approach between the Lima
Barretos novel with Illusions Perdues, by Honor de Balzac, from
which the Brazilian writer does a creative use of the protagonists
trajectory and themes like the myth of Napoleon, the provincial man
in the Capital and the criticism against the modern industrial press.
Its pointed out as well the presence of elements of other works from
French and Western literatures in Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, in a smaller degree than the Balzatian intertext, and the
process of articulation of these connections used by Lima Barreto to
denounce the social contradictions from the First Brazilian Republic
(1889-1930).

Key words: novel; Lima Barreto; Honor de Balzac; intertextuality;


France-Brazil relations.

11

RESUM

SANTOS, Walter Mendes dos. LIntertexte Balzacien dans


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, de Lima Barreto. So
Paulo, 2012. Tese de Doutorado em Letras - Lngua e Literatura
Francesa. Departamento de Letras Modernas, Doutorado em Letras Lngua e Literatura Francesa, Universidade de So Paulo.

Cette thse doctorale a pour but de faire une nouvelle lecture de


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, le premier roman de
l'crivain brsilien Lima Barreto. Compose de quatre chapitres, on
remet en question lide reue de la critique littraire qui voit ce livre
simplement comme un roman clef avec des traces
autobiographiques, une interprtation valable mais incomplte. Au
contraire, l'auteur propose une lecture intertextuelle du roman avec
Illusions Perdues, d'Honor de Balzac, dont Lima Barreto fait un
usage cratif en ce qui concerne la trajectoire du protagoniste et des
thmes comme le mythe napolonien, l'homme de province dans la
Capitale et la critique la presse industrielle moderne. On indique
galement la prsence d'lments d'autres uvres de la littrature
franaise et occidentale, dans une chelle moindre que celle de
l'intertexte balzacien, et le processus d'laboration de ces connexions
utilis par Lima Barreto pour dnoncer les contradictions sociales de
la Premire Rpublique Brsilienne (1889-1930).

Mots-cls : roman; Lima Barreto; Honor de Balzac; intertextualit;


rapports France-Brsil.

12

SUMRIO

INTRODUO .......................................................................14
Corpus e metodologia .......................................................18
Fundamentao Terica .....................................................21
Relaes literrias Brasil-Frana .........................................36
1. UMA OUTRA CHAVE PARA ISAAS CAMINHA ....................48
1.1. A persistncia de um clich .........................................49
1.2. Pacto romanesco, no autobiogrfico ............................56
1.3. Chaves em Illusions Perdues .......................................60
2. POR UMA LEITURA INTERTEXTUAL...................................71
2.1. Preliminares de nossa tradio ....................................71
2.2. O modelo balzaquiano ................................................76
2.3. Outros emprstimos ...................................................90
3. UM ICONOCLASTA NO HORIZONTE ..................................110
3.1. Provincianos inspirados por Napoleo ..........................110
3.2. Temas stendhalianos em Lima Barreto .........................121
3.3. Um crtico da Belle poque .........................................134
3.4. Rompendo o horizonte de expectativas ........................149
4. CRTICAS DA LITERATURA AO QUARTO PODER ...............164
4.1. Panorama francs .....................................................165
4.2. Panorama brasileiro ...................................................173

13

4.3. Os personagens jornalistas .........................................179


4.4. Crticas imprensa ...................................................187
CONSIDERAES FINAIS ....................................................196
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .........................................201
APNDICES .........................................................................224
A) TRAVANCAS, Isabel. O jornalismo e suas representaes
literrias.
B) LE MOING, Monique. Lima Barreto ou L'illusion Tragique.
C) SOUZA, Elaine Brito. Isaas Caminha: desiluses de um
mulato-instrudo na imprensa.
D) DEMTRIO, Silvio Ricardo. Os limites do devir literatura no
jornalismo.
E) CENTRE DE RECHERCHES HUBERT DE PHALSE. Echos et
rceptions des Illusions perdues. Complments au livre la
recherche des Illusions perdues.

14

INTRODUO

Se um leitor desejar conhecer como a crtica literria tem lido


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, de Lima Barreto, nos
ltimos cem anos, no precisar recorrer a pesquisas e
levantamentos exaustivos na longa fortuna crtica barretiana: bastar
consultar a edio da Penguin Classics e Companhia das Letras 1.
Todos os elementos paratextuais unem-se ali para estabelecer o
mximo de paralelos possveis entre a biografia do autor e a
trajetria do narrador-protagonista e fazer convergir o olhar do leitor
e o da crtica tradicional.
Assim, aprendemos no prefcio do bigrafo Francisco de Assis
Barbosa, no artigo introdutrio de Alfredo Bosi2 e na contracapa do
editor que Isaas Caminha uma mscara sob a qual Lima Barreto
relembra sua passagem pelo jornal carioca Correio da Manh e
exorciza os fantasmas do preconceito racial que impediram sua plena
insero na sociedade. Caso ainda restem dvidas, elas so

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa, introd. de Alfredo Bosi e notas de


Isabel Lustosa. So Paulo: Penguin Classics/ Companhia das Letras, 2010.
2

Uma reproduo integral do trabalho Figuras do eu nas Recordaes de Isaas

Caminha. IN: BOSI, Alfredo. Literatura e resistncia. Companhia das Letras:


So Paulo, 2008, pgs. 188-189.

15

dissipadas pelas mais de cem notas internas apoiadas na excelente e


bem-documentada biografia de Lima Barreto3. Nelas acompanhamos
passo a passo a reconstruo da vida do autor luz da trajetria do
narrador-protagonista, com os devidos correspondentes para os
fatos, pessoas e lugares histricos supostamente codificados nesse
romance de estreia.
Que o criador, ao contrrio de sua criao literria, no fosse
filho de padre, no tivesse nascido fora da cidade do Rio de Janeiro,
no houvera tentado estudar medicina nem chegara a ser casado e
com filhos isso no importa. As notas e demais elementos
paratextuais nada dizem a respeito, embora reforcem
constantemente a impresso de espelhamento entre as trajetrias do
autor e narrador. guisa de exemplo, conforme a nota 2 da referida
edio, a professora Ester do comeo do romance e que estimula as
ambies de Isaas Caminha no tem o nome emprestado da exilada
judia que se torna rainha e salva seu povo do holocausto, um
elemento a mais na srie de agouros e sinais que reforam o
pensamento mgico do jovem narrador de sair da provncia rumo
Capital. Antes, a aluso a uma professora que Lima Barreto teve na
infncia: dona Annie Cunditt, a quem se afeioou e cuja descrio

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. 3.ed. Rio de Janeiro:

Civilizao Brasileira, 1964.

16

corresponde imagem de dona Ester 4. Publicada 101 anos depois da


primeira edio de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, a
publicao da Penguin Classics e Companhia das Letras reflete a
leitura feita pela crtica literria desde o seu surgimento, a saber: um
romance de chave (ou clef) com traos autobiogrficos.
Esta tese de doutorado pretende ir alm dessa viso crtica
tradicional, que cremos ser uma leitura vlida porm incompleta da
obra barretiana, pois menospreza diversos pressupostos e conceitos
como a natureza fictcia do personagem, as diferenas entre pacto
romanesco e autobiogrfico, a no equivalncia entre autor e
narrador e a relao dialtica entre tradio e ruptura presentes na
literatura. Propomos, para alm dessa mera leitura biografista, um
olhar intertextual do romance Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha com Illusions Perdues, de Honor de Balzac, do qual Lima
Barreto faz um aproveitamento criativo. Assim cremos que em vez de
produto memorial do autor, a trajetria do protagonista inspira-se no
modelo literrio preliminar de Lucien Rubempr, tambm um jovem
da provncia/interior que sonha vencer na Capital, igualmente
inspirado pelo mito de Napoleo. E que mais do que um relato
pessoal de vingana de Lima Barreto contra o jornal Correio da

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Idem, pg. 69.

17

Manh, estamos diante de crticas contra a imprensa industrial


moderna trabalhadas anteriormente no romance balzaquiano.
Crticas que, ressaltamos, devem ser analisadas dentro de um
quadro mais amplo e mais perverso do que aquele do plano do
desabafo do autor individual ou do grupo racial a que ele pertencia:
elas se constroem num olhar sobre a imprensa como um microcosmo
das contradies sociais da Primeira Repblica Brasileira
(1889-1930), denunciadas acidamente por Lima Barreto. A chave
para abrir um entendimento mais profundo e significativo desse
romance de estreia deve ser buscada, portanto, alm da
correspondncia fortuita de elementos internos e externos da obra:
nas conexes que Recordaes do Escrivo Isaas Caminha
estabelece intertextualmente com o romance francs e, num grau
menor, com outras obras da literatura francesa, portuguesa, brasileira
e russa. Essa a problemtica e os objetivos de nosso trabalho.
Dividida em quatro captulos, apresentamos inicialmente em
nossa tese um breve histrico da recepo inicial do romance do prmodernista, examinamos a presena do pacto autobiogrfico em Lima
Barreto e como a existncia de chaves (tal qual em Illusions Perdues)
no precisa estigmatizar uma obra literria. No segundo captulo,
tentaremos mostrar como o modelo balzaquiano e outros
emprstimos intertextuais das literaturas francesa, portuguesa e

18

russa aparecem no romance barretiano. A seguir, acompanharemos


como os temas stendhalianos do jovem provinciano na Capital e do
mito de Napoleo so emprestados e aproveitados em Illusions
Perdues e especialmente em Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, numa denncia social feita por Lima Barreto, bem como as
expectativas literrias existentes na publicao do seu romance de
estreia. Finalmente, no ltimo captulo, apresentaremos o contexto
scio-histrico francs e brasileiro da imprensa, a galeria de
personagens jornalistas em Balzac e Lima Barreto e as crticas
imprensa feitas nos dois romances.

Corpus e metodologia

A fim de trabalharmos esses pontos, decidimos limitar nosso


corpus aos romances Illusions Perdues e Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha. Para o texto balzaquiano, trabalhamos com a edio
apresentada e anotada por Patrick Berthier, professor da Universit
de Nantes, Frana, e especialista em Balzac e Literatura Francesa do
Sculo XIX [BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et
anote par Patrick Berthier. Paris: Le Livre de Poche, 2008.
(Collection Classiques)]. Para o texto barretiano, usaremos a edio
prefaciada e organizada por Francisco de Assis Barbosa, crtico

19

literrio e bigrafo de Lima Barreto [LIMA BARRETO, Afonso


Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. pref. de
Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:
Publifolha, 1997. (Biblioteca Folha; 18)].
Para a realizao e elaborao desta tese para o Doutorado em
Letras - Lngua e Literatura Francesa - na Universidade de So Paulo,
utilizamos uma abordagem dedutiva, partindo da hiptese
intertextual para a busca e seleo da bibliografia terica necessria e
ento para a anlise e comparao dos romances em busca das
pistas de leitura que fundamentassem o projeto inicial. Desnecessrio
dizer que, em nome de uma leitura responsvel dos dados, tal
deciso no implicou uma organizao arbitrariamente seletiva das
fontes ou que os corolrios da hiptese no foram revistos e
reorganizados durante a pesquisa.
Este trabalho de crtica literria do romance Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha enquadra-se dentro dos estudos da
Literatura Comparada, particularmente nos conceitos e paradigmas
da Teoria da Intertextualidade e da Esttica da Recepo, que
explicitamos mais frente. Em nossas pesquisas recorremos aos
acervos da Biblioteca Florestan Fernandes (da Faculdade de Letras,
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo) e da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil; e s bases de dados

20

e livros das Bibliothques Centrale e Jacques Seebacher (Bibliothque


du 19me sicle) da Universit Paris 7 e da Bibliothque Nacional de
France Franois Mitterand, na Frana. Optamos preferencialmente por
livros e artigos em formato tradicional para a fundamentao
bibliogrfica. Contudo, decidimos manter alguns documentos
eletrnicos da Internet produzidos por instituies acadmicas
reconhecidas e para os quais no havia equivalente em suporte
material. Tais arquivos so reproduzidos em sua forma integral em
apndice aps as referncias bibliogrficas.
Como o nosso projeto de pesquisa fundamenta-se nas obras
balzaquiana e barretiana, e no nos homens Honor de Balzac e Lima
Barreto, recorremos sem aprofundamento desnecessrio a elementos
extraliterrios em nossa discusso, tais como a passagem biogrfica
do romancista brasileiro pelo jornalismo, o momento histrico da
imprensa nos dois pases, dados ligeiros de outros autores desses
sistemas literrios e as relaes de intercmbio entre o Brasil e a
Frana. Reconhecemos que uma obra literria escrita por homens e
provocada dentro de um contexto histrico situado no tempo e
espao, mas ao mesmo tempo delimitamos a natureza deste projeto
dentro de parmetros crtico-literrios, e no histrico-culturais. Fazer
o contrrio, seria, usando as palavras de Erich Auerbach, uma tarefa
cansativa, trabalhosa e contraproducente para o tema e o leitor. A fim

21

de preservar o foco e recorte exigidos para um trabalho acadmico,


recomendamos as notas ao longo do texto e as referncias
bibliogrficas ao final queles que desejarem informaes adicionais
sobre esses pontos perifricos.

Fundamentao terica

Para nossas anlises, usamos os conceitos e paradigmas da


Esttica da Recepo e da Teoria da Intertextualidade, teorias
literrias absorvidas pelos estudos da Literatura Comparada e das
quais faremos um breve apanhado. A Esttica da Recepo a
teoria literria formulada por Hans Robert Jauss e seus colegas da
Escola de Constana, no final da dcada de 1960, e est ligada
diretamente s comunidades interpretativas propostas por Stanley
Fish, o principal divulgador da reader-response criticism norteamericana.
No texto Is There a Text in This Class? 5, Stanley Fish defende
que a literatura no pode conter propriedades formais pretensamente
definidoras do que ou no a literatura, pois ela o produto de um
modo de ler, de um acordo comunitrio acerca daquilo que dever
contar como literatura, que leva os membros da comunidade a
5

FISH, Stanley. Is There a Text in This Class? the authority of interpretative

communities. Cambridge, London: Havard University Press, 1980.

22

prestar certo tipo de ateno ao criarem literatura. O modo de ler


no fixo, postula Stanley Fish, mas varia ao longo dos tempos.
Como corolrio deste conhecimento relativo da natureza da literatura,
surge ento o conceito de comunidade interpretativa, que seria
responsvel tanto pela configurao das atividades do leitor como
pelos textos que essas atividades produzem.
Inicialmente um grupo de crticos da Universidade de Constana
com teses divulgadas na revista Poetik und Hermeneutik, a Esttica
da Recepo tem como principais formuladores Wolfgang Iser e
Robert Jauss, que nos anos 1960 restituram ao leitor individual e
coletivo seu papel ativo em um texto literrio. Ela procurava a
reconstruo do processo de recepo da obra literria e de seus
pressupostos, reestabelecendo a dimenso histrica da pesquisa
literria e remetendo o ato de leitura a um duplo horizonte: o
implicado pela obra e o projetado pelo leitor de determinada
sociedade.
Se durante dcadas os estudos da crtica e da teoria literrias
centraram-se na questo do autor ou do texto como objeto de anlise
e portador do sentido pretendido por seu autor, a Esttica da
Recepo prope o confronto entre a construo do autor e as
reconstrues do leitor, de tal forma que o indivduo leitor e o ato da

23

leitura passam a ser elementos constituintes e fundamentais para que


ocorra o fenmeno literrio.
Robert Jauss, em A histria da literatura como provocao
teoria literria6 (1970), afirma que nem a teoria literria marxista (a
qual procurava demonstrar o sentido da literatura como retrato da
realidade social), nem a escola formalista (que compreendia a
literatura como uma sucesso de sistemas esttico-formais sem
relao com o processo geral da histria) reconhece o verdadeiro
papel do leitor. Para ele, a recepo de um texto sempre pressupe o
contexto de experincias anteriores, fazendo com que a obra de arte
literria seja efetiva apenas quando o leitor a legitima como tal,
relegando para plano secundrio o trabalho do autor e o prprio texto
criado. Para isso, necessrio descobrir qual o horizonte de
expectativas que envolve essa obra, pois todos os leitores investem
certas expectativas nos textos que leem em virtude de estarem
condicionados por outras leituras j realizadas, sobretudo se
pertencerem ao mesmo gnero literrio.
Superando a clssica separao entre histria da literatura e
esttica, Jauss entende a permanncia de uma obra atravs do

JAUSS, Hans Robert. A histria da literatura como provocao teoria

literria. So Paulo: tica, 1994. (Srie Temas, v.36) e _____________. O


texto potico na mudana de horizonte de leitura. In: COSTA LIMA, Luiz. Teoria
da literatura em suas fontes. Vol. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983, pgs. 305-358.

24

tempo em funo da atuao do pblico sobre essa obra e no em


funo apenas dela mesma, por valores eternos e imutveis contidos
na obra. Isso explicaria por que algumas obras tm sucesso fugaz e
outras resistem atravs do tempo, com sucessivas e interminveis
reedies em todas as lnguas. Para Jauss, pertencem esfera da
arte culinria ou ligeira aquelas obras que no exigem do receptor
qualquer mudana em seu horizonte de expectativa (resultante do
seu conhecimento acumulado), bastando-lhe aceitar os modismos ou
experincias corriqueiras lanados ao gosto dominante no momento
do aparecimento dessa obra. Por outro lado, segundo o terico
literrio, h obras que, no momento de sua publicao, no podem
ser relacionadas a nenhum grupo de leitores especfico, mas rompem
to completamente o horizonte conhecido de expectativas literrias
que seu pblico somente comea a formar-se aos poucos. Esta uma
obra-prima, de sentido eterno, porque nela conhecemos e
reconhecemos as coisas e a ns mesmos.
Sob esse ponto de vista, a Esttica da Recepo toma como
objeto de investigao o receptor. Isso exige dela a construo de
uma nova concepo de leitor que assume, conforme Hans Robert
Jauss, seu papel genuno, imprescindvel tanto para o conhecimento
esttico quanto para o conhecimento histrico: o papel de
destinatrio a quem, primordialmente, a obra literria visa. Com a

25

mudana do foco de investigao para a recepo, o fato literrio


passa a ser descrito a partir da histria das sucessivas leituras por
que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado
atravs dos tempos, porque a obra literria no um objeto que
exista por si s, oferecendo a cada observador em cada poca um
mesmo aspecto (...) Ela , antes, como uma partitura voltada para a
ressonncia sempre renovada da leitura, libertando o texto da
matria das palavras e conferindo-lhe existncia atual. A recepo
seria compreendida como uma concretizao pertinente estrutura
da obra, tanto no momento de sua produo como de sua leitura, que
pode ser estudada esteticamente, considerando, assim, o leitor como
um elemento tambm textualmente marcado na obra de arte
literria.
Por outro lado, Wolfgang Iser, em Problemas da teoria da
literatura atual7 , procura aprofundar as relaes interacionais entre
texto e leitor, teorizando a recepo (resposta) do leitor a partir dos
pontos de indeterminao presentes nos textos e acionados pelo ato
da leitura. Sob influncia da fenomenologia, Wolfgang Iser fez uma
distino fundamental entre "texto", considerado como pura
potencialidade, e "obra", considerada como conjunto de sentidos

ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual. In: COSTA LIMA, Luiz.

Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,


1983. Vol. II. p. 359-383.

26

constitudos pelo leitor ao longo da leitura. Desta distino no


resulta o relativismo ou a arbitrariedade do significado, mas a
concepo produtiva da leitura como a constituio do sentido a partir
do texto, isto , segundo as regras de jogo inscritas na obra literria.
A leitura no , pois, um movimento linear progressivo e
cumulativo, mas um trabalho ativo ao longo do qual as expectativas
iniciais do leitor geram um quadro de referncias para a interpretao
da prxima leitura que ele far. Porm, o que vem a seguir pode
transformar retrospectivamente a sua compreenso original,
ressaltando certos aspectos e colocando outros em segundo plano.
medida que prossegue a leitura, o leitor abandona certas suposies,
rev crenas, realiza revises de sentidos. Enfim faz dedues e
previses cada vez mais complexas: cada frase abre um horizonte
que confirmado, questionado, problematizado ou destrudo pela
frase seguinte.
O leitor l simultaneamente para trs e para a frente,
recordando e prevendo, consciente de outras concretizaes possveis
do texto negadas pela sua leitura. Isso significa que o leitor , de
certo modo, uma espcie de co-autor do texto que se concretiza na
obra. Segundo Wolfgang Iser, a obra literria mais eficiente e valiosa
aquela que obriga o leitor a formular uma nova conscincia crtica
dos seus cdigos estticos e das expectativas habituais, ou seja, que

27

transgride os modos normativos de ver e ensina novos cdigos de


entendimento.
Ao explorar os caminhos abertos por Hans Robert Jauss,
Wolfgang Iser, em O fictcio e o imaginrio8 , entende tambm que
uma teoria da recepo conduz a uma reflexo sobre o imaginrio.
De acordo com ele, como o texto ficcional contm elementos do real
sem que se esgote na descrio desse real, ento o seu componente
fictcio no tem o carter de uma finalidade em si mesma, mas ,
enquanto fingido, a preparao de um imaginrio. Assim, pode-se
afirmar que o fictcio uma realidade que se repete pelo efeito do
imaginrio, ou que o fictcio a concretizao de um imaginrio que
traduz elementos da realidade. Mas a rigor no se pode delimitar o
real (a no ser que este corresponda ao mundo extratextual), o
fictcio (alm do que se manifesta como ato, revestido de
intencionalidade) e o imaginrio (exceto o que possui carter difuso,
e que deve ser compreendido como um funcionamento).
A proposta que se pense a literatura numa perspectiva
antropolgica ampla, ou como produto humano e simultaneamente
definidor do humano. Trata-se, pois, no de adotar a metodologia da
Antropologia como disciplina, mas de conceber uma Antropologia
Literria, que parta da idia de que h uma plasticidade humana
8

ISER, Wolfgang. O Fictcio e o Imaginrio: perspectivas de uma

antropologia literria. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

28

que se manifesta de maneira privilegiada na literatura e nas artes, j


que estas so capazes de oferecer uma auto-interpretao do
homem. Wolfgang Iser entende a literatura como operao que
converte a plasticidade humana em texto. Tal plasticidade abarca a
experincia do homem com o que percebe como real, o processo
imaginrio de conceber as limitaes e as potencialidades de tal
experincia, e a transformao desse processo em obras, ou seja, a
concretizao do imaginrio atravs da fico.
Naturalmente, o fictcio e o imaginrio esto presentes em
qualquer atividade humana; na literatura, contudo, estes se
apresentam segundo uma articulao organizada, que pode ser
mapeada em termos sincrnicos e diacrnicos. Na literatura, o fictcio
o que tem carter de ato, dentre os trs termos , assume papel
essencial de transgresso de limites, tanto na determinao do real
(pois na fico o real se revela transfigurado por meio do imaginrio),
quanto na difuso do imaginrio (j que na fico o imaginrio ganha
uma determinao, a qual um atributo de realidade).
Os pressupostos da Esttica da Recepo no contradizem
necessariamente a leitura de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha
como roman clef, antes explicam o surgimento e persistncia desse
olhar sobre o romance. Como veremos mais frente neste trabalho,
a obra do escritor pr-modernista surge num horizonte de

29

expectativas problemtico, no qual os escritores brasileiros produziam


literatura para sales e reproduziam os valores de um beletrismo
parnasiano. Um fato que pode ser demonstrado por meio dos
medalhes consagrados da poca que caram no ostracismo e
tambm nas reaes viscerais contra os modernistas da Semana de
1922. Lima Barreto e seu romance de estreia afrontaram o gosto
dominante de tal forma que a crtica no conseguiu ver nada alm de
um suposto relato de ressentimento do autor, uma escrita desleixada
e uma vingana velada contra as grandes figuras do campo
intelectual.
De forma lamentvel, o clich do romance de chaves persistiu
pelas dcadas seguintes na comunidade interpretativa, ignorando o
carter transpessoal da trajetria do protagonista, a proposta de uma
linguagem literria simplificada que antecedia as propostas
modernistas e os intertextos, franceses em sua maioria, presentes na
obra. Esse ltimo ponto, cremos, o mais problemtico pois
referncias e emprstimos glicos na literatura brasileira foram
acionados e reconhecidos pelo pblico e crtica do perodo que vai do
Romantismo ao Simbolismo. No caso de Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha, os arqutipos textuais (para usar uma expresso de
Laurent Jenny, do qual falaremos adiante) trabalhados previamente
por Stendhal, Honor de Balzac e mesmo Machado de Assis foram

30

solenemente despercebidos pelos leitores de Lima Barreto durante


dcadas.
Antes de discorrermos sobre a Teoria da Intertextualidade,
devemos enfatizar que o conceito de originalidade tal qual
conhecemos recente na histria da Literatura Ocidental, surgindo no
sculo XVIII com os pr-romnticos alemes. Eles pretendiam
substituir, com o conceito de obra original, a noo de obra clssica.
Os assim chamados clssicos eram autores e obras lidos em
classe, quer nos cursos pr-universitrios ou universitrios da Idade
Mdia, para que os alunos soubessem como escrever bem. Nessa
concepo de literatura, uma obra perfeita seria no aquela
totalmente inovadora em estilos, temas e/ou histrias; mas a obra
perfeita seria a que imitasse melhor o material j existente, chegando
a super-lo e tornar-se ela mesma um clssico para os sucessores. O
clssico funcionaria como um repositrio comum de conceitos e
personalidades, amplamente acessvel ou compreendido.
Essa noo foi alterada na historiografia literria devido
valorizao feita pelos pr-romnticos alemes da individualidade e
da ruptura de preceitos. Isso elevou a noo de originalidade como
um corolrio fundamental do projeto de literatura formulado pela
nova esttica. A obra-prima seria, segundo eles, aquela que fosse

31

original isto , que tivesse origem exclusivamente na mente


criadora do artista que a compunha.
Os milhares de anos da Literatura ocidental mostram, contudo,
que a originalidade absoluta um alvo impossvel. Pois os textos,
temas e autores operam num ciclo constante de recorrncia,
aproveitamentos e emprstimos. Basear-se num modelo preliminar
um padro muito forte e inevitvel na tradio literria. Se
estudarmos os textos da tradio popular, perceberemos facilmente
que at mesmo eles retomam temas da tradio literria.
A Teoria da Intertextualidade trabalha dentro desses dados da
tradio literria, ocidental em primeiro lugar e universal numa
abordagem mais ampla. Seus pressupostos foram desenvolvidos por
Julia Kristeva e Jenny Laurent, na esteira de Mikhail Bakhtin.
Em Problemas da Potica de Dostoivski9 , Mikhail Bakhtin
prope o dialogismo, um princpio unificador da obra do crtico
sovitico. O dialogismo reflete a concepo de que a lngua viva,
concreta, dialgica no apenas na interao face a face, mas em
todos os enunciados no processo de comunicao. Segundo Mikhail
Bakhtin, existe uma dialogizao interna da palavra, que
p e r p a s s a d a s e m p r e p e l a p a l a v ra d o o u t r o, s e m p r e e
inevitavelmente tambm a palavra do outro, [na qual] esto
9

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. Trad. Paulo Bezerra.

Rio de Janeiro: Forense-Universitria: 1981.

32

presentes ecos e lembranas de outros enunciados, com que ele


conta, que ele refuta, confirma, completa, pressupe e assim por
diante10.
Uma das trs formas desse dialogismo seria a sua mostra, de
forma visvel e externa, no fio do discurso. Teramos assim 1) o
discurso objetivado, em que o enunciado alheio citado e
distinguido: o discurso direto, o discurso indireto, as aspas e a
negao e; 2) o discurso bivocal, internamente dialogizado e sem
distino ntida de enunciados: a pardia, a estilizao ou parfrase,
a polmica clara, a polmica velada e o discurso indireto livre 11. Isso
ainda no a intertextualidade, j que Mikhail Bakhtin refere-se
nesse contexto a relaes dialgicas materializadas em textos
apenas, e entre dois textos distintos e independentes. No devemos,
segundo Fiorin, confundir intertextualidade com a relao dialgica
proposta por Mikhail Bakhtin, pois caso a especificidade apresentada
na frase anterior no ocorra, temos apenas interdiscursividade e/ou
intratextualidade 12.
O termo intertextualidade foi cunhado pela blgara naturalizada
francesa Julia Kristeva a partir do conceito de dialogismo de Mikhail

10

Mikhail Bakhtin apud FIORIN, Jos Luiz. Introduo ao Pensamento de

Bakhtin. So Paulo: tica, 2006, pgs. 19 e 21.


11

Idem, pgs. 32-33.

12

Ibidem, pgs. 51-53.

33

Bakhtin, quando ela apresenta o Problemas da Potica de Dostoivski


Frana. No ensaio Le mot, le dialogue et le roman 13 (1966), ela
postula que a intertextualidade uma propriedade do texto literrio,
que tout texte se construit comme mosaque de citations, tout texte
est absortion et transformation dun autre texte 14. Tania Franco
Carvalhal explica que essa teoria do texto se fundamenta em trs
grandes premissas: que a linguagem potica a nica infinitude do
cdigo, que o texto literrio um binmio escrita/leitura e que o
texto literrio um feixe de conexes. O processo de escrita passa
a ser encarado como dilogo de vrias escrituras (cujas relaes
so estabelecidas no conjunto dos textos) e resultado da leitura de
um corpus literrio anterior (sendo o texto absoro e rplica de um
ou vrios outros textos)15 .
Depois de Julia Kristeva, Roland Barthes quem vai difundir o
conceito de intertextualidade. Ele escreve em S/Z16 (1971):

13

KRISTEVA, Julia. Semeiotikhe: recherches pour une smanalyse. Paris: Seuil,

1969. (Colection Tel Quel).


14

Idem, page 146.

15

CARVALHAL, Idem, pg. 50 e CARVALHAL, Tania Franco Carvalhal. Via

Atlntica, n 9, jun/2006, pg. 128.


16

BARTHES, Roland. S/Z. IN: _________________. Oeuvres Compltes. tome II:

1966-1973. tablie et presnte par Eric Marty. Paris: ditions du Seuil, 1994.

34
Plus le texte est pluriel et moins il crit avant que je le lise;
je ne lui fais pas subir une opration prdicative,
consquente son tre, appele lecture, et je nest pas un
sujet innocent, antrieur au texte et qui en userait ensuite
comme dun objet dmonter ou dun lieu investir. Ce moi
qui sapproche du texte est dj lui-mme une pluralit
dautres, de codes infidles, ou plus exactement: perdues
(dont lorigine se perd). (...) Le commentaire dun seul texte
nest pas une activit contingente, place sous lalibi
rassurant du concret : le texte unique vaut pour tous les
textes de la littrature, non en ce quil les reprsente (les
abtrait et les galise), mais en ce que la literatura elle-mme
nest jamais quun seul texte17.

Jenny Laurent no artigo La Stratgie de la Forme18 (1979),


salienta que fora da intertextualidade a obra literria seria
simplesmente incompreensvel, sendo apreendido o sentido de um
texto na relao com seus arqutipos textuais. Assim, a
intertextualidade implica sempre uma relao de realizao, de
transformao ou de transgresso. E , em grande parte, essa
relao que a define. Nessas relaes do processo intertextual, as
possibilidades de re-criao residem na interao entre textos e na
re-articulao de seus elementos, no uma soma confusa e
17

Idem, pages 561 e 562.

18

JENNY, Laurent. A estratgia da forma. In: Intertextualidades. Traduo da

revista Potique nmero 27. Lisboa: Almedina, 1979, pgs.19-45

35

misteriosa de influncias, mas a produo de um novo texto singular


e autnomo a partir do processamento de vrios textos existentes.
Para que haja a intertextualidade, conforme Jenny Laurent,
imprescindvel que ocorra a reescrita da memria textual, o
aproveitamento criativo de elementos anteriormente estruturados, a
mudana na passagem de um texto a outro e a rede de correlaes
entre os textos. Ela pode se manifestar no uso do cdigo ou no
contedo formal, mas nesse caso o analista se defronta com o
problema do grau de explicitao da intertextualidade na obra.
Para Tania Franco Carvalhal, o conceito de intertextualidade
modificou as leituras dos modos de apropriao, de absores e de
transformaes textuais, alterou o entendimento da migrao de
elementos literrios, revertendo as tradicionais noes de fontes e
influncias 19. A noo de influncia, em particular, tornou-se
inoperante, bem como a tese da dependncia dela decorrente, pois a
reflexo terica sobre a intertextualidade atenta para a
funcionalidade e contribuio das fontes na obra que as incorpora ou
na literatura a que esta pertence.
Falar de intertexto implica falar em temas e topoi que se
revitalizam quando passam por um dinmica simultnea de
afastamento da fonte original e transplante para um contexto ou
19

CARVALHAL, Tania Franco Carvalhal. Intertextualidade: a migrao de um

conceito. Via Atlntica, n 9 jun/2006, pgs.125-130.

36

materialidade diferentes. Mais do que uma mera relao casual entre


textos, a intertextualidade estabelece dilogos entre os textos, num
processo em que um texto penetra num outro, inserindo-se na
economia narrativa da obra. Pois alm de a literatura se alimenta,
sobretudo, da prpria literatura, no se pode analisar o texto pelo
texto, sem relacionar os elementos textuais a uma histria literria
que os precede.

Relaes literrias Brasil-Frana

Num estudo que pretende abordar o intertexto de Honor de


Balzac em Lima Barreto, no podemos deixar de tecer algumas
rpidas consideraes sobre as relaes literrias Brasil-Frana.
Estudar a Literatura Brasileira envolve reconhecer que nossas letras
foram transplantadas para o Brasil pelos colonizadores portugueses.
Tambm significa relembrar que ela tributria de outras da tradio
ocidental, a comear pela portuguesa, passando pela italiana e
espanhola, chegando francesa no sculo XVIII. A comear pela
invaso francesa no Rio de Janeiro entre os anos 1555 e 1567,
quando da tentativa de implementao da Frana Antrtica por
Villegaignon.
Nicolas Durand de Villegaignon (15101571) trouxe para o
Brasil um grupo de huguenotes em sua expedio que se estabeleceu

37

no Forte Coligny, numa pequena ilha da Baa da Guanabara. Para


financiar a empreitada desse aventureiro que gastou sua juventude
em expedies militares, Villegaignon buscou apoio no almirante
huguenote Gaspard de Coligny embora fosse catlico romano. A
expedio de Villegaignon partiu com um grupo heterogneo e
explosivo de 80 homens recrutados entre huguenotes da Frana e
Genebra (incluindo pastores solicitados a Joo Calvino) e catlicos
das prises de Paris, Rouen e outras cidades. No entanto, Villegaignon
traiu os huguenotes que vieram para o Brasil, coibindo e condenando
o protestantismo como heresia, expulsando quase todos os colonos
reformados da ilha e assassinando os que no foram para o
continente 20.
Essa perseguio religiosa interna aliada m administrao de
Villegaignon (como abusos de autoridade e racionamento de
alimentos) virtualmente extinguiu a colnia francesa no Brasil.
Portugal s comeou sua reao invaso franco-americana em
1563, com o envio do governador-geral Mem de S (junto com o
sobrinho Estcio), a aliana militar dos S com a tribo indgena dos
20

O relato da histria dos mrtires huguenotes no Brasil encontra-se no livro

CRESPINI, Jean. A Tragdia da Guanabara: a histria dos primeiros mrtires do


cristianismo no Brasil. trad. de Domingos Ribeiro. 1.ed. So Paulo: Cultura Crist,
2007. A obra foi traduzida em portugus em 1917 a partir de On the Church of the
Believers in the Country of Brazil, part of Austral America: Its Affliction and
Dispersion, por sua vez um captulo traduzido do livro de Jean Crespin: lHistoire
des Martyres, originalmente publicado em 1564.

38

Teminins (do Esprito Santo) e o recrutamento de ndios pelos


padres jesutas Nbrega e Anchieta. Graas unio dessas foras,
Portugal conseguiu finalmente expulsar os franceses do Rio de Janeiro
em 1567 pouco depois da fundao da cidade por Estcio de S.
Para a histria literria, interessam-nos alguns dados que
envolvem as circunstncias desse evento histrico importante nas
relaes culturais entre os dois pases. Um indgena do litoral do Rio
de Janeiro que serviu de intrprete aos franceses foi com Villegaignon
aps a expulso dos invasores para a Frana, onde foi contratado
como secretrio de Michel de Montaigne. Ele teria inspirado o texto
Dos Canibais, presente nos Essais 21 (Livro Primeiro, captulo XXXI) e
que influenciou os filsofos do Iluminismo, especialmente Rousseau
ao criar o mito do bom selvagem.
Tambm merece considerao o Auto de S. Sebastio, de Jos
de Anchieta, uma das formas encontradas pelos jesutas para
catequizar os ndios e recrut-los para a causa portuguesa. A pea se
passa na cidade fictcia de Vitria, cuja relquia do santo padroeiro
fica merc de vrios inimigos como protestantes, os demnios
Satans e Lcifer e a falta de f do povo de Vitria. Os invasores da
Frana Antrtica aparecem em duas passagens da pea: quando se

21

Durante muito tempo tive a meu lado um homem que havia permanecido dez ou

12 anos naquele outro mundo descoberto neste sculo, no lugar em que tomou p
Villegaignon e a que deu o nome de Frana Antrtica...

39

pede a proteo de So Sebastio contra os hereges franceses 22 e


num monlogo em que Anchieta simula o discurso de um protestante
desdenhando do culto catlico aos mrtires. Um discurso irnico, j
que os padres Jos de Anchieta e Manuel da Nbrega (aps obterem
xito na derrota dos franceses) convenceram o Governador-Geral
Mem de S a prender e eliminar como herege Jacques Le Balleur.
Esse huguenote fugira para So Vicente, ficou encarcerado por vrios
anos em Salvador e finalmente foi enforcado quando os ltimos
franceses foram expulsos pelos portugueses. Embora alguns
estudiosos neguem a verso, documentos histricos apontam que o
padre Anchieta teria matado o huguenote com as prprias mos
diante da hesitao do carrasco.

22

Com tais mortes merecestes

triunfos mui gloriosos


e que vossos fortes ossos
que defender no quisestes,
sejam defensores nossos [...]
O pecado nos d guerra,
em todo tempo e lugar;
e pois quisestes morar
nesta nossa pobre terra,
ajudai-a sem cessar;
porque, cessando o pecar,
cessaro muitos reveses,
com que os hereges franceses
nos podero apertar
e luteranos ingleses.

40

O evento tambm ser aproveitado literariamente por


Gonalves de Magalhes, em seu poema pico A confederao dos
Tamoios (publicado em 1853), tendo como assunto a luta entre os
ndios tamoios e os portugueses durante a invaso francesa em 1555.
Essa tentativa de epopia nacional interessa-nos sobretudo por seu
projeto ideolgico de nacionalismo literrio, viso positiva do indgena
e inclinao rumo Frana. A confederao dos Tamoios faz do ndio
uma figura central, elevando-o categoria de smbolo da
nacionalidade; lembremos tambm que os tamoios eram aliados dos
franceses na luta contra Portugal, o que demonstra o carter
antilusitano e francfilo da pea.
O poema pico de Gonalves de Magalhes mostra que, embora
expulsos da colnia americana, os franceses no deixaram de
invadir o imaginrio brasileiro na cultura e na literatura. Segundo
Gilberto Pinheiro Passos 23, tal processo faz parte de uma irradiao
cultural que marcou o Ocidente especialmente a partir do sculo XVII.
Nessa poca, a Frana atinge um dos momentos mais grandiosos de
sua histria, graas confluncia de um Estado centralizado e
prspero sob Lus XIV, de uma corte glorificada por artistas em volta
do rei e da consolidao da Academia Francesa. A esses fatores
23

PASSOS, Gilberto Pinheiro. O Napoleo de Botafogo: presena francesa em

Quincas Borba de Machado de Assis. So Paulo: Anablume, 2000. (Parcour; 11). As


informaces neste e nos prximos trs pargrafos foram extradas do captulo
Panorama Cultural Franco-Brasileiro, pgs. 15-30.

41

soma-se a hegemonia crescente de Paris como centro cultural, a


atrao das elites europeias vidas em partilhar do gosto e cultura
glicos e o afrancesamento de diversas regies provocado pela
emigrao protestante aps a revogao do dito de Nantes.
O mundo luso-brasileiro no fugia regra geral do Ocidente. A
repercusso cultural da Frana em Portugal receber um estmulo
adicional devido conscincia do atraso na vida portuguesa, que
conduz ao envio de bolsistas a buscar treinamento no reino dos
francos na poca de D. Joo V e contratao de artistas e
profissionais franceses para obras de modernizao no reino lusitano.
No caso do Brasil, a irradiao cultural francesa em nosso pas,
segundo Passos, chega ao pas por trs vias principais. As mais
bvias so por meio dos filhos das famlias abastadas que fazem seus
estudos em Paris, Montpellier ou mesmo em Coimbra, onde entram
em contato com a cultura e os ideais glicos; e tambm graas elite
portuguesa que veio para a colnia americana tanto para os cargos
pblicos coloniais quanto para acompanhar a fuga da famlia real
beira da invaso napolenica. A terceira e no menos importante foi a
fora dos livros: quer por numerosas obras em bibliotecas pblicas e
privadas que burlavam a censura, quer pelo comrcio de livros
importados na lngua original ou em traduo portuguesa aps a

42

abertura dos portos em 1808 e a instalao de livreiros no Rio de


Janeiro.
Que a Frana, desde o Romantismo, foi o ponto principal de
referncia para os escritores brasileiros um dado sobejamente
conhecido, mas importante rememorar as razes dessa influncia.
Aps a Independncia, houve a necessidade de buscar-se um
referencial poltico para fugir do perigo do Absolutismo, e os autores
do Hexgono saciaram essa demanda. Junte-se a isso a moda
portuguesa, trazida com a vinda da famlia real, de ler romances e
poetas franceses. O campo filosfico tambm contribuiu nesse
sentido, com a procura das classes dominantes pelas teses do
ecletismo de Cousin e do positivismo de Comte que tanto vo
sustentar a monarquia quanto preparar a Repblica. Mas voltemos
literatura.
medida que se aproxima e se consolida a Independncia,
ocorre uma troca de influncias literrias, com Portugal perdendo
lugar para a Frana em nossas letras. Deve ser mencionado, nesse
contexto de relaes culturais entre os dois pases, o pioneiro na
elaborao de um resumo de literatura brasileira parte da
portuguesa: o francs Ferdinad Dennis (1798-1890), que elaborou
um quadro histrico de nossas letras e preceituou conselhos seguidos
pelos nossos romnticos. Em seu Resum de lHistoire Littraire du

43

Brsil (1826)24 , Ferdinad Dennis trata do nosso processo literrio


como um todo orgnico e desperta tendncias de insubmisso e
nacionalismo literrios para criar uma tendncia brasileirizante em
nossas letras. Tal criao deveria passar, segundo ele, pela
explorao e aprofundamento da natureza americana e do carter
indgena. Ainda no Romantismo, merece destaque a estada dos
nossos primeiros romnticos na Frana, onde publicam em 1836 a
revista Niteri e o livro Suspiros Poticos e Saudades, de Gonalves
de Magalhes.
Dessa poca at a virada do sculo XIX, a presena dos autores
glicos em nossas letras ser constante, desde a simples epgrafe de
poetas franceses aos modelos de Chateaubriand e Dumas na prosa
romntica, das sugestes ficcionais de Balzac e Zola no realismo e
naturalismo inspirao potica de Victor Hugo, Verlaine e Baudelaire
na poesia romntica, parnasiana e simbolista. Segundo dados de um
levantamento feito por Helena Bonito Couto Pereira 25 sobre nomes de
autores franceses mencionados na historiografia literria brasileira

24

DENNIS, Ferdinand. Resumo da Histria Literria do Brasil. trad. de Guilhermino

Cesar. IN: CESAR, Guilhermino (org.) Histria e Critica do Romantismo. vol. 1:


a contribuio europia, critica e historiografia literria. Rio de Janeiro: LTC; So
Paulo: Edusp, 1978. (Biblioteca Universitria de Literatura Brasileira: srie A:
ensaio, critica, historiografia literria; vol. 5), pgs. 35-41.
25

PEREIRA, Helena Bonito Couto. A Frana e a historiografia literria brasileira. IN:

________________________ e ATIK, Maria Luiza Guarnieri. Intermediaes


literrias: Brasil-Frana. So Paulo: Scortecci, 2005.

44

(em onze obras publicadas de 1888 a 1987), encontramos nada


menos que 262 nomes de escritores, entre romancistas, poetas,
dramaturgos e crticos26, numa contribuio superior de qualquer
outra literatura estrangeira de forma direta ou indireta para as letras
nacionais. No toa, Jos de Alencar registrou o seguinte em uma
passagem do romance Sonhos dOuro sobre esse fenmeno em terras
brasileiras: A literatura francesa nos invadiu; e por algum tempo foi
nosso nico fornecedor de idias. Das outras apenas conhecamos as
obras-primas, os grandes poetas27.
No podemos esquecer, contudo, o contexto histrico e a
assimetria nas relaes Frana-Brasil. Segundo Lea Mara Valezi
Staut 28, tal interao continha velhos mitos que se perpetuaram entre
os dois pases desde os sculos da colonizao. Por um lado, o nosso
pas visto como um lugar extico e inquietante: a terra ednica ou
paraso perdido; por outro, encaramos a Frana como terra
irradiadora das idias libertrias, uma sada da nossa situao
colonial e insero no mundo das naes civilizadas. Igualmente, a

26

Idem, pg. 23.

27

ALENCAR, Jos de. Sonhos dOuro. So Paulo: Melhoramentos, s/d. pg. 91.

28

STAUT, Lea Mara Valezi. A Recepo da Obra Machadiana na Frana: um

estudo crtico-estlistico das tradues de quatro romances. So Paulo,


1991. Tese de Doutorado em Lngua e Literatura Francesa. Departamento de Letras
Modernas Doutorado em Lngua e Literatura Francesa, Universidade de So
Paulo, pgs. 8-16.

45

Frana se volta para a Amrica Latina nesse momento para ajudar os


povos latinos e catlicos recm-libertos, contrabalanando a
crescente hegemonia dos Estados Unidos protestantes e anglosaxes. Assim, os povos da Amrica Latina (a expresso surge neste
contexto 29) viram na Frana 30 uma contrapartida que os permitiriam
sair da tutela da Pennsula Ibrica e conseguir status internacional.
Esta parceria se fortalecer com a presena de intelectuais franceses
no Brasil e uma exposio brasileira na Frana na virada do sculo,
mas entrar em declnio no perodo entre-guerras quando a Frana
perde espao e poder internacional em favor dos Estados Unidos.
Quem melhor analisou esta guinada cultural em seu momento
de transio foi Mrio de Andrade 31. Segundo ele, o esprito francs
29

Usado pela primeira vez por Michel Chevalier em 1836, durante misso

diplomtica francesa feita aos Estados Unidos e ao Mxico, o termo Amrica Latina
teria sido cunhado pelo imperador Napoleo III. Ele citou a regio e a Indochina
como reas de expanso da Frana na metade do sculo XIX. Na mesma poca foi
criado o conceito de Europa Latina, que englobaria as regies com predomnio de
lnguas romnicas.
30

A Amrica Latina, essa inveno de Napoleo III, destinada a apoiar os franceses

contra o poderio germnico e anglo-saxo, engendraria, paradoxalmente, uma


ideologia latino-americanista que ora seria simpatizante do modelo francs de
latinidade, ora cioso de sua autonomia, com tendncias xenfobas e portanto
galfobas.
PERRONE-MOISS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. IN: Vira e
Mexe, Nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literrio. So Paulo: Companhia
das Letras, 2007, pg. 66.
31

ANDRADE, Mario de. Decadncia da Influncia Francesa no Brasil. IN:

_____________. Vida Literria. So Paulo: HUCITEC/Edusp, 1993, pgs.3-5.

46

dominou colonialmente o Brasil na segunda metade do sculo XIX,


mas houve uma diminuio dessa influncia em nosso pas. Isso
ocorreu por causa do engrandecimento da nossa nacionalidade, por
meio de uma cultura incipiente, mas prpria. E tambm pelo
desenvolvimento da nossa conscincia espiritual, devido s correntes
imigratrias alems, japonesas e italianas, a presena de grandes
empresas anglo-americanas e a ampliao da elite intelectual,
acadmica e artstica nos grandes centros urbanos. Segundo o
escritor modernista, apesar de a influncia francesa opor-se ao nosso
esprito nacional, ela seria a que menos exige do brasileiro a
desistncia de si mesmo. O mesmo no aconteceria com a
influncia espiritual americana, admirvel sim, mas prejudicialssima,
nas palavras de Mrio de Andrade.

47

GRAFIA UTILIZADA

Para o texto principal desta tese, seguimos as normas do Acordo


Ortogrfico da Lngua Portuguesa (1990), como se poder ver nas
novas regras de acentuao de paroxtonas e formas verbais e de
hifenizao em palavras compostas. Mantemos, contudo, a grafia
anterior ao novo acordo quando citamos autores brasileiros, conforme
o Formulrio Ortogrfico de 1943, com as alteraes realizadas pela
Lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971, outrora vigentes na variante
americana do portugus. Nas poucas vezes em que citamos autores
portugueses, indicamos, em nota de rodap, o respeito s normas do
portugus europeu segundo o Acordo Ortogrfico de 1945,
ligeiramente alterado pelo Decreto-Lei n 32, de 6 de Fevereiro de
1973, em vigor antes do Acordo de 1990.

48

1. UMA OUTRA CHAVE PARA ISAAS CAMINHA

Um terrvel estigma acompanha a recepo crtica do romance


de estreia do escritor pr-modernista Lima Barreto (1881-1922).
Como bem registra Alfredo Bosi, Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha1 tem sido lido pela crtica literria desde a sua primeira
edio em 1909 como um simples roman clef2 , isto , um romance
baseado em fatos reais, cuja chave revelaria a identificao dos
personagens e fatos narrados com seus correspondentes na realidade
extraliterria.
Embora as circunstncias de elaborao e a histria da
recepo do romance forneam algum embasamento para essa
leitura tradicional, tal abordagem no explica satisfatoriamente a rede
de conexes que empresta nfases, temas e perfis de diversos livros
da literatura francesa e ocidental, especialmente do romance
balzaquiano Illusions Perdues. No nossa inteno fazer um acerto
de contas com a fortuna barretiana, mas surpreendente a falta de
ateno dos crticos diante das lacunas dessa leitura no romance.
Neste captulo, apresentamos um breve histrico da recepo inicial
1

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:


Publifolha, 1997. (Biblioteca Folha; 18).
2

Conforme BOSI, Alfredo. Histria concisa da literatura brasileira. 44.ed. So

Paulo: Cultrix, 2007, pg. 316.

49

do romance do pr-modernista, examinamos a presena do pacto


autobiogrfico em Lima Barreto e de como a existncia de chaves (tal
qual em Illusions Perdues) no precisa estigmatizar uma obra
literria.

1.1. A persistncia de um clich

Para entendermos a persistncia do roman clef como lugarcomum da crtica literria diante do romance de estreia de Lima
Barreto, precisamos rememorar a recepo inicial de Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha. Os crticos literrios que primeiro
abordaram o livro foram os pioneiros a analis-lo a partir do estigma
do romance de chave isto , um texto no qual os protagonistas e os
lugares remetem a pessoas e a lugares reais cujos nomes so
codificados na obra.
Em resenha 3 para o jornal A Notcia, de 15 de dezembro de
1909, Medeiros de Albuquerque elogiava a tcnica do flashback usada
na obra, mas condenava o livro como um mau romance porque da
parte inferior dos roman clef (sic), com lamentveis aluses e
descrio de pessoas conhecidas. Alcides Maia, no Dirio de Notcias
3

As declaraes transcritas sobre a recepo crtica inicial de Recordaes do

Escrivo Isaas Caminha so apresentadas por Francisco de Assis Barbosa no


captulo IX, "Julgamentos" IN: BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima
Barreto. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1964, pgs. 172-184.

50

do dia seguinte, 16 de dezembro de 1909, escreveu que Recordaes


do Escrivo Isaas Caminha no era um romance, mas uma
verdadeira crnica ntima de vingana, dirio atormentado de dios
e lbum de fotografias, numa penosa impresso de um desabafo.
Ironia do destino: foi Medeiros de Albuquerque quem havia sugerido
a Lima Barreto, durante a elaborao do livro, tranformar o
protagonista de garom de caf (proposta original do autor) em
funcionrio de jornal, primeiro como contnuo e depois como
reprter!4 Em carta privada a Lima Barreto, de 5 de maro de 1910, o
crtico literrio Jos Verssimo escreveu que o romance tinha um
defeito grave, julgo-o ao menos, e para o qual chamo sua ateno, o
seu excessivo personalismo. pessoalssimo e, o que pior, sente-se
demais que o 5.
Como podemos perceber, o clich de roman clef na anlise de
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha nasce junto com a recepo
crtica da obra. Se acrescentarmos presena codificada de pessoas
contemporneas a passagem do autor pelo jornalismo e sua condio
de mulato vtima de racismo, a crtica disporia de trs elementos que
provariam de forma inquestionvel os traos autobiogrficos do
4

A informao consta em BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto.

3.ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1964, pg. 177.


5

Carta de Jos Verssimo a Lima Barreto. IN: LIMA BARRETO, Afonso Henrique.

Correspondncia: ativa e passiva. Tomo I. pref. de B. Quadros. 2.ed. So Paulo,


Brasiliense, 1961. (Obras de Lima Barreto; XVI), pg. 204.

51

romance de estreia de Lima Barreto. Reproduzindo e reforando esse


lugar comum, Alfredo Bosi aponta mesmo sessenta anos depois,
em 1970 "uma nota autobiogrfica ilhada e exasperada nos
primeiros captulos, uma verdeira "crnica sentimental da
adolescncia que dilui-se ao longo dos captulos seguintes e passa a
roman clef, com todas as limitaes do gnero 6.
Embora negativas, as trs crticas iniciais foram respeitosas,
alm de importantes num momento de sucesso da obra junto ao
pblico e de ostracismo do autor junto imprensa. Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha chegou ao Rio de Janeiro, aps ter sido
editado em Lisboa 7, em dezembro de 1909; em fevereiro de 1910 j
no havia mais nenhum exemplar que no tivesse sido vendido na
cidade. Mas tal leitura levanta problemas srios devido ao

BOSI, Alfredo. Histria concisa da literatura brasileira. 44.ed. So Paulo:

Cultrix, 2007, pg. 358. verdade que Alfredo Bosi, nessa obra, assume uma
posio discursiva mais de historiador do que de crtico da literatura brasileira,
registrando meramente os juzos de valor que se construram em torno do escritor
pr-modernista. Entretanto, ao atuar como crtico literrio propriamente dito, ele
toma essa tendncia como ponto de partida, sem nenhum questionamento ou
ressalva, apenas avanando no caminho do biografismo, conforme podemos ver em
Figuras do eu nas recordaes de Isaas Caminha. IN: ____________. Literatura
e resistncia. Companhia das Letras: So Paulo, 2008, pgs. 186-208.
7

Grosso modo, Lima Barreto recorre a um editor lisboeta porque a publicao e

edio de livros no Rio de Janeiro dos anos 1910 privilegiava os nomes j


consagrados ou autores novos apadrinhados por escritores e/ou jornalistas
influentes no campo literrio.

52

fundamento mnimo em que se embasam e ao menosprezo de


pressupostos inegociveis da literatura.
O primeiro deles bem sintetizado e expresso nas palavras de
Benedito Nunes: A obra mantm uma diferena em relao ao real,
que capta por semelhana, sem reduplic-lo, imit-lo ou naturalizlo 8. Ou seja, a fico literria, por mais realista que seja, no um
retrato objetivo do mundo, mas uma viso subjetiva do autor sobre o
mundo; no o todo, mas um recorte dele; no figura da realidade
imediata transposta para o relato literrio, mas a transfigurao de
uma realidade maior e mais abrangente que aquela mediatizada pelo
escritor. Sobre tal caracterstica da literatura, importante citar
tambm Vtor Manuel de Aguiar e Silva:

Tanto na literatura fantstica que, sob certo aspecto, pode


ser considerada como a quinta-essncia da literatura9

como na literatura dita realista, existe sempre uma relao


semntica com o mundo real, matriz primignia e mediata da
obra literria. A linguagem literria, todavia, no referencia
directamente esse mundo: ela institui uma objectualidade

NUNES, Benedito. Prolegmenos a uma Crtica da Razo Esttica. IN: LIMA, Luiz

Costa. Mimesis e Modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal,


1980. (Biblioteca de Teoria e Crtica Literria; 1), pg. XI.
9

Vtor Manuel de Aguiar e Silva remete o leitor nesse ponto para TODOROV,

Tzvetan. Introduction la Littrature Fantastique. Paris: ditions du Seuil,


1970, pg. 176.

53
peculiar, um heterocosmo com estrutura e funes
especficas, onde o ser se funde com o no-ser, o existente
com o inexistente, o possvel com o impossvel, e atravs
desse heterocosmo, deste como se10, que se constitui e
manifesta essa correlao semntica. Uma correlao que
tanto pode revestir uma modalidade metonmica como uma
modalidade metafrica, que tanto pode apresentar-se sob a
espcie de uma fidelidade verista como sob a espcie de uma
deformao grotesca ou de uma transfigurao
desrealizante 11.

Entretanto, no possvel analisar honestamente Recordaes


do Escrivo Isaas Caminha sem fazer uma concesso: como pouca
gente letra da no Brasil hoje ignora, declara o bigrafo Francisco de
Assis Barbosa, o romance de Lima Barreto uma stira ao Correio
da Manh, escolhido por sua representatividade e sucesso junto ao
pblico, e que atingia, em cheio, o quartel-general do mais poderoso
jornal da poca 12. Tendo atuado na imprensa estudantil, comercial e
10

A arte e no , bastante verdadeira para se tornar o caminho, demasiado irreal

para se transformar em obstculo. A arte um como se. BLANCHOT, Maurice. La


Part du Feu. Paris: Galimard, 1949, pg. 26. (Citado em nota de rodap no
original.)
11

SILVA, Vtor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3.ed. Coimbra: Almedina,

1973, pgs. 44-45. Grafia original mantida segundo a norma do portugus


europeu, em conformidade com o Acordo Ortogrfico de 1945, ligeiramente
alterado pelo Decreto-Lei n 32, de 6 de fevereiro de 1973, e vigente em Portugal
antes do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (1990).
12

Idem, pg.168.

54

alternativa, o Correio da Manh foi sua segunda tentativa no


jornalismo profissional, no qual permaneceu cerca de dois anos
(1903-1905). No h registros precisos se ele foi simples colaborador
do jornal ou redator efetivo. So certas apenas as 22 reportagens,
publicadas de 28 de abril a 3 de junho de 1905 no jornal, que viria a
escrever em torno das escavaes dos subterrneos do Morro do
Castelo 13 feitas na abertura da Avenida Central no Rio de Janeiro.
Existem, nesse terreno de incertezas e imprecises, pelo menos
duas chaves possveis para a obra, conforme apontadas pelos
jornalistas Antnio Noronha dos Santos e por Gondim Fonseca em
dois diferentes artigos de jornal no ano de 1936. Embora isso fosse
um assunto de conversa nas rodas de escritores e jornalistas por
muitas dcadas, Lima Barreto nunca fez questo de revelar os nomes
correspondentes, mesmo quando jornais concorrentes do Correio da
Manh lhe ofereceram grandes somas de dinheiro para tal, chegando
a registrar no Dirio ntimo o esforo de ocultar ao mximo os
detalhes ou nomes que pudessem provocar identificao imediata

13

Resgatadas e publicadas em LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Os Subterrneos

do Morro do Castelo. 3.ed. introd. de Beatriz Rezende e posfcio de Carlito


Azevedo. Rio de Janeiro: Dantes, 1999 (Coleo Babel).

55

durante a elaborao do romance 14. E o nico lapso cometido nesse


sentido, percebido aps a publicao da obra, sofreu correo na
segunda edio: a correspondncia explcita entre os cronistas Floc
(do fictcio O Globo) e o colega de profisso Joo Itibir da Cunha (o
Jic, do real Correio da Manh)15. Vrios contemporneos do autor
retratados na obra caram no esquecimento ou insignificncia com o
tempo. Alguns nomes da inteligentsia brasileira, contudo,
permaneceram na notoriedade at o sculo XXI e devem ser
mencionados, a ttulo de curiosidade: o personagem Veiga Filho seria
Coelho Neto; Raul Gusmo, Joo do Rio; e o Dr. Franco de Andrade,
Afrnio Peixoto16.
Tais dados, em nosso julgamento, foram superestimados de
maneira desproporcional pela crtica literria, menosprezando outras
chaves para dizer de forma provocativa mais significativas
encontradas no livro. Tal reducionismo da obra barretiana pode ser

14

Em uma nota sem data de 1908, entre 27 de outubro e 1 de novembro, Lima

Barreto registra: Onde est: Figueiredo Pimentel, no Binculo, etc. (Cap. X ou


XI), escrever: Florncio Silva, no Despacho, etc. Adiante, substituir Figueiredo
Pimentel por Florncio Silva. IN: LIMA BARRETO. Dirio ntimo: memrias. pref.
de Gilberto Freyre. So Paulo: Brasiliense, 1956, pgs. 136-137.
15

BARBOSA, Francisco de Assis. Idem, pg. 170.

16

A quem interessar o paralelo completo entre os jornalistas do Correio da Manh e

os personagens de O Globo em REIC, pode-se recorrer s chaves divulgadas em


BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. 3.ed. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1964, pginas 174-175.

56

facilmente refutado, como veremos a seguir, pela compreenso da


natureza do romance e dos personagens, pelo conceito de pacto
autobiogrfico de Phillipe Lejeune, bem como pela resposta do
prprio Lima Barreto sobre esse assunto.

1.2. Pacto romanesco, no autobiogrfico

De acordo com Yves Reuter17, o surgimento do romance


moderno como o conhecemos (obra escrita em prosa, de extenso
maior que as demais narrativas, em lngua verncula) est vinculado
ao desenvolvimento e formao das lnguas modernas europeias no
fim da Idade Mdia. Antes desse momento inicial, salvo algumas
excees, a personagem literria caracterizava-se por seus limites e
convenes. As mesmas personagens voltavam de texto em texto,
representadas como tipos de comunidades ou castas, com traos
fsicos recorrentes, pouca descrio verbal e trajetrias e aventuras
narrativas semelhantes.
Com o romance moderno, porm, passa a surgir uma
complexidade e individualizao maior dos personagens. Yves Reuter
aponta essa tendncia como uma evoluo clara entre o final da
17

REUTER, Yves. Introduo Anlise do Romance. trad. de ngela Bergamini

et alii. So Paulo: Martins Fontes: 1995. (Srie Leitura e Crtica), pgs. 5-12.

57

Idade Mdia e o comeo e consolidao do sculo XX, em que as


personagens diversificam-se socialmente e desenvolvem-se atravs
da textualizao de traos fsicos variados de uma espessura
psicolgica qual se acrescenta a possibilidade de transformar-se
entre o comeo e o final do romance 18.
Para nossa discusso no podemos esquecer um dado
fundamental da literatura, expresso por Antonio Candido: o
personagem uma criao da fantasia que, por meio da
verossimilhana no romance, comunica a impresso de verdade
existencial. Embora haja afinidades com o ser vivo, os entes da fico
guardam diferenas importantes em relao quele. Em suma: a
personagem um ser fictcio 19. Essa distino (to bvia e to
esquecida) entre pessoas reais e personagens da fico importante,
pois um primeiro argumento para destruir o juzo de valor de que
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha seja um romance menor por
ter se inspirado na trajetria do escritor junto aos profissionais do
Correio da Manh.
Philipe Lejeune 20

descreve a autobiografia como um relato

retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria

18

Idem.

19

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio (et alii).

A Personagem de Fico. So Paulo: Perspectiva, 2007, p. 51-80.


20

LEJEUNE, Phillipe. Le Pacte Autobiographique. Paris: Seuil, 1975.

58

existncia, quando enfoca sua vida individual, em particular a histria


de sua personalidade. Toda obra, portanto, que preencha
simultaneamente as condies dessas quatro categorias (a saber:
forma da linguagem, o tema tratado, situao do autor, posio do
narrador) uma autobiografia. H, porm, gneros como o romance
pessoal, o poema autobiogrfico, o dirio ntimo e o autorretrato ou
ensaio que constituem gneros vizinhos autobiografia, por tais
formas conterem sees biogrficas proporcional e hierarquicamente
transitrias.
Para que haja a autobiografia, e o pacto autobiogrfico no
sentido estrito do termo, deve haver perfeita identidade entre o
narrador e o personagem principal no relato em terceira pessoa, de
acordo com Philipe Lejeune. Dito de outra maneira, a autobiografia se
constitui pela dupla equao: se autor = narrador e autor =
personagem, ento narrador = personagem, mesmo que o narrador
fique implcito. Quando os textos no comportam essa dupla equao,
mas o leitor tem razes suficientes para suspeitar que a histria
vivida pelo personagem a mesma do autor, o texto produzido no
autobiografia, mas romance autobiogrfico. O leitor pode questionar
a veracidade desse pacto romanesco (um contrato tcito entre
autor e leitor de que a obra fico), mas nunca a sua identidade.
V-se a importncia de tais contratos (j que uma fico

59

autobiogrfica pode encontrar-se exata e a autobiografia pode ser


inexata) na atitude do leitor:

Si l'identit n'est pas afirme (cas de la fiction), le lecteur


cherchera tablir des ressemblances, malgr l'auteur; si
elle est afirme (cas de l'autobiographie), il aura tendance
vouloir chercher les diffrences (erreurs, dformations, etc.).
En face d'un rcit d'aspect autobiographique, le lecteur a
souvent tendance se prendre pour un limier, c'est--dire
chercher les ruptures du contrat (quel que soit le contrat).
C'est de l qu'est n le mythe du roman 'plus vrai' que
l'autobiographie : on trouve toujours plus et plus profond ce
qu'on a cru dcouvrir travers le texte, malgr l'auteur.21

O que podemos depreender do texto de Philipe Lejeune para o


nosso objeto de estudo : o juzo de valor segundo o qual
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha seria um livro de qualidade
literria questionvel por ser um roman clef ou um relato
fortemente autobiogrfico (no importa a expresso utilizada) revela
o sentimento de ceticismo por parte do leitor e, no nosso caso,
tambm do crtico em romper o pacto de leitura revelia de Lima
Barreto. Tais leitores e crticos buscam a demarcao milimtrica

21

Idem, pg. 27.

60

entre fico e realidade, procurando enxergar nas pessoas e fatos


retratados no livro tudo o que o autor no disse ou preferiu no dizer.
Nenhum dos elementos paratextuais fornecidos por Lima
Barreto sugere o pacto autobiogrfico na obra, especialmente o
prefcio includo na segunda edio de 1917 (embora ausente na
primeira edio de 1909, ele estava presente na publicao do
romance na revista Floreal em 1907). Esse seria um argumento a
mais, segundo Carlos Erivany Fantinati22, para combater a categoria
de roman clef. Segundo os clculos do crtico, o prefcio colocaria a
escritura da obra entre 1903-1905, o nascimento do personagem
Isaas Caminha em 1876 e sua passagem pelo fictcio jornal O Globo
entre 1895-1900. Haveria, assim, um conflito de datas entre a
histria interna do romance e o tempo extraliterrio apontado pela
crtica, a saber: os anos que englobam a fundao do jornal Correio
da Manh e a prefeitura de Pereira Passos frente do Rio de Janeiro.
Ainda que o argumento de Carlos Erivany Fantinati seja um tanto
quanto especulativo, ele se acrescenta a outros mais fortes quando
questionamos a abordagem nica do roman clef.

1.3. Chaves em Illusions Perdues

22

Tais argumentos so desenvolvidos no segundo captulo, "Um romance de chave",

da obra FANTINATI, Carlos Erivany. O Profeta e o Escrivo: estudo sobre Lima


Barreto. Assis: Ilpha/ So Paulo: Hucitec, 1978.

61

Num trabalho que pretende estabelecer o dilogo de


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha com Illusions Perdues no
podemos deixar de mencionar que o texto balzaquiano tambm tem
sido frequentemente avaliado como um roman clef, tendo o pblico
e a crtica buscado desde o seu surgimento os possveis modelos
usados por Balzac para compor os personagens. Embora as chaves
variem grandemente, algumas pistas so seguras: Lon Giraud seria
Pierre Leroux; Fulgence Ridal, Merle; Bixiou, Henri Monnier. Camille
Maupin, chamado pelo narrador balzaquiano de illustre hermafrodite
litraire23 seria George Sand, e Lucien de Rubempr teria muito de
Jules Sandeau.
Conforme levantamentos do grupo de pesquisas Hubert de
Phalse, essa ltima identificao que aponta Lucien como sendo
inspirado no antigo secretrio do escritor, Jules Sandeau seria a
especulao mais forte entre os contemporneos de Balzac e a mais
confivel de todas. Jules Sandeau foi, por algum tempo, amante da
romancista que alcanou renome durante o Segundo Imprio, George

23

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick Berthier.

Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 21017), pg. 579.


O epteto aparece anteriormente na pgina 570, sem o qualificativo littraire, em
cuja nota comenta Patrick Berthier: Clin dil malicieux et mocal au modle,
George Sand.

62

Sand. Segundo jornalistas e leitores do sculo XIX, seus amores com


George Sand teriam inspirado os amores de Lucien com Madame de
Bargeton. Em carta a Balzac datada de 21 de janeiro de 1837, Jules
Sandeau ressoa o rumor corrente na Frana desde a publicao do
livro:

Quest ce que les Illusions perdues ? On mcrit de Paris que


cest mon histoire avec la personne que vous savez. Cette
histoire est celle de tout le monde et on a bien pu sy
tromper. Toutefois, on ajoute que chaque page de votre livre
est un jour de ma jeunesse. Deux choses minquitent en
tout ceci. La premire cest que par amiti pour moi vous ne
vous soyez fait trop svre lgard de lautre personne. La
seconde cest quen crivant moi-mme cette heure cette
fatale histoire, je narrive quaprs vous. 24

Especialmente comentadas no ethos intelectual da poca foram


as possveis ligaes entre os homens de letras e artes do romance e
os correspondentes contemporneos, especialmente os jornalistas.

24

CENTRE DE RECHERCHES HUBERT DE PHALSE. Echos et rceptions des

Illusions perdues. IN: Complments au livre la recherche des Illusions


perdues. Paris : Nizet, 2003. Page web du Centre de recherches Hubert de
Phalse Universit Paris III (Sorbonne la Nouvelle). Disponible sur : <http://
www.cavi.univ-paris3.fr/phalese/Balzac/echos.htm>.
APNDICE E.

Accs : 24 aout 2009. VER

63

Segundo Wayne Conner25 , vrios personagens da rica galeria da


segunda parte de Illusions Perdues (Un Grande Homme de Province
Paris) sempre despertaram o interesse de historiadores desejosos
de dceler les influences plus ou moins conscientes qui ont
concourrues la formation de tel personnage, [ainsi que] les milieux
littraires peints par Balzac26. Bastante documentado, o articulista
aponta que o crtico Claude Vignon foi construdo a partir do modelo
do crtico de arte Gustave Planche; o publicista espirituoso Andoche
Finot, embora com traos de mltipla inspirao em seu perfil, a
partir do colaborador de La Revue de Paris e cronista do Sicle
Eugne Guinot, confrade de Balzac na Societ du Cheval Rouge; o
livreiro Doguereau, que examina os manuscritos de Lucien, a partir
do livreiro Alexandre-Nicolas Pigoreau; e o nome da atriz Coralie,
apesar de muito comum no teatro dos 1800, a partir da
mademoiselle Coraly que figura brevemente no Dictionnaire des
comdiens de Lyonnet, com papel numa pea de 1826 em PorteSaint-Martin.
Balzac no s prev essa acusao de chaves em seu romance,
como tambm a menospreza em um dos prefcios de Illusions

25

CONNER, Wayne. "Sur Quelques Personnages d''Un Grande Homme de Province

Paris'". IN: LAnne Balzacienne (ISSN 0084-6473). Paris: Garnier, 1961, pages
185-189.
26

Idem, page 185.

64

Perdues, afirmando que no foi movido por vingana e que o modelo


usado para o quadro pintado por ele pior do que aquele que
aparece no livro:

Qu'on ne croie pas cependant que la passion, un dsir de


vengeance ou quelque sentiment mauvais l'ait inspir dans
l'excution de l'uvre prsente. Il avait le droit de faire des
portraits, il s'est tenu dans les gnralits. Le journalisme
joue d'ailleurs un si grand rle dans l'histoire des murs
contemporains, qu'il aurait peut-tre t tax plus tard de
pusillanimit, s'il avait omis cette scne du grand drame qui
se joue en France. A beaucoup de lecteurs, ce tableau pourra
paratre charg; mais qu'on le sache, tout est d'une ralit
dsesprante, et tout nanmoins a t adouci dans ce livre
dont la porte est d'ailleurs restreinte par la nature du sujet.
Il ne s'agit ici que de l'influence dpravante du journal sur
des mes jeunes et potiques, des difficults qui attendent
les dbutants et qui gisent plus dans l'ordre moral que dans
l'ordre matriel. 27

Em resenha para o peridico LArtiste, de 21 de julho de 1839,


o jornalista Adolphe Dumartin resume a opinio sobre Illusions
Perdues corrente poca de que a segunda parte do livro seria uma
vingana infundada, pois ces honntes gens [os personagens

27

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues, pg. 834.

65

jornalistas do romance] ne vivent que dans limagination du fcond


romancier; ce ne sont que des crations de pure fantaisie. Sil y a du
vrai, lexagration le tue 28. No temos a menor dvida de que a obra
literria de Balzac, bem como a de qualquer escritor, seja fruto da
imaginao; nem de que no haja parcialidade jornalstica na
tentativa dos jornalistas franceses do sculo XIX de se defenderem
das crticas lanadas por Honor de Balzac...
No trazemos esses dados discusso para desenterrar
polmicas a respeito do romancista francs, mas para mostrar que a
presena de chaves ocorre at mesmo no romance balzaquiano. Um
fato que ningum ousaria levantar para diminuir a obra em si ou o
talento de Honor de Balzac, especialmente por sua conhecida
tcnica de mesclar livremente nomes reais e fictcios ao longo da
Comdie Humaine.
Voltando questo das chaves em Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha, essa pista de leitura tem sido superestimada pela
crtica de maneira problemtica, defendendo uma identificao com a
realidade circundante a tal nvel que praticamente invalida a
transfigurao literria da obra. A chave se tornou o fiel da balana, a
agulha da bssola dos crticos: para os mais hostis, concentrados no
aspecto formal, o romance seria ruim meramente por ser clef; para

28

Idem.

66

os mais entusiastas, que resgatam a obra por meio de uma viso


marxista ou sociolgica, ela s no melhor justamente por estar
nessa categoria. Em resumo, ele no visto como literatura digna
desse nome ou como uma obra literria militante ou engajada: tanto
seu valor quanto seu demrito residiriam numa suposta realidade
oculta sob o manto da fico.
A esse respeito, interessante observarmos como o prprio
Lima Barreto respondia aos crticos que insistiam na tecla do roman
clef para elogiar ou criticar seu texto de estreia. Segundo ele,
primeiro: o livro no era um simples lbum de fotografias, mas a
histria de um adolescente pobre em conflito com uma sociedade
excludente. Em segundo lugar, outros (pseudo)romances de sua
poca, como A Esfinge, de Afrnio Peixoto, e O Homem sem Mscara,
de Vencio da Veiga, tambm eram clef, e os crticos elogiaram tais
obras. Terceiro, o gnero no implicaria em nenhuma inferioridade
literria, mas numa forma de literatura militante. Contudo, sua
melhor refutao era a de que, com o passar do tempo ou o
desconhecimento da chave, romans clef como Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha permanecem como uma obra de fico
qualquer, que deve ser julgada pelos seus mritos, no por suas
aluses:

67
Na questo dos personagens h (ouso pensar) uma simples
questo de momento. Caso o livro consiga viver, dentro de
curto prazo ningum mais se lembrar de apontar tal ou qual
pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem.
Concordo que h frases aqui e ali [em Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha], e mesmo certas referncias, que
muito o prejudicam. Ainda questo de momento... (...) a
fora dos romances dessa natureza reside em que as
relaes dos personagens com o modelo no devem ser
encontradas no nome, mas na descrio do tipo, feita pelo
romancista de um s golpe, numa frase. Dessa forma, para
os que conhecem o modelo, a charge artstica, fica clara,
expressiva e fornece-lhes um maldoso regalo; para os que
no o conhecem, recebem o personagem como uma fico
qualquer de um romance qualquer e a obra, em si, nada
sofre. 29

Moacyr Scliar, aps citar a opinio de dois crticos que


defendem a tese de inferioridade do roman clef, apresenta o
mesmo raciocnio de Lima Barreto:

Nos dois casos, est construdo o mesmo erro: confunde o


objeto emprico, ao nvel do real concreto, que o jornal
Correio da Manh, com a criao literria estabelecida por
Lima Barreto, ao representar literalmente o jornal O Globo,

29

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto, pgs. 171 e 177.

68
como personagem coletivo da obra Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha. No compreender esta diferena crer como
verdade toda e qualquer verso estabelecida por relatos de
cunho mimtico, com forte nfase na verossimilhana
realista, ou neorrealista, ou ainda naturalista. (...) Para
apresentar as coisas que poderiam suceder30 , isto , para o
campo da literatura ficcional da narrativa imaginria,
desprezvel saber-se o que o Correio da Manh criticou com
veemncia o autoritarismo governamental que submeteu a
populao vacinao obrigatria, em 1904. Do mesmo
modo, saber-se que o ttulo O Globo existe, desde 1876,
quando Quintino Bocaiva cria, de fato, o jornal
homnimo. 31

Se comparamos a trajetria do autor Lima Barreto e do


personagem-narrador Isaas Caminha, percebemos que a crtica
biografista no se sustenta. H episdios, evidentemente, inspirados
na realidade pessoal e social vivida pelo autor a saber, as situaes

30

O grifo nesse ponto da citao de Moacyr Scliar. Ele cita ipsis literis a tese

aristotlica, encontrada n'A Potica, da diferena entre o historiador e o poeta.


Aquele registra as coisas que sucederam e este, as coisas que poderiam suceder.
31

SCLIAR, Moacyr. Jornalismo e Literatura: a fronteira conflagrada. IN:

Continente Sul Sur. Revista do Instituto Estadual do Livro/RS. n. 2, novembro/


1996, pgs. 185-188.

69

de racismo 32, a passagem pela imprensa e o flerte com o positivismo.


Mas no h uma correspondncia autor = narrador, conforme descrita
por Phillipe Lejeune, para que se busque o pacto autobiogrfico no
romance de estreia. Como dissemos na introduo, Lima Barreto no
era filho de padre, no nasceu fora da cidade do Rio de Janeiro, no
tentou estudar medicina, no chegou a ser casado nem pai como
Isaas Caminha. Concordamos plenamente com o desabafo que o
autor fez a um amigo sobre a recepo de Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha: Ningum quis ver no livro nada mais que um
simples romance cl, destinado a atacar tais e quais pessoas; os
que gostaram foi por isso, os que no gostaram foi por isso tambm.
H alguma coisa a mais do que isso no meu modesto volume33.
Vrios desses elementos adicionais o pai sacerdote que
enfatiza o mito de Napoleo, o rapaz com o nome de profeta (Isaas)
que denuncia injustias sociais, a professora com o nome da rainha
humilde (Ester) que salva seu povo, o jovem provinciano que busca

32

O problema do preconceito racial um tema recorrente na obra do escritor,

especialmente no romance Clara dos Anjos e em contos como O Filho da Gabriela,


sem refletir necessariamente traos autobiogrficos de Lima Barreto. A esse
respeito, pode-se verificar: LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Clara dos Anjos:
romance. pref. de Srgio Buarque de Holanda. So Paulo: Brasiliense, 1956 (Obras
de Lima Barreto; V) e ___________________________. Contos Reunidos. org.
de Osias Silas Ferraz. Belo Horizonte: Crislida, 2005.
33

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Prosa seleta. org. de Eliane Vasconcelos. Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, pg. 22.

70

vencer na Capital, o jornalista romeno com um projeto para o Brasil,


o chefe de jornal com sobrenome francs, a confisso de leituras
estrangeiras como norte literrio, o jornaleiro morto que se torna chef
francs so explicados satisfatoriamente apenas pelo intertexto.
Todos esses dados revelam no um transplante mecnico de
experincias pessoais, mas aproveitamentos externos na economia
narrativa de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, que o inserem
dentro da tradio literria, fazendo-o dialogar com diversas
referncias da literatura francesa e ocidental como veremos no
prximo captulo. inegvel que haja correspondentes extraliterrios
no romance barretiano; insistir nessa leitura como a nica ou a
principal para sua anlise, porm, empobrecer a riqueza de
significados presentes na obra. As chaves so um degrau importante,
centenrio at, para adentrar o romance barretiano de estreia; mas
preciso subir o prximo degrau, usar uma outra chave o intertexto
para explorarmos bem a narrativa de Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha. Este cicerone o convida a avanarmos na escada,
abrirmos a porta e prosseguirmos em nossa visita guiada.

71

2. POR UMA LEITURA INTERTEXTUAL

Se o pblico contemporneo ao lanamento do romance


machadiano Quincas Borba ao contrrio do de hoje, estava em
condies de perceber boa parte de tais relaes [as contribuies e
referncias francesas presentes na obra], executando, de maneira
mais cabal e profcua, a funo de parceiro do narrador 1, o mesmo
no se pode dizer dos leitores e crticos barretianos nos ltimos cem
anos. Em Recordaes do Escrivo Isaas Caminha encontramos uma
rede de conexes que empresta nfases, temas e perfis de diversos
livros das literaturas francesa, portuguesa e russa, sobressaindo-se o
romance Illusions Perdues, do francs Honor de Balzac (1799-1850).
Neste captulo apresentamos o modelo balzaquiano e esses outros
emprstimos intertextuais presentes no romance barretiano.

2.1. Preliminares de nossa tradio

Antes de explorarmos o dilogo de Lima Barreto com Honor de


Balzac, precisamos destacar que Recordaes do Escrivo Isaas

PASSOS, Gilberto Pinheiro. O Napoleo de Botafogo: presena francesa em

Quincas Borba de Machado de Assis. So Paulo: Anablume, 2000. (Parcour; 11),


pg. 11.

72

Caminha no se destaca por ter sido o primeiro texto da literatura em


lngua portuguesa a tecer crticas fortes imprensa, nem o primeiro
romance com personagens jornalistas 2.
Ea de Queirs criticara a imprensa antes no livro A
Correspondncia de Fradique Mendes3 (publicado em 1900). Em uma
carta a Bento de S, o missivista tenta dissuadir o amigo de fundar
um jornal por ser uma ideia daninha e execrvel, com a qual ele vai
concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os
Juzos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endurea mais a
Intolerncia, trs negros pecados sociais que, moralmente, matam
uma sociedade 4. No romance inacabado A Capital (publicado
postumamente em 1925), Ea retoma um outro tema soberbamente
explorado por Honor de Balzac, presente em Illusions Perdues, ao
compor a histria do jovem provinciano Artur. Este, aps a morte dos
pais, fica economicamente arruinado e decide partir conquista de
Lisboa, onde pretende atingir a to desejada celebridade no campo
literrio.
2

Para ser preciso, ele no foi sequer o ltimo. Joo do Rio, jornalista e escritor

contemporneo de Lima Barreto, escreveu crnicas com crticas ao jornalismo. Nas


peas Viva, Porm Honesta, Boca de Ouro e O Beijo no Asfalto, Nelson Rodrigues,
dcadas mais tarde, constri personagens jornalistas e apresenta crticas tambm
contundentes sobre o trabalho da imprensa.
3

QUEIRS, Ea de. A Correspondncia de Fradique Mendes: memrias e notas.

Porto: Lello & Irmo, 1952.


4

Idem, pgs. 209-221.

73

Machado de Assis tambm construra antes um personagem


jornalista no seu romance Quincas Borba5 (publicado em folhetins
entre 1886 e 1891 e em livro em 1892). Trata-se de Camacho,
poltico oportunista e jornalista sem sucesso, que busca utilizar, em
suas publicaes, frases de efeito (...), alm de ser leitor de trechos
de autores franceses 6. Confome aponta Gilberto Pinheiro Passos,
Quincas Borba trabalha elementos claramente tomados do universo
romanesco balzaquiano: o processo de retomada de personagens de
obras anteriores (especificamente o Quincas Borba do prvio
Memrias Pstumas de Brs Cubas), o tema s avessas do
provinciano pobre que aprende e ascende socialmente na metrpole e
a minimizao do heri iludido Lucien na figura do barbeiro
homnimo em Quincas Borba7. Machado no s conheceu Illusions
Perdues e dialogou com ele, como tambm registrou indcios claros
deste emprstimo literrio no romance em que constri o jornalista
corrupto Camacho.
Teria Lima Barreto explorado e desenvolvido as crticas
imprensa e seus personagens a partir da obra de Ea de Queirs e do

MACHADO DE ASSIS. Quincas Borba. IN: _____________________. Obra

Completa. vol.1: romances. 2.ed. Rio de Janeiro: Jos Aguilar, 1962. (Biblioteca
Luso-Brasileira), pgs. 639-804.
6

PASSOS, Gilberto Pinheiro. Idem, pgs. 39-41.

Idem, pgs. 64-69.

74

Camacho de Machado de Assis no momento de construir Recordaes


do Escrivo Isaas Caminha? Embora tanto Machado quanto Ea
tenham contribudo para a formao intelectual de Lima Barreto,
mesmo antes de este tornar-se escritor, as evidncias no so
favorveis a essa hiptese. foroso reconhecer que o bigrafo do
escritor pr-modernista, Francisco de Assis Barbosa, comenta que
em menino, ele lia os autores nacionais: Alencar, Macedo, Manoel de
Almeida, Aluizio de Azevedo, Machado de Assis 8. Mais frente, o
mesmo bigrafo registra: no texto da Revista Floreal, que Lima e
amigos editaram por quatro nmeros, repontam as marcas das
influncias que [lhe] predominavam na mocidade, que lia avidamente
Anatole France, Zola, Tolsti, Fialho de Almeida e Ea de Queirs 9.
Contudo, Ea era lido pelo menino Lima Barreto muito menos do que
os outros 10 autores citados e, apesar de possuir as obras mais
conhecidas do fundador da Academia Brasileira de Letras na
estante 11, no gostava que o comparassem a Machado de Assis 12.

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. 3.ed. Rio de Janeiro:

Civilizao Brasileira, 1964, pg. 80, grifos acrescentados.


9

Idem, pg. 153, grifos acrescentados.

10

Ibidem, pg. 153.

11

A saber: Memrias Pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba e Esa e Jac, sob os

nmeros 106 a 108 na Limana.


12

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto, pg. 238.

75

Tambm necessrio observar que as crticas imprensa em


Lima Barreto so muito mais contundentes que as feitas por Ea de
Queirs e que os personagens jornalistas so infinitamente mais
numerosos e mais complexos do que o Camacho machadiano.
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha , portanto, uma obra nica
na literatura luso-brasileira sobre as relaes jornalismoliteratura e
sua elaborao no pode ser analisada como um aproveitamento ou
ampliao de elementos encontrados nas obras de Machado e Ea.
No pretendemos, com essas ressalvas, ignorar ou
menosprezar a tradio literria em lngua portuguesa. Ea e
Machado so autores fundamentais nas letras lusfonas, alm de
terem sido amplamente lidos do sculo XIX ao comeo do XX. Que
temas machadianos e queirosianos tenham sido empregados na obra
de Lima Barreto um ponto pacfico na crtica literria, ainda que o
autor e seu bigrafo neguem ou minimizem tal linhagem. Nosso
objetivo, porm, avanar para alm dessa obviedade, aprofundando
as leituras intertextuais presentes no romance de estreia do prmodernista e tentando buscar o germe literrio de Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha diretamente em Illusions Perdues.

76

2.2. O modelo balzaquiano

Publicado sob a forma atual em 184313, Illusions Perdues


certamente foi um modelo usado por Lima Barreto em Recordaes
do Escrivo Isaas Caminha. Apesar de ser inegvel que esses dois
romances constituam referncia fundamental para pensar o
jornalista na literatura 14, surpreendente que a confluncia temtica
entre essas obras percebida mesmo pelo leitor menos atento que
tenha tido contato com ambos os livros no haja provocado
qualquer aproximao intertextual na crtica literria do romance
brasileiro. De fato, h uma lamentvel ausncia na fortuna crtica de
Lima Barreto 15, que no apresenta uma nica linha sobre esse
dilogo 16.
13

As trs partes que formam o romance Illusions Perdues haviam aparecido

anteriormente de forma separada em 1837, 1839 e 1843.


14

TRAVANCAS, Isabel. O jornalismo e suas representaes literrias. Anais do

26. Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. Belo Horizonte-MG, setembro


de 2003. So Paulo: Intercom, 2003. [cd-rom]. Tambm disponvel em: <http://
hdl.handle.net/1904/4425>. Acesso em: 5 de outubro de 2007. VER APNDICE A.
15

Conforme reunida nas obras LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Prosa Seleta. Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 2001 e; LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Triste Fim de
Policarpo Quaresma. edio crtica. Antonio Houaiss e Carmen Lcia Negreiros de
Figueiredo (coord.). Paris: Allca XX; So Paulo: Scipione Cultural, 1997. (Coleo
Archivos).
16

Uma possvel explicao para essa ausncia se encontra na violenta ruptura do

horizonte de expectativas existente por ocasio da publicao de Recordaes do


Escrivo Isaas Caminha, sobre a qual falaremos no prximo captulo.

77

H uma traduo do romance barretiano para o francs desde


1989 17; contudo, os artigos da tradutora disponveis na internet 18 e o
prefcio da verso francesa, escrito por Silviano Santiago, tambm
no fazem nenhuma referncia ao dilogo entre as duas obras.
Somente Isabel Travancas faz a ligao entre os romances, no
repositrio de textos da Intercom, a Sociedade Brasileira de Estudos
da Comunicao. Mesmo assim, esse registro problemtico:
apresentado por uma professora universitria formada em jornalismo
(fora, portanto, da rea dos estudos literrios), apenas 8 linhas nas 8
pginas do artigo conectam os romances, sem ir alm do
reconhecimento da mera confluncia temtica 19.
Recentemente, foi realizada uma comunicao no Congresso
2011 da Abralic, a Associao Brasileira de Literatura Comparada, por

17

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Souvenirs dun gratte-papier. traduit du

portugais et postfac par Monique Le Moing et Marie-Pierre Mazeas; prface de


Silviano Santiago. Paris: ditions de LHarmattan, 1989. (Lautre Amrique).
18

LE MOING, Monique. Lima Barreto ou L'illusion Tragique. IN: Littrature

brsilienne Les auteurs brsiliens traduits en franais. Page web de lAmbassade


du Brsil en France. Disponible sur : <http://www.bresil.org/images/stories/
ambassade-documents/le-bresil-en-france/publications/limabarreto.pdf ?
PHPSESSID=a204ae6c9a8f49446402f4e25ff0207a> Accs : 30 dcembre 2006.
VER APNDICE B.
19

TRAVANCAS, Isabel. Idem.

78

Elaine Souza 20, professora de Literatura Brasileira na Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ) abordando os dois escritores. Em 7
pginas so verificadas as aproximaes possveis entre eles e
procura-se demonstrar de que modo o escritor carioca recria em
moldes brasileiros a desiluso balzaquiana. Embora interessante, o
comparatismo realizado no aprofundado como poderia ser, e a
contrapartida barretiana analisada centra-se apenas no cotidiano do
jornal, na questo racial e na crise do narrador nada dito sobre
emprstimos e aproveitamentos feitos pelo romancista brasileiro,
nem sobre um cho, cenas ou fontes comuns que possam existir com
a obra balzaquiana.
Mas como pode ser fundamentado o dilogo balzaquiano com
Lima Barreto na construo do seu romance? Abordaremos essa
relao com mais profundidade no terceiro captulo, mas agora cabe
lembrarmos a similaridade nas crticas imprensa. As duas obras
apresentam uma confluncia temtica muito forte, com uma
representao bastante negativa do jornalismo: o trfico de
influncia, a explorao de escndalos, o carter mercantil, a relao

20

SOUZA, Elaine Brito. Isaas Caminha: desiluses de um mulato-instrudo na

imprensa. IN: Congresso da Associao Brasileira de Literatura Comparada


(ABRALIC), XII, 2011, Curitiba. Anais Online. Curitiba: Associao Brasileira de
Literatura Comparada, 2011. Disponvel em: <http://www.abralic.org.br/anais/
cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0634-1.pdf >. Acesso em: 11 de setembro de
2011. VER APNDICE C.

79

promscua com o poder e as artes, alm do ataque honra individual


feito pelos rgos e profissionais da imprensa. Tanto em Illusions
Perdues quanto em Recordaes do Escrivo Isaas Caminha temos
uma galeria de personagens jornalistas composta por profissionais
moralmente corruptos, eticamente questionveis e intelectualmente
maquiavlicos.
Por meio do protagonista Lucien de Rubempr, Balzac
apresenta o painel de uma instituio marcada por, entre outros
vcios, manipulao dos fatos, abuso de influncia, valorizao da
subliteratura e ataque a reputaes. J o narrador barretiano faz
crticas ao modelo de imprensa praticado pelo Correio da Manh nos
planos estilstico (mediocridade dos textos, virulncia dos artigos,
critrios extraliterrios na crtica literria, adeso acrtica a um
tradio gramatical purista), profissional (ignorncia intelectual dos
jornalistas, contradies pessoais, ausncia do debate racional,
trfico de influncia, relaes promscuas com a literatura e a poltica)
e institucional (o carter mercantil do jornal e a manipulao dos
fatos).
Outro ponto congruente nos romances de Balzac e Lima Barreto
o registro literrio do carter mercantilista e mercadolgico da
imprensa na sua fase inicial na Frana e no Brasil, quando assume o
carter de poderoso empreendimento industrial. Como seus autores

80

tinham conhecimento de causa por terem transitado pela mquina da


imprensa, Illusions Perdues e Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha ressaltam o incipiente tom capitalista do jornalismo em seu
pior aspecto: de dominao poltico-econmica sobre o imaginrio do
pblico, em detrimento da responsabilidade social da imprensa
teorizada nas ideias liberais.
Um terceiro paralelo entre os romances, porm, mais profundo
que a mera confluncia temtica encontra-se materializado na
trajetria dos protagonistas de Illusions Perdues e Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha, apontando claramente a herana e tradio
em que se insere este ltimo. Em ambos encontramos:

ambio de um protagonista caracterizado como jovem

intelectual criado na provncia (Angoulme/cidade pequena


brasileira), com formao e pretenses literrias (poeta local/
estudante aplicado);
o

deslocamento desse protagonista para a Capital do pas

(Paris/Rio de Janeiro) em busca de glria pessoal, mas com


reconhecimento intelectual fracassado;
o

abandono pelo benfeitor (Madame de Bargeton/Deputado

Castro) que o decepciona j nos primeiros dias na Capital, a

81

misria e provaes no perodo de adaptao, a hospedagem


num hotel modesto e as visitas frequentes biblioteca pblica;
a

feitura de amigos desinteressados, pertencentes a um crculo

intelectual (o Cnacle/os positivistas), que os ajudam nas


dificuldades da pobreza, promovem discusses filosficas com
eles e os advertem dos perigos e vcios da imprensa;
a

entrada na imprensa graas a um amigo jornalista (Etienne

Lousteau/Gregorvitch Rostloff), em quem buscam afeto


fraterno e apoio financeiro;
a

descrio dos desvios do ideal liberal por parte da imprensa,

apresentados durante a trajetria do protagonista dentro da


redao do jornal e manifestos no trfico de influncia
praticados na relao entre os jornalistas e o pblico para fins
pessoais escusos;
a

denncia de que o sucesso e consagrao literrios dos

escritores novatos depende das relaes que estes mantm ou


devem manter com os jornalistas;
o

xito relativo e temporrio do protagonista na carreira

jornalstica, a capacidade gradual de corrupo inerente


imprensa e a sada final dos protagonistas do mundo do jornal.

82

Se o aproveitamento de Illusions Perdues parece to inequvoco


na economia narrativa de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha,
pelo menos da forma como o colocamos acima, por que a crtica
literria tradicional nunca o percebeu anteriormente? A primeira razo
infelizmente bvia para os pesquisadores barretianos. Como
veremos logo a seguir, Balzac era leitura presente na formao de
Lima Barreto, um dos seus autores prediletos, espcie de dolo para
ele e modelo de literatura abertamente reconhecido em seus livros.
Mas no h registro dos indcios textuais explcitos do percurso desse
aproveitamento pelo escritor pr-modernista em seu romance de
estreia.
A Limana, nome dado pelo autor sua biblioteca particular,
possua vrias obras balzaquianas nas estantes, entre originais e
tradues, romances consagrados e folhetins 21: La Cousine Bette (9),
Eugnie Grandet (25), Diversas Novelas (37), Louis Lambert (97), Le
Cousin Pons (206 - volume 6), La Granadire etc (386), Le Cur de
Village (440) e Uma Paixo no Deserto (697), alm dos Contes
Drolatiques (313). Falando sobre a Limana, Francisco de Assis
Barbosa declara que ali esto os autores prediletos do escritor, a
comear por Balzac e a terminar em Descartes; o bigrafo no
21

Os nmeros entre parnteses so os usados no inventrio dos livros feito por

Lima Barreto. A relao completa das obras de Lima Barreto na sua biblioteca
particular pode ser consultada no apndice Inventrio na obra BARBOSA,
Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto, pgs. 348-370.

83

poderia ser mais enftico, linhas depois, ao dizer: do grupo de


escritores de fico, fora Balzac, encontram-se Cervantes, George
Eliot, Maupassant, Anatole France, Dostoivski, Tolsti, Tchekov,
Turguneiev e o nosso Machado de Assis 22.
Anotaes do seu dirio mostram que seu quarto de dormir, e
tambm gabinete de trabalho, era decorado com retratos nas paredes
dos escritores que admirava, tirados das revistas francesas que lia
Renan, Dostoivski, Anatole France, Maurice Barrs e Balzac23. Nesse
mesmo dirio, em um registro de data provvel de novembro de
1904, consta o projeto (no realizado) de escrever um conto em que
o protagonista seria um homem meio velho, leitor de Balzac e que
sempre andaria com um volume da Comdia Humana nas mos 24.
Numa nota de dezembro do mesmo ano, ao perguntar se um crtico
tem o direito de injuriar o autor de uma obra ao fazer a crtica dela,
Lima Barreto responde: Balzac, Lord Rhoone, se houvesse sido
injuriado, chegaria a ser o Honor de Balzac do Pre Goriot? 25. Em

22

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto, pgs. 299-300, grifos

acrescentados.
23

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Dirio ntimo. pref. de Gilberto Freire. Rio de

Janeiro, Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1956. (Obras de Lima Barreto; XIV),
anotaes de 1/01/1905, grifos acrescentados.
24

Idem, pg 47.

25

Ibidem, pg. 57.

84

uma das notas de dezembro de 1918, ele compara um pensamento


do Peau de Chagrin a um de Nietzche 26.
Numa carta-resposta de 19/01/1921 a Austregsilo de Atade,
que apontou a influncia de Machado sobre Lima Barreto, este
retruca: Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de
Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet v l; mas
Machado, nunca! 27. Ele diz ao amigo Carlos Viana, em carta de
28/02/1904, que est lendo o Le lys dans la vale28 . Uma carta do
amigo Artur Mota, datada de 9/08/1917, traz o seguinte conselho ao
nosso autor: Escreve como Balzac, mas no teu feitio, uma srie de
romances sobre a vida da cidade29. Cpia do registro da segunda
internao de Lima Barreto em um hospital psiquitrico por
alcoolismo registra que o escritor cita autores prediletos que so:
Bossuet, Chateaubriand (...), Balzac, Taine, Daudet30.

26

Ibidem, pg. 204.

27

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Correspondncia: ativa e passiva. Tomo I.

pref. de B. Quadros. 2.ed. So Paulo, Brasiliense, 1961. (Obras de Lima Barreto;


XVI), grifos acrescentados.
28

Idem, pg. 51.

29

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Correspondncia: ativa e passiva. Tomo II.

pref. de B. Quadros. 2.ed. So Paulo, Brasiliense, 1961. (Obras de Lima Barreto;


XVII), pg. 27.
30

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto, pgs. 341-343, grifos

acrescentados.

85

Por um lado, nenhuma dessas fontes cita direta ou


indiretamente que Lima Barreto tenha tido conhecimento de Illusions
Perdues, ou que o tenha usado como modelo para escrever
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. Por outro, porm, o
romance balzaquiano a obra capital e passagem obrigatria da
Comdie Humaine, o cnone ocidental da crtica imprensa moderna,
referncia presente ou aludida nas obras de monstros sagrados como
Ea de Queirs e Machado de Assis e livro bem conhecido pelos
intelectuais da Belle poque brasileira 31 um elenco de razes que
torna ainda mais estranho o silncio da crtica sobre a presena
balzaquiana em Lima Barreto.
Isso no significa que pretendamos nivelar a realizao formal
presente em cada obra com a busca do dilogo literrio entre
Illusions Perdues e Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. A
histria dos sonhos e desencantos de Lucien de Rubempr constitui
pea fundamental na Comdie Humaine, obra-prima altamente
elaborada na forma e estrutura, trazida luz por um escritor j

31

O catlogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro mostra que estavam em

circulao no Brasil, disponveis a Lima Barreto, no final do sculo XIX e comeo do


XX duas edies da Comdie Humaine (uvres compltes de Honor de Balzac
[Paris: M. Lvy, 1869-1876, 24 volumes] e uvres ilustres de Honor de Balzac
[Paris: L. Hebert, 1867, 10 volumes]); duas edies de Illusions Perdues (Paris: C.
Lvy, 1890, 1881, 2 volumes e Paris: Societ dditions Littraires et Artistiques,
1901, 3 volumes); e uma traduo portuguesa de Illusions Perdues por K. D. Avelar
(Paris: Garnier/Mayenne, sem data, 2 volumes).

86

consagrado no sistema literrio francs. Por sua vez, o romance


barretiano em questo marca a estreia de um escritor que no
conheceu a consagrao em vida, o qual tinha problemas no acesso
ao mercado editorial e manifestava conscincia do grau de
acabamento encontrado na obra 32, diferentemente daquele que
alcanaria em sua obra-prima Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Por exemplo, analisemos um elemento simples porm
altamente significativo na presena de Illusions Perdues em
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha: o desejo de suicdio nas
guas. Aps a morte da irm, Lucien prepara uma carta de despedida
e desce rumo ao rio mis comme s'il allait une fte, car il s'tait fait
un linceul de ses habits parisiens et de son joli harnais de dandy 33,
onde o falso padre Carlos Herrera o impedir de tirar a vida,
ministrar as lies no aprendidas pelos provincianos inspirados por

32

Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narrao.

No sou propriamente um literato, no me inscrevi nos registros da Livraria Garnier,


do Rio, nunca vesti casaca e os grandes jornais da Capital ainda no me aclamaram
como tal - o que de sobra, me parece, so motivos bastante srios, para
desculparem a minha falta de estilo e capacidade literria...
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:
Publifolha, 1997. (Biblioteca Folha; 18), pg. 34.
33

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues, page 764.

87

Napoleo e propor um pacto mefistotlico/homoertico 34

com o

rapaz de Angoulme. Ecos da cena aparecem no romance barretiano


depois de o protagonista ser recusado sem nenhuma explicao
numa busca de emprego. Isaas Caminha, ento, revolta-se contra
uma desigualdade absurda, estpida, contra a qual se iam quebrar o
meu pensamento angustiado e os meus sentimentos liberais que no
podiam acusar particularmente o padeiro. 35 Horas depois, ele se
debrua perante o cais e sente-se hipnotizado, como se o mar o
estivesse chamando para dissolver-se em suas guas infinitas.
O desejo de suicdio nas guas em Illusions Perdues constitui
um elemento melodramtico na economia narrativa, parodiando o
tema da morte do poeta incompreendido, recorrente na poesia
francesa do sculo XIX, e preparando o caminho para a apario do
criminoso Vautrin, travestido de sacerdote. Embora no tivesse

34

Embora o narrador balzaquiano seja ambguo no estabelecimento do pacto ertico

entre Vutrin e Lucien, devemos lembrar que Vautrin descrito como homossexual
nas obras da Comdie Humaine, havia feito a mesma proposta em Le Pre
Goriot Rastignac (que a recusou) e sugere a Lucien que lhe devote a mesma
submisso de uma esposa ao seu marido.
35

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 101.

88

consumado seu desejo 36, Lucien afoga simbolicamente suas


pretenses arrivistas pela via literria, explicitando sua mediocridade
como homem de letras e buscando a partir desse momento a
ascenso social por outros meios que no a carreira de escritor.
Tambm representa uma espcie de batismo negro, haja vista o
fato de ele enterrar a pouca pureza moral que ainda lhe resta e
entregar sua alma definitivamente s trevas com o pacto
mefistotlico/homoertico proposto pelo falso padre Carlos Herrera.
No caso de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, o
elemento tragicmico do romance balzaquiano desaparece, e a cena
aproveitada criativamente como um escape lrico do narrador. Lucien
no tem sua disposio o privilgio de Isaas: a contemplao do
litoral do Rio de Janeiro, embora o heri barretiano passe
rapidamente da necessidade de descanso ao desejo de fuga, do
refrigrio dos olhos ao blsamo final da existncia. Para um
desenraizado que havia tido pouco antes a sensao de estar em

36

De la Seine la Charente, la revrie sur leau dormante se dploie en complexe

dOphlie. Cest toutefois le mme dgot lide dtre extrait de leau sous forme
de cadavre grotesque qui retient Raphal et Lucien. Seul Athanase Granson ira
jusquau bout de sa pulsion mortelle dans La Vieille Fille.
LABOURET, Mireille. Mphistophles et lAndrogyne : les figures du pacte dans
Illusions Perdues. IN: LAnne Balzacienne (ISSN 0084-6473). Paris: PUF,
1996, n 17, page 213.

89

pas estrangeiro 37, o mar manifestava-se como um espao utpico, o


nico lugar que me completava com piedade, sugestionando-me e
prometendo-me grandes satisfaes no meio de sua imensa massa
lquida 38. Isaas Caminha recusa a sada fcil da vida na morte, sem
necessidade de uma interveno externa como Lucien; mas o conflito
interno entre a fuga e a utopia no cais o extenua, deixando-o
indiferente ao seu destino, sem o fervor primeiro e dominado por
uma apatia superior s suas foras39 uma espcie de morte em
vida.
A pausa no cais enreda tanto o aproveitamento da cena
balzaquiana do desejo de suicdio nas guas, quanto a cor local da
paisagem litornea da cidade do Rio no romance; bem como retoma
a digresso sobre o mar40 que vem de obras brasileiras como Diva e
Senhora, de Jos de Alencar, e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

37

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg.102.
38

Idem, pg. 103.

39

Ibidem, pg. 105.

40

Continuei a olhar o mar fixamente, de costas para os bondes que passavam. Aos

poucos ele hipnotizou-me, atraiu-me, parecia que me convidava a ir viver nele, a


dissolver-me nas suas guas infinitas, sem vontade nem pensamentos; a ir nas
suas ondas experimentar todos os climas da Terra, a gozar todas as paisagens, fora
do domnio dos homens, completamente livre, completamente a coberto de suas
regras e dos seus caprichos...
LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, pg. 102.

90

Como podemos ver, um ponto to pequeno retomado na obra prmodernista aciona mltiplas referncias na economia narrativa e
mostra o aproveitamento criativo realizado a partir do preliminar
francs.

2.3. Outros emprstimos

Embora predominem as conexes com Illusions Perdues em


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, podemos encontrar outros
intertextos na obra, evidentemente em um grau menor do que o
balzaquiano. Um rpido, porm significativo dilogo que o romance
barretiano estabelece com a Bblia, no primeiro captulo. Conhecido
por sua habilidade de nomear de forma bastante sugestiva os
personagens de seus romances, Lima Barreto se inspira no livro

91

sagrado para batizar41 o protagonista e a professora que o inspira em


seus anos iniciais.

41

Um dado tambm encontrado no perfil dos dois poetas de Illusions Perdues:

Enfin le choix des prnoms bibliques contribue faire de ces deux personnages
des justes, qui llection divine donne la force de combattre un ennemi plus
puissant. Les pisodes clbres de la lutte de David et Goliath, ou de Daniel jet
dans la fosse aux lions [em nota: Voir I Samuel, 17 et Daniel, 6] apportent une
connotation pique et religieuse au combat que David va livrer et perdre en
partie ! contre les Cointet, ainsi quaux preuves de Daniel, subissant trahisons et
outrages lors de la sortie de son ouvrage, sans se dparter de sa srnit.
Lattachement rciproque de David et du fils de Sal, Jonathan, qui lamait comme
lui mme [em nota: I Samuel 18, 4.], rsonne dans lamiti passionne de David
et Lucien.
LABOURET, Mireille. Mphistophles et lAndrogyne : les figures du pacte dans
Illusions Perdues. IN: LAnne Balzacienne (ISSN 0084-6473). Paris: PUF,
1996, n 17, page 222.
Sobre outros intertextos bblicos em Illusions Perdues (como a presena do
Eclesiastes, do Gnesis, dos Evangelhos e da queda de Lcifer), ver BARON, AnneMarie. LIntertexte biblique dIllusions Perdues. IN: DIAZ, Jos-Luiz et GUYAUX,
Andr (eds.). Illusions Perdues. Actes du Colloque des 1er et 2 dcembre
2003 organis par lUniversit Paris-Sorbonne et la Societ des tudes
romantiques. 2e. ed. Paris: Presses de lUniversit Paris-Sorbonne, 2004.
(Colloques de la Sorbonne), pages 13-24.

92

O heri barretiano recebe o nome do profeta hebreu

42

do

sculo VIII AC 43, educado segundo valores aristocrticos (revelados


no seu domnio da lngua e conhecimento da alta sociedade),
chamado por Deus de forma espetacular, entre outras coisas, para
denunciar a hipocrisia, ganncia, autossatisfao e cinismo dos
governantes de Israel, que levavam a nao runa moral44 .
Destacamos esses elementos por causa da sua articulao no texto
de Lima Barreto. Inspirado pela erudio do pai, fortemente
42

As informaes sobre os aspectos literrios dos livros bblicos de Isaas e Ester

foram parcialmente extrados dos guias literrios da Bblia de ALTER, Robert;


KERMODE, Frank [(ed.). Guia literrio da Bblia. trad. de Raul Fiker. So Paulo:
Unesp, 1997] e RYKEN, Leland; LONGMAN III, Tremper. [(ed.) A Complete
Literary Guide to the Bible. Grand Rapids: Zondervan, 1993].
Quanto aos dados sobre o contexto scio-histrico, eles podem ser consultados nas
introdues aos livros de Isaas e Ester apresentadas em BBLIA. Portugus. Bblia
de Estudo de Genebra. Texto bblico (Almeida Revista e Atualizada) traduzido por
Joo Ferreira de Almeida, Edio Revista e Atualizada no Brasil. Barueri: Sociedade
Bblica do Brasil; So Paulo: Cultura Crist, 1999; e BBLIA. Portugus. Bblia de
Estudo NVI. Texto bblico (Nova Verso Internacional) traduzido pela comisso de
traduo da Sociedade Bblica Internacional; comentrios e auxlios sob a
organizao geral de Kenneth Barker e traduo em portugus de Joo Gordon
Chown. So Paulo: Vida, 2003.
43

Conforme a viso conservadora, milenar, da tradio judaico-crist, que atribui o

livro de Isaas a um profeta individual e histrico que teria escrito uma obra
unificada.
44

O livre trnsito do profeta na elite israelita pode ser visto em Isaas 3.1-26; o seu

chamado proftico encontra-se em Isaas 6.1-13; sobre os pecados denunciados


por ele, ver, respectivamente: Isaas 1.10-15; 5.8; 5.11 e 5.19. A Bblia nada tem a
dizer sobre a profisso de Isaas antes de seu chamado proftico nem a tradio
judaica, at onde pesquisamos.

93

inteligente e ilustrado 45, Isaas torna-se um estudante altamente


aplicado no colgio e no liceu. Excitado pelas notas timas e pelos
prognsticos da minha professora [Dona Ester]46 ao fim dos estudos
secundrios na cidade natal, ele alimenta esperanas de que sua
educao esmerada facilite a conquista do ttulo de Doutor no Rio
de Janeiro.
Embora no tenha contemplado uma teofania no templo como
seu homnimo bblico, o chamado do protagonista barretiano no

45

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 39.


46

Idem, pg. 40.

94

deixava de ter seus aspectos mgicos 47: a tentadora sibila a falarme, a toda hora e a todo o instante, na minha glria futura 48 e os
patos selvagens negros no cu bifurcando-se para formar a inicial de
VAI (para o Rio de Janeiro), um sinal animador [e] bom augrio do
meu propsito audacioso49. A denncia dos governantes no tarda a
chegar, quando ele contempla uma sesso da Cmara do Deputados
nos primeiros dias na ento Capital Federal e percebe o descompasso

47

Lima Barreto elenca uma srie de elementos mgicos nos primeiros captulos. Por

um lado, eles revelam uma conscincia ainda imatura por parte de Isaas das
contradies sociais, antes que ele ingresse no jornal, lanando ao sobrenatural as
razes do seu sucesso ou fracasso . Por outro, eles se articulam em torno das
capacidades especiais atribudas pelo heri posse do ttulo de Doutor:
Ah! Doutor! Doutor!... Era mgico o ttulo, tinha poderes e alcances mltiplos,
vrios, polifrmicos... Era um pallium, era alguma coisa como clmide sagrada,
tecida com um fio tnue e quase impondervel, mas a cujo encontro os elementos,
os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva
afastar-se-iam transidas do meu corpo, no se animariam a tocar-me nas roupas,
no calado sequer. O invisvel distribuidor dos raios solares escolheria os mais
meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexorveis, com o comum dos
homens que no doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e
cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de ferir a martelada beira
do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praas, pelas estradas, pelas salas,
recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como est, doutor? Era sobrehumano!
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, pg. 46.
48

Idem, pg. 40.

49

Ibidem, pg. 41.

95

entre a grandiosa representao que eu fazia do legislador50 e a


mediocridade, indiferena mtua e o despreparo dos parlamentares
que trabalhavam para o povo
Se o prenome do protagonista carrega em si as conotaes de
denncia social e chamado proftico associadas ao escritor bblico,
no menos sugestivo o seu sobrenome. O escrivo barretiano
inspira-se no escrivo primevo: o portugus Pero Vaz de Caminha
(1450-1500), que estava na armada do navegadordescobridor Pedro
lvares Cabral e que se eternizou como o autor da Carta a el-rei D.
Manuel sobre o achamento do Brasil (com data de 1 de maio de
1500). Tanto o escritor em si quanto sua carta per se trazem alta
carga de referncias ao romance de Lima Barreto. Tal como o autor
que primeiro produziu um registro escrito sobre a terra descoberta
mais tarde chamada Brasil, Isaas Caminha constri seu relato em
cima das impresses de descoberta, estranhamento e decepo que
sua condio de provinciano lhe provocam diante da ento Capital
Federal.
Embora consciente da tnue linha entre interpretar e especular,
no podemos menosprezar a relao entre a carta e o romance. Em
seu livro de estreia, o escritor pr-modernista levanta uma forte
crtica falta de um projeto nacional e ao descompasso entre prxis

50

Ibidem, pg. 61.

96

social e iderio poltico no Brasil, aludindo ironicamente ao texto


considerado certido de nascimento do pas 51! A mesma ironia avana
rumo ao sarcasmo na denncia scio-poltica presente nas
observaes do protagonista. Enquanto o texto do escriba cabralino
marca-se pelas oportunidades oferecidas pela nova terra, as
recordaes do escrivo barretiano enfatizam as lies no
aproveitadas dos grandes homens do passado. Tanto que o destino do
pas repousava nas mos estrangeiras tanto nos anos 1500 da Carta
a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil quanto nos anos
1900 em que se passa a histria de Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, haja vista que o nico personagem que desperta ideais

51

A aluso Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil assume um

peso ainda maior diante das circunstncias histricas e ideolgicas que a envolvem.
Temendo a cobia dos espanhis sobre a terra recm-descoberta, Portugal manteve
o texto em segredo at o sculo XVIII no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em
Lisboa. Ele viria tona novamente em 1773, quando foi descoberta pelo diretor do
arquivo, Jos Seabra da Silva, que tinha ligaes familiares com o Brasil e mandou
fazer uma nova cpia do documento. Supe-se que o texto de Caminha tenha
chegado aqui por meio dele, com a sua transferncia para o Rio de Janeiro na vinda
da famlia real portuguesa. A cpia da carta foi encontrada no Arquivo da Marinha
Real do Rio de Janeiro pelo padre Manuel Aires do Casal, que a imprimiu em 1817,
tornando-a pblica pela primeira vez. O documento ganhou particular importncia
para o Brasil com a Independncia, em 1822, pois se tratava do manuscrito com o
primeiro registro de sua existncia, alimentando os sentimentos nacionalistas da
jovem nao.

97

patriticos no protagonista vem a ser o romeno aptrida Gregorvitch


Rostloff, enquanto bebiam vinhos franceses 52.
Para entendermos ainda melhor essa encruzilhada de sugestes
fornecida pelo intertexto bblico, precisamos lembrar que os israelitas
do Antigo Testamento eram um povo nacional distinto que vivia sob
uma teocracia, com instituies e leis civis apontadas pelo Deus
Jeov nos escritos de Moiss lado a lado com as prescries morais e
rituais. Quando um profeta como Isaas condenava os abusos quer
das autoridades quer do povo em si, seu discurso social condena
desvios de um pacto supostamente outorgado por Deus e entregue a
governantes, juzes e sacerdotes responsveis pela sua execuo na

52

Fui desejoso de encontrar uma afeio, uma simpatia, naquele estrangeiro, um

aventureiro, um ente cujos precedentes no conhecia, cuja lhaneza de trato,


comunicabilidade especial e generosidade, porm, me atraam e solicitavam
fortemente. Foi almoo de camaradas, rico de confidncias, trocamos idias,
contou-me um pouco de sua vida e eu contei-lhe a minha. Era da Romnia. Seu pai
era um emigrado russo; sua me, grega. Estudara no Cairo, correra a Europa, a
sia e Amrica. Tinha 45 anos e sentia-se absolutamente sem ptria, livre de todas
as tiranias morais e psicolgicas que essa noo contm em si. Era capaz de
aprender todas as lnguas, escrev-las, fal-las em trs ou quatro meses. Em cada
pas demorava-se pouco, cinco ou seis anos; procurava os jornais, defendia esta ou
aquela questo, ganhava dinheiro e vivia. Contava-me isso bebendo e proporo
que bebia vinhos franceses os seus olhos de conta e azuis com reflexos metlicos
ficavam mais brilhantes e mais penetrantes. Falou-me em poetas, em filsofos;
traou, a grandes golpes, o destino da humanidade, provocou-me grandes e
consoladoras vises patriticas, e s vim a deix-lo saudoso pelas duas horas,
quando me dirigi ao hotel. .
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, pg. 84 (grifos acrescentados).

98

vida nacional53 . H diversos outros profetas bblicos que poderiam ter


sido escolhidos por Lima Barreto para batizar o protagonista do seu
romance de estreia. Talvez um nome judaico mais conhecido entre as
famlias catlicas brasileiras como Ezequiel ou mesmo Daniel, aludido
por Honor de Balzac em Illusions Perdues.
A escolha barretiana, porm, no foi gratuita nem ingnua: ao
contrrio de colegas como o ressentido Jonas ou o Jeremias choro, o
profeta Isaas no recebe seu chamado de uma divindade vingativa e
caprichosa que pronuncia ameaas arbitrrias ou incompreendidas,
mas empresta a voz para um Jeov que se levanta para defender o
povo oprimido e lamentar as injustias de uma ordem social (no
apenas moral) corrompida. Gostaramos de chamar a ateno para
um trecho em que o profeta d voz ao Deus Jeov, anunciando a
insatisfao divina contra os abusos cometidos (a cidade referida
Jerusalm, a capital do reino setentrional de Jud):

Quando vocs estenderem as mos em orao,


esconderei de vocs os meus olhos;
mesmo que multipliquem as suas oraes,
no as escutarei!
As suas mos esto cheias de sangue!
Lavem-se! Limpem-se!

53

Isso explica as diversas passagens no livro bblico de Isaas combatendo o

descaso social, os conflitos de violncia incontidos, o acmulo de terras, a


corrupo passiva de juzes, a ostentao das classes dirigentes e a opresso
contra estrangeiros e rfos.

99
Removam suas ms obras para longe da minha vista!
Parem de fazer o mal,
aprendam a fazer o bem!
Busquem a justia,
acabem com a opresso.
Lutem pelos direitos do rfo,
defendam a causa da viva.
(...) Vejam como a cidade fiel se tornou prostituta!
Antes cheia de justia e habitada pela retido,
agora est cheia de assassinos!
Sua prata tornou-se escria,
seu licor ficou aguado.
Seus lderes so rebeldes,
amigos de ladres;
todos eles amam o suborno
e andam atrs de presentes.
Eles no defendem os direitos do rfo,
e no tomam conhecimento da causa da viva.
Por isso o Soberano,
o Senhor dos Exrcitos, o Poderoso de Israel, anuncia:
Ah! Derramarei minha ira
sobre os meus adversrios
e me vingarei dos meus inimigos.
Voltarei minha mo contra voc;
tirarei toda a sua escria
e removerei todas as suas impurezas.
Restaurarei os seus juzes como no passado,
os seus conselheiros, como no princpio.
Depois disso voc ser chamada
cidade de retido, cidade fiel. 54.

54

Isaas 1.15-17, 21-26, Bblia Sagrada: Nova Verso Internacional.

100

Como podemos observar a partir desse trecho, o nome Isaas


Caminha em si, portanto, traz ao romance uma carga de denncia
das contradies sociais ao lado de um projeto nacional irrealizado
desde a fundao do Brasil.
Voltando discusso, o intertexto bblico aparece tambm no
nome da professora de Isaas Caminha: Dona Ester, mencionada
apenas uma vez 55, remetendo moa judia exilada na corte que se
torna rainha da Prsia e preserva o povo israelita de perecer num
holocausto na Antiguidade 56. Ao presentear o menino aos 10 anos
com um livro de auto-ajuda com biografias de grandes homens (O
Poder da Vontade), os olhos da professora pareciam ler o meu
destino 57. Mas enquanto a providncia leva a rainha ao posto para
salvar seu povo58, a misso de Isaas o leva a um resgate meramente
individual, pois o ttulo de Doutor apenas resgataria o pecado

55

Idem, pg. 40.

56

Os acontecimentos que resultam na coroao de Ester podem ser conferidos em

Ester 2.1-20, o plano do holocausto em 3.1-15 e o papel da jovem rainha na


preservao do povo israelita em 7.19.32.
57

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 40.


58

Quando Mardoqueu recebeu a resposta de Ester, mandou dizer-lhe: No pense

que pelo fato de estar no palcio do rei, voc ser a nica entre os judeus que
escapar, pois, se voc ficar calada nesta hora, socorro e livramento surgiro de
outra parte para os judeus, mas voc e a famlia do seu pai morrero. Quem sabe
se no foi para um momento como este que voc chegou posio de rainha?
Ester 4.12-14, Bblia Sagrada: Nova Verso Internacional.

101

original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplcio premente,


cruciante e onmodo de minha cor 59. O plano coletivo d lugar ao
plano pessoal, as contradies sociais vontade autnoma e o acaso
ao mrito, alimentando as ambies do protagonista no comeo da
histria. Quando, porm, a roda da fortuna gira no decorrer do
romance, sem que as esperanas do rapaz se concretizem60 , o
narrador perde suas iluses. Lima Barreto opera assim um processo
de inverso do motivo bblico de Ester, para construir o romance de
aprendizagem de Isaas Caminha.
Esses, contudo, no so os nicos dilogos presentes na obra.
Em dado momento do romance, o narrador-protagonista discorre
sobre a elaborao e objetivos das suas memrias. Deplorando as
frmulas prontas e a limitao de idias dos jornalistas de O Globo,
Isaas Caminha teme que o seu romance acabe se tornando um puro
falatrio e apresenta os modelos de que se serviu, entre autores
russos, franceses e portugueses:

59

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 45.


60

O caminho na vida parecia-me fechado completamente, por mos mais fortes

que as dos homens. (...) As condies de minha felicidade no deviam repousar


seno em mim mesmo conclui... Mas no era s isso que eu via. O que me fazia
combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdm, de escrnio, de
condenao em que me sentia preso.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, pgs. 98-99.

102

No nego que para isso tenha procurado modelos e normas.


Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao alcance das
mos, tenho os autores que mais amo. Esto ali o Crime e
Castigo de Dostoivski, um volume dos Contos de Voltaire, A
Guerra e a Paz de Tlstoi, o Le Rouge et le Noir de Stendhal,
a Cousine Bette de Balzac, a Education Sentimentale de

103
Flaubert, o Antchrist de Renan 61, o Ea; na estante, sob as

61

LAntchrist, de Renan, o quarto dos 7 volumes da obra "Histoire des origines

du christianisme", do escritor, fillogo, filsofo e historiador francs Ernest Renan


(1823-1892). Nestes 7 volumes, ele defende a tese de que a vida de Jesus deve ser
compreendida como a de qualquer outro homem e a Bblia submetida ao exame
crtico como qualquer outro documento histrico. O Antchrist, especificamente,
trata os episdios da Histria do Cristianismo compreendidos entre a priso do
Apstolo Paulo em Roma (60-62 AD) e a priso de Joo Evangelista na Ilha de
Patmos (90 AD). Esse assunto no guarda qualquer relao com Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha, sendo algo mais presente em Triste Fim de Policarpo
Quaresma romance em que Lima Barreto faz uma reviso da histria e dos mitos
nacionais alimentados na Primeira Repblica Brasileira (1889-1930).
Por isso cremos que a referncia exata seria L'Antchrist : imprcation contre le
christianisme, do filsofo alemo Friedrich Nietzsche, na qual se aborda o futuro do
homem luz da histria dos valores ocidentais difundidos pelo mundo e que
comprometem o progresso da humanidade. dele, alis, o nico Antchrist
presente na Limana, a biblioteca particular de Lima Barreto, numa traduo
espanhola (El Anticristo), sob o nmero 433. Segundo Nietzsche, a proposta crist
da igualdade absoluta de todos os homens proibiria todo desejo de distino e
degradaria o homem ao estado da barbrie, sendo necessrio combater o sistema
de valores fundados sobre a piedade e a passividade que depreciam o mundo e a
humanidade. Tais ideias aparecem no discurso de Gregorvitch Rostloff a Isaas
Caminha:
Gregorvitch incitara-me a trabalhar pela grandeza do Brasil; fez-me notar que era
preciso difundir na conscincia coletiva um ideal de fora, de vigor, de violncia
mesmo, destinado a corrigir a doura nativa de todos ns. Pela primeira vez de
lbios humanos, ouvi dizer mal da piedade e da caridade: sentimentos anti-sociais,
enfraquecedores dos indivduos e das naes... Virtudes dos fracos e dos cobardes,
resumia ele.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, pg. 85.

104
minhas vistas, tenho o Taine 62, o Bougl 63, o Ribot

62

Hippolyte Taine (1828-1893), filsofo e historiador francs que aplicou os

princpios do Positivismo no estudo da arte, da literatura e sobretudo da histria.


Usava a metodologia cientificista da poca ao estudo dos fatos humanos, quer
fossem histricos, quer fossem artsticos. Tambm teorizou a interpretao dos
fatos de um modo determinstico, a partir de trs fatores: hereditariedade, meio e
momento. Ele estreou-se em 1853 com o Ensaio sobre as Fbulas de La Fontaine
(que serviu de tese de doutoramento), tendo tambm escrito Histria da Literatura
Inglesa e Filosofia da Arte (que aparecem na Limana sob os nmeros 63 e 57,
respectivamente), Origens da Histria Contempornea, Ensaio Sobre Tito Lvio e
Ensaio de Crtica e de Histria. Refletido em Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha na forma com que o narrador-protagonista apresenta os obstculos
impostos pela sociedade a indivduos como ele.
63

Clestin Bougl (1870-1940), filsofo e socilogo francs, discpulo de mile

Durkheim e defensor da sociologia como cincia positiva na linha de Augusto


Comte. Considerava que a democracia republicana constitui um desenvolvimento do
racionalismo cartesiano e dos progressos cientficos, permitindo a afirmao dos
direitos do homem, contra o elitismo, o autoritarismo e o racismo. Lima Barreto
teve acesso s obras publicadas antes de sua morte em 1922: La Dmocratie
dvant la Science (1904) e Essais sur le Rgime des Castes en Inde (1900, 1908),
presentes na Limana sob os nmeros 271 e 272, respectivamente. provvel que a
deturpao de ideias apresentadas por Leiva e o grupo positivista, no captulo 7 de
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, seja uma retomada irnica das ideias de
Bougl de forma a criticar a onda positivista que tomou intelectuais brasileiros no
comeo do sculo XX. A ttulo de curiosidade, esse filsofo orientou a dissertao
de mestrado de Claude Lvi-Strauss, em 1927, e recebeu o convite de seu ex-aluno
em 1934 para vir ensinar sociologia na Universidade de So Paulo. Foi graas a seu
antigo orientador durante as aulas na Usp que Claude Lvi-Strauss descobriu e
comeou a praticar a etnologia.

105
64

e outros autores de literatura propriamente, ou no.

Confesso que os leio, que os estudo, que procuro descobrir


nos grandes romancistas o segredo de fazer. 65

Todas essas obras emprestaram nfases, temas e perfis para


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. Focando primeiramente nas
obras francesas, dos Contos de Voltaire vm o tema da perda das
iluses, anterior ao prprio Illusions Perdues; de Le Rouge et le Noir,
de Stendhal, os temas do mito napolenico e do jovem da provncia
na Capital, alm de aluses a traos e cenas do protagonista Julien de
Sorel (tambm presentes em Illusions Perdues); da Cousine Bette, de
Balzac, o pessimismo do roman noir, as reflexes sobre a sociedade e
a arte, os dramas da desigualdade social e a zoomorfizao de
personagens; da Education Sentimentale, de Flaubert, o registro da

64

Thodule Ribot (1839-1916), filsofo e psiclogo francs responsvel pela

introduo da psicologia experimental na Frana, tendo enunciado leis que regem a


dissoluo da memria: as recordaes mais recentes, mais complexas e sem
significado afetivo desaparecem mais depressa do que as recordaes antigas,
simples e carregadas de emoes. Entre suas principais obras podemos elencar Les
maladies de la memoire, Les maladies de la volont (presente na Limana sob o
nmero 712), Les maladies de la personnalit, Essais sur la passion e LHeredit
Psychologique (nmero 280 na biblioteca de Lima Barreto). O tom memorialista do
romance barretiano, bem como seu ttulo mostram claramente a contribuio de
Ribot.
65

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 95.

106

histria moral da gerao contempornea e seu fracasso em realizar


as ambies individuais e sociais.
Dos autores russos lidos no Brasil nos sculos XIX e comeo
do XX por meio de tradues diretas para o francs ou portuguesas a
partir das verses francesas 66 , o narrador barretiano banhou-se nas
guas em que Dostoivski (em Crime e Castigo) mergulhava nos
temas da vida dos miserveis, dos pequenos burgueses e dos
personagens devorados por desgraas, contradies, tormentos e
dramas psicolgicos 67 e na filosofia da Histria sustentada por Tolstoi
(em Guerra e Paz), de que os acontecimentos seguem rumos
inexorveis, independentes da vontade dos homens 68.
O portugus Ea de Queirs dispensa apresentaes, mas a
falta de um exemplo especfico da sua extensa obra fornecido pelo
narrador barretiano dificulta sabermos qual livro exatamente
aludido nesse trecho 69. Conforme discutimos anteriormente, porm, A
Correspondncia de Fradique Mendes trabalha um tema abordado
66

Sobre as tradues portuguesas de livros estrangeiros nos sculos XIX e XX, ver

RODRIGUES, A. A. Gonalves. A traduo em Portugal: tentativa de resenha


cronolgica das tradues impressas em lngua portuguesa excluindo o Brasil de
1495 a 1950. vol. 3 e 4. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1992-1994.
67

MASON, Jayme. Mestres da Literatura Russa: aspectos de suas vidas e obras.

Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, pg. 113.


68

Idem, pg. 93.

69

Na biblioteca do autor Lima Barreto, o nico livro queirosiano listado As Farpas,

sob o nmero 390.

107

mais tarde pelo romancista brasileiro: a crtica imprensa. Embora


possa ser apontado como um precursor borgiano 70 do seu romance, A
Capital uma obra pstuma de Ea (1925) publicada aps a morte
de Lima Barreto (1922); sendo, portanto, impossvel que o prmodernista tenha tido contato com ela. Uma obra queirosiana que
pode ser apontada como alternativa seria A Cidade e as Serras
(tambm pstuma, mas publicada em 1901) devido crtica do autor
portugus no livro ao estilo de vida afrancesado e desprovido de
autenticidade, que enaltece o progresso urbano e industrial e se
desenraiza do solo e da cultura do pas.
Quando apresentamos essas conexes intertextuais na obra
barretiana no ignoramos o alerta de Maurice Blanchot sobre o perigo
das referncias prolongadas ad infinitum: "Quant au jeu des
rminiscences, chacun peut s'y livrer sans fin : c'est affaire de
lecture, de savoir er d'ingniosit (...) Mais sur cette voie, comment

70

Aludimos aqui ao famoso texto do escritor e crtico literrio argentino Jorge Luis

Borges (18991986): Kafka e seus precursores, publicado em Outras inquisies


(1952). Depois de elencar alguns autores que anteciparam Kafka, Borges lana a
pergunta: se Kafka nunca tivesse existido, que ligao haveria entre esses
precursores de Kafka? Nenhuma, ele conclui, e essa a prova de que a relao
entre precursores e sucessores mais complexa do que se supe: no so os
precursores que definem o sucessor, mas o sucessor que determina uma linhagem
de precursores ao combin-los em seu texto. Subvertendo a a viso diacrnica da
histria literria, Borges aponta uma relao em que o escritor se assume como
leitor e a leitura prevalece sobre a escrita.

108

s'arrter ?" 71. Nossa inteno , como ensina Leyla Perrone-Moiss 72,
estudar as transformaes introduzidas e objetivos buscados por
Lima Barreto com os modelos que ele usou a partir do levantamento
dessas fontes.
Primeiramente, as referncias do narrador barretiano
estabelecem a ancoragem do romance no contexto scio-histrico da
Belle poque, testemunhando da presena francesa na cultura
brasileira dos anos 1870-1920. Segundo, elas firmam um pacto de
legitimao e insero do romance Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha dentro da tradio literria ocidental, convidando o leitor a
buscar e examinar as filiaes, preliminares e dilogos com os
autores franceses, portugueses e russos apresentados por ele.
Finalmente, os modelos e normas confessados por Isaas
Caminha efetuam um desejo de transcendncia literria, por assim
dizer: o narrador procura transpor o relato de seus dramas pessoais e
o retrato da Belle poque brasileira em um tom prximo ao da
pera-bufa para um nvel mais amplo e universal. Mas tal uso das
fontes no implica mera cultura enciclopdica nem submisso cega a
modelos. Como veremos no prximo captulo, o livro traz marcas que

71

BLANCHOT, Maurice. Lautramont et Sade. Paris: Minuit, 1984 (Colection

Arguments), pages 62-63.


72

PERRONE-MOISS, Leyla. A Falncia da Crtica um caso limite: Lautramont.

So Paulo: Perspectiva, 1973 (Coleo Debates), pgs. 77-85.

109

tanto esclarecem os processos inventivos escolhidos quanto revelam


a originalidade da nova obra.

110

3. UM ICONOCLASTA NO HORIZONTE

Tanto na segunda parte de Illusions Perdues quanto nos


primeiros captulos de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha
podemos constatar a presena de dois grandes temas: o mito de
Napoleo e o provinciano na Capital. Elementos que correm juntos
como as margens de um rio tanto na literatura em si quanto no
contexto scio-histrico que os produz, desde a sua abordagem em
Le Rouge et le Noir, de Stendhal, uma fonte comum partilhada por
Honor de Balzac e Lima Barreto. Neste captulo veremos como esses
temas stendhalianos so emprestados e aproveitados em Illusions
Perdues e Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, a denncia social
feita por Lima Barreto em seu romance e as expectativas literrias
existentes na publicao do seu romance de estreia.

3.1. Provincianos inspirados por Napoleo

Antes de prosseguirmos em nossa discusso, precisamos definir


e situar esses importantes temas. O mito de Napoleo embasa a ideia
de que mais poderosas que a concepo determinista por trs dos
acontecimentos so a vontade e o gnio individual, algo alimentado
especialmente pelo Mmorial de Sainte-Hlne, relato escrito por
Emmanuel de Las Cases (publicado em 18221823) a partir das

111

memrias do Imperador, recolhidas quando de seu exlio na Ilha de


Santa Helena. Na obra, um grande sucesso editorial, ele se apresenta
como herdeiro da Revoluo Francesa, reconciliando a nao dos
crimes cometidos no Terror e fortalecendo suas polticas e conquistas
sociais, como a liberdade individual, a soberania popular e uma elite
sem privilgios anacrnicos 1.
Os grandes escritores franceses do sculo XIX admiravam muito
esse lder e trabalharam o mito de Napoleo em suas obras, tais
como Alexandre Dumas pai2 e Victor Hugo 3, ambos filhos de generais
do exrcito napolenico, Alfredo de Musset4 e o prprio Honor de
Balzac5 . Mas nenhum desses poetas e romancistas captou to bem o
tema quanto Henri Beyle, mais conhecido como Stendhal
1

Para uma viso histrica sobre a influncia dos ideias da Revoluo Francesa na

construo do mito de Napoleo, ver HOBSBAWM, Erich. A Carreira Aberta ao


Talento. IN: ____________. A Era das Revolues (1789-1848). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977 (pgs. 255-278).
2

Alexandre Dumas pai (1802-1870) escreveu Napolen Bonaparte, ou 30 ans de

Histoire de France, um drama em 6 atos publicado em 1831.


3

Vrios dos poemas de Victor Hugo (1802-1885) testemunham do seu culto figura

do Imperador: Bonaparte (1818), do livro Poemes d'enfance et de jeunesse; la


Colonne de la Place Vendme (1827), de Odes et Ballades; Lui (1829), de Les
orientales; e o poema Le Retour de l'Empereur (1840).
4

Alfredo de Musset (1810-1857) evoca a lenda napolenica na obra Les Cofessions

dun Enfant du Sicle (1836).


5

Presente nos romances do Ciclo Vautrin (ver nota 6), mas de forma mais intensa

no segundo relato, feito por mile Blondet, de Autre tude de Femme (1842) e no
terceiro captulo de Mdecin de Campagne (1833).

112

(1783-1842), no romance Le Rouge et le Noir: cronique du XIXe


sicle 6 (publicado em 1830). Nele, o aspirante a padre Julien Sorel
materializa literariamente a aura de admirao presente no sculo
XIX em torno do corso. Conhece todos os detalhes do Mmorial de
Sainte-Hlne, considera o general como uma espcie de deus e
modelo de sucesso e sonha em tornar-se um novo Napoleo, embora
tenha de esconder do abade Chlan tal admirao.
O segundo aspecto importante para nossa discusso
explorado por Stendhal na segunda parte da narrativa: devido
interveno do abade Pirard para que Sorel se torne o secretrio do
Marqus de La Mole, o protagonista parte para Paris e surgem as
incontveis diferenas entre o interior (especificamente, Verrires) e
a Cidade-Luz. Juntemos esse elemento do contraste revelador do
abismo que existe entre a Capital e a Provncia (o resto do pas) com
o jovem ambicioso que sonha em conquistar Paris e temos a
descrio do jovem provinciano na Capital. Alm de Julien de Sorel,
outros parceiros famosos de trajetria temtica so os do Ciclo

STENDHAL. Le Rouge et le Noir : cronique du XIXe sicle. prface et

commentaires de Pierre-Louis Rey. Paris: Pocket, 2010 (Pocket Classiques; 6028)

113

Vautrin 7: Eugne de Rastignac e Lucien Chardon-Rubempr. Este


batiza o tema, devido ao ttulo da segunda parte de Illusions Perdues
Un grand homme de province Paris.
Diferentemente do mito de Napoleo, historicamente mais
recente, esse um tema mais difuso na histria da literatura devido
forte, milenar e persistente centralizao francesa da vida poltica,

Isto , a trilogia de romances da Comdie Humaine em que se destaca a figura do

criminoso Jacques Collin, tambm chamado de Vautrin, Carlos Herrera e Trompe-laMorte:


BALZAC, Honor de. Le Pre Goriot. prface et commentaires de Grard
Gengembre. Paris: Pocket, 2010 (Pocket Classiques; 6023).
__________________. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick
Berthier. Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 21017).
__________________. Splendeurs et Misres de Courtisanes. presente et
anote par Patrick Berthier. Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 6491).
Que o prprio Balzac havia planejado a trilogia do Ciclo Vautrin pode ser visto no
seguinte trecho do terceiro volume da srie:
Il est impossible de faire une longue digression au dnouement dune scne dj si
tendue et qui noffre pas dautre intrt que celui dont est entour Jacques Collin,
espce de colonne vertbrale qui, par son horrible influence, relie pour ainsi dire LE
PRE GORIOT ILLUSIONS PERDUES, et ILLUSIONS PERDUES cette TUDE.
BALZAC, Honor de. Splendeurs et Misres de Courtisanes, page 614.

114

administrativa, cultural, universitria e editorial em Paris 8. No toa


os trs arrivistas precisam passar pela cidade-sede do reino/repblica
para alcanar seus planos sociais, econmicos e educacionais.
Evidentemente precisamos ressalvar que a oposio provncia versus
Capital mais bem explorada e forte na obra balzaquiana do que nas
outras duas por uma necessidade da economia narrativa da Comdie
Humaine: alm de obra capital dentro do conjunto, Illusions Perdues
estabelece o elo entre as cenas da vida de provncia e as da vida
parisiense. Tambm encontramos no romance balzaquiano um
conflito quase rousseauniano entre os dois espaos geogrficos e
morais, fundamental para explicar a decadncia e corrupo de
Lucien de Rubempr:

Lopposition Paris-Provence entre une province


archaque et atone, mais moralement bonne, et une
Paris moderne et tumultueuse, mais vritable ocan de
perdition est, en revanche, au centre de ce roman
dapprentissage quest Le Pre Goriot (1835). Prsente

Sobre a realidade histrica e tratamento do tema do jovem provinciano na Capital

na imprensa francesa, aproveitados mais tarde por Honor de Balzac, ver


BERTHIER, Patrick. Le thme du grand homme de province Paris dans la presse
parisienne au lendemain de 1830. IN: DIAZ, Jos-Luiz et GUYAUX, Andr (eds.).
Illusions Perdues. Actes du Colloque des 1er et 2 dcembre 2003 organis
par lUniversit Paris-Sorbonne et la Societ des tudes romantiques. 2e.
ed. Paris: Presses de lUniversit Paris-Sorbonne, 2004. (Colloques de la Sorbonne),
pages 25-50.

115
aussi lide de voir la ralit parisienne par les yeux
dun jeune provincial, naf et pur dabord, mais vite
perverti par les sirnes de lambition. 9

Se em Angoulme o medocre poeta tomado por excepcional,


Paris ser implacvel com o heri balzaquiano e sua queda ser
prevista diversas vezes por outros personagens, apesar das
declaraes em contrrio da parte dele. Incapaz de aprender os
cdigos da vida na Capital como seu conterrneo Eugne de
Rastignac (em cujo contraste, planejado por Balzac, sua trajetria se
torna ainda mais descensional), a fraqueza de Lucien se manifestar
ainda mais em sua desiluso amorosa (com Madame de Bargeton),
intelectual (com os manuscritos de seu livro reescritos pelo Cnacle)
e moral (com a rpida corrupo na imprensa). Da mesma forma que
com Julien de Sorel, a aparente segurana trazida por Paris precipita
a derrocada final de Lucien de Rubempr.
Quando chega a vez de Isaas Caminha ser convocado
fogueira das vaidades, ele condescende seus valores apenas
temporariamente, e de forma bastante lcida. Afinal, o heri
barretiano j comea desiludido a sua trajetria no Rio de Janeiro.
Exposto a vrias situaes decepcionantes na sua chegada Capital,

DIAZ, Jos-Luis. Jos-Luis Diaz commente Illusions Perdues dHonor de

Balzac. Paris: Gallimard, 2001. (Collection Foliothque; 13), page 17.

116

ele revela uma fora inexistente no colega balzaquiano que o faz


perder as iluses mas no a pureza moral, graas sua capacidade
de percepo que o leva a reconhecer, revoltado, as contradies do
sistema medida em que elas se apresentam a ele. Em sua
passagem pelo Rio de Janeiro, Isaas Caminha completa sua
educao pessoal por meio de aprendizagens e desaprendizagens,
passando do conhecimento dos livros (o plano ideal que imaginava
em suas iluses) ao conhecimento do mundo (as contradies do
sistema). Igualmente, ele atravessa as provaes da Capital
mantendo uma viso quase idlica da cidade pequena diante de si, a
ponto de conseguir uma insero social ainda que mediana (mas
estvel, diferentemente de Lucien) e recusar a transigncia
permanente ao decidir sair deliberadamente da imprensa.
Alm disso, sua trajetria como personagem mais autnoma
na economia narrativa do romance se comparada construo
efetuada com Lucien. Este emasculado em sua relao de amizade
espiritual com Daniel Schard e mefistotlica/homoertica com
Vautrin (ambos descritos com traos viris em contraste com Lucien),
enquanto Isaas mantm sua independncia moral diante dos poucos
amigos que estabelece dentro do enredo. E embora em dado
momento o heri barretiano confesse seu pouco traquejo com as

117

mulheres 10, ele assume as responsabilidades do matrimnio e da


paternidade sem cair na dependncia maternal de Lucien de
Rubempr em seus casos com Madame de Bargeton e Coralie que
chega inclusive a pedir dinheiro emprestado criada desta ltima.
Voltando ao intertexto de Le Rouge et le Noir em Honor de
Balzac, um estudo de F. M. Warren11 aponta diversos paralelos entre
os romances, pois segundo ele as duas obras

have as heroes young men who decide to make their way in


the world by their wits only; consequently they make love to
married women who are their social superiors; exposure by
rivals merely results to their advantage; when they reach
Paris, they measure at once the difference between its ideals
and the ideals of their province, and resolve to master
Parisian society; their good looks and their tailors lend them
important assistance in their effort, and for a while they are
successful; then disaster comes, self imposed in the one

10

Diante daquela mulher, na casa particular do deputado, cuja situao nela era

fcil de descobrir, eu fiquei nessa atitude de menino tmido que me invade, sempre
que estou em presena de mulheres, numa sala qualquer.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:
Publifolha, 1997. (Biblioteca Folha; 18), pg. 80.
11

Warren, F. M. Was Balzac's Illusions Perdues Influenced by Stendhal? IN:

Modern Language Notes, Vol. 43, No. 3. (Mar., 1928), pp. 179-180.

118
case, incidental in the other. Here is considerable likeness,
both of tone and trend 12 .

Embora seja cauteloso ao usar as similaridades para propor a


relao (influncia a palavra usada pelo articulista) de Stendhal
com Balzac, F. M. Warren menciona alguns dados extraliterrios
durante a composio de Illusions Perdues que fortalecem sua tese.
Em 1836, quando o romance estava sendo elaborado, Madame de
Berny estava morrendo e Balzac pode ter se lembrado dos tempos
em que ele foi tutor do filho dela e tinha conquistado o seu amor. Tais
recordaes podem ter trazido mente do romancista os comeos de
Julien Sorel e t-lo influenciado na caracterizao e enredo de
Illusions Perdues. F. M. Warren tambm registra a presena do nome
Rubempr 13, presente no dilogo do abade Chas-Bernard com Julien:

O veut-il en venir, se disait Julien ? Il voyait avec


tonnement que, pendant des heures entires, l'abb Chas
lui parlait des ornements possds par la cathdrale. Elle
avait dix-sept chasubles galonnes, outre les ornements de
deuil. On esprait beaucoup de la vieille prsidente de
Rubempr; cette dame, ge de quatre-vingt-dix ans,

12

Idem, pg. 180.

13

Alberthe de Rubempr, prima de Delacroix, foi uma paixo de 6 meses de

Stendhal no ano de 1829. Ela ser homenageada em Le Rouge et le Noir como a


marquesa Mme. de Rubempr no Livro 1, captulo XXVIII: Une Procession.

119
conservait, depuis soixante-dix au moins, ses robes de noce
en superbes toffes de Lyon, broches d'or. 14

altamente especulativa a associao de Le Rouge et Le Noir,


sugerida por F. M. Warren, para nomear o protagonista das Illusions
Perdues: a escolha de Rubempr por sua sonoridade e aproximao
fontica Julien/Lucien. um dado que, embora interessante e vlido,
deve ser agregado a outras aproximaes mais substanciadas. Como
o tema da amizade presente nas relaes Fouqu/Julien e Schard/
Lucien apontado por F. M. Warren, com os elementos comuns de
devoo abnegada unilateral e os conselhos no acatados sobre
planos profissionais.
Cremos particularmente que o mito napolenico o melhor fio
a perpassar as histrias de Julien Sorel e Lucien de Rubempr. Ainda
que Lucien no partilhe da devoo explcita de Julien ao general, seu
ideal jovem de transcender o ambiente da provncia e vencer em
Paris, conseguindo a glria pessoal no campo literrio, claramente se
inspira no mito napolenico presente na sociedade francesa psrevolucionria e abordado previamente no romance stendhaliano.
Ideal que conduzir Lucien runa, como tantos outros de seu tempo,
segundo o narrador balzaquiano:
14

STENDHAL. Le Rouge et le Noir : cronique du XIXe sicle. prface et

commentaires de Pierre-Louis Rey. Paris: Pocket, 2010 (Pocket Classiques; 6028),


page 223.

120

Il se disait alors qu'il tait plus beau de percer les pais


bataillons de la tourbe aristocratique ou bourgeoise coups
de succs que de parvenir par les faveurs d'une femme. Son
gnie luirait tt ou tard comme celui de tant d'hommes, ses
prdcesseurs, qui avaient dompt la socit ; les femmes
l'aimeraient alors ! L'exemple de Napolon, si fatal au Dix
neuvime Sicle par les prtentions qu'il inspire tant de
gens mdiocres, apparut Lucien qui jeta ses calculs au vent
en se les reprochant. Ainsi tait fait Lucien, il allait du mal au
bien, du bien au mal avec une gale facilit. 15

A lio de Histria que Vautrin ministrar ao Lucien decadente e


prestes a suicidar-se prova decisiva para a presena do mito
napolenico. Se observamos que a lio dada por um homem
travestido de padre, o intertexto com Le Rouge et le Noir reforado:

Petit drle, dit l'abb souriant et prenant l'oreille de


Lucien pour la lui tortiller avec une familiarit quasi royale, si
vous tiez ingrat avec moi, vous seriez alors un homme fort,
et je ne vous en voudrais pas ; mais vous n'en tes pas
encore l, car, simple colier, vous avez voulu passer trop tt
matre. C'est le dfaut des Franais dans votre poque. Ils
ont t gts tous par l'exemple de Napolon. Vous donnez

15

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick Berthier.

Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 21017), page 109.

121
votre dmission parce que vous ne pouvez pas obtenir
l'paulette que vous souhaitez... Mais avezvous rapport
tous vos vouloirs, toutes vos actions une ide ? ...
Hlas ! non, dit Lucien.
Vous avez t ce que les Anglais appellent inconsistent,
reprit le chanoine en souriant. 16

As referncias a Napoleo na lio de Vautrin continuam,


ensinando ao jovem Lucien que o general mantinha valores flexveis o
suficiente para negoci-los na realizao de suas ambies. Isso
conduziu Napoleo ao ponto aonde chegou, e no meramente uma
suposta fora de vontade ou reconhecimento inevitvel do seu
talento. Um fato claramente comprovado nos relativos sucesso (Julien
e Rastignac) e fracasso (Lucien e Isaas) conseguidos pelos grandes
provincianos inspirados pelo corso.

3.2. Temas stendhalianos em Lima Barreto

Quanto a Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, o intertexto


de Lima Barreto com Le Rouge et le Noir evidente em diversos
momentos da obra. A abertura do romance em si j uma chave que
desvenda o teor das pretenses de Isaas Caminha. Antes do ingresso
nos estudos, o pai que, sem mera coincidncia, um padre
16

Idem, page 778.

122

informa ao narrador que este nascera no dia em que Napoleo


venceu a batalha de Marengo 17. As noes de Histria por parte do
menino so limitadas, mas no as sementes lanadas no esprito
dele:

A tristeza, a compreenso e a desigualdade de nvel mental


do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo
curioso: deram-me anseios de inteligncia. Meu pai, que era
fortemente inteligente e ilustrado, em comeo, na minha
primeira infncia, estimulou-me pela obscuridade de suas
exortaes. Eu no tinha ainda entrado para o colgio,
quando uma vez me disse: Voc sabe que nasceu quando
Napoleo ganhou a Batalha de Marengo? Arregalei os olhos e
perguntei: Quem era Napoleo? Um grande homem, um
grande general... E no disse mais nada. Encostou-se
cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na
significao de suas palavras; contudo, a entonao de voz,
o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande
homem!... 18

17

Na Batalha de Marengo (uma vila italiana do Piemonte), travada em 14 de junho

de 1800, combateram entre si as foras napolenicas e as austracas. Como a


narrativa se passa no Rio de Janeiro dos anos 1900-1910, a nfase da referncia
deve ser mais ao dia em si (e no ao ano).
18

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:


Publifolha, 1997. (Biblioteca Folha; 18), pg. 39.

123

Essa uma referncia discreta (tanto que foi olvidada pela


crtica literria barretiana), mas importantssima por afirmar o
general corso como inspirao para a trajetria do narradorprotagonista Isaas Caminha. No um dado fortuito, nem deve ser
confundido com um desejo simples de arrivismo. Quando o jovem
barretiano sonha mais tarde com o momento em que resgataria o
pecado original do meu nascimento, amaciaria o suplcio premente,
cruciante e onmodo de minha cor19, suas esperanas no repousam
de forma alguma sobre uma esperteza malandra, um casamento
arranjado ou uma herana inesperada os meios tradicionais de
arrivismo.
O desejo de ascenso social deste Napoleo tupiniquim firmavase, como o irmo mais velho Lucien de Rubempr, nas bases do
reconhecimento do esforo e gnio pessoais. As portas lhe seriam
abertas no com a publicao das Marguerites ou LArcher de Charles
IX, mas com o ttulo de Doutor advindo do estudo universitrio. A
glria futura na Capital do pas seria fcil e certa, tanto quanto a
aclamao local do poeta Lucien nos sales de Angoulme e as notas
timas e os prognsticos da professora Ester na cidade de terceira
ordem 20. Ambos, Lucien e Isaas, so obrigados a escolher entre dois
caminhos: os sonhos hericos da juventude ou a mediocridade da
19

Idem, pg. 45.

20

Ibidem, pgs. 40 e 48.

124

vida provinciana, um espao limitado do qual se deve escapar. A


ambio que os consome os faz escolherem a primeira via, mesmo
conscientes da luta entre o vcio e a virtude que encontraro. Mas,
como escreveria Drummond, no meio do caminho tinha uma pedra: a
estrutura social ao redor. Esses candidatos a self made man
pertencem a sociedades altamente hierarquizadas, em que as
pessoas necessitam da recomendao, do apadrinhamento e do favor
de outras pessoas para abrir seus caminhos. Nada, porm, que a fuga
com a amante Madame de Bargeton, com parentes em Paris, ou a
carta de recomendao para o Deputado Castro no resolvessem.
Os leitores de Lima Barreto, contudo, somos brindados com a
angustiosa ironia da trajetria de Isaas Caminha. Pois a companhia
da amante por demais secundria para o poeta provinciano,
servindo dentro da trama apenas para levar Lucien da provncia para
Paris; tanto que eles se separam pouco depois de sua chegada. O
mesmo no se d com Isaas Caminha. Apesar dos recursos
financeiros limitados para manter o perfil de dndi, tendo de recorrer
ao amigo e irm em Angoulme, Lucien tem ascendncia nobre por
parte de me e conhece minimamente o cdigo social da elite em que
pretende penetrar. No este o caso, entretanto, do personagem
barretiano, consciente de que o Rio era uma cidade grande, cheia de

125

riqueza, abarrotada de egosmo, onde eu no tinha conhecimentos,


relaes, protetores que me pudessem valer 21.
O conhecimento de que um amigo menos ilustre vencera no Rio
afasta seus temores de mudar-se para a cidade grande, mas ainda
assim ele obrigado a aceitar os conselhos do tio Valentim para que
busque junto ao Coronel Belmiro uma recomendao a fim de que o
deputado federal Castro lhe arranje um emprego enquanto faz os
estudos universitrios. Quando, muitos dias mais tarde, ao perceber
que o benfeitor, que dele deveria se encarregar, o desampara, ele fica
desolado, passando do dio covardia e desta ao pavor: fiquei
amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da
sociedade; senti-os por toda a parte, graduando os meus atos,
anulando os meus esforos; senti-os insuperveis e destinados a
esmagar-me, reduzir-me ao mnimo, a achatar-me
completamente...22.
Do abandono pelo almejado benfeitor deputado Castro at a a
entrada na imprensa, tema do prximo captulo, a histria de Isaas
Caminha se confundir com a de Lucien em muitos pontos. Como o
personagem balzaquiano, ele tambm enfrentar a misria e
provaes no perodo de adaptao, tendo de trocar a hospedagem

21

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 41.


22

Ibidem, pg. 82.

126

no hotel inicial por um quarto modesto para estudantes, a luta para


fazer as refeies dirias, frequentes visitas biblioteca pblica para
ler grandes autores, a amizade solidria com homens tambm
instrudos, a entrada no crculo de debates intelectual (o Cnacle , no
caso de Lucien; o grupo de positivistas, quanto a Isaas) e a troca de
ideias e discusses filosficas com esses novos amigos. No entanto
h, evidentemente, pontos em que Lima Barreto segue caminhos
diferentes ao construir a trajetria do seu personagem.
A descrio do protagonista francs envolve traos
efeminados, que fazem dele um Bacchus indien23 e lhe do uma
excepcional beleza feminina 24 especialmente pelo contraste com
Davi Schard sobre quem se concentrent les traits masculins da

23

Patrick Berthier nos explica que le Bacchus indien des archologues est

represent barbu et vtu dune robe flottante, ce qui peut expliquer dentre sur
landrogynie du personnage de Lucien.
BALZAC, Honor de. Illusions Perdues, page 67.
24

Eis parte da descrio balzaquiana de Lucien:

Auprs du pauvre imprimeur [David Schard], (...) Lucien se tenait dans la pose
gracieuse trouve par les sculpteurs pour le Bacchus indien. Son visage [de Lucien]
avait la distinction des lignes de la beaut antique : c'tait un front et un nez grecs,
la blancheur veloute des femmes, des yeux noirs tant ils taient bleus, des yeux
pleins d'amour, et dont le blanc le disputait en fracheur celui d'un enfant. Ces
beaux yeux taient surmonts de sourcils comme tracs par un pinceau chinois et
bords de longs cils chtains.
BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick
Berthier. Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 21017), page 67.

127

dupla 25. Balzac reala o perfil andrgino e beleza excepcional do heri


que resultar em tripla funo narrativa: 1) a relao submissa com
que Lucien formar pares abrindo o romance, um anglico e
espiritual com David Schard e, fechando a histria, outro diablico e
carnal com Carlos Herrera 26; 2) a aparncia sedutora que o far
conquistar Madame de Bargeton e Coralie; 3) o carter fraco que
contrasta a beleza do seu corpo com a corrupo da alma ocorrida
to rapidamente em Paris. No caso de Isaas, o autor e os trpicos lhe
do um corpo regularmente talhado, um rosto oval nem hediondo
nem repugnante e a tez de cor pronunciadamente azeitonada 27,
conforme seu prpria e lacnica descrio.
Tanto em Illusions Perdues quanto em Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha os protagonistas so construdos pelo
contraste entre sua aparncia e a dos demais personagens.
Entretanto, Lucien marca-se pela androginia, uma aparncia
indefinida em gnero que se reflete na sua indefinio moral e que
lhe abre vrias portas na Province e em Paris; enquanto Isaas, pela
mulatice, a alteridade excludente que limita suas oportunidades de
25

LABOURET, Mireille. Mphistophles et lAndrogyne : les figures du pacte dans

Illusions Perdues. IN: LAnne Balzacienne (ISSN 0084-6473). Paris: PUF,


1996, n 17, page 216.
26

Idem, pages 221-224.

27

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pgs. 49-50.

128

vencer na Capital. H uma iluso inicial, que nasce do contraste entre


ele e o pai versus a me, dar lugar desiluso entre ele e o outro e,
posteriormente, entre ele e a sociedade como um todo. E o narradorprotagonista barretiano sente tal dado na pele, literalmente, nas
primeiras duas primeiras experincia de racismo que enfrenta ao sair
do interior: quando tratamentos diferentes em um balco de estao
so conferidos a ele e a um rapaz loiro na hora de exigir um troco
no devolvido e quando suspeito de ser o autor de um furto
ocorrido no Hotel Jenikal, apenas por ser o nico hspede mulato.
Como Lima Barreto era mestio, a maioria dos crticos l esses
e outros episdios do romance como traos autobiogrficos do autor.
Reiterando o que dissemos no captulo anterior, o racismo uma
temtica recorrente em sua obra e, especialmente no caso de
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, no h uma
correspondncia geral entre a trajetria do personagem e a vida do
escritor que permita essa leitura biografista, to rpida e superficial.
Uma outra explicao, mais fundamentada e menos evidente,
fornecida pelas relaes intertextuais do romance. Horas antes de
comparecer delegacia, um sujeito entrou no bonde, deu [em Isaas
Caminha] um grande safano, atirando-[lhe] o jornal ao colo, e no
se desculpou. Tomado do sentimento de opresso da sociedade
inteira, o narrador-protagonista assim rememoraria a cena de

129

desprezo e discriminao racial: Hoje que sou um tanto letrado sei


que Stendhal dissera que so esses momentos que fazem os
Robespierres. O nome no me veio memria, mas foi isso que eu
desejei chegar a ser um dia28.
Essa cena remonta de Le Rouge et le Noir no passeio de
Julien com o casal Rnal e Madame Derville. Como o rapaz fica
irritado com a presena desagradvel e as palavras grosseiras de
Monsieur Rnal, a visitante pede para que Julien melhore o humor.
Ele, ento, encara a mulher com uma frieza e desprezo tamanhos que
Madame Derville fica surpresa e amedrontada com o olhar vingativo
do rapaz. O narrador registra: Ce sont sans doute de tels moments
qui ont fait les Robespierre29 . Assim, a luta de classes
problematizada em Stendhal e a beleza excepcional enfatizada em
Balzac atravessam o Atlntico e desembarcam em Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha sob a forma da discriminao racial. No se
trata de um problema meramente scio-econmico como proporia
uma leitura marxista ou sociolgica simplista, com um conflito que
denunciaria o descompromisso das classes altas e o ressentimento
dos pobres, independemente de estes ltimos serem brancos, pardos
ou negros. Embora no se possa ignorar a desigualdade scioeconmica presente na sociedade brasileira, tambm no podemos
28

Ibidem, pg. 83.

29

STENDHAL. Le Rouge et le Noir, page 111.

130

esquecer que essa mazela nacional pode ser agravada pela questo
da cor.
Tal realidade pode ser comprovada em diversos momentos da
obra, a comear pelo prefcio, tantas vezes ignorado na leitura do
romance. Nele, o narrador barretiano prope demonstrar como as
consideraes desfavorveis natureza da inteligncia das pessoas
do meu nascimento 30, alegadas num artigo provavelmente sobre os
estudos em voga que correlacionavam capacidade intelectual e
caractersticas raciais, no estava em ns, na nossa carne e nosso
sangue, mas fora de ns, na sociedade que nos cercava, as causas de
to feios fins de to belos comeos31. E as evidncias prosseguem
com o ns reticente presente no conselho da me antes da partida
de Isaas Caminha, os j citados episdios do passageiro loiro no
trem (em iguais condies sociais s do protagonista) com
tratamento melhor no balco e a denncia por suspeita de furto no
Hotel Jenikal, bem como o emprego rejeitado na padaria assim que
o proprietrio examinou o narrador32. No se trata, portanto, de uma
mera questo de conflito de classes.

30

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 32.


31

Idem, pg. 34.

32

Ibidem, pgs. 100-101.

131

Com a cena, Isaas Caminha no trama planos de desforra


como faz Julien de Sorel, cujo momento robespieriano aciona a
bomba-relgio maquiavlica que explodir em vingana contra o
casal Derville. Lembremos que o heri barretiano carrega traos tanto
do protagonista stendhaliano (a fora moral) quanto de Lucien de
Rubempr (na sua pureza inicial), mas guarda relao mais prxima
com este do que com aquele. Tal como Lucien, Isaas Caminha no
revolucionrio e compartilha da experincia de provinciano cuja
pureza corrompida na vinda para a Capital, perdendo suas iluses.
semelhana do heri stendhaliano, o protagonista de Recordaes
do Escrivo Isaas Caminha tambm quer vencer graas ao
conhecimento e almeja superar seu lugar social. Contudo, enquanto a
cena robespierriana refora a ambio sem escrpulos do
protagonista de Le Rouge et le Noir, ela desperta a conscincia da
prpria cor no heri barretiano e desfere o golpe final nas iluses
remanescentes do jovem provinciano.
Um ponto curioso e digno de considerao a associao entre
o elemento religioso e a falsidade presentes nas trs obras. Em Le
Rouge et le Noir, o aparentemente piedoso e severo Julien de Sorel
nutre pouqussimo interesse pela Bblia para alm de seu valor
literrio, usa grandes passagens memorizadas da verso em latim
para impressionar pessoas de destaque e se envolve numa trama de

132

seduo e adultrio. No caso de Illusions Perdues, encontramos o


padre Carlos Herrera impedindo Lucien de suicidar-se nas guas e
propondo um pacto diablico e homoertico com o heri balzaquiano
para que este consiga a ascenso social que tanto deseja; na
verdade, um disfarce do criminoso Vautrin, que descobriremos em
Splendeurs et Misres des Courtisanes ter matado o padre espanhol e
roubado sua identidade. O mesmo ocorre em Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha, em que o pai do protagonista um padre
que no honrou os votos do celibato e mantm uma relao
simultnea de afeto e distanciamento com o filho.
Essas confluncias, contudo, obedecem a interesses especficos
da economia narrativa dos romances franceses entre si e destes com
a obra brasileira. Enquanto na histria de Stendhal a vocao forjada
cumpre o papel de forma de arrivismo social para o filho de
carpinteiro que admira Napoleo alm de desnudar o contexto de
hipocrisia e censura sob a Restaurao , o recurso ao falso padre
nessa obra do Ciclo Vautrin fornece tanto um recurso para o
reaparecimento do criminoso do prvio Pre Goriot quanto uma
soluo deus ex machina33 para a cena de Lucien, alm de antecipar

33

Ou diabolus ex machina, como prefere LABOURET, Mireille. Mphistophles et

lAndrogyne : les figures du pacte dans Illusions Perdues. IN: LAnne


Balzacienne (ISSN 0084-6473). Paris: PUF, 1996, n 17, page 223.

133

elementos melodramticos presentes no romance seguinte


Splendeurs et Misres des Courtisanes.
No o caso da obra de Lima Barreto, na qual esses aspectos
de corrupo e maquiavelismo ligados ao elemento religioso no tm
lugar. Em parte porque o momento histrico da Primeira Repblica
Brasileira retratado na obra no exigia o malabarismo das aparncias
presente na Restaurao francesa para a preservao e ascenso
social mas que urgir na obra barretiana posterior: Triste Fim de
Policarpo Quaresma, cujo enredo se desenrola sob a presidncia do
Marechal Floriano Peixoto. Em parte porque Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha uma obra fechada em si mesma e sem as
necessidades narrativas do preliminar balzaquiano.
Na obra barretiana, o momento de fraqueza vocacional do pai
de Isaas Caminha um indcio germinal de temas explorados mais
tarde no romance. Num nvel mais abstrato, encontramos na obra o
conflito entre o plano ideal e o mundo real na existncia humana;
numa esfera mais concreta, o descompasso entre o discurso
ideolgico levado ao pblico e a realidade das instituies nacionais
como a religio organizada, a poltica representativa e a imprensa.
Todos esses elementos acima apontam a leitura de Stendhal no
texto de Lima Barreto, a saber: a presena do pai sacerdote
(remetendo ao padre Julien Sorel e indicando a ascendncia literria

134

em que se inscreve a obra), o jovem ambicioso imbudo do mito de


Napoleo, o tema do provinciano na Capital, a referncia explcita
cena de Julien, o elemento religioso acompanhado da falsidade e o
reconhecimento de Le Rouge et le Noir como modelo preliminar. Sem
esquecer a tambm presena stendhaliana em Illusions Perdues,
constituindo uma fonte comum a Honor de Balzac e a Lima Barreto,
bem como a fora das leituras confessas e atuantes na obra de Lima
Barreto.

3.3. Um crtico da Belle poque

No podemos esquecer a lio alencariana do "tamanho da


sociedade fluminense", ensinada na carta posfcio de Senhora.
Rebatendo a crtica de uma leitora que desejava epopeias
fluminenses do autor, Jos de Alencar sentencia que no basta
transpor os dramas e temas da literatura europeia para o Brasil,
preciso aclimat-los nossa realidade e contexto scio-cultural34. H
uma diferena ideolgica que move Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha para alm da cpia, reproduo e/ou inspirao do
preliminar balzaquiano. E assim no descompasso presente no
romance de aprendizagem barretiano, que relata e desvenda tanto o
34

ALENCAR, Jos de. Senhora. IN: ________________. Obra Completa. vol. I:

romance urbano. Rio de Janeiro: Jos de Aguilar, 1959, pgs. 1210-1214.

135

desejo de ascenso social do protagonista quanto a realidade social


que ele precisa enfrentar, observamos como ocorre o aproveitamento
criativo do texto francs pelo pr-modernista.
Stuart Hall concebe a existncia de trs identidades do sujeito,
das quais nos interessa a terceira: a do sujeito sociolgico 35. Segundo
essa concepo, o indivduo moderno internaliza e reflete a crescente
complexidade do mundo moderno. Se na poca do Iluminismo era
possvel pensar no "sujeito da razo", na modernidade temos um
indivduo cada vez mais enredado na maquinaria burocrtica e na
complexidade da sociedade moderna. Desta maneira, a conscincia
do sujeito sociolgico no autossuficiente como a do sujeito
iluminista, centrado na razo 36, mas formada na relao com outras
pessoas importantes para ele.
Essa uma concepo delimitada (ou elitista como preferiro
alguns), pois tal sujeito teorizado por Stuart Hall no o homem
comum, pertencente massa ou povo, haja vista o contraste
indivduo versus multido estabelecido por ele. Em vez disso, trata-se

35

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Ps-Modernidade. trad. Tomaz Tadeu

da Silva e Guacira Lopes Louro.10.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.


36

Tal declarao precisa ser relativizada diante do fato de que o sujeito no sculo

XVIII apresenta-se inseguro em relao razo, como vemos nas obras filosficas
e literrias de Rousseau, Diderot e Prvost. A aparente contradio desaparece
quando contrastamos o sujeito moderno com o pr-moderno: enquanto aquele
reconhea os limites do pensamento racional, este guiava-se pelo pensamento
mgico para explicar e apreender o mundo.

136

do homem letrado ou esclarecido (para usar o termo de Immanuel


Kant), que se serve do seu prprio entendimento para refletir sobre o
mundo e participar do espao pblico. Apesar desse inconveniente
(ela ignora, por exemplo, os personagens dos romances e novelas
picarescos), tal formulao capta bem a realidade histrica do heri
problemtico na literatura, cujos ideais e valores transitam nesse
momento da nobreza do protagonista clssico para a insegurana
daquele encontrada nas obras romntico-realistas.
Em todo caso, essa interao entre o eu e o outro propicia uma
relao extremamente prxima entre sujeito e estrutura. O primeiro
estabilizado pelo mundo cultural, e a segunda fornece os significados
e valores para a construo do indivduo, resultando na figura de um
indivduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano de
fundo da multido da metrpole annima e impessoal. Estas
caractersticas observadas por Stuart Hall podem ser vistas
claramente na obra romanesca barretiana, ao analisarmos os
personagens jornalistas de seus livros.
Podemos entender melhor essa relao entre o eu e a
sociedade luz do texto Perverso da Aufklarng37. Nele, Antonio
Candido abarca o homem comum em sua anlise e mostra como o
discurso libertrio da Ilustrao acabou tornando-se um aparato de
37

CANDIDO, Antonio. Perverso da Aufklarng. IN: Textos de Interveno. So

Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2000, pgs. 320-327.

137

excluso nos pases latino-americanos que o utilizaram para realizar a


sua independncia. O corolrio dos pressupostos da Ilustrao inclua,
necessariamente, a difuso do saber por todas as camadas da
sociedade como uma misso das elites, trazendo a felicidade dos
p ovo s e p r o m ove n d o o d e s t i n o d a s r e s p e c t i va s n a e s .
Diferentemente, porm, houve uma perverso histrica desses ideais
quando se converteram num instrumento scio-poltico de
manuteno do status quo, trazendo excluso, no incorporao, e
sujeio, no liberdade.
Como se efetuou esse processo? Antonio Candido responde que
o ideal da Ilustrao sustentava-se teoricamente numa dimenso
utpica o saber como salvao, nas palavras do autor
proferida pelos colonos que promoveram a independncia latinoamericana. Mas a este discurso se contrabalanava uma dimenso
prtica a teoria da salvao de poucos eleitos mantida pelas
elites com a conservao do sistema econmico e da ordem social
anterior Independncia. Totalizadora e sincera ao mesmo tempo, tal
contradio vai se manifestar, dentre outras formas, numa
concentrao do saber na pirmide social, que se torna rarefeito ao
descer-se do topo base. E tambm no recrutamento de membros
das camadas modestas dessa pirmide, aspirantes ascenso social
pessoal, ao mesmo tempo em que h a manuteno da ordem

138

excludente. Reiterando essa combinao de mrito e apadrinhamento


concedida arbitrariamente a alguns membros apenas do corpo social,
Alfredo Bosi registra:

O caminho de ascenso social aberto pela cultura letrada


criana de origem modesta, negra ou mestia, um dado da
realidade atestado no Brasil imperial: Lus Gama, Machado
de Assis, Andr Rebouas, Jos do Patrocnio so exemplos
de uma combinao que deu certo, de talento pessoal e
apadrinhamento sustentado no momento oportuno. Mas o
que Lima Barreto nos revela, pela boca de Isaas Caminha,
o drama da subida precocemente interrompida. Ingressando
na vida adulta, o jovem promissor se v desamparado dos
primeiros apoios e cai na esfera competitiva de um meio
onde viceja a hostilidade ou o desprezo pelo pobre e, em
particular, pelo negro e o mestio. 38

Como o pai estava morto a esta altura, a me sugere a Isaas


que se aconselhe com o tio Valentim, de pouca instruo mas carter
atrevido, que conhecia melhor o mundo tanto mais que j esteve no
Rio 39. A soluo dada por Valentim foi transpor para a realidade do

38

BOSI, Alfredo. Figuras do eu nas recordaes de Isaas Caminha. IN:

____________. Literatura e resistncia. Companhia das Letras: So Paulo,


2008, pgs. 188-189.
39

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 42.

139

Rio o que era a norma na cidade interiorana: acionar a rede de


favores e excluses da sociedade brasileira, altamente hierarquizada
e sem a qual a educao de Isaas Caminha para nada valeria.
A carta de recomendao junto ao deputado Castro conseguida
com o coronel Belmiro no foi l muito til, verdade, devido ao
pouco empenho e muita mediocridade do parlamentar. Mas sua
funo narrativa , por um lado, semelhante de Madame de
Bargeton em Illusions Perdues isto , levar o protagonista at a
Capital. Por outro, ela evidencia a primazia dos mecanismos de
apadrinhamento sobre os do mrito presentes na realidade brasileira,
pois eram papis mais importantes e mais eficazes que os diplomas
de Isaas Caminha na sua mudana para o Rio de Janeiro. No se
trata de uma mera rede das trampas oligrquicas 40, pois a prxima
carta na manga que ajudar o protagonista na narrativa ocorre no
centro urbano e tambm corrobora a necessidade de
apadrinhamento: ter conhecido o jornalista Gregorvitch Rostloff
livrar Isaas da cadeia e do desemprego.
Isso posto, podemos compreender o carter nada ingnuo da
similaridade do contexto scio-histrico e da trajetria do
protagonista nos romances que estamos analisando. Com Illusions

40

BOSI, Alfredo. Figuras do eu nas recordaes de Isaas Caminha. IN:

____________. Literatura e resistncia. Companhia das Letras: So Paulo,


2008, pg. 190.

140

Perdues, Balzac retrata mais um quadro na histria de costumes da


sociedade francesa da Restaurao dentro da Comdie Humaine.
Quando aproveita o texto balzaquiano, porm, Lima Barreto usa a
trajetria de Lucien de Rubempr para denunciar o atraso nacional
escamoteado no processo de modernizao defendido pela Primeira
Repblica Brasileira.
O dado formal do recuo temporal na escolha do preliminar (em
detrimento de um obra mais recente) reflete tal opo crtica do prmodernista. Se em Machado de Assis temos a representao de uma
corte afrancesada41 no Rio de Janeiro, cujos valores e costumes so
buscados na Cidade-Luz por nossa elite imperial, em Lima Barreto a
galofilia alcana nveis extremos nos anos 1910. Nicolau Sevcenko 42
nos mostra que a ento Capital republicana estava envolta pelo ar da
Belle poque embora ainda com caractersticas coloniais e
predominncia das razes portuguesas , partilhando da tendncia
ocidental de euforia, otimismo e progresso, irradiados pela
hegemonia cultural francesa, entre os anos 1870-1920. Buscando
superar a conscincia de atraso do passado anterior a 1889, o pas
41

PASSOS, Gilberto Pinheiro. O Napoleo de Botafogo: presena francesa em

Quincas Borba de Machado de Assis. So Paulo: Anablume, 2000. (Parcour; 11),


pg. 64.
42

SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: tcnica, ritmos e ritos do Rio. In:

Histria da Vida Privada no Brasil, v. 3. So Paulo: Companhia das Letras, 1998


e; __________________. Literatura como misso: tenses sociais e criao
cultural na Primeira Repblica. Braslia: Brasiliense, 1983

141

volta-se ainda mais para a Frana como modelo cultural a ser


seguido, e mesmo copiado.
Para atender s necessidades de modernizao, o governo do
presidente Rodrigues Alves (1903-1907) aproveita o momento
poltico favorvel e a entrada de capital e acata as aspiraes de uma
elite poltica desejosa de um amplo plano de reforma urbanstica da
Capital do Brasil. Um projeto que Lima Barreto acompanhou de perto.
Como dissemos anteriormente, seu livro Os Subterrneos do Morro
do Castelo um conjunto de 22 reportagens escritas por ele,
publicadas de 28 de abril a 3 de junho de 1905 no jornal Correio da
Manh, em torno das escavaes dos subterrneos do Morro do
Castelo feitas na abertura da Avenida Central43.
Indicado pelo presidente para prefeito, o engenheiro Pereira
Passos (diplomado em Matemtica pela Escola Militar e com curso de
Engenharia na Frana) inicia, a partir de 1903, o enorme programa
de obras que daria uma imagem cosmopolita ao Rio de Janeiro, nos
moldes de Paris. Dentro desse projeto surge a Avenida Central (hoje,
Rio Branco) como via de ligao entre o novo cais do porto e a
Avenida Beira Mar, com duas praas interligadas: a Mau prxima
ao novo porto e a Floriano (hoje, Cinelndia). Tudo criado imagem

43

Resgatadas e publicadas em LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Os Subterrneos

do Morro do Castelo. 3.ed. introd. de Beatriz Rezende e posfcio de Carlito


Azevedo. Rio de Janeiro: Dantes, 1999 (Coleo Babel).

142

e semelhana capital francesa e seus bulevares, obedecendo


estritamente s regras estabelecidas no concurso para essa
empreitada. O edital previa explicitamente a destinao obrigatria
dos pavimentos trreos a um comrcio de luxo e estilo de arquitetura
que assemelhasse os prdios do Rio de Janeiro aos de Paris. Um
projeto facilmente exequvel, pois Pereira Passos havia presenciado a
reforma urbana da capital francesa (1851-1870) sob o comando do
ex-prefeito Baro de Haussmann, na poca em que estava
completando seu aperfeioamento como engenheiro na cole
Nationale des Ponts et Chausses.
Mas o projeto de urbanizao carioca aprofunda as fissuras
sociais e revela as tendncias patticas de europeizao francesa.
Num primeiro momento, podemos citar a tentativa de impor novos
hbitos populao (especialmente das classes mais baixas), como
proibir o entrudo e a fantasia de ndio no Carnaval, a serenata e a
bomia (com o violo associado vadiagem), a prtica de religies
afro-brasileiras e afins (com tolerncia para o kadercismo, de origem
francesa), comrcios varejistas como quiosques e barracas, festas
populares (como as de Judas, So Joo e Bumba-meu-boi), todos
associados ao atraso do passado pr-republicano, indesejval na nova
capital imaginada.

143

A reforma tambm contemplava as medidas de higienizao


que determinaram a demolio e expulso dos cortios, os antigos
casares e sobrados do centro abandonados pela burguesia e
ocupados pelos pobres nos anos finais do Segundo Imprio. Como tal
demolio no contemplou indenizaes em dinheiro ou acomodao
em habitaes populares, a reforma urbanstica francesa alavancou
a criao de favelas no Rio de Janeiro e aprofundou a diviso social
da cidade. Esse processo, conforme Sevcenko, ser denominado por
Lima Barreto como Repblica Aristocrtica ou Camalenica. Para o
pr-modernista, a onda modernizante em curso mascarava a
decadncia moral e intelectual dos falsos ideais modernos.
Assim, a reforma urbanstica do Rio de Janeiro (realizada nos
anos 1910) como transplante do modelo parisiense (conduzido de
1851 a 1870) no passava de um recurso esttico que agravava o
nosso retrocesso pois era inspirado no passado estrangeiro, em vez
do futuro nacional. Das pginas de Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha emerge uma Frana claudicante, replicada em miniatura a
imagem literria da reforma francesa conduzida no Rio de Janeiro,
um microcosmo do prprio Brasil.
Leyla Perrone-Moiss registra que a insero compulsria do
Brasil na civilizao (retomando uma expresso de Sevcenko em
Literatura como Misso), transformando o Rio de Janeiro numa cpia

144

do modelo parisiense, tinha algo de falso, de teatral, de


cenogrfico 44. A maioria dos intelectuais da poca escolheu manter o
olhar voltado para Paris, buscando ao mximo uma semelhana,
ainda que forada, com essa cultura ideal. Alguns poucos lcidos,
como Lima Barreto, no deixaram de assinalar o rdiculo, e mesmo a
vergonha, dessa macaquice 45, j que:

(...) a influncia francesa no era mais, na Belle poque, a


dos grandes pensadores e escritores, como nos sculos
anteriores, mas a imitao dos aspectos mais superficiais: o
chic parisiense, os cafs, o music-hall, o teatro de boulevard
e os romances de pacotilha que a Frana produzia
expressamente para esse pblico de ultramar. 46

Essa denncia discursiva refletida no texto barretiano na


dialtica entre o conhecimento dos livros, detido pelo pai, e o
conhecimento do mundo, possudo pela me. J no comeo de
44

PERRONE-MOISS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. IN: Vira e

Mexe, Nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literrio. So Paulo: Companhia


das Letras, 2007, pg. 67.
45

Idem.

46

Ibidem.

Mais frente na pgina 68, Leyla Perrone-Moiss aponta o romance mais conhecido
de Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma, como a obra literria que
mostra de forma exemplar e irnica a reao nacionalista a essa rendio
incondicional Frana. Uma atitude, entretanto, rara na Belle poque brasileira.

145

Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, podemos vislumbrar essa


tenso no contraste entre a educao paterna e a percepo
materna, metonmias respectivas do iderio estrangeiro e da
realidade nacional. Isaas fica bastante deslumbrado pela conexo
que faz entre o saber do pai conseguido certamente nas aulas de
filosofia e teologia como todo seminarista catlico e a ascenso que
o conhecimento traria aos seus possuidores:

O espetculo do saber de meu pai, realado pela ignorncia


de minha me e de outros parentes dela, surgiu aos meus
olhos de criana, como um deslumbramento.
Pareceu-me ento que aquela sua faculdade de explicar tudo,
aquele seu desembarao de linguagem, a sua capacidade de
ler lnguas diversas e compreend-las constituam, no s
uma razo de ser de felicidade, de abundncia e riqueza,
mas tambm um titulo para o superior respeito dos homens
e para a superior considerao de toda a gente.
Sabendo, ficvamos de alguma maneira sagrados,
deificados... 47

O conhecimento possudo pelo pai de Isaas Caminha revela um


discurso articulado, erudito, completamente oposto s sensaes
rudimentarmente enunciadas pela me. Incapaz de elaborar de forma

47

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 39.

146

satisfatria suas apreenses quanto ao que o filho encontrar pela


frente, ela deixa sem completar quase metade das frases, pontuadas
com reticncias, na hora da despedida. Que no se tratava de mera
emoo materna ao afastar-se do filho, mas pressentimentos sobre o
seu futuro, podemos ver pelas palavras do narrador ao fechar o
primeiro captulo:

No dia seguinte, quando me despedi, ela deu-me um forte


abrao, afastou-se um pouco e olhou-me longamente, com
aquele olhar que me lanava sempre, fosse em que
circunstncia fosse, onde havia mesclados, terror, pena,
admirao e amor.
Vai, meu filho, disse-me ela afinal. Adeus!... E no te
mostres muito, porque ns...
E no acabou. O choro a tomou convulsa e eu me afastei
chorando. 48

Uma outra forma dessa denncia discursiva aparece a seguir


nas ideias fora de lugar, para usar a expresso de Roberto
Schwarz 49, com que Isaas Caminha confrontado, isto : a estrutura
(as instituies) atrasada e colonial ao lado da superestrutura (a

48

Idem, pg. 48.

49

SCHWARZ, Roberto. "As idias fora do lugar". IN: Ao vencedor as batatas:

forma literria e processo social nos incios do romance brasileiro. So Paulo: Duas
Cidades/Ed. 34, 2000, pgs. 11-31.

147

ideologia) adiantada e liberal. Com o tom irnico do olhar estrangeiro


(que muito se assemelha s Cartas Persas, de Montesquieu), o
protagonista-narrador surpreende-se com o fato de que os
parlamentares da Cmara dos Deputados da ento Repblica dos
Estados Unidos do Brasil em nada se pareciam com os velhos
legisladores da lenda e da Histria: os Manus, os Licurgos, os Moiss,
Slons, os Numas 50. E o mesmo se d com a descrio do desfile de
um batalho do Exrcito, cujos oficiais e praas pareciam pertencer a
pases diferentes51; e com o episdio da delegacia de polcia, cujo
tratamento injusto e arbitrrio para com Isaas lhe revela como a
Ptria tratava os filhos dela 52. O descompasso entre o aparato do
Estado e sua realidade cotidiana cresce lentamente diante do
narrador e dos leitores, e a ironia do caipira ingnuo comentando as
surpresas da Capital encontrada no texto barretiano produz a stira
iconoclasta contra a Primeira Repblica Brasileira no discurso do
romance. Comentando o episdio, Alfredo Bosi sentencia: Nesse

50

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pgs. 60-61.


51

Idem, pg. 68.

52

Ibidem, pg. 94.

148

contexto as instituies desfilam aos olhos de Isaas como aparncias


sem substncia, teatro de pfias representaes 53.
Era uma contradio to arraigada que mesmo aqueles que a
questionavam a ela se rendiam inconscientemente na busca de
alternativas. Falando do grupo de jovens positivistas com que se
reunia, Isaas gostava de notar a adorao pela violncia que as
suas almas pacficas tinham, e a facilidade de com que explicavam
tudo e apresentavam remdios 54. Leiva, o lder do grupo, que tanto
se orgulhava dos discursos e greves que conduziu era melhor mesmo
nas atividades extrarrevolucionrias como a poesia palaciana, o
namorar vrias mulheres e o frequentar lugares elegantes, alm de
conseguir ser ao mesmo tempo anarquista e positivista uma
contradio que no escapou ao juzo de Isaas Caminha. Embora
tambm totalitrio, o jornalista Gregorvitch Rostloff fora o nico
que o estimulara a trabalhar pela grandeza do Brasil, promovendo
uma conscincia coletiva que levasse o povo a corrigir os erros
nacionais 55. Diante de todas essas contradies, o desenraizamento
de Isaas atinge um nvel tal que ele buscar afeio e simpatia na
53

BOSI, Alfredo. Figuras do eu nas recordaes de Isaas Caminha. IN:

____________. Literatura e resistncia. Companhia das Letras: So Paulo,


2008, pg. 193.
54

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 106.


55

Idem, pg. 85.

149

amizade no de um compatriota, mas na desse romeno 56; alm de


desabafar, mais tarde, a sensao de estar em pas estrangeiro 57.

3.4. Rompendo o horizonte de expectativas

Antes de encerrarmos esse ponto de nossa discusso sobre o


aproveitamento criativo de Balzac por Lima Barreto, precisamos fazer
algumas ressalvas importantes. Primeiro, no podemos ignorar a
diferena de propsito com que Balzac e Lima Barreto se propem a
escrever seus romances. O narrador balzaquiano possui um projeto
literrio definido, seguro, que apresentado em Illusions Perdues por
meio dos conselhos de Daniel Darthez (no captulo IV da segunda
parte) e tienne Losteau (no captulo IX da segunda parte) ao
personagem Lucien de Rubempr. No romance barretiano, contudo, a
narrativa interrompida pelo menos duas vezes para se tecerem
reflexes sobre o projeto literrio nacional e do livro em particular.
Antes de se apresentar na delegacia, Isaas Caminha relembra o
almoo com Gregorvitch, que o estimula a pensar em um projeto
nacional em vez de reproduzir ideais estrangeiros ultrapassados:

56

Ibidem, pg. 84.

57

Ibidem, pg. 102.

150
Gregorvitch incitara-me a trabalhar pela grandeza do
Brasil; fez-me notar que era preciso difundir na conscincia
coletiva um ideal de fora, de vigor, de violncia mesmo,
destinado a corrigir a doura nativa de todos ns. (...) Ele
riu-se do nosso critrio habitual dela, da insignificncia do
critrio dos nossos literatos. Gente, disse-me ele, que vive
perturbada, desejosa de realizar ideais de povos mortos,
ideais que j se esgotaram; prisioneira da arqueologia, e
muito certa de que a verdade est a, como se houvesse uma
beleza absoluta, existindo fora de ns e independente de
ns? Por a ele fez uma formidvel charge aos nossos
intelectuais. Eu sinto no poder reproduzi-la aqui. Estvamos
em meio do almoo e o vinho dava asas s suas palavras e
tornara mais lcido o meu esprito.

58

Essa mesma atitude de pensar a literatura aparecer mais


tarde, no momento em que Isaas Caminha vivencia um processo
catrtico na escritura das memrias, questiona se o livro alcanar o
propsito inicial e confessa a busca de modelos para o seu projeto
literrio:

E quem sabe se excitar recordaes de sofrimentos, avivar


as imagens de que nasceram no fazer com que, obscura e
confusamente, me venham as sensaes dolorosas j
semimortas? Talvez mesmo seja angstia de escritor, porque
58

Ibidem, pg. 84.

151
vivo cheio de dvidas, e hesito de dia para dia em continuar
a escrev-lo. No o seu valor literrio que me preocupa;
a sua utilidade para o fim que almejo. Quem sabe se ele me
no vai saindo um puro falatrio?! Eu no sou literato,
detesto com toda a paixo essa espcie de animal. O que
observei neles, no tempo em que estive na redao do O
Globo, foi o bastante para no os amar, nem os imitar. So
em geral de uma lastimvel limitao de idias, cheios de
frmulas, de receitas, s capazes de colher fatos detalhados
e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e s idias
vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do
estilo e guiados por conceitos e um pueril e errneo critrio
de beleza. Se me esforo por faz-lo literrio para que ele
possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus
sofrimentos ao esprito geral e no seu interesse, com a
linguagem acessvel a ele. esse o meu propsito, o meu
nico propsito. No nego que para isso tenha procurado
modelos e normas. Procurei-os, confesso; e, agora mesmo,
ao alcance das mos, tenho os autores que mais amo.59

Em segundo lugar, no se pode ignorar como a mudana de


foco narrativo produz efeitos diferenciados na economia narrativa de
cada romance. Em Illusions Perdues, temos o relato em terceira
pessoa de uma trajetria em andamento, conduzida por um narrador
que assume a posio discursiva de um literato que dialoga com seus
59

Ibidem, pg. 95.

152

iguais e faz um ataque subliteratura produzida pelos jornais. J em


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, a primeira pessoa do relato
apresenta memrias que tomam o ponto de vista de um literato
marginal contra um sistema literrio corrompido. Como vimos agora
h pouco, no caso de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, em
particular, essas diferenas resultaro na escrita de uma obra com
forte carter metalingustico.
Outra importante diferena provocada pela mudana de foco
narrativo encontra-se no discernimento dos protagonistas quanto ao
carter da imprensa, que veremos melhor no prximo captulo: Isaas
Caminha percebe os vcios da imprensa j no primeiro dia em que
entra na redao do jornal; Lucien de Rubempr no consegue
perceb-los mesmo aps vrios meses de trabalho como jornalista
(embora o narrador de Illusions Perdues seja bastante lcido para
perceber essas contradies). O recurso da analepse usado em
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, obviamente, materializa a
maior conscincia crtica de Isaas Caminha em relao a Lucien de
Rubempr. Este percorre a narrativa com os planos da diegese e do
discurso avanando em paralelo; aquele relata suas memrias como
um narrador homodiegtico cuja distncia temporal dos eventos da
histria narrados permite uma maior reflexo e conscincia 60.
60

Os conceitos de analepse, diegese versus discurso e narrador homodiegtico

foram extrados de GENETTE, Grard. Figures III. Paris: ditions du Seuil, 1972.

153

Tal explicao tcnica formula bem o processo, mas ignora o


perfil psicolgico do arrivista da Comdie Humaine. Nos duas obras
em que aparece, ele se mostra incapaz de sobreviver sem algum
moralmente superior a conduzi-lo (David Schard, Mme. de Bargeton,
os jornalistas de Paris, Carlos Herrera). Tambm no apresenta
evoluo psicossocial significativa na sua passagem de Illusions
Perdues para Splendeurs et Misres des Courtisanes.
A propsito, essa falta de evoluo do protagonista refora uma
diferena fundamental entre a economia narrativa dos romances
barretiano e balzaquiano. Ao contrrio de Isaas Caminha, Lucien de
Rubempr no termina o romance apaziguado. Como parte de uma
trilogia e um conjunto ainda maior que a Comdie Humaine,
Illusions Perdues no acaba o desenvolvimento de Lucien de
Rubempr permanece em aberto aps o estabelecimento do pacto
homoertico/mefisttelico com o padre Carlos Herrera. O heri
barretiano, por sua vez, existe dentro de uma obra fechada em si
mesma, que encerra sua trajetria no final de Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha. E como j comentamos anteriormente, ele
recusa a transigncia permanente quando decide sair da imprensa
para viver sua vida e assumir as responsabilidades do casamento e
paternidade ao contrrio do seu prprio pai no comeo da histria,

154

obrigado a dividir-se entre o afeto familiar e as responsabilidades


eclesisticas.
Em terceiro lugar, os objetivos de Lima Barreto so diferentes
dos de Balzac. Sua histria retoma, sim, temas como o mito de
Napoleo, o jovem provinciano na Capital e a perda das iluses. Mas
se o que move o francs a escrever aos jovens o fato de que le
talent de province a contre lui la vie de province dont la monotonie
fait aspirer tout homme d'imagination aux dangers de la vie
parisienne 61, a preocupao do brasileiro outra: modificar a
opinio dos meus concidados, obrig-los a pensar de outro modo, a
no se encherem de hostilidade e m vontade quando encontrarem
na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha h dez anos
passados. 62

Em um primeiro momento, esses objetivos podem

parecer idnticos, mas precisamos observar a posio do sujeito em


cada situao discursiva.
Honor de Balzac escreve do alto de seu reconhecimento no
sistema literrio, em situao diversa do protagonista de seu
romance e consciente das exigncias do cdigo social que movem a
sociedade francesa da Restaurao. Sabedor de que tais cdigos no
sero atenuados em favor dos provincianos que chegam anualmente

61

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues, pg. 835.

62

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 95.

155

a Paris, seu alerta mostra que o talento de candidatos a parvenus


como Lucien fracassar a menos que venha acompanhado do
discernimento para apreender o os acordos tcitos da sociedade
parisiense.
J Lima Barreto um escritor margem do ethos intelectual,
identificado com os percalos de Isaas Caminha e ainda em luta
contra a rede de favores e excluses da Primeira Repblica Brasileira.
Seu intento despertar empatia nos seus contemporneos, tentando
abrir caminho para talentos nas condies do seu protagonista.
Conhecer o campo literrio em que Lima Barreto estava inserido ou
excludo nos ajudar a entender melhor alguns senes apontados
pela crtica e o horizonte de expectativas em torno de sua gerao de
escritores.
Ana Carolina Verani defende a existncia de dois grandes
grupos na literatura brasileira anterior Semana de 22 63: aqueles
que escreveram entre os anos de 1870 e 1900, os quais participaram
do fim do Imprio, e aqueles que escreveram a partir de 1900, nos
primeiros anos da Repblica instaurada. A primeira gerao
vivenciara o fim da monarquia e da escravido, era norteada por

63

VERANI, Ana Carolina. O Triste Fim de Lima Barreto: Literatura, Loucura e

Sociedade no Brasil da Belle poque. Rio de Janeiro, 2003. Tese de Doutorado


em Literatura. Departamento de Letras Doutorado em Literatura, Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro, pgs. 20-21 e 26-28.

156

ideais republicanos e liberais e influenciada por ideias vindas da


Europa, acreditava na necessidade de mudanas para o pas, vendose como responsvel pela concretizao de mudanas no cenrio
poltico, econmico e social brasileiro. Tinham na sua produo um
instrumento capaz de contribuir para tais mudanas, concebendo o
papel do intelectual como sendo o de agente desta transformao,
capaz de motivar a sociedade e transform-la para a instaurao de
um Brasil moderno. Estilisticamente, eles eram ligados ao Realismo
em sua viso crtica da realidade, mas ideologicamente remontavam
ao aspecto revolucionrio do Romantismo em seus ideais liberais.
Com o advento da Repblica, muitos intelectuais abandonaram
o esprito revolucionrio do perodo anterior diante do processo de
modernizao pelo qual passou a cidade do Rio de Janeiro, da vitria
do cosmopolitismo e dos ideais burgueses de lucro e prosperidade. As
transformaes trazidas pela Repblica mentalidade e ao cenrio
urbano cariocas fizeram com que muitos escritores se assimilassem
ao novo cenrio social, tornando-se os representantes de uma
literatura a literatura de sales com menor compromisso poltico
e defesa de mudanas poltico-sociais e maior aspecto mundano e
acadmico. O estilo literrio ento predominante era o Realismo na
prosa e o Parnasianismo na poesia, exaltando a linguagem formal e
rebuscada e a retrica. Verani, contudo, faz a seguinte ressalva:

157

claro que esta literatura oficial, sintonizada com a


sociedade burguesa identificada com a vida europeia, no era
a nica literatura produzida no perodo, e existiam algumas
vozes dissonantes como Lima Barreto, Euclides da Cunha,
Graa Aranha e Monteiro Lobato. Literatos que se propunham
fazer uma literatura mais crtica, voltada para a anlise dos
problemas do pas, denunciando as tenses que sofria a vida
nacional, defendendo um nacionalismo menos europeizado, e
questionando o to exaltado progresso, pois enxergavam que
este no beneficiava a todos, tendo como revs a excluso
de uma grande camada da sociedade, embora com nfases
diferentes entre eles. (...) Assim, o que Lima Barreto
percebia era que os pobres, a cultura popular, enfim, toda
uma parte do pas que no constava no ideal elitista
predominante era vista pelos seus representantes como algo
menor, como uma simples curiosidade, era talvez muito mais
autntica do que os padres de comportamento e cultura que
eram impostos de fora, distantes da realidade brasileira.64

Segundo Maria Cristina Teixeira Machado, a dupla influncia da


passagem do autor pelo jornalismo (com a linguagem e o
procedimento prprios da profisso) e do projeto literrio do escritor
ocorreu primeiramente no tratamento temtico: preferencialmente
voltado para o cotidiano, para os tipos comuns, para as cenas de rua,

64

VERANI, Ana Carolina. Op. Cit., pgs. 30-32.

158

para os fatos banais e para a linguagem usual 65. Ser, no entanto,


no plano estilstico que essa influncia ser mais evidente, fazendo
com que a obra de Lima Barreto seja caracterizada pela simplicidade,
pelo despojamento, pela contestao, pelo esprito de sntese, em
rejeio ao diletantismo literrio, ao formalismo acadmico, e
retrica vazia de literatos alienados da poca. Fazendo relao entre
a proposta de literatura defendida por Lima Barreto e a linguagem
adotada em seus romances, ela escreve:

Atribuindo literatura uma funo e comunho entre os


homens, Lima Barreto adota um procedimento literrio que
resulta numa linguagem transparente, descuidada 66, de
comunicao imediata e, acima de tudo, expurgada dos
efeitos estilsticos e retricos to comuns poca. procura
de maior comunicabilidade, Lima Barreto rejeita os padres
formais e a prpria noo de estilo. Na construo dessa
linguagem, o trabalho na imprensa foi fundamental.67

65

MACHADO, Maria Cristina Teixeira. Lima Barreto Um Pensador Social na

Primeira Repblica. Braslia, 1997 (?). Tese de Doutorado em Sociologia.


Departamento de Sociologia Doutorado em Sociologia, Universidade de Braslia,
pgs. 32 e 33.
66

Descuidada, obviamente, quando comparada escrita parnasiana e beletrista

adotada pelos escritores contemporneos a Lima Barreto, como Coelho Neto e Rui
Barbosa. Esse um outro clich que, ao lado daquele do roman cl, reflete o
horizonte de expectativas da recepo inicial de Lima Barreto e, volta e meia,
reaparece na fortuna crtica do autor pr-modernista.
67

Idem., pg. 110.

159

Em vrias passagens de seus escritos, Lima Barreto condena


concepes de linguagem presentes na obra de escritores
contemporneos a ele e aponta os vcios que ele mesmo no pratica.
Propostas amplamente aceitas hoje devido aos esforos dos
modernistas, mas que provocaram pesadas crticas contra os seus
defensores nas primeiras dcadas do sculo XX e suscitaram
esteretipos negativos por parte dos contemporneos do autor de
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha sua identidade como
intelectual e ao conjunto de sua obra. Comentando sobre a acusao
de Lima Barreto escrever num estilo pobre e vulgar, o crtico literrio
Manuel Cavalcanti de Proena argumenta:

Escrevendo numa poca de fermentao purista, de crtica


literria identificada ao espilhonamento dos erros de
gramtica, o desleixo 68 nasceu nessa poca e vem at hoje.
No tempo, at certo ponto, justo, pois queria significar
apenas que o escritor, se bem que de boa qualidade, no
usava bcaro por bispo, nem vgil por insone. Hoje apenas
preguia de reviso. 69

68

Ver a nota 64.

69

PROENA, Manuel Cavalcanti de. Prefcio. IN: LIMA BARRETO, Afonso Henrique.

Impresses de Leitura. So Paulo: Brasiliense, 1956, pg. 38.

160

A esse respeito, Alfredo Bosi registra como a descida de tom


lingustico resultou em um obra mais natural e realista:

O estilo de pensar e escrever contra o qual se insurgiu o


autor do Triste Fim de Policarpo Quaresma era simbolizado
por um Coelho Neto ou um Rui Barbosa: o da palavra a servir
de anteparo entre o homem e as coisas e os fatos. Em Lima
Barreto, ao contrrio, as cenas de rua ou os encontros e
desencontros domsticos acham-se narrados com uma
animao to simples e discreta, que as frases jamais
brilham por si mesmas, isoladas e inslitas (como resultava
da linguagem parnasiana), mas deixam transparecer
naturalmente a paisagem, os objetos e a figura humana. (...)
O resultado um estilo ao mesmo tempo realista e
intencional, cujo limite inferior a crnica.70

Feitas todas essas ressalvas sobre a defasagem no registro


lingustico entre Honor de Balzac e Lima Barreto e o contexto
literrio em que nasce Recordaes do Escrivo Isaas Caminha,
podemos entender por que a comunidade interpretativa, para usar o
conceito de Stanley Fish71, repudiou o livro em seu lanamento e o
encarou como um deplorvel ato de desabafo pessoal do autor. Lima
70

BOSI, Alfredo. Histria Concisa da Literatura Brasileira. 44. ed. So Paulo:

Cultrix, 2006, pg. 318 (grifos do autor).


71

FISH, Stanley. Is There a Text in This Class? the authority of interpretative

communities. Cambridge, London: Havard University Press, 1980.

161

Barreto quebrou todas as expectativas dessa comunidade ao publicar


um romance que fugia dos padres do beletrismo de inspirao
parnasiana adotados por escritores como Coelho Neto e Rui Barbosa,
adotando um registro lingustico mais simples e popular algo pelo
qual os modernistas tanto combateram para incorporar literatura.
Igualmente, ele atreveu-se a tocar em feridas abertas e
incmodas da realidade nacional de seus dias. verdade que outros
escritores pr-modernistas tambm incluram em seus projetos a
denncia de problemas brasileiros: a decadncia de vida do sertanejo
paulista em Monteiro Lobato, o isolamento dos imigrantes alemes no
Esprito Santo em Graa Aranha e a violenta represso contra
Canudos em Euclides da Cunha mas eram realidades distantes,
quase exticas, para o pblico-leitor. Lima Barreto, pelo contrrio,
desvendou os bastidores de instituies incomodamente prximas aos
seus leitores: a imprensa, a literatura, a poltica. Como um
iconoclasta, ele fere e derruba o panteo de deuses do mundo
intelectual republicano, os mesmos que foram incensados pelos
escritores de salo em harmonia com o horizonte de expectativas da
poca. Tais medalhes das letras desapareceram quase que
completamente da histria literria nacional enquanto Lima Barreto
teve seu nome consolidado no cnone, mas a ferida mortal lanada
contra seu romance de estreia no foi completamente curada.

162

Voltando ao texto barretiano, as vrias experincias relatadas


no livro provocam a perda das iluses de Isaas Caminha, cujo
confronto com a realidade social o amadurece ao longo da narrativa e
lhe concede uma conscincia crtica cada vez mais aguada. E aqui
entra uma diferena fundamental entre o romance barretiano e
Illusions Perdues: Isaas materializa uma dimenso coletiva que falta
a Lucien. O Balzac que a todos julga no sentencia a sociedade em
si72 pelo destino dos personagens; se estes se corrompem por
causa do interesse pessoal que opera neles o desenvolvimento das
ms inclinaes 73. O narrador barretiano, por outro lado, registra as
contradies entre o iderio estrangeiro importado e a estrutura
social nacional, critica o projeto de urbanizao carioca francesa e,

72

Com isso no queremos insinuar que Honor de Balzac no situe seus arrivistas

na Frana do sculo XIX ou sejam vtimas de compls, sobretudo na Paris de ento


(como se pode ver no primeiro captulo de La Fille aux Yeux dor ou em Histoire de
la grandeur et de la dcadence de Csar Birotteau). Apenas queremos dizer que os
personagens balzaquianos no caem de sua bondade inicial por causa de um
sistema social contra o qual no conseguem resistir nem lutar de forma consciente,
como acontece em Recordaes do Escrivo Isaas Caminha e outras obras do
cnon brasileiro.
73

Lhomme nest ni bon ni mchant, il nat avec des instincts et des aptitudes ; la

Socit, loin de le dpraver, comme il a prtendu Rousseau, le perfectionne, le rend


meilleur ; mais lintrt dveloppe alors normment ses penchants mauvais.
BALZAC, Honor de. Avant-propos. IN: _________________. La Comdie
Humaine. Vol. 1. prface de Pierre-Georges Castex; presente et anote par Pierre
Citron. Paris: ditions Du Seuil, 1965. (LIntgrale), pages 51-56.

163

sobretudo, revela as mos mais fortes que a dos homens74 a fechar


ou abrir o caminho da ascenso social de indivduos como Isaas.
Mos etreas e invisveis, semelhana do destino sobre o heri
trgico grego, de uma sociedade marcada pelos anacronismos de sua
rede de favores e excluses, na qual instituies como a imprensa
trabalham para confirmar o status quo ao mesmo tempo em que
pretende combat-lo. Mas isso j assunto para nosso prximo e
ltimo captulo.

74

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pg. 98.

164

4. CRTICAS DA LITERATURA AO QUARTO PODER

Mesmo um leitor mais ingnuo, ao aventurar-se pelas pginas


de Illusions Perdues e Recordaes do Escrivo Isaas Caminha,
concordar com Isabel Travancas que no h nada de herico 1 nos
1

A autora reflete aqui, bem como ns no presente trabalho, o conceito do heri

clssico. Um estudo aprofundado dessa concepo pode se encontrar, por exemplo,


em Lord RAGLAN. The Hero: A study in tradition, myth and drama. New York:
Vintage, 1956. Publicado originalmente em 1936, o livro procura estabelecer um
modelo baseado em 22 incidentes comuns nas biografias de 21 heris da tradio
ocidental tais como dipo, Teseu, Moiss, Jesus, Rmulo, Perseu, Hrcules e Jaso.
O heri clssico um personagem de nascimento ou destino nobre, cujo padro
moral elevado encarna as virtudes da sociedade em que se insere, dotado de um
senso do dever que o leva a reprovar/combater o desvio moral at em si mesmo ou
nos seus. Sobre o perfil psicolgico desse heri, ler FREUD, Sigmund. Tipos
psicopticos no palco (1942 [1905]). In: Edio standard brasileira das obras
psicolgicas completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1976,
pgs. 317-327.
Diferente desse o heri moderno. Quem primeiro levanta essa concepo Walter
Benjamim (a partir de conceitos na obra de Charles Baudelaire O Pintor da Vida
Moderna) em BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, un pote lyrique
l'apoge du capitalisme. Paris: Payot, 1979. Embora em ambas as vises, os
heris partilhem uma existncia trgica marcada pelo sofrimento, a segunda pode
ser definida, por contraste, mais como a de um anti-heri. O heri moderno um
homem comum que anda pelas ruas, observando as pessoas e as construes, em
busca de um sonho; mas como no h para ele uma funo determinada nesse
mundo, sua marca a insegurana e a melancolia. (Embora isso deva ser
relativizado, pois para Baudelaire Rastignac, o vencedor, tambm se enquadra no
perfil do heri moderno.) Frequentemente possui um carter vil, egocntrico e/ou
sensual, avesso ao remorso e renncia e que fica impune ao violar os tabus
estabelecidos da sociedade. Para uma anlise psicolgica do heri moderno,
consultar ARLOW, Jacob A. The Poet as Prophet: a psychoanalytic perspective.
IN: Psychoanalytic Quarterly (1986), 55:53-68.

165

personagens de Balzac e Lima Barreto2. Por meio dos protagonistas


Lucien de Rubempr e Isaas Caminha, temos o painel de uma
instituio marcada por contradies ideolgicas, manipulao dos
fatos e abuso de influncia, e que frequentemente valoriza a
subliteratura e ataca os novos escritores. Neste captulo,
apresentaremos o contexto scio-histrico francs e brasileiro da
imprensa, a galeria de personagens jornalistas em Balzac e Lima
Barreto e as crticas imprensa feitas nos dois romances.

4.1. Panorama francs

Um forte ponto de aproximao entre Illusions Perdues e


Recordaes do Escrivo Isaas Caminha a presena de um
contexto scio-cultural similar entre as obras, marcado pela transio
da imprensa e as confluncias entre jornalismo, poltica e literatura
na Frana e no Brasil. Esse cho cultural comum no significa a
coexistncia ou proximidade histrica das obras, afinal a Paris dos
anos 1820 no o Rio de Janeiro dos anos 1910. Os leitores dos
romances balzaquiano e barrretiano percebero facilmente, porm,

TRAVANCAS, Isabel. O jornalismo e suas representaes literrias. Anais do

26. Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. Belo Horizonte-MG, setembro


de 2003. So Paulo: Intercom, 2003. [cd-rom]. Tambm disponvel em: http://
hdl.handle.net/1904/4425. Acesso em: 5 de outubro de 2007. VER APNDICE
A.

166

que existe a combinao similar nos dois pases de uma srie de


elementos que se manifestam em momentos de mudanas no
jornalismo, anacronismos na consolidao do Estado e promiscuidade
entre o mundo das letras e o mundo da imprensa.
Historicamente, as relaes entre o jornalismo e a literatura
podem ser comparadas a de dois amantes geniosos e sensuais: ela
com o perdo do trocadilho balzaquiana, mais madura, tendo
nascido na Antiguidade Greco-Romana com as obras de Homero e de
Virglio; ele um jovem adulto, com alguns anos a menos, cuja
origem remonta ao fim da Idade Mdia com a formao das lnguas
modernas e dos Estados nacionais na Europa ps-renascentista.
Embora os dois tenham se encontrado no sculo XVIII, com
jornalistas e escritores transitando juntos pelos dois campos, as
relaes literaturajornalismo se caracterizam por um carter no
oficial e conflitante, a ponto de representantes dos dois campos
desconhecerem ou mesmo questionarem essa ligao. Moacyr Scliar,
usando a imagem de irmos em conflito para descrever essas
relaes, argumenta que a literatura no gosta do jornalismo porque
partilha com ele um instrumento comum que a palavra impressa, e
essa proximidade faz com que ela lhe dirija rancor3.

SCLIAR, Moacyr. Jornalismo e Literatura: a fronteira conflagrada. IN: Continente

Sul Sur. Revista do Instituto Estadual do Livro/RS. n. 2, novembro/1996, pgs.


185-188.

167

Uma leitura ainda que superficial dos romances de nosso objeto


de estudo j mostra tal conflito e desnuda o grande abismo entre a
representao do jornalismo feita tradicionalmente pela indstria
cultural e a apresentada na obra de Honor de Balzac e Lima Barreto.
A galeria de personagens jornalistas criada por eles composta por
profissionais moralmente corruptos, eticamente questionveis e
intelectualmente despreparados. Os jornalistas de Illusions Perdues e
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha em nada lembram o resoluto
Clark Kent (a identidade secreta do super-heri criado por Jerry
Siegel e Joe Shuster) em seu desejo de salvar o mundo; muito menos
o simptico Tintim (o reprter aventureiro criado pelo belga Herg) a
aventurar-se investigando grandes crimes.
Esse quadro, denunciado em Illusions Perdues e Recordaes
do Escrivo Isaas Caminha, reflete as mudanas por que passa o
jornalismo ocidental a partir do sculo XIX. Como Nilson Lage
registra 4, a mecanizao da indstria grfica e o surgimento da
publicidade baixam o custo de produo dos jornais e reduzem de
maneira radical o espao para a opinio divergente, entendida aqui
como aquela contrria ao poder econmico. Essa poca marca o
abrandamento da censura estatal prvia na Europa e a
universalizao do ensino bsico, fatores que vo influenciar a
4

LAGE, Nilson. Linguagem Jornalstica. 2. ed. So Paulo: tica, 1986, pgs.

35-46.

168

multiplicao de um pblico leitor de jornais. Tais mudanas esto


ligadas a circunstncias scio-histricas que determinaram o
panorama do jornalismo ocidental tanto na Europa quanto na
Amrica. Citando Jesus Timteo Alvarez, Jorge Pedro de Souza 5
chama a ateno para o fato de que uma primeira fase da imprensa
(tambm chamada de party press ou imprensa de partido) era
marcada pela escassez de matria-prima informativa, pelo
analfabetismo e pobreza da maior parte da populao, o que limitava
a circulao dos jornais apenas classe burguesa ansiosa de
participar nos processos de deciso poltica da poca.
Entretanto, com o fim dos movimentos poltico-ideolgicos que
marcaram o interregno dos sculos XVIII XIX e os inventos do
telgrafo e das ferrovias, o predomnio do jornalismo opinativo
diminui e a circulao da informao disponvel aumenta. Nessa
segunda fase, chamada por Jorge Pedro de Souza de penny press ou
imprensa popular, os jornais se tornam menos doutrinrios e mais
factuais e sua linguagem direcionada a um pblico leitor vasto e
5

SOUZA, Jorge Pedro de. Elementos de Teoria e Pesquisa da Comunicao e

dos Media. Porto: Edies Universidade Fernando Pessoa, 2003. A obra aludida de
Jesus Timteo Alvarez, com os conceitos de party press e penny press, ALVAREZ,
Jesus Timteo. Historia y Modelos de la Comunicacin em el Siglo XX: el
nuevo orden informativo. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1992. Grafia original mantida
segundo a norma do portugus europeu, em conformidade com o Acordo
Ortogrfico de 1945, ligeiramente alterado pelo Decreto-Lei n 32, de 6 de
fevereiro de 1973, vigente em Portugal antes do Acordo Ortogrfico da Lngua
Portuguesa (1990).

169

pouco conhecedor das lnguas nacionais. O jornalismo, antes feito


para uma elite e agora para a maioria da populao, torna-se
economicamente acessvel para muitos (um penny, correspondente
aos nossos centavos, era o preo do jornal), passa a visar lucro e a
buscar anunciantes e introduz matrias mais humanas ou mesmo
sensacionalistas.
No caso da Frana, segundo Leonore O'Boyle 6, a censura prvia
ser trocada em 1819 pela exigncia de uma reserva financeira para
o estabelecimento de jornais, limitando a fora poltica da imprensa
demonstrada previamente em sucessivos governos. O objetivo da
medida era restringir proprietrios individuais com a ameaa da
perda e assegurar que os jornais fossem operados pelas classes
prsperas contrrias revoluo. Essa restrio econmica, contudo,
acentuou ainda mais o carter poltico da imprensa, pois a concentrou
nas mos das classes mdias que j dominavam a vida poltica e
encaravam o jornal como meio de influncia nas questes do dia
relativas ao poder. Mas como grande parte do novo pblico leitor
pouco se interessava por poltica, os jornais menores precisavam
recorrer a outros meios de se manterem que no o apoio dos partidos
polticos.

O'BOYLE, Lenore. The Image of the Journalist in France, Germany, and England,

1815-1848. IN: Comparative Studies in Society and History, Vol. 10, No. 3.
(Apr., 1968), pages 290-317.

170

Vrios caminhos, conforme Nilson Lage, foram tentados pelos


jornais para atender nova demanda de atrair o pblico: novelas
contadas no rodap das pginas, desenhos e gravuras que dariam
origem s charges e s histrias em quadrinhos, campanhas de
opinio contundentes etc. , mas o que mais se mostrou frutfero foi
a explorao do noticirio. Os novos leitores apreciavam histrias
fantsticas e sentimentais, acontecimentos emocionantes e
portentosos, relatos de pases distantes, selvagens ou misteriosos e a
ampliao de dramas do cotidiano. Da ao sensacionalismo foi um
passo, com a consequente ausncia de qualidade literria e o
necessrio exagero retrico para produzir relatos distorcidos da
realidade (mentirosos at, em muitos casos) para que fossem
aumentadas as vendas dos jornais, ampliado o nmero de
anunciantes e superados os jornais concorrentes. Comentando o
papel do jornalismo no embrutecimento do gosto e crescimento do
pblico leitor do sculo XIX, Erich Auerbach escreve:

o rebaixamento do nvel acelerou-se ainda mais pela


explorao comercial da crescente necessidade de leitura por
parte dos empresrios editoriais ou jornalsticos, a maioria
dos quais (no todos) preferiu o caminho do ganho mais fcil
e da menor resistncia, fornecendo, portanto, ao pblico,

171
aquilo que este pedia, ou talvez coisa pior do que teria
pedido. 7

O estudo de Leonore O'Boyle lana grande luz para


entendermos a narrativa apresentada em Illusions Perdues. Ela
aponta que a Inglaterra e a Alemanha no sculo XIX possuam um
nvel de industrializao tal que permitia aos jornais explorar
saudavelmente os recursos da publicidade e a crescer rumo
profissionalizao da imprensa numa economia estvel. No era este
o caso da Frana. Devido evidente industrializao limitada do pas,
os jornais franceses permaneceram polticos e venais em um grau
surpreendente para o sculo XIX. Os jornais em geral, mas
particularmente os pequenos, eram inescrupulosos e ofensivos:

Directors, actors, and actresses were compelled to pay to


avoid bad reviews in the petit journal; tradespeople paid to
have their wares puffed; politicians and other prominent
figures were victimized by ridicule and imputations of
misbehavior; books were damned or praised as discretion of
the papers owner. Such dubious practices were necessary
because the financial basis of the petite presse was so
precarious. 8
7

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental.

So Paulo: Perspectiva, 1976. (Coleo Estudos), pg. 450.


8

O'BOYLE, Lenore. The Image of the Journalist in France, Germany, and England,

1815-1848, page 294.

172

A combinao de arma poltica e empreendimento mercantil


caracterstica da imprensa francesa era de um potencial
extremamente perigoso, pois exigia e alimentava um jornalista
politicamente fantico ou disposto a explorar o fanatismo dos outros
para os seus fins. Leonore O'Boyle lembra que a vida poltica na
Frana da Restaurao, o perodo abordado por Illusions Perdues,
estava confinada aos ricos e literatos e que as aspiraes dos
jornalistas nessa poca precisam ser examinadas dentro desse
quadro. Por um lado, o iderio da Revoluo Francesa sancionou a
busca pela mobilidade social e recompensou os mais agressivos em
suas ambies para a consecuo desse alvo; por outro, o Imprio
Napolenico criou uma ampla e pesada estrutura poltica e militar que
absorveu grande nmero de franceses nos cargos necessrios para
sustentar a mquina administrativa.
Com a Restaurao dos Bourbons, poucas oportunidades eram
oferecidas alm do jornal, criando a aspirao do jovem provinciano
que vai a Paris e espera um alto cargo na carreira poltica. O
jornalismo absorvia facilmente esses jovens em busca de prestgio
intelectual, pois no requeria uma educao literria mnima com um
longo e custoso perodo de preparao, nem

173
... a mans full time and so was the ideal way for a poor law
student or artist to make out temporarily. The same situation
could be observed elsewhere in Europe. Everywhere men
who were, in Girardins [um proprietrio de jornal da poca]
phrase, victimes of a university education, men who had not
succeeded in becoming lawyers, doctors, or professors,
turned to journalism. What was unique about the French
press was the intimate association between journalism and
politics; writing for the newspapers was regarded as a
normal step in a mans career and a n accepted means of
gaining political office. 9

4.2. Panorama brasileiro

No caso do Brasil, segundo Juarez Bahia 10, as mudanas


provocadas no jornalismo ocidental vo marcar em nossas terras a
passagem para uma nova etapa de nossa imprensa, a fase industrial.
Para entend-la, porm, precisamos abordar rapidamente o perodo
anterior, que segue da vinda da famlia real portuguesa
proclamao da Repblica e que pode ser caracterizada como polticoliterria. Nesse momento, a maioria dos jornais testemunha as
transformaes que se operam no pas desde a ascenso do pas de

Idem, page 300.

10

BAHIA, Juarez. Jornal, Histria e Tcnica: histria da imprensa brasileira.

4.ed. So Paulo: tica, 1990.

174

Colnia a Reino Unido a Portugal at as crises do Segundo Reinado,


ecoando em suas pginas as lutas polticas e sociais da poca.
Grandes jornalistas como Hiplito Jos da Costa, Silva Lisboa e
Cipriano Barata buscam a emancipao poltica, viabilizam a
Independncia, pacificam o Imprio, questionam a escravido e
preparam a Repblica. nesta fase tambm que os grandes literatos
vo divulgar seus livros por meio de folhetins nos jornais ou mesmo
colaborar como redatores na imprensa da segunda metade do sculo
XIX. Falando sobre a coexistncia nesta fase do jornalismo
doutrinrio ou participante e do jornalismo literrio, Massaud Moiss
registra:

Desse modo [referindo-se generalizao do jornalismo a


partir da Independncia], o jornalismo assumiu papel de
relevante importncia no quadro histrico oitocentista, e
tornou-se uma porta aberta para que chegassem praa as
grandes comoes histricas, polticas, sociais e estticas do
tempo. E de tal forma o fez que acabou sendo um dos
captulos mais importantes da vida cultural do pas no
decurso do sculo XIX: o jornal e o jornalista tornaram-se
porta-vozes na defesa de causas novas e generosas ou na
educao de conscincias contemporneas, por meio do
folhetim literrio e do artigo de fundo. 11

11

MOISS, Massaud. Jornalismo no Brasil. IN: COELHO, Jacinto Prado (direo).

Dicionrio de Literatura. 3.ed. (s.l.): Figueirinhas do Porto, 1976, pg. 511.

175

Nelson Werneck Sodr 12 registra que a passagem do sculo XIX


para o XX assinala a transio da pequena grande imprensa, uma
mudana iniciada pouco antes da Repblica (porm marcada com
mais nfase com a chegada do novo sculo) e que ocorre em dois
planos. No da produo, os pequenos jornais e as folhas tipogrficas
cedem lugar s grandes empresas jornalsticas; no da circulao,
alteram-se as relaes do jornal com os leitores, anunciantes e a
poltica. Assim, a imprensa torna-se uma empresa capitalista a partir
de ento. H uma perda gradual do tom panfletrio, tornando-se o
jornalismo cada vez menos um empreendimento pessoal marcado por
grandes nomes como na fase anterior.
O espao reservado literatura com o folhetim de fico (isto ,
romance ou novela publicado diariamente em captulos seriados nas
folhas do jornal) vai sendo abandonado gradualmente para em seu
lugar aparecer a progressiva acolhida de artigos de crtica literria e a
implantao do que hoje conhecemos como suplemento literrio ou
cultural. Os anncios evoluem tambm, sendo mais elaborados em
relao fase anterior e contando com a qualidade literria

12

SODR, Nelson Werneck. Histria da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:

Civilizao Brasileira, 1966. Para o panorama histrico da imprensa do fim do


Segundo Imprio aos anos 1920, neste e nos demais pargrafos, valemo-nos do
registro das pginas 315-350, captulo A Grande Imprensa, sees A Empresa e
Imprensa e Literatura.

176

emprestada por alguns escritores que so contratados para redigi-los.


Por exemplo, Olavo Bilac recebeu cem contos de ris para compor um
quarteto de versos para uma marca de fsforos; Hermes Fontes criou
soneto para anncio de um xarope para tosse e Bastos Tigres fez
outro soneto para uma cervejaria 13.
Fenmeno comum que era, a confuso entre jornalismo e
literatura fazia com que escritores de fato ou de pretenso
trabalhassem e/ou colaborassem na imprensa. Os noticirios eram
feitos normalmente por literatos, sendo escritos num estilo rebuscado
e pedante, com desconhecimento completo de tcnicas jornalsticas
(j adotadas na poca em outros pases) como a manchete, a
pirmide invertida e o lead14 . Havia tambm a publicao de alguns
folhetins, artigos de fundo, sesses de bem escrever (isto ,
consultrios de dvidas e prescries gramaticais) e polmicas
literrias em alguns dos principais jornais destes anos. Os homens de

13

Idem, pg. 322.

14

Manchete a notcia principal da edio de um jornal, e que se destaca das

outras notcias na primeira pgina pelo tamanho do ttulo e o espao privilegiado


que recebe na folha. Pirmide invertida uma tcnica de redao de textos
jornalsticos em que as principais informaes so postas no primeiro pargrafo e
as demais informaes, em ordem decrescente de importncia, ao longo do texto.
Lead o pargrafo de abertura de uma notcia, em que se respondem s 6
perguntas fundamentais de uma informao: quem fez o qu, quando, em que
lugar, de que maneira e com que intenes.

177

letras buscavam no jornal o que o livro no lhes dava: notoriedade e


dinheiro.
Nas primeiras duas dcadas do sculo XX, o capital comercial
no Rio de Janeiro estava em sua maioria nas mos de portugueses (o
que fez com que os intrpretes da poca dessem um vis nacionalista
a um problema econmico) e os equipamentos acompanhavam a
etapa empresarial por meio da importao de novos prelos e
rotativas. Se o jornal como empresa capitalista desponta no Brasil
nesta fase, o Estado ainda continua a servio de estruturas de poder
pr-capitalistas. Esta contradio vislumbra-se pelas frestas da
poca: jornais de virulenta oposio frente a jornais de subservincia
ao poder, campanhas sucessrias extremadas para a quase nula
diferena entre os candidatos e a tentativa dos governantes de
comprar opinio na imprensa.
O fato poltico, mas no a poltica em si isto , a orientao
ou os princpios , a nota tnica nessa poca: as questes do dia
so personalizadas nos atos, pensamentos ou decises individuais
daqueles que detm o poder. O corolrio inevitvel desta atitude ser
o endeusamento ou demonizao dos polticos, seja pela

178

subservincia ou pela virulncia que assume a linguagem poltica.15


Nelson Werneck Sodr resume bem a questo quando escreve:

A linguagem da imprensa poltica era violentssima. Dentro


de sua orientao tipicamente burguesa, os jornais refletiam
a conscincia dessa camada para a qual, no fim das contas, o
regime era bom; os homens que eram maus; com outros
homens, o regime funcionaria s mil maravilhas, todos os
problemas seriam resolvidos. Assim, todas as questes
assumiam aspectos pessoais e era preciso atingir as pessoas
para chegar aos fins moralizantes.16

Recordaes do Escrivo Isaas Caminha materializa esse


panorama, alm de denunciar literariamente um projeto scio-poltico
equivocado por parte da Primeira Repblica Brasileira. As informaes
precedentes mostram que no possvel apreender completamente
as crticas de Illusions Perdues e Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha imprensa sem situ-los dentro dessa moldura histrica da
passagem do jornalismo iluminista para o jornalismo mercantil e sem
perceber as relaes entre imprensa, poltica e literatura.

15

A respeito da inconstncia e ilgica da oposio poltica praticada pelos jornais,

ver a crnica barretiana Oposio Jornalstica, presente em LIMA BARRETO,


Afonso Henrique. Coisas do Reino do Jambom. pref. de Olvio Montenegro. So
Paulo: Brasiliense, 1956 (Obras de Lima Barreto; VIII), pgs. 82-83.
16

SODR, Nelson Werneck. Histria da Imprensa no Brasil, pg. 38.

179

4.3. Os personagens jornalistas

Os sete personagens jornalistas de Illusions Perdues so


arrivistas e pouco escrupulosos e usam e abusam do poder da
imprensa sobre o teatro, a literatura e a poltica: tienne Lousteau;
um redator mal-pago (sem nome 17), Andoche Finot (diretor do jornal
em que trabalhar Lucien), Felicien Vernou, mile Blondet, Raoul
Nathan e Hector Merlin (uma espcie de redator-chefe do jornal).
Muito j foi dito e escrito sobre eles, e no pretendemos aqui repetir
ou parafrasear o que j de amplo conhecimento. Queremos, porm,
destacar um ponto balzaquiano que ser retomado por Lima Barreto:
parte da descrio de Hector Merlin zoomorfizada, sendo
caracterizado como tendo algo du miaulement des chats et de
l'touffement asthmatique de l'hyne.18

17

O verbete sobre Hector Merlin no Repertory of The Comdie Humaine

complete, A Z identifica esse jornalista com o redator mal pago. Embora este
dado seja plausvel por haver semelhanas no comportamento entre os dois,
Honor de Balzac no os associa textualmente na obra Illusions Perdues.
CERFBERR, Anatole & CHRISTOPHE, Jules Franois. Repertory of The Comdie
Humaine complete, A Z. translated by J. Walker McSpadden.
Teddington: Echo Library, 2007, pg. 222.
18

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick Berthier.

Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 21017), page 300.

180

Como Balzac no zoomorfiza outro personagem jornalista em


Illusions Perdues para que faamos comparaes 19, podemos apenas
tecer consideraes sobre a escolha desses animais carnvoros. O
primeiro conhecido predador noturno que costuma brincar com suas
presas antes de mat-las; o segundo, predador diurno com o hbito
de alimentar-se de cadveres e roubar presas de outros. Seriam os
indcios do maquiavelismo da imprensa na obra, que no respeita
reputaes, tripudia os inimigos, manipula os leitores e por fim
destri Lucien? Provavelmente, j que Hector Merlin descrito mais
tarde como um jornalista dos mais perigosos no jantar em que Lucien
e ele se conhecem e se desagradam mutuamente.
Zoomorfizaes como essa so uma constante no romance de
Lima Barreto, mas com propsitos diferentes daqueles da obra
balzaquiana. Ao explicar no Avant-propos o pensamento, origem e
plano da Comdie Humaine, Honor de Balzac prope a ligao entre
biologia e estrutura social. Para ele, as profisses sociais estariam
para a sociedade como as espcies zoolgicas para a natureza.
Embora a zoomorfizao em Illusions Perdues no fuja ao plano geral
da Comdie Humaine expresso no Avant-Propos, isto , no
ultrapasse o nvel do agrupamento dos personagens em categorias
19

A respeito da zoomorfizao na Comdie Humaine, ver: THRIEN, Michel.

Mtaphores Animales et criture Balzacienne : le portrait et la description. IN:


LAnne Balzacienne (ISSN 0084-6473). Paris: Garnier, 1979, n 18, pages
193-208.

181

sociais, Hector Merlin uma exceo digna de nota na apresentao


da galeria de profissionais da imprensa criada por Honor de Balzac.
No caso de Lima Barreto, Manuel Cavalcanti Proena registra que ele
divide as pessoas em boas e ms, e aos maus o escritor lhes
emprestava olhos de flha-de-flandres (sic), feies de porco ou de
ave de rapina, de anta ou de antropide 20.
O uso de traos animalescos na descrio dos jornalistas
apresentados em Recordaes do Escrivo Isaas Caminha ocorre
antes mesmo de o narrador Isaas Caminha ingressar na redao de
O Globo. Raul Gusmo tem voz de um antropide e olhos que
lembram os de um suno, sendo uma uma mistura de porco e smio
que era jornalista, um Pithecanthropos literato

21

; Oliveira parvo

e besta segundo o narrador22. Aps a entrada na redao do jornal


como contnuo, so apresentados os demais profissionais: o redatorchefe Pacheco Rabelo, o secretrio Leporace, Adelermo Caxias, Floc,
o consultor gramatical Lobo e outros de menor destaque. Pacheco
Rabelo (tambm chamado de Aires dvila) zoomorficamente
comparado a um boi devido dificuldade de locomoo que a
20

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Impresses de Leitura. pref. de Manuel

Cavalcanti de Proena. So Paulo: Brasiliense, 1956, pg. 30. (Obras de Lima


Barreto; XII).
21

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pgs. 54-56.


22

Idem, pgs. 56-57.

182

obesidade lhe traz, sua sombra descrita com o a da cabea de um


porco e ele mesmo chamado de um paquiderme 23. Somente dois
personagens jornalistas no possuem perfis zoomorfizados: o
imigrantre romeno Iv Gregorvitch Rostloff e o injuriado Adelermo
Caxias, ambos apresentados com simpatia por Isaas Caminha.
A zoomorfizao dos personagens jornalistas um importante
dado no livro. Num primeiro momento, podemos sugerir possveis
razes na escolha dos animais para descrever estas personagens:
seria a imagem do suno (ou porco), com seu conhecido apego
sujeira, um indcio do comportamento atico dos profissionais da
imprensa? No sugere a imagem do smio (e seus correspondentes
antropide e Pithecanthropus) a conotao da capacidade de imitao
deste animal o macaquear linguagem e gestual e, por extenso,
o uso de clichs e ideias padronizadas na escrita dos intelectuais da
poca que labutavam nos campos literrio e jornalstico? Ou para
usar as palavras de Carmem Lcia Negreiros Figueiredo:

As aes das personagens como integrantes do mundo da


imprensa revelam-se desprovidas de criatividade e
inteligncia, o que possibilita a marca caricaturesca que
descobre na face humana feies de cavalo, rato ou porco.
Pela caricatura, pois, acentuam-se os traos do rebaixamento

23

Ibidem, pgs. 122, 124 e 127, respectivamente.

183
grotesco, transferindo a capacidade de liderana e
inteligncia brutal irracionalidade animalesca.24

Num segundo momento, podemos afirmar que a


zoomorfizao corrobora no texto (os traos animalescos nas
descries) o que Lima Barreto quer apresentar no discurso (a
representao negativa da imprensa): embora a instituio proclame
querer elevar os valores da sociedade, os seus profissionais
imergiram numa degradao maior que a da prpria sociedade;
pretendendo combater os seus vcios e crimes, eles so culpados de
falhas ainda mais vis. Existe um discurso institucional levado ao
pblico de elevar a sociedade por meio da ao questionadora e
transformadora do jornal; mas a prxis dos profissionais da imprensa
desvela para outros rumos.
O que podemos apreender destas ocorrncias no livro? Como
podemos perceber na obra, os jornalistas de Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha combatem os privilgios de classe apenas nas
pginas do jornal, pois eles mesmos so aquiescentes com os abusos
de poder e coniventes com os favores trazidos por estes privilgios.
Desta maneira, no existe real interesse por parte da imprensa em

24

FIGUEIREDO, Carmem Lcia Negreiros. Lima Barreto: a ousadia de sonhar. IN:

LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Triste Fim de Policarpo Quaresma. edio


crtica. Antonio Houaiss e Carmen Lcia Negreiros de Figueiredo (coord.). Paris:
Allca XX; So Paulo: Scipione Cultural, 1997, pg. 380. (Coleo Archivos).

184

questionar o status quo, pois ela deseja aproveitar os benefcios que


ele traz.
impossvel analisar os personagens jornalistas no universo
barretiano sem se deter no narrador-protagonista do romance. Isaas
Caminha nos lega uma contundente representao literria do
jornalismo de seus dias, expondo, com a ironia e percepo que lhe
so peculiares, crticas imprensa nos planos estilstico, profissional e
institucional. Alfredo Bosi comenta que o fato de ser contnuo num
grande jornal permitiu ao narrador um olhar privilegiado para
descrever o ambiente do peridico: ele observar atentamente os
colegas de redao ora de baixo para cima, enquanto subalterno, ora
de cima para baixo, enquanto olho crtico que julga cada palavra e
cada gesto do seu interlocutor.25
Uma das observaes feitas pelo narrador-protagonista a
debilidade dos colegas jornalistas ao escrever com clareza de
pensamento, beleza literria e domnio do idioma. Esse problema dos
profissionais ter reflexo claro na qualidade do jornalismo praticado
no Rio de Janeiro (pginas 140 e 141). Exceto pelo Jornal do
Commercio, a uniformidade e mediocridade marca todos os rgos e
homens de imprensa. De acordo com o narrador de Recordaes do

25

BOSI, Alfredo. Figuras do Eu nas Recordaes de Isaas Caminha. IN:

______________. Literatura e Resistncia. So Paulo: Companhia das Letras,


2002, pg. 199.

185

Escrivo Isaas Caminha, a imprensa se caracteriza por ideias feitas


e clichs de opinies de toda a natureza, os jornais nada tm o que
se leia e todos eles se parecem ao ponto de, guiados pelas mesmas
leis, obedecendo quase a um nico critrio, lido um, esto lidos
todos 26.
Uma exceo nada louvvel quebrava a regra: a qualidade do
texto do jornalista Adelermo Caxias. Quando a falta de informaes
da polcia sobre um crime de assassinato entre amantes e a
curiosidade mrbida da populao se chocavam, Loberant determinou
a Adelermo, a imaginao do jornal, que inventasse qualquer
coisa, indcios, depoimentos, quaisquer informaes. Desempenhar o
papel de mentiroso o desagradava, mas temia ser despedido 27. Como
o narrador mostra em outra passagem, falta de ideias se
contrapem as ideias feitas; a fora do argumento substituda pelo
raciocnio circular:

No jornal, compreende-se o escrever de modo diverso do


que se entende literariamente. No um pensamento, uma
emoo, um sentimento que se comunica como escritor; e
no o pensamento, a emoo e o sentimento que ditam a
extenso do que se escreve. No jornal, a extenso tudo e

26

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pgs. 140-141.


27

Idem, pg. 165.

186
avalia-se a importncia do escrito pelo tamanho; a questo
no comunicar pensamentos, convencer o pblico com
repeties inteis e impression-lo com o desenvolvimento
do artigo. Para se dar extenso aos artigos lana-se mo de
todos os recursos. Acumulam-se incidentes e aprestos,
organizam-se consideraes, empregam-se velhas
pilhrias. 28

Um dos pontos mais sensveis da representao do jornalismo


feita em Recordaes do Escrivo Isaas Caminha a adoo de
critrios extraliterrios na crtica literria. No caso do crtico Floc,
embora seus artigos fossem puramente literrios, ou pelo menos
escritos com esse propsito, ele nutria averso pela Academia de
Letras, limitava o fazer literrio aos rapazes de sua amizade, bemnascidos, limpinhos e candidatos diplomacia, era confuso sobre o
que seria literatura e convicto de ser fazedor de poetas. Suas
avaliaes e resenhas no obedeciam a nenhum sistema ou escola,
giravam em torno de banalidades e no de uma teoria desenvolvida
sobre a literatura. Apesar do seu trabalho, ele no possua nenhuma
obra de filsofo, historiador ou crtico literrio em sua biblioteca a
fundamentar-lhe o juzo literrio. Por exemplo, os critrios de
legitimao de uma poetisa que plagia quadras de folhinha ou do
jovem Deodoro Ramalho como literato no esto na originalidade de
28

Ibidem, pg. 216.

187

suas ideias nem no seu estilo narrativo ou potico, mas em critrios


extraliterrios como as relaes com o mundo da imprensa, a posio
social e a aparncia fsica. Observamos assim os critrios equivocados
que eram utilizados para julgar a literatura produzida nos dias do
escritor e, indiretamente, a nulidade das crticas tecidas nos jornais
da poca contra a obra do prprio Lima Barreto.

4.4. Crticas imprensa

Se a trajetria e descrio dos personagens jornalistas em


Balzac e Lima Barreto j so por si negativas, os discursos do
narrador e de alguns personagens demonstram ainda mais
claramente o apreo que os romancistas tinham por essa instituio.
A comear pela dedicatria de Illusions Perdues a Victor Hugo 29,
Balzac apresenta a literatura e o jornalismo como inimigos
dimetralmente opostos e em situao de guerrilha. Segundo ele, o
jornalismo um elemento social to digno de deboche e reprovao
quanto as classes ridicularizadas no teatro de Molire.
Embora as crticas imprensa apaream de forma mais ou
menos implcita e generalizada em toda a segunda parte do romance,
h trs grandes passagens em que o discurso balzaquiano contra a
29

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick Berthier.

Paris: Le Livre de Poche, 2008. (Classiques; 21017), page 37.

188

imprensa se manifesta com toda a fora: o alerta do Cenculo a


Lucien, aps seu desejo de pagar o emprstimo feito com os amigos
intelectuais e o anncio de seus planos de entrar no jornalismo 30; a
histria de tienne Lousteau contada por ele mesmo a Lucien

31

e; o

jantar na casa da atriz Florine em que o proprietrio de jornal Claude


Vignon, vrios jornalistas e outros convidados conversam entre si
sobre as mazelas do jornalismo32, uma das passagens mais
conhecidas de Illusions Perdues.
Enquanto o discurso do narrador balzaquiano arrasador e
maniquesta, o discurso contra a imprensa em Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha se dirige a um modelo de imprensa em
particular. Aps uma ferrenha crtica do personagem Plnio de
Andrade aos jornalistas em geral, comparando o pirata antigo e o
jornalista moderno, o personagem Andrade retruca dizendo que ele
exagera, pois o jornal j prestou bons servios sociedade

33

. Plnio

de Andrade rebate declarando que se o jornal alguma vez prestou


servios teis o foi quando era um empreendimento individual
(caracterstica da primeira fase), no quando ele se tornou uma

30

Idem, pages 296-298.

31

Ibidem, pages 321-323.

32

Ibidem, pages 398-400.

33

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pgs. 115-116 (grifos acrescentados).

189

empresa capitalista (caracterstica da segunda fase). Ele lamenta o


fato de que no fcil a um indivduo qualquer, pobre, cheio de
grandes ideias, fundar um que os combata..., empecilhos que no
ocorreriam se ele vivenciasse o perodo da primeira fase, na qual
grandes nomes exerciam o jornalismo por meio de pequenos jornais
e tipografias. Lima Barreto buscou no passado um referencial que foi
abandonado pelo jornalismo. Assim o fez porque o modelo de
imprensa da primeira fase coincidia em muitos pontos com o projeto
de literatura e de papel do intelectual que ele sustentava 34.
Diante de todas essas informaes, podemos perceber que
existem duas representaes em destaque na narrativa de Illusions
Perdues e Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, sendo os prprios
romances uma representao: a jornalstica e a literria, esta mais
mimtica que aquela as duas nicas instncias disponveis aos
personagens para ultrapassar a realidade imediata em que esto
inseridos e tomar conhecimento do mundo. Segundo Silvio Ricardo
Demtrio, Balzac [e tambm Lima Barreto] quer levar a cabo uma
luta entre duas mquinas de representar o mundo: o jornal e o
34

Esta tenso entre os dois modelos de imprensa aparecer tambm no conto O

Jornalista, presente em LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Histrias e Sonhos.


So Paulo: Brasiliense, 1961 (Obras de Lima Barreto; VI), pgs.64-69. Na cidade
de SantAna dos Pescadores, os jornalistas Nabor e Fagundes se desentendem
sobre o rumo editorial do jornal O Arauto: o primeiro quer implantar mudanas no
jornal e torn-lo mais noticioso (imprensa da segunda fase), o segundo pretende
manter a linha doutrinria do peridico (imprensa da primeira fase).

190

livro 35. Tal luta pode ser percebida no destaque que o jornalismo
assume internamente na intriga como um espao simblico
privilegiado nos romances em questo.
Douglas Kellner36

argumenta que de vital importncia

entender o papel da cultura da mdia como uma vasta gama de lutas


sociais, tendncias e desenvolvimentos em curso; entender que as
situaes locais, nacionais e globais dos nossos dias so articuladas
entre si por meio dos textos da mdia, que em si mesma uma arena
de lutas que os grupos sociais rivais tentam usar a fim de promover
seus prprios programas e ideologias, e ela mesma reproduz
discursos conflitantes, muitas vezes de maneira contraditria. As
crticas ao jornalismo presentes em Illusions Perdues e Recordaes
do Escrivo Isaas Caminha assumem um peso mais grave por esse
motivo: a to grande influncia e responsabilidade da imprensa sobre
o universo simblico dos personagens.
A representao jornalstica tambm crtica nos textos
balzaquiano e barretiano pelo fato de o jornalismo no cumprir

35

DEMTRIO, Silvio Ricardo. Os limites do devir literatura no jornalismo. IN:

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36

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191

devidamente a funo discursiva que proclama. Podemos nomear tal


desvio como uma dialtica da fragmentao no discurso do jornal. H
uma busca para apreender uma informao holstica, global, a fim de
controlar o mundo exterior e ordenar o mundo interior dos
personagens. O que encontramos, contudo, uma informao parcial
dos fatos, chegando mesmo deformao e no conseguindo ordenar
devidamente o caos de uma sociedade complexa e alienada. No
importa aos reprteres e redatores que aparecem em ambos os livros
analisar o complexo de contradies, estruturas e mecanismos que
provocam, originam e perpetuam os fait divers denunciados nas
pginas da imprensa. Importa buscar o fato pelo fato, sem a devida
tentativa de fidelidade ou contextualizao na sua representao.
Quando o fait divers torna-se narrativa nas mos dos homens
de imprensa, transforma-se em acontecimento miditico, destacandose o pitoresco, o mrbido, o ridculo, o catrtico at, do fato. Por trs
do discurso dos veculos de informar e esclarecer o pblico, Honor
de Balzac e Lima Barreto desnudam os bastidores invisveis da
imprensa: a busca de aumento na vendagem dos jornais, o
escamoteamento do debate de problemas mais profundos, a
retroalimentao do prestgio do profissional da notcia e o
crescimento da influncia poltica do veculo. A consequncia
inevitvel: os jornais procuram excitar o desejo de novidade do leitor

192

de forma to intensa e contnua que o resultado no poderia ser


outro seno o anestesiamento da capacidade de reflexo da opinio
pblica.
Isso acontece de forma especial em Recordaes do Escrivo
Isaas Caminha. No captulo 8, lemos que Loberant, o diretor do
jornal, atacava os tiranos na poltica, mas ele mesmo era um tirano
na administrao de seu jornal37 . O captulo 9, especialmente,
repleto destas contradies. -nos dito que do mesmo ambiente em
que um forte odor de urina infestava o ar, saiu um artigo combatendo
o governo pelas ms condies de higiene em um hospital38. No prazo
de uma semana, o Ministro da Guerra foi atacado, elogiado e alado a
heri em artigos de um jornalista que, embora escrevesse sob ordens
do diretor Loberant, gabava-se de honestidade intelectual39. O jornal
de Loberant possua farejadores de escndalos: ora eram
inventados, ora denunciados por quem deles no participou ou com
os quais no concordou 40; o mesmo se dava com o colunista das

37

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:


Publifolha, 1997, pgs. 124 e 125.
38

Idem, pg. 141.

39

Ibidem, pg. 143.

40

Ibidem, pg. 151.

193

stiras polticas: sabendo da vida de todo o mundo, inventava os


dados da sua coluna quando estes lhe faltavam41 .
Por tais razes, permanece uma mensagem sempre presente
no discurso balzaquiano e barretiano: por meio da literatura, no da
imprensa, que podemos conhecer verdadeiramente o mundo. Dito de
outra maneira: o relato fictcio apresenta mais fielmente a realidade
do que o relato jornalstico, pois este centra-se no fato, no no
contexto; e em vez de promover a transformao social proposta no
seu discurso, a impede por meio de sua prxis.
Verdade que o contexto histrico da ascenso da imprensa
industrial na Frana e no Brasil desembocaria mais cedo ou mais
tarde em uma luta simblica do romance contra o jornal, que
achincalhou a literatura e os escritores com critrios escusos de
legitimao ao mesmo tempo em que a explorou como uma simples
mercadoria por meio dos folhetins. Tambm foroso reconhecer que
o impacto dessa tenso aparece tambm em outras obras e autores
como os irmos Goncourt (com Charles Demailly) e Guy de
Maupassant (com Bel-Ami), Ea de Queirs, Machado de Assis, Joo
do Rio e Nelson Rodrigues. Contudo, as relaes literaturajornalismo
foram problematizadas de maneira sem igual nos romances de nosso

41

Ibidem, pg. 154.

194

estudo, sendo referncias incontornveis para a compreenso dessa


dinmica entre os dois campos intelectuais.
Nesse sentido, a inscrio presente entrada do jornal em
Illusions Perdues extremamente apropriada: BUREAU DE
RDACTION, et au-dessous : Le public nentre pas ici. 42. Graas aos
dois romances, o pblico pde adentrar os bastidores da imprensa,
arrombando as portas do jornal. Alm de ter travado conhecimento,
atravs de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, com um
engenhoso aparelho de aparies e eclipses, espcie complicada de
tablado de mgica e espelho de prestidigitador, provocando iluses,
fantasmagorias, ressurgimentos, glorificaes e apoteoses com
pedacinhos de chumbo, uma mquina Marinoni e a estupidez das
multides. 43
No caso especfico do romance barretiano, o mrito principal de
Lima Barreto foi retratar a imprensa como uma instituio capaz de
agregar em si todas as contradies e tenses de uma sociedade

42

BALZAC, Honor de. Illusions Perdues. presente et anote par Patrick Berthier.

Paris: Le Livre de Poche,2008, page 300 (grifos do autor).


43

LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas

Caminha, pgs. 137.

195

fundamentada em um aparato ideolgico de liberdade e em um tecido


social de privilgios e excluses 44. Ou nas palavras de Alfred Bosi:

No jornal ele [o protagonista Isaas Caminha] descobrir a


sabotagem mais torpe sob a retrica da liberdade de
imprensa; o arbtrio mais duro sob a mscara da diviso de
funes.45

44

Outras crticas de Lima Barreto aos jornais da poca podem ser vistas na crnica

Os Nossos Jornais, presente em LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Vida Urbana.


pref. de Antonio Houaiss. So Paulo: Brasiliense, 1961 (Obras de Lima Barreto; XI),
pgs.53-57; e tambm no texto Apresentao da Revista Floreal, presente em
LIMA BARRETO, Afonso Henrique. Impresses de Leitura. pref. de M. Cavalcanti
Proena. So Paulo: Brasiliense, 1961 (Obras de Lima Barreto; XIII), pgs.
180-184.
45

BOSI, Alfredo. Figuras do Eu nas Recordaes de Isaas Caminha, pg. 200.

196

CONSIDERAES FINAIS

Aps ter realizado os Doze Trabalhos, Hrcules casou-se com a


bela Dejanira. Tendo parado nas terras de Nssus, o heri grego
pediu a ele que ajudasse a esposa a atravessar um rio. Mas o
Centauro quis beij-la fora no meio do trajeto e, da margem,
Hrcules atirou uma flecha rumo ao corao de Nssus. Mortalmente
ferido, o centauro disse a Dejanira para recolher uma poro de seu
sangue e guard-la, pois serviria de feitio para conservar o amor do
marido. Tempos depois, Hrcules salvou uma linda moa de nome
ole, levando-a consigo ilha de Eubia, onde havia um altar a Zeus.
Querendo oferecer um sacrifcio ao deus grego em honra de sua
vitria, Hrcules mandou pedir esposa uma tnica branca, para
usar na cerimnia. Uma feroz onda de cime encheu o corao de
Dejanira, fazendo-a lembrar-se do feitio, e embebeu a pea no
sangue do centauro. Ao receber a tnica, Hrcules vestiu-a
despreocupadamente e foi ao altar oferecer o sacrifcio a Zeus. L
chegando, comeou a sentir no corpo uma dor horrenda, como se
tivesse vestido uma tnica feita de chamas implacveis. Hrcules
ento morreu queimado. Ao saber do acontecido, Dejanira
desesperou-se e correu para enforcar-se numa rvore.

197

A tnica de Nssus, presente no prefcio de Recordaes do


Escrivo Isaas Caminha1 , uma mtafora interessante para
descrever a recepo crtica da obra. Lima Barreto tinha planejado
obter glria e reconhecimento literrios com a publicao do livro,
mas acabou conseguindo, com poucas excees, apenas uma onda de
ostracismo e silncio impostos pelo ethos intelectual de sua poca.
Mesmo evitando ao mximo a identificao imediata dos personagens
com os medalhes dos seus dias, o estigma do roman clef
perseguiu seu primeiro livro por dcadas desde o seu lanamento.
Trajando as vestes de Isaas Caminha para sacrificar no altar da glria
e reconhecimento literrio tanto almejados, o escritor pr-modernista
foi seriamente ferido em seus planos por denunciar as contradies
da sociedade e das instituies da Primeira Repblica Brasileira.
De certa forma, nossa tese de doutorado pretende desfazer
esse estigma, curando essa ferida aberta pela viso crtica tradicional
e tentando resgatar a rede de conexes e dilogos presentes no
primeiro romance de Lima Barreto. Como apontamos ao longo deste
trabalho, a presena do intertexto balzaquiano, dos temas
1

Deus escreve direito por linhas tortas, dizem. Ser mesmo isso ou ser de

lamentar que a felicidade vulgar tenha afogado, asfixiado um esprito to singular?


Quem sabe l? Para mim, no entanto, sem acreditar na interveno de nenhuma
Dejanira, sou de opinio que ele est vestindo a tnica de Nssus da Sociedade.
LIMA BARRETO, Afonso Henrique de. Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha. pref. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Ediouro; So Paulo:
Publifolha, 1997, pg. 35.

198

stendhalianos e de outros emprstimos e dilogos franceses, russos e


portugueses no somente ampliam a obra para alm do plano pessoal
apontado pela abordagem biografista, como tambm prope a
discusso de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha a partir das
referncias da tradio literria ocidental presentes em sua histria.
Tal perspectiva convida-nos a uma releitura do romance como um
marco importante para a discusso e representao literria do
jornalismo, sem limit-lo, contudo, a uma mera cpia, reproduo e/
ou inspirao do preliminar Illusions Perdues.
Lima Barreto faz um aproveitamento criativo da obra-prima da
Comdie Humaine, usando a trajetria de Lucien de Rubempr para
criticar o afrancesamento acrtico do Rio de Janeiro na Belle poque
nacional e lanar um olhar sobre a imprensa como um microcosmo
das contradies sociais da Primeira Repblica Brasileira, denunciadas
acidamente em sua obra. Em nossa problemtica tentamos chamar a
ateno para esse entendimento mais profundo e mais significativo
do romance de estreia, para alm do caminho crtico tradicional de
correspondncia fortuita com elementos da realidade circundante da
obra.
Devido ao olhar aguado de Lima Barreto e multiplicidade de
temas por ele abordados, sua obra tem sido bastante prolfica para
estudos nas mais diferentes reas da academia, englobando desde

199

pesquisas da arquitetura sobre o plano urbanstico carioca descrito


em seus romances at trabalhos da psicologia sobre a abordagem da
loucura em seus personagens, passando pela considervel fortuna
crtica sobre o preconceito racial ou as estruturas de dominao
colonial, sem nos esquecermos das questes estilsticas na obra
barretiana. Por isso, temos a conscincia que muito mais poderia ter
sido explorado a partir de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha
alm da presena balzaquiana proposta neste trabalho.
Outras questes poderiam ter sido levantadas, caso no
houvesse a delimitao necessria em um trabalho cientfico e a
natureza e prazos de um curso de doutorado. A presena balzaquiana
em outros romances e em contos e crnicas de Lima Barreto, por
exemplo. Um estudo sobre as ressonncias temticas do jovem
provinciano na Capital e da crtica imprensa presentes em Illusions
Perdues e em romances franceses tributrios dele como Charles
Demailly, dos irmos Goncourt, e Bel-Ami, de Maupassant. Talvez um
estudo especfico de natureza comunicacional sobre questes tericas
e deontolgicas do jornalismo na obra barretiana e balzaquiana.
Quem sabe um estudo comparativo da imagem do homem de letras
em Lima Barreto e nos romancistas franceses e russos confessados
em seu romance de estreia. Ou mesmo um estudo comparativo sobre
a abordagem crtica do jornalismo na fico, com a eleio de um

200

escritor-jornalista contemporneo para estabelecer paralelos e


contrastes com a representao feita por Lima Barreto h um sculo.
Alm de outras abordagens intertextuais e temticas nos romances
barretiano e balzaquiano, que preferimos manter em sigilo para
ampliar e/ou explorar mais frente em um futuro projeto de psdoutorado.
Finalmente, esperamos ter atingido nosso objetivo geral de
analisar o intertexto balzaquiano no romance de estreia de Lima
Barreto. Como j dissemos em momento anterior, inegvel que haja
correspondentes extraliterrios na obra barretiana, sendo as chaves
um passo crtico importante, centenrio at, que permitiu um resgate
de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha do ostracismo e estigma
lanados sobre ele. Se leitores do escritor pr-modernista
conseguirem explorar melhor os meandros da narrativa com a chave
alternativa o intertexto por ns oferecida,
que nosso trabalho de cicerone no foi em vo.

temos a certeza de

201

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APNDICES

APNDICE A:
TRAVANCAS, Isabel. O jornalismo e suas representaes literrias. Anais do 26.
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2003. So Paulo: Intercom, 2003. [cd-rom]. Tambm disponvel em: <http://
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XXVI Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao BH/MG 2 a 6 Set 2003

O JORNALISTA E SUAS REPRESENTAES LITERRIAS

Isabel Travancas
UFRJ

Introduo
A literatura ocupa um lugar de destaque nas sociedades ocidentais, desde antes da
modernidade. Os textos literrios tiveram grande poder de penetrao nos mais diversos
grupos sociais, ajudaram a construir mitos e a romancear atividades e profissionais, como foi
o caso da imprensa e dos jornalistas. O quarto poder e seus agentes foram e continuam
sendo na atualidade tema e protagonistas de diversas obras de fico. possvel afirmar que
a literatura imortalizou algumas imagens do jornalista; representaes que certamente
marcaram os futuros reprteres. Heri e bandido estiveram presentes em diferentes romances.
O vilo representado pelo profissional que no mede esforos para conseguir seus objetivos
e dar um furo de reportagem. Sem carter e trafegando pelo submundo do crime, ele no
hesita em colocar sua carreira na frente de tudo e todos e esta representao a mais presente
na literatura de um modo geral. Isso no acontece com os livros-reportagem ou de histrias
de vida, como o caso de Todos os homens do Presidente de C. Bernstein e B. Woodward
sobre a cobertura do escndalo Watergate. Este acontecimento se tornou emblemtico do
modelo de jornalista-heri que coloca a profisso acima de tudo e luta at o fim pela verdade
dos fatos. O livro virou filme com mesmo ttulo e contou com a atuao de Dustin Hoffman e
Robert Redford nos papis principais.
Duas obras clssicas so referncia fundamental para pensar o jornalista na literatura:
Iluses perdidas, de Honor de Balzac e Recordaes do escrivo Isaas Caminha, de
Lima Barreto. O romance francs A Comdia Humana traa um retrato da Frana em
meados do sculo XIX, poca em que Paris a grande capital europia, a burguesia est em
plena ascenso e os conflitos sociais explodem por toda parte. o perodo em que se do
grandes transformaes, como o surgimento do trem a vapor e o aparecimento das lojas de
departamento para felicidade das mulheres. Os sales literrios so verdadeiros
1 Trabalho apresentado no Ncleo de Jornalismo, XXVI Congresso Anual em Cincia da Comunicao, Belo
Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.

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acontecimentos que renem no apenas literatos, mas jornalistas e polticos. A imprensa tem
um lugar de destaque neste contexto. Longe de funcionar como uma empresa nos moldes
capitalistas e com funcionrios assalariados, ela ainda profundamente amadora, com laos
estreitos com grupos polticos e com um enorme poder de influncia.
no segundo episdio da obra Iluses perdidas -, que o escritor apresenta a sua
viso crtica da imprensa e dos jornalistas, atravs da trajetria de Lucien Chardon,
personagem provinciano seduzido pela capital e pelo desejo de sucesso. Basta lembrar que
Balzac se referia aos jornais como cncer que talvez devore o pas e no tinha piedade ao
mostrar os jornalistas como inescrupulosos e superiores aos fatos. Lima Barreto em Isaas
Caminha alm de narrar a luta contra o preconceito racial, apresentava de forma crtica a
mediocridade presente na imprensa e na literatura. Nota-se que estes dois romances enfatizam
o mesmo lado da moeda: o jornalista sem carter trabalhando em uma imprensa, nem sempre
corrompida, mas inmeras vezes leviana e agindo apenas em funo de seus interesses
particulares. No h nada de herico nos personagens de Balzac e Lima Barreto.
Entendo aqui heri nos termos que R. Helal(Rocha,1998:138) utiliza para discutir este
papel na atualidade. Heri como
quem conseguiu, lutando, ultrapassar os limites possveis das condies histricas e
pessoais de uma forma extraordinria, contendo esta faanha uma necessria dose de
redeno e glria de um povo. Mas, para que sua trajetria herica alcance este status,
necessrio que as pessoas acreditem na verdade que as faanhas do heri afirmam.
O que ele est afirmando na verdade que todos os grupos sociais de alguma forma
fabricam seus heris.
Mas a literatura de maneira geral, e estes trs romances em particular, - Bel-ami de
Guy de Maupassant; Adeus princesa, de Clara Pinto Correia e O vo da rainha, de Toms
Eloy Martinez-, no procuram representar o jornalista como o heri urbano. Ele aparece
sobretudo como bom vivant, ambicioso, sedutor e bomio, e no como o homem pblico
preocupado com o bem comum e com a esfera pblica, nos termos de R. Sennett(1988:27).
Sennet afirma em sua obra que h uma tirania da intimidade e que esta provocou um declnio
do interesse pelo mundo pblico nas sociedades modernas e individualistas. A meu ver, o
jornalista poderia ser visto como um dos ltimos representantes deste homem pblico.
1 Trabalho apresentado no Ncleo de Jornalismo, XXVI Congresso Anual em Cincia da Comunicao, Belo
Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.

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Em Bel-ami, publicado em 1886, Guy de Maupassant narra a histria do jovem


George Duroy, modesto, ambicioso e sedutor, que sobrevive em Paris com um emprego
miservel at encontrar Charles Forestier, antigo companheiro de exrcito. Forestier lhe
acena com um trabalho como jornalista na Vie Franaise. A partir deste encontro, a vida de
Duroy se transforma completamente. Ele entra para o jornal sem saber escrever sequer uma
notcia, mas conta com o apoio da bela esposa de Forestier. Sua trajetria amorosa,
profissional e financeira ser de muito sucesso. E para isso Duroy no vai economizar
esforos nem se preocupar com a tica. O protagonista da histria de Maupassant percebeu
rapidamente que esta carreira seria a ponte, ou melhor o trampolim, para sua ascenso social
e financeira, sua entrada na cena parisiense, permitindo-lhe freqentar com desenvoltura a
elite poltica e financeira francesa.
O romance narra as peripcias amorosas de Duroy. Suas amantes, sua ambio sem
escrpulos e seu poder cada vez maior. Seu sucesso est acima de tudo. Ele no hesita em ser
amante da mulher de um homem poderoso ou se casar com a jovem filha de um membro da
elite, se isto lhe convier. O jornalismo no aparece como misso nem como paixo. As
rotinas deste profissional demonstram o quanto ele valoriza o lugar que conquistou na
sociedade graas ao jornalismo, ao mesmo tempo em que despreza o seu ofcio. Escreve seus
artigos sempre com a ajuda dos outros, sem se preocupar com a veracidade dos fatos, muito
menos com as conseqncias dos mesmos.
Balzac, tanto em Iluses Perdidas quanto em Os Jornalistas, no poupa nem a
imprensa, nem os seus profissionais. categrico em afirmar que se a imprensa no
existisse, seria preciso no invent-la. Vale notar que j Maupassant, embora esteja falando
do mesmo tema e praticamente do mesmo perodo que seu contemporneo francs, sua
perspectiva , sem dvida, menos cida e corrosiva. H uma certa simpatia do autor pelo
protagonista de Bel-ami, ainda que as atitudes do jornalista no sejam louvveis. No entanto,
Maupassant propicia a seu personagem uma certa descoberta do mundo, da vida parisiense,
das hipocrisias da elite francesa. E Duroy se esmera nessa aprendizagem.
Conheceu os bastidores dos teatros e da polcia, os corredores e vestbulos dos homens de
Estado e da Cmara dos Deputados, as figuras importantes dos Attachs de gabinete e as
caras dos contnuos aborrecidos. Tornou-se em pouco tempo um timo reprter, seguro de
1 Trabalho apresentado no Ncleo de Jornalismo, XXVI Congresso Anual em Cincia da Comunicao, Belo
Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.

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suas informaes, astuto, rpido, sutil, um verdadeiro valor para o jornal, como dizia
Walter, que era conhecedor de redatores.
Ele, como Chardon, no de Paris, veio do interior, onde ainda vivem seus pais. E
est tambm fascinado pela cidade, pela vida urbana, pelo jornalismo.
Afinal, o jornalista antes de tudo um habitante da cidade. O mundo urbano tem
caractersticas e particularidades que se combinam e se misturam no jornalismo. Quando
Simmel (1979) cita como caractersticas dos indivduos da cidade a superficialidade, o
anonimato, as relaes transitrias, a sofisticao e a racionalidade, difcil no associ-las
ao jornalista. No que elas sejam exclusivas desta carreira, mas nela se expressam com
intensidade. E por isso possvel estabelecer uma relao to ntima entre este profissional e
a cidade como se percebe nos textos citados. A cidade, mais intensamente a metrpole, como
afirma Simmel determina um novo modo de vida, novas relaes sociais e uma ampliao
das ocupaes resultantes do desenvolvimento tcnico associado ao transporte e
comunicao. No h apenas novos e diferentes meios de comunicao, mas um processo que
ocorre tambm, agora, a partir de meios indiretos.
O desencantamento a marca do texto literrio da portuguesa Clara Pinto Correia.
Seu livro Adeus, princesa, escrito no final da dcada de 1990, conta a histria do assassinato
de um mecnico alemo no interior de Portugal, atravs da cobertura jornalstica realizada
pelo estagirio Joaquim Peixoto e pelo fotgrafo Sebastio Curto. Os dois jornalistas so da
cidade grande, - eles vm de Lisboa -, seus olhares so de estranhamento e de um certo
desprezo pela regio do Alentejo, considerada atrasada. Neste romance policial, cuja
descoberta do assassino no o foco da narrativa, h muitos personagens desencantados. A
jovem Maria Vitria Rosado, 18 anos, principal suspeita do crime e todos os seus jovens
colegas se mostram desesperanados. O nico personagem que acredita no seu prprio
trabalho, e procura realiz-lo da melhor forma possvel o estagirio inexperiente, ignorante
ainda das artimanhas da profisso. Na verdade, a cobertura sua primeira grande experincia
jornalstica, j que trata-se de um foca no jornal e na vida. E ele no esconde sua decepo
com os rumos da reportagem e com o texto final. Sebastio Curto que lhe ensina:

1 Trabalho apresentado no Ncleo de Jornalismo, XXVI Congresso Anual em Cincia da Comunicao, Belo
Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.

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No penses que eu no entendo o que tu sentes. Estou nesta vida h anos, e j assisti a
muitas estrias. H sempre um momento bestialmente doloroso em que vocs descobrem
que o que escrevem nunca o que as pessoas envolvidas gostariam que tivessem escrito.
E se a cidade o espao da diversidade, do cruzamento de mundos e tribos
diferentes, o jornalista vivencia com mais intensidade este fato em seu cotidiano. Transitar
por distintas esferas da metrpole, desvendando territrios heterogneos e construindo um
mapa, para muitos habitantes desconhecido, uma das funes do reprter - figura
paradigmtica do jornalismo que, com as suas tarefas de apurao dos fatos e redao da
notcia, se torna uma espcie de cidado do mundo. O jornalista atravessa fronteiras e tem
acesso livre quase todos os lugares. Dos meios oficiais aos marginais e perigosos. Essa
convivncia e proximidade com inmeros segmentos da sociedade num alto grau de
heterogeneidade geram no reprter um ar blas diante da vida, do qual fala Simmel ao
descrever o indivduo da cidade. Recebendo uma grande quantidade de estmulos, entrando
em contato com diferentes realidades e diferentes pessoas a cada dia, o jornalista precisa se
proteger desse excesso de estmulos produzidos pela metrpole e pela sua experincia
profissional, como vemos demonstrada na figura de Sebastio Curto, o fotgrafo experiente e
desiludido com o papel da imprensa.
O vo da rainha1, do escritor argentino Toms Eloy Martnez, publicado no Brasil em 2002,
faz parte da coleo Plenos Pecados da editora Objetiva, na qual diferentes escritores foram
convidados a produzir textos de fico tendo um dos pecados como tema. No por acaso
que a vida de um jornalista, que torna-se um poderoso homem de imprensa, o protagonista
desta histria sobre a soberba. Trata-se de um profissional extremamente bem sucedido, com
poder e glria, mas atormentado por no ter encontrado a felicidade. Ele, Camargo comanda
os destinos do jornal, em muitos aspectos de seus funcionrios e interfere diretamente nos
acontecimentos da nao argentina. E se mostra, ao longo de toda a narrativa disposto a pagar
qualquer preo para obter o que deseja: uma jovem reprter, Reina, que o fascina e encanta,
mas o abandona. E isto Camargo no perdoa. Com toda sua arrogncia prepara uma vingana
contra sua amada, usando todas as artimanhas que sua posio lhe permite. Manipula o jornal
contra ela, encontra aliados em seus concorrentes, preparando-se para um desfecho trgico.
1

Vale lembrar que o livro faz referncia direta e explcita ao caso do diretor do jornal O Estado de S. Paulo, Antonio
Pimenta Neves que em 2001, aps ter contratado e promovido a namorada, a assassina por no ter suportado ser abandonado
por ela.

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Camargo est ligado ao jornal visceralmente. Ele atende seu telefone celular no
importa onde estiver. Nunca a primeira pgina do dirio fechada sem a sua autorizao ou
interferncia. Suas filhas s contam com a sua ausncia, mesmo nos momentos mais
dramticos. Sua ex-mulher conta com seu auxlio financeiro. No parece haver sentimentos
em jogo. O jornal est sempre na frente, em qualquer situao, doa a quem doer. At que
Reina entra em cena. Tudo se transforma e ele perde o controle. Embora, nas palavras de
Camargo, como seria melhor o jornal se ele pudesse escrever sozinho. Como seria melhor o
mundo se ele o escrevesse a realidade se impe diferente do sonho, da soberba. Aqui vemos
o jornalismo e suas rotinas associadas diretamente arrogncia e presuno. Deslizes
ticos so constantes tanto por parte dos reprteres quanto de seus editores. A imprensa
colocou-os em um lugar especial, de destaque. Nesta narrativa, que tem a cidade de Buenos
Aires do incio do sculo XXI como pano de fundo, com todas as mazelas das grandes
cidades desta poca com violncia, injustia social e corrupo, no aparece o reprter
ingnuo de Adeus, princesa que tenta entender sua entrevistada, que se comove com a sua
histria. Mesmo Reina sabe desde o comeo o que quer. ambiciosa e desde que entrara no
jornal considerava aquele trabalho uma beno em que iria superando uma prova aps
outra ao longo de muitas semanas, at que algum editor reparasse nela e proclamasse seu
talento. Ela era uma jovem de classe mdia de Buenos Aires que buscava conquistar seu
lugar na capital.
E se o mundo urbano o local privilegiado do anonimato em oposio ao campo ou
cidade pequena, para o jornalista esta vivncia se torna marcante para a obteno de sucesso
e status. O jornalista est atrs de um furo que nada mais do que a possibilidade de
diferenciao dentro da profisso, de individualizao, de conquista de notoriedade e,
portanto, de escape do anonimato, o que significar ter seu nome impresso na primeira pgina
do jornal e ser reconhecido pelos colegas e pela sociedade. Esta situao est presente nas
trs obras analisadas, de diferentes maneiras.
Para Adorno e Horkheimer(1991), importantes pensadores da Escola de Frankfurt, a
imprensa, em particular, e a indstria cultural como um todo, no tm sada. Os jornais visam
o lucro e os jornalistas buscam o furo e a notoriedade. E isso d mdia uma feio muito
peculiar, segundo os autores. Ela ter sempre fins capitalistas, valorizando o sensacionalismo
e o entretenimento, o que a impossibilitar de se tornar informativa e democrtica..
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O que se pode notar em uma rpida reflexo sobre algumas obras literrias de
diferentes pocas, autores e nacionalidades, o quanto estas narrativas esto impregnadas por
esta viso adorniana da imprensa e dos jornalistas. Pode-se afirmar que Balzac,
Maupassant e Lima Barreto so anteriores Escola de Frankfurt. Mas no se trata aqui de
buscar uma filiao ou mesmo uma genealogia nesta anlise, mas perceber os pontos de
contato com esta importante corrente de reflexo sobre a indstria cultural e seu alcance nas
sociedades contemporneas.
Adorno e Hokheimer, assim como Balzac, Maupassant, Lima Barreto, Correia e
Martinez, com suas inmeras distines e estilos constrem uma representao dos jornais e
de seus jornalistas, bastante desencantada. No h aqui espao para o jornalista que busca
noticiar a verdade acima de tudo, que assume um compromisso tico com seus leitores, que
procura ser um guardio da liberdade de expresso e informao, trazendo para as pginas
dos jornais uma informao isenta e objetiva. Aqui o jornalista no o heri.
Concluso
A anlise destas obras de diferentes escritores em diferentes pocas, tendo o jornalista
como personagem central de suas histrias, me permitiu chegar a algumas concluses. A
literatura privilegiou e continua privilegiando a imprensa e sua figura mais paradigmtica o
reprter como tema de seus romances.
Entretanto, gostaria de chamar a ateno para o fato de as representaes mais
freqentes dos jornalistas na literatura serem diferentes das que pude detectar no
cinema(Travancas:2001), onde aparecem com igual dimenso o heri e o bandido. Nas obras
literrias que analisei, este profissional tem uma imagem muitas vezes ambgua ou
contraditria, fascinando e atraindo em muitas ocasies, mas tambm sendo mostrado
inescrupuloso, desonesto ou mau carter.
A profisso de jornalista exige de quem a escolhe um envolvimento e uma dedicao
particulares e pelo fato de significar bem mais do que uma atividade ou emprego na vida de
seus profissionais, ela gera um estilo de vida e uma viso de mundo especficos. o que se
pode observar nas obras citadas. Cada um dos protagonistas apresenta um estilo de vida
totalmente impregnado pela profisso. Eles tm suas rotinas determinadas pelo trabalho, seus
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hbitos de consumo de bebida e cigarro associados tenso da profisso, suas relaes


afetivas profundamente contaminadas pela carreira, seu tempo completamente controlado
pelo jornal. Ainda que sejam fruto de sociedades modernas ou em vias de modernizao, no
aparecem como donos do seu tempo, mas subordinados engrenagem da redao e da
notcia, trabalhando na intensidade do fato.
Quanto viso de mundo especfica dos jornalistas, creio que os personagens
explicitam esta particularidade. Pierre Bourdieu afirma que os jornalistas tm culos
especiais a partir dos quais vem as coisas. Seguindo nesta direo, poderia dizer que os
personagens dos trs romances usam estes culos na medida em que se relacionam com os
fatos e com o mundo a partir da idia de notcia. Nos trs casos apurar ou redigir uma notcia,
transform-la em realidade atravs das matrias, a possibilidade de estar no mundo, de
ganhar visibilidade, prestgio e sucesso.

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialtica do esclarecimento. RJ: Zahar, 1991.
BALZAC, Honor de. Iluses perdidas. In: A comdia humana. SP: Globo, 1990.
BARRETO, Lima. Recordaes do escrivo Isaas Caminha. RJ: Ediouro, 1980.
BERNSTEIN, Carl & WOODWARD, B. Todos os homens do Presidente. RJ: Francisco
Alves, 1978.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televiso. RJ: Zahar, 1997.
CORREIA, Clara Pinto. Adeus, princesa. RJ: Rocco, 2001.
HELAL, Ronaldo. Cultura e idolatria: iluso, consumo e fantasia. ROCHA, Everardo(org).
Cultura e imaginrio. RJ: Mauad, 1998.
MARTINEZ, Toms Eloy. O vo da rainha. RJ: Objetiva, 2002.
MAUPASSANT, Guy de . Bel-ami. SP: Martins Editora s. d.
SENNET, Richard. O declnio do homem pblico. SP: Companhia das Letras, 1988.
SIMMEL, Georg. A metrpole e a vida mental. VELHO, Otvio(org). O fenmeno urbano.
RJ: Zahar, 1979.
TRAVANCAS, Isabel. O mundo dos jornalistas. SP: Summus, 1993.
__________________. O jornalista como personagem de cinema. Campo Grande, Intercom,
2001(Cdrom)

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APNDICE B:
LE MOING, Monique. Lima Barreto ou L'illusion Tragique. IN: Littrature
brsilienne Les auteurs brsiliens traduits en franais. Page web de lAmbassade du
Brsil en France. Disponible sur : <http://www.bresil.org/images/stories/ambassadedocuments/le-bresil-en-france/publications/limabarreto.pdf?
PHPSESSID=a204ae6c9a8f49446402f4e25ff0207a> Accs : 30 dcembre 2006.

LIMA BARRETO OU L'ILLUSION TRAGIQUE

Monique LE MOING*

Le 29 mai 1954, O Cruzeiro, lun des plus grands quotidiens brsiliens, prsentait Lima Barreto de cette
faon caricaturale et succinte :
Nom : Afonso Henriques de Lima Barreto. N dans le district fdral le 13 mai 1881. Clibataire. Filleul du Vicomte de Ouro
Preto et de Notre-Dame de la Glria. Il aimait faire de longues promenades pied et portait un chapeau de paille. Il naimait pas
le cinma, particulirement le cinma amricain. Il crivait la main. Il avait une profonde antipathie pour le tlphone quil
trouvait inutile. Son plat favori : les haricots noirs avec une bonne sauce tomate, des oignons et du vinaigre, accompagns de
viande sche. Il savait trs bien nager. Il rpondait religieusement toutes les lettres quil recevait et gardait les minutes de ses
rponses. Il naimait pas le quartier de Botafogo ni la zone sud en gnral. Il dtestait le football, surtout parce que les grands
clubs cariocas affichaient leur prjugs raciaux. Sans tre monarchiste, il naimait pas la Rpublique. Plus dune fois il se
proclama anarchiste. Antimilitariste, il tait fonctionnaire au Ministre de la Guerre. Il fumait et buvait normment. Il hantait
tous les petits bars de la ville. Il tait superstitieux. Ses lectures prfres : Guyau, Brunetire, Kropotkine, Balzac, Dostoevski,
Tolsto et Maupassant. Il naimait pas quon le compare Machado de Assis et encore moins quon le considre comme son
disciple, son mule. Il critiqua le futurisme. - Bien quapprciant peu lAcadmie Brsilienne de Lettres, il sy prsenta trois fois
sans succs. Il ne se considrait pas comme athe bien quil ne ft pas catholique (il disait lui-mme : Je suis profondment
tolrant, jamais je nai t anti-clrical ). Il shabillait mal, affreusement mal ; ctait son style - Il mourut le 1er novembre
1922 et fut enterr le jour des morts dans le cimetire de So Joo Batista, selon sa volont.

Ce portrait on ne peut plus strotyp prsente lavantage de dessiner les contours du personnage. Mais,
comme dans un croquis, tout est l mais sous une forme inacheve : les choses sont beaucoup plus complexes
et mritent une approche plus attentive. Nous allons donc effectuer quelques retouches ncessaires.
Lima Barreto est effectivement n le 13 mai 1881, dans un faubourg de Rio de Janeiro, Todos os Santos, et le
destin qui se manifeste ds sa naissance ne sera pas trs gentil avec lui. Il est multre. Sa mre meurt en 1887,
laissant quatre enfants dont lan, Afonso, na pas encore sept ans. Il sattache beaucoup son pre,
typographe lImprimerie Nationale et ptri de Littrature et dHistoire franaises.
A sept ans, il assiste joyeux aux festivits relatives lAbolition de lesclavage, le jour mme de son
anniversaire. Par contre lavnement de la Rpublique, en 1889, ne lui laisse que damers souvenirs. Son pre,
monarchiste et plein dadmiration pour les grands noms de lEmpire, perd sa place ; la famille part pour lIlha
do Governador, en face de Rio, o monsieur Barreto va tre administrateur des Colnias de Alienados, les
asiles dalins. Lenfant commence souffrir des injustices du monde et rver dune autre vie. Son projet :
devenir ingnieur. Il tudiera lEcole Polytechnique, de 1897 1900. Il sintresse au Positivisme par
* Monique Le Moing est chercheur, essaiyste et traductrice.

2
simple curiosit : il en trouve le dcorum ridicule et les lois trop rigides (il fera dire lun de ses personnages
ce nfaste et hypocrite positivisme, un pdantisme tyrannique limit et troit qui justifie toutes les
violences ). Il tudie, seul, la philosophie avec grande passion et grand srieux (dans son Journal, on trouve
ce passage : Cours de philosophie fait par Lima Barreto pour Lima Barreto selon la Grande Encyclopdie
Franaise du XIXme sicle et dautres dictionnaires et livres faciles obtenir.) Mais son temprament
rebelle, violent et ferm saccommode mal des tudes classiques. Il fait des choix entre autres Condorcet et
en particulier Rflexions sur lEsclavage des Ngres. Il frquente la Rua do Ouvidor, la rue la plus clbre du
Rio de Janeiro de lpoque. Et la ville, ses rues, ses faubourgs et ses plages vont tenir un rle important dans
son uvre. Il vit sa ville comme une passion le lieu o se crent les modes, se font et dfont les rputations,
tombent les cabinets ministriels 1
En 1901, il prend part au Mouvement de la Fdration des Etudiants Brsiliens, mouvement socialiste et
nationaliste qui prnera la fin du rgionalisme et le service militaire obligatoire (Lima Barreto y tant
farouchement oppos sloigne alors du mouvement). Cest cette poque aussi quil prend vraiment
conscience de son origine et du phnomne de sgrgation : sgrgation par la couleur et par largent. Il est
franchement multre et on ne lui mnage pas les humiliations : il est recal tous ses examens et se trouve
dans lobligation de faire appel son parrain, le vicomte de Ouro Preto. En 1902, son pre devient fou et
Afonso se retrouve soutien de famille. Il dcide de quitter la Fdration des Etudiants et lEcole
Polytechnique. Pistonn par son parrain, il passe le concours dentre au Secrtariat la Guerre et devient un
fonctionnaire modle.
Rio de Janeiro vivait cette poque les grandes heures de son remodelage : le prfet Passos, comme
Haussmann Paris, transformait la ville que les tramways lectriques sillonnaient. On y frquentait beaucoup
les cafs. Lima Barreto y rencontre des intellectuels et tente de sincruster dans le milieu du journalisme
professionnel. En 1905, il entre au Correio da Manh.
Cest cette poque de sa vie quapparat le phnomne du bovarysme , phnomne quil analyse trs bien
dans son Journal : il ne parvient pas superposer limage quil se fait de lui-mme avec la ralit, la vie et la
littrature le mettent au centre de situations contradictoires : elles salimentent mutuellement dans la
dnonciation des prjugs, particulirement les prjugs de race. Alors il se replie sur lui-mme et se plonge
dans les livres Dostoevski, Stendhal, Balzac Flaubert, Taine, Anatole France, Ea da Queiroz Il boit
pour supporter ce dsenchantement et crit dans son Journal intime : Cest triste de ne pas tre blanc .

1 Beatriz Resende. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, ed. UFRJ ed. UNICAMP, R.J., 1993,
p. 102

3
Il sessaie diffrents genres de la littrature, mais il narrive pas terminer ce quil commence. Il bauche
Triste fim de Policarpo Quaresma en 1903 et en 1904 les premires pages de Clara dos Anjos (histoire
dune vie de multresse) quil ne terminera que 16 ans plus tard.
A lpoque o Lima Barreto crivait, les courants littraires suivaient deux influences : un courant libral
(allant jusqu lanarchie dans lcriture) et les nphlibates, les reprsentants du symbolisme agonisant. Cest
dans ce contexte que parat Floral, revue fonde par Lima Barreto en 1907 mais qui agonise en 1908 :
lamertume sabat sur ses paules. Il doute de ses deux romans en gestation quon pourrait facilement
considrer comme des autobiographies, mais aussi comme des tmoignages de lvolution de sa pense et de
sa grande dception : Recordaes do Escrivo Isaas Caminha (qui paratra sous forme de feuilleton dans
Floral, mais ne sera dit que deux ans plus tard) et Vida e Morte de M.J. Gonzaga de S. Cest lanne
o meurt Machado de Assis.
Nous sommes donc en 1909 et Lima Barreto cherche un diteur. A cette poque, la Librairie Garnier, LA
maison ddition de Rio de Janeiro, nditait que des auteurs consacrs. Il tente donc de se faire diter au
Portugal, aid en cela par Monteiro Lobato. Cest Recordaes do Escrivo Isaas Caminha quil choisit
pour dbuter sa carrire littraire Un livre ingal, volontairement mal fait, brutal parfois, mais toujours
sincre , dit-il. En fait, il sagit dune uvre de haine, de rvolte contre la socit, qui veut dranger et
obliger les gens penser dune autre faon.
1909, cest aussi lanne o Anatole France vient au Brsil et o il est reu par Rui Barbosa. Lima Barreto
critique cette rception et par la mme occasion ceux quil appelle les btisseurs de politique. Son livre sort
dans un climat politique trs perturb. Au dbut de lanne 1910, il fait partie des jurs au procs dun officier
de larme. Il se prononce pour la condamnation et cela nuira davantage encore sa carrire, car cest sur lui
que retombera la responsabilit de cette condamnation.
1911 est une anne cruciale. Lima Barreto est au fate de sa production littraire : il a crit Histrias e
Sonhos et Triste Fim de Policarpo Quaresma est publi sous forme de feuilleton dans la presse. Pourtant
cest lanne o il bascule ; lanne de ses trente ans. La publication de Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha la du. Pas de ractions, le silence total, comme sil nexistait pas. La critique, si importante pour
un auteur, la critique fait dfaut. Il se consacre alors des nouvelles satiriques et populaires : Aventuras do
Dr. Bogoloff, mais cest un fiasco. Il se met boire. Sa sant se dtriore. Il tombe ivre mort dans les rues, il
a des hallucinations : il a limpression quil devient fou. A cette poque, il crit dans son Jounal intime :
Serai-je en train de devenir fou ? Dot daptitudes, de qualits, de grands et de puissants dfauts, je vais
mourir sans avoir rien fait . Il se projette nouveau dans un personnage du roman quil est en train dcrire,

4
Cemitrio dos Vivos.
En 1914, le Brsil se prpare dclarer la guerre lAllemagne. Lima Barreto est contre ce projet car
lattitude raciste de lAmrique du Nord vis - - vis des noirs la lui rend profondment antipathique. Cette
anne-l parat la deuxime dition des Recordaes do Escrivo Isaas Caminha, compte dauteur.
A nouveau intern entre novembre 1918 et janvier 1919, il envoie loriginal de Vida e Morte de M.J.
Gonzaga de S au Portugal, Monteiro Lobato qui propose immdiatement de lditer. Estimant que ce
roman est son uvre la plus acheve, il prend cela comme une sorte de compensation. La sortie du livre est
entoure de circonstances trs favorables. Il tente alors de se prsenter lAcadmie Brsilienne de Lettres,
mais celle-ci ne lui ouvrira jamais ses portes. Il voulait par l obtenir la gloire littraire, il ne lobtiendra pas,
du moins de son vivant.
A partir de 1919, il accentue sa collaboration la presse. Il reste en marge de la politique et se contente
darticles incendiaires et de conversations de caf : son arme, lironie qui tue et tue sans verser de sang. Il
sinsurge contre le football, le sport breton comme on lappelait alors au Brsil, qui symbolise ses yeux
un retour la barbarie ; il dira mme que cest le sport et Nietzsche qui ont contribu la dclaration de la
Guerre de 1914 (en ralit, le problme rside surtout dans le fait que le football tait un sport de riches
interdit aux noirs). Il sintresse aussi la condition fminine : farouchement oppos au fminisme, il prend
vraiment la dfense de la femme et de manire extrmement moderne. Toute sa vie il entretiendra des
relations bizarres avec les femmes ; sa grande timidit et sa gaucherie sont bien dcrites dans Recordaes do
Escrivo Isaas Caminha o il fait dire son personnage-alter ego : Jai toujours t ainsi devant les
femmes, quelle que soit leur condition, ds que je les aperois dans un salon, elles sont toutes pour moi des
marquises ou de grandes dames . On ne lui connat quun petit flirt seize ans ; plus tard, mal laise, il se
contentera de rver et dcrire. Pourtant, par les lvres de Gonzaga de S, son autre alter ego, il regrette
davoir ainsi cart les femmes de sa vie.. A-t-il tout simplement eu peur quelles entravent sa vie littraire,
elles quil ne considrait ni comme amies ni comme ennemies ? Cest du moins ce que pensait Francisco
Assis Barbosa, grce qui Lima Barreto sortit de loubli. Il sagit en fait dun rapport au deuxime degr,
fruit dun blocage, nouvelle manifestation de son bovarysme : Elle devait tre dlicieuse cette
Guilhermina , pense-t-il, ou bien encore je mintresse certaines jeunes femmes et parfois pendant
cinq minutes jarrive les aimer ; je cherche leur adresse ; je passe deux ou trois fois devant leur porte
timidement, gauchement . Mais rien de plus, il ne peut faire concider ses lans et leur concrtisation.
1919, nouveau il dlire. On linterne et cet enferment est un poids terrible pour lui. Lunique aventure
cest la libert , confie-t-il cette poque, ajoutant quil ne supportera pas un nouvel internement : il pense

5
au suicide ; il y pense depuis trs longtemps dailleurs.En 1921, Lima Barrreto a quarante ans. Ce nest plus
quune loque humaine, un vieillard dsabus.
Nous arrivons la grande anne 1922. Importante au Brsil pour plusieurs raisons : On y commmore le
centenaire de lIndpendance. Cest lanne de la fondation du Parti Communiste : en mars, le premier
Congrs du Parti Communiste Brsilien se runit Nitri. Cest aussi lanne des lections prsidentielles.
Cest encore cette anne l que se produit un vnement dune porte norme : la rvolte du Fort de
Copacabana, appele la Rvolte des Douze du Fort. En fvrier est organise So Paulo la Semaine dArt
Moderne, manifestation importante sil en est pour les futures orientations du Brsil.
Lima Barreto aiguise sa critique. Il traite le Mouvement de futurisme national , ny voit quun certain
snobisme et reproche Mario de Andrade et ses amis modernistes de ntre que de simples imitateurs de
lItalien Marinetti, auteur du clbre Manifeste Futuriste , qui lui est profondment antipathique. Il expose
ses ides dans un article intitul Le Futurisme , qui parat dans la revue Careta du 22 juillet 1922.
Le 1er novembre, il steint aprs une vie faite de douleur dont il a utilis des fragments comme prtexte une
cration littraire o rien nest trait sur un ton neutre, o affleure une sensibilit sans cesse heurte, ds
lenfance, dans sa propre maison et dans la socit o il vivait et dont il aurait tant voulu faire vraiment partie.
Il ne faut chercher aucun rapport entre Lima Barreto, homme dhonneur, homme de bien, homme de loyaut,
bris par la vie, et le fantoche imbib dalcool quon a caricatur lpoque et qui la longtemps suivi.Il est
mort en tenant un volume de la Revue des deux Mondes entre ses mains, quarante-huit heures avant son pre
quil avait tant aim et soign.
LUVRE
Trois romans se dtachent nettement dans cette uvre extrmement diversifie puisquelle contient dix-sept
livres qui vont du roman au journal en passant par la chronique, la satire,les contes, les nouvelles, les
mmoires et la correspondance. Trois romans mergent de ce monument, trois romans dont les principaux
personnages sont en ralit les alter ego de lauteur. Des crans derrire lesquels il se cache plutt des porteparoles engags, des observateurs attentifs lvolution dune socit qui sort de lesclavage pour sengager
dans la voie de l imprialisme racial .
Recordaes do Escrivo Isaas Caminha 2 :
Cest un roman, quil qualifie pourtant de nouvelle, dont la toile de fond est le rdaction dun journal et

6
lhistoire, celle dun mtis intelligent, bon, honnte, qui se heurte aux prjugs sociaux et raciaux de la socit
brsilienne de lpoque, celle de la Repblica Velha, celle qui prcde la guerre de 1914 : poque o lhomme
noir, sortant de lesclavage se trouve bout hors du systme national , marginalis par sa couleur. Lima
Barreto crit ici un vritable pamphlet contre la presse, les matres de la politique, les mandarins de la
littrature et du journalisme. On y sent le dsir de scandaliser, de mettre sous les yeux de tous les humiliations
quil vivait. La thmatique du livre est centre sur le pouvoir et le racisme.
Cest un livre pre, amer, un livre clefs aussi : il est clair par exemple que le journal dont il est question est
le Correio da Manh et une bonne partie des personnages cache (ou ne cache mme pas) des personnalits
relles. Cest dailleurs l-dessus que vont porter les critiques : on lui reproche davoir fait un mauvais roman
clefs. On lui trouve un grave dfaut : son excessif gocentrisme. Douze ans plus tard, en 1921, la plaie nest
pas encore referme et il crira :
La force dun roman de cette sorte rside dans le fait que les relations entre les personnages et les modles ne se retrouvent pas
dans le nom mais dans la description du type faite par le romancier dun seul jet dans une phrase.

La presse se vengea en opposant un silence total et mprisant la cruelle satire qui atteignait de plein fouet le
journal le plus puissant de lpoque.
Le titre mme de louvrage reprsente un raccourci exemplaire : lantihros, Isaias (Isae ?),le prophte de sa
race, pouss par un fatalisme actif, une volont au-dessus de sa propre volont, avance sur le chemin de la
dcouverte, de la vie, chemin difficile vers la terre nouvelle, lidentit brsilienne. Mais Isaias sera dans
limpossibilit de raliser son rve tre doutor tre diplm et tenir ainsi entre ses mains la preuve de son
ascension sociale

et donc de son existence par le double fait dtre multre et pauvre (ces deux

composantes tenant lui comme une tunique de Nessus). Il ne sera quun simple gratte-papier. Isaias semble
un manation de Lima Barreto. Cest un roman essentiel pour cerner la vision critique de lauteur, en dpit
des exagrations quil contient, moins que ce ne soit pour cela mme
Triste fim de Policarpo Quaresma 3
Mri pendant plusieurs annes, crit en deux mois et demi, paru en feuilleton dans le Jornal do Comrcio et
dit en 1915, cest le roman de lge dhomme dont le hros est un patriote exalt, un visionnaire, un pur...Il
est bti autour dun thme dvelopp en trois phases culturelle, agricole et politique qui sont aussi trois

2 Roman traduit par Monique Le Moing et Marie-Pierre Mazas aux ditions Harmattan sous le titre Souvenirs
dun gratte papier.
3 Roman traduit par Monique Le Moing et Marie-Pierre Mazas aux ditions Harmattan sous
le titre Sous la Bannire toile de la Croix du Sud

7
checs et qui visent conforter son nationalisme, en fait un nationalisme de classe : Les relations entre
culture et nation sont formules sous un angle nouveau, et assurment progressiste , crit Alfredo Bosi4, qui
compare Triste fim de Policarpo Quaresma aux funrailles dune idologie que le contact avec le rel a
fait clater . Le Major, Policarpo Quaresma, employ au Ministre de la Guerre, a de drles dides :il prne
ladoption de la langue tupi dans les textes officiels et fait preuve dune originalit par trop vidente. On le
prend pour un illuminAprs un sjour oblig dun mois dans un hpital psychiatrique, il sinstalle la
campagne pour mettre en pratique ses thories concernant la mise en valeur des richesses du Brsil, pas assez
reconnues son got. Mais le combat est ingal et les fourmis viennent bout de son acharnementIl
cristallise alors son amour patriotique sur un engagement total la cause du marchal Floriano Peixoto, le
prsident de la Rpublique - dont le journaliste Assis Chteaubriand dira lpoque Qui mieux que le
marchal Floriano a incarn le militarisme, les privilges de classes, la haine des civils ? - et sengage
comme volontaire pour sauver la Patrie. Mais il a le malheur de dire haut et fort son amertume devant le
comportement des vainqueurs et se retrouve prisonnier : personne ne pourra le soustraire lexcution qui
lattend.
Cest le roman le mieux crit, le plus travaill. Comme Isaas, Policarpo narrive pas faire concider ses
rves avec la ralit brsilienne : la ralit brise ses espoirs, ses ides sont vaines ses rves inutiles. La satire
politique est froce Rien ne sert de changer de gouvernements, si on ne change pas les hommes ! - et
cest peut-tre dans ce roman quil ressemble le plus Sisyphe ou lalbatros, au pote doux et rveur sacrifi
sur lautel de la libert. Cest aussi dans ce livre que se manifeste avec le plus de force le caractre
dichotomique du propos de Lima Barreto.
Exceptionnellement, car il ny en a gure dans les romans de Lima Barreto, trois femmes apparaissent dans ce
roman : Adlaide la sur de Quaresma, reste auprs de son frre pour le protger et qui a perdu toute
personnalit , Ismnia la pauvre fiance abandonne dont la vie, toute entire est oriente vers le mariage,
va seffilochant au fur et mesure que samenuise lespoir de retour du promis , Olga le porte-parole du
bon sens fminin, celle qui saura dire non, celle qui comprendra que seule la littrature peut crer et garantir
un espace pour la libert, celle qui jusquau bout aidera Policarpo.
Mais ce roman met encore en scne un personnage qui prendra toute son importance dans Vida e Morte de
M. J. Gonzaga de S, la ville de Rio de Janeiro et ses faubourgs, espace social, espace vital, espace
sgrgatif o lhomme noir est expuls dun Brsil qui se modernise et seuropanise, dun Brsil o les
esclaves sont devenus des marginaux la fois attirs et rejets par le progrs o lhomme ngre est

4 Alfredo Bosi. Dialtica da Colonizao, S.P., Companhia das Letras, 1992, p. 268.

8
envoy dans les cales du capitalisme national, sordide et grotesque 5.
Vida e Morte de M.J. Gonzaga de S 6
Achev en 1906, mais publi en 1919, cest une sorte de livre testament, de testament philosophique
et intellectuel, une uvre de maturit, le roman de lindividu face au doute mtaphysique. Mais cest
aussi le plus beau pome en prose jamais crit sur Rio de Janeiro 7. La vie de Gonzaga de S
est la fois lexpression dun dsir et dune exprience rate. Cest aussi la vie dun historienartiste comme le qualifie Carmem Lcia Negreiros de Figueiredo, qui ajoute :
Dans la culture brsilienne une tradition de paysages construit sur un vaste ensemble de souvenirs, de mythes et de
lgendes qui, en plus daccompagner de longues priodes de lhistoire sociale, moule aussi les institutions et les
valeurs 8.

Gonzaga de S est un homme qui cherche sa force vitale dans le destinhumain et dans lhritage
culturel. Cest le porte parole de Lima Barreto qui dcrit, au cours de conversations entre un
personnage et son interlocuteur, la ville de Rio de Janeiro comme il ne la jamais fait, dpeint le
rythme des rues, le regard des passants, tudie les badauds un sujet social et qui passe quatorze
heures sur vingt-quatre dans la rue parlant avec des gens de toutes conditions et de toutes
classes .9 Il est les flneur du Jardin public, parcourt le centre ville et les plages, et sinterroge sur
le destin individuel de ltre humain en qute daccomplissement, insparable de celui de citoyen,
quil soit crivain, agriculteur, bureaucrate ou homme politique. Il met en vidence lalination des
hommes par les hommes dans la ralit sociale. Son raisonnement est simple : la bureaucratie
lgitime le faux, transforme les hommes en rptiteurs de formules, mutile leurs penses et leurs
actions, en un mot les aline. Xisto Beldroegas, le fonctionnaire modle dont la morale ne repose
que sur lordre bureaucratique en est la caricature.
Histrias e sonhos

5 Id., ibid., p. 272.


6 Roman traduit par Monique Le Moing et Marie-Pierre Mazas aux ditions Harmattan sous
le titre Vie et Mort de Gonzaga de S
7 Francisco de Assis Barbosa. Lima Barreto e a reforma da sociedade, Recife, Pool, 1987
8 Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo. Trincheiras do Sonho fico e cultura na obra
de Lima Barreto, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1998, p.97.
9 Lima Barreto. Impresses de Leitura, in Obras de Lima Barreto, organizadas sob a direo
de Francisco de Assis Barbosa, com a colaborao de Antnio Houaiss e M. Cavalcanti
Proena, S.Paulo, Brasiliense, 1956.

9
Traduits en franais sous le nom gnrique de Contes10, ce sont des petits tableaux satiriques
concis, mticuleux, qui dnoncent les marginalisations sous toutes leurs formes et les injustices
sociales mais caricaturent aussi lhomme tout simplement, lhomme et ses dfauts universels, dans
un espace historique et gographique particulier, le Brsil : on y ctoie la multresse devenue la
matresse exigeante dun homme blanc, lescroc qui abuse de la navet de tout un village, la jeune
fille en qute dun mari diplm , un couple dAnglais peu acadmique, un jeune homme tortur
par le remords mais aussi un joueur de modinhas.
Nous noublierons pas Clara dos Anjos - qualifi de Germinal ngre car il met en valeur la
solidarit des humbles et des opprims, en loccurrence les noirs, et dresse un constat manichiste et
pessimiste du monde o lhomme est un loup pour lhomme - ni ses Notas sobre a Repblica
das Bruzundangas ( on pourrait traduire par la Rpublique des magouilles), collection darticles
satiriques sur la politique du pays quil dfinit ainsi: On peut dfinir de manire gnrale la
socit de Bruzundanga dun seul mot :mdiocre . Cest aussi un observateur touch par le peuple
dans le dsespoir de son quotidien, un journaliste qui rcupre la vie du citoyen menace dans ce
Rio de Janeiro en pleine mutation, exil au milieu dune mer danalphabtes , solidaire et
compatissant.
Les Mmoires
Cest ainsi que lon peut qualifier le Dirio ntimo, le Dirio do Hospcio et son adaptation
fictionnelle Cemitrio dos vivos : mmoires douloureux crits pendant et sur son exprience
lasile, o il fut intern plusieurs fois, mmoires qui naviguent entre ralit et fiction, la ralit
dpassant souvent la fiction dans linsupportable condition de cet homme soumis larbitraire,
stigmatis par un destin mdiocre. On pourrait parler aussi de chroniques dune mort annonce .

LE FOND
Toute luvre de Lima Barreto se droule dans un cadre historico-social charnire au Brsil. Elle a
donc une valeur documentaire, mais elle met surtout en valeur le divorce entre le peuple et les
objectifs nationaux du Brsil. Et cest sur le fait que le simple changement de rgime ne supprime

10 Traduits par Monique Le Moing en trois volumes : La Nouvelle Californie et autres contes , Le fils de
Gabriela et autres contes , Un amer tourment et autres contes aux ditions Rafael de Surtis, 20 rue de la
Margotterie, La Touche, 86170 Cherves.

10
nullement les vices fondamentaux de lvolution brsilienne (mais est-ce uniquement brsilien ?)
que Lima Barreto a construit sa rvolte, cest--dire son uvre, tant celle-ci lui colle la peau. Il
sinsurge contre la mdiocratie , le jacobinisme de la rpublique et des rpublicains qui mne
la corruption et la chute du rve rpublicain dun pays quon dit toujours du futur et de
lesprance , contre le positivisme, le militarisme, le patriotisme militant gnrateur de guerre,
contre les intellectuels borns. Il sera lun des premiers intellectuels brsiliens saluer la rvolution
russe et dfendre le communisme avec ardeur et conviction. Toute sa vie et son uvre ont t un
combat pour dnoncer les fausses valeurs et les institutions qui exploitent parfois linconscience
populaire ; une subversion vcue comme un acte damour envers un pays riche naturellement et
moralement en stagnation, thtre dagissements dgradants. Il se battait pour les ides de
philosophes positivistes comme Taine, Guyau et celles de Condorcet. Comme eux, il fondait sa
conception de lart comme expression pathtique de lhomme un art engag, viscral, vcu -, et sur
le pouvoir de lintelligence comme facult matresse du dveloppement de lEsprit Humain et du
Progrs. Par certains cts, on peut penser Camus : il est la fois Sisyphe, finalement et dans la
mort, plus fort que son rocher ; il est lhomme rvolt quand il sexprime par la bouche de Policarpo
Quaresma ; il est ltranger quand tout lui est indiffrent comme Isaias qui croise et ctoie des
personnages qui disparaissent sans marquer leur place, qui voit mourir son collgue Floc et surtout
sa mre sans motion apparente, qui parat insensible la folie du grammairien Lobo, qui ne se
mle aucun des vnements qui secouent la ville ; il est, tout comme Meursault, un homme dont
lidologie na pas survcu au contact du rel, un homme qui a tragiquement perdu ses illusions
LA FORME
Lima Barreto va laborer la troisime marge du rcit brsilien Nous voulons dire par lque luvre de Lima
Barreto constitue une des rares fusions dlments stylistiques, les plus divers, o le classique et ce qui est
traditionnellement accept comme littraire se mlent au populaire, plus communicatif et mieux compris par le peuple
il a cr le plus authentique style multre de la littrature brsilienne.. Aprs lui, seul Guimares Rosa a russi une
telle fusion 11

En fait, ce style multre introduit la rvolte sociale et prend les couleurs dune littrature
militante et ouvre la voie la gnration des modernistes. Cest lpoque o les nphlibates les
reprsentants du symbolisme agonisant sont encore la mode au Brsil. Lima Barreto ressent le
besoin dchapper aux injonctions des mandarins de la littrature, aux conjurations des prjugs. Il
inaugure lre du rejet des vieux modles et de la recherche de lidentit brsilienne, annonant en
11 Giberto Mendona Telles, As recordaes de um gratte-papier in Jornal de Letras, juillet 1990.

11
cela les modernistes. Son uvre est construite sur trois plans la Fiction, lHistoire et
lAutobiographie et sur lpisode : la vie apparat dans des squences, des flashes, des apparitions,
des entres et des sorties de personnages qui dcident plus ou moins du sort dautres protagonistes.
Il ny a pas vraiment dintrigue, dans aucun de ses romans, quon pourrait plutt classer dans le
genre nouvelles .
Son style est la fois potique et dune simplicit parfois dconcertante. Il ne recule devant aucune
rptition voire redite. Le fait est, et cela lui a t beaucoup reproch, que ses phrases ne sont pas
assez travailles. Mais il sexplique lui-mme et il avoue que son style est ingal, volontairement
nglig, brutal Mes livres sont pleins derreurs cause de ma ngligence et de mon laisser-aller, cause des
rvisions mal faites, y compris les miennes ; mais quant celles qui concernent la

grammaire, je ne men suis

jamais proccup12. Il est le reflet de sa conception de la littrature : agiter des questions


importantes pour notre destin, aller lessentiel et viter les clichs mtaphoriques de la
langue 13. Et effectivement il pose plus de questions quil ne donne de rponses. Pourtant certains
de ses textes dnotent un parti pris de clart et de concision, certains moments de posie laissent
entrevoir un beau talent et rendent encore plus regrettable cette option
Il reste parler des noms que Lima Barreto a donn ses personnages et qui sont pour la plupart
chargs de connotations quon ne peut passer sous silence : il en est ainsi dIsaias, le prophte celui
qui a la parole et qui avance (caminha) sur un chemin sem dembches Il en est de mme de
Policarpo Quaresma, lhomme plein de projets qui tous sont vous lchec, de Ricardo Corao
dos Outros, le gnreux, et de Felizardo, celui qui detient la sagesse de la terre Quant Gonzaga
de S, il est de par son nom lhomme de Rio par excellence Sont-ils les fruits de linconscient,
du subconscient ou dune volont dlibre de leur donner une charge significative ? Peut-tre un
peu de tout cela la fois.14
En conclusion, il suffira de remarquer que cet crivain, comme bon nombres dartistes, mconnu,
bafou, rejet vers une solitude douloureuse gnre par la conscience dappartenir un monde qui
lui refusait la reconnaissance, mort dans la plus complte indiffrence son enterrement fut pris en
charge par un petit groupe damis - est devenu une gloire nationale : un rcent sondage le place en
effet parmi les premiers auteurs brsiliens du XX sicle. Concidence intressante, il est mort
12 Lettre du 18 fvrier 1921 Lucilo Varejo.
13 Geraldo de Menezes. A face do Tempo, Folha Carioca Editora, R.J., 1999.
14 Voir larticle de Monique Le Moing Des noms occults en littrature (Alain Robbe-Grillet Lima Barreto
Pedro Nava) dans le n 4 de la revue Sigila, automne 99.

12
lanne mme o naissait le Modernisme dont il fut le prcurseur au Brsil, comme sil passait le
relais, et pourquoi pas le flambeau, ses hritiers, rassur sur lavenir de lidentit brsilienne.
Laissons le dernier mot Lima Barreto soi-mme, qui nous dit par la bouche de Leonardo Flores,
personnage de Clara dos Anjos :
Jai toujours pari sur lidal ; et si celui-ci ma rabaiss aux yeux des hommes qui nont pas compris certains actes
dsarticuls de mon existence, du moins ma-t-il lev mes propres yeux, devant ma conscience, parce que jai
accompli mon devoir, jai excut ma mission, jai t un pote ! Pour cela jai fait tous les sacrifices. LArt naime que
celui qui laime totalement, uniquement, exclusivement, et javais besoin de laimer parce quil reprsentait non
seulement ma rdemption mais celle de mes frres dans la mme douleur .

APNDICE C:
SOUZA, Elaine Brito. Isaas Caminha: desiluses de um mulato-instrudo na
imprensa. IN: Congresso da Associao Brasileira de Literatura Comparada
(ABRALIC), XII, 2011, Curitiba. Anais Online. Curitiba: Associao Brasileira de
Literatura Comparada, 2011. Disponvel em: <http://www.abralic.org.br/anais/
cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0634-1.pdf >. Acesso em: 11 de setembro de 2011.

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Isaas Caminha: desiluses de um mulato-instrudo na imprensa


Elaine Brito Souzai (UERJ)
Resumo:
Neste trabalho, sero analisadas duas obras consideradas fundamentais sobre o fazer
jornalstico-literrio: Iluses perdidas, de Honor de Balzac, e Recordaes do escrivo Isaas
Caminha, de Lima Barreto. Depois de verificar as aproximaes possveis entre esses dois romances,
to distantes no tempo e no espao, pretendemos demonstrar de que modo o escritor carioca recria em
moldes brasileiros a desiluso balzaquiana.

Palavras-chave: Imprensa literatura intelectual autobiografia - romance

1 Jornalismo e literatura
Em 1908, quando o Rio de Janeiro se despedia do Bruxo do Cosme Velho, na outra ponta da
cidade, no subrbio de Todos os Santos, o jovem Afonso Henriques de Lima Barreto dava os
retoques finais no texto com o qual se lanaria como romancista. Em dezembro do ano seguinte, j
pode ser encontrada nas livrarias a primeira edio de Recordaes do escrivo Isaas Caminha.
Porm, em breve Lima Barreto ter que enfrentar o silncio da imprensa ou as crticas negativas.
Medeiros e Albuquerque, por exemplo, considera-o venenosssimo. Em carta a um amigo, o
escritor no esconde sua preocupao com a recepo da obra:
Ningum quis ver no livro nada mais que um simples romance cl, destinado a
atacar tais e quais pessoas; os que gostaram foi por isso, os que no gostaram foi
por isso tambm. H alguma coisa a mais do que isso no meu modesto volume.
(BARRETO, 2001. p. 22)

De fato, por muito tempo o romance de estreia de Lima Barreto foi lido como uma revanche
de um escritor rejeitado pelo meio literrio e incompreendido pelo pblico de seu tempo. Porm, a
obra ganhou novos olhares, terminando por ser conduzida ao posto de uma das mais importantes da
literatura brasileira, segundo consulta realizada nos anos quarenta pela Revista Acadmica a
intelectuais do pas inteiro.
Dando continuidade aos estudos que, para alm do rancor de Lima Barreto, revelam a
densidade temtica e esttica de Recordaes, nesta comunicao pretendo desenvolver a hiptese
de que Lima Barreto compe seu romance de estreia em amplo dilogo com Iluses perdidas, de
Honor de Balzac, publicado cerca de um sculo antes. Comeo por explorar alguns aspectos que
aproximam essas obras to distantes no tempo e no espao.
Primeiro, considero que, em Recordaes, Lima Barreto retoma um tema que garantiu a
romancistas europeus do sculo XIX grande sucesso de pblico: a ambio. Esse o elemento que
impulsiona a saga de Lucien de Rubempr e Isaas Caminha.
A ao de Iluses perdidas tem incio em 1819, numa pacata provncia do interior da
Frana, onde o jovem poeta Lucien mora com a famlia, que sobrevive, com dificuldades, graas
aos rendimentos trazidos por uma modesta tipografia. Num arroubo apaixonado, Lucien foge com
sua amada para a capital, onde espera obter as condies necessrias para lanar-se como escritor, o
que lhe renderia fama, prestgio e conforto. Agora, vejamos o que ocorre ao nosso Isaas: tambm
de famlia humilde, entusiasmado pela notcia de que um colega havia se formado em Farmcia,
abandona a vida interiorana para fixar-se na capital, onde esperava concluir os estudos superiores e,
assim, laurear-se, com direito a anel no dedo, sobrecasaca e cartola (BARRETO, 2001. p. 126).
No entanto, a vida em uma capital, seja Paris ou Rio de Janeiro, sempre mais dispendiosa e
arriscada. Tanto Lucien como Isaas experimentam a misria, o abandono e a dissoluo de seus

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ideais, trados pela fora das prprias crenas.


Ironicamente, Isaas leva na bagagem um exemplar de O poder da vontade, presente de
uma professora, seu livro de cabeceira. Diante de tantos dissabores, Isaas busca inspirao nas
trajetrias de homens ilustres que enfrentaram severas dificuldades antes de se tornarem respeitados
pelos seus compatriotas.
J Lucien abandona a provncia levando consigo os manuscritos de um livro de sonetos e de
um romance, com os quais esperava ser reconhecido como um novo talento literrio. Porm, seus
sonhos logo esbarram em livreiros e editores nada preocupados com os destinos da literatura, mas
apenas com seus interesses comerciais.
Acuados pelas frustraes e pelas perdas materiais, Lucien e Isaas so obrigados a buscar
por um emprego, o que encontram no mesmo lugar: os jornais. Na verdade, ambos os personagens
so projees de seus criadores, pois Balzac e Lima so escritores que ganharam a vida, sobretudo,
em atividades relacionadas imprensa, onde acumularam desafetos. Logo, os dois escritores se
prevalecem do profundo conhecimento que tinham da imprensa para fazer dela o grande pano de
fundo de seus romances.
Lucien, aspirante a escritor, e Isaas, aspirante a doutor, representam aqueles que, encontram
nas redaes talvez a nica possibilidade de sobrevivncia pelo trabalho intelectual. Apesar de
viverem em pases com formaes histricas e sociais muito distintas, Balzac e Lima Barreto do
vida ao mesmo fenmeno: trata-se do acolhimento, por parte da imprensa, de jovens pobres e sem
diploma, mas instrudos e hbeis com as palavras. No Brasil, os chamados anatolianos, em
referncia ao esprito militante de Anotole France.
Porm, alm de garantir renda aos jovens literatos, tanto em Iluses como em Recordaes,
a imprensa cumpre sua funo de vitrine intelectual. Lucien enxerga no jornalismo uma luxuosa
porta de entrada para a vida literria, enquanto Isaas, quando chega ao cargo de redator, anseia pelo
reconhecimento dos meios ilustrados. O prprio Lima Barreto, ora vtima da indiferena, ora do
ataque dos jornalistas, reconhece o poder que eles tm de fazer ou desfazer talentos. Ao tomar
conhecimento de um elogio feito por Jos Verssimo no Jornal do Comrcio, o escritor registra com
notria satisfao no seu dirio ntimo: J comeo a ser notado. (BARRETO, 2001. p. 21)
No obstante seus benefcios, o ingresso no jornalismo no acontece sem a resistncia dos
personagens, pois ambos tm conscincia das contrapartidas exigidas por esse ofcio. Em Iluses,
Lucien , a todo momento, alertado por DArthez, lder virtuoso de um grupo de jovens to pobres
quanto sbios, sobre os perigos que cercam o jornalismo:
No resistirs constante alternativa de prazer e de trabalho de que feita a vida
dos jornalistas, e resistir o fundamento da virtude. (...) Ser jornalista passar a
procnsul da repblica das letras. Quem tudo pode dizer chega a tudo fazer!
(BALZAC, 1986. p. 234)

Em Recordaes, os jornalistas no so representados de modo muito diferente,


frequentemente envolvidos em trocas de favores pessoais e polticos. Porm, o que mais pesa aos
personagens, alm das concesses ideolgicas, a falta de tempo para o exerccio do literrio,
fatigados e consumidos que so pelo trabalho dirio nas redaes. Isaas lamenta, por exemplo, no
dedicar-se concluso de sua obra: Cinco captulos da minha Clara esto na gaveta; o livro h de
sair.... (BARRETO, 2001, p. 248)
Portanto, seja no Velho ou no Novo Mundo, o dilema entre vocao e sobrevivncia parece
inerente ao trabalho intelectual. Nesse sentido, Lucien e Isaas enxergam o jornalismo como prtica
mercantilista e a literatura como exerccio verdadeiramente artstico, embora as duas atividades
tenham convivido sem distino por muito tempo.

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Neste ponto, proponho o seguinte questionamento: por que Balzac e Lima Barreto teriam
escolhido a imprensa como cenrio dos romances em estudo? Certamente, a escolha no foi
aleatria, pois os dois escritores pressentiram um mesmo processo ainda em curso no momento em
que seus romances foram publicados: a progressiva transformao da palavra em mercadoria.
No toa que os jornalistas de Balzac referem-se ao seu local de trabalho como lojas, nas
quais se vendem ao pblico palavras da cor que se deseja (BALZAC, 1986. p. 320), sugerindo
que a informao tratada como negcio. De acordo com a mesma lgica, o dono do jornal O
Globo no mede esforos para alavancar as vendas do peridico, seja recorrendo ao
sensacionalismo to ao gosto do pblico, caluniando os concorrentes ou chantageando figures da
poltica.
Na verdade, a converso da palavra em produto a consequncia mais imediata da ampla
modernizao da imprensa, quando esse setor abandona o perfil artesanal para ganhar ares de
empresa, o que acontece na Europa na primeira metade do sculo XIX. Mas, no Brasil, pas de
imprensa e capitalismo tardios, isso s vem a ocorrer nas primeiras dcadas do sculo XX, quando
os primeiros maquinrios comeam a ser importados, tornando obsoletas as tradicionais tipografias.
Nesse contexto, os jornais, de pequeno ou grande porte, tornam-se indstrias, submetidas a
uma rgida diviso do trabalho para produzir tiragens cada vez maiores em intervalos de tempo cada
vez mais curtos. Em outras palavras, Balzac e Lima Barreto intuem que problematizar o
desenvolvimento da imprensa significa problematizar o desenvolvimento da prpria sociedade
capitalista.
Em Recordaes, no so poucas as vezes em que Isaas, ainda como contnuo de O Globo,
testemunha a ansiedade dos funcionrios da redao em cumprir os objetivos dentro dos prazos
estabelecidos. Certa madrugada, Isaas presencia o desespero do crtico literrio do peridico, que
atende pela alcunha de Floc, diante da cobrana por mais artigos. Nesse sentido, Floc a metfora
trgica do jornalista absorvido pela indstria da notcia, cujas bases operam sobre a mecanizao da
palavra, resultando na produo em srie de textos. Vtima de uma espcie de bloqueio mental, o
crtico, operrio da palavra, no consegue dar conta da demanda.
Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que riscou imediatamente.
Suspendeu o trabalho. (...) Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. (...)
O paginador voltou:
- Seu Couto!
- Homem! J vai! Voc pensa que isto mquina?
Voltou a escrever. A pena estava emperrada; no deslizava no papel. (BARRETO,
2001. p. 142)

Ento, Isaas presencia o suicdio de Floc, momento em que o crtico sucumbe diante da
presso da engrenagem jornalstica. Logo, algum que o jornal mais tirnica manifestao do
capitalismo. (BARRETO, 2001. p. 131) Enfim, a mercantilizao da palavra, seja na sua forma
jornalstica ou literria, outro aspecto problematizado por Lima Barreto e Balzac.

2 Os romancistas da desiluso
Na viso de Lukcs, esta seria a grande lio de Iluses perdidas: a de que nem mesmo a
literatura escapa da engrenagem capitalista, ideia sintetizada pela tese de que o romance de Balzac
trata da capitalizao do esprito em todos os terrenos. (LUKCS, 1968. p. 100) Segundo o
terico, com Iluses perdidas, Balzac cria os chamados romances da desiluso, assim
denominados porque neles, de uma forma geral, os inescrupulosos, identificados com os valores do

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capitalismo, sempre triunfam, enquanto os justos e os idealistas fenecem.


Lukcs esclarece que aquilo que ele chama de desiluso j teria se manifestado em
Cervantes, pois quando Dom Quixote sai pelo mundo no se d conta de que o herosmo um valor
completamente obsoleto, gerando o deslocamento risvel desse personagem, que termina imerso em
arrependimento e melancolia. Mas, se a desiluso de Quixote se d com o mundo feudal, que entra
em crise com a ascenso burguesa, em Iluses perdidas a vez dos valores burgueses entrarem em
colapso:
O romance da desiluso (...) representa como o falso conceito de vida,
necessariamente criado pelo homem da sociedade burguesa, acaba miseravelmente
ao chocar-se com a brutal prepotncia da vida capitalista. (LUKCS, 1968. p. 101)

Ento, podemos dizer que Lucien termina sua escalada profissional de modo, digamos,
quixotesco. Arruinado por dvidas e relaes pessoais desastrosas, acaba retornando em farrapos
para sua cidade de origem. Em Recordaes, Isaas tambm retorna ao interior, mas como homem
bem-sucedido e at respeitado por seus pares.
Tendo chegado ao posto de redator de um jornal influente, depois de anos trabalhando como
contnuo, Isaas protagonista de uma histria que contm todos os ingredientes para um autntico
final-feliz, com direito a casamento e filho no final. Mas, para o narrador de Recordaes, o lucro
material e profissional representa irreparvel prejuzo moral.
Desesperava-me o mau emprego dos meus dias, a minha passividade, o abandono
dos grandes ideais que alimentara. No; eu no tinha sabido arrancar da minha
natureza o grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; no
soubera revelar-me com fora, com vontade e grandeza...Sentia bem a
desproporo entre o meu destino e os meus primeiros desejos; mas ia.
(BARRETO, 2001. p. 253)

Portanto, no com o tradicional otimismo que Isaas conclui o relato de sua prpria jornada
em direo a um posto de prestgio na sociedade. Em lugar da vitria, o personagem , antes, a
imagem da desolao.
Como vimos, Lucien e Isaas cumprem trajetrias bastante semelhantes, mas em contextos
histricos distintos. Iluses perdidas, assim como os demais romances da desiluso, ambientado
no perodo da Restaurao, quando a monarquia retoma o poder na Frana, cenrio propcio para a
desiluso de jovens idealistas como o heri de Balzac, pois uma gerao inteira, entusiasmada pelos
ideais da Revoluo, v-se encurralada pelos interesses de uma nobreza decadente, mas de poder
revigorado, e as pretenses de uma burguesia poderosa economicamente, mas sem fora poltica.
J em Recordaes, a desiluso de Isaas no se d com a falncia dos valores burgueses,
at porque no se pode falar em formao de uma classe autenticamente burguesa no Brasil. A
desiluso de Isaas se processa em relao aos ideais republicanos, a exemplo de outros personagens
de Lima Barreto, como o emblemtico Policarpo Quaresma. Portanto, para esclarecermos como se
constri a desiluso de Isaas no contexto da Repblica Velha, preciso compreender, primeiro, a
relao contraditria que sustenta o novo regime.
Enquanto o liberarismo europeu identificou-se, desde o princpio, com os conceitos de
cidadania e democracia, o nosso liberarismo demorou a questionar algumas distores sociais,
como, por exemplo, o trabalho escravo. Com a Abolio, o regime republicano substitui a antiga
mo de obra por braos europeus, abrindo uma lacuna na sociedade brasileira, afinal, que destino
dar ao ex-escravo?
Por esse motivo, Alfredo Bosi defende a tese de que o romance de Lima Barreto
problematiza, sobretudo, a histria do negro no Brasil depois do Treze de Maio. O mulato Isaas,
embalado pelo discurso republicano, pretensamente defensor de igualdades e da universalizao da

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instruo, acabou por se tornar um joguete nas mos dos poderosos.


Logo, se Balzac ilustra a vitria do capitalismo sobre o talento e a ideologia, Lima
Barreto retrata o triunfo do poder, na sua forma poltica ou econmica, sobre o mrito
verdadeiro. Isaas Caminha tem conscincia de que, se no fosse pelas mos do inescrupuloso
Ricardo Loberant, talvez jamais tivesse chegado aonde chegou, ainda que sua capacidade de
trabalho e refinamento intelectual superasse em muito a de todos que habitavam a redao do jornal
O Globo, simplesmente porque pesaria sempre sobre ele a origem humilde e a condio de mestio
numa sociedade que se pretendia democrtica, mas de mentalidade ainda por muito tempo
escravocrata.
Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as
mulheres do meu nascimento so todos iguais, mais iguais ainda que os ces de
suas chcaras. (...) Percebi que me viam como exceo; e, tendo sentido que a
minha instruo era mais slida e mais cuidada do que a da maioria deles, apesar
de todos os seus diplomas e ttulos, fiquei animado (...). Sentindo-me realmente
educado e sofrivelmente instrudo, o doutor Loberant como que sentia remorso de
no ter adivinhado isso e permitido que ficasse tanto tempo como contnuo de sua
redao. Enchia-me de ateno e de dinheiro. (BARRETO, 2001, p. 248-252)

Em sntese, Lucien e Isaas sofrem da mesma iluso de mobilidade social. Assim como o
heri balzaquiano, que no consegue superar a origem pequeno-burguesa numa sociedade em que
brases valem mais do que qualquer trabalho honrado, o heri de Recordaes reconhece que o
ttulo de doutor, mesmo que o tivesse obtido, no lhe teria sido suficiente.

3 Isaas Caminha e a dupla desiluso nos trpicos


At este ponto, constatamos as aproximaes entre Iluses perdidas, de Balzac, e
Recordaes do escrivo Isaas Caminha, de Lima Barreto, o que nos permite afirmar que o
escritor carioca teria recriado em moldes brasileiros a desiluso balzaquiana. Isso vai ao encontro de
reflexes j bastante amadurecidas na nossa tradio crtica sobre o processo de aclimatao pelo
qual passaram ideologias e estticas de matriz europeia em solo brasileiro. A questo que pretendo
desenvolver agora que, em Recordaes, a desiluso no se limita aos fatos vivenciados pelo
narrador-personagem, matria da narrao em si, mas estende-se ao modo de faz-la. Em outras
palavras, abordarei de que modo a desiluso, at ento abordada no plano temtico, se desdobra no
plano da escrita em Lima Barreto.
Embora Balzac e Lima Barreto contem histrias semelhantes, realizam projetos narrativos
diferentes, o que passa, necessariamente, por esta importante categoria do romance que o o
narrador. Lima Barreto abre mo da oniscincia do narrador balzaquiano para compor seu nico
romance em primeira pessoa, mimetizando uma narrativa autobiogrfica, uma espcie de falsa
autobiografia.
No entanto, o que chama a ateno em Isaas a dificuldade com o relato de sua vida. Ao
contrrio do eu autobiogrfico tradicional, de inspirao cartesiana e iluminista, completamente
dono de si, Isaas revela-se hesitante diante da prpria experincia. Eu que sofri e no o sei narrar
(BARRETO, 2001. p. 161), confessa o narrador de Recordaes.
Vtima de um tipo de gagueira narrativa, Isaas projeta um texto considerado mal escrito por
muito leitores cultos da poca. Porm, o que no incio do sculo XX foi considerado pela maioria
um problema de composio, na verdade, revela o trao moderno do romance, pois ele antecipa um
movimento muito comum entre narradores at mais contemporneos: a problematizao da escrita
da prpria obra.

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Para muitos escritores, como o prprio Lima Barreto, a escrita de um romance uma
angstia intraduzvel (BARRETO, 2001. p. 20) Em 1905, quando comea a trabalhar em
Recordaes, revela a um amigo: Mas, bem sabes o que a dor de escrever. Essa tortura que o
papel virgem pe nalma de um escritor incipiente. (idem) Seu personagem Isaas, sntese do
escritor moderno, tomado pela mesma sensao de mal-estar diante da prpria obra. Por isso,
busca nos grandes autores modelos e normas, uma frmula para que a narrativa deslanche:
Confesso que os leio, que os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de
fazer. (BARRETO, 2001. p. 162) Entre os autores citados por Isaas esto Dostoievski, Voltaire,
Tolstoi, Stendhal, Flaubert e, claro, Balzac. Porm, recorrer aos clssicos no soluciona os impasses
com a escrita do romance.
Por isso, em Recordaes, Isaas vive uma desiluso no s como personagem, mas
tambm como narrador. A desiluso de Isaas se torna uma experincia mais complexa que a
balzaquiana medida que no consegue narr-la. O heri no se desilude apenas com o saber, com
a imprensa, com o fazer literrio, com o mundo letrado. Ele se d conta de que impossibilidade de
ascender socialmente pelo trabalho intelectual soma-se outra impossibilidade: a de narrar a prpria
histria de acordo com os padres estabelecidos. Por isso, digo que Lima Barreto cria um romance
sobre o a imprensa, o intelectual brasileiro e o Brasil republicano, mas tambm sobre o prprio
romance, fazendo jus ao carter autocrtico desse gnero.
Isaas constata que, para atender aos seus objetivos, preciso questionar o modelo
tradicional de narrao, motivo que talvez tenha levado a uma recepo muito tmida por parte da
crtica de seu tempo, ainda norteada por princpios bastante conservadores em matria de romance.
A posio isolada e intrigante de Lima Barreto explica-se pelo fato de ter ele
assumido uma esttica popular numa literatura como a brasileira, em que os
critrios de legitimao do produto ficcional foram sempre os dados pela
leitura erudita. (SANTIAGO, 1982. p. 166)
Nesse sentido, Recordaes contraria, por exemplo, a relao espao-temporal tpica que
encontramos no romance de Balzac.
Enquanto o heri balzaquiano desenvolve-se na velocidade do seu deslocamento, o heri de
Lima Barreto um personagem que se desenvolve no curso do tempo. De fato, Lucien dono de
uma trajetria meterica, pois no curto intervalo de dezoito meses vai do anonimato fama, da
pobreza ao luxo, da amizade traio, do casamento ao luto. Recordaes, por sua vez,
cronologicamente muito mais amplo, pois se estende da juventude maturidade de Isaas, mas o
resultado um romance condensado em, relativamente, poucos captulos. Logo, o excesso de
movimentao que caracteriza o romance tradicional, mesmo o autobiogrfico, cede espao, em
Recordaes, reflexo, ao olhar do narrador sobre os acontecimentos. Isaas Caminha mais que
um narrador-personagem tpico, um observador cuidadoso da sociedade em que vive, mas seu
ponto de vista perifrico em funo do lugar social que ocupa.
Enfim, ao explorar o ponto de vista de um literato de nascimento pobre e mulato, que
durante anos trabalha como contnuo de um jornal e decide contar em livro sua trajetria
profissional de modo nada convencional, Lima Barreto d voz a um personagem que no est
apenas na periferia da cidade, mas tambm do romance.

Referncias Bibliogrficas
1]

BALZAC, Honor de. Iluses perdidas. Trad. Ernesto Pelanda e Mrio Quintana. Crculo do
Livro: So Paulo, 1986.

2]

BARRETO, Lima. Prosa seleta. Organizao de Eliane Vasconcelos. Rio de Janeiro: Nova

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Aguilar, 2001.
3]

BAKTHIN, Mikhail. Esttica da criao verbal. So Paulo: Martins Fontes, 1992.

4]

BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ___ Magia
e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

5]

BOSI, Alfredo. Figuras do eu nas recordaes de Isaas Caminha. In: ___ Literatura e
resistncia. Companhia das Letras: So Paulo, 2008.

6]

______. A escravido entre dois liberarismos. In: ___ Dialtica da colonizao. So Paulo:
Companhia das Letras, 1992.

7]

BROCA, Brito. A vida literria no Brasil 1900. Rio de Janeiro: Jos Olympio: Academia
Brasileira de Letras, 2004.

8]

COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil de 1904 a 2004. So Paulo:
Companhia das Letras, 2005.

9]

FIGUEIREDO, Carmem L. N. Recordaes do escrivo Isaas Caminha: uma narrativa


intempestiva. In: ___ Narrativa e recepo: sculos XIX e XX. Eduff: Niteri, 2009.

10] ______. Lima Barreto e o fim do sonho republicano. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
11] GINZBURG, Jaime. Impacto da violncia e constituio do sujeito: um problema de teoria da
autobiografia. In: GALLE, Helmut et AL (org). Em primeira pessoa: abordagens de uma teoria da
autobiografia. So Paulo: Annablume, 2009.
12] LUKCS, Georg. Teoria do romance. Trad. Jos Marcos Mariani de Macedo. So Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000.
13] ______. Balzac: Les Ilusions Perdues. In: ___ Ensaios sobre literatura. Civilizao Brasileira:
1968.
14] MOISS-Perrone, Leila. Atualidade de Balzac. In: ___ Intil poesia e outros ensaios. So Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
15] SODR, Nelson Werneck. A histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1966.
16] TAILANDIER, Franois. Balzac. Trad. Ilana Heineberg. Porto Alegre: L&PM, 2006.
17] WATT, Ian. A ascenso do romance. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
18] WISNIK, Jos Miguel. Iluses perdidas. In: ___ NOVAES, Adauto (org). tica. So Paulo:
Companhia das Letras: 1992.
iAutor
Elaine SOUZA, Prof. Ms. em Literatura Brasileira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
[email protected]

APNDICE D:
DEMTRIO, Silvio Ricardo. Os limites do devir literatura no jornalismo. IN:
Biblioteca On-line de Cincias da Comunicao (ISSN: 1646-3137). Stio web da
Faculdade de Artes da Universidade da Beira Interior, Portugal. Disponvel em:
<http://www.bocc.ubi.pt/pag/demetrio-silvio-literatura-jornalismo.pdf.> Acesso em: 5
de outubro de 2007.

Os limites do devir literatura no jornalismo


Silvio Ricardo Demtrio
Ao se considerar as relaes entre o jornalismo e a literatura, h de se ter sempre em
mente a base comum da qual ambas as prticas se servem: a linguagem. Esta obviedade
nada fcil, a linguagem, exige de quem por
sobre ela se debrua certos cuidados a fim
de que se extraiam elementos comuns a ambos os campos, e que, portanto, sirva de fundamento para uma anlise de relaes possveis. No firmamos com isto um ato comparativo, seno, buscamos evidenciar as diferenas e as identidades que subsistem no interior destes dois campos. Entendemos que
uma comparao seria instauradora de uma
negatividade entre os dois campos, como se
houvesse a primazia de um sobre o outro, e
no essa a questo, pois na melhor das leituras estaramos partindo de um juzo de valor e, na pior, de um preconceito.
Quando colocamos que necessria a
observao de elementos comuns, estamos,
logo de partida, afirmando uma identidade
entre o jornalismo e a literatura. Tal divisa
justifica o porqu de nos pautarmos por abordar o tema sob uma perspectiva capaz de preservar os prolongamentos que ambos, literatura e jornalismo, desempenham entre si.
Os cuidados a que nos referimos dizem respeito a tomar como ponto de partida determinado objeto que possibilite a entrada no re

Universidade Estadual de Ponta Grossa. Fundao Assis Gurgacz - Cascavel. FAUL - Toledo

gistro que desejamos, onde no trabalhemos


no sentido de uma excluso de um campo ou
outro. Em nosso caso, consideramos a manifestao mais prxima do jornalismo dentro da literatura, que por si s aponte para
os limites onde se encontram os pontos de
contato e as divergncias. Isto nos leva a tomar como objeto a obra que primeiro trouxe
o jornalismo para dentro da literatura: as
Iluses Perdidas, de Honor du Balzac.
Como observa Jos Miguel Wisnik, a
imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a literatura j assunto
da imprensa1 .Iluses Perdidas foi o livro que Balzac mais demorou para escrever
(1835/1843). As desventuras de Lucien du
Rubempr, personagem principal do livro, se
passam numa Frana experimentando a gradativa dissoluo dos ideais que inspiraram
os levantes populares e que, j em 1848, com
a Comuna de Paris, chegariam finalmente
derrocada 2 . O significado dessa ruptura, de
acordo com Mrio de Micheli, fundamen1
WISNIK, Jos Miguel. Iluses Perdidas in NOVAES, Adauto (org.) tica. Cia das Letras, So
Paulo, 1992. P. 321 - 343.
2
Em seu ensaio sobre Iluses Perdidas, Wisnik
cita o crtico George Lukcs: Lukcs, para quem o
confronto com o rebaixamento dos valores autnticos origina o gnero, viu neste romance o prprio
paradigma da destruio, pelo capitalismo, do humanismo revolucionrio das primeiras concepes burguesas da sociedade e da cultura, assim como em
D. Quixote o mundo dos ideais feudais cavaleirescos

Silvio Demtrio

tal para se entender o que estava em jogo na


metade do sculo XIX:
De qualquer maneira, essa
unidade histrica, poltica e
cultural das foras burguesaspopulares por volta de 1848 que
nos interessa sobretudo destacar
neste momento, pois exatamente a partir da crise dessa
unidade, e, portanto, da ruptura
desta unidade, que nasce, como
dissemos, a arte de vanguarda
e grande parte do pensamento
contemporneo. [...] O dissdio
entre os intelectuais e a sua classe
torna-se agudo, as rachaduras
subterrneas afloram - o fenmeno
generaliza-se, a ruptura da unidade
revolucionria do sculo XIX j
um fato consumado. Durante
longos anos, at nossa poca, as
suas conseqncias dominaro os
problemas da cultura e da arte3
Tal conflito o centro da obra de Balzac,
a saber, como reconhece George Lukcs, a
transformao do esprito em mercadoria
4
. No h mais espao para as iluses
do humanismo, que levara frente das manifestaes populares os intelectuais do sculo XIX. Tanto o jornalismo quanto a literatura vem-se envolvidos com uma nova dimenso que os transformar: o mercado editorial de grande escala.
Rubempr um jovem provinciano que
vai tentar a sorte na metrpole munido de seu
fora destrudo pela sociedade burguesa em via de formao. p 326.
3
MICHELI, Mrio de. As Vanguardas Artsticas.
Martins Fontes. So Paulo, 1991. P 14 - 15.
4
In Wisnik. Op. Cit. P 323.

talento potico e de todas as iluses possveis


que sero desmontadas uma a uma em Paris.
O mundo das letras lhe mostra o quo insignificante seu intento. Na voz de outro personagem, Daniel du Arthez - primeiro amigo
que Rubempr conquista no meio intelectual
parisiense: ... sua histria a minha e a
mesma de mil a mil e duzentos jovens que
todos os anos chegam da provncia a Paris.
Em paralelo a esta desiluso, h tambm
a do amor que foi a principal causa de sua
vinda para a capital. Enquanto estavam na
provncia, Lucien du Rubempr e a Sra.
du Bargeton se envolveram nos saraus que
aconteciam na casa desta. Apaixonaram-se,
mas sequer chegaram a alguma proximidade
que no fosse lcita. O caso dos dois acaba
por se consumar apenas na boatagem. A Sra
du Bargeton resolve se afastar do marido de
vez, levando para Paris Rubempr como seu
protegido e amante. L chegando, o provincianismo de ambos acaba por diluir subitamente a paixo frente aos valores da sociedade parisiense. A primeira iluso de Lucien
du Rubempr j est perdida, e os dois acabam por terminar com o caso que sequer iniciaram.
Desabonado de sua protetora, com a qual
contava para se manter, alm das economias
que sua me e seu cunhado, David Schard
o haviam dado, Rubempr tenta vender seus
dons da escrita a algum livreiro. Mais uma
tentavia frustrada. O jornalismo surge ento
como a alternativa redentora. Rubempr
aprende todas as tcnicas e expedientes da
profisso. Neste ponto do livro, Balzac faz
uma listagem dos mtodos que os jornalistas
empregavam para sustentar toda uma rede de
trfego de influncias e troca de favores com
editores, casas de espetculos, polticos, etc.

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Os limites do devir literatura no jornalismo


Balzac empreende um ataque caudaloso
por todos os flancos que pode. Se h um
mal no mundo, este a imprensa. De esprito conservador, o escritor francs defendia a monarquia e chegou a apregoar o controle prvio sobre os jornais5 , no entanto,
apesar da sua ira contra a imprensa, Balzac
conseguiu articular questes cruciais sobre
as quais o jornalismo se constituiu durante
as grandes transformaes engendradas pela
Revoluo Industrial. Como Wisnik prope:
E como Balzac abrangeu,
com a vontade de potncia de
sua viso inaugural, nada menos
que todo o arco histrico do problema, pode-se dizer tambm que
a sua questo a do destino problemtico da cultura diante da indstria da cultura.
Para o escritor francs, o jornalismo seria
uma degenerao da literatura, os jornalistas,
comerciantes de frases. Isto refora a tese
de Mrio de Micheli j citada sobre a quebra
da unidade espiritual do sculo XIX. Isto no
sentido de que, como prope este historiador
da arte, quando os intelectuais deixaram as
linhas de frente dos movimentos populares,
criou-se uma potica da evaso. Balzac se
inscreve dentro desta perspectiva pela assimilao do mito do bom selvagem, do culto
a uma virtude perdida e que deve ser recuperada. Para ele a provncia, portanto onde se
tem uma situao marcadamente anacrnica
5

Balzac foi um dos escritores que Engels admirava. Este afirmava que, embora reacionrio em seus
princpios, o autor da Comdia Humana consegiu absorver o esprito de sua poca, criando personagens
consistentes sob o ponto de vista do entendimento dos
conflitos sociais que se desenvolviam ento na Europa.

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3
em relao ao cosmopolitismo e industrializao de Paris, o espao depositrio dos
verdadeiros e bons valores. A repblica
seria a corrupo instituda. Dilataes do
romantismo que Balzac assimilou de Walter
Scott e Hoffmann.
Da a imprensa ser um mal. A nova sociedade desencadeada pelas transformaes
da Revoluo Industrial se impunha aos que
queriam conservar um mundo j extinguido,
forando a perda total das iluses. s
idias totalizantes da literatura de ento, o
jornalismo vai se opor em sucessivas fragmentaes. Balzac quer levar a cabo uma
luta entre duas mquinas de representar o
mundo: o jornal e o livro. A pureza est
toda com o segundo.
Apresentamos estas consideraes na tentativa de nos precavermos de estabelecer
uma relao hierrquica entre jornalismo e
literatura. No acreditamos que uma prtica
seja a degenerao da outra, seno um prolongamento que pode ser entendido a partir da origem de todas as iluses. A linguagem, como foi tratada pela literatura na
poca de Balzac, o substrato sobre o qual se
pode construir uma representao do mundo.
No sua reproduo. A equivalncia impossvel. Significante e referente, neste caso,
jamais coincidiro. Portanto, quer na literatura, quer no jornalismo, a reconstruo do
real pode chegar, no mximo, ao verossmil.
Afirmamos isto, e frisamos, em relao ao
plano da linguagem. Isto coloca o jornalismo
e a literatura numa relao de identidade a
partir da materialidade da linguagem: a palavra. Como Bakhtin prope6 , todo signo
ideolgico. Diante disto, quais seriam as di6
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da
Linguagem. Hucitec. So Paulo1994.

Silvio Demtrio

ferenas entre os signos da literatura e os do


jornalismo, se j sabemos que sua igualdade
est no fato da defasagem imposta pelo real
a qualquer palavra?
A literatura, com a escola do realismo,
toma conscincia deste limite da linguagem,
portanto perde sua iluso fundamental, ou
melhor, a assume. E assim procedendo, desvela seu processo de reproduo do mundo.
Dessa maneira, como observa Wisnik em
relao Balzac, a literatura multiplica as
iluses, j que a arte de cri-las, porm
desmascarando-as por sua auto-referncia ,
chegando dessa maneira a depurar suas verdades. Na mesma linha, o jornalismo parte
no sentido oposto, tendo como princpio o
desvelamento de qualquer farsa e, no entanto
sucumbindo ante uma unidade impossvel
por ser a efmera construo dos fragmentos do tempo presente. Quer num extremo
ou outro do processo, sempre h a impossibilidade de uma ao totalizante7 .
Tal limite dado pela linguagem. Propomos com isto que as diferenas entre os dois
campos se colocam numa relao dialtica,
tomando por base o conceito de supressoconservao de Hegel. Segundo o pensador
alemo, quando dois termos esto numa relao dialtica, aquilo que um elemento suprime do outro, conservado num estgio
seguinte em forma de potncia. Dessa maneira temos que a literatura uma potncia interior ao jornalismo, dada a aspirao
a uma verdade desmistificadora de todos os
engodos ideolgicos como tentativa de imprimir uma unidade ao caos do presente. No
sentido inverso tambm, quando a literatura
vai promover os fatos mais banais do cotidiano como espao de revelao de epifa7

Wisnik. Op. cit.

nias. Uma prtica no exclui nem desabona


a outra. Assim como h m literatura, tambm existe o jornalismo ruim - caso m
e ruim fossem parmetros que nos garantissem cientificidade.
Afirmamos no incio deste ensaio que literatura e jornalismo se prolongam um no outro. Agora podemos citar exemplos: apesar
das violentas crticas ao jornalismo, Balzac
escreveu sobre sua poca, buscando elementos que pudessem, ao serem colocados em
contiguidade, dar uma idia do esprito de
seu tempo - isto fica mais claro ao observarmos como a Comdia Humana8 foi publicada de maneira fragmentada, ganhando
sua organicidade somente ao fim de todos os
volumes. Acreditamos que tais especificidades so prprias do jornalismo: inscrio no
tempo presente e a articulao de fragmentos de informao de maneira a propor uma
possibilidade de leitura deste tempo. Assim
Balzac repudia o jornalismo, porm no h
mais como neg-lo. Ele faz parte da modernidade e, se representou uma perda em relao aos ideais de uma literatura depurada
de tudo o quanto no fosse superior, tem
a suficiente flexibilidade para se deixar infiltrar por outros discursos, at mesmo o mais
antagnico destes, em tese, a literatura, sem
no entanto perder sua especificidade. Citamos como exemplo o caso do New Journalism, quando todas estas questes foram
elevadas ao quadrado em noites de muito
caf e muitas laudas. Literatura e jornalismo
fundiram-se numa terceira via ao sabor do
esprito da contracultura. Neste caso, foi a
literatura que se prolongou no jornalismo,
8
Na verdade, Iluses Perdidas uma parte da
grande obra de Balzac, A Comdia Humana, ttulo
que o escritor deu a sua obra como uma crtica Divina Comdia de Dante Alighieri.

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Os limites do devir literatura no jornalismo


reinjetando vitalidade atravs da experimentao estilstica com o texto.
Se ainda resta alguma iluso quanto s
relaes entre jornalismo e literatura, esta
a de que exista uma prerrogativa de uma
prtica sobre outra. Necessariamente uma
iluso a ser perdida. Ambas tm suas
especificidades sem, no entanto deixarem de
exercer o seu estatuto bsico de serem modalidades de comunicao. O tempo a medida da precariedade de qualquer coisa. No
seria diferente com o jornalismo. No seria
diferente com a literatura. Os limites existem, mas neste caso, so os limites do devir. O tornar-se literatura fixa o terreno
prprio do jornalismo quando este pautado
pela idia de uma articulao de fragmentos
em busca de uma totalidade do tempo presente, de sua leitura. Se a leitura do presente
a impossibilidade de seu esgotamento, j
que este regime de tempo a superfcie sobre a qual emergem os acontecimentos 9 ,
jornalismo e literatura vo se colocar como
horizontes na relao que guardam entre si.
No h como um campo suplantar o outro.
neste limite que acabam as iluses.

Tomamos por acontecimento o que uma manifestao do que no pr-definvel, inaudito e que,
portanto, desencadeia uma srie de efeitos que iro resultar numa outra condio que seja a possibilidade , e
no o determinante, de outros acontecimentos. Acontecimento seria ento, por conceito, o termo que desencadeia uma srie e seus repectivos cruzamentos
com outras sries de outros acontecimentos.

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Bibliografia
BALZAC, Honor du. Iluses Perdidas. Abril Cultural. So Paulo, 1981.
DELEUZE, Gilles. Lgica do sentido. Editora Perspectiva. So Paulo, 1984.
MACHADO, Roberto. Gilles Deleuze e a Filosofia. Graal. Rio de Janeiro, 1985.
MICHELI, Mario de. As Vanguardas Artsticas. Martins Fontes. So Paulo, 1992.
WISNIK, Jos Miguel. Iluses Perdidas. In
NOVAES, Adauto. tica. Cia das Letras, So Paulo, 1992.

APNDICE E:
CENTRE DE RECHERCHES HUBERT DE PHALSE. Echos et rceptions des
Illusions perdues. IN: Complments au livre " la recherche des Illusions perdues".
Paris: Nizet, 2003. Page web du Centre de recherches Hubert de Phalse Universit
Paris III (Sorbonne la Nouvelle). Disponible sur : <http://www.cavi.univ-paris3.fr/
phalese/Balzac/echos.htm>. Accs : 24 aout 2009.

CHOS ET RCEPTIONS

22/01/12 22:58

CHOS ET RCEPTIONS
Il existe une rception critique des Illusions perdues trs riche et qui perdure tout au long du XIXe sicle et du
XXe sicle mais il y a galement une intertextualit interne aux uvres romanesques qui montre la force de cette
intrigue dans limaginaire des crivains. Rubempr devient comme Rastignac un type, voire un mythe, au point
dapparatre explicitement ou implicitement dans tous les romans dartistes ou romans dcrivains : Lducation
sentimentale de Gustave Flaubert, Charles Demailly des Goncourt, la trilogie de Valls, Bel-Ami de Maupassant, Les
Dracins de Maurice Barrs...
Illusions perdues a souvent t lu par les contemporains comme un roman cls. Journalistes et lecteurs ont cherch
les modles possibles des diffrents personnages. Ds la parution du premier roman en 1837, une rumeur court : Jules
Sandeau, amant phmre de George Sand, romancier vellitaire qui connatra son heure de gloire sous le Second
Empire, et accessoirement ancien secrtaire de Balzac, aurait fourni le modle de Lucien. Ses amours avec madame de
Bargeton seraient la transposition de sa liaison avec George Sand.
Lettre de Sandeau Balzac du 21 janvier 1837
Quest ce que les Illusions perdues ? On mcrit de Paris que cest mon histoire avec la personne que vous savez. Cette
histoire est celle de tout le monde et on a bien pu sy tromper. Toutefois, on ajoute que chaque page de votre livre est un
jour de ma jeunesse. Deux choses minquitent en tout ceci. La premire cest que par amiti pour moi vous ne vous
soyez fait trop svre lgard de lautre personne. La seconde cest quen crivant moi-mme cette heure cette fatale
histoire, je narrive quaprs vous. Vous comprenez quUlysse, crivant ses mmoires aprs lOdysse net t quun sot
et quun drle. Faite-moi le plaisir de mcrire ce quil en est : jattends quelques lignes de vous avec impatience...
Lettre de Sandeau de mars 1837
En mars 1837, Sandeau crivait rassur : " ... Je viens de lire les Illusions perdues. Il y a bien dans tout ceci quelques
lignes mon intention et je ne suis pas sans quelque ressemblance avec le mauvais ct de Lucien. Mais pour ce qui est
de mon histoire avec Mme Dudevant, il nen est rien dans ces pages, et mon livre diffrera du vtre autant par le sujet
que par le talent.
La parution du deuxime volume surtout dclenche lire de la presse qui affirme avoir " fait " Balzac et qui fustige le
manque de reconnaissance de ce dernier. Le prince de la critique, Jules Janin, crit sur Illusions perdues un article qui,
par sa mauvaise foi, ressemble singulirement aux caricatures critiques que propose le roman. Toute la critique
contemporaine fonctionne dailleurs en miroir avec le roman et sanantit par sa virulence mme comme si le roman
avait dsamorc sa propre rception.
Jules Janin, " Un grand homme de province Paris, par M. H. de Balzac ", Revue de Paris,
juillet 1839.
[...] Vous voyez que jhsite encore me prcipiter dans ce nouveau rcit. Cela me fait mal de trier ces affreux dtails, de
dcoudre, lambeaux par lambeaux, ces haillons de pourpre maladroitement attachs ces haillons de bure. Mais encore
une fois, il le faut ; donc fermons les yeux, retenons notre haleine, mettons nos jambes les bottes impermables des
goutiers, et marchons tout notre aise dans cette fange, puisque cela vous plat. [...]
Quel style ! La description de lalouette, par Dubartas, est un chef-duvre, compare ce galimatias double. Que je
voudrais bien voir un de nos matres dans lart dcrire assister cette blancheur veloute, au cristallin de ces yeux
noirs force dtre bleus, ces tempes dun blanc dor, ce menton court et pourtant relev ; quant aux lvres de
corail, cest l une couleur un peu bien vieille pour des lvres quelconques. Ce quil y a de plus merveilleux dans ce
portrait, ce sont des hanches conformes comme celles dune femme : ces hanches doivent gter, que vous en semble ?
la grande beaut de M. Lucien, bien plus, pour peu que la voix du jeune homme ne soit pas encore forme, ces hanchesl doivent tre horribles voir. Quant la conclusion, que les grosses hanches annoncent les esprits les plus fins, ceci
est dune physiologie si savante quil nous est impossible de dire o cela sarrte, o cela commence. Ceux qui ont eu
linsigne honneur de voir de prs M. de Talleyrand, M. de Metternich ou M. de Nesselrode, pourraient seuls vrifier
lassertion de M. de Balzac ; si la chose est vraie, la diplomatie senrichira dun mot nouveau ; on ne dira plus : Cest un
homme de gnie, cest un esprit fin, il a peu de talent ; mais on dira : cest une fameuse paire de hanches. [...]
Mais, me direz-vous, M. de Balzac a bien de lesprit, il est le matre du roman moderne, il produit sur ses lecteurs une
fascination puissante, il magntise pour ainsi dire, cette me qui lit, la transportant son gr dans tous les abmes de la
licence et du doute ; [...] il sait fond les murs du journal, il a t journaliste lui-mme, telle enseigne que son
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journal est mort sous lui.


Adolphe Dumartin, " Un grand homme de province Paris ", LArtiste, 21 juillet 1839.
La presse est le quatrime pouvoir en France, bien des gens mme disent que cest le premier ; la Chambre des Pairs
dcidera. Quoi quil en soit, elle prouve le sort de tous les pouvoirs : honneurs, insultes, outrages, caresses, rien ne lui
manque, pas mme la haine de ceux dont elle a fait la fortune. Chaque jour on lattaque avec tant daigreur, que linjure
commence devenir de mauvais got, et la calomnie un lieu commun ; aussi, avons-nous lieu de nous tonner en voyant
la presse en butte aux mpris de M. de Balzac lui-mme, un de ses fils bien-aims, jai voulu dire un de ses btards de
prdilection. Ce nest pas quil se montre ingrat comme beaucoup dautres ; il na pas le plus petit remerciement faire
au journalisme ; voil du moins ce quil apprend dans sa prface, et nous sommes presque tent de le croire sur parole,
comme lorsquil assure quil na point crit sous la dicte de la colre. Cette fois, lattaque tait redoutable : le nom de
lennemi promettait beaucoup, et nous esprions voir un tableau o le journalisme se reproduirait sous toutes ses faces.
Malheureusement ou heureusement, M. de Balzac a sacrifi les types les plus importants de la presse, pour ne soccuper
que de la critique ; la critique absorbe lindignation du spirituel romancier ; il sera dsormais pour elle ce qutaient
pour Juvnal les vices de Rome corrompue. Et pourquoi donc cette colre ? Faut-il lavouer ? Cest parce que les
ouvrages de M. de Balzac nont pas tous eu le succs dEugnie Grandet. Selon lui, des admirateurs perfides ont voulu
touffer le mrite de ses autres romans sous les louanges exagres accordes ce petit chef-duvre. M. de Balzac nose
pas encore affirmer que le feuilleton mrite dtre mis en pices, lapid, brl petit feu pour ses crimes de lse-amourpropre. En attendant, si nous comprenons bien sa pense, il voudrait, linstar de La Bruyre, quun journal se bornt
donner, avec le titre et le sujet du livre nouveau, ladresse du libraire. Sans vouloir flatter lorgueil de lauteur du Pre
Goriot, nest-il pas permis de penser quil aurait souvent perdu ce silence de la critique, lui qui doit tant ses loges ?
La critique, au contraire, que dinimitis, que dennuis ne se serait-elle pas pargns dans sa mission, dj si triste et si
pnible ? De bonne foi, quel est le plus malheureux, du critique forc de subir le romancier, ou du romancier forc de
subir le critique ? .... On rpondra peut-tre que cest le lecteur : prononce qui voudra ! Dans la crainte de nous attirer
une mauvaise affaire, nous aimons mieux suivre Un grand homme de province Paris : il ne sagit pas ici de M. de
Balzac. (rsum de lintrigue). [...]
Nous remercions lauteur davoir bien voulu adoucir la ralit dsesprante du sujet, comme il lannonce lui-mme :
sans cela, que nous et-il fait voir ? Je tremble dy penser. Cest dj bien assez de nous montrer Finot, qui dfaut
desprit personnel, spcule sur lesprit des autres ; Vernon [sic] toujours hargneux, toujours prt mordre ; Nathan si
fourbe, Lousteau si mchamment spirituel ; enfin, Blondet, le journaliste courtisan. Pardon ! jallais oublier Claude
Vignon, le misrable buveur. Dieu merci ! ces honntes gens ne vivent que dans limagination du fcond romancier ; ce
ne sont que des crations de pure fantaisie. Sil y a du vrai, lexagration le tue. Quelque esprit, quelque verve que M. de
Balzac prte ses personnages, il est impossible de reconnatre dans ses infmes gredins un seul homme de presse, sans
en excepter Finot, lindustriel littraire. M. de Balzac atteindra-t-il le but quil sest propos, inspirera-t-il le dgot du
journal ? Nous en doutons. Pourquoi na-t-il prsent que le vilain ct de la mdaille ? Au folliculaire hont, pourquoi
na-t-il pas oppos le journaliste se maintenant la hauteur de sa mission ? Bien des gens ne verront dans son pamphlet
quune boutade de mauvaise humeur, et ils nauront pas tort. [...]
" Un grand homme de province Paris, par M. de Balzac " Le Corsaire, 23 juillet 1839
Notre intention nest pas de parler de ce livre. Cest une uvre abjecte, ignoble, immonde, laquelle on ne pourrait
toucher du bout de la plume sans compromettre dsagrablement la digestion du lecteur. Que le livre reste o il est !
Que cette dbauche littraire aille rejoindre, en trbuchant, et si elle peut, les orgies fantastiques prsides par
lAnacron des vieilles filles ! Nous navons point nous occuper de cet cart alcoolique de M. de Balzac. Il y a des
insultes quon ne ramasse pas et des colres qui steignent dans le dgot.
Si nous disons un mot de M. de Balzac et son Grand homme de province, cest loccasion de larticle que M. Janin
vient de donner la Revue de Paris. [...]
Voici ce que dit M. Jules Janin, mais ce quil ne dit pas, et ce quil nous est permis dajouter, cest que M. de Balzac nest
pas du tout la victime du petit journal. Au contraire, M. Balzac est redevable au petit journal du retentissement de son
nom. Si M. de Balzac a une position telle dans la littrature contemporaine, cest le petit journal qui la lui a faite. Sans
les pigrammes du petit journal, sans ses plaisanteries du reste fort inoffensives, sur la canne du plus fcond de nos
romanciers, le nom et les livres de M. de Balzac ne seraient jamais sortis des catacombes de la littrature au rabais.
Savez-vous quel est le tort du petit journal et de la presse en gnral ? Cest davoir entretenu le public un peu trop
souvent de M. de Balzac et de ses absurdes romans.
Cette proccupation de la presse nexistant plus aujourdhui au mme degr, voil ce qui fait que M. de Balzac entre
dans une si grande fureur contre la presse. Le livre de M. de Balzac est un calcul. M. de Balzac voudrait que le petit
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journal se remit parler de la canne. Eh bien, cest ce qui le trompe. Le petit journal en a trop parl, il nen parlera plus.
Albric Second " Le dernier livre de M. de Balzac ", Figaro, 28 juillet 1839
Cest dans sa dernire publication que cet esprit us, cette imagination tarie, ce style qui nen est plus un se sont rvls
hideux et dcharns. M. de Balzac est mort ; son ombre seule subsiste ; laurole qui entoure ce nom, jadis tant clbre,
pourra bien le galvaniser encore quelque temps aux yeux des cabinets de lecture de quelque province recule, mais le
charme en admettant quil ne soit pas entirement dtruit , disparatra bientt, et de fait, ce sera justice...
O donc trouver, plus que dans ce grand homme de province, des murs fausses et un but extravagant ? Lauteur a
prtendu saper le journalisme dans sa base, irrit que la critique lui ait signal ses erreurs et lui ait fait son procs
chaque fois quil y et lieu ; M. de Balzac a troqu sa plume contre un poignard, son encre contre du fiel, et il sest mis
crire lhistoire des journaux et des journalistes, comme il affirme la connatre ; son sens, qui dit journal, dit coupegorge infme, sentine dgotante, rceptacle impur. Il pousse mme la dlicatesse jusqu dfinir la presse : le bagne de
lintelligence. Quant aux journalistes, notre plume rpugne reproduire les odieuses calomnies quil entasse leur
endroit. [...]
Telle est la publication dernire de M. de Balzac. Dieu veuille, pour nous et pour son libraire, que ce soit en outre sa
dernire publication.
Amen !
Thodore Muret, " Un grand homme de province Paris ", par M. de Balzac, La Quotidienne,
10 dcembre 1839
Savez-vous quil devient fort embarrassant de rendre compte des ouvrages de M. de Balzac ? Cet crivain a pris depuis
quelque temps, vis vis des journaux, une position telle, que le public croira difficilement peut-tre limpartialit de
leurs jugements sur un auteur qui sest constitu leur ennemi dclar. [...]
Hlas ! quel crime impardonnable le journal a-t-il donc commis envers lauteur dUn grand homme de province ? Sestil refus jamais lui rendre pleine justice, lui prodiguer la louange, quand elle tait mrite ? A-t-il ferm les yeux et la
bouche sur les incontestables belles qualits empreintes dans Eugnie Grandet, dans La Recherche de labsolu, dans la
plupart des Scnes de la vie prive ? Aurait-il fallu lever au ciel Seraphta, les Contes drlatiques, Le Lys dans la
valle, la triste exhumation des uvres du pseudonyme Horace de Saint-Aubin, vanter la moralit du Pre Goriot,
flatter toutes les erreurs dun haut talent, toutes les affligeantes priodes de sa dcadence ? M. de Balzac nous parat
singulirement humoriste. Il est mcontent de tout et de tous. Avez-vous oubli cette trange prface de La Femme
suprieure, cette lamentable lgie dont lauteur accusait si amrement son sicle de ne pas lui avoir constitu une
fortune de millionnaire et des baronies seigneuriales, et par un fcheux oubli de la dignit des lettres, semblait tendre
aux passants le casque de Blisaire ? Au lieu de se contenter dtre un romancier, ingal sans doute, mais dun mrite
trs distingu, M. de Balzac, malheureusement, parat possd dune ambition universelle. Il veut tre grand seigneur ;
il veut tre un personnage politique, et que savons-nous encore ? Laffaire Peytel a t, pour M. de Balzac, loccasion
dun manifeste qui visait sans doute lclat des factum de Voltaire en faveur de Calas et du chevalier de Labarre. Le
manifeste de M. de Balzac na pu sauver le malheureux, dont cette dmonstration imprudente et plutt empir la
position, si la chose avait t possible. Depuis longtemps, lon assure que la dputation est lobjet des vux de M. de
Balzac. Il faut lavouer : les bancs du Palais-Bourbon nont pas exerc jusqu prsent, une influence trs favorable sur
les talents littraires qui sont venus sy asseoir. Un pote clbre tomb des hauteurs du ciel dans les ralits vulgaires
du gouvernement reprsentatif, en est arriv composer de tristes vers, sans faire par compensation de bons discours ;
et nous nosons esprer que latmosphre de la chambre ait le privilge de rendre M. de Balzac ses inspirations dun
temps meilleur.
La prface du Grand homme de province peut tre considre comme le complment de celle de la Femme suprieure :
cest une suite aux lamentations amres dj formules par M. de Balzac que lon pourrait vraiment appeler le Jrmie
de la littrature. M. de Balzac va jusqu se plaindre des louanges exagres donnes, dit-il, Eugnie Grandet, dans le
seul but dtouffer ses autres ouvrages. Nous croyons trouver ici dune part une modestie trop grande, sans doute
lgard dEugnie Grandet, de lautre un amour-propre un peu trop paternel pour des productions qui ne mritent pas
cette tendresse. [...]
Dans cette foudroyante prface, M. de Balzac nous le dclare en termes clairs et nets : " les journaux ne sont pas moins
funestes lexistence des crivains modernes que le vol permanent commis leur prjudice par la Belgique. " Le journal
nest rien moins quun bton pestifr sur lequel M. de Balzac a eu le bonheur de ne point sappuyer pour faire son
chemin. Il se flicite de navoir jamais implor cette hypocrite tyrannie. Il a enfin " le droit chrement acquis de
regarder en face ce cancer qui dvorera peut-tre le pays. " M. de Balzac ny va pas de main morte, il faut en convenir. Le
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journal est tout la fois, sous sa plume, un cancer, une hypocrite tyrannie et un bton pestifr : cest un flagrant
cumul. Si M. de Balzac na jamais implor ces odieux tyrans appels journaux, il y a dautant plus de mrite de leur part
dans les loges quils ont donns ses bons ouvrages. Il est vrai, nous en avons t avertis plus haut, que ces loges
mme taient une noire perfidie. Mais tout larsenal de charlatanisme dploy en faveur du plus fcond de nos
romanciers ? Tout cela tait luvre des libraires de M. de Balzac, la bonne heure : cependant lcrivain qui professe
un si profond mpris pour la presse priodique, naurait-il pas d dfendre rigoureusement ses diteurs, par une
clause en bonne forme, et sous toutes rserves de droit, de compromettre son nom par lemploi de pareils moyens ? Il
paratrait donc quen librairie, les journaux, parfois, sont bons quelque chose.
Mais cette prface nest que le premier coup de canon qui engage laction. Aprs lescarmouche, la bataille : aprs la
prface, le livre.
Nous sommes si loin de payer la haine de M. de Balzac contre la critique, par une rciprocit hostile, que nous
reconnaissons dans le sujet du Grand homme de province le fond dun beau et large tableau de murs. Les murs
littraires sont, elles aussi, un texte fcond, pour lobservateur, pour lcrivain. Le public aime connatre, voir en
dshabill les hommes dont il lit les ouvrages. Il se plat pntrer dans ce monde qui est tout fait un monde
particulier. M. de Balzac par malheur na vu dans ce sujet que des inimitis satisfaire, un dbouch o il pouvait
rpandre le trop plein de ses ressentiments ; au lieu dune peinture de murs, comme il en sut faire jadis, il ne nous a
donn quune satire dont lamertume fait tort mme ce quelle renferme de vrai. [rsum de lintrigue].
Nous ne conduirons point sur ses pas, nos lecteurs, travers toutes les infmies, toutes les noirceurs, toutes les ignobles
intrigues, tous les brigandages que nous tale M. de Balzac, sans nous faire grce du moindre dtail. Nous chercherons
encore moins quels sont les journalistes actuels quil a personnellement dsigns et mis en scne, sous le nom et le
masque assez transparent de ses journalistes de 1821. Toutes ces plaies mises nu, tous ces haillons retourns, toute
cette sale cuisine expose sous nos yeux, dgotent beaucoup plus quils nintressent ou quils namusent. Il nous
suffira de dire que Lucien, devenu en fort peu de temps une des puissances de la presse priodique, se voit la terreur ou
lespoir des libraires, le favori et le sultan des coulisses. Il trafique de son esprit, de sa plume, de sa conscience, il vend
tout, il fait argent de tout jusqu ce que les acheteurs lui manquent, pour ce vil commerce qui, dans sa rapide
dcadence, finit par le conduire la misre, travers la honte et le dsespoir.
Que de pareilles murs, de si dgotantes turpitudes puissent exister, nous ne le nierons pas. La presse priodique est
un pouvoir expos tomber en de mauvaises mains, comme tous les pouvoirs de ce monde, sans quil faille en tirer une
conclusion gnrale contre lui-mme. Oui, nous le savons : en scrutant les murs du journalisme, on peut y trouver de
misrables trafics. Nous ne parlons pas seulement du journalisme littraire, qui a des gouts, des mauvais lieux dans
lesquels il faut sabstenir de jeter mme un regard. Nous parlons aussi du journalisme politique, o trop dexemples
fameux de corruption et de bassesse se montrent effrontment au grand jour. [...]
Au lieu de vous en tenir exclusivement, M. de Balzac, dans votre peinture du journalisme, ces tripots de bas tages,
ces viles boutiques, vous auriez pu, si vous aviez voulu faire un tableau fidle, et non pas un pamphlet, trouver de nobles
oppositions mettre en regard de ces hideux tableaux. Non, quoi que vous disiez, mme en ce temps de corruption, tout
nest pas corrompu. Le journal qui, depuis dix ans, fidle ses vritables antcdents dindpendance et de loyaut, aura
soutenu son drapeau sur la brche, au milieu des perscutions, des emprisonnements, des amendes pour lesquelles il
na plus mme la ressource des souscriptions, prohibes par de rigoureuses lois ; le journal dont plusieurs rdacteurs
ont renonc sans hsiter par honneur, par conviction, des positions dj acquises, ce journal ne vous en dplaise na
rien de commun avec les bouges repoussants o vous conduisez vos lecteurs.
F. de Lagevenais, " Revue littraire, les derniers romans de M. de Balzac et de M. Frdric
Souli ", Revue des deux mondes, 1er dcembre 1843

Lauteur de David Schard disperse, travers les chapitres de son roman, de longs fragments qui seraient mieux leur
place dans la collection des manuels-Roret. Ainsi, il y a tour tour une thorie complte de lart du papetier, un expos
tendu des travaux de limprimeur, et enfin une histoire trs dtaille et trs rudite de la saisie et de la contrainte par
corps, laquelle ferait honneur lhuissier le plus expert [...].
ve est la seule figure intressante du roman, parce quelle est la seule honnte. Lauteur, pour peindre ce touchant
caractre a retrouv souvent son pinceau dli dautrefois. Quant aux personnages secondaires, ils sont tellement faux,
quon nen saurait accepter aucun. [...] M. de Balzac, au surplus, ne se met gure maintenant en frais dinvention. Il
reprend, on le sait, ses vieux personnages et se contente de leur couper une basque dhabit et de leur mettre un peu de
rouge. Ici encore, nous avons lternel Lousteau et lternel Lucien de Rubempr, le journaliste et le pote. [...]
Voil comment se termine cette histoire parasite de Lucien, laquelle senchevtre (on ignore comment et pourquoi)
travers des dtails techniques qui senchevtrent fort mal eux-mmes dans une histoire dcousue et sans intrt. M. de
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Balzac croit avoir montr le Gnie et le dvouement, David et ve, perscuts par la socit ; en ralit, il na russi qu
mettre un niais honnte et une femme nave au milieu dune bande de fripons. Conu sans proportions, compos sans
mthode, crit sans naturel, ce livre est le digne pendant de Rosalie. Pour exprimer cette ide que, dans un salon, une
femme promne ses yeux sur ceux qui lentourent, M. de Balzac dit : " elle jette un regard de circumnavigation. " Cest l
le style habituel du livre : un Cyrano, doubl de Scudry, net pas parl autrement.
Les crivains du XIXe sicle notamment ne cessent de revenir Illusions perdues, gnralement pour constater que
Balzac a su rendre compte de leur position insupportable devant le Journal et les journalistes.
Jules Valls, " Les victimes du livre ", Le Figaro, 9 octobre 1862.
Balzac
Ah ! sous les pas de ce gant, que de consciences crases, que de boue, que de sang ! Comme il a fait travailler les juges
et pleurer les mres ! Je le sais, moi, qui ai pu voir de prs le bataillon des Irrguliers parisiens.
Combien se sont perdus, ont coul, qui agitaient au-dessus du bourbier o ils allaient mourir une page arrache
quelque volume de La Comdie humaine.
Ceux-ci, avec Rastignac du haut dune mansarde ou debout sur le pont des Arts, ont montr le poing la vie et cri au
monde : nous deux ! jurant, sur Le Pre Goriot ou le volume d ct, de faire leur trou coups dpe ou de couteau
prts jouer tout, et, pour forcer la porte, sauter dans larne, passant davance sur le ventre des hommes et le cur
des femmes.
Les femmes, des drlesses sentimentales, qui vous jettent des places, des croix par les alcves, vous font entrer dans leur
boudoir devant le mari qui sen va, et vous promnent leur bras travers les salons, au thtre, au bois, devant le
monde qui salue !
On ne parle que par millions et par ambassades, l-dedans ! Les hommes de lettres y font des vies ! les attachs sen
donnent !
La patrie tient entre les mains de quelques farceurs, canailles faire plaisir, spirituels faire peur, qui allument des
volcans avec le feu de leur cigare et crasent vertu, justice, honneur sous la semelle de leurs bottes vernies.
Il sest trouv des gens des conscrits pour prendre le roman la lettre, qui ont cru quil y avait comme cela de par le
monde un autre monde o les duchesses vous sautaient au cou, les rubans rouges la boutonnire, o les millions
tombaient tout ficels et les grandeurs toutes rties, et quil suffisait de ne croire rien pour arriver tout...
Monde de filous et dentretenus.
Dans lombre, au second plan, La Vieille fille, Les Deux frres, les chefs-duvre.
Au soleil, le sermon de Vautrin, coup par le clbre jet de salive ! Et les pauvres garons den faire un vangile, crachant
comme lui, en homme suprieur (voyez la page) au nez de la socit, qui les a laisss sembarrasser dans leurs ficelles et
tomber de ces chutes dont quelquefois on porte la marque sur lpaule.
Les Grands Hommes de province Paris ! Jai vu sen aller un un, fil par fil, leurs cheveux et leurs esprances, et le
chagrin venir, quelquefois mme le chtiment en voiture jaune, au galop des gendarmes. Quon en a reconduit de
brigade en brigade, de ces Illusions perdues !
Les plus heureux, je vous les nommerai un jour, jouent au La Palfrine dans les escaliers du ministre, les antichambres
de financiers, les cafs de gens de lettres, et font des mots, nayant pas pu faire autre chose. Ils attendent lheure de
labsinthe, aprs avoir laiss passer celle du succs.
mile Zola, " Jules Janin et Balzac ", Le Roman exprimental, Paris, Charpentier, 1880, p. 341
Il faut dire que Balzac venait de malmener la presse dans son roman des Illusions perdues. Janin crut devoir prendre la
dfense du journalisme. En ce temps-l, on stonnait dj quun romancier, gorg par les journaux, tran chaque
matin dans la boue, et laudace grande de ntre pas content et daccuser ses diffamateurs de mauvaise foi et
dignorance. Balzac ne mchait pas ses paroles : dans la Revue qui lui appartenait, il avait carrment dclar que les
journaux montraient une attitude " ignoble " son gard. Jamais, dailleurs, il ne leur pardonna. Ce sont des choses
quon a trop oublies aujourdhui, lorsquon cherche craser les vivants sous le souvenir des grands morts. Ajoutons
que Janin, en se faisant le dfenseur de la presse, tait bassement lexcuteur des rancunes de la Revue de Paris, qui
venait de perdre son fameux procs contre Balzac. [...]
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Mais le plus amusant des reproches que lui fait Janin, cest de se rpter, cest de navoir quune note. Cela gaie, quand
on se rappelle que ledit Janin a refait pendant quarante ans le mme article, au rez-de-chausse des Dbats. Quarante
annes du mme bavardage vide, quarante annes de critique inutile et fleurie ! Nest-ce pas norme de venir ensuite
accuser duniformit lauteur de la Comdie humaine, qui a cr tout un monde ? [...]
En somme, comme je lai dit, Jules Janin feint de croire que Balzac sattaque aux grandes personnalits du journalisme
tous ces grands noms : Chateaubriand, Royer-Collard, Guizot, Armand Carrel, Villemain, Lamenais. La vrit tait que
Balzac parlait des honteuses cuisines dont il tait le tmoin, des coulisses de la presse, de tous les abus que le brusque
succs des journaux faisait natre. [...]
Eh bien ! prince, je crois que cest vous qui avez disparu le lendemain dans un immense oubli. Personne ne lit plus vos
romans, et vos quarante annes de critique nont mme pas laiss une trace dans notre histoire littraire. Quant
Balzac, il est debout, il grandit chaque jour davantage. Ce sont l des fouilles dans le pass, des lectures saines et
rafrachissantes, qui font du bien. On respire, en constatant limbcillit de la critique, mme lorsquelle est couronne.
Songez donc quaujourdhui il ny en a mme un quon ait jug digne dasseoir sur le trne. Si lon patauge ce point
lorsquon est prince, que penser des jugements ports par le troupeau des critiques ordinaires.
Marcel Proust, grand pratiquant du pastiche balzacien claire ici sur quelques particularits du style dIllusions perdues.
Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve, ditions Gallimard, 1954 (crit entre 1908 et 1910)
Tandis que souvent chez les crivains le titre est plus ou moins un symbole, une image quil faut prendre dans un sens
plus gnral, plus potique que la lecture du livre qui donnera [sic], avec Balzac cest plutt le contraire. La lecture de
cet admirable livre qui sappelle Les Illusions perdues restreint et matrialise plutt ce beau titre : Illusions perdues. Il
signifie que Lucien de Rubempr venant Paris sest rendu compte que Mme de Bargeton tait ridicule et provinciale,
que les journalistes taient fourbes, que la vie tait difficile. Illusions toutes particulires, toutes contingentes, dont la
perte peut lacculer au dsespoir et qui donnent une puissante marque de ralit au livre, mais qui font rabattre un peu
de la posie philosophique du titre. Chaque titre doit ainsi tre pris au pied de la lettre : Un grand homme de province
Paris, Splendeur et Misre [sic] des Courtisanes, A combien lAmour revient aux Vieillards, etc.
Le style est tellement la marque de la transformation que la pense de lcrivain fait subir la ralit, que, dans Balzac, il
ny a pas proprement parler de style. Sainte-Beuve sest tromp l du tout au tout : " Ce style si souvent chatouilleux et
dissolvant, nerv, ros et vein de toutes les teintes, ce style dune corruption dlicieuse, tout asiatique comme disaient
nos matres, plus bris par places et plus amolli que le corps dun mime antique ". Rien nest plus faux. [...] Dans Balzac
coexistent [...], non digrs, non encore transforms, tous les lments dun style venir qui nexiste pas. Le style ne
suggre pas, ne reflte pas : il explique. Il explique dailleurs laide des images les plus saisissantes, mais non fondues
avec le reste qui font comprendre ce quil veut dire comme on le fait comprendre dans la conversation si on a une
conversation gniale, mais sans se proccuper de lharmonie du tout et de ne pas intervenir. Si, dans sa correspondance,
il dira : " Les bons mariages sont comme la crme : un rien les fait manquer ", cest par des images de ce genre, cest-dire frappantes, justes, mais qui dtonnent, qui expliquent au lieu de suggrer, qui ne se subordonnent aucun but de
beaut et dharmonie quil emploiera : " Le rire de M. de Bargeton, qui tait comme des boulets endormis qui se
rveillent, etc. ".
Sil se contente de trouver le trait qui pourra nous faire comprendre comment est la personne sans chercher le fondre
dans un ensemble beau, de mme il donne des exemples prcis au lieu den dgager ce quils peuvent contenir. Il dcrit
ainsi ltat desprit de Mme de Bargeton : " Elle concevait le pacha de Janina ; elle aurait voulu lutter avec lui dans le
srail et trouvait quelque chose de grand tre cousue dans un sac et jete leau. Elle enviait Lady Esther Stanhope, ce
bas-bleu du dsert. " Ainsi, au lieu de se contenter dinspirer le sentiment quil veut que nous prouvions dune chose, il
la qualifie immdiatement : " Il eut une affreuse expression. Il eut alors un regard sublime. " Il nous parlera des qualits
de Mme de Bargeton qui deviennent de lexagration en sen prenant aux riens de la province. Et il ajoute comme la
comtesse dEscarbagnas : " Certes, un coucher de soleil est un grand pome, etc. " [...]
Balzac se sert de toutes les ides qui lui viennent lesprit, et ne cherche pas les faire entrer, dissoutes, dans un style
o elles sharmoniseraient et suggreraient ce quil veut dire. Non, il le dit tout simplement, et si htroclite et disparate
que soit limage, toujours juste dailleurs, il la juxtapose. " M. du Chtelet tait comme ces melons qui de verts
deviennent jaunes en une nuit. " [...]
Ne concevant pas la phrase comme faite dune substance spciale o doit sliminer et ne plus tre reconnaissable tout
ce qui fit lobjet de la conversation, du savoir, etc, il ajoute chaque mot la notion quil en a, la rflexion quelle lui
inspire. Sil parle dun artiste, immdiatement il dit ce quil en sait, par simple apposition. Parlant de limprimerie
Schard, il dit quil tait ncessaire dadapter le papier aux besoins de la civilisation franaise qui menaaient dtendre
la discussion tout et de reposer sur une perptuelle manifestation de la pense individuelle un vrai malheur, car les
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peuples qui dlibrent agissent trs peu, etc. Et il met ainsi toutes les rflexions qui, cause de cette vulgarit de nature,
sont souvent mdiocres et qui prennent de cette espce de navet avec laquelle elles sont au milieu dune phrase
quelque chose dassez comique. Dautant plus que les expressions " propres ... ", etc. dont lusage vient prcisment du
besoin de dfinir au milieu dune phrase et de donner un renseignement, leur donne quelque chose de plus solennel. [...]
Et quand il y a une explication donner, Balzac ny met pas de faons, il crit voici pourquoi : suit un chapitre. De
mme, il a des rsums o il affirme tout ce que nous devons savoir, sans donner dair, de place : " Ds le second mois de
son mariage, David passait la plus grande partie de son temps, etc. ; trois mois aprs son arrive Angoulme, etc. " [...]
Mais prcisment tout cela plat ceux qui aiment Balzac ; ils se redisent en souriant : " le prnom ignoble dAmlie ", "
biblique, rpta Fifine tonne ", " la princesse de Cadignan tait une des femmes les plus fortes sur la toilette ". Aimer
Balzac ! Sainte-Beuve qui aimait tant dfinir ce que ctait que daimer quelquun aurait eu l un joli morceau faire. Car
les autres romanciers, on les aime en se soumettant eux, on reoit dun Tolsto la vrit comme de quelquun de plus
grand et de plus fort que soi. Balzac, on sait toutes ses vulgarits, elles nous ont souvent rebut au dbut ; puis on a
commenc laimer, alors on sourit toutes ces navets, qui sont si bien lui-mme ; on laime, avec un tout petit peu
dironie qui se mle de la tendresse ; on connat ses travers, ses petitesses, et on les aime parce quelles le caractrisent
fortement.
Balzac, ayant gard par certains cts un style inorganis, on pourrait croire quil na pas cherch objectiver le langage
de ses personnages, ou, quand il la fait objectif, quil na pu se tenir de faire toute minute remarquer ce quil avait de
particulier. Or, cest tout le contraire. Ce mme homme qui tale navement ses vues historiques, artistiques, etc., cache
les plus profonds desseins, et laisse parler delle-mme la vrit de la peinture du langage de ses personnages, si
finement quelle peut passer inaperue, et il ne cherche en rien la signaler. [...] Lucien de Rubempr, mme dans ses
aparts, a juste la gat vulgaire, le relent de jeunesse inculte qui doit plaire Vautrin : " Alors, pensa Lucien, il connat
la bouillotte ". " Le voil pris ". " Quelle nature dArabe ! " Lucien se dit lui-mme : " Je vais le faire poser ". " Cest un
lascar qui nest pas plus prtre que moi ". Et de fait, Vautrin na pas t le seul aimer Lucien de Rubempr. [...]
Mais tout, depuis la manire dont Vautrin arrte sur la route Lucien quil ne connat pas et dont le physique seul a donc
pu lintresser, jusqu ces gestes involontaires par lesquels il lui prend le bras, ne trahit-il pas le sens trs diffrent et
trs prcis des thories de domination, dalliance deux dans la vie, etc. dont le faux chanoine colore aux yeux de
Lucien, et peut-tre aux siens mmes, une pense inavoue. La parenthse propos de lhomme qui a la passion de
manger du papier nest-elle pas aussi un trait de caractre admirable de Vautrin et de tous ses pareils, une de leurs
thories favorites, le peu quils laissent chapper de leur secret ? Mais le plus beau sans conteste est le merveilleux
passage o les deux voyageurs passent devant les ruines du chteau de Rastignac. Jappelle cela la Tristesse dOlympio
de lHomosexualit : Il voulut tout revoir, ltang prs de la source. On sait que Vautrin, la pension Vauquer, dans Le
Pre Goriot, a form sur Rastignac et inutilement, le mme dessin de domination quil a maintenant sur Lucien de
Rubempr. Il a chou, mais Rastignac nen a pas moins t fort ml sa vie ; Vautrin a fait assassiner le fils Taillefer
pour lui faire pouser Victorine. Plus tard, quand Rastignac sera hostile Lucien de Rubempr, Vautrin, masqu, lui
rappellera certaines choses de la pension Vauquer et le contraindra protger Lucien, et mme aprs la mort de Lucien,
Rastignac souvent fera appeler Vautrin dans une rue obscure.
De tels effets ne sont gure possibles que grce cette admirable invention de Balzac davoir gard les mmes
personnages dans tous ses romans. Ainsi un rayon dtach du fond de luvre, passant sur toute une vie peut venir
toucher, de sa lueur mlancolique et trouble, cette gentilhommire de Dordogne et cet arrt des deux voyageurs.
On terminera cet ventail de textes de rception par des extraits du fameux article de Georg Lukcs, Balzac et le
ralisme franais qui prsente une lecture oriente mais trs riche dIllusions perdues.
Georg Lukcs, Balzac et le ralisme franais, 1935
Avec cette uvre, acheve lapoge de sa maturit dcrivain (1843), Balzac cre un nouveau type de roman qui devient
dune importance capitale pour toute lvolution du XIXe sicle : le type du roman de la dsillusion, le type dun roman
dans lequel on montre comment les ides fausses, mais apparues par ncessit, des personnages sur le monde, se
brisent ncessairement au contact de la force brutale de la vie capitaliste. Naturellement, la destruction des illusions
napparat pas avec Balzac pour la premire fois dans le roman moderne. Le premier grand roman, Don Quichotte, est
bien lui aussi une histoire des " illusions perdues ". Mais chez Cervants, cest la bourgeoisie naissante qui dtruit des
illusions fodales attardes, tandis que chez Balzac les ides ncessairement engendres par la socit bourgeoise sur
lhomme, la socit, lart, etc., les produits idologiques les plus levs du dveloppement rvolutionnaire bourgeois
apparaissent comme de simples illusions quand on les confronte la ralit de lconomie capitaliste. Mme le roman
du XVIIIe sicle dtruit maintes illusions. Toutefois cette destruction touche pour une part des restes encore existants
de pense et de sentiments fodaux chez certaines personnes, alors que, pour une autre part, ce sont des ides peu
fondes, de faible valeur, insuffisamment ancres dans la ralit, au sein dune conception plus large, plus relle de cette
mme ralit, qui sont surmontes partir du mme point de vue. Le tragique rire moqueur sur les plus hauts produits
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idologiques du dveloppement bourgeois eux-mmes, la tragique dcomposition des idaux bourgeois sous la pousse
de leur propre base conomique, capitaliste, sont rapports pour la premire fois de faon ample, en totalit, dans ce
roman de Balzac. Seul le chef-duvre immortel de Diderot, Le Neveu de Rameau, peut tre considr comme
prcurseur idologique des Illusions perdues.
Balzac nest nullement le seul qui soccupe de ce thme cette poque. Le Rouge et le Noir de Stendhal et les
Confessions dun enfant du sicle de Musset, etc., lont prcd. Le thme tait dans lair ; non pas la suite de quelque
mode littraire, mais la suite de lvolution sociale de la France, le pays modle pour la croissance politique de la
bourgeoisie. La grande, lhroque priode de la Rvolution franaise et de Napolon avait veill, ranim et mobilis
toutes les nergies en sommeil de la classe bourgeoise. La priode hroque donnait la meilleure partie de la classe
bourgeoise la possibilit de faire passer directement dans la vie les idaux hroques et de mourir hroquement en
conformit avec ces idaux. Avec la chute de Napolon, avec la Restauration et aussi avec la Rvolution de juillet,
sachve la priode hroque, les idaux deviennent des ornements et des dcorations superflus de la vie relle : le
chemin ouvert au dveloppement du capitalisme par la Rvolution et Napolon slargit pour devenir la grand-route
confortable et accessible tous du dveloppement. Les pionniers hroques doivent se retirer et cder la place ceux qui
profitent du dveloppement, aux spculateurs. [...]
Les Illusions perdues slvent cependant une hauteur solitaire au sein de la production littraire de la France dalors,
car Balzac ne sen tient pas la comprhension et la reprsentation des situations sociales tragiques ou tragi-comiques
esquisses ici. Il voit et porte plus loin. Il voit que la fin de la priode hroque de lvolution bourgeoise en France
signifie en mme temps le dbut du grand essor du capitalisme franais. Dans presque tous ses romans, Balzac dcrit cet
essor capitaliste, la transformation de lartisanat primitif en capitalisme moderne, la conqute de la ville et de la
campagne par le capital dans sa croissance imptueuse, le recul de toutes les formes de socit et les idologies
traditionnelles devant la marche en avant triomphante du capitalisme. Dans ce processus, les Illusions perdues sont
lpope tragi-comique de la capitalisation de lesprit. La transformation en marchandise de la littrature (et avec elle
de toute idologie) est le thme de ce roman, et la mise en pratique trs large de cette capitalisation de lesprit intgre la
tragdie gnrale de la gnration directement postrieure Napolon un cadre social plus profondment compris que
ne pouvait le faire le plus grand contemporain de Balzac, savoir Stendhal.
Balzac reprsente ce processus de la transformation en marchandise de la littrature dans toute son ampleur, dans sa
totalit : depuis la production du papier jusquaux convictions, penses et sentiments des crivains, tout devient
marchandise. Et Balzac ne se contente pas dune constatation gnrale des consquences idologiques de cette
domination du capitalisme, mais rvle dans tous les domaines (journaux, thtres, maisons ddition) le processus
concret de la capitalisation dans toutes ses tapes et ses dterminations. " La gloire, cest douze mille francs darticles et
mille cus de dners " dclare le libraire Dauriat [...].
Dans cette situation, les journalistes et les crivains sont les exploits : leurs capacits deviennent des marchandises, des
objets de spculation pour le capitalisme de la littrature. Mais cause du capitalisme ils deviennent des exploits
prostitus : ils veulent se hisser eux-mmes au niveau dexploiteurs ou pour le moins dintermdiaires de lexploitation
[...].
Ce large contenu du thme, la capitalisation de la littrature depuis la production du papier jusqu la sensation lyrique,
dtermine comme toujours chez Balzac la forme artistique de la composition. Lamiti de David Schard et de Lucien de
Rubempr, les illusions dtruites de leur jeunesse commune peuple de rves, linteraction de leurs diffrences de
caractre dterminent les grandes lignes de laction. Le gnie de Balzac sexprime directement dans ce schma de base
de la composition. Il cre des personnages dans lesquels dune part, les tensions intrieures du sujet sexpriment sous
forme de passion humaine, deffort individuel : David Schard invente une nouvelle faon de produire du papier bon
march et est dup par des capitalistes, tandis que Lucien porte sur le march du capitalisme parisien la posie la plus
subtile. Dautre part apparat de manire humaine et plastique dans lopposition des deux caractres le contraste
extrme dans les ractions possibles face la capitalisation et toutes ses horreurs. David Schard est un stocien
puritain, tandis que Lucien incarne parfaitement la dmarche hypersensible de la jouissance, lpicurisme raffin, sans
consistance, de la gnration daprs la Rvolution. [...]

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