EBPinto GT de Curta Duracao
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sob
orientao
do
Banca examinadora:
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In memoriam
Jos da Costa Brito, meu av materno,
seminarista em Mariana, MG;
Eurico Costa Pinto, meu pai, seminarista em
Lavrinhas, SP,
que me ensinaram o valor das relaes
humanas e me inspiram em muito do trabalho
que desenvolvo como psiclogo.
tia Vera de Sousa da Costa Brito, exemplo de
tolerncia, sacrifcio e amor cristos.
Paulo Barros, primeiro, terapeuta; depois,
supervisor; depois, amigo,
com quem confirmei o
amorosamente estendida.
valor da
mo
Agradecimentos
Aos meus clientes e amigos padres e religiosas, por encararem sua face mais humana e
compartilharem isso comigo.
Fundao Porticus, especialmente na pessoa de seu Diretor para a Amrica Latina,
Dr. Einardo Bingemer, pelo imprescindvel financiamento de parte significativa desta
pesquisa.
Ao Pe. Prof. Dr. Joo Ednio dos Reis Valle, meu orientador, exemplo de lcida e
cuidadosa coragem.
Aos terapeutas que me acolheram no correr da minha vida, Luiz Alfredo Milecco
Monteiro, Glio Bezerra, Dcio Casarin, Paulo Barros, Ieda Porchat, Rui Fernando Barboza e
Lcia Pompia, com a esperana de que este trabalho esteja altura de tudo o que vivi,
descobri e aprendi com eles.
Aos meus mestres iniciadores na arte da Gestalt-terapia, Dcio Casarin, Jane
Rodrigues, Paulo Barros, Cristina Tsallis, Slvio Lopes, Walter Ribeiro, Maureen Miller,
Lilian Frazo, Jean Clark Juliano, Ari Rehfeld e Abel Guedes, co-responsveis pela melhor
parte desta tese.
Aos meus colegas gestalt-terapeutas, especialmente os professores e alunos do
Instituto de Gestalt de So Paulo e do Departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes
Sapientae, pelas tantas trocas feitas e pelos tantos desafios enfrentados em excitantes
parcerias.
Aos colegas do grupo de pesquisa Psicologia e Religiosidade: Peculiaridades, da
PUC/SP, Deolino Baldissera, Eliana Massih, Ftima Morais, Neilomar dos Santos e Rosa
Eliza, pelo produtivo acompanhamento e pela discusso deste trabalho.
Aos colegas que atendem pessoas de vida consagrada, especialmente os terapeutas do
Instituto Acolher, pelas reflexes trocadas.
Aos amigos e scios do consultrio, Luiz, Maju, Mauro e Vera Cristina, pelas
inspiradoras seriedade, amizade e bom humor com que cotidianamente convivemos.
minha famlia, enteado, irmos, cunhados, cunhadas, concunhados, sobrinhos e
primos, pela calma torcida.
minha esposa, Ftima, por nunca se cansar de amorosamente me incentivar a
transformar em realidade aquilo que em mim potencial.
II
Resumo
Este estudo surgiu da necessidade de responder a uma demanda por um trabalho
psicoteraputico de curta durao para os clrigos catlicos. Elegeu-se a Gestalt-terapia como
suporte terico para o desenvolvimento de elementos que fundamentassem tal trabalho
psicoteraputico. Esta tese foi escrita a partir de dois referenciais estreitamente interligados:
1) um estudo terico sobre a abordagem gestltica e a Gestalt-terapia de Curta Durao, bem
como sobre a populao em questo; 2) uma prtica clnica que orientou a busca terica ao
mesmo tempo em que se orientava por ela.
Uma vez apresentados alguns dos fundamentos da abordagem gestltica, desenvolveuse uma viso de homem, a qual deu sustentao a uma compreenso da simbologia religiosa,
da religio e da religiosidade humanas sob a tica da Gestalt-terapia. Props-se, para o
gestalt-terapeuta, uma nova postura diante da religiosidade de seus clientes, baseada em uma
interpretao restauradora dos contedos simblicos desta religiosidade.
Props-se uma maneira de atuao psicoteraputica baseada na Gestalt-terapia de
Curta Durao atravs da discusso de seus principais fundamentos: seus objetivos, as
estratgias teraputicas bsicas, o foco, o diagnstico e a relao teraputica, dentre outras
questes que delimitam e consolidam este tipo de trabalho.
Caracterizou-se o clero enquanto populao para a psicoterapia com base em doze
aspectos nos quais o autor percebe a diferena entre um atendimento psicoterpico de curta
durao para leigos e o mesmo trabalho para clrigos catlicos. Apresenta-se um caso clnico
para ilustrar o trabalho desenvolvido.
Verificou-se a eficcia da Gestalt-terapia de Curta Durao enquanto mtodo de
trabalho psicoteraputico, especialmente para a clientela composta por pessoas dedicadas
vida consagrada. Verificou-se tambm a importncia, em psicoterapia, do acolhimento
simbologia religiosa dos clientes e dos prprios terapeutas. Desenvolveram-se novas
propostas para um incremento na qualidade do atendimento psicoteraputico ao clero catlico.
Dada a enorme complexidade do tema e da populao alvo deste estudo, vislumbra-se
a necessidade de que o encontro entre a psicoterapia de curta durao e a religio continue
sendo debatido e estudado, em prol de que a o atendimento clnico em Psicologia seja fonte
mais abundante de autoconhecimento e de crescimento pessoal.
Palavras-chave: Religio; Gestalt-terapia de curta durao; psicoterapia para clrigos.
III
Abstract
This study arose from the need to respond to a demand of short-term psychotherapical
work for catholic clergymen. Gestalt-therapy was selected as theoretical support for the
development of elements which would serve to found such therapeutic work. This thesis was
written having as a starting point two intimately related references: 1) a theoretical study of
the gestaltic approach and the Short-term Gestalt-therapy, as well as of the population in
question; 2) a clinical practice which oriented the theoretical quest, at the same time that it
was guided by the former.
Once some of the fundamentals of the gestaltic approach had been presented, a vision
of man was developed, which gave sustentation to an understanding of the religious
symbology, of human religion and religiosity under the optics of the Gestalt-therapy. A new
posture was proposed for the gestalt-therapist in regard to the religiosity of his clients, based
on a restoring interpretation of the symbolic contents of this religiosity.
A manner of psychotherapeutical actuation based on the Short-Term Gestalt-therapy
was proposed, through the discussion of its main fundaments:
therapeutical strategies, the focus, the diagnosis and the therapeutical relation, among other
questions which delimit and consolidate this type of work.
The clergy as population for the psychotherapy was characterized based on twelve
aspects in which the author perceives the difference between short-term psychotherapy
applied to laymen and the same kind of work with catholic clergymen. A clinical case is
presented to illustrate the work undertaken.
The efficacy of Short-term Gestalt-Therapy as psychotherapeutical working method
was verified, specially for the clientele composed of persons devoted to consecrated life.
Also verified was the importance, in psychotherapy, of the reception of the religious
symbology of the clients and of the therapists themselves. New proposals were developed for
an improvement in the quality of psychotherapeutical work with the Catholic clergy.
In view of the enormous complexity of the theme and of the target-population of this
study, a glimpse can be caught of the need to continue discussing and studying the encounter
of short-term psychotherapy and religion, to propitiate that clinical work in Psychology be a
more plentiful source of self-knowledge and personal growth.
Key-words: Religion; Short-term Gestalt-therapy; psychotherapy for clergymen.
IV
Sumrio
Introduo ...............................................................................................................................
01
08
09
09
11
12
12
12
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18
20
20
21
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25
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30
33
34
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36
36
38
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42
43
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45
47
49
49
54
54
58
61
63
64
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65
66
67
67
68
70
VI
71
72
73
76
78
81
82
83
85
87
89
90
92
99
102
102
103
106
106
107
109
110
112
113
114
114
VII
116
117
118
120
122
1 a queixa ..............................................................................................................
128
2 a autonomia ........................................................................................................
136
3 o corpo .................................................................................................................
143
149
149
152
157
163
5 a identidade ...........................................................................................................
166
169
174
180
9 o tempo ..................................................................................................................
184
10 o diagnstico ........................................................................................................
187
190
194
198
1. Josu ...................................................................................................................
199
232
240
INTRODUO
(1978, p. 22)
minha frente, eu me percebi embaraado por no saber como cham-lo. Fulano? Padre
Fulano? Voc, ou senhor?
De repente, diante daquele cliente, um padre, eu me dei conta de que no me fizera
importantes perguntas antes de iniciar aquele atendimento. Eu no me perguntara sobre a
minha histria religiosa. E, naquele momento, quando eu, psicoterapeuta, educado em uma
famlia catlica do interior de Minas Gerais, me vi diante de meu cliente padre, minha histria
me atropelou e por pouco no derruba meu atendimento. No era o meu cliente que eu via
diante de mim, mas o padre mineiro de minha infncia, representante de Deus, por isso uma
figura sobre-humana, digna de reverente respeito. Eu no estava diante de uma pessoa, mas
diante de um arqutipo, e isso certamente no era bom para a psicoterapia. Nesse momento,
eu era apenas e to somente a mais pura e mais clara contratransferncia, eu no estava ali
naquela sala. Jamais algum pode ser terapeuta de uma arqutipo. Se no levado a srio, este
tipo de fenmeno pode corroer profunda e inapelavelmente o esforo teraputico.
Imediatamente percebi que eu no estava diante de um processo teraputico comum,
ou seja, logo percebi que a clientela de vida consagrada traz importantes questes para a
prtica teraputica, o que pode ser ilustrado pela observao de um jovem cliente meu. Certa
vez, ele me viu despedindo-me de um cliente, um padre, o qual, ao sair, me falou: nio,
Deus te abenoe!. Logo depois, mal comeava sua sesso, e esse jovem cliente me
perguntava se a pessoa que eu acabara de atender era um padre. Diante de minha resposta
afirmativa, seu comentrio foi bastante interessante: a gente no imagina essas pessoas
fazendo terapia, n?
Foi exatamente essa mesma impresso que eu descobrira em mim na primeira sesso
do primeiro padre que atendi: o lugar que o sacerdote ocupa no imaginrio humano o lugar
do sagrado, no mnimo muito mais o lugar do curador do que o do ferido. Por mais que nossa
cultura se secularize, e, numa certa medida, se biologize, ainda h e haver de existir
sempre em cada um de ns um universo simblico, uma possibilidade de vivermos no
somente em uma realidade mais ampla que a dos outros animais, mas em uma nova dimenso
da realidade, a dimenso simblica. (cf Cassirer, 1994, p. 47) De certa maneira, essa
dimenso simblica que pede atualizao e ressignificao quando nos tornamos terapeutas de
sacerdotes, de maneira a que a pessoa, e no o sacerdote, esteja em nossa frente a nos
requisitar nosso servio. Isso tem implicaes importantes na postura teraputica, pois, no
mnimo, obriga o terapeuta a visitar sua formao religiosa, sua histria com o sagrado,
obriga-o a rever seus conceitos e seus preconceitos ante a religiosidade, a religio, seus
fenmenos e suas instituies.
Fao aqui uma distino entre duas maneiras de ser padre: h os padres religiosos e os diocesanos. Os
padres religiosos so aqueles que vivem em congregaes, que geralmente dividem uma habitao e um modo de
trabalho com outros padres; os padres diocesanos so aqueles que esto vinculados mais estreitamente a uma
diocese, tm uma parquia diante da qual so responsveis ou co-responsveis e, de maneira geral, moram
sozinhos.
consagrada e os leigos. Ilustro essas observaes com vinhetas baseadas na prtica clnica
com essa clientela e tambm com um caso clnico descrito mais detalhadamente, este no
captulo IV.
Penso que preciso incrementar uma fundamentao explcita e cuidadosa para o
trabalho teraputico com as pessoas de vida consagrada. Ao desenvolver esta tese de
doutoramento, eu quero contribuir para o desenvolvimento dessa fundamentao. Mais do que
isso, quero dar a esse tema um trato cientfico e fundamentado em uma prtica clnica sria e
criteriosa.
CAPTULO I
Meu propsito neste captulo levantar algumas reflexes sobre a viso da Gestaltterapia a respeito da religio e da religiosidade humanas, tema pertinente ao melhor
desenvolvimento do trabalho de Gestalt-terapia de Curta Durao para clrigos. Meu ponto de
partida so questes relativas maneira como a religio e a religiosidade podem ser
entendidas quando relacionadas com uma prtica clnica em Gestalt-terapia, uma atividade
que pretende ser til para todas as pessoas, independentemente de que prtica ou afiliao
religiosa elas adotem.
Assim, provocado por inmeras questes que perpassam minha mente, o seguinte o
caminho que pretendo trilhar nas reflexes que proponho agora: 1) depois de comentar
brevemente sobre a religio e a religiosidade humanas, 2) delimitarei a Gestalt-terapia
enquanto teoria de personalidade e de psicoterapia, explorando uma viso de homem a partir
da abordagem gestltica; a seguir, e considerando que a presena da religio e da religiosidade
so marcantes para a populao-alvo da minha tese2, a ponto de se falar em vida consagrada
querendo englobar e significar a vida dessas pessoas, 3) discutirei as relaes entre a
psicoterapia e a religiosidade e a religio e 4) lanarei hipteses sobre a posio da Gestaltterapia ante a religio e a religiosidade a partir de algumas das fontes constitutivas da teoria
desenvolvida por Perls e colaboradores, para, em seguida, 5) comentar sobre as interfaces
1
2
(1995, p. 85)
Pretendo, no correr deste texto, seguir um dos mais sbios conselhos de Fritz Perls, um dos
criadores da Gestalt-terapia: Qualquer abordagem racional da psicologia que no se esconda por detrs de um
jargo profissional deve ser compreensvel para o leigo inteligente e deve ser fundamentada em fatos do
comportamento humano. Caso contrrio h algo basicamente errado com ela. A psicologia lida, afinal de contas,
com um objeto de maior interesse para os seres humanos: ns prprios e os outros. (...) Tal compreenso do self
envolve mais que o entendimento intelectual habitual. Requer sentimento e tambm sensibilidade. (Perls, 1977,
p. 17)
4
religion tre un terme utile pourvu quon se rapelle quil nimplique pas ncessairement une
croyance en Dieu, en des dieux ou en des sprits, mais se rfre lexperience du sacr et, par consquent, est li
aux ides dtre, de signification et de vrit.
10
Do ponto de vista psicolgico, a religio tanto pode ser vista como uma fonte de fora
para as pessoas como pode tambm ser um refgio para a fraqueza, sendo que nenhuma
dessas duas possibilidades boa ou ruim por si mesma. No entanto, como lembra Wulff
(1997, p. 625/626), ao comentar as idias de Rollo May quanto a esta temtica, de acordo com
a capacidade humana tanto para o bem quanto para o mal,
a religio pode reforar o senso individual de dignidade pessoal e valor, promover a
afirmao de valores em vida, e nutrir o desenvolvimento da conscincia tica e da
responsabilidade pessoal. Ou a religio pode diminuir o senso pessoal de liberdade,
pode gerar uma expectativa de que no seja necessrio o cuidado pessoal, e pode
induzir evitao da ansiedade que inevitavelmente acompanha qualquer
enfrentamento genuno das possibilidades humanas. Segundo May, a Psicologia pode
ajudar a promover o lado positivo de religio, fazendo evidentes os erros da f
dogmtica e clareando o caminho para convico interna genuna. Psicologia e
religio tambm podem cooperar tornando possvel o temor e o maravilhamento
sentidos pelo ser humano saudvel, criativo, em quem as possibilidades do esprito
humano so atualizadas.5
religion may strengthen the individual's sense of personal dignity and worth, promote the affirmation
of values in life, and foster the developmental of ethical awareness and personal responsibility. or religion may
diminish a person's sense of freedom, engender an expectation of being taken care of, and allow the individual to
avoid the anxiety that inevitably accompanies any genuine facing of human possibilities. Psychology can help to
promote the positive side of religion, May suggests, by making evident the errors of dogmatic faith and clearing
the way for genuine inner conviction. Psychology and religion may also cooperate in making possible the awe
and wonder felt by the healthy, creative human being, in whom the possibilities of the human spirit are
actualized.
6
Utilizo neste texto os termos Gestalt-terapia e abordagem gestltica como semelhantes, ambos
significando uma abordagem psicolgica do ser humano desenvolvida principalmente por Frederick (Fritz) e
Laura Perls e ampliada por seus seguidores. Desta abordagem desenvolve-se uma prtica clnica de psicoterapia.
11
nunca conhecida antes, mais baseada em estudos que em f, mais racional que intuitiva,
caracterizando um mundo de certa maneira desencantado7. Alm disso, deve-se tambm
considerar que na cultura ocidental de hoje a religio no tem mais um papel integrador,
constituidor de significado da maneira to forte como j teve em outras pocas da histria
humana; ainda assim, na sociedade moderna, caracterizada pela racionalidade e a
especializao, a religio um fenmeno que permeia de maneira significativa a socializao,
a individuao e a busca de sentido existencial.
1.2 a religiosidade
Embora seja dificlimo caracterizar conceitualmente com clareza a fronteira entre
religio e religiosidade8, uma vez que h uma grande porosidade e uma significativa
interseco entre esses dois conceitos, entendo que, para um psicoterapeuta, faz sentido e
importante buscar uma conceituao mais cuidadosa da religiosidade humana. No meu modo
de ver, o que reala na psicoterapia a religiosidade, dado que o foco ltimo do trabalho
teraputico a compreenso sobre como aquele determinado cliente vive seu mundo, a
includa sua religio, construtora e construo da religiosidade desse cliente.
Assim, religiosidade ser aqui entendida como a tendncia humana para os
sentimentos religiosos, para as coisas sagradas. Delimitarei aqui a religiosidade como a
experincia pessoal e nica da religio, ou seja, a face subjetiva da religio, como afirma
Valle (1998, p. 260). Doravante, verei a religiosidade como baseada na experincia religiosa,
a qual no um saber sobre a religio, mas, antes, um contato com o mistrio e a abertura
para o sentimento da possibilidade da existncia de uma outra dimenso, a qual distinta e
relacionada com a dimenso cotidiana. A religiosidade, ento, diz respeito vivncia de um
tipo de temor reverente, proveniente da conscincia de uma relao inevitvel, embora livre,
com o sagrado, e da aceitao, ou no, dessa relao. A religiosidade tem relao ntima com
a busca de significados na vida e remete necessariamente questo das Realidades ltimas.
No meu entender, a religiosidade inerente ao ser humano, embora suas formas de expresso
A busca de uma delimitao o mais clara possvel para os conceitos de religio, religiosidade,
espiritualidade, sentimento religioso, tem sido alvo de estudos de diversos tericos em Cincias da Religio e em
Psicologia da Religio. Para me ater aos propsitos desta tese, no me aprofundarei nas complexas discusses
que buscam a delimitao desses conceitos, remetendo o leitor a alguns trabalhos brasileiros que fazem, cada um
a seu modo, aproximaes ao tema: Ancona-Lopez, 2004; Farris, 2002; Giovanetti, 1999; Holanda, 2004;
Libnio, 1995; Paiva, 2006; Safra, 2001; Valle, 1998.
12
sejam tantas quantos so os seres humanos. Ao longo deste captulo, desenvolverei mais
profundamente essas idias.
Penso que um olhar de uma teoria psicolgica sobre a religio e a religiosidade
humanas deve ter como base uma viso de homem desta teoria. Tendo isso em vista, fao a
seguir um levantamento que me possibilitar uma elaborao de uma viso de homem a partir
da Gestalt-terapia, o que, por sua vez, me possibilitar refletir sobre a insero da
religiosidade e da religio nessa viso de homem, bem como as conseqncias dessa insero
para o processo psicoterpico.
2 a tica da gestalt-terapia
A premissa da qual parto a de que toda abordagem em psicologia apresenta, ainda
que apenas implicitamente, uma viso acerca do ser humano. A Gestalt-terapia pretende ser
uma sntese criativa e coerente, em constante transformao, de algumas correntes filosficas
ou psicoterpicas: a Psicologia Existencial, a psicologia fenomenolgica, a psicologia
humanista, a psicanlise (freudiana e de alguns discpulos de Freud9), os trabalhos de Martin
Buber, Kurt Lewin e os trabalhos de Reich, a psicologia da Gestalt, a teoria organsmica de
Goldstein, a teoria de Lewin, alguns aspectos do taosmo e do budismo. dessa base de
influncias que se pode depreender a viso de ser humano da abordagem gestltica e, a partir
da, depreender tambm a viso da religio e da religiosidade humanas da Gestalt-terapia.
13
14
10
Em Gestalt-terapia, por causa dos estudos de Lewin, campo definido como a totalidade dos fatos
co-existentes, em dado momento, e concebido em termos de mtua interdependncia, cuja significao depende
da percepo dessa correlao entre sujeito e objeto. (Ribeiro, 1999, p. 57)
15
11
16
17
18
interao, ou seja, do que o meio pode proporcionar ao organismo e do que o organismo pode
retirar do meio, num processo em que a criatividade do organismo crucial. Dessa forma, a
satisfao das necessidades e a auto-regulao organsmica dependem tanto dos recursos
internos do organismo quanto dos recursos externos a ele e da relao que se estabelece entre
o organismo e o ambiente. (cf Lilienthal, 2004, p. 74)
Porque o meio tem mais influncia sobre o organismo que este sobre o meio, o meio
deve ser conquistado. Como o ser humano malevel, essa conquista se d atravs da autoregulao organsmica, um processo que traz as necessidades mais importantes para o
primeiro plano da awareness no momento mesmo em que essas necessidades surgem, um
processo que se fundamenta em um complexo sistema de ajustamentos e em sofisticadas
interaes que protegem a fronteira de contato, possibilitando a conquista do equilbrio.
importante lembrar que essa interao organismo-meio extremamente dinmica, de modo
que a cada vez que o equilbrio alcanado, imediatamente ele perdido, para de novo ser
alcanado e perdido, num ciclo ininterrupto por toda a vida do organismo.
19
20
2.7 a Psicanlise
As influncias da Psicanlise na Gestalt-terapia so variadas, uma vez que tanto Perls
quanto Laura foram, a princpio, psicanalistas. Houve um tempo em que se dava, em Gestaltterapia, muito mais nfase s divergncias com a Psicanlise que aos pontos de encontro.
Hoje a situao um pouco diferente, de maneira que o contato entre as duas teorias j no
mais to baseado em ressentimentos e em rivalidades, mas, antes, em crescente respeito pelas
diferenas e em crescente aprendizagem mtua. Como cada corrente em Psicologia j tem seu
campo definido, abre-se agora o espao para o enriquecimento mtuo, uma vez que
12
21
praticamente acabou-se a discusso em que uma queria se sobrepor outra. Nesse processo de
influncias recprocas entre as teorias de base psicanaltica e as teorias humanistas, penso,
com Lynne Jacobs, que h uma mudana interessante ocorrendo no campo da psicoterapia, o
qual
passa de um modelo de psicopatologia de conflito e defesa para um modelo
desenvolvimentista. O modelo de conflito e defesa ainda prevalece em muitas escolas
de psicoterapia como remanescente da teoria do drive. Nesse modelo, as desordens
surgem dos conflitos entre impulsos, ou entre um impulso e o princpio de realidade
do ego, assim como das defesas que surgem contra esses conflitos. As pessoas so
vistas como desejosas de reter os impulsos infantis, desistindo deles com relutncia
para se adaptarem s demandas da realidade. J no modelo desenvolvimentista, as
desordens surgem quando h um vnculo pobre entre as necessidades de
desenvolvimento da pessoa e os recursos e as possibilidades do meio ambiente,
resultando em interrupes no desenvolvimento, um processo de desenvolvimento que
foi impedido de prosseguir, por exemplo, no estabelecimento das fronteiras de contato.
(Jacobs, em Hycner, 1997, p. 147)
Tem-se caminhado, nas psicoterapias, para uma maior interao entre as teorias
relacionais e desenvolvimentistas, como a Gestalt-terapia e a abordagem winnicottiana, por
exemplo, e as mais baseadas no drive, ou nas pulses, como a Psicanlise clssica. Isso no
quer dizer que se caminhe para uma uniformidade no campo das psicoterapias, uma vez que,
ainda que haja marcante influncia de uma viso sobre a outra, e vice-versa, mantm-se, e so
por demais importantes para serem menosprezadas, importantes diferenas quanto viso
sobre como se caracteriza a natureza humana. Voltarei a este tema de maneira mais detalhada
no prximo captulo desta tese.
a partir de reflexes sobre as influncias exercidas sobre Perls e colaboradores na
criao da Gestalt-terapia sintetizadas acima que podemos depreender uma viso de homem
da Gestalt-terapia.
22
3 A psicoterapia e a religiosidade
Ao tratarmos da religio e da religiosidade humanas, parece-me importante lembrar de
levar em conta que, ainda que no se possa definir claramente se por causa da cultura ou por
predisposies naturais, o ser humano um ser religioso13, independentemente de ele afiliar-
13
23
24
conta duas maneiras de ser, praticamente dois mundos profundamente diferentes entre si, um
da cotidianidade, ou profano, e outro superior, demarcado por uma outra espcie de
existncia, da ordem do sagrado. Ento, me parece ser possvel se dizer que a principal
caracterstica da religiosidade humana uma intuio que aponta para a existncia de pelo
menos dois mundos, um que, de certa maneira, se pode conhecer, outro, ou outros, em que s
se pode crer. Do meu ponto de vista, isso no abre espao para a possibilidade de que se
conceba um ser humano no-religioso, uma vez que a argumentao que nega a forma de
mundo sagrado rui facilmente ante certos sofrimentos ou ante certos xtases, revelando uma
intensa e ntima necessidade humana de crer em algo sagrado que lhe superior.
No campo das psicoterapias, a religiosidade humana, que no necessariamente um
sistema de crenas religiosas, embora seja o sustentculo dessas crenas, um dos temas mais
controversos que existem. Por um lado, h diversas teorias que tratam de um sentimento
religioso inerente ao ser humano, que no tomado como oposto razo e muito menos
redutvel a uma explicao simplista. Essas teorias, dentre as quais se destacam as chamadas
teorias humanistas em Psicologia (dentre elas a Gestalt-terapia), vem esse sentimento
religioso como algo que, segundo Romain Rolland (cf Ancona-Lopez, 2004, p. 02),
dinmico, vital, criativo e independente dos vrios acrscimos da religio institucionalizada.
Para Giovanetti (1999, p. 94),
a interrogao que o homem faz, do mais profundo de seu ser, sobre as questes
ltimas do mundo e da realidade coloca-o ante o que denominamos
Sagrado.
Assim, a experincia religiosa essa experincia que tem como ponto de partida a
tentativa de dar uma resposta interrogao que o homem estabelece com algo que o
transcende e se apresenta como superior a ele e at como misterioso. O objeto, aqui,
aparece para o homem como algo que s vezes mobiliza mais seus sentimentos do que
sua reflexo.
Por outro lado, h uma srie de teorizaes em psicoterapia que tratam desse
sentimento religioso, bem como das religies, apenas como manifestaes restritivas ao
desenvolvimento humano, o que faz Ancona-Lopez (2004, p. 04) comentar que atualmente
observa-se entre os psiclogos um medo da religio. As religies aparecem, na fala
dos psiclogos clnicos, principalmente em suas vertentes fundamentalistas e so
rejeitadas como rgidas e ortodoxas. Os dogmas contrapem-se ao pluralismo das
interpretaes, as regras so vistas como imutveis e negando, portanto, a
transitoriedade dos costumes e os processos histricos e psicolgicos que incidem no
comportamento humano, as hierarquias contrapem-se liberdade e ao pensamento
25
4 a gestalt-terapia e a religio
Como j vimos, a Gestalt-terapia uma teoria de personalidade e uma teoria de
psicoterapia que vem sendo continuamente desenvolvida por autores contemporneos. Faz
parte da chamada terceira fora em Psicologia, ou corrente humanista, que emergiu como
reao s vises psicanaltica e comportamentalista do ser humano. uma abordagem
fenomenolgico-existencial que tem como valores relevantes a singularidade do ser humano e
a responsabilidade de cada pessoa perante si, seu tempo e seu mundo.
A Gestalt-terapia tem tambm como valor relevante o fato de que o ser humano
fundamentalmente um ser de relao, um ser que no pode sequer ser concebido se no em
relao consigo, com o outro e com o ambiente. tambm importante para a abordagem
26
gestltica a busca humana pela liberdade no convvio com o destino, uma busca que se baseia
no potencial criativo e realizador de cada pessoa em sua sempre inacabada tarefa de ser.
Quando me refiro ao destino, apio-me em Rollo May (1987), para quem destino o
padro de limites e de riquezas que constituem o que nos dado na vida. Esses limites e essas
riquezas podem aparecer nos eventos de grande escala, como a morte, ou de pequena escala,
como uma tromba dgua, por exemplo. May (1987, p. 115/117) afirma que nosso destino
no pode ser cancelado; no podemos apag-lo ou substitu-lo por qualquer coisa. Mas
podemos escolher como vamos reagir, como vamos usar nossos talentos. Comentando sobre
um seu cliente, Rollo May afirma que quando este cliente pde compreender seu destino
como uma srie dada e inalterada de eventos, os quais, por mais dolorosos que sejam,
precisam ser reconhecidos e aceitos, foi capaz de experimentar o alvio de algum que de
escravo se tornou livre, (pois) a liberdade de cada um est em proporo com o grau com
que confrontamos e vivemos em relao ao nosso destino. May afirma ainda que o destino
nos confronta em diversos nveis: no nvel csmico, como no nascimento e na morte, nos
terremotos e vulces, na felicidade da praia deserta; no nvel gentico, com nossa anatomia e
nossos dons; no nvel cultural, pois ao nascer somos lanados numa famlia que no
escolhemos, numa cultura que ignorvamos por completo, num perodo histrico especfico
sobre o qual nada tnhamos a dizer; e, finalmente, no nvel circunstancial: o mercado de
aes sobe e desce; uma guerra declarada; Pearl Harbor atacado. Depois que tais coisas
acontecem, no podem mais ser invertidas, evitadas ou ignoradas.
Alm desses aspectos relativos abordagem gestltica, que agora rememoro, como j
vimos, so conceitos bsicos da Gestalt-terapia: o ser humano um ser de relao (relao
consigo mesmo, com o mundo, com os outros); totalidade e integrao (a pessoa como uma
unidade psique-corpo-esprito); o ser humano como unidade indivduo-meio (o ser humano
est constantemente interagindo com limites sociais e ambientais, a ponto de no ser possvel
sequer imagin-lo seno em interao ntima com o meio); unidade de passado, presente e
futuro (o aqui-e-agora o tempo e o lugar onde as modificaes podem ocorrer); autoregulao (o ser humano um todo unificado que se auto-regula). Em suma, a teoria da
Gestalt-terapia uma teoria que privilegia os processos, ou seja: o que mais importa o
relacionamento, o entre. A viso do gestalt-terapeuta uma viso voltada para a dinmica
que acontece em determinado momento da vida de uma pessoa. Assim, entendem-se as
estruturas da personalidade no s como entidades, mas primordialmente como funes ou
conjuntos de funes, existentes prioritariamente atravs da relao. Para o gestalt-terapeuta,
27
mais importante o como que o o que ou o porqu14. Alm disso, o entre o lugar
privilegiado pelo olhar gestltico. Dessa maneira, importa entender o ser humano como um
ser em relao. Um ser em relao consigo mesmo, com o mundo que o rodeia, com suas
possibilidades e potencialidades existenciais. Um organismo em relao com o mundo. Nessa
relao organismo-mundo, fundamental para a Gestalt-terapia, h que se olhar tambm para
os aspectos religiosos do existir, h que se ponderar (especialmente, mas no somente, quando
tratamos da clientela composta por clrigos) a importncia dos aspectos religiosos nos jeitos
de ser e de fazer terapia das pessoas, de seus terapeutas e, de forma ainda mais especial, na
abordagem e na prtica clnica da Gestalt-terapia. a uma tentativa de decifrao da viso da
Gestalt-terapia sobre a religio humana que me dedicarei daqui por diante neste captulo,
ressalvando que se trata de uma mirada inicial, portando, sob certo ponto de vista, uma ousada
aproximao do tema.
Digo que esta minha tentativa de compreenso da abordagem gestltica sobre a
religio ousada porque, ao menos dentro do que me foi dado pesquisar, ainda h muito o que
se desenvolver em Gestalt-terapia em busca de uma explicitao terica de como se d esse
olhar gestltico para a religio, embora para mim no haja dvidas de que ele se d. H
algumas aproximaes da Gestalt-terapia com a religio, como veremos adiante,
principalmente com algumas religies orientais, mas somente nos ltimos tempos comeam a
aparecer algumas poucas, mas importantes, teorizaes com suficiente profundidade na
Gestalt-terapia sobre a religiosidade e a religio humanas, ao menos dentro do universo que
me foi possvel estudar.
Nos principais textos da Gestalt-terapia, quer seja em livros, quer seja em revistas ou
em sites da internet, nacionais e estrangeiros, ainda h menos do que seria desejvel que se
possa relacionar explcita e diretamente religio e religiosidade humanas. Quer seja nas
aproximaes da Gestalt-terapia com as religies orientais presente nos livros e artigos, quer
seja em outras tentativas de aproximao da abordagem gestltica com religies ocidentais, o
que encontramos muito mais uma preocupao com alguns elementos tericos, alguma
postura existencial ou com algum comportamento do que especificamente com a religiosidade
14
Segundo Ginger (1995, p. 65), para Perls a Gestalt pode ser resumida em quatro palavras (que
rimam, em ingls): I and Thou, How and Now (Eu e Tu, Agora e Como). Segundo Laura Perls (cit. em
Yontef, 1998, p. 31), o objetivo da Gestalt-terapia o continuum de awareness, a formao continuada e livre
de gestalt, por meio da qual aquilo que for o principal interesse e ocupao do organismo, do relacionamento, do
grupo ou da sociedade se torne gestalt, que venha para o primeiro plano, e que possa ser integralmente
experienciado e lidado (reconhecido, trabalhado, selecionado, mudado ou jogado fora, etc.) para que ento possa
fundir-se com o segundo plano (ser esquecido, ou assimilado e integrado) e deixar o primeiro plano livre para a
prxima gestalt relevante.
28
humana no seu sentido mais amplo. O olhar gestltico para a religio e para a religiosidade
ainda parcial e omite aquela que a principal caracterstica da religiosidade humana, a busca
de sentido para a vida e do contato com o mistrio e com o sagrado. Os tericos da Gestaltterapia no conseguiram ainda discutir suficientemente os aspectos simblicos no que diz
respeito religio e religiosidade humanas, e essa uma falha que, da forma como penso,
precisa ser sanada o mais rpido possvel.
Parece-me importante observar ainda que esta aproximao que agora tento uma
abordagem inicial de um fenmeno especialmente amplo e complexo, a viso de uma teoria
da psicologia sobre a religio e a religiosidade humanas. Assim, porque inicial esta
abordagem, no minha pretenso aqui esgotar o tema, mas to somente aprofund-lo o
suficiente para os propsitos dessa tese. Entendo que esse estudo necessrio e que deve ser
ampliado mais adiante, por mim e por outros tericos da Gestalt-terapia. Sigo na trilha de
Georges Boris, o qual, nos comentrios acerca do primeiro livro de Perls (Ego, Fome e
Agresso), afirma que Perls
abriu muitas trilhas: algumas desenvolvidas por meio de livros e prticas posteriores;
outras, apenas esboaram o caminho sem percorr-lo; outras mais, foram abandonadas
ou rejeitadas ao longo do percurso; finalmente, algumas trilhas no foram nem mesmo
tocadas. Este um trabalho que hoje compete a ns: retomar, rever, modificar,
acrescentar e desenvolver as trilhas do criador da Gestalt-terapia. (Boris, em Perls,
2002, p. 28)
No trabalho que ora desenvolvo, que pretende rever e acrescentar algo s trilhas
indicadas por Perls, farei algumas aproximaes entre a Gestalt-terapia, a religio e a
religiosidade, apoiando-me em alguns constituintes bsicos do complexo tecido que compe a
abordagem gestltica. Tomarei algumas das bases do desenvolvimento da abordagem
gestltica para, a partir delas, iniciar a construo de uma reflexo sobre a viso gestltica da
religiosidade. Assim, construirei meu raciocnio fundamentalmente a partir da fenomenologia,
da psicologia humanista, de um olhar existencialista para o fenmeno religioso e de algumas
idias de Goldstein, sem deixar de levar em conta os outros constituintes do tecido gestltico,
os quais, no entanto, ficaro mais como fundo que como figura, por no me parecerem
indispensveis para a costura que inicio agora. Penso que esses fundamentos da abordagem
gestltica que priorizarei so mais do que suficientes para que se possa compreender os
fenmenos da religio e da religiosidade a partir de um ponto de vista gestltico.
29
15
Diz Gilberto Safra (2001, p. 55): as concepes religiosas no psiquismo humano sofrem evoluo
medida que a personalidade do indivduo alcana um funcionamento mais integrado e maduro. As vivncias
religiosas, por no terem um carter representacional, por serem experincias puras, no sofrem evoluo. Em
determinado momento do processo maturacional, as vivncias religiosas integram-se s concepes religiosas
desenvolvidas ao longo da vida do indivduo, pela assimilao das tradies culturais que tiveram influncia
sobre ele.
30
verificar que no somente isso, coloca-se a religiosidade humana, na medida que uma
busca curiosa de contato respeitoso, temeroso e libertador com o mistrio, como parte
integrante da e pertinente sade humana. Fundamentalmente, o olhar humanista valida a
busca humana pelo sagrado e coloca a relao do ser humano com o sagrado como uma das
relaes mais importantes e sustentadoras do homem, sem negar, contudo, a possibilidade de
que essa busca se apresente num formato patolgico em algumas circunstncias.
No que diz respeito religiosidade humana em relao com o existencialismo,
especialmente nos termos em que Sartre o conceitua, h algumas questes extremamente
espinhosas a serem levantadas. A primeira e talvez a mais importante delas a que diz
respeito autonomia e liberdade humanas. Se o homem possuidor de si mesmo, livre e
responsvel, se ele tem poder sobre si mesmo e sua existncia, como pode manter essa postura
diante da possibilidade da existncia do sagrado, de algo que, por princpio, transcende o
homem? No h como se responder a essa questo sem que se recorra arte. So os mitos que
do as notcias mais profundas ao homem sobre ele mesmo; por isso, nos mitos gregos, to
importantes na formao da cultura ocidental, que podemos encontrar exemplos e caminhos
para uma reflexo sobre as fronteiras entre o contato com o sagrado e a liberdade e
responsabilidade humanas. Apoiar-me-ei numa tragdia grega, uma das mais importantes
delas, a trilogia de Sfocles que conta a histria de dipo, para continuar minhas reflexes.
Como o mito de dipo sobejamente conhecido, alm de contar com inmeras publicaes16,
permitir-me-ei no resumi-lo aqui.
16
Veja-se, por exemplo, SFOCLES. A Trilogia Tebana: dipo Rei, dipo em Colono, Antgona Tragdia Grega I. Rio de janeiro: Zahar, 1996
31
lana a pergunta que acompanhar sua anlise da tragdia: por que dipo simplesmente no
pede desculpa e argumenta que todos esto de prova de que ele fez tudo o que pde para
acertar? E Pompia comea a responder sua pergunta depois de lembrar que dipo, por autopunio, furou os prprios olhos ao ver Jocasta morta:
Ao assumir essa culpa absurda, porque sem fundamento na razo, dipo distingue dois
planos: no plano dos fatos, os deuses so onipotentes, o homem no pode mud-los;
mas o plano dos significados, isso coisa dos homens. A realidade cria fatos. O
homem costura-os e faz histria.
Para Pompia, quando dipo traz para si a culpa, ele est evitando ser fantoche dos
deuses, pois afastar a culpa seria, implicitamente, admitir que o homem no conta nessa
histria, o que conta s o destino.
Depois de passar o resto da vida como um andarilho mendigo, acompanhado por sua
filha, Antgona, dipo torna-se sbio. Quando chega a Colono, roga s deusas de l que o
deixem ficar, pois estava previsto pelo Deus Febo que aquele seria seu lugar de refgio, um
paradeiro acolhedor. Neste momento de sua vida, dipo sente-se ntegro de novo: sua a
falta cometida; sua a infelicidade que dela decorreu; seu o sofrimento pelo castigo que ele
mesmo se imps. Neste momento, mais uma coisa se integra vida de dipo: a aceitao de
sua no-onipotncia. Quando finalmente acha um paradeiro acolhedor, dipo plenamente
homem, o nico heri puramente humano da mitologia: no afastou de si a culpa, quis
responder por suas aes e, agora, aceita tambm que no sabia tudo, que no era onipotente.
Depois de fazer libaes com a gua trazida por suas filhas, dipo se veste e senta-se
prximo fenda de uma rocha que era a entrada para o mundo dos mortos, e levado sem
sofrimentos. Pompia entende que dipo se torna heri porque se recusou a tomar a
realidade como nica referncia; ele completa seu raciocnio:
Mas o que os deuses homenageiam num heri fracassado, que termina a vida cego
pelas prprias mos? Homenageiam a histria, na qual eles no so onipotentes, j que
a histria uma questo de significados, costura, coisa humana. Significado s
pode ser dado por algum que sonha. (Os deuses no podem sonhar porque so
oniscientes; j h um saber, no h risco, e todo sonho um risco.)
Ao finalizar sua anlise, Pompia nos lembra que dipo assume a culpa absurda
como se quisesse significar que precisava t-la como sua para afirmar seu lugar, seu espao
dentro da realidade. Para os gregos do sculo V, segundo Pompia, a necessidade de poder
ser culpado j era conhecida, pois para eles culpa e poder esto intimamente ligados. S pode
ser culpado quem tem algum poder. O preo da inocncia uma ausncia de significado,
32
no poder ser cobrado porque nada significa. Dessa forma, a culpa, ou a responsabilidade
existencial, podemos dizer, a expresso de algum poder, mesmo que este poder seja s no
plano do significado e no na realidade concreta.
Parece-me que esses exemplos ilustram bastante bem a compatibilidade de uma viso
do ser humano como responsvel e escolhedor e em contato com o sagrado. Ao tecer histria,
ao descobrir e atribuir sentido e significado, o homem , sim, livre, tem uma liberdade tal que
ele se torna livre at mesmo do sagrado ou de algo que possa ser superior ou anterior ao
homem. Este homem , portanto, responsvel e potente.
Alm disso, a mim me parece que, antes de escolher, o homem descobre; antes de ser
um escolhedor ele um descobridor. Descobridor de si, de seu mundo, desvelador de alguns
mistrios, respeitador de outros mistrios, temente ante ainda outros mistrios. Entendo o
homem como dotado de um potencial, o que, num sentido aristotlico, significa que ele tem
algo inato, algo intrnseco a ele que lhe compete escolher entre desenvolver ou no. Uma das
escolhas mais fundamentais que colocada diante do ser humano essencialmente esta:
desenvolver, ou no, seu potencial. Acredito que esse jeito de ver o ser humano no tira dele a
liberdade e, muito menos, a responsabilidade pela sua auto-orientao e pelos sentidos e
propsitos que d a si mesmo e ao mundo. Mesmo diante da existncia desse potencial e
diante da f no sagrado, o homem continua livre e incapaz de um dia estar pronto, mantendose como um ser em constante devir, em contnuo processo de vir-a-ser, capaz de,
autonomamente e com liberdade, redefinir o sentido de sua vida sempre que perceber que isso
necessrio. Esta capacidade, praticamente obrigatoriedade, de se responsabilizar pelas suas
escolhas e pelos significados tecidos, torna a liberdade humana plenamente compatvel com a
religiosidade humana e no afasta essa reflexo do campo da psicologia humanistaexistencial-fenomenolgica.
Sintetizando, creio ter deixado claro que se o homem um ser de sentidos, um tecelo
de sentidos na histria, a mim me parece bvio, ento, que este homem de que se fala
religioso. No porque a busca de sentidos seja feita apenas religiosamente, e sim porque, ao se
buscar os sentidos da existncia e de algumas experincias dessa existncia, inevitavelmente
se atravessa o terreno do sagrado, o terreno da religio. uma das principais funes dos
smbolos religiosos ajudar a pessoa a organizar a prpria vida, o que facilita, quando no
propicia, que o organismo transcenda em direo ao que e tem de mais propriamente
humano. O ser humano continuamente experiencia o limite da falta de sentido. De certa
maneira, o ser humano aterrorizado pela experincia da falta de sentido. Essa experincia
integrada pela religiosidade a partir da concesso de sentidos, pois a religio ainda um dos
33
17
Il est difficile dimaginer comment lesprit humain pourrait fonctionner sans la conviction quil y a
quelque chose dirrductiblement rel dans le monde; il est imipossible dimaginer comment la conscience
pourrait apparatre sans confrer une signification aux impulsions et aux expriences de lhomme. La conscience
dun monde rel et significatif est intimement lie la dcouverte du sacr.
18
34
porque h um mistrio tremendo exigindo que o homem se posicione perante ele. Exigindo
que o homem se posicione livremente perante ele.
4.1.3 o TU espera do EU
Entendo que o sagrado parte do campo, um processo no campo, um processo
concreto que influencia e permeia os significados que cada pessoa d a si, ao mundo, sua
existncia e vida. Mesmo que no seja nomeado, o sagrado est l; mesmo que apenas
potencialmente conscientizvel, mesmo que negado, o sagrado est l no campo. Como um
TU espera do EU. Diz Buber (1991, p. 2):
Eu no possuo nada alm do cotidiano, do qual eu nunca sou retirado. O mistrio no
se abre mais, ele se subtraiu ou fixou domiclio aqui, onde tudo acontece como
aconteceu. Eu no conheo mais nenhuma plenitude alm daquela de cada hora
mortal, de exigncia e responsabilidade. Longe de estar altura dela, eu sei, porm,
que sou solicitado pela exigncia e posso responder responsabilidade, e sei quem
fala e quem exige resposta.
Muito mais eu no sei. Se isto religio, ento ela simplesmente tudo,
o simples
35
Um dos meios atravs dos quais o homem busca colocar-se em acordo de boa
vizinhana com o ambiente a sacralizao de determinados espaos ambientais. atravs
dessa sacralizao dos espaos (espaos muito mais descobertos do que escolhidos), que o
homem se retira da homogeneidade do espao profano e faz de seu ambiente mais amplo, vale
dizer, de seu mundo, um ambiente mais nutritivo, portanto facilitador de seu processo de autorealizao. Para o homem religioso, um templo religioso, por exemplo, um espao diferente
da rua onde este templo se encontra, de modo que a porta que se abre para o interior do
templo significa, efetivamente, uma soluo de continuidade no ambiente. (cf Eliade, 1998, p.
295 e ss)
No que diz respeito aproximao que podemos fazer do conceito de auto-realizao
com a religiosidade humana importante levarmos em conta que Goldstein postula que o
organismo, constantemente provido de energia, busca o equilbrio, busca uma distribuio
regular da energia. O amadurecimento e a aprendizagem derivados da experincia so
importantes ferramentas a manter o organismo menos suscetvel aos desequilbrios. Para
Goldstein, tambm a busca de conhecimento e de compreenso acerca de si e do mundo um
processo de auto-regulao. Isso, no meu modo de ver, inclui a religiosidade como parte do
processo de auto-regulao, haja vista que ela, a religiosidade, um dos elementos
impulsionadores do ser humano no caminho de um maior conhecimento de si e do mundo. Se
36
sendo
uma totalidade,
devemos
nos referir
a algo
alm de um ente
19
Segundo James Hillman (2004, p. 01), por causa do Conclio realizado em Constantinopla, em 869,
a alma perdeu seu reino. Nossa antropologia, nossa concepo da natureza humana, passou de um tripartido
cosmo de esprito, alma e corpo (ou matria) ao dualismo de esprito (ou mente) e corpo (ou matria) . Isto
porque, naquele outro Conclio, o de Nicia em 787, as imagens foram privadas de sua inerente autenticidade.
37
processo
de
assimilao
organismo
sucessivamente
modificado.
38
Polster e Polster (1979, p. 105), assim como Juliano, tambm colocam como funo da
psicoterapia guiar as pessoas a uma recuperao das suas funes de contato, o que deixa
claro que podemos correlacionar sade com boa capacidade de contato. Ribeiro (1995, p.
41/42) completa esse raciocnio: o contato pleno envolve trs subsistemas do nosso
organismo: o sensorial, o motor e o cognitivo. (...) Na razo em que se integram, a qualidade
do contato fica mais definida, mais nutritiva e transformadora. (...) Psicoterapia significa
facilitar
um
processo
pessoal,
no
qual
essas
funes
coexistem
trabalham
harmoniosamente.
A psicoterapia favorece alternativas para avaliar pontos de vista, percepes e posturas
que afetam os sentimentos e o comportamento do cliente. Ela uma interao verbal e
simblica de um terapeuta com um cliente e se dirige para uma mudana positiva na vida do
cliente. Em todo processo psicoteraputico, existem conceitos que orientam a atitude e as
intervenes do psicoterapeuta e que devem estar baseados em uma teoria de personalidade e
em uma abordagem sobre o processo psicoteraputico, o qual levar em conta o a diagnstico,
a existncia, ou no, de patologia e os procedimentos a serem propostos. A psicoterapia tem
ainda algumas outras especificidades, dentre as quais destaco o modelo etiolgico, as relaes
entre psicopatologia e comportamentos potencialmente adaptativos, os modelos motivacionais
e cognitivos da personalidade, a maneira e as tcnicas de que o terapeuta se utiliza para
interagir com o cliente.
39
se torna estrada que passa pelo territrio do sagrado a terapia se justifica plenamente como um
dos possveis caminhos em busca da condio humana. E isso s adequadamente possvel
quando a terapia leva em devida conta os fenmenos religiosos e a questo da religiosidade.
pensando nisso que Giovanetti (1999, p. 88) aponta uma lacuna no trabalho da maioria dos
psiclogos brasileiros:
podemos dizer sem medo de errar que os psiclogos, em sua maioria (se no buscaram
uma formao especfica), no se preocupam com a dimenso religiosa nem do
importncia a ela; e mais: na clnica, quando atendem as pessoas, ignoram o problema.
Os psiclogos alegam que o seu trabalho ajudar o homem em seus problemas
psicolgicos, e no religiosos, e que a dimenso religiosa deve ser tratada pelo padre
ou pelo conselheiro psicolgico. Eles se esquecem de que o homem que busca auxlio
profissional deles para aliviar o seu sofrimento um homem total, isto , ao falar de
seus problemas ele traz tambm sua crena em um Ser superior (eu diria em um
sagrado). Assim, o psiclogo no deve e no pode renunciar a sua ao
especificamente psicolgica; antes deve buscar compreender que, ao viver essa outra
dimenso, a da religio, o homem o faz plenamente, como um ser total, e, por isso
mesmo, engaja elementos psicolgicos ao viver a dimenso religiosa.
40
Afirmao literal
Interpretao restauradora
1
literal
Negao literal
4
Simblica
Interpretao redutiva
Excluso da transcendncia
41
20
Most clearly exemplifying literal disaffirmation are such theoretical behaviorists as Vetter and
Skinner. Belonging in Quadrant 2 as well are the medical materialists, who conclude from the findings of
neuropsychology that religion is nothing but a matter of disordered physiology.
42
43
21
The designations of Quadrants 3 and 4 are derived from the work of Paul Ricoeur (1965), who
proposes that modern hermeneutics faces two opposing thought potentially complementary tasks: on the one
hand, reduction or demystification, in order to clear away from religious symbols the excrescence of idolatry and
illusion; and on the other hand, restoration or recollection of meaning, so that the object of suspicion may once
again become an object of understanding and faith. This is a rational faith, to be sure, because it interprets, yet
is a faith nevertheless because it seeks, through interpretation, a second naivet.
44
Por seu turno, e depois de definir que um smbolo uma maneira condensada de
dizer algo por baixo de nossa corriqueira linguagem discursiva (1992 b, p. 155), Rollo May
d a etimologia da palavra smbolo, que deriva de duas palavras gregas, syn e ballein que
[juntas] significam juntar, reunir (p. 158). May (1992 b, p. 163) diz ainda que
a funo de um smbolo acobertar e revelar, disfarar e expor vista,
simultaneamente. A conotao do termo simblico precisamente esta capacidade
artstica de disfarar e de revelar no mesmo instante, sendo uma coisa (disfarar)
impossvel sem a outra (revelar). Um smbolo, num sonho, acoberta uma realidade
imediata e ao mesmo tempo revela uma realidade mais profunda.
45
Outro estudioso dos smbolos humanos, Cassirer, defende que o ser humano, por ter
descoberto o que se pode chamar de um novo mtodo para se adaptar ao seu ambiente e por
no estar mais em um universo meramente fsico, vive num universo simblico, uma vez que
entre o sistema receptor e o efetuador, que so encontrados em todas as espcies
animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o
sistema simblico. Essa nova aquisio transforma o conjunto da vida humana.
Comparado aos outros animais, o homem no vive apenas em uma realidade mais
ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimenso da realidade. (Cassirer, 1994, p.
47)
Cassirer (1994, p. 48/50) continua seu raciocnio e afirma que a linguagem, o mito, a
arte e a religio so partes dessa nova dimenso da realidade,
so os variados fios que tecem a rede simblica, o emaranhado da experincia
humana. (...) O homem no pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente.
(...) Em vez de lidar com as prprias coisas, o homem est, de certo modo,
conversando constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas
lingsticas, imagens artsticas, smbolos mticos ou ritos religiosos que no consegue
ver ou conhecer coisa alguma a no ser pela interposio desse meio artificial. (...) Em
vez de definir o homem como animal rationale, deveramos defini-lo como animal
symbolicum.
46
to absorvente com os smbolos traz perigos, os quais no so, infelizmente, potenciais, mas
manifestos. Dizem eles que, para se adaptar vasta acumulao de cultura, o ser humano
educado em meio a abstraes muito elevadas, de modo que vive em um mundo de
smbolos. Orienta-se simbolicamente como um smbolo em relao a outros smbolos, e
manipula simbolicamente outros smbolos, o que, por um lado, proporcionou ao homem um
enorme aumento na amplitude de ao e poder, porque a habilidade de fixar de modo
simblico aquilo em que estvamos totalmente envolvidos permite uma certa indiferena
criativa. Por outro lado, no entanto, aquele lado que Ricoeur trata como o da idolatria, PHG
lembram que as estruturas simblicas (dinheiro, prestgio, a paz pblica) acabam por se tornar
objetivo exclusivo de toda atividade, na qual no h nenhuma satisfao animal e pode at
no haver nenhuma satisfao pessoal, o que gera desnorteamento e padres que nunca
podemos alcanar.
Para PHG, uma energia enorme se exaure na manipulao de marcas sobre o papel;
recompensas so dadas em tipos de papel, e o prestgio acompanha a posse de papis , o que
faz com que as pessoas se orientem mais pelas convenes, por um certo glamour aprendido e
por receitas de especialistas, que pelas prprias necessidades ou pelos prprios desejos,
abdicando da conquista da prpria atividade.
A conseqncia dessa maneira de lidar com os smbolos , segundo PHG, uma
personalidade neuroticamente dividida como meio de alcanar o equilbrio, uma pessoa que
vive custa dos prprios nervos. Em nossos tempos de globalizao e de mistificao,
como a simbolizao excessiva, ela se d com a perda de uma valiosa animalidade, pois, na
cultura ocidental,
a tarefa no integrar a postura ereta vida animal, mas agir por um lado como se a
cabea flutuasse no ar por conta prpria, e, por outro lado, como se no houvesse
absolutamente nenhuma postura ereta ou nenhuma cabea; e o mesmo ocorre com os
outros aperfeioamentos. Os perigos potenciais tornaram-se sintomas factuais: falta
de contato, isolamento, medo de cair, impotncia, inferioridade, verbalizao e falta de
afeto.
PHG defendem que esse exagero nos smbolos afasta o homem de sua natureza mais
primitiva22, de modo que os smbolos acabam por se colocar em lugar da natureza, ao invs
de junto com ela. Uma possvel reao a isso hoje seria um excesso compensatrio de
concretudes, uma polarizao, igualmente cristalizada, que privilegia o concreto. Nessa
22
47
polarizao cristalizada e reativa, toma-se o prazer pelo prazer, como, por exemplo, na
ideologia narcisista que impera no mundo ps-moderno. Em resposta ao smbolo no lugar
de, a relutncia em simbolizar, de maneira que hoje as pessoas acabam por ter um corpo em
vez de alma, em reao a uma antiga, mas ainda no ultrapassada, pregao por uma alma
em vez de um corpo. Para PHG, a proposta gestltica por um corpo junto de uma alma.
Em um trabalho teraputico, isso implica a possibilidade da integrao do smbolo e da
concretude da vida, ao invs de um aprisionamento no smbolo ou na concretude; implica uma
viso holstica do ser humano, possibilitadora de um trabalho teraputico que ajude o homem
a se afastar das cristalizaes e que se oriente por trs critrios: 1) a sade do corpo,
conhecida por meio de um padro definido (e extremamente pessoal, acrescento eu); 2) o
progresso do paciente em ajudar a si prprio, e 3) a elasticidade da formao figura/fundo.
Sob o prisma fincado na restaurao da dimenso simblica que implica a
restaurao e a renovao da dimenso simblica da religiosidade humana , a psicoterapia
abre suas portas para o trabalho com os seres humanos independentemente da religio do
cliente e do terapeuta, possibilitando encontros que, se compreendem as instituies e
organizaes religiosas s quais as pessoas se filiam, ultrapassam as circunstncias histricas
e extrnsecas dessa afiliao para alcanar a busca humana pelo ltimo, a confirmao do
mistrio, o reconhecimento da pertinncia da pergunta irrespondvel. Essa pergunta no
respondvel a que me refiro , logicamente, aquela que se refere origem, ao fim e
finalidade de cada ser. a pergunta pelo ltimo. a primeira e a ltima pergunta humana, a
pergunta humana mais sagrada e mais misteriosa. uma pergunta que remete para alm da
psicoterapia.
48
49
CAPTULO II
50
acreditava que o tratamento demorava por causa das resistncias difceis de serem vencidas,
principalmente a resistncia que ele chamou de reao teraputica negativa, recadas do
paciente que so atribudas ao de um sentimento inconsciente de culpa, relacionada
importncia, para o paciente, da percepo da melhora. (Sandler, 1979, p. 21). Tentando
encontrar sada para a demora do tratamento psicanaltico, Freud decidiu, no caso do Homem
dos Lobos, tomar uma medida ativa e determinar, j de princpio, a data de fim do
tratamento:
decidi, no sem antes calcular a oportunidade, que o tratamento deveria terminar num
prazo determinado, qualquer que fosse a fase a que ele tivesse chegado. Estava
decidido a observar estritamente este prazo, e o paciente acabou por perceber a
seriedade de meu propsito. Sob a implacvel presso desta data determinada, a
resistncia e sua fixao doena acabaram cedendo, e a anlise proporcionou, ento,
em um prazo desproporcionalmente breve, todo o material, o que permitiu a resoluo
de inibies e a supresso dos sintomas do paciente. Dessa ltima poca da anlise, na
qual desapareceu temporariamente a resistncia e o enfermo dava a impresso de uma
lucidez que geralmente s se consegue com hipnose, provm todos os esclarecimentos
que me permitiram chegar a uma compreenso de sua neurose infantil. (Freud, 1973,
p. 1943)
O que chama a ateno nessas reflexes de Freud o fato de ele no ter dado tanta
importncia ao que ele descreveu como sendo o fator gerador da melhora do paciente, a
determinao de uma data inflexvel para o trmino do tratamento. Como entender isso?
Segundo Gilliron (2004, p. 27), para Freud, naquele momento em que tratava do
Homem dos Lobos, as modificaes tcnicas no pareciam despertar muito interesse,
enquanto a esperana de aprofundar as suas descobertas ocupa o lugar principal em seu
pensamento. Gilliron afirma ainda que Freud, depois de ponderar sobre as sugestes de
Ferenczi e Rank, os quais propunham um analista mais ativo no processo, rejeita
veementemente essas idias de seus colaboradores e recomenda novamente ao analista
manter-se atemporal, com o intuito de chegar mais perto do inconsciente do enfermo. Essa
sugesto de Freud data de 1920, ano importante para a psicanlise, pois ali que, segundo
Gilliron, delineiam-se duas correntes diferentes dentro do movimento psicanaltico: uma, a
mais ortodoxa, voltar seus esforos para as pesquisas metapsicolgicas, excluindo durante
muito tempo a realidade externa, a outra de orientao mais teraputica, cujos precursores
51
sero, em especial, Ferenczi e Rank, optar por aprofundar o estudo da relao teraputica. 2
Dessa corrente de orientao mais prtica surgiram, dentre os fundadores da Sociedade
Psicanaltica de Viena, alguns dos mais importantes dissidentes de Freud: Adler (que busca
um trabalho analtico mais centrado no consciente que no inconsciente, mais centrado nos
conflitos atuais que nos infantis, perspectiva que influenciar profundamente o trabalho de
Perls e de seus seguidores3), W. Steckel (que props uma tcnica parecida com a de Adler e
dizia pretender evitar uma infantilizao dos pacientes, afirmando at que apenas os
tratamentos de durao breve tinham alguma chance de sucesso [Gilliron, 2004, p. 35]),
Jung, (que buscava uma maior atividade do terapeuta, um maior interesse pela situao atual
do paciente, a passagem ao face a face, a reduo da freqncia das sesses, a tentativa de
evitar a regresso [Gilliron, 2004, p. 36]).
Alm desses, e posteriores a esses, podemos colocar tambm Sandor Ferenczi e Otto
Rank como dois dissidentes de Freud e importantes tericos da psicoterapia de curta durao,
embora, como salienta Gilliron, a posio de Ferenczi tenha sido muito diferente, pois suas
pesquisas eram de ordem essencialmente tcnica, ao menos em suas origens, e ele no
recusou qualquer das concepes freudianas. (Gilliron, 2004, p. 37) Quanto a Rank,
segundo Yoshida (1990, p. 15), sua dissidncia se deve defesa do conceito de will-therapy
(terapia da vontade), algo muito parecido com um dos critrios fundamentais para a indicao
da psicoterapia de curta durao, a motivao para mudar. Alm disso, Rank foi um dos
principais influenciadores do trabalho de Perls, pois grande parte da orientao humanista da
Gestalt-terapia se deve a algumas influncias sofridas de Otto Rank, que acreditava que a
primeira luta humana aquela pela individuao pessoal, o que se tornou tambm uma das
preocupaes centrais da Gestalt-terapia. A idia da resistncia vista como criativa e como
facilitadora de uma nova organizao pessoal tambm advm de Rank e capital na Gestalt-
Nessa poca, e at o fim da II Grande Guerra, nos EUA, a Psicologia estava muito mais voltada para o
desenvolvimento da psicometria que da psicoterapia: a maioria dos trabalhos psicolgicos era orientada mais no
sentido de conhecer a personalidade do que em intervir no complexo enredo do comportamento humano. (...) A
classificao de reaes ou de sintomas e o relacionamento de traos e de fatores da personalidade era a
tendncia dominante. (Santos, 1982, p. 03)
3
Para Ribeiro, uma das mais importantes influncias colhida pelo casal Perls veio de Adler, cujas
concepes do estilo de vida e do eu criador apoiaram a participao nica e ativa de cada indivduo que - no
curso de sua evoluo pessoal - entalha a sua natureza especfica. (...) Adler relembrou aos psicoterapeutas a
importncia da superfcie da existncia. Para a Gestalt-terapia a superfcie da existncia o plano do foco
preordenado, a prpria essncia do homem psicolgico. nesta superfcie que existe a conscincia, dando vida
sua orientao e significado. Vem de Adler a influncia para que, em Gestalt-terapia, acreditemos que o homem
cria a si mesmo. A maior energia para a realizao deste esforo prometeico provm de sua conscincia e da
aceitao de si mesmo tal qual . (Ribeiro, 1985, p. 21)
52
terapia. A resistncia no deve ser combatida, mas sim deve ser trazida conscincia do
cliente e respeitada como um limite do seu agora. (cf Ribeiro, 1985, p. 22)
Ainda no que diz respeito aos aspectos transversais da psicoterapia de curta durao,
h que se ressaltar a importncia de Franz Alexander e de Thomas M. French, continuadores
de Ferenczi e Rank e autores do livro Teraputica Psicanaltica (1946), marcante na histria
das psicoterapias dinmicas breves. Os dois defendiam uma postura claramente ativa por parte
do psicoterapeuta, o qual deveria ficar atento s especificidades de cada momento do
processo teraputico (...) a fim de se evitarem regresses excessivas que terminam por
exacerbar a dependncia e as resistncias do paciente, levando ao prolongamento
desnecessrio da anlise. (Yoshida, 1990, p. 16)
Alm disso, importante destacar Alexander, o autor do conceito de experincia
emocional corretiva, a busca de mudana no paciente atravs da exposio, em circunstncias
mais favorveis, a situaes emocionais semelhantes quelas que ele no pde resolver
adequadamente bem no passado. Alm disso, ele defendia que a recuperao de lembranas
reprimidas se devia a uma maior integrao egica derivada da revivncia de situaes
conflitivas em um novo padro relacional, proporcionado pela atitude do terapeuta e/ou por
situaes de vida. O progresso, ento, dependeria de circunstncias diferentes daquelas que
teriam originado a adaptao neurtica. (cf Yoshida, 1990, p. 16)
No campo da psicanlise mais atual, h dois grupos que estudaram com maior
profundidade a psicoterapia psicodinmica breve a partir dos anos 19504: um da Clnica
Tavistok (Londres) e outro no Hospital Geral de Massachusets, Boston. No primeiro grupo,
Michael Balint (que prope o nome de Psicoterapia Focal para sua tcnica, baseada na
posio face a face, na atitude ativa do terapeuta, o qual procura manter a focalizao sobre os
elementos da hiptese psicodinmica de base. [cf Yoshida, 1990, p. 20]) e, posteriormente,
David Malan. No segundo grupo, Peter E. Sifneos (criador da Psicoterapia breve
provocadora de ansiedade, uma abordagem na qual, a princpio, o paciente escolhe a
dificuldade emocional que lhe parece prioritria; a seguir, o terapeuta, depois de estudar a
vida do paciente, formula uma hiptese psicodinmica com o fito de compreender os conflitos
emocionais ligados quela dificuldade. [ cf Yoshida, 1990, p. 21]). Ainda no campo da
psicanlise, h que se destacar James Mann, psicanalista que criou a Psicoterapia de Tempo
Nos EUA, nessa poca, em substituio aos testes, aos estudos de casos, e aos rtulos do diagnstico
psiquitrico, aparece um interesse maior pelos processos teraputicos, pela procura de meios e de processos
atravs quais se poderia ajudar as pessoas, o que levou a descobertas de recursos teraputicos mais efetivos. A
busca da compreenso da dinmica dos processos de ajustamento substitui a fase de descries e rotulaes.
53
Limitado. Mann chamou a ateno para as vantagens do trabalho com nmero certo de
sesses, o qual se aproximaria mais da prescrio mdica tpica, desejvel pelo cliente em
suas expectativas infantis. (cf Yoshida, 1990, p. 22)
Em Ferreira-Santos (1997, p. 25) encontramos destaque para outros autores, como
Malan (1974), Small (1972), Binswanger (1912) e Tannenbaum (1913), alm de, novamente,
Franz Alexander. Segundo Ferreira-Santos, os trabalhos desses autores, notadamente o de
Alexander, evidenciam a mudana de atitude no processo psicoteraputico, no sentido de que
transforma o ncleo da questo, no a teoria preestabelecida, mas sim a pessoa e suas
necessidades, raciocnio to rente Gestalt-terapia de hoje. Quanto aos trabalhos mais
recentes, h que se citar Fiorini e alguns artigos de revistas, lembrando que a base desses
trabalhos a psicanlise, como, de resto essa a base da maioria dos estudos sobre terapia de
curta durao a que temos acesso no Brasil.
Mas no s na Psicanlise que se pode encontrar referncia a trabalhos de curta
durao. Se no nos ativermos ao nome psicoterapia breve, e se nos ativermos ao esprito do
trabalho e a seus fundamentos mais bsicos e importantes, em outras abordagens
encontraremos estudos que buscam a abreviao com eficincia do tratamento psicoterpico.
Importantes nesse sentido so os trabalhos de Carl Rogers sobre o aconselhamento
psicolgico. Sobre o trabalho de Rogers, Santos (1982, p. 07) comenta que
como uma das grandes expresses no campo do aconselhamento, Rogers no se
preocupa em estabelecer conceitos e definies. De toda sua obra, porm, se
depreende que o aconselhamento um mtodo de assistncia psicolgica destinado a
restaurar no indivduo suas condies de crescimento e de atualizao, habilitando-o a
perceber, sem distores, a realidade que o cerca e a agir, nessa realidade, de forma a
alcanar ampla satisfao pessoal e social5. Aplica-se em todos os casos em que o
indivduo se defronta com problemas emocionais, no importando se se trata de
doena ou de perturbaes no patolgicas. O aconselhamento consiste em uma
relao permissiva, que oferece ao
mesmo e a tal ponto que o habilita a tomar decises em face de suas novas
perspectivas. O cliente passa a se dirigir atravs da liberao e reorganizao de seu
campo perceptual. A orientao rogeriana afetou os princpios e os mtodos at ento
existentes.
de Rogers uma das mais importantes definies da consulta psicolgica, fundamento do trabalho
psicoteraputico: a consulta psicolgica eficaz consiste numa relao permissiva, estruturada de uma forma
definida, que permite ao paciente alcanar uma compreenso de si mesmo num grau que o capacita a progredir
luz de sua nova orientao. (Rogers, 1987, p. 14)
54
Alm de Rogers, o campo da psicoterapia de curta durao deve muito a Rollo May,
um dos mais importantes tericos do aconselhamento psicolgico. Ainda nos EUA, Vincent
OConnell, gestalt-terapeuta, com relevante trabalho sobre psicoterapia de crise merece
destaque. No Brasil, Raquel Lea Rosenberg e seu grupo na USP foram dos que mais
desenvolveram estudos sobre os mtodos e tcnicas do aconselhamento psicolgico. Na
Gestalt-terapia brasileira, destaco o trabalho de Jorge Ponciano Ribeiro, para quem novas
formas de psicoterapia se impem, exigindo, sem perder a qualidade, respostas adequadas s
necessidades imediatas das pessoas. (Ribeiro, 1999, p. 09) de Ribeiro (1999) o nome
Gestalt-terapia de Curta Durao, do qual me utilizarei doravante. Este nome retrata uma
maneira de se trabalhar qual darei algumas contribuies a seguir.
2.1 - a Psicoterapia
J foram vistas no primeiro captulo algumas delimitaes do campo da psicoterapia,
quando afirmei, dentre outras coisas, que se trata, grosso modo, do encontro de duas pessoas,
o terapeuta e o cliente, com o propsito de analisar a vida do cliente visando facilitar a
recuperao da qualidade do contato, da vivacidade, do ritmo e da abertura do cliente para a
vida. A psicoterapia favorece alternativas para avaliar pontos de vista, percepes e posturas
que afetam os sentimentos e o comportamento do cliente. Antes de tudo, a psicoterapia um
procedimento dialtico e dialgico, um processo de dilogo entre interlocutores
comprometidos profundamente com a busca da melhor configurao para uma dessas pessoas,
o cliente. Especificamente na Gestalt-terapia, em funo do procedimento dialtico e
55
dialgico, o terapeuta tem que sair do seu anonimato e colocar a si mesmo, reciprocamente
quilo que exige do seu cliente.
Para Bellak e Small (p 29):
sucintamente definida, psicoterapia uma interao verbal ou tambm simblica de
um terapeuta com um paciente, orientada por uma srie de conceitos ordenados e
integrados, e dirigida para a mudana benfica num paciente.
preciso clareza, num processo teraputico, com o que se pode entender por
mudana benfica, uma vez que h muitos e muitos critrios atravs dos quais se pode
definir o que benfico a uma pessoa. Esses critrios dependero, em grande parte, da viso
de homem da abordagem que fundamenta e orienta o olhar do terapeuta. Em Gestalt-terapia,
isso no pode ser diferente: a partir da viso de homem que apresentei no captulo anterior,
pode-se depreender um conceito de sade que seja aceitvel como orientao para a postura
do gestalt-terapeuta quando a servio de seu cliente. Entendo, com Ciornai (1989, p. 03), o
funcionamento saudvel como a possibilidade de a pessoa viver um fluxo ritmado e
energizado de awareness6 e de formao figural atravs do qual possa interagir criativamente
consigo e com seu meio, utilizando-se ao mximo de seus recursos internos e dos recursos do
ambiente para lidar criativa e apropriadamente com o mundo, discriminando os contatos
mutuamente enriquecedores e satisfatrios daqueles que so txicos e prejudiciais. No dizer
de Perls, Hefferline e Goodman (p. 107), a pessoa sadia aquela que se apossa plenamente do
direito de sentir-se em casa no mundo, com a responsabilidade que a contraparte desse
direito.
Para Ribeiro,
fazer psicoterapia assemelha-se a fazer pontes entre dados falados, vividos. facilitar
pessoa usar essas pontes para reencontrar lugares perdidos dentro de si mesma.
instig-la a procurar solues novas. ajud-la a entrar em cena com um script
diferente daquele que ela sempre usou. (Ribeiro, 1999, p. 143)
56
outro, poder viver uma relao fundamentalmente baseada na confiana, uma relao na
qual o papel do terapeuta bastante delimitado: colocar-se a servio do outro, sem
expectativas, isto , sem ter modelos prontos para lhe oferecer, mas em busca de favorecer ao
cliente uma experincia de autenticidade o mais plena possvel. Para o cliente, o risco da
psicoterapia conhecer-se mais profundamente e, por isso e para isso, experimentar novos
sentimentos, novos comportamentos, o incremento e o apossamento da autonomia e da
liberdade. Paradoxalmente, a aventura maior do cliente em terapia mudar para tornar-se
aquilo que . (cf Arnold Beisser, 1977, p. 110) Voltarei a essa proposta de Beisser mais
adiante.
A psicoterapia no um processo de aprendizagem, no um lugar onde o cliente v
aprender sobre si, mas, antes, um processo de explorao do mundo e de auto-explorao
atravs do qual o cliente vai descobrir sobre si, atravs de seus sentidos e de sua awareness.
Descobrir quer seja sobre suas belezas, quer seja sobre suas tragdias, sobre sua luz e sobre
sua sombra. Ao terapeuta cabe apontar as pontes e os caminhos, os abismos e as florestas por
onde pode acompanhar seu cliente na aventura de conhecer-se. Mas no cabe ao terapeuta
escolher caminhos para seu cliente uma vez que o caminho singular para cada um. A postura
do terapeuta humanista se define principalmente por ele no ter um a priori para seu cliente,
no ter um lugar aonde quer conduzir seu cliente, embora esse terapeuta possa ter uma
delimitao, necessariamente ampla e suficientemente vaga, do que entende como um
funcionamento saudvel, como frisei acima.
Numa abordagem humanista da psicoterapia como a Gestalt-terapia, o terapeuta deve
ter uma postura em muito semelhante do guia xerpa7. Para Bowen (em Santos, 1987, p. 5860), essa postura tem quatro caractersticas bsicas: 1) o cliente quem escolhe seu destino e
seu caminho, cabendo ao terapeuta mostrar trilhas no notadas, respeitando o direito de o
cliente escolher se as seguir, ou no, com exceo dos momentos em que algum risco
iminente obrigue o terapeuta a se impor; 2) por sua experincia e por seus estudos, o terapeuta
conhece suficientemente bem a regio, mesmo que no conhea as trilhas pessoais de seu
cliente, o que possibilitar ao terapeuta facilitar para seu cliente descobertas de fenmenos
pouco visveis, apontar conhecimentos disponveis mas pouco ou nada utilizados, encorajar
seu cliente em escolhas difceis, prevenir perigos, denunciar belezas, sugerir ritmo; 3)
Do ing. sherpa (1847), do tibetano sharpa 'habitante de um pas oriental', palavra internacionalizada
com a conquista do Anapurna (1950) e depois do Everest (1953), nas quais se mostraram imprescindveis guias
desse povo, por suas qualidades de montanhistas e seu conhecimento da regio. (Houaiss, dic. Eletrnico)
57
Guedes segue na mesma linha de Cytrynowicz quando comenta sobre seu trabalho
como gestalt-terapeuta:
ser terapeuta um privilgio. (...) freqente o comentrio de pessoas e clientes, de
que deve ser difcil passar o dia ouvindo problemas. Eu ouo problemas e mais do que
isso, eu acompanho, observo, presto ateno em obras de arte. Obras nicas, vivas, em
mudana, lutando com suas raridades, originalidades. Isto de ficar cansado e cheio de
ouvir problemas, s acontece quando no consigo me afinar com a pessoa e para
aliviar minha angstia e incapacidade, reduzo essa pessoa a um caso ou quadro
psicolgico. Quando isto acontece fico procurando explicaes tericas para
manipular essa pessoa e apresentar servio. Quando em vez de concerto quero fazer
um conserto. (1985, p. 15)
58
59
Para os fins desse trabalho, considerarei o que Knobel chama de terapia focal como
uma maneira de se fazer terapia de curta durao, considerando, com Lemgruber (1995), que
a tcnica da psicoterapia de curta durao est fundamentada na trade atitude, planejamento8
e foco, ou seja, o foco um dos aspectos da terapia de curta durao, como comentarei mais
adiante.
Embora o nome psicoterapia breve tenha se tornado o mais comum para este tipo de
trabalho, ele no traz uma idia clara do tipo de psicoterapia a que se refere, pois d a
impresso de que a principal caracterstica deste trabalho seja uma delimitao temporal
previamente determinada, o que no verdadeiro. Ainda que a durao deste trabalho possa
de fato ser breve, o que realmente o caracteriza o fato de ele ter objetivos delimitados. Como
ensina Fiorini (1993, p. 12), o termo breve equvoco,
Numa abordagem humanista, como a Gestalt-terapia, pode parecer estranho falar-se em planejamento
de uma psicoterapia, uma vez que a proposta do trabalho humanista de que a situao teraputica prepondere
sempre. No entanto, em uma psicoterapia de curta durao, faz-se mister uma certa planificao sobre o trabalho,
para que se lide produtivamente com as questes relativas ao tempo disponvel para a terapia, aos propsitos que
se pretende atingir, aos caminhos que se podem seguir, s estratgias possveis, dentre outras questes, a maioria
das quais tratarei ao longo dessa discusso. Fundamental, neste caso, lembrar que o planejamento em
psicoterapia de curta durao feito pelo terapeuta junto com seu cliente, em prol da eficcia do trabalho
psicoteraputico.
60
j que h razes para entender que o essencial desta psicoterapia no est em sua
brevidade mas sim, talvez, no seu carter multidimensional. Breve alude limitao
temporal, mas custa de sugerir pobreza, escassez e de omitir aspectos quantitativos
prprios desta psicoterapia que lhe conferem certa riqueza de matizes que no deve ser
desprezada. Encobre, ademais, o fato de que se pode trabalhar eficazmente com esta
modalidade teraputica em lapsos no breves.
61
Entendo que quando o cliente sente-se confortvel para conduzir sua prpria vida, isso
significa que ele conseguiu, em alguma medida, aps o processo de terapia de curta durao,
62
atualizar alguns de seus potenciais, conseguiu lidar de forma mais espontnea e presente com
seu momento atual, ampliou seu horizonte de futuro e confia mais na exeqibilidade de seus
projetos existenciais renovados no processo teraputico.
Assim, entenderei aqui a Gestalt-terapia de Curta Durao como um mtodo de
atendimento psicoterpico fundamentado na abordagem gestltica, o qual visa atender a
demandas do cliente a partir de limites e com propsitos diferentes daquele comumente
praticado na Gestalt-terapia. Esses limites, geralmente expressos em termos do tempo de
durao do processo teraputico, no se resumem a questes estritamente temporais, mas,
antes, so melhor expressos atravs de delimitaes quanto abrangncia, estratgia e aos
objetivos do processo teraputico. Essas delimitaes trazem tambm diferenas, quando se
compara com a Gestalt-terapia de longa durao, na postura do psicoterapeuta gestltico.
Esse estreitamento de limites, quando comparado esse trabalho com o trabalho de
durao indeterminada, comum a todas as formas de psicoterapia de curta durao,
independentemente do referencial terico no qual se apie o terapeuta. H muitos sentidos
para esses limites, dos quais os mais destacados so, a meu ver, o limite de durao da
psicoterapia e o limite das ambies teraputicas, este ltimo estreitamente associado ao
limite determinado pelo foco. (cf Gilliron 2004, p. 65)
Dizendo de outra maneira, podemos afirmar que o objetivo da Gestalt-terapia de Curta
Durao o mesmo do trabalho de longa durao, s que mais modesto. Se num trabalho
longo o propsito acompanhar o cliente em mudanas em sua personalidade, aqui o trabalho
acompanhar o cliente em algumas mudanas em sua personalidade; se num trabalho longo o
propsito facilitar ao cliente a ampliao de sua capacidade de discriminao, aqui o
propsito facilitar ampliao de sua capacidade de discriminao no que diz respeito, ao
menos a princpio, a um determinado e limitado campo; se num trabalho de longa durao o
propsito a reestruturao da personalidade, aqui o propsito rearrumar reas da
personalidade; se num trabalho de longa durao o propsito curar o cliente, aqui o
propsito curar alguns sintomas; se num trabalho de longa durao o propsito encorajar o
cliente a lidar com seu destino, aqui o propsito encoraj-lo a lidar com alguns aspectos de
seu destino; se num trabalho de longa durao o propsito ampliar sua capacidade de autoaceitao, aqui o propsito ajud-lo a ampliar sua auto-aceitao no que se refere a algum
aspecto especfico; se num trabalho de longa durao o propsito libertar a pessoa, aqui o
propsito libert-la de algumas e especficas correntes; se num trabalho de longa durao o
propsito facilitar ao cliente lidar com a angstia, aqui o propsito facilitar a lida com
determinadas angstias; se, enfim, num trabalho de longa durao o propsito restaurar a
63
qualidade do contato da pessoa consigo mesma e com seu mundo, aqui o propsito restaurar
o contato da pessoa com alguns aspectos de si e de seu mundo.
Em sntese: a diferena entre a Gestalt-terapia de Curta Durao e um trabalho
gestltico sem a preocupao com o tempo , fundamentalmente, um estreitamento de limites.
Esse estreitamento de limites se aplica, como j vimos, principalmente durao e
focalizao do trabalho teraputico, o que tem srias e importantes conseqncias em vrios
aspectos do processo psicoteraputico, especialmente no que diz respeito relao
teraputica, como comentarei adiante. Na maneira de trabalhar que proponho aqui, tenho
tentado, com meus clientes, j nas primeiras sesses demarcar o tempo que teremos para
trabalhar e, assim que possvel, o foco de figura e o foco de fundo que tomaremos como os
mais importantes. Tambm mais adiante descreverei melhor como entendo e como lido com
esses aspectos do foco.
64
65
corpo e com a sade, o desejo de mudanas profissionais, dentre outros. No caso dos clrigos,
pode-se apontar aqui a perda de alguns ideais de incio de formao, a sensao de no ter
mais a mesma energia para as tarefas cotidianas, alguns mal-estares relacionados vida
comunitria, alm de outros exemplos. Em uma viso gestltica, importante que o
psicoterapeuta tenha presente a impossibilidade de que seu cliente volte a ter o equilbrio prexistente, pois o que o cliente vai conseguir em um trabalho bem conduzido um novo
equilbrio, diferente daquele anterior, qui melhor que aquele anterior.
66
ligadas rea da sexualidade e mesmo as chamadas parafilias. Mais uma vez vale o lembrete:
superado o sintoma, a pessoa emergir diferente, um novo todo, no apenas o velho todo sem
o sintoma que incomodava.
Vera Lemgruber (1995, p. 22) coloca com preciso que
importante enfatizar que, apesar de as metas a serem estabelecidas em psicoterapia
focal inclurem a eliminao dos sintomas, o objetivo do tratamento no se limita
cura sintomtica. Busca-se, com o tratamento, a resoluo do conflito focal e com isso
atingir-se o desenvolvimento positivo de uma rea da personalidade do paciente,
partindo-se do pressuposto do efeito de irradiao ou efeito carambola, onde a
reformulao de uma rea acaba gerando repercusses positivas em outras reas da
personalidade do paciente.
67
tempo, ainda que retendo alguma estabilidade individual. Alcanada essa mudana proposta
por Beisser, a pessoa, em verdade, ser outra, o que quer dizer que quando se caminha em
direo a tornar-se o que se , o que se alcana um novo jeito de viver e de compreender a
vida, a ponto de podermos dizer que, em um processo teraputico bem sucedido, mais do que
mudar, o cliente se transforma em uma outra pessoa. Parte dessa abertura para essa
transformao, parte dessa capacidade de se renovar com o tempo tem estreita relao com
uma possibilidade de que o cliente alcance uma maior harmonia entre o que percebe que e o
que pensa que deveria ser.
68
69
abarcar seu estilo, natureza, seu modo de vida. Seu comportamento aqui e agora um
corte microscpio de seu comportamento total. Se ele vir como estruturado o seu
comportamento na terapia, ver como o estrutura no cotidiano.
Essa postura diante da situao clnica, essa ateno a como se desenrola o encontro
teraputico a cada sesso, leva a uma percepo mais acurada do que est ali, em detrimento
do que no est. Isso quer dizer que, atento ao que acontece, o terapeuta se liberta de uma
postura que poderia deixar implcita uma exigncia de que algo devesse estar ali. Com isso, o
acolhimento ao cliente, a possibilidade da empatia, da compaixo e da incluso se fazem mais
claramente presentes na situao clnica. Alm disso, como bem lembra Robine,
observar que o olhar do paciente se volta insistentemente para o quadro que est atrs
de mim no exatamente a mesma coisa que observar que ele no est a olhar para
mim. Observar que ele est com a respirao oprimida no a mesma coisa que
observar que quase no est respirando. Observar que ele se expressa de forma
uniforme no a mesma coisa que salientar que ele no deixa filtrar suas emoes...
(Robine, 2003, p. 34)
70
Naquilo que se refere especificamente Gestalt-terapia, ela oscila entre esses dois
plos:
a influncia de Perls e de sua concepo de contato como sendo um ir at e tomar de
tende a nos levar mais facilmente procura do objeto (o object seeking de
Fairbairn, por exemplo), o que, no fundo, no representa uma ruptura epistemolgica
fundamental em relao teoria da pulso desenvolvida por Freud. Por outro lado, a
influncia de Goodman se exerce atravs de sua abordagem do contato, considerado
como ajustamento criativo, como construo do sentido da experincia em um campo
organismo/meio. O ponto em que esses dois autores vo convergir na importncia
que atribuem ao campo e sua conseqncia imediata: uma teoria especfica do self.
(Robine, 2003, p. 30)
71
72
73
2.6 - o foco
No teatro, o foco o ponto onde se concentra a luz para iluminar toda a cena. Na
psicoterapia de curta durao, o foco so os pontos nos quais se concentram os esforos do
terapeuta e do cliente visando o trabalho teraputico. So as reas que se vo iluminar
preferencialmente, com a expectativa de que, uma vez suficientemente trabalhadas essas
reas, todo o ser do cliente se modifique, de modo que seus ajustamentos criativos voltem a
ter fluidez e, assim, o cliente caminhe mais livremente para se tornar ele mesmo. Os focos so
o eixo de um processo de Gestalt-terapia de Curta Durao, assim como na maioria das outras
abordagens em psicoterapias de curta durao.
Ferreira-Santos (1997, p. 24) credita a Rank a criao do conceito de foco,
ressalvando, no entanto, que Rank estava mais preocupado com o foco enquanto trauma do
nascimento, base de suas interpretaes. inegvel, entretanto, o pioneirismo de Rank na
estruturao da psicoterapia breve, devido introduo da proposta de limite de tempo e foco
como idias centrais do processo teraputico, alm de ressaltar a extrema importncia da boa
vontade do paciente no processo de cura.
Ginger e Ginger (1995, p. 255) definem o ciclo de contato como noo bsica em Gestalt,
desenvolvida por Goodman, em sua teoria do self: ele distingue quatro fases principais em qualquer ao: o prcontato, o contato (contacting), o contato pleno (final contact), o ps-contato (ou retrao). Este ciclo foi
retomado, com variaes, em especial por Zinker, Polster, Katzeff etc. Esse ltimo distingue sete fases:
sensao, tomada de conscincia (awareness), excitao, ao, contato, realizao, retrao. As interrupes ou
perturbaes no desenrolar normal do ciclo em geral so chamadas resistncias.
74
75
unidade psique-corpo-esprito e, por outro lado, uma unidade indivduo-meio, dado que o ser
humano est constantemente interagindo com limites sociais e ambientais. Ou, como diz Perls
(1977, p. 39),
a abordagem gestltica, que considera o indivduo uma funo do campo
organismo/meio e que considera seu comportamento como um reflexo de sua ligao
dentro deste campo, d coerncia concepo do homem tanto como indivduo quanto
como ser social. As psicologias mais antigas descreviam a vida humana como um
conflito constante entre indivduo e seu meio. Por outro lado, ns o vemos como uma
interao entre os dois, dentro da estrutura de um campo constantemente mutvel. E,
uma vez que o campo est mudando constantemente, devido a sua prpria natureza e
ao que lhe fazemos, suas formas e tcnicas de interao devem ser, elas mesmas,
necessariamente fluidas e mutveis.
Corroborando com esse ponto de vista gestltico, Van den Berg (1981, p. 38), em seu
clssico livro sobre psicopatologia fenomenolgica, argumenta que
a relao entre o homem e o mundo to ntima que seria errado separ-los, num
exame psicolgico ou psiquitrico. Se forem separados, o paciente deixar de ser esse
paciente particular e o seu mundo deixar de ser o seu mundo. Em primeiro lugar,
nosso mundo no somente um conglomerado de objetos que podem ser
cientificamente descritos. Nosso mundo nosso lar, nosso ambiente, nossa casa, uma
realizao de subjetividade. Se desejarmos compreender a existncia humana, teremos
que prestar ouvidos linguagem dos objetos. Se estivermos descrevendo um sujeito,
teremos que elaborar a cena na qual o sujeito se revela.
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79
essa tarefa, h que se delinear um prognstico, o qual determinar a meta a ser buscada e a
confiana ou a falta dela para que se inicie aquele processo psicoteraputico. Um processo
que, em Gestalt-terapia de Curta Durao, comear a efetivamente tomar corpo a partir do
estabelecimento dos focos para o trabalho, o foco de figura e o foco de fundo.
A maneira como o terapeuta expressar para o seu cliente a viso que tem da
problemtica apresentada deve ser pautada pela possibilidade de compreenso do cliente. A
linguagem utilizada no uma linguagem tcnica, mas uma linguagem coloquial, altura do
vocabulrio e rente ao universo existencial do cliente. Ao menos a princpio, o foco da figura
deve ter a preferncia nas discusses com o cliente, pois ali que ele est e, nesse caso,
tema o sintoma que ele quer eliminar. Se o terapeuta consegue explicar seu ponto de vista de
um modo que o cliente compreenda e possa verificar a pertinncia da observao do
terapeuta, est dado o primeiro e mais importante passo para a formao de um dos mais
fortes sustentculos do trabalho em Gestalt-terapia de Curta Durao, a aliana teraputica.
Se o cliente percebe que a viso apresentada pelo terapeuta acerca da problemtica
vivida por ele, cliente, faz sentido, ele ento, e s ento, poder verdadeiramente mobilizar-se
e motivar-se para o processo teraputico. Parte dessa motivao e dessa mobilizao deriva da
capacidade de o cliente relacionar-se de maneira racional e sensata com o terapeuta e
trabalhar com perseverana, na situao teraputica e em seu cotidiano, na busca da mudana
necessria em sua vida. A mobilizao do cliente para o processo teraputico deriva de sua
capacidade de fazer uma aliana teraputica com o terapeuta, uma aliana que
fundamentada na possibilidade de o cliente cooperar e, assim, aceitar a ajuda do terapeuta
para lidar com as suas dificuldades de momento. No basta ao cliente simplesmente
comparecer s sesses ou esperar que possa ter somente prazer ou gratificao ao longo do
processo teraputico ele precisa aceitar que dever enfrentar seus problemas e que esse
enfrentamento nem sempre ser agradvel ou prazeroso, antes pelo contrrio. Tanto quanto na
terapia de longa durao, tambm na Gestalt-terapia de Curta Durao h sesses duras, de
sofrimento, h impasses a serem rompidos, h dolorosos processos de crescimento a serem
vividos. Mais adiante, quando tratar da relao teraputica em Gestalt-terapia de Curta
Durao, voltarei ao tema da aliana teraputica, mas agora quero ainda lembrar que ela no
se esgota no cliente e nem apenas atribuio dele.
Tambm o terapeuta deve se perguntar para verificar se capaz de fazer sua parte na
aliana teraputica, pois ela, por ser aliana, traz a necessidade de que seja feito um pacto, um
acordo entre cliente e terapeuta. A parte do terapeuta no pacto apia-se em sua possibilidade
de se dedicar com integridade quele processo teraputico, sabendo que tambm ele,
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terapeuta, restar modificado ao cabo do trabalho, sabendo que tambm ele ter momentos de
resistncia e de cansao ou desnimo, sabendo que tambm ele, terapeuta, algumas vezes ter
que apoiar-se em sua fora de vontade para ser facilitador das mudanas do cliente.
Grande parte do sucesso de um processo psicoteraputico se fundamenta na relao
teraputica, o que obriga o psicoterapeuta a observar-se. Isso implica que o terapeuta se
reconhea e reconhea a sua prpria problemtica, para delimit-la, transformando-a em
ferramenta para a compreenso do outro. Assim deve ser entendida a afirmao de Murray,
conforme a qual o instrumento de preciso mais importante da pesquisa psicolgica o
psiclogo. (Augras, 1981, p. 14) Da, torna-se imprescindvel ao psiclogo dois caminhos
concomitantes de aperfeioamento: aprimorar-se no domnio das tcnicas especficas a sua
profisso e aprofundar o conhecimento de si prprio, no apenas para controlar os limites de
sua atuao, mas tambm como treino para o conhecimento do outro. (Augras, 1981, p. 14)
Esse aperfeioamento do psicoterapeuta, se fundamental no incio de sua carreira, no
atitude que deva ser deixada de lado aps algum tempo de trabalho, como, alis, bem
salientam os Ginger: parece, pois indispensvel que qualquer terapeuta reserve para si,
regularmente, e isso ao longo de toda a sua carreira, perodos suficientes de trabalho pessoal
consigo mesmo e de reciclagem profissional (no confundir). (1995, p. 157)
Se a aliana teraputica se estabelece, se o foco de figura est claro e clareia os
rumos do trabalho que se inicia, cabe ao terapeuta deliberar se e como deve discutir com o
cliente o foco de fundo. Se acredita que melhor para o cliente que isso seja discutido,
tambm aqui vale a regra do uso da linguagem acessvel para o cliente. De nada adianta para
um cliente saber, por exemplo, que ele tem um estilo de personalidade dependente, mas pode
ser que seja bom para ele saber que precisa desenvolver mais sua autonomia. Penso, no
entanto, que o diagnstico de fundo muito mais til e importante para o terapeuta que para o
cliente, muito mais um norteador para o terapeuta que um clarificador para o cliente,
semelhana de um cirurgio que no precisa dar aulas de anatomia para seu paciente.
O diagnstico de fundo fundo para a postura do terapeuta na situao clnica, no
precisa necessariamente tornar-se figura tambm para o cliente, embora este tambm possa
us-lo como motivao de fundo. Com isso quero dizer que o terapeuta utiliza-se desse
diagnstico de fundo para nortear a maneira como pode alcanar seu cliente, a maneira como
pode melhor comunicar-se com seu cliente, e a isso que eu chamo de fundo para a postura
na situao clnica. Tambm o cliente pode usar esse diagnstico como uma ampla tela de
fundo, o que poder ser til para alguns clientes, mas certamente no necessrio para todos
eles, o que quer dizer que isso coisa para ser analisada a cada atendimento em Gestalt-
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82
escolhas e de como o cliente escolhe, mas preciso que o terapeuta oriente suas intervenes
por este prisma. O cliente pode contar de seu novo trabalho ou do reencontro com uma antiga
paixo, pode falar sobre sua av falecida recentemente ou pode abordar seus problemas
familiares, tanto faz, o que importa que o terapeuta no se deixe dispersar, mas enfoque cada
assunto sob a luz da escolha (foco de figura) e da ampliao da considerao pelo outro (foco
de fundo).
Esse modo de trabalhar com o foco facilita a ocorrncia do que Lemgruber (1995, p.
23) chama de efeito carambola, resultado e efeito da generalizao e/ou irradiao dos
ganhos teraputicos, ou, em uma linguagem mais gestltica, a modificao do todo pela
reconfigurao de suas partes a partir de mudana em uma dessas partes. Lemgruber analisa
que, assim como em uma boa tacada de bilhar ou sinuca podem ocorrer movimentos e
mudanas de posio em bolas que no foram diretamente atingidas pela tacada, tambm em
um processo de psicoterapia de curta durao muitas modificaes e progressos podem ser
obtidos pelo paciente como reflexo de uma reestruturao em um aspecto especfico de sua
vida. Essas reestruturaes podem continuar se dando mesmo aps o trmino do processo
teraputico, ainda como resultado de uma ampliao ou generalizao dos ganhos obtidos em
terapia. Esse efeito carambola ser tanto melhor quanto melhor o foco escolhido,
semelhana de um curso dgua impedido de fluir naturalmente por um acmulo de gravetos
em um determinado ponto de sua trajetria se desentravamos o graveto que d sustentao
aos outros gravetos, mais rapidamente a gua volta a fluir em seu ritmo natural, levando
consigo os outros gravetos, assim como uma pessoa que vive com seu potencial atualizado
ultrapassa e elabora seus problemas existenciais.
Como j afirmei, o ponto central para que o foco seja bem escolhido numa Gestaltterapia de Curta Durao o diagnstico, de maneira que a uma discusso sobre esse tema
to polmico em Gestalt-terapia que me dedicarei a partir de agora, complementando a
teorizao sobre o foco.
2.7 o diagnstico
Se, por um lado, h relativo consenso de que o procedimento essencial para o
estabelecimento de um foco num processo teraputico de curta durao o diagnstico, por
outro lado, o que e como lidar com o diagnstico em psicoterapia no tema que consiga
semelhante consenso, principalmente entre os gestalt-terapeutas. Certamente o diagnstico
ainda um dos temas mais polmicos em Gestalt-terapia, um tema que s mais recentemente
83
tem recebido dos gestalt-terapeutas a ateno que merece em vista de sua importncia no
processo teraputico, seja ele longo ou curto.
A polmica sobre o diagnstico em Gestalt-terapia to importante que envolve at
mesmo questionar a necessidade de se fazer, ou no, um diagnstico em um processo
teraputico. Assim que Frazo (1995 b, p. 01) comenta que pde observar que at a dcada
de 70, os gestalt-terapeutas ou se abstinham de se referir questo, ou, possivelmente
influenciados pela anti-psiquiatria dos anos 60, se opunham ao uso do diagnstico em nossa
abordagem. Ela continua: atualmente, um nmero significativo de gestalt-terapeutas, entre
os quais Yontef e Delisle, considera o diagnstico um instrumento til e at imprescindvel
para o processo teraputico. Frazo credita a oposio ao diagnstico existente na Gestaltterapia inicial como possivelmente decorrente da viso humanista na psicologia da poca, que
entendia o diagnstico como despersonalizante, politicamente repressivo e um modo de
reducionismo que transforma uma pessoa em um conceito.
certo que um diagnstico pode ser politicamente repressivo ou um reducionismo
despersonalizante, de modo que h a necessidade de que se faa algum tipo de preveno
contra essa espcie de uso do diagnstico em um processo psicoteraputico. Uma das
maneiras estud-lo e pratic-lo com a viso em um contexto scio-cultural mais amplo,
para muito alm de um olhar meramente clnico, e, a partir da, verificar as suas implicaes
quanto vida do cliente e quanto ao processo psicoteraputico em andamento.
84
singular
que seu
cliente .
Como
afirmam
Kluckhohn
e Murray (cit. em Pervin, 1978, p. 01), "todo homem , sob certos aspectos, a) como todo
homem; b) como certos homens; c) como nenhum outro homem". Penso que til dar,
durante o processo de diagnstico e no processo teraputico como um todo, ateno aos itens
a) e b) como forma de realar e compreender ainda melhor o item c).
Cada pessoa traz em sua singularidade as pluralidades que sustentam essa
singularidade. O que primeiro nos define como humanos o que temos em comum com os
outros humanos. Cada pessoa uma combinao nova e nica de elementos somatopsquicos,
sendo que, por sua vez cada um desses elementos no novo e nico, mas pertencente ao que
h de comum entre os seres humanos. A identidade, no sentido de conscincia da persistncia
da prpria personalidade, se fundamenta na assemelhao e na diferenciao com as outras
pessoas. No terreno da sexualidade, por exemplo, a identidade sexual de uma pessoa comea
pela descoberta de ser macho ou fmea, a qual se d atravs da percepo do prprio corpo e
de outros corpos semelhantes e corpos diferentes; uma pessoa se define masculina ou
feminina porque h outras pessoas com caractersticas de gnero semelhantes s dela e outras
com caractersticas de gnero diferentes das dela; somente depois desses passos que se
define a identidade sexual, baseada no biolgico, ser macho ou fmea, igual a tantos outros
machos ou a tantas outras fmeas; baseada no cultural, semelhante ao ser masculino ou
feminina de tantas outras pessoas; e, finalmente, baseada no individual, o jeito peculiar de ser
homem ou mulher, uma pessoa masculina e feminina numa medida nica e que nunca se
repetir.
O diagnstico em psicoterapia se refere quela pessoa que est nossa frente e se
fundamenta tambm em uma generalizao. O diagnstico parte do vivido e relatado daquela
pessoa e caminha em direo ao que h nela de comum com os outros seres humanos, para
depois voltar novamente quela pessoa na tentativa de compreend-la e de facilitar a ela que
se compreenda, num caminho muito semelhante ao do estabelecimento da identidade de cada
pessoa. O diagnstico ajuda a encontrar melhor a singularidade em meio ao genrico. Destaca
melhor o que nico e destaca melhor o que h de positivo, de potencial a ser desenvolvido.
Assim, diagnstico no massificao, antes pelo contrrio. No diagnstico, importante se
ter mo o geral para facilitar a compreenso do particular do cliente, assim como
85
importante o cuidado para que no se use este geral como uma cama de Procusto onde colocar
cada cliente.
Todo conhecimento terico em psicoterapia s tem sentido se usado a servio do
cliente, e esta a funo da teoria: lanar uma luz, ainda que tnue, sobre a existncia humana
com o fim de facilit-la dentro do possvel. Ao fazer um diagnstico, est-se criando uma
teoria sobre a pessoa que procura a terapia, est-se lanando hipteses, mapas, que, como tais,
retratam uma cidade ou uma regio como se fossem essa regio ou essa cidade, nunca sendo
essa regio ou essa cidade. Esta condio como se no deve nunca ser perdida de vista, sob
pena de reduzir o humano ao mecnico.
Ciornai (2004, p. 39) lembra ainda que o conhecimento terico amplia o poder de
observao do terapeuta pois as categorias do percebido dependem tanto do que dado a um
10
Em consonncia com Ciornai, Afonso Fonseca, em comunicao pessoal, por e-mail, faz a seguinte
observao: Existe uma confuso entre empirismo objetivista (caracteristicamente anglo-saxo, e pragmtico), e
empirismo fenomenolgico-existencial. O primeiro no admite teoria e teorizao, e movido por um profundo
preconceito anti-terico. O outro, o empirismo fenomenolgico, no tem nada contra a teoria nem contra a
teorizao, e naturalmente reconhece o seu incontornvel lugar e valor. Gestalt Terapia metodologicamente um
empirismo fenomenolgico-existencial. Isto quer dizer que a sua prtica , e ser sempre, vivencial,
compreensiva, e no teorizante e explicativa. Isto o que significa 'emprico', num sentido fenomenolgicoexistencial. Mas isto no quer dizer que uma abordagem conceitual e metodologicamente emprica, no sentido
fenomenolgico existencial, no tenha teoria... Tem sim! O problema esse, quando ns nos recusamos teoria,
o resultado a produo de teoria de m qualidade. Acho que importante termos claro para ns esta distino,
e a caracterstica fenomenolgico-existencial do empirismo da Gestalt Terapia, que nada tem contra a boa teoria
e a boa teorizao, ainda que o momento de sua vivncia permanea, como em todo empirismo, no
teorizante... Penso que essas reflexes de Fonseca sobre o empirismo fenomenolgico-existencial aplicam-se
tambm para o diagnstico em uma psicoterapia fenomenolgica, como demonstrarei no correr deste texto.
86
sujeito observar, quanto do que lhe importante observar, como do que ele sabe observar.
Dessa maneira, importa principalmente a atitude com que o terapeuta se relaciona com os
mapas (o diagnstico), pois isso permite que a compreenso desenvolvida pelo terapeuta seja
constantemente testada e reformulada no processo teraputico.
Mapas so importantes, mas no substituem a viso que tm da regio aqueles que
nela vivem ou que por ela passam. Ainda assim, os mapas so roteiros que salientam aspectos
relevantes, so orientadores na descoberta das vicissitudes e peculiaridades de uma regio.
Como mapas: eis a forma que se deve usar para olhar para as hipteses diagnsticas
apresentadas ante cada pessoa que busca psicoterapia. So teorias. Indicam caminhos, no so
o caminho. Problematizam, no do respostas: auxiliam na busca das respostas. O diagnstico
fundamental no trabalho orienta o olhar na busca da compreenso e da facilitao do
caminho do outro. Orienta o terapeuta em sua faina de caminhar lado a lado com o outro.
O diagnstico visa principalmente orientar o terapeuta sobre como se postar e como
lidar com o cliente, e no tem a finalidade de enquadrar o cliente para lhe propor mudanas a
partir de um esquema anterior e estreitamente delimitado sobre sade. Alm disso,
diagnosticar detectar a configurao especfica com que se articulam as partes em cada
situao concreta. um processo e o comeo do vislumbre de uma possvel re-configurao
do campo. vislumbrar a possibilidade de mudana. Estamos longe do diagnstico como
rotulao. (Tellegen, 1989, p. 05) Para Melnick e Nevis (s/d, p. 428/429),
o diagnstico primeiramente um ato descritivo que organiza o que est sendo
percebido no momento. Tem tambm um significado para alm do presente,
encerrando tanto um padro como tambm uma predio, ainda que mnima. (...)
Assim, diagnstico uma tentativa de ampliar o quadro, de mover do que agora
observvel ao que habitual, de costume. Inclui no s um esquema do que ser
observado mas tambm os padres e configuraes nas quais nossas observaes so
organizadas.11
11
diagnosis is first and foremost a descriptive statement that articulates what is being noticed in the
present. Yet it also means going beyond the present, implying a pattern as well as a prediction, no matter how
minimal. () Thus, diagnosis is to attempt to enlarge the picture, to move from what is observable now to what
is habitual. It includes a schema not only of what is to be observed but of the patterns and configurations into
which our observations are organized.
87
cliente, o significado de sua queixa, levando em considerao sua histria e seu momento
existencial. Ao diagnosticar, o terapeuta tem o intuito de compreender como essa pessoa age,
sente, pensa, como ela se movimenta, enfim, pelos caminhos da vida. Para uma abordagem
gestltica do diagnstico, algumas perguntas so essenciais: a servio do que esto a queixa e
o sofrimento que o cliente apresenta? Qual a relao de funcionalidade que existe entre esta
queixa e o existir total do cliente? (cf Frazo, 1995 a, p. 82)
Ao fazer o diagnstico, o terapeuta busca uma relao entre o aqui-e-agora do cliente e
o l-e-ento de sua histria, com o propsito de alcanar a compreenso da queixa do cliente,
mas isso no quer dizer que haja a um raciocnio baseado em alguma crena de causa e efeito
direto o ser humano complexo demais para que se possa compreend-lo baseado numa
premissa dessa ordem. Sob o olhar fenomenolgico, a queixa apresentada pelo cliente
denuncia uma gestalt que no se fechou, mostra uma repetio de uma atitude existencial que
se tornou anacrnica e que causa sofrimento, expe um ajustamento
que se tornou
insatisfatrio.
88
O terceiro conselho de Goldstein pede que se considere todo fenmeno com referncia
ao organismo como um todo e com a situao na qual acontece. Aqui, essencial a
observao cuidadosa de detalhes, o que requer a presena de uma atitude analtica. Holdrege
adverte que a anlise deve ser contrabalanada por um retorno ininterrupto ao contexto
maior, de forma que todo detalhe analtico re-integrado em seu todo, de modo que a
atomizao dos assuntos sob investigao, to comum em cincia, no acontece.13
Alm da atomizao, um grande perigo que existe quanto compreenso diagnstica
expresso na busca da confirmao do diagnstico a qualquer custo, colocando a teoria como
mais importante que a realidade. O diagnstico estritamente um parmetro norteador que a
todo momento tem que ser verificado no contato com o cliente, inclusive para que se possa
evitar que o terapeuta, depois de fazer o diagnstico, contamine a relao com o cliente em
funo desse diagnstico. Um diagnstico mal compreendido pode levar o terapeuta a
desenvolver com o cliente uma relao parecida com as relaes que, na histria de vida do
cliente, foram as provocadoras do tipo de ajustamento que o cliente criou para sobreviver e
que lhe faz mal hoje.
12
when brain-damaged patients were asked to pick out red skeins from wool samples, they often placed
the skeins in a row from lightest to darkest. We might form the judgment: the patient orders the skeins according
to the concept of brightness. But Goldstein looked more closely, modified the situation and asked different
questions. It turned out that the patient could not, when explicitly asked, order according to light-dark gradations.
Or when one skein was removed, he could not replace it in "correct" order. Goldstein finally concluded that the
patient was actually only comparing neighboring skeins. "By this procedure of `successive pairs' he finally came
to an arrangement which in toto looked like a scale of brightness, but really was not.... [We see] how vital it is,
for an accurate interpretation, that the description of the phenomena be minute and exact."
13
Third, consider every phenomenon with reference to the organism as a whole and to the situation in
which it appears. In this approach the careful observation of details is essential, and this in turn requires an
analytical element. But as long as the analysis is counterbalanced by a continual return to the larger context, so
that every analytical detail is re-integrated into its whole, then the atomization of the subjects of investigation, so
common in science, does not occur.
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90
fazemos discriminaes a respeito de padres gerais, sobre que tipo de pessoa o paciente , a
trajetria provvel do tratamento, que abordagens tm maior probabilidade de funcionar, os
sinais de perigo. Yontef conclui: no podemos evitar diagnosticar. A nossa opo : faz-lo
de maneira superficial ou no deliberada, ou, ao contrrio, de maneira bem-ponderada e com
awareness completa. Se o diagnstico feito sem awareness, aumenta o risco de se impor ao
cliente uma crena ou um sistema de valores, o que seria antiteraputico. Mais adiante,
quando comentar a necessidade de e a maneira como o terapeuta deve fazer seu prprio
diagnstico em cada atendimento em Gestalt-terapia de Curta Durao, comentarei mais
detalhadamente essa ltima afirmao de Yontef.
Carlos Vinacour (1999), depois de ressaltar que toda psicoterapia tem dois
fundamentos bsicos, a relao terapeuta-cliente e o diagnstico, lembra, levando em conta a
singularidade de cada cliente, que a tarefa teraputica exige a necessidade de propor
generalizaes que orientem nossos passos (p. 17). Ele completa: ainda que nossa tarefa
com cada cliente seja uma aventura nica e apaixonante, cada processo teraputico no pode
se transformar num eterno recomear, sem bssolas nem folhas de rota, sem orientaes que
ordenem nossa tarefa. Para Vinacour, apesar de os rtulos diagnsticos serem superficiais e
sujeitos a correes medida que avana o conhecimento humano, e apesar de, por causa de
sua necessria abstrao, falarem pouco da pessoa como pessoa, eles podem ser usados de
maneira heurstica, adotados a ttulo provisrio como idia diretriz da interveno teraputica,
como guias que se reformulam e se trocam, quando a necessidade o impe (p. 17), e assim
eles se tornam particularmente teis para orientar ordenada e coerentemente um tratamento.
Vinacour conclui: aplicados sem atitudes fundamentalistas e com viso operativa e elstica,
[os rtulos diagnsticos] oferecem uma viso til e uma forma de tornar bvios caminhos
vagos e imprecisos que s vezes alongam desnecessariamente o tempo de uma terapia. (p.
17)
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92
Isto posto, relembro que no trabalho que desenvolvo com meus clientes, fao uma
compreenso diagnstica baseada em quatro pontos fundamentais: a) o fundo, o estilo de
personalidade que d sustentao queixa, ao sintoma; b) a figura trazida pelo cliente, sua
dor, sua queixa, seu sintoma identificado, o que inclui um cuidadoso olhar para o seu ponto de
interrupo mais importante no ciclo do contato; c) a situao teraputica, a cada sesso, nos
moldes j discutidos anteriormente; d) o campo existencial do cliente. Como entendo que j
discuti suficientemente os dois ltimos tpicos no que diz respeito Gestalt-terapia de Curta
Durao, vou, a partir de agora, centrar-me na discusso dos dois primeiros tpicos, aqueles
que me parecem mais propriamente descritveis como o eixo do processo diagnstico em uma
Gestalt-terapia de Curta Durao.
14
to a gestalt therapist personality is a specific and relatively stable way of organizing the cognitive,
emotive and behavioral components of ones experience. The meaning (cognitive) that one attributes to events
(behavioral) and the feelings (emotive) that accompany such events remain relatively stable over time and give
an individual a sense of identity. Personality is that sense of identity and the impact it has on others.
93
Uma tipologia utilizada por alguns gestalt-terapeutas o eneagrama (cf Naranjo, 1997
e 2004, passim e Luca, 2006), uma abordagem que descreve nove tipos de personalidade;
outros gestalt-terapeutas, dentre os quais me incluo, utilizam-se de uma outra tipologia,
baseada no uso do DSM-IV, Eixo II, transformado em uma tipologia (cf Delisle, 1988 e 1999,
passim; Greenberg, 1998; e Vinacour 1999, p. 18). Alm de alguns aspectos tericos, os quais
comentarei a seguir, o uso do DSM-IV como uma tipologia tem, para mim, um aspecto
facilitador proveniente de minha histria profissional: durante um bom tempo de minha vida
profissional, trabalhei em hospitais, psiquitricos e gerais, e pude perceber a importncia de
uma linguagem que facilite a comunicao entre os profissionais da rea da sade humana,
requisito que o DSM-IV cumpre com suficiente clareza.
O uso do DSM-IV me facilita compreender meu cliente, seu jeito de ser e sua
experincia, me facilita compreender como meu cliente se relaciona consigo mesmo e com o
meio, me permite apressar a compreenso de suas faltas e de suas necessidades, ilumina para
mim o caminho entre a percepo e compreenso da originalidade de meu cliente e a
percepo e compreenso do que ele tem de comum com outros seres humanos, trajeto bsico
94
para um diagnstico bem feito, como j argumentei anteriormente. Como todo instrumento
psicolgico, tambm uma tipologia baseada no DSM-IV no me permite esgotar a
compreenso do meu cliente, o que me obriga a constantemente refazer o diagnstico,
mantendo uma postura de nunca deixar de dar ateno ao aspecto processual da psicoterapia e
do prprio ser do cliente, de modo a ter sempre presente que a experincia do cliente sempre
maior que qualquer diagnstico que se possa fazer dele.
O DSM-IV um instrumento, um recurso do qual me utilizo para facilitar a
compreenso de meu cliente, um instrumento que se coloca a servio da relao dialgica,
essa, sim, o corao do trabalho teraputico, como discutirei adiante. O DSM-IV no pode ser
visto como uma camisa de fora ou uma gaveta onde se deva encaixar cada pessoa em nome
de uma suposta uniformidade, mas deve ser visto, da maneira como o uso em psicoterapia,
como um instrumento auxiliar para o terapeuta em seu trabalho de compreenso e
acolhimento de seu cliente. Esse uso da tipologia no ameaa ou substitui a originalidade de
cada cliente. Antes pelo contrrio, reala-a no encontro teraputico.
Quando fao um diagnstico e me utilizo do Eixo II do DSM-IV, busco compreender
o fundamento, a estrutura e o processo em que se apia o sofrimento denunciado pelo cliente.
Entendendo o DSM-IV como uma tipologia, ao diagnosticar, trabalho com o que o DSM-IV
denomina transtornos de personalidade no somente no sentido de transtorno ou de patologia,
mas muito mais num sentido de estilo de personalidade, um estilo de se relacionar e de estar
no mundo. Lido com os estilos de personalidade de uma maneira muito parecida com a que
Greenberg (1998, p. 01) lida com o que ela denomina Gestalten interpessoais, ou seja:
ns podemos rpida e facilmente compreender muito sobre nossos clientes
simplesmente observando o que habitualmente figura para eles durante as suas
interaes com outros. Eu entendo esta figura habitual como a Gestalt interpessoal
do cliente. De uma maneira ampla, a Gestalt interpessoal define o modo como
organizamos nosso campo interpessoal em cada momento: o que figura para ns
dentre as mltiplas possibilidades de relaes interpessoais e o que fundo. Envolve
coisas como que papel ns queremos desenvolver na interao, como ns queremos
ser vistos e tratados pelo outro, como esperamos nos sentir durante a interao, e o que
ns secretamente almejamos ou tememos da outra pessoa. A Gestalt interpessoal
segue as mesmas regras de outras formaes de gestalt. Nossos interesses,
necessidades, expectativas, fisiologia, cultura, histria e temperamento, tudo afeta o
que se torna figura para ns. Ns tendemos a perceber as coisas que ns desejamos,
necessitamos ou tememos. Assim, ns somos especialmente responsivos tanto a
questes interpessoais que parecem prometer o cumprimento da maioria de nossos
95
15
My point is that we can quickly and easily learn quite a lot about our clients by simply observing
what is habitually figure for them during their interactions with others. I think of this habitual figure as the
clients Interpersonal Gestalt. In its most general sense, the Interpersonal Gestalt is the way we are organizing
our interpersonal field at any moment: what becomes figure for us out of the many interpersonal possibilities,
and what becomes ground. It involves such things as what role we want to play in the interaction, how we want
to be seen and treated by the other, how we expect to feel during the interaction, and what we secretly long for or
fear from the other person. The Interpersonal Gestalt (IG) follows the same rules as other gestalt formations. Our
interests, needs, expectations, physiology, culture, history and temperament all affect what becomes figure for
us. We tend to notice those things that we want, need or fear. Thus, we are likely to be especially responsive to
interpersonal cues that seem to promise either the fulfillment of our most longed for desires and unmet needs or
those that arouse our deepest interpersonal fears.
16
De uma certa maneira, o modo que lido com essa dade estilo-transtorno guarda muitas semelhanas
com o modo como Laura Perls teorizou sobre estilo e carter. De fato, segundo Pimentel (2003, p. 46) , Laura
Perls diferenciou, influenciada pelas concepes reichianas, os conceitos de carter e de estilo. (...) Para ela, o
carter faz referncia fixao de uma gestalt algum ter carter significa que tem modos muito definidos de
comportar-se, de expressar-se e de funcionar; enquanto o estilo aponta para a evoluo um modo integrado
de funcionamento, comportamento e expresso. Para mim, carter estilo cristalizado.
96
facilitar ao cliente retomar seu desenvolvimento e seu poder na confeco de sua histria,
estou, no fim das contas, atento a desenvolver uma compreenso de meu cliente e de seu
sofrimento.
Nesse aspecto do trabalho com o estilo de cada cliente em psicoterapia, importante
salientar que assim como o terapeuta tem um estilo bsico, tambm os clientes o tem; assim
como o terapeuta aprende seletivamente, baseado em quem ele , assim tambm os clientes.
Dessa maneira, segue que o que precisa ser modificado o que porventura haja de
cristalizado, e no o estilo de cada pessoa. O estilo deve ser melhor conhecido, como maneira
de o cliente se descobrir mais, se compreender melhor e desenvolver mais adequadamente
seus potenciais. preciso tambm lembrar que diferentes estilos respondero a diferentes
agentes catalisadores como indutores de mudana. (cf Denes, 2006, p. 03)
A escolha do DSM-IV como modelo de estilos de personalidade encontra sentido em
meu trabalho a partir de algumas reflexes, das quais quero destacar o cunho fenomenolgico
do DSM-IV, o que o aproxima da viso gestltica sobre a psicoterapia. Como afirma Delisle
(1999, p. 16),
com exceo dos transtornos mentais orgnicos, nenhum dos transtornos mentais
descritos no DSM tem uma etiologia estabelecida. Pode at ser difcil de acreditar,
mas as causas do transtorno histrinico ou da agorafobia so desconhecidas. bvio,
os clnicos disputaro a validade de diversas hipteses explicativas. Aprendizagem
social, desequilbrio hormonal, dinmica edpica ou relaes objetais so todas
especulaes inteligentes que nunca puderam ser adequadamente verificadas em bases
cientficas. por isso que as categorias clnicas do DSM, com exceo das desordens
nas quais alguma leso do sistema nervoso central ocupa papel significante, esto
baseadas mais em um critrio descritivo que em inferncias, sem qualquer referncia
implcita a causas e etiologia.17
Alm disso, como lembra Vinacour (1999, p. 19), o DSM uma leitura recente e
atualizada da psicopatologia, pois sua primeira verso de 1994, de modo que seu uso um
modo de homogeneizar linguagens entre as diferentes correntes psicopatolgicas e contribuir,
desse modo, para um intercmbio cientfico eficaz e fluido.
17
with the exception of organic mental disorders, none of the mental disorders contained in the DSM
have an established etiology. Whatever one may choose to believe, the causes of the histrionic personality
disorder or of a agoraphobia are unknown. Of course, clinical practitioners dispute the validity of a number of
explanatory hypotheses. Social learning, hormonal imbalance, the oedipal dynamic or object relations are all
intelligent speculations which it has never been possible to adequately verify on a scientific basis. This is why
DSM III clinical categories, with the exception of biological disorders where central nervous systems disorders
are known to play a significant role, are based on descriptive rather than inferential criteria, without any implicit
reference to causation and etiology.
97
Ao fundamentar o diagnstico em Gestalt-terapia de Curta Durao no DSM, apiome principalmente, embora no somente, nos trabalhos de Gilles Delisle, o qual fez
interessante e rica leitura das descries do DSM com base nos paradigmas gestlticos,
buscando uma melhor sistematizao do diagnstico e do trabalho teraputico em Gestaltterapia. Para Delisle (1999, p. 56),
a Gestalt-terapia uma abordagem baseada no processo interessada em considerar
cada ser humano em sua especificidade, e cada momento como efmero e
irreproduzvel. Seus conceitos bsicos no se prestam bem eles mesmos a
categorizaes e no sem dificuldades que ns tivemos sucesso ao descrever os
ciclos de experincia tpicos de um cliente histrinico. Que seja. No entanto, o jogo
vale o risco e at mesmo s custas de manchar nosso romantismo, ns temos que nos
ajustar necessidade de sistematizao. Se a teoria da Gestalt-terapia possibilita a
descrio de processos que acontecem na fronteira de contato, a qual a expresso
relativamente
constante
dos
ajustamentos
criativos
de
um
indivduo,
conseqentemente deve ser ento possvel usar um de seus conceitos para descrever
tipos psicolgicos cuja existncia reconhecida pela comunidade de terapeutas.18
esquizide;
esquizotpica;
dependente;
anti-social;
borderline;
histrinica;
narcisista;
esquiva;
18
Gestalt Therapy is a process-based approach concerned with considering each human being in his or
her specificity, and each moment as ephemeral and non reproducible. its defining concepts do not lend
themselves well to categorization and it is not without difficulty that we will succeed in describing the typical
experience cycles of a histrionic client. So be it. Nonetheless, the game is worth the risk and even at the expense
of tarnishing our romanticism, we must adjust to the necessity for systemization. If Gestalt Therapy theory
enables the description of processes taking place at the contact boundary, which is the relatively constant
expression of an individual's creative adaptations, it must therefore be possible to use one of its concepts to
describe psychological types whose existence is recognized by the community of therapists.
19
98
caminhos que se pode depreender do estilo de personalidade de cada cliente feito grosso
modo, devendo ser especificado cuidadosa e continuamente para cada cliente em cada
momento do processo teraputico. Esse esboo de foco de fundo para cada estilo de
personalidade chamado por Delisle (1988) de estratgias teraputicas gerais. Embora
Delisle teorize para um processo gestalt-teraputico de longo prazo, suas observaes so
vlidas tambm para a Gestalt-terapia de Curta Durao. H uma grande influncia de
Theodore Millon na sistematizao feita por Delisle: Millon (1979 e 2006), ao estabelecer as
polaridades atividade-passividade, sujeito-objeto e prazer-dor como importantes dimenses da
personalidade, ilumina possveis focos de ateno do terapeuta diante de seu cliente.
Cabe ainda ressalvar que no existe algum que possa ser enquadrado em um estilo
puro de personalidade, mas que sempre h um estilo que prevalece no cotidiano da pessoa.
De uma maneira geral, tenho observado que o mais comum poder-se compreender cada
cliente como tendo um estilo prevalente e, ao menos, um outro que se pode denominar de
auxiliar, os dois demandando ateno por parte do psicoterapeuta ao fazer o diagnstico de
fundo. Alm disso, importante lembrar que, como em qualquer outra tipologia, cada pessoa
tem a possibilidade de lidar com algumas situaes em qualquer um dos estilos existentes,
pois, como j afirmou Terncio, nada do que humano me estranho.
Vejamos, ento, que estratgia teraputica cada estilo sugere, segundo Delisle (1988,
passim):
Paranide: No tente subtrair-se de sua suspeio. Trabalhe para diminuir a coeso
entre os plos cognitivo e emotivo.
Esquizide: Aumentar progressivamente a sensibilidade s sensaes agradveis e
trabalhar os ciclos de contato ligados experincia do prazer. Posteriormente, focalizar sobre
a relao mesma entendida como nova ligao de experimentao de completude. Ateno
cuidadosa rede social, e ao enriquecimento da cognio acentuando o plo ativo, de modo a
que o ciclo seja ativado at a energizao.
Esquizotpica: No se perca na confuso dele. Trabalhe para aumentar a coeso entre
o plo cognitivo e os comportamentos interpessoais.
Anti-social: Diminuir a centrao sobre si, particularmente no arco ao/contato.
Aumentar a tolerncia passividade, demora de gratificao ao seguir o ciclo,
particularmente no retardamento da primeira metade do ciclo.
Borderline: Mantenha limites muito claros e seja particularmente estvel e centrado.
Trabalhe para aumentar a coeso interna entre o eu e os afetos.
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100
20
Ningum explica esse aspecto do sintoma melhor que Violet Oaklander (1980, p. 74): As crianas
fazem o que podem para ir em frente, para sobreviver. A investida das crianas em direo ao crescimento. Em
face de ausncia ou interrupo no funcionamento natural, elas adotam algum comportamento que parece servir
para faz-las avanar. Elas podero agir de modo agressivo, hostil, irado, hiperativo. Podero se recolher para
mundos de sua prpria criao. Podero falar o mnimo possvel, ou talvez nada. Podero vir a ter medo de todo
o mundo e de tudo, ou de alguma coisa em particular que afeta a sua vida e a todos com ela envolvidos. Podero
se tornar exageradamente solcitas e boazinhas. Podero se apegar de forma irritante aos adultos em suas vidas.
Podero fazer xixi na cama, coc nas calas, ter asma, alergias, tiques, dores de barriga, dores de cabea,
acidentes. No h limite para o que a criana pode fazer na tentativa de atender as suas necessidades. Debaixo
destas tentativas de lidar com o mundo existem sempre necessidades no-satisfeitas que resultam numa perda do
senso de si prprio.
101
que a pessoa espera da vida. A pessoa vista como uma totalidade fenomnica, dentro
da qual ela introduz o terapeuta como um tcnico, na expectativa de que no jogo da
vida, o novo placar lhe seja favorvel. (Ribeiro, 1999, p. 149)
A pergunta que a queixa traz para o terapeuta diz respeito ao porqu de essa gestalt
no se fechar. O que estar impedindo o fechamento desta gestalt? Certamente, falta alguma
condio, ou algumas condies para que essa gestalt se feche, e por isso que o cliente pede
ajuda: ele percebe que sozinho no pode dar conta dessa situao que o aflige, no consegue
superar os empecilhos que bloqueiam a continuao de seu crescimento. funo do
terapeuta procurar a maneira como esta gestalt pode se completar para que o indivduo possa
retomar a possibilidade de crescimento e de desenvolvimento. Para este fim, o gestaltterapeuta estar atento ao modo como o cliente lida, no seu dia-a-dia, com seus contatos, isto
, como ela trafega pelo ciclo de contato. Interessa demais ao gestalt-terapeuta compreender
como seu cliente interrompe seu ritmo de contato, em que ponto do ciclo de contato h mais
dificuldades para ele caminhar, ou seja, o gestalt-terapeuta tem sempre um cuidadoso olhar
para o(s) ponto(s) de interrupo mais importante(s) no ciclo do contato de seu cliente.
Num certo sentido, o sintoma a tentativa de resoluo de coisas inacabadas21;
tentativa de auto-regulao. Na medida que muita energia investida em dar conta de
situaes inacabadas, sobra pouca energia para lidar com situaes novas e interrompe-se o
processo de crescimento. Como afirmam os Polsters (1979, p. 49),
toda experincia fica suspensa at que a pessoa a conclui. A maioria dos indivduos
tem uma grande capacidade para situaes inacabadas - felizmente, porque no curso
da vida estamos condenados a ficar com muitas delas. No obstante, (...) estes
movimentos no completados buscam um completamento e, quando se tornam
suficientemente
poderosos,
indivduo
envolvido
por
preocupaes,
21
Referindo ao conceito de situaes inacabadas, Burow (1985, p. 90) afirma que elas tm relao com
o princpio da gestalt fechada, o qual a aplicao prtica do ponto de vista terico de que assuntos no
resolvidos (= gestalts abertas) tendem a se fechar em gestalts boas e expressivas. Enquanto esto abertas, as
gestalts amarram energias e concentrao, prejudicando a ocupao com uma outra tarefa. S quando estiver
fechada, a gestalt poder se desfazer, dando lugar a outra. Naturalmente todos ns vivemos constantemente com
inmeras gestalts abertas. Ningum est em condies de terminar tudo aquilo que iniciou, antes de comear a
criar coisas novas. O problema consiste, todavia, no acmulo de assuntos no resolvidos, que foram de tal modo
sua presena no primeiro plano, que ficamos prejudicados em nossa capacidade de agir no aqui-e-agora. Outra
possibilidade consiste numa vivncia traumtica central que no foi trabalhada e que constantemente fora sua
presena no primeiro plano (por exemplo, algum que tenha causado um acidente de trnsito e que se sinta coresponsvel pela morte de uma pessoa).
102
22
The personal condition of the counselor at the beginning of the process is of course important, too:
whether she is empty and able to listen to her client or whether she needs some more time to arrive, whether
there are uncertainties concerning the contract or whether there is an open gestalt from the previous session
103
me parecem ser os mais importantes para uma psicoterapia de curta durao fundamentada na
Gestalt-terapia. Vou me apoiar principalmente em Carl Rogers, um dos paradigmas neste
tema, e, no tocante s especificidades da Gestalt-terapia, principalmente em Richard Hycner,
um dos mais importantes estudiosos gestlticos da relao dialgica, e em Gary Yontef, um
profundo estudioso da relao teraputica em Gestalt-terapia.
A Gestalt-terapia , essencialmente, uma terapia relacional23. Relacional e dialgica.
Isso significa que toda a prtica gestltica se fundamenta na possibilidade de encontro entre o
terapeuta e seu cliente, seja um cliente individual, seja um grupo. Todo o trabalho teraputico
em Gestalt-terapia est calcado na possibilidade de que se estabelea entre as pessoas
envolvidas uma relao, a relao psicoteraputica, ou, como mais comumente chamada, a
relao teraputica. O fundamento ltimo para essa postura em Gestalt-terapia o fato de que
o ser humano , intrinsecamente, um ser em relao. No h como compreendermos o ser
humano a no ser como um ser relacional por excelncia: desde mesmo antes de nascer, e
durante toda a sua existncia, o ser humano est sempre em relao com o mundo, com os
outros, consigo mesmo. Uma das formas de relao humana, exclusividade do atual mundo
ocidental, a relao psicoteraputica, a qual tem suas especificidades, especialmente se
tratamos de psicoterapia de curta durao. sobre algumas dessas especificidades que
comentarei agora.
A questo da relao to importante na Gestalt-terapia, que Yontef (2006, p. 1) chega a afirmar que
a relational perspective is so central to the theory of gestalt therapy that without it there is no coherent core of
gestalt therapy theory or practice.
104
24
Eduardo Santosouza (2006) nos lembra que na dialtica socrtica, o importante o desejo
aprendente: o estar aberto ao des-velamento do sentido do ser-sendo. No se trata, assim, de uma investigao
tcnica e normativa, e sim de uma disposio para experienciar o des-velamento e no ficar encantado com
idias fixas. Na origem da dialtica socrtica, assim penso, a dialogia a disposio amorosa para o encontro
com a diferena originante.
105
fica relativamente claro para o cliente que o processo teraputico no pode ser conduzido
apenas pelo terapeuta ele fruto de uma aliana, de um pacto.
Outro aspecto importante quanto possibilidade de o cliente estabelecer uma aliana
teraputica o que diz respeito sua capacidade de relacionamentos e de vivncia de
intimidade. Quanto melhor for a histria de suas relaes, principalmente as familiares, tanto
melhor ser a aliana formada na relao teraputica. Assim, por exemplo, ter maior
possibilidade de se aproveitar da psicoterapia (principalmente da de curta durao) aquela
pessoa que tenha, ou tenha tido, uma famlia acolhedora e amizades ntimas, ao contrrio
daquela pessoa que no tenha ainda experimentado algum vnculo profundo em sua vida.
importante lembrar que, como j vimos, tambm da parte do terapeuta se faz
necessria uma participao nesse pacto, nessa aliana. Tambm o terapeuta precisa, em
muitos momentos, de sua fora de vontade, de sua coragem para participar do processo
teraputico, no lhe bastando a tcnica e o conhecimento terico ou, ainda, a paixo
profissional. O terapeuta h que se perguntar, a cada cliente, se capaz de mobilizar-se
suficientemente a ponto de se fazer presena na vida de seu cliente enquanto durar a
psicoterapia. As mudanas em psicoterapia no so provenientes de uma influncia exercida
pelo terapeuta, mas, antes, de algo que acontece entre pessoas, as quais esto ambas em
processo, ambas interagindo no processo, ambas se desvelando e se modificando no processo.
Parece-me importante lembrar que, se a aliana teraputica racional, ela no
somente racional. A boa aliana teraputica tem um componente afetivo importante, fruto de
uma confiana que, paulatina e progressivamente, se estabelece entre cliente e terapeuta.
Principalmente em funo desse componente afetivo, a aliana teraputica no constante
durante o processo psicoterpico, podendo mesmo chegar, em alguns momentos, a ser tema
de conversas e de atitudes visantes a desenvolv-la.
Se a aliana teraputica algo referente ao terapeuta e ao seu cliente, h outras
questes que dizem mais especificamente a um ou ao outro quando se busca uma boa relao
teraputica. bvio que o campo da psicoterapia construdo pelo terapeuta e pelo cliente,
no havendo a possibilidade de que se coloque algo como de responsabilidade de apenas um
deles, mas, ainda assim, h que se refletir acerca do que compete mais ao terapeuta e do que
compete mais ao cliente na construo desse campo especfico. Aqui, interessa-me mais, por
causa do propsito dessa tese, o que compete ao terapeuta, de modo que participao do
terapeuta no campo da psicoterapia que darei maior nfase.
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110
esvaziar-se, o terapeuta permite que um vazio criativo aparea e possa ser preenchido pela
experincia do outro. Segundo Hycner (1997, p. 65),
essa abertura ontolgica essencial para o verdadeiro encontro. Somente com essa
abertura transindividual consigo colocar de lado minhas prprias necessidades,
vulnerabilidades e feridas, e sou capaz de tocar as partes machucadas e negadas do
outro. Se estou cheio de mim mesmo, no h lugar para o outro. Se no h lugar para
o outro, no h cura. (grifos do autor)
25
By contacting the patient in this way and not aiming to move the patient, by meeting the patient and
not aiming to make the patient different, the patient is supported in growing by identification with his or her own
experience.
111
preciso que notemos, no entanto, que essa mutualidade que caracteriza a relao
teraputica dialgica no implica, ao menos no incio da psicoterapia, uma horizontalidade ou
uma ausncia completa de hierarquia na relao. Como bem salienta Frazo (1999 a, p. 02),
a experincia clnica nos mostra que, na maioria das vezes, o que traz o paciente terapia
justamente sua impossibilidade de verdadeiramente ser e, deste lugar, estabelecer ou manter
relaes, o que vai se repetir ante o terapeuta. Em terapia, o cliente, ao menos no princpio,
ter dificuldade em ser real e autntico, em abandonar a mscara. Por causa disso, a relao
teraputica no alcanar verdadeira mutualidade e autenticidade, no podendo, portanto, ser
chamada estritamente de dialgica. muito relevante, no entanto, que o terapeuta mantenha
uma atitude dialgica, pois a possibilidade do dialgico est latente, denunciada pela dor que
traz o cliente psicoterapia. Essa atitude dialgica por parte do terapeuta desde o princpio do
trabalho, uma abertura acolhedora, real e honesta ao dilogo, afirmao e confirmao do
outro, um convite para que o cliente se experimente de um jeito novo. Obviamente, esta
atitude apenas um convite, no representa a garantia de que o cliente v aceitar o chamado e
vivenciar mais profundamente o dilogo na relao. s vezes o cliente precisa de muito
tempo para encontrar as necessrias coragem e disponibilidade para aceitar esse convite; s
vezes at o tempo da terapia estreito demais para que o cliente consiga. No importa: h
sementes que levam anos para germinar, mas, ainda assim, tm que ser lanadas terra.
A atitude dialgica por parte do terapeuta proporciona ao cliente a possibilidade de
diferenciar-se e se singularizar, alicerces da liberdade, meta ltima da psicoterapia. Em uma
psicoterapia de curta durao, parece-me que essa atitude dialgica bsica: encoraja o
cliente, motiva-o a cumprir com sua parte na explorao teraputica, amplia nele a confiana
112
113
cliente no est ali para aprender lies sobre como viver melhor, mas para descobrir como
viver melhor.
importante realar que a autoridade do terapeuta emprestada pelo cliente, pois, em
ltima instncia, o cliente que tem autoridade sobre si, sobre sua vida, sobre as decises que
toma e as escolhas que faz. O terapeuta um auxiliar nesse processo. Tambm por isso, mais
do que em um trabalho de longa durao, numa psicoterapia de curta durao, a questo da
humildade do terapeuta crucial. Pelo poder que lhe emprestado e pela forma de poder que
deve assumir para dar andamento ao seu trabalho, o terapeuta est facilmente sujeitado a cair
na armadilha da onipotncia e passar a trabalhar apoiado em seu narcisismo, deixando de estar
a servio do cliente para se colocar a servio de uma aparncia, de uma projeo social e
profissional, assumindo um saber apoiado na soberba, tomando posse de uma verdade como
se ela fosse a verdade. Essa a base para um jogo de aparncias que, no fim das contas, acaba
por colocar o cliente a servio do terapeuta, numa inverso desastrosa e perigosa.
O trabalho teraputico, quer seja em uma psicoterapia de curta durao, quer seja em
um trabalho longo, exige do terapeuta humildade para conhecer e reconhecer suas limitaes,
as limitaes de seu conhecimento e a limitao mais caracterstica do trabalho
psicoteraputico: ele sempre um trabalho singular e nico com cada cliente. Essa humildade,
quando alcanada pelo terapeuta, facilita uma maior mutualidade na relao e favorece a
humanizao da relao entre cliente e terapeuta. Mutualidade, aqui, no entanto, no
significa nem igualdade, nem simetria. Pelo contrrio: mutualidade verdadeira implica
diferena, reciprocidade e troca. (Frazo, 1999 a, p. 12)
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117
Uma outra caracterstica importante das tarefas para casa que elas devem se
encaixar com preciso na rea particular de conflito do cliente. Deve-se apoiar em
comportamentos que faro parte do futuro do cliente eles esto baseados na experincia da
terapia, mas sondam uma rea que requer comportamentos novos. (Polster e Polster, 1979, p.
246)
Alm dessa funo de ampliao da explorao do mundo existencial do cliente, essas
tarefas para casa cumprem tambm a funo de prolongar a relao teraputica para alm da
situao teraputica, fato que especialmente til quando o cliente atravessa perodos de
grande insegurana ou ansiedade ao fazer sua tarefa, como se ele estivesse com o
terapeuta ao seu lado, o que, nessas situaes, gerador de conforto e encorajamento.
2.9.3 o contrato
H questes importantes e de grande influncia na relao teraputica quanto ao
contrato teraputico em psicoterapia de curta durao, um contrato que nasce a partir de uma
anlise da relao da vontade de curar, da viabilidade de afetar as causas do problema, da
disponibilidade da pessoa para o processo de mudana, das condies psicoemocionais para
comear o processo psicoteraputico. (Ribeiro, 1999, p. 148). Comentarei brevemente
algumas dessas questes.
Assim como na psicoterapia de longo prazo, o contrato deve ser estabelecido na
primeira ou nas primeiras sesses, da maneira a mais clara possvel. O contrato uma
consolidao e uma formalizao do vnculo teraputico, um delimitador continente para o
encontro que comea a nascer. Faz parte do contrato uma devoluo inicial, no
necessariamente profunda, geralmente panormica, acerca de como o terapeuta v a
problemtica apresentada pelo cliente, o que, por si s, j traz um esclarecimento (geralmente
teraputico) para o cliente acerca de seu momento existencial. Essa devoluo, bvio, deve
ser feita em uma linguagem e uma postura acessveis ao cliente, levando em conta sua
ansiedade e sua insegurana momentnea, de maneira que ele possa compreender
adequadamente o que lhe dito.
igualmente importante saber quais informaes o cliente tem sobre o processo
psicoterpico de curta durao, cuidando de atualizar e completar essas informaes, quando
necessrio incluindo algumas explicaes gerais sobre a dinmica do processo teraputico, o
que pode incrementar a motivao do cliente para o trabalho, alm de ser til para o real
estabelecimento da relao teraputica. Alm disso, importante que o terapeuta coloque, de
118
novo da maneira a mais clara possvel, como chegou a seu ponto de vista e o que fundamenta
esse olhar, pois o cliente, especialmente nos primeiros contatos com o terapeuta, busca
intensamente ser compreendido. Essa primeira interveno do terapeuta deve incluir um
cuidadoso prognstico acerca do trabalho, sem certezas ou predies definitivas, mas com
confiana. Esse prognstico deve incluir antecipaes sobre o trabalho teraputico, com
esclarecimento detalhado e cuidadoso sobre qual o papel esperado do cliente ao longo do
processo.
parte importante desse contrato a discusso e explicitao clara das normas bsicas
do trabalho teraputico, incluindo pagamento, quantidade de sesses semanais, como lidar
com as faltas do cliente ou do terapeuta, durao das sesses, durao do tratamento, e outras
questes especficas, no necessariamente nessa ordem. Em uma psicoterapia de curta
durao, a delimitao do nmero de sesses ou do tempo disponvel para o trabalho muito
importante e pode ajudar a diminuir a ansiedade do cliente a perspectiva de um fim
determinado para o trabalho costuma agir como um ansioltico bastante bom para alguns
clientes, ao lhes dar limites mais claros para o trabalho. Ao se estabelecer esse limite, no
entanto, faz-se mister esclarecer o cliente acerca da possibilidade de um recontrato ao fim do
tempo estabelecido, caso ainda no se tenha chegado a um termo satisfatrio do processo
teraputico.
O contrato teraputico verbal. No cabe faz-lo por escrito, uma vez que ele se
fundamenta em uma relao de confiana e o primeiro sinal dessa confiana. A terapia o
lugar da palavra, do verbo, e no do papel. O contrato teraputico envolve responsabilidades
altura do que pode o cliente, pois o contrato no deve ser mais um instrumento de presso
sobre o cliente. Parece-me importante que fique clara a diviso de responsabilidades e a
explicitao de que se est construindo uma parceria, uma aliana, com a finalidade de ajudar
o cliente a sair desse sofrimento em que se encontra. Talvez caibam aqui algumas excees
para trabalhos realizados em instituies, pois h casos em que alguma formalizao
necessria, mas, ainda assim, a responsabilizao do cliente pela sua parte do trabalho e pelo
cumprimento das regras estabelecidas no contrato merece ser atentamente esclarecida no
contato teraputico.
119
se basear em, pelo menos, dois encontros semanais entre terapeuta e cliente. A prtica, hoje
comum, de um encontro semanal, utilizada em terapia de longo tempo insuficiente para um
bom trabalho de curta durao, quer seja pela intensidade da concentrao necessria nas
questes envolvidas no sofrimento do cliente, quer seja por um melhor aproveitamento do
tempo disponvel para o tratamento. J disse anteriormente e repito, a mim me parece mais
adequada uma delimitao de um perodo determinado que uma delimitao pelo nmero de
sesses, dentre outros motivos porque tem me parecido mais assimilvel pelo cliente a
determinao de um tempo que a determinao de uma quantidade de sesses. Alm disso, a
determinao do tempo, deixando mais ou menos em aberto o nmero de sesses, facilita ao
cliente a abertura para eventuais sesses extras, solicitadas a partir de necessidades prementes
do cliente ou do terapeuta. No custa ainda lembrar que, no ocidente, marcamos a vida em
tempo, no em eventos.
Trabalhando em duas sesses semanais, me parece que o cliente pode aproveitar
melhor o tempo que tem para o processo psicoterpico. Neste intervalo entre as sesses, h
tempo, entre uma sesso e outra, para que o cliente assimile e integre as novas gestalten
alcanadas, aprofunde seu nvel de compreenso e aja em seu cotidiano de maneira a
consolidar as recentes aquisies, caminhando com novas bases no sentido do
amadurecimento. Com duas sesses semanais, h o tempo para o cliente se explorar junto
com o terapeuta e o tempo para o cliente se explorar sozinho, cumprindo assim
satisfatoriamente aquele que o paradoxo da psicoterapia, o fato de ela existir para no
existir.
Especialmente para a clientela deste estudo, o intervalo de dois ou trs dias entre as
sesses particularmente til. De uma maneira geral, os padres que atendo vm de outros
lugares e ficam em So Paulo por todo o tempo do tratamento, um tempo o qual, no mais das
vezes, determinado pelo bispo ou pelo superior religioso, em funo da necessidade da
presena do padre em sua cidade de origem. Assim, esses padres, enquanto esto em So
Paulo, aproveitam a estadia para fazer cursos e para colaborar com quem os hospeda, rezando
missas e auxiliando nas confisses nas parquias ou seminrios que os acolhem pelo perodo
do tratamento. Essas atividades acabam por ser complementares psicoterapia na medida que
colocam os padres em contato com situaes semelhantes quelas vividas em seu cotidiano
em suas cidades de origem, propiciando-lhes um sentido de pertinncia e de permanncia que
os auxilia na compreenso e na mudana de seu mundo. Dadas essas particularidades da
clientela, tenho percebido que as duas sesses semanais provocam um ritmo bastante
120
121
mas se esgota. No entanto, isso difcil, e ainda mais difcil na psicoterapia de curta
durao, a ponto de exigir cuidadosa reflexo por parte do terapeuta.
Ao cumprir o prazo estipulado para o trabalho em psicoterapia de curta durao,
certamente o terapeuta perceber que, se tivesse mais tempo, poderia ainda ser mais til para
seu cliente. Um psicoterapia de curta durao, de modo geral, no se esgota; mais
comumente, esgota seu foco. Por isso, um tipo de trabalho que exige do terapeuta um
adicional de esperana. Passado o trecho mais ngreme e perigoso do caminho, o guia vai
voltar, deixando o caminhante, ainda longe da plancie, por sua prpria conta. Para voltar, ele,
o terapeuta, precisa ter a confiana de que deu mais ateno ao caminhar que ao caminho,
precisa estar pleno na esperana de que seu cliente j dono de seu prprio ritmo, j tem
suficiente auto-suporte.
Isso posto, parece-me que as linhas bsicas esto suficientemente bem traadas quanto
aos aspectos tcnicos da Gestalt-terapia de Curta Durao, de modo que hora de estudar as
caractersticas mais importantes da clientela de padres no que diz respeito psicoterapia de
curta durao.
122
CAPTULO III
1
2
(1979, p. 271)
Caracterizarei aqui como leigas as pessoas que no vivem a vida consagrada, em contraposio s
pessoas dedicadas vida consagrada.
123
124
125
bem como
nas religies
126
127
Santidrin, 1996; Pereira 2004 e Benelli3, 2005), para que eu possa me dedicar mais
especificamente s reflexes sobre o trabalho psicoteraputico com o clero.
Assim, no que diz respeito mais estritamente ao processo teraputico, comentarei
sobre algumas peculiaridades dessa clientela em doze aspectos importantes do trabalho
psicoteraputico. Tenho claro para mim que farei uma leitura de carter geral, de modo que
espero que isso esteja igualmente claro para quem acompanha esse meu raciocnio : no h
como teorizar sem momentaneamente perder de vista cada pessoa que se atende em
consultrio, da mesma maneira que no h como se atender bem uma pessoa se, ao se
entrar na sala de terapia, se estiver embrulhado apenas em saberes tericos. Dizendo de
outro jeito: Forghieri (2001, p. 06) cita, em seu livro, uma interessante fala de Franco
Montoro: cultura, sob certo aspecto, o que resta quando a pessoa esquece tudo aquilo
que aprendeu ... por isso o ensino no pode se limitar a simples informaes Pode-se
fazer um paralelo dessa afirmao com a terapia, e dizer o seguinte: quando diante do
cliente, bom que o terapeuta se esquea de tudo o que aprendeu, e esteja com o cliente.
Nesse caso, a teoria fundo, e deve ser fundo confivel, to confivel que no pede e
nem mesmo se permite tornar-se figura. O aprendido, se vier a se tornar figura, toma o
lugar do vivido, atrapalhando a ocorrncia do momento teraputico. H a hora de refletir
teoricamente, h a hora de praticar. Quanto melhor a teorizao, melhor fundo ter a
prtica. Agora hora de refletir teoricamente sobre a prtica vivida.
bvio, mas no custa ressaltar, que o que estou dizendo que o psicoterapeuta
no pode perder de vista a pessoa que est diante dele no momento da situao teraputica.
As generalizaes so teis, mas no podem, de maneira nenhuma, se sobrepor ao contato
humano entre terapeuta e cliente em terapia. Quando levanto essas doze diferenas entre a
psicoterapia para pessoas de vida consagrada e a psicoterapia para leigos, estou consciente
de que cada cliente de vida consagrada que atendo no se encaixar em todos esses
critrios. Minha inteno ao levantar esse pontos que eles facilitem ao psicoterapeuta o
3
128
1) a queixa
No que diz respeito queixa, h duas peculiaridades na psicoterapia de pessoas de
vida consagrada que me chamam a ateno.
A primeira que muito raramente a queixa expressa por apenas uma voz. Na
maior parte das vezes, a queixa vem expressa pelo cliente que nos procura e pelo seu bispo,
seu formador ou seu provincial, ou seja, algum seu superior hierrquico no mundo
religioso. No raro, ao se atender um padre para uma primeira entrevista, atende-se
tambm, ainda que vezes somente por telefone, seu superior, o qual quer dar algumas
informaes bsicas em troca de um parecer que o norteie no trato com o cliente; o
superior quer tambm, quando isso possvel, uma previso quanto psicoterapia. O
cliente de vida consagrada costuma chegar amparado para a psicoterapia, o que no deixa
de ser, numa certa medida, tranqilizador para o terapeuta.
A segunda caracterstica dessa populao, especialmente vlida para os padres,
que s pessoas de vida consagrada custa muito reconhecer que esto em crise. Se para o
cliente leigo (principalmente se for homem) a busca da psicoterapia s se d depois de
inmeras tentativas por outros caminhos (mdicos, amigos, charlates, mgicos, religiosos,
drogas, fora de vontade, mudanas concretas de emprego ou de residncia ou de
casamento, etc.), para o cliente de vida consagrada esse caminho costuma ser ainda mais
longo. Dessa forma, comum se receber pessoas bastante feridas a exigir e merecer
delicado acolhimento.
De uma maneira geral, quando o padre se percebe em sofrimento ntimo, como toda
pessoa, ele busca uma soluo atravs do que lhe est mais facilmente ao alcance. Alguns
buscam a orao, outros buscam os amigos, outros ainda seus superiores e, por a afora, h
uma srie de alternativas que podem ser buscadas antes que se pense em uma psicoterapia,
como mostram algumas pesquisas que comentarei mais adiante. Nisso penso que os padres
129
130
padre suporta seu sofrimento at um limite de muita dor, quando, ento, e s ento, se
deixa descobrir necessitado de ajuda. Obviamente, esse deixar-se descobrir no feito de
maneira deliberada ou consciente, mas, mais comumente, de maneira aparentemente
involuntria, como se o padre tivesse sido trado pela sua poro existencial mais
saudvel. A grande maioria dos padres que atendi em psicoterapia at hoje se enquadra
nesse caso. Um exemplo o do padre que, a partir de algumas situaes de grande
sofrimento por que passou, comeou a exagerar na bebida at o dia em que rezou
embriagado uma missa, provocando queixas dos fiis ao bispo, o que levou o padre a uma
internao para tratamento do alcoolismo e posterior psicoterapia para elaborao de sua
situao frente a bebida e outras questes. Outro exemplo foi o de um padre de uma
pequena comunidade que, apaixonado por um fiel com quem mantinha uma relao
amorosa, resolveu que deveria, por dever de lealdade, contar para a me do rapaz sobre o
relacionamento que mantinham, o que gerou considervel escndalo na comunidade,
obrigando o bispo a transferir o padre de parquia, alm de o encaminhar para uma
psicoterapia.
Quando o superior sugere ou obriga o padre a fazer terapia, comumente entra em
contato com o terapeuta depois que se inicia o processo psicoteraputico. Quando faz esse
contato, o superior quer dar informaes, quer fazer explcito seu ponto de vista, ao mesmo
tempo em que quer receber orientaes do psicoterapeuta sobre como lidar com aquela
pessoa e com aquela problemtica, da mesma maneira que quer tambm um prognstico
sobre aquela situao vivida pelo padre. Em virtude da peculiaridade da clientela clerical
que tenho atendido padres do interior de todo o Brasil que vm a So Paulo para a
terapia tem sido mais comum eu conversar com os superiores pelo telefone; tem
acontecido tambm de o bispo ou o superior imediato do padre, quando em viagem a So
Paulo, solicitar uma entrevista para conversar pessoalmente sobre o padre que estou
atendendo.
por causa dessa participao do bispo ou do superior imediato do padre que digo
que, na terapia do padre, a queixa vem expressa em pelo menos duas vozes, a do prprio
padre e a de seu superior. Isso acaba por se tornar um ponto delicado da terapia, pois exige
do terapeuta cuidadosa ateno legtima solicitao do superior, ao mesmo tempo em que
o terapeuta no pode perder de vista que seu cliente o padre, no o superior dele ou a
Igreja. Essa triangulao que se estabelece, terapeuta, padre e superior, com a Igreja de
fundo, tanto pode ser extremamente benfica para a terapia quanto pode ser perigosamente
danosa para o trabalho teraputico. De qual desses dois limites o processo teraputico vai
131
132
bispo ou superior do padre que est em terapia, conforme detalharei mais no item 2 deste
captulo, mas assunto sobre o qual quero fazer ainda alguns comentrios agora.
No cabe ao terapeuta no receber o superior do padre sob a alegao de que isso
poderia contaminar a relao teraputica, uma vez que essa participao do superior
comumente parte integrante da terapia das pessoas de vida consagrada. No cabe ao
terapeuta sequer pensar em procurar onde est a verdade, ou quem tem razo dentre as
duas vozes que portam a queixa para determinada terapia. Cabe ao terapeuta acolher as
duas vozes, autentic-las em sua busca de soluo para uma situao existencial
problemtica, refletir sobre elas com base em seu suporte terico para ajudar a pessoa que
o procura em sofrimento psquico. A no ser que seja limpidamente a servio de seu
cliente, no cabe ao terapeuta revelar ao superior informaes que detenha sobre seu
cliente, ou vice-versa, o que coloca o terapeuta em uma situao bastante delicada, na qual
ele tem que ter absoluta clareza sobre seu comprometimento com seu cliente, para que o
trabalho possa ser verdadeiramente teraputico. Nesse aspecto, a psicoterapia de clrigos
guarda muitas semelhanas com a psicoterapia de adolescentes, na qual de obrigao do
terapeuta acolher tambm a famlia do adolescente seu cliente. A atitude do terapeuta aqui
deve ser a mesma que ele tomaria ao lidar com a famlia de adolescentes: desde a primeira
conversa com os superiores deve ficar claro que no haver segredo, perante o cliente, a
respeito do que for conversado entre o terapeuta e o superior. Detalharei mais um pouco
como se pode lidar com isso em psicoterapia mais adiante, quando comentar mais
detalhadamente as questes relativas autonomia na vida consagrada.
Tenho por hbito, quando recebo o bispo ou o superior de meu cliente, ainda que
apenas por telefone, abrir um espao para conversar um pouco sobre o processo
teraputico. Aproveito esses momentos para discutir os limites da psicoterapia, para ouvir
as dvidas e as expectativas do superior, para esclarecer como a fundamentao terica
de meu trabalho e a importncia do comprometimento do terapeuta com o padre, seu
cliente. Nessas conversas iniciais, tenho especial ateno para com as expectativas que o
superior tem quanto ao desenvolvimento e ao resultado da psicoterapia, pois no se pode
perder de vista que os superiores, mesmo que conheam bastante sobre psicologia, no so
psicoterapeutas e precisam ajustar suas expectativas s possibilidades e limitaes do
trabalho teraputico. Com isso, eu trabalho especialmente contra as projees que
comumente se faz sobre a psicoterapia, especialmente aquelas que confundem o trabalho
teraputico com algo que tenha como propsito provocar uma adaptao passiva do cliente
a algumas condies que lhe so txicas. Da mesma forma, trabalho contra as projees
133
que esperam que, ao fim do trabalho psicoteraputico, o cliente se torne bem adaptado e
dcil, modelado segundo expectativas ou padres externos, pois isso coisa que muito
raramente acontece em um trabalho teraputico bem desenvolvido. Ao fim de uma
psicoterapia bem sucedida, razovel esperar-se que o cliente se torne mais tolerante e
cordato, mais simples e solidrio, mais responsvel e exigente, e igualmente sensato
esperar que ele possa se tornar mais honestamente crtico e combativo na defesa de si, de
seus pontos de vista, de seus direitos, de seus valores.
Em uma psicoterapia de curta durao, para se alcanar esse bom resultado, a boa
audio da queixa fundamental. No caso dos padres, h um aspecto da queixa que me
parece essencial tratar aqui: a maneira como os homens costumam expressar e lidar com
seus sofrimentos emocionais bastante caracterstica e tambm uma marca dos padres,
pois eles so, antes de tudo, homens. Para os homens, muito mais comum a busca da
psicoterapia somente quando o sofrimento est muito dolorido, as feridas muito abertas, de
modo que, quando um homem procura a terapia, comum que ele esteja bastante ferido, a
exigir e merecer delicado e especial acolhimento.
voz corrente entre terapeutas e mdicos que os homens so mais displicentes no
cuidado da sade que as mulheres. Isso vlido tambm para a psicoterapia. Apoiado em
inmeras pesquisas que correlacionam gnero e cuidados com a sade, Figueiredo (2005,
passim) afirma que notvel o fato de os homens apresentarem, em todo o mundo, uma
situao de sade desfavorvel no que diz respeito aos diferenciais de indicadores de
mortalidade entre os sexos. O autor lembra ainda que na maioria das causas de morte, os
homens apresentam ndices mais elevados na comparao com as mulheres, e credita isso
ao fato de os homens assumirem, por causa da construo do gnero, comportamentos
considerados pouco saudveis, os quais esto relacionados a um modelo de masculinidade
idealizada, na qual esto presentes noes de invulnerabilidade e de comportamento de
risco, associadas a dificuldades de verbalizar as prprias necessidades de sade, pois falar
de seus problemas de sade pode significar uma possvel demonstrao de fraqueza, de
feminilizao perante os outros. Denota-se da a idia de feminilizao associada aos
cuidados de sade. (p. 107) Esse raciocnio, feito a propsito de doenas mais graves,
argumenta o autor, vale tambm para aquelas manifestaes de sofrimento que no
colocam a vida em risco de maneira imediata, embora devam ser tratadas, como,
acrescento eu, o caso de muitos dos problemas psquicos.
Uma das caractersticas da populao masculina, de maneira geral, e dos padres, em
particular, no que diz respeito ao desenvolvimento da identidade masculina e ao cuidado
134
com a sade um contato mais empobrecido com o corpo, fator to relevante para o
psicoterapeuta que ser alvo de comentrios mais pormenorizados mais adiante, neste
captulo.
Discutindo a condio e a subjetividade masculinas, Boris (2000, p. 80) sustenta
que o masculino sempre construdo negativamente: no pode ser uma mulher, uma
criana ou um homossexual, tendo que comprovar constantemente sua condio de
homem, de adulto e de heterossexual. No que diz respeito s dores, elas so vistas, na
maioria das culturas conhecidas, como prprias da condio feminina, o que faz Boris
(2000, p. 61) concluir que os homens, ao sentirem dor, devem suport-la e nunca se
queixar e se lamuriar, como culturalmente permitido s mulheres. Depois de lembrar
que atualmente a diferena de mortalidade entre os homens e as mulheres est em torno de
oito anos em todos os pases ocidentais, exceo feita Islndia, pas conhecido por sua
condio igualitria quanto s relaes sociais de gnero, Boris (2000, p. 70) argumenta
que
apesar de os homens terem as mesmas necessidades psicossociais das mulheres
ou seja, ser ativo e passivo, amar e ser amado e manifestar emoes e sentimentos
a iluso viril, ainda em grande parte, continua proibindo ou limitando os homens
na expresso de suas reais necessidades e na adoo de algumas atitudes
verdadeiramente humanas. (...) (Se considerarmos) a obsesso pelo desempenho
sexual, a vivncia da violncia pessoal e coletiva e a competio e o estresse
profissionais, comuns entre muitos homens, teremos uma idia mais clara das
imposies que ainda rondam e do significado de fortaleza ao macho humano,
mas que, por outro lado, o fragilizam, pois freqentemente se v acometido de
ansiedade, de angstia, de temor do fracasso e de claras dificuldades com a
expresso de seus prprios sentimentos, muitas vezes tendo como conseqncia o
desenvolvimento de doenas psicossomticas uma espcie de auto-violentao
ou a manifestao de comportamentos compensatrios de violncia, cujas vtimas
acabam sempre sendo as mulheres, seus filhos e seus congneres.
135
Hiriart afirma que nesse ltimo grupo, dos que se isolam, que se encontram os
testemunhos mais dramticos. Alm disso, nesses casos, depois de passada a crise, o estado
de nimo e a satisfao com a vida consagrada esto piores que antes. Se a esses sacerdotes
somamos aqueles para quem a crise no foi superada, encontramos um grupo significativo
de sacerdotes para quem as crises, longe de ser um momento de reviso e crescimento, so
somente momentos de mal-estar subjetivo que no sabem muito bem como manejar, e que
por muito tempo os debilitam. (p. 43)
136
Para Hiriart, muitas vezes so os outros sacerdotes que percebem que algo no vai
bem e ativam mecanismos de ajuda, como a psicoterapia. Assim, no so poucos os
sacerdotes que procuram algum profissional, principalmente psiclogos. Ainda que muitas
vezes sejam encaminhados, em geral aceitam a recomendao, e avaliam como uma boa
experincia. (p. 42)
Observando o quadro em que Hiriart (p. 43) distribui seus pesquisados pelos
recursos utilizados para fazer frente s crises, percebe-se que so 8,8 % os que procuram
ajuda psicolgica ou psiquitrica, nmero que me faz pensar que o campo do atendimento
psicoterpico de sacerdotes ainda tem muito o que se desenvolver, ou seja, a queixa dos
sacerdotes ainda no tem nos consultrios dos psiclogos o suporte que seria de se desejar.
Uma das maneiras para que se coloque esse tipo de servio mais claramente
disposio das pessoas de vida consagrada a ampliao, por parte dos psicoterapeutas,
dos estudos sobre essa clientela, uma das justificativas, alis, para esta tese. Ao estudar a
clientela de vida consagrada, um dos pontos mais importantes para sua compreenso a
questo da autonomia, a qual traz, para as reflexes do psicoterapeuta, aproximaes
importantes com o que discutimos at agora sobre a queixa.
2) a autonomia
Todos os presbteros diocesanos, ao serem ordenados, prometem ao Bispo
obedincia e fazem voto de castidade no celibato. Os que so religiosos fazem, alm disso,
um voto de pobreza. Sobre o voto de castidade no celibato, tratarei daqui a pouco. Antes,
quero comentar algumas repercusses do voto de obedincia no processo psicoteraputico,
pois com base nesse voto que se colocam algumas restries autonomia do padre,
entendendo aqui autonomia como a capacidade de se autogovernar e de agir segundo seus
prprios desgnos.
Ao reduzir a autonomia do padre, numa certa medida, o voto de obedincia faz
aproximar muito a psicoterapia dos religiosos da psicoterapia dos adolescentes. Osrio
(1991, p. 12/13) ensina que, ainda que o trmino da adolescncia seja difcil de determinar
e ainda que obedea a uma srie de fatores de natureza scio-cultural, h alguns processos
mais universais que possibilitam marcar o trmino desta etapa da vida humana na
sociedade ocidental. Um desses processos a
137
Certa vez, recebi para um processo de psicoterapia de curta durao uma religiosa, mandada para
terapia por ordem de sua superiora. Essa religiosa, j na primeira sesso, expressou de maneira clara essa
possibilidade de ser livre e ter limites s vezes severos para a autonomia: nio, minha questo a seguinte:
estou aqui porque minha superiora me obrigou a fazer terapia, mesmo contra a minha vontade nesse
momento. Como tenho que obedecer, ento quero aproveitar essa oportunidade para compreender algumas
coisas da minha vida e ver se, assim, me sinto ainda melhor sendo eu mesma.
138
tornar o responsvel pelo pagamento, sentiu-se to constrangido com essa situao que
resolveu encerrar a terapia, mesmo que isso no fosse o mais indicado no momento.
Tivemos que dedicar toda uma sesso para discutir essa sua deciso, uma sesso da qual
ele saiu preocupado, mas ainda no convencido da possibilidade de se manter em terapia.
Na sesso seguinte, ele me relatou que conversara com seu superior hierrquico e que este
superior lhe havia dado uma bronca por pensar em interromper um trabalho que estava lhe
fazendo tanto bem. Em vista disso, meu cliente resolveu continuar a terapia, mas repetidas
vezes voltou ao tema do incmodo que lhe causava ser o ocasionador deste tipo de
despesas para a congregao.
Mais efetivamente que nos aspectos financeiros da terapia, a incluso do(s)
superior(es) hierrquicos do padre, semelhana da incluso dos pais na terapia do
adolescente, se d pela presena desse(s) superior(es) no momento da queixa e no correr do
trabalho teraputico.
Como j assinalei, a queixa do padre costuma vir na voz do queixoso e na voz de
(ao menos) um seu superior. No caso clnico que apresento no captulo que finaliza esta
tese, isso fica bem evidente na carta que encaminha o cliente, dando conta do caso. Em
muitos outros atendimentos, bastante comum que o bispo ou o provincial telefone para o
terapeuta a fim de ter informaes sobre o trabalho e sobre o prognstico que se pode fazer
no caso, inclusive no que diz respeito ao tempo que o terapeuta julga necessrio para que
aquela terapia chegue a bom termo. Lembro-me que, certa vez, recebi para terapia um
padre, de estilo histrinico, que passava por uma crise depressiva. Logo depois da segunda
ou terceira sesso, seu bispo telefonou-me, querendo saber que indicaes eu fazia para o
caso. Conversei com ele, dando notcias sumrias do caso, como costumo fazer com alguns
pais de adolescentes que atendo, e o convidei para um encontro, numa oportunidade em
que ele viesse a So Paulo, para que pudssemos conversar pessoalmente e mais
longamente. O bispo disse-me que pensaria no assunto, e insistiu para que eu marcasse um
prazo para o fim do tratamento. Dada a situao vivida pelo padre, eu previ que em menos
de um ano pouca coisa poderia ser esperada, uma vez que a depresso vivida pelo cliente o
colocava em um momento muito delicado de vida. Diante desse meu prognstico, e diante
da forma com a qual o fiz, o bispo, qual pai dedicado, achou melhor marcarmos um
encontro pessoal para dentro em breve, o que, de fato, se deu, em menos de duas semanas.
No encontro com esse bispo, como em todos os encontros com superiores, a
estratgia teraputica a mesma da terapia de adolescentes: o terapeuta deve, logo no
incio da entrevista, alertar pessoa com quem vai conversar que o que ele disser sobre o
139
cliente ser comunicado ao cliente. Segundo Bleger (1978, p. 31) isso tende a limpar o
campo e a romper divises muito difceis de trabalhar posteriormente. Alm disso, esse
tipo de conduta por parte do terapeuta amplia sua confiabilidade ante o cliente e seu
superior, e provoca uma ampliao da comunicao entre superior e subordinado, pois, via
de regra, logo aps o encontro com o terapeuta, o superior tende a conversar com o padre
antes mesmo que o terapeuta o faa, ainda que esse tipo de comportamento no fosse
padro naquela dade at ento.
Na data aprazada, o bispo a que eu me referia acima compareceu ao meu
consultrio, acompanhado de um padre que desempenhava importantes funes na diocese.
Conversamos longamente ns trs, uma conversa na qual, como na terapia de adolescentes,
aproveitei para obter algumas informaes, especialmente sobre o clima diocesano, que
poderiam ser teis para a psicoterapia que se iniciava. Aproveitei tambm para, de novo
semelhana da terapia de adolescentes, dar algumas informaes sobre a situao pela qual
passava meu cliente e orientar o bispo e seu acompanhante sobre como lidar com meu
cliente enquanto ele se recuperava de seu sofrimento.
Nesse processo de dar informaes ao bispo, h importantssimas questes ticas
em jogo. Como j disse anteriormente, e reitero, o terapeuta no est a servio da Igreja,
mas a servio de seu cliente. Se este servio ao cliente for til para a Igreja, tanto melhor,
mas esse no pode ser o propsito de uma psicoterapia, assim como no o propsito de
uma terapia de adolescentes estar a servio da famlia da maneira que a famlia explicita.
Assim como o terapeuta de adolescentes acaba por auxiliar o dilogo na famlia, com todos
os confrontos e possveis separaes que isso pode acarretar, tambm o terapeuta que
atende um padre acaba por auxiliar o dilogo entre este padre e a Igreja, ainda que este
padre porventura descubra que seu melhor caminho deixar de exercer a funo
presbiteral. A funo do terapeuta nos dois casos a de facilitador de um dilogo que
precisa se ampliar e se aprofundar, sem que haja garantias de para que caminhos esse
dilogo conduzir as partes dialogantes. O limite tico de um psicoterapeuta colocar a
servio de seu cliente o que de mais atualizado a cincia conhea, sem que haja a
possibilidade de se fazer prognsticos seguros e definitivos de para onde caminharo as
reflexes e a vida do cliente. No h como ter certezas quando tratamos do futuro humano.
Nesse processo de facilitador do dilogo, como eu dizia, o terapeuta se depara com
importantes questes ticas: o que de seu cliente revelar ao superior? O quanto da conversa
com o superior revelar ao cliente, e de que maneira fazer essa revelao? Qual o limite da
orientao que dada ao superior? At que ponto pode o terapeuta interferir na conduo
140
da vida presbiteral do cliente pela sua congregao ou diocese? Esses limites ticos so de
difcil determinao em termos gerais, devendo ser vistos e revistos e vistos novamente a
cada situao5. H, no entanto, algumas orientaes gerais que podem ser teis.
A primeira e mais importante delas, como j afirmei anteriormente, que o
terapeuta deve se colocar a servio do cliente. esse estar a servio do cliente que vai dar
as primeiras balizas sobre o que e como revelar, ou no, nessa facilitao do dilogo entre
o padre que faz terapia e seus superiores. O terapeuta pode, por exemplo e de maneira
muito criteriosa, contar ao bispo ou ao provincial algo da terapia, do diagnstico ou do
prognstico, se ele, terapeuta, entender que assim estar facilitando o desenvolvimento de
seu cliente. Na dvida, o silncio sempre a melhor opo, assim como na terapia de
adolescentes. O mesmo critrio vale para a revelao ao padre dos detalhes da conversa
entre o terapeuta e seu superior.
Quando falo em contar ao superior alguma coisa da terapia, no estou me referindo
s coisas que so segredos ou ao que dito em confiana, mas a pequenos detalhes que, se
revelados, no prejudicam o cliente, a confiabilidade da relao entre o terapeuta e o
cliente e tampouco o processo teraputico. Por exemplo, eu posso contar a um bispo que o
padre, meu cliente, tem se esforado e feito com interesse e coragem sua parte da
psicoterapia, se eu entender, ao contar, que essa informao tranqiliza o bispo e auxilia o
padre a ter mais apoio ambiental para as mudanas que precisa fazer.
Outro critrio importante que o dilogo entre o terapeuta e o superior hierrquico
de seu cliente deve se dar, sempre que possvel, na presena do cliente. Assim, se amplia a
probabilidade de que, a partir desse encontro tripartite no consultrio, reste facilitado o
dilogo e o posicionamento mais cuidadoso entre o padre e seu superior da em diante. No
captulo no qual apresento o caso clnico, h uma sesso em que isso acontece. Remeto o
leitor para l (p. 214).
Ainda outro critrio importante que o terapeuta leve em conta a possvel
ansiedade e a preocupao do superior de seu cliente, assim como o terapeuta de
adolescentes leva em conta as ansiedades e preocupaes dos pais e, dentro do possvel, os
orienta e os informa de maneira a que possam se tranqilizar e, assim, ajudar o cliente a
alcanar mais rapidamente a retomada de seu desenvolvimento. Ao considerar as
preocupaes do superior hierrquico do padre em terapia, o terapeuta tem como
5
bvio, mas no custa explicitar: serve melhor ao seu cliente o terapeuta que pode discutir esses
assuntos (e outros de igual complexidade referentes psicoterapia) em superviso clnica ou em grupos de
terapeutas que possam dar suporte ao psiclogo no trabalho com seu cliente.
141
instrumentos de seu trabalho, tal como quando diante de seu cliente, a empatia e a incluso,
a congruncia e a presena autntica, a compreenso da postura e do ponto de vista do
superior. Tambm no contato com o superior se estabelece uma relao teraputica, em
muito semelhante quela estabelecida com o cliente, embora em prol preferencialmente do
cliente e no de seu superior.
Um ponto importante nesse contato com o superior do cliente padre a
oportunidade que se apresenta para que o terapeuta converse sobre as expectativas do
superior acerca do processo teraputico e de seus resultados. No so poucos os mitos que
cercam o processo de psicoterapia e, em funo disso, no so poucas as indicaes ou
expectativas equivocadas acerca da terapia. No caso das pessoas de vida consagrada, essa
questo ainda mais importante, uma vez que, na vida consagrada, h um padro de
conduta esperado para cada pessoa que nela ingressa e vive, e, muitas vezes, esse padro
esperado guarda alguns distanciamentos quanto ao que se pode alcanar atravs de uma
psicoterapia. Sempre que posso, prefiro discutir o mais abertamente possvel essas
questes com o superior de meu cliente, e, geralmente, aproveito tambm para colocar em
pauta minha viso acerca de a servio de quem est o processo teraputico. Minha inteno
aqui , mais uma vez, limpar o campo e prevenir problemas muito difceis de trabalhar
posteriormente.
bvio, mas no custa lembrar, que o que se conversa com um bispo ou com um
provincial no tem a mesma profundidade que o que se fala com os pais de um
adolescente, pois o limite de responsabilidade sobre o outro diferente nesses diferentes
casos. Pela responsabilidade existencial e legal que tm para com os filhos, o dilogo com
os pais mais complexo e profundo que o dilogo que se pode ter com um bispo ou com
um superior do padre que faz psicoterapia.
Ainda no que diz respeito autonomia do padre e s semelhanas com a terapia de
adolescentes, importante que o terapeuta que atende padres d ateno a aspectos da
congregao ou da diocese de seu cliente, de maneira semelhante ateno que o terapeuta
de adolescentes tem que dar ateno famlia de seu cliente. Em cada congregao e em
cada diocese h padres de conduta e padres de viso sobre os problemas psicolgicos
que interferem com o processo teraputico. H tambm padres de convivncia que podem
dificultar ou facilitar ao padre as mudanas de que necessita, e tambm esses padres tm
que ser levados em conta pelo terapeuta.
Um dos processos teraputicos mais rpidos que fiz se deu em poucas sesses e
enfocou dificuldades de comunicao de um padre com sua congregao, especialmente
142
com seu provincial. Esse padre queria experimentar a vida diocesana e, inclusive, j tinha
conseguido a permisso de um bispo para que se transferisse para a diocese, mas no
conseguia colocar essa questo para seu provincial, temendo que, em assim procedendo,
fosse colocado em ostracismo e obrigado a permanecer na congregao. O trabalho
teraputico se concentrou em compreender a rede de relaes do padre na congregao e a
maneira como ele, padre, lidava com o que imaginava fossem as expectativas das outras
pessoas sobre ele e sobre suas atitudes. Quando esse padre conseguiu no se orientar pelas
expectativas (imaginadas) dos outros nessa deciso to importante de sua vida, quando
esse padre conseguiu se orientar pela confiana na sua vocao para um outro tipo de
trabalho, desvestiu parte do pesado manto que cobria sua espontaneidade e tratou do
assunto com seu provincial de maneira sria e com a suficiente confiana. Na sesso
seguinte a essa conversa, ele veio somente para me dizer que j no precisava mais da
ajuda teraputica, pois estava de mudana para uma outra cidade, distante de So Paulo,
onde experimentaria a vida diocesana, com carinhosa anuncia de seu provincial.
Ento, para finalizar este tpico deste captulo, quero reiterar que, no que diz
respeito ao voto de obedincia e questo da autonomia em psicoterapia, a psicoterapia de
padres se aproxima bastante da psicoterapia de adolescentes. Essa aproximao exige do
terapeuta cuidados ticos delicados no que diz respeito ao contato com a instituio Igreja
e seus processos e suas expectativas, semelhantes aos cuidados ticos impostos ao
terapeuta de adolescentes ao lidar com a famlia de seu cliente e suas expectativas e
padres comunicacionais. O terapeuta est a servio de seu cliente e no perde de vista que
o voto de obedincia um ato de escolha de seu cliente, uma expresso, ainda que
paradoxal, de sua liberdade existencial.
O outro voto que faz a pessoa que se dedica vida consagrada catlica o voto de
castidade no celibato, o qual tem importantes repercusses na maneira que o clrigo vive a
prpria corporeidade. Por isso, vou me dedicar a refletir sobre pontos muito prximos e
estreitamente ligados ao voto de
corporeidade e a afetividade.
3) o corpo
Minha vida no para este mundo, minha vida para o outro mundo, depois
deste, me diz um padre meu cliente. Provavelmente sem se dar conta, ele repete antiga
proposta crist, felizmente hoje, em parte, ultrapassada para a ideologia da Igreja,
infelizmente ainda presente na maneira de pensar e de ver o mundo de muitos fiis e
143
sacerdotes. Para essas pessoas, o corpo nada mais que o habitculo da alma, o condutor
da alma no perodo da vida terrena. O corpo algo que um dia ser abandonado, voltar a
ser terra, em prol da continuao da vida da alma. Com esse tipo de raciocnio, to
excludente, fica dificultada a ateno aos aspectos corporais da existncia humana, fica
dificultado o comprometimento com a corporeidade, a vida fica empobrecida. Isso se d
porque, com essa ideologia, instala-se uma diviso competitiva entre corpo e alma, um tipo
de dualismo paralelista que acaba por colocar o corpo e a alma como entidades em luta, em
conflito, ao invs de entidades integradas.
De fato, para ns, cristos do sculo XXI, ainda nos difcil pensar o ser humano
fora desse dualismo. Esse raciocnio cristo tem um substrato bsico que o predomnio da
mente sobre o corpo, o que acaba por implicar, de certa maneira, uma dominao sobre o
corpo, especialmente uma tentativa de subjugao dos gozos e dos sentimentos corporais,
alm de inibir os gestos espontneos. O corpo separado em duas partes, a mente,
considerada como algo que se localiza nalgum lugar do crebro atrs dos olhos; e o corpo,
que vive e se mexe abaixo daquela. Devido a esta diviso, no surpreende verificar que
nossas mentes e corpos competem e discutem muitas vezes, pois lhes falta comunicao.
(Dytchwald, 1984, p. 38)
O corpo humano a fonte de todos os gozos, de todos os prazeres e dos
sentimentos. At mesmo o gozo mais sublime um gozo corporal. Pois bem, a partir
disso que, na Idade Mdia, se instala um tipo de pensamento sobre a relao entre alma e
corpo que ter conseqncias por toda a histria humana subseqente: transforma-se o
corpo no lugar do demnio e as reaes corporais so entendidas como as portas do
inferno. Essa transformao realiza-se em nome da vida verdadeira da alma, que a
instncia que tem de dominar o corpo. O que a alma pede ao corpo reao legtima do
corpo; o que no lhe pede, pecado. O corpo uma Besta para domar. (Hinkerlammert,
1995, p. 154)
A alma s pode existir em um corpo, da mesma maneira que todas as necessidades,
mesmo as mais sublimes, s podem ser satisfeitas atravs do e no corpo, de modo que
para a alma poder domar este corpo, pode tomar seus contedos s da negao das
satisfaes corporais. Com efeito, assim se constitui a tica medieval. (Hinkerlammert,
1995, p. 154) Nessa tica medieval h um dualismo alma e corpo, um dualismo de
dominao sobre o corpo, de submetimento, de escravizao do corpo pela alma:
trata-se de um dualismo, se bem que no do dualismo gnstico ou do neoplatnico.
A Idade Mdia faz uma guerra contra esses dualismos tradicionais. Esse dualismo
144
tradicional tambm ope alma e corpo, mas, ao declarar a alma a esfera do divino e
o corpo como demonaco, a esfera corporal torna-se irrelevante, do qual o Santo se
retira ou, como tambm ocorre, em que se tem uma licena absoluta. O dualismo
cristo da Idade Mdia de dominao sobre o corpo, de subjugao, de
escravido. (Hinkerlammert, 1995, 154)
145
Segundo Highwater, como para a Igreja a alma era separada do corpo, para
Descartes, a racionalidade era um processo de desincorporao. A prova da existncia
dependia do pensamento, no do corpo nem do mundo, da Descartes afirmar o seu
cogito, ergo sum, ou seja, eu existo porque penso. O que existia no mundo material era
um mecanismo feito por Deus, movido pela dinmica da matemtica. O universo,
portanto, j no era visto como as populaes tribais o haviam imaginado um organismo
vivo, varivel e crescente para assumir a forma ditada pela mentalidade cartesiana: uma
grande mquina, abstrata e eterna. (Highwater, 1992, p. 146)
A partir da, na cultura ocidental, o sentido de identidade se fundamenta
praticamente no aspecto mental, questo de conscincia e de reflexo, como se o corpo no
pudesse ser fonte de espiritualidade. Por causa disso, o corpo tem uma funo de
instrumento, sendo considerado como somente algo pelo meio do qual o ser se manifesta e
se faz presente. O natural passa a ser motivo de desconfiana, a humanidade passa a ser
definida como fruto do domnio sobre os aspectos fsicos da existncia, atravs da
conteno (se possvel da negao a ponto de no se o perceber) do sentimentos e da vida
emocional e carnal. Assim, modela-se um tipo de masculinidade que ainda hoje
dominante no mundo ocidental e a qual j discutimos, em parte, no primeiro item deste
captulo, uma masculinidade de muito pensamento e pouco sentimento, de muito
autocontrole e pouca espontaneidade, de pobre contato corporal, fundada na crena da
superioridade da mente sobre o corpo e na competio entre a mente e o corpo. Esse o
modelo de homem que tenho encontrado na maioria dos padres que atendo em
psicoterapia, o que me faz pensar que ainda enorme a presena do pensamento cartesiano
no iderio catlico e no jeito de ser e de se ver do padre catlico, com repercusses
relevantes no processo teraputico.
A mais importante dessas repercusses reside em uma excessiva nfase do
pensamento e do raciocnio, em detrimento dos sentimentos. Essa viso de mundo, muito
presente na formao dos presbteros catlicos, restringe o lugar do sentimento e provoca
uma maneira mais contida, mais reservada, de se lidar com o corpo e com os sentimentos,
uma maneira geralmente caracterizada por uma busca do domnio da mente sobre o corpo,
e no por um dilogo mais integrador entre corpo e mente.
Esse domnio da mente sobre o corpo se d principalmente atravs de
intelectualizaes e de uma certa maestria no uso das palavras, to tpico nas pessoas de
vida consagrada, um mecanismo que, no raro, demonstra uma certa dificuldade de
integrao, uma certa dificuldade para compreender que o homem uma alma vivente, e
146
no um corpo que recebe provisoriamente uma alma (cf Highwater, 1992, p. 110). Ou, no
dizer de Lowen (1993, p. 34), uma concepo holstica do organismo reconheceria que o
corpo imbudo de um esprito que ativado por sua psique e ciente de suas aes.
Como alma vivente, o ser humano se apia nos dois aspectos que discutimos aqui,
seu corpo e sua alma, para se constituir um organismo presente em um campo, ou seja, um
indivduo e um ser scio-ambiental. Para a abordagem gestltica, o ser humano no tem
um corpo, ele um corpo. Nesse aspecto alvissareiro o contedo da ltima Encclica
Papal, de Bento XVI, que parece vir ao encontro da postura cientfica e se contrape
viso cartesiana ainda presente na prtica de muitos padres. Essa Encclica traz a
concepo do ser humano como constitudo por corpo e alma:
o homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em
ntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado
quando se consegue essa unificao. Se o homem aspira ser somente esprito e quer
rejeitar a carne como uma herana apenas animalesca, ento esprito e corpo
perdem sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o esprito e
conseqentemente considera a matria, o corpo, como realidade exclusiva, perde
igualmente sua grandeza. O epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava
Descartes com a saudao: Alma!. E Descartes replicava dizendo: Carne!.
Mas nem o esprito ama sozinho, nem o corpo: o homem, a pessoa, que ama
como criatura unitria, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando
ambos se fundem verdadeiramente numa unidade que o homem se torna
plenamente ele prprio. S assim que o amor o eros pode amadurecer at sua
verdadeira grandeza. (p. 11/12)
A vivncia desse tipo de unidade dada ao ser humano na medida que ele alcana
uma integrao que lhe permite dar-se conta e se responsabilizar-se pelos seus sentimentos.
O sentimento de que trato aqui no apenas uma idia ou uma crena; ele envolve
tambm o corpo e, portanto, mais do que um processo mental. Ele constitudo por dois
elementos: uma atividade corporal e a percepo mental dessa atividade. (Lowen,1993, p.
147
83) Para Perls (1977, p. 37), as emoes so a nossa prpria vida. (...) As emoes so a
prpria linguagem do organismo; modificam a excitao bsica de acordo com a situao
que encontrada.
fenmeno bastante comum entre os presbteros que atendi e, imagino, entre a
maioria dos presbteros uma certa dificuldade em perceber e se responsabilizar por
alguns sentimentos, especialmente aqueles tm uma conotao negativa no mundo
ocidental. Se notarmos que o ser humano pode perceber, basicamente, seis sentimentos o
amor, a raiva, a alegria, a tristeza, a coragem e o medo e suas derivaes, ser fcil
percebermos que h alguns desses sentimentos que no so bem aceitos socialmente,
especialmente a raiva, a tristeza e o medo, e suas derivaes. Muitos dos presbteros
aprendem desde cedo, e no questionam isso, que devem ser pessoas amorosas e que, para
tanto, no devem sentir esses sentimentos mais rejeitados socialmente. A alternativa que
resta, ento, o no sentir, o que feito de uma de trs maneiras: dominando o corpo,
negando o corpo ou dissociando-se dele. (cf Lowen, 1979, p.21)
Por medo da natureza irracional do corpo, pode-se tentar subjug-lo, e essa a
soluo que mais percebo entre os padres que j atendi. O problema que no h como
uma pessoa no sentir determinados sentimentos sem abdicar de sentir todos os outros na
medida que se empobrece o contato corporal para se evitar, por exemplo, a raiva, se evita
tambm a vivacidade amorosa, uma vez que tanto raiva quanto amor so frutos de
atividades corporais e da percepo dessas atividades, a awareness. No h seletividade
consciente de awareness, no d para se escolher o que sentir, uma vez que os sentimentos
so acontecimentos corporais, no so frutos da vontade. O resultado acaba sendo conflito
e sofrimento, rejeio do corpo, empobrecimento do contato, alm de uma certa negao
da corporeidade, que fica subordinada vontade e funcionalidade. H uma fuga da
espontaneidade corporal, uma tentativa de dominao sobre o corpo que goza sem nenhum
clculo da finalidade do gozo, que sente sem nenhum clculo da finalidade do sentimento,
e que reivindica o direito de cada ser humano ter acesso vida que no medida em
desempenho, mas em sentido, em emoes, em presena e responsabilidade.
Dessa maneira, me parece que tarefa do psicoterapeuta, mesmo em uma
psicoterapia de curta durao, auxiliar seu cliente a aprofundar o dilogo mente-corpo
atravs do resgate da corporeidade e da compreenso de que sentimento e ato so coisas
diferentes. O fato de se sentir raiva no quer dizer que se vai agredir o outro, o fato de se
sentir desejo sexual no quer dizer que se vai buscar sexualmente o outro, o fato de
entristecer-se no quer dizer que se vai deprimir. A qualidade do dilogo corpo-mente
148
que vai determinar a qualidade do dilogo com os sentimentos, de modo que o sentimento
aceito enquanto tal no vai conduzir a pessoa para determinada ao ou por determinado
caminho, mas to somente vai lhe apontar a possibilidade de determinadas aes ou
determinados caminhos. todo o ser que escolhe por onde ir, que ato executar, pois a
escolha funo da existncia. Portanto, mente e corpo devem dialogar, quer dizer, ser um
conjunto, um dependendo do outro, num processo de integrao que permita pessoa fazer
exigncias abertas vida, apossando-se plenamente do direito de sentir-se em casa no
mundo (PHG, 1997, p. 107), com a responsabilidade que a contraparte desse direito. Em
outros termos, do dilogo corpo-mente que surge a possibilidade do hbito, como explica
Huisman e Vergez (1966, p. 118):
o hbito nos leva a refletir sobre as relaes da alma com o corpo. No hbito, o
corpo deixa de ser o inimigo da alma. Para o danarino iniciante o corpo ainda
um inimigo; resiste, no deixa a idia objetivar-se. a inabilidade, a inrcia, a
timidez. Poder-se-ia dizer que o tmido aquele que tem um corpo. Uma vez que o
hbito adquirido, o corpo deixa de ser um obstculo, transforma-se em intrprete,
em espelho da idia: (...) uma bailarina no tem mais o seu corpo, como se tivesse
um objeto estranho consigo, mas ela seu prprio corpo. A alma fez-se corpo, a
vontade metamorfoseou-se em poder. Desse modo, o hbito no mais inrcia e
mecanismo, mas uma graa. o esprito que se encarna e se revela; , antes de
tudo, este milagre: meu corpo, este velho estranho, tornou-se meu amigo.
149
4) a sexualidade e a afetividade
Se em todo processo psicoteraputico a sexualidade tema importante, na
psicoterapia de padres este fato toma contornos ainda mais cruciais. Na pesquisa
desenvolvida por Hiriart (2002), por exemplo, quando ele estuda os tipos de crises
desenvolvidas pelos sacerdotes nos ltimos cinco anos, a crise mais comum a que o
pesquisador denomina crise afetivo-sexual (p. 39). Certamente, a sexualidade um dos
temas mais polmicos quando se discute a vida consagrada, principalmente, embora no
somente, por causa do voto de castidade no celibato, condio imposta pela Igreja para que
algum se torne padre.
Por ser tema to polmico e, principalmente, amplo, sinto-me obrigado a fazer aqui
um recorte bem especfico para tratar desse assunto nesta tese. Assim que pretendo, nas
reflexes que seguem, ater-me, o mais estritamente possvel, a possveis repercusses da
vivncia da sexualidade pelos padres no que diz respeito psicoterapia, maneira como se
pode compreender a sexualidade no processo psicoteraputico, sem me deter em outras
consideraes acerca da sexualidade humana. Tratarei neste item de como podem
repercutir no processo teraputico temas como as reflexes sobre a sexualidade, os afetos,
o celibato, a homo, a bi e a heterossexualidade, as patologias sexuais.
150
Para Valle (2006, pp. 69/70), esse ponto de vista do Vaticano traz trs aspectos
importantes no que se refere sexualidade de um ponto de vista da religio catlica: 1) a
humanizao da sexualidade importa na evoluo pessoal e social humana; 2) a pessoa
compreendida como um ser livre e existente a partir de trs planos, o biolgico, o
psicolgico e o espiritual, (mais adiante [p. 73], o autor inclui o plano histrico-cultural) o
que implica compreender que o homem no tem um sexo, ele sexo.; 3) cincia e
religio devem dialogar para ampliar a compreenso e facilitar a vivncia da sexualidade
pelos seres humanos.
H ainda uma dificuldade em nossa sociedade no que diz respeito compreenso
do que seja a sexualidade, pois a maioria das pessoas trata sexo e sexualidade como se
fossem sinnimos. Sexo e sexualidade so diferentes, tm significados diferentes.
Sexualidade, fenmeno inerente ao ser humano, est presente em todos os atos da vida.
um fundamento bsico da personalidade que possibilita pessoa maneiras particulares e
individuais de existir, se comunicar, viver e se expressar. Sexualidade um dos
fundamentos da identidade pessoal, fenmeno muito mais amplo que o sexo e o inclui.
Sexo tem a ver com o fato de sermos macho ou fmea e com o conjunto dos rgos
reprodutores, alm de significar tambm o ato sexual propriamente dito; sexualidade um
conjunto de fenmenos que so ligados ao sexo e que o extrapolam: masculinidade e
feminilidade, erotismo, sensualidade, afetos, desejos, posturas e valores. Em suma,
151
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vistas a relaes ou envolvimentos sexuais, mas, antes, que estou tratando da sexualidade
como facilitadora de contatos humanos.
Por ser meio propiciador de contato, por ser meio propiciador de contatos
importantes, por ter sua vivncia fundamentada nos sentimentos, a sexualidade se faz
presena no processo psicoterpico. No caso da psicoterapia de padres, uma das maneiras
pelas quais a sexualidade aparece nos questionamentos acerca do voto de castidade no
celibato a que esto obrigados os padres. Esse sempre um tema muitssimo importante
nos dilogos que acontecem na situao teraputica, e deve ser compreendido de maneira
muito cuidadosa pelo terapeuta que atende pessoas de vida consagrada.
4.2 o celibato
Um dos primeiros pontos sobre os quais se deve refletir para a fundamentao da
psicoterapia de padres o que diz respeito ao fato de que, ao tratar das repercusses do
voto de castidade no celibato para a vida do padre, h que se levar em conta que o padre
no abdica de sua sexualidade ao ser ordenado, mas, sim, renuncia expresso genital
dessa sexualidade. No h como algum abdicar de sua sexualidade, uma vez que essa
uma caracterstica estrutural da personalidade de cada pessoa. Como bem recorta Evola
(1976, p. 315),
na grande maioria das tradies quer ascticas, quer iniciticas, possvel
encontrar-se o preceito da castidade, da absteno do uso da mulher. Este preceito
no , geralmente, compreendido, por se lhe atribuir um sentido moralista. Pensase que necessrio excluir ou destruir a fora do sexo, o que est errado. A fora
do sexo est na prpria raiz do indivduo vivo e ilude-se aquele que cr poder
realmente suprimi-la. Pode-se, quando muito, reprimi-lo nas suas manifestaes
mais diretas, o que no serviria seno para alimentar estes fenmenos duma
existncia nevroptica e dividida. A alternativa que se pe perante a fora do sexo
, ao contrrio, a seguinte: afirm-la ou transform-la. (...) (Nesse caso,) No se
trata de excluir a energia do sexo, mas de renunciar ao seu uso e sua dissipao
nas relaes fsicas comuns e procriadoras com indivduos do outro sexo.
Conserva-se o seu potencial, que , contudo, destacado do plano dual e aplicado a
um plano diferente.
153
154
Se essa a proposta mais claramente religiosa, h que se convir que ela para
poucos, como, alis, levanta Valle (2003, p. 107):
o problema no caso dos padres, possui uma dupla especificidade: a Igreja prope a
eles um ideal de vida que supe a castidade celibatria por causa do reino. Ora,
essa proposta s tem sentido, psicologicamente falando, para quem tem um nvel
razovel de maturidade psicoespiritual. O n do problema portanto o saber se os
padres so ou no emocional, afetiva e sexualmente integrados e se a dimenso da
f se insere ou no nesse arranjo de sua personalidade total.
Especialmente para aqueles padres que procuram ajuda teraputica, no mais das
vezes, essa proposta de celibato enquanto transcendncia est bastante distante da prtica
de suas vidas. O que mais encontramos so tentativas moralistas de se lidar com a proposta
de celibato, ao lado de um discurso que busca a sada para esse dilema atravs da
sublimao, bases frgeis para to grande empreitada. Afetos reprimidos ou sublimados
no so afetos integrados e, por causa disso, tendem a provocar sofrimento e crises de
sade fsica ou emocional, ou uma vida de aparncias, com prticas sexuais escusas,
culposas, dissociadas. Como bem afirma Duffy (2006, p. 107),
sem uma formao integral e um processo pessoal que desenvolva uma
espiritualidade que integre a afetividade pode existir uma ciso entre a orao e a
conduta. Tal diviso entre a espiritualidade e a vida emocional muitas vezes
coincide com uma falta de conhecimento da afetividade e da sexualidade. A
afetividade, e especialmente a sexualidade, so percebidas com temor e como
tentao. Em vez de ser capaz de escutar e discernir o que est se passando em
nvel profundo, a pessoa foge, nega e se critica duramente pelo que est sentindo.
Se isso acontece, a formao recebida antes da ordenao no permitiu a
internalizao dos valores e o desenvolvimento das habilidades necessrias para
enfrentar a solido e as demandas do ministrio.
No creio que seja tarefa da psicoterapia, e nem creio que ela tenha poder para
tanto, propor-se a auxiliar o padre no desenvolvimento de um autodomnio que lhe permita
viver o celibato de maneira mais integrada. O que a psicoterapia pode propor fornecer ao
padre uma ajuda para que ele integre a sua sexualidade de maneira a que possa escolher
com maior coerncia se quer se manter celibatrio, ou no. Um processo teraputico bem
conduzido, ao abrir espao para discusses sobre e para a vivncia mais aprofundada da
sexualidade do cliente, abre alternativas para que o padre lide com sua sexualidade para
alm da represso moralista ou da sublimao compensadora, abre espao para que o padre
escolha, com base em sensvel awareness, como pode viver melhor sua sexualidade.
155
156
isso uma de minhas qualidades. Esse o ponto no qual a psicoterapia pode, a princpio,
ajudar o padre a chegar, para ento, e s ento, fazer melhor sentido a discusso sobre
como se sendo um ser sexual, pois, como escreve Rollo May (1973, p. 258), somos
incapazes de dar ateno a alguma coisa enquanto no pudermos de algum modo sentir um
eu-posso em relao a ela.
Um outro aspecto da sexualidade, e muito importante para a psicoterapia, quer seja
no que se refere ao celibato, quer seja no sentido mais amplo da sexualidade, que ela
sempre uma vivncia individual. Cada pessoa tem o seu jeito prprio e nico de perceber
sua sexualidade e tem que desenvolver seu jeito prprio e nico de viver a sexualidade.
Assim que se para alguns a vivncia do celibato, por exemplo, tarefa pouco trabalhosa,
para outros tarefa que demanda um imenso trabalho, lutas dolorosas, difcil integrao.
tambm por isso que a vivncia da sexualidade, mesmo que seja a vivncia da sexualidade
celibatria, exige criatividade.
Em terapia, bastante comum o padre contar sobre experincias sexuais que j
deve, desde namoricos at propriamente relaes sexuais. De maneira geral, ao contar, o
padre enfatiza a(s) experincia(s) vivida(s), num gesto que tenho entendido como de
reafirmao da prpria sexualidade, um gesto que deve ser acolhido cuidadosamente pelo
terapeuta. como se o padre dissesse: sou celibatrio, mas me conheo enquanto ser
sexual e capaz de relaes sexuais. So lembranas que protegem a identidade do ser
enquanto sexual, estruturalmente sexual. Possivelmente vem da o alvio a que Dlugos se
refere quando dado aos celibatrios de vida consagrada reconhecerem-se como seres
sexuais. Reconhecer-se como ser sexual uma das foras que possibilitam uma vida
celibatria saudvel e integrada, um dos fundamentos da identidade sexual.
Esse reconhecimento no pode, no entanto, ser colocado como impedidor do debate
acerca do celibato obrigatrio, um debate ao qual nenhum catlico pode ficar alheio. Nas
consideraes acerca de sobre sua pesquisa, Valle (2003, p. 107) comenta que a questo do
celibato um problema, o que obriga a que a questo do celibato como lei deva ser
trabalhada com mais realismo e humildade no seio de toda a Igreja. Valle completa:
(o celibato obrigatrio) no pode mais continuar sendo objeto de interditos
extrnsecos. O debate no pode se restringir discusso s do lado disciplinar e
cannico da questo, por urgente e imprescindvel que isso seja. No uma
questo de lei. Contam aqui o carisma e a vocao pessoal. Os prprios padres
precisam perceber que o essencial se ajudar a chegar a uma maestria teologal
(no a teolgica!) da vivncia da sua sexualidade, como ponte para uma
157
espiritualidade que ajude o povo de Deus a viver esse dom com maior liberdade e
responsabilidade.
Valle termina sua discusso como uma inquietadora questo: de que o celibato,
este que vivemos, , afinal, um sinal em um mundo como o nosso?
no tarefa do terapeuta reduzir todos os seus pacientes uniformidade, dando a todos o mesmo
conjunto de necessidades existenciais, feitas sob medida para se ajustar a cada um deles, o menos e o mais
capacitado. Sua tarefa facilitar a cada um o desenvolvimento que lhe habilitar a encontrar objetivos que
lhe sejam significativos e trabalhar por eles, de um modo maduro. (Perls, 1977, p. 58)
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Como meu propsito aqui discutir as repercusses em psicoterapia da identidade sexual, no cabe
nesse espao discutir os aspectos relativos ao desenvolvimento da personalidade que poderiam facilitar, ou
no, o aparecimento desse tipo de dificuldade. Remeto o leitor a alguns autores que trataram mais
profundamente desse aspecto do desenvolvimento da identidade sexual: Byington, 1988; Costa, 1994; Dias,
1998 e 2005; Hopcke, 1993; Monick, 1993a e 1993b; Neumann, 1995; Sandford, 1986; Singer, 1989;
Stoller, 1993; Vitiello, 1997; Winnicott, 1971 e 1996.
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como eu estava fazendo com o meu; sem alternativa, cedi; s no aceitei fazer sexo oral,
quando ele me pediu; pediu-me que eu o deixasse me penetrar, chantageando-me e
ameaando-me de contar ao Manoel (nome fictcio) (que poderia me queimar diante
de todos). Cedi e arrependi-me muito; foi uma experincia traumtica e dolorida; meu
nus sangrou logo aps e senti dores durante vrios dias; o pnis de Arildo era grosso,
apesar de mdio.
Mas o pior estava por vir: Arildo contou para outro menino sua gostosa
experincia comigo: Roger (nome fictcio) quis, tambm, com chantagens e ameaas,
transar comigo; sentia-me sem sada, com medo, humilhado e em pnico: resolvi ceder,
mas pedi aos dois que no contassem a mais ningum; prometeram, desde que eu
aceitasse transar com os dois, sempre que eles pedissem; que sada eu teria?
Roger me machucou mais ainda: seu pnis, comprido e grosso, parecia uma faca
me cortando por dentro; eu sempre chorava aps essas relaes sexuais, de dor e de
desespero, pois sabia que ambos os meninos eram maus o bastante para contar a todos.
Achei que minha desgraa estava pronta, tudo por causa de uma masturbao!
Porm, um dia, tomei coragem e fui confessar-me com um padre novo que era
vigrio paroquial: chorando, contei-lhe tudo, desde o princpio; ele escutou-me e
prometeu-me que nada iria acontecer comigo. Creio que ele deve ter falado com os dois,
porque, depois dessa confisso, nunca mais nenhum menino me molestou ou dirigiu
provocaes e propostas libidinosas.
Eu, porm, sentia-me complexado, apesar da beleza fsica que muitos
maldosamente apontavam em mim; mesmo os meninos mais prximos achavam que eu era
muito bonito, nesta poca e as mocinhas da escola colegas e da equipe litrgica
pareciam sentir-se muito bem ao meu lado. Nunca senti atrao, nesta poca, por homens
ou mulheres; apesar das relaes sexuais com Arildo e Roger, eu sentia nojo do sexo a
dois e at diminura muito minhas masturbaes; creio que quando eu me masturbava, era
por ansiedade ou angstia, nunca por prazer; tanto que eu sentia um profundo
sentimento de culpa por fazer tal coisa, to intil e to desgastante.
Alguns anos depois, meu cliente deixa o seminrio para se decidir melhor a respeito
de sua vocao. Ele relata:
Comecei a namorar uma garota quase da minha idade. ramos catequistas,
membros da liturgia e do grupo de jovens. Ela cantava e tocava comigo nas missas e o
162
padre fazia questo de nos convidar para animar as missas mais festivas da Parquia.
Namorei-a por alguns meses.
Como eu participasse muito da vida da Comunidade Paroquial, j estava ajudando
um padre que assumira uma parquia recm-criada. Me dediquei de corpo e alma ao
trabalho pastoral na nova parquia, acompanhando o padre em missas pelas capelas;
ocupar minha mente com o sagrado me ajudava a conter as compulses sexuais,
principalmente o risco de desenvolver a homossexualidade, a qual eu tanto temia.
Quando falei ao padre que eu queria retornar ao seminrio, ele prontamente me
apoiou. Em fevereiro, ingressava no Seminrio.
Nesses casos de falsa homossexualidade, ento, a postura e o trabalho do
psicoterapeuta com relao vivncia da homossexualidade diferente, o que no quer
dizer que o psicoterapeuta, nesses casos, v necessariamente trabalhar para que seu cliente
deixe de ser homossexual. No se trata de curar algum da homossexualidade. No caso
desse cliente, por exemplo, no que se refere sexualidade, o trabalho caminhou no sentido
de ajud-lo a se reconhecer como ser sexual e a ajud-lo a livrar a sexualidade da carga de
pecado e de culpas que era marcante na vivncia de meu cliente. Meu propsito no
trabalho se baseia na crena de que, uma vez aliviado dessa viso to pesada da
sexualidade, o cliente pode viver com maior liberdade esse aspecto de si e, por isso, fazer
escolhas mais tranqilas no que diz respeito maneira de viver sua identidade sexual.
Esse cliente, de estilo histrinico, hoje vive seu celibato a partir de um referencial
prprio, no qual as experincias homossexuais que viveu tm um novo significado. Em sua
psicoterapia, a sexualidade foi um dos temas importantes, mas no foi o tema eleito como
nosso foco de trabalho, pois nos pareceu, a mim e a ele, mais importante nos determos
mais na sua passividade existencial, nas suas projees, em sua facilidade em se vitimar
ante as situaes de sua vida, que propriamente sua identidade sexual. O trabalho com
esse cliente se desenvolveu principalmente no sentido de facilitar a ele descobrir sua
capacidade de atividade, sua potncia, pois, como diz Perls (1977, p. 50), em vez de ser
um participante ativo de sua prpria vida, aquele que projeta se torna um objeto passivo, a
vtima das circunstncias. No que diz respeito sexualidade, o trabalho com esse cliente,
ento, acabou por facilitar a vivncia de uma sexualidade mais claramente apossada, algo
mais pertinente ao cliente em vez de algo que acontecesse a ele, algo mais prximo de seu
ser e mais aceitvel, em vez de algo de que ele tivesse que se envergonhar ou que tivesse
que esconder.
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mas sim que cada sintoma tem seu sentido na experincia da pessoa que o vive. Isso
tambm vlido para os sintomas relacionados sexualidade. Nesse aspecto, h que se
definir o mais claramente possvel o que se deve considerar como patologia sexual.
importante para o psicoterapeuta que ele esteja bem atento e bem trabalhado no
sentido de que no qualifique como patolgico algo que imoral. Patolgico e imoral em
sexualidade humana so coisas diferentes. A princpio, o patolgico em sexualidade : a)
aquilo que repetidamente no est integrado e que gera comportamentos, sentimentos ou
pensamentos compulsivos; b) aquilo que repetidamente provoca prejuzos ou sofrimento
para a pessoa em questo e/ou para aqueles que com ela convivem; c) formas de
comportamento sexual que repetidamente se caracterizem, alm da compulsividade, por
serem obrigatrias, nicas e extremamente necessrias. fundamental o psicoterapeuta ter
presente que variaes sexuais no so desvios, que um ato isolado no significa patologia,
que a delimitao do patolgico ou saudvel em sexualidade humana est circunscrita por
contextos histricos, geogrficos e culturais. Alm disso, e aqui eu me repito para
enfatizar, tambm importante que o terapeuta tenha presente que a sexualidade saudvel
depende da criatividade, inclusive para aquelas pessoas que vivem celibatariamente.
Olhando a partir da Gestalt-terapia, a patologia sexual pode ser entendida como
resultado do empobrecimento do contato da pessoa consigo mesma e com seu meio, como
sintoma de um processo de alienao - recente ou antigo - que a pessoa faz por no se
manter aware, por no se manter atenta ao fluxo de acontecimentos na sua relao com o
mundo. Neste sentido, sempre bom lembrar, tratam-se de sintomas importantssimos, na
medida que chamam a ateno de forma veemente e, assim, propem um esforo no
sentido da retomada do crescimento. Tratam-se de sintomas de imenso significado e
prenhes de sentido, que trazem em si uma importante mensagem, um pedido de socorro
que deve ser ouvido com muito respeito e muito cuidado, o que no desobriga o terapeuta
de tomar algumas providncias prticas, quando achar que o caso.
Dessas possveis providncias prticas, quero destacar duas: em alguns casos, se
julgar que o cliente no pode se proteger adequadamente sozinho, o psicoterapeuta pode
solicitar ajuda aos superiores de seu cliente, para que ele seja cuidado com mais ateno e
protegido de suas compulso, assim como para que possveis vtimas de sua compulso
possam tambm ser protegidas. Isso especialmente importante em casos de pedofilia ou
de efebofilia em que o sacerdote se aproveite de sua condio religiosa para se aproximar
de ou para seduzir crianas ou adolescentes.
165
A outra providncia prtica que posso ressaltar, mais voltada para casos em que a
ordenao sacerdotal esteja muito prxima, a possibilidade de que o psicoterapeuta
solicite que essa ordenao seja adiada, at que o cliente possa alcanar a possibilidade de
se cuidar melhor e no ameaar sexual ou moralmente outras pessoas a partir de seu poder
eclesial.
Outro cuidado que o psicoterapeuta de pessoas de vida consagrada precisa tomar
quanto ao clima organizacional, o qual tem importante peso na vivncia da patologia
sexual. Para Sperry (2003, p. 104), a dinmica organizacional inclui aspectos estruturais e
culturais da organizao religiosa (a ordem ou a diocese) que podem influir
significativamente na sade ou no sofrimento de um ministro. (...) De fato, muitos fatores
podem exercer sobre a pessoa uma influncia muito maior que sua prpria personalidade
ou seus valores. Para um gestalt-terapeuta isso se fundamenta em uma afirmao de Perls
(1977, p. 40), para quem, ao tratarmos uma pessoa significativamente alienada,
se
encararmos o homem em seu meio tanto como indivduo quanto como ser social, como
parte do campo organismo/meio, no podemos jogar a culpa desta alienao nem no
indivduo nem no meio. Desde que indivduo e o meio so meramente elementos de um
nico todo, o campo, nenhum deles pode ser considerado responsvel pelas doenas do
outro. Mas ambos esto doentes.
Sperry (2003, p. 103) alerta ainda que tambm a teologia do ministrio que tenha
cada ministro exercer importante influncia na maneira com que ele se aproxima do
ministrio. Para Sperry, h duas teologias do ministrios muito diferentes. Em uma delas,
a chamada do ministrio ouvida como uma responsabilidade pessoal pela qual o
ministro centra suas energias e talentos em servir aos demais, sustentando a poltica e a
autoridade estabelecidas, mantendo a hierarquia e o controle, e preservando o status quo.
A sade e o bem-estar do ministro so secundrios, a pessoa est centrada no plo do fazer
e o central a ao. Na outra teologia do ministrio sacerdotal, h um compromisso para
com uma configurao com o Senhor mediante a presena, o discernimento, a
reciprocidade, a delegao de poder e transformao. O prprio estilo de vida equilibrado
do ministro e a solicitude mtua se convertem nos meios pelos quais se faz presente o
reino. Nessa teologia, o fazer nasce do ser e a ao da contemplao. Sperry conclui:
minha experincia clnica mostra que a teologia do ministrio equilibrada e sadia aquela
que mantm a pessoa em contato com sua humanidade.
Tomadas esses cuidados especficos para com a populao de vida consagrada, o
trabalho com as patologias sexuais se aproxima bastante daquele feito com a clientela de
166
leigos e segundo as premissas estudadas no captulo II dessa tese. Nesse trabalho, assim
como em outros trabalhos teraputicos, h tambm algumas questes importantes relativas
identidade quando se tratam das diferenas entre o trabalho com os leigos e o trabalho
com as pessoas dedicadas vida consagrada. a esse assunto que passo a me dedicar
agora.
5) a identidade
Para a abordagem gestltica, por influncia de Jung, uma das caractersticas mais
importantes da identidade humana a capacidade de trafegar entre as polaridades da
existncia. Isso quer dizer que o ser humano um ser polar:
Jung divergiu de Freud em alguns pontos e isto se reflete na Gestalt-terapia. Ele
articulou a qualidade polar da vida humana. Segundo Jung, os aspectos da
personalidade visvel, por sua prpria proeminncia, lanam sombra seus
aspectos opostos. At que tais caractersticas, repudiadas ou no reconhecidas,
fossem admitidas e integradas personalidade, o indivduo permaneceria
incompleto. A perspectiva gestltica da polaridade mais abrangente que a de Jung
ela no se restringe ao arqutipo, mas brota da vida como o oposto de qualquer
aspecto, at mesmo de qualquer qualidade do eu. (Polster e Polster, 1979, p. 273)
Quero discutir agora um aspecto da identidade do padre que tema relevante para a
psicoterapia, a possibilidade de o cliente trafegar entre duas polaridades, as quais
denominarei aqui como ser padre e ser leigo.
Embora vivamos em um tempo de grandes transformaes, marcado por uma
cultura ocidental mais relativista e pluralista, menos propensa s certezas absolutas,
muito comum encontrarmos entre os clientes padres a queixa de que, mais do que qualquer
outro profissional, eles so padres todo o tempo, ou seja, as pessoas (e, freqentemente, o
prprio padre) no conseguem conviver com eles como pessoas comuns com direito a
dores e desejos comuns.
Certa vez, atendi um padre, jovem, com menos de 30 anos de idade, morador de
uma pequena cidade do interior do estado de So Paulo, que gostava de futebol e gostava
de jogar futebol. Em uma sesso, ele me contou da dificuldade que sentia quando ia jogar
bola: quando eu estou chegando e o pessoal j est jogando, percebo, de longe, que esto
todos vontade, falando palavres, disputando normalmente o jogo. s eu chegar, e
todos viram santinhos ningum grita mais, ningum fala palavro, ningum d pontap
em ningum. Quando eu entro para jogar pior ainda: alguns no conseguem nem disputar
a bola comigo... Eu j falei que dentro do campo eu no sou padre, eu falo palavres para
167
ver se eles compreendem que podem falar tambm, mas no adianta, o jogo outro quando
eu estou presente. J no sei mais o que fazer, pois no quero deixar de jogar bola!
Outro padre, tambm de uma pequena cidade, me contava da satisfao que sentia
ao andar por So Paulo: nio, aqui posso andar vontade, fazer o que eu quero, ir aonde
me d vontade, ningum tem nada a ver com isso. L na minha terra, parece que sou
vigiado em tudo o que fao. Hoje fui ao cinema, fui ver uma comdia brasileira. Tenho
certeza de que, se fosse l na minha cidade, logo algum iria comentar: um padre
assistindo esse tipo de filme! Aqui, nio, quando eu quero, eu no sou padre!"
A dedicao vida consagrada representa, num certo sentido, um rompimento com
uma srie de mundanidades, independentemente da disposio do presbtero para tanto. H
sobre a figura do sacerdote uma srie de projees que remontam ao que de mais antigo h
em cada ser humano, por mais que a sociedade ocidental tenha se secularizado. certo que
a atuao do sacerdote sofreu mudanas por causa da secularizao, mas no desapareceu,
como se chegou a prever. O sacerdote mantm um papel relevante socialmente, o que, em
certa medida, pode representar um peso para o presbtero, obrigado a trazer colada pele,
em todos os lugares por onde anda, a veste sacerdotal.
Se certo que a abstinncia do uso da batina abriu espao para que o padre pudesse
no se destacar quando em meio a uma multido, a batina interna e invisvel ainda est
presente na auto-imagem de muitos padres e, principalmente, na imagem que a maioria dos
fiis fazem do padre. O rei no pode estar nu, por mais que o rei quisesse estar nu s vezes.
Assim, o ser padre configura com tal pregnncia o campo existencial do presbtero, que
mesmo os seus gestos perdem muito da espontaneidade para se tornarem gestos adequados
funo sacerdotal. Se lidar com as polaridades referentes ao pblico e ao privado tarefa
complicada para a maioria das pessoas de nossa sociedade a cada dia mais invasiva, mais
difcil ainda essa tarefa para o padre, e isso tem que ser objeto de reflexes e de cuidados
na psicoterapia dessas pessoas.
Se entendemos que a sade se fundamenta em um ritmo de contato e retraimento8,
entendemos igualmente que uma das grandes dificuldades emocionais para o padre uma
certa cristalizao da identidade sacerdotal. O padre formado nos seminrios para ser
padre todo o tempo, em todos os lugares, com todas as pessoas, e essa atitude da formao
presbiteral recebe considervel reforo social, como me parece ter ficado bem claro no
Contato e fuga, num padro rtmico, so nosso meios de satisfazer nossas necessidades de
continuar os progressivos processos da vida. (Perls, 1977, p. 37)
168
caso do padre futebolista a que me referi acima. Dessa maneira, entendo que funo da
psicoterapia facilitar a abertura de espaos nos quais o padre possa deixar de ser somente
padre, para que ele possa trafegar entre as polaridades ser padre e ser leigo com
alguma tranqilidade.
A polaridade ser padre inapagvel da identidade de quem se ordena. Pessoas
que tenham qualquer outra funo social, quando abandonam essa funo, via de regra
abandonam tambm a identidade ligada a ela por exemplo, no comum nos referirmos
a algum que deixou de exercer a medicina como ex-mdico, da mesma forma que
ningum conhece um ex-advogado ou um ex-psiclogo. Mas todos ns conhecemos pelo
menos um ex-padre. E, no raro, quando entramos em contato com esse ex-padre, ainda
temos para com ele, mesmo que minimamente, uma deferncia costumeiramente dedicada
ao padre. Tenho em minha famlia um rico exemplo disso: dentre os inmeros tios que
tive, um se tornou sacerdote. Era o tio Padre, e no o tio Ivo. A nenhum outro tio eu
chamava pela funo social. Eu nunca o tratei por tio Ivo. Somente sua me, seus irmos
e suas irms o tratavam por Ivo, o que quer dizer que somente no mais ntimo da famlia,
somente no mais original de sua histria, o ser leigo estava preservado. Imagino que isso
deveria ser muito importante para ele, na medida que mantinha presente sua original
laicidade.
Ento, me parece ser tambm importante que a psicoterapia possa proporcionar ao
padre espaos nos quais ele possa tambm ser leigo, pois esse um atributo indispensvel
de sua pessoalidade. Antes de ser padre, ele foi leigo e no preciso que o ser padre se
coloque no lugar do ser leigo, mas necessrio que essas duas possibilidades possam
coexistir harmonicamente na e para a pessoa total. Uma das maneiras pela qual
proporciono ao meu cliente essa vivncia no o tratando pelo epteto padre em nenhum
momento do processo teraputico. Desde a primeira sesso, combino com o cliente que ali
um espao protegido, no qual ele pode ser o mais inteiro possvel, de modo que no o
tratarei por padre fulano, uma vez que isso poderia circunscrever de modo
demasiadamente estreito suas possibilidades existenciais e experienciais na psicoterapia.
Outra maneira de facilitar a vivncia de um bom ritmo entre essas duas polaridades,
o ser padre e o ser leigo, o terapeuta se manter sempre aberto para discutir com o padre as
formas possveis e criativas atravs das quais o padre possa exercer sua laicidade. Muitas
vezes isso se d atravs de questionamentos sobre as expectativas que repousam sobre o
padre, ou seja, o que , ou no, permitido ao padre.
169
Nesse sentido uma das experincias mais interessantes que tive em terapia foi com
um padre, de 46 anos, que, numa sesso, contou que havia muitas coisas para as quais se
sentia proibido por ser padre. Sugeri fazermos um inventrio dessas proibies e, de fato, o
fizemos. Depois de feito o inventrio, sugeri a ele que organizssemos hierarquicamente
aqueles desejos e necessidades proibidos por causa da polaridade ser padre. Para minha
surpresa, o desejo que apareceu em primeiro lugar foi o de sentar-se em um bar com um
amigo e tomar descontraidamente uma cerveja; outro desejo era o de parar em um bar ou
em uma padaria que encontrasse pelo caminho, tomar um cafezinho e depois continuar
tranqilo seu trajeto. Naquela sesso, conversamos bastante sobre isso e sobre o
significado e sua vivncia dessas proibies. A terapia continuou e praticamente no
tocamos mais nesse assunto. Quando estvamos finalizando nosso trabalho de curta
durao o cliente me contou, com ar de gozo infantil, que naquela semana tinha recebido
um amigo de sua terra natal e que ambos tinham tomado uma saborosa cerveja em uma
padaria perto do seminrio onde se hospedava no perodo da terapia. Como se isso no
bastasse, o padre arrematou contando que, no caminho para meu consultrio naquele dia,
havia tomado um delicioso cafezinho em um bar. Esse cliente que procurara a terapia
porque tinha dvidas sobre um envolvimento que vinha mantendo com uma mulher, o que
o colocava diante da possibilidade de abandonar o ministrio, rompeu a relao com essa
mulher e continuou padre. Mas, de maneira integrada, deixou de ser s padre.
Um aspecto integrante da identidade, e que merece especial ateno em terapia, so
as redes sociais que o ser padre propicia ou impede, ou seja, a maneira como a padrice
interfere nos contatos sociais. a essa discusso, acrescida dos correlatos aspectos
relativos atividade laboral, que me dedico agora.
6) as redes sociais
Mais do que muitos outros, o padre homem de instituio e isto o coloca diante de
tenses peculiares. As intrincadas redes sociais que permeiam a vida dos padres, com seus
smbolos e limites, muitas vezes tornam penosas as vivncias das emoes mais bsicas.
Se para o padre, como j vimos, difcil a assuno de sua polaridade laica, tambm para
as pessoas com quem o padre convive h um problema semelhante, como, alis, j apontei
anteriormente. Nesse momento, pretendo aprofundar alguns comentrios repercusso
desse aspecto na vivncia da intimidade pelo padre.
Mais do que os homens leigos, os sacerdotes tm uma resistncia a mostrar o que
tm de mais ntimo, o que no lhes tira a necessidade de se expressarem nesse aspecto.
170
171
172
Em minha experincia clnica com os clrigos, tenho percebido que raro que haja
na vida desses meus clientes experincias de grandes e duradouras amizades,
principalmente na adolescncia. No raro, so pessoas de pouca profundidade em seus
contatos pessoais, embora possam viver um nmero grande de relaes interpessoais, o que
me faz crer que bastante comum o padre ter muitas relaes, a grande maioria delas
marcada por uma assimetria entre as pessoas. Assim que se pode perceber que h, muitas
vezes, uma grande e autntica disponibilidade do padre para acolher as outras pessoas e at
para servir de receptculo para as questes ntimas dessas pessoas, mas muito rara uma
reciprocidade de intimidades entre o padre e as pessoas com quem se relaciona, sejam elas
leigas ou religiosas. Como bem aponta Sperry (2003, p. 114), em uma relao
profissional, a verdadeira intimidade possvel poucas vezes, ou nenhuma, dado que
geralmente existe um diferencial de poder. Assim, os ministros ou conselheiros que crem
amar de verdade a seu cliente ou fiel se enganam a si mesmos e a outros que possam
convencer disso.
Apesar de pesquisa do CERIS (2004) sobre o perfil do padre brasileiro ter
levantado que os presbteros tm amizades que reputam ser pessoais9, a maioria dos padres
a quem atendi em psicoterapia tm muitos conhecidos, raros tm amigos ntimos. Uma das
maneiras bastante comuns de sada dessa situao de abundncia de conhecidos e carncia
de amigos a tentativa de manter relaes pessoais mais ntimas com mulheres,
especialmente as religiosas ou alguma benfeitora, esta geralmente idosa. E a h outra
questo tambm importante para o psicoterapeuta: como j vimos com Dlugos, por causa
do voto de castidade no celibato, os padres tm tambm diferentes limites no que diz
respeito expresso amorosa, o que implica diferentes maneiras de se lidar com a
intimidade. Numa relao ntima entre um homem e uma mulher, muito provvel que
aconteam momentos em que aparea, pela prpria proximidade, uma certa atrao sexual,
o que pode assustar o presbtero que no quer colocar em risco seu voto de castidade no
celibato. A maioria dos padres que atendi e que viveram essa situao acabou optando por
um recuo diante da relao e por uma conseqente escolha pela solido e pela desistncia
da vivncia de intimidade, no se arriscando a se aventurar na verificao de qual o papel
daquela atrao naquela relao. No aprenderam que, no mais das vezes, essa atrao
Os padres, em nosso estudo, afirmam possuir amigos: aproximadamente 44% avaliam que
possuem poucos amigos, mas verdadeiros; 41% acreditam que possuem muitos amigos verdadeiros; dados
que evidenciam que os padres percebem-se como pessoas que valorizam e possuem amizades (p. 15)
173
sexual temporria e apenas a chave para que o amor-gape se instale com mais conforto
naquele dilogo10.
Talvez como contrapartida para essa dificuldade de viver relaes de proximidade e
intimidade, h entre os padres uma tendncia a trabalhar demais, como se, ao se
esquecerem de si se dedicando exageradamente a sua funo pastoral e aos fiis, essa falta
da vivncia da intimidade pudesse ficar suprida, num tipo de raciocnio que Boris (2002, p.
23) caracteriza como tpico daqueles homens que fazem trabalho de homem11:
persistem em considerar seu trabalho como seu principal ou mesmo o nico esteio na vida, abdicando, muitas vezes, das poucas oportunidades de lazer, ou
adotando em relao a elas uma atitude culpabilizada. Ou seja, as explicaes
psicossociolgicas que posso deduzir de tais fenmenos apontam para a
sobrecarga, o constrangimento e o mal-estar gerados nos homens por conta da
assuno dos papis scio-culturais a eles impostos pelo rgido modelo de homem
do patriarcado.
Voltarei a discutir essa importante questo do trabalho para os padres mais adiante,
quando comentar sobre o tempo na vida consagrada. Por hora, quero voltar questo das
redes sociais para comentar como me parece a psicoterapia pode ajudar os padres a lidar
melhor com essas questes, facilitando a ampliao da coragem, por parte do cliente, para
vencer a intimidao que a vivncia da intimidade causa.
10
Em sua Carta Encclica Deus Amor, de 2005, Bento XVI afirma, p. 14, que na realidade, eros
e gape - amor ascendente e amor descendente nunca se deixam separar completamente um do outro.
Quanto mais os dois encontram a justa unidade, embora em distintas dimenses, na nica realidade do amor,
tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral.
11
Embora Boris no especifique o que est chamando de trabalho de homem, as reflexes que se
seguem a esse trecho que selecionei do notcia de que se trata de uma identidade masculina fortemente
marcada por valores patriarcais, os mesmos valores que amide encontramos entre os presbteros catlicos.
174
O ponto bsico e fundamental para que uma pessoa possa viver situaes de
intimidade a intimidade consigo mesmo, a possibilidade de que possa se explorar e se
conhecer a ponto de confiar em si o suficiente para poder expor-se aos outros sem medo de
se perder. Para dar tal passo, para arriscar-se a se conhecer, preciso coragem e um
ambiente protegido e protetor, facilitador para que o cliente se aventure na explorao de
si. Quando a psicoterapia consegue se constituir como esse espao facilitador, abre
possibilidades para o padre refletir sobre e integrar sua sexualidade, delimitar sua maneira
de lidar com o poder, arriscar-se a se colocar como pessoa em algumas relaes
interpessoais, principiando pela relao com o terapeuta, um ser humano diante do cliente,
uma pessoa interessada em uma relao pessoa-a-pessoa. medida que conseguir se expor
na situao teraputica, o padre pode, lentamente, generalizar o que vive ali e se abrir para
relaes mais prximas em sua vida cotidiana, explorando algumas relaes de intimidade
e se enriquecendo com elas, sem perder a possibilidade das relaes horizontais e
assimtricas to tpicas de sua funo social.
No quero com isso dizer que o terapeuta deva, ou mesmo que possa, se propor a
viver uma relao de intimidade com seu cliente. No, isso no possvel, assim como no
possvel, na maioria dos casos, para o padre viver esse tipo de relao com um fiel a
quem pastoreia. Como j vimos no captulo II, a relao psicoteraputica no uma
relao horizontal e, portanto, no uma relao de intimidade. Isso, no entanto, no
impede que, a partir dessa relao, a partir da exposio que faz de si para o terapeuta e
para si mesmo, isso no impede que o padre amplie suas possibilidades de vivncia de
intimidade a partir da psicoterapia.
Um outro ponto que poder ajudar o padre a se arriscar a vivncias de proximidade
ntima com outras pessoas o enfrentamento das protees exageradas s quais os padres
so geralmente submetidos em sua formao. a esse assunto que me dedicarei agora.
175
H, de fato, uma certa proteo que a instituio religiosa oferece a quem abraa a
vida consagrada que acaba por trazer algumas questes importantes para a psicoterapia
dessas pessoas. Por um lado, a maneira como lidam com as questes financeiras pessoais,
por exemplo, muito comumente permeada por sentimentos de culpa e por experincias
dolorosas provenientes de problemas quanto ao estabelecimento de limites quanto aos
gastos por causa de uma dificuldade de conhecer o real valor do dinheiro. Assim, ao
mesmo tempo em que algumas vezes encontramos entre os presbteros buscas de
simplicidade e de conteno de despesas, de afastamento dos apelos consumistas da nossa
sociedade globalizada narcsica, que chegam a beirar o exagero, por outro lado comum o
cliente avisar que ficar fora do pas por uns tempos porque vai fazer um curso na Europa.
Entre os diocesanos, comum o relato de dificuldades no gerenciamento das finanas da
parquia, ao menos no princpio da vida sacerdotal. Em suma, h entre os padres uma certa
dificuldade para dimensionar o valor do dinheiro, quer seja nas pequenas economias, quer
seja na no percepo dos privilgios a que esto submetidos alguns clrigos.
Na pesquisa de Hiriart, quando ele entrevista os padres que deixaram o ministrio,
h algumas observaes bastante importantes para este tema:
todos os entrevistados insistem em que um grande problema para a misso da
Igreja a impossibilidade dos sacerdotes para se colocarem no lugar dos leigos: fui
sair de uma vida protegida. No fcil. Mas tem a ver com o tema da felicidade.
Sentir-me no meu. Com minha filha tenho sentido o que um peso, uma
responsabilidade. O tema econmico duro. Aqui dentro no se compreende o que
o tema, no h conscincia. A princpio foi muito duro. Por necessidade, tive que
dar aulas de religio at quase morrer. No queria faz-lo. A sada a um mundo
novo impactante. No queria trabalhar. Tinha muito medo de sair ao mundo. S
recentemente me sinto mais preparado. No h um conhecimento real do que a
vida laical. Como padre tens mais segurana. Me pergunto: quantos padres
esto dentro sofrendo? E no fazem nada por medo. Tornam-se funcionrios. 12
(Hiriart, 2002, p. 47)
Um exemplo de dificuldade com os pequenos gastos foi dado por um cliente, que
vem de uma cidade da grande So Paulo. Ele vinha de carro at um certo ponto, deixava o
carro em um estacionamento e pegava metr e nibus para chegar em meu consultrio.
12
H, em Valle (2003, p. 69) comentrio que confirma o achado de Hiriart: (...) Os seminrios so
organizaes especializadas para formar padres: ela produz especialistas, enquadra tudo em horrios e rituais
burocrticos, bem ao molde das Igrejas. Ivan Illich lembrava que a Igreja catlica funcionava base de uma
burocracia mais numerosa que a da General Motors. Decretos e normas, administraes e consultas se
multiplicam.
176
Quando ele me contou isso, convidei-o a fazermos as contas de quanto ele gastaria de
combustvel para chegar ao meu consultrio de carro. Foi um grande espanto para ele
descobrir que gastava mais com estacionamento, metr e nibus do que se fosse de carro
para a terapia. Acabamos a sesso discutindo o sentimento de culpa que ele vivia por usar
o carro da diocese em proveito prprio, para ir terapia, mesmo quando ele pagava a
gasolina com seu salrio.
Um exemplo de situao privilegiada foi dado por um outro cliente, padre, de 34
anos, ordenado h seis anos, que chegou alegre para uma sesso, trazendo uma novidade
que tinha experimentado naquela semana: pela primeira vez na vida, comprara algo atravs
de um credirio, e seria ele mesmo que iria pagar essa compra. Ele me contou que h muito
tempo tinha vontade de ter uma camisa de seu time de futebol do corao, mas no achava
justo dar essa despesa para sua congregao, de forma que tinha conseguido criar coragem
para fazer um credirio e comprar o to sonhado bem, no valor de aproximadamente meio
salrio mnimo, valor que foi dividido em seis prestaes. Aos 34 anos de idade, ele nunca
tinha feito uma compra que lhe exigisse algum sacrifcio, uma vez que tinha em sua
congregao tudo de que precisava para viver, desde a alimentao at local para residir,
desde um carro at estudos ps-graduados na Europa.
Atendendo religiosos, fica fcil perceber que muitos dos sofrimentos pelos quais
eles passam poderiam j ter sido abordados ou, ao menos, levantados no perodo de
formao no seminrio. So pessoas que muitas vezes chegam aos seminrios cheios de
conflitos com relao religiosidade, sexualidade, lida com a autoridade, afetividade,
ao dinheiro, mas que no recebem a devida ateno quanto a esses problemas. Vai-se
levando, alguns seminrios se apegam a antigas frmulas que j no funcionam mais, no
se d a esses jovens a ateno devida em termos de sade emocional. Felizmente h j
muitos seminrios que contam com a assistncia de psiclogos na formao dos jovens, o
que, a longo prazo, tender a facilitar a ocorrncia de mudanas necessrias nessa rea,
certamente reduzindo a necessidade de atendimentos psicoterpicos. Ainda assim, vale
voltar pesquisa de Hiriart (2002, p. 49):
o caminho dos sacerdotes que, ainda que vivendo crises importantes, no
abandonaram o ministrio sacerdotal, tem certos matizes interessantes para
sublinhar. Tambm nesses casos, os entrevistados fazem uma srie de observaes
crticas ao que foi sua formao: a falta de trabalho sobre eles mesmos (a direo
espiritual errtica: se voc desnuda muito suas dvidas se expe. Custa acreditar,
mas muitos seminaristas temem ser expulsos), mas, sobretudo, a falta de
preparao para a mudana que significa sair e enfrentar o trabalho pastoral.
177
Faltou expor-se o manejo da liberdade com mais maturidade, no to superprotegido. O seminrio um mundo protegido, que o impede de testar-se e
construir um gerenciamento de sua prpria vida. uma mudana muito forte.
Mesmo assim, os entrevistados reconhecem que a rea mais vulnervel a afetiva,
o risco de comprometer-se em relaes afetivas que no so sadias por estar
estropiado e solitrio alto.
178
tentando esclarecer o que se passava e, aos poucos, foi ficando claro que o embarao de
meu cliente tinha um importante componente de dificuldade de exercer a sua autoridade, o
que acabava sendo interpretado pelo seminarista como abertura de possibilidade de que
pudesse ocorrer algo entre eles. Quando se deu conta disso e percebeu que poderia se
apropriar de sua autoridade para, com delicadeza e firmeza, colocar limites claros para o
seminarista, em pouqussimo tempo acabaram as tentativas de seduo e o rapaz retomou a
dedicao sua formao. Meu cliente, a partir da, relata que pde se apropriar melhor de
sua misso de formador, com repercusses no contato com todos os outros seminaristas.
O seminrio hoje j no mais a instituio fechada que foi no passado. Em muitos
lugares, a vivncia da formao para a vida consagrada j comea antes mesmo que o
candidato v para o seminrio, muitas vezes j com acompanhamento de outros
profissionais alm do formador, o que facilita o questionamento sobre a vocao. O
objetivo dessa mudana propiciar ao jovem vocacionado a possibilidade de ter maior
conscincia de si mesmo e de suas motivaes para a vida consagrada. Nesse sentido,
importante prestar-se ateno s sugestes dadas pelos padres que foram pesquisados por
Hiriart (2002, p. 51):
como sugesto, levantam que se revise a forma como o seminrio promove a
amizade (h medo da intimidade, tens que ser amigos de todos), assim como
que se fomentem as relao de gratuidade no interior do clero, as relaes
informais. hierarquia, recomendam estar atentos s pessoas, no somente
tarefa, isso significa cuidado de saber fazer opes, medir os recursos
humanos, no sobrecarregar, preocupao pelos destinos pastorais.
179
mais gil e prtico das atividades formativas. Porm, isto no me desanimou e eu consegui
desenvolver um bom trabalho.
com relao a esses excessos democrticos que frei Leers faz os comentrios
acima. Principalmente por causa das mudanas sociais de nosso tempo, as relaes
formador-formando so diferentes e exigem uma nova postura e novas possibilidades de
compreenso por parte do formador. H novas questes para os formadores, h novas
propostas e novas maneiras de se viver a vida consagrada, o que pode gerar impasses e
sofrimentos para o formador, provocando momentos em que um acompanhamento
psicoterpico pode ser de grande utilidade. Isso sem contar que um formador com mais
conscincia de suas motivaes e de si mesmo tende a fazer um trabalho mais educativo na
formao.
Para o terapeuta um conhecimento sobre o papel e as atribuies de um formador
importante, haja vista que ele possibilitar uma maior base de compreenso sobre o cliente.
Para o formador, alm da valiosa cooperao que lhe pode dar um psiclogo no seminrio,
um processo psicoterpico proporcionar-lhe- a oportunidade de se conhecer melhor, de se
conhecer melhor enquanto formador e, por via disso, exercer de maneira mais construtiva
seu ofcio. Ambos, formador e terapeuta, precisam, no entanto, estar atentos advertncia
de Hiriart (2002, p. 65):
habitual e tambm a explicao mais fcil que ante as crises sacerdotais se
acuse a formao e os formadores. Certamente h ali um trabalho importante; h
que se revisar a pertinncia e a eficcia da preparao cognitiva, emocional, social,
pastoral e espiritual que recebem os futuros sacerdotes, pensando no mundo de
hoje e de amanh, mas injusto e inadequado que sejam os seminrios e os
formadores os primeiros suspeitos cada vez que h problemas. Uma aproximao
algo ingnua ao fenmeno educativo significa que se confie em excesso na
formao, com a conseqente sobrecarga sobre a mesma. A vida significa
mudana, e significa confrontar-se com coisas que no se podem prever. H
momentos em que, ante uma encruzilhada, o saber acumulado no serve. Nesses
momentos, se faz evidente a importncia das redes sociais de apoio. Cabe recordar
que o apoio significa respaldo, mas tambm franqueza. s vezes, se pensa que
apoio sinnimo de relaes brandas, suaves, sem disputas, de uma calidez que
suprime toda confrontao. De fato, a experincia mostra que os sacerdotes e os
seminaristas tm especiais dificuldades na esfera da assertividade. Alm da notria
cautela dos meios eclesisticos, provavelmente associadas a uma diminuio no
nmero de vocaes, se nota a influncia de um meio cultural crescentemente
infantilizador, e que tende a patologizar e, portanto, desconhecer os problemas
180
Para o terapeuta, alm desses aspectos relativos formao e relao formadorformando, preciso que ele tenha especial ateno quanto aos aspectos vocacionais de seus
clientes, nosso prximo tema.
181
atendido um, apenas que no tivesse relevantes conflitos com seus pares. Hiriart (2002,
p. 62) tambm encontra esse como um tema a ser destacado em sua pesquisa:
mais da metade dos entrevistados se encontra insatisfeito com o nvel de
comunicao e colaborao no interior da diocese, e mais de um tero sente que
poderia contribuir mais ao trabalho diocesano. Um nmero importante de
sacerdotes se queixa do individualismo, da existncia de subgrupos fechados e da
comunicao distorcida em sua diocese.
Um dos motivos que podem ser levantados para essas dificuldades uma certa
indefinio quanto aos limites entre as relaes pessoais e as relao profissionais entre o
clero, como apontado por Hiriart (2002, p. 27) em sua pesquisa:
tudo o que foi visto at agora reafirma a idia de que as relaes verticais e
vinculadas ao trabalho funcionam melhor nas dioceses que as relaes pessoais e
horizontais. A pergunta que surge se isso poderia estar refletindo uma
cumplicidade implcita entre a autoridade e os mesmos presbteros que refora uma
viso do sacerdote como empregado, um funcionrio, um cargo.
Pesquisa levada a cabo por Valle (2003, p. 108) levanta condio semelhante entre
o clero brasileiro:
h uma quarta preocupao com base estatstica menor, mas igualmente evidente
posta mostra pelos dados colhidos. Na convivncia dentro do clero, as relaes
so sentidas como menos satisfatrias do que as percebidas nos relacionamentos
com os outros ambientes e grupos com os quais o padre partilha sua vida. Essa
caracterstica mais palpvel no relacionamento com os Bispos. H um nmero
razovel de padres que tm dificuldades srias de relacionamento com esses seus
superiores diretos.
182
uma ansiedade que o perseguia h muito tempo. Ele contatou, e criou espao para, a
abertura dos ouvidos e da sensibilidade para a compreenso do outro como diferente, mas
no necessariamente desigual.
Dificuldade semelhante viveu um outro cliente, que no tinha na convivncia com
os iguais a queixa mais importante para a terapia. Quando ele me procurou, j estava na
terceira comunidade, e, como nas outras, acreditava que o diretor da comunidade no o
respeitava suficientemente. Por mais que eu propusesse um questionamento sobre padres
de convivncia repetidos, o cliente no pde chegar a esse nvel de compreenso e parou
precocemente a terapia, quando conseguiu transferncia para outra comunidade da mesma
congregao.
Outra questo relacionada vocao para a vida consagrada, e tambm
relativamente comum em terapia, o questionamento sobre o sentido da vida, mais
especificamente, o sentido da vida consagrada. Brigas com Deus por causa de sofrimentos
no so raras; mais comum, no entanto, a sensao de perda de sentido da vida
consagrada quando um outro valor igualmente importante se coloca como alternativa
vida consagrada. Os exemplos mais comuns dizem respeito vivncia de relacionamentos
sexualizados, uma vez que, por causa do voto de castidade no celibato, esses
relacionamentos so, ao menos em tese, incompatveis com a vida consagrada. Aqui, a
pergunta ; vou deixar de ser padre?, ou: faz sentido para mim viver longe das
vicissitudes da vida consagrada?. Nesses casos, o projeto existencial fica visvel e,
portanto, exige escolha, tem que se reavaliado, os votos questionados.
Ainda uma outra questo relativa vocao e ao sentido da vida e da vida
consagrada, a que diz respeito a como ser padre. So questes importantes, postas
geralmente por pessoas que no tm dvidas acerca da vocao, mas que ainda no
encontraram a melhor maneira de explorar essa vocao. Lembro-me de dois exemplos
bem marcantes nesse aspecto.
Um deles o de um padre religioso que pretendia se tornar diocesano. Ele procurou
a terapia porque queria discernir com a maior clareza possvel qual seria a maneira mais
criativamente ajustada pela qual sua vocao se expressaria. Pediu ajuda porque tinha a
inteno de escolher principalmente pelo que chamava de aspectos positivos, e no por
causa de ressentimentos que tinha com o provincial e a congregao. Ao cabo de alguns
meses, ele se tornou diocesano, cheio de esperanas quanto nova vida.
Outro que trouxe a busca de sentido no formato do como ser padre, foi um cliente
que se sentia insatisfeito com a forma como exercia sua misso, especialmente com a
183
forma como rezava suas missas. Contou-me que conhecia inmeras tcnicas de
mobilizao de grupos e que as utilizava nas missas de acordo com o que pretendia no dia.
Assim, se queria fazer uma missa emocionante, logo aplicava uma ou outra tcnica, e l
ficavam os fiis chorando ou sorrindo larga, sentindo-se culpadas ou libertadas,
manipuladas por procedimentos tcnicos de controle de grandes grupos. Depois de algum
tempo exercendo assim seu ministrio, esse cliente comeou a questionar sobre a
honestidade desse seu procedimento, e esse foi um dos motivos de sua busca por ajuda
psicoterpica.
A terceira maneira mais comum atravs da qual a questo da vocao aparece na
psicoterapia a perenidade dos votos, em um mundo que se caracteriza pela brevidade dos
compromissos. H, por parte de alguns clientes, profundos questionamentos acerca de um
certo aprisionamento que sentem por se julgarem presos a um compromisso por toda a
vida, como se isso fosse incompatvel com a imprevisibilidade to caracterstica da
existncia humana. No so poucos os clientes que, diante desses questionamentos,
acabam por se inspirar no famoso verso de Vincius de Morais sobre o amor: que no seja
eterno, posto que chama, mas que seja infinito enquanto dure.
Quando ouo em terapia esse tipo de questionamento, bvio que dou ateno a
eles, mas minha ateno fica muito mais presa compreenso da capacidade de meu
cliente de se comprometer. Via de regra, esse o ponto mais destacado e mais ligado
sensao de aprisionamento nos votos que explicitada como queixa. A capacidade de
entrega e de presentificao do compromisso , para um processo psicoterpico, mais
relevante que a fantasia sobre a extenso temporal dele.
A quarta maneira, e talvez a mais comum, como a questo da vocao aparece na
terapia a que diz respeito aos impedimentos, s restries a uma srie de prazeres na e da
vida. Para alguns clientes, muito penoso pensar que o ganho vocacional acarreta perdas,
especialmente nas reas da sexualidade, do lazer, da autonomia e dos projetos existenciais.
Ao se abraar uma vocao, qualquer que seja ela, especialmente na vida consagrada, h
que se elaborar lutos derivados de significativas perdas que a opo vocacional
inevitavelmente acarreta.
No estou tratando dos consoladores e adiadores em compensao, que so a
maneira mais comum de se trabalhar essas perdas: voc no ser pai, em compensao,
exercer sua paternidade com muitos e muitos fiis. No isso! Em psicoterapia, essas
questes tm que ser trabalhadas pelo que so mesmo: perdas. H que se viver essas dores,
h que se despedir dessas possibilidades, utilizando-se do s vezes to penoso dever de
184
escolher que imposto ao ser humano s porque ele humano. No h como se visualizar
uma nova paisagem sem perder a paisagem anterior.
Para finalizar esse tpico, quero chamar a ateno para a presena da questo da
vocao na terapia por um quinto prisma, o da vocao como soluo. So aquelas pessoas
que se sentem to vocacionadas, que nem fazem da vocao tema dos dilogos
teraputicos, pois essa poro da vida na qual se sentem mais criativamente ajustados.
Para alguns clientes, embora no para todos, bvio, teraputico que o terapeuta traga
baila essa questo, para que ela seja explicitamente valorizada e conscientizada, apropriada
como conquista, apossada como realizao de potencial, que o que uma vocao deveria
ser.
9) o tempo
O tempo religioso no igual ao tempo leigo. Interferem nele vicissitudes que
equilibram de maneira singular a dinmica entre passado, presente e futuro, de tal maneira
que, no tempo religioso, o passado e o futuro mantm no presente um dilogo diverso
daquele mais comumente estabelecido pelo leigo. No tempo religioso, a transcendncia, o
que est alm da experincia sensvel, toma para si parcela pondervel das atenes e da
excitao existencial. A vida consagrada coloca explicitamente em questo um tempo para
alm do tempo da vida cotidiana, modificando o prprio sentido da existncia. Se o ser
humano do mundo globalizado narcsico cada vez mais vive e pensa num futuro imediato e
hedonista, a vida consagrada remete a um tipo de dedicao cujo significado s pode ser
plenamente compreendido se esta compreenso se ancorar no sentido da vida,
especialmente na transcendncia.
As diferenas, entre leigos e consagrados, que podemos encontrar na vivncia da
temporalidade tem suas razes na vocao sacerdotal, pois essa vocao exige um tipo de
entrega bastante diferente do exigido ao leigo. Nas palavras de Valle (2003, p. 97):
a realizao humano-afetiva do presbtero tem uma especificidade que cada vez
mais bem percebida por especialistas em psicologia da religio e por
psicoterapeutas. A especificidade vem do fato de o presbtero ser um homem que
combina seu projeto de vida e sua realizao afetivo-sexual social e cognitiva com
uma dimenso autotranscendente que decorre de uma interpretao e de um
sentido espirituais prprios a quem tem f. At pouco tempo atrs, a psicologia
mais oficial ignorava essa dimenso prpria a pessoas religiosas, enquadrando-a
185
Essa abertura para o Absoluto qual Valle se refere traz algumas implicaes
quanto maneira de lidar com a temporalidade, mudando o significado do projeto
existencial e da prpria finitude. Essa entrega ao Absoluto se d a partir da possibilidade de
renncias, e uma das renncias mais importantes que faz o presbtero a renncia ao seu
tempo, ou posse do tempo em proveito prprio, o que no uma renncia simples e
facilmente realizvel.
Essa renncia pode ser vivida, basicamente, de duas maneiras. Em uma, a mais
comum, o presbtero entende que deve dedicar concretamente seu tempo para a vocao, e
a se v presa de um trabalhar compulsivo, no qual no sobra tempo para o lazer, para a
meditao, para a orao, para a contemplao da vida e a compreenso de si na vida. A
qualidade da entrega ao transcendente medida em horas trabalhadas, em quantidade de
missas rezadas e na durao em minutos ou horas de cada missa, em anos sem frias, em
ininterrupto sacrifcio em prol do outro.
Prepondera aqui o reino do fazer, da concretude, de pouqussimas relaes afetivas,
uma atividade pastoral que d pouca importncia ao simblico e que gera pouca
flexibilidade, compreenso e empatia na convivncia com os fiis. Essas pessoas
freqentemente confundem fazer muitas coisas, estar ocupado todo o tempo, com
vivacidade. Este tipo de renncia ao prprio tempo comum a dois tipos polares de padres:
1) aquele padre que apenas profissional, que homem de funo mas no homem de f
e, muito comumente, um padre carreirista, que se sobrecarrega de incumbncias para ser
notado; 2) aquele padre que s f, que se aproxima perigosamente do fundamentalismo e
que no v nos problemas humanos nada alm de uma luta sem fim entre Deus e o diabo.
A outra forma de renncia apropriao do tempo em proveito prprio se d
atravs da transformao do tempo concreto e linear em tempo de significados, alm ainda
do tempo circular. Aqui, o presbtero, em vez de viver suas atividades pastorais como
profisso ou trabalho ou fundamentalismo, as vive enquanto sentido para sua existncia.
As atividades religiosas so a realizao de suas possibilidades, um modo de fazer as pazes
com o futuro, lidando criativamente com a angstia da finitude, de modo a que a existncia
reste confirmada a cada momento. Nessa segunda forma de renncia, h espao para a
contemplao, para o lazer, para a orao e para o trabalho, para a transcendncia. A partir
dessa segunda forma de renncia vocacional, pode ocorrer uma maneira de viver a vocao
religiosa como realizao para a existncia, como possibilidade de sntese que proporciona
186
uma temporalidade vivida em maior plenitude. Este tipo de renncia tende a facilitar um
contato pastoral mais compreensivo e acolhedor, mais redentor e confirmador.
Essa segunda modalidade de renncia da prpria temporalidade em prol do sagrado
no separa o presbtero do tempo imanente, representando mais uma possibilidade de
sntese entre a existncia e a transcendncia. Isso se d principalmente quando se alcana a
possibilidade de transformar o tempo circular em tempo espiralado, no qual as interrelaes entre passado, presente e futuro adquirem novos significados, na medida que o
presente e o futuro possibilitam constantes revises do passado, o qual, por sua vez e uma
vez revisto e ressignificado, interfere na vivncia do presente e nas fantasias sobre o futuro.
papel da psicoterapia abrir espao para esse tipo de questionamentos sobre a
vocao e a temporalidade, buscando facilitar ao cliente um posicionamento mais
consciente ante suas escolhas vocacionais. No raro receber-se para terapia pessoas de
vida consagrada que trazem relevantes questionamentos sobre a qualidade de vida que tm
e que consideram insatisfatria porque no se sentem donos do prprio tempo. Reflexes
que possam trazer tona a dialtica entre o simblico e o concreto da temporalidade
tendem a facilitar sobremaneira a apropriao do tempo e uma doao desse mesmo tempo
de maneira mais integrada, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Num outro aspecto relativo ao tempo e finitude, bastante comum entre os
presbteros que atendi, principalmente entre os diocesanos, uma preocupao com relao
ao tempo da aposentadoria, ao tempo em que no se poder mais trabalhar mas ainda se
necessitar de abrigo, de alimentao, de cuidados cotidianos. Menos para os religiosos,
mais para os diocesanos, de qualquer forma sempre fonte de angstia para os presbteros
a possibilidade de se descobrirem, quando velhos, sem suficiente apoio, at mesmo sem
uma casa onde morarem. Haver dinheiro suficiente para comprar uma casinha e passar os
ltimos dias? Como poupar o suficiente para isso, se h o voto de pobreza? Quem cuidar
de mim, se no haver filhos e netos que possam me dispensar cuidados? Quanto doer a
solido na velhice? So questes que perpassam por e ferem a mente de muitos presbteros
e que devem ter acolhida e profunda reflexo na psicoterapia, ensejando, sempre que
possvel, condutas proativas com relao a elas.
Da mesma maneira que o terapeuta deve dar ateno s particularidades dos
presbteros nas questes relativas ao tempo, h uma srie de outras questes que tm que
ser consideradas ao se fazer um diagnstico de cada cliente presbtero que procura
psicoterapia.
187
10) o diagnstico
Como j tratei de maneira suficientemente detalhada e aprofundada a questo do
diagnstico em psicoterapia no captulo II desta tese, vou fazer aqui apenas alguns breves
apontamentos sobre algumas particularidades do diagnstico relativas a pessoas de vida
consagrada.
Por todos estes aspectos que levantei at aqui neste captulo, o diagnstico na
psicoterapia de pessoas dedicadas vida consagrada tem que ser diferente do diagnstico
que normalmente se faz em psicoterapia. Comeando pelo respeito religiosidade do
cliente, passando pela aceitao da possibilidade de lucidez nos votos sacramentais e no
misticismo, e chegando at o fato de que a vida consagrada configura uma peculiarssima
gestalt na vida de quem a abraa, o diagnstico na psicoterapia dessas pessoas tem
diferentes limites e engendra diferentes posturas teraputicas.
No mnimo, esse diagnstico exige do terapeuta um respeito muito maior aos
smbolos, alm de uma aumentada capacidade de conviver com o diferente e enxergar nele
sua particular beleza, sem perder o senso crtico que lhe possibilitar ver as pessoas
dedicadas vida consagrada como, antes de tudo e mais do que tudo, pessoas em busca do
sentido da prpria vida, por isso pessoas dinmicas, vivas, em constante e interminvel
busca e descoberta de si.
Quero destacar dois pontos desse diagnstico nestas reflexes que ora fao. Ambos
dizem respeito a preconceitos que comumente encontramos entre os psiclogos. O
primeiro ponto relativo ao misticismo, mistrio evitado por tantos psicoterapeutas; o
segundo ponto a postura do psicoterapeuta ante a religio e a religiosidade sua e de seu
cliente. Embora eu j tenha elaborado esse segundo ponto no primeiro captulo desta tese,
parece-me oportuno voltar ainda uma vez ao assunto, relacionando-o mais de perto com o
diagnstico e, por via desse, com a psicoterapia para clrigos.
No que se refere s interseces do diagnstico processual com a mstica, j vai
longe o tempo em que os fenmenos msticos seriam imediatamente classificados como
patolgicos, quer seja no sentido de uma suposta histeria, quer seja no sentido de que
constituiriam uma psicose ou sintomas de uma psicose. Este tipo de olhar para as
experincias humanas j de h muito foi abandonado por intil e preconceituoso, alm de
presunoso, pelas modernas correntes na psicoterapia e at mesmo por alguns tericos da
psiquiatria. Hoje j temos conhecimento suficiente para discriminar as vivncias msticas
de fundo e/ou contedo psicticos daquelas que significam e representam verdadeiramente
uma aproximao de fenmenos transcendentes. Esses novos conhecimentos, basicamente
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psicloga, um paj indgena da tribo dos tupis. Cada um deles fez uma palestra interessante
sobre o tema da jornada e, quando se abriu espao para perguntas, eu indaguei se um pai de
santo, um xam ou um paj fariam terapia. Os trs foram unnimes em afirmar que suas
atividades eram teraputicas. Como no me senti respondido, pedi novamente a palavra e
troquei de verbo: um desses religiosos se submeteria a uma psicoterapia? Somente o paj
respondeu, afirmando que a psicoterapia no pertencia cultura indgena, de modo que o
paj nem pensaria nisso. Continuei a me sentir no respondido, mas a mesa foi encerrada.
Fiquei, mais uma vez e tanto quanto no caso do taxista, imaginando que h muito
mais preconceito contra a psicoterapia para pessoas religiosas do que supomos alguns
ingnuos psicoterapeutas. Nesse sentido, Luisa Saffiotti (2006, p. 28) vem ao encontro do
que estou a dizer:
necessrio assinalar que o entorno social (a cultura, as pessoas) com freqncia
muito resistente e desconfiado quanto Psicologia e tudo o que esteja relacionado
com esta cincia. Por conseguinte, imprescindvel discutir e confrontar os mitos
sobre a Psicologia (e a psicoterapia) e comear a promover contextos que apiem e
promovam o acompanhamento psicoteraputico como uma ferramenta de
crescimento e desenvolvimento pessoal. De igual ou maior importncia promover
entre os bispos e superiores religiosos uma cultura de aceitao da psicoterapia
como um aporte valioso formao e a sade integral dos sacerdotes e
religiosas(os).
acompanhamento espiritual, a pessoa convidada a refletir sobre sua relao com Deus e
197
com as outras pessoas, a refletir sobre o sentido de sua vida e sobre como viver de modo
coerente com sua f e sua experincia de Deus, a partir de um dado ponto de vista que
dado pela instituio religiosa. As sesses de acompanhamento espiritual servem para que
o acompanhado possa explorar sua relao com Deus, em busca de uma espiritualidade
integrada, sob a orientao de um sacerdote mais experiente. O trabalho de
acompanhamento espiritual importante, especialmente para os padres, mas no me parece
que ele possa ou pretenda substituir a psicoterapia, antes pelo contrrio: acompanhamento
espiritual e psicoterapia para pessoas de vida consagrada fazem frutfera parceria,
formando uma verdadeira abordagem multidisciplinar para as questes que afetam o
cliente clrigo naquele momento de sua vida.
Para finalizar, quero frisar que, ao levantar esses doze pontos que destaquei aqui
como portadores de delicadas diferenas entre o trabalho psicoteraputico com leigos e
com pessoas de vida consagrada, meu propsito trazer tona questes que possam
facilitar o encontro teraputico quando o terapeuta se v diante dessa clientela.
Quero terminar lembrando o que h de mais bsico no atendimento s pessoas de
vida consagrada: por mais que s vezes isso queira fugir da conscincia das pessoas, os
padres so humanos.
198
CAPTULO IV
CASO CLNICO ILUSTRATIVO
Neste captulo ser apresentado um caso clnico para ilustrar o uso dos elementos
desenvolvidos at aqui. Nas pginas que seguem, descrevo aspectos do atendimento do Pe.
Josu (nome fictcio), cuja terapia, a princpio prevista para durar at meados de agosto de
2006, estendeu-se at o ms de novembro do mesmo ano.
Apresentar um caso clnico nesta tese , de certa maneira, exerccio de sacrifcio em
prol da cincia. Tenho para mim que se h alguma semelhana entre o confessionrio catlico
e o consultrio de um psiclogo, esta semelhana est no sigilo e na confiabilidade exigidos
para que a relao possa ir em frente e produzir suficiente cura ou alvio de sofrimentos. Ao
apresentar este caso clnico, mesmo tendo confiana de que tomei os cuidados necessrios
para que meu cliente no pudesse ser identificado, sinto-me em delicada ambigidade.
Alm disso, h ainda dois aspectos que quero considerar. O primeiro aspecto o que
diz respeito impossibilidade de se colocar no papel a viva dinmica de uma interao
teraputica. Os gestos, os tons de voz, as pequenas nuances da comunicao pessoal tpica de
um processo psicoteraputico no cabem no papel. No h como ser fiel aqui ao acontecido
em terapia, pois ao relatar um dilogo j o estou modificando e tirando dele grande parte de
sua riqueza. No entanto, esse um preo a se pagar quando se pretende ilustrar o
desenvolvimento de reflexes acerca de procedimentos clnicos. Espero ter conseguido, no
relato que segue, manter o mximo possvel de fidelidade s emoes e s reflexes vividas
no processo teraputico, mesmo sabendo que o que acontece nesse tipo de trabalho , no que
tem de mais essencial, no que tem de realmente teraputico, inenarrvel.
1971, p. 17
199
1. Josu
Na quarta-feira, 30/11/2005, um colega, psiclogo e padre, pediu-me que atendesse
um sacerdote que vinha de outra regio do Brasil e que estava enfrentando por l problemas
relativos homossexualidade e alguma coisa mais grave. No mesmo dia, o Pe. Josu me
ligou e marquei uma primeira entrevista para o dia seguinte, de tarde.
No horrio combinado, apareceu um homem de baixa estatura, bem moreno, meio sem
jeito, visivelmente ansioso, as mos muito midas, com uma fala apressada, como se as
palavras viessem para fora coladas umas s outras, praticamente atropelando-se, fazendo com
que s vezes fosse mesmo difcil entender o que ele falava, quase como se fosse uma outra
lngua. Trajava-se adequada e sobriamente, em tons de cinza, sua cor predileta para roupas,
como me contou mais tarde. A princpio, demonstrou uma certa timidez, os olhos baixos, as
mos sem sossego, mas, aos poucos, foi se soltando e logo j dialogava mantendo um contato
200
razovel com os olhos e gesticulando mais vontade, embora, de certa maneira, seus gestos
fossem algo acelerados e seu olhar teimasse em fugir para os cantos da sala de atendimento.
Contou-me sua histria como pde, tentando j fazer algumas conexes com o passado
medida que revelava seu sofrimento atual, provavelmente acreditando que a terapia seria um
processo de busca de porqus. Relatou tambm, nessa primeira sesso, um certo medo de
enlouquecer, referindo-se a casos de insanidade na famlia. Limitei-me a ouvi-lo atentamente,
pretendendo ser acolhedor e continente, de modo que fiz poucas intervenes, tratando de
apenas confirm-lo em algumas de suas percepes sobre sua situao atual. Combinamos
outro encontro, para a segunda-feira seguinte. Esse encontro foi cancelado pelo cliente. Foi
marcada nova sesso para a quinta-feira, 08 de dezembro.
No dia 08 de dezembro, sofri um desmaio, pela manh, na faculdade onde leciono,
passando o resto do dia em observao no hospital. Josu foi avisado da minha
impossibilidade de atend-lo. Meu desmaio se deveu a uma febre imensa causada por uma
septicemia, a qual, por sua vez, me obrigou a passar oito dias internado em um hospital.
Quando tive alta hospitalar, j era dia 17 de dezembro e eu estava ainda debilitado demais
para poder trabalhar. Assim, a terapia que deveria ter-se iniciado em dezembro acabou adiada
para janeiro, quando eu deveria retomar minhas atividades. Josu informou-me, por telefone,
que passaria as festas de fim de ano com um padre amigo, em um estado vizinho a So Paulo.
Confirmando o que discuti no captulo III desta tese, a queixa de Josu veio em duas
vozes, uma delas, a de seus superiores hierrquicos, por escrito: quando veio para So Paulo,
Josu trouxe uma carta assinada pelos seus superiores, a qual reproduzo abaixo, com algumas
adaptaes que visam impedir a publicao de dados pessoais que possibilitassem o
reconhecimento do cliente. A reproduo da carta facilitar a compreenso desse processo
psicoteraputico: a histria de Josu est suficientemente descrita na carta que reproduzo
abaixo, para depois acrescentar alguns detalhes.
Senhor Professor: Saudaes!
Esta carta est acompanhando o sacerdote de nossa diocese.
Josu
Ele nasceu em na dcada de 1960, segundo filho de cinco irmos.
Ficou na sua terra natal at a oitava srie, ficou depois sem estudar at quando entrou
no seminrio menor da diocese. L, ele estudou o segundo grau e passou para o
seminrio Maior na mesma diocese. Concluiu a filosofia e fez um estgio em outra
localidade com dois padres da congregao. Reingressou posteriormente no Seminrio
Maior para iniciar os estudos de teologia. Foi ordenado dicono e fez um estgio na
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203
Ainda muito ansioso, ele conta que vem rezando algumas missas como retribuio
hospitalidade que tem dos seus hospedeiros e que reviu dois amigos, dois ex-seminaristas,
homossexuais, que vivem juntos em So Paulo, depois de terem abandonado o seminrio na
terra de Josu. Sente-se bem e acolhido entre eles e se questiona muito sobre sua prpria
homossexualidade. Refere que tem uma energia sexual muito grande e que teme no
conseguir ser celibatrio. Afirma desta feita (e mantm a afirmao por todo o tempo da
psicoterapia) que se sente padre e que seria muito triste ter de deixar de ser padre por causa de
seu desejo sexual. Conta de um propsito de manter-se casto, evitando at mesmo masturbarse, por considerar que a masturbao um pecado para ele que, para se tornar padre, fez
solene promessa de celibato.
No correr dessa sesso, por entender que seria til para Josu, coloco para ele, com
toda a clareza que posso, que, de certa forma, no me preocupo com o caminho que ele vai
seguir a partir do trabalho teraputico, ou seja, que no tenho um caminho determinado a
priori para meu cliente, pois meu propsito nica e exclusivamente o de ajud-lo a
encontrar o seu prprio caminho e descobrir como caminhar por este percurso recmencontrado, pois no posso nem pretendo poder oferecer um ou outro caminho como melhor
para ele. Meu limite, como, de resto, o limite da psicoterapia, ajud-lo a (re)encontrar seu
prprio e original caminho. Essa uma conduta teraputica (de certa maneira amoral, como,
alis, j discuti no captulo II desta tese) que pode ser bastante til no trabalho com os padres,
especialmente aqueles que vivem o dilema entre a inclinao natural para o exerccio genital
da sexualidade e uma confiante vocao sacerdotal. Repito a reflexo de Rachel Rosenberg
(1987, p. 87), para que fique bem claro do que estou falando: o delicado equilbrio se coloca
no profissional que est presente com sua disponibilidade e que, sem desejar conduzir ou
mesmo julgar o seu interlocutor, capaz de ouvi-lo e responder-lhe tendo por critrio sua
busca de uma realizao mais autntica e, portanto, mais plena.
Quando o cliente sabe da postura e do propsito do terapeuta ao abordar temas assim
to importantes e significativos, h uma visvel relaxao da tenso na sesso teraputica, pois
o terapeuta se torna mais confivel, alm de reafirmar sua postura de pessoa atendendo
pessoa, to importante para a psicoterapia de curta durao. No creio que essa explicitao
desse posicionamento possa servir como regra, pois certamente haver aquele cliente para
quem o melhor ser que o terapeuta se cale, mas posso afirmar que no raro acontecer de
haver um incremento na confiana e no prprio investimento do cliente na terapia quando fica
honesta e explicitamente claro que no o condenarei por ter desejo sexual e viver dvidas por
causa disso. A sensao de cumplicidade, to importante no processo teraputico, fica ainda
204
Diz Gendlin (em Rogers, 1977, p. 143): a auto-expresso do terapeuta pode tornar a interao
movimentada, pessoal e expressiva, mesmo que o cliente fique continuamente silencioso ou apresente apenas
coisas sem importncia. Quando apresentadas, as expresses do terapeuta os fatos que ocorrem nele se
voltam para a interao e permitem seu aprofundamento. As duas pessoas tendem a sentir uma interao viva,
aberta e pessoal, mesmo quando apenas um deles estiver verbalizando o lado que sente na interao.
205
Nessas primeiras sesses h duas histrias contadas por Josu que facilitam meu
diagnstico. Uma delas, que ele descreve longamente e com visvel sofrimento, d conta de
suas dificuldades com o desejo sexual, com nfase na luta contra a masturbao e contra as
fantasias homossexuais que completam o ato masturbatrio. Josu conta que durante muito
tempo masturbava-se pensando em si mesmo, olhando-se no espelho e sentindo atrao por
sua imagem projetada. Mais tarde, isso amadureceu para fantasias com outros homens e, mais
tarde ainda, para relaes sexuais homossexuais. Conta tambm que em toda a sua vida
trabalhou muito, para ajudar a criar os irmos menores. Trabalhava de dia e estudava de noite,
quando podia. Conta tambm que desde a adolescncia sempre foi bastante engajado nos
trabalhos da Igreja, mas que nunca namorou, embora sentisse atrao pelas meninas de sua
idade. Sua me, muito exigente, proibia que namorasse, por medo de que ele se casasse cedo,
206
como fez sua irm mais velha, a qual, muito nova, fugiu com um rapaz. Josu conta que viveu
uma grande paixo e refere enorme vergonha pelas loucuras que fez. No me olha enquanto
conta que at publicamente revelou seu amor e seu sofrimento por no ser correspondido;
relata que ficou to excitado e desesperado com essa paixo que acabou por ter de se tratar
com um mdico de uma cidade vizinha, que o medicou com Dalmadorm. Alguns meses
depois desse episdio, quando fazia uma viagem de catequese, no conseguia dormir e teve
outro episdio de intensa ansiedade, mais uma vez sendo medicado com ansiolticos e
hipnticos. Josu conta que, na dcada de 1980, esteve internado em um hospital na capital de
seu estado, aos cuidados dos psiquiatras de l. Aps esse perodo de internao, ingressou no
seminrio. No perodo inicial de seus estudos de segundo grau, teve mais uma crise de
ansiedade e achou que seria mandado embora do seminrio, o que acabou por no acontecer.
Percebi, ento, com tranqila certeza, que Josu se beneficiaria de um apoio
psiquitrico. Alm disso, eu precisava afastar de vez a possibilidade de um diagnstico de
transtorno bipolar, de modo que pedi ao cliente que fizesse uma consulta com uma psiquiatra
que eu recomendei. Como eu esperava, ele aceitou mas no cumpriu. Como, no meu modo de
ver, no havia tanta urgncia nessa consulta, e como eu j percebera esse ritmo cauteloso com
o qual ele se aproxima de suas questes, dei-lhe um tempo para que ele digerisse a indicao
antes de interpel-lo novamente quanto ao tema. Continuamos nosso trabalho, discutindo suas
dificuldades quanto sexualidade, suas saudades de casa e dos amigos, seus medos de que
nunca mais pudesse ter a considerao das pessoas que a tanto custo ele conquistara em sua
terra de origem. Fizemos algumas sesses bastante carregadas de emoo, de reviso de
trajetria de vida, de tentativas de se perdoar pelos tantos erros cometidos nos ltimos anos,
quando se submeteu a inescrupulosa extorso praticada por um ex-seminarista, que dizia ter
fitas gravadas de relaes sexuais de Josu com rapazes no perodo em que foi reitor do
seminrio. Josu no acreditava na possibilidade de que as fitas pudessem existir, mas
tambm no podia afirmar com certeza que elas eram pura fico do extorsionrio. Aliada a
isso, sua baixa auto-estima e sua sensao de inadequao ao se deparar com o poder que
detinha como reitor do seminrio foram decisivas para que ele se deixasse enredar pela trama
armada pelo outro, criando esse sofrimento que o afligia profundamente agora.
Minha postura nessas sesses, e por praticamente todas as outras, era a de,
cuidadosamente, evitar me manter muito ativo, buscando mais abrir espao para a atividade
de meu cliente, como deve ser a postura de um terapeuta quando diante de um cliente com
estilo dependente de personalidade. preciso lembrar que o no-ativo no passivo ou
distante, antes pelo contrrio: trata-se de uma presena, de uma postura em muito semelhante
207
ao do guia xerpa, como j discuti, no captulo II desta tese, apoiado nas reflexes de Maria
Constana Bowen.
Trabalhvamos sua dificuldade de acreditar nos prprios poderes (de novo, no sentido
de posso), quando ele foi convidado a rezar uma missa em um ambiente especfico e bastante
conservador e poderoso de So Paulo. Essa foi uma experincia muito importante em sua
trajetria teraputica. Foi to bem acolhido no local, que acabou por se soltar e fazer uma
missa que lhe rendeu convites para voltar a rezar l, o que fez mais inmeras vezes desde
ento. A mim me pareceu muito interessante o que ele viveu entre essas pessoas
conservadoras e suas famlias: parece que, ao se sentir acolhido em um meio de poder (poder
sobre), ao sentir que podia ser, que podia existir e ser respeitado, mesmo nesse meio que, em
seu imaginrio, seria to hostil, ele abriu a porta que lhe possibilitou, finalmente, ampliar um
pouco mais sua crena de que o poder eclesial lhe cabia bem. Sua ansiedade baixou um
pouco, e ele resolveu procurar a psiquiatra.
Essa ligeiro abaixamento do nvel de ansiedade do cliente veio em boa hora: depois de
muita procura, o ex-seminarista que o extorquira por tanto tempo conseguiu localiz-lo no
convento onde Josu se hospedava em So Paulo. Comearam, por telefone, novas tentativas
de chantagens. Josu voltou a sentir muito medo, e o trabalho em terapia se concentrou nesse
novo fato. Para mim, foi muito fcil perceber como Josu tinha problemas para se defender da
extorso: mesmo agora, quando seus superiores e alguns colegas j sabiam do ocorrido,
mesmo agora que ele tinha o apoio do seu bispo e da terapia, mesmo agora ele ainda reagia ao
criminoso como se no tivesse foras para resistir extorso. Em uma das sesses mais
intensas que fizemos nessa poca, fiz ver a ele que a argumentao que usava estava baseada
muito mais em uma sensao de fraqueza que na nova fora que lentamente adquiria: sempre
que falava com o ex-seminarista, Josu s argumentava que no tinha dinheiro e que,
portanto, no podia fazer agora nenhum depsito, deixando em aberto a brecha para que a
extorso continuasse caso ele conseguisse uma nova fonte de renda, como, alis, j tinha feito
anteriormente, quando recorreu a um agiota para conseguir recursos e fazer depsitos para o
extortor.
Enquanto se debatia em busca de novas formas de reagir extorso e, lenta e
gradativamente, ampliava suas fronteiras de modo a caber nelas um comportamento mais
assertivo frente ameaa, Josu fez sua consulta com a psiquiatra que eu recomendara. Foi
medicado com Seroquel e Rivotril, dois ansiolticos que rapidamente o ajudariam a reagir
melhor ante as dificuldades pelas quais passava.
208
A psiquiatra respondeu:
Fico disposio. Ele vai ter um retorno prximo, pois tambm pedi vrios exames,
especialmente as sorologias para DST, que nunca havia feito. Haver um perodo de
adaptao medicao, no incio os efeitos colaterais so mais severos, especialmente
sedao, mas a tendncia melhorar em 2 semanas, e aparecer mais nitidamente o
efeito benfico.
209
210
Utilizo-me s vezes desse recurso de pedir uma autobiografia por escrito para alguns clientes, muito
mais com o intuito de facilitar a eles uma certa reapropriao de sua histria que para colher informaes. bem
verdade, no entanto, que muitas vezes essas narrativas acabam por provocar interessantes dilogos em terapia.
211
aprofundar a psicoterapia em um ponto fundamental para que Josu possa reassumir suas
funes eclesiais: a responsabilizao pela prpria vida e pelas prprias atitudes, inclusive
pelos seus sins e seus nos, fundamento para que ele consiga se apossar do poder
existencial de que carece.
Na semana subseqente, Josu volta ao tema da sexualidade. Retoma a histria de sua
homossexualidade e volta a criticar o celibato. Ao fim da sesso, relata casos que descrevem
como a Igreja conivente com muitos padres que no s mantm uma vida sexual ativa, mas
tambm tm famlia, para desabafar: s no pode padre gay! Por que no? Na sesso
seguinte, qual ele chega com meia hora de atraso, retoma o tema e conta o encontro que teve
com outros padres em um curso rpido que fez. Confuso, relata uma conversa longa que teve
com um padre que acabara de conhecer e que fizera um enorme discurso mesa do almoo,
argumentando, para Josu, que a Igreja deveria expulsar todos os padres gays, pois eles no
teriam maturidade suficiente para serem sacerdotes. Na sesso, aprofundamos os sentimentos
que so despertados pelo relato dessa experincia, e Josu volta a trincar os dentes quando se
refere ao celibato. Sai do consultrio com as mos midas, novamente. Na semana que se
segue, ele no vir terapia, pois estar em outra cidade, ajudando um padre nas cerimnias
da Semana Santa.
Aproveito a semana para ler sua autobiografia. Ela traz um relato bastante resumido de
eventos acontecidos durante a vida de Josu, a maioria dos quais j mencionei acima. Quero,
no entanto, destacar alguns aspectos que me parecem interessantes para a compreenso de
suas dificuldades atuais:
Iniciei meus estudos aos sete anos, logo na primeira srie. No pude freqentar Jardim
da Infncia, porque a idade j no permitia. No primeiro dia de aula voltei para casa
com medo. No fiquei, era tmido demais. (...)
Se percebe que eu nunca tive tempo para lazer, porque sempre estudava e trabalhava.
Isso desde cedo. Levando-se em conta que nas frias escolares ajudava meu pai na
roa. (...)
Sempre tive vontade de ingressar em Seminrio para formao sacerdotal. Mas nunca
me decidia. Tinha dvidas dessa vocao. A verdade que entrei sem um
acompanhamento vocacional. Fins de novembro do ano anterior ao meu ingresso,
passou um padre recrutando rapazes para o seminrio (essa era a palavra que se usava
na poca). Como j tinha alguns colegas no seminrio, fui incentivado a ingressar.
Meus pais ficaram meio assustados, mas no interferiram na minha deciso. (...)
212
No Seminrio Menor, comea a despertar em mim uma atrao pelos garotos bonitos e
mais novos do que eu. Mas me controlava e era s uma paixo platnica. Consegui me
controlar at o ensino Mdio. No Seminrio, eu era uma liderana, trabalhava na
Secretaria com o padre-secretrio e me destaquei bastante em todos os aspectos da
formao.
Fiz pedido para o Seminrio Maior e fui aceito. L foi tudo muito bem, tinha mais
liberdade, fazia bem o trabalho pastoral, acompanhava os estudos e tambm era uma
liderana forte. Mas persistia em mim atrao por rapazes. Me controlava muito.
Jamais pratiquei sexo com ningum. Nunca falei nada aos formadores, porque sei que
iria ser mandado embora. Interessante que quando ia de frias, namorava escondido,
com garotas (moas). (...)
Certa poca, o ento bispo me nomeou para ser o Diretor do Seminrio Menor, pois no
seminrio tambm funcionava a Escola para os seminaristas. Eu era Formador e
Diretor da Escola. Uma estrutura enorme, funcionrios, etc. Tudo isso, para um jovem
padre sem experincia nenhuma de formao e mesmo maturidade. Fui por obedincia
cega. Encontrei 65 jovens entre 15 e 25 anos. E l comeou o meu calvrio. (...)
Um parnteses (j como padre na catedral, comecei a me relacionar sexualmente com
rapazes. Tinha um carro, podia sair e fui me envolvendo na coisa. Tambm com
bebidas, passeios, etc.)
Um grupo de seminaristas achou uma fita vhs com imagens pornogrficas de homens
transando. A fita era minha. Assistia no meu quarto. Me chamaram para uma reunio,
mas neguei. Inventei uma histria tola e idiota. Sei que no se convenceram. Em
agosto, um grupo de seminaristas aprontaram e foram embora vinte, dentre eles o dito
cujo, que me chantageou por muito tempo. Nessa poca, comeou a chantagem desse
cara. Em maio, iniciei um caso com um seminarista, mas com mais de 18 anos.
Depois, outros seminaristas viram ele insinuando-se para outros colegas e foraramme a mand-lo embora do Seminrio. Ele foi, mas continuamos tendo um caso que
no meu pensar era oculto, mas muita gente sabia. Fui tolo e tonto. Tambm saa com
mulheres, parece no intuito de reprimir o desejo por homens. Nada adiantava, me
realizava melhor com homens.
O Reitor do Seminrio Maior saiu para se casar, e a convite do bispo, sem refletir, por
obedincia cega, aceitei o cargo de Reitor. Fui, mas a contragosto, revoltado, e s
vezes at dizia para as pessoas: vou fazer tudo para que me tirem de l. A o
Seminrio Menor fechou, por falta de padre, dinheiro e porque aquilo j estava fora da
realidade.
213
No Maior, levei tudo com a barriga. As chantagens continuavam. O rapaz que foi do
Menor foi embora para outra cidade distante. Fiquei mais de um ano sem vida sexual
com ningum. Mas um rapaz do bairro deu em cima de mim e eu aceitei. Foi a gota
dgua. Me apaixonei, fugia, saa sempre, muita farra, orgia mesmo. Continuavam as
chantagens. E eu dando dinheiro. Tinha medo do Bispo e dos padres descobrirem.
Outubro, setembro, tudo veio tona, os seminaristas todos sabiam da chantagem, no
sei se sabiam das minhas prticas sexuais. Talvez sim. Tambm adoeci, fiquei fraco,
super estressado e decidiu-se que eu deveria deixar o Seminrio e sair da cidade. Foi o
que aconteceu.
Voltando famlia, sinto que meu pai foi muito ausente na minha formao de criana
e adolescncia. Coitado, trabalhava feito um burro. Minha me mandava em tudo.
Sempre foi e ainda a matriarca.
Meu pai quando me castigava era severo, raivoso, furioso mesmo. Mas um homem
muito paciente, calado, humilde, simples. Hoje conversamos muito, nos damos muito
bem, quando estou em casa.
Com meus irmos a relao sempre foi amistosa, mas eu era o mais velho dentre os
homens, que mandava. Sempre trabalhei para sustent-los. Isso ainda presente hoje.
Nos damos muito bem, conversamos, brincamos.
Apesar de tudo sou alegre, otimista, e tenho uma fora grande de vencer. Tambm me
vejo com as qualidades certas para ser sacerdote. Claro, que estou nesse processo de
mudana, converso, querendo viver meu celibato totalmente.
Tenho muitos amigos, gosto de fazer amizades, sou comunicativo e at extrovertido.
Tambm muito inteligente. S preciso desenvolver mais esta inteligncia, para meu
prprio bem e minha felicidade maior.
Mesmo com todas estas dificuldades, nesse perodo em que estive nos dois Seminrios
fiz um trabalho que, ao menos em quantidade, valeu. Foram ordenados padres e
diconos.
Tambm sei que no sou tarado, promscuo e tenho conscincia de que violei a
promessa de celibato que fiz. Isso foi pecado e imoral. Mas tambm sou consciente
que como presbtero catlico, devo viver como manda a Igreja e suas autoridades.
Acho que isso basta. Foi o que lembrei.
Na semana seguinte Semana Santa, Josu faltou s duas sesses marcadas, uma na
tera-feira e outra na quinta-feira. Na quarta-feira tarde, ele me ligou. Culpou o trnsito pela
falta no dia anterior e disse que tinha assumido um compromisso com um padre para ajudar
214
numa missa na quinta-feira, pois tinha esquecido que a sexta-feira seria feriado e que j
tnhamos agendado para quinta-feira a nossa sesso, ficou de tentar se desvencilhar do
compromisso, mas, na quinta-feira, deixou um recado dizendo que faltaria sesso. Quando
nos falamos ao telefone, questionei-o acerca das prioridades que estabelece, querendo dar-lhe
a entender que, mais uma vez, o mundo estava se sobrepondo a ele, como si acontecer com
pessoas de estilo dependente de personalidade.
Na semana seguinte, as duas sesses tiveram a mesma temtica: a homossexualidade.
Josu resolveu aprofundar mais a anlise de sua homossexualidade e passou a contar as
experincias homossexuais que viveu, buscando compreender-se e, ao mesmo tempo,
questionando sua possibilidade de manter o celibato, algo que at hoje no conseguiu, a no
ser por breves lapsos de tempo, como parece estar acontecendo durante a psicoterapia. Chama
minha ateno que Josu no questiona o porqu de ser homossexual, mas sim sua maneira de
viver a homossexualidade diante da promessa do celibato. Todo o seu questionamento me faz
pensar que muito provavelmente ele tem bem aceita e suficientemente bem trabalhada sua
condio homossexual. Mais uma vez, minha conduta nessas duas sesses de acolhimento e
de continncia. H nessas sesses um forte tom afetivo, um clima de muita confiana e de
bom aprofundamento das questes discutidas. Josu termina a sesso da sexta-feira
lembrando que na tera-feira ter sesso comigo pela manh e consulta com a psiquiatra pela
tarde.
Na tera-feira pela manh, Josu volta ao tema da homossexualidade e continua sua
explorao, buscando perceber se consegue acreditar que manter o celibato daqui por diante.
O tom de suas indagaes srio, sem falsas iluses, comprometido com uma busca de um
posicionamento que lhe permita sentir-se ntegro no presbiterato. Revela sentir-se culpado por
no ter sido ntegro na maior parte de sua vida sacerdotal e responsabiliza, em parte, sua
formao por isso, pois sente que poderia ter sido melhor assistido psicologicamente nos
seminrios, o que, acredita, o teria ajudado a enfrentar com mais maturidade os problemas
pelos quais passou e passa. Destaco para ele a honestidade com que me parece que ele busca
se posicionar e o quanto isso representa uma retomada de um desenvolvimento que no pde
se dar antes.
Na sexta-feira, Josu chega assustado e ansioso no consultrio. Relata que saiu muito
mal da entrevista com a psiquiatra, pois ela lhe teria dito que ele padece de psicose bipolar e
que esse era um mal da famlia dele. Pesquiso mais detalhadamente como foi a entrevista com
a mdica e, aos poucos e apoiado em seu relato, vou fazendo-o ver que a linguagem mdica
tem que ser ouvida com muito cuidado, haja vista o extenso apoio dessa linguagem na postura
215
cartesiana, no perigoso raciocnio do se ... ento. Acabamos por descobrir que a psiquiatra
no disse que Josu teria psicose bipolar, mas que esse era um mal ao qual ele poderia ser
sujeitado se no se cuidasse. Explico tambm sobre o uso do Seroquel, um anti-psictico que,
em pequenas doses, utilizado como ansioltico, pois um dos fatores que contribui para sua
ansiedade foi ter lido na bula do medicamento que seu uso era recomendado no tratamento de
psicoses. Conto a ele que meu pai e seus irmos morreram de enfisema pulmonar, o que me
obriga a cuidar mais cautelosamente de meu pulmo, mas no me condena a morrer tambm
de enfisema. A partir desse exemplo pareceu-me que ele passou a compreender de uma
maneira mais tranqila a fala da mdica e ns passamos a trabalhar o medo da loucura que
sustentava a ansiedade daquele momento.
Como no raro acontecer com pessoas em psicoterapia, Josu tambm logo notou
que seu medo da loucura era principalmente um medo de ser rejeitado socialmente se fosse
tido como louco ou mentalmente insano. Trabalhamos essa questo, eu atento tambm a
facilitar a ele que possa lidar com um certo preconceito que enfrenta e ainda enfrentar no
meio eclesistico por fazer psicoterapia e tomar medicamentos psiquitricos. Asseguro-lhe
minha crena de que o uso desses medicamentos, embora necessrio e importante agora, no
se estender por toda a vida. Josu fala de saudades de sua me e de sua famlia, conta que
falou com a me por telefone nessa semana e que ela est com muito medo de que ele esteja
doente e escondendo dela algum mal maior por que estaria passando. Ele diz que tentou
tranqiliz-la, mas que isso foi difcil, uma vez que ele tambm estava temendo estar insano
gravemente. Pareceu-me que, ao fim da sesso, Josu j estava bem mais relaxado e com uma
nova viso da consulta com a psiquiatra. Na semana seguinte, ele ter um retiro de segunda a
quinta-feira, de modo que s faremos uma sesso. Avisa-me que talvez seu bispo venha a So
Paulo na semana que vem e queira fazer uma entrevista comigo. Respondo que fico
aguardando e disposio.
Voltando do retiro, fizemos uma sesso que posso chamar de temtica. Toda a
reflexo se centrou na humanidade do padre, tema tambm de algumas reflexes do bispo que
dirigiu o retiro. Aprofundamos a falibilidade humana do padre, as expectativas exageradas
que se colocam ante os seminaristas e os padres quanto fora que devem ter, a dificuldade
que , para um padre submetido a esse tipo de formao, pensar em tornar-se pessoa de
maneira mais plena e coerente. Em todos os casos, Josu e eu fomos fazendo pontes entre as
reflexes que surgiam e as vivncias pelas quais ele tem passado nesses anos de ministrio.
Minha sensao em praticamente todo o tempo da sesso foi a de que alcanvamos um
aprofundamento de reflexo e de sentimento que poderia render bons frutos dali para adiante
216
neste trabalho teraputico. Essas situaes teraputicas, de intensa vivncia, muitas vezes se
tornam difceis de serem descritas posteriormente, uma vez que h coisas vividas naquele
momento que so muito prprias daquele momento, cheias de uma intensidade que somente
um romancista se atreveria a descrever em uma folha de papel. A qualidade transformadora
desse tipo de situao teraputica facilmente perceptvel para quem a est vivendo, no
momento em que a est vivendo, mas dificilmente descritvel depois que a densidade da
situao cumpriu sua misso e se desvaneceu a servio do passo dado no caminho do
crescimento pessoal com corao.
Na semana seguinte, tivemos que mudar a sesso da segunda-feira por causa do caos
na cidade de So Paulo, sede de sangrenta disputa entre a polcia e um bem organizado grupo
de bandidos. Marcamos sesses para dois dias seguidos, quarta e quinta feiras.
Na sesso de quarta, Josu chegou contando um sonho muito interessante e uma
sensao muito intrigante. No sonho ele est em uma canoa, guiada por uma cobra ou por um
pssaro (um ser que ele no sabia se era cobra ou se era pssaro) que o abandona em uma
encruzilhada do rio. A sensao um certo vazio que no vazio, uma tristeza que no
tristeza, uma estranheza que no estranheza, algo, enfim, profundamente sentido e vivido,
mas de difcil descrio. Trabalhamos o sonho como uma possibilidade de uma mudana de
paradigma, possivelmente uma nova configurao de identidade, um novo jeito de ser que tem
que ser reconhecido e apossado. Josu, dentre muitas outras coisas, contou que percebe que
est se cuidando corporalmente muito melhor e que no faz mais promessas de no fazer mais
isso ou aquilo, promessas que sabe que no poderia cumprir, mas que, ainda assim, vivia
fazendo. Trabalhamos tambm a possibilidade de que esse animal do sonho simbolize o
caduceu e que o sonho traga tona o medo do fim da terapia e a conseqente necessidade de
Josu cuidar da prpria vida sem o meu auxlio. No percebi clima para trabalhar
dramaticamente o sonho, de modo que ficamos apenas nas reflexes despertadas por ele.
Quando Josu foi embora, anotei em meu caderno de notas: H algo de estranhamente bom e
diferente nele, digno de ser verificado amanh.
Na sesso seguinte, Josu chega relatando cansao pelas confisses dadas e pelo teor
de alguns relatos ouvidos, os quais ele no me conta, embora fale de seu susto e estupefao
ante o que ouviu. Logo em seguida, fala de um sonho que teve de noite, do qual ele se lembra
apenas de um trecho: est caminhando por uma calada (ou estrado, no sabe) cheio de
montes de bosta humana. Ele caminha, se enoja e desvia e segue seu caminho, muito
incomodado pelo que v. A mim me parece um sonho que exige delicado trabalho, de modo
que me calo e espero o que vem. Josu me pergunta se o sonho pode ser premonitrio, uma
217
vez que o que ele ouviu em confisso hoje se aproxima bastante do sonhado. Confirmo para
ele que essa , sim, uma possibilidade que no devemos jogar fora, mas que seria melhor
considerarmos as cagadas humanas (ou os prazeres humanos, uma vez que a defecao um
ato prazeroso que deixa rastros) das quais ele tem que se desviar. Logo depois de minha
observao, Josu comea a falar da dificuldade sexual que vive, da dificuldade que prev na
escolha pelo celibato e volta a mencionar as tantas experincias sexuais que teve durante sua
vida sacerdotal.
A conversa caminha em um questionamento acerca da necessidade de intimidade, pois
Josu se queixa da solido que a vida de um padre. Trabalhamos no sentido de lembrar que
todos ns temos a necessidade do amor, o qual pode se expressar atravs do sexo, ou no. Se a
sua escolha pela vida celibatria, isso no o deve impedir de procurar ter pessoas eleitas,
pessoas com quem possa compartilhar de corao aberto as vivncias, as reflexes e as
emoes que tem, ou seja, mesmo celibatrio ele precisa ter vivncias de intimidade.
Conversamos um pouco sobre como isso um problema importante para a maioria dos
padres, para, depois, questionarmos como ele est vivendo esse problema. Procuro incentivlo a que tente desenvolver um pouco mais a habilidade de se relacionar mais intimamente com
pessoas, pois penso que, fazendo isso, diminui-se o risco de uma vida sexual promscua,
embora no diminua a possibilidade de uma vida sexualmente ativa. Para no perdermos o
foco de nosso trabalho, discutimos um pouco sobre como a conquista do amor facilita a
conquista do poder/posso.
Na sesso seguinte, Josu aparece no consultrio acompanhado de seu bispo, que fazia
uma breve passagem por So Paulo e decidiu vir me conhecer. Conversamos os trs em minha
sala por aproximadamente uma hora, perodo no qual quem mais falou foi Josu. Ele contou
ao bispo um pouco do que tem passado em So Paulo, de como tem vivido a terapia, das
melhoras que sente ter conseguido a partir do trabalho teraputico. Fala de maneira ansiosa,
parecendo querer agradar ao bispo, preocupado em deixar o mais explcito possvel sua
gratido pela acolhida e pela ajuda que o bispo lhe deu e d na soluo de seus problemas
mais urgentes. O bispo mais ouve e pouco fala, tambm pouco pergunta quando me coloco
sua disposio para eventuais esclarecimentos ou sugestes. Tambm ele, o bispo, conta um
pouco do que foi vivido na diocese, conta alguns dos problemas que ainda enfrenta por l,
num tom muito mais de quem conversa entre amigos do que em uma situao profissional.
Devagar, o bispo, com muita habilidade, conta a Josu de algumas das repercusses de seus
atos em sua cidade, fala para Josu da preocupao do conselho da diocese com o bem-estar a
longo prazo de Josu, e traz tona a notcia que parecia estar preparando com aquela conversa
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tranqila e aparentemente pouco profissional: o bispo comunica a Josu que foi resolvido que
ele no voltar to j para sua diocese. Por uns dois ou trs anos, Josu dever prestar servio
em uma outra diocese, em outra na regio do Brasil, muito distante de sua famlia e de seu
ambiente de origem. Um padre dessa diocese ir para a diocese de Josu, numa troca por
alguns anos.
Josu recebe a notcia com mal disfarada frustrao, faz um esforo enorme para se
mostrar aceitador, mas, ao menos para mim, visvel sua dor. Em nenhum momento, Josu
diz algo ou faz algum gesto ou expresso facial que possa desgostar ou desautorizar seu bispo.
O mximo que se permite perguntar sobre a possibilidade de eventualmente visitar sua me,
apesar da enorme distncia que os separa. O bispo lhe promete que em menos de um ano
poder fazer uma visita rpida a sua terra natal. Para completar o anncio dos planos da
diocese para Josu, seu bispo nos informa que Josu dever se apresentar na nova diocese em
agosto, o que determina que nosso processo teraputico dever ser finalizado na ltima
semana de julho deste ano. Argumento que, uma vez que Josu estar em um estado prximo
a So Paulo, eu gostaria que ele viesse ter comigo uma vez por ms, ao menos at o fim desse
ano, proposta que imediatamente aceita pelo bispo e por Josu. Finalizando a entrevista,
pergunto aos dois clrigos se querem abordar algum outro assunto, e, diante da negativa deles,
dou por encerrado esse encontro. Acompanho-os at a rua, e me surpreendo em perceber que
ambos vieram ao consultrio e voltaro daqui de nibus, na hora do maior movimento, atitude
que eu no esperava de um bispo catlico. Antes de sair, Josu me comunica que estar em
um curso na semana seguinte, de modo que faremos mais um intervalos em nossas sesses,
retomando quinze dias depois da visita do bispo.
Na sesso de volta, Josu traz um sonho muito interessante e que nos ajudaria a fechar
algumas gestalten importantes em sua vida. Depois de contar sobre o curso, comandado por
religiosas (irms) psiclogas, e depois de lamentar a resoluo de seu bispo, que o obrigar a
adiar seus planos de voltar para sua terra, Josu me diz que teve, na semana em que fazia o
curso, um sonho que o espantou muito e que guardou para me contar. Na verdade, ele traz
apenas um trecho de um sonho, como costuma acontecer com os sonhos que se trabalham em
psicoterapia. Nesse trecho do sonho, Josu est em uma zona rural, na qual h uma chiqueiro,
dentro do qual o fazendeiro prendeu uma cobra imensa, que est l para proteger o chiqueiro,
ao mesmo tempo em que est presa. Algumas pessoas alimentam essa cobra com vegetais, os
quais ela devora com bastante fome. Josu se espanta diante da boa vontade com que as
pessoas alimentam a cobra e com a voracidade com que ela aceita e digere a comida, na qual
h bastante mandioca descascada. Josu se aproxima da cerca do chiqueiro e sente que a
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cobra olha furiosamente para ele. Ele passa a tambm olhar com raiva para ela, provocando-a
ao mesmo tempo em que tem medo de que ela aceite a provocao. Ficam um tempo se
olhando, at que ele sai do lugar e acorda.
Tentamos trabalhar os sonhos por todos os caminhos que nossa inspirao indicou.
Pesquisei sobre suas associaes, tentei incentivar um dilogo com a cobra, pesquisamos os
outros elementos do sonho, os sentimentos nele contidos, mas pouco caminhamos na
compreenso desse sonho. Josu dava ao sonho uma importncia muito grande, acreditando
que, pela vividez com que o sonhou, haveria ali alguma informao muito relevante.
Passamos praticamente toda a sesso na tentativa de compreenso do sonho at que, ao fim da
sesso, veio-me a imagem de um mito do folclore brasileiro. Perguntei a Josu se ele conhecia
a histria, e ele disse que sim, que quando criana lera e se assustara muito com esse mito,
mantendo at hoje e tambm naquele momento da situao teraputica um certo medo das
lembranas que a histria lhe trazia. Procurei explorar com Josu essas lembranas e as
situaes delas decorrentes no momento da terapia, mas, mais uma vez, pouco caminhamos.
Parecia-me que ele queria e no queria aproximar-se do contedo daquele sonho, e que a
histria da infncia tinha trazido Josu at o limite no qual ele poderia se aproximar da Cobra
Norato naquele momento. Por isso, propus a ele que pesquisssemos na internet uma verso
completa dessa histria, para voltarmos ao assunto na prxima sesso, trs dias depois.
Ao reler o mito de Cobra Norato, logo me chamou a ateno a relao de Norato com
sua irm, Cobra Caninana. Lembrei-me de que Josu havia se referido a um problema com
sua irm mais velha, quando ele ainda era um garoto de ginsio. Na autobiografia que
escrevera para mim, Josu anotou o seguinte sobre esse episdio de sua vida: na 6 srie,
meus pais vo para uma plantao mais distante. Fiquei na casa de uma prima, estudando. Foi
difcil, pois tinha que trabalhar de dia e estudar noite. Era como um empregado na casa. Um
detalhe: nesse perodo minha irm mais velha que tambm morava na cidade fugiu com um
rapaz, a contragosto dos meus pais. A foi uma confuso. Fui proibido de falar com ela e meus
pais a desprezaram, indo para a plantao.
Decidi que, se possvel, exploraria, na prxima sesso, a histria de Josu com sua
irm, pois a mim me parecia que poderia haver por a algo a ser trabalhado. Por coincidncia
ou sincronicidade, Josu iniciou a sesso de uma maneira que no me lembro de j ter feito
antes ele chegou, sentou-se e me disse a seguinte frase: Pois , nio, hoje estou vazio, sem
assunto nenhum, nem sei do que podemos falar. Logo ele, em geral to loquaz. Pergunteilhe, ento, se eu poderia propor um assunto, no que tive rpida anuncia. Propus que
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conversssemos um pouco sobre sua irm, e Josu aceitou a proposta. Perguntou-me por onde
comear e eu lhe pedi que me apresentasse sua irm mais velha.
O que se sucedeu a partir da foi uma sesso daquelas praticamente impossveis de se
colocar no papel de forma prxima ao vivido. Mesmo a mais treinada memria de terapeuta
se sente insegura ao tentar relatar a situao vivida: no h dvidas de que delicados e
importantes detalhes se perdero ao trazer o acontecido em terapia para o papel. Escrever
sobre uma sesso teraputica uma atividade inevitavelmente esvaziada dos sentimentos e
sentidos experimentados no correr do encontro teraputico, por mais que se tente trazer para
c uma leve tonalidade do que aconteceu l. Por dever de ofcio, trao um panorama sobre
como se seguiu aquela sesso, consciente de que desenharei garatujas tentando representar
uma paisagem impactante.
Josu contou-me, a princpio, um pouco da histria de sua irm. Disse-me que ela se
apaixonou pelo filho de um pastor protestante, um amor que no foi aceito pela famlia dela.
Insistente, ela acabou por sair de casa para morar com seu amado. Envergonhada, sua me
resolveu deixar a cidade e levar quase toda a famlia para uma plantao, da qual o pai de
Josu era capataz. O nico que no foi com a famlia foi Josu, que ficou morando na casa da
famlia, agora emprestada para um casal de tios dele. Com poucos dias, a convivncia tornouse insuportvel, pois, segundo Josu, a tia o maltratava demais. Ento, como alternativa, Josu
foi morar com uma prima, em outra casa, tornando-se, na prtica, o empregado da prima.
Arrumava a casa diariamente, ia no aude buscar gua duas vezes por dia, capinava e
mantinha sempre limpo um quintal imenso, cuidava das filhas da prima enquanto ela
trabalhava, e ainda tinha que estudar de noite. Lembra-se de muito sofrimento nessa poca, de
praticamente no ter muda de roupa, de perder noites e noites de sono tentando entender o
porqu de ter sido deixado para trs quando toda a famlia se mudou, mas, principalmente,
lembra-se da imensa dor de ver a irm pelas ruas da cidade e no poder sequer conversar com
ela, pois havia sido proibido pelos pais de ter qualquer contato com a irm, justo a nica irm
mais velha, sete anos mais velha do que ele, praticamente sua segunda me, a irm mais
amada.
Quando Josu chegou nesse ponto do relato, coloquei uma cadeira vazia na sua frente
e lhe sugeri que conversasse com a irm, que lhe contasse do seu sofrimento por no poder
falar com ela. O que se seguiu eu no sei descrever. Josu iniciou um dilogo profundo e
sentido com a irm, fazendo o revezamento de papis to clssico no exerccio da cadeira
vazia em Gestalt-terapia de uma maneira to espontnea que nem parecia que aquela era a
primeira vez que fazia esse tipo de experimento. Em certo momento, tomado de emoo,
221
Josu comeou a dizer que perdoava a irm, no que me pareceu ser uma evitao da raiva que
transparecia em sua expresso. Pedi-lhe que se concentrasse no que sentia e que dissesse
irm somente o que estava sentindo verdadeiramente (nesse momento eu pensava que havia
em Josu um medo de se entregar raiva, sentimento com o qual a moral catlica costuma
lidar de maneira to ambgua). Josu ficou em silncio por alguns instantes, e logo reiniciou o
experimento dizendo irm de sua dor e de sua ira. Na posio da irm, externou a raiva por
ter sido abandonada pela famlia quando buscava apenas viver sua paixo pelo homem com
quem acabou por se casar e com quem se mantm casada at hoje, tendo trs filhos e o mesmo
nmero de netos. Da troca de raiva, o dilogo de Josu evoluiu para troca de compaixo,
terminando em um pranto cheio de perdo verdadeiro e de reconciliao profunda. Depois
que terminamos o experimento, e depois que se recolheu um pouco em si, depois que pde
respirar com mais liberdade, Josu comentou: nio, como eu gostaria de poder falar com a
minha irm agora! Eu tenho certeza de que ela adoraria saber o que eu tenho para dizer a ela
agora. Quando sair daqui do consultrio, vou ligar para ela do primeiro orelho que encontrar,
s para dizer o quanto a amo!
Mais tranqilo, Josu retomou sua histria e me contou em impressionantes detalhes
tudo o que passou naquela poca, provavelmente um dos perodos de mais sofrimento de sua
vida. Ele contava ento com 12 para 13 anos de idade, incio de puberdade, incio dos
primeiros amores, incio do contato com a sexualidade. Josu detalhou como foi duro deixar a
casa onde morava por no suportar mais os maus-tratos da tia, contou como lhe era dolorido
passar em frente casa diariamente a caminho da escola e pensar que no podia sequer entrar
mais na casa que fora sua, contou como sofria na casa da prima e como foi difcil estudar e
aprender alguma coisa em meio a tantas emoes dolorosas. Emocionado, como que
derrubando para reconstruir sua histria, ele contou-me de uma festa junina na escola, na qual
no teve coragem de danar com a menina que amava porque sua nica camisa estava muito
puda. Contou-me de como, na frias, seu pai o levou at uma plantao, onde o deixou aos
cuidados de uma outra tia, por trs meses. Chorando, ele relatou de como foi sofrido ver o pai
se afastando na estrada, e ele ali, com a solido do mundo, s podendo chorar e se esforando
para que as lgrimas no o impedissem de ver o pai cada vez mais longe. Em sua cabea, s
uma pergunta: por qu? Por qu? Por qu, meu Deus? A tia o abraou e o levou para tomar
um caldo.
Nova imerso em si, mais momentos de silncio criativo, de novo Josu retoma seu
relato daquela poca, agora fazendo mais conexes com o momento atual. Conta-me da volta
da me, mais de um ano depois da sada, conta-me de uma srie de detalhes que no vou
222
esmiuar agora, mas dos quais quero destacar trs. O primeiro diz respeito irm, hoje
reconciliada com a famlia e ainda casada com o filho do pastor com o qual fugiu de casa. As
famlias se freqentam e se respeitam, tendo at havido uma certa ocasio em que Josu e o
sogro da irm rezaram juntos um culto ecumnico. Josu atribui ao sofrimento dessa poca,
nunca antes dividido com ningum, a semente do medo, que at hoje carrega, de enlouquecer.
Na sesso, relata que percebe que esse medo se desvaneceu em parte. Tambm diz que
acredita ter sido a partir dessa poca que comeou a se sentir sem foras para exercer seu
poder na vida. Josu acha que viveu tanta fragilidade nesse perodo de sua vida, que acabou
por se sentir frgil para sempre. Para ele, esse perodo foi to marcante que acabou por
determinar os tantos nos que ele no disse ao longo de sua vida, o no ao extortor, o no
nomeao para reitor do seminrio quando no se sentia apto para o cargo, o no a alguns
mdicos e a alguns medicamentos, o no a muitas outras coisas e situaes vividas em
impotente silenciar e acatar.
Como ltimo questionamento na sesso, Josu diz no entender at hoje porque s ele
no foi com a famlia. Eu lhe digo que possvel que seus pais o tenham deixado porque ele
era o nico filho que freqentava a escola na poca, de modo que esse abandono, embora
dolorido, talvez tenha sido motivado por um desejo de que ele progredisse na vida, uma vez
que seu desempenho na escola sempre foi bom. Josu acredita na plausibilidade dessa
hiptese e parece se aquietar melhor na reconstruo que faz de seu passado nesse momento.
Terminando a sesso, Josu diz sentir um alvio nunca experimentado antes. Sugiro a
ele que se aposse dessa sensao e que a guarde carinhosamente em sua memria como mais
uma possibilidade conquistada.
Na sesso seguinte, alguns dias depois, como se poderia esperar, Josu faltou. Entendo
que ele ainda precisava de mais um tempo para digerir tanta reconstruo.
Na prxima sesso, Josu continua seu processo de reconstruo de seu passado e me
conta histrias familiares. Pela primeira vez fala mais longamente sobre seu pai, conta como
cada irmo, fala de sua me e de todas as relaes familiares, refere-se a saudades da famlia e
de sua terra natal. Eu me transformo em um terapeuta-ouvido, inspirado no terapeuta elefante
de Paulo Barros4. Ouo interessadamente o que ele me conta e fao pouqussimas
intervenes, pois, no meu modo de ver, ao me contar sua histria, Josu ainda est reagindo
ao vivido no trabalho com a cadeira vazia. Percebo que sua fala mais pausada, que sua
4
Talvez exista uma lenda, em algum lugar da frica, contando que os elefantes sabem escutar as
pedras, e que inclusive sabem identificar no meio de um monte de pedregulhos em qual deles est preso um
menininho. Podemos procur-la. (Barros, 1994, p. 30)
223
respirao mais tranqila, que seu tom de voz mais suave. Imagino que estejam
acontecendo algumas transformaes em Josu.
No dia da sesso seguinte, houve um srio acidente em So Paulo e todo o trnsito da
cidade ficou catico, de modo que Josu no conseguir nibus para vir a tempo para a terapia.
ele me telefonou do terminal, dizendo que estava l h muito tempo e que no apareciam
nibus. Lamentamos sua falta e combinamos o horrio para a semana seguinte, pois haveria
jogo da copa do mundo e tivemos que trocar o horrio da sesso.
Na prxima sesso, Josu ainda fala um pouco da famlia, mas logo entra em novo
assunto: diz que quer questionar seus valores. Comea questionando novamente sua
sexualidade, falando de sua esperana de conseguir manter o celibato, embora no concorde
com ele. medida que a conversa avana, eu comeo a temer que Josu queira que eu me
posicione em algumas questes, como forma de ter um referencial. Temo que ele possa no
encontrar seu prprio caminho e queira que eu lhe d um caminho. Mantenho-me, ento,
cauteloso. Cuido intensamente para question-lo no sentido de que ele se posicione e procure
em si seus prprios referenciais. Ele entra, ento, por um terreno terico e, praticamente, me
d uma aula (muito interessante) de teologia. Aos poucos, vou pedindo a ele que perceba
como se sente, como seu corpo reage quando trata dessas questes tericas. Minha inteno
que ele faa uma ponte entre o terico e o vivido, para se posicionar mais claramente e com
mais sustentao ante os valores que discute. Quero ser facilitador para que Josu possa
reencontrar o centro de avaliao que um dia teve e ao qual renunciou em parte, numa
tentativa de receber amor, aprovao e considerao (cf Rogers, 1977, p. 15 - 19).
As duas prximas sesses transcorrem no mesmo tema. Josu quer descobrir seus
prprios valores, quer ser um sacerdote crtico. Comenta questes importantes da vida
consagrada, relata com intensidade as angstias que sente quando tem que aconselhar algum
fiel e sente que alguns de seus valores so diferentes de alguns dos valores da Igreja. Conta
de quantos sacerdotes que conhece que simplesmente ignoram as normas da Igreja e dizem
aos fiis o que pensam, para dizer que esse no o caminho que ele gostaria de seguir. Sua
busca por coerncia, e essa busca, ele sente, o leva a um caminho muito difcil, cheio de
pedras. Refere-se ao seu prprio sofrimento, especialmente nas questes ligadas
sexualidade, compreendendo que, de tanto querer negar sua sexualidade e sua autoorientao, acabou por viver aspectos muito sombrios e compulsivos da sexualidade. Contame que j h bastante tempo no se masturba em frente ao espelho, que no tem mais o desejo
de se mirar no espelho e que nem teria prazer se fizesse isso novamente. Com um ar de muita
satisfao, conta que se sente muito melhor ante sua sexualidade, sente que se apropriou dela
224
e entende que pode deixar de ser celibatrio quando quiser, que isso um problema que
compete a ele resolver, mas que pretende se manter celibatrio at quando puder, pois, se
sentir que no conseguir, pensa que, ento, ser melhor deixar de ser padre e buscar um outro
jeito de viver sua vocao. Eu entendo que Josu est se apropriando da escolha pelo celibato,
mesmo que no concorde visceralmente com ela. H uma qualidade diferente na vivncia do
celibato da maneira como ele se prope a viver agora. No h mais uma obedincia cega que
alimenta o sombrio e que um dia explodiu na vivncia de uma perigosa e danosa
promiscuidade, mas aparece com muita nitidez uma possibilidade de escolha que traz a
conscincia de um sacrifcio que tem sentido e que vale a pena, ao menos por ora. Nessas
sesses, percebo que mantemos dilogos muito profundos, nos quais tento me cuidar para no
atrapalhar Josu em sua busca de seus prprios valores. Isso no quer dizer que eu me
mantenha neutro, pois essa postura no cabe em um gestalt-terapeuta, mas, sim, que eu me
mantenho orientado por um valor muito importante: o cliente pode achar seu prprio
caminho, seus prprios valores e se orientar por isso; meu papel o de facilitar esse encontro,
de ser um catalisador de um processo que, de outra forma, aconteceria de maneira muito mais
lenta, talvez muito mais sofrida.
Josu me conta que sua me est internada em um hospital de uma capital da regio
central do Brasil e que ele deseja visit-la, pois no a v h mais de um ano. Pergunta-me se
haveria problema se ele faltasse a uma sesso por causa disso, e eu discuto com ele a
confirmao de suas necessidades e as conseqentes escolhas. Sinto-me alegre quando ele,
ento, decide que faltar para visitar a me, e ento eu lembro a ele que isso poder ser bom
tambm para ela, uma vez que, h algum tempo, ele me contou que a me tinha uma grande
preocupao sobre o estado de sade dele, especialmente com relao a problemas mentais.
Imagino que ser bom para ela v-lo com um jeito mais integrado do que ele era meses atrs.
Discutimos tambm o fim dessa fase do processo teraputico, pois j estamos no ltimo ms
do prazo dado pelo bispo para que Josu volte a suas atividades diocesanas. Ele ainda no tem
certeza de para onde ir e mantm uma tnue esperana de poder voltar para sua terra o mais
breve possvel, embora saiba que, por mais uns dois ou trs anos, ter que ficar aqui pelo
sudeste. Sugiro a ele que marque uma consulta com a psiquiatra, uma vez que preciso ter
orientaes dela sobre a continuao do uso dos medicamentos. Ele me conta que no tem
tomado um dos remdios e que tem se sentido melhor assim, ao que eu retruco que
importante que ele converse com a psiquiatra sobre isso. Ele me promete marcar uma consulta
com ela. Conversamos um pouco sobre o fim de nosso trabalho, e eu aproveito para lhe pedir
uma avaliao, por escrito, do vivido na terapia. Fao esse pedido principalmente por motivos
225
acadmicos, mas tambm com a esperana de que ajude Josu a fechar essa etapa do trabalho,
apossando-se ainda mais das tantas mudanas que conseguiu em to pouco tempo.
Na prxima sesso marcada Josu falta. Mais tarde, me telefona para explicar que
cochilou no nibus e passou muito do ponto onde deveria descer, indo parar em um longnquo
terminal, do qual retornou diretamente para casa, pois no chegaria a tempo para a sesso.
Na semana seguinte, nas duas sesses trabalhamos um comeo de despedida, uma vez
que est-se esgotando o prazo de nosso trabalho. Josu fala muito das saudades de sua terra,
especialmente preocupado com a doena de sua me. Relata tambm sua esperana quanto ao
trabalho que imagina que desenvolver na diocese para a qual ser designado, mas relata
tambm sentir um certo desejo de ficar por So Paulo, uma vez que tem feito bons contatos
por aqui. Fala de alguns trabalhos que tem feito, especialmente daqueles para algumas pessoas
muito ricas e conservadoras de So Paulo. Relata tambm contatos com colegas de sua cidade
de origem, os quais lhe trazem boas notcias.
Na semana seguinte, no fazemos nem uma sesso. Josu viaja para ver a me e passa
por l toda a semana. Quando retorna, est animado, satisfeito pela melhora da sade da me,
mas especialmente satisfeito por ter podido rev-la e lhe mostrar que passa bem e est
superando as dificuldades emocionais que enfrentou. Conta que esteve com a irm, que fazia
companhia para a me, e que conversaram muito, de maneira muito ntima, de maneira que j
no h segredos para a irm a respeito de todo o sofrimento que Josu passou at o ano
passado. Ele se diz feliz por ter notado a empatia e a compreenso da irm, alm da falta de
preconceito dela quanto sua orientao sexual. Minha postura, mais uma vez, de ouvir e
acolher, uma vez que no me parece que estamos em momento de aprofundar a psicoterapia
em novos temas, como, por exemplo, a dor que, me parece, ele evita trazer conscincia
quando fala dos muitos meses que espera ficar sem ver a famlia, por causa do alto custo da
viagem que teria que empreender para passar alguns dias em casa.
Nessa semana, fazemos apenas uma sesso, uma vez que eu viajo para dar um curso
em outro estado. Quando volto, encontro Josu irritado, sentindo-se perseguido, pois soube,
atravs de um e-mail de um amigo, que foi aventada a possibilidade de que ele voltasse para
sua cidade imediatamente, mas que tal possibilidade foi recusada pelo conselho presbiteral
porque h l quem desconfie que Josu ainda esteja dando dinheiro ao extortor. Conta o
amigo que um dos motivos para a suspeio foi o fato de Josu ter pedido cem reais
emprestados a um colega padre de l e ter demorado quase dois meses para pagar o valor.
Percebo que, ao manifestar sua irritao, Josu deflete e sorri. Aponto para ele essa
minha percepo e, a partir dessa conscientizao, Josu faz uma srie de interessantes
226
associaes com momentos em que teve dificuldade para demonstrar seus sentimentos.
medida que vai falando, vai permitindo que a raiva se apresente mais claramente, vai falando
com voz mais firme a respeito de como se sente injustiado ante essa suspeio, vai deixando
que todo o seu corpo transpire indignao. Pergunto-lhe se est se dando conta de como est
se sentindo e se manifestando, e Josu refere ter plena conscincia de que est deixando sua
raiva ser, e que sente isso como muito bom, pois lhe d boa sensao de poder. Ainda
atento e confirmando sua indignao, Josu mostra e relata tambm uma certa alegria por se
permitir sentir essa raiva e por poder se permitir imaginar maneira de coloc-la a seu servio.
Aproveita para contar que escreveu longa carta ao bispo, na qual, com delicadeza e cuidado,
solicita um posicionamento da diocese quanto sua situao e sugere algumas alternativas
que tem em So Paulo, caso sua transferncia para o outro estado no se concretize. Diz que
est espera de uma resposta de seu bispo. Terminamos a sesso em um bom clima de
acolhimento para a raiva, que Josu leva embora consigo, em graciosa e elaborada sintonia.
O tema da sesso seguinte foi a incerteza de Josu acerca de para onde ir, uma vez
que seu bispo ainda no se posicionou a respeito. Essa demora de posicionamento por parte
do bispo no rara em casos assim, segundo mostra minha experincia clnica e a de outros
colegas que atendem clrigos. Tal demora se d especialmente quando a razo do
encaminhamento teraputico se deve a comportamentos desabonadores ou escandalosos. Por
causa disso, torna-se bastante comum que se converse em terapia sobre pontos referentes ao
retorno e reinsero no dia-a-dia de padre, com todas as suas circunstncias, pois, fcil
imaginar, no pouca a ansiedade e a sensao de desconsiderao que tendem a ser geradas
por tal atitude dos superiores eclesisticos do padre.
No fim de semana, recebo uma consulta informal do bispo de Josu, atravs de um
outro padre, tambm psiclogo, sobre a possibilidade de Josu voltar a trabalhar em uma
parquia. Respondo que a mim me parece que ele est em plenas condies de voltar ativa e
que essa volta, ainda sob meu ponto de vista, ser-lhe-ia bastante teraputica.
Comeo a prxima sesso relatando a Josu sobre a consulta que recebi e da resposta
que dei. Isso parece agrad-lo, mas esse assunto no progride, uma vez que Josu diz estar
sem assunto, sem ter muito o que discutir nessa sesso. A princpio, ele conversa sobre
generalidades, at que engata em um tema difcil: o medo de no conseguir se adaptar ao novo
lugar que lhe ser designado. Fala tambm da culpa que ainda sente relativa extorso a que
cedeu e conta como tem elaborado essa culpa aos poucos e cada vez com mais aprendizagem.
Na prxima sesso, ele volta ao assunto. Fala longamente sobre temores quanto ao que
pode fazer em uma nova diocese e eu o incentivo a que coloque luz todas as suas
227
expectativas catastrficas, para que as examinemos. Aos poucos, ele diz que sente crescer
importante saudade de sua diocese, e ns passamos a nos dedicar a este sentimento. medida
que penetra no sentimento e relata histrias de sua diocese, Josu se aproxima da histria da
extorso a que cedeu. Faz longas elaboraes, tentando se compreender e perdoar, e termina a
sesso com a seguinte fala: eu errei, mas hoje sei que no sou aquela pessoa m, mau
exemplo, que cheguei a pensar que era.
Na sesso seguinte, nova falta. Na semana seguinte, mais uma sesso profunda, cheia
de sentimentos e de elaboraes consistentes, cujo tema principal a mentira. Josu critica
sua formao, na qual foi-lhe ensinado que era possvel viver a santidade, o que lhe dificultou
demais a lida com as frustraes inerentes vida. A pergunta que faz a seguinte: se a
santidade no possvel, qual , ento, o limite? Como ser humano e padre? Entendo que, ao
fazer questes to profundas de maneira to clara e corajosa, Josu est se apossando de sua
padrice, est se dando conta e vivendo importante posse de um aspecto crucial de sua vida, a
vocao sacerdotal.
Na sesso seguinte, duas semanas depois (Josu faz novo curso de uma semana, fora
de So Paulo), Josu retoma seus questionamentos e rev, mais uma vez, o que viveu de mais
difcil com relao sua sexualidade e extorso de que foi vtima. Esse movimento, para
mim, , nitidamente, uma movimento de reconstruo. Ele volta aos assuntos, mas de um
outro ponto de vista e em busca de um outro horizonte. Reescreve sua histria ao mesmo
tempo em que se apropria novamente dela, ao mesmo tempo em que se reapossa de si nela.
A prxima sesso vazia, com exceo de seu final, quando Josu questiona a demora
do bispo em lhe dar um posicionamento sobre seu futuro. J avanamos sobre setembro e a
transferncia, que deveria se dar no incio de agosto, ainda no foi definida. Pergunto-lhe
quanto terapia, pois nosso contrato era de finaliz-la em agosto. Ele diz que quer continuar
enquanto no se define sua situao, quer aproveitar para se explorar um pouco mais, at que
seu bispo lhe diga para onde ir. Combinamos reduzir o nmero de sesses semanais, como
forma de fazer lenta despedida. Em setembro, trabalharemos uma vez por semana; em outubro
em novembro, se Josu ainda estiver em So Paulo, passaremos a nos encontrar
quinzenalmente. Josu decide escrever carta ao bispo, pois se ele (o bispo) no se posiciona,
que me posicione eu!.
Ficamos, novamente, quinze dias sem nos vermos, pois Josu faltou primeira sesso
semanal. Na prxima sesso, Josu volta s elaboraes sobre o que viveu, fazendo-me
imaginar que s agora ele pode verdadeiramente compreender o que passou. Seu relato e suas
elaboraes tm uma outra qualidade, uma outra profundidade e uma densidade quase
228
palpvel. Termina a sesso afirmando que muito bom no precisar mais ficar olhando para
o cho a cada vez que vou conversar com os outros. No tenho mais vergonha de mim!
Na sesso seguinte, Josu traz a notcia de que seria nosso ltimo encontro, pois sua
transferncia foi efetivada e ele dever viajar na mesma semana. Ao todo, desde janeiro,
foram feitas, efetivamente, 45 sesses, em aproximadamente 10 meses. Marcamos um retorno
dentro de cerca de dois meses, para nova avaliao do trabalho feito e das condies de vida
de Josu. Ele me promete enviar por e-mail sua avaliao do trabalho feito at aqui, o que
efetivamente faz no dia seguinte. Transcrevo abaixo o que ele escreveu.
Como na maioria dos casos de psicoterapia de curta durao, minha sensao ao
trmino do trabalho um misto de tristeza e de satisfao. Tristeza, at uma certa frustrao,
porque, mesmo diante do sucesso obtido ao longo do trabalho, haveria mais contedos a
serem explorados, mais crescimento a ser alcanado, se pudssemos continuar a psicoterapia
por mais tempo. Satisfao porque a pessoa que terminou o trabalho no a mesma que o
comeou. Satisfao tambm porque agora Josu tem outra possibilidade para continuar sua
caminhada e mesmo capaz de fazer as mudanas que eu imagino ele faria com o auxlio de
uma psicoterapia mais longa (como garantir que s se cresce atravs da psicoterapia?). Mais
que tudo, no entanto, fica em mim, o psicoterapeuta, a enorme confiana na eficcia
teraputica da psicoterapia de curta durao de fundamentao gestltica.
Segue a transcrio do e-mail em que Josu fecha seu atendimento:
Prezado nio: depois de muita luta segue o texto que te prometi. Eu acho pobre,
mas entrego assim mesmo. Um abrao, Josu.
229
imagens
minhas
em
cenas
altamente
erticas
com
jovens.
Reconheo
minha
homossexualidade e que realmente mantive relaes sexuais com rapazes. Mas o certo que
as ditas imagens nunca apareceram. Eu pagava para no ser descoberto. No fundo com medo
de um escndalo e pressionado, fui entrando num poo bem profundo e sem sada. Por isso
precisava de ajuda. Tudo ficou mais agravante, porque trabalhava no Seminrio na formao
de seminaristas e tambm no busquei ajuda das autoridades (bispo, padres e amigos).
No incio da terapia, estava muito confuso, deprimido e estressado. Na minha mente
fervilhavam milhes de sentimentos, pensamentos negativos e preocupaes que tiravam a
minha paz interior e exterior. Pensava na repercusso dos ltimos acontecimentos, no que
iam dizer de mim e em muitas coisas negativas.
Para ser totalmente sincero, narrei ao psiclogo sobre algumas doenas mentais de
alguns dos meus parentes. Todos do lado paterno (avs, tios, tias, primos (as).)
O psiclogo achou por bem que fosse consultado por uma psiquiatra. A psiquiatra
sabendo do meu histrico mdico e familiar receitou-me alguns medicamentos que ajudaram
a tranqilizar-me.
Na terapia com o psiclogo, comeamos a trabalhar o aspecto do poder presente
em todas as pessoas e tambm em mim e o modo de usar esse poder para enfrentar as
situaes da vida. No um poder opressor, dominador, mas um poder pessoal, interior, para
me livrar das preocupaes e influncias destrutivas que me cercavam.
Hoje, vejo que existe um poder capaz de dominar o medo, as inseguranas, as
incertezas. Alm do poder pessoal, tenho o poder sacerdotal de ministro ordenado que me foi
conferido e para ser usado para o meu bem e o bem dos outros
Este poder grande e a medida que sei trabalh-lo em minha vida, ele vai me
proporcionar firmeza, solidez e encorajamento.
Claro que no sou o todo poderoso, mas Deus me concedeu meios para me libertar
de situaes de tristeza, desnimo e inferioridade. Digo para mim a cada dia: exerce o
poder que tu tens, para no ser mais amedrontado, perseguido e esmagado por ningum!.
Reafirmo que o trabalho com o psiclogo foi de grande importncia para perceber todo esse
poder que est dentro de mim.
Um outro aspecto trabalhado foi sobre o medo. Por que isso? Existia em mim, um
medo muito grande de que o fulano que me chantageava mostrasse as pseudo-imagens que
dizia possuir; tinha medo que o bispo soubesse da minha tendncia e do meu comportamento
230
sexual, do que fiz; tinha medo da rejeio das pessoas ao saberem da minha situao; tinha
medo de escndalo e por fim de tudo.
Na terapia, fui orientado a no sofrer por antecipao. A encarar os fatos como tais e
erguer a cabea, mesmo sabendo que errei. E fui me conscientizando que muitos dos
acontecimentos j eram conhecidos por muitas pessoas. Por que eu temer do que j se
sabia? Estava me enganando. E alm do mais, o medo leva a outras centenas de problemas:
insegurana, baixo-estima, desconfiana, fuga, temor, incertezas, etc...
Agora encaro os fatos com naturalidade e no tenho mais aquele medo apavorante de
antes, que me atormentava, dia e noite. Era um inferno!
Como sou sacerdote, fui ajudado a trabalhar os valores na minha vida. O que
realmente valor e como classificar esses valores. Percebi que devido a tantos tormentos
e descaminhos que vivi e passei, at a vocao sacerdotal que um dos grandes valores da
minha vida estava ficando de lado. No valorizava-o na medida certa. Fiz uma grande escala
de valores e a cada dia vejo os que so mais vividos, os mais fortes e procuro viv-los.
Tambm
respirar pude controlar minha ansiedade que estava a mil por hora quando iniciei a terapia.
Tambm fiz leituras afins e outras meios. Tambm os exerccios de relaxamento fsico e
mental tem me proporcionado mais tranqilidade e percepo de mim mesmo.
Atravs de alguns exerccios de recordao do meu passado pude me reconciliar e
perdoar minha irm mais velha, por circunstncias que nos separaram e fui separado da
minha famlia (pai, me, irmos).
De todo esse acompanhamento psicoteraputico que fiz com o nio, fica uma certeza:
jamais voltaria a minha normalidade sem ele. Minha mente, meus olhos foram abertos para
situaes to simples, mas que precisavam ser ajudadas.
A resistncia s chantagens que ainda continuaram quando iniciei a terapia, s foi
possvel graas insistncia, teimosia e apoio do psiclogo. claro que meu bispo e colegas
padres tambm me ajudaram.
Sei quem eu sou: um padre, com tendncia homossexual que vivi desregradamente a
prtica da homossexualidade e isso me trouxe problemas, angstias e tristezas. Justamente
por ser uma pessoa pblica. Agora sei que posso conviver com essa tendncia, trabalhando
meu auto-conhecimento, minha auto-estima, meu poder pessoal e vivendo meu celibato.
231
A terapia serviu para que me descobrisse, mesmo sendo padre, como um homem
normal, com fraquezas, com desafios como qualquer outra pessoa e com capacidades de
superar esses desafios, no sozinho, mas contando com ajuda de profissionais e amigos. Sei
que no estou e nunca estarei totalmente imunizado de desejos e vontades, afinal sou
humano. Pois quem humano deseja e quer realizar os desejos e vontades. Mas agora posso
discernir e fazer escolhas sensatas, condizentes com meu estado de vida.
Olhando esses anos que passaram depois que fui ordenado sacerdote, percebo que as
situaes difceis pelas quais passei, foram frutos da auto-suficincia, orgulho, egosmo,
medo e desconfiana. Agora sei que, se precisar, sempre posso procurar ajuda para ser
orientado. No preciso resolver tudo sozinho.
Na situao em que estava, e encontrar pessoas como o Bispo, alguns padres,
religiosas, familiares, amigos e sobretudo o nio para me orientar, aconteceu uma mudana
de rota muito grande na minha vida. Sou grato a todos.
Sei que devo estar atento a muitos acontecimentos e situaes que ainda viro
minha vida, mas com tudo o que recebi poderei discernir o que melhor me convm.
Reafirmo com todas as letras que a terapia me fez e me faz muito bem e est fazendo
eu voltar a viver, como homem e sacerdote.
232
CONSIDERAES FINAIS
Tecer consideraes finais sobre um trabalho que me exigiu tanto um exerccio que
me parece dificlimo a princpio. fazer um balano de tanto que foi vivido, estudado,
elaborado, ousado e conhecido em um perodo curto demais. Nesse sentido, a confeco desta
tese se pareceu com o objeto de estudos dela, a Gestalt-terapia de Curta Durao. Abarcar
cuidadosamente um tema to amplo e com tanto a ser inovado e estudado em uma tese de
doutorado confeccionada em parcos trs anos e meio de estudos e de trabalho, guarda, em
certa medida, algumas semelhanas com um trabalho de psicoterapia de curta durao. H
muito feito, h verdadeiras conquistas a serem comemoradas e apossadas, e h tambm alguns
temas e possibilidades apenas levantadas, as quais exigiro continuidade e mais trabalho
rduo.
Essa tese teve dois alicerces: 1) um dedicado estudo terico e 2) uma experincia
clnica que no se limitou ao objeto de estudo. Como sou psicoterapeuta h mais de 27 anos,
as consideraes que fiz, especialmente nos captulos II e III, se desenvolveram baseadas
nessa longa vivncia em situaes teraputicas, de curta e de longa durao. Para os fins desta
tese, atendi diversos clrigos nos ltimos anos, a maioria dos casos com bom sucesso. Dessa
prtica, aliada a todo o arcabouo reflexivo que pude desenvolver neste estudo, nasce a minha
constatao da excelente possibilidade e qualidade do trabalho teraputico a partir da Gestaltterapia de Curta Durao. De fato, um campo novo que se abre para os gestalt-terapeutas,
no s para aqueles que se propem a trabalhar para os clrigos. Imprimi a esta tese a
qualidade da prtica clnica. Este no um trabalho s terico, mas um trabalho tambm
fundamentado na prtica cotidiana da clnica psicolgica. um trabalho voltado para aqueles
colegas que nutrem, como eu, o sonho de uma psicologia com saberes consolidados, mas no
rgidos, que facilitem ao ser humano uma maior conscientizao e, por vida disso, uma mais
significativa presena no mundo. Como se trata de uma tese voltada para a prtica e o
cotidiano do gestalt-terapeuta, decidi ilustr-la, apresentando um caso clnico.
Em uma psicoterapia de curta durao no se trabalham todas as questes do cliente,
ou seja, ningum traz para uma psicoterapia de curta durao todos os seus contedos, mas
apenas aqueles que se tornam figura e que demandam ateno no presente. Uma vez atendidas
e compreendidas essas figuras, elas se modificam e modificam o fundo. Em um processo
teraputico bem sucedido, essa modificao amplia para o cliente a possibilidade de mudar
com o tempo, ainda que, s vezes, o tempo que o cliente necessite para mudar extrapole o
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excitado a criar havia um ajustamento criativo a ser feito entre a abordagem gestltica e a
religiosidade humana e a religio humana. Dessa constatao nasceu o roteiro do primeiro
captulo desta tese.
Penso que foi fundamental para a organizao deste trabalho que ele viesse do campo
disciplinar das Cincias da Religio e no se baseasse somente da Psicologia: se eu no
tivesse mergulhado no estudo mais amplo do universo religioso e da cosmoviso religiosa,
no conseguiria limpar meu olhar dos matizes do preconceito contra a religio, um colorido
que to demoradamente implantei diante de mim atravs de anos de aprisionamento em um
certo psicologismo que teme o religioso. Este estudo que ora findo no poderia ser feito a
partir de um olhar que v a religio quase como que um defeito humano, um mecanismo de
defesa, uma simples sublimao de algo mais importante. Foi preciso que eu alcanasse a
coragem do cientista que duvida at de suas dvidas para que eu pudesse ver a religio e a
religiosidade como elas de fato so, um direito humano inalienvel. Um dado de humanidade.
A partir desse cuidado, um outro cuidado tambm essencial se imps: olhar para o
encontro entre a religio e a psicoterapia sabendo que ele no se d apenas atravs da evitao
dos contedos religiosos no processo teraputico, mas, pelo contrrio, esse encontro entre
religio e psicoterapia se d e frutfero exatamente atravs do contato com os aspectos da
religiosidade humana do cliente e do terapeuta no processo teraputico. Olhar para a
pertinncia desse encontro em psicoterapia traz algumas questes importantes e algumas
dificuldades intrigantes e provocadoras.
A maior dificuldade que encontrei ao elaborar meu olhar gestltico para a religio e a
religiosidade, foi como conciliar uma inerente religiosidade, que eu pleiteava para o ser
humano, com uma inerente necessidade e poder de liberdade, que valor essencial para a
Gestalt-terapia. Principalmente a partir do estudo de Pompia sobre a culpa, encontrei
respostas e correlaes que me satisfizeram e que apresentei no primeiro captulo, quando
discuti a paradoxal possibilidade da liberdade e da reverncia ante o mistrio. Nessa
apresentao da fundamentao gestltica para a compreenso da religio, penso que trilhei
algumas vias ainda inexploradas, abri algumas portas importantes, ao mesmo tempo em que
apontei outras para futuros estudos. O que desenvolvi nesta tese foi delimitado pela
necessidade maior da proposta que fiz: uma compreenso bsica da religiosidade humana que
me permitisse acolher de maneira mais competente aquela que julgo ser a principal
especificidade da clientela para a qual este estudo surgiu, ou seja, a religiosidade, fundamental
para a compreenso das pessoas de vida consagrada. Mesmo diante dessa limitao, de certa
maneira, sinto que rompi um tabu ao trazer para a figura a possibilidade de, a partir do
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entanto, de aprender com os psicanalistas aquilo que, no meu entender, pode e pde ampliar o
alcance e a competncia da Gestalt-terapia de curta durao. Em certa proporo, foi muito
interessante, ao enfocar esse possvel dilogo entre a Gestalt-terapia de curta durao e a
terapia breve, perceber que muitas das novidades descobertas e apresentadas como
novidades pelos psicanalistas que estudei, j estavam levantadas e discutidas em livros de
Perls das dcadas de 1950 e 1960. Igualmente interessante foi perceber que muitas das coisas
renegadas na Gestalt-terapia de incio por serem psicanalticas demais, voltam a ser discutidas
e retomadas como imprescindveis para o bom trabalho psicoteraputico. Acredito ter
contribudo para este dilogo com as consideraes que tracei nesta tese.
Durante toda a confeco do segundo captulo desta tese, estive particularmente atento
a demonstrar a viabilidade e a eficcia de um trabalho em Gestalt-terapia de Curta Durao
com fundamentao terica. Tive esta preocupao, em parte, para deixar claro que tambm a
Psicologia Humanista se sustenta em um arcabouo terico que fruto de constantes
questionamentos e revises, ou seja, h tambm na Psicologia Humanista uma sria
preocupao epistemolgica. Assim, volto a afirmar, esta tese foi escrita a partir de dois
referenciais estreitamente interligados: 1) um estudo terico sobre a abordagem gestltica e a
Gestalt-terapia de Curta Durao, bem como sobre a populao em questo; 2) uma prtica
clnica que orientou a busca terica ao mesmo tempo em que se orientava por ela. Durante
muito tempo a Gestalt-terapia foi vista como uma tcnica rica em experimentos e em
criatividade na situao teraputica, mas carente de cuidados tericos. Com esta tese,
demonstro a possibilidade e a necessidade de uma fundamentao terica bem discutida e
derivada de inquieta reflexo, que se combina com uma prtica clnica que no apenas
improvisao e intuio, mas, sim, constante dilogo entre o vivido e o refletido, o
experienciado e o rigorosamente inferido.
Neste segundo captulo, um dos temas mais polmicos e que me parece exigir ainda
mais aprofundados estudos o que diz respeito ao diagnstico em Gestalt-terapia. Defendi
neste trabalho um ponto de vista que sei ser delicado e que no desfruta de unanimidade na
abordagem gestltica. A partir de minha prtica clnica e dos estudos que tenho feito ao longo
de minha vida profissional, posicionei-me defendendo o uso do pensamento diagnstico
processual, somado ao DSM-IV, como uma tipologia, o que chamei de compreenso
diagnstica. Defendi tambm a importncia desta compreenso diagnstica como norteadora
do trabalho de curta durao. De fato, penso que todo o trabalho de curta durao depende de
uma boa compreenso diagnstica, de maneira diferente e mais delicada que o trabalho de
longa durao, como demonstrei ao longo do estudo que fiz.
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Alm do livro de Pimentel, o qual d uma abordagem introdutria ao tema, penso que
o diagnstico clnico precisa ser melhor conceituado e explorado em Gestalt-terapia. Entendo
que a compreenso diagnstica um valioso instrumento teraputico, que no merece ser
usado com tanta timidez, hesitao e impreciso como vem sendo feito pelos gestaltterapeutas, a julgar pelo que observo e pelas concluses de Pimentel em seu trabalho. Urge na
Gestalt-terapia uma certa uniformidade quanto a este tema to importante no trabalho
psicoteraputico. Cumpre frisar que defendo a necessidade de uma compreenso diagnstica,
ou seja, um diagnstico psquico, no apenas psicopatolgico, que leve em conta todo o
campo e que seja fundamentado no olhar fenomenolgico e holstico caracterstico da
abordagem gestltica, um diagnstico que d suporte para a postura humana e humanista do
gestalt-terapeuta em sua prtica clnica e em sua busca pela facilitao do desenvolvimento
das potencialidades humanas.
Uma vez clareado o instrumento, cumpria-me, finalmente, delimitar a clientela que eu
pretendia atender com esta tese. Embora j sejam vrios os trabalhos sobre a psicoterapia para
pessoas de vida consagrada, senti falta de uma melhor delimitao deste campo, de modo que,
a partir de minha prtica clnica, e escorado por diversos estudos sobre as pessoas de vida
consagrada, defini doze pontos nos quais noto diferenas entre o atendimento psicoteraputico
de leigos e o mesmo trabalho com pessoas de vida consagrada. Ao delimitar esses doze
pontos, no pretendi esgotar a diferenas; ao discutir esses doze pontos, no pretendi esgotar
as possibilidades de explorao de cada um deles. Embora eu tenha andado parte significativa
deste caminho, tambm aqui h questes a serem exploradas ainda.
Com a conscincia de que, se dispusesse de mais tempo, poderia explorar ainda mais
essa sensvel relao entre a psicoterapia e a prtica do ministrio catlico, quero deixar
registrado um dos pontos que, no meu modo de ver, ainda necessita de inmeros debates e de
mais detalhadas investigaes. Trata-se de uma possvel aliana tcita que se coloca entre a
Igreja (representada por quem encaminha o clrigo para a psicoterapia) e o terapeuta que
recebe o cliente. Quando o terapeuta se fundamenta em sua abordagem psicolgica em meu
caso, a abordagem gestltica muito possvel que se coloque, quanto a algumas importantes
questes, numa postura que vai de encontro a posturas da instituio catlica. Coloca-se a
pergunta sobre que conseqncias isso poderia ter sobre o processo teraputico, o que exige
profundos e extensos questionamentos, quase uma tese inteira de doutoramento, sobre as
implicaes desse aspecto no trabalho clnico. No terceiro captulo, especialmente quando
trato da considerao que o terapeuta deve ter para com a triangulao que se estabelece entre
ele, seu cliente e a Igreja, e tambm quando trato sobre o fato de que o terapeuta est a servio
239
do cliente, e no da Igreja, lano nova luz e aprofundo este debate, mesmo sabendo que de
maneira alguma pude esgot-lo, o que alis, no era, nem poderia ser, minha pretenso.
Enfim, se, como afirma Perls (cit. em Hycner, 1997, p. 75), o critrio de um
tratamento bem sucedido a obteno daquela quantidade de integrao que facilite seu
desenvolvimento ulterior, termino afirmando que a mais importante contribuio que
pretendi alcanar ao desenhar esta tese foi a de que ela seja, por um lado, uma confirmao da
excelncia da Gestalt-terapia de Curta Durao enquanto instrumento teraputico para a
populao alvo desta tese e para toda as pessoas que precisem de um atendimento
psicoteraputico de curta durao e, por outro lado, que esta tese seja facilitao para novos
desenvolvimentos, prticos e tericos, na Gestalt-terapia de Curta Durao e na psicoterapia
para pessoas de vida consagrada. Finalizo este trabalho com a sensao tranqila do dever
cumprido e com a clara compreenso de que ele no apenas um frutuoso porto de chegada,
mas tambm uma abertura para novas partidas.
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