Gênero e Colonialidade: em Busca de Chaves de Leitura e de Um Vocabulário Estratégico Descolonial
Gênero e Colonialidade: em Busca de Chaves de Leitura e de Um Vocabulário Estratégico Descolonial
Gênero e Colonialidade: em Busca de Chaves de Leitura e de Um Vocabulário Estratégico Descolonial
18 (2012)
Epistemologias feministas: ao encontro da crtica radical
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Referncia eletrnica
Rita Laura Segato, Gnero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulrio estratgico
descolonial, e-cadernos ces [Online], 18|2012, colocado online no dia 01 Dezembro 2012, consultado a 16 Julho
2015. URL: http://eces.revues.org/1533; DOI: 10.4000/eces.1533
Editor: Centro de Estudos Sociais
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Este documento o fac-smile da edio em papel.
CES
GNERO
ESTRATGICO DESCOLONIAL
106
107
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Apresento aqui dois temas conjuntamente porque se constituem como problemas anlogos.
O primeiro um tema nevrlgico neste momento no Brasil, cujo tratamento requer delicadas
manobras conceituais e uma ginstica mental considervel, pois se apresenta como uma
defesa da vida de crianas indgenas, ao mesmo tempo em que ameaa as lutas pelo
direito dos povos a construir suas autonomias e sua prpria justia. Trata-se de um projeto
de lei especfico, proposto pela frente parlamentar evanglica, de criminalizao da prtica
adaptativa, eventual e em declinao do infanticdio.1 Esse projeto de lei no Brasil prope a
superviso e a vigilncia da vida indgena por agentes missionrios e da segurana pblica,
e redobra assim suas capacidades de interveno nas aldeias, que perdem dessa forma
sua privacidade e se tornam transparentes aos olhos do Estado. Uma vez mais, no mundo
colonial, a pretensa salvao das crianas um libi fundamental para as foras que
pretendem intervir a vida dos povos indgenas, mediante a acusao de que submetem sua
prpria infncia a maus-tratos.
O desafio nesse caso residiria em defender o direito autonomia dos povos, ainda
tendo em conta que, no contexto da colonialidade, tal autonomia permita algumas prticas
inaceitveis para o discurso ocidental e moderno de Direitos Humanos, como por exemplo a
eliminao consciente de vidas indefesas. Sem dvida, o feixe de luz que ilumina hoje em
dia essa prtica escassamente representativa da vida das aldeias integra, no Brasil, um
poderoso argumento antirrelativista e anti-indgena que pretende desqualificar e
desmoralizar os povos para mant-los sob a tutela interessada do mundo branco. Foi neste
contexto que recebi a solicitao para colaborar com tal questo, ajudando a pensar sobre a
forma de defender sociedades acusadas da prtica de infanticdio ou de no consider-lo
crime. A partir deste ponto, como mostrarei, vi-me obrigada a construir um discurso que no
recorria nem ao relativismo cultural nem s noes de cultura e tradio que costumamos
utilizar para defender a realidade indgena e as comunidades na Amrica Latina. Tambm
no apelava ao direito diferena, mas ao direito autonomia, como um princpio que no
coincide exatamente com o direito diferena, j que permanecer diferente e em nenhum
Aprovado pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias em 01/06/2011 e pela Comisso de Constituio e
Justia em 02/07/2013, o projeto de lei n. 1 057/07 tambm conhecido como Lei Muwaji do deputado
Henrique Afonso (PV Acre) dispe sobre o combate a prticas tradicionais nocivas e proteo dos direitos
fundamentais de crianas indgenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas no tradicionais.
Durante os 6 anos de tramitao na Cmara dos Deputados do Brasil, o contedo do projeto recebeu algumas
alteraes, sendo inclusive substitudo, em 2011, pelo texto da relatora deputada Janete Piet (PT So Paulo),
que comutou as aes punitivas previstas no texto original por aes educativas. As alteraes foram
decorrentes das presses exercidas pela sociedade civil contra a interferncia de missionrios/as e religiosos/as
na autonomia dos povos indgenas. Na poca da publicao desse artigo, o projeto de lei 1 057/07 ainda no
havia sido aprovado.
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caso vir a coincidir no pode tornar-se uma regra compulsria para todos os aspectos da
vida e de forma permanente.
Da mesma forma, a colaborao com a Coordenao de Mulheres Indgenas da
Fundao Nacional do ndio (FUNAI)2 na divulgao da Lei Maria da Penha contra a
Violncia Domstica,3 levou-me necessidade de pensar na defesa das mulheres
indgenas perante a violncia crescente que as vitima em nmero e grau de crueldade, no
s a partir do mundo branco, mas tambm dentro de seus lares e sob as mos de homens
tambm indgenas. Apresenta-se a um dilema semelhante, pois como seria possvel
recorrer ao amparo dos direitos estatais sem propor a progressiva dependncia de um
Estado permanentemente colonizador cujo projeto histrico no coincide com o projeto das
autonomias e da restaurao do tecido comunitrio? contraditrio afirmar o direito
autonomia e, simultaneamente afirmar que deve-se esperar que o Estado crie as leis que
devero defender os frgeis e prejudicados dentro dessas autonomias.
Minha primeira afirmao nessa tarefa que o Estado entrega aqui com uma mo
aquilo que j retirou com a outra: cria uma lei que defende as mulheres da violncia qual
esto expostas porque esse mesmo Estado j destruiu as instituies e o tecido comunitrio
que as protegia. O advento moderno tenta desenvolver e introduzir seu prprio antdoto
para o veneno que inocula. O polo modernizador da Repblica, herdeira direta da
administrao ultramarina, permanentemente colonizador e intervencionista, debilita
autonomias, irrompe na vida institucional, rasga o tecido comunitrio, gera dependncia e
oferece com uma mo a modernidade do discurso crtico igualitrio, enquanto com a outra
introduz os princpios do individualismo e a modernidade instrumental da razo liberal e
capitalista, conjuntamente com o racismo que submete os homens no brancos ao estresse
e emasculao. Voltarei a estes temas pormenorizadamente na prxima seco.
A COMUNIDADE FRENTE AO ESTADO E OS DIREITOS
O polmico tema do infanticdio indgena, colocado sob o foco de um teatro montado para
fazer retroceder as aspiraes de respeito e autonomia dos povos, paradigmtico dos
dilemas que nos impe a defesa do mundo da aldeia. A anlise das alternativas que
enfrentamos ao avaliar e tentar proteger e promover o mundo da aldeia frente ao mundo
2
A FUNAI foi criada atravs da Lei n. 5 371, de 5 de dezembro de 1967 e um rgo do governo brasileiro que
lida com todas as questes referentes s comunidades indgenas e s suas terras [Nota da tradutora].
3
A Lei n 11 340 o dispositivo legal responsvel pelo aumento do rigor nas punies de agresses contra
mulheres quando essas ocorrem no mbito domstico ou familiar. Em vigor desde o dia 22 de setembro de
2006, a lei conhecida popularmente no Brasil como Lei Maria da Penha em referncia ao caso n.
12.051/OEA, levado Organizao dos Estados Americanos por Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu
durante 6 anos violncia fsica, maus-tratos e duas tentativas de homicdio perpetradas por seu ex-marido. Em
decorrncia da primeira tentativa de homicdio, Maria da Penha ficou paraplgica, e aps o julgamento que se
prolongou por 18 anos, seu ex-marido foi condenado, tendo cumprido apenas dois anos de priso em regime
fechado, impunidade que motivou a ao de Maria da Penha junto OEA contra o Estado brasileiro [Nota da
tradutora].
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tambm comum, atravs de uma trama interna que no dispensa o conflito de interesse e o
antagonismo das sensibilidades ticas e posturas polticas, mas que compartilha uma
histria. Esta perspectiva nos conduz a substituir a expresso uma cultura pela expresso
um povo, sujeito vivo de uma histria, em meio a articulaes e intercmbios que, mais
que uma interculturalidade, desenham uma inter-historicidade. O que identifica este sujeito
coletivo, esse povo, no um patrimnio cultural estvel, de contedos fixos, mas a
autopercepo por parte de seus membros de compartilhar uma histria comum, que vem
de um passado e se dirige a um futuro, ainda que atravs de situaes de dissenso interno
e conflituosidade.
Afinal o que um povo? Um povo o projeto de ser uma histria. Quando a histria
tecida coletivamente, como os pontos de uma tapearia onde os fios desenham figuras, s
vezes aproximando-se e convergindo, s vezes distanciando-se e seguindo em direes
opostas, interceptada, interrompida pela fora de uma interveno externa, este sujeito
coletivo pretende retomar os fios, fazer pequenos ns, suturar a memria e continuar.
Nesse caso, deve ocorrer o que podemos chamar uma devoluo da histria, uma
restituio da capacidade de tecer seu prprio caminho histrico, retomando o tramado das
figuras interrompidas, tecendo-as at ao presente da urdidura, projetando-as em direo ao
futuro.
Qual seria, nesse caso, o melhor papel que o Estado poderia desempenhar?
Certamente, apesar do carter permanentemente colonial de suas relaes com o territrio
que administra, um bom Estado, longe de um Estado que impe sua prpria lei, ser um
Estado restituidor da jurisdio prpria e do foro comunitrio, garantia da deliberao
interna, limitada por razes que se vinculam prpria interveno e administrao estatal,
como irei expor abaixo, ao referir-me ao gnero. A brecha descolonial que possvel
pleitear dentro da matriz estatal ser aberta, precisamente, pela devoluo da jurisdio e a
garantia de deliberao, o que no outra coisa que a devoluo da histria, da
capacidade de cada povo de implementar seu prprio projeto histrico.
Distanciamo-nos, portanto, do argumento relativista, sem prejuzo do procedimento
metodolgico que, relativizando, permite-nos entender o ponto de vista do outro. Nos
distanciamos estrategicamente do relativismo, apesar de que sua plataforma foi muito
instrumentalizada pelos mesmos povos indgenas com algumas consequncias perversas
s quais me referirei abaixo. O argumento relativista deve ceder lugar ao argumento
histrico, da histria prpria, e do que propus chamar pluralismo histrico, que outra coisa
no que uma variante no culturalista do relativismo, apenas imune tendncia
fundamentalista inerente a todo culturalismo. Mais do que um horizonte fixo de cultura, cada
povo tece sua histria pelo caminho do debate e da deliberao interna, revolvendo entre
as brechas de inconsistncia de seu prprio discurso cultural, transcendendo seus conflitos
112
Sobre os recursos do discurso interno para a transformao dos costumes ver An-naim (1995).
113
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Irei referir-me a seguir a uma forma de infiltrao especfica, como o das relaes de
gnero da ordem colonial moderna nas relaes de gnero no mundo-aldeia. Algo
semelhante Julieta Paredes apontou com a ideia de entroncamento de patriarcados
(2010). importante compreendermos aqui que, ao comparar o processo intrusivo da
colnia e, mais tarde, do Estado republicano nos outros mundos, com a ordem da colonial /
modernidade e seu preceito cidado, no somente iluminamos o mundo da aldeia, mas
tambm e sobretudo acedemos s dimenses da Repblica e do caminho dos Direitos que
se apresentam a ns geralmente opacas, invisibilizadas pelo sistema de crenas cvicas,
republicanas no qual estamos imersos pela religiosidade cvica do nosso mundo. Tambm
gostaria de fazer notar que a anlise do que diferencia o gnero de um e outro mundo
revela, com grande claridade, o contraste entre seus respectivos padres de vida em geral,
em todos os mbitos e no somente no mbito do gnero. Isso se deve a que as relaes
de gnero so, apesar de sua tipificao como tema particular no discurso sociolgico e
antropolgico, uma cena ubqua e onipresente de toda vida social.
115
Uma reedio desse texto ser publicada em lngua castelhana na antologia organizada por Francesca
Gargallo, que reunir cem anos de pensamento feminista latino-americano na Coleccin Ayacucho.
116
Ver, por exemplo: Gutirrez e Palomo (1999); Hernndez Castillo (2003) e Hernndez e Serra (2005).
Ver, por exemplo, Williams e Pierce (1996).
8
Para uma lista de identidades transgenricas em sociedades histricas e contemporneas ver Campuzano
(2009a: 76).
7
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dos
homens
no
ambiente
extracomunitrio,
frente
ao
poder
dos
118
sobre o problema crescente de violncia contra elas, cujas notcias chegavam a Braslia. O
que ocorre, em geral, mas especialmente nas reas onde a vida considerada tradicional
se encontra supostamente mais preservada e onde h mais conscincia do valor da
autonomia frente ao Estado, como o caso dos/das habitantes do Parque Xing, no Mato
Grosso, que os caciques e os homens se fazem presentes e interpem o argumento de
que no existe nada que o Estado tenha para falar com suas mulheres. Sustentam este
argumento com a verdade verossmil de que seu mundo sempre foi assim: o controle que
ns temos sobre nossas mulheres um controle que sempre tivemos sobre elas.
Sustentam esta declarao, como antecipei anteriormente, com um argumento culturalista e
fundamentalista portanto, no qual se pressupe que a cultura no teve histria. Arlette
Gautier chama a esta miopia histrica a inveno do direito consuetudinrio (Gautier,
2005: 697).
A resposta, bastante complexa, que devolvemos a eles foi: em parte sim, em parte
no. Porque, se sempre existiu uma hierarquia no mundo da aldeia, um diferencial de
prestgio entre homens e mulheres, tambm existia uma diferena, que agora se v
ameaada pela ingerncia e colonizao pelo espao pblico republicano, que difunde um
discurso de igualdade e expele a diferena a uma posio marginal, problemtica o
problema do outro, ou a expulso do outro condio de problema. Essa inflexo
introduzida pela incorporao gide, primeiro, da administrao colonial de base
ultramarina e, mais tarde, da gesto colonial estatal, tem, como o primeiro de seus
sintomas a cooptao dos homens enquanto classe ancestralmente dedicada s tarefas e
papis do espao pblico com suas caractersticas pr-intruso.
Deliberar no terreno comum da aldeia; ausentar-se em expedies de caa e para
contatos com as aldeias vizinhas ou distantes, do mesmo povo ou de outros povos;
parlamentar ou guerrear com as mesmas foi, ancestralmente, tarefa dos homens. por isso
que, da perspectiva da aldeia, as agncias das administraes coloniais que se sucederam
entram nesse registro em relao a com quem se parlamenta, com que se guerreia, com
quem se negocia, com quem se pactua e, em pocas recentes, de quem se obtm os
recursos e direitos (como recursos) que se reivindicam em tempos de poltica de identidade.
A posio masculina ancestral, portanto, se v agora transformada por este papel relacional
com as poderosas agncias produtoras e reprodutoras da colonialidade. com os homens
que os colonizadores guerrearam e negociaram, e com os homens que o Estado da
colonial /modernidade tambm o faz.
Para Arlette Gautier a eleio dos homens como interlocutores privilegiados foi
deliberada e serviu os interesses da colonizao e a eficcia de seu controle: a colonizao
carrega consigo uma perda radical do poder poltico das mulheres, ali onde existia,
enquanto os colonizadores negociaram com certas estruturas masculinas ou as inventaram,
119
com o fim de conseguir aliados (2005: 718) e promoveram a domesticao das mulheres
e sua maior distncia e sujeio para facilitar a empreitada colonial9 (ibidem: 690. Ver
tambm Assis Clmaco 2009).
A posio masculina se v assim promovida a uma plataforma nova e distanciada que
se oculta por trs da nomenclatura precedente, robustecida agora por um acesso
privilegiado a recursos e conhecimentos sobre o mundo do poder. Desloca-se, assim,
inadvertidamente, enquanto se opera uma ruptura e reconstituio da ordem, mantendo,
para o gnero, os antigos nomes, marcas e rituais, mas investindo a posio com
contedos novos. Os homens retornam aldeia sustentando serem o que sempre foram,
mas ocultando que se encontram j operando em nova chave. Poderamos aqui tambm
falar da clebre e permanentemente frtil metfora do body-snatching do clssico
hollywoodiano The invasion of the body snatchers: a invaso dos caadores de corpos; o
crime perfeito formulado por Baudrillard, porque eficazmente oculto na falsa analogia ou
verossimilhana. Estamos frente ao elenco de gnero, mas representa agora outro drama:
outra gramtica passou a organizar seus roles.
As mulheres e a mesma aldeia formam parte agora de uma externalidade objetificada
para o olhar masculino, contagiado, por contato e mimese, com o mal da distncia e
exterioridade prprio do exerccio de poder no mundo da colonialidade. A posio dos
homens tornou-se, dessa forma, simultaneamente interior e exterior, com a exterioridade e
capacidade objetificadora do olhar colonial, simultaneamente administrador e pornogrfico.
De forma sinttica, visto que no tenho a possibilidade de estender-me nesse ponto,
antecipo que a sexualidade se transforma, introduzindo-se como uma moralidade antes
desconhecida, que reduz a objeto o corpo das mulheres e ao mesmo tempo inocula a noo
de pecado nefasto, crime hediondo e todos os seus correlatos (ver Segato 2014). Devemos
atribuir exterioridade colonial moderna exterioridade da racionalidade cientfica,
exterioridade administradora, exterioridade expurgadora do outro e da diferena, j
apontadas por Anbal Quijano e por Walter Mignolo em seus textos essa caracterstica
pornogrfica do olhar colonizador (Quijano, 1992; Mignolo, 2000 e 2003).
necessrio advertir, contudo, de que junto a esta hiperinflao da posio masculina
na aldeia, ocorre tambm a emasculao desses mesmos homens frente aos brancos, o
que os submete ao estresse e lhes mostra a relatividade de sua posio masculina ao
sujeit-los ao domnio soberano do colonizador. Este processo violentognico, pois
oprime aqui e empodera na aldeia, obrigando a reproduzir e a exibir a capacidade de
controle inerente posio de sujeito masculino no nico mundo agora possvel para
restaurar a virilidade prejudicada na frente externa. As relaes intra-familiares com
120
A regio do Grande Chaco na Amrica do Sul composta por regies da Argentina, Brasil, Bolvia e Paraguai
e chaqueos, o nome dado aos habitantes dessa regio sobretudo no Norte argentino Resistencia, Santiago
121
122
11
Sobre esta discusso indico a leitura de Warner (1990), West (2000 [1988]), Benhabib (2006 [1992]), Cornell
(2001 [1998]) e Young (2000).
123
dentro
das
comunidades.
Somente
essa
igualdade
poder
resultar,
124
125
Descrevi esta diferena entre os mundos para as comunidades de religio afro-brasileira Nag Yoruba de
Recife no artigo que citei anteriormente (Segato, 2005 [1985]).
13
Sobre a coemergncia da colnia, a modernidade e o capitalismo com as categorias Europa, Amrica,
raa, ndio, Branco, Negro ver Quijano (1991 e 2000) e Quijano e Wallerstein (1992).
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colonialidade do poder, que permite uma influncia maior de um mundo sobre outro. O mais
preciso ser dizer que o coloniza. Nesta nova ordem dominante, o espao pblico, por sua
vez, passa a capturar e monopolizar todas as deliberaes e decises relativas ao bem
comum geral, e o espao domstico como tal se despolitiza totalmente, tanto porque perde
suas formas ancestrais de interveno nas decises que se tomavam no espao pblico,
como tambm porque se encerra na famlia nuclear e se isola na privacidade. Passa-se
assim, a normatizar a famlia e a impor novas formas imperativas de conjugalidade e de
censura dos laos extensos que anteriormente atravessavam e povoavam a domesticidade
(Maia, 2010 e Abu-Lughod, 2002), com a consequente perda do controle que o olho
comunitrio exercia na vigilncia e julgamento dos comportamentos. A despolitizao do
espao domstico o converte em vulnervel e frgil, e so inumerveis os testemunhos dos
novos modos e graus de crueldade na vitimizao que surgem quando desaparece o
amparo do olhar da comunidade sobre o mundo familiar. Desmorona-se a autoridade, o
valor e o prestgio das mulheres e ao decair sua esfera prpria de ao.
Esta crtica da queda da esfera domstica e do mundo das mulheres desde uma
posio de plenitude ontolgica ao nvel de resto ou sobra do mundo social tem
consequncias gnosiolgicas importantes. Entre elas, a dificuldade que enfrentamos
quando, apesar de entender a onipresena das relaes de gnero na vida social, no
conseguimos pensar toda a realidade a partir do gnero atribuindo-lhe um estatuto terico e
epistmico como categoria central capaz de iluminar todos os aspectos da vida. diferena
no mundo pr-intruso, as referncias constantes dualidade em todos os campos
simblicos mostram que este problema da desvalorizao gnosiolgica do sistema de
gnero ali no existe.
O que mais importante notar aqui que, nesse contexto de mutao histrica,
preservam-se as nomenclaturas e ocorre uma miragem, um mal-entendido, uma falsa
impresso de continuidade do velho ordenamento com seu sistema de nomes, formalidades
e rituais que aparentemente permanece, mas que agora regido por outra estrutura (tratei
desse tema em meu livro de 2007). Esta passagem sutil, e a falta de transparncia sobre
as transformaes ocorridas faz com que as mulheres se submetam sem saber como
contestar a reiterada afirmao por parte dos homens de que sempre fomos assim, e a
sua reivindicao de manuteno de um costume que supem ou afirmam como tradicional,
com a hierarquia de valor e prestgio que lhes prpria. Da deriva uma chantagem
permanente dirigida s mulheres que as ameaa com o suposto de que, em caso de
modificar este ordenamento, a identidade, como capital poltico, e a cultura, como capital
simblico e referncia nas lutas pela continuidade enquanto povo, veriam-se prejudicadas,
debilitando assim as demandas por territrio, recursos e direitos como recursos.
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