Cartografias E Devires - A Construçao Do Presente
Cartografias E Devires - A Construçao Do Presente
Cartografias E Devires - A Construçao Do Presente
Kirst
m ionis
m m
dos autorres
1* edio: 2 2003
Direitos resservados desta edio:
Universidaode Federal do Rio Grande do Sul
C328
SUMRIO
Apresentao / 9
dos autores
Ia edio: 2003
Direitos reservados desta edio:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
C328
SUMRIO
Apresentao / 9
UM OUTRO OLHAR
E vgen B avcar
Evgen Bavcar fotgrafo, escritor e filsofo esloveno naturalizado francs. Cego desde
os 12 anos, vem desenvolvendo um trabalho sobre o estatuto da imagem na contemporaneidade. E doutor em Filosofia e Esttica. Pesquisador do CNRS (Frana), desde 1976
e autor de inmeros livros, dentre os quais Le voyeur absolu (1992).
Traduo de Francis Poulet, estudante de Antropologia em Lyon, Frana; reviso de M a
ria Carolina Vecchio e Freda Indursky.
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23
: Nietzsche, F. Fragmento pstumo do final 1870-abril de 1871, nmero 7 [156], In: KSA,
v. 7 ,p 199.
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KSA, op. cit, v. 11, p. 639s. Esse fragmento desmembrado nos aforismos 16 e 17 de BM.
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q u e e ,d t l 0 m i n a d 0
de V 10ndaoK 7
Todo ato ae
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e nao m 0 va-
me11...
n1 i,tui; todo q u erer, tem que nhpdecer.
obedecer.
con5
~~w
iiiW
ulbiJ
30
11 Ibid
31
comanda e, ao mesmo tempo, se coloca como um com o executante, que, enquanto tal, co-experimenta o triunfo sobre resistncias, porm jul
ga consigo mesmo que seria sua prpria vontade quem propriamente su
peraria as resistncias. Desse modo, aquele que quer acrescenta aos seus
sentimentos de prazer, enquanto aquele que comanda, aos sentimentos de
prazer das bem sucedidas ferramentas executantes, das sub-vontades
serviais, ou das sub-almas - sim, nosso corpo apenas uma estrutura
social de muitas almas.14
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vontade de poder, ou, dito com mais preciso, a primeira exposio con
ceituai dessa doutrina se d no aforismo 22 de Para alm de bem e m al,
que se inicia justamente com uma espcie de elogio velado dafilologia.
Que, como a um velho fillogo que no pde abdicar da maldade de colo
car o dedo sobre ms artes de interpretao, me seja perdoado - mas
aquela regularidade da natureza de que vs fsicos falais com tanto
orgulho, como se - subsiste apenas graas a vossa interpretao e m
filologia; - ela no nenhum contedo de fato, nenhum texto, seno
apenas um arranjo e uma distoro de sentido ingenuamente humanit
rios, com os quais vindes fartamente ao encontro dos instintos democr
ticos da alma moderna!16
Aquilo que se encontra em questo no presente experimento a problematizao do mais aparentemente indisputado dos textos: aquele escri
to pela hard Science, a fsica moderna. Esse texto constitudo pelas leis
naturais, pela regularidades que institui a unidade da experincia, cuja
mxima expresso se condensa na universalidade da lei segundo a qual os
efeitos so produzidos a partir de suas causas. a isso, desde Kant, que se
d propriamente o nome de natureza, a saber, a existncia das coisas, na
medida em que determinada por leis universais.
Para Nietzsche, essa regularidade , em primeiro lugar, interpretao,
no-texto. Em segundo lugar, pode-se dizer que se trata de uma interpreta
o ideolgica, na medida em que representa a consagrao inconsciente
do modo tipicamente democrtico de pensar - dos instintos democrticos,
no vocabulrio provocativo de Nietzsche.
Com efeito, se existem leis na natureza, isso tem, pelo menos, dupla
conseqncia: em primeiro lugar, trata-se de leis uniformes, s quais esto
submetidos todos os fenmenos da natureza - de maneira que, todos so
igualmente governados por tais leis.
Em seguida porque, perante a imutabilidade de tal ordenamento, nada
se pode fazer: como elementos da natueza, todos os homens esto igual
mente submetidos s suas leis; tais leis so universais e necessrias, por
tanto ningum pode modific-las, no se pode seno obedec-las. Mesmo
a pretensa dominao humana da natureza no seno sujeio a essas leis.
Porm, como foi dito, isso interpretao, no texto: e poderia vir al
gum que, com um propsito e arte de interpretao antitticos, soubesse
33
l7lbid.
l8Nietzsche, F. BM. Aforismo 12. In: KSA Op. cit. v. 5, p.262s.
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36
21Ibid.
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Por essa razo, no devemos acenai Vli uia t-opovivu uv ------enquanto no tenhamos levado a seu extremo limite [...] a tentativa de nos
bastarmos com uma s . 24 Isso decorre da prpna definio de mtodo, afir
ma Nietzsche, parodiando o modo matemtico de expresso.
Para que o experimento seja conduzido adequadamente, seria neces
srio conceber o mundo inorgnico como uma form a prvia e mais primi
tiva da vida:
como algo dotado de idntico grau de realidade que aquele possudo por
nossos afetos - como uma forma mais tosca do mundo dos afetos, na qual
se encontra ainda englobado, numa poderosa unidade, tudo aquilo que em
seguida, no processo orgnico, se ramifica e configura [...] como uma es
pcie de vida pulsional na qual todas as funes orgnicas, a auto regulao,
a asimilao, a alimentao, a secreo, o metabolismo, permancecem sin
teticamente ligadas entre si.25
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21Ibid
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vontade - a saber, da vontade de poder, como minha proposio (Satz) suposto que se pudesse reconduzir todas as funes orgnicas a essa vonta
de de poder e nela se encontrasse tambm a soluo para o problema da
gerao e da nutrio - trata-se de um problema ento ter-se-ia adquirido
o direito de determinar inequivocamente toda fora produtora de efeitos
como vontade de poder. O mundo visto por dentro, o mundo determinado e
designado por seu carter inteligvel, seria justamente vontade de po
der, e nada alm disso. 27
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tem por objetivo principal despotencializar ou desacreditar as possiblidades da razo terica ou prtica, mas sim de liber-las das onerosas hipstases metafsicas com que a tradio as sobrecarregou. A objetividade
cientfica conserva, pois, sua especificidade e suas credenciais, sobretudo
aquelas fundadas no rigor metodolgico e no recurso necessrio prova
do acerto emprico das teorias. Essas credenciais, porm, no amparam
qualquer pretenso de acesso estrutura ontolgica da realidade. Para
Nietzsche, elas hipteses fecundas, fces heursticas que expressam a
inesgotvel riqueza d a poiesis humana.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
NIETZSCHE, F., Smtliche Werke, Kristischc Studicnausgabc (KSA), Ed. G Colli
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. F. Humano, demasiado humano, I, 14. Trad. Paulo Csar de Souza. So
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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REDES DO OLHAR
P atrcia G om es K irst
O que est em jogo quando se est a ver? O que dispara a cada movi
mento do olhar? O olhar formado pelo objeto visto? O olhar o precon
ceito primeiro dos sentidos?
Sem dvida, o olhar mistrio vibrante, envolvendo as delcias da
seduo de estar frente a frente com o mundo, com saciar a fome de apro
priar-se de territrios e criar imagens daquilo que se quer ver.
N esse ensaio busco ligar olhar e pensamento ou certa orquestrao
presente no momento de ver. Baseio-me na noo relacionada ao eterno
movimento de criao, movimento, abertura e conexo. Assim, atravs do
conceito de rizoma/rede (Deleuze e Guattari, 1995), procuro estabelecer
uma configurao entre olhar, sujeito e mundo.
O olhar do sujeito desconstri-se e perde-se levado pela vida do ob
jeto, mas imediatamente reencontra-se e reflete-se no visto. A rede do olhar
criada na mestiagem do movimento encadeado na prpria diluio do
sujeito e do objeto em nome do encontro e da atribuio de sentido. A na
vegao pelo objeto/mundo e o encontro de portos no podem ser preme
ditados, mas considerados como efeitos da existncia, da mquina do co
tidiano e do constante exerccio de fluidificar as formas, criando outros
territrios e outros ritmos do tempo. Tal navegao pode ser traduzida como
subjetivao ou o sujeito buscando-se em pedaos de imagem, em lembran
as reavivadas e nas palavras que transbordam do ver...
A rede de cada olhar contm o trabalho do produtor da imagem, suas
intenes e escolhas tcnicas e, em decorrncia, pode-se obter o resgate
do processo de construo de alguns sentidos do texto imagtico ou, da
m esm a forma, traar algumas relaes de territorialidade atravs da itinerncia das tradues atribudas ao visto. Segundo Deleuze e Guattari (1996,
P atrca Gom es Kirst psicloga e m estre em Psicologia Social e Institucional pelo Pro
gram a de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional. Docente, consultora de
projetos de capacitao em RH, pesquisadora e fotgrafa.
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constantes, estados de coisas. A complexidade em jogo na aten , jmagem tem a ver com a impossibilidade de influncias a priori ou
^ao a saber desprendido da experincia, sendo a prpria coexistncia, dada
e un pntemplao, que realiza a conexo entre ambos: olhar e imagem em
Pe a ^lesm a cadncia de tempo - sintonia/sincronia/interpenetrao.
uma '^ara Deleuze e Guattari (1992, p.272) contemplar criar, mistrio
Ho passiva, sensao. Tal sensao de contemplao vai se derraa cx\>pela imagem, na medida em que, ela preenche momentaneamente
man. ,ito da visualizao. Seria como se s fosse possvel ao sujeito perce
bi SUJ <?i mesmo no limite daquilo que vai o compondo durante seu existir.
^er , de expressar algo sobre uma imagem qualquer se pode perceber a
e^idade de um tipo de testemunho mudo, mas que modifica a consisHf06') do instante da visualizao at o surgimento de possveis expresses
(ao ao referente. Seria como um ensaio interno e silencioso de posefn Tt/. atos em relao aos chamados do mundo. A expanso da imagem
Slvei)stura com a experincia do sujeito que pode ser ligada contemna
produzindo, ento, o discernimento e as distines. Em Deleuze
n os# P-135) o sujeito se multiplica em espectros de ateno e se auto'
f*npla quando contempla a imagem, no dizemos eu a no ser por estas
c<^ ' ^stemunhas que contemplam em ns; sempre um terceiro que diz
,, y idia de contemplao refere-se a um sujeito no compacto, que pode
eu ' ,jr em e de si.
Ir e Cada imagem, tomada como rede/rizoma , pois, a partida para uma
. de reflexes que, conectadas tomam-se mapas. As falas dos espectaf * assim, constroem a cadeia de signos da imagem, sendo o rizoma. or m, sempre definido no e pelo fora. Portanto, as imagens s tomam
ima^ o quando cercadas pelos discursos que propiciam. Poder-se-, ento,
sent'lintar: que conexes e leituras possibilitam ou que mutaes as imaPertomam por sua exterioridade?
gen' A metfora da vespa e da orqudea de Deleuze e Guattari (1995, p. 18)
(ta-se importante para a compreenso do conceito de rizoma: A vesrnoS,desterritorializa, tomando-se ela mesma uma pea no aparelho de rePa sjiio da orqudea; mas ela reterritorializa a orqudea, transportando o
Pr jf A vespa e a orqudea fazem rizoma em sua heterogeneidade. Para
pl^,, relao de rizoma/rede acontea, os meios devem ser diferenciados,
!
que*jO possveis as movimentaes territoriais pelo significado que um
sen vem a atribuir e atribuir-se na relao com o outro.
ent: Ento, pode-se pensar, desde tal perspectiva rizomtica que o constru
jtj imagens se desterritorializa no ato de obter imagens, tentando captu
tor |(na mensagem com signos potenciais, para que seu objeto possa se rerar i1dirializar
'
atravs da produo de sentido, inventada por outros olhos. Este
terri1
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cia, ou seja, de homogeneinizao de sentidos e correlaes. Tal centralizamento no se ope aos discursos menos repetitivos que residem no mes
mo espao rizomtico, pois para que as excees possam ser identificadas
devemos ter um parmetro e um tipo de discursiva insistente. Dentro da
macropoltica, que nesse estudo est ligada aos discursos que arrastam o
rizoma imagtico-discursivo para um mesmo plo ou mesmo que desace
leram o potencial de virtualidade da imagem legitimando-a como uma s,
existe algo que escapa, transbordando e se alastrando para novos sentidos,
justamente, em funo de combater ou desterritorializar as imposies das
segmentaridades solidificadas ou afastar uma espcie de esttica linear:
micropoltica/quanta.
Assim, o desejo pode ser pensado como arrastado e aprisionado ou
resistindo e tomando-se recm dito e pensado. Este espao, a princpio ge
nuno, posteriormente pode vir a se tom ar um plo de repetio (as linhas
de escape podem tomar fora e engendrarem um novo ritmo, as mars de
produo de sentido) e, por isso, micro e macropoltica esto definitiva
mente embricadas, apesar de no serem a mesma e de se articularem, ju s
tamente, pela ordem da diferena. Ao passo que a imagem pode gerar am
bas as polticas, pode-se supor que contenha em seu interior territrios que
propiciem tanto linhas, como a difuso das mesmas e, ainda, trnsitos in
determinados. Cada partcula/gro da imagem pode ser transformado em
um sufocamento, em uma transmutao, mas capturado e, a partir disto,
tomado, incontestavelmente, pelos agenciamentos de poder que se impem,
devido sua presena constante entre o espectador e o referente.
Com base em Gabriel Tarde (apud Deleuze e Guattari, 1996), podese pensar a potncia imagtica como um fluxo ou uma crena ou desejo
que pode se propagar em forma de atribuio de sentido (sobrecodificao) de uma cpia mais ou menos desfocada da imagem apresentada com
o intuito de dar conta, generalizar, encontrar uma suposta essncia, crian
do, assim, uma estrutura baseada em um nico eixo e dando a perceber as
possibilidades diminutas de mudana de opinio: macropoltica.
Por outro lado, a dita propagao pode no estar inclinada unifica
o e permite, ento, a produo pela diferena (desterritorializao) ca
racterizada pela hibridez e por um controle menos rgido da produo.
E, principalmente, demonstrando maleabilidade no redirecionamento do
desejo em relao imagem e, conseqentemente, a disposio em ser le
vado por novas cargas de sentido que, por ventura, poderiam no ter sido
percebidas: micropoltica.
Em ambos os fluxos, sentidos partilhados so condio para que a
comunicao seja possvel, fazendo com que as coisas tomem certa visi
bilidade e que o pesquisador ou o produtor de imagens possa tanto produ-
ila pelo construtor da imagem. Tambm pode ser pensado como re-cartografa qualquer discurso relacionado imagem.
Segundo Foucault (1992), o ver e o falar compem o territrio no qual
o saber operado. J o poder se produz bem na separao entre o olho e a
palavra. Entre o olho e a palavra ou a matria fsica e a gramtica, as estra
tgias de promoo de sentido so produzidas. Buscar um sentido para as
coisas vistas um ato, antes de tudo, de investimento de desejo. O poder,
neste sentido, modela o desejo e faz com que o sujeito diga o que acredita
ter visto. Aquilo que dito sobre certa coisa vista a verdadeira coisa, ver
dade esta que se ergue e esvai na prpria produo discursiva. A coisa em
si, sem o dito, de nada serve quando se quer descobrir as cegueiras que o
poder promove. Cada momento histrico, com suas instituies, traz regi
mes de visibilidade/escurido e, como efeito, certas possibilidades de enun
ciao. Tais possibilidades colocam-se virtualmente interiores em cada
coisa/alvo do olhar. O poder reside no espao entre o sujeito e as coisas do
mundo, pois transborda dos objetos e das paisagens quando o sujeito se
dispe a falar. Na produo discursiva sobre o que se v, o visto toma a
intimidade do enunciador e j no se pode separar o visto, o dito e o sujei
to e, em conseqncia, saber e poder.
As discursividades/visibilidades, portanto, so territorializadas con
forme as prticas nas quais os sujeitos, em grupos sociais, esto imersos.
Tudo o que pertence ao cotidiano, est encerrado em discursividade. O
que vemos no dia-a-dia, de antemo, possui comentrios prontos e, at
mesmo, parecem estar inerentes as prprias coisas.
Mas, mesmo com a domesticao do olhar, existem brechas/retomadas para que as coisas tomem algum frescor e novos discursos en
trem em cena. O mundo seduz e, espectador e construtor respondem, re
cortando e atribuindo sentido. A busca da verdade se faz sem perceber, pois
as verdades se impem e lanam seus encantos para que os autores se apro
priem. Segundo Deleuze (1987, p. 16),
a verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos force a pen
sar e a procurar o que verdadeiro. Pois , precisamente, o signo, que
objeto de um encontro, que exerce sobre ns, a violncia. O acaso do en
contro que garante a necessidade daquilo que pensado.
Todos os atores implicados no processo de criao do signo imagtico tm seu papel na construo daquilo que ir ser lido. Construtor da ima
gem, objetos, contexto e cenrio misturam-se em um espao onde suas fi
guras se assemelham a ponto de se tomarem uma s. Todos esto imersos
no discurso social e, se a imagem inventa o discurso dominante, aquele que
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BAKTIN. M. Marxismo e linguagem. So Paulo: Hucitec, 1981.
DELEUZE, Gilles. Crfr/ca e clnica. So Paulo: Ed. 34, 1997.
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de Janeiro: Ed. 34, v.l, 1995.
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. O que a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
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IBANEZ, Toms. Psicologia social construcionista. Mxico: Universidade de Guadalajara, 1994.
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de temporalidade, que caracteriza u 1111I^IVil ICIIIWIIIV/ MMw- ---- serva que a maneira histrica de pensar nunca cobriu a totalidade dos se
res que coexistem num mesmo estrato, que jamais a contemporaneidade
pde ser nivelada pelo tempo homogneo da histria. Ele sublinha que a
disciplina moderna agrupava, enganchava, sistematizava, para manter uni
da, a pletora de elementos contemporneos e, assim, eliminar aqueles que
no pertenciam ao sistema. Essa tentativa fracassou. No h mais, nunca
houve nada alm de elementos que escapam ao sistema, objetos cuja data
e durao so incertas (1991, p. 74). Para Latour, a existncia concreta de
tais seres, os hbridos, que evidencia a contradio do projeto da moderni
dade, apontada pelo ttulo de seu livro Jamais fom os modernos. Ele parte,
portanto, da empiria, de seres existentes na atualidade, paraproblematizar
esse projeto e a concepo de tempo que lhe prpria. E a existncia dos
hbridos, por ele descritos como seres politemporais, que exige a consi
derao de um outro tempo. O paradoxo da modernidade no uma con
tradio lgica. Ele est localizado no real. O real paradoxal, complexo,
portador de diferena interna. E a atualidade, naquilo que ela porta de
novidade, que reduz a distncia entre os plos separados pela modernida
de. a proliferao dos hbridos que faz do abismo entre duas regies on
tolgicas um campo de gradaes contnuas. So eles que, criados pelo
cruzamento de sries heterogneas, operam concretamente a passagem das
regies e dos tempos que a modernidade havia isolado. Conforme vere
mos, em Bergson, ou seja, na ontologia do presente , 3 que Latour busca
elementos para pensar os hbridos.
Latour afirma a existncia de um tempo em que existe a conservao
integral do passado. Ora, essa exatamente a tese que Bergson apresenta
em Matria e memria (1896). A tese bergsoniana que h uma conserva
o integral da memria. Trata-se de uma memria ontolgica e no psi
colgica. Memria tempo, durao. Colocar, em relao a isto que de
nominado memria pura ou passado em geral, a questo de sua sobre
vivncia, do local de sua conservao, partir de um falso problema. Pois
seria, no caso, colocar o problema do tempo a partir do problema do espa
o, como se o tempo precisasse de uma localizao espacial para se sus
tentar enquanto tempo. Para Bergson a memria sobrevive em si, na
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
=E?.GSON. H. (1896). Matria e memria. So Paulo: Martins Fontes. 1990.
BLYDENS, M. (1990), Sahara. L esthetique de Gilles Deleuze, Paris, Vrin, 1990.
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DELEUZE, G e GUATTARI, F. (1980) M ilplats - v.l. Rio de Janeiro: Ed.34 Leas. 1995.
FOUCAULT. M. (1994), Quest-ce que les lumires?. In: D. Defert e F. Ewald
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LASTRUP. V (1999) A inveno de si e do mundo - uma introduo do tempo e do
o nos estudos da cognio. Campinas: Papirus, 1999.
_. "A Psicologia na rede e os novos intercessores. In: T. G. Fonseca e D. J.
Francisco (Orgs) Formas de ser e habitar a contemporaneidade. Porto Alegre: Ed.
Umversidade/UFRGS, 2000.
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no que pode ser compartilhado. Por outro lado, o individual - reinado da for
taleza egica em suas carapaas defensivas - sonha em poder prescindir desta
herana compartilhada. Produz, dessa forma, estas aberraes, que estamos can
sados de ver, de indivduos que desprezam a herana que os constituiu, se ex
cluindo de uma histria que os precede e no podendo reconhecer, na cultura,
quem so seus pais. Mas cuidado, no suficiente uma referncia a uma he
rana, a uma tradio para que estejamos salvos do afogamento solipsista!
Dentro dessa mesma perspectiva, no suficiente reconhecer uma tradio para
garantirmos uma histria e um futuro. Ento por qual caminho?
Saber orientar-se numa cidade no significa muito. No entanto, per
der-se numa cidade, como algum se perde numa floresta, requer instruo.2
Vale, ento, a imagem que podemos deduzir da, de que preciso saber se
perder para poder produzir um encontro. A condio espiritual e produtiva
do perder-se no se resolve com a informao que orienta, mas com as pos
sibilidades de narrar tal experincia. Forcei um pouco essa imagem para poder
introduzir uma outra idia que me parece crucial neste debate sobre a fun
o da cultura e que Benjamin se preocupa em desenvolver, com todos os
seus detalhes, em alguns de seus textos, mas sobretudo no ensaio O narra
dor - consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. Nesse texto, dedicado
a uma reflexo sobre Leskov, escritor russo do sculo XIX, Benjamin con
trape ao declnio da arte de narrar a apologia da informao.
Se a arte da narrativa hoje rara, a difuso da informao decisivamente
responsvel por esse declnio. Cada manh recebemos notcias de todo o
mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A razo
que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras pala
vras: quase nada do que acontece est a servio da narrativa, e quase tudo
est a servio da informao.3
Certamente, a pequena luz que esta idia nos traz nos permite um olhar
crtico e atual sobre o que vivemos hoje. E neste mesmo texto que ele nos
deixa perplexos ao falar que a arte de narrar est em vias de extino, im
plicando uma dificuldade (seno impossibilidade) de intercambiar expe
rincias: As aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que conti
nuaro caindo at que seu valor desaparea de todo.4 No h nenhuma
2 Benjamin, Walter. Infncia em Berlim por volta de 1900. In: Obras escolhidas II. So
Paulo: Brasiliense, 1995, p.73.
3Benjamin, Walter. O narrador - consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras
escolhidas, v. 1., So Paulo: Brasiliense, 1985, p.203.
4Benjamin, Walter. Ibid. p. 198.
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no que pode ser compartilhado. Por outro lado, o individual - reinado da for
taleza egica em suas carapaas defensivas - sonha em poder prescindir desta
herana compartilhada. Produz, dessa forma, estas aberraes, que estamos can
sados de ver, de indivduos que desprezam a herana que os constituiu, se ex
cluindo de uma histria que os precede e no podendo reconhecer, na cultura,
quem so seus pais. Mas cuidado, no suficiente uma referncia a uma he
rana, a uma tradio para que estejamos salvos do afogamento solipsista!
Dentro dessa mesma perspectiva, no suficiente reconhecer uma tradio para
garantirmos uma histria e um futuro. Ento por qual caminho?
Saber orientar-se numa cidade no significa muito. No entanto, per
der-se numa cidade, como algum se perde numa floresta, requer instruo.2
Vale, ento, a imagem que podemos deduzir da, de que preciso saber se
perder para poder produzir um encontro. A condio espiritual e produtiva
do perder-se no se resolve com a informao que orienta, mas com as pos
sibilidades de narrar tal experincia. Forcei um pouco essa imagem para poder
introduzir uma outra idia que me parece crucial neste debate sobre a fun
o da cultura e que Benjamin se preocupa em desenvolver, com todos os
seus detalhes, em alguns de seus textos, mas sobretudo no ensaio O narra
dor - consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. Nesse texto, dedicado
a uma reflexo sobre Leskov, escritor russo do sculo XD, Benjamin con
trape ao declnio da arte de narrar a apologia da informao.
Se a arte da narrativa hoje rara, a difuso da informao decisivamente
responsvel por esse declnio. Cada manh recebemos notcias de todo o
mundo. E. no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A razo
que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras pala
vras: quase nada do que acontece est a servio da narrativa, e quase tudo
est a servio da informao.1
Certamente, a pequena luz que esta idia nos traz nos permite um olhar
crtico e atual sobre o que vivemos hoje. E neste mesmo texto que ele nos
deixa perplexos ao falar que a arte de narrar est em vias de extino, im
plicando uma dificuldade (seno impossibilidade) de intercambiar expe
rincias: As aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que conti
nuaro caindo at que seu valor desaparea de todo.4 No h nenhuma
2 Benjamin, Walter. Infncia em Berlim por volta de 1900. In: Obras escolhidas II. So
Paulo: Brasiliense, 1995, p.73.
3 Benjamin, Walter. O narrador - consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras
escolhidas, v I , So Paulo: Brasiliense, 1985, p.203.
4 Benjamin, Walter. Ibid. p. 198.
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institui os sentidos aos quais deveramos nos curvar. A utopia tem aqui uma
funo de convite imaginao. Ela permite que os sujeitos possam fazer
dos espaos que vivem um lugar. Abre, portanto, lugares para imagens
possveis. Todo ato criativo traz em si uma utopia. O sentido da utopia no
seria, num primeiro momento, de ir em direo ao real mas sobretudo contra
o real. Normalmente, pensa-se em utopia como algo fora da realidade, ilu
so, evaso, fantasia, delrio, projetos vazios. Esta forma de utopia funcio
naria no clssico vetor presente - futuro. Seu horizonte seria sempre de
buscar tomar-se real. Se ficamos restritos a esta perspectiva, tais formas
utpicas perdem sua fora. Como prope Roger Dadoun podemos inver
ter o sentido do vetor e pensar na utopia como um movimento que vai do
futuro ao passado, numa correnteza contra a realidade. A utopia adquire
aqui sua virtude de crtica social.
Trata-se, por conseguinte, de imagens que podem funcionar como n
coras simblicas fundando lugares. Esta voz da imaginao, que tanto deve
ramos esperar dos intelectuais, se consolida quando estes se comprometem,
com sua obra, no debate dos valores do seu tempo. A cultura faz lao social
e por isso no pode se tomar territrio privativo de poucos e zona restrita de
especialistas nem sempre dispostos a lutar pelo bem comum e que facilmente
esquecem a dimenso poltica de uma produo. Se pensarmos a cultura como
viagem, como sugere James Clifford, percebemos que ela cria novos terri
trios de circulao e de vidas possveis. Ela tem que necessariamente estar
presente em qualquer poltica de incluso social.
Se toma cada vez mais necessria uma utopia que cumpra a funo
de despertar e que possa combater as mltiplas faces da violncia a qual
estamos confrontados: a violncia do dogmatismo, a violncia da hegemo
nia das formas do senso comum que impedem o aparecimento do novo,
anestesiando as singularidades, a violncia das discusses polticas vazias
de atitudes.
Toni Negri tem razo. Apesar da catstrofe que parece estar no fundo
da obra de Giacomo Leopardi (por exemplo, a memria dos vrios fracas
sos histricos, como o do sculo das Luzes e da Revoluo Francesa), sua
poesia uma lufada de imaginao, de transgresso e de ressurgncia. Que
o leitor me perdoe o desvio aqui proposto, mas no h como deixar de alu
dir a um dos mais belos textos sobre o tdio e a alegria escritos pelo poeta
italiano, publicado como parte de seus Opsculos morais, em junho de
1827. Chama-se Histria do gnero humano,1
A NSIA DO IMPOSSVEL
Era uma vez uma terra, muito menor do que a nossa, com regies pla
nas, cus sem estrelas, sem mar, homens todos da mesma idade, em suma:
por toda parte havia muito menor variedade e magnifcincia do que hoje.
Contudo, os homens compraziam-se insaciavelmente em observar e admirar
o cu e a terra, consideravam-nos lindssimos, imensos, infinitos tanto em
majestade como em graa, e extraam de cada sentimento incrveis del
cias, crescendo contentssimos, com um pouco menos do que se chama fe
licidade. Mas passada a infncia e a adolescncia, dimuinuiu aquela viva
cidade nos seus espritos. Passaram a andar pela Terra, e perceberam que
Peter Pl Pelbart professor do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Clnica pela
PUC de So Paulo. Graduado em Cincias Sociais pela USP e Filosofia pela Universite
Paris IV (Paris-Sorbone). doutor em Filosofia pela U SP cuja tese se tom ou o livro O
tempo no-reconcihado: imagens de tempo em Deleuze. Seu mestrado pela PUC/SP tam
bm lhe rendeu uma publicao intitulada Da clausura do fora ao fora da clausura:
oucura e desrazo. Publicou ainda A nau do tempo rei e Vertigem por um fio.
1 Giacomo Leopardi, Poesia e prosa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p .311 -321.
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70
NIILISMO E HORROR
E hora de interromper o pastiche que fiz do texto de Giacomo Leopardi sobre a Histria do genero humano, do qual usei trechos inteiros e
deformei muitos outros, omitindo vrias passagens. Meu propsito inicial
desprender-me do encanto que suscitou em mim essa historinha que te
ria agradado a Schopenhauer ou Cioran, grandes admiradores de Leopardi, mas tambm a Nietzsche, no plo oposto da alma filosfica. Qual um
dos motos desse texto? E a idia de uma roda do tdio que arruina o ho
mem e contra o qual o deus luta, a cada vez inventando um expediente novo,
mais engenhoso ou alambicado, seja de diversificao, de tortura, de ele
vao, de aspirao, de humilhao. A idia, de qualquer modo, que a
existncia no basta para dar ao homem a alegria que lhe caberia. Tampouco
o mundo se basta. Tudo advm dessa indigncia, que nenhum deus pode
jamais preencher. Um pouco rapidamente, e de modo expeditivo, vejo nessa
idia como que um horizonte moderno de desencanto, cuja teoria Scho
penhauer desenvolveu com maestria filosfica, e em cujo oco vem alojarse de maneira compensatria a idia de prazer, alegria, felicidade. No
fcil escapar dessa dinmica, o nada e o infinito, a indigncia e a promes
sa, a tortura e o repouso... No est claro, tampouco, a que ponto em Leopardi, assim como em Schopenhauer, no essa uma antecipao vision
ria da absoro da sociedade pela artificialidade capitalista, na sua homo
geneizao indiferente e no misto de tdio e horror que ela inspira.2
O fato que vivemos um momento particularmente aflitivo, no to
cante aos afetos que o contexto social nos inspira. Poderamos evocar os
ltimos acontecimentos em Nova York e o clima de estupor, terror, para
nia, mobilizao blica, mas preciso dizer que a sensao de niilismo
que o atentado apenas escancarou o antecede em muito. Em todo caso,
numa atmosfera dessas falar sobre alegria uma tarefa impossvel, e no
entanto, talvez tanto mais necessria. No belo dirio de Viktor Klemperer, um professor de literatura judeu que descreve o dia-a-dia durante a
' Tom Negri, Lcopardi europen, Futur Antrieur, n 41-42, Paris, 1997, p 17.
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DESEJO E SIMPATIA
Tomemos a questo do desejo. O desejo em Tarde um pleno, no
lhe falta nada, ele um absoluto, uma fora, uma virtualidade que tende
sua atualizao: ele tende a ir ao limite de sua potncia. Mesmo o que cha
ma de desejo aquisitivo encontra sua base, no numa incompletude do ser,
mas numa expansividade essencial, numa ambio propagatriz. Na sua ir
radiao infinita a fora encontra outras foras com as quais ela se com
pe segundo interferncias felizes, ou infelizes, estabelecendo relaes de
comando e obedincia, ou de cooperao. Nessa espcie de metafsica de
Tarde, a fora no faz a experincia da falta, mas do limite, o que outra
coisa. Toda fora se associa ou entra em conflito com outras foras para
satisfazer sua avidez conquistadora, para aumentar sua irradiao e trans
formar o limite num obstculo a transpor.
Concedamos a Tarde esse ponto de partida, sejam quais forem as objees que se possa evocar a respeito. O passo seguinte examinar como
essa fora afetiva opera. Para Tarde, tudo se passa por imitao e inven
o, todos imitam e inventam, imitam e impem variaes ao que imitam,
e a vida social inteira poderia ser reconstruda luz dessas duas constan
tes. Da segue-se que todos e qualquer um inventam, na densidade social
da cidade, no trabalho, na conversa, nos costumes, no lazer - todos inven1 Victor Klemperer. Os dirios de Victor Klemperer. So Paulo: Cia das Letras, 1999.
4 C f M aurizio Lazzarato, Puissances de l 'invention, Paris, Les empecheurs de penser en
rond, 2002.
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tam, mas inventam o qu? Novos desejos e novas crenas, novas associa
es e novas formas de cooperao. A inveno no prerrogativa dos gran
des gnios, nem monoplio da indstria ou da cincia, ela a potncia de
todos e de cada um. Quando eu imito um gesto e submeto esse gesto a uma
pequena variao, por minscula que seja, isso constitui uma inveno, na
medida em que ao ser imitado, toma-se quantidade social, e assim pode
ensejar outras invenes e novas imitaes, novas associaes e coopera
es. Quando foi que o primeiro jovem comeou a usar o bon virado para
trs? Difcil dizer quem foi o inventor desse gesto minsculo que posterior
mente se tomou a marca de toda uma gerao, que ensejou novas associa
es, cumplicidades, hostilidades, agrupamentos, etc.
De todo modo, luz dessa economia afetiva, a subjetividade uma
fora viva, at mesmo uma potncia poltica. Pois as foras vivas presntes na rede social, com sua inventividade intrnseca, criam valores pr
prios, e manifestam sua potncia prpia. E o cjue alguns chamam de po
tncia de vida do coletivo, sua biopotncia. um misto de inteligncia
coletiva, afetao reciproca, produo de lao. Os economistas se deram
conta, nos ltimos anos, que a natureza do trabalho contemporneo soli
cita cada vez mais esses ingredientes. Se pensamos em alguns setores de
ponta, como tecnocincia, mdia, publicidade, so trabalhos que reque
rem mais imaginao do que esforo, mais criatividade do que operaes
maquinais, mais inveno do que repetio, mais solidariedade entre c
rebros do que isolamento solitrio. Nada a ver com o trabalho automti
co, burro e repetitivo cuja verso cinematogrfica est em Chaplin de Os
tempos modernos. Segundo a interpretao de alguns, essa mudana na
natureza do trabalho se deve recusa crescente do trabalho burro e repe
titivo, e expressa a vontade de liberar a inventividade, o que hoje se cha
ma de fora-inveno, e tambm liberar a alegria da cooperao. No
sou eu dizendo, mas os economistas, socilogos. A aspirao dos homens
teria se voltado para a cooperao interpsicolgica, intermental, e pode
mos citar a internet como um pequeno exemplo de concretizao dessa
direo histrica que visa o que Tarde chama de simpatia . A simpatia
como uma potncia constitutiva, um princpio cooperativo, uma relao
social fundamental.
DIFERENA E INVENO
Mas esse princpio de cooperao, de simpatia, todo o contrrio de
uma concrdia homogeneizante. O universo de Tarde proliferante, ml
tiplo, diverso.
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Existir diferir, a diferena, a bem dizer, num certo sentido o lado subs
tancial das coisas, o que elas tm de mais prprio e de mais comum. [...] A
diferena o alfa e o mega do universo; por ela tudo comea [...] Por toda
parte uma exuberante riqueza de variaes e de modulaes inauditas jorra
[das | espcies vivas, sistemas estelares, [...] e acaba por destru-los e renovlos inteiramente [...] Se tudo vem da identidade e se tudo visa e vai iden
tidade, qual a fonte desse rio de variedades que nos encanta? Estejamos
certos, o fundo das coisas no to pobre, to temo, to descolorido quan
to se supe. Os tipos no passam de freios, as leis no so seno diques em
vo opostos ao transbordamento de diferenas revolucionrias, intestinas,
onde se elaboram secretamente leis e tipos de amanh [,..].5
74
A multido
Eu gostaria, de posse desses poucos elementos, fazer uma ponte com
um pequeno texto escrito por Toni Negri h pouco tempo a respeito do
momento que vivemos hoje, nessa estranha transio do moderno para o
ps-modemo. Diz Negri que estamos no fim de uma guerra monstruosa
que cobriu todo o sculo XX e que teve resultados to dramticos como os
da Guerra dos Trinta Anos, vivida no incio do sculo XVII por Descartes.
Mas, acrescenta ele, dessas perturbaes nasce o novo. O novo, em Des
cartes, teve as caractersticas do sujeito individual. Entre ns, tem as ca
ractersticas de uma multido tico-poltica. Mas para ambos, tanto para
Descartes quanto para ns, esse filho recm-nascido [seja o sujeito indivi
dual ou a multido] est sujo com todas as dores de sua gerao. Padece
mos esse momento sem conseguirmos apreender interiormente a alegria
da nova descoberta, e estamos confusos diante da potncia do acontecimen
to assim como, introspectivamente, atordoados com nosso estupor.
Eis o que eu gostaria de articular minimamente: a alegria indizvel
ainda com a descoberta dessa nova figura chamada multido, e a alegria
como fora intrnseca da prpria multido.
Duas palavrinhas sobre a multido. Multido tradicionalmente um
termo pejorativo, ele designava um mundo pr-social que era preciso trans-
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CONCLUSO
Ora, talvez chegado o momento de amarrar algumas pontas disso
que viemos desenvolvendo. Eu pretendi colher alguns elementos que nos
ajudassem a pensar a dimenso poltica da alegria e a alegria como uma
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COMPLEXIDADE,
TRANSDISCIPLINARIDADE
E PRODUO DE SUBJETIVIDADE
Eduardo Passos
Regina Benevides
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COMPLEXIDADE,
7TUNS DISCIPLINARIDAD E
tODUO DE SUBJETIVIDADE
Eduardo Passos
Regina Benevides
>contemporneo enfrenta uma questo importante que goseomo ponto de partida para nossa reflexo. Trata-se do
uma questo especfica, embora no menos difcil e
querem os discutir em sua relao com as noes de
e produo da subjetividade. Estaremos propondo esta
: cere lugar no qual estas trs noes se atravessam. Este lugar
; da subjetividade em uma perspectiva transdisciplinar. Acrediifronteira das disciplinas, na zona de indeterminao que se pro. e possvel tratar o tema da subjetividade em sua complexidade,
falamos de complexidade no queremos este nico sentido
|tf d x n d o pelo senso comum. Complexo no s o complicado,
se explicou ou que insiste como um limite para o conheNa c:r.c:a contempornea, ao contrrio, o complexo apropriesne-s fenmenos cuja explicao exige de ns o esforo de evi; amplificaes reducionistas. Tal esforo resiste a uma tendnommante no campo da cincia modema que, por princpios
s. fazia da explicao uma busca do simples. Explicar, neste
e arreer.der o fenmeno em sua simplicidade. Portanto, o que no
e complicado, precisando ser explicado, isto , simplificado,
s s uas unidades simples.
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uma multiplicidade. por isso, tambm que podemos afirmar que o con
ceito possui contorno indefinido, irregular, j que nunca totaliza comple
tamente seus componentes (do contrrio seria um puro caos).
Mas, se o conceito desempenha funo de todo, isso se realiza para
doxalmente sem que as partes sejam efetivamente totalizadas na unidade
do conceito. Em o Anti-Edipo8 esta idia j aparecia quando diziam que
deve se distinguir o todo que totaliza, que unifica, submetendo seus com
ponentes, subsumindo o diverso na identidade do um e o todo que no
totaliza porque se pe como uma totalidade ao lado das partes. E se
encontramos uma totalidade assim ao lado das partes, um todo dessas
partes, mas que no as totaliza, uma unidade de todas essas partes, mas
que no as unifica, e que se acrescenta a elas como uma nova parte com
posta parte.9
Tomemos o conceito de grupo para dar consistncia a esse sentido de
uma totalidade ao lado. O carter parte do todo faz dele menos um
elemento de homogeneizao de seus componentes do que uma forma de
comunicao aberrante entre partes no comunicantes. Na clssica
conceituao de grupo temos a definio dele como um todo mais do que
a soma das partes.10 O sentido aqui justamente o de uma totalidade que
estabelece, por meio da identificao, uma homogeneizao de suas par
tes, de suas diferenas, estabelecendo entre elas com unicaes
unificadoras. O grupo, tomado como dispositivo de desindividualizao
ou de coletivizao, imprime outro sentido idia de totalidade, j que
est parte, ao lado de seus componentes, atiando a diferenciao, pro
duzindo mil plats.
Esta irregularidade do contorno do conceito lhe garante uma fora
de transversalizao. Cada conceito reenvia a outros conceitos, formando
rede, conexes, tanto em sua histria, quanto em seus devires.
A histria de um conceito diz respeito ao seu movimento de ziguezague, atravessando planos e problemas diversos. Em um conceito h
sempre pedaos ou componentes oriundos de outros conceitos que res
pondiam a outros problemas de planos discursivos diversos. O devir de
um conceito a relao de entrecruzamento dos conceitos situados num
mesmo plano. Cada conceito reenvia a outros conceitos em seu devir ou
em suas conexes presentes. Dizem Deleuze e Guattari: Todo conceito,
possuindo um nmero finito de componentes, bifurcar sobre outros con
8Deleuze, Gilles; Guattari, Flix. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Ja
neiro: Imago, 1976.
9Deleuze, Gilles; Guattari, Flix, op. cit, p.61.
10Lewin, Kurt. Princpios de psicologia topolgica. So Paulo: Cultrix, 1973.
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estabelece entre pensar e ser: para pensar preciso ser. Mas se, em Des
cartes, as funes universalizadora e individual izadora so dominantes,
permitindo a pregnncia do conceito de Eu, no pensamento contempor
neo, outras funes vm tomar o lugar daquelas.
Num artigo publicado na revista Confrontation,13Deleuze afirma que
um conceito no morre quando se quer, mas apenas quando novas fun
es em novos campos o tomam caduco.14 Um conceito, portanto, reali
za funes, pe a funcionar relaes sendo ele prprio feito delas, de tal
modo que melhor construir novas funes e descobrir novos campos do
que ficar preso em um movimento circular crtico-reativo.
Nesse artigo, Deleuze pergunta-se acerca da funo do conceito de
sujeito. P rim eiram en te, ele te ria d esem penhado um a funo de
universalizao no campo do pensamento e da linguagem. Em segundo
lugar, o conceito de sujeito desempenhou uma funo de individualizao,
no campo onde o indivduo uma pessoa que fala e a quem se fala: rela
o eu-tu. So os dois aspectos do sujeito: o eu (je) universal e o eu (moi)
individual.
No pensamento contemporneo, mudanas parecem indicar o apare
cimento de novas funes e a exigncia de novos conceitos. O tema da
sin g u la riz a o o cu p a p ap el de d estaq u e cad a v ez m aior na
contemporaneidade. O singular o que se situa na vizinhana, o que
possui consistncia, formando o plano da multiplicidade no referido a
nenhum sujeito ou unidade preliminar. No lugar da universalizao, vigo
ra a funo de singularidade.
A funo de singularidade substitui, portanto, a funo de universa
lidade. Na clnica pudemos identificar essa passagem quando distingui
mos o caso da clnica da clnica de um caso. A primeira dizendo res
peito experincia da clnica em seu processo de singularizao, isto ,
uma clnica se fazendo ou em constante construo (o plano da clnica). J
a segunda, referindo-se s tentativas de buscar no testemunho fidedigno
do caso a confirmao dos universais da clnica - frmulas tcnicas e
conceitos naturalizados (dipo, castrao, sexualidade).
Contempornea a essa funo, h uma outra que a funo de
individuao no pessoal dos acontecimentos. Pode-se cham ar esta
individuao de hecceidade ou individuaes no pessoais pois revestidas
de um carter neutro, impessoal e impreciso que foge do jogo entre o eu e
o tu. Estas individuaes configuram domnios do indeterminado, isso
que nas lnguas saxnicas se expressaria com a quarta pessoa do singular,
13Deleuze, Gilles. Un concept philosophique. Confrontation, n.20, p.89-90, 1989.
14Deleuze, Gilles, op. cit, p.89
88
15Op.cit, p.89.
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CONHECIMENTO E CARTOGRAFIA:
TEMPESTADE DE POSSVEIS
Patrcia Gomes Kirst
Anglica Elisa G iacom el
Carlos Jos Simes Ribeiro
Lu is A rtur Costa
Giovani Souza Andreoli
91
O HOMEM E O CONHECER/SER
A psicologia, como funo problematizadora do pensamento, tem suas
origens perdidas nas no-fronteiras da histria, podendo ser considerada
atuante nas prticas humanas desde tempos remotos. Os gregos da Anti
guidade, apegados a uma metafsica prpria e a seus universais parajustifcar o saber, perscrutaram as reentrncias do homem, seu conhecer, afe
tos, memria, sentir e agir. As regras lgico-matemticas ou geomtricas
era atribudo um status ontolgico privilegiado: o fundamento da verdade
era o Logos/Nous em sua atividade de obteno do que jamais deixa de ser,
universal, imutvel, transcendente ao sensvel - o inteligvel. Empreitada
justificada pela sua prpria beleza e importncia moral, pois o pice do
92
olhos, mas unicamente atravs de conceitos fixos, aos quais se atribui uma
realidade demonstradamente necessria.
Passado o sculo XVIII, vemos a agonia no pensamento ocidental,
a [...] crise de uma certa cartografia da existncia humana que comea
a se fazer sentir no final do sculo XIX e se intensifica cada vez mais ao
longo do sculo XX - a cartografia do sujeito da razo constitudo no Ilum inismo (Suely Rolnik, 2000, p. 14). O medo e o descontentamento com
os rumos seguidos pelo projeto da modernidade expressaram-se em diver
sos autores. Dois, especialmente afins em suas crticas, so Dostoievski e
Nietzsche.
[...] onde esto minhas causas primeiras, em que me apie? Onde esto os
fundamentos? Onde irei busc-los? Fao exerccio mental e, por conseguin
te, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrs de si outra,
ainda anterior, e assim por diante at o infinito (Dostoievski, 2000, p.29).
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Porm, o que pode ser tomado como uma escolha a sua forma de
investigar, inspirando orientao reflexiva, onde palavra reflexo tem sua
origem em reflexo e, se pensarmos em um espelho, este tem sua partida na
luz que emana do sujeito e retoma a ele oferecendo sua prpria imagem
invertida; tambm interessante apontar que a palavra reflexo tanto pode
ser entendida como ato ou efeito de refletir ou como meditao e prudn
cia. Portanto, a distino de um pesquisador cartgrafo que este intervisto, vendo-se refletido no objeto. Tratar-se-ia de um jogo de espelhos de
inmeras imagens onde desejo/formao/memria do pesquisador criam
reflexos do objeto.
A produo do objeto de pesquisa poderia ser vista como expresso pos
svel das sensaes, percepes e afectos do cartgrafo. Da importa mar
car, novamente, a implicao do cartgrafo com o objeto, pois no temos
percepes, somos percepes e, seguindo esta linha, somos nosso objeto.
Entretanto, a cartografia deve apresentar-se de alguma forma distan
te de seu autor, pois a pesquisa deve ter estabilidade sozinha. Assim, a car
tografia uma semelhana produzida e no a semelhana, uma extre
ma continuidade, um enlaamento. Por isso, para que a cartografia crie
consistncia, deve-se evitar um mal-entendido: pensa-se que cartografias
so produzidas com percepes e sensaes, lembranas ou arquivos, via
gens e fantasmas. Mas, para que se possa ter certa estabilidade na pesqui
sa cartogrfica, certos cuidados devem ser observados - como a coerncia
conceituai, a fora argumentativa, o sentido de utilidade dentro da comu
nidade cientfica e a produo de diferena; enfim, o rigor cientfico.
Para que a pesquisa cartogrfica tenha tal autonomia necessrio que
possua espaos vazios (sua fora de impulso para o fora), de indeterminao, espaos onde a interlocuo possa ser bem-vinda e onde a pesquisa
possa ser repensada no sentido da eterna recriao. O cartgrafo no se nutre
do desejo de conservao de seu pensamento, mas do desejo de pensar, pre
servando, assim, as condies para o instituinte. Na cartografia no se busca
a firmeza de um equilbrio esttico ou avanos em direo verdade en
quanto experincia de eternidade. O cartgrafo um experimentador das
perdas que o conhecimento impe. Ele tambm quer perder-se, pois o
nico modo de ganhar: ganhar a experincia de se rever e de manter um
certo grau de desprendimento perante a pesquisa e conhecimento produzi
do. O cartgrafo se alimenta de uma espcie de intimidade com o mor
rer, o perdido, a finitude e a precariedade de sua perspectiva.
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[...] perceptos desta vida. deste momento, fazem estourar percepes vivi
das em uma espcie de cubismo, de simultanismo. de luz crua ou de cre
psculo, de prpura ou de azul, que no tem mais outro objeto nem sujeito
seno eles mesmos.
A MQUINA CARTOGRFICA
E AS COEXISTNCIAS TEMPORAIS
A cartografia, assim, pode ser pensada como mquina que tem in
corporada a emergncia, a finitude, a criao, a produo/destruio. No
est ligada, portanto, vontade racional fixa, unvoca e representacional,
mas ao inconsciente, que se estende por sobre tudo, para alm da histria
que conhecemos em direo s origens do humano. O maqunico cartogr
fico se caracteriza no porque faz retomar o mundo em forma de fico,
mas porque o mundo recriado adentra o sujeito e pode modific-lo, sobre
vivendo na medida em que opera pontos de vista e encorpa subjetividades. N este sentido, a cartografia se configura, como uma mquina de tipo
exopotico, pois produz mundos, redes de significaes. Tam^ro-pede
ser considerada como mquina autopoitica, pois se produz atravs de uma
dobra, ou seja, como efeito da subjetividade que registra o mundo. Desdo
bramentos e redobramentos, gerados pela pesquisa, podem aproxim-la de
eu papel no engendramento das subjetividades.
Do ponto de vista cartogrfico, existe uma aliana mvel, uma dana
onde o momento do sujeito penetra o momento do objeto, acabando por
formar instantes mtuos nos quais sujeito e objeto somem e fazem surgir
um testemunho do tempo em algum lugar. Como modo de produo de
conhecimento, a perspectiva cartogrfica pode ser reconhecida como
| ... | um ponto de preenso, territrio, dobra securitria, com risco de um
retorno melanclico ao natal, mas tambcm uma linha potencial cujos
pontos podem se redistribuir: distribuio polifnica, variaes de veloci
dade, de densidade de orquestrao [...] (Alliez, 2000, p.497)
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ROLNIK. Suely. O corpo vibrtil de Lygia Clark. In: Caderno Mais! So Paulo:
bollia de So Paulo, 30/4/2000.
101
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H'i vii intocada ou sujeita nova leitura, iluminada pelo referencial marm tu de anlise.
( )s anos 80 trouxeram para os intelectuais brasileiros, na virada da
liiMkira democrtica do pas, a traduo de alguns autores fundamentais
t mu i uma renovao do pensamento: Antonio Gramsci, Walter Benjamin,
' In IH*I 1'oucault, Marshall Berman, Edward P. Thompson. Alguns deles
tMitm mais lidos e difundidos, outros, apenas aflorados, timidamente, nos
iMuili\ mas todos eles indicavam, com as suas reflexes, que a histria
h icMincntava na sua reflexo e pesquisa, alargando o seu campo.
Pura alm do poltico, descortinava-se uma outra concepo do Estailii e do poder, em uma multiplicao de espaos, agentes, prticas e disi ui 'mi'., desvelando estratgias de composio e expondo os ardis dahegeiiiniiiii a tecer-se entre os grupos, alm de revelar os meandros do trabalho
lltlalei mal como construtor de verdades.
Para alm do social, o conceito da classe se reformulava e passava a conVIvpi com outros recortes do social. A classe, fundamentada na produo e
ui ii *a ui la 110 sindicato e no partido, ampliava-se para uma compreenso do seu
flltvi w. o que implicava adentrar nos terrenos do cotidiano, da cultura e dos
>nli ui"., Hssim como se introduzia a noo da diferena, revelando a multiplii iiliu l.* do social atravs dos recortes da etnia, do gnero, da cor.
Pm u alm do econmico, a modernizao cedia lugar idia da motlainidiule, conceito nitidamente cultural para expressar uma experincia
In iliiiini, individual e coletiva, de viver a transformao capitalista do
miiiiilii, lendo a cidade como o seu epicentro.
<bilros espaos, outras fontes, outros problemas passaram a povoar
ii i iimpo de pesquisa dos historiadores. A cidade, os espaos do pblico e
do privado, da elite e do povo, a histria dos subalternos, dos desde baixo,
i mu o ms prticas e sua cultura, a ordem e a desordem. Mulheres, negros,
11 mimosos e bomios surgiram como personagens da histria, ao lado de
tiniu 'Ido. burguesa e aristocrata, a impor seus valores.
( >s historiadores descobriam novas fontes ou voltavam s mesmas,
i oi 11 novas perguntas. Mas, sobretudo, algo de importante ocorria: colin v u a ii para alm dos modelos explicativos da realidade, rompendo
11 ii11 ii*. certezas que desfaziam as perguntas... Os modelos at ento asttmi' '. | previam as respostas, impedindo a aventura do conhecimento
ilmlii poln descoberta!
I )os anos 80 para os anos 90 deu-se a grande virada da histria, com
li liiulmento de uma nova postura, renovada por um outro patamar episiMimilgico de anlise.
Nessas dcadas finais do sculo XX, com a to discutida crise dos paIflillumiis racionais explicativos da realidade, a histria passou por profun
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2Baczko, Bronislaw; Boia, I.ucian, Les imaginaires sociaux, Paris, Payot, 1994.
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passado um pas estranho, onde se fala uma lngua diferente. Para aces
s-lo, h que se despir, na medida do possvel, dos referenciais da poca
da escritura, para mergulhar no mundo dos personagens de um outro tem
po, sob o risco de avaliaes pautadas por valores e juzos de um poca
distinta daquela que se pretende resgatar.
E aqui se chega ao desafio mximo da histria cultural: chegar l,
naquele reduto profundo e de difcil apreenso que so as sensibilida
des do passado: como os homens se representavam e representavam o
mundo, como se expressavam, em termos de valores e idias, sentimen
tos e razes. M as, para isso, h que ter em conta desafios: para o histo
riador, ler a traduo deste mundo interior, mental e sensvel, indivi
dual e coletivo, s se d na medida em que chegarem do passado as ma
nifestaes exteriores, os registros de apreenso acessveis ao pesqui
sador. N esta medida, todo historiador se defronta com este impasse: a
apreenso de um sentimento deve objetivar-se em uma marca visvel,
recupervel pela pesquisa.
Isto desemboca, necessariamente, em um elenco de novas fontes,
qualitativamente diferente e que obriga o historiador a enfrentar mais de
safios... Se tais registros forem de natureza pictrica ou romanesca, obri
gar o historiador e dialogar com novos parceiros, no terreno das artes
ou da literatura. Nesta nova interlocuo, Clio se ver obrigada a abdi
car de sua postura de rainha das cincias para dialogar com tais parcei
ros, que podem estar situados no terreno da arquitetura, da literatura, da
arte, da psicologia.
Estabelece-se como que uma postura interdisciplinar, ou talvez transdisciplinar, mas o importante a registrar que o dilogo se faz sem que a
histria deixe de ser o lugar da fala e da pergunta. Se uma primazia cabe,
aquela do terreno da questo formulada: mesmo tomando imagens do tipo
pintura como fonte, a investigao continua sendo no terreno da histria
porque deste campo que se lana a questo a resolver.
Por outro lado, as fontes, e sobretudo estas que dizem respeito s sen
sibilidades, se apresentam de forma cifrada. Cabe ao historiador enfrentar
o terreno da metfora, da alegoria e do simblico, destas maneiras de di
zer de outra fo rm a , por associao ou contraste de imagens e palavras, que
insinuam um terceiro sentido. A situao com que se defronta o historia
dor da cultural ainda se complica quando se leva em conta que tais inter
pretaes devem se fazer sem cair no reducionismo das codificaes ou
modelo, mas levando em conta tanto a historicidade das significaes atri
budas quanto a recorrncia a certas imagens arquetpicas que se reatualizam e se ressignifcam no tempo e no espao.
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111
CORPOL UMETEMPOIESIS:
O VIVO A SER PESQUISADO
Fa bio D a l M olin
Jos Ricardo Kreutz
Juliana Leal Dornelles
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CORPOIESIS
Diremos, de outra forma - e certamente no o diremos melhor que uma sociedade , ao mesmo tempo, mquina e organismo.
Seria unicamente mquina se os fins da coletividade pudessem
no apenas ser rigorosamente planificados. (Canguilhem, 1966,
p.224)
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priada s condies que lhe so dadas. Ter que tirar partido dessas condi
es, neutralizar-lhes os inconvenientes, e utilizar-lhes as vantagens, em
suma, responder s aes externas construindo uma mquina que no pos
sui nenhuma semelhana com elas. Aqui adaptar-se j no significar repe
tir, mas sim replicar, o que totalmente diverso. (Bergson, 1964, p. 8 8)
3N esse sentido Bergson tambm pode nos ajudar a pensar ao dizer que [...] os fatos
mostram-nos que a transm isso hereditria constitui exceo e no regra. Como esperar
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I 17
118
TEMPOIESIS
At agora nosso corpolumetempoiesis j teve um primeiro olhar lan
ado sobre si mesmo e em direo ao leitor que tem interesse de aprendei
sobre a geomorfologia desta perspectiva de pesquisa. Esse monstrinhc
comeou dizendo que ele funciona como um sistema que se auto-inventa, que se realimenta com outros sistemas por acoplamentos estruturais e
tambm que isso tudo auto-regulativo como nos termostatos. Tambm
este monstrinho, nas suas traquinagens cientficas, ousadamente disse que
a linguagem um sistema acoplado ao corpo e que amenizar o mau chei
ro e lavar as mos pode ser um corpo produzido pela linguagem, den
tro de um perfeito funcionamento adaptativo e autopoitico. Mas, para
avanarmos, precisamos fazer uma dobra na intencionalidade deste texto.
Agora ele no quer mais falar da especificidade organizativa e concreta do
vivo na nossa pesquisa, mas aproveitar os sinais que formam dados anterior
mente no que dizia respeito de como podemos lanar nosso olhar investigativo sobre o sistema vivo. Para isso necessariamente teremos de acoplar
a este corpo um outro sistema que o compem: o tempo. Para o pesquisa
dor que quiser realmente aprofundar mais a noo do vivo da pesquisa a
partir de uma demanda de entender o contemporneo, necessrio que
pensemos o tempo, pois este nos lanar para a razo mais ontolgica dos
fenmenos. Para isso, necessrio que tomemos como premissa que o tem
po o que qualifica e diferencia os fenmenos. Que faz os fenmenos du
rarem e se comportarem como se fossem vivos igual aos sistema referidos
anteriormente. Ou seja, o tempo nasce com a vida.
Esta a razo ontolgica. Que as coisas duram; que o jeito mais inte
ressante de pensarmos as coisas pela durao que vai construindo o sis
tema vivo. A durao nos dar a idia da provenincia da vida. A caracte
rstica desta durao dir que os caminhos pelos quais o corpo percorrera
ao auto-inventar-se tem o seu estfo no tempo. Vejamos como Bergson ir
nos situar nessa questo. Para isso ele pensa no nosso viver o vivo e diz:
[...] a nossa durao no um instante que substitui outro instante: se assim
fsse. jamais haveria presente. No haveria prolongamento do passado no
atual, no haveria evoluo, nem durao concreta. A durao o progres
so contnuo do passado que ri o futuro e incha avanando. Visto que o
passado incessantemente cresce, tambm se conserva indefinidamente. A
memria conforme tentamos provar, no a faculdade de classificar recor
daes em uma gaveta ou de as inscrever num registro. No h registro,
no h gaveta, no h sequer, aqui. propriamente uma faculdade, porque
uma faculdade age por intermitncias, quando quer ou quando pode, ao
passo que o amontoar-se do passado sobre o passado prossegue sem tr
guas. (Bergson. 1964. p.44)
12
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6Aquilo que j morreu, estamos aproximando aqui ao que Bergson chama de fenmenos de
destruio orgnica. Veja como ele ir entender a pesquisa por esta perspectiva: [...] O
estado de um corpo vivo ter sua explicao completa no estado imediatamente anterior?
Sim, no caso de se admitir, a prori, a assimilao do corpo vivo aos outros corpos da
natureza, e a sua identificao pela necessidade da causa, com os sistemas artificiais sobre
os quais operam o qumico, o fsico e o astrnomo. Mas em astronomia, ou fsica e em
qumica, a proposio tem sentido nitidamente determinado: significa que certos aspectos
do presente, importantes para a cincia, podem ser calculados em funo do passado imedi
ato. Nada semelhante existe no domnio da vida. Neste, o clculo abrange, quando muito,
certos fenmenos d destruio orgnica. Mas quanto a criao orgnica, os fenmenos
evolutivos que constituem propriamente a vida, pelo contrrio, nem sequer vislumbramos
como os poderamos submeter a um tratamento matemtico. (Bergson, 1964, p.57)
123
LUMEPOIESIS
Com este tpico o leitor ser convidado a adentrar no universo infi
nito das linhas de fuga que compe, como plats, um plano de consistn
cia que emerge da pura imaterialidade de um plano de imanncia. Assim
como so produzidas formas fixas e territrios homogeneizantes, tambm
so produzidos pontos de resistncia. E sobre essa produo que iremos
falar, relacionando o plano da reflexo terica sobre os modos de subjeti
vao com uma produo teatral contempornea. E sempre bom lembrai
que toda obra de arte um acontecimento, uma produo do vivo. A nossa
124
126
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TRABALHO E CONTEMPORANEIDADE:
O TRABALHO TORNADO VIDA
Anglica Elisa G iacom el
Angela Pena Ghisleni
M ay te Raya Am azarray
Selda Engelman
PPGPSI-UFRGS.
137
Simoni Missel, Cludio D Amico e Nara Mello (2001) citam outros fato
res de empregabilidade tambm considerados: equilbrio emocional, dis
posio para o aprimoramento tcnico e pessoal constante, capacidade de
estabelecer metas claras, comprometimento e criatividade, comunicao
adequada e capacidade para o trabalho em equipe.
Especialistas em orientao profissional, conforme Oliveira (2001),
indicam que o maior desafio para o iniciante no mercado de trabalho o
de se desligar de conceitos herdados como o de que um bom trabalho
aquele que oferece estabilidade e remunerao elevada. A tendncia das
relaes aponta para o desapego ao conceito de emprego. No ter empre
go no pode significar no ter trabalho. Outra orientao oferecida a de
que, no mundo globalizado, deve-se desfazer as amarras que impedem a
decolagem, tanto em relao famlia e moradia, quanto em relao
prpria profisso. Quem deseja um bom trabalho deve ser flexvel a ponto
de abrir mo da formao inicial para desempenhar outras atividades que
o mercado exija. Viajar, tomar contato com outras culturas, comunicar,
conectar, trazer experincias de bero, entre outros, mais do que diferen
ciais, parecem estar se tomando ditames de padro.
A contemporaneidade prope, portanto, uma flexibilizao em rela
o ao prprio conceito de trabalho, no fixando apenas o emprego, mas
considerando tambm outras formas de contratos, como o servio de ter
ceirizao, o trabalho autnomo, informal, temporrio, voluntrio, as co
operativas e os estgios. Da mesma forma, a importncia de operar com o
conceito de qualidade em todas as funes - no apenas na produo de
trabalho, mas nas relaes entre colegas e clientes - mostra-se como outra
condio insistentemente marcada. A demanda que tais conceitos sejam
encarnados na maneira de ser e agir dos trabalhadores.
Pode-se dizer, assim, que tal perfil exigido para os trabalhadores, de
fine no somente modos de trabalhar, mas modos de ser. O objetivo deste
artigo abordar tal relao entre trabalhador e trabalho, problematizando-a
com o auxlio do maquinrio conceituai de autores como Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Flix Guattari e Toni Negri. Para tanto, toma-se necessrio
explorar alguns de seus conceitos para entendermos algo desta situao em
que demandas profissionais de carter tcnico misturam-se, na atualidade,
cada vez mais, com demandas pessoais de carter subjetivo.
138
ficasse com ele por toda a sua vida, que o operrio encarnou essa potncia
de produo dentro de seu prprio crebro, [...] (Negri, 2001, p.27).
Para Negri, a ferramenta de trabalho est encarnada no crebro, mas,
lembremos, a partir da concepo do homem como um todo, em que o c
rebro faz parte do corpo, congregando no s funes cognitivas, mas tam
bm tudo o que pertence ao sentir. O trabalho se constri, portanto, a partir
das ferramentas encarnadas, apropriadas, que so a prpria vida posta em
produo. E, colocar a vida em produo significa colocar em produo
os elementos de comunicao da vida, pois a vida individual se torna pro
dutiva no momento em que entra em comunicao com outras ferramen
tas encarnadas. A linguagem, como forma de comunicao, toma-se fun
damental neste processo produtivo.
Acontece que a linguagem, como o crebro, est ligada ao corpo, que
no se exprime simplesmente de maneira racional, mas atravs das potn
cias de viver, das potncias expansivas, de liberdade que o autor chama de
afetos. Portanto, a vida afetiva se toma uma das expresses da ferramenta
de trabalho encarnada no corpo e o controle capitalista se intensifica ju s
tamente nessa potncia de agir das pessoas. Seguindo essa lgica, a em
presa possui formas de controle mais sutis e mais eficazes, uma vez que
engolfa o trabalhador pela participao, gerando a iluso de uma intera
o democrtica.
Ora, se a prpria vida que posta disposio da produo, como
no estar totalmente comprometido com a empresa? Ou melhor, nem pre
cisamos realmente de UMA empresa para estarmos trabalhando, pois o
processo produtivo extrapolou os limites fsicos e invadiu as casas, o tem
po livre, as relaes familiares. O trabalhador contemporneo encontra-se
em situao de total dedicao s atividades profissionais. Sua vida tor
nou-se seu trabalho.
PRODUO DE SUBJETIVIDADE
Se, hoje, os modos de trabalhar passam por tal transformao, urge
questionar as implicaes desta nos modos de subjetivao.
A tradio moderna de cincia nos ensinou a conceber subjetividade
como indissociada da idia de indivduo. Legado do cartesianismo, o proleto epistemolgico da modernidade delimitou em seu horizonte o prop
sito de depurar do humano sua essncia cogitam. E, esperava-se da psico
logia o cumprimento desta misso investigativa com o intuito de alcanar
o sujeito puro da razo, ou seja, o sujeito epistmico, aquele pronto para
conhecer, livre de suas implicaes mundanas.
141
142
Guattari (1992) nos ajuda compreender esta idia que tentamos com
por a respeito de subjetividade com a noo de fluxos. E, junto com Deleuze (1976), resgata aspectos da filosofia de Bergson (como as relaes
de tempo e espao) que nos permitem pensar esta dobra, a subjetividade,
em termos de sua processualidade, de movimentos permanentes de vir a
ser, de devir, a partir das trocas de fluxos com o que exterior a seus po
ros, com o fora.
Subjetividade , ento, algo sempre construdo, fabricado, produzi
do nos encontros, acoplamento de fluxos que no se cansam de pedir pas
sagem medida mesma em que so cortados em agenciamentos maqunicos de produo. E o desejo , nesta configurao, o fluxo agenciador dos
encontros, que potencializa e potencializado pelo outro, produz o si na
medida em que produz o outro.
Por isso, podemos falar em modos de subjetivar, ou seja, regimes de
regulao de fluxos que permitem ou desautorizam determinados acopla
mentos com o outro, seja este o trabalho, a famlia, o conhecimento, a reli
gio, a arte. Assim, os processos subjetivantes podem ser capturados por
determinados modos de fazer, pois esto sempre em relao com uma tra
ma de saberes estratificados e estratgias de poder.
Embora possa parecer por demais categrico, urge denunciar que o
capitalismo j descobriu isso h muito tempo. Inventou novos modos de
investimento social do desejo, apropriando-se das operaes maqunicas
de corte-fluxo a que Deleuze e Guattari (1976) denominam esquizo.
CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA
Esquizo (do grego schzo) significa justamente separar, cortar, fen
der, e os autores j citados remetem a esta perspectiva sua concepo de
formao social. Tal como se processa a produo de subjetividade, assim
liimbm sobre o corpo social correm fluxos que a sociedade esfora-se por
codificar, instituindo pontos de corte, plos interceptores. Cada sociedade
leve, assim, conforme a sua poca, um axioma desde o qual codificavam
seus fluxos e instituam regimes prprios de corte/conexo dos mesmos no feudalismo, por exemplo, os regimes de propriedade de terras, de tro
cas, de casamentos, etc. - embora sempre algum fluxo escape das opera
es de corte. O ocaso de uma formao social d-se no momento em que
iifio consegue mais manter sob o jugo de seus cdigos, a despeito de qualquei aparato repressivo ou busca de novos axiomas, os fluxos que esca
pam e escorrem torrencialmente.
143
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147
148
OS MATERIAIS DA AUTORIA
Regina Orgler Sordi
149
ENTRE EM AUTORIA
Cruz (1999) lana uma pergunta instigante: Como se aprende aqui
lo que no se pode ensinar? (comunicao oral). H coisas que no se pode
ensinar, mas que se aprende neste intervalo, nesta distncia, nesta incon
gruncia entre um e outro ou nesta incongruncia consigo mesmo. Podei amos pensar, j distantes da noo de aprendizagem como resultado de.
(|ue aquilo que se ensina no corresponde ao que o outro aprende. No h
uma correspondncia ou correlao, mas sim, um entre o que se ensina
e o outro aprende, espao de transformao, em que algo novo se gera
"Entre no deve ser confundido, ento, com passagem ou com ponte.
( 'hristlieb fala em uma nova materialidade, uma terceira realidade, que no
est dentro, mas que tambm no est fora, mas entre, que encarna numa
terceira natureza, inquantifcvel e impecavelmente real (p. 51).
Acompanhando o pensamento deste autor, a noo de entre deve
ser substantivada, sujeito em si mesma, que permite falar, no de uma reuiiio de experincias ou coincidncia que est entre dois significados, mas
do significado que estk entre dois e todos.
Nas origens do desenvolvimento do aparelho psquico, Winnicott des
creveu, desde a psicanlise, um fenmeno transicional, um entre estrut ui ante da vida de relao e determinante das capacidades humanas de brini ui, pensar e criar. Este autor conceituou uma fase na qual o ego do beb
i onge ao mundo como se ele fosse parte de si mesmo e separado, ao mes
mo tempo. Enfatiza que o beb e sua me nunca questionam tal distino.
I ssa iluso mantida: a de que o beb controla e cria o mundo, um mundo
que satisfaz suas necessidades na medida em que elas so demandadas. A
I I uio de um objeto que seja tanto interno quanto externo referido como
ii ei latividade psquica primria. De acordo com Winnicott, o ego do beb
adquire a habilidade para criar um objeto devido ao bom cuidado mater
no, o que significa que a existncia da me, por um perodo de tempo, est
lolbrida a esta preocupao maternal primria. E a este objeto autocriado
que Winnicott chama de objeto transicional e a este espao, entre o beb e
a mile, de espao transicional e que representativo de uma fase do desen
15.1
154
DIFERENAS EM AUTORIA
Espao e tempo transicionais so a matria prima para que o sujeito
se singularize, trabalhe sua diferena.
Costumamos pensar que autorizar-se diferenciar-se:
Para construir um pensamento, principalmente, necessitamos diferenciarnos de... Ento, para que a criana possa dizer "no gosto que meu pai me
155
ofenda tem que construir uma ideia, dar-lhe um nome, ela precisa diferen
ciar-se daquilo, porque seno, eu sou m. me comportei mal e papai me
respondeu, o que no o mesmo. (Femndez, 1998, p.47).
156
157
158
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160
161
177
182
2 O termo capitalstico foi forjado por Flix Guattari (1986) durante os anos 70 para
designar um modo de subjetivao que no se achava apenas ligado s sociedades ditas
capitalistas, mas que caracterizava tambm as sociedades, at aquele momento, ditas so
cialistas, bem como as dos pases do Terceiro Mundo, j que todas elas viveriam numa
espcie de dependncia e contradependncia do modelo capitalista. Por isso, do ponto de
vista de uma economia subjetiva, no haveria diferena entre essas sociedades, pois elas
reproduziriam 11111 mesmo tipo dc investimento do desejo no campo social
183
ft
lncia constante do espao que ele ocupa em cada momento (na escola, na
fbrica, na priso, etc.), e nele imprimindo uma cadncia ritmada no tem
po a partir de uma programao de seus gestos, que ser tanto mais eficaz
quanto mais se tome automtica e retire todo vestgio de vontade do cor
po. Por outro lado, recorrendo a um modelo de racionalidade, organiza
do em tomo de uma regra de equivalncia geral (segunda dobra), que pro
duz, ao mesmo tempo, uma segmentao e uma homognese dos univer
sos de valor, que as foras que atravessam esse campo de intensidades se
ro dobradas para constituir um novo tipo de relao consigo, que, daqui
para a frente, ser territorializada sobre a idia de individuo. Esse novo
territrio subjetivo permite a esse indivduo reconhecer-se ao mesmo
tempo como sujeito e objeto de conhecimento (terceira dobra). Essas trs
dobras preparam o ponto de inflexo para a criao da quarta dobra desse
modo de subjetivao, garantindo, a partir da, sua operacionalidade. A
quarta dobra se constitui por um movimento de dupla captura: ao mesmo
tempo em que so criadas duas sries dicotmicas - o indivduo, de um
lado, e a sociedade, de outro - , no cessam de proliferar todos os tipos de
mediao para estancar o trabalho de hibridao entre essas duas sries,
produzindo assim o que poderamos chamar de uma individualizao do
social caracterizada pelo achatamento e a sistemtica homogeneizao da
experincia subjetiva.3
Essas quatro dobras no podem ser dissociadas: cada dobra segue a
outra e a precede, tudo isso simultaneamente, pois elas fazem parte de um
mesmo campo de intensidades e so expresses de um certo tipo de rela
o de foras que, neste caso, caracteriza a subjetivao capitalstica.
A principal caracterstica desse modo de subjetivao a de em
baralhar' todos os cdigos: na medida em que opera a apropriao das
foras produtivas dentro de novas relaes de produo sustentadas pela
diviso entre o dentro e o fora, provoca, simultaneamente, a abolio sis
temtica de toda relao a uma exterioridade. A armadilha da subjetiva
o capitalstica traduzir-se-ia portanto em um movimento de dupla cap
3 Podemos dizer que a expresso psicologia social atualiza a lgica inerente a esse
modo de subjetivao: ela pressupe que se aceita a separao entre individuo e socieda
de como dois plos distintos, dilatando assim cada vez m ais a experincia de uma subje
tividade privatizada a partir de uma proliferao da idia de individuo e de uma naturali
zao da noo de social. Em funo dessa separao, e inclusive para alirm-la, a maior
parte das teorizaes no campo da psicologia social no cessa de fazer proliferar todo tipo
de mediao entre esses dois plos (o que, em realidade, no faz seno aum entar a distn
cia entre eles), construindo assim todo um campo de conhecimentos a partir de um pro
blema mal colocado, ou seja, a partir dessa dicotomia.
184
tura que implicaria forjar a separao entre estes dois registros (o dentro
e o fora) e, ao mesmo tempo, romper com tal diviso j que a lgica ine
rente dinmica capitalstica uma lgica inclusiva, fundamentalmente
desterritorializada e homogeneizante, que no cessa de fabricar riqueza
e misria ao mesmo tempo e em todos os lugares. Isso significa que a
lgica capitalstica no opera por excluso e sim a partir de uma estrat
gia de incluso diferencial (cf. Hardt, 2000, p.365). Deste modo, nada
escapa ubiqidade do seu poder.
A partir da segunda metade do sculo XX podemos perceber um novo
tipo de arranjo dessa lgica capitalstica, traando o esboo de uma tercei
ra configurao do social. Isso no significa que o campo de intensidades
das demais configuraes no continue reverberando na experincia con
tempornea: as problemticas que atravessam respectivamente o campo assistencial (primeira configurao) e o campo dos sistemas de regulao das
relaes entre trabalho e capital (segunda configurao) continuam presen
tes. Elas simplesmente perdem seu impacto como princpio organizador
de um certo arranjo do campo social em funo de outros elementos que
passam a habitar este campo, remetendo a novos problemas que, por sua
vez, engendram uma outra configurao do social, marcada agora pela
volatilizao do poder capitalstico.
Ns podemos dizer que esta terceira configurao caracteriza-se ba
sicamente por uma revoluo tecnolgica e ciberntica que produz um novo
arranjo do tecido social a partir do advento de novas tecnologias resultan
tes dos avanos da informtica. Este conjunto de novas tecnologias aliado
a uma concentrao de poder do capital financeiro internacional d condi
es para a criao de uma nova ordem mundial, um mega-mercado pla
netrio conhecido pela expresso globalizao. A globalizao implica
no somente a eliminao de limites bem definidos (ausncia de frontei
ras)4 como tambm uma acelerao da velocidade que se traduz pela si
multaneidade dos acontecimentos. Deste modo, podemos dizer que a prin
cipal caracterstica dessa terceira configurao do social estabelecer no
vas coordenadas nas relaes de tempo-espao, criando uma superfcie lisa
para a expanso ilimitada do capital que vai sem dvida afetar os modos
de existncia em escala planetria.
Vejamos como as quatro dobras de que falamos anteriormente, atua
lizam a lgica subjacente ao modo de subjetivao capitalstico nessa ter
ceira configurao do social: chegamos a um estgio de modelagem con
4 Evidentemente que esta eliminao das fronteiras apenas existe quando se trata de de
fender os interesses dos pases que ditam as regras deste modelo, configurando-se portan
to numa liberalizao seletiva das regras do comrcio mundial.
185
5 Podemos pensar em alguns exemplos para entender o modo pelo qual essa gesto de
microconflitualidades se operacionaliza atualmente: na famlia, atravs da proliferao
dos m anuais de orientao aos pais; na educao, por meio da implementao de uma
estratgia de formao permanente, e no trabalho, pela flexibilizao (leia-se fim)
de uma legislao trabalhista.
186
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Gallimard.
187
191
dro Salles, artista plstico residente em Braslia, (1955, Belo Horizonte M G) que me fez pensar o tempo, percorrendo algumas trilhas desenhadas
por outros autores e artistas.
Esta reflexo fruto de um encadeamento de lembranas que surgi
ram ao mesmo tempo em que tomvamos contato com o tema central da
exposio. No farei economia das respectivas citaes, pois, mais do que
ilustrar ou apoiar este trabalho, elas iro constituir-se como o prprio tex
to, como uma espcie de colagem ou jogo de memria.2
Rememoramos, por exemplo, Mareei Proust, que seguiu em busca
do tempo perdido. Michel Butor, tambm escritor francs, pensou as mo
dificaes nas coisas e nos seres enquanto um trem segue pelos seus ca
minhos de ferro.3 Butor que escreve um livro sobre o emprego do tem
po e este segue sendo, obviamente, o seu personagem principal.4 Alm
de nos remeter aos meandros de nossa relao com o tempo que passa,
Butor nos lana intempestivamente ao cerne da problemtica acerca da
constituio do eu. Em uma de suas entrevistas, ele vem a comentar que
nada puramente exterior a ns, ou puramente interior. Segundo ele, in
seridos nesta lgica, ns somos sempre muito menos daquilo que acre
ditamos ser. Esta colocao nos interessa particularmente pelo seguinte:
possvel um esquecimento do eu enquanto este est a constituir-se? O
que somos, finalmente? Gostaramos de desenvolver aqui uma reflexo
sobre a linguagem, pois reconhecemos nela o que de mais verdadeiro
existe como produo individual. O que Butor faz, ento, lembrar-nos
constantemente que ns somos a nossa linguagem, nossos objetos, a de
corao que est em tomo de ns em nossas casas. Somos a nossa fam
lia, o nosso meio, e o tempo que faz.
Evandro Salles traz tona, nas fotografias expostas, sua memria do
mundo, em seu tempo preciso.
O que Sigmund Freud inaugurou, com a inveno da psicanlise,
foi a reflexo sobre o tempo do/no inconsciente. Jacques Lacan, seguin
do esta rota, relendo Freud, desenvolveu uma teoria em tomo do tempo
lgico. Heidegger nos ofereceu o seu Ser e tempo. Ser tempo? O que
pois o tempo?
Vejo o tempo como uma dobra, e no como uma linha estendida, estica
da, marcada por pontos aqui e l. Vemos o tempo enquanto seqncia, e a de-
2 Tambm necessrio dizer que os ttulos dos trabalhos do artista esto presentes no
texto com tipo de letra diferenciada, permitindo o leitor o acompanhamento de tal cadeia
de associaes.
3Butor, M., La modification. Paris, Ed. Rombaldi, 1970 (1. ed. em 1957)
4Butor, M ., L 'emploi du temps, Paris, Ed. Minuit.
192
REVER O TEMPO
Eu sou aquele
que o tempo no mudou
Embora outro, eu sou o mesmo
Eu sou um mero sucessor
A minha estirpe
Sempre esteve ao seu dispor
Me d ouvidos que eu lhe digo quem eu sou
Pricles Cavalcanti
193
tava dos livros. Eu ficava mais vendo do que lendo as estrias.5 Seu gozo
talvez fosse o de se defrontar com a possibilidade de passar de uma pgina
a outra, de uma imagem a outra, de distintas realidades. O que fica a idia
de passagem, de continuidade. Ele tambm entrega-se ao olhar uma mu
lher absorta em sua atividade de tranar seus cabelos, o que motiva-o a re
gistrar atravs da fotografia, estes gestos.
O etemo retomo faz-se atravs do temo contorno das coisas ao nosso
redor. Os objetos tm seu valor prprio, acrescido de nossos afetos. Quan
do olhamos algo de forma especial, e o escolhemos como nosso, algo nas
ce da ordem do resgate. Cada vez que registramos sua imagem, deposita
mos nele nossos fantasmas e uma parte de nossa memria. No queremos
esquecer de ns mesmos. Talvez por esta razo, tendemos a repetir.
O conceito de repetio guarda em si o seu paradoxo. H, ao mesmo
tempo, na necessidade de repetir, a sua impossibilidade. No h como re
produzir o mesmo. A repetio traduz nosso desejo de recuperao de um
lugar, de um objeto, de um momento. Na verdade, a busca de recuperao
do mesmo a nossa maneira de resistir passagem do tempo. Doa em
quem doer, ningum quer morrer, canta Arrigo Bamab. Ningum quer
esquecer. Todos querem vingar-se da perda. O esquecimento do eu, doeu.
A voz de um poeta, no filme Terra em transe de Glauber Rocha tam
bm nos alerta para a riqueza de imagens presente em objetos e sensaes
muito prximas de cada um de ns e, paradoxalmente, o conseqente es
quecimento de ns mesmos nos bifurcados caminhos entre fantasia e rea
lidade, entre vida e morte:
Quando a beleza superada pela realidade,
Quando perdemos nossa pureza nestes jardins de males tropicais,
Quando no meio de tantos anmicos respiramos
O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais,
Ou quando fugimos das ruas e dentro da nossa casa
A misria nos acompanha em suas coisas mais fatais
Como a comida, o livro, o disco, a roupa, o prato, a pele,
O fgado de raiva arrebentando, a garganta em pnico
E um esquecimento de ns inexplicvel,
Sentimos finalmente que a morte aqui converge
Mesmo como forma de vida agressiva.6
105
O DESCANSO DA MODELO
Limite do difano em. Por qu em?
Difano, adifano.
Se por os cinco dedos atravs,
porque uma grade, seno uma porta.
Fecha os olhos e v.
James Joyce
197
198
zia ele: Eu imaginava o tempo como uma grande tela, um grande pano
branco, onde eu poderia depositar tudo, tudo, tudo, sem perder nada. No
podemos deixar de sublinhar aqui a necessidade de repetir o vocbulo tudo,
retendo imediatamente o seu sentido. J o poeta brasileiro Waly Salomo,
em seu Poema Jet-Lagged anuncia Escrever se vingar da perda / Em
bora o material tenha se derretido todo, igual queijo fundido.9
Indo para alm do desenho, que no poderia mais dar conta deste con
torno disforme, derretido, Evandro Salles optou pela fotografia, apresen
tando-a em sries. Ele tambm no quer perder.
Em uma das seqncias fotogrficas apresentadas, h uma refern
cia explcita noo de esquecimento. Nesta proposio, o que est em jogo
o interstcio entre o finito e o infinito. Tudo poderia recomear de novo!
Sua trana, seu sorriso. As imagens de um rosto feminino traduzem um
desejo que no da modelo e sim do fotgrafo. O esquecimento sempre
um ideal, porm a realidade nos agarra em algum lugar de nosso corpo.
Esquecer-se de qualquer outra realidade seno a de seus pensamentos, e
esta foi a regra inicial. No traduzir em feio suas emoes. Para alm de
um piscar de olhos, o enigma de uma relao a dois. Eu e Tania olhando
pensamentos. Um homem e uma mulher. Um homem e um homem. Uma
mulher uma mulher. Uma rosa uma rosa uma rosa. E o mundo re
dondo, confirma-nos Gertrude Stein.
Cada srie composta por uma determinada quantidade de cpias fo
togrficas, variando entre 12,24 e 36 poses, conforme, evidentemente, a pe
lcula comprada no comrcio. Esta tambm um outra regra do artista. No
determinar por si mesmo um nmero qualquer. Ele j vem prescrito na cai
xinha do filme. No somente uma relao de acaso. Apenas despreocupa
o com algumas escolhas, afinal, preza-se uma certa cegueira... Pequeno
sonho. Mas o que importa que para cada srie existe a primeira fotografia,
a marca inicial, o ato inaugural. A partir do Um, possvel contar.10
A histria comea quando acaba e acaba quando comea. O conceito
de passado nos interessa, j que estamos falando do tempo e de alguns es
quecimentos. Mas, quando que comea o passado? Ningum o sabe. Ou
melhor, no h outra coisa seno o passado. Ao que Jeanne Marie vem dis
cutir, dizendo que reiteradas vezes ouvimos queixas filosficas acerca da
transitoriedade do tempo humano: _
num s
canculou os seus compromissos
subiu pelos balaustros,
gritou um nvil nominho ninfantil, nue, nue [...]
Pricles Cavalcanti/Augusto de Campos
203
204
dos e em uma certa escuta visual. Diz gostar de ir aos museus e escutar o
som dos passos daqueles que olham silenciosamente uma obra de arte. Aos
poucos, foi-se adaptando as mudanas no ritmo de vida que a cegueira pro
voca, e buscou distinguir nas descries das imagens aquilo que exprime,
antes de mais nada, os fantasmas daqueles que observam o quadro.
Evgen Bavcar no nasceu cego. Sua infncia foi marcada por momen
tos dramticos. Seu pai morreu quando ele tinha 7 anos. Aos 11, um galho
fere o olho esquerdo. Durante meses eu olhava o mundo com um olho
s.13Porm, pouco tempo durou o que parecia ser uma sorte. Mais tarde,
um detonador de minas feria o seu olho direito. assim que ele relembra:
Eu no fiquei bruscamente cego, mas pouco a pouco, ao longo dos me
ses, como se se tratasse de um longo adeus luz. Em seus escritos, este
filsofo faz constantemente lembrar a diferena entre ver e no ver. Como
ter acesso ao mundo visvel? Como se estrutura o olhar de um cego? Ele
atesta ter a necessidade do olhar do outro sobre si e sobre suas fotografias:
o sonho da coisa inacessvel me levou um dia a tirar minhas primei
ras fotos. claro que sem nenhuma pretenso artstica, pois o desafio es
ttico s me vagamente acessvel. A superfcie lisa das imagens tiradas
pelo aparelho fotogrfico no se dirige a mim. Eu s tenho um resqucio
material de paisagens e de pessoas que eu vi ou encontrei. Assim, meu olhar
s existe pelo simulacro da foto que foi vista pelo outro. Eu me contento
com esta grande inutilidade.14
J ouvimos um poeta perguntar-se pela utilidade das palavras, ou da
poesia em si, lembram-se? E as imagens, nos so teis? No cansamos de
repetir esta mesma pergunta. Estamos agora diante de um testemunho acer
ca de sua inutilidade, que afirma, porm: Tenho necessidade deste olhar
do outro para quem as imagens se animam em meu interior.
Por qu associar as nuvens cegueira? Talvez haja aqui um elemen
to importante de nossa anlise. A nuvem figura e faz figura. Ela no re
presenta nada, apenas se faz presente. Somos ns que atribumos sentido
aos esboos esvoaantes em jogo de luz e sombra. Como sempre, ce soul
les regardeurs quifont Je tableau15Evandro Salles tenta uma equivalncia
entre corpo humano e nuvens, l onde poderia ser possvel esquecer-se do
eu. Nossos modos de subjetivao, no entanto, impedem-nos de subtrair
completamente um maior grau de identificao com as mos, as bocas, os
rostos e os movimentos dos braos de uma mulher.
205
O que , pois, o olhar para um fotgrafo? O que pode ser, por conse
qncia, o olhar para um cego? Eis uma tentativa de resposta formulada
por Bavcar:
Talvez seja a soma de todos os sonhos dos quais esquecemos a parte
do pesadelo, quando nos colocamos a ver as coisas de outras maneiras. E
depois, as trevas nada mais so do que uma aparncia, dado que a vida de
todo ser humano, to sombria quanto seja, feita tambm de luz. E da
mesma maneira que o dia se ilumina freqentemente com o canto dos ps
saros, eu aprendi a distinguir a voz da manh da voz da noite.16
O aparelho fotogrfico que registra cus e nuvens cumpre a difcil ta
refa de aproximar-mo-nos daquilo que nos distante. Porm, o que signi
fica aparelho? Pierre Kaufman nos diz que a idia de aparelho, e aqui tam
bm podemos pensar em aparelho da memria, esta ligada s de lugar, de
espao, de localizao, de processo, de funcionamento, de conjunto, de
sistema, de modelo, de mquina. Todas essas idias nos interessam forte
mente, pois assim como Evandro Salles configura sua exposio como um
objeto potico, ns podemos associ-la a uma espcie de aparelho que re
presenta o que no conhecemos para nos permitir conhec-lo, ou pelo me
nos imagin-lo e constru-lo.17
Somente a partir do esquecimento do eu que se produz algo parti
cular. A produo artstica a reside. O trabalho O descanso da modelo, que
escapa srie, que exige um lugar privilegiado, especfico, foi anunciado
como obra da exposio. No entanto, no se fez presente. Foi esquecido
em casa? Trata-se de uma fotografia em grande formato da modelo des
cansando. O fato dela estar sozinha, de ser uma pea nica talvez a te
nha impedido de participar de um contexto onde a idia de repetio este
ve permanentemente implcita.
16idem, ibidem, p. 16
"K aufm ann, Pierre (org) Dicionrio enciclopdico de psicanlise - o legado de Freud e
Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.45.
206
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210
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213
11CT Jos (ill, /I confuso como conceito In Os anos 80. Culturgest, Lisboa, 1998
215
216
13G. Deleuze et F. Guattari, Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrnie, 1730 - Devenirmtense, devenir-animal, devenir-imperceptible [...], Plateau 10; 1730 - Devir-intenso,
devir-ammal, devir-imperceptivel [. . .], Plat 10, deM ilplats, v.. 4, trad. Suely Rolnik.
Ed. 34, So Paulo, 1997.
14 Cf. N ietzsche, Considrations intempestives, U tilit et inconvniant des tudes
historiques, paragraphe 1; citado por G. Deleuze et F. G uattari, in Mille Plateaux.
Capitalisme et schizophrnie, 1730 - D evenir-intense, devem r-anim al, devenirimperceptible [...], Plateau 10; p.363; Mil plats, v. 4, trad. Suely Rolnik. Ed. 34, So
Paulo, 1997.
218
TEMPOS EMPILHADOS
E ESPACIALIZADOS:
QUESTES SOBRE A SUBJETIVAO
NO PROCESSO CRIATIVO
DE TRABALHOS PLSTICOS
C ludia M aria Frana Silva Gozzer
Cludia M aria Frana Silva Gozzer, natural de Belo Horizonte, artista plstica e
professora auxiliar na Universidade Federal de Uberlndia, onde leciona disciplinas nas
reas de Desenho e Expresso Tridimensional. Atualmente mestranda em Poticas visu
ais pelo Instituto de Artes da UFRGS e bolsista CNPq. Seu projeto de pesquisa intitulado
(iravidade por um fio: o peso e a leveza em um projeto de instalao, e dever ser defen
dido em maio de 2002.
1Nunca foi despropositado assemelhar a forma do barroco profundidade curvilnea de
uma orelha; circunstncia que lhe valeu ser designado na Baviera do Sul, por estilo de
orelha. Emdio Rosa de Oliveira, Profundidade. In: Pereira, Paulo (coord.) Dicionrio
da arte barroca, Portugal, Lisboa Editorial Presena, 1989, p .387.
210
220
se faz. H uma perspectiva tica nessa atitude do artista que tais consi
deraes procuram salientar.
Sueli Rolnik autora de um desses textos. Ela prope-nos um percur
so em direo ao interior de uma subjetividade, tendo a pele como estrutura
de acesso, que, se num primeiro momento da ordem da estabilidade, pare
de que determina as diferenas do fora e do dentro, medida dessa viagem,
vai se transformando em estrutura vibrtil, permevel s oscilaes exter
nas e escoando-as para dentro. A cada nova reao do interior do indivduo
com o fora - a cada dobra sofrida pela pele, a autora nomeia de diagrama:
cada vez que um diagrama seforma, a pele se curva novamente [...] cada
modo de existncia uma dobra da pele que delineia o perfil de uma deter
minada figura de subjetividade.5 nesse sentido que podemos perceber a
carga de transitoriedade e flexibilidade que assum e o processo de
subjetivao: um processo que desterritorializa quaisquer tentativas de se
fixar tempos e espaos. Melhor seria dizer que dentro e fora no seriam
mais categorias fixas do espao, mas situaes espaciais: cada linha de
tempo que se lana uma dobra que se concretiza e se espacializa num
territrio de existncia, seu dentro. [...] Cada figura e seu dentro dura tanto
quanto a linha de tempo que a desenhou [...]. 6
Entretanto, esse processo no se d de maneira assim to simples. Se
essa relao do indivduo com o meio promove uma certa homeostase, h
dentro de todos ns, como que um dentro cristalizado, uma rvore aves
sa aos trnsitos, sempre a postos, dotando a pele de filtros que permitem
entrar somente o fora conveniente. Cria-se, na radicalidade dessa crista
lizao interna, uma situao de inconciliabilidade : um mal-estar dado
pela impossibilidade de superao dessa tenso. Essa seleo do fora
interrompe o fluxo natural do tempo, culminando na modalidade de inter
rupo drogadio de identidade :
O viciado em identidade tem horror ao turbilho das linhas de tempo cm
sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaam a tal ponto que para
sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se, deixando vibrar em sua pele,
de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que no ponham em risco
sua suposta identidade. Este homem se v ento obrigado a consumir al
gum tipo de droga se quiser manter a miragem de uma suposta identidade.
[...] Obviamente, ele nunca chega l, j que l uma miragem. E quanto
mais se frustra, mais corre atrs; e quanto mais desorientado, estressado.
5Rolnik, Sueli. Subjetividade, tica e cultura nas prticas clnicas. Cadernos de subjeti
vidade. So Paulo: PUCSP, v .l, n .l, 1993, p.305-313; p.306.
Mbid., p.307.
221
222
223
dados por Malevitch. Se para este artista o passado era encarado como um
obstculo, isso implicava em um conceito de inventividade que admitia o
novo, um conceito de criao que compactuava com a postura moderna
em geral. Assim, para ele havia uma instncia criadora, que ele denomina
de vazio criador, de onde provm as formas e os objetos do mundo da
cincia. Essa idia, entretanto, foge da noo de transcendncia que ali
menta a Filosofia at o fim do sculo XIX. Sua arte, pelo contrrio, se
visualizarmos o quadrado preto ou o quadrado branco sobre fundo bran
co, nada diz dessa transcendncia, mas de uma imanncia que se traduz
na prpria superfcie do quadro, ele ento sendo visto na sua prpr a
objetualidade. Malevitch criou a denominao superfcie plana pictural
para designar o que considerava ser a grande inveno modema das artes
plsticas, ao se desprender da funo representativa.13 Esse plano no
representacional significaria, assim, a autonom ia da pintura e sua
desvinculao a qualquer funo externa a si mesma.
Num caminho diferenciado do de Malevitch, Deleuze14 chega a essa
potncia de criao, denominada de plano de imanncia . Um plano do
qual nos servimos na criao de nossa subjetividade, o caos originrio do
qual tudo provm. Nossa subjetividade, entretanto, no como organizadora
desse caos, mas advinda dele, de um inconsciente maqunico : um in
consciente que se autoproduz, que este plano a partir do qual todas as
formas so criadas, onde o que importa no o resultado obtido (o sujei
to), mas os deslocamentos ou os agenciamentos15 (a subjetivao). Che
gamos assim idia de que, se o inconsciente maqunico opera na forma
o de uma subjetividade por uma riqueza processual de agenciamentos,
de maneira analgica isso se d com o sujeito-artista e se d na arte con
tempornea, especificamente aquela derivada das experimentaes dos
anos 60 e 70, cuja fora e interesse esto calcados no espao entre a con
cepo inicial de uma idia e sua provvel concretizao. Algo que se
assemelha assim ao termo poiein, um resgate do prprio termo fazer. O
fazer artstico pressupe uma descontinuidade de ao e tempo, a ao do
acaso como co-estruturador s avessas da obra. O inconsciente maqunico
operando, portanto, no espao do intervalo: o coeficiente artstico esti
224
pulado por Duchamp, como sendo uma relao aritmtica entre o que
permanece inexpresso embora intencionado, e o que expresso no inten
cionalmente.16
2. CRIAO EM PROCESSO...
N esta segunda parte que se inicia, gostaramos de desenvolv-la uti
lizando produes tericas ainda provenientes dos campos da psicologia e
da filosofia, mas que pudessem estar norteando idias e reflexes sobre o
processo criativo em arte.
Tomemos inicialmente as reflexes de Pierre Lvy, acerca dos con
ceitos de virtual, atual, possvel e real.17 Esses termos adjetivam proces
sos que se do com as substncias e os acontecimentos, cada par - virtual
com o atual, possvel com o real, passando de uma latncia a uma ocorrn
cia. Para o autor, essas maneiras de ser - o chamado quadrvio ontolgico
- acontecem todas juntas, em qualquer situao ou fenmeno, sem uma
linearidade ou uma hierarquia entre elas.
Em relao ao par po ssvel/rea l, Lvy coloca sobre a carga
fantasmtica que perpassa o possvel. Ele visto como um real ainda no
realizado, no manifesto. Entre o possvel e o real h uma relao de
especularidade cujo diferencial repousa apenas na existncia real do
real, em detrimento da possibilidade do possvel. Se ambos se asseme
lham, a passagem de um estado para outro no envolve necessariamente
um ato criativo: O possvel exatamente como o real: s lhe falta a exis
tncia. A realizao de um possvel no uma criao, no sentido pleno do
termo, pois a criao implica tambm a produo inovadora de uma idia
ou de uma figura. A diferena entre possvel e real , portanto, puramente
lgica.18 No entanto, o par virtual/atual trabalha com a idia de proble
ma e de soluo, o virtual sendo visto como complexo problemtico e o
atual solucionando esse complexo, at que um outro problema se anuncie.
A atualizao aparece ento como a soluo de um problema, uma soluo
que no estava previamente no enunciado. A atualizao criao, inv en
o de uma forma a partir de uma configurao dinmica de foras c fina
lidades. Acontece ento algo mais que a dotao de realidade a um poss-
16Duchamp, Marcel. O ato criador. In: Gregory Battcock, A nova arte. So Paulo: Pers
pectiva, 1975. p.73.
17Lvy, Pierre. O que virtual? So Paulo: Editora 34, 1996.
"Ib id , p. 16.
225
19Ibid, p 16-17.
20Ibid, p. 18.
226
2:
228
26Isso implica em outra questo que a diferena posta pelo autor em relao ao conct
de existncia no alemo (Dasein) e no latim (existere), significando, respectivamei
assumir uma presena e abandonar uma presena. Assim, o autor questiona: tudi
passa como se o alemo sublinhasse a atualizao e o latim a virtualizao Pierre I A
op.cit., p 20
37 Ibid, p.67.
28Ibid., p.70
29Jean-Pierre Vernant, La nmerte en los ojos: figuras dei otro en la antigua Grecia, Bar
celona, Gedisa, 1986. H que se fazer tambm uma referncia a Roger Caillois quando
coloca-nos sobre a psicastenia, espcie de prtica mimtica exercida pelo homem, como
necessidade de integrao ao ambiente e como condio formadora de sua identidade:
[...] v-se claramente manifestado a que ponto o organismo vivo faz corpo com o meio
onde vive. Em tomo dele e nele, constata-se a presena das mesmas estruturas e da ao
das mesmas leis. To bem que, a bem da verdade, ele no est num meio e a prpria
energia que ele recorta, a vontade do ser de perseverar em seu ser, se consome exaltandose e o atrai j secretamente em direo unifonm dade que escandaliza sua imperfeita
autonomia. Cf. Caillois, Mimetismo e psicastenia legendria. Revista Che Jbui, Porto
Alegre, v. 1, n.0, 1986, p.68.
30Pareyson, Luigi. op. cit., p.78.
230
Coluna de tecidos
O que aqui chama-se de coluna um empilhamento de diversos
tipos de tecidos brancos tendo como limites o cho e o teto de um determi
nado lugar. Esta idia ainda no se vinculava a um local especfico ou a
uma engenharia que a mantivesse de p; suas nicas especificidades
eram a cor branca dos tecidos e a forma verticalizada. O que se pode
perceber ai apenas um apelo formal e matrico. Ao entrar na Pinacoteca
do Instituto de Artes da UFRGS (lugar onde ser exposta), o que me cha
mara primeiramente a ateno fora a coluna de concreto existente no es
pao. Assim, no projeto para a instalao que ser ali executada, e da qual
a coluna de tecidos participa - resolvi povoar a rea prxima da coluna
com outras duas colunas - pseudocolunas - que respeitam a mesma rea
da base e altura do elemento modelo. Na pseudocoluna em questo, cada
unidade (tecido envolvendo uma pea de roupa branca), ser empilhada
repetidamente, de maneira a preencher a rea da base da coluna de con
creto e respeitando-se o p-direito da galeria.
Paralelamente a essa adaptao formal do estudo nova realidade
espacial, ao organizar velhas agendas e cadernos, percebia quantas pesso
as queridas haviam passado por minha vida, bem como outras que se tor
naram desafetos, relacionamentos comuns, passageiros ou passveis de
esquecimento. Ao list-las, deu-se o insight de, ao invs de trabalhar sim
plesmente com tecidos empilhados, pedir a cada uma daquelas pessoas
uma pea prpria de roupa branca para que constitusse a coluna. Poste
riormente, organizei os nomes em ordem cronolgica, para direcionar o
empilhamento das roupas. Os contatos que no puderam ser efetuados,
seja por morte, mudanas e no-reciprocidade, sero apresentados na co
luna por meio de toalhas brancas virgens.
E possvel pensar nesta pseudocoluna assumindo uma estreita rela
o com o corpo e com a identidade, sendo admitida como uma espcie de
auto-retrato conceituai. Este fora o eixo de pensamento para a concepo
de um trabalho bem complexo. Isto porque, em tese, nunca se concluir, a
232
acontecem ora nas roupas, ora nos tecidos envoltrios. Dobrar tambm relaciona-se prpria insero de movimento no interior da matria, determi
nando o surgim ento da form a-unidade que se repetir por meio do
empilhamento. Se a dobra faz duplicar a espessura do plano, este passa a ser
um plano-potncia. Por meio da dobra, no se pode mais pens-lo somente
como rea, mas como medio volumtrica. Ele converte-se em tridimenso.
O plano responde como uma mola, em que a altura da forma resultante
parece ser a projeo de uma unidade padro que desdobra-se ao infinito, ou
at que atinja um obstculo (no caso da coluna, o teto).32
234
ENSAIO FOTOGRFICO
Este ensaio fotogrfico o exerccio visual de relatar, por meio de 12
imagens de slides, passagens do tempo. Como j estava envolvida no pro
cesso de instaurao da pseudocoluna de tecidos, algumas questes desse
trabalho naturalmente foram direcionando a escolha do tema do ensaio.
Destaco inicialmente o aspecto da textura da coluna, dado pelo processo
de empilhamento dos tecidos e roupas. Outro fora o aspecto escultrico da
33 Benjamin. A origem do drama barroco alemo p.68, apud Jeanne M arie Gagnebin,
Histria e narrao em W. Benjamin. So Paulo: Perspectiva/Fapesp, 1998, p. 17.
34Gagnebin, Jeanne Marie, op. cit. p 17
236
"P ro u st, Marcel. A sombra das raparigas em flor. 2. ed., traduo de M ario Quintana.
Porto Alegre: Ed. Globo, 1957.
16Benjamin, Walter, imagem de Proust, op.cit.; Jeanne M arie Gagnebin, op. cit., Cristina
Rauter,T memria como campo intensivo: algumas direes apartir de Deleuze, Nietzsche
e Proust, op.cit.
237
METAFORAS DE SONHOS
C larice A verbuck
APRESENTAO
Este trabalho o fruto da re-elaborao de reflexes feitas h mui
tos anos, cuja escritura retomada quase na sua totalidade, com certas
modificaes, numa nova leitura, como uma espcie de re-apropriao
do sentido, achados posvindouros ao texto passado - ou ao passado do
texto - o que no alheio ao tema mesmo da reflexo: a relao do indi
vduo com o tempo e com a memria e suas construes progressivas que
lhe do acesso ao pensamento e ao smbolo.
Ns o concebemos como metforas que se desenharam em nossa
imaginao e cujo primeiro trabalho de escritura j lhe dera um lugar na
realidade objetiva, como uma impresso ou revelao de um filme que
J000/2001
I oi igmal do presente texto foi elaborado em francs e traduzido pela autora cm maio de
/ O i l , A n citaes das obras em francs so tambm tradues da autora.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ANZIEU, Didieu Crer Dtruire, Paris, Dunod, 1996.
AVERBUCK, Clarice (1999), Un essai d'interprtation de Meurtre d'me' partir
du quadre thorique de Wilfred Bion", a ser publicado no Bulletin du Groupe Lyonnais
Rhne-Alpes de Pychanalyse, N 53, XIX me Anne, Lyon, 2002. Trad. br. de C.
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251
252
A CIDADE SUBJETIVA
Tania M a ra G alli F onseca
25
I - AS CINCO-PELES
Para Hundertwasser, a metfora da PELE revestida de uma vigoro
sa expressividade por nos passar a idia de permeabilidade e plasticidade,
permitindo a criao de espaos onde forma e contedo se confundem e se
produzem recproca e inseparavelmente. A pele como envelope do incor
porai, delimitadora de um espao do corpo habitado por foras e intensidades. Interface suscetvel aos movimentos, ao dobrar-se e ao desdobrarse, superfcie de inscrio e acolhimento das foras exteriores, fronteira de
um dentro e de um fora, mesmo que se venha a problematizar a questo da
inexistncia de um interior do corpo.
Para o artista, existiriam cinco-peles, quais sejam: a epiderme, o ves
turio, a casa, o meio social e o meio global. Imbricadas e coexistentes, as
peles se intercomunicariam no de modo arborescente, hierrquico e cen
tralizado, ou seja, a partir da conscincia e vontade de um sujeito, que ope
raria como centro do processo. Fora e dentro, mundo e sujeito no existi
riam mais como realidades dadas, mas produzidas na relao passaria a ser
considerada como a constituidora dos termos. Isto nos leva a buscar o re
gistro das diferenas nas repeties como ferramenta de produo de rup
tura e anlise. No h, pois, desde esse olhar, um sujeito que possa vir a
ser apreendido a priori, identificando-se a, uma espcie de construtivismo, cujo modo de produo faz do humano, um efeito de articulaes con
tingentes de elementos mltiplos e de diversas naturezas. Humano-inumano
amalgamados nas densas corredeiras dos acontecimentos, demandando
tom ar audveis e visveis, em um instante imediatamente posterior, os jor-
254
Psicogeografia, que tem como dispositivo principal o locomoverse, a errncia, faz-nos ver a cidade como texto que comporta mltiplas
tradues, porque seus traados mostram-se como apropriaes espaciais,
256
como aventuras de viagem, viagem aberta para a experincia da alteridade. O objeto urbano de uma grande complexidade, podendo ser con
cebido como topografia existencial produzida pelos caminhantes ao an
dar e produtora de relatos de viagens cuja importncia reside, justam en
te, na ordem do invisvel, do ainda no captura pelo discurso, mas que
nos indica a existncia de uma espcie de vazio, ainda livre da presena
dos cdigos e dos regimes de poder. Um vazio como tentao ao desejo,
espao de passagem para uma errncia feita com o pensamento, com a
memria e com o sonho.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BARROS, Regina Benevides de; PASSOS, Eduardo. A construo do plano da clni
ca e o conceito de transdisciplinaridade. In: Psicologia: teoria e pesquisa, jan-abr,
2000, v. 16, n.l, p.71-79.
CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Cia das Letras, 1990.
CERTEAU, Michel. A inveno do cotidiano. Artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1994.
FRAYZE-Pereira, Joo. Crise e cidade. Por uma potica do acompanhamento
teraputico. In: Crise e cidade. Organizado pela Equipe de Acompanhantes teraputicos
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NEGRI, Toni. Exlio, seguido de valor de afeto. So Paulo:Iluminuras, 2001.
RESTANY, Pierre. O poder da arte. Hundertwasser. O pintor-rei das cinco peles.
Lisboa: Taschen, 1999.
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265
A NARRATIVA E O IMEMORIAL
Trabalhar sobre a narrativa remete a uma discusso sobre o tempo, o
espao e a memria imbricados ao prprio ato de contar, sobre o conceito
de inveno e fico, de histria e verdade e sobre as estratgias produzi
das do que se supe articular desde esta narrativa.
Michel de Certeau (1998)20 trabalha sobre a narrativa como uma arte
do dizer e do fazer a histria diferenciando-a da tcnica de descrio, no
relato no se trata mais de ajustar-se o mais possvel a uma realidade
[...] e dar credibilidade ao texto pelo real que exibe. Ao contrrio, a
histria narrada cria um espao de fico (p. 153). A narratividade, neste
sentido, supe uma teoria do relato indissocivel de uma teoria das prti
cas, como sua condio mesma de existncia e do modo do tempo vivido
como durao, em que o passado subsiste no presente continuamente en-
l9Foucault, Michel. Microfisica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
20Cearteau, Michel de. A inveno de cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
266
:l Rauter, Cristina Mair Barros. Clnica do esquecimento: construo de uma superHcie 1988. Tese de Doutoramento (Doutorado em Psicologia Clnica) - Pontilicia Univer
sidade Catlica de So Paulo.
267
corpo h muito tempo alterado jamais sem o saber. Esta escritura originria
e secreta sairia aos poucos, onde fosse atingida pelos toques. [...] tocada
pelas circunstncias, como o piano que produz sons aos toques das mos.
(op. cit., 1998, p. 163)
Deste modo, a dupla contar/escutar vai tecendo uma nova rede, en
trelaando pedacinhos de tem po perdidos a um a cadeia tem poral
estabelecida, fixada em datas, horas e lugares, compondo uma histria
onde se ressuscitam fantasmas, tomando presentes as ausncias. A repeti
o deste ato permite compor e recompor a imagem que cada gerao tem
das anteriores, aciona-se a reversibilidade do tempo e com este a produ
o de prticas e afetos.
Assim, o contar uma histria pode remeter o sujeito que fala busca
de um sentido, de uma compreenso, principalmente quando se ingenu
amente indagado sobre este lugar de origem, quando o ouvinte tenta en
contrar nesta fala sobre a histria, uma procedncia que tambm justifi
que a sua herana transmitida. nesta via que o pesquisador, ouvinte e
futuro escritor de histrias, pode se encontrar na posio de bloqueador de
sentidos, depara-se a com o equvoco do mesmo, da perpetuao dos ca
pitais, da priso muda do modelo identitrio e do seu lugar de agente desta
reproduo do social.
A possibilidade de escuta e acolhimento de outras histrias atravs
das mesmas palavras que vinham se pronunciando, buscando uma verda
de homogeneizante, impe a circulao do sujeito por diferentes disposi
tivos e circuitos de produo de subjetividades tramadas por entre outras
verdades e certezas, pondo em questo aquelas, atravs das quais
pretensamente o sujeito vinha se constituindo. Possibilita-se que a fala
saia do lugar de representao, de comunicao intersubjetiva, para ocu
par um lugar de criao, como um dispositivo acontecimental (Lus
Cludio Figueiredo, 1994, p. 151 ).22 Neste sentido, a prpria lgica da
identidade toma-se passvel de desconstruo diante da pluralidade de
formas rizomticas e conexes plugveis encontradas enquanto canais de
subjetivao. Como efeito destas miscigenaes, novos sujeitos constitu
em novos grupos e subgrupos. Entre outras verdades, estes se organi
zam, muitos instituindo ainda modelos identitrios. As intensidades, re
sultantes da afetao produzida por este processo de produo de diferen
as, definem as novas modalidades em reconhecimento. O limite que dis
tingue a heterognese como devir de diferena ou modelo de identidade
22Figueiredo, Lus Cludio. Escutar, recordar, dizer, encontros heidcggerianos com a
clnica psicanaltica. So Paulo: Educ/Escuta, 1994.
268
REGISTRO - ESCRITA
Se o contar e o escutar compem, constituem redes de traduo em
busca da criao de sentidos, tambm o registrar e escrever o contado
podem vir a ser problematizados da mesma forma.
A partir de relatos contados por membros desta famlia e por antigos
funcionrios do Grupo Empresarial, foi-se construindo um grande mapa,
inicialmente um rabisco no que j se anunciava a dobradinha empresa
familiar/ famlia empresarial como problemtica a ser analisada. No mapa,
traou-se a trajetria percorrida por esta famlia. Esta constituda por
uma ecologia social e cognitiva que significa e resignificada por aqueles
que ali passam. O mapa, quando o prprio objeto movimento, confun
de-se com seu prprio objeto (Deleuze, 1997, p.73),23 no caso, o trajeto
percorrido e os sujeitos que o percorrem. O prprio escrever sobre este
case se fazer objeto deste mapa, fazer parte desta trajetria e constituir
esta ecologia, ou seja, estar em processo. Como refere este autor, escre
ver [...] uma passagem de vida, que atravessa o vivivel e o vivido (p. 11).
Mas o mapa no se limita a se circunscrever a partir de um espao-tempo
MFigueiredo, Lus Cludio. Escutar, recordar dizer: encontros heideggcrianos com u
clnica psicanaltica. So Paulo: Educ/Escuta, 1994
269
'
271
GENITAIS FEMININOS
E OS LUGARES DA DIFERENA
P aola B asso M en n a B arreto G om es
27
2 O termo sexo usado tanto para designar gnero sexual (masculino ou feminino)
quanto os genitais propriamente ditos. Este emprego dbio delata a relao cultural
estabelecida entre a mulher e seu sexo, contribuindo no paradoxismo atribudo sua con
dio: a mulher mulher porque assim o seu sexo.
3 As relaes entre Foucault e a psicanlise so analisadas no ensaio Entre cuidado e
saber de si, de Joel Birman (ver bibliografia.).
276
O DISPOSITIVO CIENTFICO
E A CONSTITUIO DO FEMININO
At o presente momento, a perspectiva biomdica, fundada no sei
da racionalidade moderna, considerada como a mais correta, a mais e>
27
plicativa para falar do corpo como ele realmente o (Santos, 1999, p. 194).
Entretanto, autores ligados aos Estudos Culturais salientam que as condi
es de produo do conhecimento cientfico so histricas e esto liga
das s representaes de homem e mulher em uma dada poca ou local. A
eleio da cincia mdica, em especial a anatomia, para discutir supostas
essencialidades dos corpos femininos e masculinos no imparcial, visto
que a cincia tem sido formada por foras sociais (Schiebinger, 1987,
p.72). Uma viso crtica das verdades sobre as mulheres e o feminino
forjadas dentro das disciplinas cientficas precisa levar em conta que a
prpria cincia generifcada (Fonseca, 1999, p.68), ou seja, um co
nhecimento que foi construdo prioritariamente por homens a partir de
perspectivas masculinas dentro da cultura patriarcal. Deste modo, a sujei
o feminina justificada por argumentos pretensamente cientficos que
definiram a natureza feminina, demonstraram a inferioridade intelectual
da mulher e fundamentaram a noo de inelutabilidade de seu destino bio
lgico (Tosi, p.28).
Londa Schiebinger escreve sobre os usos da cincia como rbitro das
questes sociais (1987, p.43), para justificar as diferenas entre os sexos.4
A construo de um corpo feminino tido como incompleto e inferiori
zado em relao ao masculino permeada pela antiga viso de Galeno, que
foi adotada pelo anatomista Vesalius: os rgos sexuais femininos so des
critos como imperfeitos, invertidos e internos (Schiebinger, 1987, p.4849). At a ascenso do ideal da maternidade (que ocorre somente no final
do sculo XVIII), o tero, descrito como possuidor de chifres (Schiebin
ger, 1998, p.227), era um rgo extremamente difamado, ao qual atribu
am-se os males inerentes ao corpo feminino. A idia de que a mulher, muito
mais que o homem, determinada pela sua sexualidade est intimamente
ligada ao preconceito de que as sensaes experimentadas pelos rgos
sexuais femininos limitam sua capacidade cerebral (Tosi, p.32). Sobre o
imaginrio que circunda a mulher no sculo XIX, contexto histrico que
favoreceu a emergncia da histeria, Maria Rita Kehl observa que a razo
convocada a dominar os excessos prprios da natureza, que dotou as
mulheres de uma voracidade sexual que os homens no so capazes de sa
tisfazer (Kehl, 1998, p. 74). Identificada com o animal, a mulher do
mesticada a fim de que sejam apaziguados seus instintos, criando-se tam
bm uma imagem de mulher infantilizada e, portanto, menos apta para as
sumir os compromissos e responsabilidades dos homens. Em concomitncia
4 Defendendo que a cincia no neutra em valores, a autora tambm faz uma anlise
sobre os significados culturais do seio a partir do term o Mammalia usado na taxinomia de
Lineu (Schiebinger, 1998).
278
279
tidade imaginria criada pela boa forma de um rgo pregnante (Nasio,1996, p.34), de modo que o rgo masculino ertil vem a simbolizar
o lugar do gozo (Lacan, 1998c). Mesmo abstrado, tratado como opera
dor terico fundamental (Birman, 1999, p. 51) e como estruturante do su
jeito, a importncia do fator anatmico na constituio do falo imaginrio
e seu equivalente simblico bastante evidente. Descrito como algo que
se cola aos objetos, mas a nenhum objeto especfico e por isso permut
vel e ocupa uma espcie de lugar estratgico na subjetividade: o falo-pnis predestinado a dar corpo ao gozo, ou seja, a simboliz-lo e tom-lo
possvel de ser abarcado na experincia.
Contraposto ao falo, o feminino escorregadio, inapreensvel, fora
da ordem dos significantes, um outro gozo que abala as certezas do edif
cio flico. O no-flico representado pelo genital feminino (menos um)
castrado, passivo, masoquista em oposio ao masculino flico, ativo,
sdico (Kehl, 1998, p.241) produz o imaginrio do sexo feminino como
lugar do desconhecido, do etemo mistrio (idem), do no-simbolizvel,
daquilo que jamais pode ser apreendido e abarcado pela razo. A ordem
flica desconhece a alteridade da mulher. Ela no inclui a mulher como uma
que se organiza diferentemente, mas sim como a que tem a menos, a quem
falta aquilo que se deveria ter. A mulher faltante, segundo a ordem fli
ca (Kehl, 1996, p.237). Entretanto esta falta, marca da diferena que pro
duz uma certa imagem da mulher como a transgressora do pacto civilizatrio, no prerrogativa dos sujeitos nascidos com vaginas.
Significante do gozo, pnis ou clitris,5 o falo precisa armar-se (pro
duzindo sintomas cuja anlise vai se ocupar) frente ao perigo de emasculao. Lacan desvincula as identificaes imaginarias ou reais do falo do
organismo, passando a entender a castrao como marca simblica da fal
ta presente no sujeito. No entanto, os rgos aparecem sempre como va
lor de fetiche onde os investimentos libidinais so depositados, estabele
cendo comportamentos tpicos entre os sexos. neste contexto que encon
tramos a insipincia do clitris, que a partir do feminismo surge como r
go por excelncia do prazer, um smbolo de emancipao para as mulhe
res. A emergncia do clitris como significante possvel para o gozo femi
nino tem aparecido com razovel freqncia na mdia. Um artigo entitulado Inveja de que mesmo?,6 publicado em uma revista feminina cujo prin
cipal marketing a reportagem de boa qualidade, enuncia que a cin
cia descobre cada vez mais semelhanas entre o clitris e o pnis. O dis5 Em seus ensaios Freud diz que o clitris anlogo ao rgo sexual masculino (1931,
p.262), e que inicialmente comporta-se exatamente como um pnis (1924, p.222).
6 Revista Uma, Editora Smbolo, v. 2, n.5, fevereiro 2001, p 90-95.
280
2X1
Figura 2. Fotografia. R einm ann, Paul. Atlas ofhuman anatomy in cross section.
R evista Uma, v 2, n. 5, E ditora Sm bolo, fevereiro 2001, p.94.
282
10 l interessante observar que uma das outras reportagens presente nesta edio da revista
Uma sobre o consumo de cerveja por mulheres, trazendo comentrios sobre marcas,
tipos de cerveja c rituais sociais que envolvem a beberagem.
283
11 Ilustrao do sistema urogenital. Sobotta. Atlas de anatomia humana, v.2. Buenos Aires:
Panamericana, 1985, p.223.
284
285
monte de Vnus
vagina
pequenos lbios
grandes lbios
Figura 4.
287
clitris
orificio
urinrio
abertura
da vagina
lbios internos
m enores
lbios externos
m aiores
anus
288
tudo, nunca ser uma imagem fotogrfica (que traria conotaes pornogr
ficas, no pedaggicas) que mostrar os mistrios da anatomia femini
na. As diferenas ntimas entre uma mulher e outra, que s poderiam ser
mostradas por fotografias comparativas, tendem a permanecer insondveis,
visto que apenas a si mesma recomendvel que a menina examine.
De uma maneira ou de outra, o material de cunho pedaggico sobre a
sexualidade formulado dentro dos limites do que informao cientfi
ca, cujos objetivos so a sade, o exerccio do prazer dentro do que con
siderado saudvel e o aprimoramento pessoal que o conhecimento de seu
corpo, juntamente com a explorao das possibilidades normais de pra
zer, podem proporcionar. No site recomendado para as adolescentes, a vulva
definida como rea que protege a entrada da uretra e da vagina. Mesmo
que este tipo de material seja visto como esclarecedor, em todos os ca
sos analisados h uma tendncia a zelar a seriedade dos preceitos cientfi
cos, evitando qualquer aluso ao que possa ser considerado perverso ou
mesmo pornogrfico. Designar a vulva como territrio de proteo fazer
entender que tudo o que est por trs dos grandes lbios precisa ser res
guardado, subtendendo-se que a fragilidade das mucosas e a delicadeza
legada s partes ntimas femininas no prestam-se exposio, e, que se a
natureza se encarregou de escond-las porque no deveriam ser mostra
das. Em tomo destes enunciados inscrevem-se significaes que remon
tam ao tabu da virgindade, castidade, fidelidade exigida para as espo
sas e ainda santificao da maternidade.
Uma reduo calcada na psicanlise, mas pensada por um vis estri
tamente feminista, nos permitiria dizer que a dominao masculina se d
por recalque frente ao mito da voracidade vaginal, representado no amplo
imaginrio que circunda o que se conhece por grande me flica, a antropofgica fmea devoradora. O medo da castrao frente ao poder ater
rador investido na genitlia feminina seria a mola propulsora das prticas
masculinas que assujeitam a mulher lei patriarcal. O registro ameaador
da feminilidade, simbolizado na me primordial e seu caos irrepresentvel, causa horror e desamparo ao lanar no abismo da noite sem fim as cer
tezas rgidas da ordem flica. A onipotncia do falo posta em xeque, no
h lugar para a razo neste mundo em que no se conhecem palavras, onde
nada discemvel se apresenta, nada se fala e tudo o que acontece a des
truio da falcia do falo . A identificao com o falo necessria para
atenuar a angstia da castrao, o medo que todos sentimos daquela zona
sem nenhuma referncia, sem possibilidade de ancoragem, onde no exis
te um basto ao qual possamos nos segurar. Transitar por este territrio de
loucura, sem deixar diluir-se na indefinio de suas fronteiras movedias,
s permitido a quem trouxer consigo o cajado das incertezas, um ou
289
290
294
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. So Paulo: Ed.34, 1999.
. Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanlise. Rio de Janeiro:
Relume Dumar, 2000.
29
O ESPECTADOR E O FILME:
EFEITOS ESPECIAIS DO INCONSCIENTE
P aulo F onseca
2'
2000. p. 100.
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Ibid.
309
310
6O grifo meu.
7Um termo originrio da botnica, que pretende desconstruir a relao binria, dicotmica.
A partir deste conceito Deleuze e G uattan apontam para uma subjetividade que no gira
em tomo de um eixo central, pois estes eixos so abertos, transformam-se a todo momen
to, conectam-se, arranjam-se com mltiplos dispositivos, inclusive heterogneos.
311
8O grifo meu.
9Fala de um entrevistado.
10Rolnik (1989) usa um termo equivalente: o corpo vibrtil O corpo que percebe as inten
sidades, que se permite atravessar pela linhas de fuga.
312
110 sentido dado ao rigor mais como posio ontolgica do que metodolgica, erudita
ou intelectual (Rolnik, 1989).
I2Q grifo meu
314
315
316
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dilogos. Valncia: Pre-Textos, 1980.
DELEUZE, Gilles. Foucault. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1991.
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GUATTARI, Flix. Caosmose: um novo paradigma esttico. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1992.
LOPES, Csar Lopes. Pragmtica do desejo: aproximaes a uma teoria da clnica
em Flix Guattari Gilles Deleuze. So Paulo, 1996. Dissertao (Mestrado em Psico
logia Clnica) - Ps graduao em Psicologia Clnica, Pontifcia Universidade Cat
lica de So Paulo.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformaes contemporneas do dese
jo. So Paulo: Estao Liberdade, 1989.
. Guerra dos gneros & guerra aos gneros. 1995, (mimeo.).
317
319
320
1) A INSTALAO CONTNUA
Jos R icardo - Como j est posto na introduo, a discusso que
queremos apresentar sobre a experincia da turma de psicopedagogia co
meou, para mim, com uma analogia que eu pensei a respeito de uma
instalao audio-musical especfica da banda Pink Floyd. A analogia ca
minha no sentido de identificar a orquestrao e o carter criativo presen
te em outras instalaes ditas no artsticas, incluindo a - e especifica
mente essa que pretendo discutir com a Dra. Margarete - a instalao que
resultou da experincia com a turma de Psicopedagogia Teraputica I.
Ento, ao assistir o vdeo, pensei inicialmente que uma instalao de arte
s tem sentido porque o artista considera que o espectador experimenta a sua
obra pela interao, os deslocamentos e todas as outras afeces que so ope
radas na fruio. A instalao dos equipamentos de uma banda de rock, por
exemplo, toma-se fundamental na performance que a banda ter no sentido
da sua orquestrao com o equipamento, com o pblico e com a prpria
criatividade. No filme Pink Floyd Live inPompeia (1972),4 David Guilmour,
o guitarrista da banda inglesa em questo, diz mais ou menos o seguinte: por
mais crticas que os outros msicos faam parafernlia de efeitos especiais e
tecnologia dos equipamentos do Pink Floyd, a banda precisa dominar os
equipamentos, precisa tentar harmonizar o que existe na mente criativa com
o equipamento disponvel. E, segundo David Guilmour ainda, por ter con
seguido isso que eles conquistaram o pblico. Termina dizendo que os equi
pamentos sozinhos no fazem nada, precisam ter algum controlando, ou seja,
uma guitarra Gibson Les Paul (considerada na poca a melhor do mundo) no
transforma ningum em Eric Clapton, assim como o equipamento que a ban
da tem no transforma ningum em Pink Floyd.
desenham e ao qual se devem os prprios intervalos que os separam: so como os timbales
tocando de quando em quando em uma sinfonia . N esse caso, o nosso fiindo contnuo
seria a REDE, oscilando entre transies e transformaes dos estados cognitivos dos
atores na forma de estruturas conceituais que nela operam, para levar a novas reordenaes
dos mesmos na sua formao acadmica. Esses seriam os destaques.
4 um filme feito nas runas de Pompia onde a banda estava preparando o seu famoso
lbum The Dark Side ofthe Moon" O filme enfatiza a montagem de toda sua parafernlia
de equipamentos nas runas do anfiteatro de Pompia (sc. 1 a.C.) e a experimentao de
sons e vozes circunscritos nesse ambiente
321
O que temos ento? Um sistema vivo que se compe com seu viver.
Esta composio do vivo com um viver pode nos indicar um viver com
outros sistemas vivos ou tambm com outros sistemas culturais. Ento te
mos um viver que nos indicar precisamente os efeitos que este corpo apre
senta em relao s condies e aos respectivos elementos do ambiente.
Ainda neste exemplo: mesmo que tenhamos como resultado final um nico
sistema, podemos entender que o ambiente completamente diferente do
organismo vivo. Tambm, que as condies deste ambiente nunca sero um
molde no qual a vida ir inserir-se passivamente, da adquirindo a sua for
ma. Se assim fosse realmente, um aLes Paul poderia transformar as pessoas
em Eric Claptons. O que temos um sistema de vida e de viver onde adap
tao no significa repetir as respostas que so exigidas pelas condies
ambientais, mas sim replicar, ou seja, aproveitar as vantagens, neutralizar
os inconvenientes, construindo uma mquina distinta das condies
ambientais ainda que ambas se componham mutuamente (Bergson, 1964,
p. 88). No fim das contas, temos um monstro - que a composio do
sistema - uma instalao contnua, que nada mais do que efeito da alqui
mia existente nesta relao entre o vivo e o viver num ambiente.
Para ir adiante, iremos explorar a idia de instalao no ambiente de
rede, que ser fundamental para convocar o leitor para a experimentao
disso que est sendo construo da disciplina e a autoria coletiva que re
sulta desse processo. Antes disso, faamos um exerccio visual de como
est composto este ambiente, ou seja, quais os elementos fsicos e huma
nos desta instalao e, a partir disso, algumas das possveis relaes entre
a sua organizao e estrutura.
O primeiro desdobramento desta instalao em REDE poderia ser
levar em considerao o foco macro e micro quando a olhamos em termos
de organizao. Na organizao macro, temos o seguinte desdobramento:
1) WEB; 2) a equipe tcnica, os bolsistas de vrias reas de interface; 3) as
alunas da disciplina de graduao; 4) a professora; 5) os alunos da disci
plina do programa de ps-graduao da Educao da UERGS; 6) os espa
os tridimensionais, os computadores e sua disposio nos laboratrios do
LELIC e do LIES; 7) a home-page da disciplina.
E justamente este ltimo elemento - a home-page - em que tudo acon
tece em termos de interveno e de construo do conhecimento. Por isso, tal
elemento requer um olhar focado de forma mais micro em termos de organi
zao e isto pode nos ajudar a entender o carter inovador de uma proposta
pedaggica como esta. Pois bem, a home-page da disciplina est organizada,
dentre outros recursos, por quatro janelas de discusso on-line chamadas res
pectivamente compartilhando interrogantes, acompanhando o processo, ch
com bolinhos e planejando o semestre. O ltimo espao compe-se com links
322
5Sempre que queremos gravar um arquivo para ser veiculado na rede em uma home-page
devemos gravar este arquivo em extenso HTM. uma questo de programao. No se
pode gravar um arquivo .doc c querer inserir na rede. Deve ser .htm.
323
324
7No que refere ao vivo (e m ais especificamente ao humano e seu sistema cognitivo),
poder-se-ia dizer que esta possibilidade de constante enriquecimento das estruturas (e
que no caso da cognio humana tambm conceituai) o que garantiria, em termos de
cosm oviso (W eltanschaung), uma postura epistem olgica gentico-evolucionistaconstrutivista, distanciando-a, tanto de um a postura epistem olgica estritam ente
ambientalista ou condutista de puro monitoramento do sistema, quanto de uma postura
inatista em que as possibilidades do organismo j esto todas previstas.
326
Ora, este fenmeno ocorrendo numa situao de ensino-aprendizagem, relacionado formao de significados e definies, poderia ser vis
to como altamente prejudicial, gerando confuso conceituai, na medida
em que uma estrutura de rede desconhece um padro hierrquico de orga
nizao, que seja altamente congruente. O aumento do grau de probabili
dade para a manifestao de virtuais sentidos possveis, em mltiplos tex
tos, por fora da incorporao dos mesmos estrutura, poderia, no limite,
desencadear um processo de amplificao do erro e, conseqentemen
te, de desaprendizagem. Isto pode ocorrer? Ou, melhor, por que isso pode
no ocorrer, configurando, portanto, situaes de aprendizagem e de cons
truo conceituai?
No meu entender, criar condies de possibilidade para a manifesta
o autoral atravs do texto escrito em ambiente de rede, com vistas s
aprendizagens e construo conceituai, objetivo da funo de inter
veno. Mas isto assunto para o prximo tpico e passo a palavra ao
Jos Ricardo.
2) O EFEITO DE IN(TER)VENO
Jos R icardo - Volto a tomar a palavra para situar o segundo eixo
do nosso debate. Comeo ento dizendo que importante fazer uma
espcie de demonstrao da provenincia do conceito in(ter)veno pois
ele tem sido um norteador para a nossa prtica em psicopedagogia e,
especialmente para mim, vem sendo um dispositivo de pensamento des
de o meu trabalho de concluso em 1999. Pois bem, em 1996 uma
formanda do Curso de Psicologia da Unisinos (Universidade do Vale do
Rio dos Sinos) resolveu falar no seu trabalho final do estgio de psicolo
gia escolar sobre os dispositivos de arte e criao como forma de inter
veno em psicologia. Tatiana Ram inger9 editou um vdeo com o recor
te de vrias esquetes de teatro, apresentaes musicais e eventos acad
micos que aconteciam no curso de psicologia desta universidade. O nome
do vdeo ln(ter)veno.
A partir disso o termo virou um conceito para mim. Passei a usar
in(ter)veno como um conceito que evidencia no fenmeno clnico, pe
daggico, poltico, artstico... a sua funo criadora, inventiva e trgica. A
330
332
333
334
335
11
BIBLIOGRAFIA DE REFERNCIA
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VON BERTALANFFY, Ludvvig. Teoria geral dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 1977.
33c
A INSTALAO DO PROBLEM A
No campo das artes plsticas, as instalaes so formas de interveno
no ambiente de tal maneira que entre obra e vida, entre arte e socius, entre o
criador e o espectador j no se garante uma distncia ou uma separao.
Aqui o que se distingue no se separa, em um hibridismo que queremos
tomar como mtodo. Seguindo este caminho (mehodos) j no podemos
aceitar to naturalmente questes corriqueiras como estas: de onde falo?
Qual minha identidade profissional? Acreditamos que nossos dispositivos
de interveno so modos de nos instalarmos no mundo, habitando este
limite entre os domnios. Nesse sentido, em uma zona de intercesso - l
onde operam os intercessores - 1 que fazemos nossas apostas.
A literatura tam bm nos perm ite experim entar essa zona de
indeterminao onde o sentido j no se garante pela sua separao do no
sentido. esta, por exemplo, a experincia literria que Lewis Carroll nos
oferece ao narrar as aventuras da pequena Alice. A habilidade da menina
para captar os ncleos de non sense que os fatos portam associada sua
extrema vivacidade, faz de suas aventuras uma viagem para a qual somos
convocados nisso tambm que em ns surpreendemos. Como destacou
Deleuze em Lgica do sentido, trata-se, no texto de Carroll, de uma en
cenao dos paradoxos do sentido.2
341
3Aqui nos interessa fazer um a distino entre campo e plano da clnica, entendendo o
primeiro como o conjunto de saberes e prticas institudas no qual um espccialismo se
detine. O plano da clnica, diferentemente, se apresenta como um domnio transdisciplinar
em que saberes e prticas se constituem na desestabilizao das suas fronteiras institu
das. Cf. Passos, E.; Benevides de Barros, R (2000). A construo do plano da clnica e o
conceito de transdisciplinaridade. Psicologia:teoria e pesquisa, 16, n .l, p.71-79.
4Deleuze, G.; Guattari, F. O que a filosofia. So Paulo: Editora 34, 1994.
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EXPERIMENTANDO AS BORDAS
CORRESPONDNCIA RIO/PARIS
At 23:16 21/04/2000 CEST, you wrote:
Querido amigo, bom saber das alianas que torcem por e bebem dos
sonhos que podemos partilhar... Levarei ares de Paris porque eles aos pou
cos entranham nossos poros. Estive hoje em La Borde! A viagem para l
te contarei em detalhes (pois estes so os mais importantes, bieti sr) mas
ia te digo que h questes para pensarmos (e seria diferente?). Entre con
versas com os pensionaires (como so chamados os usurios) e participa
o na assemblia geral com o Oury, respira-se, um ar de amiti et solidarit,
mas tambm v-se claramente que a referncia (ou reverncia?!) para
com os mdicos. Digo-lhe que em matria de modelos de gesto estamos
produzindo coisas bem interessantes por a. O que h aqui de interessante
11111 desmanchamento dos especialismos entre os profissionais de sade.
*( iiinttari, F. Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, p .183, 1992.
" Kolnk, S. Nota do trad. no artigo Guattari (1981), A transversalidade. Em Revoluo
molecular: pulsaes polticas do desejo. So Paulo: Brasiliense, p. 103.
111() problema do impessoal foi tratado de modo definitivo no ltimo texto publicado por
|)eleii/.ti sob o ttulo Pimmanance: une v ie ... Deleuze, G. (1995) Immanancc: une
vie Rhllosophie, 47. Este artigo foi comentado por muitos autores, tendo sido o tema do
i ' o l ( | u o organizado cm Paris pelo Colgio Internacional de Filosofia, Gilles Deleuze
Mimnnancc et vie. Cf. o nmero Gilles Deleuze: imannance et vie da revista Rite Descar
tes. 20, inai, 1998
345
Regina la borde
A cena tem ares noir, comme ilfaut. A troca de olhares faz do bar um
aparelho onde se sabe algo funciona. Ali voc espera, pura espera e
abertura ao que s se insinua, entrev Jean-Luc o parceiro apropriado
346
para um tal momento (mas tambm pudera, com este nome ...) Ambos
esto espreita, so espera. E o que dizer de seus hbitos, seno que eles
se refaziam naquele inusitado e inquitante encontro entre-olhares? Um
caf com um copo d gua. Talvez at mesmo um gauloise em baforadas
densas. Ser que voc j est fumando?
Edu
C ena 2: C 'est vraie. A espera abertura para os acontecimentos no
que eles se insinuam como novo. E um estado de corpo onde o que se
conhece, o hbito, serve como automatismo funcional sem atrapalhar o
que est devindo.
Dominique acaba seu caf. Dunot, o motorista, est apressado, diz
que h pessoas para pegar. Meu corpo vibra na pressa de Dunot, mas tam
bm no acolhimento de J-Luc.
J-Luc quer saber de mim: de onde venho, o que fao ali. Voc uma
nova estagiria? No, vim conhecer La Borde, mas fico apenas um dia.
No d para conhecer La Borde em um dia, que pena voc no poder
ficar mais. Digo que h muito conheo, de outros modos, La Borde. Te
nho lido, conheci Guattari [...] H algum lhe esperando? Maria Jos,
respondo, uma estagiria brasileira. J-Luc gosta de Maria Jos, ela sua
ve e sabe afirmar o que quer, diz-me.
Faz frio fora do Caf. Entramos na chauf. O clima muito acolhedor.
Dominique senta-se na frente e J-Luc indica meu lugar. A conversa conti
nua. Ele me explica que a chauf sai 5 vezes ao dia de La borde e vai at o
centro de Blois. Blois uma pequena cidade, bastante turstica pelos
Chateaux onde os reis franceses costumavam passar suas frias. A cidade
est florida nesta poca do ano, ainda que faa um pouco de frio.
A chauf pra e Dominique salta: iria passar o dia com parentes. E
num bar que ela fica. J-Luc olha-me e sussurra que Dominique bebe. Mais
frente paramos novamente num bar. Entra, circunspecta, uma senhora.
Digo-lhe bonjour, e ela no responde. J-Luc continua falando de La Bor
de. Todos os dias a chauf... paramos em outro bar e, desta vez, entra um
cachorro(l) ... (!)e algum tempo depois, sua dona. E uma senhora muito
alegre. Dunot reclama do seu atraso. Ele tem pressa(l). Ela, amavelmente,
se desculpa e me apresentada por J-Luc. Eles, decididamente, gostam
dos brasileiros. Seguimos para La Borde na va - nau dos insensatos(?) dirigida por Dunot, que continua apressado. Lembro-me do coelho da Ali
ce, sempre apressado. E eu, seria Alice, mergullhando no pas das Maravi
lhas? Chegamos La Borde depois de uns 13km em uma linda estrada. J
avisto o Chateau. lindo! Paramos antes da porta de entrada(!?!). No sei
bem porque. J-Luc convida-me a saltar e eu o fao. Afinal, ele estava
347
sendo meu guia. Ele me conduz ao centro de estagirios. Maria Jos n 'tait
pas l. J-Luc convida-me para almoar. O caminho se bifurcara. Seria
introduzida no Chateau por J-Luc, e...poderia ser de outro jeito?
Entramos e imediatamente nos misturamos aos outros pensionaires.
Estava em La Borde. Agora havia mergulhado em outra superfcie.
Beijos
Regina
Regina
As cenas vo se seguindo compondo um roteiro como aqueles do
cinema francs: charmosos, densos e suaves. J.-Luc parece mesmo ser o
melhor guia para essas aventuras de Alice. E o espanto da menina a sua
fora de interveno e de crtica. Por isso viver a crise para as alices uma
forma de fazer a diferena. Petite terriblel Tenho certeza que a maravilha
se espalhar como que por contgio.
E preciso reinventar Alice a todo momento. S assim saberemos des
cobrir os buracos por onde escapar das armadilhas do cotidiano.
Um beijo
Edu
C ena 3: Entro no Castelo acompanhada por J-Luc e procuramos uma
mesa para almoar. Como havia somente uma mesa desocupada dirijo-me
a ela, mas J-Luc me explica que devemos nos sentar nos lugares vagos
que possam existir em uma ou outra mesa. Eles poderiam se magoar.
Novamente percebo-me espera, algo de novo se anunciava. Aguardo.
Observo a movimentao: barulho de pratos, vozes, pessoas colocando
travessas com a comida, mesas cheias de gestos... paro os olhos em um
negro, jovem que de frente ao prato faz gestos repetidos sem se aproximar
da comida. Seus olhos esto vazios... ou distantes. Pareceu-me repetir uma
dana ou uma espcie de ritual. Uma moa se aproxima e lhe pergunta se
no quer comer. Ele continua seu movimento... Como fazer a diferena?
Mas J-Luc j me chamava para sentarmos, pois havia conseguido uma
travessa de comida para ns. Dizia-me que tinha que comer ao meio-dia e
j passava um pouco da hora. A comida cheirosa... uma paella. Vejo
pessoas circulando entre os que comem. Tiram pratos, trazem gua e a
sobremesa, a.feira era dia de sobremesa especial, pois na vspera tinha
atelier de ptisserie e sempre preparavam algo gostoso. Na nossa mesa
senta-se uma linda moa: Pierre Marie, como se apresenta. Pergunta quem
eu sou e logo se interessa por eu ser brasileira. Novamente a simpatia se
instaura. Comeamos a conversar, falo um pouco de como vim parar em
La Borde. Ela tambm: h uns 12 anos atrs sentira muita dor na coluna e
348
isto fizera mal a sua cabea. Agora estava bem, mas de vez em quando as
coisas ficavam complicadas. Diz no gostar de espanhis...eles so muito
traioeiros. Os brasileiros so abertos, acolhedores. J-Luc, atencioso, peiguntava-me se no queria mais, se desejava gua. Levanta-se para pegar a
jarra. O ch das 5 de Alice... Chega Maria Jos e se apresenta. Continua
mos a falar em francs para que todos participem. Mas h uma outra ln
gua que fala ... so milhares de sensaes e cheiros. Sinto-me completa
mente includa na cena, sou tambm J-Luc, a moa que me parecia rabe,
Maria Jos,...
Terminamos o almoo. Samos da sala e J-Luc despede-se dizendo
que esquecera que teria que pegar uma encomenda na cidade e teria que ir.
Voltaria mais tarde, se desse... Diz esperar me ver novamente. ..eu tam
bm. No ar sinto gentileza, acolhimento.
Alice procura a chave, mas ficara muito pequena aps o almoo.
No conseguiria sair to fcil daquele labirinto...
Beijo Regina
(esta mensagem foi enviada no dia 30 de abril s 24h)
Regina AliceQuando os limites comeam a se confundir - Regina/JLuc, ela/ele, Pierre/Marie, Maria/Jos - , muda-se a expectativa, o ar da
espera se adensa e imersos em seu volume faz-se toda a diferena. Sentese ali as mil Alices que circulam provocando o esprito, fazendo do pensa
mento e do corao uma experincia de aventura. Em La Borde ou meia
noite, entre abril e maio, nem bem 30 nem ainda primeiro, eis o lugar e o
momento em que todos os gatos ficam pardos em sua inespecificidade
felina. Mulher-gato uma das formas de Alice, bela e fera a um s tempo,
nesses momentos intersticiais. Grande viagem!!!!
Edu
C ena 4: Alice buscava alguma explicao lgica no que acontecia
com ela (...ou acontecia nela?! ou melhor, acontecia apesar dela!). Nossa!
Tudo parecia de repente to confuso... Ela sai do Castelo, Maria Jos ani
madamente lhe fala de como o espao estava dividido. A direita v-se
uma pequena capela, mas que na verdade era uma biblioteca. Um pouco
mais para frente se v uma sala, mas que na verdade era um atelier de
cultivo de plantas... Alice, conformada com o fato de que naquele mundo
havia outros sentidos, procurava no se espantar a cada passo.
Andavam um pouco rpido demais para Alice. Ela queria saborear
cada canto. Lembrou-se que trouxera uma mquina de fotografar. Tira
algumas fotos e a mquina no funciona mais, era a pilha... Seguem an
dando pelos cantos, entram num outro alojamento. Alguns pensionistas
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s vezes um pouco bizarros dos que ali estavam, passava pela tentativa de
organizao da pauta daquele que, com culos escuros, toda hora dizia
Nitmro 4, les ouefs de pque qui seront cacher... Numro 5, G im tte
[...]. Mais como um mestre de cerimnias do que como um chefe de
sesso plenria, ele passava a palavra, pedia a um e outro que fizesse si
lncio, dizia que o ponto j estava discutido e decidido, etc...
A meu lado M. Jos segue animada as discusses. Eu fico atenta
aos muitos gestos, sons, palavras-atos... Chega um homem alto, passos
incertos. Dirige-se para o fundo da sala. Pra perto de onde estou. No
fala. Pe-se de costas para a mesa coordenadora e repete, com seu cor
po, uma srie de gestos. A cena, a princpio fora de lugar para a assem
blia parece integrar-se rapidamente. Ningum se dirige a ele para o
reconduzir, ou o afastar. Um outro homem parece perceber, no sei por
qual estranho canal, o que o primeiro pedia. Um cigarro. Trocam peque
nos olhares, o segundo d ao primeiro um cigarro. Ele pega, fuma e vai
embora... O fora-includo produz a ruptura necessria ao esperado, im
pe-se na cena, modifca-a...
Alice percebe que M-Jos falava com ela j tinha algum tempo. Per
turbada pelo agenciamento gesto-cigarro, Alice tinha por alguns instantes
desviado sua ateno... Desvio-afeto.
Voc ouviu? Perguntava-lhe M-Jos. Voc conversou com a
Ginette no almoo e lhe disse que conhecia o Marcos, ela colocou na
pauta para voc falar.
Falar???? O que???
Mal conseguia refazer-se do susto da notcia j chegara a hora. No
tcias do Marcos [...], segue o chefe de cerimnia, com sua palavra deter
minada. Levanto-me, digo que sou brasileira, que estou ali para conheclos e que estou feliz com esta oportunidade. Digo-lhes que Marcos sente
saudades e que abraa a todos. Sorrisos, olhares de cumplicidade.
SIM, era isto: cumplicidade, aliana. Era isto que atravessava a sala,
o Castelo, as paredes, o ar!
Oury pede a palavra e fala do jomalzinho da semana e que ele havia
escrito um pargrafo que gostaria de ler. L, carinhosamente, calorosa
mente valorizando o CLUB, aquilo que para ele no podia morrer, haveria
de ser reconstrudo sempre. O Club, inveno de Guattari e dele, inveno
coletiva, dispositivo de engendramento coletivo de enunciao...
Mriam (nora de Guattari, brasileira), diz que tem convites para a
inaugurao dos arquivos das obras de Guattari cjue, a partir de agora,
ficariam sob a gesto do IMEC, para acesso de todos. Os convites ela
entregou mesa. Aplausos para Guttari, para todos.
A reunio-assemblia-dispositivo de coletivizao termina. Clni
354
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iH j il IlliPIWt^IMHlI^li^"Ifci11^)!'igp^Wlwqifc
35'
2Aqui a palavra sentido assume pelo menos trs possibilidades de compreenso que de
vem ser tomadas como indissociveis: sentido como sensao; sentido como inteno,
direcionalidade e ao; sentido como significao.
3Nietzsche, F. Ais o sprach Zarathustra I in Giacia Jnior, O. O inconsciente no sculo
XXI, 2001, in mmeo.
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O que sustentamos que o sentido no est nos objetos, nem pode sei
tomado de forma apriorstica ou a posteri, mas que ambos (corpo e sentido,
sujeito e objeto), se constituem simultaneamente em um nivel imediato,
inconsciente e pr-pessoal. No encontro entre corpos de diferentes intensidades (criana-pia-cor-gua-em-movimento), o sentido emerge como a ex
perimentao da variao da intensidade da emoo no tempo. Esta varia
o ocorrida no tempo imprime um presente que vai em direo de, ou
seja, um presente processual. Este tempo vivido como processo de devn
coloca a simultaneidade entre passado-presente-futuro, pois o futuro faz
nascer o passado que sempre presente como diferena do que j foi.
O que observamos a emergncia de um sentimento" delimitado
no tempo enquanto uma qualidade interna que emerge na relao com
outros corpos enquanto diferena de si, para ento, em conjunto com e
como reflexo desta vivncia, traduzir-se como o sentir de si prprio trans
formado na relao. A intensidade da emoo e a experimentao de sua
variao no tempo emergem na relao como experimentao da diferen
a. Sendo assim, conforme Deleuze (1999)9 na percepo sensvel, a de
terminao espao-temporal no implica uma relao marcada pelo va/.io
comparativo, mas ao contrrio, implica uma constante diferenciao de si
enquanto atos de autocriao. M atria e m em ria so dim enses
inseparveis, que como elementos de um evento subjetivo polifnico, se
combinam de tal forma, criando uma constelao subjetiva, enquanto um
plano de auto-referenciao. Conforme Whitehead (1971, 1984)10 uma
unidade real um ato de experincia e a forma primeira de percepo
emocional. ainda para ser lembrado que o sentimento na experincm
humana, ou inclusiva na animal, no somente emoo. E um senti mente
interpretado, integrado e transformado na mais alta categoria da percep
o (Whitehead 1984, op. cit.).
O modo de percepo sensvel extrai do vivido as sensaes enquan
to intensidades que atravessam o corpo que percebe e que permitem
organizao de uma configurao de um eu, enquanto a percepo do es
tado real de um evento. Um corpo desejante, entendido aqui como fora
intensidades, , portanto, articulao, pois como nos diz Nietzsche (ii
Czermak 1999)" a fora essencialmente relao com outra fora; ela
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2Aqui a palavra sentido assume pelo menos trs possibilidades de compreenso que de
vem ser tomadas como indissociveis: sentido como sensao; sentido como inteno,
direcionalidade e ao; sentido como significao.
3Nietzsche, F. Also sprach Zarathustral, in Giacia Jnior, O. O inconsciente no sculo
XXI, 2001, in mmeo.
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tido onde ele ainda pura sensao sem nome tentar permitir que um
nome possa emergir na imediatez de um instante, em uma leitura onde a
linguagem toma corpo atravs da sintonia, das ressonncias, das conjun
es e disjunes entre os corpos que se experimentam.
Interessa, portanto, observar as trajetrias de aproximao/afastamen
to entre a criana e seu mundo, no sentido de cartografar as linhas de
experimentao enquanto possibilidade do surgimento para a criana autista
do sentido da co-presena e da co-moo.
No sendo o vivido em si a questo, mas extrair do vivido as sensa
es, as imensidades, a interpretao dos fatos clnicos deixa de ser o
instrumento principal para dar lugar escuta dos movimentos do desejo
enquanto.
- a vibrao como a sensao simples e suas diferenas de nvel que
emergem entre o encontro da criana e seus objetos: nuances de movi
mento, de expresses faciais, de alteraes gestuais, da velocidade dos
movimentos.
- o enlace corpo-a-corpo quando as sensaes entre os corpos que
se experimentam se acoplam enquanto concreo intensiva e corporal, o
que possibilita ao corpo preendente a experimentao de si como poten
cial diferencial, como grandeza imediatamente identificvel criana
m esm a. E ntendem os tais m ovim entos no com o um processo de
indiferenciao ou de transformao de um no outro, mas como possibili
dade de algo que passe de um ao outro, possibilitando assim para a crian
a, um sentido novo de grandeza (potncia).
- o recuo, a distenso quando as sensaes se distanciam, porque
no h mais necessidade de nenhuma base, pois ela se conserva na criana
como uma nova organizao corporal e afetiva. O corpo, enquanto espa
o de mutaes indissociavelmente subjetivas e objetivas se configura em
um movimento auto-organizativo como inteno e paixo.
Enfim, entender a constituio do sujeito como criao e o campo
teraputico como um lugar que no se limita apario de um sujeito
falante, pois entendemos que esta emergncia no se reduz fala, implica
em construir uma certa lgica, que conforme Guattari (1990)21 nos permi
ta pensar a apreenso de uma certa realidade de semiotizao a partir da
intensidade dos processos em evoluo, em oposio idia de estrutura
ou sistema, portanto, a uma lgica simblica ou lingstica.
Isto levanta uma srie de questes para o campo da clnica enquanto
teoria e prtica e que apresentamos aqui em forma de teses que permeiam
este texto:
21Guattari, F. As trs ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
372
Tese central:
- A potncia esttica do sentir tambm uma potncia que produz
conhecimento, portanto, entre conhecimento e conscincia no existe uma
relao essencial ou necessria. Trata-se de buscar as possibilidades de
construo do sentido fora das estruturas psicolgicas em direo a uma
ontologia do sensvel.
Subteses:
- O prprio conceito de clnica redefinido para alm do espao
teraputico da psicologia clnica tradicional ou da prtica setorial psi, levando
em considerao uma abordagem rizomtica (transdisciplmar) na compreen
so de um campo subjetivo que sempre de ordem processual e pr-pessoal.
- O campo teraputico deve ser entendido como transrelacional, na
medida em que entre o sujeito e tudo o que seu fora emergem composi
es, disjunes, transmutaes, atravs das quais se constroem o prprio
sujeito e as coisas. Situa-se, assim, no entre-dois , entre-muitos Nes
te sentido se coloca em questo o entendimento de intersubjetividade, para
pensar a relao entre aqueles que fazem parte do processo como
transubjetiva, pois no se pode mais falar de interioridade e exterioridade
e nem tampouco de um sujeito como centro de sua experincia.
- Postular que existem lembranas (lembranas, e no-memrias
perceptivas conforme Freud) que so registradas em um nvel sensrio-motor, se manifestam inconscientemente e so representadas deform a no-simblica, implica dizer que a apreenso dos fatos psquicos no pode se restrin
gir ao domnio do discurso e principalmente coloca em questo o mito da
necessidade de conscientizao dos fenmenos inconscientes como possibili
dade de reconstruo. Aqui colocamos em questo o estatuto da interpretao
como instrumento privilegiado da prtica clnica para introduzir o conceito de
experimentao como fonte de produo de sentidos outros. O desejo nunca
deve ser interpretado, ele que experimenta.22 Trata-se de extrair do vivido
as sensaes, coloc-las em movimento desestabilizando os campos de signi
ficao, multiplicar os regimes de signos a-significantes que se atravessam,
produzir novas sries de causalidades, novos agenciamentos, novos eus e no
vos mundos. No se trata de interpretar, mas de produzir afetos que possam
ter suficiente consistncia para modificar situaes. Como a arte, nos diz
Ulpiano,23 que transforma o que invisvel em visvel, no se trata de repre
sentar objetos, ou interpretar afetos. Trata-se de entrar em contato com os
afetos, experienci-los, mesmo que nada saibamos de antemo sobre eles.
Deleuze, G. e Pamet, C. Dilogos. S3o Paulo: Ed. Escuta, 1998, p. 111.
21Ulpiano, Cludio. A esttica deleuzicma. In: mmeo
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Trata-se de produzir sentidos, criar a vida como uma obra de arte, para, no
final das contas, conservar sempre as possibilidades como possveis.
- O ato clnico se fundamenta em uma perspectiva tico-estticoetolgica. tica no sentido de que em todo momento de interveno terapu
tica est presente uma responsabilidade tica: Como procedemos como fon
tes de transformao e como potncias criadoras de sentidos em um espao
social e poltico a conquistar? Mantemos abertas as possibilidades de emer
gncia de novos agenciamentos de expresso? Potencializamos ou limitamos
a produtividade ontolgica? Por sua vez, a tica inseparvel de uma dimen
so da esttica, quer dizer, como uma esttica do prprio ser, j que o processo
de constituio do sujeito ao mesmo tempo criao de sentidos. Por sua vez
esta perspectiva tico-esttica inseparvel de uma forma de observao dos
fenmenos clnicos que defina a maneira de ver, ouvir e sentir sob o prisma
etolgico de reciprocidade entre o fora e o dentro, no qual o indivduo, suas
emoes e suas aes simultaneamente definem a si prprio e o mundo, como
diferenas que se introduzem em novas dimenses de subjetivao.
Finalmente, se alguma concluso ainda se impe, gostaria de retomar ao
ttulo deste trabalho: a clnica pensada a partir de uma psicologia dos sentidos
tem na dimenso esttica da inveno de si, como causa e efeito do encontro
intensivo - e, portanto sensvel - entre corpos, um operador conceituai funda
mental que, por sua vez, coloca a mesma como instrumento privilegiado de
transformao e expanso da vida. No entanto, este operador s pode funcio
nar como tal se atravessado por intenes de ordem tica e poltica. Pensar a
clnica resgatando seu carter de anlise dos diferentes fatores presentes nos
processos de subjetivao, ou seja, os saberes estratificados (corpos), o jogo
das foras (o entre foras, que o fora) enquanto o diagrama das linhas das
foras que atualizam e estratificam estes saberes e que simultaneamente re
metem para a criao de novos diagramas e novos saberes, implica em fazer
escolhas estratgicas que acenem para a possibilidade de produzir rupturas
nos efeitos normativos e patologizantes presentes nos mais variados signos da
atualidade. Trata-se de uma certa postura investigativa que situa o objeto (seja
ele da ordem do individual, grupai ou institucional) ao nvel do campo subje
tivo, deslocando o poder/saber de uma lgica cientificista e universalizante
para uma lgica transgressiva/criadora: o ato clnico se coloca, desta forma,
como um espao de crtica realidade em suas mltiplas formas de atualiza
o, funcionando assim tanto como produo, inveno de novas realidades,
como um dispositivo intensificador do pensamento e multiplicador das for
mas de interveno. sempre uma questo de vida e de uma perspectivao
pragmtica de sua eficcia ontolgica.24
-4Guattari, F. Caosmose: um novo paradigma esttico. So Paulo: Ed. 34, 1998, p. 109.
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O RITO SAGRADO
Conhecer a obra de Luiz implica observar o processo de seu traba
lho. Tal como nos rituais sagrados h um tanto de segredo. Ao sentir-se ol
servado, Luiz normalmente pra de trabalhar. E preciso que, silenciosa
veladamente, se espie o seu fazer.
Ao iniciar um trabalho, Luiz observa a folha parecendo refletir sobi
o que e como fazer. Em seu livro A natureza da psique, Jung fala de re/h
xio como o voltar-se para dentro:
o instinto de reflexo talvez constitua a nota caracterstica c a riqueza d
psique humana. A reflexo retrata o processo de excitao c conduz o sc
impulso para uma srie de imagens que, se o estmulo for bastante forl
reproduzida a nvel externo... quer com expresso verbal, ora coir
expresso do pensamento abstraio, como representao dramtica, com
comportamento tico, ou ainda como feito cientfico ou como obra c
arte. (1984. p.54).
31
378
Figura 1
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IMAGEM E SMBOLO
Em O mundo das imagens (1992), Nise da Silveira dedica um cap
tulo, especificamente ao levantamento do significado da imagem para os
grandes pintores e para os maiores expoentes da psicologia - como Freud,
que teve a preocupao de interpretar as imagens simblicas, mas num
sentido redutivo, procurando descobrir elementos disfarados pela imagem,
relativos s vivncias da infncia do indivduo.
Nesse sentido, clssica a interpretao que Freud faz da obra A Vir
gem, o menino Jesus e Sant A na, de Leonardo da Vinci, no segundo volume
de suas obras completas sob o ttulo de Leonardo da Vinci e uma lembrana
de sua infncia (Freud, 1968). Trata-se muito mais de uma psicobiografa, e
Silveira (1992) faz uma crtica a este trabalho de Freud comentando estar o
sentido do quadro muito alm de uma compreenso individual. Contraria a
abordagem freudiana. Nise da Silveira vai buscar subsdios em Jung que
reconhece na imagem grande importncia [...] a energia psquica faz-se
imagem, transforma-se em imagens [...] que se exprimem por meio de sm
bolos ou de mitologemas (Silveira, 1992, p.85-86).
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Figura 3
3!
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3'
o
o que p erm ite ver, filtran d o u m a lu z o fu sc a n
Luiz se protege com o Hijab, vu, que em rabe quer dizer - o que
separa duas coisas. As veladuras que pinta, o protegem de ver sua dura re
alidade. Luiz se preserva. Se preserva separando o tempo concreto, de seu
tempo mtico, construdo em relgios sem ponteiros.
FINALIZANDO
Nas consideraes finais do trabalho Janelas - desenhos e pinturas
como espaos abertos para o inconsciente (Neubarth, 1996), apontou-se
para a necessidade de se abrirem outras tantas janelas, atravs do estudo
mais aprofundado das manifestaes expressivas de freqentadores da
Oficina de Criatividade do Hospital Psiquitrico So Pedro (HPSP), e sua
relao com a histria de vida destes sujeitos.
No presente trabalho, se pretendeu desvendar a obra de Luiz Guides,
que em 1950 entrou no HPSP, cumprindo uma sentena explicitada com
bastante propriedade por Arthur Bispo do Rosrio (Hidalgo, 1996, p.44),
ao afirmar: louco um homem guiado por um morto. Os sete anos que
Luiz tem participado da Oficina de Criatividade so uma tentativa de res
gatar o que h de vivo neste homem que conquistou um espao e dimen
sionou um tempo em relgios sem ponteiros.
A produo do Sr. Luiz, quando apreciada no contexto em que tem
sido produzida, refora o alerta da psiquiatria Nise da Silveira, no sentido
de que os trabalhadores de sade se coloquem como guardies atentos a
vitalidade da criao. O esforo quixotesco de Nise, que trouxe o re-
.193
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