Bairro Conjunto Favela As Construçoes Simbolicas Da Vila Kennedy Gizele Ravena PDF
Bairro Conjunto Favela As Construçoes Simbolicas Da Vila Kennedy Gizele Ravena PDF
Bairro Conjunto Favela As Construçoes Simbolicas Da Vila Kennedy Gizele Ravena PDF
Introduo
I.1 Escolhendo o tema
9
A partir de ento, iniciei uma breve pesquisa sobre a Favela do
Esqueleto, que contou ainda com a importante contribuio dos conhecimentos
de alguns colegas que estudaram na UERJ. A favela fora extinta durante o
governo de Carlos Lacerda3, na dcada de 60, numa poca em que as
remoes de aglomeraes populares desta natureza eram bastante comuns.
Neste perodo, lanou seu programa de remoo, cujo objetivo era eliminar as
favelas e transferi-las para outros locais, distanciando-as de reas como o
Centro e a Zona Sul da cidade. Para tanto, foi criada a Companhia de
Habitao do Estado da Guanabara (COHAB-GB), em 1962 e, contando com
verbas do governo norte-americano atravs da United States Agency for
Development (USAID) , foram construdos conjuntos habitacionais como as
vilas Kennedy, Aliana e Esperana, para onde foram removidos4 moradores
de dezenas de favelas da cidade. Para saber mais sobre a poltica de
remocionista de Carlos Lacerda, ver Valladares (1978).
A favela que recebera um nome to curioso, Esqueleto, foi formada
ainda nos anos 50, em volta do esqueleto de um prdio que seria o Hospital
das Clnicas da ento Universidade do Brasil. O hospital, no entanto, nunca foi
terminado e, em seu lugar, foi projetado o campus da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro/UERJ. O ano era 1964, data da remoo do Esqueleto,
poca em que Lacerda governava o ento estado da Guanabara. Neste
perodo, juntamente com os moradores removidos do Esqueleto, famlias de
outras doze favelas foram enviadas para reas distantes dos locais originais de
moradia, onde foram construdos os conjuntos acima citados.
10
Todas as favelas removidas durante o governo Lacerda tinham sido
formadas a partir de ocupaes de terrenos de propriedade dos governos
federal, estadual ou municipal. De acordo com dados extrados do Censo
Demogrfico de 1960, a infra-estrutura das favelas do ento estado da
Guanabara era precria em relao a vrios aspectos: abastecimento de gua
(22,36% recebiam gua em casa); luz eltrica (78,66% tinham luz eltrica
prpria ou puxada de terceiros); instalaes sanitrias (56,03% tinham algum
tipo de escoadouro) (Gomes, 2003: 23).
A lgica das remoes, neste perodo, mostrava-se profundamente
vinculada ao interesse de afastar o problema das favelas (Valladares, 2005).
Verdadeiros entraves conquista dos interesses do capital imobilirio e de
outros segmentos ligados classe mdia e s elites cariocas, as favelas
deixaram sua condio de invisibilidade para, com o passar do tempo, adquirir
contornos de problema, que, como tal, precisava ser solucionado ou, em outras
palavras, eliminado (Valladares, 2005). Assim, as prticas de remoo de
favelas foram adotadas com a inteno de liberar as reas valorizadas da
cidade ou mesmo as regies que tinham projetos de interveno urbanstica
como no caso do projeto de reconstruo do campus da UERJ, em uma rea
at ento ocupada pela Favela do Esqueleto. Remover, neste caso, significava
afastar a indesejvel presena das favelas (e dos favelados). E foi justamente
em uma rea bastante distante do centro e da zona sul da cidade, a zona oeste
do Rio de Janeiro, que conjuntos como Vila Aliana e Vila Kennedy foram
estrategicamente construdos para acomodar a populao moradora nesta e
em outras favelas. O serto carioca, como era chamado poca, era uma
rea basicamente rural, com baixo nvel de infra-estrutura e acesso a servios
primordiais, como os de transporte.
De um lado, as classes mais abastadas possuam forte interesse em
expurgar o problema da favela, retirando-a de seu convvio; de outro, o setor
imobilirio acompanhava o crescimento da valorizao de reas ocupadas por
favelas como a da Praia do Pinto, a Lagoa Rodrigo de Freias. Assim, as
remoes representaram, para aqueles que as apoiavam, uma oportuna
estratgia de afastamento das favelas para reas distantes dos grandes
centros econmicos e culturais da cidade. Em outro extremo, para os
favelados, a poltica remocionista foi uma mudana na maioria das vezes
11
compulsria, ou seja, uma interveno capaz de romper os laos de
solidariedade e confiana construdos ao longo de geraes. Mas no s as
redes de amizade e parentesco foram fragilizadas, pois tambm o foram as
relaes de trabalho (formal ou no) que sustentavam economicamente as
famlias faveladas. Ao serem removidos estes moradores depararam-se com
novos locais de moradia onde a precria infra-estrutura e a dificuldade de
restabelecer os pequenos negcios somavam-se a outras dificuldades
advindas do rompimento de suas antigas redes sociais constitudas.
Curioso destacar que pouco mais de um ms aps minha descoberta
sobre a ligao entre a poltica de remoo de favelas e a construo de
conjuntos habitacionais como Vila Kennedy, Vila Aliana e Vila Esperana
todos construdos na dcada de 60 , presenciei uma interessante conversa
travada por um casal de meia-idade, que viajava no mesmo nibus em que eu
estava. O casal conversava sobre as dificuldades de se viver nos dias de
hoje; realidade muito diferente, segundo eles, daquela vivida h algumas
dcadas atrs. A princpio, a conversa no parecia ter nada de novo, afinal,
tem-se tornado cada vez mais comum ouvir este tipo de narrativa permeada de
nostalgia e representaes da memria, que operam atravs de uma espcie
de idealizao do passado, trazendo lembrana dos indivduos flashs
selecionados a partir de interesses e circunstncias diversos5. Seguindo minha
viagem de nibus, percebi que o simptico casal, cujas vestimentas e linguajar
pareciam tpicos de dois representantes da classe mdia, passou a lembrar da
atuao de polticos que teriam marcado seu passado. Traavam uma espcie
de relao entre o fracasso e a incompetncia dos polticos atuais na resoluo
dos principais problemas que afligem a sociedade sobretudo aqueles
vinculados ao crescimento da violncia urbana e o sucesso de
administraes como a de Carlos Lacerda que teria, entre outras grandes
realizaes, criado em Vila Kennedy um verdadeiro paraso para seus
habitantes. Sabedora da forte ligao entre Lacerda e a classe mdia, nos
anos 60, no me foi difcil entender por que aquela senhora que viajava comigo
de nibus mantinha lembranas to positivas dos feitos do ento governador
do estado da Guanabara. Entretanto, interessante notar como Vila Kennedy
12
foi retratada nesta conversa: um lugar de moradia digna, onde no havia,
inclusive, analfabetismo poca de sua criao.
Embora ainda no o soubesse, naquele momento comeava a se definir
meu tema de pesquisa. Nascia assim meu interesse em estudar o maior
conjunto
habitacional
construdo
pela
administrao
Lacerda
com
aproximadamente cinco mil casas que, com o passar das dcadas, passou a
ser considerado como sub-bairro de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. De
1964, data de sua inaugurao, at os dias atuais, a Vila como chamada
por muitos moradores sofreu vrias modificaes que vo desde a mudana
estrutural das pequenas casas originais, as chamadas casas embrio, que
compunham o projeto de Vila Kennedy, at a conquista recente de importantes
melhorias advindas da implantao de alguns equipamentos pblicos e do
incremento de sua infra-estrutura atual. Em seus pouco mais de quarenta anos
de existncia, o conjunto conheceu algumas alteraes estruturais, da mesma
forma que tambm se alterou a composio da populao local, como se ver
adiante.
A escolha de estudar um conjunto habitacional na atualidade explica-se
por sua importncia tanto social quanto acadmica. Ao lado das favelas, dos
loteamentos e de outras formas de habitao popular, os conjuntos
habitacionais ocupam lugar significativo na histria das polticas habitacionais,
mas tm sido pouco explorados nos ltimos 20 anos, sobretudo depois que o
Banco Nacional de Habitao (BNH) interrompeu os financiamentos de
pesquisas voltadas a tais conjuntos. De acordo com Luciana Lago, ao longo da
ltima dcada:
a excluso social e a ilegalidade urbana foram territorializadas nas
favelas, minimizando-se da cena acadmica e poltica outros espaos
representativos desse universo [da pobreza urbana], como as
periferias metropolitanas e os loteamentos que as conformam, os
quais, nos anos 70 e 80, apareciam como a expresso maior dos
problemas urbanos (Lago, 1993: 02).
13
pobreza urbana ou a temas e ela diretamente associados. A favela se
tornou um tema da moda (...) (Valladares, 2005: 119).
Vila
Kennedy,
aps
quatro
dcadas
de
crescimento
14
origem e ajudando a produzir efeitos no presente? Foram essas as indagaes
que me levaram a escolher estudar um conjunto habitacional Vila Kennedy ,
buscando analisar como a remoo e a violncia incidem nas representaes
de seus moradores sobre o passado e o presente de Vila Kennedy. Nesta
dissertao, buscarei problematizar a imagem negativa de Vila Kennedy luz
das representaes de moradores locais com tempos de residncia que variam
de trinta a quarenta e quatro anos. A partir da anlise desta, ser possvel
testar a hiptese de que a associao de Vila Kennedy a uma favela conhecida
pela atuao do trfico de drogas se d por meio da articulao de fatores que
unem passado e presente. Por um lado, em um plano mais regional, o peso
simblico ou a marca deixada pela formao inicial do conjunto construdo para
abrigar famlias removidas de favelas; por outro, a presena de novas favelas,
como a favela da Metral, surgidas nas franjas das reas mais antigas de Vila
Kennedy, seriam os principais fatores a contribuir com a associao da regio
a uma favela perigosa.
I.2 Hipteses e questes de pesquisa
15
caractersticas e leis torna-se um desafio s cincias sociais, pois sua anlise
exige o estudo dos domnios particulares das realidades do interior desta forma
especfica de organizao.
Quando falamos de sociedade urbana no podemos entend-la como
uma mera constatao de uma forma espacial. A sociedade urbana, no sentido
antropolgico do termo, quer dizer um certo sistema de valores, normas e
relaes sociais possuindo uma especificidade histrica e uma lgica prpria
de organizao e transformao. Dito isto, o qualificativo urbano, agregado
forma cultural assim definida, no inocente, pois:
trata-se (...) de conotar a hiptese da produo da cultura pela
natureza ou, se preferirmos, de um sistema especfico de relaes
sociais (a cultura urbana) por um determinado quadro ecolgico (a
cidade) (Velho (org.), 1987: 100).
16
bem como uma organizao fsica. As duas interagem mutuamente de modos
caractersticos para se moldarem e modificarem uma a outra.
A estrutura da cidade possui suas bases na natureza humana, da qual
uma expresso. Essa enorme organizao que se erigiu em resposta s
necessidades de seus habitantes, uma vez formada, impe-se a eles como um
fato externo bruto, e por seu turno os forma de acordo com o projeto e
interesses nela incorporados (Park In Velho (org.), 1987:29).
Questes como a densidade, o valor da terra, os aluguis, a
acessibilidade, a salubridade, o prestgio, a ausncia de inconvenientes como o
barulho, a fumaa e a sujeira so determinantes para a atratividade de vrias
reas da cidade como reas para o estabelecimento de diferentes camadas da
populao. Para Wirth, elementos como o local e a natureza do trabalho, a
renda, as caractersticas raciais, tnicas, o status social, os costumes e os
hbitos, gostos, preferncias e preconceitos esto entre os fatores significantes
para o processo de seleo e distribuio da populao em locais mais ou
menos distintos. Isto nos faz reafirmar que a poltica de remoes adotada pelo
governador Carlos Lacerda, na dcada de 60, obedeceu a uma lgica de
distribuio scio-territorial consolidada, que primava pela incompatibilidade de
necessidades e modos de vida antagnicos de diferentes segmentos da
populao que coabitavam uma localidade.
Ainda segundo Wirth, do mesmo modo, pessoas de status e
necessidades homogneos, consciente ou inconscientemente, se dirigem ou
so foradas para a mesma rea (Wirth In Velho (org.), 1987: 103).
Em seu
da
cidade
adquirem
funes
especializadas.
cidade,
se
lanam
desvendar
seus
smbolos
compreender
suas
17
regio, de acordo com as foras vitais existentes nos indivduos e na
comunidade. E so justamente estas foras vitais que pretenderei explorar em
minha pesquisa de campo em Vila Kennedy.
Inicialmente, minha pesquisa esteve norteada pela hiptese de que as
representaes dos moradores de Vila Kennedy sobre a imagem de um local
violento e favelizado estariam diretamente ligadas a dois principais fatores que
integrariam passado e presente numa perspectiva negativa sobre a regio. Por
um lado, o peso simblico de sua ocupao inicial teria contribudo ao longo
dos anos para a associao do territrio favela; e, por outro, a atual
existncia de favelas, como a Metral, em Vila Kennedy ajudaria a reforar esta
associao. Assim, seria a Metral, favela envolvida em vrios episdios de
violncia noticiados pelos jornais, uma das principais (se no a principal)
favelas a contribuir para a imagem negativa de Vila Kennedy. Contudo, ser
atravs das representaes de antigos moradores, como j exposto, que os
elementos que contribuem para a construo de tal imagem negativa sero
analisados.
Importante destacar que os rumos de minha pesquisa contaram com um
fator bastante revelador, capaz de reforar a favela da Metral como um
elemento cultural a ser considerado em meu trabalho de campo. Em outubro de
2007, uma notcia de jornal relatou a ocupao da favela da Metral por
milicianos, como se pode ver abaixo.
Milcia expulsa trfico da Favela da Metral
Noventa homens integram o grupo, que teria PMs, guardas
penitencirios e bombeiros
Traficantes tentavam desde o fim do ano passado impedir que
milicianos tomassem o controle da Favela da Metral, na Vila Kennedy,
mas perderam a guerra h pouco mais de uma semana. A
subsecretaria de Inteligncia da Secretaria de Segurana recebeu
informaes repassadas pelo Disque-Denncia de que milicianos
tomaram o controle em grande parte da comunidade.
O comrcio nos arredores da praa onde ficam o Posto de
Policiamento Comunitrio (PPC) da PM e os principais acessos
comunidade estariam sob controle dos milicianos. O grupo de
milicianos seria composto pos policiais do 14 BPM (Bangu),
bombeiros e agentes penitencirios do Complexo de Gericin. Os
traficantes estariam planejando a tomada pela parte alta da
comunidade, a mesma estratgia dos milicianos.
Segundo moradores, aps vrias tentativas de tomar a favela
pela entrada principal, o grupo de milicianos surpreendeu os
traficantes. Durante a madrugada, cerca de noventa homens
fortemente armados entraram na comunidade pela parte dos fundos,
que d para uma mata, e chegaram at a entrada da favela. No houve
troca de tiros.
18
_ Dois dias depois, j no havia qualquer pichao dos
traficantes ns muros _ disse uma moradora.
Os milicianos retiraram tambm as barreira instaladas por
traficantes em vrios locais da comunidade para impedir que a polcia
entrasse.
Clia Costa, 2 Coluna, Jornal O Globo 19/10/07.
19
cidade do Rio de Janeiro, morando em um conjunto habitacional como Vila
Kennedy.
Contudo, a construo de uma rede de informantes local definiu-se
como fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, tendo em vista o fato
de que o campo me era quase que totalmente desconhecido at o incio da
pesquisa emprica. Atravs de um ex-colega de trabalho, realizei o primeiro
contato com uma residente de Vila Kennedy, com aproximadamente trinta anos
de idade, professora de Histria da rede municipal de ensino e moradora do
local desde o nascimento. A partir dos primeiros contatos com esta informante,
minha rede comeou a ser formar, inicialmente bastante focada em moradores
que possuam algum tipo de engajamento com a Igreja Catlica, atravs da
parquia Santo Cristo Operrio (como ser destacado no segundo captulo
desta dissertao). Mas, medida que a rede se formava, pude entrar em
contato com moradores que no eram to diretamente envolvidos com esta
igreja, visando recolher discursos mais heterogneos que ampliassem minhas
possibilidades de anlise.
A pesquisa de campo, alm de possibilitar e ampliar o contato com
minha rede de informantes, foi fundamental para auxiliar na formulao de
questes pertinentes ao tema e na escolha do referencial terico que
embasaria as anlises pretendidas. Contudo, o contato prvio com a
bibliografia anteriormente citada foi fundamental para a preparao para o
trabalho de campo, realizado entre abril e junho de 2008, aps uma pesquisa
de campo exploratria em setembro e outubro de 2007.
As entrevistas, os registros fotogrficos sobre o cotidiano local e as
observaes diretas constituram-se em elementos igualmente fundamentais
anlise das representaes dos antigos moradores sobre a imagem negativa
de Vila Kennedy na atualidade.
20
iniciais sobre Vila Kennedy com amigos moradores da Zona Oeste. Alguns
deles, residentes em bairros como Realengo e Campo Grande, referiram-se a
Vila Kennedy como uma rea perigosa, onde a chapa costuma[va] esquentar
...7 por causa do movimento8. Outra fala recorrente era a de que a regio era
muito grande e que l, assim como em muitas favelas cariocas, tambm tinha
sua zona sul9. Um amigo de aproximadamente 50 anos, que conheci na
UERJ durante o curso de Especializao em Sociologia Urbana, tinha
informaes sobre uma outra Vila Kennedy, aquela de sua adolescncia, que
conheceu quando era morador de um bairro da zona oeste e namorava uma
jovem da Vila. Apesar de falar de um lugar pobre, meu amigo tinha
lembranas muito positivas da poca em que visitava os amigos e a namorada.
Todavia, com exceo de meu amigo que freqentara a Vila Kennedy
em outros tempos como ele prprio costumava dizer , a maioria dos
discursos destes moradores de fora sobre a regio trazia consigo, em maior
ou menor grau, a idia de uma rea favelizada. Atualmente, vem-se muitos
conjuntos habitacionais (boa parte deles verticais compostos por prdios ,
outros como Vila Kennedy e Cidade de Deus, com sua estrutura horizontal
formado por pequenas casas) passarem por processos de deteriorao de sua
infra-estrutura, o que visto pelo senso comum como um processo de
favelizao. Neles, ainda, a existncia de trfico de drogas ressalta a
associao com a favela. Pode-se dizer, inclusive, que parte deste imaginrio
coletivo construdo e/ou reforado por obras de fico como o filme Cidade
de Deus, que apresenta a trajetria de um conjunto que se torna favela.
Como moradora de subrbio, sempre circulei por reas prximas
minha residncia e com caractersticas muito semelhantes quelas que vi em
Vila Kennedy. Entretanto, os bairros da Zona Oeste mais especificamente
Campo Grande, Bangu e Santa Cruz nunca fizeram parte de meu itinerrio
constante. Como uma legtima moradora de fora, minhas referncias sobre
Vila Kennedy eram pouqussimas. Sabia apenas que se tratava de uma rea
que ficava entre Realengo e Bangu e, de tempos em tempos, ouvia algum se
7
Relato de um amigo que trabalhava comigo em uma organizao no-governamental ONG , no perodo de 2003
a 2004, e residia no bairro de Realengo.
8
No Rio de Janeiro, a categoria movimento refere-se presena do trfico de drogas, geralmente atuante em
territrios pobres da cidade.
9
A categoria zona sul refere-se, neste contexto, a uma rea com melhor infra-estrutura e melhores casas dentro de
uma regio pobre e com poucos recursos. Note-se a homologia estabelecida entre Vila Kennedy e as favelas.
21
referir regio como violenta e perigosa devido ao trfico de drogas. Foi
praticamente instantnea minha associao de Vila Kennedy a uma favela,
pois eu nem se quer conhecia sua origem como conjunto habitacional.
A esta altura, eu ainda no havia visitado Vila Kennedy, mas a viso
construda em meu imaginrio era muito similar a de uma favela. Chegada a
hora de confrontar minha imaginao com a realidade, comecei a pedir a ajuda
de amigos que pudessem me indicar algum morador de Vila Kennedy para que
eu pudesse entrar no campo. Atravs do contato de meu ex-colega de
trabalho cheguei ento at minha primeira informante: moradora de Vila
Kennedy desde o nascimento, a tmida, mas simptica professora de Histria,
que tem por volta de seus trinta anos, aceitou me receber. Nosso encontro
aconteceu em uma ensolarada manh de sbado, na movimentada Praa
Dolomitas uma das duas praas principais da regio.
Assim que desci no ponto de nibus que havia sido indicado por minha
informante, logo percebi que j estava em nosso local de encontro. A praa me
causou muito boa impresso: arborizada, equipada com brinquedos bem
conservados, quiosques, papeleiras, banquinhos etc. As pessoas circulavam
tranquilamente e havia grande movimentao nos pontos de kombis, vans e
nibus. Minha privilegiada informante e colega de formao chegou logo
depois de mim. Ela trazia vrios materiais da pesquisa sobre a histria de Vila
Kennedy que havia feito como trabalho final de seu curso de Especializao
em Histria na UFF. Naquele dia tive uma nova aula sobre a origem do
conjunto. Trocamos alguns materiais, conversamos bastante e ento fui
convidada para dar uma pequena volta pelas ruas prximas Praa Dolomitas,
que fica do lado direito da margem da Avenida Brasil, sentido Campo Grande.
Enquanto circulvamos, tive a impresso de estar passando, em alguns
momentos, por um bairro de subrbio como tantos que j freqentei como
moradora da Baixada Fluminense. As ruas mais ou menos estreitas preservam
pouqussimas casas com arquitetura original as chamadas casas embrio.
Durante o breve passeio, observei algumas crianas brincando nos portes das
casas, mes tomando conta dos filhos na calada, vizinhos conversando com
sacolas plsticas de supermercado nas mos, bicicletas passado em ritmo
lento, motos mais apressadas, muitos carros. Circulamos um pouco pelas
reas do entorno da referida praa. Nos limites ou fronteiras de Vila
22
Kennedy
h,
segundo
minha
primeira
informante,
outros
conjuntos
Segundo minha informante, a favela da Metral recebeu este nome por conta da proximidade com uma fbrica com
o mesmo nome tambm situada s margens da Avenida Brasil, sentido Campo Grande.
23
constatar outras questes igualmente interessantes sobre o campo. Sem as
inferncias de minha informante que foram importantssimas para minha
pesquisa pude direcionar meu olhar para os fragmentos que considerei mais
relevantes e reveladores aos objetivos desta pesquisa.
O ponto de partida de minha pesquisa de campo foi a Praa Dolomitas,
um importante ponto de passagem para moradores e visitantes que circulam
por aquele lado11 de Vila Kennedy ou mesmo se direcionam a ele para utilizar
os meios de transporte disponveis em suas franjas. Mas, alm de sua
importncia como rea de circulao, a praa tambm foi escolhida como lcus
de minha investigao inicial pelo fato de concentrar moradores aos quais eu
no teria tanta facilidade de acesso em um primeiro momento. Como uma rea
pblica, por onde transitam moradores e pessoas de fora, a praa
representou uma interessante vitrine de parte da vida social daquela localidade
que ainda teria, de acordo com minhas expectativas, a capacidade de acolher
uma pesquisadora sem chamar grande ateno dos que por ali passavam.
Alm disso, a Dolomitas fica h poucos metros da rea em que minha
informante havia sinalizado ser o incio da favela da Metral. Outra questo que
interferiu na escolha da praa para o incio de minha chegada ao campo foi a
perspectiva de encontrar maior facilidade na abordagem dos moradores, pois
minha inteno era conversar com aqueles que estivessem sentados ou
mesmo conversando sem demonstrar as posturas tpicas de quem estava com
pressa.
O meio de transporte escolhido para chegar a Vila Kennedy foi uma
kombi que peguei na Avenida Brasil. Minha ansiedade em chegar logo ao
campo no permitiu a espera de um nibus que passasse pela Vila. A viagem
foi rpida: cerca de quinze minutos separavam Deodoro, local onde peguei a
kombi, e meu destino. Como estava indo contra o fluxo do trnsito, meu
transporte contava com apenas trs passageiros eu e mais duas jovens
senhoras , alm do motorista.
11
Por ser dividido pela Av. Brasil, o conjunto de Vila Kennedy possui dois lados, o que fica margem da avenida
no sentido Centro da Cidade e o que se situa margem que d acesso Zona Oeste. A categoria lado, alm de
utilizada por mim para situar a localidade onde se iniciou o trabalho de campo, tambm uma categoria nativa, que
ser melhor explorada ao longo de minha dissertao. O Anexo I deste trabalho apresenta um mapa de Vila Kennedy
para melhor localizao da rea escolhida.
24
A praa, de tamanho mdio, possui equipamentos pblicos (quiosques,
brinquedos, orelhes, bancos de cimento etc) e abriga vrias barraquinhas
onde os camels vendem desde biscoitos e doces at verduras e frutas. A
quantidade de alimentos desta natureza venda, indicam que bem prximo
deve haver regies agrcolas capazes de suprir a regio. Estrategicamente
posicionadas as barraquinhas dividem espao com os pontos de nibus, vans,
moto-txi e kombis estas ltimas em maior nmero. O trnsito de pedestres
se mostrou bastante intenso: pessoas vindas do outro lado da Av. Brasil que
passam por um pequeno tnel que fica debaixo de uma espcie de viaduto12;
estudantes da rede pblica municipal e estadual cruzavam a praa; mes
acompanhado os filhos at a escola passavam apressadamente; trabalhadores
em geral caminhavam ou mesmo esperavam seus transportes; donas-de-casa
carregando sacolas de supermercado iam e vinham; idosos observando a
movimentao sentavam-se sombra das vrias rvores etc.
A praa possui vrios quiosques que vendem lanches e, embora
estivessem fechados quando de minhas visitas, o nmero destes indica que,
alm de ser uma rea de grande circulao, tambm uma rea de lazer, onde
as pessoas se renem com freqncia. Alm dos carros que passavam pelas
estreitas ruas no entorno da praa, havia tambm alguns micronibus,
pequenos caminhos que abasteciam o comrcio local, motos e um
considervel nmero de bicicletas. Ao redor da tranqila praa, que me
ofereceu vrios espaos agradveis para minhas observaes ao abrigo do sol,
encontrei vrias lojas, tais como: casas lotricas, lanchonetes, sales de beleza
e barbearias, papelarias, supermercado, locadoras de vdeo, aougues, bares
(biroscas), farmcia. Apesar de possuir uma extenso considervel, a praa
estava bastante limpa naquele dia, uma tera-feira. Alm do comrcio e do
movimentado vai-e-vem de pedestres, carros, motos e bicicletas, pude
observar que a praa possui ao seu redor um posto policial, indicando a
existncia de um tipo de policiamento de carter mais ostensivo.
Como algum de fora, realizei minhas observaes e anotaes
sempre atenta possibilidade de estar sendo observada. Talvez pelo grande
fluxo pessoas ou mesmo por minha aparncia ser a de uma estudante eu no
12
Neste trecho, a Av. Brasil recebeu uma elevao que permite com que seja possvel ter acesso, de carro e a p, aos
dois lados de Vila Kennedy sem precisar haver o uso do retorno que fica na altura de Bangu.
25
tenha despertado grande ateno. Outra possibilidade, porm, a de eu ter
sido observada sem que tivesse me dado conta. Durante minha permanncia
pude perceber que, raramente apareciam jovens com postura tpica de
olheiros13. No entanto, dois grupos de jovens com uniformes da rede
municipal de ensino passaram animadamente empunhando instrumentos
musicais, indicando que estavam a caminho de algum ensaio em sua escola.
A maior parte das pessoas utilizava a praa como local de passagem.
Contudo, um grupo composto por homens que variavam entre 25 e 60 anos
concentrava-se debaixo de um grande quiosque com mesinhas para jogos. Nas
mesinhas para quatro ocupantes, os homens jogavam carta e contavam ainda
com atentos observadores que passavam pelo local. A maior parte das
mulheres que vi na praa no se dedicavam a nenhuma atividade fixa, mas
usavam a Dolomitas como local de passagem. Jovens senhoras, estudantes,
idosas: todas atravessavam a praa, mas quase no paravam em nenhum
ponto.
Poucas crianas brincavam na praa quando de minhas observaes, o
que me indica que possivelmente boa parte das crianas da regio encontravase em seu horrio escolar. Alguns idosos (homens) sentavam-se em bancos
sombra das rvores ou dos quiosques. Poucos conversavam entre si, pois
pareciam estar mais acostumados a observar o ritmo acelerado daqueles que
cruzavam a Dolomitas em direo aos mais variados destinos.
Realizei minhas entrevistas nesta praa, na parquia Santo Cristo
Operrio de Vila Kennedy, no centro comunitrio denominado Obra Kolping e
nas residncias dos entrevistados. Realizados entre maro e junho de 2008, a
parte mais substantiva dos encontros com os informantes possibilitou a
realizao da pesquisa emprica, que contou ainda com um perodo de
insero inicial ao campo, ocorrida entre setembro e outubro de 2007.
As primeiras entrevistas qualitativas, concentradas na Praa Dolomitas,
buscaram moradores de Vila Kennedy com faixa etria a partir dos quarenta
anos, pois esta estratgia poderia aumentar as chances de abordar residentes
mais antigos, que pudessem oferecer relatos mais substanciosos sobre o viver
13
A categoria olheiros refere-se a pessoas envolvidas com o trfico de drogas de uma regio. Em sua maioria, os
olheiros so jovens rapazes que tm a incumbncia de monitorar as reas prximas aos locais onde ocorre o trfico.
No caso de Vila Kennedy, a presena destes personagens estaria intimamente relacionada presena do trfico de
drogas na regio.
26
em Vila Kennedy, associando suas percepes inclusive ao passado.
Posteriormente, ampliei meu leque de entrevistados residentes nas trs glebas
originais do conjunto. Foram realizadas treze entrevistas14 com moradores que
residem em Vila Kennedy entre trinta e quarenta anos. Destes entrevistados,
dez possuem entre quarenta e cinco e oitenta anos de idade, enquanto que
trs possuem faixa etria entre vinte e cinco e trinta anos. Para tanto, foi
elaborado roteiro15 com perguntas semi-abertas para orientar as entrevistas.
14
15
27
territorial na regio, alm de problematizar o lugar das favelas na complexa
dinmica que envolve a trade violncia, trfico de drogas e ao da milcia.
Na concluso, sero apresentadas consideraes sobre as hipteses
levantadas e sobre os temas surgidos durante a pesquisa de campo. Nela, os
aspectos que envolvem as representaes dos moradores sobre a imagem
negativa de Vila Kennedy na atualidade sero problematizados, sem que haja a
inteno de serem esgotadas as discusses em torno do assunto.
28
Captulo 1 VILA KENNEDY: ORIGEM E FORMAO
condenado[s]
atravs
do
discurso
mdico
higienista
29
considerado como o germe da favela. Alvo de intensas campanhas contra sua
existncia e permanncia na cidade os cortios foram sendo demolidos e,
aps sua gradual destruio, a favela passou a aparecer como o novo espao
geogrfico e social associado pobreza.
Contudo, cabe ressaltar que o fenmeno da existncia da favela
anterior ao prprio aparecimento de sua categorizao, surgida a partir da
segunda dcada do sculo XX para designar uma modalidade de habitat pobre.
Antes mesmo, porm, o cenrio poltico abrigava uma jovem Repblica que
pensava os rumos a serem adotados por sua capital o Rio de Janeiro , que
recebeu a importante incumbncia de ditar os caminhos a serem seguidos
pelos demais estados da federao. Segundo o historiador Jos Murilo de
Carvalho, orientados pelos preceitos positivistas de ordem e progresso, muitos
dos tcnicos engenheiros, mdicos etc chegados ao poder:
(...) do esprito de repblica guardavam no mximo alguma
preocupao com o bem pblico, desde que o pblico, o povo, no
participasse do processo de deciso. O positivismo, ou certa leitura
positiva da Repblica, que enfatizava, de um lado, a idia de
progresso pela cincia e, de outro, o conceito de ditadura republicana,
contribua poderosamente para o reforo da postura tecnocrtica e
autoritria (Carvalho, 1989: 35).
As organizaes operrias existentes no incio do sculo XX, apesar de frgeis, foram possveis, em grande parte,
graas poltica de imigrao adotada pelo governo republicano neste perodo, que objetivava fomentar a nascente
indstria brasileira, apoiando-se em trabalhadores oriundos de pases cuja industrializao encontrava-se em situao
30
ligados a correntes socialistas e anarquistas, associaes de operrios
catlicos, entre outros tipos de organizao, buscavam unir os trabalhadores
na defesa de seus interesses. Contudo, a maioria dos pobres urbanos do eixo
Rio-So Paulo permanecia fora do alcance de sua influncia. Neste contexto
de efervescncias, alm das organizaes de operrios tambm ganhavam
destaque as revoltas, que despontavam como outra forma de organizao
popular bastante comum no incio do sculo XX. Estas revoltas17 preocupavam
as elites de ento, pois representavam uma espcie de ameaa s estruturas
poltica e econmica do pas.
Os trabalhadores urbanos pobres da ento capital federal, que
habitavam precrias moradias os cortios desprovidas de sistema sanitrio
eficiente, representavam outra ameaa preocupante aos setores ligados elite,
pois carregavam consigo a possibilidade do contgio de doenas que no
respeitavam as barreiras de classe. Assim, entra em cena o movimento
sanitarista que ganhara importncia j em fins do sculo XIX , promovendo
o que Chaloub (1996) chamou de culpabilizao das populaes pobres
urbanas.
Inclui-se
descendentes,
alm
neste
de
contexto,
suas
sobretudo,
formas
de
ex-escravos
habitao,
seus
principalmente
mais consolidada, como os pases da Europa. Entretanto, para alguns tericos do pensamento social brasileiro,
profundamente influenciados pelas teorias racistas do sculo XIX, a chegada de imigrantes, sobretudo europeus,
trazia consigo a possibilidade de branquear a populao. De acordo com tal concepo, a predominncia do
elemento branco na composio gentica dos descendentes de cruzamentos inter-raciais geraria, atravs da
miscigenao, um povo, um tipo nacional com fentipo branco europeu. Sobre a questo da idia de raa e racismo
no pensamento social brasileiro, ver Pereira (2005, dissertao de Mestrado) e Seyferth (1996).
17
Dentre as revoltas populares desencadeadas no incio do sculo XX, no Rio de Janeiro, podemos destacar a Revolta
da Vacina, que, em 1904, uniu setores populares na luta contra a obrigatoriedade da vacinao. Para saber mais sobre
a Revolta da Vacina, ver Carvalho (1989), Chaloub (1996) e Sevcenko (1984).
31
promiscuidade, vagabundagem etc. Nas primeiras dcadas do sculo XX,
jornalistas, mdicos, engenheiros e homens pblicos ligados gesto da
capital deixam de se preocupar com os insalubres cortios, passando as
favelas a ocupar lugar de destaque nos debates pblicos sobre o futuro da
capital e, consequentemente, do pas. Para elas transferido:
(...) o postulado ecolgico do meio como condicionador do
comportamento humano, persistindo a percepo das camadas
pobres como responsveis pelo seu prprio destino e pelos males da
cidade, dando a perceber que o debate sobre a pobreza e o habitat
popular j desde o sculo XIX agitando as elites cariocas e
nacionais far emergir um pensamento especfico sobre a favela do
Rio (Valladares, 2005: 28).
pela favela como um novo espao geogrfico e social que despontava pouco a
pouco como o mais recente territrio da pobreza (Valladares, 2005: 26).
A partir do Plano Agache18, as favelas ficaram oficialmente registradas
como reas de habitaes irregularmente construdas, sem arruamentos ou
acesso a servios como os de abastecimento de gua e luz. Junto a esta
precariedade urbana, resultante do descaso do poder pblico e da pobreza de
seus moradores, fortaleceram-se as imagens da favela como lcus da
carncia, da ausncia, (...) do perigo a ser erradicado pelas estratgias
polticas que fizeram do favelado um bode expiatrio dos problemas da cidade,
o outro distinto do morador civilizado da primeira metrpole que o Brasil teve
(Zaluar & Alvito, 2004: 08).
Ainda de acordo com Alba Zaluar e Marcos Alvito, as favelas tornaramse (...) uma marca da capital federal, em decorrncia (no intencional) das
tentativas dos republicanos radicais e dos tericos do embranquecimento19 (...)
para torn-la uma cidade europia. (2004: 07). Mas a capital federal nunca se
tornou, segundo os autores, de fato europia, graas tambm criatividade
cultural e poltica, capacidade de luta e organizao dos favelados em cem
anos de sua histria. Para Carlos Lessa, tal resistncia pode ser pensada
atravs do fato de:
a favela permit[ir] montar uma alegoria integral da criatividade da
pobreza, que desenvolve a malha urbana, cria solues arquitetnicas
18
O Plano Agache a denominao popular do plano de remodelao urbana da cidade do Rio de Janeiro elaborado,
ao final da dcada de 1920, por Alfred Donat Agache, por solicitao do ento Prefeito da cidade, Antnio Prado
Jnior.
19
Sobre as teorias racistas difundidas entre fins do sculo XIX e incio do XX, ver obras clssicas do pensamento
social brasileiro que, a partir de teorias baseadas no branqueamento (ou embranquecimento) da populao,
influenciaram parte da produo intelectual brasileira at meados do sculo XX. Como importantes representantes
das teorias racistas deste perodo, conferir Nina Rodrigues e Silvio Romero.
32
e mtodos construtivos e que institui cdigos de direito alternativo. (...)
Produz e autoconsome suas criaes culturais. A pobreza em uma
cidade urbanizada e pouco proletarizada desdobra-se, na esfera da
gerao de renda e ocupao com variadas estratgias e tticas
predominantemente individuais. (...) Desenvolve as relaes de
vizinhana e operacionaliza um coletivo complexo e coeso na zona
residencial (Lessa, 2000: 297-298).
Vargas,
contrariando
as
orientaes
poltico-culturais
claramente
33
renda, organizada em 1933, beneficiava apenas os empregados de ramos de
atividades cobertas pelos Institutos de Aposentadoria e Penses os IAPs. O
autor ressalta, ainda, que a restrio ao direito de voto dos analfabetos e aos
direitos sociais dos que estavam fora do mercado de trabalho formal explica a
invisibilidade poltica das favelas at ento. (Burgos, 2004: 27). Tal restrio
assenta-se sobre a idia de cidadania regulada20 que, desenvolvida no
governo Vargas, ajuda a explicar a adoo, no plano social, de uma legislao
voltada ao atendimento de algumas demandas trabalhistas (unicamente
voltadas aos setores mais produtivos ligados ao mercado formal) e a
montagem de uma estrutura corporativa que atrelava os sindicatos ao Estado.
Mas, desta forma, Vargas assegurava a aproximao com as classes
populares, trazendo a classe trabalhadora, ainda que tutelada, para a esfera
pblica.
De acordo com Santos (1979), a poltica adotada por Vargas com
relao classe trabalhadora permitiu, a partir de 1930, a abertura da ideologia
laissez-fairiana que contou ainda com a criao de:
um espao ideolgico onde a interferncia ativa do Estado na vida
econmica no conflita[va] com a noo, ou a inteno, de promover o
desenvolvimento de uma ordem fundamentalmente capitalista
(Santos, 1979: 75).
todos
os
trabalhadores
desempregados,
subempregados,
34
Durante o Estado Novo, que se inicia em 1937, o governo trabalhou
ideologicamente para desarticular as classes em processo de ascenso como
portadoras de interesses. Para o historiador Lincoln Penna, este perodo
assistiu a uma espcie de despolitizao da sociedade, cujo efeito mais
perverso atingiu em cheio os trabalhadores. Como estratgia de fortalecimento,
o Estado Novo procurou atrair os trabalhadores atravs de:
recursos que iam de medidas compensatrias a maioria
transformada em legislao trabalhista ou por meio de mensagens
de sentido dbio, tpicas de regimes autoritrios, tais como aquelas
em que se procura demonstrar que numa sociedade sadia no h
lugar para interesse de classes (Penna, 1999: 188).
de
um
indivduo
cidado/trabalhador,
que
assumisse
35
grande trunfo dos operrios, insistentemente lembrada pelos idelogos do
Estado Novo. Como aponta Lincoln Penna:
A cidadania do trabalhador estava na posse deste documento, e de
preferncia devidamente assinado pelo empregador. Por outro lado, a
importncia da carteira era medida no apenas no status simblico do
trabalhador, mas tambm em suas atividades sindicais (...) (Penna,
1999: 188).
Assim, o governo Vargas elegeu o trabalhador (formal) como elementochave ao processo de aproximao com as classes menos abastadas. O que
pensar, ento, sobre o destino dos pobres que no estivessem adequados
lgica do trabalho e, consequentemente, sua disciplina reguladora? No
estavam estes contemplados pelas aes governamentais, mas, ao contrrio,
representavam um entrave (problema) a ser controlado e administrado pelo
Estado. Os benefcios ofertados pelo poder pblico, neste perodo, no se
encontravam ao alcance de todos, mas criavam, sobretudo, a sensao de
que, cooperando ou melhor, enquadrando-se nos critrios que orientavam a
noo de cidadania regulada , os trabalhadores vinculados ao mercado de
trabalho formal teriam finalmente atendidas suas aspiraes de bem-estar
social. Aos demais, excludos do mercado formal regido pela legislao
trabalhista de ento , restavam as ausncias, lacunas de uma existncia
indesejada pelas elites, alvos da ao de laos clientelistas voltados
obteno de votos.
O regime de Vargas retomou a temtica higienista que atribua s ms
condies sanitrias das moradias populares a proliferao de diversas
doenas oportunistas. Afirmava-se, neste perodo, que a propriedade de sua
moradia, alm de uma alimentao adequada eram legtimas aspiraes dos
trabalhadores (Valladares, 2005: 50). Para Getlio Vargas, a famlia constitua
a clula poltica de base e a questo da moradia, uma questo maior21.
Na origem do clientelismo poltico desenvolvido nas favelas a partir da
dcada de 30, a poltica de Pedro Ernesto22 voltou-se prioritariamente
construo de escolas e hospitais. Sua abordagem sobre a questo social era
bastante semelhante quela desenvolvida pelos reformadores progressistas do
21
Licia Valladares (2005:50) ressalta que, de acordo com Gomes (1999), o regime assumia que muitas doenas em
nossas cidades se propagavam pelas ms condies de higiene das moradias populares, o que tornava o trabalhador
revoltado e preguioso (Gomes, 1999:62).
22
Pedro Ernesto foi nomeado prefeito da cidade do Rio de Janeiro, no perodo entre 1931-1936. Em pouco tempo sua
ao poltica o fez ser amplamente reconhecido como mdico dos pobres. Tal associao possui relao direta com
o carter populista do governo Vargas, que esmerou-se na construo de sua imagem como guia ou ainda pai dos
pobres.
36
incio do sculo XX, nos Estados Unidos. Para estes, a ajuda aos pobres
deveria ser uma responsabilidade pblica com o intuito de minimizar o estigma
da inferioridade e da dependncia que frequentemente caracterizam o
assistencialismo. Diante deste contexto, o ento mdico e prefeito Pedro
Ernesto inaugurou um novo tipo de relao com os favelados: relao esta
baseada em prticas populistas sempre voltadas articulao entre
cidadania e ocupao formal perfeitamente adequadas ao regime instaurado
por Vargas. Todavia, faz-se importante ressaltar que, mesmo aps o
afastamento de Pedro Ernesto do poder, tendo em vista a no aprovao de
Vargas com relao crescente popularidade do mdico junto s camadas
pobres da populao, a perspectiva higienista dos discursos anteriores
permaneceu, mas com uma nova dimenso: desta vez, a do reconhecimento
de fato da existncia das favelas e da necessidade de melhorar as condies
de vida dos favelados.
Tal reconhecimento se deu, de maneira geral, atravs da elaborao do
texto do Cdigo de Obras de 1937 que vigorou at 1970. Em seu captulo XV,
que trata da Extino das Habitaes Anti-Higinicas, havia uma parte
especialmente destinada s favelas. Atravs do artigo 349, o Cdigo de
Obras destacava, por exemplo: a proibio de novos casebres ou ainda da
execuo de obras de melhoria ou da expanso nos j existentes, alm da
aplicao de multas por ocasio da constatao de cobrana de aluguel de
casebres ou do solo. Ao analisar as precrias condies de existncia das
favelas e o entendimento do poder pblico de ento com relao s mesmas,
Burgos ressalta que o Cdigo de Obras de 1937 da cidade registra a situao
marginal das favelas cariocas: por serem consideras aberraes, no deviam
constar do mapa oficial da cidade. Assim, como j destacado, o referido cdigo
propunha a eliminao das favelas, ao mesmo tempo em que proibia novas
construes - ou ainda a execuo de melhorias nas moradias j existentes. O
pargrafo 9 do Artigo 349 ressaltava ainda:
A Prefeitura providenciar como estabelece o Ttulo IV do captulo
XIV deste decreto para a extino das favelas e a formao, para
substitu-las, de ncleos de habitao do tipo mnimo (Valladares,
2005: 55).
37
pouco a pouco se impunha a necessidade de administr-las (Valladares, 2005:
53).
Como soluo para o problema representado pelas favelas, o Cdigo de
Obras sugeriu a construo de habitaes proletrias para serem vendidas a
pessoas reconhecidamente pobres. Surge, neste contexto, a proposta de
parques proletrios, construdos a partir do incio dos anos 40. Assim, pode-se
perceber que a descoberta do problema da favela aparece ao poder pblico
como:
(...) incmodo que causava urbanidade da cidade, o que explica o
sentido do programa de construo dos parques proletrios, que
[tinham] por finalidade, acima de tudo resolver o problema das
condies insalubres das franjas do centro da cidade, alm de permitir
a conquista de novas reas para a expanso urbana (Burgos, 2004:
27) [grifo meu].
Nascido no interior de Pernambuco, em 1893, o mdico Vtor Tavares Moura teve sua trajetria no Rio de Janeiro
ligada assistncia da populao pobre. Tornou-se um dos primeiros membros da administrao municipal a propor e
implementar, mesmo diante das limitaes dos estudos da poca, um projeto de remoo das favelas. Integrado
poltica social do governo, o mdico Tavares Moura desenvolve duas frentes de atuao com relao pobreza: uma,
de carter assistencialista imediato, era desenvolvida atravs do Albergue da Boa Vontade; a outra proposta de
atendimento aos pobres est na origem dos Parque Proletrios. Para maiores detalhes sobre a atuao de Vitor
Tavares Moura, conferir Medeiros (2002).
38
Segundo Valladares, a iniciativa dos parques no foi uma simples operao de
alojamento provisrio das famlias faveladas em moradias que apresentassem
situao sanitria adequada. O objetivo dos parques era dar assistncia e
educar seus moradores para que os prprios fossem capazes de modificar
suas prticas, comumente associadas a condutas que poriam em risco sua
sade fsica e moral. Valladares acrescenta que:
As moradias dos parques proletrios eram consideradas provisrias,
um habitat de transio para assegurar a integrao posterior dos
habitantes vida urbana. Esses parques tambm compreendiam
dispensrios, escolas, centros sociais, equipamentos esportivos,
creches e um posto de polcia (Valladares, 2005: 62).
39
As noes de civilidade que buscavam ser disseminadas atravs dos
parques estavam profundamente atreladas a mecanismos de controle, tais
como os ressaltados por Foucault (1986) com relao prtica da vigilncia
hierrquica. Para seu sucesso, ressalta-se a necessidade de uma arquitetura:
que no mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos
palcios), ou para vigiar o espao exterior (geometria das fortalezas),
mas para permitir o controle interior, articulando e detalhando para
tornar visveis os que nela se encontram; mais geralmente, a de uma
arquitetura que seria um operador para a transformao dos
indivduos: agir sobre aqueles que abriga, dar domnio sobre seu
comportamento, reconduzir at eles os efeitos do poder, oferece-los
um conhecimento, modifica-los (Foucault, 1986: 154-155).
40
proletrios passaram a ser considerados favelas25 (Valladares, 1978: 23).
Alm de no conseguir cumprir a meta de possibilitar o retorno ao terreno
anteriormente ocupado pela favela, o programa acabou restrito aos trs
parques, no alcanando parte significativa da populao favelada do ento
Distrito Federal.
A criao dos parques proletrios, empreendimento progressista para a
poca, representou, segundo Valladares (1978), a ampliao das bases de
sustentao de uma poltica populista e autoritria. Os parques foram a
primeira tentativa de uma poltica habitacional, durante um perodo em que
vigoravam as prticas policiais tradicionais contra as favelas: incndio das
mesmas e priso de seus moradores. Em seu carter centralizador, as prticas
de controle sobre tais famlias parecem ter sido, na prtica, compensadoras
para o governo, medida que convergiam plenamente com as intenes
polticas que determinaram a criao dos parques proletrios. De acordo com
Leeds (apud Valladares, 1978):
A autoridade da administrao [dos Parques Proletrios] era absoluta.
Todos os moradores tinham carto de identificao, que
apresentavam ao guarda noturno, encarregado de fechar os portes
s 22h. s 21 horas, o administrador falava por alto falante,
comentando os acontecimentos do dia, servindo-se da ocasio para
pregar lies de moral que julgasse necessrias.
relao aos favelados, durante seu primeiro governo. Esta poltica combinava
controle, conscincia social diretamente ligada ao que Burgos (2004)
chamou de pedagogia civilizatria e culto figura de Getlio.
Se, por um lado, a experincia dos parques trouxe desagradveis
desdobramentos, como demonstrado pelos exemplos citados acima, por outro,
produziu um outro efeito inesperado ao colocar em contato o Estado e os
excludos. A novidade deste encontro deu ensejo:
(...) a um processo embrionrio de organizao dos moradores das
favelas, preocupados com a generalizao dos parques. Era evidente
que o autoritarismo da pedagogia civilizatria ensaiada e a
precariedade das instalaes (concebidas como provisrias) no
faziam dos parques uma idia atraente para os moradores das
favelas, razo pela qual criaram, ainda em 1945, as comisses de
moradores, inicialmente no Morro do Pavo / Pavozinho (...) como
forma de opor resistncia a um suposto plano da prefeitura de
remover todos os moradores para os parques (Burgos, 2004: 28).
25
Na lista de favelas do recenseamento de 1950, contava, curiosamente, o Parque Proletrio da Gvea. Segundo
Valladares (2005: 69), o Parque, concebido como soluo provisria para o realojamento de favelados, oito anos mais
tarde passou a ser considerado um fracasso, pois o que poderia ter sido uma alternativa tornou-se um equivalente
favela.
41
Tempos depois, favorecidos pela restaurao da ordem democrtica, tais
comisses formulariam, pela primeira vez, uma pauta de direitos sociais
referentes a problemas de infra-estrutura de suas reas. A partir de uma
reao popular frente ameaa de perderem suas casas e redes sociais
constitudas aps anos de convvio , diante da interveno do poder pblico
atravs do projeto de remoo de favelas, os moradores das favelas comeam
a se constituir como atores polticos, organizando-se nas unies de
trabalhadores favelados muito embora a Constituio de 1946 ainda
mantivesse a restrio do voto dos analfabetos.
O termo problema poltico foi utilizado por Marcelo Burgos no texto Dos Parques Proletrios ao Favela-Bairro.
Em sua anlise, Burgos aponta a dcada de 60 como o perodo onde as favelas sero entendidas e tratadas como uma
questo poltica, medida que aumentavam as negociaes entre o Estado e as lideranas dos moradores de favela,
diante do evidente processo de organizao poltica dos moradores de favelas.
42
Estatstica. Pela primeira vez, atravs do Censo Demogrfico, era possvel
conhecer a populao das favelas e suas condies de vida, alm de comparar
a populao do Distrito Federal em sua totalidade.
De forma indita, o Censo de 1950 apontou nas favelas uma populao
ativa, predominantemente trabalhadora, ligada atravs de ocupaes diversas
aos principais ramos da atividade econmica desenvolvidos no Distrito Federal.
A partir de ento, passam a ser questionados oficialmente:
(...) os discursos anteriores sobre a preguia e a ociosidade dos
habitantes das favelas, assim como a anlise do Censo da Prefeitura
de 1948, lembrando que, neste ltimo, a categoria dos inativos era
muito mais importante, 65%, ou seja, quase dois teros. Mas essa
categoria reunia mulheres e crianas exercendo atividades domsticas
no remuneradas, e no apenas os homens adultos inativos
(Valladares, 2005: 70).
deste
primeiro
captulo.
preocupao
diante
deste
novo
43
oferecer uma alternativa s aes anteriormente desenvolvidas pelo Estado
Novo de Vargas. Tendo sua presena fortemente marcada pela atuao junto
s favelas, no referido perodo, a Igreja, atravs da Fundao Leo XIII27,
propunha:
Ao invs do conflito poltico (...) o dilogo e a compreenso; ao invs
da luta pelo acesso a bens pblicos, o assistencialismo; no lugar da
crtica, a resignao; em vez do intelectual orgnico, a formao de
lideranas tradicionais (Burgos, 2004: 29).
27
De acordo com Valladares (1978), a Fundao Leo XIII, de rgo religioso, passou a autarquia do Estado, ligada
Secretaria de Servios Sociais, a partir de 1962. Durante alguns anos, foi o nico organismo oficial responsvel
pelas favelas do Rio de Janeiro, a quem se submetiam, inclusive, as associaes de moradores.
28
A discusso sobre raa no ser contemplada neste trabalho, dados seus limites e escolhas anteriormente
apresentados. Contudo, para maiores informaes sobre a discusso de raa no contexto brasileiro, bem como sobre
o processo de transformao do samba em msica nacional, ver Vianna (2002).
44
os casos demonstravam a necessidade premente de se alcanarem iniciativas
que combinassem controle poltico a uma pauta mnima de direitos sociais
diretamente relacionados a questes de infra-estrutura. Contudo, apesar da
atuao concomitante do Estado e da Igreja Catlica, em 1957, foi criada pelos
prprios moradores de favela uma entidade autnoma, a Coligao dos
Trabalhadores Favelados do Distrito Federal, que tinha como objetivo lutar por
melhores condies de vida para os mesmos, atravs das organizaes de
base e ao coletiva.
Para Burgos, a presena deste novo interlocutor indica que:
(...) a categoria favelado, originalmente forjada para identificar
negativamente os excludos e justificar as aes civilizatrias
arbitrrias do Estado e da Igreja, estava sendo requalificada. Com a
presena informal no mercado de trabalho e, portanto, desconectada
da luta operria, a categoria favelado empresta uma identidade
coletiva aos excludos, dando-lhes maior possibilidade de lutar pelos
direitos sociais (Burgos, 2004: 30-31).
45
do Estado. O momento histrico exigia algumas readequaes por parte dos
governantes, que comeavam a incorporar aes de negociao junto aos
favelados. Entretanto, a idia de falta, de carncia e de incapacidade destes
moradores ainda orientava boa parte do discurso e das aes governamentais,
como pose ser observado no depoimento do ento Secretrio Municipal de
Agricultura, por ocasio do estudo sobre as favelas cariocas realizado em
1958, pelo jornal O Estado de So Paulo.
Moreira:
(...) o papel das autoridades [pblicas] esse: dar apoio moral a essa
gente, dar-lhes responsabilidade moral. (...) Mas, a grande maioria da
populao favelada auto-suficiente, carecendo to somente de
orientao, apoio e boa vontade das autoridades (Moreira, apud
Burgos, 2004: 31) [grifo meu].
46
As favelas criao genuinamente carioca, no observada em
nenhuma outra cidade, mesmo no Brasil no constituem puramente
impiedoso crime contra a esttica, elas so particularmente uma grave
ameaa tranqilidade e salubridade pblicas.
Erigidas contra todos os preceitos de higiene: sem gua, sem esgoto,
sem a mnima parcela de limpeza, sem remoo de lixo; so como
largas sentinas cobertas de dejetos e dos demais resduos da
existncia humana, amontoados de imundcies e podrides
respastando nuvens de moscas, infiltrando nos quarteires da cidade
toda a sorte de molstia e de impurezas.
Desprovidas de qualquer espcie de policiamento, construdas
livremente de latas e frangalhos em terrenos do Patrimnio Nacional,
libertadas de todos os impostos, alheias a toda ao fiscal: so
excelente estmulo indolncia, atraente chamariz de vagabundos,
reduto de capoeiras, vallacoitos de larpios que levam a insegurana
e a intranqilidade aos quatro cantos da cidade pela multiplicao dos
assaltos e dos furtos (Ribeiro & Lago, 2000: 02; Trecho do discurso
Para a remodelao do Rio de Janeiro, pronunciado pelo mdico
Mattos Pimenta, um dos inventores do problema da favela, no Rotary
Club, outubro de 1926).
Aglomerado Subnormal (favelas e similares) um conjunto
constitudo de, no mnimo, 51 unidades habitacionais (barracos,
casas...), ocupando ou tendo ocupado at perodo recente, terreno de
propriedade alheia (pblica ou particular), dispostas, em geral, de
forma desordenada e densa, bem como carente, em sua maioria de
servios pblicos essenciais (Censo Demogrfico 2000, Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE).
47
de 60. O governo de Carlos Lacerda (1960-65), lanara o programa de
remoes com o objetivo de eliminar as favelas e transferir suas populaes
para os distantes conjuntos habitacionais, especialmente construdos para este
fim.
Sobre o campo poltico e os partidos que marcaram o cenrio de disputas no perodo em que o Rio de
Janeiro deixou a posio de Distrito Federal e passou condio de estado da Guanabara, conferir Motta
(2000, 2001 e 2004).
30
O nome de Carlos Frederico Werneck Lacerda foi uma homenagem a Karl Marx e Frederic Engels.
Para maiores informaes sobre a trajetria poltica de Lacerda, ver Motta (2000, 2001 e 2004).
48
esquerdista (...) (Motta, 2000). Ao longo de sua trajetria poltica, o
anticomunismo e o antigetulismo passaram a ser duas das maiores marcas
que definiram a identidade poltica de Carlos Lacerda, figura que ocuparia a
liderana de um espao tradicionalmente reservado aos integralistas ou aos
militares radicais (Motta, 2001: 122).
Se, por um lado, Lacerda ficou conhecido por sua perseguio a
comunistas e getulistas, por outro, o herosmo tambm marcou sua carreira
poltica. Vereador mais votado das eleies de 1947, renunciou ao mandato
aps um ano de exerccio do cargo por se colocar de maneira contrria
deciso da Lei Orgnica que retirou da Cmara Municipal o poder de avaliar os
vetos dos prefeitos. Tal ato foi relembrado anos mais tarde, em 1954, quando
Lacerda foi eleito deputado federal carioca mais votado. Logo em seu primeiro
discurso, o ento deputado retomou o sacrifcio da renncia passada como
forma de reforar o ato herico que julgava ser embasado por princpios morais
e ticos. O herosmo constituiu elemento central construo de seu carisma,
fator que ajuda a explicar o processo de construo da figura de Lacerda como
lder poltico.
Ao lado de sua trajetria individual e geracional, outros elementos
contriburam para a liderana que Lacerda viria a ter: o carter politizado da
populao do Rio de Janeiro e a nacionalizao da poltica carioca. Envolvido
por uma das mais fortes tradies da capital federal, Lacerda acreditava que:
(...) poltica era o poder em cena, o espetculo a ser seguido pelo resto do
pas; poltico era o tribuno, cujo discurso deveria ser capaz de conduzir um
pblico sempre mobilizado (Motta, 2004: 91).
Nos anos 50, Carlos Lacerda tornou-se um dos principais pontos de
convergncia da crise poltica que marcou o perodo, conquistando dois
eptetos que viriam a marcar sua imagem dali por diante: o corvo e o
demolidor de presidentes. Dono de uma oratria brilhante, viu crescer a fora
de sua voz e de sua imagem: armas polticas que passaram a ser encaradas
como verdadeiras ameaas ao governo, tanto que foram tomadas medidas
para impedir sua fala pela televiso ou pelo rdio. Voraz perseguidor do ento
49
presidente, em agosto de 195431, Carlos Lacerda sofreu um atentado que
acabou por se transformar em golpe fatal ao j fragilizado governo Vargas. Em
novembro do ano seguinte, foi a vez do tombeur de prsidents liderar o
movimento que tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Na Cmara
dos Deputados, onde permaneceu de 1955 a 1960, Carlos Lacerda foi teve
uma marcante atuao, sendo considerado (...) o tribuno implacvel, temido
pelos rivais e adorado pelos seguidores (...) (Motta, 2000: 37).
Atravs da UDN, Lacerda lanou sua candidatura ao governo do exDistrito Federal, que se transformou em estado da Guanabara. Como
candidato a governador, passava a ter o desafio de aliar a arte da retrica
poltica que dominava muito bem com o saber administrativo no qual era
apenas um novato. Em sua campanha ao governo do jovem estado, adotou o
lema reconstruir a cidade e formar o estado, explorando exaustivamente (...)
a questo da transferncia da capital para Braslia como demonstrao de
desamor do governo federal pela cidade maravilhosa(...) (Gomes, 2003: 03).
Os desafios eram muitos e Lacerda precisava demonstrar ao eleitorado
carioca que, alm de seu incontestvel carisma, possua habilidades
suficientes para dominar as atividades rotineiras da administrao pblica.
Afinal, era a primeira vez que o poltico se lanava a um cargo do Executivo.
Para esta importante tarefa, Lacerda contou com a fundamental ajuda do
veterano publicitrio Emil Farhat, que lhe indicou o caminho a ser trilhado:
Voc no mais candidato Cmara Municipal. Largue o bordo. Pegue um
tijolo e diga vou construir (Dulles, apud Motta, 2000: 38) [grifo meu]. Assim, a
candidatura
de
Lacerda
ressaltava
trs
metas
prioritrias,
saber:
clara
sua
concepo
que
diferenciava
estadualizao
de
campanha
para
primeiro
governo
da
Guanabara
trazia
31
Ainda em 1949, Lacerda funda seu prprio jornal, denominado Tribuna da Imprensa, de onde comandou
implacvel campanha contra o segundo governo Vargas (1950-54). Importante veculo de comunicao no cenrio
carioca, a Tribuna da Imprensa tambm funcionava como um instrumento poltico para as intenes de Lacerda.
50
identidade como novo estado que havia acabado de perder, pelo menos de
direito, o lugar de capital que ocupou por mais de um sculo. Sabedor da
importncia desta questo, Lacerda lanou mo de uma estratgia que
privilegiou o tratamento de tal identidade, sendo este um dos grandes pontoschave para sua a vitoriosa campanha. Da seu esforo em provar que sua
principal preocupao como governador residiria no enfrentamento dos
problemas da Guanabara nascente, como costumava proferir em seus
inflamados discursos. Embora no negasse a importncia das bandeiras
nacionalistas32, Lacerda preferiu voltar-se a outro ponto crucial para o
eleitorado carioca de ento: a conquista da autonomia poltica. A perda da
efetiva condio de capital, lamentada por muitos, deveria ser recompensada
pela conquista da autonomia poltica do novo estado. Assim, o candidato
udenista alertava que era necessrio preservar o espao poltico carioca para
os cariocas.
O vigoroso debate em torno da questo da autonomia ligava-se
discusso sobre a perda da posio de capital do pas. Segundo Motta, para a
Guanabara continuar a ser capital de fato do pas, seu futuro governador
deveria ter uma estatura nacional, capaz de fazer a indispensvel ponte entre a
poltica estadual e a nacional (Motta, op cit: 137). O discurso de Lacerda
estruturava-se com base nesses temas. Atacava um de seus adversrios
candidatura do governo da Guanabara Tenrio Cavalcanti , criticando sua
poltica vinculada a Duque de Caxias, como no sendo capacitado condio
de governador do estado que havia sido cidade-capital do pas por mais de um
sculo. Assim, Lacerda sintonizava-se com parte do eleitorado carioca e, ao
mesmo tempo, preparava o terreno poltico de acordo com suas aspiraes ao
governo federal.
Mas a campanha de Lacerda inspirava outros cuidados to importantes
quanto os j mencionados: burlar a grande resistncia que os setores
populares sustentavam em relao a seu nome. No por acaso, o lugar
escolhido para o incio de sua campanha foi a 15 Zona Eleitoral, o ento
chamado serto carioca, rea que hoje corresponde parte da Zona Oeste
32
51
constituda por bairros como Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba. Para
Motta (2000), era preciso levar em conta que a 15 Zona Eleitoral concentrava
o maior nmero de eleitores do estado, quase cem mil votantes. E, para a
inquietao de Lacerda e seus correligionrios, esta expressiva massa de
eleitores no se encontrava tradicionalmente ligada UDN. Resultados
eleitorais anteriores indicavam uma expressiva reduo da votao de Lacerda
nos chamados bairros populares: em reas como Copacabana e Leme com
cerca de noventa e cinco mil votantes Lacerda obteve cinqenta e quantro
mil votos, enquanto que nas reas de Campo Grande, Santa Cruz e Realengo
com aproximadamente noventa e oito mil votantes o candidato da UDN
alcanou pouco mais de vinte mil votos.
O tmido desempenho eleitoral de Lacerda nos povoados subrbios
representou a necessidade de investir na aproximao com tais eleitores:
Lacerda, o poltico nacional, precisava agora ancorar suas bases na poltica
local (...) (Motta, 2004: 140). Era constante a preocupao do candidato com
relao ao distante eleitorado. Distncia esta representada tanto pelo
afastamento geogrfico das regies habitadas por tais eleitores como pela forte
resistncia demonstrada ao nome de Lacerda (e da UDN): rejeio vinculada,
em grande parte, ao controle hegemnico de polticos populistas locais
contrrios ao partido de Lacerda. Aps os entusiasmados comcios em reas
cuja aceitao do poltico alcanava altos nveis, como Ipanema e Botafogo,
Carlos Lacerda, que no se esquecia de suas fragilidades, lanava a seguinte
indagao a seus assessores: E da Praa da Bandeira pra l?33
Embora empenhado em minimizar a rejeio do eleitorado suburbano e
dos redutos proletrios, Lacerda no viu seus esforos serem bem-sucedidos
neste campo. Mas este no foi o nico fator que levou Lacerda quase
derrota, em uma disputa extremamente acirrada para o governo da Guanabara.
Outro
elemento
ameaava
os
objetivos
do
candidato
udenista:
33
52
O candidato da UDN tinha aceitao elevada entre as classes mdia e
alta, em detrimento de sua receptividade entre as classes menos abastadas.
Picaluga e Couto sustentam que a campanha para governador empreendida
por Carlos Lacerda dirigiu-se prioritariamente para a classe mdia, e muito
secundariamente para os setores populares (cf. Bruinini apud Motta, 2000:
48). As dificuldades enfrentadas pelo poltico udenista diante da hostilidade dos
eleitores das zonas suburbana e rural fortes redutos eleitorais dominados
pelo ento PTB no chegaram a ser vencidas. Em localidades como
Santssimo e Bangu, a presena do udenista era recebida ao som de A vem o
assassino de Vargas (Id Ibid).
Longe dos pobres e bem aceito pelas classes mais favorecidas
economicamente vide a expressiva votao obtida pelo candidato em reas
habitadas por setores da classe mdia Lacerda encarava o governo da excapital federal no s como coroamento de sua longa trajetria poltica na
cidade, mas sobretudo, como ponte de passagem que o conduziria
presidncia da repblica. Assim, para Lacerda, tornar-se o primeiro governador
da Guanabara era uma grande aposta poltica que mostraria sua capacidade
para a to importante tarefa de conduzir o pas.
Ao avaliar os fatores que contriburam para o resultado favorvel a
Lacerda nas urnas, Motta (2000) analisa o cenrio scio-poltico de ento. Um
dos elementos apontados por Motta para sua vitria foi o fato de mais de um
candidato compor o campo do anti-lacerdismo. A diluio do campo da forte
oposio contra Lacerda impediu a radicalizao da campanha, que poderia vir
a ser tornar uma disputa entre ricos e pobres, entreguistas e lacerdistas.
A autora considera a candidatura de Tenrio Cavalcanti pelo PST como
elemento que contribuiu de maneira expressiva para a vitria de Lacerda. O
candidato da Baixada, embora duramente atacado por Lacerda como incapaz
de governar a Guanabara, possua forte apelo junto aos moradores dos
subrbios cariocas, retirando, desta forma, quantidade significativa de votos de
Srgio Magalhes, candidato da coligao PTB/PSB.
Mas, alm da influncia da candidatura do Homem da Capa Preta de
Caxias, outros fatores auxiliaram no desfecho favorvel a Carlos Lacerda, entre
eles a nfase conferida por Srgio Magalhes aos grandes temas nacionais.
Segundo Motta: Apesar de o componente nacionalizador ser um dos
53
elementos definidores do campo poltico carioca, importante reconhecer que
se tratava, naquele momento, da primeira eleio do novo estado (Motta,
2000: 52). Se, por um lado, o candidato petebista conseguia trazer cena a
discusso sobre o imperialismo e o subdesenvolvimento: por outro, dava a
Lacerda a possibilidade de ataque a suas propostas, ressaltando a
necessidade premente de discusso dos problemas locais do jovem estado.
Alm dos distintos caminhos polticos trilhados por ambos os candidatos um
atendo-se s questes nacionais e outro destacando as demandas locais ,
outro elemento diferenciava Srgio Magalhes e Carlos Lacerda de maneira
marcante: o capital poltico acumulado em funo das competncias polticas
de cada um dos polticos cariocas. Nas palavras do prprio candidato do PTB:
Existia uma diferena no tipo de discurso, porque ele [Lacerda] era um homem
literrio (...) e eu era um homem que tratava mais dos problemas (Couto, apud
Motta, Id Ibid). A vitria de Lacerda mostraria, assim, parte de uma tendncia
tradicional do campo poltico carioca em valorizar a figura do tribuno
carismtico em detrimento de outras habilidades e formas de conhecimento.
Todavia, o carisma de Lacerda, associado a uma imagem vibrante e a
uma oratria envolvente, tinha um alvo especialmente suscetvel: o eleitorado
feminino, cujo voto no era obrigatrio naquele perodo. Sabedor da
importncia desta fatia do eleitorado carioca, Lacerda e o jornal Tribuna da
Imprensa iniciaram uma campanha de chamamento das mulheres ao
engajamento poltico dentro de papis tradicionalmente ocupados pelas
mesmas: professoras, enfermeiras, mes e esposas. Embora no se saiba
exatamente o peso do voto feminino para a vitria de Lacerda, torna-se
possvel destacar que o candidato teve uma aceitao bastante significativa
entre as mulheres, especialmente entre aquelas oriundas das classes mdias e
altas.
Por fim, podemos ressaltar que o resultado positivo alcanado por
Lacerda nas eleies para o primeiro governo da Guanabara tambm esteve
associado vitria de Jnio Quadros Presidncia da Repblica. De acordo
com Motta: (...) no h como negar (...) o impulso positivo que a avalanche
janista teve sobre a candidatura de Lacerda. (Motta, 2004: 53) Diante dos
resultados obtidos pelo candidato que tinha como um dos smbolos de sua
campanha uma vassourinha que iria varrer a corrupo do pas, Carlos
54
Lacerda utilizou-se estrategicamente da idia muito comum ainda na
atualidade de que a eleio do governador e do presidente de um mesmo
partido seria a garantia de mais recursos para o novo estado.
Vencida a eleio Lacerda, tinha diante de si a importante tarefa de
transformar a ex-capital em um estado federado e, para tanto, ressaltava a
necessidade de montar uma nova mquina administrativa compatvel com as
novas demandas, alm de colocar em execuo suas promessas de
campanha. Em paralelo com a implantao da nova mquina administrativa,
Lacerda voltou-se implementao de seu pano de metas baseado em trs
grandes pilares: abastecimento de gua, ampliao do sistema escolar e
ordenao do espao urbano. Esta ltima meta foi de suma importncia para o
tema em anlise, pois representou o pano de fundo das transformaes
urbanas promovidas pelo governo Lacerda. Nestas, tiveram destaque especial
sua poltica de remoo de favelas e a conseqente construo dos conjuntos
habitacionais especialmente planejados para abrigar as famlias das favelas
removidas.
O governo Lacerda ficou marcado pela personalizao do governo,
centralizando em sua figura boa parte das decises mais importantes. Alm
disso, o primeiro governador da Guanabara tornou-se conhecido por seu estilo
de marcar presena junto populao, procurando, como fez questo de
destacar Tribuna da Imprensa, em dezembro de 1960, no se isolar nos
gabinetes (Motta, 2004: 56).
No campo administrativo, as primeiras medidas visavam desconcentrar
o servio pblico, possibilitando aos moradores o acesso mais facilitado, em
seus prprios bairros ou em localidades prximas a eles aos servios
oferecidos pelo estado. Assim, foram criadas as Regies Administrativas RAs
que passaram a abrigar vrios rgos da administrao estadual. A partir de
meados de 1961, foi inaugurada a I Regio Administrativa que, no por acaso,
foi sediada em Campo Grande. O incio da experincia das regies
administrativas pelo serto carioca no foi uma escolha aleatria, pois
representava a possibilidade de tornar a administrao de Lacerda mais visvel
e prxima do eleitorado responsvel por seu menor ndice de votao. Assim,
Lacerda continuava, mesmo aps ter vencido as eleies, preocupado em
aproximar-se destes eleitores. A indicao do diretor do maior hospital de
55
Campo Grande como administrador da I RA (...) teve igualmente o intuito de
assinalar a presena de um agente do poder pblico estadual junto
populao local (Motta, 2004: 57).
Segundo Gomes (2003), Lacerda realizou inmeras obras de infraestrutura, durante seu governo: a abertura de tneis para a melhora do acesso
zona sul e ao centro da cidade, construo de vias expressas para
desobstruir o trnsito, construo da Rodoviria Novo Rio, urbanizao do
Aterro do Flamengo, ampliao da capacidade de abastecimento de gua com
o trmino da construo da adutora do Rio Guandu e melhorias na rede de
esgotos. Lacerda parecia ter cumprido risca os conselhos do homem que
cuidou do marketing de sua campanha poltica ao primeiro governo da
Guanabara, quando orientou o poltico a dizer: vou construir.
Para levar cabo suas metas de governo Lacerda necessitava de um
considervel manancial de recursos, que chegou s suas mos atravs de
duas grandes fontes financiadoras: o governo federal e os emprstimos
externos. Com relao ao financiamento internacional, cabe destacar que o
ferrenho anticomunismo de Lacerda favoreceu sobremaneira o acesso a
emprstimos advindos de agncias estrangeiras, sobretudo norte-americanas.
Outro aspecto que tambm contribuiu para o reforo da posio de Lacerda
como receptor de recursos norte-americanos foi a ascenso do esquerdista
Joo Goulart Presidncia da Repblica, aps a polmica renncia de seu
antecessor Jnio Quadros. Alm disso, o primeiro governo do estado da
Guanabara teve incio logo aps a vitria da revoluo socialista de Cuba34, em
1959. Fato que exigiu um reordenamento de toda a poltica externa norteamerica com relao ao contexto da Amrica Latina. Assim, em 1961, foi
criado, durante a reunio da Organizao dos Estados Americanos (OEA), um
programa de assistncia ao desenvolvimento socioeconmico da Amrica
Latina denominado Aliana para o Progresso.
Apesar de o governo da Guanabara ter tido acesso a um significativo
volume de recursos externos, os repasses eram realizados parceladamente, de
34
De acordo com Eduardo Galeano, quando Fidel Castro dirigiu-se ao Banco Mundial e ao Fundo Monetrio
Internacional, nos primeiros tempos da Revoluo Cubana, para reconstruir as reservas de divisas estrangeiras
esgotadas pela ditadura de Batista, ambos organismos lhe responderam que primeiro devia aceitar um programa de
estabilizao que implicava, como em todas as partes, o desmantelamento do Estado e a paralisia das reformas de
estrutura. Para saber mais sobre a poltica norte-americana junto aos pases da Amrica Latina, ver Galeano (2002).
56
acordo com o cronograma de execuo das obras. Desta forma, os
emprstimos externos aplicados na Guanabara, atravs do programa de
assistncia da Aliana para o Progresso, foram de grande importncia
realizao de aes planejadas pelo governo Lacerda, mas (...) a Guanabara
enfrentou o grosso das despesas de 1961 e 1962 com receita gerada no
prprio estado (Motta, 2004: 61).
Na perseguio das metas prometidas ainda no perodo de sua
campanha ao governo do novo estado, Lacerda precisava vencer o desafio de
aumentar o nmero de vagas nas escolas pblicas e de melhorar o sistema de
abastecimento de gua. Mas foi a meta de interveno no espao urbano
carioca uma das iniciativas mais polmicas do ento governador. A remoo
de favelas como apontado anteriormente no foi uma novidade do governo
Lacerda. Contudo, a partir da dcada de 60, o governador que pretendia
reordenar o espao urbano carioca lanou, efetivamente, um programa de
remoes, (...) cujo objetivo era eliminar as favelas e transferir suas
populaes para outros locais. (Valladares, 1978: 24). Criou-se, em 1962, a
COHAB-GB que, contando com as verbas da United States Agency for
International Development USAID , construiu conjuntos habitacionais
especialmente projetados para receber as famlias das favelas removidas. E foi
justamente neste contexto de remoes que o governo Lacerda ergueu os
conjuntos Vila Kennedy, Vila Aliana e Vila Esperana.
Para justificar as remoes, Lacerda sustentava que seria um crime
contra a populao carioca desperdiar os recursos que a explorao de
pontos to valorizados da cidade poderiam permitir (Azevedo, 1999; 95).
Segundo o ento governador do estado da Guanabara, o Morro do Pasmado
daria lugar a um empreendimento hoteleiro e a favela do Esqueleto,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde futuramente os filhos do dos
favelados poderiam estudar (Id Ibid). Mais de quatro dcadas depois, restanos constatar que, infelizmente mas no de maneira incompreensvel , o
acesso s universidades pblicas continua sendo uma realidade muito distante
para boa parte dos jovens moradores das favelas de nossa cidade.
Despontando no cenrio carioca como um problema poltico (Burgos,
2004), as favelas cariocas representavam um verdadeiro impecilho ao projeto
lacerdista de reordenamento do espao urbano no estado. Mas a dimenso
57
poltica das favelas precisava ser levada em conta e, para tanto, a partir de
1960, o Servio de Recuperao de Favelas e Habitaes Anti-higinicas
(SERFHA) passou a fazer parte da Coordenao de Servios Sociais do
Estado da Guanabara. Sob o comando de Arthur Rios, o SERFHA buscou a
aproximao com as favelas, estimulando inclusive a formao de associaes
de moradores onde as mesmas inexistiam. Na prtica, de acordo com a anlise
de Burgos (2004), a ao do poder pblico apenas acenava com a substituio
da Igreja Catlica pelo Estado. Em resumo, no lugar da estratgia de formar
lideranas tradicionais, o Estado passava a oferecer uma alternativa com
resultados mais imediatos atravs da cooptao destas lideranas. Contudo, a
ao do SERFHA no duraria muito tempo. Interrompido com a demisso de
Arthur Rios pelo governador Carlos Lacerda, que reconhecia na experincia do
Servio marcas da gesto de Negro de Lima, foi criada a Companhia da
Habitao Popular COHAB.
Enquanto o Estado procurava a melhor forma de negociao com a
populao favelada, as lideranas dos moradores de favelas continuavam a
avanar em sua estrutura organizacional. Mas a resposta do Estado no tardou
a chegar. A reestruturao da Fundao Leo XIII que, em 1963, se desligou
da Igreja Catlica, passando condio de autarquia do Estado, teria grande
importncia no sentido de exercer uma vigilncia mais acirrada da vida poltica
das favelas.
Para alm de sua preocupao com o futuro das organizaes polticas
nas favelas cariocas, o governo do estado da Guanabara tinha a inteno de
intervir no espao urbano que envolvia diretamente as favelas. Inicialmente, o
governo Lacerda atuou em duas frentes simultneas: a urbanizao e a
remoo. Por um lado, urbanizou algumas poucas favelas e, por outro,
removeu vrias outras construindo, entre 1962 e 1965, com a ajuda do
financiamento norte-americano, os conjuntos habitacionais anteriormente
citados.
Se o deslocamento de favelas no foi uma inveno do governo
Lacerda, tambm no era indita a inteno de transferir as populaes
faveladas para reas prximas a zonas industriais. Logo no primeiro ano de
governo, Lacerda props o estabelecimento de duas reas industriais: uma
situada s margens da Avenida das Bandeiras (atual Avenida Brasil) e outra,
58
em Santa Cruz bairro que fazia parte da rea rural conhecida como serto
carioca, atual Zona Oeste do Rio de Janeiro , onde deveriam se instalar
indstrias
pesadas,
como
Companhia
Siderrgica
da
Guanabara
(COSIGUA).
Na dcada de 60, a Guanabara possua muitas favelas que se
localizavam em regies importantes da cidade, como a Zona Sul:
(...) rea mais valorizada de uma cidade espremida entre o mar e a
montanha, cuja desocupao interessava sobremaneira ao capital
imobilirio, que a via oportunidades de investimento altamente
lucrativo (Motta, 2004: 62).
59
(formal ou no). De outro, a promessa de terem casa prpria e de desfrutarem
de infra-estrutura bsica (gua, esgoto, luz, calamento) exercia forte apelo.
Alm disso, aos removidos havia a promessa de empregos em reas prximas
como Santa Cruz, onde seria implantada uma zona industrial. Em Vila
Kennedy, seria instalado:
um centro artesanal e servios comunitrios, incluindo fbrica de
costura, lavanderias, granjas, padaria, creche, escolas, clube com
quadras de esporte e at piscina, tudo administrado pelos moradores
em regime de cooperativa (Azevedo, 1999: 95).
60
de remoes, o governo do estado da Guanabara criou, em 1962, a COHABGB que, contando com verbas da USAID, construiu as vilas Kennedy, Aliana e
Esperana.
Interessa-nos salientar tambm que as questes derivadas da pobreza
dos trabalhadores urbanos em pases subdesenvolvidos e a sua conseqente
marginalidade (econmica e social) foram, em certa poca, pensadas atravs
da equao pobreza-marginalidade-favela. A idia central, tanto nos estudos
acadmicos, quanto nas propostas de polticas pblicas destinadas s
populaes pobres, estava diretamente ligada ao entendimento de que o
crescimento urbano no Brasil se deu graas a um aumento do processo de
urbanizao que no foi, contudo, acompanhado pelo crescimento industrial.
Neste contexto, o foco dos estudos e das polticas voltava-se habitao,
sendo a marginalidade entendida como um problema fsico-ecolgico: o das
favelas (Zaluar, 2000: 64). A partir desta concepo, surge a idia de que o
problema poderia ser solucionado com a remoo da populao favelada
para moradias de baixo custo, incorporando, assim, tal populao
sociedade moderna.
Mesmo levando-se em considerao os inmeros interesses que uniam
diferentes setores das classes mdia e alta em torno da aceitao das
remoes como medida que resolveria o problema da favela, h que se
destacar que as polticas pblicas adotadas neste perodo tambm levavam em
considerao
as
demandas,
os
interesses
as
reivindicaes
dos
61
Os primeiros conjuntos construdos, de acordo com o plano inicial do
ento secretrio de planejamento Raphael de Almeida Magalhes, deveriam
ser, em sua grande maioria horizontais, isto , constitudos de casas, cujos
mdulos iniciais mnimos representavam a aplicao prtica da idia de
construo de casas a custos reduzidos que poderiam ser modificadas pelos
prprios moradores. Este era o projeto das chamadas casas embrio. Em
discurso de 1962, com o intuito de demonstrar as medidas que o estado da
Guanabara vinha realizando, Lacerda apresentava o projeto:
Para a construo de casas, o esquema de nosso projeto modesto
(...) vamos, simplesmente, urbanizar certas reas, dotando-as de
arruamento, galerias pluviais, luz, gua e esgoto, em zonas quanto
possvel acessveis a meios de transporte. Nessa rea, vamos fazer
lotes de 8 por 15 metros. Em cada lote, vamos construir pequenas de
casas de um aposento, cozinha e banheiro. O projeto comporta a
expanso desta casa, desde que o morador queira construir ele
prprio, ou por sua conta o restante, at trs quartos e uma varanda
(Lacerda, 1962 apud Capello, 1991:16).
62
eliminao das favelas, atravs da progressiva demolio dos barracos. No
fragmento do discurso acima citado, pode-se perceber que a fala do ento
governador buscou envolver a populao favelada na poltica habitacional
executada. O papel dos moradores como novos proprietrios foi ressaltado em
sua dupla importncia: por um lado, o pagamento das casas representaria a
melhoria das condies de vida do muturio (e de sua famlia); por outro, a
quantia paga ao longo dos anos reverteria para a ascenso de outros
moradores de favelas, que passariam igualmente a habitar em condies
dignas de moradia.
Apresentada como soluo racional para problema da favela, a
construo dos conjuntos habitacionais conviveu com perspectivas e
promessas que, no mais das vezes, no puderam ser constatadas na prtica.
Esta distoro entre o que era previsto pelos projetos iniciais dos conjuntos e a
realidade vivenciada por muitos moradores pode ser percebida no caso de Vila
Kennedy: infra-estrutura precria, distncia dos locais de trabalho, dificuldades
no pagamento das prestaes etc. Todavia, necessrio ressaltar que as
remoes cumpriram seu objetivo de afastar as favelas de muitas reas de
interesse para as camadas mdias e altas, alm do setor imobilirio, ao mesmo
tempo em que acabaram resultando
em um processo de no-fixao de
35
Segundo Valladares (1978:24), a construo das vilas (Vila Kennedy, Vila Aliana e Vila Esperana) constituamse exclusivamente de casas (de cinco tipos diferentes, de 30m a 47m), totalizando, respectivamente, 5.069, 2.187 e
464 unidades.
63
de existncia, o conjunto conheceu algumas alteraes estruturais, da mesma
forma que tambm se alterou a composio da populao local.
A seguir, mapa de Vila Kennedy:
Projetado para abrigar pouco mais de cinco mil casas, o conjunto foi
formado por trs glebas que compunham o projeto original36 e para onde foram
enviados, quando de sua inaugurao, cerca de vinte quatro mil habitantes.
O grfico demonstra a origem dos moradores para Vila Kennedy37.
Grfico 1
Favelas removidas para Vila Kennedy (% moradores)
36
37
As trs glebas projetadas para formar o conjunto podem ser observadas no Anexo II deste texto de qualificao.
O Anexo IV apresenta o mapa com as favelas cariocas removidas para Vila Kennedy, nos anos 60.
64
70%
60%
50%
40%
30%
20%
V
in
te
E
sq
ue
le
to
M
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B
r
sd
e
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na
N
ov
a
H
ol
an
da
10%
65
A mobilidade residencial foi uma das caractersticas apresentadas pelos
conjuntos habitacionais, que viram o perfil de seus moradores sofrer alteraes
ao longo do tempo, pois boa parte dos moradores removidos de favelas e
mesmo aqueles indivduos oriundos de outras localidades no se
enquadravam nas premissas concebidas pelo programa de acesso casa
prpria nos anos 70. Como ressalta Valladares:
a operacionalizao do SFH foi concebida sem levar em
considerao as caractersticas scio-econmicas das camadas
populares, no caso, moradores de favelas (1978: 109).
66
reduo na renda familiar de boa parte dos removidos. Alm das dificuldades
econmicas, outros problemas relacionados precariedade dos servios
pblicos eram enfrentados pela populao dos conjuntos. No caso de Vila
Kennedy, a situao dos moradores no era diferente:
As crianas eram as maiores vtimas de doenas crnicas:
verminoses, diarrias, anemias e doenas de pele. A tuberculose, a
hepatite e a meningite tambm alcanavam ndices altos. As doenas
decorriam da desnutrio e da situao sanitria: o esgoto,
sobrecarregado com a chegada de maior nmero de moradores,
reflua para dentro das casas e o valo que corta toda a Vila demorou
mais de dez anos para ser dragado (Gomes, 2003: 25).
67
configurar um novo perfil de habitantes nos conjuntos: novos residentes vindos
de diversos subrbios e demais reas perifricas da cidade apresentavam um
perfil econmico um tanto diferenciado, pois, em muitos casos, dispunham de
capital inicial para a compra das casas e futuras reformas.
Com o passar dos anos, a fisionomia dos conjuntos habitacionais
mudou. Fato tambm observado em Vila Kennedy, que teve a quase totalidade
de suas casas modificada a partir de melhorias realizadas pelas novas
geraes de moradores que fixaram residncia na Vila. No captulo a seguir,
analiso a Vila Kennedy de meados dos anos 60 ao 80, retratada pelas
lembranas
de
antigos
moradores.
As
memrias
destes
residentes
68
o pensamento de
Portelli, estou
compreendendo que:
Representaes e fatos no existem em esferas isoladas. As
representaes se utilizam dos fatos e alegam que so fatos; os fatos
so reconhecidos e organizados de acordo com as representaes;
tanto fatos quanto representaes convergem na subjetividade dos
seres humanos e so envoltos em sua linguagem (Portelli apud
Passos & Delgado, 2006:120).
38
Vila Kennedy foi planejada, originalmente, com trs glebas (vide mapa de Vila Kennedy, na Introduo
desta dissertao). Com o passar dos anos, alm das trs reas citadas, Vila Kennedy passou a conviver
com outros conjuntos construdos tambm por iniciativa do governo (como o Conjunto do Quaf e o Conjunto
Sargento Miguel Filho), alm da formao de outras reas em suas franjas como favelas e loteamentos. A composio
atual das reas em Vila Kennedy ser melhor apresentada no Captulo 3.
69
Como visto no captulo anterior, o processo de chegada das famlias aos
conjuntos habitacionais contemporneos Vila Kennedy foi bastante explorado
pela literatura das Cincias Sociais (Valladares, 1978), sobretudo nos anos 70.
De acordo com as pesquisas realizadas, tal como em Cidade de Deus, Vila
Aliana e outros conjuntos, as famlias de removidos para Vila Kennedy saam
de seus locais de origem onde quase sempre j possuam suas vidas
enraizadas e se deparavam com uma realidade bastante nova em diversos
aspectos. Esta novidade gerava impactos econmicos e sociais e colocava os
moradores diante de problemas (e adaptaes) a serem administrados, na
maioria das vezes, por eles prprios.
Segundo fontes da poca, boa parte dos moradores removidos para Vila
Kennedy vinha da favela do Esqueleto, sendo seguida por moradores
removidos de outras favelas situadas nos subrbios algumas delas s
margens da Avenida Brasil, como o caso da extinta favela Maria Angu e
outras em menor nmero situadas na Zona Sul (vide Grfico 1 do Captulo 1).
Nesta pesquisa, busquei entrevistar moradores mais antigos em Vila Kennedy.
Assim, das treze entrevistas realizadas, oito foram concedidas por moradores
removidos na dcada de 60; duas, por moradores residentes em reas
suburbanas e vindos para Vila Kennedy aps o casamento; e trs39, por
moradores que nasceram e foram criados em Vila Kennedy.
39
As entrevistas destes moradores sero analisadas apenas no 3 captulo, pois, embora residam em Vila
Kennedy h trs dcadas, no vivenciaram seus primeiros anos. Suas informaes sobre o perodo ora
em anlise so oriundas de histrias contadas por pais e avs.
70
glebas40 que compunham o conjunto poca de sua inaugurao foi
removida de favelas das zonas sul e norte. Contudo, foram entrevistados
tambm moradores de reas suburbanas da cidade, como Pavuna e Marechal
Hermes, que vieram para Vila Kennedy no em situao de remoo: mulheres
que acompanharam seus maridos na vinda para o conjunto em situao
bastante diferente daquela vivenciada por moradores retirados de favelas como
Babilnia, Esqueleto e Maria Angu. As diferenas e semelhanas entre os
discursos de removidos e no removidos sero melhor destacadas ao longo
deste captulo.
Antes mesmo ou, em paralelo s lembranas sobre a Vila Kennedy de
outros tempos, a quase totalidade destes moradores entrevistados teceu
comentrios sobre a vida em seus antigos locais de residncia. Interessante
destacar que o grupo de removidos dava maiores detalhes de suas vidas nas
favelas de origem, se compararmos queles moradores residentes em reas
suburbanas da cidade.
L [favela do Esqueleto] era uma beleza, era uma maravilha, perto do
emprego, tudo fcil, comrcio, tudo... a ns viemos para c com a
promessa de que ia a universidade [UERJ] ser para os nossos filhos,
aquele papo que voc conhece furado de poltico. E o governador na
poca a gente sentia que ele tinha interesse de ser presidente da
repblica na poca. Ele era governador e ento fazia aquele jogo de
remoes, n, e no foi aqui na Vila Kennedy s o Esqueleto que veio
no, veio Maria Angu, veio Pasmado, o Morro do Pinto, veio Babilnia,
veio vrias outras, essas aqui eu lembro, mas tem vrias outras, n?
41
(Rui)
Aquilo ali [remoo] foi um impacto, porque agente era oriundo dali
[Babilnia]. Naquela poca, voc na Zona Sul ali voc tinha trabalho
perto, colgio... a gente descia o morro... favela [tom de menosprezo
na voz], naquela poca a gente nem falava favela, a gente falava
morro, entendeu? A gente descia, mal 5 min, a gente tinha um colgio
perto, um colgio, na poca com ensino que era um dos melhores,
voc tinha professores aplicados, tinha alimentao farta... Tinha meu
pai que trabalhava perto, tinha minha me que era domstica e
tambm trabalhava perto em casa de famlia. Quer dizer, ali voc tinha
um meio de vida, pra certas coisas, razovel, bom. Dentro dali, a
gente tinha o conhecimento de muitas coisas. A voc pergunta, mas
como voc lembra? A gente vivia ali e via os fatos acontecerem, ento
a gente via. O estudo era bom e isso fazia com que a gente tivesse,
vamos dizer, um conhecimento mais aguado (Pedro).
Eu morava no morro e subia tudo nas costas. Aqui [Vila
42
Kennedy]] eu tinha tudo na porta (Ins).
E com gua encanada dentro de casa (Mariana).
40
71
A gente subia e descia com a lata de gua na cabea pra botar
no banheiro (Ins).
Eu morava na Maria Angu, que era em cima dgua, a vida era pior
ainda, precria, quando a mar enchia no podia passar, as crianas
caam e se cortavam na lata, a gente carregava aqueles lates...
Quando a mar enchia, cobria a ponte e a gente no podia entrar nem
sair (...)
Eu fui morar l [conjunto do SERFHA], comprei um barraco de outra
pessoa, l j tinha uma aguinha encanada, demorava a vir, mas
tinha... Era barraco, coladinho um no outro, de madeira. Se a gente
botasse um prego na parede o vizinho de l escutava e cai as coisas
na parede do vizinho (urea).
Quando eu vim, eu no gostava porque eu nasci e me criei em
Bangu... em Bangu no, na Pavuna. Quando eu vim estranhei, n. Eu
estava acostumada l e vim pra c, num lugar que eu no conhecia
ningum, a no ser a famlia do meu marido. A meio esquisito, mas
agora eu estou gostando. Agora j gostei, j me acostumei (Paula).
Mesmo morando no morro [da Babilnia], o barraco era um bom
barraco, era de estuque, era grande... tinha dois quartos, uma sala
ampla, uma cozinha ampla e em baixo, a gente chamava poro, era o
banheiro. Mesmo com toda a precariedade, a gente tinha um espao
grande. ramos seis filhos, mais meu pai e minha me. ramos
pequenos, todos na escola, ento dava. Meu pai trabalhava e minha
me lavava roupa pra fora. Como era tudo ali muito perto, dava
(Ronaldo).
43
A categoria morro foi utilizada por todos os moradores removidos que no habitavam favelas planas, como
Babilnia e Alto da Boa Vista. Segundo seus relatos, quela poca no era comum usar a palavra favela, e sim
morro.
72
contradas pela gua sem tratamento, por exemplo. J os ex-moradores de
favelas situadas na zona sul, relataram uma condio de vida bem menos
penosa. Alm de viverem em uma regio que oferecia acesso rpido e fcil aos
locais de trabalho, os barracos habitados pelas famlias foram, em geral,
considerados como adequados s necessidades bsicas. Havia espao para
todos os membros da famlia e os pais podiam se deslocar para o trabalho que
dava condies mnimas de sustentar a casa, segundo os padres e
necessidades da poca.
Ao comparar os discursos de ambos os grupos de moradores, possvel
pensar sobre o grau de importncia conferido idia de tornarem-se
proprietrios de uma residncia em pleno perodo de remoes. Para os
entrevistados oriundos de favelas da zona norte, a remoo parecia a grande
sada, o caminho que os levaria a melhores condies de moradia e que ainda
lhes proporcionaria a possibilidade de serem proprietrios de uma casa. J
para os ex-habitantes de favelas da zona sul, a remoo veio como uma
interveno externa e no como uma oportunidade para melhoria de vida
desejada pelos moradores.
A maioria do pessoal da comunidade ficaram perdidos. Diziam que a
gente... comeou a aparecer aqueles agentes sociais l, dizendo... a
gente nem tinha informao correta. Uns diziam que a gente vinha
praqui e outros que a gente ia pra Cidade de Deus. Eu me lembro
que meu pai at foi l visitar, mas tambm, coitado, tinha um
entendimento pequeno, no conhecia a Zona Norte. Ento, tambm
aqueles vizinhos de redondeza era uma incgnita. E eles comearam
a fazer obras de conteno e dizendo que devido a rea ter se
tornado uma rea perigosa... ento veio a remoo. (...) Ai, voc tinha
uma opo na poca, se voc aceitasse ser removido, voc tinha
direito a receber uma residncia num determinado lugar por eles
indicado ou ento voc entrava num acordo e recebia na poca uma
indenizao. Mas voc ia receber uma indenizao e fazer o qu, se
no tinha uma direo, uma noo de pra onde ir? (Pedro)
Que era para melhoria, que havia perigo de deslizamento. A gente
morando em encosta, de fato pode ter esse problema, mas a gente
novo brincando percebe onde pode ter esse tipo de perigo ou no
(Ronaldo)
73
pelo governo ou eram removidos para os novos (e desconhecidos) locais de
moradia. A idia de opo ou escolha estava de corresponder realidade, pois,
em termos prticos eles no tinham condies de comprar outra moradia com a
indenizao recebida e muito menos ainda de continuar morando na zona sul.
Assim, restava-lhes a opo de serem removidos e receberem uma casa em
um dos conjuntos habitacionais construdos pelo governo.
Embora todos os depoimentos dos entrevistados tenham revelado
interessantes aspectos sobre o processo de remoo, as consideraes d e
Pedro chamaram ateno para uma outra questo bastante significativa e
importante no que concerne ao foco desta pesquisa: a necessidade de negar a
idia de favela. Esta negativa apareceu quase que prontamente e de maneira
bastante ressaltada em seu depoimento, no pelo nmero de vezes em
menciona a palavra, mas pelo tom de voz usado.
Naquela poca, voc na Zona Sul ali voc tinha trabalho perto,
colgio... a gente descia o morro... favela [tom de menosprezo na
voz], naquela poca a gente nem falava favela, a gente falava morro,
entendeu? (Pedro)
74
Vila tambm no favela, e sim bairro. Retornarei ao tema no captulo 3 desta
dissertao.
Em tempos de escassez de incentivos e iniciativas governamentais no
setor de habitao popular, a grande importncia conferida, sobretudo pelos
removidos de favelas da zona norte, conquista da propriedade de suas
residncias pode estar associada no s ao significado da chegada Vila
Kennedy em termos de melhoria das condies de vida, mas tambm
avaliao de que a poltica habitacional da poca possibilitou a aquisio da
casa prpria. Assim, o pagamento de todas as parcelas e a conseqente
quitao da dvida aps anos de compromisso foram muito valorizados nas
entrevistas.
Contudo, cabe-nos indagar sobre os possveis sentidos conferidos s
lembranas resgatadas levando-se em considerao um dado contexto. Em
outras palavras, o que significa para estes moradores lembrar-se deste
passado vivendo em Vila Kennedy hoje? Que possveis mensagens querem
transmitir ao trazerem tona certas referncias de uma poca distante? Diante
disso, dados como local de origem, grau e tipo de insero em redes de
associativismo em Vila Kennedy, profisso e gnero sero elementos
fundamentais para a anlise das entrevistas. Em outras palavras, observar
semelhanas e diferenas nos discursos destes residentes cujos tempos de
moradia na Vila so elevados exige levar em conta os mecanismos de
acionamento de suas lembranas e o lugar a partir do qual o fazem. O que os
moradores
de
Vila
Kennedy
querem
transmitir
com
esta
memria
75
remoo, que eu era... fui contra. (...)Tinha gua, luz. Agora, muitas
casas de madeira. Porque quando foi construdo o estdio, o
Maracan, ele quando foi inaugurado, aquelas madeiras que serviu
pra fazer o estdio sobrou e a o povo carente usava a prpria
madeira do estdio pra ampliar a favela do Esqueleto. Eu j morava l
antes. E a houve aquela invaso de casa e foi feito casas de madeira
mesmo. A minha era de tijolos, mas outras foi tudo feito de madeira.
(Rui)
76
planejamento, uma infra-estrutura melhores do que no conjunto de
Ramos (...) havia melhores condies de moradia aqui (Srgio).
O relato de urea refora esta idia de que Vila Kennedy representava uma
77
As chamadas casas-embrio eram consideradas habitaes evolutivas,
ou seja, eram projetadas com previso para ampliao em etapas. De acordo
com Capello (1991), no caso de Vila Kennedy, o projeto das casas previa a
ampliao de at trs quartos. Em meio aos estudos sobre habitao mnima,
engenheiros e arquitetos da poca buscavam a soluo para a construo de
casas populares com custos reduzidos. No relatrio da COHAB, no perodo de
1963 a 1965, as casas concebidas como embries representavam:
a chave do xito do plano, onde a partir de um embrio, que oferece
condies bsicas de moradia condigna, cada morador pode ir
ampliando e modificando a casa de acordo com as suas necessidades
e possibilidades (Capello, 1991: 44).
Tais deficincias, sobretudo ligadas infra-estrutura local, fizeram parte do cotidiano de Vila Kennedy
durante muitos anos. Para a superao das dificuldades, muitos moradores se organizaram com a ajuda
da igreja catlica e lutaram por melhorias que s vieram a acontecer cerca de duas dcadas depois,
como o caso da resoluo do problema das enchentes. Este tema ser melhor apresentado no subitem 3.
Na briga, na luta: as lideranas polticas e o papel da igreja catlica em Vila Kennedy.
45
Nos trechos de entrevista em que minha fala se faz necessria para a compreenso do dilogo, adotarei
o destaque em itlico.
78
Tipo pra mudar pra amanh, assim?
! Eu fui chamado no emprego que a minha mudana ia sair, fui
chamado no emprego. (Rui)
A o sr teve quanto tempo para arrumar tudo?
Ah, teve tempo... que eles mesmo ajudava. Tinha um caminho e
tinha uns caras que ajudavam a botar tudo as mudana dentro.
(Rui)
O pessoal chegava da prefeitura com os caminhes, pegava tuas
coisas, jogava dentro do caminho e voc vinha de kombi. Chegava
aqui, deportava voc aqui e a gente ficava nas casas. (Ins)
A sada do Alto da Boa Vista foi marcada por dois momentos. A insatisfao de
ser deportada para um lugar distante e desconhecido e a valorizao de ter
recebido uma casa simples, porm com estrutura bastante superior do
barraco em que habitava com sua famlia. O relato da moradora demonstra
que, ao se tornar proprietria de uma casa, aspectos negativos como a
79
distncia e a vinda como deportados ficaram em segundo plano. Para
moradores como Ins. No final, o saldo foi positivo.
A identificao dos entrevistados com a origem pobre foi reforada como
elemento de diferenciao em relao a moradores vindos para Vila Kennedy
em perodos posteriores ao da remoo de favelas.
Ins e Mariana (ambas residentes em Vila Kennedy h mais de 40 anos
e membros atuantes da parquia local, a Santo Cristo Operrio) diferenciavam
as partes mais antigas de Vila Kennedy as glebas construdas nos anos 60
para abrigar os removidos, como as duas entrevistadas e as posteriormente
construdas como o caso das regies conhecidas como os conjuntos46
Malvinas e Quaf.
A maior parte das pessoas que vieram para Vila Kennedy no podem
dizer que moravam numa coisa melhor (Mariana).
Sem gua, sem luz, sem esgoto [reas habitadas pelas famlias
removidas]. Malvinas no! Mas em Vila Kennedy todo mundo era
pobre, pobre, pobre de marr-deci ... e tambm de morro, de favelas,
como do Pinto, do Esqueleto. (Mariana)
O pessoal do Quaf, se disser que no veio de favela, voc pode
acreditar. No veio. (Mariana)
Agora o nosso no, foi de pobre de barraco de morro despejado.
Antigamente se falava, vai se despejar. A chegava um homem...
assistente social. (Ins)
As representaes dos entrevistados sobre as reas pertencentes a Vila Kennedy sero alvo das anlises do Captulo
3, no subitem O que faz e o que no faz parte de Vila Kennedy: de Quafcabana s favelas. Nesta parte da
disserta, reas como os conjuntos Quaf e Malvinas sero melhor situados geogrfica e socialmente.
80
A figura de Carlos Lacerda, geralmente apontada como mais prxima
das classes mais abastadas, encontrava alguma insero entre os pobres. Seu
discurso e suas aes geravam reaes muito antagnicas: ou se era pr ou
contra Lacerda. Embora tenhamos encontrado os dois tipos de eleitores entre
os entrevistados, foi possvel perceber que o poltico era muito bem visto por
alguns moradores.
Se no tempo do Lacerda que a mdia faz propaganda do
governo, a gente estaria bem. Porque o projeto do Lacerda era o
seguinte: uma lavanderia industrial... (Mariana)
Ele ia dar trabalho pros trabalhadores! (Ins)
Ele trouxe pra c, mas ele ia dar trabalho! Era padaria,
lavanderia, confeco que fazia a roupa dos garis e das escolas.
O maquinrio veio todo! S que o candidato dele no foi eleito...
(Mariana)
Ele j era governador, mas tinha que trocar. Se tivesse duas eleies
naquela poca, hein... ele tinha se reeleito umas dez vezes! (Ins)
Ento o pessoal gostava do Lacerda.
O Lacerda no falava, fazia. Ele inaugurou aqui, inaugurou logo
uma linha de nibus, o 394, tem o supermercado, que era o
mercado Unio... A tinha a escola que era a Marechal Cid, mas no
mesmo ano ele inaugurou a Joana Anglica e esse jardim aqui
(Mariana).
81
casa no conjunto habitacional passava pela comprovao de que o trabalhador
podia pagar as prestaes de sua residncia. E o instrumento de comprovao
desta capacidade era a carteira profissional:
Era eu e minha me. Ns fomos para Nova Holanda em 62 e samos
em 65. Samos como? J foi diferente da Ins. A assistente social
chegava na sua porta (...), cadastrava e dizia: voc tem carteira
assinada, voc tem um salrio, voc pode ter uma casa melhor.
Porque a Nova Holanda ficou sendo assim, no Esqueleto, quem no
podia pagar, ia pra Nova Holanda; e quem tinha renda, vinha pra c,
pra Vila Kennedy. Ento, a assistente social falou pra minha me na
poca: a gente no sabe como vai ficar isso aqui (Mariana).
Marechal Hermes um bairro suburbano da cidade do Rio de Janeiro prximo a Madureira e situado na
zona norte do municpio do Rio de Janeiro.
82
conseguiu uma casa pra ele. (...) L na minha rua, tinha uma senhora
que perturbava muito, dava escndalo. Ento, os moradores se
reuniram e fizeram um abaixo-assinado para ela sair. A vagou a casa,
meu marido conseguiu, atravs da amizade dele, e ns fomos. Mas
ns pagamos a casa (Eliana)
contrato firmado aparece como um elemento a ser destacado nas falas dos
entrevistados. Mas, neste caso, no foi uma maneira de ressaltar o esforo
realizado (como observado nas falas de Ins e Mariana); deveu-se
necessidade de esclarecer que, embora no tenha vindo atravs de cadastro, a
famlia de Eliana agiu dentro da legalidade, quitando o imvel.
Nas Cincias Sociais, os estudos sobre as remoes usualmente
enfatizam a sada de famlias de conjuntos habitacionais como Vila Kennedy,
analisando uma srie de motivaes desde aspectos econmicos (refletidos
na alta taxa de inadimplncia e no fenmeno do passa-se uma casa) at os
sociais (observados no rompimento das redes de solidariedade originais, por
exemplo). Esta pesquisa buscou, porm, ouvir as vozes e refletir no sobre os
olhares dos que saram, mas daqueles que permaneceram e hoje vem de
maneira bastante peculiar seu local de moradia aps quatro dcadas em Vila
Kennedy.
2.2 Quando chovia, era lama; quando fazia sol, era poeira48: os
primeiros anos em Vila Kennedy
48
Frase retirada da entrevista cedida pela Sr Maria da Paz, residente em Vila Kennedy h quarenta e trs
anos.
83
para esperanas e expectativas de progresso e melhorias de infra-estrutura na
regio.
Muitas famlias recm-chegadas ao conjunto no se adaptaram aos
novos desafios de viver em um local desconhecido e distante dos grandes
centros (Valladares, 1978). Nestes casos, nem mesmo a possibilidade de ter a
casa prpria idia to valorizada pelos entrevistados foi capaz de superar
os obstculos de uma regio onde projeto e realidade travavam um duelo
dirio. O planejamento da administrao de Carlos Lacerda de construir um
plo industrial prximo ao conjunto, absorvendo a mo-de-obra local se
associou a outros projetos (como a creche e a padaria comunitrias, alm da
cooperativa de costura, entre outros) que no funcionaram em sua plenitude ou
nem mesmo chegaram a sair do papel.
O cenrio encontrado pelas famlias era bastante diferente da promessa
de bairro modelo
49
O termo bairro modelo foi usado por um de nossos entrevistados para indicar o nvel de expectativa
dos moradores em torno das aes de desenvolvimento local a serem encabeadas pelo governo. A idia
de uma regio planejada com equipamentos pblicos voltados s necessidades dos moradores nunca
chegou a ser uma realidade.
84
enchentes que trouxeram grandes dificuldades aos moradores das primeira e
da terceira glebas durante mais de duas dcadas. A iluminao pblica
tambm no era das melhores, havia apages e tudo ficava s escuras por
horas, contudo, segundo Srgio, que opera uma relao entre passado e
presente, havia todas essas dificuldades, mas (...) no tinha perigo, esse
negcio de assalto no tinha no 50.
Embora a realidade enfrentada pelos moradores revelasse um
planejamento mais terico do que prtico, segundo nos ressaltou o
entrevistado Mano, a perspectiva de melhorias era um aspecto importante para
a no sada de algumas famlias de Vila Kennedy. De acordo com Mrcio,
diante de tantas dificuldades, seus pais at pensaram em se mudar para um
outro conjunto habitacional no Catumbi:
Chegaram a visitar e quase fecharam negcio. Mas acabaram
ficando, em parte, porque havia uma grande expectativa e uma forte
esperana de que as coisas iriam mudar (Mrcio).
Interessante destacar que, antes mesmo de a entrevista avanar para temas mais cotidianos do viver em
Vila Kennedy, a grande maioria de nossos entrevistados relacionou elementos do presente (violncia,
crime e drogas) s lembranas do passado, tal como nos destaca a fala de Srgio. Este um importante
indcio sobre temas relevantes para o dia-a-dia dos moradores, mas que sero analisados no captulo 3
desta dissertao.
85
encanada, voc tinha saneamento funcionando perfeito. A gente
chegou e ainda no tinha calamento, depois de trs anos, fizeram
isso tudo (...) Chegamos mais ou menos em 69, e em poucos meses a
gente tinha melhoramento (Pedro).
Para Pedro, que possui uma viso mais positiva sobre o perodo de
86
As lembranas dos moradores destacam que as principais preocupaes
daqueles que residiam em Vila Kennedy concentravam-se em trabalhar para
honrar os compromissos (dentre eles, a quitao do imvel), adquirir gneros
bsicos de alimentao e higiene e realizar as melhorias nas casas.
Nos sempre fomos pessoas controladas. No gostamos desse
negcio de sair pra jantar, lanchar... quer dizer, quem no gosta, n?
Mas a gente tinha que economizar, porque tinha que pagar o colgio
das meninas, fazer as compras e todo o dinheirinho que sobrava era
para a obra [reforma da casa]. E foi assim sempre (urea).
51
A idia de perigo vem associada diretamente violncia experimentada pela regio e pela cidade como
um todo. Ver Machado da Silva (2007) alm do risco de associao com o trfico de drogas, que usa
comumente a mo-de-obra juvenil em suas atividades.
52
Segundo o relato do entrevistado, muitos dos sitiantes da regio eram portugueses.
87
seleciona pedaos de lembranas recuperando-as do esquecimento (Ortiz
apud Leite, 1999: 127).
Recorrendo a Pollak (apud Leite, 1999: 143), podemos observar que a
memria uma operao coletiva que seleciona os acontecimentos e as
interpretaes do passado que se deseja resguardar. Assim, esta memria se
integra s tentativas de definir e reforar sentimentos de pertencimento e
fronteiras sociais entre coletividades, mantendo a coeso interna e defendendo
aquilo o que o grupo tem em comum. Embora tal memria coletiva possa se
apresentar segundo uma verso majoritria, a mesma no constituda de
maneira homognea, necessariamente. Em resumo, a memria, assim como
as tentativas de estabelecimento de fronteiras e limites simblicos, pode entrar
em disputa e encontra-se em permanente processo de atualizao.
Ao virem para Vila Kennedy, os moradores se depararam com terrenos
que tinham em geral um tamanho de 9m x 15m. Mas havia casas maiores (com
quarto, sala, cozinha e banheiro) para famlias mais numerosas e casas
menores (apenas com quarto, cozinha e banheiro) para famlias com menos
filhos, por exemplo.
O homem [Lacerda] mesmo falava, t falando porque ele fez o
discurso e falava: pobre no precisa desse negcio de guarda-roupa
no, bota a roupa num prego, pendura num prego (Rui).
53
88
no era permitido fazer quaisquer tipos de construo em quaisquer reas. At
mesmo as melhorias realizadas nas casas eram orientadas pelo governo. De
acordo com Capello (1991), a Secretaria de Assistncia Social fornecia
cartilhas que orientavam os moradores sobre os tipos de construo, os
cuidados com os filhos e uma srie de outras informaes que parecem estar
bastante alinhadas idia de pedagogia civilizatria (Burgos, 2004) j
desenvolvida poca dos parques proletrios, conforme destacado no captulo
anterior.
Mariana ressaltou que, quando veio para o conjunto, recebeu um
documento:
A gente recebeu o relatrio que explicava o que podia e o que no
podia. Era assim: coma fazer o muro, como mexer na sua casa...
(Mariana).
89
moradores precisavam indicar sua rea de moradia e por isso no era comum
sentirem-se discriminados em relao a outras regies mais consolidadas da
zona oeste, como Bangu, por exemplo. Contudo, nas situaes de oferta de
emprego, a estratgia mais utilizada pelos habitantes de Vila Kennedy era
informar nas entrevistas e nas fichas cadastrais que residiam em Bangu.
A influncia de Bangu sobre Vila Kennedy apareceu de forma muito
evidente nas entrevistas. No passado, quando a regio era menor em termos
de tamanho e de populao e com um comrcio pouco desenvolvido, a atrao
de Bangu era muito forte. Postos de trabalho, comrcio, sade e
entretenimento concentravam-se basicamente neste bairro e, no raro, os
moradores de Vila Kennedy se deslocavam at l para acess-los. Entretanto,
mesmo com o desenvolvimento local (relacionado, sobretudo ao setor de
servios), a rea que fica entre Realengo e Campo Grande continua ainda hoje
sendo uma grande referncia para os moradores de Vila Kennedy:
(...) eu moro num lugar que me d possibilidade de locomoo muito
melhor do que muitos lugares (...) tudo o que eu quero, se eu precisar,
em dez minutos eu estou no centro de Bangu (Ins).
direta
associao
com
situaes
vividas
no
presente,
nossos
A autora destaca, por um lado, a importncia que a vida atual daquele que
90
fundamental ressaltar que aquilo que o indivduo lembra, quando lembra e
como lembra uma construo coletiva, onde os instrumentos que servem
memria coletiva para a composio do passado se combinam com os
pensamentos dominantes da poca. Desta forma, a memria
um
91
amplamente conhecido de repassse das casas a novos residentes. Entretanto,
nem todas as famlias que poderiam ser removidas para Vila Kennedy
quiseram se mudar. Houve ainda aqueles que vieram conhecer o conjunto,
mas optaram no ficar com as casas.
Aqui na minha rua mesmo, a (...), tinha umas quinze casas que as
pessoas foram sorteadas, mas no quiseram vir (Rui).
Para aqueles que fixaram residncia em Vila Kennedy, ainda nos anos
60, as novas redes de sociabilidade passaram a ser construdas (reconstrudas
e fortalecidas) em paralelo s dificuldades e conquistas que passaram a fazer
parte do cotidiano de seus moradores. Neste contexto de construo coletiva,
as redes de solidariedade e, nelas, o papel central da vizinhana, tiveram
carter acentuadamente importante nas falas de nossos entrevistados.
A memria dos tempos de uma Vila Kennedy onde todos se conheciam
e, de alguma maneira, se ajudavam contrasta com a realidade atual, na qual,
para muitos de nossos entrevistados, o crescimento populacional e a diferena
de valores entre as geraes impem outros ritmos de convivncia mesmo
queles mais velhos que insistem em valorizar idias como solidariedade,
comunho, famlia, confiana, respeito e segurana. A idia de famlia
associada a estas relaes sociais fortalecidas por laos de solidariedade
apareceu como elemento importante em algumas de nossas entrevistas.
Vindos em situao muito semelhante (a maioria removidos) e com desejos e
necessidades bastante prximos, os moradores antigos ligavam-se uns aos
outros, tendo muitas vezes como unidade inicial de integrao a rua onde
moravam. A realizao de pequenas festas e de encontros nos portes para
conversar um exemplo de atividades comuns que aproximavam estes
moradores e criavam uma espcie de sentimento de pertencimento e de
identificao com o local.
Era uma poca em que todos pareciam unir-se pelo sentimento de estar
comeando suas vidas juntos em um novo lugar e, para algumas famlias, o
passar dos anos trouxe o fortalecimento das relaes de amizade relatadas
sempre de maneira um tanto romantizada entre vizinhos. Ao contar sobre
seus primeiros anos em Vila Kennedy, Eliana (de origem nordestina e exmoradora do subrbio de Marechal Hermes, residente no conjunto desde 1969)
afirmou:
92
Os moradores da minha rua tentavam fazer uma vila assim bem
unida, com festinha junina, uma coisa bem familiar. At um tempo eles
conseguiram ... (Eliana).
Sobre a importncia do papel da Igreja Catlica e dos movimentos polticos associativos em Vila
Kennedy, conferir, no captulo 2 desta dissertao, o subitem Na briga, na luta: as lideranas polticas e
o papel da Igreja Catlica em Vila Kennedy. As construo das redes de sociabilidade no ser alvo
especfico deste trabalho, sero analisados apenas como elementos que ajudaro a compreender melhor o
perfil dos entrevistados.
93
As histrias de vizinhos que socorriam os familiares daqueles que
estivessem trabalhando, por exemplo, ilustram bem a idia de que conhecer e
ser conhecido, apesar de requerer tempo, traz benefcios para aqueles
dispostos a manter este tipo de relao baseada, sobretudo, nos laos de
solidariedade. As histrias de Ins e Mariana eram repletas de situaes onde
todos se ajudavam:
Quantas vezes a gente chegava em casa, o filho tinha cado da laje,
quando cheguei em casa, ele j estava com o brao engessado
(Ins).
94
O complexo penitencirio Bangu I fica do lado da margem direita da Avenida Brasil (sentido Campo
Grande), ou seja, na mesma regio que a 2 gleba de Vila Kennedy.
95
negativos que as representaes sociais dominantes atribuem s favelas,
abrindo pistas para nova pesquisa na regio.
A idia de respeito tambm aparece de maneira muito enfatizada nos
relatos de alguns de nossos entrevistados quando o assunto a vizinhana.
Sobretudo para aqueles moradores que no mais convivem em pedaos
tranqilos, onde a ordem deixou de ser mantida como um valor importante, a
questo do respeito surge como um tema relevante. Lanando mo do
passado, mais uma vez, estes moradores acionam suas lembranas para
ressaltar aspectos vividos no presente. A maioria dos entrevistados relatou
que, h anos atrs, havia um grande respeito, sobretudo dos mais jovens em
relao aos mais velhos. A histria abaixo ilustra bem uma poca em que a
privacidade e as regras de convivncia eram mais respeitadas pelos jovens:
Eu morava numa rua que tinha um usurio [de drogas] . Quando ele
comeava a ouvir rdio alto, de madrugada, eu dizia fulano, abaixe o
rdio que voc est me atrapalhando, e ele respondia imediatamente
sim senhora, Dona Eliana (Eliana).
vizinhos, mas o consumo de drogas era velado, uma espcie de tabu. Alm de
no ser algo facilmente visto, raramente era um assunto comentado ou mesmo
conhecido mais diretamente pelos moradores de Vila Kennedy. Destacam os
informantes que, muito diferente dos dias atuais, os usurios de drogas
mantinham suas prticas longe dos olhos daqueles que no possuam
envolvimento com o trfico. Hoje dizem no h mais respeito, pois como
nos ressaltou Walter, morador da rea da segunda gleba: Eles hoje fumam na
porta da casa da gente. Contudo, vale notar que esta mudana foi
experimentada por toda a cidade, no sendo uma especificidade de Vila
Kennedy (cf. Machado da Silva (org), 2007).
96
2.4 Na briga, na luta 56: as lideranas polticas e o papel da Igreja
Catlica em Vila Kennedy
A relao entre poltica e religio em Vila Kennedy no constitua,
inicialmente, um ponto de interesse para minha pesquisa. Contudo, medida
que o trabalho de campo avanava, as entrevistas revelavam que a histria dos
movimentos populares na regio, entrelaava (sobretudo at fins dos anos 80)
atividades polticas atuao da Igreja Catlica em Vila Kennedy. Eu chegara
ao campo atravs de contatos ligados parquia local, a Santo Cristo
Operrio, e ao iniciar minha rede de informantes, logo pude constatar que Vila
Kennedy foi, durante aproximadamente duas dcadas, um grande plo gerador
de lideranas polticas, ligadas sobretudo ao Partido dos Trabalhadores (PT),
que possuam vinculao com a Igreja Catlica.
Os relatos dos entrevistados se somaram s minhas referncias
pessoais sobre a relao e a mtua influncia Ncleo do PT de Vila Kennedy e
o Ncleo do PT de Anchieta57. Personagens, que antes apenas conhecia
atravs das histrias contadas por familiares ligados a este partido em meu
bairro,
puderam
contribuir
diretamente
com
esta
pesquisa,
trazendo
56
A expresso na briga, na luta foi utilizada por Eliana em sua entrevista. O sentido desta expresso foi
capaz de traduzir o esprito poltico que envolvia as organizaes de moradores em Vila Kennedy,
bastante fortes e atuantes at os anos 80.
57
Anchieta um bairro do subrbio do municpio do Rio de Janeiro, situado na zona norte e pertencente
XII R.A. (Regio Administrativa).
97
(...) eram padres muito bons, que evoluam [os fiis]. E a gente tinha
a volta disso da, de ele pregar, evangelizando, dizendo que Deus
gosta do pobre ... a gente tinha o troco, a gente tinha vrias lideranas
que saam da igreja. Muito bom mesmo (Rui).
Foi na poca da ditadura, s que os padres estavam muito com a
gente. Por trs, tinha eles orientando como fazer. As pessoas vieram
jogadas pra c, perdidas, sem saber como fazer. Essa coisa de formar
o conselho de moradores surgiu da igreja, da orientao dos padres
que estavam conosco ajudando dia-a-dia. L a gente fazia faixas,
cartazes... (Eliana).
A partir do Conclio Vaticano II, percebeu-se uma valorizao do compromisso social de padres e
bispos latino-americanos. A Igreja Catlica no Brasil, ento, tornou-se fortemente engajada na luta
poltica contra a injustia social e a favor dos direitos humanos. Esta luta encontrou, sob a bandeira da
Teologia da Libertao, sua essncia: a de reafirmar os princpios bsicos da igreja no compromisso com
os oprimidos e a libertao da Amrica Latina. Para maiores informaes sobre a Teologia da Libertao,
conferir Birman & Leite (2002), Betto (1981), Libanio (1986).
59
Sobre as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ver Betto (1981).
98
(...) participao religiosa tomaria a forma de discusso de
problemas sociais, dando concretude terrena ao horizonte utpico do
Reino dos Cus (...) A nova Igreja participativa teria sua realizao
num pas de justia social (Birman & Leite, Id Ibid).
A entrevista de Eliana revela uma histria que ilustra bem o poder desta
mudana tanto individual como coletivamente. Segundo a moradora, ao chegar
em Vila Kennedy, em 1969, seu olhar com relao realidade que a cercava ,
embora desgostoso com o mesmo, no suscitava nenhum tipo de preocupao
social. A partir do envolvimento com a Igreja, a viso de moradores como
Eliana foi ampliada, gerando mudanas comportamentais que resultaram em
luta a ao poltica. A prpria informante nos relatou que, antes de participar
99
das discusses propostas pela igreja, atravs dos crculos bblicos
60
e das
atividades pastorais, sua vida estava limitada aos cuidados com a casa, o
marido e os filhos. A nova perspectiva trazida pela mobilizao social e pela
luta poltica abriu novas portas para muitos moradores em Vila Kennedy.
Para moradores como Ronaldo, o envolvimento com as atividades da
Igreja Catlica tambm teve grande importncia para sua vida e para sua
formao cidad. Diferente de Eliana, j casada e com filhos, este entrevistado
iniciou sua relao com a Igreja Catlica ainda muito jovem. Embora no tenha
expressado diretamente arrependimento com relao ao envolvimento
dedicado s atividades comunitrias durante sua juventude, o morador fez
questo de ressaltar que a escolha feita poca (em prol do coletivo) exigiu
abdicao em vrios outros setores de sua vida pessoal. As atividades
pastorais61 e comunitrias ocupavam boa parte do tempo das pessoas
envolvidas, contou o entrevistado. At os estudos, de certa forma, foram
deixados em segundo plano por Ronaldo, que avaliou ser o envolvimento com
as atividades da Igreja uma marcante experincia para boa parte dos jovens de
sua gerao.
Ao indicar que s vezes necessrio abrir mo desse coletivo, o
morador fez tambm uma espcie de avaliao de sua vivncia na juventude
contrapondo os valores que parecem representar prticas referentes ao
passado (expresso atravs das aes e preocupaes voltadas ao bem-estar
comum, ou seja, ao coletivo) e aos valores do presente (expressos pelo
individualismo pautado pelas aes de curto prazo e voltadas ao resultado
imediato). Mais uma vez, passado e presente se fundem nas lembranas de
nossos informantes, recuperando o vivido e atualizando as experincias
cotidianas.
60
Segundo Betto (1981), os crculos bblicos so um subsdio metodolgico utilizado por muitas
comunidades. Atravs deles, so utilizados folhetos em linguagem popular linguagem visual e no
conceitual, concreta e no abstrata, como parbolas do evangelho onde fatos da vida so comparados
aos da Bblia. Sem perder sua dimenso transcendente, a f do grupo torna transparente a realidade em
que se vive. Em outras palavras, passa-se a entender o carter relativo do status quo, a dimenso histrica
da vida, e a busca das verdadeiras razes dos males sociais
61
A ao pastoral da Igreja Catlica no perodo indicado revela a preocupao com o agir da igreja no
mundo. Esta ao foi modificada de uma atividade clerical de tutela e ensinamento das ovelhas para um
trabalho mais personalizado com a populao, ou seja, de uma ao tambm prpria do leigo. Para
maiores informaes sobre o que pastoral, conferir Libanio (1986).
100
No passado, as discusses sobre a realidade local se somavam a um
trabalho de conscientizao popular sobre as condies nas quais os
moradores foram removidos para o conjunto. Segundo nossos entrevistados, o
trabalho realizado atravs dos crculos bblicos foi um dos canais de discusso
mais utilizados para a ativao do pensamento crtico na reflexo sobre a
realidade local. Como relataram os moradores:
As pessoas vieram jogadas pra c, perdidas, sem saber como fazer.
Mas os padres estavam muito junto com a gente. Por traz, tinha eles
orientando como fazer (Eliana).
(...) comeou-se o trabalho do crculo bblico, onde se falava que
vocs vieram pra c, mas isso no foi de graa no, simplesmente
tiraram vocs. De fato, aqueles que moravam na favela, de qualquer
jeito iam sair (Ronaldo).
A Igreja Catlica era praticamente a nica voz pblica que podia ser
ouvida e a nica instituio que, embora ameaada, no era atacada
diretamente pelos militares.
Ao suprimir os canais de participao popular, o regime militar fez
com que esse mesmo povo buscasse em novo espao para se
organizar. Esse espao foi encontrado na Igreja, nica instituio do
pas que, por sua ndole histrica, escapa ao controle direto dos
poderes pblicos. Os militares no tinham como decretar a destituio
de D. Paulo Evaristo Arns, como arcebispo de So Paulo, nem podiam
nomear um general da reserva para presidir a Conferncia Nacional
dos Bispos do Brasil. Nas demais instituies brasileiras, no havia
nenhum empecilho para que isto fosse feito. Por outro lado, a
renovao da Igreja, iniciada com o Vaticano II e levada a efeito na
Amrica Latina a partir da reunio de Medelln, em 1968, fez com que
a hierarquia eclesial se aproximasse sempre mais das classes
populares, das quais o Estado se encontrava cada vez mais
distanciado. A Igreja passou a ser a voz dos que no tm voz (...)
(Betto, 1981: 21-22).
Esta talvez tenha sido uma das maiores contribuies da Igreja no cenrio
nacional durante a ditadura: conseguir criar frentes de resistncia e auxiliar no
fomento crtica do regime autoritrio que se instaurou:
101
(...) sob o signo do Medo. Medo de que as desigualdades fossem
questionadas por um processo de redistribuio de renda e de poder
(Reis, 2000: 73).
102
decepo com as mudanas verificadas revelada pelos entrevistados indica
que, mais do que o funcionamento do posto e da creche, mudaram as
estruturas e a forma de organizao popular na regio. Muitos dos moradores
antes envolvidos nos processos de luta por melhorias locais no reconhecem
nos dias atuais o mesmo tipo de ideal que os motivava a se organizarem.
Em um cenrio de tantas mudanas, tambm o Conselho de Moradores
se modificou. Para os entrevistados, a atuao do Conselho naquele perodo
de mobilizao e organizao populares, era muito diferente do que hoje.
Atualmente, h dezenas de associaes de moradores em Vila Kennedy e a
antiga forma de eleio do Conselho de Moradores no mais uma prtica
valorizada.
(...) quando o morador precisava de alguma coisa, ele tinha que
procurar a associao, e a associao ia buscar, as coisas valiam. Mas
quando o governador comeou a ceder, sem presidente, sem nada, a
comeou a enfraquecer (Rui).
103
Captulo 3 E A FAVELA, ONDE FICA?
104
H suspeitas de uma garota de 16 anos ter sido atingida e morta.
Ainda de acordo com PMs, os traficantes da favela da Coria esto
armados com fuzis AK-47.
PMs foram acionados e cercaram a favela da Malvina. Os baleados
esto sendo levados para o hospital Albert Schweitzer, em Realengo.
[grifo meu]
Fonte: Portal Terra
Data: 07/01/08
primeira
entrevistada,
Vilma,
foi
uma
moradora
de
105
Embora estivesse interessada em saber se a proximidade de uma favela
era um elemento definidor da construo social do espao de Vila Kennedy,
observei que a ausncia de qualquer referncia existncia da Metral poderia
ser um dado relevante. Optei, ento, por saber sobre o que havia de positivo
em Vila Kennedy e a resposta da Vilma acabou por ressaltar aspectos positivos
relacionados importncia de se conviver h muito tempo entre vizinhos
conhecidos:
Depois de quarenta anos, a gente j conhece todo mundo. Eu no
sou muito de sair de casa noite, mas no tenho o que falar (...)
Minha me conhece todos os vizinhos, que vieram do mesmo jeito. A
gente conhece todo mundo de muito tempo (Vilma)
106
Aqui tem tudo ... comrcio. S no tem um hospital decente. A gente
62
tem que ir para aquele matadouro l de Campo Grande. Tem posto
[de sade] aqui, mas no hospital, sabe? (Vilma).
segundo
entrevistado
foi
um
senhor
que
aparentava
A moradora referiu-se a um hospital da rede pblica situado na zona oeste, mas no se lembrou do
nome do mesmo.
107
sair noite, no tem o que falar, o segundo entrevistado mostrou-se bastante
vontade com relao ao fato de transitar noite, embora no tenha entrado
em detalhes sobre o fato de esta tranqilidade ser experimentada em qualquer
rea de Vila Kennedy.
Sobre a relao com a vizinhana, o morador deixou clara a escolha por
manter distncia com a mesma. Sua convivncia resume-se saudao diria,
sem envolver demais atividades conjuntas.
Vizinhos? bom dia, boa tarde, cada um pro seu lado. No ajuda
nem atrapalha.
viver naquela localidade, mais uma vez, decidi no forar consideraes que
levassem em conta a presena da favela da Metral. E, assim, o entrevistado
concluiu em tom filosfico: Menina, quem faz o lugar quem mora nele. Voc
quem faz as amizades.
63
O uso da categoria em cima, habitual entre os residentes da zona oeste e subrbios ou mesmo para moradores
da Baixada Fluminense que usam termos como descer ou l em baixo, quando querem comunicar uma ida a
bairros do centro e da zona sul, e subir ou l em cima para se referirem s suas reas de moradia.
108
A terceira entrevista ocorreu em uma rea da Praa Dolomitas com
mesinhas e banquinhos que no contavam com o abrigo das frondosas rvores
do local, mas prxima a uma das ruas que circunda a praa, quase em frente
calada onde havia algumas lojas, um supermercado de pequeno porte e o
posto policial. Aps circular pela praa, avistei um senhor de aproximadamente
setenta anos sentado e observando a movimentao dos transeuntes.
Apresentei-me ao senhor que, um tanto surpreso com minha chegada, tentava
disfarar sua estranheza com a presena de uma estudante da UERJ que
pesquisava sobre Vila Kennedy.
Walter,
ex-operador
de
mquinas
da
Coca-Cola
atualmente
aposentado, iniciou a entrevista com ares de desconfiana, mas aos poucos foi
deixando transparecer a satisfao de ter suas experincias e sua trajetria de
vida valorizadas, por algum de fora. Segui meu roteiro, perguntando-lhe
sobre o tempo de residncia em Vila Kennedy,e ele se apressou em informar:
Fui um dos primeiros fundadores desse lado de c. O lado de l
mais antigo. Isso tem mais de quarenta anos (Walter).
simblico atribudo ao fato de Vila Kennedy ter sido projetada para abrigar os
indesejveis moradores de favelas. interessante observar ainda que neste
109
trecho de seu depoimento, o recurso aos tempos verbais passado e presente
no parece aleatrio. Se, de um lado, sugere que, no passado, o medo do povo
isto , daqueles que como ele prprio poderiam se inscrever para uma casa
nova devia-se ao estigma que recobria os favelados, de outro, indica que
atualmente,
estigma
de
associa
dinmicas
reais,
embora
no
deixando-o
livre
para
costurar
suas
lembranas.
Embora
Era muito, mas muito ruim. Tinha o 398, o 394, o 784 (...) 394 era o
64
65
CTC , depois passou para a Continental . Hoje, quase no tem
conduo direto [para o Centro da Cidade] (Walter).
A Companhia de Transportes Coletivos do Estado da Guanabara /CTC-GB foi criado em 1962. Doze
anos depois, em 1974, a companhia transforma-se na Companhia de Transportes Coletivos do Estado do
Rio de Janeiro/CTC-RJ.
65
O entrevistado referiu-se empresa de transportes coletivos Continental, que possui vrias linhas de
nibus na Zona Oeste.
110
A referncia represso policial revelou a existncia de usurios de drogas
que as consumiam em pblico, mas no evidenciou de maneira explcita a
questo do trfico na regio ,nem a relao entre a presena de traficantes e a
existncia de favelas prximas. Busquei pistas de como e quando o uso de
drogas comeou a fazer parte do cotidiano daquela rea, e o morador, mais
uma vez, no soube ou no quis estimar. Devo considerar, claro, que o fato de
ser uma pessoa de fora, uma estranha que o abordara na praa
possivelmente limitou seu depoimento.
Ao ser questionado sobre a vontade de permanecer ou no em Vila
Kennedy, Walter afirmou ironicamente: Dali no sai para mais lugar nenhum,
s para o cemitrio. Possivelmente, o morador associa sua idade a um
momento de poucas expectativas em relao ao futuro. Em comparao com
muitos de seus antigos vizinhos, j falecidos, perece que o Walter v-se
destinado a morrer em Vila Kennedy. O que no pude captar naquele momento
se o tom irnico da fala do morador escondia de fato satisfao, comodismo
ou insatisfao diante do fato de morar em vila Kennedy.
Embora a vizinhana tenha se modificado ao longo das dcadas e os
moradores tenham que conviver com o desrespeito daqueles que consomem
drogas na porta de suas casas, por exemplo como se queixou , Walter
sustentou que em Vila Kennedy, com os moradores no se [os traficantes]
mexe. Mas o que significaria exatamente no mexer com os moradores?
Que tipo de regras de convivncia haveria compartilhadas em Vila Kennedy?
A entrevista com o Sr. Valdecir no chegou a esclarecer tais questes, mas
apontou possibilidades interessantes de investigao para o desenvolvimento
do trabalho de campo.
Ao lado dos aspetos negativos vinculados ao desrespeito expresso
pelo consumo de drogas, o entrevistado valorizou o tempo de moradia e a
relao amistosa com os vizinhos contemporneos sua chegada como
aspectos positivos: Aqui eu gosto, conheo todo mundo. No tem muita gente
da minha poca. Agora tudo garoto novo.
As trs entrevistas iniciais apontaram para a seguinte questo comum: a
maior exaltao de aspectos positivos e a sinalizao de fatores negativos
superficialmente associados precariedade de servios relacionados sade
111
e infra-estrutura, bem como ao sistema de transportes. Com exceo da
entrevista com Walter muito voltada comparao da realidade atual com um
passado, em certa medida, idealizado -, os depoimentos coletados a partir das
duas primeiras abordagens privilegiaram a valorizao local. No foram
mencionadas aes de violncia na regio, nem tampouco favelas prximas
que poderiam ser percebidas como um elemento gerador de episdios
violentos ou mesmo de alterao da ordem.
As primeiras inseres no campo levantaram diversos questionamentos
que pretendo desenvolver neste captulo. Mas, gostaria de ressaltear que, ao
chegar em Vila Kennedy, imaginava que os moradores, ao falarem do passado
e do presente da localidade, introduziriam o tema da violncia como um dos
divisores de guas, associando-o favela da Metral. Sua resistncia em fazlo pode estar associada s seguintes hipteses:
1 a escolha da Praa Dolomitas, por ser um local de grande circulao de
moradores, pode ter possibilitado o contato com moradores que residem em
reas mais afastadas de favelas como a Metral, no encarando as mesmas
como um problema;
2 - identificada ainda como de fora, no consegui estabelecer um contato
mais profundo com os moradores de Vila Kennedy, que rompesse seu silncio
ou resistncia em falar sobre violncia e trfico de drogas;
3 a valorizao local pode estar associada a memrias e representaes
acionadas diante para uma pessoa de fora.
Embora no tenham o objetivo de esgotar as discusses em torno do
tema, as prximas partes que compem o presente captulo buscaro avanar
nas anlises sobre as representaes dos moradores sobre a imagem negativa
de Vila Kennedy na atualidade. Para tanto, sero levados em considerao os
depoimentos obtidos pelas primeiras inseres no campo, sendo as lacunas
deixadas pelas primeiras entrevistas importantes pistas para a anlise, alm de
levantarem novas possibilidades para a pesquisa.
112
3.2 Bairro, conjunto e favela: as fronteiras simblicas e a produo do
espao em Vila Kennedy
3.2.1 O lado de l e o lado de c: a Avenida Brasil como marco de diviso
do territrio
Considerada oficialmente como sub-bairro de Bangu, Vila Kennedy
situa-se na zona oeste da cidade do rio de Janeiro e est bem prxima a
regies bairros como Santssimo e Realengo, sendo rea de abrangncia da
XVII R.A Regio Administrativa (vide Anexos 5 e 6 Bairros e RA), segundo
dados do Instituto Pereira Passos IPP, da Secretaria Municipal de Urbanismo
SMU.
Como mencionado anteriormente, o projeto do conjunto habitacional de
Vila Kennedy contou com a construo de trs grandes reas, chamadas at
hoje pelos antigos moradores de glebas, dispostas da seguinte maneira: a
primeira gleba, localizada em rea margem esquerda da Avenida Brasil,
sentido Centro, a rea onde se encontra a praa Miami que abriga a famosa
rplica da Esttua da Liberdade; a segunda gleba, onde est localizada a praa
Dolomitas, est situada em frente primeira gleba, na margem direta da
Avenida Brasil, sentido Zona Oeste; e a terceira gleba, localizada ao lado da
primeira gleba, a rea onde est situada a Parquia Santo Cristo Operrio66.
As trs glebas foram construdas mais ou menos mesma poca, em
meados da dcada de 60. Com recursos da Aliana para o Progresso, como
ressaltado no captulo 1, o conjunto foi erguido inicialmente com as casas
embrio e seu projeto contava com servios de infra-estrutura tais como:
arruamento, abastecimento de gua, esgotamento sanitrio e pluvial e energia
eltrica. Ao longo das dcadas, muitas modificaes estruturais foram sentidas
por Vila Kennedy, dentre elas as visveis transformaes arquitetnicas
expressas nas residncias das trs glebas. As pequenas casas embrio,
compostas por um ou dois aposentos, um banheiro e uma cozinha, foram
cedendo espao a casas com dois e trs pavimentos, fato que evidencia o
aumento populacional de uma regio que cresceu no s para os lados, mas
tambm de maneira vertical.
66
y que conserva
originais casaspertencente
e 2008.
113
Mas, como visto no captulo 2, nem tudo o que foi planejado no projeto
original do conjunto passou para o plano da realidade imediata de seus
primeiros moradores: as escolas s foram implantadas um ano aps a
inaugurao; a nica fbrica da regio recusava-se a empregar moradores do
local que no se livravam da m fama de favela (Azevedo, 1999). No entanto,
aps pouco mais de quatro dcadas de existncia, Vila Kennedy conta com
alguns equipamentos pblicos que atendem toda a regio, dentre eles: escolas
(pblicas e privadas), posto de sade, vila olmpica. Cabe ressaltar, que o
presente estudo no pretende esgotar a discusso sobre as mudanas
estruturais evidenciadas na regio, mas apresentar de maneira sucinta
algumas caractersticas de infra-estrutura observadas nas glebas que
compem Vila Kennedy, buscando situar o leitor no campo. A seguir, foto de
uma escola municipal e do posto de sade locais:
114
115
Atualmente, muitas mudanas estruturais puderam ser observadas em
Vila Kennedy, embora caractersticas, como tipo de arruamentos, tamanho dos
lotes e alguns equipamentos pblicos tenham se mantidas inalteradas. Na rea
que corresponde segunda gleba, por exemplo, no entorno da Praa
Dolomitas, a esmagadora maioria das casas no mais conserva sua arquitetura
original, fato tambm observado nas demais glebas. Nesta gleba, h escolas
pblicas, uma vila olmpica, um posto de sade e uma rea em torno da Praa
Dolomitas, composta por estabelecimentos comerciais (como sapatarias, pet
shops, restaurantes self service, lojas de roupas, farmcias, supermercados,
papelarias, locadoras de vdeo, bares, aougues, padarias etc). Bem em frente
Praa Dolomitas fica o elevado que permite a ligao entre os dois lados de
Vila Kennedy atravs de um pequeno tnel por onde passam carros, motos e
pedestres. Desta forma, possvel passar da segunda para as primeira e
terceira glebas (e vice-versa) com facilidade, o que proporciona um fluxo
bastante grande neste trecho.
116
indicar a ocorrncia de episdios de ameaa propriedade e/ou integridade
fsica das pessoas. Embora no seja este o foco desta pesquisa, a existncia
deste elemento arquitetnico em algumas ruas pode oferecer pistas
interessantes sobre o cotidiano local e a relao dos moradores com o
territrio. Em uma regio onde boa parte dos moradores ressalta no possuir
problemas diretos com assaltos e furtos (como ser melhor desenvolvido ao
longo deste captulo), cabe a interrogao sobre a existncia de portes em
algumas ruas.
Nas trs glebas, por onde circulam carros, motos e bicicletas, as ruas
principais possuem maior largura, enquanto que as ruas secundrias so mais
estreitas, assemelhando-se a vilas ou, de acordo com Capello (1991), a ruas
para pedestres. Em sua dissertao, esta autora ressalta que este tipo de rua
mais estreita foi descrita por Carlos Nelson Ferreira dos Santos como
elemento urbanstico muito interessante. uma rua privada, estreita, cuidada,
e vigiada pelos interessados diretos, no precisa ter as dimenses e o
tratamento das vias pblicas (Capello, 1991: 34). Embora Carlos Nelson
Ferreira dos Santos tenha analisado estas vilas em um outro contexto, cabenos a reflexo nos dias atuais: O que os interessados diretos (moradores)
estariam vigiando? Ou melhor, a entrada de qu (ou de quem) estes portes
pretendem evitar?
Possveis
respostas a
esta
questo podero
ser
117
Os nomes de algumas ruas em Vila Kennedy so bastante peculiares
em se tratando de um conjunto cujo prprio nome homenageia um presidente
norte-americano e que foi construdo com boa parte dos recursos advindos da
Aliana para o Progresso. Em vrias partes da Vila, h ruas com nomes de
pases do terceiro mundo, tais como: Zmbia, Etipia, Gabo, Kenia,
Tanganica, Congo, Togo, Adizabela, Moambique, Gana etc, sugerindo uma
aproximao com outros territrios de pobreza. Local cheio de contrastes67,
Vila Kennedy convive com cenas que lembram um passado de caractersticas
rurais e um presente marcado pelo vai-e-vem de pedestres, carros, nibus,
motos etc.
A entrevistas de Mano ressaltou que Vila Kennedy, apesar de todos os problemas e dificuldades, possui
interessantes paradoxos, como o fato de ser uma espcie de celeiro das artes, dos esportes e da poltica. Costurando
passado e presente, o entrevistado apontou uma lista de nomes de ex-moradores da Vila que se tornaram importantes
figuras do mundo dos esportes, da cena artstica (msica e teatro) e da poltica.
118
manteve circunscrita a tais reas, pois em suas franjas foram surgindo novas
reas compostas por diferentes tipos de ocupao: legalizadas, como outros
conjuntos, e as realizadas sem contar com permisso oficial, infra-estrutura e
acesso a servios formais, como as favelas.
Oficialmente, Vila Kennedy identificada nos dias atuais como subbairro de Bangu. Contudo, so diversos os entendimentos sobre a regio,
quando recorremos s representaes dos moradores entrevistados sobre a
composio
da
regio:
bairro,
sub-bairro,
conjunto
habitacional,
Vila Kennedy cresceu tanto para os lados com novos conjuntos e favelas
quanto para cima, pois as antigas casas embrio cederam lugar a casas com
dois e trs pavimentos, nas quais usualmente vivem mais de uma famlia.
De acordo com as informaes de nossos entrevistados, o crescimento
119
moradores da mesma forma. Vila Kennedy nasceu de suas trs glebas
originais como conjunto habitacional popular, tentou incorporar ares de bairro
modelo68, ganhou, com o passar dos anos, novos espaos como outros
conjuntos habitacionais construdos por iniciativa governamental, e passou a
tambm conviver com favelas e loteamentos irregulares.
Este verdadeiro
68
O termo bairro modelo foi utilizado pelo entrevistado Mrcio, quando se referiu ao projeto ideolgico que
envolvia as aes governamentais em Vila Kennedy ainda nos primeiros anos de existncia.
69
Nenhum dos entrevistados soube apontar a origem do nome do Conjunto Quaf.
70
O nome Malvinas foi, segundo os moradores entrevistados, dado ao novo conjunto em funo do mesmo ter sido
construdo poca da guerra das Malvinas.
120
J o conjunto das Malvinas situa-se nas proximidades da primiera gleba (
margem direita da Avenida Brasil, sentido Centro da Cidade).
Quaf e Malvinas foram vistos como ocupaes legalizadas, construdas
pelo governo e que, desde o surgimento, contaram com infra-estrutura e
servios formais. Ambos os conjuntos foram destinados a uma populao com
perfil scio-econmico diferenciado, pois se tratavam de residncias que
seriam vendidas a um pblico composto por policiais e funcionrios pblicos.
Assim, por mais que estes conjuntos possam ter conhecido mudanas em seu
perfil populacional ao longo dos anos questo no diretamente investigada
nesta pesquisa , possvel perceber que ainda hoje so percebidas por
nossos informantes os qualificam como reas que se diferenciam, sobretudo
pela presena de uma infra-estrutura considerada boa e de uma populao
formada por residentes com melhor poder aquisitivo, daquela ocupada pelos
primeiros moradores de Vila Kennedy.
So prximos, dentro [de Vila Kennedy]. Um aqui em cima
[Malvinas] e outro [Quaf] do outro lado. Eles se integram [a Vila
Kennedy]. No so lugares, vamos dizer, que nasceram atravs de
invaso, no so reas vendidas [como loteamentos clandestinos],
foram aes de governo, na poca em conjunto com a Caixa
Econmica Federal, porque foram conjuntos planejados. Com o
mesmo sistema de financiamento, com toda a estrutura, at melhor
que a nossa. Tudo bem mais evoludo. (Pedro)
121
reforo idia de que residem em outra rea, no conjunto do Quaf, por
exemplo, foi observada em boa parte das entrevistas.
A gente sempre brincou que l era Quaf e aqui era Vila Kennedy,
devido confuso mesmo, o agito que isso aqui. Aqui
completamente diferente de l; l tranqilo, tem silncio o tempo
todo (...). (Levi, ex-morador do conjunto do Quaf e atual residente de
rea prxima Praa Dolomitas)
No existe rivalidade, mas alguns dizem moro no Quaf, no na Vila
Kennedy ou eu moro nas Malvinas, no moro na Vila Kennedy. Tem
um pessoal que diz vou l fora. L fora aonde? L em Vila
Kennedy. (Ronaldo)
Olha, eles [moradores do Quaf] no falam que moram em Vila
Kennedy, mas o mapa diz, fazer o qu? (Las)
O Quaf foi feito pra antigos funcionrios da Telerj. Os
funcionrios vinham morar aqui. A era tipo um condomnio
fechado pra eles; depois que vieram outros moradores, mas l
um poder aquisitivo maior. Por isso que o pessoal fala que
Quafcabana. A gente brinca aqui dividindo ela [Vila Kennedy]]:
zona sul, zona norte, zona leste, zona oeste. (Nara)
Como essa diviso?
Aqui a gente t no centro. uma brincadeira... (Las)
A diviso se d tambm pela classe social. (Nara)
Tem outro conjunto planejado tambm que as Malvinas,
tambm tem o pessoal de um poder aquisitivo tambm mais
elevado, tambm j foi construdo para pessoas certas. (Las)
Ou seja, uma rea planejada para receber uma determinada
populao com um certo poder aquisitivo.
Diferente da Vila Progresso: vamos lotear!. E a, foi
acontecendo, n, vamos lotear. (Las)
E a tem essa diviso zona norte, zona sul... e isso tem tambm a
ver com a diferena de poder aquisitivo.
Isso no bairro salta os olhos. (Nara)
questo
econmica
tambm
foi
bastante
reforada
pelos
122
com varanda, portes de madeira invernizada) e dos demais bens que seus
residente possuem. Em minhas visitas a campo foi possvel perceber,
sobretudo no Quaf, e embora de maneira um tanto superficial, a diferena
scio-econmica existente. Contudo, a valorizao das reas citadas parece
bem mais clara para os informantes.
Alguns dos entrevistados procuraram simplificar a questo sobre a no
identificao de Vila Kennedy como rea de moradia pelos residentes no
conjunto Quaf, insistindo, por exemplo, na inexistncia de rivalidade entre os
moradores, ou mesmo atravs do cartesianismo da demarcao cartogrfica
(representado pela idia de mapa e da diviso do territrio por zonas),.
Entretanto, possvel perceber que as percepes sobre as reas de moradia
como indicando ou no pertencimento Vila Kennedy so significativas. Para
meus informantes, todas essas reas so parte de Vila Kennedy, pois partem
de uma espcie de princpio da pr-existncia, ou seja, Vila Kennedy
(composta pelas trs glebas originais) surgiu primeiro e, desta forma, seria a
principal referncia da regio para as reas do entorno. A naturalizao desta
noo por parte dos entrevistados pode ser observada atravs da colocao de
Ronaldo:
Acho que uma questo de endereamento postal. No existe um
problema. Eles [moradores de reas como o Quaf e Jardim do den]
sabem que moram... Onde? Na Avenida Brasil. Mas na Avenida Brasil
onde? A eles dizem Bangu, perto da Vila Kennedy. O pessoal vai falar
que perto da Vila Kennedy, mas no que na Vila Kennedy. Mas se
voc for ver isso tudo aqui seria realmente Vila Kennedy. No tem
outra referncia (Ronaldo).
123
Embora meu foco de interesse no sejam as motivaes que moradores
de outras reas, como o Jardim do den, possuem para expressar sua noo
de pertencimento Vila Kennedy, interessante destacar o quo complexas
so as representaes em torno do tema.
124
Entre a aceitao da classificao formal como sub-bairro e o desejo
de que a localidade venha a se tornar de fato um bairro, tal como Bangu, ou
uma cidade as falas dos entrevistados revelam que a questo est longe de
ser esgotada. Pelo contrrio, ela complexa e repleta de significados que
variam de acordo com o foco escolhido pelo morador. Por um lado, pode-se
perceber que, quando o foco Vila Kennedy, a idia de bairro atrelada s
regies compostas pelas trs glebas originais, sendo reas como Malvinas e
Quaf sub-bairros ligados Vila Kennedy. Por outro, quando a base a
nomenclatura utilizada pelo poder pblico municipal, onde Bangu o bairro
referncia, Vila Kennedy passa condio de sub-bairro ou bairro
adjacente.
Com relao s demais reas que compem Vila Kennedy, possvel
observar que existe uma espcie de hierarquizao conferida a reas formais,
como os conjuntos habitacionais Malvinas e Quaf, restando s localidades
ocupadas atravs de processos no formais, como as favelas de Vila
Progresso e Metral (entre outras), as noes mais recorrentes de ocupaes
ou invases. As falas da maioria dos informantes remetem complexa
estrutura social que d origem ao contnuo processo de construo (e
reconstruo) de fronteiras simblicas na localidade, pois, entre fronteiras e
pedaos, adaptaes e conflitos se entrelaam numa disputa constante pela
legitimidade do discurso. Afinal, quem define as fronteiras simblicas de Vila
Kennedy?
A noo de fronteira, aqui apresentada, no possui carter permanente,
mas sim mutvel ou fluido nas palavras de Leite (1999) , indicando a
diversidade dos limites estabelecidos por diferentes grupos de moradores
residentes em uma mesma localidade, e dos entendimentos daqueles que
vem a questo de fora. A autora ressalta que o estabelecimento de
fronteiras em uma determinada rea no se submete s classificaes formais
estabelecidas pelos rgos competentes na gesto do espao, pois est ligado
s dinmicas sociais, aos projetos de seus atores e co-relao de foras
existente na localidade.
O processo de formao de fronteiras guarda relao direta com a
construo social dos espaos, ou seja, com a existncia de microreas (Alvito,
2001) ora em conflito, ora em situao de coexistncia dentro de uma
125
mesma rea. Em seu texto, Alvito analisa as favelas cariocas como localidades
de carter heterogneo, concordando com Anthony Leeds na recusa do uso da
noo de comunidade. Para Leeds (1978), os chamados estudos de
comunidades simplesmente importavam os mtodos utilizados no estudo de
tribos para outras realidades totalmente distintas. Embora meu objetivo no
seja analisar Vila Kennedy como uma favela, o estudo de Alvito sobre as
microreas de uma regio poder auxiliar no entendimento sobre as
concepes dos moradores acerca das distintas reas (ou pedaos) que
compem o territrio.
Se, por um lado, Alvito preocupou-se em analisar o macro atravs da
influncia das organizaes supralocais como a polcia e o prprio trfico de
drogas sobre a vida cotidiana da favela de Acari, por outro, no deixou de
pensar o micro, representado pelos pedacinhos, como reflexo direto do
processo de construo social do espao. Onde pensava existir Acari, na
verdade, era uma rea composta por outras trs localidades que, por sua vez,
possuam vrios pedacinhos.
Para o autor, os pedaos que compem uma localidade encerram em
si:
(...) uma rede de relaes firmemente entrelaadas, cujo ponto de
partida a vizinhana. Vizinhana num sentido bastante restrito: cada
microrea compem-se de algumas dezenas de casas e famlias (
Alvito, 2001: 196).
No caso de Vila Kennedy, alm das trs glebas iniciais, outros pedaos
so indicados pelos informantes que os representam mais ou menos
valorizados socialmente. Tanto os conjuntos quanto as favelas so entendidos
como reas pertencentes ou no Vila Kennedy, dependendo do ponto de
vista acessado. Assim, as distncias nesta rea no so pensadas a partir de
uma lgica estritamente espacial, mas so carregadas de contedo simblico.
A distncia simblica pode ser muito significativa em uma localidade: um
morador de uma microrea pode passar a vida sem circular em outros pedaos
que compem o local onde mora. comum, por exemplo, haver referncias a
126
outras reas como l fora, oferecendo-nos a dimenso de que se est
tratando de um outro mundo.
Em Vila Kennedy, as referncias de meus entrevistados a outras reas
muitas vezes foram acompanhadas de expresses como l na favela, no
Quaf ou nas Malvinas. A prpria fala de um dos entrevistados sobre o
entendimento dos moradores do Quaf em relao Vila Kennedy (Vou l
fora. L fora aonde? Em Vila Kennedy, depoimento do morador Ronaldo) d a
idia de algo que est distante, separado ou , em outras palavras, l fora. So
mundos que convivem em um mesmo permetro geogrfico, mas que no se
interligam necessariamente. Duas de nossas entrevistadas chegaram a se
indagar como possvel, em Vila Kennedy, haver tanta misria e muitas
pessoas nem se quer se darem conta disso.
A noo de espao, com a qual estamos acostumados a operar
cotidianamente, leva em considerao as definies oficiais em registros
cartogrficos que contm a diviso de ruas, reas, fronteiras fsicas que
separam estados, municpios etc. Como percebido atravs das colocaes dos
entrevistados, estamos acostumados a pensar o espao sempre como algo
fsico, geograficamente delimitado. No entanto, este tipo de diviso longe est
de ser o nico existente, pois h um sem-nmeros de possveis vises e
entendimentos sobre o que marca os limites de determinada regio. Para alm
do espao fsico, temos que levar em considerao a existncia de um espao
que socialmente construdo / elaborado, ou seja, de um espao social. Para
Bourdieu
(1997),
diferenas
produzidas
pela
lgica
histrica
podem,
falsamente, parecer ser originadas de uma ordem natural das coisas: basta
pensarmos na idia de fronteira natural. Este um bom exemplo de como at
os elementos naturais como os rios, os penhascos, as montanhas etc
podem ser socialmente construdos ou mesmo utilizados nesta elaborao
(social) do espao.
A discusso que envolve os conceitos de lugar, espao fsico e espao
social representa elemento fundamental minha proposta de anlise. Assim,
torna-se importante destacar que, segundo Bourdieu, o lugar pode ser definido
como um:
espao fsico onde um agente ou uma coisa encontra-se situado, tem
lugar, existe. Quer dizer, seja como localizao, seja, sob o ponto de
127
vista relacional, como posio, como graduao em uma ordem
(Bourdieu, 1997: 160).
Sobre a estreita relao entre lugar, espao fsico e espao social, o autor
ressalta que:
Os agentes sociais que so constitudos como tais em e pela relao
com um espao social (ou melhor, com campos) e tambm as coisas
na medida em que elas so apropriadas pelos agentes, portanto
constitudas como propriedades, esto situadas num lugar do espao
social que se pode caracterizar por sua posio relativa pela relao
com outros lugares (acima, abaixo, entre etc) e pela distncia que o
separa deles. Como o espao fsico definido pela exterioridade
mtua das partes, o espao social definido pela excluso mtua (ou
a distino) das posies que o constituem, isto , como estrutura de
justaposio de posies sociais (Bourdieu, id ibid).
128
Essas reas foram criadas assim, porque uma era a necessidade de
morar, mas no meio disso a tem aproveitadores.
(...)
Mas essa regio mais alta aqui de Vila Kennedy que voc se
referiu [Alto Kennedy], o cara loteou, sem infra-estrutura
adequada...
Nenhuma, nenhuma. S dividiu os lotes, a os moradores tiveram que
fazer a parte de esgoto e gua, do bairro de baixo, quer dizer da
continuao da Vila Kennedy que as Malvinas, atravs de
canalizao e bombas. A hoje, o pessoal no morro tem gua atravs
de bomba. (Ronaldo)
No, [rea]] pobrezinha a Castor de Andrade, quando chega na
FIAT, olhando pra cima, mas agora ta tudo com tijolo as casas.
(Ins)
Ah, Ins, porque voc no vai l, tem casa de lona... (Mariana)
E o Quiabo, que invadiram. (Ins)
Invadiram no, Ins, os meninos que lotearem e deram. (Mariana)
Foi dado... desse lado mesmo. (Ins)
(...)
tudo Vila Kennedy [reas pobres]. (Mariana)
Eu acho que aqui deve ter umas quinhentas mil pessoas. (Ins)
Eu acho que tem... Eu estava ouvindo que Vila Kennedy maior que
muitos municpios (Mariana).
Eu tava conversando outro dia, como pode na Vila ter situaes to
diferentes? A gente entra numa favela, v gente descala, vai mais
frente v um casaro. Tem classes sociais muito diferentes aqui em
Vila Kennedy. Como tem gente que anda bem vestido, com dinheiro,
carro do ano, a olha pro lado e v as crianas descalas catando
xepa da feira? (Nara)
Esse lado econmico tambm bem curioso. Tem pessoas abaixo da
misria. Leandro e eu fazamos parte de um grupo social e a gente
visitava essas pessoas e via coisas horrveis. Mas de todas o que
mais me impressionou foi uma famlia que morava num buraco, onde
a gente descia e ali em baixo era tipo um poro e ali eles moravam,
no tinha uma janela, no tinha nada. So coisas muito chocantes,
mas ao mesmo tempo voc tem mega-empresrios aqui dentro.
(Las)
129
localidades. Mas este status de conjunto, que as deixaria em situao muito
similar s demais regies, logo foi substitudo pela mesma informante pela
idia de invaso, reforando a idia de ocupao pela via ilegal desenvolvida
pelos demais entrevistados.
Outra associao realizada foi entre o surgimento das favelas/invases e
iniciativas do trfico de drogas. Nas falas de duas moradoras os traficantes de
drogas, qualificados como meninos, foram apresentados como agentes
responsveis pela realizao de algumas invases e distribuio de lotes
populao. A ligao direta das favelas com o trfico quase no apareceu nas
entrevistas. Minha interpretao aqui que, longe de indicar que este no um
problema em Vila Kennedy, os moradores se protegiam de abordar o tema com
uma pessoa de fora. O mais significativo me pareceu ser que, apesar deste
silncio (Machado da Silva, 2007 org), aluses ao tema foram feitas,
especialmente pelo morador Ronaldo:
O nico lugar que se referia como favela era a Metral, porque o
problema era o grande ndice, hoje tem menos ou tem ainda, mas t
camuflado, era o despertar do marginal (...)
E a Metral ficou como Metral mesmo. O pessoal foi entrando,
entrando e invadiram terras que pertenciam a sitiantes. No meio
daquele grupo de pessoas tem pessoas boas e pessoas que no
valem porcaria nenhuma. A pressionam, e deixam pra l, no vou
esquentar a cabea com aquilo no.
Essas reas foram criadas assim, porque uma era a necessidade de
morar, mas no meio disso a tem aproveitadores.
130
voc ter favela. Quer dizer, as nicas reas mais livres so as que tem
na Avenida Brasil, e aquelas que so ocupadas, so planejadas por
empresas imobilirias que fazem ali o projeto de habitao. Aqui
dentro a gente tem. No sei se voc conhece? ECIA, Irmos Arajo.
Na poca, a gente tinha uma rea que era toda stio e fizeram vendas,
fizeram planejamento pra uma rea de habitao e venderam.
Inclusive, voc entra ali, voc tem residncias que, p, so muito bem
construdas. Como eles chamam? Foi uma rea que eles venderam
com toda a estrutura.
(...)
Aqui cresceu de uma maneira... A, voc pergunta, se tem lugar
disponvel que se criem comunidades... no se tem e muitas casas
aqui casa com duas trs famlias morando. Ento, voc v que se
engrandeceu de uma tal maneira que falta espao que possa abrigar
ou ter mais gente. Voc no tem!
(...)
s vezes at eu mesmo no meu trabalho eu falo daqui. Os outros
chegam e... ah! a favela [reproduo da fala dos amigos do trabalho].
Gente, eu moro num lugar que me d uma possibilidade de locomoo
muito melhor do que muitos. s vezes muitos querem se deslocar e s
vezes tm que pegar duas condues, eu vejo gente que trabalha
comigo que pra chegar ao trabalho sofre. (Pedro)
(...) so anexos. O pessoal fala l na favela. Acho que tambm rola
um preconceito, entre aspas. (Levi)
131
anexos. Assim, as favelas so percebidas como reas distintas (e talvez at
indesejadas), e referidas pela palavra l que ressalta a distncia simblica
que as separa das demais reas que compem o territrio. Trata-se de levar
em conta ou mesmo aceitar a proximidade territorial, sem entender as favelas
como reas oriundas do mesmo processo de formao das glebas originais ou
de regies como os conjuntos Quaf e Malvinas e sem deixar de demarcar a
distncia social (cf Leite, 1999). Neste caso, possvel ainda aventar a
hiptese de esta representao tambm contar com uma avaliao scioeconmica refletida na construo de uma espcie de fronteira simblica
baseada na renda de seus residentes. Em outras palavras, vistas como reas
habitadas por pessoas muito pobres e ocupadas atravs de invases, as
favelas seriam regies das quais de pretenderia afastar e diferenciar. Outra
possvel explicao para a diferenciao das favelas como territrios de
segunda categoria pertencentes Vila Kennedy, seria a presena do trfico de
drogas como elemento gerador de violncia e, assim, de uma imagem negativa
de Vila Kennedy como um todo.
Mas as percepes sobre as favelas no se encerram por a. H ainda
os moradores que transitam entre a percepo de pertencimento e a
necessidade de distanciamento e diferenciao das favelas.
Metral uma comunidade dentro da Vila Kennedy. Metral
porque tem uma firma em frente chamada Metral. (Mariana)
Tambm foi invaso. Eles invadiram e fizeram uma comunidade pra
eles. (Ins)
A Metral sofreu muito. Hoje em dia, graas a Deus, um paraso.
Mas j sofreram muito com o trfico. (Mariana)
[Trfico de drogas] um dos mais famosos, depois da Rocinha
ramos ns [referindo-se favela da Metral]. Mas uma coisa certa,
eles [meios de comunicao] falam favela da Metral, mas no falam
Vila Kennedy. (Ins)
132
favela pertence Vila Kennedy, desde que a associao no se d por meio da
existncia do trfico de drogas e da ocorrncia de episdios de violncia.
O conjunto das representaes acima analisado indica, pois, que a
pertinncia da hiptese central desta pesquisa, que relaciona a existncia da
favela e sua associao com o trfico de drogas e a violncia com a produo
de uma imagem negativa sobre Vila Kennedy. Um outro elemento a destacar
para subsidiar minha interpretao que, ao tempo em que realizei minha
pesquisa de campo, a quadrilha de traficantes de drogas que dominava o
territrio da favela da Metral havia sido expulsa por uma milcia que ento
controlava o territrio. Ao trazer este dado, quero pr em relevo que, no
momento das entrevistas antes analisadas, a favela da Metral no mais estava
imediata e diretamente submetida violncia do trfico de drogas, como alis,
a moradora Mariana explicita em sua fala: A Metral sofreu muito. Hoje em dia,
graas a Deus, um paraso. Mas j sofreram muito com o trfico. Minha
interpretao que exatamente por isto podia ser, em certos casos,
incorporada (a favela da Metral) ao ns com que os moradores se referiam (e
definiam) Vila Kennedy.
A associao dos conjuntos habitacionais como Cidade de Deus, em
Jacarepagu, e Cidade Alta, na Zona Norte, a reas favelizadas no um
assunto novo em nossa cidade. Seja por seu aspecto deteriorado, seja pelos
famosos puxadinhos vistos como semelhantes ao tipo de arquitetura
encontrada nas favelas, ou mesmo pela presena do trfico de drogas, muitos
conjuntos habitacionais populares so percebidos pelo senso comum como
favelas, que podem variar em seu aspecto plano, quando compostos apenas
por casas, ou vertical, quando formados por apartamentos. Assim, o aspecto
arquitetnico de favela pode ser pensado em relao Vila Kennedy, embora
no tenha aparecido nos depoimentos coletados. Sobretudo para os de fora,
algumas reas so facilmente associadas a favelas devido ao aspecto
pauperizado de muitas casas. Para Corra (1995):
(...) Vila Kennedy tem a feira de todo canteiro de obras. Fica cada
vez menos pronta. Mas preserva, h trs dcadas, o essencial que
herdou do governo: luz, gua, esgoto e acesso de carro a todas as
casas.
133
de maneiras distintas por seus residentes. Bairro, sub-bairro ou conjunto, so
apenas algumas das representaes existentes para identificar Vila Kennedy
nos dias atuais. Mas sua posio na cidade tambm sofreu mudanas e hoje
sua associao com uma favela perigosa encarada de diferentes formas por
seus moradores. Examinarei a seguir como o crescimento populacional, o
preconceito e a discriminao, a violncia e o trfico de drogas so abordados,
nos depoimentos, como forma de suas representaes sobre a imagem
negativa de Vila Kennedy como rea favelizada e violenta.
populacional:
kennedyanos
134
135
construdos de maneira bastante diferente do de outros moradores mais
recentes.
Eu acho que tem um caso que no est ficando muito bom a pra
gente, esse espao de presdio sendo aqui perto da gente d uma
influncia negativa pro nosso lado. Tem gente que tem parente preso,
a procura de um jeito ou de outro morar aqui na Vila Kennedy.
(...)
Pra ficar mais perto [dos parentes presos]. E aqui ns temos um
problema, aqui do lado eu no posso nem falar alto, que no pode
escutar, vizinho, [por]que a minha casa a ltima casa, mas a
vizinha aqui tem a casa virada pra l, na Paulino Sacramento, e fez
obra ligado pra essa rua aqui tambm, fez espao, mas tudo pra
alugar e os aluguis aqui no visam a pessoa, visam o dinheiro. Todo
dia tem gente diferente, todo dia... esse tipo que eu falo vem muita
gente! A pessoa quando tem um filho peso ali no Bangu I, Bangu II,
Bangu III, ele procura morar na Vila Kennedy. S pelo simples motivo
de ter um filho ali dentro do Bangu II, Bangu III, Bangu IV, que eu no
sei nem que banguzada essa que tem... Ento, essa parte pra ns,
ela piorou.
(...)
T acontecendo isso a. Na minha rua tem umas cinco ou seis
pessoas que alugam as casas. Assim, esse tipo que eu estou falando,
aumentou e comeou a alugar e quando aluga no procura saber de
quem , ou pra quem que t alugando.
(Rui)
136
alugando71 ressalta a insatisfao de se convier com pessoas que possam ter
hbitos indesejveis ou mesmo trazer riscos integridade fsica de seus
vizinhos, como o caso dos moradores que possuem relao com os presos de
Bangu I. As relaes definidas a partir do estigma que recobre os prisioneiros
como bandidos perigosos e que encompassam seus prximos passam,
ento, a ser pautadas pela impessoalidade, causando afastamento e
desconfiana entre os moradores.
Esta percepo das relaes sociais atuais, em Vila Kennedy, como
cada vez mais efmeras e marcadas por fortes traos de individualismo, faz
lembrar as consideraes de Richard Sennett (2006) sobre a corroso do
carter. Para Sennet, a construo do carter, que abarca a noo e a relao
com o outro, necessita de aspetos que s podem ser desenvolvidos no longo
prazo, pois virtudes como confiana, lealdade, comprometimento e ajuda
mtua s so construdos em um tempo mais contnuo. Contudo, o novo
capitalismo, regido pelas relaes flexveis e de curto prazo, no permitem o
desabrochar de relaes mais duradouras. Em linhas gerais, esse novo ritmo
do mercado traz alguns ganhos econmicos, mas impem s relaes sociais
a perda de caractersticas bastante valorizadas por geraes anteriores, como
a confiana nos outros, a idia de objetivo a ser alcanado no longo prazo e a
integridade. Na sociedade atual, estamos nos acostumando cada vez mais a
pensar e agir de maneira individual, pois as noes de coletividade no tm
mais a fora e a funo que possuam antes. Neste sentido, muitos aspectos
abordados nesta parte do trabalho encontraro nas concepes de Sennett
(2006) base importante para a anlise das representaes dos moradores de
Vila Kennedy sobre as atuais mudanas sentidas nas relaes sociais.
Mas o crescimento populacional e a mudana no perfil dos moradores
tambm trazem aspectos relacionados possibilidade de ameaa integridade
fsica dos moradores. No saber quem so as pessoas que coabitam na
mesma rea significa estar vulnervel, correr riscos, pois as pessoas no
convivem e compartilham necessariamente dos mesmos hbitos e costumes.
Mas vocs no sentem os reflexos [da violncia] diretamente no, de
tiros?
71
Ainda que o morador possa estar romantizando o passado, atravs da representao de que seria assim que se
faziam as coisas antes, o que me interessa destacar aqui sua percepo do que mudou e como mudou em Vila
Kennedy.
137
No. Ontem mesmo, eu tava aqui, a abriu o porto, falei o sr
pode entrar. Parou dois carros a procurando, no sei o que... diz
que houve um seqestro, diz que quer ver as casas. Digo, minha
caso sr pode ver vontade, e l em cima minha filha, o sr pode
ir l tambm se quiser. Mas a ele sentiu que no tinha nada a ver.
A aquele portozinho que ta l ele forou, diz que entrou l...
Mas...
E nunca tinha tido esse tipo de coisa no, no Rui?
No, no! o seguinte, t havendo um combate, agora, se
certo ou se errado... O polcia me perguntou, posso dizer que
ele me perguntou ali assim, seus vizinhos aqui so bons
vizinhos? Vizinho, eu falei pra ele, eu no posso t informando
isso no, meu chapa. Falei com ele assim mesmo, , isso a no
meu caso, o meu caso deixar o sr entrar na minha casa, agora o
outro caso que o sr ta perguntando eu no posso dar informao
no. No informei mesmo.
O sr no sabia quem ele era...
No sabia. aluguel, hoje mora um, amanh mora outro, e a eu
no t vivendo com eles...
E h uns anos atrs o sr no tinha essas preocupaes, no ?
No tinha esse negcio. No, no.
(Rui)
Como tudo aquilo o que cresce voc s vezes vai tendo o
descontrole. Qualquer coisa que evolui, voc comea a ter
descontrole.(...)
Elas [filhas] transitam [por Vila Kennedy], mas voc tambm tem que
orientar. Como aqui cresceu, voc no sabe quem t aqui dentro.
Voc no conhece todo mundo, dentro de um lugar que... eu no
tenho nem ao certo o nmero de habitantes que ns temos aqui. Voc
t margem de uma rodovia federal. Voc pode estar num ponto de
nibus ali e voc no sabe quem vem de uma rodovia daquela ali,
pode parar e querer te fazer qualquer transgresso. Voc s vezes,
altas horas, voc desce, no d de cara com ningum, um deserto.
s vezes voc caminha pedaos e ningum te importuna, agora,
como eu falei, no entorno, voc tem outras reas de circulao e no
sabe quem trafega. (Pedro)
O lugar cresceu muito, muito mais gente, nem todo mundo to mais
conhecido...
Hoje em dia a maioria se mudou, a maioria morreu... (Jorge)
Essa histria de muita gente desconhecida traz muita mudana para a
vida de vocs?
Com certeza, a gente no sabe quem quem. No sabe de onde
vem, qual a funo. (Filha da urea e Jorge)
Isso traz uma certa insegurana. Mas a gente aqui desse pedacinho,
(...) os vizinhos mais chegados ficam at uma hora da manh no
banquinho conversando. Se tem caf, toma caf, se tem bolo, traz
bolo pra comer... Ai, o Srgio diz que o pessoal do trabalho dele diz
mas vocs ainda conseguem viver assim?. Consegue! Mesmo num
lugar marginalizado, discriminado, mesmo que passe pessoas que
no so das melhores, eles passam e no falam nada com a gente. O
problema deles l com eles l, a gente no se mete. (urea)
Quando voc era criana, a vida era mais tranqila, e quando voc se
refere a essa tranqilidade, voc se refere a qu?
T falando de um ambiente onde voc podia chegar a hora que
fosse e tava tranqilo, tava seguro, mas conforme a criminalidade
foi aumentando, foi tomando um corpo diferente do que a gente
tava acostumado, pessoas de fora comearam a vir pra dominar
os pontos de trfico aqui, isso fez com que os moradores mesmo
no conhecessem essas pessoas. (Levi)
138
saber quem aparece como condio fundamental para que se possa
desenvolver um convvio harmnico e seguro. Entretanto, conhecer o outro
parece ser uma possibilidade cada vez menos prxima da realidade atual,
sobretudo em uma regio que, a exemplo das grandes cidades, convive com a
agitao cotidiana, com a rotatividade dos moradores e com efemeridade das
relaes. Assim, no saber quem est ao lado ou quem transita pelas mesmas
reas so razes para estar submetido ao risco de ser afetado pela violncia
urbana.
O medo da violncia objeto de preocupao de grande parte da
populao brasileira. Segundo Machado da Silva (2007), a expresso violncia
urbana no apenas um problema coletivo e um tema de debate, pois todos
sabemos que ela real e concreta. A representao da violncia urbana
indica um:
complexo de prticas legal e administrativamente definidas como
crime, selecionadas pelo aspecto da fora fsica presente em todas
elas, que ameaa duas condies bsicas do sentimento de
segurana existencial que costumava acompanhar a vida cotidiana
rotineira integridade fsica e garantia patrimonial. Violncia urbana
, portanto uma representao que interroga basicamente o crime
comum, mas o foco de ateno no o estatuto legal das prticas
consideradas, e sim a fora nelas incrustada, que responsvel pelo
rompimento da normalidade das rotinas cotidianas, ou seja, da
certeza sobre o fluxo regular das rotinas em todos os aspectos,
cognitivo, instrumental e moral (Machado da Silva, 2007: 12).
139
sobretudo o plano da sociabilidade: necessrio tomar cuidado e manter a
distncia daquelas pessoas que no so das melhores.
A mudana de hbitos experimentada pelos moradores de Vila Kennedy
conta ainda com um outro vis explicativo. A diferena entre geraes foi
apontada como um elemento capaz de explicar a mudana de comportamento
expressa, por exemplo, no enfraquecimento das relaes de solidariedade.
Hoje mudou muito essa solidariedade?
Na minha rua no! (Mariana)
No so como era. Hoje em dia, j morreram muitas mes de quem
veio. As mes de hoje so diferentes das de antigamente. (Ins)
(...)
Esse o medo que eu tenho de sair daqui. (Mariana)
(...)
Tantas pessoas conhecidas de tantos anos. Mas a populao cresceu
muito...
Muito! Acho que umas dez vezes. (Ins)
Ento, tambm tem muita gente desconhecida.
Ah, tem! A gente conhece mais gente assim por causa da
igreja. (Mariana)
140
bobeira... no tinha nada de projeto (...) As pessoas esto por a,
vagando. (Eliana)
141
fundamental para a definio de sua postura positiva e cuidadosa com relao
ao territrio. Assim, o legtimo morador de Vila Kennedy aquele que criou
razes e laos de afetividade com o local, aquele que preserva e se preocupa
com a manuteno das reas, o morador que desde cedo aprendeu a cuidar
do seu local de moradia, tal como fizeram as geraes anteriores. J aqueles
que vm de fora no se preocupam e no criam identidade com a localidade,
por isso tm atitudes incivilizadas de depredao e falta de cuidados com a
infra-estrutura e equipamentos pblicos, por exemplo. Assim, o aumento
populacional visto como responsvel pelo crescimento do nmero de famlias
que no esto comprometidas em manter Vila Kennedy como um bom local
para se morar. Este entendimento sobre os tipos de moradores existentes na
localidade ressalta a diviso entre dois grupos, basicamente: os moradores
antigos (os kennedyanos verdadeiros) e os moradores mos recentes (os de
fora).
As representaes aqui analisadas sobre o tempo de moradia e a
relao com o local de residncia podem ser diretamente associadas a estudos
como os de Leite (1999) e de Elias & Scotson (2000). Neles, a busca da
legitimidade de certos projetos, atravs de uma narrativa capaz de revelar a
verdadeira histria sobre as origens de um bairro, encontra-se atrelada fala
dos moradores antigos. Ao estudar as origens do bairro do Graja, Leite
aponta, nos depoimentos de moradores residentes no bairro h mais tempo, a
preocupao em:
ressaltar as relaes atravs das quais entraram no bairro e a
estabilidade das mesmas, como indicador da rede social que cultivam
e de como a partir dela se situam e se qualificam no bairro. Ao faz-lo,
esto construindo sua identidade como verdadeiros grajauenses, num
dilogo com os moradores mais antigos do bairro, para os quais, via
de regra, o tempo de moradia no bairro, associado rea de
residncia como indicativo do grupo social a que se pertence (a elite, a
burguesia do bairro) que define o grajauense de raiz (Leite, 1999:
128).
142
de Winston Parva, pensavam a si mesmos, ou seja, se auto-representavam
como humanamente superiores a outros grupos menos poderosos e, por isto
considerados inferiores (outsiders). Na rea escolhida para seus estudos Elias
e Scotson puderam verificar que:
(...) todo arsenal de superioridade grupal e desprezo grupal era
mobilizado entre dois grupos que s se diferiam no tocante a seu
tempo de residncia no lugar. Ali, podia-se ver que a antiguidade da
associao, com tudo o que ela implicava, conseguia, por si s, criar
um grau de coeso grupal, a identificao coletiva e as normas
comuns capazes de induzir euforia gratificante que acompanha a
conscincia de pertencer a um grupo de valor superior, com o
desprezo complementar pelos outros grupos (Elias & Scotson,
2000:21).
143
Kennedy. E, ainda vale novamente frisar, que a associao dos mesmos a
pessoas prximas dos internos no presdio recobre o grupo dos significados
negativos antes analisados.
144
Diante do movimento que pode combinar imposio, reforo, reao ou
incorporao dos estigmas atribudos, muitas so as estratgias utilizadas
pelos que estigmatizam e pelos que so estigmatizados. Em Vila Kennedy, a
histria traz de volta a favela para bem perto do convvio de seus moradores :
no passado, a origem associada s favelas removidas; no presente, o esforo
de tentar demarcar o que Vila Kennedy (ou aquilo o que no ). A tentativa
de dissociar a imagem de Vila Kennedy de um lugar barra pesada como se
referem alguns moradores de outras localidades da prpria Zona Oeste diante
da existncia do trfico de drogas na regio passou a fazer parte do cotidiano
de muitos moradores preocupados em estabelecer as fronteiras simblicas que
julgam necessrias a tal diferenciao, operando com uma espcie de
distino moral entre trabalhadores e bandidos, kennedyanos e de fora,
aqui no bairro e l na favela72.
A complexa trama de representaes que tem como fios estigmas,
preconceitos e discriminaes se atualiza num constante movimento que tanto
pode acontecer de dentro para fora quanto de fora para dentro. Neste jogo
de apropriaes, reapropriaes, conflitos e adaptaes a figura central a
favela, sendo seu peso simblico para a construo da imagem negativa de
Vila Kennedy analisado a seguir, a partir das representaes dos entrevistados.
Sobre processos similares de distino moral em favelas, ver Zaluar (2000), Fridman (2007), Leite (2007) e
Machado da Silva e Leite (2007).
145
lugar uma favela. As pessoas no pensam que se voc estragar o
lugar que voc vive, obrigado a ter algum pra concertar; se
voc cuidar da onde voc vive, voc sempre vai ter um lugar legal
pra morar, pras pessoas conviverem, pros seus filhos
brincarem.
(...)
As pessoas que vivem aqui precisam muito mudar a sua cultura
de que a gente mora numa favela e que isso aqui no vai crescer
nunca; tem pessoas aqui com potencial pra fazer a mudana.
(Levi)
A fica difcil, muitos hoje em dia dizem, ah! a Vila Kennedy...
entendeu? Eu acho muito errado como discriminada. Isso aqui
favela! [referindo-se ao que os outros dizem]. Hoje em dia a palavra
favela se tornou um sinnimo de desorganizao, de baguna. Voc
pode observar, qualquer coisinha que voc v em qualquer canto
desorganizado, virado, jogado, o qu que a pessoa fala? , , vamos
parar com essa favela a!. Favela se tornou sinnimo de
desorganizao, de baguna. Ento isso aqui era um conjunto
residencial, entendeu, como muitos outros hoje em dia tem aqui no
Rio de Janeiro. A Cidade Alta, ali em Cordovil, aqui em Bangu um
conjunto chamado... so uns apartamentos chamados... Dom Jaime
Cmara, acho... Como um novo que eles fazem, o tal de Nova
Sepetiba. Mas a acontece o problema... como voc tem tambm na
Zona Sul, ali na Gvea, a Cruzada So Sebastio. Eram conjuntos
habitacionais para pessoas de baixa renda, mas se voc tem a
ausncia do poder pblico, voc v que em todo o canto t a favela.
Voc tem a prpria favela no centro financeiro do Rio de Janeiro. O
que so aquelas reas ali como na Pa Tiradentes, que tem ali um
monte de prdio abandonado? Ficam ali abandonado, acontecem as
invases... a maior ausncia do poder pblico! Em toda a nao! Se
a gente for falar economicamente a diviso de renda muito mal
dividida...
E isso gera?...
A aquele tal negcio, gera o favelismo geral! Por que... (Pedro)
Se pensarmos hoje essa idia de que Vila Kennedy uma favela,
voc acha que se deve a questes mais atuais ou ainda tem alguma
relao com o passado?
Acho que hoje so as questes mais atuais. A referncia que
eles sempre utilizam a questo do trfico, da bandidagem, o
pessoal se esconde, fica escondido na favela de Vila Kennedy,
fica escondido em algumas perifricas, como Vila Aliana. H
necessidade de as pessoas morarem, o pessoal vai construindo
cmodos, barracos, e cresce de uma maneira vertiginosa e
quando vai perceber... igual aqui, o pessoal se apossou da rea
da adutora de Ribeiro das Lajes (...) A negligncia do poder
pblico acontece, deixa essas comunidades se formarem. (Levi)
146
A primeira representao oferece um claro exemplo de como
internamente os estigmas podem ser produzidos. Aqui, a idia de que a favela
est dentro da pessoa explicaria comportamentos reprovveis de moradores
que agem como favelados e impem aos demais a convivncia com reas
degradadas e equipamentos pblicos depredados. O estigma do morador
pouco civilizado ajuda a reforar a imagem de Vila Kennedy como favela, ou
seja, a ser compreendida e representada como local degradado e pouco
evoludo.
Mas a idia de favela no se resume postura individual de moradores
desacostumados a hbitos de conservao, a manuteno dos espaos e a
sociabilidade que decorre (o respeito). Ela tambm passa pela via do agente
externo, qual seja: o Estado. O entendimento de que a ausncia do poder
pblico um dos principais causadores de mazelas em nossa cidade ainda
compartilhado por boa parte da sociedade. A partir desta ausncia, inmeros
problemas advindos do descontrole e da desorganizao afetariam a cidade.
Assim ocorreria com as favelas, vistas como resultado da falha da ao do
Estado que permite que as invases ocorram em reas que no deveriam
estar abandonadas. Interessante destacar que o relato de Pedro oscila entre a
avaliao de que errado discriminar Vila Kennedy como uma favela (vista
como sinnimo de desorganizao e baguna) e o entendimento de que,
pelas falhas de atuao do Estado, voc v que em todo canto t a favela.
Vale ressaltar que, embora discuta a idia de ausncia do Estado nas favelas,
entendendo-a como um mito e no como uma realidade, Machado da Silva
(2007) fornece interessantes elementos para pensarmos esta idia de ausncia
em outros territrios pobres da cidade. Isto porque, tal como nas favelas,
podemos pensar na existncia de inmeras evidncias da presena dos
aparelhos de Estado e seus agentes nestas regies habitadas por camadas
populacionais de menor poder aquisitivo. O que importa, no argumento do
autor, como o Estado est presente.
A associao de Vila Kennedy a uma favela tambm vista por boa
parte dos moradores entrevistados como resultado da presena do trfico de
drogas nas ocupaes perifricas e seus desdobramentos em termos de
violncia. Contudo, parte menos representativa dos entrevistados considera
147
que tal imagem tambm guarda relao com a marca deixada pelo processo de
remoes.
O estigma de ex-favelados permanece at hoje. Dizer que morava em
Vila Kennedy era um impecilho para conseguir vagas (emprego). A
estratgia era dizer que morava em Bangu. No havia orgulho em se
dizer que era morador de Vila Kennedy. E hoje, boa parte dos
moradores tambm no sentem orgulho em dizer que mora em Vila
Kennedy. Outros, no entanto, que tem um senso crtico mais ampliado
sobre a sociedade, tm orgulho e dizem sem problemas onde vivem
Hoje, o estigma do ex-favelado reforado pelo mapa do crime
organizado. (Mrcio)
Hoje em dia com a falta do poder pblico, a gente no diz na
segurana, mas nas coisas bsicas que voc tenha uma
formao de cidados, que s so vistos na hora que acontece as
tragdias, problemas... a eles julgam. E tambm dependente da
formao, porque a gente fomos formados aqui com exfavelados, de moradores de morros, de comunidades da Zona
Sul, ento aquilo ali s se conhece dessa maneira.
O sr acha que naquela poca, vindo ex-moradores de favela, o sr
acha que de alguma maneira existe uma...
Tem essa discriminao! Voc tem essa discriminao. Traz com
ela... como se diz... traz essa marca (Pedro)
148
..., mas o pessoal fala eu moro na favela de Vila Kennedy.
(Nara)
um
desabafo,
sobretudo
contra
aqueles
que
demonstram
se
149
Eu j sa daqui, j peguei o nibus l chegando no Coqueiros, porque
eles no paravam. Porque aqui era a favela, l em cima eles paravam.
Ento a gente ia caminhando, caminhando... l em Santssimo. (Ins)
Vocs foram removidas e vieram para um lugar que tinha uma
estrutura melhor, casa, gua, esgoto, mas havia um certo...
Preconceito. Porque era tudo pobre, veio de favela. (Ins)
150
Conviveu com isso muito tempo?
No at oportunidade de emprego mesmo, tinha que falar que
morava em Bangu. Se falar que mora em Vila Kennedy, voc era
meio deixado de lado. (Levi)
151
3.3.3 Violncia, trfico de drogas e milcia
Como vimos anteriormente, a populao da cidade do Rio de Janeiro
vem convivendo com experincias permeadas por episdios violentos que,
cotidianamente, colocam em xeque tanto a integridade fsica de civis quanto
pem prova a capacidade do Estado em resolver este grave problema
urbano. Em meio a sobressaltos, dvidas, desconfianas e uma desagradvel
sensao de insegurana constante, moradores de diversas partes da cidade
elegem a segurana pblica como um tema que deve ser discutido, mas,
sobretudo, resolvido com a mxima urgncia.
Assim, o tema violncia no tardou a aparecer durante o trabalho de
campo, estando presente em todas as entrevistas. As variaes em termos do
nvel de preocupao que os entrevistados apresentavam em relao ao tema
e as mudanas em suas rotinas dirias que efetuaram ofereceram importantes
indcios sobre a prpria relao dos moradores com o territrio. Em Vila
Kennedy, como no resto da cidade, a relao entre o trfico de drogas e a
violncia apareceu de maneira bastante clara, estando a favela, em si, um
tanto secundarizada nas falas dos moradores. As referncias criminalidade e
ao da polcia (que se apresentou bastante imbricada da milcia) tambm
ajudaram a compor o quadro de representaes dos moradores de Vila
Kennedy sobre o tema.
A atribui de uma espcie de subcultura s favelas nada tem de recente,
como argumenta Machado da Silva e Leite (2007). Para os autores o novo
que agora no se trata de basear este entendimento, como antes, na
desorganizao social dessas localidades, mas de associ-las diretamente ao
crime violento (Machado da Silva e Leite, 2007: 27). Na viso dos moradores,
a idia de que as favelas so o grande celeiro da criminalidade violenta por
conta da presena do trfico e dos conseqentes conflitos com policiais e com
bandidos de outros grupos rivais preponderante.
At hoje em dia, tem gente que fala como que vocs
152
Do medo da violncia. (urea)
Episdios de violncia so os que mais chamam ateno e que
produzem notcia. No cotidiano isso algo que acontece com
freqncia e afeta a rotina?
No, e espordico, coisas raras de acontecer.
(...)
Essa lei que existia na Metral por conta do trfico, o cotidiano da vida
era marcado por isso. E no se expandia?
No, era uma fronteira.
Ento nada na sua vida era afetado por ter uma favela aqui perto?
No, de vez em quando saa um tiroteio, mas era devido ao
enfrentamento da ordem legal com essa... (Levi)
(...) O nico lugar que tinha era esse, era a Metral, que era mais
complicado, ento essa ningum se metia.
(...)
, mas no t mais perigoso [favela da Metral] e t ocupado, n? E l
de cima onde agora t havendo uns combates, que Vila Aliana, do
outro lado l, do morro, eles atiravam pra c pra Metral, a trocava tiro.
A a gente ficava nesse meio, mas no corria nenhum risco no. Ns
escutava o barulho dos tiros, l de cima eles atirava pra Metral. Um
grupo a parece que quer tomar o outro. (Rui)
153
No, eu gostava muito esse negcio de reunies e tudo, a ficava
assim, mas de noite no que no d pra mim no... tem essas
coisas.
(...)
E esse negcio do pessoal vir pra c tudo armado, eles chegavam a
incomodar os moradores?
No, a incomodao deles, eles queria marcar presena. Eu acho
que eles queria aparecer e mostrar que era o tal. Pra ns era mais ou
menos isso a ele te amedrontava, era uma ameaa que eles fazia...
(Rui)
O que no tranqilo hoje?
Ns tnhamos nossas festinhas aqui, tinha muito forr. Eu
cansei de sair daqui duas horas da manh e ia pra casa sozinha.
(...) Hoje eu no fao isso! Eu tenho pavor. Quando d dez
horas... Eu vou pra qualquer coisa l no Centro, eu ficou
calculando que 10h eu tenho que estar em casa. Antes eu no
tinha esse medo.
Hoje o receio da sr o qu?
tiroteio.
E isso devido a qu?
questo das drogas. Em cada esquina tem um comrcio.
Onde tem comrcio rea de risco (...) (Eliana)
154
Mesmo os jovens entrevistados compartilham da idia de que, em
tempos de violncia urbana, os cuidados tm que ser redobrados. A prpria
leitura do ambiente faz com que os moradores consigam sentir de o clima
est tranqilo ou pesado, inspirando maior ateno. Esta obedincia s
regras estabelecidas se d diante da necessidade de salvaguardar a
integridade fsica diante de situaes onde a fora (atravs de armamentos)
prepondera.
Mas na vida de vocs a existncia dessas favelas no trouxe
nenhuma mudana? [pensam um pouco antes de responder]
Mais cuidado, n, porque voc nunca sabe quando vai acontecer
um confronto. (Nara)
Hoje o trfico ficou super organizado, hoje gira o gerente, hoje ele ta
aqui, amanh ele ta em outra favela, ento no mais aquele bandido
que conhece todo mundo do bairro. Os bandidos sabiam exatamente
quem eram os moradores. Minha v nunca se acostumou com essa
idia, ela chegava a ficar doente. (Las)
Ento mais aquela coisa de ter mais cuidado...
, voltar mais cedo pra casa. (Nara)
Passou de uma certa hora, tem lugares que voc no vai mais.
(Las)
A gente aprendeu at a ver o clima. Eu chego da faculdade 15
pras 11 [horas]], eu chego com uma amiga minha que mora bem
mais l pra cima. A gente desce do nibus e percebe nossa,
como o clima t estranho. A a gente aperta o passo (...) Todo
mundo sabe o clima, no sei te explicar, coisa de quem mora
aqui. (Nara)
Tem barracas que ficam direto, elas no fecham. Aquelas barracas
vazias, fechadas, j sabe... (Nara)
Isso tem acontecido com freqncia?
Olha, desde que a milcia tomou... (Jovem Las)
155
A nica diferena que quando nossos filhos eram pequenos, tinha
mais respeito. Hoje no se respeita. igual s meninas. Antes uma
menina de dez anos no ficava beijando na boca nem tendo filho.
(Ins)
Naquela poca, eu me lembro sempre me dei com muita gente
envolvida e nunca ningum me ofereceu ... Eles nunca me
ofereceram nem usaram na minha frente. (Mariana)
Hoje em dia, se eles quiserem eles vo fumar na minha porta. (Ins)
Se hoje em dia voc ainda trabalhassem pesado l no centro da
cidade, ser que ia ter a mesma tranqilidade de deixar a garotada?
No! Hoje tem que estar com quatro olhos e ainda pouco. (Ins)
(...)
muito perigoso. Eu tomo conta de um de 13 anos que a me
trabalha e tem que ficar de olho. Se vai ali, tem que ver se est ali,
porque dali... (Ins)
O pessoal que era do trfico [voz diminui volume]] ajudava a
olhar nossos filhos. Se meu filho ou o filho dela se envolvesse
eles mandavam pra casa e ainda falavam pra gente. (Mariana)
Hoje no, eles chamam, captam (Ins).
A violncia mudou de perfil.
Elas [me e av]] falaram tambm, que o malandro l era o
malandro. L, bem ou mal, o malandro respeitava as pessoas. E
essa palavra nem existe mais, hoje o marginal, o bandido e que
a qualquer momento, se ele se sentir acuado ele pode te usar pra
poder tirar vantagem de algo ou se libertar de algo que acontecer
com ele. Ento, no tem esse lance ah, o bandido me protege,
eu no acredito nessa prerrogativa, acho que ele l, eu aqui.
(Levi)
156
mais ameaadores, a questo da segurana pblica assume status cada vez
mais elevado. Nas atuais condies de desigualdade econmica, a idia de
bem-estar comum e de segurana com os outros sede espao mentalidade
de segurana apesar dos outros (Fridman, op cit: 53). Neste cenrio de
perturbaes, temores e conflitos, ricos e pobres partilham de um mesmo valor:
a idia de que preciso eliminar a criminalidade violenta. Assim, livrar a
sociedade desta terrvel ameaa significa, no mais das vezes, conceder a
permisso para matar (Fridman, op cit: 49).
Eu acho que piorou no tipo de violncia. Piorou muito. Agora
recentemente, que no foi de muito tempo, t melhorando um pouco,
eu t achando que t melhorando porque t havendo um combate,
mas... , a violncia existia de uma maneira que a gente daqui via
passar ali garotos com fuzil ali nas costas, de motocicleta, tava
acontecendo isso aqui, agora no t acontecendo mais.
(...)
Eu acho que pra combater tem que dar as coisas, eu acho. No meu
entendimento, pra combater, tem que dar emprego, tem que dar
educao, a tem de combater... [interroga-se o morador] Pra
combater s com arma... ele t combatendo, eu sei que ngo t com
medo, n? (Rui)
Graas a Deus, a polcia invadiu [a favela da Metral] e limpou. Agora
as crianas brincam na rua, as pessoas ficam no porto... (Ins)
Hoje melhorou muito l [Metral] porque a polcia entrou l dentro e
eles ficam rodando o dia inteiro e ento agora o pessoal t mais
devagar. Eu culpo mais autoridades, porque no do a segurana
devida pros moradores. Aqui mesmo, difcil voc ver um policial
rodando. Se tivesse a polcia rodando, no acontecia nada disso. No
caso deles, a polcia entrou e diminuiu a violncia. Tinha que ter em
todo o canto... (Jorge)
157
agentes de segurana, sob o olhar complacente daqueles que se sentem
aliviados ou vingados pelo uso da fora nas localidades onde prolifera a
organizao dos bandos armados que operam a economia da droga.
Tornaram-se uma gente sacrificvel sem que isso seja percebido ou
repudiado como delito inaceitvel (Fridman, op cit: 55).
Embora muitos moradores de faixa etria mais elevada tenham se
referido ocupao da favela da Metral como uma ao realizada por policiais,
as jovens moradoras (nascidas e criadas em Vila Kennedy) se referiram ao
episdio como promovido pela milcia.
O baile da Metral, o baile mais famoso que tem..., mas parou
porque a milcia tomou... (Nara)
A polcia ou a milcia?
A milcia tomou a favela at hoje. (Nara)
(...)
E a milcia tomou?
A favela. Eu fico pensando, vai chegar o tempo que eles vo querer
descer. Enquanto eles to l, t timo; eles trouxeram paz, e a gente
t livre deles. (Las)
T mais tranqilo porque a milcia tomou a Metral? E quando os caras
quiserem voltar?
aquilo o que eu falei, a Metral um ponto de vendas fortssimo.
(Las)
Eu tinha pensado que quem havia tomado era a polcia.
No. Quando trocou o comandante do batalho, ele deu uma
acalmada muito grande, ele entrou com tudo, mas quem deu jeito
mesmo foi a milcia. E a o lado de l ficou super, no sei... superperigoso, porque os daqui foram todos pra Progresso. A juntou os de
l, da Progresso, e os que foram expulsos da Metral. (Las)
sensao
de
paz
relativa
tranqilidade
experimentada
158
A gente ficou morrendo de medo de no poder mais atravessar pra
esse lado. (Nara)
Ento tinha essa histria de comando diferente?
A gente achou que ia ter. Mas acabou que a milcia acabou... Talvez
tivesse at esse negcio de cdigo pra poder entrar. (Nara)
Quando a milcia estava expulsando o pessoal da Metral, veio
um outro comando... eram trs foras. (Las)
Aproveitando o que tava fraco. Era estratgia de guerra isso aqui.
(Nara)
Como era viver aqui nessa poca?
Foram semanas bem complicadas. (Las)
Teve dia que eu no pude ir pra faculdade, porque eu no sabia
como eu ia voltar. A teve um dia que eu me revoltei, eles no podem
decidir se eu posso ou no posso entrar. A fui, eu no sabia nem se o
nibus ia descer aqui. (Nara)
159
pelo sistema, a polcia instituio atravs da qual operaria o monoplio da
fora pelo ao Estado no consegue garantir a segurana pblica. Nas suas
brechas, criaram-se alternativas que impem populao o estabelecimento
de regras atravs da fora dos armamentos. Refns da situao e sem ter a
quem recorrer, muitos moradores de reas dominadas pelo trfico de drogas se
vem diante de uma escolha impensvel: qual o comando melhor? No seria
o menos pior entre os piores? A situao dramtica, pois estamos todos
mergulhados numa espcie de salve-se quem puder, enquanto que nas reas
mais abastadas da cidade erguem-se muros e guaritas na tentativa de afastar a
ameaa da violncia urbana. Aos favelados, no entanto, resta tentar a sorte de
sobreviver e meio a tantas adversidades e nadar contra a mar.
160
CONCLUSO
Com o auxlio da pesquisa emprica (observao direta e entrevistas) foi
possvel identificar alguns elementos-chave para a compreenso da atual
imagem de Vila Kennedy como uma favela perigosa, tendo como foco as
representaes de antigos moradores da regio.
as
favelas
no
sejam
diretamente
apontadas
pelos
161
moradores consideram mais convenientes nas diversas situaes em que
atuam. E justamente esta experincia atualmente vivida nas grandes cidades,
um dos pontos mais levantados pelos moradores de Vila Kennedy. A afirmao
de que os ndices de violncia e criminalidade aumentaram muito ao longo dos
anos, no mais das vezes, vinha acompanhada de comparaes com a cidade
como um todo. Desta forma, para os entrevistados, Vila Kennedy no desfruta
de uma situao restrita somente ao seu territrio, mas compartilha das
sensaes de medo e insegurana comuns cidade como um todo. Vale
ressaltar que esta pode ser uma forma encontrada pelos moradores para se
contraporem ao estigma imposto ao territrio.
Ao acionarem suas memrias, sobre uma Vila Kennedy de outros
tempos, a lembrana do passado foi comumente direcionada por questes
caras no presente. Falar sobre como era a vida h quatro dcadas atrs
significou, muitas vezes, lembrar daquilo o que funcionava bem, a partir,
sobretudo do que incomoda hoje. Neste sentido, aspectos como violncia,
criminalidade, desrespeito s regras de convivncia e o prprio trfico de
drogas foram elementos muito reforados como no existentes poca em que
as primeiras famlias vieram para o conjunto.
Ao recorrer ao passado, busquei conhecer as representaes daqueles
removidos sobre a vida em um local distante e com uma estrutura bastante
diferente da qual estavam acostumados. Mas este encontro com uma outra
poca me colocou em contato com interessantes aspectos revelados pela
verso dos que ficaram. Para alm das to difundidas questes que levaram
muitas famlias a abandonar conjuntos habitacionais como Vila Kennedy, foi
possvel identificar nas histrias daqueles que permaneceram: os diferentes
significados que a remoo teve para famlias oriundas da zona sul e da zona
norte; como os ex-moradores de favelas eram encarados pelos de fora; que
valores estes moradores cultivaram e mantiveram ao longo dos anos; como a
forma de chegada ajudou a construir o tipo de relao com o territrio.
A facilidade em falar sobre o passado, inclusive dos locais de moradia
antes da remoo, revelou que no h nenhuma preocupao em esconder a
origem favelada. Pelo contrrio, essas memrias foram acionadas como forma
de reforar uma identidade comum: a de moradores pobres que aproveitaram a
oportunidade de viver em moradias com melhor infra-estrutura. Nestes casos, a
162
relao com o territrio foi construda ao longo das dcadas, reforando os
vnculos dos moradores com o local de residncia. Estes estabelecidos,
fazendo uma aluso obra de Elias e Scotson (2000), vm assistindo a
mudanas de valores e comportamentos que fazem de Vila Kennedy hoje um
local que ainda conserva algumas caractersticas positivas do passado como
o velho hbito de conversar com os visinhos no porto , mas que obrigada a
conviver com fatores negativos como o aumento da violncia e da
criminalidade.
At o trfico de drogas, apontado como um dos principais elementos
negativos do viver em Vila Kennedy hoje, foi apontado como um aspecto que
sempre existiu, mas que mudou a olhos visto. Otrfico de drogas na localidade
passou de disfarado, escondido, algo que quase no se via ou se sabia, para
uma atividade conhecida e vista por todos a qualquer hora do dia e espalhado
em vrias regies. O bandido de antigamente era tido como protetor, aquele
que no oferecia drogas abertamente e nem cooptava os jovens para trabalhar
em atividades ilcitas. Atualmente, encarna a figura da ameaa, do risco
integridade fsica e patrimonial, aquele que com o uso da fora, pode ditar
regras e influenciar o comportamento coletivo.
Mesmo com a afirmao de que a violncia e o trfico de drogas esto
em todo o lugar (e no isolados nas favelas), o entendimento de que a vida no
diretamente afetada por estes fatores faz pensar que as prprias mudanas
de comportamento j foram incorporadas sem que, fossem problematizadas.
Um bom exemplo disso o fato de no se transitar com a mesma tranqilidade
em quaisquer localidades dependendo do horrio. A presena de pontos de
venda de drogas em diferentes regies faz com que haja sempre o perigo
iminente de troca de tiros entre policiais e traficantes. Com isso, muitos
moradores restringem seus horrios de sada e chegada e escolhem por onde
passar ou no, diante do medo de serem atingidos por alguma bala perdida.
Embora as experincias com tiroteios no sejam rotineiras, o medo do
imprevisto muda a rotina dos moradores, sem que muitos se dem conta disso
verdadeiramente.
Questes como o aumento populacional, as mudanas de valores entre
uma gerao e outra e a prpria diferena entre a postura dos kennedyanos
verdadeiros e daqueles que no criaram laos com a localidade so
163
fortemente apontadas como elementos que ajudam a explicar as mudanas
experimentadas no cotidiano. Desta forma, o verdadeiro morador de Vila
Kennedy aquele que se preocupa com a localidade, so as pessoas de bem
que nada tm a ver com o trfico de drogas. Salvo os vizinhos antigos, aos
quais se conhece de longa data (pois se sabe quem so, de onde vm, o que
fazem e quem sua famlia), os outros so os desconhecidos (aqueles sobre
os quais nada se sabe e por isso so alvo de desconfiana).
A idia de vidas diretamente afetadas pela violncia e pela ao do
trfico de drogas muito informada pelas realidades enfrentadas em diversas
favelas cariocas. Comparativamente, os moradores de Vila Kennedy no se
sentem diretamente afetados pela presena do trfico de drogas porque na
regio no h imposio de regras como o uso de determinadas cores nas
roupas ou mesmo a impossibilidade de passar de uma rea para outra. A
prpria noo de que os bandidos esto l (nos seus locais de venda ou
mesmo nas favelas) e ningum mexe com os moradores se contrasta com o
medo de que alguma represlia ocorra, pois no bom encarar muito. Desta
forma, aos moradores resta conviver com jovens fumando maconha nas suas
portas, traficantes fazendo seu comrcio nos locais que julgarem mais
conveniente, bailes funk sendo realizados em rea de grande circulao, como
forma de manter viva a venda de drogas mesmo em tempos de atuao da
milcia etc. Esta linha tnue entre a convivncia sobressaltada e o risco de
serem fisicamente atingidos faz com que os moradores refaam suas rotinas e
se acostumem a no se opor explicitamente s atuais regras de convivncia
impostas em Vila Kennedy.
164
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168
ANEXO 1
Detalhamento das entrevistas
169
Mariana aposentada; sessenta e cinco anos; membro atuante da Parquia
Cristo Operrio; vive em Vila Kennedy desde 1965 e foi removida da favela de
Nova Holanda;
Eliana de origem nordestina; sessenta anos; divorciada; fortemente envolvida
em movimentos sociais at os dias atuais; me de dois filhos; veio do subrbio
de Marechal Hermes e vive em Vila Kennedy h quarenta anos;
urea de origem nordestina; setenta anos; vive em Vila Kennedy h mais de
quarenta anos e foi removida do conjunto do SERFHA, em Ramos;
Ronaldo cinqenta anos; foi muito envolvido das atividades da Igreja Catlica
durante a juventude; vive em Vila Kennedy h cerca de quarenta anos e foi
removido do morro da Babilnia;
Levi professor de matemtica; trinta anos, nasceu e cresceu em Vila
Kennedy; inicialmente, viveu no conjunto do Quaf na casa dos pais;
Las contadora; trinta anos, nasceu e cresceu em Vila Kennedy;
Nara estudante; vinte e cinco anos, nasceu e cresceu em Vila Kennedy; mora
atualmente em rea da primeira gleba.
A seguir, grfico com os locais de origem dos moradores removidos:
170
ANEXO II
Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas IFCH
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais PPCIS
Roteiro de Campo
1- H quanto tempo reside em Vila Kennedy?
2- J morou em outros bairros/ reas?
3- Por que / como veio morar em vila Kennedy?
4- Como morar em Vila Kennedy?
5- Voc tem vontade de continuar morando aqui?
6- Se por acaso voc sasse, para onde iria? e por qu?
7- Voc trabalha? Gosta do que faz?
8- E os vizinhos, como so? Conhece? frequenta? (em que circunstncias?) So
seus amigos ou vc os encontra ocasionalmente? Quando e por qu?
9- Como voc considera Vila Kennedy?
10- E as favelas? H favelas em Vila Kennedy? Caso sim, elas mudaram alguma
coisa por aqui? E em seu cotidiano?
11- Como voc v a associao de Vila Kennedy favela/comunidade? Isso se
deve a qu?
171
ANEXO III
Mapa das trs glebas originais de Vila Kennedy
172
ANEXO IV
Mapa das favelas removidas para Vila Kennedy
173
ANEXO V
Mapa dos Bairros
174
ANEXO VI
Mapa das RAs